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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
P
ROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho
A INTERPRETAÇÃO DA SIMBÓLICA DA QUEDA EM PAUL
TILLICH:
Um Estudo em Hermenêutica Teológica
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2007
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Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho
A INTERPRETAÇÃO DA SIMBÓLICA DA QUEDA EM PAUL
TILLICH:
Um Estudo em Hermenêutica Teológica
Dissertação apresentada em cumprimento
às exigências do Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Religião, para
obtenção do título de Mestre em Ciências
da Religião.
Orientador: Prof. Dr. Etienne Alfred
Higuet
SÃO BERNARDO DO CAMPO
2007
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Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho
A INTERPRETAÇÃO DA SIMBÓLICA DA QUEDA EM PAUL
TILLICH:
Um Estudo em Hermenêutica Teológica
BANCA EXAMINADORA
Presidente _________________________________________.
Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet
Primeiro Examinador _________________________________________.
Prof. Dr. Rui de Souza Josgrilberg
Segundo Examinador _________________________________________.
Prof. Dr. Ronaldo de Paula Cavalcante
Dedicatória
À minha esposa, Alessandra, e às minhas filhas, Ana Elisa e Helena, que
são meu lar, e minha vida: ilude-se aquele que quer encontrar a vida
dentro do pensamento, sem encontrá-lo dentro da vida. E haveria vida
completa, sem o calor de um lar?
Agradecimentos
Agradeço primeiramente à minha família: a meus pais, pelo estímulo à vida intelectual,
e à minha esposa, em especial, pela confiança e apoio ao investimento na vida
intelectual. Sem seu estímulo insistente, talvez eu não tivesse ingressado na UMESP.
No campo acadêmico, preciso mencionar a influência do Dr. Dalton Said Henriques,
que verdadeiramente me introduziu à vida intelectual, ainda nos tempos de seminário, e
do Dr. Carlucci dos Santos, por seu exemplo de combinação de espiritualidade e
erudição. Agradeço também aos colegas da Associação Kuyper, em Belo Horizonte,
pelo ambiente de seriedade, curiosidade intelectual e interesse profundo pela vivência
cristã; não posso imaginar um ambiente melhor para pensar! E, finalmente, ao Dr.
Etienne Alfred Higuet, meu orientador que, com paciência exemplar, me introduziu nos
meandros do problema da hermenêutica da religião. Sem sua ajuda eu não teria
experimentado o meu próprio “giro hermenêutico”...
Entre as instituições, agradeço à Igreja Batista do Caiçara, que se dispôs a ceder seu
pastor auxiliar à pesquisa científica durante estes dois anos, ao IEPG, que nos auxiliou
durante o primeiro semestre do curso, e ao CNPq, pela bolsa de estudo sem a qual este
trabalho seria impossível.
“A correlação de ontologia e religião bíblica é uma tarefa infinita”
Paul Tillich
CARVALHO, Guilherme Vilela Ribeiro de. A Interpretação da Simbólica da Queda
em Paul Tillich: Um Estudo em Hermenêutica Teológica. Universidade Metodista de
São Paulo. São Bernardo do Campo, 2007 (Dissertação de Mestrado).
RESUMO
A Dissertação busca compreender e julgar criticamente a hermenêutica teológica de
Paul Tillich, a partir do estudo de sua interpretação simbólica da doutrina cristã clássica
do pecado, em sua forma protestante-agostiniana. O trabalho se desenvolve em três
etapas: primeiramente é apresentada a teoria do símbolo religioso de Paul Tillich. Em
seguida, a sua interpretação da doutrina do pecado, presente no complexo de símbolos
míticos e conceptuais que foram reunidos sob o nome “simbólica da Queda”. Na
terceira e última parte, a partir de uma avaliação da prática hermenêutica de Tillich
seguida de uma discussão com seus críticos, especialmente William Alston e Reinhold
Niebuhr, e de um diálogo especial com Paul Ricoeur, o autor conclui: tanto a teoria do
símbolo de Tillich como o seu enfoque hermenêutico, que vai principalmente da
analítica existencial ao símbolo, necessitam de aperfeiçoamento; e a teoria simbólica de
Ricoeur, associada à sua proposta indutiva de reflexão hermenêutica fornece uma
importante contribuição. Ao mesmo tempo, o sucesso de Tillich na interpretação da
simbólica da Queda parece refutar a tese de Ricoeur de que uma abordagem que parte
da ontologia para o símbolo é inadequada por princípio. Conclui-se, portanto, que a
abordagem de Tillich é válida, mas que precisa ser complementada; é necessário pensar
uma hermenêutica “de mão dupla”, que dê igual voz aos símbolos religiosos e à
ontologia existencial.
CARVALHO, Guilherme Vilela Ribeiro de. The Interpretation of the Symbolism of
the Fall in Paul Tillich: A Study in Theological Hermeneutics. São Paulo Methodist
University. São Bernardo do Campo, 2007 (Ms. Dissertation).
ABSTRACT
The Dissertation seeks to understand and to assess critically the theological
hermeneutics of Paul Tillich through the study of its symbolic interpretation of the
classic Christian doctrine of sin, in its protestant-agostinian form. The work is
developed in three stages. Firstly, the theory of the religious symbol of Paul Tillich is
presented. After that, his interpretation of the doctrine of sin, present in the complex of
mythical and conceptual symbols that had been congregated under the name of “the
symbolic of the Fall" is analyzed. In the third and last part, from an evaluation of the
practical hermeneutics of Tillich, followed by a critical assessment by some of his
critics, especially William Alston and Reinhold Niebuhr, and of a special dialogue with
Paul Ricoeur, the author concludes that both the theory of the symbol of Tillich and its
hermeneutical approach, that goes mainly from the existential analysis to the symbol,
needs perfectioning; and that the symbolic theory of Ricoeur, associated to its inductive
proposal of hermeneutical reflection, supplies an important contribution to it. At the
same time, the success of Tillich on the interpretation of the symbolic of the Fall seems
to refute the thesis of Ricoeur an approach that goes from ontology to symbol is
inadequate by principle. We conclude, therefore, that the approach of Tillich is valid,
but needs to be complemented; it is necessary to think a “two-ways” hermeneutics, that
gives equal voice both to the religious symbols and to the existential ontology.
ABREVIATURAS
AKB TILLICH, Paul. Answer to Karl Barth (1923).
BRSUR TILLICH, Paul. Biblical Religion and the Search for Ultimate Reality
(1955)
CHR TILLICH, Paul. The Construction of the History of Religion in
Schelling’s Positive Philosophy (1910).
CPP TILLICH, Paul. Critical and Positive Paradox: A Discussion with Karl
Barth and Friederich Gogarten (1923).
CS TILLICH, Paul. A Coragem de Ser (The Courage do Be, 1952).
DF TILLICH, Paul. The Dynamics of Faith (1957).
EP TILLICH, Paul. A Era Protestante (1948).
EPh TILLICH, Paul. Existential Philosophy (1944).
ERMT TILLICH, Paul. Estrangement and Reconciliation in Modern Thought
(1944).
HPC TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão (A History of Christian
Thought, 1968)
Introducing CLAYTON, John. Introducing Paul Tillich’s Writings in the Philosophy
of Religion (1987).
MGC TILLICH, Paul. Mysticism and Guilt-Consciousness in Schelling’s
Philosophical Development (1912).
MJRS TILLICH, Paul. The Meaning and Justification of Religious Symbols
(1961).
MW1 Paul Tillich Main Works, Volume 1: Philosophical Writings (1989).
MW4 Paul Tillich Main Works, Volume 4: Writings in the Philosophy of
Religion (1987).
MW5 Paul Tillich Main Works, Volume 5: Writings on Religion (1988).
.
MW6 Paul Tillich Main Works, Volume 6: Theological Writings (1992).
NSET TILLICH, Paul. The Nature and Significance of Existentialist Thought
(1956)
PBT TILLICH, Paul. Philosophical Background of my Theology (1960).
PTP TILLICH, Paul. Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e
XX (Perspectives on 19
th
and 20
th
Century Protestant Theology, 1967)
Reply TILLICH, Paul. Reply to Interpretation and Criticism by Paul Tillich
(1952).
RS TILLICH, Paul. The Religious Symbol (1940).
RSKG TILLICH, Paul. The Religious Symbols and Our Knowledge of God
(1955).
SK TILLICH, Paul. Symbol and Knowledge (1941).
ST TILLICH, Paul. Systematic Theology, Vols 1, 2, 3.
TS TILLICH, Paul. Teologia Sistemática, 5 Edição Revista (2005).
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................ 11
1. A Teoria do Símbolo Religioso de Tillich..............................
15
1.1. O Problema da Linguagem Religiosa na Filosofia da Religião
Contemporânea.................................................................................................................. 16
1.1.1. Respostas Clássicas ao Problema da Linguagem Religiosa.............................. 16
1.1.2. O Problema da Falsificação .............................................................................. 20
1.1.3. Símbolo, Analogia e Metáfora: Vias Cognitivas?............................................. 25
1.2. A Teoria do Símbolo Religioso no Sistema de Paul Tillich: Aspectos
Gerais .....................................................................................................................................31
1.2.1. A Natureza do Símbolo Religioso..................................................................... 31
1.2.2. Tillich e Outras Teorias do Símbolo Religioso................................................. 36
1.2.3. Via Simbólica: A Teoria Tillichiana da Linguagem Religiosa......................... 38
1.2.4. A Via Simbólica como Via Cristomórfica ........................................................ 41
1.2.5. Tipos de Símbolo Religioso.............................................................................. 50
1.2.6. Vida e Morte dos Símbolos Religiosos............................................................. 54
1.3. Símbolo e Mito em Tillich ................................................................................... 56
1.3.1. Mito: O Incondicional Narrado......................................................................... 56
1.3.2. Desmitologização: a “Quebra” do Mito............................................................ 58
1.3.3. Semi-Desmitologização: Quebrado, mas Vivo................................................. 61
1.3.4. Mito: Uma Esfera Simbólica Independente? .................................................... 62
1.4. Símbolo e Conhecimento Religioso: O Debate Americano....................... 67
1.4.1. O Debate com Urban e Aubrey......................................................................... 67
1.4.2. O problema do Referente e da Verdade da Linguagem Religiosa até o Debate
de 1960. ............................................................................................................................73
1.5. Síntese ..................................................................................................................... 80
2. Paul Tillich e o Desafio Hermenêutico do Símbolo da
“Queda”..........................................................................................
82
2.1. A Teologia Cristã do Pecado: Um Panorama Histórico.............................. 84
2.1.1. Raízes Bíblicas.................................................................................................. 85
2.1.2. Do Cristianismo Patrístico até Agostinho......................................................... 88
2.1.3. O Período Medieval .......................................................................................... 96
2.1.4. Reforma e Contra-Reforma............................................................................. 101
2.1.5. Modernidade ................................................................................................... 107
2.1.6. Reflexões Contemporâneas............................................................................. 112
2.1.7. Síntese............................................................................................................. 116
2.2. A Recepção da Teologia Cristã do Pecado em Paul Tillich: Influências
Principais ........................................................................................................................... 118
2.2.1. A Contribuição do Pensamento Patrístico Pré-Agostiniano............................ 118
2.2.2. A Raiz Agostiniana ......................................................................................... 123
2.2.3. Tillich e os Reformadores ............................................................................... 127
2.2.4. Tillich e as Contribuições Modernas............................................................... 130
2.2.5. A Contribuição de F. W. J. Schelling, a partir da Leitura de Tillich............... 140
2.2.6. Síntese............................................................................................................. 154
2.3. A Interpretação Tillichiana da “Queda” na Teologia Sistemática.......... 156
2.3.1. Fundamentos da Ontologia de Tillich............................................................. 156
2.3.2. Ser e Não-Ser .................................................................................................. 158
2.3.3. A Idéia de Finitude e as Estruturas Ontológicas ............................................. 160
2.3.4. Essência e Existência: A Espinha Dorsal........................................................ 164
2.3.5. Transição Essência-Existência e Criação........................................................ 167
2.3.6. Transição Essência-Existência e Queda.......................................................... 169
2.3.7. Alienação e Pecado ......................................................................................... 175
2.3.8. Mal e Auto-destruição Existencial.................................................................. 178
2.3.9. A Queda e as Ambigüidades da Vida.............................................................. 181
2.3.10. Síntese............................................................................................................. 187
3. A Interpretação do Símbolo da Queda em Paul Tillich
Criticamente Considerada ...........................................................
189
3.1. Teoria Simbólica e Prática Interpretativa na Interpretação do Símbolo da
Queda em Paul Tillich..................................................................................................... 190
3.1.1. A Natureza do Complexo Simbólico da Queda .............................................. 190
3.1.2. O que a Análise Existencial Esclarece a Respeito do Complexo Simbólico da
Queda?..............................................................................................................192
3.1.3. Como Classificar os Símbolos do Complexo Simbólico da Queda? .............. 206
3.1.4. O Complexo Simbólico da Queda e a Via Simbólica de Tillich..................... 210
3.1.5. Síntese ............................................................................................................ 220
3.2. Interações Críticas em Torno da Interpretação Simbólica da Queda de
Paul Tillich ......................................................................................................................... 223
3.2.1. Considerações em Torno da Interpretação do Símbolo da Queda em Tillich. 223
3.2.2. Considerações em Torno da Teoria do Símbolo Religioso de Paul Tillich .... 229
3.2.3. Síntese ............................................................................................................ 234
3.3. O Tratamento do Símbolo da Queda em Paul Ricoeur, em Comparação
com a Abordagem de Tillich: Um Contraponto Metodológico ............................ 237
3.3.1. O Símbolo e a Linguagem Religiosa em Paul Ricoeur................................... 238
3.3.2. A Interpretação da Simbólica do Mal em Paul Ricoeur.................................. 249
3.3.3. Síntese e Comparação: A Interpretação do Pecado em Tillich e em Ricoeur: 278
3.4. Teoria Simbólica e Teologia em Paul Tillich: Reflexões Construtivas. 282
3.4.1. O que Tillich alcança com sua interpretação?................................................. 283
3.4.2. Uma Dificuldade Importante........................................................................... 283
3.4.3. Limitações Hermenêuticas? ............................................................................ 284
3.4.4. Uma Crítica e uma Contribuição Ricoeuriana a Tillich.................................. 286
CONCLUSÃO.................................................................................292
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................
297
11
INTRODUÇÃO
Uma das mais importantes tendências atuais, nos estudos teológicos e religiosos
é a abordagem hermenêutica dos conteúdos das tradições religiosas. A própria teologia
vem sendo considerada por muitos como uma tarefa fundamentalmente hermenêutica,
um esforço de apreensão do sentido profundo, existencial, das estruturas da religião,
incluindo não somente a doutrina, mas também seus aspectos rituais, éticos, sociais,
entre outros.
Central, em qualquer discussão a respeito da interpretação da religião, é o
problema da linguagem religiosa. Qual é a sua verdadeira natureza, e suas condições de
possibilidade? Tem essa linguagem conteúdo cognitivo? No caso da tradição cristã essa
pergunta é particularmente aguda, desde que a doutrina e as afirmações teológicas
desempenham um papel preponderante na vivência religiosa. A discussão sobre a
natureza da linguagem religiosa tem incidência direta sobre a compreensão dos
conteúdos teológicos da tradição, envolvendo a questão do status lógico da linguagem
religiosa, de seu referente, da natureza e geração do sentido religioso, e de sua
construção discursiva.
Tillich, como se sabe, promoveu uma ampla e profunda retomada da tradição
cristã protestante a partir da descoberta moderna do sujeito e da crise da modernidade
introduzida pelo movimento existencialista, e seu pensamento atingiu uma abrangência,
em termos de diálogo com a cultura, que não tem paralelo na teologia do século XX.
Por seu esforço consciente e disciplinado de diálogo entre mensagem e situação a
teologia de Tillich torna-se exemplo pioneiro e modelar da forma hermenêutica de
teologia que vêm sendo amplamente seguida e recomendada na contemporaneidade.
Tillich descreveu o seu método com o termo “correlação”, a fim de expressar a idéia de
12
que a reflexão deve partir de um diálogo de mensagem e situação, no qual a análise
filosófica apresenta as questões da situação presente, e a teologia responde à situação
extraindo o sentido eterno da mensagem religiosa a partir das questões e categorias
fornecidas pela situação. Justificadamente, portanto, o Dr. Etienne Higuet descreve a
proposta de Tillich como uma hermenêutica teológica. E esclarece:
O método de correlação explica os conteúdos da fé cris
numa interdependência mútua entre as questões existenciais e as
respostas teológicas. A teologia formula as questões implicadas na
existência humana e também as respostas contidas na auto-
manifestação divina. A formulação das respostas sofre influência das
questões: trata-se de um círculo, que leva o ser humano até o ponto de
fusão entre questões e respostas. Esse ponto pertence ao ser essencial
do ser humano, à unidade de sua finitude com o infinito no qual foi
criado e do qual está separado (Higuet, 1995:40).
O caminho até o ponto de fusão, no entanto não é fácil. Afinal de contas, a
tradição reflexiva, em sua expressão alemã e o pensamento metafísico clássico, tão
importantes na constituição do pensamento de Tillich, encontram a resistência da
linguagem religiosa bíblica e cristã que “luta”, por assim dizer, para manter a sua forma
literal. Na teologia fundamentalista, essa luta pode chegar até mesmo ao ponto da
ruptura com a reflexão. Na teologia moderna, opta-se às vezes por uma
descaracterização completa da religião bíblica no solvente do humanismo secular.
Tillich, como mestre exemplar do que foi chamado de “teologia da mediação”, rejeitava
o dualismo e manteve coerentemente a esperança de correlacionar querigma e
racionalidade, mensagem e situação, confessando até o fim que o Deus de Abraão e o
Deus dos filósofos seria o mesmo:
Desde a ruptura da grande síntese entre o Cristianismo e a
mente moderna, tentada por Schleiermacher, Hegel, e o liberalismo do
século XIX, uma atitude de cansaço tem capturado as mentes de
pessoas que são incapazes de aceitar uma ou outra alternativa. Elas
estão por demais desapontadas para tentar outra síntese, depois de
tantos falharem. Mas não há escolha para nós. Nós devemos tentar de
novo! E queremos começar com a questão: Teriam as atitudes e
conceitos da religião bíblica implicações que não apenas permitem,
mas exigem uma síntese com a busca pela realidade última? E, por
13
outro lado, teria o pensamento ontológico implicações que o abrem
para a preocupação da religião bíblica? (MW4[BRSUR]:378)
Tillich estava disposto a confessar a dificuldade da tarefa. Com seu profundo
conhecimento da tradição, não poderia enxergar a questão ingenuamente. Mas se dispôs
a tentar de novo. E o conjunto de sua obra multifacetada pode ser visto como um
gigantesco exercício de correlação hermenêutica, a fim de encontrar o “ponto de fusão”.
Falar em hermêutica, como dissemos no princípio desta introdução, é falar em
linguagem. E, de fato, no centro do trabalho de correlação de Tillich encontrava-se,
confessadamente, a sua teoria da linguagem religiosa como linguagem simbólica. Por
meio dessa concepção, que ele denominava via simbólica, Tillich esperava estabelecer o
contato dialógico. Assim, sua hermenêutica tinha um pressuposto duplo: a natureza
simbólica da religião bíblica e a sua unidade interna com a ontologia. No esforço de
correlacionar religião bíblica e investigação ontológica da existência, Tillich procurava
mostrar que “[...] cada um dos símbolos bíblicos conduz inescapavelmente a uma
questão ontológica, e que as respostas dadas pela teologia necessariamente contém
elementos ontológicos” (MW4[BRSUR]:357).
Para obter uma apreensão aprofundada da hermenêutica de Tillich, escolhemos
estudar criticamente a interpretação que ele desenvolve em torno de um complexo
simbólico específico: a simbólica da “Queda”. Com esta expressão nos referimos ao
conjunto dos símbolos míticos e conceituais que compõe o que tradicionalmente foi
tratado, na teologia dogmática, sob a denominação “Hamartiologia”. Poderíamos falar,
então, de uma “simbólica hamartiológica”, ou de uma “simbólica do pecado”; ou, tendo
em vista a relação entre o mal e a divindade, no pensamento de Tillich, até mesmo de
uma “simbólica da negatividade”. Considerando, no entanto, que toda a reflexão se
desenvolveu em torno do núcleo mítico-simbólico de adão, e o próprio Tillich usa a
14
noção de “Queda” como ponto de partida para a sua reflexão no volume II da sua
Sistemática, utilizaremos a expressão “Simbólica da Queda” como designação principal
para o nosso objeto.
Nosso estudo se desenvolverá ao longo de três capítulos. No primeiro, será feita
uma apresentação detalhada da teoria simbólica de Paul Tillich. No segundo capítulo,
vamos contemplar a reflexão sobre a Queda de Tillich, em três etapas: uma introdução à
tradição hamartiológica cristã, para prover o contexto, seguida da interpretação que o
próprio Tillich faz da tradição, e de uma exposição do tratamento dado por Tillich ao
tema em sua Sistemática. No terceiro capítulo, iniciaremos examinando de perto o
modo como a teoria do símbolo de Tillich é aplicada na interpretação dos símbolos; em
seguida serão apresentadas e discutidas algumas reações críticas ao pensamento de
Tillich, e faremos uma comparação com a abordagem de Paul Ricoeur. O capítulo se
encerrará com uma discussão dos resultados, tendo em vista o problema aqui exposto da
hermenêutica teológica.
15
1. A Teoria do Símbolo Religioso de Tillich
O primeiro capítulo de nosso trabalho pretende apresentar uma introdução geral
à teoria do símbolo de Tillich. Segundo o nosso teólogo, a linguagem religiosa é
essencialmente simbólica. Segue-se, portanto, que não há como avaliar a interpretação
desenvolvida por Tillich em torno da simbólica da Queda, em seus estudos de história
da teologia e em sua Teologia Sistemática, sem considerar com seriedade as suas idéias
sobre a natureza do símbolo.
É claro que isto pressupõe um contexto teórico mais amplo, que é a filosofia da
linguagem religiosa. Mesmo não sendo o nosso assunto principal, achamos por bem
iniciar por aí a nossa discussão, no primeiro subcapítulo, intitulado O Problema da
Linguagem Religiosa na Filosofia da Religião Contemporânea, a fim de prover o
contexto necessário. No segundo subcapítulo (A Teoria do Símbolo Religioso no
Sistema de Paul Tillich: Aspectos Gerais), introduzimos as características principais da
teoria do símbolo de Tillich, diferenciando-a de outras posições. No terceiro subcapítulo
(Via Simbólica: A Teoria Tillichiana da Linguagem Religiosa) descemos a
considerações mais específicas sobre a teoria do símbolo de Tillich, localizando-a no
espectro das teorias da linguagem religiosa, e discutindo suas particularidades, como o
critério cristomórfico. No quarto subcapítulo (Símbolo e Mito em Tillich) procuramos
esclarecer a natureza simbólica do mito, em Tillich, e seu conseqüente valor religioso e,
no quinto subcapítulo (Símbolo e Conhecimento Religioso: O Debate Americano),
introduzimos o importante problema do equacionamento da teoria simbólica de Tillich
com as exigências da forma anglo-americana de filosofia, com a qual ele teve contato
16
significativo após emigrar para os EUA. Concluímos o capítulo, finalmente, com uma
breve síntese preliminar.
1.1. O Problema da Linguagem Religiosa na Filosofia da Religião
Contemporânea
1.1.1. Respostas Clássicas ao Problema da Linguagem Religiosa
O leque de problemas relacionados à linguagem religiosa é bastante amplo,
envolvendo questões como a da relação entre universais e particulares, das exegeses
alegórica e literal, da hermenêutica no sentido amplo, das funções do discurso religioso.
O que nos interessa especificamente, neste sub-item, é a natureza da linguagem
religiosa.
Segundo Dan Stiver, as opções mais importantes no tratamento do problema da
linguagem religiosa já haviam sido claramente expressas no período medieval,
constituindo até o presente as vias tradicionais: a via negativa, a via unívoca e a via
analógica. Assim, no século XIII, Tomás de Aquino argumentou que a linguagem
religiosa seria analógica e Duns Scotus se opôs, alegando que a linguagem religiosa
deveria ser unívoca, sendo a equivocidade a única alternativa possível, embora
inaceitável (Stiver, 1996:15). Segundo Stiver, ambos os teólogos ignoraram
completamente uma terceira opção presente na história do cristianismo: a de que “[...] a
linguagem religiosa é não-cognitiva. Esta visão é uma voz minoritária no pensamento
Cristão, mas é, talvez, a visão majoritária no pensamento Oriental” (Stiver, 1996:15),
17
representada por místicos como Meister Eckhart (1260-1327) e filósofos como o judeu
Moses Maimonides (1135-1204).
A Via Negativa alegaria, portanto, que toda linguagem religiosa é equívoca,
devendo ser radicalmente negada. Mas isso não deve ser entendido em um sentido
puramente cético; a finalidade da negação seria a de afirmar a realidade da experiência
de Deus como algo inigualável e inconfundível com toda e qualquer experiência natural.
A via negativa se funda numa afirmação intensa da transcendência de Deus, opondo-se
a uma identificação simples da divindade com entes e categorias criadas. Esta posição é
encontrada no neo-platonismo e, por meio dele, encontra eco em Agostinho e em
Pseudo-Dionísio o Areopagita que, na obra Os Nomes Divinos, “[...] mostra como os
nomes de Deus não descrevem a Deus literalmente, mas apontam a Deus como a causa
de todas as coisas [...]” (Stiver, 1996:17). Stiver observa que os defensores da via
negativa (Dionísio e Maimônides, no caso) percebem, com clareza, a necessidade de
afirmar a transcendência de Deus em relação às categorias humanas de entendimento,
mas seriam inconsistentes ao fazer afirmações sobre a liberdade, a simplicidade ou a
relação de causalidade entre Deus e a criação que, no fundo, contradizem a estratégia da
negação (Stiver, 1996:19).
A Via Unívoca, representada por Duns Scotus, sustenta que a linguagem
religiosa é literal. A univocidade seria a unidade tal, de um conceito, que produza a
contradição lógica quando é negado e afirmado pelas mesmas razões. Esta visão estaria
representada, atualmente, pelo teólogo evangélico Carl Henry, para quem não seria
possível buscar qualquer similaridade entre Deus e o homem, para fundar a linguagem
religiosa, se não tivéssemos alguma verdade literal sobre Deus, que operasse como
termo de comparação (Stiver, 1996:21). Stiver inclui Paul Tillich nesta categoria.
18
Segundo ele, ao admitir, no debate com Aubrey
1
, a necessidade de uma afirmação não-
simbólica sobre Deus (no caso, que Deus seria o “Ser-em-si”, being itself) para conferir
significado ao discurso simbólico, Tillich se coloca do lado de Scotus e de Henry
(Stiver, 1996:22)
2
.
A Via Analógica tem Tomás de Aquino como seu principal representante e
constitui a solução mais amplamente aceita para o problema da linguagem religiosa.
Aquino chega à solução analógica ao concordar, por um lado, com a via negativa,
quanto à transcendência de Deus, e com a via unívoca, por outro, com a realidade do
conhecimento de Deus e a positividade de nosso falar sobre Deus. Segundo Stiver, duas
propostas de analogia se desenvolveram a partir de Aquino: a analogia de atribuição e a
analogia da proporcionalidade.
A analogia de atribuição relaciona qualidades a Deus a partir da relação de
causalidade entre Deus e a situação que envolve aquela qualidade. Este seria o caso, por
exemplo, de dizermos que “a medicina é saúde”, quando ela não é saúde ou saudável no
sentido literal, como as pessoas são saudáveis, mas no sentido derivativo, de ser
causadora de saúde. Assim, Deus seria amor por ser a causa do amor. Além disso,
termos capazes de expansão infinita, como “bondade”, “amor” e “justiça” seriam mais
apropriados para descrever Deus analogicamente do que metáforas como “leão”, ou
“rocha”, por não serem essas expansíveis ao infinito. Entre as objeções à analogia de
atribuição figuram o problema da semelhança entre a causa e o efeito, que não é
1
Discutiremos o ponto com detalhes mais à frente.
2
Stiver defende a sua classificação a despeito de reconhecer a importância das idéias de Tillich sobre o
símbolo religioso, e observa que, em alguns lugares, Tillich parece sustentar que toda a linguagem sobre
Deus é absolutamente simbólica – incluindo a própria noção de “ser-em-si”.
19
claramente necessária, no caso, e o problema do status da categoria da causalidade, que
parece ser compreendida literalmente, contradizendo a via analógica
3
.
A analogia da proporcionalidade considera que cada ente participa de certa
qualidade segundo a sua própria essência. A árvore é viva em um sentido próprio e
distinto do animal, de modo que o termo “vida” funciona diferentemente nos dois casos.
Em havendo uma “escala” de entes, do mais simples ao mais elevado, a vida significará
algo semelhante, mas distinto conforme o “nível” da escala. E o que determina a
possibilidade de analogia é a correspondência quanto ao significado de certa qualidade
para entes distintos.
Uma importante dificuldade com a analogia da proporcionalidade é o fato de que
qualquer proporção envolve a descoberta de uma equivalência entre os entes
comparados. Proporcionalidade é uma relação matemática de, no mínimo, quatro
termos; a identificação de um termo x exige o conhecimento de três termos. Assim, a
perna da mesa está (w) para a mesa (x) como a perna do homem está (y) para o homem
(z), isto é, w = y = sustentação física. Como é óbvio, nosso conhecimento da relação
entre a perna e o homem permite compreender uma equivalência na relação entre a
“perna” da mesa e a mesa. No caso de Deus, no entanto, não temos o conhecimento de
sua relação, por exemplo, com a categoria “vida”, por não sabermos o que “Deus” é.
Como poderíamos dizer, portanto, que Deus é “vivo” em um modo proporcional, como
nós somos “vivos”? Para funcionar, a analogia proporcional deverá pressupor que
sabemos o que Deus é. Em resposta a isso, defensores contemporâneos de Aquino
propuseram que a analogia de atribuição forneceria o conhecimento inicial sobre Deus,
3
“Se a causa é usada em um sentido literal, estamos afirmando que toda linguagem atribuída a Deus é
analógica – baseando-nos, entretanto, em uma atribuição unívoca, Deus como causa. Esta é,
precisamente, a abordagem unívoca, caracteristicamente afim à de Tillich. Por outro lado, se a causa é
usada analogicamente, Aquino está explicando analogia por uma analogia, num bom exemplo de
argumento circular [...]” (Stiver, 1996:26).
20
a ser aprofundado pela analogia da proporcionalidade. O problema é que, enfim, a
analogia da atribuição não funciona sem a admissão de um mínimo de conhecimento
literal de Deus, baseado em sua relação com o cosmo criado (Stiver, 1996:28).
Um problema adicional, no tocante à via analógica, é o das pressuposições
metafísicas implícitas – o problema da analogia entis. Muitos teólogos e filósofos
rejeitam a via analógica por considerar inaceitável a visão de um universo unificado em
que todas as coisas refletem o seu fundamento e recebem dele a universalidade. Alguns
filósofos, devido ao impulso naturalista e nominalista; alguns teólogos, como Barth,
pela impressão de que a analogia entis lança Deus no interior de uma cadeia de
necessidade ontológica que enfim destrói a sua liberdade, e o despersonaliza. Assim,
para muitos, os benefícios trazidos pela via analógica não cobrem os custos metafísicos
de obliterar-se a diferença qualitativa Criador-criatura.
Tendo em vista as dificuldades para descrever, Dan Stiver conclui que as
discussões medievais nos deixam com uma “lacuna intransponível”, uma rua sem saída
(Stiver, 1996:29). Mas elas servem, ao menos, como pontos de referência em busca de
soluções mais adequadas.
1.1.2. O Problema da Falsificação
Desde a introdução do conceito de falsificabilidade por Karl Popper, apresentado
como um critério de demarcação para distinguir entre a ciência legítima e a
pseudociência, o debate sobre o status da linguagem religiosa tornou-se mais acirrado.
Conforme o critério, o conteúdo empírico de uma declaração corresponde a seu grau de
falsificabilidade. Assim, quanto mais difícil for falsificar uma declaração, menor a sua
acessibilidade empírica e, deste modo, sua importância cognitiva. Uma declaração
21
completamente imune à falsificação seria empiricamente insignificante, caindo fora do
domínio da ciência (Harris, 2002:30). O critério Popperiano foi aplicado à teologia pelo
filósofo ateu Antony Flew (1944), para quem a afirmação da crença em Deus seria
infalsificável, na medida em que sempre é corrigida para se adaptar à falta de
evidências, sendo, portanto, sem valor cognitivo. Se uma afirmação não nega nada que
possa ser verificado e, eventualmente refutado, então ela igualmente não afirma nada.
Em suas palavras, que se tornaram famosas, ela sofre “a morte das mil qualificações”
(Harris, 2002:32).
Diversos filósofos importantes tentaram responder à objeção de Flew, como
Alvin Plantinga e Keith Yandell, mas não vamos nos demorar nesse ponto. O que mais
importa aqui, para nós, é a sua importância histórica, nos desdobramentos em torno do
status da linguagem religiosa. Segundo James Harris, duas categorias gerais de
respostas teriam emergido: a “liberal” e a “conservadora” (sem a conotação de
“ortodoxia” ou “heterodoxia”). As respostas “liberais” seriam aquelas que admitiram a
rejeição da significância empírica da linguagem religiosa, procurando explicá-la de
outro modo, às vezes procurando algum tipo de referência empírica alternativa. As
respostas “conservadoras” tentam proteger o valor empírico da linguagem religiosa
(Harris, 2002:35).
Entre os esforços “liberais” para solucionar a questão, Harris inclui a explicação
do discurso religioso como expressão de uma atitude em relação ao mundo (R. M Hare),
como expressão de uma situação como profundamente pessoal e significante
envolvendo, assim, um compromisso existencial total (Ian Ramsey), ou como expressão
de uma combinação de experiências e tradições no interior de uma comunidade
interpretativa (Janet Soskice); as defesas contemporâneas da teoria da analogia de
Tomás de Aquino, como forma de explicar a ausência de uma expressão literal a
22
respeito do referente da linguagem religiosa (A. M. Farrer, E. L. Mascall); o conceito de
“teologia metafórica” (Sallie McFague), as teorias de significado como uso, e também a
teoria dos jogos de linguagem, derivadas principalmente de Wittgenstein (Alaisdair
MacIntyre, Braithwaite, Paul van Buren e D. Z. Phillips), e a proposta do “silêncio
sagrado” (Thomas McPherson), que elimina completamente a possibilidade de uma
linguagem religiosa significativa (Harris, 2002:36-59).
Na opinião de Harris, Paul Tillich poderia ser incluído aqui como um dos mais
proeminentes representantes da abordagem “liberal”, que admite o colapso da busca por
um referente empírico para a linguagem religiosa
4
. O fundo contextual dessa rejeição
não deve ser buscado meramente na interação de Tillich com os desafios à
inteligibilidade da linguagem religiosa que ele encontrou na América. Devemos nos
lembrar de que Tillich, como ele mesmo observa, veio de um país no qual o enfoque
epistemológico obscureceu grandemente as questões ontológicas. Tillich foi
profundamente impactado pela crítica Kantiana à metafísica e à cognoscibilidade do
Deus do Teísmo, e aceitou essa crítica como tendo validade definitiva
5
.
O tratamento Tillichiano da linguagem religiosa se assemelha, portanto, às
abordagens analógicas e metafóricas, na rejeição da literalidade do discurso religioso,
em sua forma pura ou primitiva. Mas Tillich vai além dessas abordagens, rejeitando a
possibilidade de fazer o transcendente significativo em termos do imanente. Sua
estratégia, basicamente, seria a de atribuir a toda a linguagem religiosa a natureza
simbólica e representacional, e negar-lhe o poder de “traduzir” o transcendente em
termos imanentes, isto é, de fazer Deus parte do mundo empírico. Nesse caso, a
4
Poderíamos incluir aqui, também, a abordagem de Paul Ricoeur.
5
No tempo de Tillich tal posicionamento era comum e admissível. Na filosofia contemporânea da
religião, no entanto, os diques Kantianos colapsaram; uma situação claramente imprevisível para Tillich.
Assim Plantinga, por exemplo, mostra o quanto a separação Kantiana entre númenos e fenômenos – a
two-world picture – ou, ao menos, a interpretação de Kant que aceita essa distinção, tornou-se
problemática (Plantinga, 2000:3-30).
23
linguagem religiosa teria um “referente”, mesmo que ele não tenha predicados nem seja
empiricamente acessível:
[...] a análise existencial tem tornado mais difícil para a mente
moderna dispor dos símbolos religiosos pela estratégia de,
primeiramente, atacá-los literalmente e, então, rejeitá-los
apropriadamente como absurdos. Qualquer ataque ao simbolismo deve
ser conduzido em um nível muito mais profundo, isto é, no do próprio
simbolismo. Símbolos genuínos podem ser vencidos apenas por outros
símbolos genuínos, não pela crítica de suas distorções literalistas
(MW6[1956]:396).
A estratégia de Tillich é clara: em um estilo kantiano, Tillich remove o
significado religioso dos símbolos do alcance da crítica filosófica da linguagem
religiosa, estabelecendo critérios apropriadamente teológicos para esta análise, e utiliza
os ataques ao sentido literal do discurso religioso a seu favor. Com esta abordagem
simbólica, Tillich responderia ao desafio do valor cognitivo da linguagem religiosa,
aceitando a crítica de filósofos como Anthony Flew sem esvaziar o valor do discurso
religioso. Sob essa luz devemos compreender a declaração de Tillich, de que o centro de
sua doutrina teológica do conhecimento seria o conceito de símbolo (Tillich [Reply],
1952:333). É que, pelo símbolo, de certo modo, conhecemos a Deus sem conhecê-lo.
O fato de Tillich ter desenvolvido uma teoria do símbolo mostra que ele estava
bem consciente da impossibilidade de uma discussão sobre a interpretação da religião
abstraída de qualquer reflexão sobre a natureza da linguagem religiosa. Tillich interagiu
com os críticos provenientes da tradição analítica, com os defensores da tradição
analógica de Tomás de Aquino, e influenciou profundamente outros defensores de
abordagens simbólicas ou metafóricas. É nossa convicção, em princípio, que a
discussão sobre a teoria do símbolo de Tillich, como teoria da linguagem religiosa, seria
uma das mais importantes entradas para considerar seu método teológico como
hermenêutica – uma forma original de hermenêutica simbólica.
24
No campo das respostas “conservadoras”, que procuram restabelecer o valor
empírico da linguagem religiosa, Harris inclui: a defesa de uma verificação escatológica
do discurso religioso (Ian Crombie e John Hick), a crítica ao modo de aplicação do
critério da falsificabilidade (Basil Mitchell), a teoria dos atos de fala (speech-acts)
aplicada à linguagem religiosa (o próprio Harris) e a defesa, por William Alston, da
viabilidade de um discurso literal sobre Deus (Harris, 2002:60-76).
William P. Alston, um dos mais conhecidos filósofos analíticos americanos e ex-
presidente da American Philosophical Association, se propôs recentemente a defender a
possibilidade de um discurso literal sobre Deus. Expressões como “criou Deus os céus e
a terra” ou “falou Deus a Moisés” deveriam ser entendidas literalmente. O maior
obstáculo a isso seria, em sua percepção, uma ênfase mal orientada na transcendência de
Deus, mais do que a crítica moderna do mito.
O nome de Alston é significativo, para nós, em primeiro lugar, porque sua
abordagem representa quase o extremo oposto da concepção de Paul Tillich, sobre a
linguagem religiosa; Alston quer relacionar o referente da linguagem religiosa com o
seu conteúdo semântico, enquanto Tillich opta, a partir da ontologia, por manter,
também, um referente, relativizando, no entanto, o conteúdo semântico da linguagem
religiosa. Além disso, Alston escreveu a respeito da teoria do símbolo de Tillich e cita-o
freqüentemente em seus trabalhos de filosofia da linguagem religiosa. Na opinião de
Alston, Tillich não teria sido capaz de manter coerentemente a sua teoria dos símbolos
em sua prática hermenêutica, como expressa, principalmente, na Systematic Theology.
Tendo em vista o debate contemporâneo, podemos dizer que uma consideração
crítica da interpretação Tillichiana da queda deve ter como ponto de referência
constante a consideração de sua teoria simbólica, e que a discussão dessa teoria
25
simbólica deverá contemplar a forma como ele conecta a capacidade referencial e o
conteúdo semântico dos símbolos.
1.1.3. Símbolo, Analogia e Metáfora: Vias Cognitivas?
De acordo com Dan Stiver, a reconsideração da importância da metáfora, a partir
da década de 1960, contribui para a renovação das discussões sobre os temas clássicos
da analogia e do símbolo religioso (Stiver, 1996:112). Stiver organiza a evolução das
idéias sobre a metáfora em duas perspectivas dominantes: a metáfora como
“ornamento”, e como “via cognitiva”.
A abordagem “ornamental” teria sua exposição clássica em Aristóteles, para
quem ela seria um substituto da linguagem literal, um desvio da fala normal, cuja
função seria puramente estética e não-cognitiva. Sua base seria a similaridade
subjacente, e ela poderia ser reduzida à linguagem literal. Esta abordagem básica foi
transmitida a Tomás de Aquino, que minimizou o papel da metáfora, preferindo a
analogia como forma de descrever a dinâmica da linguagem religiosa.
6
A modernidade
apenas aprofundou esta tendência, criando um espírito anti-metafórico, cujo clímax teria
sido o movimento do positivismo lógico (Stiver, 1996:114-115).
Uma abordagem nova, no campo filosófico, teria aparecido apenas nos trabalhos
de I. A. Richards em 1936 e de Max Black em 1954-55, em termos compreensíveis à
tradição analítica, nesta época ainda dominada pelo positivismo. Richardson defendeu,
basicamente, que a metáfora seria irredutível à linguagem literal, e Black, que a
6
Para Aquino, a metáfora descreve a divindade através de imagens não expansíveis ao infinito, i.é.,
incapazes de se sujeitar ao procedimento da via eminentiae. Não se pode, por exemplo, estender à
infinitude o sentido de Deus como o “Leão”, mas é possível fazê-lo com o sentido de Deus como a
“justiça”. Isto ocorreria porque o modo finito de participação em certa perfeição está unido a ela, na
metáfora, ao passo que certos nomes apresentam a perfeição de modo absoluto, sem esta conexão. Estes
últimos seriam aptos à via eminentiae. A linguagem analógica seria, portanto, superior à metafórica
(Stiver, 1996:25).
26
metáfora seria uma forma de criar novas realidades. Ambos procuraram mostrar que a
metáfora ocorre em um nível acima da palavra, na sentença, onde se dá uma espécie de
combinação ou interação semântica para gerar um sentido que não é dado por seus
componentes isoladamente. Paul Ricoeur, na mesma corrente de Richards e Black,
também defendeu a necessidade de compreender a metáfora no nível sentencial, e
apontou a incongruência literal, o “choque semântico” criado pela metáfora, como o
locus da “inovação semântica”, que cria um novo conteúdo (Stiver, 1996:116-117).
Seria preciso, portanto, nessa nova perspectiva, compreender que duas regiões de
sentido, unidas na metáfora, não perdem sua identidade própria, mas o sentido criado
metaforicamente só é percebido “estereoscopicamente”, e não é redutível a um dos
termos ou regiões. A metáfora não seria meramente “ornamental”, mas também
geradora de significado e poderia ter valor cognitivo, ainda que este fosse comunicado
de forma sugestiva e imprecisa (Stiver, 1996:118).
Outros desenvolvimentos reforçaram ainda mais a “febre metafórica”. Os
estudos de filósofos da ciência como Mary Hesse e Ian Barbour, e de especialistas em
metáfora como Mary Gerhart indicaram que até mesmo as linguagens científica e
filosófica seriam povoadas de metáforas, que teriam papel construtivo em modelos e
paradigmas teóricos. E os trabalhos de George Lakoff e Mark Johnson indicaram que
boa parte da linguagem literal funciona apoiada em metáforas profundamente
assimiladas e utilizadas tacitamente (Stiver, 1996:120).
O pan-metaforicismo mais radical poderia dizer que toda a linguagem é
metafórica, finalmente, mas tal é impossível, desde que a metáfora precisa criar sentido
a partir da linguagem literal. É bem aceita hoje, no entanto, a idéia de que a metáfora
não tem função meramente ornamental; ela cria sentido positivo e é irredutível à sua
27
morfologia literal. Pode, pois, funcionar como via cognitiva para nomear realidades até
agora ocultas à consciência.
Tendo em vista nosso interesse pela questão do símbolo em Tillich, precisamos
perguntar sobre a relevância da discussão para nosso tema. As três “tradições”, como as
denomina Stiver – simbólica, analógica e metafórica têm, como interesse comum, o
problema da referenciação e da relação com a linguagem literal. Mas é importante
distinguirmos os três conceitos com mais clareza.
Símbolo e metáfora funcionam, às vezes, de um modo muito semelhante,
envolvendo um choque semântico no nível literal com um sentido emergente das
“ruínas”, ou da conflação de duas regiões semânticas. A concepção do símbolo religioso
de Tillich foi pioneira, na opinião de Stiver, ao afirmar a irredutibilidade do símbolo
religioso à linguagem literal, aproximando-o dos últimos desenvolvimentos da teoria
metafórica. Gilkey, seguindo Tillich, também opta pela via simbólica, compreendendo
os símbolos religiosos como portadores e representantes do incondicionado, cujo
Gestalt particular reflete a particularidade de certa tradição religiosa (Stiver, 1996:123).
Stiver cita ainda Ricoeur, em sua Simbólica do Mal, na qual a linguagem literal em
religião não é negada, mas o símbolo religioso, em suas ambiguidades estruturais, é
exaltado como portador de sentidos incapazes de serem comunicados literalmente.
A aproximação feita por Stiver entre a tradição metafórica e a simbólica, como
representada em Tillich e Gilkey, nos parece problemática, na medida em que não
distingue suficientemente a dinâmica de criação de sentido do símbolo religioso em
Tillich. Na metáfora duas regiões de sentido são reunidas para criar um sentido
inexpressível nos termos literais, naquele momento, mas pensáveis e passíveis de
representações alternativas (outras metáforas, descrição literal, etc); no símbolo
religioso, a incondicionalidade é atribuída a uma “região” condicionada, de modo que
28
ela represente o incondicionado, mas o processo não cria um conteúdo semântico novo,
isto é, não cria uma nova “região”, embora gere uma atitude de preocupação existencial
que reorganiza a totalidade dos significados linguisticamente expressíveis. Mas isso
vale apenas para a teoria simbólica de Tillich – já na teoria de Ricoeur, como veremos,
o símbolos realmente abrem uma nova região semântica.
Há outras diferenças, indicadas por Stiver. Apoiando-se em Janet Soskice, ele
destaca que “[...] metáforas são figuras de linguagem, e não eventos ou coisas, como os
símbolos podem ser, embora os símbolos também possam ser palavras” (Stiver,
1996:124). Além disso, a metáfora tem uma origem mais livre, como produto do
discurso intencional, ao passo que um símbolo (como o da “Cruz” de Cristo, por
exemplo), emerge de dentro de uma vasta teia de sentido e de um processo histórico por
vezes longo (Stiver, 1996:124). Nesse sentido, também, a teoria de Tillich traz grande
esclarecimento, como veremos.
7
Ao lado das abordagens metafóricas e simbólicas permanece, ainda viva, a
abordagem analógica, na linha da tradição tomista. Os metaforicistas têm argumentado
que a analogia está mais próxima à linguagem literal, funcionando na verdade como
uma extensão não-criativa de sentido (Stiver, 1996:125), ou que ela, assim como o
simbolismo, fazia sentido em um universo sacramental e unificado, no qual pode-se
falar em “analogia do ser” (Stiver, 1996:126). Mas, para alguns analogicistas, a mesma
dinâmica identificada na abordagem cognitiva da metáfora – a de que ela envolve uma
inovação criativa a partir da interação de dois campos de sentido – estaria presente na
analogia. Stiver cita David Tracy, para quem seria inútil tentar explicar a analogia por
meio da redução à linguagem unívoca; a analogia envolveria “[...] a percepção de
7
Reunindo os três modelos de linguagem, Ian Barbour observa que “muitos símbolos religiosos parecem
ser metáforas baseadas em analogias com a experiência humana”. Este seria o caso dos símbolos de
“altitude”, ou do simbolismo da “luz” (BARBOUR, 1974:14,15).
29
irredutíveis ‘similaridades-na-diferença’ entre um evento ou realidade finita, e a
realidade suprema” (Stiver, 1996:126). O ponto principal de Tracy seria de que a
analogia só mantém seu poder na medida em que o elemento de diferença é mantido
visivelmente.
Há, como é claro, grandes semelhanças entre a metáfora, a analogia e o símbolo.
Um aspecto central do conceito de metáfora é a capacidade de “ver uma coisa da
perspectiva de outra”. Esta qualidade é importante, também, para os conceitos de
símbolo e de analogia; todos dependem, no processo de geração semântica, da
correlação entre duas regiões de sentido. As discussões sobre a metáfora, no século XX,
viablizaram, ainda, esforços para compreender a linguagem não literal como veículo
cognitivo mas, ao mesmo tempo, como irredutível à linguagem literal.
Esta tendência tem seus problemas, no entanto. O fato é que novas metáforas, na
medida em que se tornam convencionais, passam a designar automaticamente aquela
nova “pertinência semântica”, e esta pertinência pode ser explorada discursivamente, até
o ponto de se converter em uma referência literal. A irredutibilidade da metáfora é, pois,
algo difícil de demonstrar de jure, isto é, como princípio geral.
O símbolo, por outro lado, na medida em que tem a função característica de
representar outra realidade, participando dela e manifestando-a “sacramentalmente”, é
irredutível; pois a sua “tradução literal” não adquire a função simbólica, que nasce de
um processo complexo e não-intencional. Mas isso também não implica em que o
referente do símbolo não possa ser indicado ou descrito literalmente.
A analogia distingue-se da metáfora, como apontou Aquino, por estabelecer
relações entre conceitos mais universais, enquanto que a metáfora relaciona nomes de
particulares para recriar o sentido. Não é uma figura de linguagem, pois, e depende
menos da liberdade criativa e mais das estruturas de similaridade do real. A análise
30
ontológica pode investigar as estruturas analógicas do sentido, mas a forma de
correlacionar os níveis de significado depende de uma ou outra idéia-de-totalidade,
enfim. O uso da analogia em teologia supõe, por princípio uma forma de analogia entis,
que estabeleça uma conexão de semelhança-na-diferença entre Deus e o cosmo.
De um modo ou de outro, não importando, enfim, se uma opção é feita por uma
abordagem metafórica, simbólica, ou analógica, é importante ter em mente que estas
formas de referência não-literal têm o propósito de dizer algo sobre seu referente, mas
de forma indireta, pela mediação daquilo que é diferente; elas envolvem um jogo de
semelhança-na-diferença, mantendo-se entre a univocidade e a equivocidade. Além
disso, o problema da relação entre a linguagem religiosa e o seu referente é
incontornável, e reaparece em cada uma das três abordagens, como um problema
interno à estrutura da linguagem, nos limites entre a cognição e a significação. Falar em
sentido literal, é pôr a ênfase na relação entre linguagem e referente (cognição), e falar
em criação semântica é pôr a ênfase nas estruturas da significação linguística; ambas as
ênfases tem a sua importância, e uma não deveria excluir a outra. Metáforas, analogias e
símbolos, em religião, pressupõem por princípio a transcendência da linguagem literal
mas têm, sim, reivindicações realistas e devem ser vistos como vias cognitivas.
31
1.2. A Teoria do Símbolo Religioso no Sistema de Paul Tillich:
Aspectos Gerais
É claro que a teoria Tillichiana da linguagem religiosa como linguagem
simbólica não existe de modo independente; ela serve à tarefa da interpretação, a uma
hermenêutica teológica. Essa hermenêutica envolve, por um lado, a interpretação
teológica da cultura e, por outro, a interpretação da própria tradição cristã, como
refletida em suas formulações dogmáticas clássicas. Há um paralelo aqui, entre a
teologia da cultura e a teologia sistemática; a primeira examina o significado religioso
das manifestações culturais, a partir de sua relação com seus símbolos do
incondicionado. Na teologia como hermenêutica, a filosofia ocupa o lugar das
manifestações culturais, e os símbolos religiosos ficam com a função de pôr diante dela
o incondicionado.
A teologia é, então, uma operação de segunda ordem, na correlação de filosofia
e símbolo religioso, que tenta descrever, em termos literais, a relação entre os conceitos
literais da ontologia e a profundidade divina apresentada nos símbolos. Nosso trabalho
quer problematizar a interpretação da Queda de Tillich, considerando a conexão
semântica entre ontologia e símbolo, neste caso específico, tendo como fonte primária o
volume II de sua Sistemática.
1.2.1. A Natureza do Símbolo Religioso
Em diferentes ocasiões, Tillich organizou sua apresentação das características do
símbolo de modo diferenciado. Todas as listas têm características comuns, mas não são
idênticas. Na primeira lista, em The Religious Symbol (1940), Tillich apontou quatro
características gerais do símbolo. Em Religious Symbols (1955), limitou-se a duas, e em
32
The Meaning and Justification of Religious Symbols (1961) apresentou uma lista
parecida com a primeira, mas com uma quinta característica. Comparando as listas
chegamos a um total de cinco características básicas:
(1) Qualidade Figurativa
Era costume de Tillich iniciar a apresentação de sua teoria do símbolo pela
diferenciação entre símbolos e sinais. É claro que eles têm algo em comum; “Símbolos
são similares aos sinais em um aspecto decisivo: ambos, símbolos e sinais, apontam
para além de si mesmos, para alguma coisa mais” (MW4[RSKG]:395). É uma
característica comum que nem por isso deixa de ser importante; assim, a primeira, e
mais básica característica do símbolo, seria a sua qualidade figurativa, implicando que a
atitude interna do sujeito se dirige, não para o símbolo, propriamente, mas para aquilo
que está simbolizado nele, que é uma realidade mais elevada.
Assim, o caractere escrito pode ser considerado um símbolo
para a palavra, e a palavra, um símbolo para o seu significado.
A devoção ao crucifixo é realmente dirigida à crucifixão no
Gólgota, e a devoção ao último intenciona, na realidade, a ação
redentiva de Deus, que é, em si mesma, uma expressão
simbólica para uma experiência do incondicionado
transcendente (MW4[RS]:243).
(2) Poder Inerente
Deixando, entretanto, essa semelhança geral, a ênfase de Tillich se encontra nas
diferenças entre os sinais e os símbolos. Uma segunda característica do símbolo seria o
seu poder inerente advindo de seu caráter necessário, em contraposição ao mero sinal,
que é fruto de convenção. O símbolo emerge de um processo não-controlado de
aquisição de sentido e tem um apelo existencial que o sinal não tem. O símbolo pode
perder seu poder e voltar a ser mero sinal, mas sua “vida” independe da vontade
33
individual (MW4[RS]:254). Esta característica se aproxima bastante da terceira
(“participação na realidade expressa”), mas preferimos tratá-la separadamente, em razão
da ênfase dada por Tillich ao caráter necessário do símbolo, que o sinal não apresenta.
(3) Participação na Realidade Expressa
Há uma razão porque os símbolos não podem ser substituídos por conveniência,
como os sinais. É que símbolos participam da realidade e do poder do que eles
expressam (MW4[RSKG]:396; [MJRS]:415), ao passo que os sinais não apresentam
esta característica. Assim, de algum modo, os símbolos têm uma relação especial com
seus referentes que o sinal não tem. Essa diferença era, para Tillich a diferença
fundamental. O exemplo clássico é o da “bandeira”; embora ela não seja o país, não é
apenas um sinal dele; é um símbolo, de modo que a atitude do indivíduo para com a
bandeira reflete sua atitude para com aquilo que ela representa. Assim, a bandeira
participa daquilo que simboliza. Palavras podem ser, tanto sinais, como símbolos. A
presença de uma função simbólica em palavras é marcada pela presença de conotações
que vão claramente além do que elas apontam literalmente como sinais. Muitas palavras
são carregadas de sentido simbólico.
(4) Perceptibilidade (Poder Revelante)
Além dessa característica fundamental que distingue o símbolo de meros sinais,
Tillich identificou outras particularidades do símbolo. Em 1940 ele usou o termo
perceptibilidade, para descrever a capacidade do símbolo de dar objetividade, isto é, de
tornar perceptível, algo que é intrinsecamente invisível como, por exemplo, o conceito
de “mais valia” simbolizando a exploração econômica na consciência do proletariado.
34
Em 1955 ele descreveu esta característica como a capacidade de abrir para nós níveis
de realidade para os quais a linguagem não-simbólica é inadequada. Tillich introduz
esta característica com uma observação muito interessante: “Se os símbolos representam
algo que eles não são, então a questão é: ‘Por que não vamos diretamente àquilo que
eles representam? Por que precisamos de símbolos, enfim?’ ” (MW4[RSKG]:397).
Trata-se do problema da relação entre o símbolo e o seu referente, que discutiremos
mais adiante. Tillich acreditava que o próprio símbolo é a via de acesso ao referente,
por meio de sua capacidade singular de nos dar experiências cuja natureza é irredutível
ao universo empírico. Uma pintura de Rubens, por exemplo, nos conduz a uma
experiência de sentido que não pode ser atingida por outra via, nem por descrições
verbais, que só é dada por meio da particularidade daquela pintura. Semelhantemente, o
símbolo seria capaz de pôr diante de nós a realidade que ele representa e, ao mesmo
tempo, de abrir a nossa alma a essa realidade (MW4[RSKG]:397), nos dando acesso
“[...] às dimensões e estruturas da nossa alma que correspondem às dimensões e
estruturas da realidade” (Tillich, 1985:31; MW5[DF]:251). E isso ocorre, sempre, por
meio da particularidade daquele símbolo; pois “Cada símbolo tem uma função especial
que é justamente esta, e não pode ser substituída por símbolos mais ou menos
adequados” (MW4[RSKG]397).
(5) Aceitabilidade
Uma quinta caracterísica seria, como Tillich se expressou em 1940, a sua
aceitabilidade. O símbolo teria raízes sociais e se manteria por laços sociais. Assim, o
símbolo não surge antes, mas simultaneamente ao processo de sua aceitação, sendo,
portanto, criado por um “ato social”. Indivíduos não têm o poder de criar símbolos,
35
mesmo que eles tenham um papel especial em sua aparição; o símbolo “não pode ser
criado à vontade” (MW4[1961]:416).
Além da diferença entre símbolos e sinais, uma segunda distinção fundamental
para Tillich é entre os símbolos, em geral, e os símbolos religiosos. Os símbolos abrem
janelas para diferentes níveis de realidade, mas os símbolos religiosos abrem janelas
para o nível supremo, que é o nível do Ser, do incondicionado transcendente, dando-lhe
perceptibilidade. Símbolos ordinários se referem a realidades que têm existência
objetiva não-simbólica. Já os símbolos religiosos
[...] se distinguem dos outros pelo fato de que eles são uma
representação daquilo que está incondicionalmente além da
esfera conceptual, apontando para a realidade última, implicada
no ato religioso, o incondicionado transcendente [...] [os
símbolos religiosos] devem expressar um objeto que, por sua
própria natureza, transcende tudo o que há na ordem empírica,
portanto, um objeto que não pode adquirir um caráter objetivo
por meio de um ato do espírito” (MW4[1940]:255).
O “material” dos símbolos religiosos é tomado da “infinidade” que a realidade
nos apresenta. Tudo pode se tornar um símbolo do Santo, mesmo que não seja o Santo
em si; tal só é possível porque o Santo percebido nas coisas é, na realidade, o
fundamento último do ser. O que torna algo símbolo e participante do Sagrado, em certo
momento, é a sua capacidade de, em dada situação, representar uma forma especial de
relacionamento da mente humana com o fundamento divino. Assim, a melhor forma de
compreender o sentido e função de um símbolo religioso é perguntar: “Qual é o
relacionamento com o supremo que é simbolizado nestes símbolos?”
(MW4[RSKG]:399). Poderíamos dizer, pois, que o símbolo religioso toma, do material
comum das experiências temporais do homem, aqueles aptos para representar sob certas
condições, uma forma de relação do homem com o incondicionado, na medida em que
esta se torna explícita à consciência.
36
Exatamente esta possibilidade é a fonte da ambigüidade de todos os símbolos
religiosos. Desde que eles têm a tendência de substituir o seu referente, aquilo que
intendem representar, de tal modo que se tornam ídolos. A idolatria seria a
absolutização dos símbolos do Santo, e sua identificação com o próprio Santo. O
símbolo, sob tais condições, torna-se demônico e sujeito à crítica profética, que põe a
ênfase na incondicionalidade de Deus.
1.2.2. Tillich e Outras Teorias do Símbolo Religioso
Tillich classifica as teorias sobre o símbolo religioso em negativas e positivas.
As teorias negativas interpretam o símbolo como se ele não tivesse qualquer referência
objetiva refletindo unicamente os estados subjetivos da consciência. Assim, o símbolo é
visto como refletindo um aspecto da realidade que não é aquele intencionado pela
consciência.
As teorias negativas seriam redutíveis finalmente a dois tipos: as teorias
psicológicas e as sociológicas. Seus patronos seriam, principalmente, Marx e Nietzsche,
o primeiro ao procurar demonstrar, por meio do conceito de ideologia, que a referência
objetiva do simbolismo da sociedade burguesa seria um subterfúgio político, e o
segundo (apoiado mais tarde, na primeira parte do século XX, pela psicologia
profunda), ao descrever os símbolos como sublimações de impulsos vitais e instintivos
em estado de repressão. No fundo, para Tillich, essas teorias teriam se constituído com a
finalidade de combater e destruir certos complexos simbólicos, para atingir suas fontes,
em formas determinadas de poder (MW4[RS]:256).
Na avaliação de Tillich, as teorias negativas seriam, no máximo, teorias de
seleção simbólica. Isto é, certas condições sociais e psicológicas motivam a constituição
37
de um símbolo religioso em torno de uma imagem, como a do “pai”, mas o impulso
para essa constituição seria irredutível aos impulsos condicionados e imanentes da
necessidade social ou inconsciente. Indo um pouco além, no entanto, Tillich faz uma
interessante sugestão: seria mesmo possível que os impulsos vitais que induzem à
seleção de certo símbolo sejam de origem religiosa, isto é, que a intuição do
incondicionado no símbolo seja reflexo da profundidade religiosa do próprio impulso
vital. Assim os impulsos psicológicos e sociais seriam símbolos de uma estrutura
metafísica suprema da existência (MW4[RS]:258). A implicação disso é que,
precisamente quando uma teoria negativa demonstra o impacto desses fatores na seleção
de um símbolo, abre-se uma via para a análise religiosa do significado desta seleção
específica.
As teorias positivas do símbolo também relacionam a seleção do símbolo a
fatores subjetivos, mas estabelecem uma conexão essencial entre essas fatores e a
referência objetiva dos símbolos. Haveria uma relação interna entre as criações culturais
objetivamente indicadas, e as raízes vitais do símbolo, de modo que a análise do
símbolo em sua referência objetiva aproximaria o pesquisador da “alma” da cultura.
No âmbito das teorias positivas, Tillich trabalha, no artigo de 1940, com a teoria
cultural-morfológica da cultura, e com a teoria idealista-crítica do símbolo,
desenvolvida por Ernst Cassirer. Esta última procederia a uma anulação da distinção
entre o caráter simbólico e o caráter objetivo das criações culturais, de tal modo que o
símbolo ganha uma importância muito maior na compreensão da cultura. Tendo em
vista, no entanto, que Tillich discute especificamente as noções de Cassirer sobre os
símbolos míticos, vamos adiar o tratamento deste ponto até o item 1.3 deste capítulo.
Ao lidar com a teoria cultural-morfológica da cultura, que tende a focalizar o
“estilo” das expressões culturais, para atingir seu significado, abordando todas as
38
formas de vida cultural como símbolos e ignorando a conexão objetiva entre diferentes
“estilos” e épocas, Tillich adverte contra a absolutização do princípio morfológico,
posto que poderia conduzir ao tratamento puramente morfológico da própria teoria
morfológica, como um mero “estilo” entre outros. As criações culturais, e os símbolos,
não seriam redutíveis à sua morfologia. No tocante aos símbolos religiosos Tillich
aponta, contra essa absolutização, o fato de que, mesmo aqueles que não possuem
referência objetiva e que poderiam ser interpretados, em seu estilo, como expressões
imediatas da cultura, indicam na verdade que a própria alma é religiosa e que essa
profundidade religiosa pode transparecer imediatamente no símbolo (MW4[RS]:258-
259). Assim, sob os “estilos”, isto é, sob a morfologia da cultura, há uma dimensão
religiosa e uma análise religiosa da cultura a partir de seus símbolos é uma tarefa
necessária.
De um modo geral, é nítido que, em sua discussão sobre as diferentes teorias do
símbolo religioso, Tillich procura demonstrar a impossibilidade de explicação da
natureza e função do símbolo sem uma séria consideração de suas conexões
ontológicas. Suas análises buscam, por um lado, reconhecer os méritos próprios de cada
teoria e, por outro, estabelecer uma conexão entre a verdade de cada teoria e a dimensão
de profundidade religiosa que é característica de sua teologia da cultura. Sua própria
teoria, no entanto, mantém-se fenomenológica na afirmação de que “a compreensão da
coisa deve partir da própria coisa para compreendê-la, tomando-a como a “revelação do
sentido do ser” (JOSGRILBERG, 2006:23-26).
1.2.3. Via Simbólica: A Teoria Tillichiana da Linguagem Religiosa
A via eminentiae, que é usada consistentemente por Mr. Hartshorne,
precisa ser equilibrada pela via negationis, e a unidade dos dois é a via
simbólica (Tillich [Reply]:334)
39
A teoria dos símbolos de Tillich, coerentemente com as observações do item
anterior, está diretamente ligada à sua ontologia. Segundo ele, a realidade fundamental,
o incondicionado transcendente, é infinito, absoluto e livre de propriedades. Como tal,
não é um existente, pois todo existente está ligado à estrutura eu-mundo da realidade.
Os existentes são conhecidos por nós como objetos. Sob o impacto da filosofia
Schellingiana da identidade, Tillich aceita o raciocínio segundo o qual deve haver uma
participação mútua entre o eu e o mundo, se for possível ao eu conhecer o mundo. O
mundo não pode existir cognitivamente para o eu, se já não estiver no eu,
ontologicamente. Assim, de algum modo, a subjetividade já está na natureza e a
natureza está na subjetividade.
O Incondicionado é o fundamento da estrutura eu-mundo, o “lugar” no qual essa
estrutura é ultrapassada, no qual não há separação entre sujeito e objeto. Portanto, ele
não pode ser um ente empiricamente identificável. A realidade imanente está Nele, mas
ele não existe dentro da imanência. Portanto ele não pode ser conhecido, nem referido
diretamente pelo sujeito cognoscente. Sua apreensão só pode ser indireta. Por essa
razão, em sua teoria do símbolo, Tillich negará, antes de tudo, a legitimidade de uma
linguagem literal sobre Deus. A linguagem literal exige um referente que seja
diretamente conhecido ou cognoscível, dentro da estrutura eu-mundo. O incondicionado
transcendente, no entanto, só é captado indiretamente, como o fundamento dessa
estrutura. Portanto, a linguagem, que está presa à estrutura eu-mundo, só pode referir-se
a ele indiretamente, isto é, por símbolos que indicam a sua presença intocável. Os
símbolos são representantes, pois; eles têm a função de pôr o incondicionado à
consciência, de apresentá-lo. E não há outra forma de apresentá-lo, que não seja o
símbolo: “a linguagem da fé é a linguagem dos símbolos” (Tillich, 1985:33).
40
Deste modo, (1) não há, para Tillich, um aspecto da realidade que seja mais
apropriado que outro para funcionar como símbolo do incondicionado. Isso significa
que não há uma relação especial entre certos conteúdos cognitivos e o incondicionado
que os torne mais dignos de operar como símbolos religiosos; (2) as condições
históricas que levam à seleção de certo símbolo e, em especial, o “locus” da experiência
do poder do Ser é que contam decisivamente para a sua fixação na consciência humana;
(3) a verdade ou falsidade de um símbolo não se localiza no seu conteúdo, mas no grau
de distorção idolátrica que ele apresenta, isto é, no grau de auto-negação de
incondicionalidade que ele comporta (MW4[RS]:276).
O objeto da religião é o Ser-em-si, o incondicionado; apenas ele pode ser o
“objeto” apropriado para a preocupação última. Ele não pode, no entanto, ser acessado
diretamente, pois a consciência se move na estrutura eu-mundo. Sua captação é indireta,
quando seu poder é manifestado por meio de alguma realidade condicionada que
funciona positivamente como manifestação do poder de ser, que vence o desespero: a
“negação da negação do ser”. A realidade condicionada que serve para “despertar” a
consciência do incondicionado funciona como um símbolo de algo que nunca é posto
diretamente.
O símbolo religioso não é, portanto, religioso, em razão de seu conteúdo
positivo, mas de sua função. Ou talvez, falando mais precisamente: a sua função
religiosa só tem relação com o seu conteúdo positivo na medida em que este é o
repouso da preocupação suprema para a consciência humana em uma situação
particular, mas jamais porque seu conteúdo positivo apresente a nós algum saber
positivo sobre o incondicionado. Nenhum conteúdo especial habilita o símbolo a
representar o religioso; são as condições históricas particulares que tornam certo objeto
41
um representante, ou presentante, do incondicionado.
8
O conteúdo do símbolo explica
qual foi essa situação, mas nada diz sobre o incondicionado, exceto que é dependente
dele. Sua verdade, pois, é a verdade da experiência religiosa do homem, e a verdade de
sua diferença do incondicionado, de sua condicionalidade: a verdade de sua inverdade
literal. E, desde que tudo o que é condicionado é diferente do incondicionado, tudo pode
ser um símbolo verdadeiro do incondicionado:
Os símbolos religiosos são tomados da infinidade do material que a
realidade experimentada nos dá. Tudo, no tempo e no espaço, tem se
tornado em algum momento na história da religião um símbolo para o
Sagrado. E isto é natural, porque tudo o que nós encontramos no
mundo repousa sobre o fundamento último do ser
(MW4[RSKG]:388).
9
Nos termos de Tillich, então, diríamos que há uma via simbólica, que reúne e
transcende os elementos válidos da via eminentiae e da via negationis: o símbolo
religioso põe o incondicionado à consciência, positivamente, mas contém em si a
negação da incondicionalidade do simbolizandum.
1.2.4. A Via Simbólica como Via Cristomórfica
O pensamento de Tillich tem, como uma de suas características marcantes, a
negação consistente da independência do ser humano em relação ao fundamento
incondicionado da realidade, e este impulso determina a sua compreensão a respeito do
relacionamento entre a filosofia e a religião. Para Tillich, a realidade do Ser
8
“Este aproveitamento de elementos do mundo real a fim de imaginativamente transformá-los em
símbolos expressivos da percepção do profundo em religião é chamado por Tillich de analogia imaginis.
Ele contrasta isto com a analogia entis clássica, que foi proposta como uma forma de conhecer a Deus. A
analogia imaginis é, por contraste, ‘uma forma (de fato, a única forma) de falar de Deus’. Outro modo de
colocar a questão seria dizer que a analogia imaginis supre os elementos concretos todo-importantes na
relação divino-humana” (WEISBAKER, 1978:250). Na verdade, Tillich se declarará adepto da analogia
entis em alguns momentos, como veremos mais à frente; sua analogia imaginis contém em si uma forma
modificada de analogia entis.
9
Tillich admitirá, no entanto, que o símbolo efetivamente diz alguma coisa sobre o relacionamento do
homem para com o incondicionado representado no símbolo. Deve-se perguntar, pois, na interpretação do
símbolo, por esse conteúdo positivo e relacional (MW4[RSKG]:399).
42
incondicionado torna-se manifesta unica e necessariamente sob as condições da
existência, através do choque meôntico da existência, isto, quando a ameaça do não-ser
é sentida em toda a sua intensidade, por meio da alienação e da angústia, e através da
emergência da coragem de ser, cujo fundamento não se encontra na finitude, mas no
próprio Ser que, por meio dela, vence o não-ser. Essa emergência do Ser, como
sabemos, constitui o “Novo Ser”, isto é, a experiência da vitória sobre a alienação, na
reunião de poder e significado, por meio do ente finito: a vitória sobre a alienação,
dentro das condições de finitude.
A filosofia não pode, por si só, obter esta vitória, desde que ela pode apenas
atingir as condições essenciais da vida humana. As experiências existenciais da
alienação e da coragem são de caráter religioso, visibilizando os “eventos” da queda e
da redenção (que, por sua própria natureza, não derivam da estrutura do Ser), de modo
que a filosofia não pode dar respostas consistentes se não relacionar suas categorias às
expressões religiosas. Isso faz com que toda resposta filosófica seja construída a partir
de uma substância religiosa e seja devedora dessa resposta religiosa particular. Como
observa Gilkey,
É desses eventos fundamentais que, para Tillich, o conhecimento
ontológico e assim o uso das estruturas atemporais do ser podem ser
derivados. Como ele repetidamente insiste, e como nós temos
argumentado, ontologia ou filosofia válida ou consumada é derivativa
da apreensão religiosa, cultural ou teológica (embora a ontologia seja
necessária para deliteralizar a última). Logos, deste modo, tem um
kairos dependente da revelação (universal) (Gilkey, 2000:145).
Como Tillich mostrou em Filosofia e Destino, a liberdade do pensamento não
pode ser entendida à parte da sujeição à necessidade, às contingências da finitude. “[...]
a liberdade da filosofia prende-se a uma necessidade universal [...]” (EP:34, 35). Seria
de se esperar, portanto, que a própria ontologia e a teoria simbólica de Tillich sejam
também devedoras em relação à sua situação religiosa. De fato, é nítida a conexão
43
interna entre a teoria Tillichana do símbolo e a sua construção da relação Criador-
criatura, como refletida em sua cristologia, a ponto de Gilkey descrever o pensamento
de Tillich com o termo “cristomórfico”:
10
[...] A teologia de Tillich é uma teologia cristomórfica. Embora a
consciência ou o conhecimento de Deus não venha de modo algum,
para Tillich, da revelação cristã apenas (a revelação e a presença do
Novo Ser são universais), entretanto, para a sua teologia a revelação
de Deus em Cristo dá a cada símbolo teológico significativo a sua
forma final e definição [...] o conhecimento de Deus e todo o
simbolismo teológico, como Tillich repetidamente insiste, vem através
da revelação, e assim, para a comunidade e o teólogo cristão, através
do aparecimento revelatório do Novo Ser em Jesus, que é o Cristo [...]
(Gilkey, 2000:144).
Tillich reconhece, em Jesus chamado o Cristo, a revelação final do Novo Ser, e
faz deste símbolo o critério último de todos os símbolos religiosos. A razão é que, desde
que em Jesus a alienação é vencida dentro das condições da finitude, temos nele o
evento em que a relação entre o ser centrado e seu fundamento incondicionado estão
reconciliados. Com isso o símbolo Cristológico se torna o critério de todo o simbolismo
teológico. Estaríamos justificados, portanto, em aplicar a categoria de Gilkey para
falarmos em um “cristomorfismo simbólico” para apontar o fundo religioso singular da
via simbólica de Tillich.
A teologia clássica da encarnação, em seu sentido literal, foi rejeitada por
Tillich, que a considerava “pagã”. A noção de Deus “tornar-se” humano, seria uma
herança da mitologia pagã, e a união de duas “naturezas”, herança da filosofia pagã
(ST/2:94). Ao rediscutir toda a questão do significado da presença divina em Cristo,
Tillich precisou lidar com o complexo problema da natureza do paradoxo cristológico.
Tendo em vista a importância da discussão cristológica, no contexto do paradoxo,
vamos passar rapidamente pelo debate entre Tillich e a teologia dialética.
10
O próprio Gilkey diz ser devedor, para esta categoria descritiva, da obra de Richard R. Niebuhr,
Schleiermacher on Christ and Religion (Gilkey, 2000:144, n.3).
44
A convite dos editores da revista Theologische Blätter, Tillich apresentou, em
1923, o artigo “Paradoxo Crítico e Positivo: Uma Discussão com Karl Barth e Friedrich
Gogarten”.
11
Em seu artigo Tillich ataca a noção dialética de paradoxo, sustentando que
a afirmação da diferença absoluta entre Deus e o homem poderia ser encarada como
uma lei, e levar a uma religião absoluta. A dialética deve ser transcendida por meio do
reconhecimento de um fundamento incondicionado que está para além dela, no qual não
há mais a diferença absoluta, e que faz dela mesma uma realidade condicionada.
Afirmar uma diferença absoluta teologicamente seria reunir duas coisas condicionadas,
afinal (Tillich [CPP]:134), e fazer da posição dialética um absolutismo; uma dialética
concluída seria a “transcendência dialética da transcendência” e, assim, o seu fim. A
autonomia da razão não seria má, portanto, mas apenas a autonomia demonicamente
distorcida, sendo um erro opor revelação e autonomia da razão; deve-se sempre
pressupor a unidade subjacente ao paradoxo, unidade que nos leva a transcender
permanentemente a condicionalidade das polarizações que vivenciamos na existência e
no pensamento – do contrário, como ocorre, segundo Tillich, com Barth e Gogarten,
“[...] a teologia do paradoxo crítico termina como uma teologia do absurdo positivo”
(Tillich [CPP]:140). Em lugar disso, o caminho seria o “paradoxo positivo”.
Barth rejeitou a solução de Tillich, traçando uma diferença entre a auto-
transcendência permanente, que pode ser vivenciada no interior de uma dialética que é
sempre superada, e a transcendência divina, propriamente. Para ele o paradoxo positivo
de Tillich seria, na verdade, a eliminação de toda paradoxalidade, e tornaria supérfulo
qualquer papel do Espírito Santo, da Igreja e das Escrituras, exceto como símbolos do
que já é presente sem eles (Barth, 1923:148). O paradoxo positivo seria um “rolo
compressor da graça”, que reúne tudo em uma presença não paradoxal, destruindo o
11
Theologische Blätter, II (1923), pp. 263-269. Traduzido e publicado em inglês por Keith R. Crim em
1968, em: ROBINSON, James. The Beginnings of Dialectic Theology. John Knox Press, 1968.
45
sentido do julgamento e da graça divina. Enfim, o elemento “divino” do paradoxo
estaria ausente do paradoxo positivo. E, aqui, a relação do problema do paradoxo com a
questão cristológica, é explicitamente apontada por Barth:
Ninguém falará dessa forma, a respeito do ‘paradoxo positivo’, se
sabe que, como teólogo, está lidando com o paradoxo divino, isto é,
não com este ‘imperceptível’, mas como o que é real e cognoscível de
fato apenas na base da própria livre vontade de Deus, apenas por
colocar de lado a sua majestade, ou, o que é a mesma coisa, apenas
por amor e em amor pelo mundo e pelo homem, com a revelação que
não é, de modo algum, um relacionamento a ser designado com um
“há” ou “existe”, ou para ser descoberto meramente pelo homem; não
algum segredo dado, mas algo muito especial, feito conhecido apenas
por Deus, e apenas, no que somos conhecidos por ele, como uma
ocorrência a ser conhecida, um evento de pessoa a pessoa, uma
comunicação e um dom no sentido mais estrito da palavra, e assim
tanto o tema e o saber disto (Barth, 1923:150).
O argumento de Barth é de que o paradoxo seria eliminado se pudesse ser
fundamentado em uma filosofia da identidade, na qual a liberdade da graça divina perca
seu sentido natural, tornando-se matéria de reconhecimento filosófico, de ontologia; e a
paradoxalidade deixa sua particularidade para se tornar “predicado do universo”. Essa
diferença fundamental teria sua expressão na cristologia, com a tendência de Tillich de,
na luta polêmica contra o homem-deus, perder-se em uma batalha contra o Deus-homem
– isto é, uma negação da liberdade da dádiva, cristologicamente expressa na dissolução
do paradoxo e em uma negação da encarnação (Barth, 1923:151). Para manter o
paradoxo crítico, Barth sustenta que a revelação, embora da majestade, se expressa na
“baixeza” do que é empírico e temporal; mesmo que seja mito, o mito descreve uma
conexão inseparável de revelação e fato empírico. E ataca a interpretação simbólica da
cristologia, desenvolvida por Tillich:
A Cristologia não deve, entretanto [...] confundir a si mesma
com seu objeto. Ela não deve sabotar o “paradoxo positivo” que é
dado por meio do testemunho de Jesus Cristo através de, não apenas
distinguir, mas mesmo, com a ajuda de uma teoria de símbolos, de
separar a “redenção eterna” de “Jesus de Nazaré” (Barth, 1923:152).
46
Quanto à crítica de que o paradoxo da teologia dialética seria heteronômico,
Barth sustenta que tal cristologia não implica um desafio à ciência histórica, mas antes a
autonomia da ciência teológica (Barth, 1923:153); não reconhecer o paradoxo teológico
ao lidar com a base histórica do evento revelatório seria, na verdade, ignorar a
particularidade da tarefa teológica.
Em sua resposta a Barth, Tillich mantém sua posição de modo inequívoco.
Segundo ele – e aqui percebe-se claramente a importância instrumental de sua teoria do
símbolo – “É impossível no presente falar como se as palavras com as quais a Escritura
e a igreja se referem ao incondicionado possam atingir diretamente aquilo que é o seu
sentido essencial” (Tillich [AKB]:156). Tal erro seria exatamente a heteronomia, a lei e
a objetificação. Não deveríamos falar de Deus como Deus, mas do incondicionado. A
posição dialética de Barth e Gogarten leva a um sobrenaturalismo não-dialético e
positivo que se tornará, enfim, um grande “Não” ao mundo (ao invés do Sim/Não
verdadeiramente dialético). Tillich se coloca, finalmente, no interior da tradição luterana
alemã, no tocante à atitude para com o paradoxo e à sua rejeição da solução Barthiana:
Em contraste com isso eu me coloco conscientemente na
tradição Luterana Alemã, cujo significado para a história intelectual
consiste em seu esforço de produzir sempre novas tentativas de
superar a autonomia profana através de uma autonomia completa,
teônoma. Nessa linha estão Schleiermacher e Hegel. Enquanto eu
claramente difira deles, na medida em que tentam obliterar o paradoxo
em favor da identidade dialética, eu me coloco enfaticamente a seu
lado quando a questão é fazer a referência ao paradoxo perceptível nas
formas da lógica e da ética, da transcendência da autonomia profana
com a teonomia (Tillich [AKB]:158).
Como é claro, o embate entre Tillich e a teologia dialética, em 1923, refletia
duas concepções bastante diferentes da relação Criador-criatura, com incidência direta
sobre a Cristologia e a teoria da linguagem religiosa. Para Barth, a diferença Criador-
criatura conduzia a uma noção de revelação como acomodação livre e condescendente
e, assim, a uma Cristologia de paradoxo metafísico, de descontinuidade ontológica. A
47
linguagem religiosa seria, pois, literal, embora sem base na analogia entis – baseada na
analogia fidei. Já em Tillich, a filosofia da identidade aliada ao misticismo apofático e a
certos elementos da tradição Luterana (o infra-luteranum, em especial), o levou a
afirmar uma continuidade-na-diferença Criador-criatura, e a pensar uma Cristologia
sem paradoxo ontológico; na verdade, ele nega o paradoxo presente na teologia dialética
para afirmar a presença divina universal, “dada”, manifesta em Jesus de Nazaré, mas
não limitada a ele. Em conseqüência, Tillich rejeita intepretar literalmente o paradoxo
lógico presente nas palavras da tradição. Como ele disse, estas não acessariam
diretamente o seu sentido essencial, pois este estaria presente, mas sempre “abaixo” do
sentido literal. A abordagem “Luterana Alemã” se caracterizaria pela afirmação da
universalidade e realidade do “Sim” divino, e pela dissolução do paradoxo lingüístico
do símbolo cristológico em termos de uma ética e uma lógica autônoma-teônoma.
Rejeitando, pois, a compreensão Barthiana de “paradoxo” – a de Deus tornar-se
homem sem deixar de ser Deus – Tillich sustenta que para-doxa é o “novo” e
“inesperado”, contrário à opinião aceita. Não há paradoxo metafísico, contradição à
lógica filosófica, ruptura no discurso racional; apenas um paradoxo histórico, do
aparecimento de algo não-derivável da situação existencial. O paradoxo é um evento:
“O paradoxo da mensagem cristã é de que, em uma vida pessoal, a humanidade
essencial apareceu sob as condições da existência sem ser conquistada por ela”
(ST/2:94).
Não há, portanto, a presença de um elemento sobrenatural, ou de uma dupla
natureza; à semelhança de Schleiermacher, como o observa Gilkey, Tillich vê em Jesus
a plena realização da humanidade, e não a transcendência do humano. O “elemento
divino” deixa de ser uma “natureza divina” para ser a atividade divina, em Jesus, de
48
unir, pela Presença espiritual, a humanidade essencial e as condições da existência,
estabelecendo assim o Novo Ser, a nova criatura (Gilkey, 2000:148, 149).
12
A evidência decisiva da perfeição de Jesus, e de seu valor universal como
símbolo religioso, é a sua crucificação, na qual a humanidade é negada em favor da
atividade divina. Tillich vê, aqui, o modelo do verdadeiro símbolo, na medida em que
ele “nega a si mesmo sem perder a si mesmo” (ST/1:133). A morte e a ressurreição
indicam a negação, pelo símbolo do Novo Ser, de sua própria ultimidade, negação esta
que o torna transparente ao incondicionado.
O caráter fundamental do Novo Ser em Jesus (da humanidade
essencial sob as condições da existência finita) é de que há uma
atualidade finita (nega a si mesmo sem perder a si mesmo”), isto é, por
um lado, ele aponta para além de si mesmo pela auto-crítica e
ultimamente, pelo sacrifício de si mesmo (“por entregar a sua
finitude”), e então, por outro lado, em assim fazendo, esta atualidade
finita “se torna completamente transparente ao mistério que revela”
[...]. Deste modo, Jesus representa [...] o perfeito meio ou símbolo do
incondicional, do divino, de Deus; e assim o paradigma para todos os
outros símbolos religiosos como atualidades finitas através das quais o
infinito é plenamente comunicado a outros [...] (Gilkey, 2000:142).
É difícil dizer até que ponto determinada concepção cristológica contribuiu para
a construção da concepção Tillichiana de símbolo, ou uma noção incipiente do símbolo
religioso motivou a reinterpretação cristológica de Tillich. O fato é que há uma nítida
conexão entre a cristologia e a teoria do símbolo, que pode ser logicamente relacionada
ao problema da relação Criador-criatura. Duas contribuições da cristologia de Tillich
para a sua teoria do símbolo podem ser distinguidas. A primeira diz respeito à noção de
encarnação e a segunda à obra de Cristo.
Se, de fato, não há paradoxo metafísico ou lógico na encarnação, mas apenas o
paradoxo histórico, e Deus, afinal, não pode “tornar-se” homem (isso seria
12
Gilkey descreve a posição de Tillich como uma espécie de “monofisitismo”, no qual a “natureza
divina” é substituída pela ação redentiva de Deus, e a “união” que ocorre em Jesus seria, na verdade, entre
humanidade essencial e existência (Gilkey, 2000:148). A proposta de Tillich se parece mais com uma
espécie de adocionismo, no entanto. Seja como for, essa cristologia se torna um princípio estruturante
para todo o sistema.
49
“paganismo”) segue-se, por paridade, que nenhum discurso religioso pode,
legitimamente, em sua carga semântica positiva, trazer informações positivas sobre
Deus. O conteúdo positivo da linguagem religiosa deve ser visto como um símbolo da
presença e atividade divina, uma forma de apresentá-lo “sacramentalmente” à
consciência. O único paradoxo válido, na estrutura da linguagem religiosa, se
encontraria em sua capacidade eventual de expressar o incondicionado, mesmo sendo
condicionado. Qualquer paradoxo lógico ou metafísico porventura inscrito em sua
morfologia semântica deverá ser compreendido, portanto, de forma estritamente não-
literal. Essa seria a contribuição do aspecto “encarnacional” da cristologia de Tillich.
Além disso, a negação da finitude em nome da atividade divina, como a
encontramos no auto-sacrifício de Jesus, implica (pressupondo-se, naturalmente, a
concepção Tillichiana da relação Criador-criatura) a relativização da criatura e a
afirmação da transcendência divina em relação ao humano. Em Jesus o Novo Ser é
estabelecido como humanidade reconciliada com o seu fundamento incondicionado, isto
é, humanidade essencial sob as condições da existência, sendo tal condição representada
na morte e ressurreição. Assim, Jesus torna-se, ele mesmo, o símbolo par excellence do
Novo Ser, da ação redentiva de Deus.
E, com isso, o critério final de todo símbolo religioso. Pois, por um lado, o
símbolo verdadeiro mantém a sua relatividade entregando a sua “finitude” e recusando-
se a cometer o pecado da “hybris” (de afirmar sua própria incondicionalidade) e, por
outro, renova o seu poder simbólico (a “ressurreição”) ao tornar-se, por seu auto-
sacrifício, transparente ao incondicionado que revela. Assim Tillich vê a obra de Cristo
(obediência, morte e “ressureição”) como os eventos nos quais a veracidade do símbolo
encarnacional é testada e provada. Jesus, como o Cristo, torna-se o símbolo definitivo, e
50
justamente pela consciência implícita de condicionalidade, o valor deste símbolo cristão
se estenderia até mesmo às outras religiões:
O Cristianismo expressa esta consciência [de sua própria
condicionalidade] no símbolo da “cruz de Cristo” – mesmo se as
igrejas Cristãs negligenciam o significado deste símbolo ao atribuir
ultimidade à sua própria expressão particular da ultimidade. A auto-
crítica radical do Cristianismo o torna o mais capaz de universalidade
– enquanto mantiver esta auto-crítica como um poder em sua própria
vida (MW5[DF]:289).
Isto justifica a nossa concepção de que a teoria Tillichiana do símbolo religioso é
cristomórfica; ela reflete, em primeiro lugar, a concepção quanto à relação Criador-
criatura de Tillich e, em segundo lugar, a sua reinterpretação do evento de Cristo por
meio dessa concepção. Seu valor universal implicaria mesmo a possiblidade de aplicar o
cristomorfismo simbólico como instrumento de interpretação e crítica de todo e
qualquer simbolismo religioso ou quasi-religioso. Em termos específicos, trata-se de um
cristomorfismo particular, de sabor “Luterano Alemão”, isto é, um cristomorfismo
Luterano-Schleiermachiano-Schellingiano, em suas raízes espirituais e teóricas.
1.2.5. Tipos de Símbolo Religioso
Tillich divide os símbolos religiosos em dois níveis: o nível de transcendência e
o nível de imanência, com vários subgrupos. No primeiro nível estariam os símbolos
que apontam para além da realidade empírica: temos aí o grupo dos seres divinos e o
próprio conceito de Deus como o “ser supremo”, que representam o que é
supremamente referido nos atos religiosos. A idéia de Deus é um símbolo que aponta
para o incondicionado transcendente, mas que também se refere literalmente a um
objeto com certas propriedades e ações. A consciência religiosa se dirige a este objeto,
mas quer atingir o incondicionado: “Na palavra ‘Deus’ está contido, ao mesmo tempo,
aquilo que de fato funciona como representação e também a idéia de que é apenas uma
51
representação” (MW4[RS]:264). Como já vimos, o conteúdo positivo e relacional do
símbolo é fruto de uma atribuição humana ligada à experiência concreta do
incondicionado. E o conteúdo negativo é a consciência do incondicionado, um
conhecimento negativo. Este último cancela o valor cognitivo do elemento positivo,
“crucificando” o símbolo. Por esta razão, exigir a fé em um Deus que é um ente pessoal
é uma “obra” religiosa, um ato sacrifical de auto-destruição da mente humana
(MW4[RS]:264).
No segundo grupo, ainda dentro do primeiro nível, ele inclui, inicialmente, as
caracterizações da natureza e dos atos de Deus, pressuposto como objeto. Estes
símbolos não provêem conhecimento objetivo, mas consciência (awareness) verdadeira
do incondicionado (MW4[RS]:265). Mais tarde (1955), Tillich dividirá este grupo em
dois: o grupo dos atributos e o grupo dos atos de Deus. O segundo grupo de símbolos
do primeiro nível abarca, portanto, as qualidades ou atributos de Deus, tomados das
qualidades que experimentamos e que não podem ser aplicados a Deus literalmente.
O terceiro grupo de símbolos do primeiro nível reúne os atos de Deus, incluindo
a criação, o envio de Cristo, a escatologia, etc, como símbolos que dizem respeito mais
diretamente à nossa relação com o incondicionado. Ele usa como exemplo
paradigmático a expressão “Deus enviou seu Filho” (God has sent his son): teríamos
aqui, numa única sentença, a atribuição de temporalidade (has), espacialidade (sent),
causalidade (has sent) e substância (God e son), isto é, de categorias do ser ao
fundamento do ser. Literalmente, seriam absurdos, mas, simbolicamente falando, seriam
expressões da relação entre Deus e o homem na experiência cristã, isto é, da experiência
cristã do incondicionado (MW4[RSKG]:400).
Na passagem do primeiro nível, de transcendência, para o segundo nível, de
imanência, temos certa inconsistência na apresentação de Tillich. Em 1955, ele
52
identifica as aparições da divindade no tempo e no espaço como símbolos de imanência.
O conceito central, aqui, é o de Encarnação, que não seria, de modo algum, uma
particularidade do cristianismo. Tema recorrente no paganismo, teria a função de
destacar a imanência da divindade: “Quanto mais transcendentes os deuses se tornam,
mais as suas encarnações em caráter pessoal ou sacramental tornam-se necessárias para
superar a condição remota do divino que surge com o fortalecimento da transcendência”
(MW4[RSKG]:401). Em 1961, no entanto, Tillich identifica a encarnação como um
terceiro “nível” de símbolos “primários” (isto é, um terceiro grupo de símbolos do
primeiro nível), que comporia todas as manifestações da divindade no interior da
realidade finita, em coisas e objetos. Além disso, ele identifica a dinâmica dessa
identificação das manifestações divinas na finitude como “presença sacramental”,
afastando-se um pouco de sua classificação de 1955, na qual os sacramentos compõem
um grupo separado.
A aparente dúvida de Tillich quanto ao nível adequado para os símbolos
encarnacionais – se entre símbolos de transcendência ou entre símbolos de imanência –
tem uma explicação natural: uma idéia de “encarnação” envolve, por sua própria
natureza, uma noção a respeito dos “limites” entre a transcendência e a imanência e,
assim, a respeito da relação entre o incondicionado transcendente e as realidades
condicionadas. Possivelmente, seria melhor isolar um nível de símbolos
“intermediários”, que seriam os símbolos cujo foco é a “encarnação”, ou a
presentificação do divino na criaturidade.
Entre os símbolos de imanência, incluem-se todos os objetos históricos e
naturais que recebem caráter sacro, pela associação com a religião (MW4[RSKG]:400-
401). Devido ao significado empírico e histórico desses objetos para a consciência
(mesmo que eles efetivamente não existam), tais símbolos representam a presença do
53
incondicionado na ordem empírica (MW4[RS]:265). Em 1955, Tillich distinguiu aqui
entre os símbolos “sacramentais” que, como símbolos, tornam-se portadores do sagrado
em certa situação,
13
e os diversos objetos naturais que contém referência aos objetos do
primeiro nível, e que são sinais quase-simbólicos, como velas, água, óleo, edifícios,
lugares, ritos, palavras, etc (MW4[RSKG]:401). Apresentamos, abaixo, uma tabela com
a categorização de Tillich para os símbolos religiosos:
Níveis Simbólicos Grupos Simbólicos Símbolos
Grupo 1: Conceitos e
atribuições de Divindade
Deus Pessoal
Grupo 2: Atributos da
Divindade
Justiça, Amor, Poder,
Misericórdia
Nível 1: Símbolos de
Transcendência
Grupo 3: Atos de Deus Criação, Salvação, Consumação,
Julgamento
Grupo 4: Aparições da
Divindade no Tempo e no
Espaço
Encarnação, Teofanias
Grupo 5: Símbolos
Sacramentais
Batismo, Ceia do Senhor
Nível 2: Símbolos de
Imanência
Grupo 6: Sinais com força
Simbólica
Edifícios, Lugares Santos,
Relíquias, Livros, Cruzes
Onde poderíamos localizar o símbolo da Queda? É difícil fazer isso, desde que a
Queda não é, exatamente, um símbolo do Incondicionado. Se considerarmos, no
entanto, que a Queda aparece dentro da tríade Criação-Queda-Redenção, e que pode ser
pensada como a negação da Criação, poderíamos classificá-la no mesmo grupo que a
Criação. Esta é por Tillich incluída no nível dos símbolos transcendentes, no terceiro
grupo, como um dos atos de Deus. Nesse caso, a Queda figuraria como um símbolo
transcendente, parasitário do símbolo da Criação, no grupo dos símbolos dos atos de
13
Tillich introduz, aqui, uma interessante discussão, ao argumentar que o debate entre Zwínglio e Lutero
teria, realmente, envolvido uma grande confusão semântica. Lutero teria, na verdade, defendido o caráter
verdadeiramente simbólico dos elementos, ao afirmar a presença divina neles, ao passo que Zwínglio, em
defendendo que os elementos seriam “apenas símbolos”, na verdade os considerava apenas “sinais”
(MW4[RSKG]:401).
54
Deus. De fato, se considerarmos o fundo Schellingiano da teologia de Tillich,
poderíamos relacionar a Queda como resultante de um “momento”, por assim dizer, da
dinâmica trinitária.
Seja como for, algo bem concreto é dado a nós por Tillich em Existential
Analysis and Religious Symbols (1956): “No centro do simbolismo de muitas religiões
nós encontramos o contraste da queda e salvação juntamente com um largo grupo de
símbolos corroborantes” (MW6[EARS]:393). Isso reforça a intuição de que Tillich
reconheceu a centralidade da Queda na estrutura simbólica do cristianismo e de sua
importância para a interpretação da religião.
1.2.6. Vida e Morte dos Símbolos Religiosos
Os símbolos emergem, historicamente por um processo de reconhecimento
comunal, cuja base poderia ser uma espécie de “inconsciente coletivo” (Tillich,
1987[1955C]:398). Em princípio, numa dada situação histórica, o incondicionado deve
ser efetivamente manifesto, por meio de agentes ou experiências de impacto
comunitário, para que ocorra uma fixação simbólica. Os mecanismos psicológicos e
sociológicos operantes na situação histórica cooperam influenciando a seleção do
símbolo religioso, mas não criam o seu reconhecimento pela consciência (Tillich,
1987[1940]:257,258). A origem deste reconhecimento é a necessidade de fazer repousar
a preocupação suprema em algum representante do incondicionado. Sendo reconhecido
por um processo coletivo, o símbolo tem a qualidade de ter seu poder revelatório
reconhecido por todos, naquele momento histórico.
Mas o símbolo pode perder seu poder de revelação, quando a sua forma não
comunica mais nada de significativo à nova situação. A quebra do símbolo, que ocorre a
55
partir do seu reconhecimento como símbolo, pode levar à sua substituição ou mesmo a
um possível vazio simbólico, com a tentativa de abandonar a mediação simbólica com o
incondicionado, cessando de utilizar a realidade como “material” para os símbolos.
Tillich admite essa última possibilidade, até mesmo com alguma simpatia:
Indubitavelmente, bem poderia ser que a mais alta finalidade da
teologia fosse encontrar o ponto em que a realidade fala
simultaneamente de si mesma e do Incondicionado de um modo não
simbólico, ou encontrar o ponto em que a realidade não simbólica em
si mesma se torne um símbolo, no qual o contraste entre realidade e
símbolo seja suspenso (Tillich, 1987[1940]:268).
Tillich finalmente rejeita esta possibilidade, com o argumento de que a
realidade, como um todo, está separada do que deve ser, não sendo transparente a seu
significado último. Mas deixa claro que, ao menos em princípio, seria possível uma
identificação total de realidade e símbolo.
56
1.3. Símbolo e Mito em Tillich
1.3.1. Mito: O Incondicional Narrado
A questão do mito está diretamente ligada ao tema do símbolo. Para Tillich,
devemos compreender a linguagem das religiões a respeito dos deuses e de suas
intervenções na terra exatamente como linguagem simbólica. “Mitos são [...] símbolos
da fé associados a lendas, os quais falam dos encontros dos deuses entre si e dos deuses
com os homens” (Tillich, 1985:35; MW5[DF]:254).
14
A definição Tillichiana de mito é perfeitamente clara, nos ajudando em sua
localização dentro dos debates atuais e também da discussão teológico-filosófica. A
característica central do mito seria a descrição das relações entre transcendência e
imanência ou, considerando a definição Tillichiana de “divindade”, da natureza do
incondicionado e de suas relações com o condicionado, enquanto postas em forma
narrativa. A transcendência incondicionada, para Tillich, só é perceptível por meio de
concepções míticas. Esta é razão porque o mito é o material básico da própria teologia.
Comentando, de um modo mais geral, o espírito das teologias de Tillich, Berdyaev e
Niebuhr, Knudsen observa:
De acordo com eles, a teologia não lida com o imanente
como tal. Nem lida com aquilo que rompe o imanente. Ela lida com o
imanente enquanto ele está relacionado ao transcendente. Ela lida com
o imanente em sua própria profundidade, na qual ele vem à realização.
O símbolo mítico é o meio de expressão dessa relação com o
transcendente [...] o símbolo mítico é onde o transcendente e o
imanente estão fundidos (Knudsen, 1963:75).
14
Wolfhart Pannenberg aponta, no entanto, que antiga concepção de mito da escola da história das
religiões do século XIX, recebida por Bultmann e por Tillich, como “histórias de deuses”, isto,
representações narrativas da relação entre a transcendência e a imanência, foi superada pelos avanços do
estudo comparativo das religiões, que redefiniram o mito como narrativa de fundação (PANNENBERG,
1973:4, 5, 11-15, 24). Esta constatação levanta a possibilidade de pensar a crítica do mito como a crítica
científica e ideológica, e de interrogar se a crítica teológica do mito é uma crítica do mito como tal ou de
uma forma de pressuposto teológico. Nesse caso, o valor de criticar-se certa forma de teologia como
mitológica seria mais um exercício retórico de associação que uma elucidação do mito.
57
Exatamente por ser o mito a forma de reunir, numa única, embora instável forma
plástica, o transcendente e o imanente, a consciência mítica seria universal: “A
consciência mítica pode assim existir quebrada ou não-quebrada; em qualquer caso, não
desaparece [...] se [...] considerarmos cada intuição da transcendência como mítica,
então não existiria tal coisa como uma atitude não-mítica [...]” (MW4[RS]:261); “[...] o
mito é o conceito central daqueles símbolos em que o incondicionado transcendente é
visado, mediata ou imediatamente” (MW4[RS]:262). Em Dynamics of Faith Tillich
chega mesmo a dizer que “[...] símbolos e mitos são formas da consciência humana que
estão sempre presentes. É possível substituir um mito por outro, mas não se pode
remover o mito da vida espiritual do homem” (MW5[DF]254). Como formas da
consciência humana, refletem aspectos estruturais da vivência e da construção da
imagem de mundo, pelo indivíduo. Poderíamos mesmo dizer que o mito, em Tillich, é
uma forma necessária da imaginação religiosa:
15
Uma [...] inadequação vem à luz na dimensão religiosa. O
Incondicionado é muito abstrato para satisfazer os requisitos de um
objeto de preocupação religiosa [...] O Mito é, portanto, uma narrativa
primitiva sobre os deuses. Mas em seu sentido mais prenhe, é uma
categoria epistemológica. É a forma necessária da imaginação
religiosa (Knudsen, 1963:58).
Os mitos são tipos particulares de símbolos, que contêm, em sua estrutura,
elementos temporais, em geral na forma de narrativas. Toda explicação sobre a relação
entre o incondicionado e o mundo que não somente o objetifica, mas que também o
insere num encadeamento narrativo pode ser descrita como um símbolo mítico.
16
Assim,
15
Assim, como observa Simon Fischer, Tillich não quer uma fé completamente desmitologizada. Em
especial, como veremos, ele vê a importância de reconhecer a impossibilidade de desmitologização total
ao explicar a transição essência-existência. Segundo Fischer, Tillich reproduz, neste ponto, a
compreensão Schellingiana do mito (FISCHER, 1987:253).
16
Além disso, podemos dizer que, quando essa formulação é submetida a uma conceptualização, sem que
sua forma plástica seja rompida, temos um símbolo mítico racionalizado. Este seria o caso do dogma
cristão, e da doutrina Agostiniana da Queda, em especial.
58
de certo modo, o mito é também “[...] a combinação dos símbolos de nossa preocupação
última” (MW5[DF]:254).
1.3.2. Desmitologização: a “Quebra” do Mito
De acordo com Tillich, um mito sempre combina três elementos: o religioso, na
capacidade de representação do incondicionado transcendente, o científico ou
“cognitivo”, que é a referência à realidade objetiva, e o núcleo mítico, que é a
objetificação do transcendente a partir de propriedades imanentes. A unidade do mito é
quebrada quando se alcança a percepção de dois fatos sobre a realidade: (1) da
incondicionalidade divina e (2) da racionalidade do mundo. Neste momento ganha-se a
consciência de que o núcleo mítico, que objetifica o incondicionado, não é uma
“realidade real”, mas um símbolo, literalmente indescritível, sem expressão empírica.
Isso é o que Tillich chama de “mito quebrado”, cujo conteúdo empírico foi
desconectado de sua referência transcendente e submetido à crítica científica, marcando
a transição para uma religião e uma ciência autônomas. Mas, em todo o processo, a
importância do mito para a construção do real permanece a mesma – inclusive para a
ciência, como veremos.
“Desmitologização”
17
é o termo adequado para descrever a necessidade de
“reconhecer o símbolo como símbolo e o mito como mito”, isto é, reconhecer a verdade
da preocupação última veiculada por ele, mas a inverdade de seu conteúdo literal, tanto
de um ponto de vista religioso como científico. Desde que se evite, naturalmente, o erro
de pensá-la como um método de eliminação de mitos, pois o mito, como forma da
consciência humana, é inextinguível. O que torna a desmitologização necessária é o
17
Se bem que, a julgar pelo texto, Tillich parece simplesmente assumir um termo corrente: “[o mito]
precisa, como se diz hoje, de ‘desmitologização’” (MW5[DF]:254).
59
paradoxo lógico envolvido na atribuição de categorias da experiência humana ao
incondicionado, como forma de expressar a preocupação última. O “desrespeito
narrativo”, por assim dizer, dos limites entre realidade não-dependente, incondicionada,
e as criaturas, gera histórias cuja forma plástica permanece instável; tal transgressão é
necessária para a referência ao incondicionado, mas isso torna a desmitologização
igualmente necessária: “[...] todas as histórias em que se conta sobre interações divino-
humanas são consideradas mitológicas em caráter, e objeto de desmitologização”
(MW5[DF]254). O paradoxo gerado pela descrição de uma interação divino-humana, de
uma transgressão dos limites de transcendência e imanência, exige dissolução crítica.
18
A razão principal porque Tillich rejeitou a interpretação literal da linguagem
religiosa não foi a crítica moderna do mito, mas a sua compreensão da realidade última
como estando além da estrutura eu-mundo que contém a linguagem discursiva e as
possibilidades de objetificação. A divindade se encontra, assim, além da linguagem, não
sendo possível diferenciar-lhe características. Tillich descreve a realidade última como
“incondicionada”, significando que ela está além de qualquer limitação e categorização.
O Incondicionado é infinito e livre de propriedades.
Há, portanto, uma motivação teológica para a desmitologização: o impulso em
direção ao incondicionado, presente no símbolo mítico, por si só, é a origem última de
sua ruptura. A crítica religiosa do mito prossegue em direção à rejeição da confusão de
transcendência e imanência, da divisão da divindade entre diversos entes e, enfim, do
monoteísmo. O próprio cristianismo seria, por natureza, contrário a qualquer mito não-
quebrado, pois a afirmação da incondicionalidade de Deus exige a rejeição de qualquer
18
Knudsen destaca que, para Tillich, só há símbolos dedicados à representação do divino em razão da
ruptura entre essência e existência. Não deveria haver o contraste entre simbólico e não-simbólico,
sagrado e secular (Knudsen, 1963:61). Poderíamos nos perguntar, então, se a finalidade da criação
mitológica não é, exatamente, dar visibilidade ao incondicionado em razão de seu “ocultamento”, ou
melhor, em razão da alienação da existência em relação a seu fundamento incondicional. Nesse caso, a
criação mitológica seria uma espécie de produto da “Queda” (miticamente falando!); um fruto indesejável
da alienação existencial, a ser superado por meio de uma condição teonômica.
60
idolatria e a relativização do conteúdo literal do mito. Assim, “Em última análise, não é
a crítica racional do mito que é decisiva, mas a crítica religiosa interna”
(MW5[DF]:255).
O símbolo mítico efetivamente estabelece uma conexão entre visão de mundo e
intuição do incondicionado transcendente. Assim, a luta pela preservação ou
reconstituição do mito se explica pelo desejo de unir a religião com a compreensão do
mundo (MW/4[TRS]:262). Tal conexão permanece uma possibilidade, na medida em
que a autonomia obtida pela religião e pela ciência não é, de modo algum, absoluta,
embora as condições para tal não fossem as melhores, no tempo de Tillich:
19
Assim a ciência se torna um mito, a despeito de sua autonomia
racional, e a religião absorve certos aspectos da compreensão e
conhecimento do mundo, a despeito de sua própria autonomia
transcendente, a fim de dar significado ao transcendente. Em
nosso tempo, entretanto, este desenvolvimento é mais uma
tendência do que uma realidade. Seu sucesso envolve uma
consistente transformação, tanto da mentalidade científica como
da mentalidade religiosa (MW/4[TRS]:262).
Desejável como possa ser a unidade da religião e do conhecimento a partir do
simbolismo mítico, tal não pode ser obtido evitando-se a crítica do mito. Também não é
possível “colar” o mito após a sua quebra, nem criar mitos artificialmente. Tillich
propõe, por conseguinte, que nos libertemos da crença na literalidade do mito, mas não
o abandonemos totalmente; os mitos, simbolicamente compreendidos, devem ser
reinterpretados a partir de uma análise filosófica da existência.
19
A situação atual parece ser um pouco diferente, na medida em que há um amplo reconhecimento da
necessidade de procurar construir pontes entre a religião e a ciência, e um crescente movimento
internacional reunindo cientistas, teólogos e religiosos procura superar as barreiras entre os dois campos.
Infelizmente, no entanto, este grau de consciência atingiu principalmente os cientistas da natureza, com
pouco envolvimento da classe filosófica e dos especialistas em humanidades.
61
1.3.3. Semi-Desmitologização: Quebrado, mas Vivo
Tillich procura constantemente expressar o conteúdo do mito em termos
puramente ontológicos, quando, por exemplo, apresenta uma noção ontológica e então,
com a expressão “mitologicamente falando”, a traduz em termos mitológicos (Knudsen,
1963:66). Mesmo assim, ele admite que há um elemento de irracionalidade, de não-
necessidade, refletido na forma narrativa do mito, que é muito apropriado para expressar
o “salto” qualitativo que separa essência de existência, ordem de necessidade e ordem
de liberdade. É assim que Tillich introduz o conceito de “semi-desmitologização” ao
falar a respeito da “Queda”:
Com o propósito de aperfeiçoar essa compreensão, a frase
“transição essência-existência” é usada neste sistema. Trata-se, por
assim dizer, de uma “semi desmitologização” do mito da Queda. O
elemento de “certa vez” é removido. Mas a desmitologização não é
completa, pois a frase “transição essencia-existência” ainda contém
um elemento temporal. E se nós falamos em termos temporais sobre o
divino, nós ainda falamos em termos míticos, mesmo se conceitos
abstratos como “essência” e “existência” substituem estados e figuras
míticas. A desmitologização completa não é possível quando falamos
sobre o divino (ST/2:29).
Tillich usa, em inglês, a expressão half-way demytologization, traduzida na
quinta edição em português como semidemitologização. Trata-se de uma condição
bastante curiosa, na qual temos uma impossibilidade de falar-se da separação de
essência e existência sem o elemento temporal, isto é, sem aplicar categorias espaço-
temporais. E de um exemplo do ponto repetidamente afirmado por Tillich: é impossível
se referir à nossa relação com o incondicionado sem usar termos condicionados, e tal
uso implicará uma transgressão da linguagem literal. Nesse caso, a única
“desmitologização” permitida pelo sistema de Tillich é, na verdade, a semi-
62
desmitologização; e até mesmo o discurso ontológico sobre o incondicionado consistiria
em um processo de re-mitologização.
20
1.3.4. Mito: Uma Esfera Simbólica Independente?
Em The Religious Symbols (1940) Tillich apresenta uma discussão com a teoria
idealista-crítica do símbolo mítico, como desenvolvida por Ernst Cassirer. Este último
vê o mito como uma forma distinta de interpretação da vida – uma forma cultural
particular, ao lado da ciência, da linguagem, da filosofia, etc. O símbolo, entretanto,
estaria na essência de qualquer realidade cultural, de modo que cada uma constitui uma
forma simbólica distinta. O mito estabelece, então, uma esfera cultural distinta cuja
particularidade não se encontra no simbolismo, desde que ela compartilha com as outras
seu caráter simbólico – essa seria a concepção “transcendental” do mito. Quanto à
relação entre mito e religião, propriamente, a resposta idealista-crítica é a de que o mito
e o símbolo religioso estariam, originalmente, fundidos, com o simbolismo religioso
gradualmente se elevando sobre o simbolismo mítico, até o ponto de derrotá-lo e ganhar
autonomia – Cassirer apresenta também, portanto, uma explicação “evolucionária” do
mito.
Contra a solução idealista-crítica, Tillich objeta que, se a mitologia constitui uma
forma simbólica independente, isto é, uma esfera cultural autônoma como a ciência, a
arte, as leis, etc, não há razão para a necessidade de um conflito com a esfera da religião
e, muito menos, de uma destruição e superação do mito – ele permaneceria sempre com
20
Um problema, no entanto, parece ficar sem solução: se a concretude do mito, isto é, a carga literal,
inscrita em sua forma plástica, é sem valor cognitivo, precisamos perguntar qual seria o valor, afinal, de
aplicar-se uma categoria literal, como a noção de “transição” para descrever a nossa relação com o
incondicionado, uma vez que, em sendo ainda literal e remitologizante, ela nada diz sobre o seu referente.
Poderíamos pensar, no caso, que se trata da descrição de uma realidade não-divina, isto é, da realidade
existencial; mas, então, a crítica à narrativa da Queda, talvez, não fosse a crítica do mito, mas de outra
forma narrativa: a saga, por exemplo.
63
seu “lugar” próprio. E a religião, por outro lado, constituindo uma esfera também
particular, não deveria se originar do mito. Em suma, Tillich afirma que “[...] a
concepção evolucionária e a concepção transcendental de mito se contradizem
mutuamente” (MW4[RS]:260). Sua própria explicação das tensões históricas de mito e
religião parte do princípio de que o mito não constituiria uma esfera distinta da cultura.
“[...] o mito, longe de ter desaparecido, apenas alterou a sua forma. Assim, o conflito
entre a religião e o mito não seria um conflito com o mito, como tal, mas antes de um
mito particular com outro” (MW4[RS]:260).
Tillich apresenta o exemplo do conflito entre o Baalismo e o Javismo como o
conflito entre o mito agrário e o mito histórico de Javé, e aponta o fato de que a
transcendência divina no mito de Javé não elimina o mito, que permanece na relação
entre história empírica e história transcendente. Isso ocorre porque “A transcendência
incondicionada, como tal, não é perceptível – e assim deve ser em religião – isso pode
ser feito apenas por concepções míticas” (MW4[RS]:260).
21
Assim, seja em narrativas
religiosas, seja no mais alto misticismo, o elemento mítico permanece; ele é necessário
para tornar presente a dimensão de transcendência:
A consciência mítica pode, assim, estar quebrada ou inteira; em
qualquer caso, ela não desaparece. Se alguém decide caracterizar
apenas a mentalidade mítica não-quebrada como mítica, então, é claro,
o mito é vencido na religião e assim se mostra não-essencial. Se, por
outro lado, alguém considera cada intuição de transcendência como
sendo mítica, então não há tal coisa como uma atitude não-mítica e o
mito se mostra essencial (MW4[RS]:261).
O surgimento da ciência moderna criou uma situação nova, na medida em que os
objetos da intuição mítica se tornaram em objetos de investigação científica e, assim,
em meros objetos de experiência empírica. A conexão direta entre a consciência e os
existentes é perdida, e um mundo próprio de objetos é criado. Este mundo repele os
21
Itálico meu.
64
mitos, por um lado; mas, por outro, os recria, na medida em que concepções de
transcendência são parte estruturalmente necessária do discurso, em suas referências ao
incondicionado. O mito se encontraria, assim, no centro da ciência e da metafísica:
22
Sob estas circunstâncias, devemos rejeitar a classificação da
mitologia como um tipo independente de criação simbólica, diferente
da ciência e da religião. Tanto na ciência como na religião, a mitologia
é um elemento que não pode ser eliminado, mesmo que possa ser
quebrado. Platão reconhece isto quando, por um lado, ele coloca a
ciência em oposição ao mito e, por outro, deve reconhecer a
indispensabilidade do mito para a ciência. Toda metafísica atinge um
ponto em que seus conceitos são mitos, não apenas de fato, mas
mesmo no som de suas palavras (MW4[RS]:261).
O mito seria, portanto, necessário em cada esfera intelectual e cultural, e não
uma esfera separada, como supôs Cassirer. A metafísica genuína estabeleceria uma
correlação entre racionalidade e mito – constituindo-se, diríamos, em uma forma de
teologia filosófica – e a ciência traria sempre elementos míticos implícitos. Conflitos da
filosofia, da ciência, e da religião, com o mito, deveríam ser vistos, portanto, não como
conflitos com o mito per se, mas como o choque de mitos mutuamente excludentes –
exceto, naturalmente, nos casos em que o conflito com a ciência se deve ao processo de
ruptura do mito, em seu conteúdo empírico.
23
Tillich contrasta os símbolos míticos com outros símbolos apontando seu caráter
“infundado”, isto é, o fato de que “são determinados essencialmente por seu caráter
simbólico” (MW4[RS]262). Em linha com o idealismo crítico, admitindo que uma
criação cultural não representa uma “coisa em si” além dela mesma, mas realmente
constitui uma esfera objetiva, concluiríamos que o mito tem um caráter figurativo que o
22
Tillich faz uma interessante observação sobre os pontos de contato entre religião, metafísica e ciência:
“[...] é possível classificar as pressuposições últimas da ciência com os conceitos mais altos do misticismo
abstrato ou do monoteísmo abstrato Assim, nasce um mito abstrato que não é menos mito que um
concreto, mesmo se está quebrado em sua imediaticidade. De fato, o significado vivo de uma metafísica
criativa é que ela envolve exatamente um mito abstrato. E, deste fato, deriva-se seu caráter duvidoso
como ciência e seu poder religioso” (MW4[RS]:261).
23
Naturalmente, isto levanta o problema da identificação de quais elementos, no mito, estão realmente
sujeitos a tal ruptura; a abordagem de Tillich supõe que essa identificação é óbvia, desde que a crítica do
conteúdo empírico do mito é levantada adequadamente pela ciência.
65
torna completamente diferente dos objetos científicos, artísticos, legais, etc. A arte, por
exemplo, cria uma realidade própria e, só cria símbolos na medida em que adquire
caráter mítico, apontando um significado transcendente, em relação a si mesma.
Se chamamos todas as criações culturais de símbolos, como o faz Cassirer, será
preciso encontrar um outro termo para expressar o caráter particularmente figurativo do
símbolo mítico. Pois nas outras esferas de sentido, o significado simbólico aparece
somente quando estas se tornam subservientes ao mito, enquanto que, no mito, o
simbólico é parte de sua essência, na medida em que não tem uma base própria e refere-
se, para além de si, ao incondicionado. Assim, como alternativa ao pensamento
idealista-crítico de Cassirer, Tillich sustenta o que chama de “realismo transcendente”:
os símbolos míticos não constituiriam uma esfera separada de criações culturais, e
teriam um “objeto” distinto e real, que seria o incondicionado transcendente
(MW4[RS]263).
Em sua resposta ao artigo de Tillich, Wilbur Urban também criticou suas idéias
sobre “mito” e “ciência”. Reagindo à crítica de Tillich ao idealismo crítico de Cassirer,
ele argumenta que a identificação de símbolo religioso e mito (implícita na noção de
que toda referência ao transcendente é necessariamente mítica), feita por Tillich, seria
errônea, desde que Cassirer mostrou a diferença entre mito e religião, delimitando os
dois campos com clareza. Aponta também que, para Tillich, somente a ciência nos dá
conhecimento empírico e objetivo, e que Cassirer teria mostrado que tanto a ciência
como a religião são formas simbólicas com propósitos diferentes (MW4[Urban]:270).
Tillich respondeu a essas críticas em Symbol and Knwoledge, destacando que,
exatamente por concordar com Urban contra o pan-simbolismo, ele rejeita a solução de
Cassirer, como a mais acabada forma de pan-simbolismo. Quanto ao problema dos
conceitos de mito e ciência, Tillich não os discute em sua resposta. Quanto ao conceito
66
de ciência seu silêncio se deve, possivelmente, ao fato de a sua rejeição do pan-
simbolismo de Cassirer implicar a rejeição à sugestão de Urban de relativizar a
literalidade do discurso científico frente ao discurso mítico. Quanto à relação entre mito
e religião, a força do argumento inicial de Tillich era justamente a de manter a conexão
de mito e religião, e tal discussão eliminaria o ponto principal de sua resposta, que era o
problema da relação entre símbolo religioso e conhecimento.
67
1.4. Símbolo e Conhecimento Religioso: O Debate Americano
Na defesa de suas idéias sobre a linguagem religiosa, Tillich enfrentou
importante oposição de filósofos e teólogos americanos fortemente influenciados pela
tradição analítica e pelo pragmatismo, oposição esta que ele relacionava, por vezes, à
própria mentalidade pragmática e instrumentalista americana. As discussões giravam
sempre em torno da relação entre a linguagem religiosa e o conhecimento religioso, com
os temas associados da verificabilidade e da verdade da crença.
À vista desses filósofos, a teoria de Tillich parecia uma solução insuficiente.
Assim, a idéia de que qualquer aspecto da realidade, em princípio, poderia ser elevado à
função de símbolo do incondicionado, aliada à noção de que os símbolos religiosos
seriam, finalmente, irredutíveis, impassíveis de tradução literal, levou à acusação de que
Tillich estaria ensinando uma forma de “pansimbolismo” religioso que não poderia ser
diferenciada, na prática, de um panficcionismo religioso, desde que os símbolos
poderiam, finalmente, simbolizar “nada”, exceto a nossa disposição de inventar
símbolos.
1.4.1. O Debate com Urban e Aubrey
Entre 1940 e 1941 foram publicadas duas respostas ao artigo de Tillich (“The
Religious Symbol”) no The Journal of Religion, pelos professores Wilbur M. Urban e
Edwin E. Aubrey, levantando importantes questionamentos em torno do assunto, com
uma contra-resposta de Tillich, no mesmo periódico, intitulada Symbol and Knowledge.
O Dr. Urban, em seu artigo, manifesta acordo quanto aos tipos de simbolismo, e
quanto à differentia do símbolo religioso em relação aos outros, que residiria em sua
68
referência transcendente. Sua objeção se concentrou nas afirmações de Tillich de que o
“incondicionado transcendente”, intencionado pelo símbolo religioso, “transcende tanto
o ser em si como o ser para nós”, que “todo o conhecimento de Deus tem um caráter
simbólico”, e que “os símbolos não provêem nenhum conhecimento objetivo, mas uma
percepção verdadeira” (MW4[Urban]:270). Essas declarações, segundo Urban, estariam
em contradição com o professo “realismo transcendente” de Tillich, uma vez que
cortariam qualquer ligação com uma “realidade transcendente”:
Minha própria crença é de que, a menos que haja uma
“analogia do ser” entre o “Criador” e o “criado”, entre ser em si e ser
para nós, é pefeitamente fútil falar tanto sobre simbolismo religioso
como sobre conhecimento religioso [...] Há dois aspectos desta teoria
que eu, pessoalmente, não posso aceitar e que, para mim, condenam
qualquer teoria que os contém à ininteligibilidade última. O primeiro
deles é o que eu descreverei como pan-simbolismo – a visão de que
todo o conhecimento de Deus tem um caráter simbólico. Como eu
tenho procurado apontar, a noção de conhecimento simbólico (e
verdade simbólica) é sem sentido, exceto em contraste com o
conhecimento não-simbólico (MW4[Urban]:270).
Na opinião de Urban, o pan-simbolismo de Tillich o tornaria presa fácil de
teorias negativas e naturalistas, desde que impossibilitaria qualquer conexão segura do
símbolo com seu “referente”, convertendo o discurso religioso em um provável pan-
ficcionismo; ele chega a sugerir que haveria pouca diferença entre a posição de
Feuerbach e a de Tillich.
Em sua crítica, Aubrey mostra preocupação com a tendência à interpretação
alegórica dos símbolos que, em sua percepção, seria um risco inerente à teoria de
Tillich, na medida em que o conteúdo positivo do discurso religioso não tem
fundamento literal. Rejeita também a idéia de que o símbolo teria algum poder inerente.
O único sentido do símbolo seria aquele dado pelo contexto, que o “cria” na
consciência; o símbolo, em si, não teria sentido nenhum. Quanto ao problema do
referente, Aubrey aponta o mesmo desconforto com um incondicionado que “transcende
o ser em si”, no que constituiria uma espécie de “meta-metafísica”, afinal. E manifesta
69
sua impressão de que a proposta de Tillich se parece com uma forma de ficcionalismo, e
apresenta características pragmáticas e naturalistas (MW4[Aubrey]:271-272).
Em sua resposta às críticas de Wilbur Urban e Edwin Aubrey, publicada no The
Journal of Religion, Tillich distingue entre as críticas justificadas, as que exigem
melhores explicações, e as críticas que expressam pontos de vista distintos. Quanto ao
primeiro conjunto, Tillich reconhece que sua descrição do incondicionado como o que
“transcende o ser em si bem como o ser para nós” não tem sentido, mas alega que tal
seria um problema de “tradução”. Ele estaria se referindo ao incondicionado como o
abismo do ser, o fundamento criativo de todas as formas de existência. Admite, em todo
caso, o ponto principal: este incondicionado estaria acessível de um modo indireto, mas
um elemento literal seria realmente necessário para validar a linguagem religiosa:
[...] devo admitir que qualquer conhecimento simbólico pressupõe
alguma base de conhecimento não-simbólico, e que o pansimbolismo
é auto-refutatório [...] O elemento não simbólico em todo
conhecimento religioso é a experiência do incondicionado como a
experiência-limite da razão humana e, desse modo, expressível em
termos negativos-racionais. Mas o incondicionado não é Deus. Deus é
o conceito afirmativo apontando para além do limite dos termos
negativos-racionais e assim, em si mesmo, um termo simbólico-
positivo (MW4[SK]:273).
Tillich concorda, portanto, com Urban, em que deve haver uma conexão entre a
realidade imediata referida literalmente no símbolo, e a realidade transcendente que está
simbolizada nele, e assume a sua adesão à doutrina da analogia entis (analogia do ser),
opondo-se explicitamente a Barth (MW4[SK]:273). Uma continuidade metafísica seria
necessária, entre os referentes literais do símbolo e o incondicionado, do contrário, os
referentes imediatos não poderiam torná-lo presente. Nas palavras de Knudsen, para
Tillich “Deus é o ser-em-si e, porque todas as coisas participam no ser-em-si, é possível
usar um segmento da realidade finita para simbolizar Deus” (Knudsen, 1963:52).
70
Tillich continua rejeitando, entretanto, a possibilidade de descrever literalmente
o incondicionado por meio dos símbolos. Seu conteúdo positivo (afirmações positivas
sobre Deus) “[...] expressam a forma concreta em que o misterioso fundamento e
abismo do Ser tornou-se manifesto a um ser como sua preocupação suprema em um ato
que nós chamamos ‘revelação’” (MW4[SK]:274). Tal conteúdo não objetifica o
conhecimento do incondicionado, de modo que a verdade, sobre este, só existe como
participação existencial e supra-racional. É uma verdade “negativa” que bloqueia a
distorção das verdades “objetivas”.
Mais tarde, referindo-se a esta discussão, reafirmou: “A declaração não-
simbólica que implica a necessidade do simbolismo religioso é que Deus é o ser-em-si
(being itself) e, como tal, além da estrutura sujeito-objeto de tudo o que é” (Tillich
[Reply, 1952]:334). Esta declaração é muito importante, na medida em que explicita
com muita clareza o compromisso de Tillich com a analogia entis e, neste sentido, com
a tradição metafísica, em oposição à postura de Karl Barth, e também com uma forma
de via univoca, isto é, de que existiria um elemento de conhecimento literal sobre a
divindade no discurso religioso.
24
A experiência do incondicionado é, pois, a experiência-limite; a noção de
“incondicionado transcendente”, ou de “Ser-em-si” é um conceito-limite, literal,
racional, e negativo, em oposição ao símbolo de “Deus”, que é um conceito positivo. O
conteúdo positivo de “Deus” é acidental; só é válido cognitivamente, nele, o elemento
24
Frederico Pieper Pires considera a teoria de Tillich deficitária, nesse ponto, devido ao esforço implícito
por estabelecer um fundamento e um centro para “controlar a disseminação dos sentidos” (PIRES,
2006:39-41). Entretanto, tendo em vista o contexto histórico do debate, e a concordância de Tillich com
os problemas levantados pela filosofia analítica anglo-americana, em torno da relação entre verdade e
discurso, consideramos a crítica inadequada. Por um lado, o argumento de Tillich tinha um significado na
época, de confronto com o positivismo, de modo que não seria justo ignorar esse contexto originário. Por
outro lado, somente o abandono completo e anti-filosófico, em nossa opinião, do problema da verdade e
de sua relação com a linguagem, poderia justificar tal conclusão. Até mesmo uma filosofia baseada na
rejeição da onto-teologia precisará, finalmente, enfrentar o problema da verdade, se quiser dar conta da
positividade da experiência humana, e não apenas de suas margens, vestígios e incompletudes.
71
negativo, ou apofático, que cancela a validade do conteúdo positivo e pode ser expresso
como conceito-limite negativo. O conceito-limite é literal, cumprindo o papel de
referência objetiva para a linguagem religiosa, e livrando Tillich da acusação de pan-
simbolismo. Mas a carga semântica positiva do símbolo não é a fonte do conhecimento
religioso que ele traz:
Isto significa que os símbolos não têm um conteúdo literal,
objetivo. No que o símbolo é literal e objetivo, é irrelevante para a
preocupação suprema e pode ser criticado radicalmente. O símbolo é
relevante para a preocupação suprema apenas em sua relação com o
Incondicionado. O conhecimento simbólico não adiciona quaisquer
itens de informação a um fundo de conhecimento objetivo. Os
símbolos são as respostas a questões que emergem da situação
humana, e como tais, tem um conteúdo e um significado existencial.
Apenas aqueles que tem as experiências existenciais correspondentes
podem compreender o significado dos símbolos (Knudsen, 1963:55).
Quanto às questões de Aubrey sobre a semelhança das idéias de Tillich com o
pragmatismo e o naturalismo, o teólogo deixa claro que as diferenças são fundamentais.
Contrariamente ao pragmatismo, Tillich sustenta que o conhecimento religioso não se
submete à razão técnica, de modo a possibilitar decisões religiosas “pragmáticas”:
A decisão que pertence à interpretação dinâmico-simbólica do
conhecimento religioso não é uma decisão baseada em atividades que
seguem o padrão de meios e fins, i.e., o padrão instrumentalista e
técnico que permite o distanciamento de um experimento de teste.
Mas é a decisão que envolve entrega, fé corajosa, e para a qual não há
critério e teste experimental fora da própria situação (MW4[SK]:274).
É verdade que o valor do símbolo religioso não se encontra em sua carga
positiva, mas em sua capacidade simbólica em dada situação. Mas isso não torna a
avaliação do valor de um símbolo religioso pragmática, no sentido instrumentalista
característico da filosofia americana; porque o poder do símbolo só é sentido no interior
do compromisso existencial. O “julgamento”, portanto, deve ser religioso e envolver a
totalidade do ser. E Tillich lembra que há um critério propriamente religioso e não
instrumental, que ele chama de “o guardião” (The Guardian): é a natureza
incondicionada do incondicionado contra a condicionalidade do que o representa.
72
Aubrey demonstrou preocupação com o retorno de uma alegorese justificada
pela abordagem existencialista – se o símbolo não traz carga positiva significante, não
somos nós os criadores do seu significado? Contra isso, Tillich se esforça por deixar
claro – ainda contra a interpretação “pragmática” da seleção simbólica – que um
símbolo não emerge de forma arbitrária; deve haver uma semelhança ou afinidade
original do símbolo com seu conteúdo.
25
A água, por exemplo, tem qualidades naturais
que a habilitam para o uso ritual, indicando a purificação, nascimento e morte, etc. O
símbolo central do cristianismo – a cruz de Cristo – não é arbitrário, e não se presta a
uma interpretação alegórica:
Apenas neste contexto, no contexto total do Antigo e do Novo
Testamento, e mesmo da história geral da religião, pode ele se tornar o
símbolo central. Separá-lo dessas conexões e torná-lo, diretamente,
uma ‘experiência do incondicionado’ é sem sentido [...] o poder
simbólico da figura em si não é dependente de uma interpretação
especial, assim como a interpretação não é uma negação do símbolo
como tal” (MW4[SK]:275).
Para Tillich, pois, o poder do símbolo advém das condições que o fazem
emergir, condições estas que não estão sob o controle de ninguém e que impedem
completamente uma criação simbólica arbitrária. Desde que o símbolo, no entanto, têm
um significado existencial, e expressa a preocupação incondicional pela mediação do
condicionado, negar a ultimidade da mediação simbólica não significa negar o poder do
símbolo, mas realçar seu verdadeiro sentido.
26
25
“Símbolos são próximos à realidade expressa neles. Sua natureza direta, imediata e não simbólica deve
ter uma afinidade original ao conteúdo simbólico que eles representam. Se a água é usada em ritos
religiosos, não o poder da água como tal tem o efeito religioso, mas o contexto ritual no qual ela figura.
Mas ela figura neste contexto porque tem qualidades naturais através das quais se torna adequada ao uso
ritual (purificação, regeneração, vida e morte, etc)” (MW4[SK]:274-275). A “afinidade natural”, portanto,
diz respeito a certas experiências que evocam o incondicionado. O conteúdo que o símbolo representa,
segue-se, é o conteúdo de certas vivências humanas.
26
É claro que a resposta de Tillich a Aubrey, neste ponto, é problemática, desde que já pressupõe toda a
sua ontologia e não considera a natureza da alegoria filosófica. Se, de fato, o símbolo não põe um sentido
positivo, mas apenas representa o incondicionado paradoxalmente, o evento da cruz tornou-se, sem
dúvida, uma alegoria de verdades ontológicas. O que cai excluído, portanto, são outras alegorias além
desta. Tillich demonstra, pois, que em sua teoria o sentido do símbolo não é dado arbitrariamente, pois
pode ser traçado às condições que o legitimaram. Mas não demonstra por que a sua interpretação não
73
Urban havia levantado, finalmente, o problema da veracidade ou falsidade do
símbolo religioso. Em sua opinião, não seria possível discutir o problema da verdade de
um símbolo religioso sem considerar a questão da existência de seus referentes. Tillich
argumenta que discutir a questão da existência de Deus como um ente entre outros seria
negar, já de saída, a incondicionalidade de Deus, isto é, a sua divindade. Assim, ele
propõe a separação entre este problema (que seria um falso-problema) e a questão da
veracidade de um símbolo religioso.
27
A questão da veracidade, em se tratando de
símbolos religiosos, estaria ligada à distorção demônica do símbolo ou à sua
relativização frente ao incondicionado (MW4[SK]:276). Veracidade, em religião, seria a
capacidade do finito de expressar o infinito sem afirmar sua própria incondicionalidade.
Assim, a teoria Tillichiana do símbolo é, enfim, uma teoria crítica da religião, e uma
espécie de “régua” religiosa; ela testa a veracidade dos símbolos religiosos, numa dada
situação, medindo o grau de distorção demônica que o símbolo apresenta. A verdade, no
conhecimento religioso, seria a negação de todo conhecimento religioso positivo e a
afirmação da incondicionalidade de Deus, e a teoria Tillichiana do símbolo seria a
ferramenta para realçar o verdadeiro conhecimento religioso.
1.4.2. O problema do Referente e da Verdade da Linguagem Religiosa até
o Debate de 1960.
Segundo John Clayton, a despeito de sua aceitação das observações de Urban e
Aubrey, Tillich nunca superou certa ambiguidade em sua posição, permitindo
republicações de The Religious Symbols sem incluir qualquer modificação significativa,
seria alegórica, e libera o conteúdo positivo do símbolo da “alegorese” arbitrária apenas por dissolver sua
importância.
27
“Eu estou absolutamente convencido de que a discussão sobre a existência de Deus ou a não-existência
de Deus é, desde o princípio, uma negação da idéia de Deus. Ver Deus como um ser entre outros seres,
mesmo como o mais elevado e mais perfeito ser entre todos os seres, é privar Deus de sua divindade, isto
é, de seu caráter incondicional” (MW4[RS]:275). Divindade, em Tillich, é incondicionalidade.
74
e mantendo a ambiguidade na Systematic Theology. Apesar das impressões de Clayton,
Tillich sempre manifestou consciência da importância das objeções. Em Reply to
Interpretation and Criticism (The Theology of Paul Tillich, 1952), Tillich deixou claro
que sua posição era a mesma expressa na resposta de 1941:
O centro da minha doutrina teológica do conhecimento é o
conceito de símbolo, e é natural que por muitos anos esta parte do meu
pensamento tenha estado sob questão. Uma crítica antiga do professor
Urban, de Yale, forçou-me a reconhecer que, para falar de
conhecimento simbólico, é preciso delimitar o ambiente simbólico por
uma declaração não-simbólica. Eu fui grato por esta crítica, e sob o
seu impacto me tornei suspeitoso de quaisquer tentativas de fazer o
conceito de símbolo todo-abrangente e, assim, sem sentido. A
declaração não simbólica que implica a necessidade do simbolismo
religioso é a de que Deus é o ser em si e, como tal, além da estrutura
sujeito-objeto de tudo o que é (Tillich [Relpy]:333-334).
Como é evidente, Tillich não somente reconhece, sem reservas, que não é
possível conhecimento simbólico sem conhecimento literal, mas também a sua adesão,
novamente, à analogia entis. Por outro lado, ele diz também, taxativamente, que o
centro de sua epistemologia religiosa é a teoria do símbolo, e a relação dessa afirmação,
com a primeira não é clara. Se o símbolo não fornece conhecimento positivo da
divindade, por um lado, mas apenas uma consciência de presença, e o conhecimento
literal do fundamento absoluto, e referente último de todos os símbolos, é
filosoficamente possível, por meio da ontologia, a importância epistemológica do
símbolo precisará ser severamente qualificada.
Em Religious Symbols and Our Knowledge of God (1955) Tillich reconhece que,
na idéia de Deus, temos um símbolo para algo que é não simbólico, e que está implícito
na própria idéia: a de que a divindade seria o “Ser-em-si”. Seria muito importante
distinguir a forma literal do símbolo, em sua concretude, de sua referência literal
implícita, ao incondicionado, mas a mera noção de incondicionado seria inútil para a
vida religiosa. O símbolo deveria ser mantido, assim, para viabilizar o relacionamento
consciente com Deus:
75
Assim todas essas discussões sobre se Deus é uma pessoa ou
não é uma pessoa [...] podem ser superadas se nós dissermos:
“Certamente a consciência de que algo incondicional é em si mesmo o
que é, não é simbólica”. Nós podemos chamar isto de “Ser-em-si”,
esse qua esse, esse ipsum, como os escolásticos fizeram. Mas em
nosso relacionamento com esta ultimidade nós simbolizamos e
devemos simbolizar. Não podemos nos comunicar com Deus se ele for
apenas o “ser supremo”. [...] Se nós preservarmos apenas o elemento
do incondicional, nenhum relacionamento com Deus será possível. Se
nós preservarmos apenas o elemento do relacionamento ego-tu, como
ele é chamado hoje, nós perdemos o elemento do divino – isto é, o
incondicional que transcende sujeito e objeto e todas as outras
polaridades (MW4[RSKG]:400).
Tillich mantém, portanto, a sua resposta de 1940, sobre o acesso cognitivo não-
simbólico à divindade, e dá ao conteúdo positivo do símbolo um papel quase
“ornamental”; uma forma de concentrar a atenção religiosa, cuja importância é prática e
não-cognitiva. Ao mesmo tempo, em sua exposição sobre as características do símbolo,
figura em 1955 a perceptibilidade, isto é, a capacidade de abrir o acesso a certas
realidades que, de outro modo, não podem ser atingidas. Temos, então, a impressão de
que há, a esta altura, uma indecisão a respeito do problema do acesso ao referente.
Em Dynamics of Faith (1957) Tillich se refere à capacidade do símbolo de abrir
novos níveis de realidade e torná-los acessíveis a nós, mas não desenvolve o problema
do conhecimento do referente. E em Existential Analyses and Religious Symbols (1956),
Tillich afirma que “É quase um truísmo afirmar que a linguagem religiosa é simbólica”
e que, ao mesmo tempo, é exatamente por essa razão que a linguagem religiosa expressa
a verdade – “[...] a verdade que não pode ser expressa e comunicada em nenhuma outra
linguagem” (MW6[EARS]:392). Os símbolos não seriam verdadeiros ou falsos em
termos de julgamentos cognitivos, mas apenas autênticos ou inautênticos, na forma de
constituição, adequados ou inadequados, divinos ou demoníacos (MW6[EARS]:396).
Aqui a veracidade do símbolo não tem nenhuma relação com um elemento de
literalidade, e Tillich parece ter retornado ao pan-simbolismo acusado em 1940.
76
O segundo encontro de Tillich com os filósofos Anglo-Americanos foi bem
menos “gentil”. Tillich teria sido argüido por alguns dos mais conhecidos filósofos e
teólogos Americanos à época, incluindo-se Richard Niebuhr, William Alston
28
, Dorothy
Emmet, Charles Harsthorne e Kai Nielsen, entre outros, durante um simpósio
internacional sobre linguagem religiosa promovido pelo New York Institute of
Philosophy. Seu artigo “The Religious Symbol” foi distribuído antes para todos os
participantes, sendo que houve consenso geral, após os debates, sobre a necessidade de
clarificação. Tillich teria, então, escrito The Meaning and Justification of Religious
Symbols, publicado inicialmente nos anais do encontro, em 1960, e republicado em
1962 na coletânea de Sidney Hook, Religious Experience and Truth. O artigo deveria
constituir uma reapresentação das idéias de Tillich em resposta às questões apresentadas
no simpósio (MW4[Introducing]:20).
Após uma rápida apresentação das características gerais de um símbolo, Tillich
introduz o problema do referente como uma particularidade da linguagem religiosa – a
realidade à qual o símbolo se refere, de como ela é “atingida” por ele, e como nós
sabemos que a atingimos, e resume a questão: “Poderíamos sumarizá-la perguntando:
Há uma declaração não simbólica sobre o referente dos símbolos religiosos? Se esta
questão não puder ser respondida afirmativamente, a necessidade da linguagem
simbólica para a religião não poderá ser provada, e todo o argumento levará a um
círculo vicioso” (MW4[MJRS]:417). Tillich reconhece, pois, claramente, que a questão
é importante – a mesma questão levantada vinte anos antes por Urban e Aubrey, de que
é preciso estabelecer uma via de acesso ao referente, do contrário os símbolos cairão
presas das interpretações negativas-projecionistas.
28
William Alston, especificamente, escreveu um artigo em que avalia as idéias de Tillich sobre o
Símbolo religioso. Vamos abordar as idéias de Alston sobre o tema no capítulo três, que incluirá uma
discussão crítica da teoria de Tillich.
77
A questão, assim, é: o que é o referente do simbolismo religioso, e
como ele pode ser conhecido exceto por símbolos – conhecido,
queremos dizer, única e especificamente no que diz respeito à sua
posição como referente para os símbolos religiosos
(MW4[MJRS]:417).
Tillich espera, pois, estabelecer um “conhecimento mínimo” do referente, que
habilite os símbolos a funcionarem como símbolos, sem com isso abrir as comportas
para outros conhecimentos não-simbólicos. Para tanto indica três possíveis abordagens:
a indutiva, a fenomenológica e a ontológica. A primeira é excluída “pela própria
natureza do assunto”, desde que ela só permite a consideração de realidades particulares
e finitas, quando o tema do símbolo religioso é o universal e infinito. A segunda,
fenomenológica, é útil para descrever a natureza do encontro religioso. Tillich usa como
paradigma, aqui, o trabalho de Rudolf Otto, que identificou o “sagrado” como a
qualidade dominante no encontro religioso. Isto é importante, segundo Tillich, mas não
é suficiente para estabelecer a presença do “objeto”, e a validade do encontro.
Necessário, portanto, é seguir para a abordagem ontológica.
A abordagem ontológica não começa com experiências particulares, mas com o
ser-em-si, e com a forma como o homem existe, em sua relação com os particulares e
com o ser-em-si. Compreendendo-se a natureza dessa relação, e como ela se expressa
nas várias atitudes humanas, é possível captar a profundidade existencial da
intencionalidade religiosa. Atinge-se, assim, o referente do símbolo religioso, que é a
realidade última e incondicionada, à qual o homem se dirige com preocupação última.
Quanto ao problema da relação entre o conteúdo positivo do símbolo e seu
referente incondicionado – e à recorrente suspeita de que a sua teoria torna esta relação
arbitrária – Tillich mantém sua tese de que a relação é indireta, isto é, o conteúdo
positivo não nos traz conhecimento positivo da divindade, mas expressa a situação
religiosa do homem. Em sua defesa, Tillich apresenta uma importante evidência
78
empírica: o fato de todo tipo de coisa ter se tornado, em um momento ou outro, símbolo
religioso e, portanto, sagrado, não pode ser viso como algo casual. Não se trata de um
“caos de imaginações incoerentes”. O que faz algo se tornar símbolo religioso, ou
deixar de sê-lo, são as “contingências históricas”. Mesmo assim, haveria uma dinâmica
interna no desenvolvimento dos símbolos religiosos que daria inteligibilidade e razão de
ser a cada um deles (MW4[MJRS]418).
Ao tratar da questão da validade e adequação do símbolo religioso, Tillich
reconhece que o termo “autenticidade” não é suficiente, na medida em que não leva em
conta a “quantidade de verdade” que o símbolo possui, isto é, “[...] o grau em que ela
atinge o referente de todos os símbolos religiosos” (MW4[MJRS]:419). Como resposta
ele apresenta dois critérios, um negativo e o outro positivo. O critério negativo seria a
qualidade da auto-negação e transparência do símbolo ao seu referente, isto é, o
incondicionado transcendente. Trata-se, aqui, do critério cristomórfico que já
apresentamos. O critério positivo consistiria da qualidade do material simbólico:
Há uma diferença se eles usam árvores, rochas, pedras e animais ou
personalidades e grupos como material simbólico. Apenas no último
caso os símbolos compreendem o todo da realidade; pois apenas no
homem todas as dimensões do mundo, como o encontramos, estão
unidas [...] o critério positivo para a verdade de um símbolo (por
exemplo, a criação), é o grau em que ele inclui o valoramento, em
uma perspectiva de ultimidade, das pessoas individuais
(MW4[MJRS]:420).
Temos aqui um critério antropológico que diz respeito, no caso, ao grau de
compreensão da relação humana como incondicionado. Trata-se de uma consideração
interessante, desde que reflete a visão cristã sobre a relação entre o conhecimento de
Deus e o autoconhecimento do homem. Por outro lado, este critério de certo modo se
segue do primeiro, na medida em que a percepção da transcendência do homem em
relação ao restante da natureza está diretamente ligada à relativização de todos os entes
e dimensões da realidade diante do incondicionado transcendente. A rejeição da
79
absolutização de qualquer símbolo condicionado do incondicionado leva à rejeição da
distorção demônica da personalidade humana a este símbolo condicionado.
Segue-se, de forma absolutamente clara, que “[...] a verdade (do símbolo) não
tem nada a ver com a validade de declarações fragmentárias concernentes ao material
simbólico” (MW4[MJRS]:420). Os problemas de significado e coerência, do material
simbólico, não têm nenhuma relação com a veracidade da linguagem religiosa.
É claro que a solução de Tillich não se modificou substancialmente em nenhum
aspecto, no confronto com a filosofia em contexto americano. John Clayton comenta
que a resposta de Tillich aos questionamentos apresentados não levou realmente a sério
as interrogações, e descreve todo o episódio como “infeliz” (MW4[Introducing]:20).
Sua abordagem geral para o problema do referente e da verdade da linguagem religiosa
manteve forte dependência da ontologia, afastando-se decididamente de considerações
indutivas sobre a experiência religiosa, e atribuiu papel escasso ao conteúdo positivo
dos símbolos, justamente aquilo que ocupava a maior atenção dos estudiosos
americanos da linguagem. Dificilmente, no entanto, poderia ser de outra forma, desde
que a teoria dos símbolos de Tillich está organicamente ligada à sua ontologia, assim
como suas idéias sobre experiência, epistemologia e verdade religiosa. Caso ele
quisesse dar maior espaço às particularidades da experiência religiosa e ao conteúdo
positivo do símbolo, seria preciso reconsiderar sua própria ontologia, algo que, talvez,
não fosse possível naquele momento.
80
1.5. Síntese
De acordo com Tillich, portanto, o símbolo tem uma estrutura dupla; há uma
carga literal, o seu sentido positivo, que serve de veículo de expressão para um sentido
superior, transcendente. O verdadeiro referente do símbolo religioso não se identifica,
portanto, com o que é apresentado literalmente no discurso religioso; é uma realidade
incondicionada e não objetificável. O mito é um símbolo também; um símbolo
narrativo, que deve ser quebrado, sujeito à crítica científica e teológica, mas não
destruído.
Com sua via simbolica, Tillich responde criativamente às questões clássicas da
filosofia da linguagem religiosa, afastando-se da via eminentiae e da via negationis, e
aproveitando simultaneamente elementos de ambas. Além disso, mostra que, também
em seu pensamento, há uma ligação estreita entre a concepção de divindade e a própria
teoria da linguagem religiosa. Assim, vemo-lo alinhar-se com o tomismo na analogia
entis, mas rejeitar, a partir de sua afirmação de uma ruptura radical de finito e infinito, a
possibilidade de um discurso objetivo sobre Deus.
Isso nos leva ao critério cristomórfico: a verdade do símbolo não é medida por
meio de uma aproximação objetiva, da teoria da adequatio rei et intellectus, poderíamos
dizer, mas em termos negativos: pelo grau de auto-negação de incondicionalidade. De
reconhecimento de não-saber, de humildade epistêmica. Mas como fica o conhecimento
religioso? Segundo Tillich, realmente, o conhecimento religioso é um des-
conhecimento; é um conhecimento não-objetivo, embora veiculado por meio de
experiências reais do poder de ser. Mas, desde que essas experiências atingem a vida
humana em seu núcleo, podemos pensar num critério adicional, ao critério
81
cristomórfico, negativo; o critério antropológico, que considera a qualidade da
representação da experiência humana no material simbólico.
82
2. Paul Tillich e o Desafio Hermenêutico do Símbolo da
“Queda”
Um dos Loci clássicos e centrais em qualquer sistema teológico é a
Hamartiologia, a doutrina da Queda e do pecado, em sua natureza, origem e
transmissão. Tillich não é exceção, aqui; como teremos a oportunidade de observar, a
hamartiologia de Tillich se situa no próprio centro de seu sistema, ao lado da doutrina
da criação, compondo o que ele descreve como “a espinha dorsal” de seu sistema.
Nosso interesse neste trabalho não é apenas estudar um conceito teológico, no
entanto; é, antes, estudar como a teoria do símbolo de Tillich funciona na compreensão
do conceito teológico. É claro que seria possível introduzir uma discussão direta sobre a
teoria do símbolo de Tillich, no contexto de uma filosofia da linguagem religiosa. Essa
seria, na linguagem de Paul Ricoeur, uma via curta. Mas há também a possibilidade de
seguir uma via longa, tomando como ponto de partida a discussão da aplicação da teoria
Tillichiana do símbolo a um símbolo específico. Optamos por seguir essa via longa, e
discutir a hermenêutica simbólica de Tillich, primeiramente, a partir do estudo de um
caso específico: o símbolo cristão clássico da Queda, que teve um papel
importantíssimo no ocidente.
O presente capítulo é bem mais extenso, dividindo-se em três grandes seções:
(2.1) uma exposição da tradição hamartiológica cristã, partindo das raízes bíblicas até a
contemporaneidade, focalizando a evolução dogmática, até os reformadores, e
considerando, em seguida, as contribuições da modernidade, a fim de contextualizar
Tillich na tradição. Esta primeira seção estabelece para nós um referencial teológico
dogmático, para “localizar” Tillich; (2.2) uma avaliação da recepção tillichiana da
83
tradição hamartiológica cristã e de reflexões modernas sobre o mal, para obter uma
visão das raízes de sua teoria; e (2.3) a exposição de sua interpretação do pecado na
Teologia Sistemática.
84
2.1. A Teologia Cristã do Pecado: Um Panorama Histórico
Nossa moderna “ilusão de inocência” não tolera nenhum
pessimismo teológico em relação com o homem, e crê que as
perversidades e os conflitos estruturais da existência humana, que
agora já não podem negar-se, podem submeter-se ao controle humano;
e não se deixa convencer por nada que possa turvar a sua imagem
amável do “homem bom por natureza”, e a perspectiva de uma
comunidade humana bela e sã, ou que possa paralisar a realização da
mesma (Pesch, 1992:320).
O mal é um desafio central na vida humana. Porque o ser humano reconhece o
mal como mal; até mesmo quando elabora uma teoria para negar sua realidade. É um
desafio eminentemente prático, porque o homem sente a necessidade de enfrentá-lo em
suas expressões políticas, sociais, psíquicas, éticas e até mesmo biológicas.
A reflexão sobre o mal é importante para interpretarmos o seu aparecimento – sua
“gênese” histórica, psíquica e social em processos coletivos e individuais aos quais
somos chamados a participar e intervir; para interpretarmos e agirmos. Situações de
violência, de injustiça, de engano, de inautenticidade, como males humanos e pessoais,
bem como situações trágicas, que não podemos humanamente controlar, são
incessantemente apresentadas a nós. Mas particularmente aquelas situações em que
emerge o mal humano; aquelas que o cristianismo aponta a manifestação do pecado,
precisam ser entendidas e enfrentadas.
O abandono parcial da compreensão cristã histórica do mal em grande parte da
cultura contemporânea não a livra de lidar com o problema. O desafio continua
presente, lançado à filosofia e, em especial, à teologia, que tem a tarefa de compreender
e discursar sobre a realidade suprema e sobre a nossa relação com ela. A experiência da
universalidade do mal e da realidade da culpa é algo de que o homem moderno deseja,
85
mas não pode fugir; mas, a despeito disso, ele se esforça por manter a “ilusão da
inocência”.
Entretanto o homem moderno não está disposto a receber as formulações antigas
do problema do pecado; até mesmo porque muitos dos conceitos teológicos tradicionais
são incompreensíveis para a mente moderna. Este fato cria a necessidade de uma
interpretação teológica contextualizada; mas tal contextualização é impossível sem um
esforço de apreensão da mensagem, em seu condicionamento original. Isso significa que
não podemos avaliar a atualização da hamartiologia cristã por Tillich, sem
considerarmos os traços principais da tradição hamartiológica cristã. O objetivo desta
primeira seção é exatamente fornecer um referencial teórico para a questão específica
da teoria d pecado de Tillich. Tal referencial é, de modo geral, a tradição e, mais
especificamente, a corrente agostiniana e protestante-luterana de pensamento, à qual
Tillich declara fidelidade.
2.1.1. Raízes Bíblicas
Elementos de uma noção de Queda já se encontravam implícitos na teologia
judaica da conversão, que se desenvolveu ao longo da experiência de Israel com
Yahweh e que se encontra refletida no Antigo Testamento, bem como nos textos
judaicos deuterocanônicos e apócrifos produzidos nos dois últimos séculos antes de
Cristo. A base dessas noções se encontra nas afirmações soteriológicas, nas promessas
de salvação e anúncios de juízo que, por sua vez, se relacionam à discussão sobre a
identidade pactual do povo. Israel foi chamado para ser um povo santo,
corporativamente, por meio do Pacto. A noção de pecado era expressa por meio do
conceito de impureza ritual, mas também pelo de violação da lei moral. Mas,
86
essencialmente, o pecado era visto como uma falha religiosa: a falha em permanecer
numa relação de fidelidade com Deus. Esta era uma possibilidade constante, que se
consumou com o exílio, análogo à expulsão de Adão e Eva do Éden. A experiência da
quebra do Pacto e a necessidade de conversão estimularam a reflexão mais profunda
sobre a natureza do pecado, que encontramos no profetismo judaico. A conexão entre
conversão e aliança, especificamente, refletia-se na existência, ao tempo de Jesus, de
diferentes interpretações e símbolos de identidade pactual, representados pelos
“partidos” judaicos: Saduceus, Fariseus, Essênios e Zelotes.
O cristianismo primitivo manteve a ênfase judaica na conversão religiosa e
moral, como se encontra evidente, em especial, em Lucas-Atos; sua eficácia foi, no
entanto, pouco a pouco reinterpretada a partir da pessoa e obra de Cristo, e uma nova
ênfase no elemento de dependência religiosa – a fé – aprofundou o significado da
conversão. Além disso, a percepção corporativa do pecado e da salvação foi mantida;
“Jerusalém” e “Israel” são chamados ao arrependimento e não apenas indivíduos.
As questões soteriológicas como “por que Cristo veio?”, “o que a sua Obra
efetivamente realizou?” também estimularam a reinterpretação das noções implícitas de
pecado (Wiley, 2002:25). A vitória, no cristianismo primitivo, de uma noção mais
universalista do significado da obra de Cristo, que permitia aos gentios a entrada no
pacto sem a necessidade de adotar os símbolos tradicionais de identidade pactual – com
os gentios sendo salvos qua gentios – consolidou uma tendência igualmente
universalista na compreensão da natureza do pecado e da relação do homem com Deus.
Essa tendência serviria como base para a construção futura de uma doutrina da Queda.
O pensamento judaico localizava a origem do mal na ambigüidade dos desejos
humanos, por meio de uma teoria das duas inclinações: yetser-ha-tov, a inclinação para
o bem, e yetser-ha-ra, a inclinação para o mal. Ela sempre esteve aí, como desejo, já em
87
Adão e Eva, como algo “natural”.
29
Mas já no Antigo Testamento encontramos
interpretações “pessimistas” da natureza humana, que vêem o coração humano como
persistentemente mau. De algum modo, a “inclinação má” é predominante, embora não
apareça como irresistível. Esta percepção encontra-se bem desenvolvida em Paulo.
Mesmo assim, não há ainda a noção de que ela teria se iniciado com uma “Queda”.
A narrativa de Gênesis 3 desempenhava, principalmente, a função de explicar o
início dos pecados, mas não tanto do pecado num sentido absoluto. Seria a primeira de
muitas histórias de pecado, servindo com valor paradigmático. Mesmo assim não há
muita referência no próprio Novo Testamento à história, mas isso pode ser explicado
pelo desinteresse inicial da igreja primitiva pelo desenvolvimento de uma doutrina do
pecado. Toda a concentração estava sobre a cristologia e a soteriologia, e os
desdobramentos da teologia do pecado eram estritamente funcionais. Assim, os textos
neotestamentários mais importantes para a nossa discussão – Rm 5.12 e 1Co 15.21-22 –
afirmam a entrada do pecado e da morte no mundo por meio de Adão, com a finalidade
de indicar o sentido e alcance da obra de Cristo. Na verdade, a metáfora da “queda” para
descrever o primeiro pecado aparece em textos judaicos do século I a.C., mas no Novo
Testamento ela aparece apenas para indicar a queda dos anjos (2Pe 2.4 e Jd 6). Não há,
portanto, uma doutrina desenvolvida de Queda e pecado original.
Segundo Wiley, a idéia de Queda tem um elemento especulativo particular, que
é a localização da condição de Queda na natureza humana, isto é, a transformação de
uma narrativa sobre um evento em um processo de mudança interna da natureza
humana (Wiley, 2003:35). A união de uma narrativa de “primeiro pecado” com uma
29
“[...] para Agostinho, a experiência do desejo desordenado não era natural. Ele não o considerava uma
dimensão intrínseca da natureza criada, como o faziam os Hebreus em sua compreensão da yetser ha-ra.
Para Agostinho, a concupiscência reflete uma mudança na natureza criada devido ao peccatum originale
originans, o pecado original” (Wiley, 2003:30). Apesar de Wiley sugerir aqui uma modificação
conceitual bem posterior, é fato que Paulo já sustenta uma visão pessimista da natureza humana.
88
explicação antropológica da origem da pecaminosidade humana seria necessária para a
criação de uma idéia completa de “Queda”, e isto estaria ausente da narrativa de
Gênesis 3, bem como das reflexões teológicas primitivas.
A ausência de uma doutrina desenvolvida de Queda não deve ser entendida, no
entanto, como evidência de arbitrariedade na reflexão teológica posterior. O fato é que
uma série de idéias teológicas formaram as condições para a emergência dessa doutrina:
(1) a universalidade do pecado, fortalecida pela universalidade da redenção; (2) a
concepção corporativa e aliancista do pecado e da conversão no pensamento bíblico; (3)
a tradição “pessimista” sobre a natureza humana, nos profetas e em Paulo; (4) a união
de particularidade e universalidade no significado de Jesus Cristo, que estimulou, por
paridade, a reflexão sobre o estado do homem sem Cristo; (5) finalmente, a atribuição
por Paulo da entrada do pecado e da morte no mundo por Adão que, mesmo de forma
incipiente, deu à narrativa de Gênesis 3 um significado hamartiológico paralelo ao
significado soteriológico de Cristo. Mas, sem dúvida, caberia aos teólogos cristãos
posteriores a formulação de uma doutrina da Queda do homem.
2.1.2. Do Cristianismo Patrístico até Agostinho
Os primeiros textos patrísticos não apresentam uma doutrina desenvolvida de
pecado, exceto a consciência da universalidade do pecado que já está presente no Novo
Testamento. A Epístola de Barnabé chega a afirmar explicitamente que as crianças
nascem sem pecado e em nenhum dos outros (Didaquê, Clemente de Roma, Hermas,
Inácio) temos qualquer concepção de pecado herdado. Mesmo Clemente de Alexandria
(m. 215 d.C.) desconhece uma universalidade biológica do pecado, e coloca toda a
ênfase – em parte, para combater o determinismo da doutrina gnóstica do pecado – na
89
liberdade humana (Wiley, 2003:340). Mas admite uma solidariedade ontológica de
todos os homens com Adão.
Com os Pais antignósticos têm início as reflexões mais aprofundadas sobre a
natureza da Queda, em relação com a visão bíblica da Criação. Irineu de Lyon (m. 200
d.C.) apresenta uma noção mais desenvolvida de pecado, também no contexto de luta
contra o gnosticismo. Irineu afirma a bondade da Criação e rejeita a Queda cósmica dos
gnósticos, afirmando uma Queda histórica. Contra as especulações gnósticas, Irineu
levanta firmemente os “anteparos” da bondade da criação e da universalidade da
redenção (Hägglund, 1981:37). Embora evite especulações metafísicas em torno dos
efeitos dessa Queda, que é compreendida em termos principalmente morais, ele
claramente atribui um significado universal ao pecado de Adão (Seeberg, 1967[I]:130).
Segundo Wiley, a reflexão de Irineu se concentrava no que foi perdido pela Queda e
recuperado pela Redenção, em termos antropológicos. Para ele Adão perdeu a perfeição
pessoal, a semelhança (similitudo) com Deus, ficando apenas com a natureza pessoal, a
imagem (imago) de Deus (Wiley, 2003:41).
Dois apologistas tocaram diretamente no problema do pecado: Justino Mártir
(m. 165 d.C.) e Tertuliano, outro antignóstico (m. 220 d.C.). Justino, confrontando o
determinismo Estóico pôs toda a ênfase na liberdade humana individual e adotou uma
versão filônica da doutrina hebraica das duas inclinações, identificando a razão com a
inclinação para o bem e a as emoções com a inclinação má. Mas atribuía a origem do
mal aos demônios e a origem da corrupção a Adão, sem uma herança biológica de
pecado.
Tertuliano também rejeitou a Queda cósmica dos gnósticos e defendeu uma
Queda histórica. Mas postulou uma unidade original entre Adão e a humanidade, para
explicar a solidariedade humana no pecado com Adão, e utilizou uma teoria
90
traducianista da origem da alma (corpo e alma seriam gerados no intercurso sexual)
para explicar a transmissão do pecado aos descendentes. Mas o pecado, que Tertuliano
via como uma irracionalidade na natureza humana, não seria transmitido integralmente.
Apenas uma inclinação pecaminosa era herdada, não a atualidade do pecado. Daí a sua
rejeição do batismo infantil ser indício importante de que a culpabilidade do pecado não
era transmitida às crianças, sendo desnecessária a remoção pelo batismo. Mesmo assim,
é muito importante considerar que Tertuliano já dispunha de noções razoavelmente
desenvolvidas de transmissão biológica do mal e de unidade metafísica do homem, que
serviram como arcabouço para a doutrina da transmissão do pecado original.
Com Orígenes (m. 299 d.C.) temos uma posição oposta, em muitos aspectos, a
Tertuliano. Orígenes defendia o batismo infantil, como forma de remover o pecado das
crianças, e usou explicitamente a expressão “pecado original”. Quanto à propagação do
pecado, Orígenes rejeitou tanto o criacionismo (cada alma é criada por Deus
separadamente, para o corpo) e o traducianismo de Tertuliano, optando pela teoria da
preexistência da alma, de origem platonista. Para ele a punição do pecado seria a
descida das almas para o mundo material – uma Queda cósmica, ou transcendental. Não
havia, portanto, necessidade de uma solidariedade humana com Adão, nem conexão
com um evento temporal (Wiley, 2003:48).
Segundo Tatha Wiley, o desenvolvimento de uma doutrina completa de pecado
Original dependeu de três grandes idéias, que aparecem dispersamente nos Pais, até o
século III d.C., quando seu significado hamartiológico começa a ser discutido mais
explicitamente: o batismo infantil para remissão de pecados, a transmissão biológica do
pecado e uma interpretação errônea de Romanos 5.12. A noção de que a finalidade do
batismo infantil seria a remissão do pecado herdado de Adão foi explicitamente
91
defendida por Cipriano de Cartago (m. 258 d.C.).
30
O raciocínio, aqui, é óbvio: “[...]
de onde procederia o ser pecador dos infantes, se, todavia, eles não são capazes, de
modo algum, de um pecado de ação, com responsabilidade pessoal?” (Pesch, 1992:321).
A transmissão biológica do pecado foi ensinada por Dídimo o Cego (m. 399 d.C.),
teólogo de Alexandria, que relacionava a transmissão do pecado original ao ato sexual
31
,
explicando a pureza de Jesus, paralelamente, pela concepção virginal.
32
Finalmente,
Ambrosiastro (IV século d.C.), comentador das cartas de Paulo, sustentou, com base na
Vulgata Latina utilizada em sua época, que Romanos 5.12 ensinaria que todos pecaram
“em” Adão. O texto latino trazia “em quem todos pecaram”, quando o grego original
reza “porque todos pecaram”. Para Ambrosiastro, isso confirmaria a noção de uma
solidariedade da raça com Adão, em seu pecado, noção que, na verdade, já havia sido
ensinada por diversos teólogos, como Tertuliano.
33
A força da noção de solidariedade no pecado com Adão é algo bem evidente na
patrística anterior a Agostinho, rejeitada apenas por alguns nomes, como Orígenes,
evidentemente devido a compromissos filosóficos específicos. A idéia tinha a sua maior
razão de ser na necessidade de explicar a universalidade do pecado, esta um corolário da
universalidade da redenção de Cristo, e contava com o apoio de textos específicos e de
noções de origem bíblica, como as idéias de pacto, de representação e de
30
Quanto ao próprio batismo infantil, textos do final do século II e princípio do século III, como A
Tradição Apostólica, de Hipólito de Roma (m. 236 d.C.) registram o costume como prática estabelecida.
A existência de oponentes antigos, como Tertuliano, oferece evidência adicional do costume (Wiley,
2003:50).
31
Agostinho, como se sabe, construiu uma forte associação do pecado original com o ato sexual. O
pecado de origem residiria exatamente no fato de o primeiro casal ter se unido sexualmente e com prazer,
contra a vontade de Deus. Mas o elemento pecaminoso na concupiscência sexual não seria o prazer,
apenas, como realidade fisiológica, mas o egoísmo presente no ato (Pesch, 1992:322). Mesmo assim, vê-
se a associação consumada de desejo com concupiscência, e a identificação da concupiscência com o
pecado, em Agostinho.
32
Os Pais Capadócios sustentavam que a humanidade realmente caiu, com Adão, mas que as crianças
seriam livres de pecado. Sua doutrina se aproximaria mais de uma idéia de corrupção original (Wiley,
2003:5).
33
O teólogo antioquiano Teodoro de Mopsuéstia (m. 427 d.C.) escreveu um tratado intitulado Contra os
Defensores do Pecado Original, no qual interpretou Rm 5.12 como ensinando apenas a transmissão dos
efeitos do pecado, isto é, da morte, e afirmou que apenas a natureza humana, e jamais o pecado, pode ser
herdada (Wiley, 2003:51).
92
responsabilidade coletiva. Faltava, no entanto, uma melhor articulação da natureza
dessa solidariedade. O contexto filosófico-religioso dos Pais forneceu possibilidades
teóricas para explicar essa relação. Duas soluções emergiram: (1) a união ontológica e
(2) herança biológica. A primeira surge inicialmente em Clemente de Alexandria, para
quem a natureza humana de uma forma total, incorporada em Adão, cometeu o primeiro
pecado, sendo recebida por nomes importantes como Tertuliano. A segunda, como
vimos, foi ensinada por Cipriano de Cartago e veio a ter Agostinho entre seus maiores
defensores.
Agostinho teve, acima de qualquer dúvida, papel central na formulação da
doutrina cristã clássica da Queda e do Pecado Original. É um erro, no entanto, afirmar
que ele simplesmente “inventou” a doutrina. Ele não poderia produzir uma teoria
coerente e influente sem lançar mão de fragmentos de tradição e de reflexão que já
estavam disponíveis e que tinham importância no cristianismo de seu tempo; ademais,
ele foi capaz de demonstrar uma conexão orgânica entre hamartiologia, antropologia,
soteriologia e cristologia. Sob sua influência, os concílios de Cartago (411-418 d.C.) e
de Orange (529 d.C.) viriam a formalizar o dogma clássico do Pecado Original.
A despeito de sua importância, a controvérsia com Pelágio não foi a origem das
idéias de Agostinho sobre o pecado. Sua preocupação com o tema era anterior, e ele
chega mesmo a distinguir pecados pessoais e o pecado original em suas Confissões
(escritas por volta de 398 d.C., cerca de 12 anos antes do início das controvérsias
pelagianas), sem apresentar já uma noção de herança, mas com a idéia de solidariedade
com Adão (Wiley, 2003:58). A rejeição do maniqueísmo o afastara definitivamente das
idéias de preexistência da alma e Queda transcendente, bem como de qualquer negação
da bondade da Criação original, reforçando a exigência por uma Queda histórica e uma
solidariedade da raça no primeiro pecado. O conflito com os Donatistas garantiu a
93
rejeição do perfeccionismo religioso e, com o reforço da experiência própria com o
pecado, levou Agostinho a rejeitar a possibilidade de pureza moral e espiritual na vida
presente. Ele promoveu ainda a articulação das idéias de Cipriano sobre batismo infantil
para remissão de pecados, de transmissão biológica de Dídimo o Cego, via Ambrósio de
Milão (m. 397 d.C.) e Jerônimo (m. 420 d.C.), e a interpretação “latina” de Romanos
5.12, de Ambrosiastro. A primeira foi aproveitada na controvérsia com os Donatistas; a
segunda e a terceira ganharam importância durante a controvérsia pelagiana. Além
dessas três, indicadas por Wiley, é preciso destacar a idéia de bondade da Criação que,
juntamente com a universalidade da Redenção de Cristo, apertava os fragmentos de
reflexão sobre o pecado.
Agostinho desenvolveu uma antropologia para explicar a condição humana
criada, caída e redimida, reproduzindo em sua reflexão a “tríade” Criação-Queda-
Redenção, presente explicitamente desde Irineu. A criação do homem o colocou no
estado de Bênção Original, na qual ele tinha condições de não pecar (posse non
peccare). A Queda aconteceu quando Adão se encheu de orgulho, desejando ser como
Deus e recusando a dependência absoluta. A soberba é a causa da Queda. Seeberg é
mais específico: a essência do pecado para Agostinho seria o amor sui, ou “amor de si”
(Seeberg, 1967:341). O resultado foi a morte, a ignorância e a fraqueza para fazer o
bem. A fraqueza se dá em razão do afastamento de Deus ter lançado o homem na
concupiscência: uma desarmonia entre a razão e as paixões corporais, de modo que o
desejo interfere nas escolhas da razão (Wiley, 2003:64).
Na visão de Agostinho, a Queda danificou a imagem de Deus no homem, mas
não a destruiu. A despeito disso, sua hamartiologia era decisivamente pessimista: a
capacidade de não pecar tornou-se a incapacidade de não pecar (necessitas peccandi).
Isso não significava, no entanto, uma ausência de liberdade, mas uma distorção da
94
liberdade; uma liberdade para escolher sempre o mal que alterou a natureza do
indivíduo (Gonzalez, 2004[II]:44-45). Além disso, os filhos de Adão não têm
meramente o “mau exemplo” de seu ascendente, nem herdam apenas a “corrupção do
pecado”: o que é transmitido é a atualidade do pecado, isto é, a atitude pecaminosa e a
sua culpabilidade. Somos pecadores per generatione non imitatione, e não apenas
vítimas: pecadores, de fato. Seeberg cita Agostinho:
“Pelo qual [o pecado de Adão], tendo em vista a magnitude deste
pecado, a condenação mudou e corrompeu a natureza, de maneira que
o que, no primeiro homem pecador, se originou punitivamente,
continua de maneira natural nos demais homens desde o nascimento...
Porque o que é o pai, também o é sua descendência... Em tão grande
medida foi a natureza humana mudada e corrompida nele, que tem de
suportar a desobediência da concupiscência batalhando em seus
membros e ser submetida à necessidade da morte” [...] (Agostinho,
Civitate Dei. Apud: Seeberg, 1967[I]:338).
A Redenção tem início com Deus, em sua eleição graciosa, e se manifesta
temporalmente na conversão e no batismo, que elimina o Pecado Original e a culpa pela
concupiscência. Mas o batismo não elimina a concupiscência; a vitória sobre ela
depende do controle da razão sobre as paixões, sob a influência curativa da graça. A
Redenção garantirá, finalmente, um estado superior ao de Adão antes da Queda: a
incapacidade de pecar.
O monge britânico Pelágio (m. 420 d.C.) teria lido as Confissões por volta de
405, mas as reações de Agostinho só se iniciaram por volta de 415 d.C. Pelágio via o
pecado como fruto de condicionamento, basicamente, e como uma condição reversível,
por meio da reeducação e do exemplo. O pessimismo da concepção Agostiniana de
Pecado Original parecia-lhe algo perigoso, um estímulo à frouxidão moral. Pelágio
rejeitou a idéia de que a prática do bem exigisse assistência especial de Deus (bonun
naturae); que a capacidade de não pecar (posse non peccare) tivesse sido perdida, que
95
qualquer defeito na natureza humana tivesse sido causado pelo pecado de Adão; que
existisse uma herança do pecado original (de traduce peccati). Basicamente, Pelágio
construiu uma visão do pecado na qual a natureza humana é neutramente aberta para o
bem e para o mal, sendo que o pecado de Adão foi apenas um “mau exemplo”.
Visivelmente, a visão Agostiniana do pecado foi articulada, grandemente, em
reação às idéias de Pelágio. O núcleo de seu argumento, poderíamos dizer, foi a
afirmação de uma visão decididamente pessimista da natureza humana: o homem não
estaria apenas enfermo, ou aprisionado por maus hábitos e condicionamentos, mas num
estado de revolta positiva contra Deus, que de algum modo apegou-se à natureza
humana, e do qual nem mesmo os batizados estão completamente livres. Além disso,
Agostinho captou não apenas a universalidade do pecado, mas a solidariedade dos
homens em sua rejeição a Deus e em sua culpabilidade, e formulou uma doutrina que
respondia à visão ortodoxa da Criação, à universalidade da Redenção. O concílio de
Cartago (411-418 d.C.) debateu e rejeitou as idéias de Pelágio, e o concílio de Orange
(529 d.C.), embora rejeitando a noção agostiniana de que a liberdade humana foi
completamente perdida com a Queda, reafirmou a visão “positiva” do pecado como
transformação da natureza humana, levando a uma conclusão dos debates patrísticos
sobre natureza moral e pecado original (Wiley, 2003:73).
As idéias de Queda histórica e de solidariedade com Adão no pecado, o
pessimismo quanto à natureza do pecado, a visão norte-africana do batismo, a idéia de
transmissão biológica, a interpretação de Romanos de Ambrosiastro; o conjunto desses
fragmentos de tradição, colocados sob a pressão da bondade da Criação de Deus e da
necessidade de uma explicação coerente da universalidade do pecado correspondente à
universalidade de Cristo, levariam naturalmente a uma Hamartiologia abrangente,
uma doutrina unificada de Queda (peccatum originans) e de Pecado Original (peccatum
96
originatum).
34
As controvérsias com os Maniqueus, os Donatistas e Pelágio,
especialmente, serviram para dar ignição e, de certo modo, encaminhar um processo
orgânico de formulação dogmática: o fogo das controvérsias soldou materiais que já
estavam presentes, sob a arte de um verdadeiro mestre.
35
2.1.3. O Período Medieval
A especulação medieval em torno do pecado original ocorreu no contexto da
discussão antropológica, principalmente. A questão principal era a descrição da natureza
humana, antes e depois do pecado de Adão, tendo como referência a condição
instaurada pela Redenção de Cristo. Assim, as reflexões eram conduzidas pelo esforço
em definir o sentido e a diversidade de Natureza e Graça, e desenvolveu-se a
diferenciação entre o natural e o sobrenatural para explicar aquela relação (Wiley,
2003:77). A tendência geral dos teólogos medievais era a de identificar a graça divina
com o sobrenatural, supra-humano, explicando o estado de Queda como a perda desses
dons pertencentes a uma ordem divina, superior, de modo que a natureza humana
permanecesse íntegra, em princípio. O pecado original não instauraria uma corrupção de
natureza, mas a privação de dons não necessários à natureza – dons descritos
tecnicamente com a expressão donum superadditum.
34
Estas distinções foram introduzidas por Agostinho e consagradas pelo concílio de Cartago (Wiley,
2003:72).
35
Wiley sustenta que, de fato, Agostinho construiu a sua teoria do pecado a partir de fragmentos de
tradição que já corriam há muito tempo no seio da igreja primitiva, mas destaca a ausência de razões
válidas para o “salto” na explicação da natureza da solidariedade humana no pecado de Adão, apontando
a deficiência das teorias de unidade metafísica em Adão e de transmissão biológica. Ela observa,
corretamente, que a origem dessas explicações é a crença arraigada em uma Queda histórica, que se
desenvolveu em oposição às teorias de Queda transcendente de gnósticos e maniqueístas. Wiley não
menciona, no entanto, em nenhum momento, que a razão da opção definitiva dos Pais por uma Queda
histórica foi a necessidade de afirmar a bondade da Criação, e ignora a importância desse dado teológico
na discussão de pelo menos dois Pais para os quais este fato teológico era da maior importância: Irineu de
Lyon e Agostinho.
97
O monge Beneditino Anselmo de Cantuária (m. 1109 d.C.) interpretou a Queda
nos termos desse esquema teológico. Segundo ele, Adão desfrutava de uma graça
original, superposta à sua natureza humana: a graça da justiça original. Este dom
sobrenatural garantia ao homem a sua retidão moral e seus méritos diante de Deus. Com
o seu ato de desobediência, Adão tornou-se culpado de grave insulto a Deus e perdeu a
justiça original (privatio justitiae originalis). A descrição do pecado como “carência”
reproduz, de certo modo, a visão agostiniana do mal como a “ausência de bem” e do
pecado como o “não-existente” (Seeberg, 1967:125). Exatamente neste ponto, todavia,
os teólogos notaram um sutil afastamento do agostinianismo que foi muito importante
para o desenvolvimento do pensamento medieval:
Agostinho descreveu a condição de pecado original (peccatum
originale originatum) como alguma coisa. É a inclinação culpável da
vontade contra Deus (amor sui, cupiditas). Neste sentido, a definição
do pecado original de Agostinho era positiva. Era a definição de um
algo – um viés, uma tendência ou inclinação para o mal. A definição
de Anselmo, em contraste, era negativa. A condição de pecado
original não era algo, mas uma privação na natureza. Aquilo que fora
possuído como um dom sobrenatural estava agora ausente devido ao
pecado (Wiley, 2003:80).
A ênfase de Wiley aqui é importante, pois essa transformação marca a
concretização teológica explícita da divisão medieval entre Natureza e Graça na
reformulação da teologia do pecado. Este princípio de afastamento da abordagem
agostiniana viria a ter sérias conseqüências para a teologia da Reforma. Não devemos
exagerar, no entanto, o seu significado. Anselmo manteve a noção agostiniana de que o
pecado introduziu a desarmonia na natureza humana, expressa na concupiscência, o
desequilíbrio entre a razão e as paixões. Além disso, manteve a interpretação
agostiniana de Romanos 5.12, que ensinaria uma unidade metafísica da humanidade em
Adão, e ensinou claramente que a condição de privação da justiça original não seria
meramente uma fraqueza, mas um pecado real, que atingira a natureza humana, sendo a
sua essência a concupiscência (Seeberg, 1967:125).
98
Segundo Seeberg, a concepção católica clássica do donum superadditum teria
recebido formulação escolástica em Alexandre de Halles, sendo perpetuada por
Boaventura, Alberto Magno e Tomás de Aquino (Seeberg, 1967[II]:123), sendo esta
antropologia de dualidade Natureza/Graça a base para as discussões sobre o pecado.
Tomás de Aquino (m. 1274 d.C.) promoveu uma síntese das idéias agostinianas e
anselmianas sobre o pecado original, utilizando o esquema natureza/graça e a
compreensão aristotélica de natureza para clarificar a distinção teológica de natural e
sobrenatural (Wiley, 2003:83).
Para Tomás, finalidades finitas são apropriadas à natureza finita. Todas as
criaturas têm finalidades naturais, mas o homem tem um fim sobrenatural, de tal modo
que as virtudes naturais são insuficientes para este fim supremo. As virtudes
sobrenaturais da fé, esperança e amor (elementos da justiça original) são necessárias
para que o homem cumpra perfeitamente a lei moral e ame a Deus acima de todas as
coisas. No estado prelapsariano, o dom sobrenatural da justiça original garantia a
harmonia interna da natureza humana, mantendo todas as partes unidas, de tal modo que
Adão mantinha a sua razão sujeita a Deus, a sua vontade moral sujeita à razão, e os
poderes do corpo à alma. Com isso o homem ficava também protegido do sofrimento e
da morte (Wiley, 2003:85). Esta antropologia explica a visão Tomista do pecado:
A essência do pecado original, o elemento “formal” dessa
pecaminosidade, é exatamente aquilo do que [...] a ação justificante de
Deus libera o pecador: a radical possibilidade que tem o espírito
humano de alienar-se de Deus, com a desintegração de todo o ser
humano como conseqüência (Pesch, 1992:324).
Portanto, a Queda foi entendida por Tomás, à maneira anselmiana, como a perda
da justiça original, seguida da desordem na alma humana, com os conflitos entre razão,
99
vontade e paixões, o sofrimento e a morte.
36
Segue-se a incapacidade de atingir o fim
último da existência humana.
O mecanismo de universalização da Queda era basicamente o mesmo de
Agostinho: haveria uma unidade metafísica da humanidade com Adão, de tal modo que
a natureza humana caiu nele.
37
O coração humano seria a causa agencial – o pecado,
como o afirmou Agostinho, seria um ato da liberdade humana, finalmente inexplicável.
Contra Agostinho, Tomás ensinou que a concupiscência seria a causa material do
pecado, mas não seria o pecado original. A causa instrumental do pecado original seria
o intercurso sexual, que promove a sua disseminação.
A essência do pecado seria a aversio Dei; todo pecado implica a aversão a Deus,
a rejeição Dele como pessoa, mas há a aversão que não se dá como mera participação
ou conseqüência periférica de um ato pecaminoso, mas o ódio consumado, explicitado,
seria o gravissimum peccatum, maior até mesmo que a soberba, pois esta se dirige à
soberania, enquanto que, aquele, ao amor. Mas o ódio se desenvolveria plenamente
apenas diante da revelação do amor divino, com sua subseqüente rejeição; desse modo,
o pecado mais grave não é o mais básico. A “essência formal e própria do pecado
original é a soberba radical, que agora pertence à constituição do homem [...]” (Pesch,
1992:325). O começo do pecado no mundo, o “primeiro” de todos, seria, para Tomás, a
36
Tomás sustentava, no entanto, que a justiça original era devida à graça santificadora e que, com a
Queda, Adão teria sido privado da justiça original, com seus benefícios, mas não da graça santificadora.
Mais tarde o ensino católico dominante seria de que o pecado original envolve a privação contínua da
graça santificadora (Wiley, 2003:860.
37
Segundo Otto Pesch, Tomás apresenta também um modelo de compreensão que ele descreve como
“sociológico”: a comunidade, existindo como um só homem, é afetada pela atividade de sua cabeça e
representante. Tomás usa a expressão communitas quasi unus homo (Pesch, 1992:328). É nítida a
proximidade, aqui, com as noções federativas desenvolvidas na tradição reformada, a partir de Bucer.
Mas obviamente ele estava distante disso. Assim, Pesch observa que “nenhuma teoria do pecado original,
por sutil que seja, pode explicar, com efeito, porque se transmite aos infantes somente o primeiro pecado
de Adão, e não os pecados de todos os progenitores da cadeia [...]” (Pesch, 1992:328), mas sua declaração
não se aplica a uma noção federativa de pecado original.
100
soberba, como recusa a reconhecer a criaturidade (Pesch, 1992:317-319); Tomás segue,
também aqui, a Agostinho.
Gabriel Biel, em sua obra Collectorium, identifica três escolas de pensamento
sobre o pecado original: o agostinianismo estrito de Pedro Lombardo, que identificava
concupiscência e pecado original; a segunda escola, que rejeitava a identificação de
pecado original e concupiscência e incluía Anselmo de Cantuária, perpetuando-se em
Duns Scotus, William de Occam e Gregório de Rimini; e a terceira escola, ligada a
Alexandre de Halles, Boaventura e Tomás de Aquino, se colocava entre os extremos,
ensinando que a privação da justiça original era a forma e a concupiscência a matéria do
pecado original (Oberman, 1983:122).
Exceto pelo fato de Scotus e Occam se seguirem a Tomás (e por algumas falhas
de classificação apontadas por especialistas)
38
, a divisão de Biel é correta. Ela não
mostra, no entanto, a progressão, iniciada com Anselmo, e da qual Tomás poderia
representar uma etapa intermediária, do afastamento de uma concepção agostiniana e,
assim, mais “pessimista” do pecado original, em direção a uma visão mais “otimista”,
refletida no nominalismo de Duns Scotus, e correspondendo ao colapso do
escolasticismo.
39
Duns Scotus (m. 1308 d.C.) adotava a linha anselmiana de teologia do pecado,
explicando a inocência positiva do casal original como resultado da posse de um donum
superadditum – a justiça original – capaz de manter o equilíbrio das forças da alma. A
concupiscência não seria, de modo algum, o pecado original, desde que ela pertence à
natureza humana original. O pecado se encontraria na carência de justiça original.
38
Cf. Oberman, 1983:122-128.
39
“[...] Scotus se encontra ainda mais distante de Tomás do que Anselmo, desde que parece ir além da
posição tomada pelo Arcebispo de Cantuária. Ele destaca que a concupiscência pertence à própria
natureza do homem, e que mesmo no paraíso deverá ser neutralizada pelo dom da justiça original; por
outro lado e, em relação a isto, ele também diz que o pecado original destruiu os dons sobrenaturais mas
deixou a natureza humana intacta” (Oberman, 1983:125).
101
Scotus rejeitou, também, a teoria da herança biológica do pecado desde que, residindo
na vontade, não poderia ser fisicamente transmitido. A sua solução para o problema era
bem diferente: a justiça uma vez dada a Adão (e perdida) seria uma justiça devida
(justitia debita), de tal modo que, “Em virtude desse dom, a vontade de todos os seus
descendentes se torna devedora” (Seeberg, 1967[II]:159-160). Desse modo, abandona-
se tanto a teoria da unidade metafísica como a de transmissão biológica, num duplo
afastamento da solução agostiniana: quanto ao mecanismo de propagação do pecado e
quanto à transmissão de uma pecaminosidade positiva aos descendentes de Adão.
Scotus representa, definitivamente, o retorno de uma posição “otimista”.
Assim, Gabriel Biel, também na corrente anselmiana, acreditava que a fomes
peccati, a revolta interna contra Deus, existia como marca do homo creatus, mas sob o
controle da justiça original; com a Queda, a revolta tornou-se atual e exterior. A
tentação diabólica meramente atualizou uma rebelião que já estava potencialmente
presente (Oberman, 1983:128). A Queda não destruiu a liberdade humana, e seu
impacto foi principalmente psicológico, ao enfraquecer a disposição humana para o
bem; desse modo, Biel estaria pronto para afirmar a possibilidade para o homem de
facere quod in se est, dispondo-se para a graça. A diferença entre as deficiências de
Adão antes e depois da Queda não seria, portanto, qualitativa, mas basicamente
quantitativa; um aumento da “pressão” da concupiscência sobre a alma, passível de
controle pelo livre arbítrio.
2.1.4. Reforma e Contra-Reforma
Timothy George observa, em sua discussão sobre a predestinação em Lutero,
que “nesse aspecto, a linha principal da Reforma protestante pode ser vista como uma
102
‘aguda agostinianização do cristianismo’” (George, 1994:76). A observação vale para
diversas doutrinas além desta, e, sem dúvida, também para a hamartiologia dos
reformadores, ao menos em seus traços principais.
Martinho Lutero (m. 1546 d.C.) sustentou em seu período pré-reformatório uma
compreensão agostiniana do pecado, identificando a concupiscência com o pecado
original, que atinge o homem inteiro, corrompendo a sua natureza, e é a raiz de todos os
peccata actualia (Seeberg, 1967[II]:228). Esta posição foi mantida quando ele iniciou
sua atividade reformatória, sendo que havia um esforço consciente por defender a
compreensão agostiniana contra o “pelagianismo” de Roma. Lutero via a tendência
teológica otimista da Igreja como um ensino perigoso, que conduziria à justiça pelas
obras e ao abandono da graça de Deus. Desse modo, a preocupação soteriológica
funcionou como o “nervo central” de suas exposições sobre o pecado original (Seeberg,
1967[II]:241).
40
Lutero rejeitou a visão anselmiana da relação entre natureza e graça. Tanto
Tomás de Aquino como o nominalismo, adotavam essa distinção como forma de
configurar a doutrina da Queda, evitando, na medida do possível (se bem que essa
provavelmente não fosse a intenção consciente), afirmar uma corrupção total da
natureza humana. A Queda envolveria mais a perda do donum superadditum e, no
Escotismo, principalmente em Gabriel Biel, esta tendência se mostra consumada. Em
oposição a isso, Lutero se esforça por afirmar uma corrupção absoluta da natureza,
expressando essa convicção por meio de um contraste radical entre natureza e graça.
Timothy George cita Lutero em sua explicação:
40
A doutrina da justificação pela fé, associada à identificação do pecado original com a concupiscência,
enfraqueceu o significado soteriológico do batismo e ergueu um formidável desafio ao sistema sacerdotal-
sacramental católico. É clara, portanto, a conexão interna entre a doutrina do Pecado Original e a
Soteriologia, especialmente naquele contexto teológico.
103
A essa avaliação otimista do potencial humano, Lutero opôs um duro
contraste entre natureza e graça. “A graça coloca a Deus no lugar de
tudo o mais que ela vê, e o prefere a si mesma, mas a natureza coloca
a si mesma no lugar de tudo, e mesmo no lugar de Deus, e busca
apenas o que lhe é próprio e não o que é de Deus”. Com “natureza”
Lutero não queria dizer simplesmente o reino criado, mas sim o reino
criado decaído e, particularmente, a vontade humana decaída, que está
“curvada sobre si mesma” (incurvatus in se), “escravizada” e
manchada com o mal em todas as suas ações (George, 1994:76).
Lutero escolhe, portanto, o “pessimismo” de Agostinho, afirmando uma
corrupção integral e positiva da natureza humana, e a pecaminosidade da
concupiscência. Vai até mesmo mais longe que Agostinho, tratando a concupiscência
como pecado atual (Wiley, 2003:89). É verdade que Lutero esteve por certo tempo sob a
influência do misticismo alemão, e da doutrina da synteresis, a centelha de consciência
no homem natural, que proveria uma base, no homem, para a união com Deus; mas ele
finalmente a rejeitou, quando “[...] passou a entender o pecado como uma rebelião
fervente, não meramente uma fraqueza passiva ou uma ausência de bem. A atrocidade
do pecado não era apenas que ele viciava todo o ser, mas que consistia numa energia
incontrolável [...]” (George, 1994:69). Tal como no caso de Agostinho, as novas
perspectivas de Lutero refletiam uma combinação de reflexões teológicas e experiências
pessoais profundas com a graça divina e a pecaminosidade humana.
Segundo Wiley, Lutero desconfiava da descrição metafísica do pecado e da
graça, propondo uma interpretação mais relacional dos termos (Wiley, 2003:89). A
essência do pecado envolveria a cegueira e a maldade, o desprezo a Deus, a
desobediência, mas, acima de tudo, a incredulidade, que seria o verdadeiro pecado
capital: “A justiça capital é a fé; logo, o pecado capital é a incredulidade” (Lutero,
Apud: Seeberg, 1967[II]:241). A depravação total da natureza humana não anulou as
capacidades humanas, mas a luz natural não é capaz de demovê-la de sua rebelião
contra Deus. A razão natural é capaz para julgar em assuntos seculares, mas nunca em
assuntos espirituais (Seeberg, 1967[II]:241). O batismo remove a culpa do pecado
104
original, mas não a sua presença; a concupiscência permanece, e é pecado,
positivamente (Wiley, 2003:96).
Quanto à vontade, Lutero sustentava, com Agostinho, que a vontade humana só
é livre, atualmente, para fazer o mal. O homem usou a sua liberdade para escolher o
pecado, e seu livre arbítrio tornou-se, em conseqüência, escravo. Embora evitasse
discutir a origem do mal, Lutero afirmou que Deus também opera nos maus, por meio
de sua maldade, mas estes são os únicos culpados por sua escolha pelo mal. Finalmente,
Lutero sustentou que nós herdamos de Adão a relação rompida que se estabeleceu entre
ele e Deus, de modo que todos, inclusive as crianças, são culpados e merecedores da ira
divina (Seeberg, 1967[II]:242-243).
As idéias de Lutero sobre o pecado original refletiram-se na confissão de
Augsburgo, que descreveu o pecado original como ausência de temor de Deus, falta de
confiança (incredulidade) e concupiscência, confirmando a associação de Lutero com
Agostinho (Seeberg, 1967[II]:327). A fórmula de Concórdia era ainda mais explícita em
seu “pessimismo” teológico, descrevendo o homem caído como não tendo “nem uma
faísca de força espiritual”, sendo “não mais que uma pedra, um tronco ou um torrão de
argila”, ou “pior do que uma pedra”, por ser rebelde contra a vontade de Deus (Seeberg,
1967[II]:372).
Ulrich Zwínglio representou um afastamento parcial do agostinianismo dentro da
Reforma, no que tange à doutrina da Queda. Ele descreve o pecado original como uma
fraqueza da natureza destruída, que nos sobrevém por nascimento, mas sem qualquer
culpabilidade. Embora rejeite a comunicação de culpa, não deixa dúvidas quanto à
corrupção positiva da natureza humana (Seeberg, 1967[II]:303).
João Calvino representa a realização mais completa e modernizada do
agostinianismo ao tempo da Reforma. Para ele a corrupção da natureza humana foi
105
integral e profunda, de tal modo que todos os atos humanos, do ponto de vista de seu
significado teo-referente, seriam pecaminosos (alinhando-se, nisto, com Lutero, sem
dúvida). Mas isso não significava que as virtudes e dons humanos não tenham valor;
eles seriam dádivas divinas, apropriadas para realizações notáveis, no que tange às
“coisas de baixo”. Só seriam inúteis para as “coisas de cima”. Calvino não era, assim,
um “pessimista completo”, mas um pessimista aonde deveria ser, isto é, em sua
hamartiologia. Vale a pena citar um trecho mais longo das Institutas:
Nós devemos assim considerar cuidadosamente estes dois
pontos. Primeiro que, como nós estamos viciados e corrompidos em
todas as partes da nossa natureza, estamos retamente condenados com
base nessa corrupção apenas, e convencidos diante de Deus [...]
mesmo os infantes trazem a sua condenação com eles do ventre de
suas mães [...] De fato, toda a sua natureza é uma semente de pecado;
assim ela não pode ser, senão, odiosa e abominável a Deus [...].
Em segundo lugar, esta perversidade nunca cessa em nós,
mas continuamente dá a luz a novos frutos [...] Aqueles que definem o
pecado original como a “ausência da justiça original” ainda não
expressam com suficiente efetividade seu poder e energia. Pois a
nossa natureza não é apenas destituída e vazia de bem, mas tão fértil e
frutuosa de todo mal que não pode ser ociosa [...] O homem inteiro,
em si mesmo, nada mais é do que concupiscência [...] (Calvino,
1975[1536]:97).
Assim, tal qual Agostinho e Lutero, Calvino sustentou que o pecado original
seria uma condição positiva, e não apenas a privação do bem; um estado de revolta
contra Deus; essa revolta seria culpável, em todos os humanos individuais; e a
concupiscência seria um elemento do pecado original, espalhando-se por toda a natureza
humana. Na essência, o pecado seria “o orgulho, a desobediência e a descrença”,
resultando em ingratidão para com Deus (George, 1994:214). Quanto à liberdade
humana, ele defendeu a posição agostiniana de que a liberdade existia, mas cativa do
pecado.
No tocante à solidariedade no pecado com Adão, Calvino segue um caminho
particular. Ele aceitava a visão agostiniana de uma Queda histórica, com uma
participação de toda a raça no primeiro pecado, mas rejeitava a idéia traducionista de
106
uma transmissão da alma corrompida de Adão de pai para filho. Calvino não encontrou
sentido na idéia de transmissão biológica do pecado original, mas não estava disposto a
abandonar a idéia de Queda, apelando para o decreto divino:
A corrupção de toda a humanidade somente na pessoa de Adão não
procedeu da geração, mas da ordenança de Deus. Assim como num
homem ele nos adornou a todos, da mesma forma também nele nos
privou de seus dons (Calvino, Comentário de João. Apud George,
1994:214).
A causa do contágio não reside na substância da carne nem na da
alma, mas em que tenha sido ordenado por Deus que o homem tenha
para si e para a sua posteridade todos os dons que Deus originalmente
lhe conferiu (Calvino, Institutas. Apud: Seeberg, 1967[II]:387).
O que temos, portanto, não é mais uma doutrina de unidade metafísica, nem de
transmissão biológica, mas de representação federal. Há, provavelmente, uma
combinação do agostinianismo com um elemento escotista;
41
há mais que isso, no
entanto. Os cristãos primitivos desenvolveram uma doutrina da Queda por paridade,
percebendo que a universalidade da salvação em Cristo exigia uma explicação da
universalidade e solidariedade humana no pecado. Calvino segue, de certo modo, a
tendência teológica que originou a discussão, reproduzindo as noções de pacto, de
representação federal e de imputação constitutivas de sua soteriologia em sua
antropologia e hamartiologia.
42
A reação ao ensino reformado, de Lutero, em especial, veio de forma sistemática
com o concílio de Trento, que fundamentou a sua compreensão do pecado original a
partir da síntese desenvolvida por Tomás de Aquino, entre o pensamento de Agostinho
e o de Anselmo. O elemento formal do pecado original seria a privação da justiça
41
Seeberg observa que a teoria de Calvino se aproxima da noção de justitia debita de Duns Scotus,
embora ele a use com propósitos claramente agostinianos (Seeberg, 1967[II]:387, nota 21).
42
Fato observado também por Barth, a reflexão cristã sobre o homem e o pecado desenvolve-se em
paralelo e, a serviço da reflexão cristológica e soteriológica. Calvino chegou a ensinar este princípio
explicitamente, como nota George: “Para entendermos verdadeiramente a natureza humana, não devemos
olhar nem para os filósofos, nem para nós mesmos, nem para Adão em sua condição pré-queda, porque a
essa altura ele ainda não era um ‘produto acabado’. Em vez disso, Calvino apontava para Jesus Cristo, o
Verdadeiro Humano, em quem podemos ver a restauração de nossa natureza corrompida completamente
incorporada” (George, 1994:213).
107
original, e o material uma inclinação ao mal. Mas não haveria aquela profunda
orientação da vontade contra Deus, como o sustentavam os Reformadores. Na essência,
o pecado seria a desobediência, seguida da perda da justiça original e da graça
santificadora, resultando em uma corrupção parcial da natureza humana. Contra Lutero,
sustentou-se que a concupiscência não seria pecado. Vence, pois, uma versão
“otimista”, embora não tão pronunciada (Wiley, 2003:91-92).
A solidariedade dos homens com Adão no pecado foi fundamentada em Gn 3 e
Rm 5.12. A unidade com Adão seria metafísica, e a transmissão do pecado, biológica,
por meio do intercurso sexual, e não pela imitação do exemplo de Adão. O pecado
original seria pois, uma realidade universal, cujo remédio estaria em Cristo, mas só
poderia ser recebido sacramentalmente, pela mediação da igreja, por meio do batismo
(Wiley, 2003:91).
2.1.5. Modernidade
Tanto a Reforma Protestante como o Concílio de Trento encontram-se na
transição entre a Renascença e o Iluminismo, em um mundo que já não era medieval,
mas também não era moderno. Duas possibilidades estavam abertas: o desenvolvimento
de uma alternativa reformada de teocentrismo, ou o desenvolvimento do
antropocentrismo cultural renascentista. Durante algum tempo os dois projetos
coexistiram, mas o antropocentrismo viria finalmente a prevalecer na Europa.
No lugar da idéia de que “a graça aperfeiçoa a natureza”, a modernidade
introduziu a crença de que “a razão aperfeiçoa a natureza”. Para os modernos a razão é a
única fonte de segurança e esperança para o futuro; e a perfeição está no futuro, no
progresso humano (Wiley, 2003:107-108). O pensamento moderno submeteu todas as
108
crenças cristãs a um rigoroso exame, sendo que o critério principal era a autonomia da
razão. Neste contexto, a doutrina do pecado original era especialmente deplorável, na
medida em que implicaria em um ponto de interrogação sobre todos os
empreendimentos, sobre a capacidade do homem autônomo garantir a sua realização e o
seu futuro, e sobre a própria capacidade da razão autônoma de explicar a realidade:
A crítica do pecado original entre os pensadores seculares
criou um inesperado tipo de comunidade. A sua rejeição da doutrina
Cristã não significava que eles a ignoravam [...] O filósofo e
historiador do século XX, Ernst Cassirer, notou que “o conceito de
pecado original era o mais comum oponente contra o qual as
diferentes orientações da filosofia do iluminismo se uniram” (Wiley,
2003:109).
A antipatia para com a doutrina deixava, no entanto, o problema do mal sem
uma resposta significativa. No contexto do princípio da modernidade, o filósofo,
cientista e matemático francês Blaise Pascal (m. 1662) procurou mostrar a importância
da doutrina do pecado original para a apologética cristã, apontando, com uma
argumentação moderna, que o caráter contraditório da existência humana seria uma
evidência observável da dignidade criada e da pecaminosidade humana – isto é, do
pecado original. Mesmo sendo um mistério, o pecado original seria a única explicação
possível para o mistério da contradição humana (Wiley, 2003:109).
Outros pensadores tentaram soluções alternativas para o problema do mal e da
pecaminosidade humana. Jean-Jacques Rousseau (m. 1778) rejeitou completamente o
argumento de Pascal, afirmando a bondade da natureza humana, e postulando uma
“inocência original”; a falta original se encontraria, na realidade, em um evento
histórico e social definido: a origem da propriedade privada, que trouxe à luz a
sociedade civil com todos os seus males. A “redenção” viria pela transformação da
sociedade por meios políticos (Wiley, 2003:11-113). Immanuel Kant (m. 1804) rejeitou
completamente o pessimismo agostiniano e reformado (apesar de ser de tradição
109
Luterana), e desenvolveu uma teoria de duas tendências, semelhante à visão judaica das
duas inclinações (yetser ha-tov, yetser ha-ra). Admitiu, no entanto, que a inclinação
para o mal era experimentada com mais força, conduzindo à desordem e à perversidade
moral. Kant descreveu esta realidade como o mal radical, cuja origem seria a liberdade
humana, a capacidade de agir contrariamente à razão e negar o bem, a própria liberdade.
Mas não haveria uma “Queda” adâmica, nem uma transmissão de pecado, nem uma
redenção além da reforma moral, por meio da razão (Wiley, 2003:113-114). Friederich
Schelling (m. 1854), bem mais tarde, sob a influência, em parte, das idéias kantianas de
liberdade, defendeu que o mal não seria conseqüência de uma “falha” na natureza
humana criada, mas algo que constitui o ser humano como ser humano, como vontade
autônoma em oposição a Deus (Wiley, 2003:110). Schelling procurou construir um
sistema abrangente, que desse conta, não apenas da razão, mas da contradição livre da
razão, da efetividade do mal (Rosenfield, 1988:71). Ao rejeitar o dualismo mas, ao
mesmo tempo, afirmar a realidade do mal, Schelling soluciona o problema fundando a
negatividade em Deus, como um principio que traz em si algo de positivo, mas cuja
positividade é derivada do bem divino e permanece conquistada no interior da divindade
(Rosenfield, 1988:74-76).
De um modo geral, com exceções, como Schelling, os modernos adotavam uma
perspectiva intelectual pelagiana, considerando a idéia de culpabilidade de todos os
homens desde a infância uma crença imoral, afirmando a liberdade humana e a
individualidade como valores fundamentais.
O desenvolvimento das ciências empíricas culminando com a Revolução
Científica deveu muito, inicialmente, ao cristianismo reformado, mas mesmo nos
círculos calvinistas, havia certo acordo de que a Bíblia não deveria ser usada como fonte
de conhecimentos científicos.
110
Mas foi o desenvolvimento das ciências históricas que mais contribuiu para
enfraquecer a importância da Bíblia como fonte de conhecimentos sobre o passado.
Lutero e a Reforma, de modo geral, estimularam o livre-exame das Escrituras, e
questionaram frontalmente a autoridade da Igreja para controlar, não somente a
interpretação bíblica, mas a crença pessoal. Logo a crítica histórica da Bíblia,
principalmente na França e na Alemanha, levaria ao questionamento da historicidade de
diversas narrativas bíblicas, incluindo-se as narrativas de Gênesis. A comparação dos
textos bíblicos com textos antigos de outras nações mostrou a dependência das tradições
bíblicas em relação a mitos e à cosmovisão antiga. Os estudos críticos em torno da
história do cristianismo e do dogma mostraram com clareza a incoerência da tradição e
a interferência de fatores externos, como idéias filosóficas e religiosas pagãs, bem como
de interesses políticos. Tudo isso introduziu uma condição epistemológica instável; uma
“crise de confiança” que afetaria todos os dogmas cristãos, incluindo-se o da Queda.
Os desenvolvimentos da “filosofia natural” – da geologia e da biologia,
especialmente, desafiaram a antiga certeza da existência de um casal ancestral comum a
todos os seres humanos. Assim o monogenismo viu-se desafiado, a partir do estudo da
evidência fóssil, pelo poligenismo (emergência original de vários seres humanos) e pelo
polifiletismo (emergência de diversos grupos humanos diferentes). Momentos críticos
do processo de crise na crença tradicional foram: o colapso da geologia do dilúvio, a
descoberta do mecanismo de seleção natural, princípio fundamental da teoria
Darwinista, e a antropologia evolucionista, que apresentava os primeiros seres humanos
como “inferiores” aos seres atuais.
De um modo sintético, poderíamos dizer que as principais forças no
questionamento moderno da noção de pecado original foram: (1) a defesa da autonomia
da razão contra qualquer afirmação dogmática impassível de racionalização; (2) a
111
crítica histórica da Bíblia e da própria tradição cristã, que tornou problemática a
confiança nas narrativas bíblicas, por um lado, e revelou o complexo processo de
desenvolvimento dos dogmas cristãos, de forma frequentemente não orgânica e não
racional; (3) os desenvolvimentos da ciência moderna, em especial da história, da
biologia e da geologia, que conduziram a uma imagem científica de mundo impossível
de ser harmonizada com uma interpretação literal dos textos bíblicos.
A resposta a este novo estado de coisas, no interior do pensamento cristão,
variou conforme as características típicas de cada grupo. Nos círculos protestantes,
inicialmente, as respostas foram ambíguas. Os cristãos de tendências teologicamente
liberais aceitaram rapidamente os desdobramentos teóricos, interpretando Gn 3 como
uma narrativa mítica, adaptando-se ao ideal moderno de progresso com sua concepção
“otimista” do pecado, e admitindo a narrativa evolucionista, com a eliminação de um
estado de perfeição original. Muitos protestantes conservadores, no entanto, aceitavam
aspectos da nova condição intelectual rejeitando outros. Assim, alguns apoiadores do
movimento fundamentalista aceitavam aspectos da crítica bíblica e da teoria da
evolução, procurando adaptá-los à doutrina tradicional. Mas tendência dominante neste
movimento e nos setores conservadores, de modo geral, foi a de fechar-se
completamente para a modernidade, ao menos até o último quarto do século XX.
Entre os católicos, houve um longo e difícil processo de discussão, tendo em
vista a importância do monogenismo para o dogma tradicional. Assim o Concílio
Vaticano I (1869-1870) rejeitou tanto a crítica bíblica como a teoria evolucionária.
Apenas em 1943, com a encíclica Divino Afflante Spiritu, foi admitido o uso de
métodos críticos, com a conseqüente revisão da leitura de Gênesis 3. No Concílio
Vaticano II a abertura foi ainda maior, mas na encíclica Humani Generis (1950) do
Papa Pio XII, embora não rejeitasse o Darwinismo, o tratava como uma teoria incerta;
112
reafirmava o monogenismo, e postulava a necessidade de preferir o dogma da igreja, em
caso de conflito com a ciência. Diversos teólogos importantes procuraram reformular o
dogma do pecado original abandonando o monogenismo e adotando, em graus variados,
uma cosmovisão evolucionária (como Pierre Teilhard de Chardin, Karl Rahner e Piet
Schoonenberg). Entretanto, o Catecismo da Igreja Católica de 1994, mesmo admitindo
as características simbólicas de Gênesis 3 e a teoria da evolução, sustenta a historicidade
do pecado original, o monogenismo, a unidade de todos os homens em Adão, e o
batismo infantil para remissão do pecado original (Wiley, 2003:120-125).
2.1.6. Reflexões Contemporâneas
Há um acordo tácito, entre muitos teólogos católicos e protestantes, de que é
necessário desligar a hamartiologia de pressuposições científicas e históricas pré-
modernas. Há, por outro lado, uma consciência cada vez maior dos limites da
modernidade, de modo que o caminho não pode ser a mera acomodação forçada da
tradição cristã à modernidade. O século XX apresenta diversos esforços sérios de
engajamento com os desafios modernos para lidar com o problema da Queda e do
pecado original. Vamos considerar rapidamente alguns exemplos de tratamentos
contemporâneos, antes de passar a uma discussão das idéias de Tillich.
O teólogo jesuíta holandês Piet Schoonenberg tentou “traduzir” a doutrina
católica, de categorias metafísicas escolásticas para categorias capazes de refletir a
ciência moderna, a historicidade humana e a experiência do devir. Schoonenberg
criticou a tendência individualista e jurídica da doutrina tradicional do pecado original,
que seria dependente da antiga lei romana, postulando uma visão mais relacional e
existencial do pecado. Propôs a noção de ser-situado (being-situated) como categoria
113
básica para compreender a condição de pecado: o ser humano individual não existiria
senão em suas relações com os outros, de tal modo que a existência de cada um é
condicionada pelos pecados de todos. Não haveria, pois, uma transmissão “biológica”
do pecado, mas uma transmissão relacional e existencial. Schoonenberg tenta ainda
recuperar Pelágio para a ortodoxia, correlacionando a idéia de imitação de Pelágio com
a sua noção de ser-situado. Finalmente, aponta que a doutrina clássica coloca uma
forma elevada de humanidade na “ponta errada” do processo evolucionário, propondo a
eliminação da forma tradicional da doutrina da Queda (Wiley, 2003:132-137).
O protestante Reinhold Niebuhr (m. 1971) defendeu a importância da categoria
teológica pecado na análise social do bem e do mal humano. Segundo ele, haveria uma
forte conexão interna entre egoísmo, uma realidade interna, e a injustiça, externa, e a
idéia de liberdade humana seria necessária para estabelecer uma correlação. A
capacidade de auto-transcendência do homem seria a origem da liberdade e da
possibilidade do bem e do mal. Haveriam ainda as tendências de considerar o outro
(other-regarding tendencies) e de considerar a si próprio (self-regarding tendencies), a
primeira a fonte do bem, a segunda, do mal. O egoísmo, quando coletivizado, se
expressa como tribalismo. Mas, desde que a norma do amor e da mutualidade é um
princípio transcendental e essencial ao homem, o egoísmo seria a contradição do
homem com sua natureza essencial. A experiência psicológica e social do egoísmo
constituiria o pecado original, e a prisão da razão e da moral aos interesses pessoais e
grupais constituiria o que Agostinho e Lutero denominaram a “escravidão da vontade”
(Wiley, 2003:139).
Para Niebuhr, Gn 3 seria um “mito verdadeiro”, não tendo veracidade histórica,
mas refletindo uma experiência real e temporal: a origem do mal a partir da liberdade
humana. A auto-reflexão leva o homem a reconhecer a Queda como evento interno e
114
existencial, sempre repetido na falha humana. A imagem bíblica da perfeição original
apontaria para a experiência psicológica da lei do amor, o critério transcendente da
liberdade humana (Wiley, 2003:140-141). Quanto à idéia de herança biológica do
pecado, Niebuhr a rejeitou completamente, pois isso o tornaria uma necessidade natural,
sendo que ele é fruto da liberdade humana. Rejeitou assim o mecanismo agostiniano de
explicação da universalidade do pecado, limitando-se a afirmá-la como fato
empiricamente constatável.
Seguindo uma posição teológica agostiniana e reformada, Niebuhr rejeita a
Queda como mera privação, pois isso implicaria em que a razão humana se manteve
essencialmente intocada pelo pecado original. Em sua perspectiva, a razão humana foi
positivamente corrompida pelo pecado. Niebuhr procurou explicar essa doutrina em
termos modernos, utilizando a sociologia do conhecimento e as idéias de Karl Marx
sobre ideologia e alienação; a corrupção da mente pelo pecado seria a distorção da
verdade do indivíduo ou grupo por seus interesses egoístas (Wiley, 2003:141-142).
Niebuhr sustentou, no entanto, que a imagem de Deus no homem não foi destruída,
revelando-se no critério transcendente do amor. Não haveria, portanto, uma
“depravação total”. Nessa base ele argumentou que o egoísmo seria não-natural, uma
contradição do homem com sua natureza essencial (Wiley, 2003:143).
43
Aprofundando-se no estudo das fontes do pecado, Niebuhr chegou à ansiedade
existencial, que não seria pecado, em si, mas uma pré-condição do egoísmo. A vontade
de poder é a busca inautêntica de auto-realização, quando o homem tenta lidar com a
insegurança existencial “sem reconhecer que a mutualidade é normativa para a natureza
43
Wiley sustenta erroneamente, neste ponto, que Niebuhr teria se afastado da tradição reformada e se
aproximado do catolicismo, ao divergir de Lutero, para quem a imagem de Deus no homem teria sido
destruída. Entretanto, a posição de Calvino, outro Reformador, era de que a imagem de Deus não foi
anulada pela Queda. Considerando que ele era de tradição reformada calvinista, é mais provável que ele
tenha simplesmente mantido a forma agostiniana-calvinista de antropologia e hamartiologia.
115
criada ou que a natureza criada tem uma finalidade transcendente” (Wiley, 2003:145). A
vontade de poder, princípio por trás da injustiça, era entendida por Niebuhr como uma
explicação empírica e psicológica do pecado do orgulho indicado por Agostinho, e da
incredulidade, apontado pelos Reformadores. A vontade de poder se refletiria então no
egoísmo coletivo, que leva aos falsos absolutos e à injustiça social. Enfim, para
Niebuhr, a luta contra o pecado seria permanente, uma vez que a conflitividade é uma
dimensão permanente da vida humana; a graça salvadora não elimina o pecado nem
remove o egoísmo, mas capacita o ser humano a cuidar do outro (Wiley, 2003:146-
147).
Os exemplos do católico Schoonenberg e do reformado Niebuhr são
interessantes, na medida em que revelam a persistência de certas macro-tendências no
interior da discussão sobre o pecado. Schoonenberg assume uma posição
predominantemente otimista ao lidar com o pecado original, enquanto que Niebuhr
reinterpreta o “pessimismo” agostiniano, explicando a corrupção positiva da natureza
em termos modernos. Por outro lado, há uma nítida tendência de se suavizar o
agostinianismo, mesmo quando ele é assumido, como no caso de Niebuhr.
Outra tendência bastante forte é a de procurar substituir o princípio explanatório
da solidariedade humana no pecado, da unidade metafísica e transmissão biológica, para
uma forma de solidariedade social e existencial. Essa tendência assume formas bem
articuladas e abrangentes nas teologias da Libertação, que criticam a “privatização” e
“legalização” do pecado, no pensamento teológico tradicional, e introduzem a categoria
do pecado social, a fim de disponibilizar uma ferramenta teológica para a crítica social
(Wiley, 2003:150). A mesma tendência é encontrada nas teologias Feministas, que
identificam o pecado original com a sustentação social de uma condição de opressão
sexista, envolvendo tanto os perpetradores da violência como as vítimas por meio de
116
legitimações ideológicas que incluem a própria interpretação tradicional dos textos
bíblicos. A “herança” do pecado se dá na transmissão de estruturas e sistemas sociais
injustos, que aprisionam os indivíduos dentro de limites e condicionamentos malignos
(Wiley, 2003:175-176). Curiosamente, nessas formas “libertárias” de teologia, o pecado
original se torna passível de localização temporal. Assim, algumas teólogas feministas
afirmam que a Queda corresponde a nada menos que a emergência do patriarcado no
mundo antigo (Wiley, 2003:159-161,172-173).
2.1.7. Síntese
O estudo da teologia cristã do pecado não poderia, naturalmente, ser exaustivo,
considerando-se os limites e objetivos deste trabalho. Mas a visão panorâmica do tema
nos ajudou a detectar alguns padrões que, acreditamos, poderiam nos ajudar a
compreender o pensamento de Tillich: (1) em primeiro lugar, inferimos a partir dos
conflitos entre os Gnósticos e os Pais Antignósticos, que a distinção entre Criação e
Queda é uma categoria fundamental. A universalidade da redenção em Cristo exigia
uma afirmação da universalidade do pecado, mas a bondade de Deus e da sua Criação
bloqueou a solução gnóstica, estimulando o desenvolvimento de uma doutrina de Queda
histórica, cujo propósito era expressar tal distinção; (2) para explicar a solidariedade
humana no pecado, um esforço secular foi feito no sentido de conectar a experiência
humana individual da pecaminosidade com a idéia de um início temporal do pecado no
mundo, desenvolvendo-se assim a conexão entre o peccatum originalis originans e o
pecccatum originalis originatum em uma hamartiologia unificada, que encontramos no
agostinianismo. Essa conexão estabelece o problema da transmissão do pecado; (3) o
debate de Agostinho com Pelágio sobre o pecado e a graça envolveu, entre outros, o
problema da “gravidade” da corrupção da Queda, refletido, posteriormente, na
117
formulação anselmiana do pecado como privação, e na restauração Reformada do
pessimismo agostiniano. Poderíamos descrever essa questão como a da relação entre
natureza e graça; (4) finalmente, um quarto ponto bastante discutido, é o da natureza da
experiência humana do pecado, que desde que os primórdios assumiu tonalidades
profundamente existenciais, como em Agostinho, Anselmo, Lutero, ou Niebuhr. Trata-
se da questão da essência e dinâmica do pecado. (5) Uma quinta característica é a
tendência moderna de interpretar a experiência do pecado em termos de alienação
existencial, rejeitando-se o mecanismo agostiniano de transmissão biológica/unidade
metafísica a partir de Adão. Usaremos, em nossas reflexões sobre Tillich, estes cinco
pontos como termos de comparação, para tentar localizá-lo melhor no interior da
tradição hamartiológica cristã.
118
2.2. A Recepção da Teologia Cristã do Pecado em Paul Tillich:
Influências Principais
Na construção de sua própria perspectiva sobre o pecado, Tillich considerou
com atenção a história do progresso dogmático do cristianismo, a este respeito. Em sua
apresentação da história da teologia cristã em dois volumes, especialmente (História do
Pensamento Cristão e Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX),
percebe-se uma preocupação em discutir as idéias de pecado de vários teólogos e
movimentos importantes. E em seus escritos sobre o existencialismo encontramos
importantes interpretações e apropriações do pensamento moderno para a explicação do
pecado. Neste subcapítulo vamos apresentar aquelas interpretações da pena de Tillich
que nos ajudam a compreender a sua própria recepção da tradição hamartiológica, e a
iluminar seu próprio sistema.
2.2.1. A Contribuição do Pensamento Patrístico Pré-Agostiniano
De acordo com Tillich, o cristianismo se separou do dualismo pagão desde os
primórdios, como fica claro no primeiro artigo do Credo Apostólico: “Creio em Deus
Pai Todo Poderoso, criador do céu e da terra”:
Deveríamos pronunciar essas palavras com grande
reverência, porque, por meio dessa confissão, o cristianismo se
separou da interpretação dualista da realidade presente no paganismo.
Não há dois princípios eternos, o princípio mau da matéria tão eterno
como o bom princípio da forma. O primeiro artigo do Credo é a
grande muralha que o cristianismo ergueu contra o paganismo
(HPC:41).
A declaração de Tillich é muito importante, na medida em que mostra a sua
valorização da idéia de Criação para a constituição fundamental da tradição cristã. Essa
119
doutrina servia para reunir firmemente a revelação redentiva, centrada em Jesus Cristo,
e a ordem natural, em sua estrutura essencial. Tal reunião viria a colocar qualquer
possível reflexão sobre o mal entre dois anteparos: a bondade essencial da criação e a
universalidade da Redenção. Poderíamos até mesmo dizer que esses dois termos
“induziram” a criação de uma doutrina da Queda. Bastava que eles fossem submetidos a
uma tensão, o que não demorou a acontecer.
Como o próprio Tillich, observa, o embate com o gnosticismo foi um dos mais
graves conflitos enfrentados pelo cristianismo, ao longo de toda a sua história. Essa
forma altamente sincrética de pensamento religioso ameaçou o cristianismo ao
reinterpretar seus conceitos fundamentais em termos de sínteses criativas de idéias neo-
platônicas e estóicas com elementos originários das religiões de mistério que pululavam
em torno do mediterrâneo e crenças originárias da pérsia, como o dualismo metafísico e
o “mito do homem primal”. Em termos sumários, o gnosticismo via o mundo criado
como essencialmente mau (HPC:54), estabelecendo uma oposição entre Deus Pai e
Deus Salvador. A teoria gnóstica foi descrita como a blasphemia creatoris (HPC:60).
Para enfrentar esse desafio, entraram em cena os Pais Antignósticos,
especialmente Irineu e Tertuliano. Na perspectiva dos Antignósticos, a questão do
pecado deveria ser respondida em termos de uma história da salvação (HPC:62), isto é,
em termos eventuais, e não ontológicos. Assim, Tertuliano sustentou que o pecado seria
obra da liberdade humana, e não uma estrutura criada (HPC:61). E Irineu construiu uma
grande narrativa histórico-salvífica centrada no conceito de recapitulação
(anakephalaiosis), segundo o qual o plano de Deus, iniciado em Adão mas frustrado
pela Queda, vem a ser completamente realizado em Cristo, o homem essencial
(HPC:63).
120
Em Adversus Haereses, Irineu ataca a concepção gnóstica de uma “salvação”
das almas para fora do tempo e da matéria, estabelecendo uma conexão entre a criação e
a redenção. Um mesmo Deus cria e salva; e não podem haver dois deuses, pois se Deus
não é o criador, não irá salvar a criação. Irineu negava ainda que a queda fosse
necessária, sendo vista como um acidente e um desastre não necessário para a realização
da plenitude do plano de Deus. Essa compreensão básica da “metanarrativa bíblica”
como a tríade “Criação-Queda-Redenção” pode ser encontrada também em Agostinho e
desde então tem lugar firme na tradição da igreja, chegando até o século XX.
Sob a ótica cristã, dificilmente será possível apreciar a verdadeira natureza da
criação se não for possível distinguir o quê, na criação, reflete a vontade original do
criador e o que é a desordem não necessária; igualmente, não se pode falar sobre o
sentido da salvação cristã sem reconhecer adequadamente “o que” precisa ser salvo e
“como” isso será realizado. Essa reflexão reflete, enfim, a unidade da divindade. Tillich
indubitavelmente reconheceu a importância teológica da distinção entre Criação e
Queda implícita na tríade criação-queda-redenção. Tratando a respeito da natureza da
razão, ele destaca a coerência entre criação e redenção:
A criação contém o logos, mas se a redenção contradisser a criação,
será Deus que se contradirá a si mesmo [...] A igreja quase foi
destruída nos primeiros séculos na luta para preservar a bondade da
criação, em outras palavras, para manter a estrutura da realidade como
um todo baseada no logos. A igreja conseguiu, finalmente, superar a
tentação do dualismo, classificando como tentação demônica, por
causa da ruptura na divindade entre o Deus bom e o Deus mau.
(HPC:52).
A visão de uma coerência fundamental entre criação e redenção capacita Tillich
a afirmar a coerência entre o logos da criação e a revelação, e isso é evidentemente
decisivo para o seu método teológico, pelo menos enquanto justificativa teológica.
Quanto a isso, sabemos que Tillich se põe ao lado dos pais antignósticos contra
blasphemia creatoris do gnosticismo.
121
Uma definição adequada da criação e da redenção, no entanto, exigirá definições
claras a respeito da queda. Não é possível dizer adequadamente em que consiste a
bondade do logos, que deve ser coerente com a revelação, se não sabemos identificar a
presença do mal no mundo. Com percepção aguda, Tillich observa que “A blasfêmia do
criador, nova ou antiga, baseia-se sempre na confusão da bondade do mundo criado com
a sua distorção” (HPC:81), ou seja, na incapacidade de diferenciar corretamente o mal
da criação. Isso nos leva diretamente ao problema da Queda. E na Teologia Sistemática
Tillich introduz o assunto afirmando que “O símbolo da queda é um capítulo decisivo
da tradição cristã” (TS, 2005:324). Não pode haver dúvida, portanto, de que Tillich
aceita a existência de um símbolo cristão da Queda, que o considera importante para a
Teologia, e que pretende manter sua interpretação desse símbolo dentro da tradição
dos pais antignósticos, no que se refere à diferenciação de Criação e Queda.
Outra contribuição importante do período patrístico, para Tillich, foi o
pensamento neoplatônico sobre o mal e o pecado. O neoplatonismo influenciou
profundamente Orígenes, Agostinho, Dionísio Areopagita, e todo o misticismo cristão,
atraindo a atenção de Tillich (HPC:68). Em primeiro lugar, percebe-se a afinidade de
Tillich com a noção agostiniana de mal, que teria no neoplatonismo uma de suas fontes:
A fonte do mal é o abandono do nous pela alma na direção da matéria,
do reino corpóreo. O mal não é poder positivo. É a negação do
espiritual. É participação na matéria, não-ser, participação no que não
tem poder de ser em si mesmo. O mal aparece quando a alma se volta
para o não-ser. Nem os gregos nem os cristãos admitiram que o mal
pudesse ter realidade ontológica [...] Quando se faz esta afirmação,
venha ela de Plotino, de Agostinho, ou de mim mesmo, argumenta-se
que nesse caso o pecado deixaria de ser levado a sério [...] (HPC:71).
Tillich observa que o não-ser não é o “imaginário”, mas algo real, que pretende,
no entanto, negar a essência do real. Mas a essência seria boa. Ele cita Agostinho: esse
qua esse bonum est. O não-ser, ou meon “é o que não tem medida, limite ou forma”
122
(HPC:71).
44
É a falta, a pobreza, a ausência de poder de ser. A alma apresenta uma
ambigüidade, sendo capaz de voltar-se para o nous e assim para o Uno divino, ou “cair”
no não-ser, isto é, a particularidade da matéria (HPC:70). Segundo Tillich, as idéias
neoplatônicas influenciaram profundamente o pensamento e o misticismo cristão
(HPC:72) e, de fato, são nítidas as associações metafísicas com Schelling e com Tillich
no que tange à concepção do mal, da natureza da divindade e da liberdade da alma.
Tillich comenta as idéias de Orígenes sobre a Queda. Esta teria ocorrido,
quando, na linguagem origenista, os espíritos racionais e livres romperam a sua unidade
com Deus e caíram, recebendo corpos materiais. Trata-se, pois, de uma Queda
transcendente, na qual cada um é responsável individualmente, e a liberdade individual
é preservada. Essa Queda se torna temporal nas decisões de cada pessoa, em seus atos,
que a representam. Esta seria a origem do pecado, portanto. Tillich se sente atraído pela
estrutura geral da solução origenista, na medida em que ela explica a origem do mal em
termos metafísicos:
Se perguntarmos: De onde procede a queda? Por que é universal? Por
que não há exceções? A resposta deve ser: Porque a queda precede a
criação da mesma maneira como vem depois dela [...]
Mitologicamente, a queda não se deu no espaço. Trata-se da transição
eterna da união com Deus para a separação de Deus [...] A queda
transcendental se realiza por meio de atos especiais no plano histórico
[...] É um destino que, como todo destino, une-se à liberdade
(HPC:77-78).
Em Orígenes teríamos dois mitos distintos: o da Queda transcendental e o da
Queda histórica sendo, esta última, a realização temporal da primeira. Haveria, portanto,
um fundamento ontológico, ou semi-ontológico, para a Queda. Tillich identifica-se com
44
Há, possivelmente, uma ligação do mal com a divindade, desde que o Uno divino, como o que está
além de toda particularidade, “[...] é o abismo de todas as coisas específicas, onde desaparecem todas as
coisas definidas” (HPC:69). Assim, Schelling mostrará que o juízo e a salvação de Deus sobre a vontade
finita que se opõe a Deus ocorrem simultaneamente, em sua anulação como vontade distinta. E em Tillich
encontraremos o “pólo meôntico do ser”.
123
a solução origenista, interpretando-a em termos das polaridades ontológicas de seu
sistema.
2.2.2. A Raiz Agostiniana
As referências de Tillich ao pensamento patrístico até agora, nos ajudaram a
perceber algumas de suas escolhas teóricas: ele admite a importância da diferenciação
antignóstica de Criação e Queda, e procura interpretar isso em termos neoplatônicos e
utilizando-se da noção origenista de Queda transcendental.
Isso ainda nos deixa muito longe, no entanto, de uma hamartiologia específica.
Sabemos que a doutrina da Queda é um símbolo conceitual que se constituiu ao longo
de séculos, em meio a grandes debates. Em tese, Tillich poderia ter escolhido um ponto
da história em que não ainda havia uma concepção dominante; ou ter selecionado a
visão de uma corrente teológica minoritária como ponto de partida; ou poderia ter
mantido unicamente a imagem espaço-temporal de uma “Queda”, para discorrer sobre a
distorção da criação, abstraindo-a completamente de qualquer conceito teológico
tradicional. De modo que ainda precisamos perguntar, de que “Queda” Tillich está
falando, afinal.
Na percepção de Langdon Gilkey, a interpretação da Queda no volume dois da
TS é uma revisão do conceito Agostiniano de Queda (Gilkey, 2000:118); Tillich teria
interpretado a relação entre criação e Queda “de uma forma genuinamente Agostiniana”
(Gilkey, 2000:124). O exame de seu tratamento na TS confirma essa percepção, na
presença dos temas agostinianos da liberdade, da inexplicabilidade do pecado, e do
primeiro e último Adão, no uso da idéia de “pecado original”, na definição de pecado
124
como “hybris” e “concupiscência”, e em sua preocupação em se afastar do dualismo
maniqueísta e do moralismo pelagiano.
De fato, Tillich admitiu, em mais de uma ocasião, que se definia como um
teólogo de inclinação agostiniana: “Devo confessar, sem ambigüidade, que toda a minha
teologia fica mais na linha de tradição agostiniana do que tomista” (HPC, 2005:117).
Em sua exposição resumida do pensamento de Agostinho, Tillich ocupa boa parte do
espaço com as raízes de sua compreensão da Queda. Refere-se à rejeição Agostiniana
do maniqueísmo, como explicação do pecado a partir de dois princípios igualmente
finais (HPC, 2005:119), e observa que “Sua doutrina do pecado talvez não possa ser
entendida sem esse período maniqueísta” (HPC, 2005:120). Mas é no tratamento da
controvérsia pelagiana que encontramos uma exposição mais clara do ponto.
A explicação Agostiniana da deformação da natureza essencial do homem (em si
mesma, além do tempo e do espaço) seria a doutrina Agostiniana do pecado original,
que estaria dentro da tradição do Novo Testamento e da igreja, e teria se desenvolvido
na controvérsia pelagiana (HPC, 2005:135). Tillich rejeita a interpretação comum de
que o grande tema da controvérsia pelagiana tenha sido o problema da liberdade
humana. Segundo ele, o decisivo era a questão da relação entre ética e religião, entre o
imperativo moral e a graça divina (HPC:135).
45
O erro apontado por Agostinho em Pelágio, na interpretação de Tillich, teria sido
o esquecimento da “universalidade trágica do pecado”. Este elemento trágico estaria no
cristianismo e também na visão grega do mundo (HPC, 2005:136). Tillich explica a
noção agostiniana do pecado original, hereditariamente transmitido, como uma
expressão desse elemento trágico do pecado e de sua universalidade, isto é da
45
Essa discussão é exatamente o núcleo da complexa discussão filosófica que Tillich apresenta na sua
dissertação sobre Schelling: Mysticism and Guilt-Consciousness (1912): o problema da relação entre o
senso de separação moral de Deus, e o de unidade com o seu amor.
125
participação inevitável de todos os homens no pecado. Tillich também estabelece uma
distinção entre a visão agostiniana e a dos Reformadores: Agostinho cria que o homem
estava sob um risco tão grande, em ter liberdade pessoal, que Deus lhe conferiu uma
graça ajudadora, para auxiliá-lo na obediência (adjutorum gratiae). Os Reformadores
rejeitariam essa noção por sua própria ênfase na integridade e suficiência da natureza
humana criada. Para eles, qualquer noção de donum superadditum estava fora de
questão. Tillich observa, com grande perspicácia, que na noção de donum superadditum
haveria algo da idéia grega de matéria como poder resistente à forma (HPC:137-138).
No tocante à “essência” do pecado, Tillich enfatiza a sua natureza religiosa e
supramoral, segundo Agostinho. Cita-o: “O começo do pecado é o orgulho; o começo
do orgulho, o abandono de Deus”. Niebuhr utiliza este termo (pride) para o pecado
original, alinhando-se com Agostinho, mas, na opinião de Tillich, o termo grego hybris
seria mais adequado para expressar o pecado fundamental (HPC:138). A punição
imediata do pecado seria ontológica: aquilo mesmo que ele intenciona, a separação de
Deus, a perda do bem supremo, e a morte espiritual. Com essa morte, a alma perde o
controle do corpo, caindo na prisão da concupiscência, o desejo infinito e interminável
de realizar o próprio ser com a abundância da realidade (HPC:139).
Tillich comenta ainda as idéias de Agostinho sobre a transmissão do pecado.
Rejeita, naturalmente, a tentativa de reunir a espiritualidade do pecado humano com a
sua transmissão biológica hereditária a partir de Adão, bem como as idéias negativas
sobre a sexualidade. Mas reconhece um significado válido na dura doutrina da massa
perditionis:
Esta é a mais poderosa ênfase na solidariedade da raça humana na
tragédia do pecado. Assim, ele nega radicalmente – quase num sentido
maniqueu – a liberdade da personalidade individual. A unidade
abrangente da humanidade faz com que sejamos o que somos. Ora, à
luz da moderna pesquisa levada a efeito pela psicologia profunda e
pela sociologia, podemos provavelmente entender melhor do que
126
nossos pais o que Agostinho queria dizer, ou seja, a participação
inevitável de cada pessoa na existência humana, na estrutura social,
bem como na estrutura psicológica individual, neurótica ou não
(HPC:140).
Tillich procura, aqui, interpretar a solidariedade humana no pecado em termos
sociológicos e existenciais, seguindo a tendência que, como observamos, se repete no
século XX, tanto em meios católicos como protestantes. Enfim, ele reconhece que o
homem perdeu a sua liberdade de voltar para o bem, estando sob a lei da escravidão, e
totalmente dependente da graça divina. Comenta ainda a predestinação e a
irresistibilidade da graça, sem discutir profundamente o seu significado (HPC:141).
É evidente, a partir de sua exposição, que Tillich não pretende simplesmente
superar, ou substituir o dogma do pecado original, que surge, então, como um símbolo
que plasma uma imagem mítica do mal com aspectos conceituais – um símbolo
conceitual, teológico. Quando Tillich se refere aosímbolo da Queda”, ele tem em
mente a doutrina clássica, Agostiniana, mesmo sabendo que “[...] ela nunca foi
plenamente recebida pela igreja” (HPC, 2005:142), e não indica qualquer disposição de
negociar o elemento da liberdade humana (captado por Agostinho na controvérsia
maniqueísta) ou o elemento da universalidade trágica (expresso, na controvérsia
pelagiana, no dogma do pecado original). A formulação Agostiniana estaria de acordo
com os pais antignósticos e com o pensamento dos reformadores, e poderia ser descrita
como o “símbolo agostiniano da Queda”.
Naturalmente, Tillich não poderia absorver o símbolo da Queda sem algum
processamento teórico. Considerando ser impossível admitir a concepção literalista de
Queda, mas certo de que as condições reais da vida, que ele descreve como a
“existência” não são logicamente necessárias, mas são distantes da “essência”, Tillich
procurou fazer uma recepção parcial do símbolo clássico, no que ele denominou “semi-
127
desmitologização”, ou “desmitologização parcial” do mito (TS, 2005:325). Ele submete,
portanto, o símbolo da Queda a um tratamento hermenêutico, procurando extrair seu
significado e mostrar sua relevância. É a sua interpretação do símbolo Agostiniano que
pretendemos discutir com detalhes mais adiante.
2.2.3. Tillich e os Reformadores
Tillich foi profundamente influenciado pelos reformadores, inclusive em sua
compreensão do pecado. No exame das doutrinas de Lutero ele trata de pecado e fé sob
um único título, e começa tratando da essência do pecado, citando Lutero diretamente:
“Falta de fé é o verdadeiro pecado [...] Nada justifica a não ser a fé; nada é pecaminoso
a não ser a falta de fé” (HPC:243). Segundo Tillich, a fé da qual Lutero fala nada tem a
ver com doutrinas; e o pecado a que ele se refere é muito mais do que atos isolados. A
concepção de pecado de Lutero não é legalista, mas relacional: “Tudo o que nos separa
de Deus tem o mesmo peso; não há ‘mais’ nem ‘menos’” (HPC:243). Tillich apóia a
noção Luterana de “depravação total”, mas explica que ela não significa a ausência total
de bem no homem, e sim, que não há parte ou dimensão do ser humano que não tenha
sido atingida pelo pecado; depravação significa que o pecado atingiu o homem
radicalmente. Assim, tudo foi atingido pela “autocontradição” (HPC:244). O pecado
também é falta de amor a Deus. Mas a fé é condição para o amor: “[...] a fé sempre
precede o amor porque é nela que recebemos Deus, e o amor é o ato no qual nos unimos
a Deus” (HPC:244). A fé, condição do amor, é a atitude de receber (nihil facere sed
tantum recipere), que torna possível se unir a Deus. O pecado é o inverso disso: “Lutero
chama de ‘falta-de-fé’, consubstanciada no estado de não se unir ao poder do próprio
ser, à realidade divina em oposição às forças da separação e da compulsão” (HPC:245).
128
Tillich destaca também a ênfase de Lutero sobre os poderes demônicos. Em
primeiro lugar, o diabo seria, em Lutero, o próprio órgão da ira de Deus. Segundo
Tillich, as duas realidades seriam a mesma coisa; o que Deus é, demônico e destrutivo,
ou salvador, depende de como nós nos posicionamos em relação a Ele.
46
Tillich também
usa essa noção para explicar a idéia de escravidão da vontade de Lutero. O pecado não
seria somente fruto da liberdade pessoal, mas também de estruturas que nos oprimem e
nos prendem. Tillich descreve essa escravidão como “estruturas demônicas” (HPC:244).
Finalmente, não poderíamos nos esquecer da importância atribuída por Tillich à
noção de paradoxo para interpretar a relação com Deus, como uma “oscilação” entre a
justiça e a injustiça. O homem deve viver em perpétuo arrependimento, sempre
consciente, simultaneamente, de sua separação e de sua aceitação gratuita diante de
Deus (HPC:232). É, portanto, simultaneamente pecador e justo.
Em seus comentários sobre Calvino, Tillich chama a atenção para a atitude
central calvinista, que seria o seu horror à idolatria, a perda de consciência da
transcendência de Deus em relação a todos os símbolos religiosos. Tillich impressiona-
se com a acusação de Calvino, de que a mente humana seria uma “fábrica de ídolos”
(HPC:260), e com a sua negatividade em relação à condição de Queda: “[...] a situação
humana é descrita por Calvino em termos muito mais negativos que por Lutero”
(HPC:261). Mas parece concordar com Calvino no fato de que os homens não suportam
a sua realidade, evitando ver-se como são realmente.
Quanto à origem do mal, Tillich mostra-se simpático com o fato de Calvino ter,
efetivamente, admitido que “os atos maus de Satã e dos homens maus são determinados
pela vontade de Deus” afirmando, ao mesmo tempo, que o homem é totalmente
46
“Lutero se refere às criaturas como ‘máscaras’ de Deus [...] os Anibals, os Alexandres e os Napoleões
e acrescentaria hoje os Hitlers, ou os godos, os vândalos e os turcos – acrescentando os nazistas e os
comunistas - são conduzidos por Deus para atacar e destruir, de tal maneira que Deus nos fala por meio
deles. Eles são a palavra de Deus para nós e até mesmo para a igreja” (HPC:246).
129
responsável pelo seu pecado. O mal moral não seria meramente resultado da permissão
de Deus, senão também um aspecto da ação de Deus por meio de suas criaturas
(HPC:262-263). O próprio Tillich nega que isto implique em “determinismo”, dando a
entender que a causa, em Calvino, não seria redutível à necessidade natural:
Como Lutero, Calvino estava pensando em dois níveis. A causa divina
não é realmente uma causa, mas um decreto, algo misterioso, para o
qual a categoria da causalidade emprega-se apenas simbolicamente, e
não em sentido literal. Além disso, Calvino sabia, como os outros
reformadores e todos os adeptos da doutrina da predestinação, que
quando Deus decreta a predestinação, o faz por meio da liberdade
finita do homem (HPC:265).
Tillich se declara a favor dessa forma de pensar, em “dois níveis”, usando a
categoria da causalidade para expressar a dependência de todas as coisas em relação a
Deus, mas evitando compreender essa categoria literalmente, isto é, de modo a negar a
realidade da liberdade finita do homem (HPC:265-266).
Tillich estava bem consciente das diferenças entre a visão católica clássica e a
visão dos Reformadores sobre a gravidade da Queda – a questão da relação entre
natureza e graça. Tomás de Aquino teria ensinado que a natureza é aperfeiçoada pela
graça, e que tal estrutura era anterior à Queda; “Deus dera a Adão no paraíso não apenas
capacidades naturais, mas o donum superadditum, o acréscimo de um outro dom aos
dons naturais” (HPC:196), que unia Adão a Deus. Tillich se apressa em concordar com
Tomás, em que a natureza e a graça não se contradizem, mas está consciente da
diferença fundamental da posição Reformada:
Nesse ponto o protestantismo se desviou completamente de
Tomás de Aquino. Para o protestantismo, a natureza perfeita não
precisava de nenhuma graça adicional; se fomos realmente criados
com perfeição não é necessária nenhuma graça superior. Portanto, o
protestantismo eliminou a idéia do donum superadditum [...] No
tomismo, a estrutura da realidade contém dois níveis. Para o
protestantismo, a criação e completa em si mesma; as formas criadas
da realidade são suficientes (HPC:196-197).
130
O perdão e a salvação trazem, na visão protestante, a restitutio ad integrum, a
correção da natureza, não um complemento, como uma substância sobrenatural. É por
isso que, no protestantismo, o mundo secular é “imediato a Deus”, e o protestantismo
favorece a secularidade (HPC:197).
47
No catolicismo, a Queda é mais uma privação que
uma corrupção positiva; portanto a Queda não é apreendida em toda a sua negatividade.
Assim, na teologia do Concílio de Trento, a liberdade humana se enfraqueceu, mas não
se perdeu, e a concupiscência não é pecado (HPC:214); o pecado não é compreendido
em termos relacionais-existenciais, como para os Reformadores, mas em termos de atos
contra a lei divina: “Dessa maneira, o concílio de Trento não levou em consideração o
conceito religioso de pecado” (HPC:215).
2.2.4. Tillich e as Contribuições Modernas
O socinianismo seria uma das fontes do iluminismo, inclusive em sua visão do
pecado. Os socinianos consideravam o pecado original ou hereditário um conceito
contraditório. Podemos falar de uma corruão humana geral e de um enfraquecimento
da liberdade, mas não de culpa hereditária (HPC:283). O pensamento iluminista era
ainda mais decidido em sua rejeição:
É claro que havia uma crítica justificável da maneira
supersticiosa e literalista como essa doutrina era pregada em conexão
com a estória do Paraíso. Mas também era criticada porque conflitava
com a crença no desenvolvimento progressivo da situação humana na
terra. A maior parte do humanismo atual segue ainda essa mesma
crítica do iluminismo (PTP:65).
47
Essa seria a razão porque a filosofia da religião tomista procura encontrar uma via “externa” do mundo
para Deus; é que a união com Deus não é uma realidade estrutural, mas adicional, complementar. Deus
não é conhecido “de dentro” da natureza, mas a partir de uma comunicação exterior, heteronômica. Já no
agostinianismo, Deus é compreendido como o ponto de partida dado, como prius, uma realidade
consumada e estrutural, que a alienação existencial não pode anular completamente. Assim, Deus é
conhecido “de dentro”.
131
Tillich considera válida a crítica sociniana e iluminista da doutrina do pecado
original, em seus elementos “grosseiros”, mas tem a perspicácia para compreender que
havia outra motivação subjacente, que é o otimismo moderno em relação ao homem,
refletido em sua idéia de progresso. Tillich louva o abalo produzido por Niebuhr na
visão humanista como “um grande evento teológico”.
A partir de uma origem espiritual muito diferente do racionalismo sociniano se
encontra o filósofo e sapateiro Jacob Böhme, de quem Tillich revela grande dívida.
Böhme teria compreendido que o poder demônico seria a própria vontade no interior de
Deus, em contraste com a luz divina da razão. Com isso Böhme se afastaria da visão
metafísica tradicional de Deus como ato puro, postulando que a natureza divina seria
um processo dinâmico eterno, mas eternamente solucionado. Nas criaturas, tal processo
se revelaria sempre incompleto, resultando em uma combinação de criatividade e
destruição constante (PTP:184). Segundo Tillich, Böhme seria uma expressão mística e
moderna de uma tradição voluntarista cristã, que remonta a Agostinho, aos franciscanos
agostinianos e, mais imediatamente, ao voluntarismo de Lutero, influenciando
diretamente Schelling, Hegel e, através deles, Schopenhauer e o existencialismo
(PTP:184). Böhme seria importante, assim, como um dos articuladores filosóficos da
introdução de um princípio de negatividade em Deus, que seria a base da experiência de
pecado e alienação nas criaturas.
Tillich vê em Kant duas importantes contribuições para a sua reflexão. Em
primeiro lugar, Kant teria mostrado a impossibilidade da mente humana finita alcançar
o infinito. Suas categorias seriam apropriadas apenas para lidar com coisas finitas
(PTP:79).
48
Ao mesmo tempo, Kant percebeu que existe um ponto na estrutura finita do
48
“[...] há outra coisa que eu tomei de Kant: a sua compreensão de que a mente humana é limitada às
categorias de tempo e espaço, de causalidade e de substância, de quantidade e qualidade, e que não pode
ir além desses limites em seu próprio poder. E isto é, por assim dizer, uma advertência crítica que vem
132
ser humano que tem validade incondicional, refletido na incondicionalidade do
imperativo moral. Temos, pois, uma contribuição de Kant para o conceito de finitude,
em sua relação com o incondicionado. A outra contribuição teria sido a noção kantiana
de mal radical, como a perversão da vontade que atinge a raiz do homem:
A idéia kantiana do mal radical era o pecado sem perdão do
ponto de vista do iluminismo. Kant foi muito atacado por ter feito essa
afirmação. Mas Kant foi seguido por diversos outros que até mesmo
aprofundaram a idéia e levaram-na às primeiras fontes do
existencialismo, como se pode ver no segundo período da obra do
filósofo Schelling. Nesse ponto Kant se desviou completamente do
iluminismo (PTP:81).
A idéia Kantiana de mal radical teria uma enorme importância histórica,
portanto, do ponto de vista de Tillich; ela reintroduziu a consideração da experiência de
separação radical e culpa que o iluminismo queria esquecer, possibilitando a
“inauguração” da forma existencialista de pensamento.
49
Devido à importância de
Schelling para Tillich, vamos considerá-lo separadamente mais adiante.
Em F. Schleiermacher Tillich viu a grande síntese da teologia protestante com o
pensamento moderno e, em sua opinião, um “vitorioso sobre o iluminismo”, que
procurou não negá-lo, mas transcendê-lo (PTP:102). A ênfase da religiosidade
iluminista era a questão da moralidade, da separação entre Deus e o homem, e
Schleiermacher conseguiu desenvolver em seu pensamento a realidade da imediatez da
presença divina para o homem, por meio do princípio da identidade (PTP:104). Isso foi
importante para os conceitos de religião
50
e a crítica ao sobrenaturalismo por Tillich.
Quanto à noção de pecado, especificamente, Tillich não podia alinhar-se com
Scheiermacher, na medida em que ele ainda pensava o pecado em termos iluministas:
sempre e de novo de Kant contra qualquer arrogância filosófica, que tenta quebrar essas linhas divisórias
e limites de toda finitude” (MW1[PBT:416).
49
Segundo Tillich, a doutrina Kantiana do mal radical seria “semi-mitológica” e “genuinamente
‘existencial’” (MW1[EPh]:369).
50
“Não há diferença dogmática, mas apenas de conotação, entre preocupação suprema e sentimento de
dependência absoluta” (PTP:113).
133
O pecado seria uma falha. Não seria um “não”, mas um “ainda não”.
O pecado surge por causa da discrepância entre a grande velocidade
do processo evolucionário do desenvolvimento biológico da
humanidade e o ritmo vagaroso do desenvolvimento moral e espiritual
do homem (PTP:119).
O pecado seria, portanto, uma distância produzida pelo processo evolucionário
entre seus impulsos animais, inferiores, e a sua liberdade espiritual e racionalidade. Não
há uma “Queda”, mas uma imaturidade, um desarranjo necessário e inevitável. A
mesma atitude é encontrada por Tillich na escola de Ritschl, que via o pecado como “o
conflito entre a consciência e a base natural do homem” (PTP:214). Apesar de suas
muitas afinidades com o liberalismo clássico, Tillich rejeita inequivocamente essa
solução, que se mantém na linha iluminista, sendo incapaz de considerar a realidade
existencial do homem.
Em Estrangement and Reconciliation in Modern Thought, um artigo de 1944,
Tillich mostra como as categorias de alienação (estrangement), auto-alienação (self-
alienation) e reconciliação tornaram-se fundamentais para a constituição da forma
existencialista de pensamento. O conceito de alienação, em contraste com o de
reconciliação, expressa “[...] a ruptura de uma unidade essencial e, consequentemente
uma situação destrutiva” (MW6[ERMT]:257). Trata-se de mais do que uma separação
entre realidades cuja natureza é independente; a alienação de Deus só pode ser motivo
de preocupação suprema se a necessidade de reconciliação for absoluta, e tal só será
verdade se o próprio centro do ser for afetado. O cristianismo teria a mais profunda
percepção dessa realidade, e a herança cristã quanto a este ponto teria finalmente
sobrepujado o otimismo moderno a partir de G. W. F. Hegel:
Mas desde que a Europa tinha um pano de fundo Cristão, a crença
iluminista na harmonia não poderia durar muito. Hegel se encontra na
linha divisória; ao introduzir o princípio da negatividade em todo
movimento, ele reconhece a auto-alienação de tudo o que existe
(MW6[ERMT]:258).
134
Seguindo Hegel, diversos pensadores seriam levados a compreender a aplicar a
noção de alienação como categoria fundamental para a compreensão da condição
humana. Assim William James expressa a visão de que a origem do conhecimento é a
separação e reconciliação de sujeito e objeto (MW6[ERMT]:261); o jovem Marx
identifica na forma capitalista de propriedade privada a expressão perfeita da auto-
alienação humana, identificando na revolução social o seu principal símbolo de
reconciliação (MW6[ERMT]:263-264); Carl G. Jung vê na alienação da personalidade
em relação a si mesma a origem de toda neurose, e Freud identifica a alienação presente
no instinto de morte (MW6[ERMT]:265). Para Tillich, as interpretações modernas da
experiência de alienação são compatíveis com a noção cristã de pecado:
Em todos eles a idéia de alienação não é assunto de decisão
consciente, mas é um estado de coisas em que, como na doutrina cristã
Queda, precede todas as decisões pessoais [...]
As idéias modernas de alienação e reconciliação, deste modo,
devem ser consideradas como desenvolvimentos autônomos de
princípios Cristãos fundamentais. Disso se segue a atitude básica que a
teologia cristã deve ter frente a estas idéias. Primeiro de tudo, deve
reconhecê-las como osso dos seus ossos e carne da sua carne, como
teologia auto-alienada [...] (MW6[ERMT]:267).
Mas vamos voltar a Hegel. Segundo Tillich, ele não concebia Deus como uma
pessoa entre outras. Para ele o mundo era o processo de auto-realização temporal da
natureza divina, o Espírito absoluto. Deus “vem a si mesmo” por meio do processo do
mundo, culminando com a consciência da divindade no próprio homem (PTP:126).
Nesse processo, o Espírito se expressa na natureza, mas em estado de distanciamento,
de alienação. A natureza é o espírito afastado, alienado. Segundo Tillich, os
existencialistas viriam a usar este conceito, de alienação, para expressar a idéia cristã de
Queda (PTP:127). Há uma negatividade presente no processo do mundo, então, como
um elemento fundamental, que gera o movimento dialético de evolução do Espírito.
135
Este “negativo” é o “não-ser” (me-on), a dimensão meôntica da vida, que seria
absolutamente necessária à sua existência (PTP:135):
Referindo-se à doutrina da expiação, Hegel escreve: “Deus
está morto, diz um hino Luterano. Isto expressa a certeza de que o
humano, o finito, o fraco e o negativo são um elemento do próprio
divino, que o negativo não está fora de Deus e não impede a união
com Deus” (MW6[ERMT]:260-261).
Schelling e Tillich compartilhavam dessa compreensão da relação da natureza
divina com a história do mundo, bem como da existência de uma negatividade no
processo da vida. Por sinal, em sua própria opinião, havia uma forte tradição teológica
voluntarista, reunindo Agostinho, o franciscanismo agostiniano inglês, Lutero e o
místico luterano Jacob Böhme, que se inclinava a relacionar o mal à ação divina. Mas
havia uma divergência absolutamente fundamental: para Hegel, a reconciliação do
Espírito alienado na natureza era uma realidade intratemporal e racional, algo que
finalmente se realiza na história, quando o filósofo supera, em sua mente, a tensão de
subjetividade e objetividade (PTP:159-160).
51
Para Tillich, afirmar pura e simplesmente
que o negativo não impede a união com Deus, é afirmar a reconciliação sem a
justificação; é negar a radicalidade da culpa (MW6[ERMT]:261).
Segundo Tillich, o pensamento “existencialista”, num sentido bastante genérico,
começa quando vários filósofos, entre eles, alguns amigos e ex-alunos de Hegel,
rejeitam a idéia de que a reconciliação tenha se dado na história. Este seria o caso de
Karl Marx (PTP:127), de Kierkegaard, e de Schelling, que expressou isso com
categorias bem semelhantes às de Hegel.
52
Schelling manteve a idéia de uma
negatividade irracional em Deus, que se oporia à positividade racional, por meio do
51
Segundo Tillich, em seus escritos iniciais, de caráter teológico, o jovem Hegel descreve a reconciliação
da vida como o amor; a vida duplica a si mesma em amor, criando outro e reunindo-o a si mesmo. “O
amor, neste sentido, constitui o ser. Ser é síntese, isto é, a síntese do amor” (MW6[ERMT]:206).
52
“Essa reconciliação na mente do filósofo foi atacada por todos os que já mencionei – Schelling,
Feuerbach, os pietistas e os cientistas naturais. Todos afirmaram a irreconciliação do mundo [...] a
reconciliação entre o finito e o infinito ainda não acontecera” (PTP:160).
136
Espírito, mas negou que essa reconciliação se completasse em algum ponto da história.
Para ele, portanto, a história expressa um conflito divino que está concluído na
eternidade, mas em pleno desenvolvimento na existência. A existência é conflitiva; é a
experiência permanente da tensão entre o ser e a negatividade, o meon. Vamos examinar
melhor a apropriação tillichiana das idéias de Schelling mais à frente.
Tillich considerava a emergência do existencialismo “[...] um evento histórico,
comparável ao aparecimento do iluminismo, ou do romantismo, ou do naturalismo nos
últimos séculos” (MW1[NSET]:403). Ele procurou mostrar, em diferentes ocasiões,
como diversos pensadores desenvolveram interpretações existencialistas da condição
humana. Em Existential Philosophy, outro trabalho de 1944, ele tenta pintar um quadro
sintético da emersão do pensamento existencialista. Segundo ele, a Existenzphilosophie
é uma criação especificamente germânica, caracterizada pela crítica à identificação da
realidade ou ser com o objeto da razão, e pela distinção entre essência e existência. Mas
essa forma específica de existencialismo seria parte de um grande movimento
intelectual, abrangendo pensadores na França, Inglaterra e América, e atingindo também
as artes e a literatura (MW1[EPh]:355). A emergência do núcleo alemão se deu entre
1840 e 1850, a partir das palestras de Schelling, entre 1841-42, intituladas Die
Philosophie der Mythologie und der Offenbarung na universidade de Berlim, com a
presença de nomes como Engels, Kierkegaard, Bakunin e Buckhardt. A despeito das
duras críticas às palestras, o trabalho de Schelling estaria baseado em sua filosofia da
liberdade, publicada em 1809, que estabeleceu os fundamentos de uma filosofia
positiva, isto é, atenta à existência, e influenciou profundamente o trabalho de
pensadores como Tredelenburg, Max Stirner, Kierkegaard, Feuerbach, Marx e
Schopenhauer (MW1[EPh]:355). Após um período de latência, o existencialismo revive
137
na forma da Lebensphilosophie, em Dilthey e Nietzsche e, numa terceira fase, em
Husserl, Heidegger e Jaspers.
SØren Kierkegaard também criticou Hegel no que tange a seu conceito de
reconciliação. Segundo Tillich, Kierkegaard teria rejeitado a resposta de Schelling para
a questão existencial, mas teria utilizado as categorias existencialistas de Schelling,
combinando-as com o pietismo luterano, para construir a sua própria crítica à síntese
hegeliana (PTP:158). Em sua crítica, Kierkegaard teria atacado, fundamentalmente, o
mesmo problema que Schelling confrontou: a natureza alienada e irreconciliada da
existência:
O homem se encontrava na trágica situação em que o mal era
inevitável. Essa contradição experimentada na existência queria dizer
que Hegel confundira a realização essencialista com alienação
existencial [...] Kierkegaard dizia que a humanidade vive nesse estado
de alienação e que a construção de Hegel de séries constantes de
sínteses, nas quais a negatividade da antítese é superada no processo
do mundo só seria verdadeira no mundo das essências [...] Hegel
apenas fizera confusão entre o processo dialético da lógica e
movimento real da história [...] Enquanto a reconciliação se passa no
processo dialético da vida divina, não é jamais realidade no processo
externo da existência humana (PTP:160).
Talvez as observações de Tillich, nesse ponto, sobre os “processos na vida
divina” devam mais a Schelling do que a Kierkegaard, propriamente. Mas o seu
argumento principal está claro: “[...] Hegel era criticado por ter feito essa confusão
fundamental entre essência e existência” (PTP:160). Então o ponto principal de Tillich,
no que diz respeito a Kierkegaard, é que este estava por demais consciente da realidade
da alienação existencial para admitir que a reconciliação seja uma realidade presente.
Isso é muito importante porque, como veremos, a noção de existência é a categoria
principal de Tillich para expressar filosoficamente a idéia cristã de Queda.
Kierkegaard também contribuiu para a noção tillichiana de angústia (angst). A
angústia seria fruto do sentimento de que a realidade está irreconciliada. O homem
138
percebe a sua finitude, e percebe a sua separação do infinito. Isso produz a solidão, a
ansiedade e o desespero. Segundo Tillich, Kierkegaard distinguiu entre duas formas de
angústia: a primeira estaria relacionada à explicação existencial da Queda do homem,
construída por ele. Kierkegaard usou o mito bíblico de Adão e Eva para explicar a
ansiedade diante da situação em que o indivíduo precisa usar a sua liberdade, mas
percebe que a sua decisão o coloca em risco de perder a identidade (PTP:161). A
decisão de se realizar existencialmente, de “ser”, sempre acontece e é a nossa Queda,
não importando qual seja, desde que no exercício da liberdade há uma afirmação de
autonomia (PTP:162). A Queda produz culpa, e introduz outra forma de angústia: o
desespero da culpa, da qual não podemos escapar. Tillich observa ainda que, para
Kierkegaard, o pecado é resultado da liberdade humana, e jamais de uma necessidade
natural. Ele é inexplicável, pois. A Queda é um salto irracional – como tudo o que
pertence à existência (PTP:162-163).
Há, também, uma referência de Tillich a Nietzsche, não em uma discussão
explícita sobre pecado ou Queda, mas sobre as ambigüidades da vida. Tillich explica
que Nietzsche compreendeu que todos os processos vitais envolvem uma combinação
de elementos criativos e destrutivos. Seria o caráter simultaneamente divino e
demoníaco da vida. Tillich o contrasta com a racionalidade comedida e vitoriosa de
Kant, Hegel ou Locke, como um pensador aberto à vitalidade em sua ambigüidade
(PTP:187). O contexto da discussão de Tillich é o pensamento voluntarista, a partir de
Schopenhauer, que Tillich conecta com Agostinho, Lutero, Böhme e Schelling, de
modo que devemos compreendê-la do ponto de vista de seu significado teológico, da
relação entre o mal existencial e Deus.
53
A referência é importante porque Tillich usa a
53
Tillich nos diz que é possível traçar uma linha conectando Schopenhauer a Whitehead, passando por
Nietzsche, Bergson, Heidegger e Sartre, e que o próprio Schopenhauer dependia de Schelling. Assim,
“Todos eles vêm da poderosa filosofia da vontade de Schelling” (PTP:183).
139
noção de ambigüidade para descrever a experiência existencial no terceiro volume de
sua sistemática.
Já mencionamos a importância de Kant para a noção tillichiana de finitude. Ao
discutir o tema em Existencial Philosophy, Tillich cita as contribuições de Schelling e
Kierkegaard, de Feuerbach, Marx e Nietzsche, mas concentra-se em M. Heidegger.
Segundo ele, Heidegger tenta interpretar a filosofia de Kant em termos existenciais,
transformando a pergunta epistemológica de Kant. Tillich cita Heidegger: “O quanto
deve estar equipado este ser finito que chamamos homem a fim de estar consciente de
um tipo de Ser que não é o mesmo que ele próprio?” A explicação do processo
cognitivo revelaria exatamente que uma ontologia só é possível quando parte da
realidade da finitude humana:
Tal ontologia pode ser considerada uma doutrina da natureza humana
[...]. Uma doutrina ontológica do homem desenvolve a estrutura da
finitude como o homem a encontra em si mesmo como o centro de sua
existência pessoal. Ele apenas, entre todos os seres finitos, é
consciente de sua finitude; assim o caminho para a ontologia passa
através da doutrina do homem (MW1[EPh]:367).
Quanto à alienação existencial, teria contribuído, também, ao mostrar que o ato
culpado já pressupõe uma condição de culpa original, e que a finitude está
inescapavelmente unida à angústia existencial e à culpa (MW1[EPh]:369-370).
Finalmente, seria uma herança comum dos pensadores existencialistas a tendência de
unir finitude e alienação (em linguagem tradicional, criaturidade e queda):
Tanto Schelling como Kierkegaard tentam distinguir
“finitude” de “alienação” e “estranhamento”. Mas nenhum realmente
tem sucesso; o caráter finito da experiência pessoal imediata torna a
“Queda” praticamente inescapável. Nietzsche, Heidegger, Jaspers e
Bérgson nem mesmo tentam fazer uma distinção. Eles descrevem a
experiência imediata em termos de finitude e culpa – isto é, em termos
trágicos (MW1[EPh]:369-370).
Diferentemente dos três momentos que discutimos anteriormente – a
controvérsia antignóstica, a controvérsia pelagiana, e a Reforma, a contribuição da
140
modernidade não se deu em termos de reflexões dogmáticas, mas de desdobramentos
filosóficos das idéias cristãs de pecado, dentro de contextos intelectuais e espirituais
muitas vezes estranho ao cristianismo pré-moderno. Poderíamos dizer que os Pais
antignósticos, Agostinho e os Reformadores contribuíram com Tillich no que se refere à
reflexão dogmática, enquanto que os pensadores modernos, como os iluministas em
geral, Kant, Hegel, Schelling, Marx, Kierkegaard, Nietzsche, e Heidegger contribuíram
com interpretações filosóficas renovadas da finitude e da experiência humana do mal,
que Tillich utilizou para desenvolver a sua própria hamartiologia. Vamos agora dar uma
atenção maior ao pensamento de Schelling sobre o assunto, tendo em vista a sua
importância declarada pelo próprio Tillich.
2.2.5. A Contribuição de F. W. J. Schelling, a partir da Leitura de Tillich
Friedrich W. J. Schelling representou a conclusão do idealismo alemão, na
medida em que o desenvolvimento da filosofia da identidade conduziu a um
reconhecimento da necessidade de reorientar o pensamento filosófico em busca de uma
consideração atenta da realidade, deixando para trás o problema dos limites e da
estrutura da razão para pensar aquilo que é dado à razão. Em Schelling, como o indicará
Tillich, mais tarde, a existência torna-se o grande problema teórico, e uma consideração
renovada é dada à religião. Segundo Stone, foram determinantes para este salto
qualitativo o reconhecimento da inacessibilidade teórica da realidade suprema, e a
realidade da Queda e da separação moral, que quebra a coerência de qualquer sistema
centrado na necessidade racional. Essas “anomalias” levaram Schelling a uma transição
da “filosofia negativa”, centrada nas essências, para uma “filosofia positiva”,
interessada em lidar racionalmente com as realidades externas à razão, isto é, com a
141
existência, que englobaria a mitologia e a revelação, e as realidades da Queda e também
da Redenção (Stone, 1984:4-7).
Tillich escreveu dois trabalhos significativos sobre Schelling. O primeiro foi a
sua dissertação de doutorado, apresentada em 1910 em Breslau, sob o título “Die
religiongeschichtliche Konstruktion in Schellings positiver Philosophie”, e traduzida
em 1974 por Victor Nuovo como The construction of the history of religion in
Schelling’s Positive Philosophy. A segunda dissertação de Tillich sobre Schelling foi
apresentada em Halle, em 1912, sob o título “Mystik und Schuldbewusstsein in
Schellings philosophischer Entwicklung”, recebendo tradução inglesa por Victor Nuovo
em 1974 (Mysticism and guilt-consciousness in Schelling’s philosophical development).
Segundo Nuovo, esta obra teria sido mais valorizada por Tillich que a primeira
dissertação, e vista por ele como sua interpretação definitiva de Schelling. Evidências
disso seriam a referência mais abundante a esta obra no corpus Tillichiano, e até mesmo
a sua opção por incluir apenas a segunda dissertação na edição de sua “opera collecta”
(Gesammelte Werke), em cuja introdução ele observa:
A obra sobre Schelling é minha dissertação para a
licenciatura em teologia, que se seguiu à minha tese doutoral sobre
Schelling. A influência de meus estudos sobre Schelling sobre todo o
meu desenvolvimento posterior é muito forte. Diferentes trabalhos
tratando o tema têm demonstrado claramente tal influência, e feito me
consciente do que, em meu próprio trabalho, eu nunca fiz objeto de
investigação [...] O tópico específico da presente obra sobre Schelling
tem também provado a sua significância contínua. Mesmo hoje, os
problemas do misticismo e da consciência de culpa desempenham um
papel decisivo na tarefa teológica tradicional e no encontro do
Cristianismo com as religiões Asiáticas (MGC:9).
54
O trabalho tem, pois, uma grande relevância, na interpretação do próprio
Tillich.. Deste modo, vamos ocupar algum tempo expondo seu argumento geral,
inicialmente, e nos concentraremos em seguida na parte III.I da dissertação, na qual se
54
A citação de Victor Nuovo foi retirada da introdução ao volume 1 das Gesammelte Werke de Paul
Tillich (Stuttgart, 1959).
142
encontra a análise das idéias de Schelling sobre a natureza do pecado. E, desde que a
primeira dissertação traz também contribuições significativas para o tema, mas de
menor monta, vamos nos referir a ela apenas de forma complementar.
Na dissertação Tillich argumenta que a filosofia positiva de Schelling pode ser
compreendida como um esforço por superar o conflito de essência e existência, filosofia
e religião, necessidade e liberdade, por meio de uma forma particular de filosofia da
identidade. Uma contradição entre duas realidades de inquestionável validade e
amplitude total pode ser solucionada apenas se postulamos uma totalidade ou princípio
superior, no qual ambas se tornam uma só. Mas se as duas realidades em contradição
são completas em si mesmas, não é possível um terceiro princípio externo. A unidade a
ser encontrada deve ser interna, e as duas realidades devem ser de substância idêntica.
Temos, então, a noção de identidade: não a igualdade, a indiferença (sameness),
mas a unidade dos distintos; a identidade pressupõe a polaridade na qual o sujeito
absoluto é idêntico ao objeto absoluto. A polaridade não pode ser a diferença
qualitativa, isto é, de essências, pois isso destruiria a identidade. Apenas uma diferença
quantitativa, formal, poderá ser simultaneamente a identidade absoluta (MGC:70).
Temos, pois, que a identidade deve envolver identidade material e contradição formal
(MGC:71).
O sistema de identidade de Schelling seria a solução para o problema da
contradição: a essência deve ser um princípio que possa se duplicar e pôr-se em
contradição formal, mantendo sua identidade. Isso traria uma solução interna para o
problema da contradição de dois absolutos. A explicação deverá, pois, buscar uma
identidade de essência, nos dois princípios contraditórios, que exista sob duas formas
distintas.
143
Ora, os dois princípios que Schelling pretende reunir em sua filosofia positiva,
segundo Tillich, são, o misticismo e a consciência de culpa (Guilt-consciousness). O
conflito destes dois pólos se encontra refletido na antinomia entre a verdade e a
moralidade, entre senso de unidade e experiência de separação. Na religiosidade
mística, o princípio da verdade é concebido como a identidade absoluta e imediata entre
Deus e o homem (MGC:30).
55
A razão também existe na identidade: “A identidade
repousa sobre este fundamento: que o sujeito particular empírico descobre em si mesmo
a necessidade da razão pela qual ele transcende todas as particularidades” (MGC:38). A
razão conduz à síntese, como mostrou Kant; conduz ao reconhecimento da identidade, e
à confirmação do misticismo.
O princípio da separação se revelaria na moralidade. Sempre que, na religião, o
arrependimento é apresentado como a forma normal de relação com Deus, temos o
princípio da separação na consciência de culpa. O pecado, como causa de separação,
não pode ser construído como uma antítese necessária a uma síntese, pois isso tornaria o
pecado racional, necessário, assim como o arrependimento. A consciência de culpa é a
expressão religiosa da contradição entre Deus e homem (MGC:31). Em Kant, a religião
é concebida a partir do princípio da separação. O conceito de identidade no interior da
razão crítica conduz a uma idéia absoluta e racional, que não é identificada com Deus;
seria a “consciência em geral”. Sua idéia positiva de Deus não é construída de seu
conceito de verdade, portanto, mas de sua formulação do problema moral, isto é, do
princípio de separação (MGC:37). Isto representa, evidentemente, uma antinomia no
pensamento kantiano.
55
Segundo Tillich, haveriam duas formas do princípio de identidade – a socrática, como identidade de
universais e particulares, e a agostiniana, como identidade de sujeito e objeto. Uma síntese das duas
formas de identidade teria sido obtida na idade média, por meio da noção de coincidência dos opostos
(coincidentia oppositorum) de Nicolau de Cusa (MGC: 28-29).
144
Que essência ou princípio fundamental poderia ser a substância,
simultaneamente, da identidade entre homem e Deus, como expressa no misticismo, e
como procurada nos processos racionais, pertencente à ordem do necessário, isto é, da
Natureza, mas também da separação entre homem e Deus, como expressa na
religiosidade moral, na consciência de culpa, pertencente à ordem do contingente, isto é,
da Liberdade? Que princípio reuniria Natureza e Liberdade? De acordo com Tillich,
Schelling encontrará a solução postulando a Vontade, poder de autocontradição, como
princípio metafísico supremo.
56
Nuovo sintetiza a explicação de Tillich:
Quando esta vontade é feita um princípio metafísico
supremo, a antítese de misticismo e consciência de culpa, de
identidade e diferença, e assim por diante, é vencida, pois é
característico da vontade no segundo sentido (formal, de poder de
auto-contradição) que ela pode contradizer-se sem cessar de ser auto-
idêntica (MGC:12)
Isto é, a Vontade absoluta, por ser vontade, tem o poder de se pôr contra si
mesma, tornando-se dupla, polarizada, sem que com isso os dois pólos constituam duas
essências distintas. Nesse caso, então, teríamos exatamente a combinação de identidade
essencial e contradição formal que torna tal princípio adequado para explicar a relação
interna entre Natureza e Liberdade, essência e existência, religião mística e religião
ética, filosofia e religião em geral. Vamos expor esta concepção com mais detalhes
abaixo, enquanto nos debruçamos sobre a concepção Schellingiana de pecado, na
interpretação de Tillich.
Ao longo da segunda seção da dissertação, Tillich apresenta o desenvolvimento
do conceito de misticismo de Schelling em seu primeiro período, e ao final introduz os
efeitos deletérios do misticismo da Natureza e da teoria da identidade sobre a idéia de
56
“Uma dos maiores reivindicações da interpretação de Schelling por Tillich é que Schelling pertence à
grande tradição voluntarista, derivando-se de Agostinho, por meio dos Franciscanos Espirituais e
Boaventura, Scotus, os místicos Germânicos, Lutero e Boehme, que enfatizaram o primado da vontade
sobre o intelecto [...]. Tillich vê a continuação dessa linha voluntarista em Schopenhauer, Nietzsche,
Bergson, Heidegger, e assim por diante” (Stone, 1984:13).
145
moralidade e a consciência de culpa, que tornarão necessária a re-síntese no segundo
período de Schelling, em sua filosofia positiva. A teoria da identidade levaria a uma
concepção insuficiente de pecado: “O que nós experimentamos como defeito ou pecado
é apenas um produto da nossa imaginação, que se ergue da nossa inclinação a fazer
comparações e a formar conceitos e normas abstratos e universais” (MGC:86).
O misticismo é monista. Em Deus, e diante dele, não haveria universais, nem
separações. O homem injusto é tão culpado quanto a pedra, uma vez que ambos são
partes necessárias do mundo, cujos lugares como tais devem ser reconhecidos e aceitos.
Em tudo o que acontece, o absoluto atua, garantido a harmonia de todos os eventos.
Tudo é visto e aceito em relação à ordem da natureza e da necessidade. Nessa percepção
de mundo, a consciência de culpa constitui uma falsa abstração, uma imaginação
fantasiosa; o verdadeiro pecado, a privação da realidade.
Mas exatamente esta conseqüência final traz dentro de si mesma a
semente da mudança. De onde a imaginação (da contradição e do
pecado) nasce? Pode não haver pecado moral, mas para provar isto,
torna-se necessário postular um pecado intelectual. Há um pecado
intelectual sem uma base moral? (MGC:87)
Duas percepções de Schelling, portanto, o levariam até o desenvolvimento da
filosofia positiva, em seu segundo período: a doutrina da queda do mundo das idéias,
que indicava a possibilidade da emergência da contradição e a realização da
identidade,
57
e a noção do pecado intelectual, que exigiria o reconhecimento de uma
base moral, isto é, uma base para além da natureza, na liberdade moral. Este seria,
então, o “triunfo das categorias morais”: elas sempre impediriam o desenvolvimento do
sistema de identidade, levando-o ao colapso (MGC:88).
57
“Em sua obra Filosofia e Religião, Schelling responde com a antiga doutrina da queda do mundo das
idéias. As idéias, em virtude de sua identidade com o absoluto, e capacitadas com o poder de afirmar a si
mesmas, podem romper com a sua unidade com o absoluto, podem afirmar suas próprias vidas à parte da
identidade com o universal e, assim, cair sob o domínio da individualidade e da egoidade. Assim aparece
o mundo das coisas, das categorias, do espaço e do tempo” (MGC:77).
146
Reconhecida a realidade e gravidade da consciência de culpa, Schelling foi
obrigado a lidar com os problemas da liberdade, da moralidade e do pecado,
inaugurando-se o seu segundo período. Podemos, portanto, passar agora ao que nos
interessa mais especificamente: o problema do pecado em Schelling.
Na terceira parte de sua dissertação (“The Synthesis of Mysticism and Guilt-
consciousness in Schelling’s Second Period”) Tillich introduz a solução de Schelling
para o mistério da consciência de culpa e separação, mostrando que a liberdade para se
separar e tornar-se um particular distinto (um “si-mesmo”) em oposição à identidade só
pode advir do interior do próprio absoluto (MGC:89), e que somente a liberdade, em
sua essência, reúne em si a necessidade e a contingência. Assim, diz Schelling (citado
por Tillich), “A Vontade é o ser primordial, e todos os predicados se aplicam a ela
apenas: ausência de fundamento, eternidade, independência de tempo, auto-afirmação”
(MGC:91).
58
Só ela, a Vontade, pode entrar em contradição consigo mesma; portanto,
nela temos a mais alta identidade: a identidade de essência e de contradição, de
racionalidade e irracionalidade. A Vontade, elevada como princípio metafísico absoluto,
soluciona o problema da relação entre misticismo e consciência de culpa.
Assim há a essência e a contradição, e sua identidade em
todas as coisas. Quanto maior a essência, maior a contradição, e mais
alta a síntese. Na síntese absoluta a essência se põe por toda a
eternidade contra a contradição absoluta, liberdade contra necessidade,
o racional contra o irracional, luz contra as trevas. Entretanto, esta
síntese é Deus (MGC:92).
A contradição, em Deus, é uma realidade fundamental. A consciência, em Deus,
nasce de sua separação de si mesmo, quando a Vontade divina se separa de si mesma,
de modo que o Ungrund (o “sem-fundo”) se polariza em um princípio de Trevas e um
de Luz, o Não e o Sim. O Sim é o Self divino, o ideal, a Liberdade, e o Não é a Natureza
58
“Schelling rejeita enfaticamente todo conceito de Deus que una Deus ao ser, que venha a privá-lo de
sua soberania sobre o que é, seu ‘supra-ser’ [über-Sein], por alguma forma de necessidade racional”
(MGC:99).
147
em Deus, o real, a Necessidade, o não-ego (MGC:94-95). Na eternidade, os dois
princípios estão reconciliados por um terceiro princípio: o espírito, que é o amor. O
amor é a “terceira potência”, a unidade das duas primeiras.
O homem traz também em si a unidade das potências. Ele é Natureza,
Liberdade, e também a unidade de ambas, pois é, como Deus, espírito. Entretanto, o
homem tem um eu (selfhood), uma particularidade independente de Deus, e
temporalmente posicionada. A particularidade divina é eternamente anulada pelo amor,
mas no homem ela não está completada, pois ele existe como liberdade finita e
temporalizada. Assim, enquanto os princípios existem indissoluvelmente unidos em
Deus por uma ligação eterna, no homem essa conexão é solúvel; ele é o anti-divino,
tendo a potencialidade de se opor a Deus (CHR:72). Nem mesmo a natureza pode
realizar esta dissolução, pois nela não há a síntese das potências pelo amor; na natureza
não há espírito. Mas “O que não é possível nem em Deus, nem na natureza, pode
acontecer nele: a separação dos dois princípios” (MGC:103). Esta condição elevada,
precisamente, é que dá ao homem a possibilidade de pecar:
O pecado é a tentativa do indivíduo de resistir ao recorrente
processo de anulação de todos os indivíduos na unidade da síntese
absoluta. O pecado é o eu (selfhood) que escolhe estabelecer a si
mesmo como eu; pecado é a contradição potenciada [der potenzierte
Widerspruch], é a contradição que põe a si mesma como contradição
com o poder da essência [...] A contradição imediata não é pecado;
antes, a contradição do espírito contra a essência. O pecado é a
contradição que veio a se tornar espírito (MGC:104).
Na concepção Schellingiana, a essência do pecado se encontraria, portanto, na
existência de um eu particular, que afirma a sua vontade particular de tal modo que se
torna possível, no tempo, a rejeição da Lei e da Razão, e a conseqüente consciência de
culpa. A mera contradição imediata não é pecado, pois é a condição da riqueza da
identidade, da reconciliação do espírito; é um elemento das três potências que
constituem a divindade no seu devir eterno. Mas no homem o espírito pode escolher
148
afirmar sua identidade particular contra a sua essência. A auto-afirmação como
liberdade finita rompe a unidade dos princípios, possibilitando a escolha moral que, em
si mesma, pressupõe uma separação da vontade e uma independência espiritual. O “ego
auto-afirmatório” (self-positing ego) seria o próprio princípio da Queda do homem:
A proeminência que Schelling deu ao princípio Fichteano do
ego auto-afirmatório, elevando-o como o princípio da Queda do
homem, mostra o profundo significado que ele procurou relacionar a
este ato [...] o ato auto-afirmatório do indivíduo como tal é a essência
do pecado. Assim, o ego individual como mero indivíduo é uma
criação do pecado, alguma coisa em e, por si mesma, culposa. A
consciência contraditória do homem, de que ele é o que é
necessariamente, mas assim mesmo culpada, prova a correção desta
doutrina da Queda transcendental (MGC:107-108).
Não a mera finitude seria pecado, pois a Natureza não é pecado. Nem a
contradição, como potência divina, seria pecado. O pecado se encontra na liberdade
finita, para falar Tillichianamente. O pecado é o centramento de um ente que é espírito;
é o surgimento da contradição como espírito, como individualidade consciente, capaz de
se rebelar contra o amor. Queda é escolher ser um ente particular, sujeitando-se ao
princípio de separação (CHR:74). Não é a mera rejeição do amor, o pecado; mas a
condição existencial na qual há um ego individual que pretende manter sua
particularidade contraditória. A Queda é, assim, transcendental; pois as condições de
possibilidade da existência de um ego individual auto-afirmatório são simultaneamente
as condições de uma separação pecaminosa entre a liberdade finita e seu fundamento
divino, as condições de uma união mentirosa da potência divina de contradição com a
finitude.
59
59
Schelling se choca, então, com o espírito do iluminismo – e, aqui, com a filosofia de Fichte: “O
princípio do iluminismo é o ego subjetivo, reflexivo, auto-absolutizante, que afirma a si mesmo em
oposição à natureza. Mas, consequentemente, o princípio original do pecado foi transformado no
princípio da filosofia, pois o pecado é a emergência da identidade que foi posta originalmente. Mas a
filosofia da natureza é ‘devoção à natureza [...]’ Em contraste com isso, o princípio [de Fichte], de que o
homem expressa a imagem da existência de Deus, é arrogância” (MGC:59).
149
O pecado não participa – e nisso Schelling se aproxima da tradição cristã – da
necessidade que envolve o aparecimento da potência negativa em Deus, pois esta é da
essência divina. O pecado não pode ser deduzido de condições que o tornem racional.
Todas as tentativas de deduzir o pecado se reduziriam a duas: buscar o princípio do
pecado na Natureza, ou mostrar que ele é necessário ao propósito de Deus, isto é,
teologicamente bom. Mas ambas as soluções destroem a possibilidade de um Não
totalmente completo e realizado ao pecado, devendo ser rejeitadas (MGC:105). O
pecado se caracteriza por sua irracionalidade e arbitrariedade. Mas, ao mesmo tempo,
não é um absoluto nada: “O pecado não é algo negativo, mas também não é
absolutamente positivo. Antes, é aquilo que não é, mas deseja ser. Assim, é uma
mentira” (CHR:74).
Distinguindo entre contradição, que é uma potência divina, e pecado, que é um
ato do espírito de entrar em contradição para manter sua particularidade (ainda que este
ato viva do poder divino da contradição que habita o eu particular), compreende-se o
significado da morte. Ela seria a revelação da falsidade da união entre contradição e
particularidade. A união de contradição e essência não é falsa, pois ela, de fato, ocorre
em Deus, como espírito; mas a contradição realizada pela particularidade, na finitude, é
uma contradição “sem futuro”, por assim dizer; é pecado (MGC:106-107). Na morte
evidencia-se a negação de toda particularidade, do eu finito, e a verdade da identidade
final da contradição com a razão, de Natureza e Liberdade.
No homem o eu se descobre e ganha a capacidade de escolher, e de escolher
contra ou a favor do amor. Nele a contradição emerge na união falsa com a
particularidade, tornando-se espírito, e realizando o egoísmo, o tempo e a mortalidade.
Mas nessa união mesmo, a essência absoluta mostra no homem seu poder; pois a
Vontade é que atua nele, como contradição particularizada. A contradição do ser finito
150
depende, a todo momento, da união com a essência. Assim, a consciência de culpa
inclui, em si mesma, a consciência de uma unidade interna com Deus (MGC:108).
O pecado traz a ira e o juízo de Deus, mas também a sua graça salvadora, nos diz
a religião. Schelling explica o significado filosófico da concepção religiosa. A
contradição divina leva à personalização de Deus, dentro do processo eterno; pois não
pode haver um eu sem uma oposição igual, que o defina. A vontade de contradição é
divina, mesmo no homem, essencialmente falando; a vontade de pecar é, como tal,
divina; mas como ela se encontra unida à particularidade individual, torna-se anti-
divina. E Deus responde ao pecador de uma forma dupla, com um Sim e um Não, que a
religião expressou em termos de Ira e Graça. De acordo com Tillich, o sucesso de
Schelling em expressar a unidade do Sim e do Não de Deus ao pecado seria a mostra da
síntese de misticismo e consciência de culpa.
Há, em primeiro lugar, uma unidade da vontade de pecar e da vontade da ira
divina. No mal há uma contradição que “nega e devora continuamente a si mesma”, de
modo que, na luta da criatura por ser independente o limite da criaturidade é negado. O
mal é, pois, nas palavras de Schelling, “a fome de egoísmo que, na medida em que
renuncia à totalidade e à unidade, torna-se mais necessitada e mais pobre, mas
exatamente por esta razão mais cobiçosa, faminta e mais maligna” (MGC:109).
Separando-se do bem para ser mal, o mal não pode mais ser mau; e na morte, totalmente
separado, permanece apenas como eterna fome e sede de realidade. Assim a contradição
se realiza absolutamente quando se elimina absolutamente; na sua máxima malignidade
o mal revela-se nadificando-se:
Assim, de acordo com Schelling, a ira de Deus não é um
julgamento externo ao pecado, mas o próprio pecado, considerado do
ponto de vista de sua auto-destruição imanente. Mas no próprio ato de
permitir ao pecador alimentar a sua vontade de pecar e de afirmar sua
vontade como vontade, Deus o nega (MGC:110).
151
Tillich observa, neste ponto, que o argumento de Schelling representa uma
realização importante, ao reunir a noção de culpa e juízo divino, típica da religiosidade
ética, ao misticismo, negativamente, quando demonstra a unidade da contradição com
Deus, e a unidade do pecador com Deus, mesmo quando este se coloca sob a ira divina.
E, por outro lado, ao transformar a realidade e autonomia do pecado, de uma prova
contra Deus, como a encontramos nas discussões de teodicéia, em um testemunho em
favor de Deus (MGC:110).
Há, além da unidade de Ira de Deus e pecado, a unidade de Graça divina e
pecado, manifesta na idéia de encarnação. Deus afirma a vontade de ser-ego, de
personalidade, ao se tornar um indivíduo. A individualidade humana, o “eu centrado”, é
pecado, sujeito à ira de Deus, e só pode superar o estado de culpa e reunir-se à Vontade
universal na auto-anulação mística. Assim, tornando-se um indivíduo Deus se torna
sujeito à Ira.
A Cruz de Cristo é a solução desta contradição suprema, isto
é, o auto-sacrifício e auto-anulação da vontade de egoidade, elevada
ao absoluto, vontade divina de poder. “O verdadeiro infinito entrou no
finito, não para deificá-lo, mas para sacrificá-lo a Deus em sua própria
pessoa, e assim reconciliá-lo” (Schelling). A vontade da contradição
que se tornou espiritual é ao mesmo tempo afirmada e negada pelo
próprio Deus, e de um modo absoluto: este é o mistério da Cruz e a
solução positiva do problema do misticismo e consciência de culpa
(MGC:111-112).
Temos, portanto, que a contradição é superada negativamente pela auto-
destruição da egoidade, por meio de sua separação da essência, na qual ela se afirma e
ao mesmo tempo se auto-destrói, e é destruída por Deus (Ira) e, positivamente, pela
auto-anulação da egoidade em comunhão com a essência que, ao tornar-se individual,
anulou a si mesma (graça). Com isso, Schelling pensa o Sim absoluto da graça e da
identidade com o Não absoluto da culpa e da Ira. Até mesmo a contradição da
consciência de culpa existe na identidade com Deus, e tem na Cruz de Cristo a solução
152
da graça que reúne o que foi separado (MGC:112-113). E a identidade revela-se, de
fato, como algo mais que a indiferença; é a unidade rica da reconciliação:
O significado eterno do processo do mundo é que a indiferença se
torna amor. Mas o amor é a união dos princípios [potências], isto é, a
sua identidade. A identidade é o propósito divino absoluto. Assim, na
eternidade, o misticismo triunfa sobre a culpa (MGC:113).
Embora um tanto longa, a exposição de Schelling é de importância fundamental,
pois mostra com clareza a conexão entre a doutrina do pecado do filósofo com o seu
esforço por solucionar o problema da relação entre Natureza e Liberdade, Razão e
Irracionalidade, Necessidade e Contingência. A mesma tensão surge nos textos de
Tillich, de forma mais explícita, em sua concepção sobre a distinção entre Essência e
Existência que ele, admitidamente, deriva de Schelling. A essência é algo que pode ser
atingido por meio da reflexão filosófica, mas a existência é o não-necessário, o que é
introduzido pela liberdade e que, portanto, não pode ser racionalmente derivado.
A solução Schellingiana de distinguir entre as duas potências – a potência de
regramento, o logos, e a potência de contradição, de liberdade, e de “dramatizar” a
relação entre as potências descrevendo a história do mundo como a realização temporal
da história de Deus encontra-se também em Tillich,
60
refletindo-se em sua noção de
Queda.
Uma diferença entre Hegel, por um lado, e Schelling e Tillich, por
outro, é que, para Hegel, a atualização da reunião está agora ocorrendo
temporalmente. Para Schelling e Tillich há uma ruptura entre o divino
e o humano de tal modo que há uma unidade transtemporal das
potências, no interior da vida divina, enquanto a reunião dos
princípios não é realizada dentro do tempo presente, exceto por uma
antecipação da Era do Espírito, em Schelling, e fragmentariamente na
Presença Espiritual, em Tillich (Stone, 1984:22).
60
Deve-se destacar, no entanto, que, embora Tillich concorde com Schelling em identificar uma estrutura
triádica na vida, a partir de uma interpretação da trindade como a unidade de três potências, há diferenças
significativas, indicadas por Jerome Stone. Em primeiro lugar, Tillich não vê um princípio fundamental,
de Indiferença absoluta, antes da diferenciação das potências. Elas coexistem eternamente. Em segundo
lugar, a primeira potência de Tillich não é a “contradição”, um princípio egocêntrico e irracional; é antes
o poder de ser, simplesmente. Há uma concordância quanto à segunda potência (logos) e à terceira
(espírito-amor), que reúne as duas primeiras potências. A divindade é, tanto para Tillich como para
Schelling, um devir eterno, uma vida de tensão e resolução (Stone, 1984:18-21).
153
Tillich, como Schelling, não reconhece uma reconciliação temporal das
potências. Conforme a antropologia de Schelling, no homem, como ser particular, união
falsa de vontade de contradição e particularidade, a potência de desregramento e
liberdade não se manifesta temporalmente, reconciliada. Assim, a existência humana é
alienada, por princípio. Esta posição reflete-se, em Tillich, no salto que separa a
essência da existência, sendo o campo da essência o campo racional, e o da existência o
campo da liberdade, da experiência de culpa, de separação, de Ira divina e de
reconciliação amorosa; um campo que é, por definição, uma condição de Queda.
Assim como Schelling sustenta uma Queda Transcendental, e uma culpabilidade
intrínseca, se não à finitude, à existência de um ser centrado, de um espírito capaz de se
auto-afirmar, em Tillich a Queda reflete-se na “transição essência-existência”. Como
veremos, para Tillich a própria existência é uma condição caída, desde que a essência
jamais é algo totalmente presente na experiência humana, e o senso de unidade com
Deus jamais é plenamente dado à consciência. A partir das concepções de Schelling,
percebemos também porque as concepções de Tillich sobre a individualidade humana
dão a impressão de ser por demais pessimistas no tocante à culpabilidade da consciência
humana, que aparece quase inevitavelmente caída. Por outro lado, o sistema de
Schelling mantém a “gratuidade” e a positividade do mal, sem torná-lo com isso uma
realidade independente e substancial. O mal Schellingiano é claramente dependente do
bem. Essa característica é afável à noção Agostiniana de mal, e foi claramente
transmitida para o sistema de Tillich.
Podemos dizer de um modo geral, que o desenvolvimento das idéias de
Schelling, em seu segundo período, a partir da elaboração da filosofia da Vontade – nos
termos da interpretação de Tillich – tiveram papel fundamental ao fornecer uma
154
reinterpretação das idéias de Queda e pecado, no contexto do idealismo alemão e de
uma filosofia da identidade, que serviriam como arcabouço para a ontologia de Tillich e
para a sua reinterpretação da formulação agostiniana clássica da Queda/Pecado
Original.
2.2.6. Síntese
O exame da compreensão tillichiana da teologia cristã do pecado e das
contribuições modernas nos mostra que Tillich desenvolveu suas idéias sobre Queda e
pecado de um modo consciente. Vamos considerá-la a partir dos nossos cinco termos de
comparação: (1) Separação Criação/Queda: percebe-se a sua adesão ao princípio
antignóstico da bondade essencial da criação, e da separação entre criação e Queda. (2)
Universalidade do Pecado: Tillich também se alinha explicitamente no campo
agostiniano, ao rejeitar afirmar a participação da liberdade humana no pecado
eliminando a sua dimensão “trágica”, isto é, a universalidade do pecado. Além disso,
Tillich concorda com Agostinho quanto à insubstancialidade do mal e quanto à perda da
liberdade com o pecado, e a dependência absoluta da graça para a salvação. Mas rejeita
o mecanismo agostiniano de transmissão, optando por uma forma de origenismo. (3)
Relação Natureza/Graça: Tillich não esconde a sua aderência à visão agostiniana e
protestante de uma depravação total. A despeito da longa tradição, remontando a Irineu,
em parte, a Agostinho, a Anselmo e Tomás, Tillich rejeita a idéia católica de donum
superadditum como explicação da relação entre natureza e graça, defendendo a
restitutio ad integrum protestante. Assim, vê o pecado como corrupção positiva da
natureza humana. Além disso, mostra seu apoio a uma compreensão soteriológica
Luterana, afirmando que o homem é pecaminoso, em sua concupiscência, e continua na
concupiscência mesmo após o perdão divino. (4) Natureza do Pecado: no que diz
155
respeito à essência do pecado, Tillich é agostiniano, explicando-o como hybris e
concupiscência. Mas percebe-se uma grande valorização da compreensão luterana do
pecado como incredulidade, e do ataque calvinista à idolatria.
Finalmente (5) Tillich mostra-se completamente à vontade com uma
interpretação existencialista do pecado, aceitando as críticas modernas a noções pré-
científicas sobre a origem e propagação do pecado. No idealismo alemão (Kant, Hegel e
Schelling), ele encontra uma disposição “pós-moderna” de reintroduzir a reflexão sobre
o mal na filosofia, reagindo ao otimismo moderno. E no movimento existencialista,
como um todo, encontra categorias ontológicas para expressar o que o cristianismo
afirma simbolicamente: liberdade humana, finitude, angústia, alienação.
Em Schelling, especificamente, vemos que Tillich encontra um mestre
importante, capaz de estabelecer uma base filosófica para a reflexão teológica (e
hamartiológica), em sua clara distinção de essência e existência, por meio da filosofia
positiva. E na visão Schellingiana de Deus, com suas raízes profundas no misticismo
luterano alemão e na tradição voluntarista, Tillich encontra uma explicação para o
problema da origem do mal, como proveniente de uma negatividade presente no próprio
Deus. Poderíamos dizer que o pensamento existencialista e schellingiano estabeleceu
categorias modernas capazes de dar sustentação a uma reinterpretação contemporânea
da teologia do pecado protestante-agostiniana em Tillich.
156
2.3. A Interpretação Tillichiana da “Queda” na Teologia Sistemática
Paul Tillich trata a respeito da queda e do pecado de um modo abrangente e
sistemático no segundo volume de sua Teologia Sistemática, ao tratar, no capítulo I, da
“Existência e a Pergunta por Cristo”. Mas antes mesmo, no volume 1 de sua
Sistemática, Tillich trata das questões do Ser e da finitude, que formam a base para o
sua discussão sobre a Queda e, no terceiro volume, a questão retorna sob a noção de
ambigüidade. Em nossa exposição, vamos seguir aproximadamente a apresentação dos
temas na Sistemática recorrendo, quando for necessário, a outros textos importantes de
Tillich e a alguns de seus intérpretes.
Toda a exposição da teoria do pecado de Tillich neste subcapítulo deve ser lida
tendo em mente o estudo da interpretação que o próprio Tillich desenvolveu da teologia
cristã do pecado, e de sua apropriação das concepções existencialistas modernas. Os
conceitos-chave, em nossa discussão, são: (1) o não-ser, isto é, a dimensão meôntica da
divindade, (2) a finitude essencial, limitada pelo não-ser, (3) a alienação existencial
produzida pela transição essência-existência (a “espinha dorsal”), tratada no trecho mais
propriamente hamartiológico da sistemática (volume II), e (4) a noção de ambigüidade.
2.3.1. Fundamentos da Ontologia de Tillich
É impossível compreender as idéias de Tillich sobre o pecado sem uma
compreensão do lugar do não-ser em sua ontologia. Isso significa que precisamos falar
do não-ser tillichiano e, também, dos aspectos básicos de sua ontologia.
Por ontologia, Tillich refere-se à pergunta: “o que é o ser em si?” Ou seja, à
pergunta pelo ser que é a possibilidade de ser de todas as coisas, sem ser uma coisa
157
particular. É claro que seria absurdo tentar responder à esta pergunta indo além de pôr
um nome sobre tal realidade uma vez que, sendo o conceito de “ser” o mais universal
possível, não pode ser categorizado. Mas, segundo Tillich, há conceitos menos
universais que o ser, mas mais universais do que os conceitos ônticos (referentes a seres
particulares), que funcionam como mediadores para a abstração (TS:174).
Tillich distingue, a partir dessa percepção, quatro níveis de conceitos
ontológicos: (1) a estrutura ontológica básica, que seria a polaridade eu-mundo, unindo
internamente o eu centrado, consciente de si, separado das demais coisas por este
centramento, e o mundo, a unidade de uma multiplicidade de fatos na perspectiva do eu
(TS:180). A polaridade sujeito-objeto é a expressão, na razão, da polaridade eu-mundo;
(2) os elementos que constituem a estrutura básica do ser, compartilhando da polaridade
da estrutura básica. São eles: individualidade e participação, dinâmica e forma,
liberdade e destino. A estrutura de cada elemento é tal que cada pólo só tem sentido em
sua relação com o outro (TS:175); (3) o terceiro nível é constituído de conceitos que
expressam o poder de ser e a diferença entre essência e existência, que examinaremos
mais à frente. Neste nível localiza-se a noção de finitude (TS:175); (4) o quarto nível
envolve as categorias do ser e do conhecimento, que Tillich descreve como “estruturas
do ser e do pensamento finitos”: tempo, espaço, causalidade e substância (TS:175).
Estes conceitos ontológicos seriam realidades apriori: condições de possibilidade de
toda a experiência, captados por meio de uma análise crítica da experiência (TS:176).
Os conceitos ontológicos que nos interessam mais imediatamente, portanto, são
os pertencentes ao terceiro nível, isto é, os conceitos que estabelecem a distinção entre
essência e existência, envolvendo as idéias de finitude, liberdade, angústia, etc. Tillich
trata inicialmente dos conceitos do terceiro nível no capítulo 1 do volume 1 (“O Ser e a
pergunta por Deus”), sob o título “O ser e a finitude”.
158
A noção filosófica de existência possibilita tratar de modo sistemático o que
Tillich chamou, em The Nature and Significance of Existentialist Thought (1956) de
existentialia, ou existenciais. Os existentialia, ou existenciais, seriam os elementos da
estrutura da subjetividade existente, descritos por meio de características psicológicas
com sentido ontológico (MW1[NSET]:405). Tillich discute cada um dos conceitos
principais neste artigo: as idéias de finitude, de não-ser, de ansiedade, ou angústia, e de
liberdade.
2.3.2. Ser e Não-Ser
O primeiro existential tratado por Tillich na Sistemática é o não-ser. E a
primeira distinção conceitual que Tillich nos apresenta ao expor todo o assunto é aquela
entre ser e não-ser. A experiência do não-ser é fundamental, até mesmo para a
possibilidade de uma ontologia; pois a reflexão sobre o ser só se dá frente ao “choque
do não-ser”, quando o ser humano chega à consciência de que o não-ser é uma
possibilidade; que é possível “não-ser”. Experiências como a negação lógica, ou a
possibilidade de ver uma expectativa não realizada, revelam a capacidade de pensar
além do que está dado, do que simplesmente é. Deve haver, pois, uma distância entre o
homem e o seu ser – o que simplesmente “é”, sem possibilidade de mudança:
Qual é a estrutura deste ser que é capaz de transcender a situação dada
e cair em erro? A resposta é a seguinte: o ser humano, que é este ser,
deve estar separado de seu ser de tal maneira que seja capaz de olhá-lo
como algo estranho e problemático. E esta separação é real, porque o
ser humano não só participa do ser, mas também do não-ser (TS:196).
Para explicar esta experiência intrigante, Tillich apresenta uma distinção entre o
não-ser dialético e o não-ser não-dialético. O ouk-on seria o nada absoluto e, assim, o
não-ser não-dialético, sem qualquer relação com o ser, e o me-on seria o não-ser
159
dialético, o nada relativo, o que pode ser mais ainda não é. O cristianismo teria rejeitado
a noção grega de matéria meôntica, a partir da idéia bíblica de criação (creatio ex
nihilo), segundo a qual Deus criou o mundo do nada absoluto, o oukon (TS:196-197).
Mas, o que fazer com a experiência de perversão do ser, de potencialidade não
realizada, do mal, enfim? Se não há uma matéria meôntica fora de Deus, de onde vem o
mal?
Se Deus é chamado de Deus vivo, se ele é o fundamento de todos os
processos criativos da vida [...] se não existe um princípio negativo
além dele que seja responsável pelo mal e pelo pecado, como se pode
evitar que se postule uma negatividade dialética no próprio Deus?
Estas perguntas obrigaram os teólogos a relacionar dialeticamente o
não-ser com o ser-em-si e, consequentemente, com Deus. O Ungrund
de Böhme, a “primeira potência” de Schelling, a “antítese” de Hegel,
o “contingente” e o “dado” em Deus do teísmo recente, a “liberdade
meôntica” de Berdiaev – todos são exemplos do problema do não-ser
dialético exercendo influência sobre a doutrina cristã de Deus
(TS:197-198).
A citação nos ajuda a perceber a conexão que há entre a reflexão teosófica cristã
sobre Deus, recebida por Tillich, e suas idéias sobre o mal e o pecado. Daniel O’Hanlon
pergunta se o “não” na divindade é real, algo interno à natureza divina, ou apenas uma
relação das criaturas com Deus, independente da natureza divina (O’Hanlon, 1958:22).
Ele conclui com base, principalmente na sistemática, que Tillich segue Schelling em
apresentar Deus como o fundamento criativo e abismal de todas as coisas, reunindo em
si a finitude e, com ela, o não-ser, que permanece assim eternamente conquistado na
infinitude da vida divina (O’Hanlon, 1958:28-29). É claro que, de algum modo, sua
solução para o problema da negatividade se localiza no próprio Deus. Sobre isso, Tillich
escreve, em A Coragem de Ser:
Se se pergunta como o não-ser se relaciona com o ser-em-si,
só pode responder com metáforas: ser “abarca” ele próprio e o não ser.
O ser tem o não-ser “dentro” de si mesmo, de modo que é eternamente
presente e eternamente superado no processo da vida divina. A base
de tudo que é não é uma identidade morta, sem movimento e vir a ser;
é uma criatividade vivente. Ele se afirma criadoramente, conquistando
eternamente seu próprio não-ser (CS:27).
160
Trata-se da compreensão voluntarista da divindade, que estudamos
anteriormente em Tillich, presente em Agostinho, Duns Scotus, Jacob Böhme, Lutero, e
Schelling, por exemplo, que compreende a divindade de forma dinâmica, incluindo uma
“capacidade” de auto-negação, impossível numa concepção formalista ou racionalista
de Deus. O reconhecimento de um dinamismo interno em Deus se manifesta com
clareza, principalmente, no símbolo da “vida” de Deus, incluindo um “ainda-não”, uma
negatividade, e um “já”, que é o equilíbrio dessa negatividade (TS:252). E o conceito
que estabelece a mediação entre a teontologia e a hamartiologia, aqui, é a idéia de
finitude. O problema do não-ser dialético é, nos diz Tillich, o problema da finitude, pois
ela une o ser com o não-ser dialético (TS:198).
2.3.3. A Idéia de Finitude e as Estruturas Ontológicas
Finitude é o segundo existencial tratado por Tillich. Em termos simples, é “o ser
limitado pelo não ser”, antes e depois; como “ainda não” e “não mais” (TS:198). O ser,
em si mesmo, é ilimitado, e sem particularidade. Tudo o que é particular “não-é” algo;
define-se por seus limites; assim, expressa uma “mistura”, por assim dizer, de poder de
ser com negação do ser. É essa combinação que dá ao homem a possibilidade de pensar
o ser e a existência. Sendo limitado, o homem pode “visualizar” seus limites, e saber de
si; por outro lado, não poderia fazê-lo se não pudesse elevar-se sobre a finitude em
algum ponto de seu ser, para imaginar a infinitude.
61
Há uma autotranscendência, então,
no ser finito, baseada na participação no ser. Segundo Tillich, não há um infinito
61
A relação entre a finitude e a infinitude é distinta da relação entre os elementos polares. Não há uma
tensão, mas uma habitação mútua e uma abertura da finitude para a infinitude (Mueller, 2005:80).
161
“dado”, objetivamente, de modo que possa ser visualizado como a finitude;
62
mas há
dentro do ser finito o poder de enfrentar o não-ser que o limita, de negá-lo. Na
linguagem da tradição, diríamos que Deus não é dado objetivamente, mas que é
encontrado internamente, “por dentro”, como a possibilidade de resistência ao não-ser:
O poder de autotranscendência infinita é uma expressão do fato de que
o ser humano pertence àquilo que está além do não-ser, isto é, ao ser-
em-si [...] O ser-em-si não é a infinitude; é aquilo que está além da
polaridade de finitude e autotranscendência infinita. O ser-em-si se
manifesta ao ser finito no impulso infinito do finito por transcender a
si mesmo (TS:199-200).
Deus é encontrado, portanto, no poder da autotranscendência humana, que revela
a vitória do ser sobre o pólo meôntico da existência, uma vitória eternamente realizada
em Deus, mas continuamente perdida e recuperada na experiência temporal. Mas tal não
seria possível sem a finitude. A finitude circunscreve o homem de tal modo que ele
pode reconhecer-se e a Deus. E a expressão da finitude na consciência humana é a
angústia existencial: a angústia que não se deve a nenhum fato particular, mas da
consciência da proximidade do não-ser, a ameaça do nada. Na angústia o homem vive a
realidade de sua circunscrição: “A angústia é a autoconsciência do eu finito como
finito” (TS:200).
Para compreender o significado da finitude, precisamos recorrer às estruturas
ontológicas. Tillich começa pelas formas categoriais do ser e do pensamento: tempo,
espaço, causalidade e substância. Desde que só é existente o que é limitado pela
finitude, essas formas são, positivamente, formas da finitude. Por essa razão, elas
mostram a ambigüidade própria de tudo o que é finito, reunindo em si a afirmação e a
negação. Para cada categoria, há uma possibilidade positiva, mas também uma forma
62
Não se pode afirmar a infinitude do mundo ou de um ente divino porque a infinitude não nos está dada
como objeto cognoscível. Assim a infinitude só pode existir como transcendência ilimitada da finitude,
exatamente como se obtém o conceito de infinitude: “A infinitude é uma exigência, não uma coisa”
(TS:199).
162
particular da angústia existencial. Assim, o ser finito é (1) temporal, significando isto
que ele é presente, mas transitório; que pode experimentar o novo e influenciar o futuro
mas, negativamente falando, que chegará a um fim, e que isso é inevitável; é (2)
espacial, de modo que tem um espaço próprio, em diversos sentidos (social, físico,
político, etc), mas que vive sob a ameaça da perda definitiva do espaço, e a consciência
de não ter nenhum espaço definitivo; é (3) estar unido a uma estrutura universal de
causalidade, de modo a ter poder e atuar significativamente, mas, por outro lado, não
possuir aseidade, sendo inescapavelmente condicionado pelo que está além de si; e,
finalmente, é (4) ter uma substância, uma particularidade ou identidade permanente em
meio à mudança mas, ao mesmo tempo, prever a possibilidade de perder a identidade
própria (TS:201-206).
Tillich passa, em seguida, aos elementos ontológicos: as polaridades:
individualidade-participação, dinâmica-forma, liberdade-destino. Segundo Tillich,
cada pólo (que expressa um “lado” da estrutura eu-mundo) existe em tensão com o
outro, mas em equilíbrio essencial. Isso se reflete no fato de não podermos conceber
uma coisa sem a outra. Essa é uma característica importante do pensamento de Tillich:
“As coisas são tensões hipostasiadas” (TS:207). A consciência da finitude, isto é, a
angústia, expressa-se, neste nível, como o sentimento da possibilidade imediata e
constante de ruptura do equilíbrio entre os pólos, com conseqüente perda do eu e do
mundo. Ao ser finito, é possível dissolver-se em uma individualização excessiva, que
leve à perda de sua individualidade, ou na coletivização, que destrói sua individualidade
e capacidade de se relacionar. A ênfase excessiva na forma por tornar o ser rígido,
rompendo-se diante da dinâmica da vida, e a ênfase na dinâmica pode destruir toda
forma particular, tirando a limitação necessária à vida. A liberdade pode se converter
163
em arbitrariedade, reagindo contra sua essência e destino, e o destino pode ser de tal
forma dominante que o ser já não responde ativamente à necessidade (TS:207-209).
Estas polaridades são essenciais, no entanto. Sem elas a finitude não teria forma.
A polaridade de liberdade e destino é especialmente importante para nós, desde que
Tillich a relaciona a queda. Somente a liberdade realizada pode ser a origem do pecado.
Tillich define a liberdade nos seguintes termos:
O homem é essencialmente “liberdade finita”; liberdade, não no
sentido de indeterminação, porém no sentido de ser capaz de se
determinar por meio de decisões no núcleo de seu ser. O homem,
como liberdade finita, é livre dentro das contingências de sua finidade
(CS:40).
A finitude coloca o homem sob o poder do destino; ele é condicionado por
forças além de seu controle. Mas é a finitude, também, que possibilita o centramento do
eu e a liberdade. Assim, a existência da liberdade finita é condição de possibilidade da
própria Queda.
Ser finito é viver sob a ameaça permanente da ruptura, do perigo de perder seu
eu e seu mundo. É viver sob a consciência da limitação incurável do não-ser e, assim,
viver sob o signo da angústia existencial. A angústia é o terceiro existencial de Tillich.
A angústia é algo muito mais profundo que o medo, que sempre tem objeto definível:
Mas não acontece o mesmo com a ansiedade, porque a ansiedade não
tem objeto, ou melhor, numa frase paradoxal, seu objeto é a negação
de todo objeto. Portanto, participação, luta e amor em relação a ela são
impossíveis (CS:29).
Há, no entanto, duas formas possíveis de lidar com o fato da finitude: o ser finito
pode “entregar-se” ao desespero rejeitando a sua finitude, ou reagir a esta situação com
a coragem de aceitar a finitude. A possibilidade de viver a finitude de duas formas
indica que a finitude “existe” sob duas formas: “[...] é possível distinguir a finitude
164
‘essencial’ da ruptura ‘existencial’, a angústia ontológica da angústia da culpa, que é
desespero” (TS:210).
Antes de prosseguirmos, no entanto, deve ficar claro que a negatividade, o meon,
não implica em pecado automaticamente. É verdade que o não-ser pode significar não
apenas a negação lógica, mas também o julgamento errado, contradizendo-se a
expectativa. Tillich chama essa situação de modus deficientis: a finitude pode ser
deficiente, quando está relacionada a uma distância de potencialidade e efetividade. Mas
“A finitude, em si mesma, não é um modus deficientis” (MW1[NSET]:407). Ela inclui,
pois, o não-ser, sem, com isto, perder a sua “bondade criada”.
2.3.4. Essência e Existência: A Espinha Dorsal
A finitude implica a possibilidade de ruptura; a possibilidade do desequilíbrio
das polaridades, da perda do eu e do mundo. Mas não implica, de modo algum, a sua
necessidade. Assim Tillich é muito claro em apontar que a finitude é algo pensável, algo
essencial. É possível conceber o ser finito sob a ameaça da ruptura, mas não rompido;
em tensão, mas em equilíbrio. Ora, é da característica do pensamento essencialista que
ele nos dá o que é possível, embora não o que é concreto. Mas isso significa que, sem
dúvida, a relação do ser com o não-ser na finitude é essencial e que, na essência, a
finitude é equilibrada; a possibilidade da ruptura pressupõe a presença do equilíbrio.
Mas vamos definir melhor os termos: “essência” é o ti estin, ou quid est de algo.
Essentia é o que conhecemos sobre algo, a particularidade não temporal de uma coisa
temporal e mutante, a subsncia que define a possibilidade de algo. A essência não
pode, no entanto, implicar existência. Não é possível demonstrar logicamente esta
conexão (MW1[EPh]:357).
165
O que, então, distingue a concepção essencial da finitude da concepção
empírica, que reconhece a realidade de uma ruptura de todo ser finito, como um dado
universal? Alguns filósofos negam que “exista” algo além do que “existe”; que o que é,
é exatamente o que deve ser. Mas no próprio ato de atribuir “falsidade” a uma forma de
pensar, põe-se uma lacuna entre o que “deveria ser” e o que “é”, lacuna impossível de
ser explicada, se temos apenas conceitos positivos, para descrever a realidade: “Como
pode o ser, que inclui em si a totalidade de sua realidade concreta, conter sua própria
distorção?” (TS:210).
Esta pergunta nos leva diretamente para o que Tillich denominou “o problema
existencialista”. Tillich observa que a raiz da palavra “existir” é o latim existere, “estar
fora de”; existir seria “estar fora do nada”. Como vimos há pouco, haveria duas formas
de “ser”: estar fora do nada absoluto (ouk on) ou do não ser relativo (me on). Para
Tillich, se algo existe, está fora do não-ser absoluto, mas não pode estar totalmente fora
do não-ser; o ser finito é a “mistura” de ser e não-ser.
Tillich recorreu às categorias aristotélicas de potência e ato para explicar essa
relação entre to-on e me-on.
63
Tudo o que é possibilidade ou potencialidade pura é o
não-existente; mas, é, por outro lado, a soma de todas as possibilidades em forma
perfeita; é, assim, ser essencial. As coisas que vem à atualidade, no entanto, são “mais”
do que o potencial, num sentido, pois estão separadas por um “salto” qualitativo; mas
são menos do que poderiam ser, em sua possibilidade essencial. O ser “puro” é a
possibilidade de ser de todas as coisas, tanto em sua essência como em existência: “[...]
tudo participa do ser, seja que exista ou não” (TS:316). Mas o existente, o que se
atualizou, tem menos potência que a essência pura. O existente seria aquele no qual o
63
“[...] de Aristóteles, para o meu pensamento teológico [eu tenho recebido] a distinção entre as duas
principais formas de ser, isto é, ser potencial e ser atual. E isto permeia todo o meu pensamento”
(MW1[PBT]:416).
166
poder de ser se torna manifesto, mas no qual a potencialidade jamais é completamente
atualizada, de modo que o existente ainda não é, sendo uma mistura de ser e não-ser
relativo (me-on).
64
O que, afinal, possibilita este “salto”? Desde que a razão lida apenas com
possibilidades (Essentia est possibilitas); só na atitude ética as possibilidades são
restringidas e uma possibilidade é especificada; a liberdade faz a transição para a
existência, não a razão (MW1[EPh]:359).
Deus seria o único “ser” no qual não há o conflito de essência e existência. Ele
não “existe”, pois isso o tornaria também separado de sua essência, como os entes
finitos
65
; mas também não é pura essência, do contrário não poderia se auto-atualizar. Já
o universo está sujeito a esse conflito, sendo que aqui teríamos exatamente a localização
da doutrina da queda de Tillich:
Só Deus é ‘perfeito’, uma palavra que é definida exatamente assim:
estar além da ruptura entre ser essencial e ser existencial. Nem o
homem nem o mundo têm esta perfeição. A existência de ambos está
fora de sua essência como numa ‘queda’. Neste ponto, as valorações
platônica e cristã coincidem (TS, p. 261).
Fica, portanto, evidente, que o conceito de queda de Tillich está ligado à
distinção de essência e existência, e que Tillich estabelece neste conceito uma conexão
entre o tipo de perspectiva encontrada no pensamento grego e no cristianismo. A
distinção entre essência e existência teria sido negada nas diversas formas de
“essencialismo”, tipificadas em Hegel, que pressupõe uma perfeita presença essencial
na existência e nega a realidade da ruptura. E teria sido “recolocada” na filosofia, por
assim dizer, através do pensamento existencialista, que aponta a realidade e
64
A consciência dessa distinção fundamental estaria presente já antes de Platão, na distinção entre o nível
“essencial” e “existencial” da realidade. A essência seria o potencial, e o existir seria o estar fora da
potencialidade, implicando em perda relativa da essência.
65
Supondo-se, logicamente, a validade da distinção essência/existência.
167
profundidade da ruptura. Mas seria a chave e o critério pivotal em todo o sistema de
Tillich, conforme ele mesmo o declara numa passagem crucial:
A diferença entre essência e existência, que, religiosamente falando, é
a diferença entre o mundo criado e o mundo como efetivamente é,
constitui a espinha dorsal de todo o corpo do pensamento teológico.
Por isso, ela deve ser elaborada em cada parte do sistema teológico
(TS:212).
Temos, pois, que a distinção essência-existência em Tillich é considerada por ele
como a espinha dorsal do pensamento teológico, que deve ser elaborada em todo o
sistema. Por meio dela, poderíamos dizer, o teólogo é habilitado a diferenciar a finitude
essencial da finitude existencial, obtendo um princípio crítico para a compreensão da
realidade sob a perspectiva cristã da bondade da criação, e da liberdade humana.
2.3.5. Transição Essência-Existência e Criação
Ao lidar com o símbolo de Deus como Criador, Tillich declara que a doutrina da
criação é “[...] a descrição básica da relação entre Deus e o mundo”. A doutrina
descreve, não um evento, mas a condição de criatividade divina e de criaturalidade
humana; uma relação, pois. É, assim, um conceito teológico fundamental, que lança a
sua sombra sobre toda e qualquer discussão teológica, incluindo a própria doutrina de
Deus, uma vez que ele não pode ser descrito, senão, a partir de sua relação com suas
criaturas (TS:258). Por essa razão, tanto a doutrina da encarnação como a escatologia
são absolutamente dependentes da doutrina da criação: “Deus só pode aparecer na
finitude se o finito como tal não estiver em conflito com ele” (TS:259).
A afirmação cristã da creatio ex nihilo é a proteção do cristianismo contra
qualquer tipo de dualismo. Isto significa como vimos antes, que, para Tillich, o mal não
pode ser pensado, senão em relação a Deus, e que a criatura não pode ser compreendida
168
sem a sua “herança do não-ser”, isto é, da finitude de sua participação no ser (TS:259).
Como uma mistura de ser e não-ser, a criação pertence à existência; mas sendo fundada
no ser divino, não pode receber a sua essência em uma condição de ruptura – em Deus,
o me-on está reconciliado, a vontade e o significado estão unidos pelo Espírito. Na
medida, pois, em que contemplamos a criação do ponto de vista de sua relação com a
origem divina, não podemos conceber uma separação entre essência e existência: “O
processo criativo da vida divina precede a diferenciação entre essência e existência”
(TS:260). Isso significa que a criação é essencialmente boa. E, nesta essência, a criação
pode ser descrita por meio das categorias da finitude: tempo, espaço, causalidade e
substância, e podemos descrever a relação de Deus com a sua criação, como Criador,
em termos simbólicos, por meio destas categorias.
Quanto ao homem, especificamente, Tillich lembra com aprovação a rejeição
protestante da doutrina do donum superadditum, e da diferenciação de Irineu entre
imago e similitudo, que distinguiriam a natureza humana e o dom sobrenatural de Deus.
A natureza humana seria suficiente para a união com Deus, sem a necessidade de tal
dádiva sobrenatural (TS:264). A imagem de Deus no homem seria a presença completa
e unida dos elementos ontológicos, assim como estão em Deus como fundamento
criativo do cosmo e do homem. Isto é, o homem é análogo ao logos divino (TS:264),
refletindo especularmente as estruturas da relação divina com a criação, em uma
liberdade finita: “[...] o homem é o microcosmo, porque nele estão presentes todos os
níveis da realidade” (TS:266). E o homem seria, em sua relação essencial com Deus,
bom:
A bondade da natureza criada do ser humano consiste no fato de que
lhe são dadas a possibilidade e a necessidade de efetivar-se a si
mesmo e de se tornar independente por sua auto-efetivação, apesar da
inevitável alienação contida em tal efetivação (TS:265).
169
A noção de “essência” é, assim, a categoria principal de Tillich para interpretar a
idéia bíblica da “bondade” da criação. Significa que são completas as possibilidades de
auto-efetivação. Mas não significa, segundo Tillich, um suposto estado temporal
prelapsariano; é um estado de potencialidade total e atualidade nula; de inexistência.
Somente quando a liberdade finita se atualiza o ser finito vem à existência. E isso nos
leva ao símbolo da queda.
2.3.6. Transição Essência-Existência e Queda
Paul Tillich não deixa dúvidas a respeito da importância da doutrina da queda
em seu sistema: “O símbolo da queda é um capítulo decisivo da tradição cristã”
(TS:324). Tillich pretende absorver o símbolo da Queda, por meio de sua interpretação
simbólica. Como no caso da doutrina da criação, seria impossível admitir a concepção
literalista de Queda, como se ela houvesse ocorrido como um evento histórico. Ela deve
ser vista, antes, como “[...] um símbolo para a situação humana em todos os tempos
[...]” (TS:324).
Tillich procede a uma recepção parcial do símbolo clássico através da “semi-
desmitologização” do mito.
66
Elimina-se o elemento histórico-temporal, mas preserva-
se analogicamente a idéia de processo, de transformação, quando falamos sobre a
transição de essência para existência (que indicaremos doravante, no capítulo, pelo sinal
TE-E). A razão porque Tillich não pretende desmitologizar completamente o símbolo da
queda fica evidente logo depois: é que se a TE-E for tomada como um fato necessário,
ou seja, como um resultado lógico da essência, a queda poderia ser considerada como
66
“É, por assim dizer, uma semidesmitologização do mito” (TS:324).
170
algo essencial, isto é, como algo “criado”. Essa possibilidade é rejeitada
inequivocamente por Tillich:
Mas o pecado não é algo criado, e a transição da essência à existência
é um fato, uma estória a ser contada e não uma necessidade dialética
derivada. Portanto, não é possível desmitologizá-la completamente
(TS:325)
Podemos agora perguntar: como se deu a TE-E? Tillich utiliza o relato de
Gênesis 1-3 para descrever o processo e o conseqüente estado de alienação.
67
Em sua
análise, ele pressupõe a liberdade e a finitude do homem, e diferencia o homem de Deus
e da natureza a partir dessas categorias: “Pode-se dizer que a natureza é a necessidade
finita, Deus a liberdade infinita, e o homem liberdade finita. É a liberdade finita que
torna possível a transição da essência à existência” (TS:327). Ou seja, a TE-E é possível
devido à natureza do homem como liberdade finita,
68
estando a queda condicionada por
essas categorias.
Quanto à liberdade em si, Tillich a vê como a própria imago Dei. A
possibilidade da queda seria dependente da liberdade, que incluiria em si a liberdade do
afastamento de Deus, e essa liberdade seria a semelhança humana a Deus, que é a
liberdade infinita: “Simbolicamente falando, é a imagem de Deus no ser humano que
possibilita a queda. Só aquele que é a imagem de Deus tem o poder de separar-se de
Deus. Sua grandeza é, ao mesmo tempo, sua fraqueza” (TS:328).
As condições ontológicas da queda residem, portanto, na singularidade do
homem como liberdade finita, como imagem de Deus; e como vimos, a liberdade finita
é essencialmente boa. Isto estabelecido, Tillich pode passar à análise do processo de
TE-E. A natureza essencial do homem jamais existiu completamente temporal; o ser
67
“É a expressão mais profunda e mais rica da consciência do homem de sua alienação existencial e
fornece o esquema no qual pode ser tratada a transição da essência à existência” (TS:326).
68
Tillich compreende a liberdade como a possibilidade do sujeito existencial; a liberdade do salto que não
é determinado fisicamente, moralmente ou socialmente; que não tem uma “natureza” determinante exceto
a possibilidade de escolha pessoal indeterminada por qualquer estado prévio do eu (MW1[NSET]:408).
171
essencial nunca esteve presente como evento, nem no passado nem em qualquer estágio
do desenvolvimento humano. Essa condição é descrita por Tillich com linguagem
psicológica como a “inocência sonhadora”. É um modo dele se referir à condição na
qual o atual é antecipado, como algo apenas potencial, e também como a condição antes
da decisão e da responsabilidade pessoal. No relato de Gênesis, que Tillich interpreta
utilizando os insights de Kierkegaard sobre a ansiedade (Heywood, 2000:91), esse
estado corresponde a Adão e Eva antes da queda.
Segue-se a tentação. A tentação é a possibilidade da TE-E. Essa possibilidade
existe porque a inocência sonhadora não é o estado de perfeição, pois nele não há “[...]
união consciente de existência e essência”.
69
Mas o que exatamente, no interior da
inocência sonhadora, impulsiona o homem para a TE-E?
Aqui retorna a importância do conceito de angústia, que examinamos
anteriormente como um aspecto essencial da finitude. Tillich identifica na Angst, ou
angústia, “[...] uma das forças motrizes da transição da essência à existência” (TS:330).
A angústia é a consciência da finitude (“Finitude e angústia são a mesma coisa”, TS,
ibid), isto é, de que o ser é ameaçado pelo não-ser. Embora com essa tese Tillich pareça
localizar as fontes do mal na própria criaturidade, isto é, na finitude em si mesma e em
suas características, ele nega sempre tal localização.
Uma ruptura entre o criador e a criatura é já subentendida, segundo Tillich, no
relato sobre a proibição, a qual seria “[...] o ponto mais importante na interpretação da
queda” (TS:330). A proibição pressupõe uma atitude que não é pecado, mas também
não é inocência: o desejo de pecar. Este estado de desejo corresponderia, numa
linguagem psicológica, a um despertamento, que seria automaticamente acompanhado
de uma reação auto-preservadora:
69
Somente Deus seria perfeito, pois ele transcende a distinção essência-existência.
172
Essa reação é simbolizada no relato bíblico como a proibição divina
contra a efetivação da própria liberdade potencial e contra a aquisição
de conhecimento e poder. O ser humano está entre dois fogos: o
desejo de atualizar sua liberdade e a exigência de preservar sua
inocência sonhadora. No poder de sua liberdade finita, ele se decide
pela efetivação (TS:330).
Assim, “[...] a transição da essência à existência é uma qualidade universal do
ser finito” (TS:331), não sendo um evento no passado e precedendo ontologicamente o
tempo e o espaço. Ou seja, a Queda, ou TE-E, é o resultado necessário da finitude.
Na verdade Tillich parece consciente de que o teor do relato de Gênesis é, em
suas palavras, “psicológico-ético”. Segundo ele o mito foi parcialmente
desmitologizado pela tradição hebraica de modo que os elementos míticos foram
subordinados ao ético; ele argumenta então que tais elementos míticos cósmicos foram
preservados nas imagens bíblicas de queda de anjos, na serpente do Éden, etc. Mas esse
mito pode ser encontrado em forma “pura” no platonismo:
Mas a ênfase mais consistente no caráter cósmico da Queda é dada no
mito da Queda transcendente das almas. Embora provavelmente tenha
origens órficas, foi relatado pela primeira vez por Platão ao contrastar
essência e existência (TS:332).
Portanto Tillich reconhece que, em sua forma final, no relato de Gênesis, o mito
da queda não tem o mesmo sentido que no mito órfico. Sua concepção de Queda
envolveria, conseqüentemente, a acomodação da linguagem bíblica de criação e Queda
em termos do antigo mito órfico. Tillich tem a esperança de que essa acomodação seja
viável:
O mito da Queda transcendente [órfico-platônico] não é diretamente
bíblico, mas tampouco contradiz a Bíblia. Ele afirma o elemento ético-
psicológico na queda e completa as dimensões cósmicas que
encontramos na literatura bíblica (TS:332,333).
Tillich teria uma razão concreta para recorrer ao mito da Queda transcendente; é
que ele revelaria o “caráter trágico-universal da existência”. Com isso Tillich se refere à
173
conexão entre os atos individuais livres de alienação existencial e o destino universal,
ou seja, entre as decisões individuais e as condições dadas da existência, que
compartilham assim com essas decisões do estado de Queda. A condição caída seria,
portanto, consistente com os elementos da estrutura ontológica básica. A doutrina do
“pecado original” deve ser rejeitada em sua forma mitológica, mas a teologia precisa
reinterpretá-la existencialisticamente, como forma de desvelar para a cultura
contemporânea a conexão dos elementos ético-individual e trágico-cósmico de sua auto-
alienação.
A união dos elementos moral e trágico na alienação do homem conduz
diretamente à questão da relação entre criação e queda (TS:334). O problema, colocado
por Tillich, é que a conexão entre o mal humano e o mal cósmico precisa ser revelada:
“[...] se o universo participa igualmente da queda, qual é a relação entre criação e
queda?” (TS:335). Tillich considera este problema algo bastante complicado: “É o
ponto mais difícil e mais dialético da doutrina da criação” (TS:261).
“Antes” da queda
70
o homem existe como potencialidade, havendo unidade de
essência e existência; mas essa unidade é inconsciente, não sendo, portanto, perfeita. O
homem só aparece entre o desejo de atualizar sua liberdade e a exigência de manter a
inocência, ou seja, a união ao fundamento do Ser. Assim, como já observamos, “[...] a
transição da essência à existência [TE-E] não é um evento no tempo e no espaço, mas a
qualidade trans-histórica de todos os eventos no tempo e no espaço” (TS:335).
Aqui exatamente se levanta de novo o problema teórico: seria a queda, então,
uma condição necessária para a existência humana? Ou seja, se o homem não pode se
atualizar sem a liberdade, e a liberdade é realizada justamente quando o homem se
70
Este “antes” é, naturalmente, apenas uma projeção abstrativa, sem qualquer realidade: “[...] são
inadequadas todas as perguntas sobre o estado real de Adão antes da queda; por exemplo se ele era mortal
ou imortal [...]. Os verbos ‘era’, ‘estava’, ‘vivia’ pressupõem uma efetivação no tempo. Mas é exatamente
isto que não podemos afirmar do estado que transcende potencialidade e efetividade” (TS:165).
174
afasta de sua essência rebelando-se contra o seu fundamento, não seria a queda uma
dimensão da própria existência criada? Pode-se falar em responsabilidade e culpa
pessoal se o pecado é ontologicamente necessário? Tillich está completamente
consciente do problema: “A descrição que acabamos de fazer porventura não
‘ontologiza’ e, assim, suprime a realidade da queda e da alienação?” (TS:338).
O centro de sua resposta é a admissão de que “Criação e Queda coincidem na
medida em que não existe qualquer ponto no tempo e no espaço em que a bondade
criada estivesse efetivada e tivesse existência” (TS:338). Ou seja: para Tillich jamais
existiu a possibilidade de Criação sem Queda. Já antes disso, ao tratar do símbolo da
criação, Tillich observou que, misteriosamente, há uma ligação entre pleno
desenvolvimento da criaturalidade e queda:
A criatura tornou efetiva a sua liberdade na medida em que
está fora do fundamento criativo da vida divina [...] Visto de um lado,
este é o fim da criação. Visto de outro lado, este é o começo da queda
[...]
Todo teólogo suficientemente corajoso para enfrentar a dupla
verdade de que nada pode acontecer a Deus acidentalmente e de que o
estado da existência é um estado caído deve aceitar o ponto de
coincidência entre o fim da criação e o começo da queda (TS:261).
A criação se plenifica na auto-realização da criatura, que é
simultaneamente liberdade e destino. Mas essa plenificação se realiza
através de sua separação do fundamento criativo, pela ruptura entre
existência e essência. A liberdade criatural é o ponto em que
coincidem criação e queda (TS:261-262).
A explicação estaria na unidade de liberdade e destino, no fundamento do ser.
Não seria matéria de necessidade estrutural, pois teria havido uma realização do ser
finito na unidade de liberdade e destino. Porque ambos se encontraram deste modo é
algo que não poderíamos dizer. Mas “aconteceu”, isto é, há uma universalidade da
separação de Deus na liberdade finita. Essa conexão misteriosa não elimina, no entanto,
a bondade da criação: “Apesar de sua universalidade trágica, a existência não pode ser
derivada da essência” (TS:339). Mesmo assim, devemos admitir que, quando Tillich
175
afirma a equivalência entre “estar caído” e “atualizar a sua liberdade”, identificando a
existência da liberdade finita com a queda, parece envolver mais do que um afastamento
de uma leitura literalista da bíblia:
Se ele de fato teve sucesso em equilibrar os conceitos de
responsabilidade e tragédia é duvidoso: pois o problema reaparece,
como nós veremos, em sua interpretação do pecado (Heywood,
2000:94).
Qual é a situação do homem caído? Tillich rejeitou, como vimos, a posição
católica de que haveria um donum superadditum, que mantinha Adão unido a Deus
antes da queda. Essencialmente, o homem tem a imagem de Deus, a justitia originalis, e
a capacidade da comunhão com Deus.
71
A queda promoveu a separação entre Deus e o
homem, de modo que ele perdeu toda a liberdade de retorno; sua natureza não foi
meramente “enfraquecida”. Daí a necessidade absoluta da graça:
A diferença entre o protestantismo e o catolicismo depende aqui de
todo um conjunto de decisões, mas basicamente da interpretação da
graça. Se a graça é uma substância sobrenatural, a posição católica é
consistente. Se ela é o perdão recebido no centro da própria
personalidade, então se impõe a posição protestante. Nossa crítica a
um sobrenaturalismo ontológico nos capítulos anteriores implica uma
rejeição da doutrina católica (TS:264).
2.3.7. Alienação e Pecado
O estado de existência identifica-se com o estado de alienação. Essa noção
ontológica precisa ser correlacionada com o conceito tradicional de pecado, para
obtermos uma explanação teológica. Tillich começa, então, mostrando as origens da
noção filosófica de alienação no jovem Hegel (TS:339) e, depois, nos anti-hegelianos,
como a realidade da existência não-reconciliada. A alienação é do ser humano em
relação a seu verdadeiro ser, que está em Deus. Embora o termo não seja bíblico,
71
Tillich rejeita também as tentativas dos teólogos antigos de atribuir a Adão a totalidade das perfeições
pertencentes a Cristo, ou ao homem redimido em seu estado final, pois isso tornaria a queda
incompreensível (TS:265).
176
representa algo implícito no que poderíamos chamar de “complexo simbólico bíblico”
da queda, refletido me narrativas como a expulsão do paraíso, o conflito entre Caim e
Abel, a confusão das línguas, etc (TS:340). O termo não pode substituir a noção de
“pecado”, no entanto, porque “[...] ela expressa aquilo que a palavra ‘alienação’ não
conota, a saber, o ato pessoal de se afastar daquilo a que pertencemos” (TS:340), pondo
a ênfase no caráter pessoal da alienação. Devemos manter, portanto, a palavra “pecado”
como descrição da alienação, sendo esta compreendida, pois, como “[...] uma questão
tanto de liberdade pessoal quanto de destino universal” (TS:341).
Acrescentando à Confissão de Augsburgo a noção de hybris, Tillich aponta três
marcas do estado de alienação: a descrença, a concupiscência e a hybris. Esses
conceitos religiosos devem ser interpretados para “mediar percepções sobre a condição
existencial do ser humano” (TS:341). Como descrença, a alienação significa a quebra da
participação cognitiva do homem em Deus. Não é o mesmo que desobediência, pois
“[...] ordem, obediência e desobediência já pressupõem a separação entre duas vontades
distintas” (TS:342). Essa alienação, por outro lado, cria a possibilidade do amor a Deus,
havendo uma relação interna entre descrença e amor como possibilidade. Mas alienação
é des-crença, ou não-fé (unfaith), e não-fé é idêntica a não-amor (TS:342). Fé é a
coragem de aceitar a mensagem da aceitação incondicional apesar da alienação.
Como hybris, a alienação significa estar “[...] fora do centro divino ao qual o seu
próprio centro pertence essencialmente” (TS:343). A tentação de transformar-se em
centro de si mesmo e de seu mundo existe devido à infinitude potencial do homem.
Elevando-se acima dos limites da finitude, e afirmando a própria divinidade, o homem
se separa de seu fundamento (TS:344):
A hybris foi chamada de “pecado espiritual”, e todas as outras formas
de pecado foram derivadas dela, até mesmo os pecados sensuais.
Hybris não é uma forma de pecado ao lado de outras. É o pecado em
sua forma total, a saber, o outro lado da descrença, do afastar-se do
177
centro divino ao qual o ser humano pertence [...] cujo principal
sintoma é o fato de o ser humano não reconhecer sua finitude
(TS:345).
Como concupiscência, a alienação significa o desejo infinito de reunir-se ao
“todo”, a partir da consciência de sua própria pobreza. Essa seria, segundo Tillich, a raiz
do amor “em todas as suas formas”. É a busca da abundância ilimitada para o eu. O
Eros essencial estaria ligado à concupiscência existencial, presente, por exemplo, nos
conceitos de “libido” em Freud e de “vontade de poder”, em Nietzche, mas não poderia
ser identificado com ela (TS:347), devido à diferença entre essência e existência. O Eros
se torna concupiscência destrutiva quando impede a união de amor criativa, e degenera-
se em uma pulsão de morte, em razão da impossibilidade de satisfação de uma libido
que infinita. Assim, o Eros existencial, que é a concupiscência, é o desejo infinito e
jamais satisfeito, que “[...] quer o próprio prazer através do outro ser, mas não quer o
outro ser” (TS:348).
A alienação é “fato” e “ato”: é tanto o destino universal do homem como ato de
sua liberdade. O elemento do destino é expresso simbolicamente pelas idéias de pecado
“original” e de “hereditariedade”, indicando o elemento social do destino. Liberdade e
destino, no pecado, estão entrelaçados, de tal modo que
[...] é impossível separar o pecado como fato do pecado como ato [...]
mesmo no caso de assumirmos plena responsabilidade por um ato de
alienação – como sempre deveríamos fazer – também estamos
conscientes de que este ato depende do todo do nosso ser, incluindo os
atos livres do passado e o destino, integrado tanto por nosso próprio
destino como pelo destino universal da humanidade (TS:350).
As tentativas de explicação determinista da alienação não são suficientes para
explicar a consciência de responsabilidade pessoal do ser humano, mas são úteis para a
compreensão do elemento do “destino” na alienação. Finalmente, Tillich pontua que a
culpa pessoal participa na criação do destino humano como um todo e de seu grupo
178
social. Assim, seus atos contribuíram para o destino do grupo e, assim, compõe o
elemento do destino na culpa pessoal de outros membros do grupo. Mas não existiria
“culpa coletiva”, visto que o grupo social não possui um centro de decisão
(TS:352,353).
2.3.8. Mal e Auto-destruição Existencial
O estado de queda/alienação é um estado de contradição da estrutura essencial
da criação e, por conseguinte, de autocontradição e autodestruão. Mas a destruição
não tem uma posição independente no real, apoiando-se, tal qual um “câncer”, na
própria estrutura que é negada. Assim, o mal deve ser descrito a partir de sua “presença”
ou “atuação” ao longo das estruturas ontológicas.
Em primeiro lugar, a alienação atinge a estrutura ontológica básica do ser finito,
que é a polaridade eu-mundo, ao tornar possível que o ser humano perca a si mesmo e a
seu mundo. A perda do eu é a desintegração da unidade pessoal, que acontece quando o
eu finito tenta ser o centro de tudo e acaba por deixar de ser o centro de qualquer coisa
(TS:355). Em segundo lugar, a alienação atinge as três polaridades ontológicas. Assim
ela rompe o equilíbrio entre liberdade e destino, transformando a liberdade em
arbitrariedade e o destino em escravidão e anulação final da liberdade (TS:356,357),
separa dinâmica e forma, de modo que a dinâmica cai sob a “tentação do novo”
tornando-se uma busca informe e destrutiva de autotranscendência, e a forma, sem
dinâmica, torna-se heteronômica. Finalmente, separa individualização e participação,
subjetividade e objetividade, fechando-se para o que é diferente de si, e tornando-se,
também, um mero objeto.
179
Em terceiro lugar, a alienação atinge a finitude e suas estruturas. A finitude, em
Tillich, é “o ser limitado pelo não ser”. A finitude é a condição de criatura,
incompreensível sem o conceito do não-ser dialético, que Tillich desenvolve no volume
I de sua Sistemática. No cristianismo não há, em princípio, a matéria meôntica do
platonismo, em razão de sua doutrina de criação ex-nihilo. Mas Tillich indica que é
impossível deixar uma noção de não-ser, e seo há um princípio negativo fora de
Deus, tal negatividade dialética deve se originar nele mesmo. Mas ela é encontrada,
positivamente, na existência, na qual “[...] tudo o que participa do poder de ser está
‘mesclado’ com o não-ser” (TS:198).
Qual é a relação entre finitude e alienação? Segundo Tillich, a mortalidade é
simplesmente a situação natural do homem, em sua finitude. Em si mesma, a finitude é
essencial; mas no estado de alienação ela se torna mal existencial. A angústia da morte,
ligada à finitude essencial se torna, na alienação existencial, uma estrutura de
destruição, que faz o homem desesperar-se. Tillich enfatiza a importância de distinguir-
se finitude e alienação, a partir da diferença essência/existência (TS:361): “A estrutura
da finitude é boa em si mesma, mas sob as condições da alienação se converte numa
estrutura de destruição” (TS:364). A finitude torna possível a ruptura das estruturas
essenciais da vida:
A finitude é a possibilidade de perder a própria estrutura ontológica e,
com ela, o próprio eu. Mas isso é uma possibilidade, não uma
necessidade. Ser finito é estar ameaçado. Mas uma ameaça é uma
possibilidade, não uma realidade. A angústia da finitude não é o
desespero da autodestruição. O cristianismo vê na imagem de Jesus
como o Cristo uma vida humana em que estão presentes todas as
formas de angústia, mas de que estão ausentes todas as formas de
desespero. À luz desta imagem, é possível distinguir a finitude
‘essencial’ da ruptura ‘existencial’, a angústia ontológica da angústia
de culpa, que é desespero (TS:210).
As categorias da finitude – tempo, espaço, causalidade e substância – são a
estrutura da totalidade da criação, como ser essencial. Elas expressam a unidade do ser e
180
do não-ser nos seres finitos, mas tem sua função alterada sob as condições da existência.
A angústia causada por essas categorias pode ser dominada pela coragem, mas no
estado de alienação elas assumem o controle produzindo resistência e desespero
(TS:362). Assim a resistência à temporalidade torna o tempo uma estrutura demoníaca
de destruição, para o homem. O mesmo ocorre com a angústia de perder-se o espaço, de
ter poder de causar e de manter a própria substância. A relação com cada categoria é
distorcida.
Tillich discute dois exemplos das conseqüências da transformação das categorias
da finitude na alienação existencial: o sofrimento e a solidão. O sofrimento seria, a
princípio, um elemento da finitude, mas sob as condições da existência se torna
destrutivo para a pessoa. A salvação significa aqui a aceitação do sofrimento como parte
da finitude, através da coragem (TS:363). O mesmo ocorre com a solidão: há uma
solitude essencial e uma solidão existencial, que é a distorção da solitude essencial.
A dúvida também tem sua realidade essencial, expressa na ciência e na incerteza
natural do homem sobre si mesmo e sobre o mundo. Pois a verdade é o “todo”, e
nenhum homem tem o “todo”. Essa dúvida essencial faz parte da bondade do ser criado
(TS:366), mas se torna uma estrutura de destruição existencial quando a realidade
última é excluída do horizonte da pessoa, sob o estado de alienação, e a dúvida se torna
absoluta, aprisionando o ser humano no desespero.
Segundo Tillich não há uma diferença total entre pecado e mal. Há um elemento
de responsabilidade e um elemento de universalidade trágica. Assim, “A diferença entre
ambos os termos é mais de enfoque do que de conteúdo” (TIS:367). As estruturas do
mal – estruturas de destruição – seriam, na opinião de Tillich, parte da estrutura da
existência; “[...] a alienação é uma qualidade da estrutura da existência” (TS:367). Essas
estruturas não seriam meramente realidades historicamente condicionadas, mas
181
verdadeiras estruturas. É falacioso, portanto, aceitar análises da condição humana que
relacionam o mal à estrutura temporal da sociedade industrial, por exemplo, e todas
essas formas de compreensão utópica do homem, que acreditam na possibilidade de
alterar a condição existencial do homem por meio de transformações sociais (TS:367).
O efeito da transformação das estruturas da finitude em estruturas do mal é o
desespero, que é mais do que um problema ético ou psicológico, marcando o fim de
todas as possibilidades humanas. O desejo de repouso sem conflito seria um impulso
suicida que está diluído no todo da vida, pela consciência da intevitabilidade do fim. A
consumação do suicídio encerra o desespero, no nível temporal, mas fracassa na
dimensão do eterno, segundo Tillich (TS:369). Os símbolos da ira de Deus e da
condenação expressam exatamente a experiência do desespero. Mas revelam,
simultaneamente, a unidade indissolúvel do homem com seu fundamento divino desde
que a destruição do ente que se separa de Deus é a destruição dessa separação, enfim.
“O amor divino se opõe a tudo aquilo que contradiz o amor, abandonando-o à sua
própria autodestruição, para salvar aqueles que são destruídos [...] esta é a única forma
em que o amor pode operar naquele que rejeita o amor” (TS:370). Seguindo Lutero,
Tillich ressalta que o rosto divino assume traços demoníacos para os que se mantêm
alienados dele, mas o seu rosto ainda é o mesmo para aqueles que respondem ao seu
amor de forma pessoal.
2.3.9. A Queda e as Ambigüidades da Vida
No terceiro volume da Sistemática, um conceito chama a atenção por sua
importância: a noção de “ambigüidade”. Tillich trata extensivamente das “ambigüidades
da vida” na parte 4 (A vida e o Espírito), especialmente no capítulo I (A vida, suas
ambigüidades, e a busca da vida sem ambigüidade) mas, também, no capítulo II, em
182
relação com a experiência da presença espiritual, e no capítulo III (O Espírito divino e
as ambigüidades da vida), ao lidar com o significado da presença espiritual frente às
ambigüidades da religião, da cultura, da moral, e da vida em geral. Na parte 5 (A
história e o reino de Deus) Tillich recorre novamente ao conceito, tratando das
ambigüidades da vida sob a dimensão histórica no capítulo I (A história e a pergunta
pelo Reino de Deus). Para os nossos objetivos, no entanto, será suficiente contemplar o
tratamento de Tillich no capítulo I da parte 4, quando ele apresenta o conceito que,
como vamos mostrar, tem relação direta com o problema da alienação existencial.
Tillich principia o capítulo introduzindo a concepção ontogica de vida, como
“efetividade do ser”, para integrar “[...] as duas qualificações principais do ser que
fundamentam a totalidade deste sistema: estas duas qualificações principais do ser são o
essencial e o existencial” (TS:475). Não pode haver um existente se o potencial presente
na essência não se efetiva no ser particular; pertence à estrutura de todo ente essa
efetividade. Daí a importância de um conceito universal de vida. Mas desde que o ser
existe “dividido” em essência e existência, Tillich procura explicar o conceito
ontológico de vida, numa consideração essencial como unidade multidimensional, e, em
seguida, numa consideração existencial, como efetividade ambígua (TS:476).
A vida, essencialmente falando, é a efetivação do ser potencial (TS:492). Tillich
identifica três elementos no processo de efetivação da vida: a auto-identidade, a auto-
alteração e a volta a si mesma. A auto-identidade e a auto-alteração correspondem à
estrutura ontológica básica eu-mundo, e a “volta” corresponde à unidade reconciliada do
eu e do mundo, no espírito. Este esquema triplo é dependente das raízes hegelianas e
schellingianas de Tillich, como já tivemos oportunidade de considerar. Os três
elementos se manifestam nas funções de auto-integração, sob o princípio da
centralidade, da autocriação, sob o princípio do crescimento (desenvolvimento e
183
formação de outros centros), e da auto-transcendência, sob o princípio do sublime
(TS:494).
Cada função da vida está ligada a um dos elementos polares do ser: a auto-
integração está ligada à individualização e participação; a autocriação à dinâmica e
forma; a auto-transcendência à liberdade e destino. Sob as condições da existência, a
unidade de auto-indentidade e auto-alteração (a polaridade eu-mundo no interior do
processo de efetivação da vida) vive sob a ameaça de ruptura e destruição do ser finito.
Nessas condições, “[...] a auto-integração é ameaçada pela desintegração, a autocriação
pela destruição, a auto-transcendência pela profanização” (TS:494).
A vida é uma realidade multidimensional; a presença de uma multiplicidade na
unidade. Essa unidade existe de forma precária, pois as possibilidades de desequilíbrio e
de conflito são muitas. E a vida se move continuamente para além da unidade presente,
produzindo nova diversidade. No interior dos processos da vida, sob as condições da
existência, as possibilidades essenciais se efetivam muitas vezes por meio de uma
contradição da essência. E há uma infinidade de seres cujos processos vitais se
influenciam mutuamente. Isso faz com que a vida exista como uma realidade
profundamente ambígua, como mistura de essencial e existencial. Mas Tillich procura
mostrar que exatamente esta ambigüidade é necessária para a efetivação da vida.
Na função de auto-integração, a ambigüidade aparece na possibilidade de perder
a centralidade, por meio de uma fixação na auto-identidade, que impeça a integração
dinâmica, ou de uma fixação na auto-alteração, de modo que o ser não consegue
retornar a si mesmo sendo disperso na multiplicidade das experiências. Tillich mostra
que em todos os entes há a polaridade entre identidade e alteração, e que a desintegração
de qualquer ente sempre envolve o desequilíbrio dessa polaridade. No caso do ser
humano, isso ocorre na vida moral do indivíduo: “A moralidade é a função da vida pela
184
qual se forma a esfera do espírito. A moralidade é a função constitutiva do espírito”
(TS:500). O homem se desintegra como pessoa quando afirma sua liberdade pessoal, e
tenta atrair todo conteúdo do mundo para si mesmo, a ponto de destruir a alteridade que
define a sua liberdade, ou quando perde o seu eu no mundo, abdicando da sua liberdade
moral.
A ambigüidade aparece na auto-integração pessoal por meio da necessidade do
sacrifício, quando se torna necessário escolher entre desistir de certas possibilidades e
manter a identidade, ou sacrificar aspectos do eu atual para ampliá-lo (TS:503). Não há
como saber de forma inequívoca se um certo sacrifício pode ser realizado com toda
segurança moral, isto é, se ele é o melhor a fazer. Há uma impossibilidade de separar
inequivocamente o que é bom e o que é mau (TS:505). Na obediência à lei moral,
encontramos a mesma ambigüidade, na medida em que nenhum mandamento específico
pode ser identificado com o seu elemento de incondicionalidade. Isso não significa que
nosso acesso à verdade moral tenha sido rompido:
Os mandamentos da lei moral são válidos porque expressam
a natureza essencial do ser humano opondo-lhe, em sua condição de
alienação existencial, seu ser essencial. Isto suscita a pergunta: como é
possível a auto-integração moral face à mistura ambígua de elementos
essenciais e existenciais que caracteriza a vida? (TS:507).
Há uma norma incondicional, a lei do amor; mas não há como garantir uma
aplicação e nem mesmo uma compreensão não ambígua dessa lei. Assim, toda decisão
moral é um risco.
Na função da autocriatividade, a ambigüidade se manifesta na pertença mútua
de criação e caos, no fato de a vida se efetivar por meio de um dinamismo que produz
forma por meio da superação da forma. É claro que o elemento negativo é dependente
do positivo desde que a destruição pura não existe. “Em todo processo vital, estruturas
de criação estão misturadas com poderes de destruição de tal forma que não podem ser
185
inequivocamente separados” (TS:512). Isto ocorre desde a esfera subatômica (TS:513),
passando pela relação entre os seres vivos,
72
na natureza, e atingindo o próprio homem,
como constatamos na conflitividade inerente à vida humana (TS:514). E nas atividades
humanas: no trabalho e no progresso técnico, que arruínam os corpos dos homens mas
criam condições superiores de saúde e cura, por exemplo (TS:515). A negatividade
envolvida na destruição é um elemento fundamental para a efetivação da autocriação
humana, seja no pensamento teórico, nas artes, na práxis humana, ou na transformação
técnica, pessoal e comunitária. Vamos citar, como exemplo, a aplicação dessa
percepção, por Tillich, ao tema da educação:
Nestas relações, aparece uma ambigüidade que se pode formular da
seguinte forma: atuar no sentido de promover o crescimento de uma
pessoa é, ao mesmo tempo, atuar no sentido de sua despersonalização.
A tentativa de promover o crescimento de um sujeito como sujeito
torna-o um objeto. Podemos observar os problemas práticos implícitos
nesta ambigüidade sobretudo na atividade educacional (TS:535).
A função da autotranscendência é possibilitada pela polaridade de liberdade e
destino, e possibilita que a vida se efetive verticalmente, em direção à infinitude. O ser
humano experimenta a ambigüidade, nesta função, por meio da relação interdependente
entre o sagrado e o profano, o que guarda dignidade divina e sublimidade, e o que é
meramente condicionado. A profanização é a negação da dignidade divina, pela
participação no ser divino. É a negação da inviolabilidade que acontece, por exemplo,
quando um organismo assimila outro, “profanizando-o” (TS:549). Na dimensão
humana, a ambigüidade na função da autotranscendência aparece no entrelaçamento
entre hybris e grandeza humana, que resulta em destruição de si e do outro; na ligação
sempre repetida entre grandeza e tragédia (TS:551). A ambigüidade se manifesta na
religião, quando esta profaniza a sua função religiosa, ou eleva seus elementos
72
“A vida cresce mediante a eliminação ou a remoção ou a incorporação de outra vida – a vida se
alimenta da vida” (TS:513).
186
condicionados à validez incondicional (TS:555-556) e, no secularismo, quando não
consegue evitar o elemento de autotranscendência, exatamente ao lutar contra a religião
(TS:558-559). E, em diversas situações, quando a autotranscendência identifica o
portador da incondicionalidade com o próprio sagrado, temos a ambigüidade de divino e
demônico (TS:559):
Todo o processo da vida envolve a ambigüidade, mas no homem o fato da
ambigüidade se eleva à consciência, bem como a pergunta por “uma vida sem
ambigüidades”. A noção de ambigüidade estrutural, inscrita no processo da vida, nos
mostra como Tillich compreendeu a realidade da queda e a forma como a estrutura
essencial, criada, da realidade, foi atingida:
Em todos os processos da vida, um elemento essencial e um
elemento existencial – bondade criada e alienação – estão mesclados
de tal forma que nem um nem outro são efetivos de maneira exclusiva.
A vida sempre inclui elementos essenciais e existenciais; esta é a raiz
de sua ambigüidade (TS:563).
73
A vida sem ambigüidade não é possível como realidade temporal, como posse
presente, mas apenas como um conceito orientador. Ela pode ser buscada, pois a
autotranscendência da vida a impele nessa direção; e é exatamente em sua
autotranscendência que a presença divina no interior da finitude torna-se manifesta
(TS:200), como negação da negação do ser. Mas a vida não atinge o incondicional, não
supera a ambigüidade (TS:566). A revelação traz uma resposta à pergunta por uma vida
sem ambigüidades, que Tillich apresenta sob a noção de “presença espiritual”.
73
A despeito das palavras do próprio Tillich, Eduardo Cruz acredita que a “mistura” de essência e
existência não seria o sentido mais importante do termo “ambigüidade”. O sentido mais importante seria
positivo, de uma condição que “permite a recepção da presença espiritual fragmentária”, e como um pré-
requisito para o processo da vida (Cruz, 1995:91-92). Em nossa opinião, no entanto, há um sentido
positivo unido a um sentido negativo. Afinal, foi essa a razão do uso do termo “ambigüidade”.
187
2.3.10. Síntese
Com o conceito de ambigüidade, concluímos a nossa apresentação da
compreensão Tillichiana da queda e de seus efeitos, numa espécie de “teoria geral da
negatividade”, incluindo: sua base no pólo meôntico da divindade, sua presença na
limitação da finitude essencial, sua efetivação na destrutividade da alienação existencial,
e seu entrelaçamento como parte dos processos da vida, condição de possibilidade mas,
também fonte de ambigüidade.
A interpretação da queda desenvolvida por Tillich claramente deve a muitos
pensadores. Suas idéias da experiência interna do pecado devem muito a Kierkegaard, a
Freud, Nietzsche e Heidegger, e a toda a tradição de pensamento existencialista
originária do século XIX, além, naturalmente, da tradição anterior: dos Pais
antignósticos, de Agostinho, dos franciscanos espirituais, de J. Böhme, de Pascal.
Chegou o momento de tentarmos localizar o conceito de pecado de Tillich mais
precisamente na tradição hamartiológica cristã. Em primeiro lugar, (1) percebe-se uma
nítida preocupação em manter algum tipo de diferenciação entre criação e queda,
afirmando a bondade da criação, como realidade essencial, e o monismo teológico,
rejeitando-se pensar o mal como princípio independente de Deus. Nisto Tillich se
aproxima dos Pais antignósticos. Sua aderência ao origenismo, no que se refere à noção
de queda transcendente, representa um afastamento significativo.
Em segundo lugar, no que se refere à explicação da universalidade do pecado
(2), vemos que Tillich se esforça por afirmar o papel da liberdade humana e, assim, a
culpa individual, bem como a universalidade trágica do pecado, devido ao “destino”,
isto é, às condições necessárias e condicionantes da liberdade finita. A certeza, tanto da
universalidade e solidariedade no pecado, como da escravidão na condição de queda,
188
aproxima Tillich da tradição agostiniana. Entretanto, a culpa trágica da queda é sempre
a culpa do indivíduo; não há, para Tillich, qualquer transmissão de culpa ou
solidariedade na culpa.
74
Assim, a solução origenista-schellingiana elimina o elemento
de solidariedade humana no pecado e na culpa.
Em terceiro lugar (3), quanto à relação de natureza e graça, Tillich es
completamente à vontade na tradição agostiniana-protestante: ele rejeita
inequivocamente a idéia católica de donum superadditum, adotando uma visão
pessimista da natureza humana (Heywood, 2000:100), e afirmando a absoluta
necessidade da graça de Deus para a superação da condição caída. E quanto à natureza
do pecado (4), Tillich é, basicamente, agostiniano; mas, além disso, é Luterano: o
pecado é hybris e concupiscência, mas também incredulidade; e a pecaminosidade
humana atinge tudo o que ele faz, de tal modo que até mesmo o melhor do cristão é uma
mistura ambígua de verdade e falsidade.
Finalmente (5), quanto ao diálogo com a modernidade, Tillich desenvolve uma
impressionante explicação existencial da pecaminosidade humana, esforçando-se para
desconectar sua hamartiologia de suposições pré-modernas e para aproveitar categorias
modernas de pensamento. Sua construção da teologia da Queda se desenvolve em nítido
paralelo com uma interpretação profunda e ampla da filosofia do século XIX e do
movimento existencialista como um todo, e ele efetivamente constrói uma conexão
orgânica entre a tradição dogmática protestante-agostiniana e o pensamento
existencialista schellingiano.
74
Tillich é muito claro em mostrar que não há culpa coletiva. Mas admite que a culpa individual se torna
parte do destino de outros e de si; ou seja, há uma determinação universal da pecaminosidade, mas não a
culpa, que só emerge quando um ato consciente é realizado (Heywood, 2000:98).
189
3. A Interpretação do Símbolo da Queda em Paul Tillich
Criticamente Considerada
Havendo considerado a teoria do símbolo de Tillich, no capítulo I, e a
interpretação da condição de auto-alienação do homem, no capítulo II, podemos passar
a uma observação mais atenta da forma como Tillich interpreta o complexo simbólico
da Queda, considerando-a criticamente, por meio de um estudo de sua coerência interna
e através de exercícios comparativos.
No terceiro e último capítulo de nosso trabalho, pretendemos apresentar esta
reflexão mais avançada, em quatro partes: o primeiro subcapítulo, intitulado Teoria
Simbólica e Prática Interpretativa na Interpretação do Símbolo da Queda em Paul
Tillich, consiste de um estudo de coerência, procurando compreender, basicamente, de
que forma a teoria do símbolo de Tillich o ajuda a interpretar o simbolismo da Queda.
No segundo subcapítulo, mais breve, intitulado Interações Críticas em Torno da
Interpretação Tillichiana da Queda, lançamos à discussão objeções apresentadas por
estudiosos que entraram em debate com pensamento de Tillich. No terceiro subcapítulo,
O Tratamento do Símbolo da Queda em Paul Ricoeur, em Comparação com a
Abordagem de Tillich: Um Contraponto Metodológico, apresentamos um estudo algo
detalhado da interpretação simbólica do mal de Paul Ricoeur, como referencial
comparativo para o trabalho de Tillich. Finalmente, no quarto subcapítulo, Teoria
Simbólica e Prática Interpretativa em Paul Tillich: Reflexões Construtivas,
discutiremos as implicações dos três primeiros capítulos, incluindo algumas reflexões
sobre o método teológico de Tillich, em diálogo com Ricoeur.
190
3.1. Teoria Simbólica e Prática Interpretativa na Interpretação do
Símbolo da Queda em Paul Tillich
[...] no período durante o qual as questões existenciais foram postas de
lado ou esquecidas, a abordagem cognitiva ao simbolismo religioso
foi largamente bloqueada [...] e o retorno de muitos representantes da
filosofia do século vinte, a literatura e a arte, às questões existenciais,
tem uma vez mais aberto a abordagem aos símbolos religiosos
(MW6[EARS]:386-387).
Era a crença de Tillich que os símbolos religiosos foram abertos, ou reabertos, a
partir da transformação das condições intelectuais e espirituais da cultura moderna.
Nosso exame da recepção Tillichiana da tradição hamartiológica cristã nos mostrou isto
claramente; Tillich recebe os desdobramentos teológicos da simbólica da Queda apenas
pela mediação das categorias existencialistas desenvolvidas, a partir das fontes cristãs e
voluntaristas, na primeira metade do século XIX. A análise da existência teria fornecido
a chave para a compreensão do simbolismo religioso e, em especial, do simbolismo
religioso da negatividade, do mal.
Desde que é a redescoberta da existência que cria as condições propícias para a
compreensão dos símbolos religiosos, utilizaremos as categorias centrais da análise
existencial de Tillich como ponto de referência para a reflexão. Além disso, vamos
discutir a aplicabilidade da teoria do símbolo religioso de Tillich em sua leitura da
simbólica da Queda.
3.1.1. A Natureza do Complexo Simbólico da Queda
A partir de uma observação atenta, seria possível distinguir pelo menos três
níveis em nosso complexo simbólico da Queda: (1) temos, no nível mais alto, o símbolo
teologicamente desenvolvido, que descrevemos como símbolo protestante-agostiniano,
ou complexo simbólico protestante-agostiniano. (2) No nível intermediário, temos as
191
raízes bíblicas do símbolo racionalizado, que são, em si mesmas, racionalizações
primitivas. Assim, a narrativa de gênesis 1-3 é a “impureza inicial” em torno da qual se
desenvolverá a pérola do “pecado original”. Essa narrativa sempre esteve no núcleo da
formulação dogmática, e não é diferente no caso de Tillich. A aplicação da metáfora da
“Queda” à narrativa do primeiro pecado já reflete uma compreensão teológica que
atribui a esta narrativa um papel teológico central. (3) Finalmente, no nível mais básico,
da confissão, temos as experiências de pecado, de julgamento, arrependimento e
salvação, a partir das quais são construídas as explicações sobre a origem do pecado e
seu fim.
Tillich não manifesta, no entanto, nenhum interesse por extrair algum proveito
de uma distinção minuciosa desses níveis em sua interpretação existencial dos símbolos.
Assim, em seu tratamento no volume II da Sistemática, ele discute, sem distinção de
níveis de racionalização, o uso da metáfora da “Queda”, o relato bíblico de Adão e Eva,
a noção teologicamente desenvolvida de “pecado original” e a experiência de culpa
pessoal.
Segundo nos parece, Tillich não quer estabelecer uma separação
metodologicamente significativa entre os materiais simbólicos fundamentais, isto é, as
narrativas míticas “brutas” e os símbolos do pecado “proto-existenciais” como a
concupiscência, de suas elaborações teológicas posteriores nos debates patrísticos,
medievais e reformatórios. Na verdade, não há incoerência nisto, desde que o símbolo
religioso, para ele, não é meramente uma imagem estática ou um conceito metafórico
simples, mas um conceito dinâmico que pode ser submetido a trabalho intelectual e se
enriquecer em significado, sem deixar de ser símbolo.
Assim Tillich nos diz, no princípio de sua discussão no volume II da sistemática,
que está a interpretar o “símbolo da Queda”, mas sabemos que ele efetivamente está
192
operando no nível superior do símbolo; sua reflexão teológica gira em torno de uma
noção de pecado original teologicamente elaborada, a partir de uma recepção
substancial do dogma tradicional antignóstico-agostiniano-protestante, embora com
modificações significativas, como vimos.
O símbolo que Tillich interpreta, portanto, é um símbolo mítico racionalizado,
mas a tal ponto soldado que ele não expressa interesse em uma tentativa explícita de
reconstrução dogmática. Tillich não quer rejeitar ou reconstruir totalmente o símbolo;
ele quer reinterpretá-lo. Mas é claro que, em sua interpretação, Tillich recorrerá aos
elementos pré-filosóficos do complexo simbólico racionalizado, bem como às
experiências fundamentais que o originaram, e também se disporá a descartar elementos
conceptualmente absurdos que, durante o processo de racionalização, se agregaram ao
mito “bruto”. O critério para “peneirar” os símbolos e descartar as “impurezas” será,
naturalmente, a ontologia geral de Tillich.
3.1.2. O que a Análise Existencial Esclarece a Respeito do Complexo Simbólico da
Queda?
De um modo geral, a atitude de Tillich com relação aos símbolos não é
indutiva.
75
Tillich não começa com os símbolos religiosos, em busca de extrair algum
sentido teológico ou ontológico, para somente depois procurar uma tradução em
categorias existenciais. Antes, Tillich efetivamente se utiliza de uma análise existencial
para interpretar os símbolos, como “chaves para o significado dos símbolos religiosos”
(MW6[EARS]:390). Mas o que seria exatamente a “análise existencial”?
Se nós nos voltarmos para uma caracterização mais direta das
análises existenciais, nós descobriremos que, em contraste com o
75
Isto não significa, no entanto, que o método de Tillich possa ser classificado como “dedutivo”, como o
indicou o Dr. Rui Josgrilberg (Umesp) após a leitura deste trabalho.
193
essencialismo, elas se concentram na situação humana, e que seu
ponto de partida é a percepção imediata que o homem tem de sua
situação. Ambas as características se seguem do que uma análise
existencial deve fazer, isto é, descrever aqueles elementos da
experiência que expressam o ser em contraste com o que ele
essencialmente é (MW6[EARS]:389).
A contradição da essência, portanto, é o que uma análise existencial deve
considerar; aquela oposição formal, efetuada pela liberdade humana, entre o que ela
pode ser e o que efetivamente é. E esta análise da existência pode ser o ponto de partida
para interpretar os símbolos religiosos porque, enfim, “[...] os símbolos religiosos são,
em parte, uma forma de apresentar a mesma situação com a qual as análises existenciais
se ocupam; em parte eles são respostas às questões implicadas na situação”
(MW6[EARS]:387). Isto é, os símbolos religiosos também são capazes de representar a
condição humana de alienação. Só que o fazem de forma indireta, diferentemente de
uma analítica existencial:
[...] a linguagem religiosa expressa a verdade, a verdade que não pode
ser expressa e comunicada em nenhuma outra linguagem. [...] muitos
ataques à religião são devidos à confusão entre a linguagem simbólica
e a literal. [...].
Uma vez que este fato seja compreendido, pode-se ver
facilmente a relação entre as análises existenciais e os símbolos
religiosos. Análises existenciais expressam conceptualmente o que o
mito religioso sempre tem dito sobre a condição difícil do homem
(MW6[EARS]:392).
Para Tillich, portanto, a análise existencial por meio de categorias ontológicas,
como a encontramos em sua Teologia Sistemática, deve ser compreendida como um
esforço por explicar literalmente e conceptualmente aquilo que os símbolos religiosos
revelam sobre a condição humana, em seu aspecto negativo, de contradição da essência,
de um modo indireto.
76
76
É claro, portanto, que uma analítica existencial poderia ser algo muito mais amplo do que uma
simbólica hamartiológica e, em princípio, nem todos os aspectos de uma analítica existencial são úteis
para atingir o significado dos símbolos religiosos (MW6[EARS]:390).
194
O ponto de contato entre a explicação ontológica de Tillich e a tradição deve ser
encontrada nos existentialia, ou existenciais, um termo que ele deriva de Heidegger para
designar “a estrutura da subjetividade existente” (MW1[NSET]:405). Os existentialia
que assumem papel significativo na exposição de Tillich são (1) o não-ser, (2) a finitude
e a angústia, (3) a transição essência-existência, (4) a alienação existencial, e (5) a
ambigüidade. Os existenciais suprem para Tillich categorias para descrever a condição
existencial, isto é, a condição de afastamento da essência que caracteriza o ser finito.
Como tais, eles claramente assumem contornos universais. Isso gera uma importante
interrogação: se é possível descrever o mundo da existência por meio de universais, isso
não indicaria que a existência de fato não transcende a essência?
Este argumento é parcialmente válido, e parcialmente inválido. É
válido na medida em que mostra o que Schelling, em contraste com
Kierkegaard, viu claramente, que a filosofia positiva pressupõe a
filosofia negativa, que o existencialismo pressupõe o essencialismo.
[...] Mas o argumento não vai além deste ponto [...]. Logicamente,
ambos têm o mesmo caráter, ontologicamente eles são separados pelo
salto que separa o potencial (o “quê”) daquilo que constitui o atual
(o “isto”) (MW1[NSET]:405).
A chave obtida por Tillich para a distinção entre os conceitos essenciais e os
existenciais, portanto, é a distinção aristotélica entre ato e potência. Os mesmos
conceitos podem ser compreendidos como essenciais ou como existentialia,
distinguindo-se a partir de uma diferenciação que não é lógica.
Talvez possamos dizer algo mais a respeito dessa distinção. Segundo Tillich, a
alienação existencial envolve a contradição da essência. Nossa análise do pensamento
de Tillich, no capítulo II, mostrou que a experiência da alienação existencial está
relacionada a uma negatividade cuja origem é ultimamente divina. Deste modo,
complementarmente, poderíamos dizer que os existentialia são conceitos que trazem em
si um elemento de negatividade, de contradição mesmo; sendo que, sempre, a
195
contradição é constituída a partir daquilo que é negado, mantendo-se a prioridade da
essência.
Desde que Tillich utiliza os existentialia para interpretar os símbolos, vamos
procurar organizar os símbolos ligados à Queda em torno desses conceitos básicos.
(1) Símbolos do Não-Ser Dialético
O conceito de não-ser é claramente o principal dos existentialia, a noção
dominante em toda a exposição de Tillich sobre a existência, lançando sua sombra sobre
cada um dos conceitos restantes. Assim, a solução para o problema do mal vem da
compreensão do não-ser como uma negatividade divina, eternamente reconciliada em
Deus, mas irreconciliada na experiência do análogo finito de Deus, que é o homem; a
finitude é compreendida como a mistura de ser e não-ser dialético, essencialmente boa.
A angústia essencial nasce do choque do não-ser, ou choque meôntico; a queda ocorre
quando a liberdade finita se efetiva afastando-se do fundamento, e experimentando a
negatividade de sua finitude por meio da ruptura dos equilíbrios polares essenciais; e as
ambigüidades da vida são resultantes da mistura de essência e existência no
desenvolvimento da vida.
Filosoficamente falando, o não-ser dialético é um conceito ontologicamente
derivado; é a possibilidade de negar o ser, mas que depende, como o nome indica, da
presença do ser. Não se pode pensar o não-ser sem pressupor o ser. Não tem essência
própria, portanto. Mas por ser um fato, o não-ser não pode simplesmente ser “nada”; ele
tem uma positividade. Essa é a razão porque Tillich se alinha com o voluntarismo de
Schelling; a ontologia voluntarista parte da constatação de que só a vontade pode negar
a si mesma, formalmente, sem implicar a presença de duas essências distintas. A
196
contradição formal produz, assim, um duplo da vontade, que pode ser reconciliado em
uma unidade mais rica que a mera indiferença inicial: a identidade.
Ao postular uma negatividade em Deus, eternamente reconciliada nele, por meio
do Espírito, Tillich efetivamente está descrevendo uma “realidade” superior à
existência, que daria a nós a possibilidade de pensar a existência. Se a negatividade não
estivesse em Deus, seria impossível pensar a existência. O fundamento “volitivo” de
toda a realidade estabelece uma união interna de poder e significado, de tal modo que se
torna possível “dizer” a condição existencial de ruptura.
O meon divino deve, portanto, ser compreendido como um aspecto da descrição
filosófica da transcendência divina. Como uma realidade essencial, pertence ao ponto
de partida ontológico. Tillich nos diz que os quatro níveis de conceitos ontológicos
(estrutura básica, elementos, diferença essência-existência, categorias do ser) são
conceitos menos universais que o ser, e que isso torna possível pensar o ser. Mas eles
não poderiam ser menos universais se não houvesse um princípio de particularização. A
polaridade eu-mundo, por exemplo, implica em si a negação. Toda polaridade indica a
presença da negação. O princípio meôntico em Deus, portanto, é a condição de
possibilidade da finitude essencial e existencial, isto é, de tudo o que não é Deus.
Com isso chegamos à conclusão de que os existentialia são possibilitados por
um princípio divino essencial. Isso os torna pensáveis. Eles não são constituídos a partir
de uma arbitrariedade irracional, mas têm um fundamento ontológico último.
Estabelecida a posição ontológica do não-ser dialético, precisamos perguntar: Qual a
relação entre este conceito fundamental e o complexo simbólico da Queda? De que
modo o símbolo religioso é correlacionado com esta categoria?
Em suas análises da história do pensamento cristão, Tillich aponta uma
percepção pré-filosófica da negatividade divina no interior da corrente agostiniana de
197
pensamento. Assim, Agostinho afirma o dogma da predestinação divina, e rejeita o
dualismo teológico. Lutero admite uma face demônica em Deus (que Böhme
sistematizará em sua teosofia), e os calvinistas expressam essa percepção no decreto
terrível da dupla predestinação. A solução protestante-agostiniana é monista, portanto.
Ao mesmo tempo, identifica a origem do pecado com a liberdade humana. Tillich
utilizará o voluntarismo schellingiano para explicar como a vontade, reconciliada em
Deus, conduz a uma vontade finita não reconciliada – o homem. Além disso, Tillich
explica a ira de Deus e a condenação, em linha com Agostinho e Lutero, como atos do
amor de Deus; como o seu julgamento sobre tudo o que quer existir separadamente do
seu fundamento. O julgamento é simplesmente a auto-destruição que a alienação se
impõe a si mesma.
A noção ontológica de não-ser dialético é utilizada, portanto, para expressar a
relação do incondicionado como Vontade, isto é, Liberdade Infinita, com tudo o que é
condicionado; o significado, para a existência, da natureza voluntarística do
fundamento, na gênese da negatividade.
Através deste existencial Tillich descreve, portanto, todo um recorte definido de
símbolos, que poderíamos denominar como “negativos”. Este recorte atravessaria
diferentes grupos simbólicos, incluindo a Soberania Divina (o elemento demoníaco da
predestinação, o decretum horribilis), a Ira Divina, como atributo, e os atos divinos de
Condenação e Julgamento (incluindo satanás, como seu instrumento):
77
Níveis Simbólicos Grupos Simbólicos Símbolos
Nível 1: Símbolos de
Grupo 1: Conceitos e
atribuições de Divindade
Vontade, Predestinação (Com
referência ao Não-Ser
Dialético)
77
Segundo a classificação apresentada no capítulo 1, item 1.2.5.
198
Grupo 2: Atributos da
Divindade
Ira divina
Transcendência
Grupo 3: Atos de Deus
Condenação, Julgamento
O conceito de não-ser dialético, ou meon, é utilizado, portanto, para interpretar
ontologicamente os símbolos de transcendência que expressam o envolvimento divino
com as negatividades da existência. Ele não se aplica, naturalmente, aos símbolos de
imanência, na medida em que, como o próprio Schelling já havia apontado, o meon
divino está reconciliado em Deus, e não é pecaminoso. Na liberdade finita o meon
torna-se a base para o anti-divino, que é o pecado atual do ser humano. O pecado só é
possível devido ao meon divino, mas é efetivado pelo homem, como expressão singular
da liberdade finita.
(2) Símbolos da Finitude
Tillich deve principalmente a Kant, a Schelling e a Heidegger a constituição de
sua idéia de finitude que, em si mesma, não é um conceito dependente da realidade da
alienação existencial. Trata-se do reconhecimento da limitação do ser pelo não-ser no
ser finito. “Finitude, como um existencial, é a experiência dupla do sujeito existente
como ligado à transitoriedade e como transcendendo-a na consciência do trans-
temporal” (MW1[NSET]:406), a experiência de pertencer ao infinito mas estar excluído
dele pela finitude. A finitude envolve a contradição de ser limitado e ao mesmo tempo
ter o destino essencial da eternidade divina.
A finitude é um existencial cuja finalidade é interpretar, não tanto a condição de
pecado, mas o símbolo religioso da criaturidade: “A análise existencial lida com a
finitude humana como é experimentada em ansiedade. O símbolo mitológico para esta
199
experiência é o homem como uma criatura”. Assim como a tradição afirma nada haver
de errado com a criaturidade, Tillich repetirá que a finitude essencial é boa: “Deve
haver uma existência criatural, mas ela deve ser salva não de si mesma como criatura,
mas de sua auto-alienação” (MW6[EARS]:392, 393).
Não se pode pensar a alienação existencial, no entanto, sem a noção de liberdade
finita. Por meio dessa noção, Tillich interpreta a noção teológica agostiniana da
possibilidade de pecar, a posse peccare: A negatividade divina torna possível uma
negatividade temporal, isto é, o pecado, justamente ao expressar-se na instabilidade da
liberdade finita, que é análogo de Deus, o “anti-Deus” schellingiano. A liberdade finita
é um pressuposto antropológico necessário à interpretação existencial.
Tillich utiliza o conceito de angústia para interpretar o símbolo tradicional da
tentação. A angústia é, como já vimos, uma característica essencial da finitude. É algo
estrutural, e não um resultado da alienação, originando-se da consciência de finitude.
Esta angústia brota da certeza da condicionalidade temporal, espacial, causal e
substancial, e possibilidade de ruptura das polaridades ontológicas e da perda do eu e do
mundo. A angústia, no entanto, é a condição de possibilidade da busca de auto-
realização pessoal longe do fundamento:
O simbolismo da tentação já foi mencionado em conexão
com a análise da ansiedade das decisões existenciais. Tentação é
possibilidade, e a ansiedade de ter de decidir é a consciência de
possibilidade. Há muitos mitos e lendas de tentação dos quais,
provavelmente, o mais profundo é a história bíblica na qual a situação
do homem, simbolizado por Adão e Eva, é claramente a decisão entre
permanecer na inocência sonhadora do paraíso e atingir a auto-
realização em conhecimento, poder e sexo (MW6[EARS]:393).
A tentação existe, pois, como elemento estrutural da condição de finitude. A
angústia é essencial; a tentação expressa a angústia inevitável de enfrentar a escolha
pela auto-constituição pessoal com a conseqüente alienação existencial.
200
(3) Símbolos da Transição Essência-Existência
A tentação nos leva diretamente ao símbolo da Queda. Temos, aqui, o núcleo do
simbolismo do pecado, e a “espinha dorsal” do sistema, como o próprio Tillich a
descreve. Por um lado, a transição essência-existência é um ato de Deus, interpretando o
símbolo da criação. Por outro, é uma ação da criatura, de afastamento do fundamento do
ser. O existencial transição essência-existência está relacionado com a Queda como ato
pecaminoso, ato de auto-constituição independente:
O homem escolhe a auto-realização e cai no estado de alienação, e
com ele seu mundo também cai. Compreendido dessa maneira, o mito
da queda, para o qual há analogias na maioria das religiões, representa
um caso muito particular de transição da inocência da potencialidade
para a culpa trágica da auto-atualização (MW6[EARS]:393-394).
Como vimos, Tillich distingue a realidade essencial da existencial por meio das
categorias aristotélicas de potência e ato. A auto-atualização ou auto-efetivação da
liberdade finita como tal, como personalidade independente, particular e soberana sobre
si mesma, implica separação do fundamento. Toda auto-efetivação do homem como tal
o afasta de sua essência, e afirma sua particularidade contra seu pertencimento à
infinitude divina. Como ato de liberdade, implica mais que essência, mas sempre um
abandono parcial da essência. Portanto, a alienação existencial não começa em algum
ponto após o início da existência temporal, mas é constituída pela existência.
Tillich descreve a “transição” como uma forma ainda semi-mitológica (devido
ao elemento temporal implícito) de falar da “queda”. Na verdade a noção de Queda
inclui, além do elemento temporal da transição, o elemento espacial, e o símbolo da
altura, a oposição “em cima” e “embaixo”. Poderíamos dizer que a imagem da “queda”,
201
constituída a partir da inversão do simbolismo da “altura,”
78
é muito mais carregada,
em termos de categorias da finitude, do que a imagem da “transição”. O fato, no
entanto, é que não há como expressar a diferença lógica implicada na distinção
potencialidade essencial X atualidade existencial sem apelar para as categorias da
finitude. Mesmo que a condição de potencialidade essencial seja atemporal, a existência
é exatamente a temporalidade. Portanto, é preciso falar dessa distinção em termos
temporais.
79
A importância dessa distinção não deve ser subestimada. Com tal
diferenciação lógica, Tillich pretende fazer justiça à tradição, apoiando o ataque dos
Pais à separação gnóstica do deus mau e do deus bom, e à identificação de criação e
pecado, a blasphemia creatoris. O existencial transição essência-existência, assim,
interpreta também a bifurcação simbólica antignóstica de Criação e Queda.
Tillich manifestou, em mais de uma ocasião, uma antipatia em relação ao uso do
termo “pecado original” para descrever a condição de Queda, devido à sua forte
conotação intra-temporal, bem como à sugestão implícita de alguma forma de
transmissão de culpa – a noção de “pecado hereditário”, então, foi inequivocamente
rejeitada por ele:
Os termos, extremamente questionáveis, “pecado original” e “pecado
hereditário” expressam o pecado trágico e atual, o elemento pessoal.
Eu sugiro que nós dispensemos os termos “pecado original” e “pecado
hereditário” completamente. Eles parecem estar além da salvação. [...]
O termo “pecado original” deveria ser substituído pelas descrições
existenciais do caráter universal e trágico da alienação humana
(MW6[EARS]:394).
78
“O movimento para cima é fisicamente mais difícil que para baixo, assim, o ‘mais alto’ se torna um
símbolo de aquisição e excelência (pense na imagética da ‘ascensão’, de Platão a Dante e a Thomas
Merton). A altura é também associada com o reconhecimento de poder, como quando o homem se ajoelha
ou se prostra diante do trono elevado de um rei, em reconhecimento ao seu governo ‘sobre’ ele. Edwyn
Bevan mostra, mais especificamente, que o sentido da reverência religiosa é similar ao de olhar para uma
montanha ou para o céu. Símbolos de altura são, assim, apropriados para expressões de adoração [...]”
(BARBOUR, 1975:14-15). A “queda” seria o inverso da “ascensão”. Ricoeur reconheceria aqui o
processo de transbordamento semântico na origem do símbolo.
79
Exatamente esta constatação levou Agostinho a se perguntar como a Criação poderia ter tido um
“início”, se o próprio tempo foi criado juntamente com o espaço e com a matéria.
202
Embora Tillich claramente rejeite os termos, percebe-se a tentativa de
correlacionar a idéia de solidariedade de todos os homens no pecado original, de Adão,
com o caráter universal da alienação, e a transmissão hereditária do pecado, com o
caráter trágico da alienação. Há, portanto, um esforço por extrair significado, mesmo
dessas formas bastante racionalizadas do símbolo mítico da Queda.
Creio estarmos justificados em dizer que o existencial transição essência-
existência também interpreta o símbolo teológico do peccatum originalis originans
(pecado original originante) eliminando qualquer referência temporal literal e, num
nível mais baixo, o símbolo mítico que fundamentou narrativamente a concepção de
pecado de Tillich: o símbolo mítico do pecado de Adão, que constitui o núcleo da noção
agostiniana de pecado original. Ao mesmo tempo, com a semi-desmitologização do
mito bíblico e a justaposição do símbolo mítico órfico-platônico da queda
transcendental das almas, utilizado por Orígenes, Tillich efetua uma fusão do pecatum
originalis originans com o peccatum originalis originatum (pecado original
originado). Ele prefere, no entanto, evitar o uso desses termos agostinianos e falar
apenas da universalidade trágica do pecado. E, desde que a auto-efetivação pessoal da
liberdade finita implica por si mesma a alienação do fundamento, Tillich estaria distante
do pelagianismo, interpretando por meio da noção de transição essência-existência a
idéia agostiniana de pecaminosidade per generatione non imitatione. – sendo que a
“geração”, no caso, dá-se por um ato de auto-constituição moral, e não pela reprodução
biológica.
(4) Símbolos da Alienação Existencial
A transição essência-existência introduz a condição de alienação existencial. O
termo mais adequado para expressar essa condição, na opinião de Tillich, é mesmo a
203
antiga noção de pecado. Em 1956 Tillich via uma correspondência quase completa
entre este símbolo e o conceito de alienação:
O termo tradicional para o estado humano de alienação é
“pecado” [...]. Pecado, à luz da análise existencial, é a alienação
humana de seu ser essencial, uma alienação que é tanto necessidade
trágica como culpa pessoal. [...] o termo pode e deve ser salvo sendo
reinterpretado como um estágio da alienação pelo qual, a despeito de
seu caráter trágico, nós somos pessoalmente responsáveis e a partir do
qual os atos concretos de alienação de nós mesmos, dos outros, e do
significado do nosso ser, se seguem (MW6[EARS]:394).
No volume II de sua Sistemática, lançada no ano seguinte (1957), Tillich é
menos confiante quanto à possibilidade de usar o termo “alienação” (estrangement)
como substituto para “pecado”, desde que este conota o ato pessoal de afastamento de
um modo muito mais claro (TS:340). Entretanto, essa insuficiência poderia ser
facilmente suprida se usarmos o termo “auto-alienação”, que Tillich utiliza no volume I
da Sistemática, embora não para explicar o pecado. De qualquer modo, mesmo
reconhecendo a validade do conceito tradicional, Tillich efetivamente usa o existencial
“alienação” para interpretar o símbolo do pecado em sua essência, a auto-efetivação
pessoal para fora da unidade com o incondicionado (a aversio Dei de Tomás), incluindo
seus elementos tradicionais protestantes-agostinianos, já, em grande parte, traduzidos
literalmente: a auto-elevação, ou hybris, a incredulidade, ou rejeição da coragem que
presentifica poder de ser (isto é, a rejeição da aceitação incondicional) e a
concupiscência, o desejo infinito de integrar a infinitude em si.
Como vimos antes, Tillich rejeitou a noção católica-anselmiana-tomista de um
donum superadditum que teria sido perdido com a Queda. Tillich explica o estado de
pecado como uma contradição da essência, e não como a perda de um dom sobrenatural.
Com a explicação do pecado como auto-efetivação pessoal, em independência do
fundamento divino, Tillich alinha-se com a tradição “pessimista” protestante-
agostiniana, que vê o pecado como uma atitude positiva, e não meramente uma
204
privação. As raízes dessa concepção se encontram em sua exposição do não-ser
dialético, como uma negatividade substancial, e não o mero nada absoluto. Tillich
portanto utiliza a noção de auto-alienação existencial para interpretar o símbolo da
depravação total, no que tange à positividade da escolha pessoal.
O conceito de angústia explica, como vimos, uma condição intrínseca da
finitude, ajudando a interpretar o símbolo da criaturidade. Sob as condições da
existência, no entanto, ele se aplica aos efeitos da auto-efetivação, isto é, do pecado.
Temos, assim, a ansiedade da culpa, que se mistura à ansiedade da finitude, como uma
consciência de responsabilidade pessoal na separação de Deus. A ansiedade da culpa
80
ou, nos termos da Teologia Sistemática, o estado de desespero fundamental, interpreta
os símbolos da condenação divina e do sofrimento resultante da separação do
fundamento divino:
Os símbolos religiosos predominantes desta ansiedade são, como já
foi indicado em relação ao poema de Dante, o julgamento, a
condenação, a punição e o inferno. Eles usualmente aparecem em uma
estrutura dramática com um ser divino como juiz, poderes demônicos
como executores, e um lugar especial reservado para uma punição
duradoura ou eterna. [...] condenação e punição obviamente não são
coisas que nos julgam do alto, mas símbolos do julgamento que nós
inescapavelmente fazemos contra nós mesmos, da dolorosa divisão
dentro de nós mesmos [...] (MW6[EARS]:394).
Tillich inclui, como elementos da estrutura simbólica do desespero, a divindade
como poder, a lei divina, que seria “a própria lei do ser essencial de alguém”, a expulsão
do paraíso, a escravidão ao pecado e os demônios, os executores da punição. Em nossa
discussão sobre leitura de Schelling por Tillich, tivemos a oportunidade de observar que
o afastamento do ser pela negatividade implica sua auto-destruição que é,
simultaneamente, a sua redenção “para fora” do estado de negação, isto é, a
reconciliação. Tillich descreve o resultado da auto-contradição da essência como auto-
80
“[...] a culpa se torna um conceito existencialista se é a expressão do desvio do que alguém
essencialmente é e deve ser. A culpa neste sentido está conectada com a ansiedade de perder o seu
verdadeiro ser” (MW6[EARS]:389).
205
destruição existencial, na Sistemática (TS:353). A partir de uma visão Schellingiana,
compreende o julgamento e a condenação como símbolos da auto-destruição imposta
pela negatividade, expressa na auto-destruição do ser finito, em sua alienação do
fundamento divino. Por essa razão, os símbolos da auto-alienação existencial se
confundem, aqui, com os símbolos do não-ser dialético. Trata-se da mesma realidade
meôntica, como vivenciada pela liberdade finita, e captada através da angústia da culpa.
Esta “vivência” do não-ser, captada na angústia da culpa, se dá por meio da
experiência do mal, que é a perda do eu e do mundo. O mal existencial é descrito por
Tillich como a “estrutura básica de auto-destruição”. A perda do eu e do mundo se
efetiva no desequilíbrio das polaridades. Através delas, se descreve as características do
estado de condenação. Assim, a separação de liberdade e destino leva à transformação
da liberdade em arbitrariedade e o resultante aprisionamento do ser às compulsões
internas e externas: “Esse é o caráter ontológico do estado que a teologia clássica
definiu como a ‘escravidão da vontade’, ou ‘vontade cativa’” (TS:357). Segue-se,
portanto, que a ruptura da polaridade liberdade-destino serve para interpretar
existencialmente o símbolo teológico protestante-agostiniano da necessitas peccandi,
isto é, a “necessidade de pecar”, ou, a escravidão da vontade ao pecado. Juntamente
com outros efeitos da Queda, como o sofrimento, a possessão demoníaca e a morte, a
escravidão ao pecado é interpretada como símbolo das estruturas de auto-destruição
existencial que estão além do controle do indivíduo, e que o consomem
inevitavelmente.
(5) Símbolos da Ambigüidade Existencial?
Como tivemos a oportunidade de considerar, a noção de ambigüidade é utilizada
por Tillich para expressar a mistura de elementos essenciais e existenciais no processo
206
concreto da vida, e que tal mistura indica integração do não-ser dialético neste processo.
Tillich não faz um esforço específico para correlacionar símbolos da Queda com o
conceito de ambigüidade, mas há algumas concepções protestante-agostinianas que se
aproximam da análise de Tillich: as idéias de depravação total, agora entendida como a
pervasividade do pecado em todos os aspectos da vida humana, e a presença do pecado
na vida do crente justificado, expressa na concepção luterana de ser simultaneamente
justo e pecador. Tillich, no entanto, não constrói explicitamente uma reflexão sobre o
pecado a partir do conceito de ambigüidade.
3.1.3. Como Classificar os Símbolos do Complexo Simbólico da Queda?
Depois de organizar e reinterpretar os símbolos racionalizados do discurso
teológico tradicional em torno dos existentialia tillichianos, sente-se com mais clareza o
desconforto no processo de classificação. O conceito de não-ser dialético não é difícil de
classificar, como vimos, assim como os símbolos do desespero existencial, em seu
caráter de atos divinos de julgamento. Trata-se, basicamente, de símbolos de
transcendência divina, considerada em sua dimensão meôntica. Além disso, os símbolos
da finitude e da transição essência-existência como criação também cabem entre os
símbolos de transcendência, desde que podem ser reunidos no conjunto dos “atos de
Deus” (o terceiro grupo simbólico do nível simbólico da transcendência divina).
O que dizer, no entanto, dos símbolos da transição essência-existência, em seu
lado negativo, da alienação existencial e da ambigüidade? É claro que eles não são
símbolos de transcendência, pois dizem respeito ao ser finito, e a este ser sob as
condições da existência. Os símbolos de imanência, como vimos, dividem-se nos
grupos simbólicos de aparições espaço temporais da divindade, símbolos sacramentais e
207
sinais (lugares e objetos) com força simbólica. Também não há como localizar os
símbolos da negatividade finita aqui.
O próprio Tillich parece não ter manifestado grande cuidado na classificação dos
símbolos de negatividade. Obviamente, no entanto, há mais aqui do que um mero
problema de classificação. Na tipologia simbólica de Tillich os símbolos são
organizados de forma hierárquica, acompanhando o grau de
proximidade/distanciamento ontológico do símbolo em relação ao incondicionado. No
nível mais inferior, estão objetos sacros e, no nível mais elevado, as atribuições de
divindade. Assim, Tillich classifica os símbolos do incondicionado, da positividade
divina. Os símbolos da finitude, da transição essência-existência, da alienação
existencial e da ambigüidade, no entanto, são símbolos cosmológicos e antropológicos.
Não são símbolos propriamente teológicos, mesmo que contenham um elemento
teológico.
Mas as razões para este descompasso estão profundamente enraizadas no próprio
sistema de Tillich. Como o próprio Schelling expôs a partir de seu sistema, ainda que
exista uma profundidade meôntica na divindade no interior do processo teogônico, essa
profundidade não constitui pecado em Deus. Ela é divina e permanece eternamente
reconciliada pelo Espírito divino. No homem, no entanto, as potências da vontade e da
razão estão unidas por um espírito finito, e estão sob seu controle. Por isso mesmo, o
homem pode revoltar-se contra o seu fundamento, e ele efetiva esta revolta quando
afirma a sua particularidade pessoal contra a infinitude divina. Neste ato de auto-
constitução, ou auto-efetivação pessoal, o homem peca, separando-se do fundamento
divino. O homem é, assim, o anti-divino.
81
81
“Há outro risco que pertence ao homem e que é a causa da culpa e da alienação: o risco de efetivar ou
não-efetivar a si mesmo, e em assim fazendo perder a si mesmo, isto é, a seu ser essencial. Esta situação
pode ser observada em cada momento em que a inocência é posta diante da decisão entre permanecer em
208
Tillich segue Schelling ao interpretar o símbolo da imago Dei
82
como a
liberdade espiritual do homem. O homem é a versão finita da liberdade divina; é a
liberdade finita. Como tal, o homem é capaz de destruir a unidade das potências. Na
afirmação de sua liberdade pessoal, em sua auto-efetivação, o homem destrói o
equilíbrio das potências, e se afasta de Deus. E nisto consiste o pecado, a auto-alienação
existencial.
O que temos, portanto, é que, no sistema de Tillich, ainda que a possibilidade
ontológica do pecado tenha seu fundamento no meon divino, e a possibilidade
instrumental do pecado tenha sido dada na estrutura essencial da finitude, é a escolha
livre do ser finito que provoca a transição essência-existência e a alienação existencial.
Não se pode coerentemente, portanto, tratar os símbolos de negatividade apenas como
símbolos do divino. Os símbolos da possibilidade e da efetividade do pecado no ente
finito são símbolos de origem antropológica. Eles são símbolos de realidades humanas,
não divinas. São coisas feitas pelo homem, não por Deus.
83
Sob esta ótica, compreende-se que os símbolos de salvação sejam facilmente
classificáveis segundo a tipologia de Tillich. É que eles dizem respeito, de fato, à
manifestação do incondicionado na superação da alienação existencial a que o homem
se impôs. Os símbolos do Novo Ser e da Presença Espiritual são símbolos religiosos
típicos, isto é, símbolos do incondicionado e da nossa relação com o incondicionado a
partir de sua manifestação. Mas os símbolos relacionados ao pecado não são símbolos
um estado de potencialidades não-efetivadas ou de ultrapassar o estado de inocência e efetivá-las”
(MW6[EARS]:391).
82
“Na visão Bíblica, o homem é e sempre permanecerá a imagem de Deus em razão de suas qualidades
corporais e espirituais que lhe dão controle sobre a natureza a despeito de sua alienação de seu ser
essencial” (MW6[EARS]:387).
83
Deste modo podemos compreender a seguinte observação de Tillich: “Desde que a análise das
estruturas existenciais é predominantemente uma análise da condição desastrosa do homem, a melhor
forma de distinguir análises existenciais e essenciais é fazê-lo com respeito às duas doutrinas do homem”
(MW6[EARS]:387). Embora retirada de um contexto em que o tema de Tillich é como distinguir a
análise existencial da análise essencial, e não o da natureza do símbolo, a declaração revela que, de fato,
uma análise existencial se caracteriza por sua referência antropológica.
209
religiosos típicos, porque se referem ao incondicionado de modo indireto, por sua
negação implícita.
A noção de pecado denota o afastamento humano de Deus, o ato da liberdade
finita. Não seria possível pensar o pecado sem um elemento teológico, sem a
pressuposição implícita de uma relação com o incondicionado. Mas essa relação é
apresentada em termos de ausência, de negação, como aquilo que se rompe e que se
deixa. Exatamente por esta razão a teologia cristã da Queda se desenvolveu
historicamente a reboque da soteriologia e da doutrina da Criação. O pecado é
conhecido tanto quanto se compreende e se vivencia a graça reconciliadora.
Com base nesta constatação, proporíamos uma de duas possibilidades: (1) a
divisão do nível 2 (Símbolos de Imanência) em duas classes: os símbolos de Queda e os
símbolos soteriológicos, Os símbolos de Queda diriam respeito àquilo que a liberdade
finita faz ao se auto-efetivar e se afastar do fundamento divino, e os soteriológicos à
ação reunificadora de Deus. (2) Outra possibilidade seria criar um terceiro nível
simbólico independente dos símbolos de imanência, sob o nome de símbolos
hamartiológicos, ou símbolos da Queda. Os símbolos do não-ser dialético
permaneceriam como símbolos de transcendência divina.
Níveis Simbólicos Grupos Simbólicos Símbolos
Grupo 1: Conceitos e
atribuições de Divindade
Deus Pessoal, Soberania
Grupo 2: Atributos da
Divindade
Justiça, Amor, Poder,
Misericórdia, Ira Divina
Nível 1: Símbolos de Transcendência Divina
Grupo 3: Atos de Deus Criação, Salvação,
Consumação,
Julgamento
Grupo 4: Aparições da
Divindade no Tempo e no
Espaço
Encarnação, Teofanias
Grupo 5: Símbolos
Sacramentais
Batismo, Ceia do Senhor
210
Nível 2: Símbolos de Imanência Divina
Grupo 6: Sinais com
força Simbólica
Edifícios, Lugares
Santos, Relíquias,
Livros, Cruzes
Grupo 1: Símbolos de
Fabilidade (finitude
negativamente
considerada)
Pecabilidade, Tentação
Grupo 2: Símbolos de
Transição Essência-
Existência
(negativamente
considerada)
Queda, pecado original.
Nível 3: Símbolos Hamartiológicos, ou
Símbolos de Queda
Grupo 3: Símbolos de
Alienação Existencial
Pecado, expulsão,
condenação, demônios,
escravidão do pecado,
depravação total
O próprio Tillich, enfim, sugere esta categorização, embora de forma apenas
implícita, em Existential Analyses and Religious Symbols (1956), ao falar de duas
formas distintas de símbolos, a primeira indicando a situação de queda, e a outra a
reação divina a esta situação:
Pois os símbolos religiosos são, em parte, uma forma de apresentar a
mesma situação com a qual as análises existenciais se ocupam; em
parte eles são respostas às questões implicadas na situação. Eles
cabem na primeira forma quando falam do homem e sua situação
difícil. E cabem na segunda forma quando falam de Deus e sua reação
a esta situação difícil. Em ambos os casos, a análise existencial torna
os símbolos religiosos compreensíveis e tema de possível
consideração para nossos contemporâneos, incluindo filósofos
contemporâneos (MW6[EARS]:387).
3.1.4. O Complexo Simbólico da Queda e a Via Simbólica de Tillich
(1) As Características do Símbolo na Simbólica da Queda
A simbólica da Queda apresenta todas as características típicas de um símbolo: a
sua qualidade figurativa é visível no fato de eles indicarem algo maior que eles
mesmos, em sua literalidade. Assim, a “ira divina” representa para consciência a
percepção da auto-destruição implicada em uma relação rompida com o incondicionado,
e é esta, nos diz Tillich, a realidade intencionada pelo fiel. Estes símbolos também têm
211
o poder inerente e a aceitabilidade, evidenciados em sua persistência secular no
discurso religioso, como tivemos a oportunidade de observar.
Quanto às qualidades da participação na realidade expressa e de
perceptibilidade, sentimos uma leve diferença de “sentido direcional” na aplicação
dessas qualidades. Elas se aplicam facilmente aos símbolos meônticos, como os
conceitos de “lei”, “ira de Deus”, “juízo divino” que, efetivamente, trazem as realidades
subjacentes à consciência do fiel. Estes símbolos são extáticos, apontando “para fora”,
por assim dizer. Entretanto, os símbolos de Queda não têm a função de colocar à
consciência a realidade divina, que é intencionada pelo fiel através dos símbolos de
imanência e de transcendência. Eles colocam, na verdade, a ausência da presença
divina, a alienação existencial. Mas o fato é que a colocam, na forma de uma relação
negativa, revelando ao indivíduo a sua própria condição espiritual, e fazendo-o
participar dela conscientemente; são símbolos introspectivos. Assim, a noção de
“escravidão do pecado” efetivamente expressa para o fiel a ruptura da polaridade
liberdade-destino, e abre para ele a realidade desta experiência; tem poder revelante em
relação à condição humana.
(2) O Problema do Critério Religioso da Simbólica da Queda
Quando nos movemos para o procedimento de decifração dos símbolos,
especificamente, sentimos uma dificuldade de explicação, exatamente em torno da
direcionalidade dos símbolos de Queda. Segundo nos instrui a via simbolica, não há
uma relação objetivável do incondicionado com a carga positiva do símbolo religioso,
de modo que esta carga semântica não tem valor descritivo. Isto explica a interpretação
dos símbolos de transcendência e de imanência, que são extáticos, mas não explica
212
adequadamente os símbolos introspectivos, visto que eles não pretendem, enfim,
expressar o incondicionado.
O critério cristomórfico de Tillich, que examinamos no item 1.2.4 deste
trabalho, desenvolvido a partir da idéia tillichiana de paradoxo, implica que a
veracidade de um símbolo corresponde à sua capacidade de auto-negação, de renúncia à
incondicionalidade. Trata-se, como vimos, de uma incorporação original da antiga via
negationis. Qualquer paradoxo metafísico inscrito na morfologia semântica do símbolo
deve ser interpretado, portanto, de forma estritamente não literal, isto é, como
implicando a sua auto-destruição lógica. Esta auto-destruição é o seu “auto-sacrifício”,
por assim dizer, desde que tal auto-sacrifício seja admitido pela consciência crente.
Rigorosamente falando, este critério se aplica a qualquer símbolo que expresse a relação
do homem com o incondicionado; assim, aplica-se facilmente aos símbolos religiosos
extáticos, que pretendem dizer algo, positivamente, sobre esta relação, em sua
literalidade.
No caso dos símbolos introspectivos, por seu caráter antropológico, esta
aplicação não parece ser logicamente consistente. Estes símbolos não expressam tanto a
relação do homem com o incondicionado, quanto a sua falta de relação. Ou, a
expressam negativamente. São símbolos do afastamento, da alienação. Embora
expressem a realidade incondicionada indiretamente, por sua ausência, intencionam em
sua estrutura a condição humana; querem expressar diretamente a condição humana,
não a presença do incondicionado. Não há porque, portanto, exigir que os símbolos de
Queda não expressem conteúdos literalmente traduzíveis a respeito da condição
humana. De que modo, então, o critério cristomórfico pode ser aplicado a estes
símbolos?
213
Na verdade, não há contradição metodológica alguma na interpretação desses
símbolos, segundo nos parece. Tillich admitirá, enfim, que os símbolos de
transcendência e imanência não podem ser literalmente traduzidos no que tange à sua
manifestação do incondicionado, mas, em seu trabalho hermenêutico, efetivamente
traduz a condição humana, em sua relação positiva com o incondicionado, através dos
conceitos ontológicos. Tillich não espera uma interferência direta do sentido
transcendente dos símbolos em sua interpretação. Assim, não há uma interferência
direta da referência extática desses símbolos ao incondicionado. No caso dos símbolos
de Queda, cuja referência é introspectiva, a ausência implícita do incondicionado
também não interfere diretamente em seu significado; mas não precisava interferir, de
todo modo.
Poderíamos dizer, no caso destes símbolos, que o critério cristomórfico não tem
aplicação direta, sem que isto implique uma contradição ou inadequação na teoria do
símbolo de Tillich. Não haveria, então, um critério para estes símbolos? Considerados
em si mesmos, poderíamos dizer que não há critério teológico específico; pois em si
mesmos, eles não são símbolos teológicos. São símbolos antropológicos.
Mas esta resposta seria muito insuficiente. Afinal de contas, os símbolos do mal
desenvolveram-se a par com os símbolos da salvação. A reflexão sobre a condição de
alienação existencial reflete, em última instância, o senso de separação da essência e o
sofrimento pelo afastamento do incondicionado que causa a separação. Há, portanto,
uma relação interna dos símbolos antropológicos com os símbolos teológicos; e deve
existir uma aplicação indireta da referência teológica a estes símbolos. Mais do que isso,
a dependência dos símbolos existenciais em relação às experiências de bondade
essencial já nos sugere que um critério para estes símbolos seria obtido derivativamente.
214
A resposta, talvez, seja focalizar a fonte originária dos símbolos. O que qualifica
um símbolo religioso, positivamente, é a sua capacidade de apresentar o incondicionado
relativizando a sua forma plástica, isto é, mantendo-o condicionado. Ora, este critério
deriva seu conteúdo material de sua origem, que é o impulso em direção ao
incondicionado e a experiência do poder de ser que constitui a religião. No caso dos
símbolos de Queda, a sua origem se encontra na experiência da angústia, derivada da
finitude essencial, a limitação do ser pelo não-ser dialético; mas na experiência dessa
angústia sob as condições da alienação existencial. A questão espiritual central desses
símbolos é, portanto, a experiência meôntica no interior da existência, isto é, como
inaugurada pela liberdade humana.
O problema central de um símbolo de Queda, portanto, não é, em primeiro
lugar, a apresentação do incondicionado; é o problema de sua capacidade de expressar
a transição essência-existência. Ele deve ser capaz de expressar o salto existencial sem
negar a bondade essencial da liberdade finita que é sua condição de possibilidade. Nesse
caso, a verdade de um símbolo de Queda seria encontrada em sua capacidade de manter
o mal real, mas insubstancializado; em expressá-lo como contradição formal, ao invés
de essência. Ora, para manter o mal insubstancializado, deve-se desenvolver uma
concepção da falta de relação com o incondicionado como uma realidade relativa e
dependente de uma relação essencial.
Assim, ao passo que o critério do símbolo religioso é a relativização de seu
conteúdo positivo frente à inefabilidade da relação com o incondicionado, o critério do
símbolo de Queda seria a relativização da falta de relação com o incondicionado, frente
a uma relação subjacente essencial. Apelando à tradição, poderíamos denominar este
critério adicional como o critério antignóstico.
215
Há, evidentemente, uma diferença essencial na formulação de tal critério. O
critério cristomórfico regula a relação do conteúdo positivo com o significado
incondicional que o transcende infinitamente. Ele regula, assim, uma conexão externa,
correspondendo, nisto, ao caráter extático dos símbolos. Já o critério antignóstico
regularia não a relação do conteúdo positivo com o incondicionado externamente, mas a
coerência interna do conteúdo, em razão do caráter introspectivo do símbolo de Queda.
Tratar-se-ia, portanto, de um critério derivado.
Segundo nos parece, esta tentativa de formular um critério especial para os
símbolos deQueda apenas explicita uma característica da interpretação desenvolvida por
Tillich. Pode-se, sem dúvida, objetar que este critério é apenas uma imagem especular
dos resultados da interpretação do símbolo da Queda de Tillich; o conteúdo que a
interpretação deveria mostrar está sendo apresentado como se fosse o critério.
De fato. Mas não é exatamente o que Tillich nos sugere, quando, como vimos no
item 3.1.2, acima, ele se propõe a utilizar a analítica da existência como ponto de
partida para interpretar a simbólica da Queda? O critério é, então, o conteúdo, e o
conteúdo, o critério. O método deriva do sistema, tanto quanto o sistema do método.
Temos, no entanto, uma pista fornecida pelo próprio Tillich para explicar a
formalização deste critério. No item 1.5.2 de nosso trabalho, verificamos que Tillich
introduziu, no contexto do debate de 1960, um novo critério para lidar com os símbolos
religiosos. Ao critério cristomórfico, que ele chamou de critério “negativo”, Tillich
acrescentou um critério “positivo”, que consistiria da “qualidade do material
simbólico”. Um “bom” material simbólico seria aquele que envolve o valoramento, em
perspectiva de ultimidade, das pessoas individuais. Seria, então, um critério
antropológico.
216
A pista de Tillich corresponde à necessidade de estabelecer critérios para regular
o conteúdo positivo do símbolo, em termos de sua coerência interna, além do critério
externo, que regula a sua relação com incondicionado. Essa percepção de Tillich é de
grande valor, uma vez que, no caso dos símbolos de Queda, o critério externo é de
difícil aplicação. Por serem introspectivos, antropo-referentes, eles pedem, realmente,
um critério interno.
A idéia de um critério positivo, antropológico, se ajusta perfeitamente à nossa
tese de que o problema originário expresso pelo símbolo de Queda é a experiência do
mal como inaugurada pela liberdade humana, isto é, à transição essência-existência
como autocontradição da liberdade finita. Um “bom” símbolo de Queda seria um
símbolo que afirma a bondade essencial da liberdade finita e a responsabilidade da
liberdade finita na realização do mal, isto é, que não pensa o mal senão em uma relação
indestrutível com a grandeza humana. O mal como contradição livre da essência, como
a anti-divindade schellingiana. Este é o critério antignóstico.
(3) O Problema do Conhecimento Religioso quanto à Simbólica da Queda
No que tange ao problema do conhecimento religioso mediado pelo símbolo,
repete-se a distinção observada anteriormente, quanto ao sentido extático dos símbolos
“positivos” e o sentido introspectivo dos símbolos de Queda. Não há, segundo Tillich, a
comunicação de conhecimento religioso positivo através dos símbolos do
incondicionado, em razão de o incondicionado ser não-objetificável. A única afirmação
literal possível sobre um símbolo religioso, que também valida o discurso religioso, é
que Deus é o “ser-em-si”. Este seria o referente do discurso, a sua fonte de verdade.
Mas como este referente não pode ser descrito em termos objetivos – apenas a nossa
217
relação com ele pode ser expressa por categorias ontológicas menos universais – o
conteúdo positivo dos símbolos religiosos não tem valor cognitivo.
Os símbolos meônticos de transcendência e imanência podem ser
compreendidos facilmente nesses termos. Os símbolos de Queda não têm uma
referência direta ao incondicionado, no entanto. Como avaliar o seu valor cognitivo,
então? A resposta seria considerá-los a partir do critério positivo antropológico, isto é,
do ponto de vista da qualidade de sua apresentação do ser humano.
Nesse caso, entretanto, nos aproximamos de uma tentativa de tradução literal do
conteúdo positivo dos símbolos, em termos ontológicos. Isso nos conduz a uma
característica recorrente da interpretação Tillichiana dos símbolos religiosos: embora
não se atribua valor cognitivo às afirmações literais sobre o incondicionado, diversos
aspectos dos símbolos religiosos são correlacionados com categorias ontológicas e
efetivamente traduzidos em termos literais. O símbolo conceitual da “escravidão da
vontade”, por exemplo, é expresso em termos da ruptura da polaridade liberdade-
destino. A solidariedade humana no pecado é descrita como a “universalidade trágica”,
e assim por diante. Diversos elementos da simbólica da Queda são interpretados por
meio dos existentialia, que são conceitos existenciais construídos à base de uma
descrição ontológica da essência. Os conceitos incapazes de tradução, como a idéia de
“hereditariedade” são eliminados como tendo baixo valor descritivo.
Seria melhor dizer, então, que os símbolos religiosos têm um valor cognitivo,
enfim, na medida em que apresentam objetivamente, embora em termos simbólicos, a
realidade da condição humana, tanto no estado de alienação como de dependência do
incondicionado. No caso dos símbolos de Queda, a correspondência entre a intenção do
símbolo e seu referente seria até mesmo mais direta e simples do que no caso dos
símbolos de transcendência e de imanência. Afinal, a intenção direta destes símbolos
218
não é o incondicionado inexpressível, além do símbolo, mas a própria condição
humana, descrita na carga semântica positiva do símbolo.
(4) A Simbólica da Queda e a Questão do Mito
O símbolo mítico une em uma forma narrativa o transcendente e o imanente,
constituindo-se em uma estrutura necessária à imaginação religiosa, como vimos.
Tillich também distinguiu no mito o elemento religioso, a apresentação do
incondicionado transcendente, o elemento cognitivo, a referência à realidade objetiva, e
o núcleo mítico, a objetificação do transcendente. O mito é quebrado, por um lado,
quando seu conteúdo empírico sofre a crítica científica e é dissolvido. Mas há uma
motivação teológica para se “quebrar” o mito: a afirmação da incondicionalidade divina
que, no núcleo mítico, é negada, por meio de sua descrição objetiva do divino. A
desmitologização não tem início com a crítica científica, mas com a crítica teológica do
mito.
É claro que no símbolo mítico do pecado original há elementos de objetificação
do incondicionado, por força da construção narrativa. A narração da relação humana
com Deus “antes” da Queda já envolve esta objetificação do incondicionado, mas,
rigorosamente falando, não se situa no ponto exato da Queda. É o fundo positivo para a
apresentação do negativo, apenas; é o mito do “paraíso”, da bondade essencial.
Os elementos negativos têm, como já discutimos, um “lado” transcendente, nos
símbolos meônticos, e um “lado” imanente, antropológico. Aqui cabem as figuras
negativas do mito da Queda: a tentação, a fabilidade, a aversão a Deus, a desobediência,
a culpa, a condenação e a maldição, etc. Na racionalização do mito, que nos leva ao
símbolo mítico racionalizado do pecado original, estes conceitos recebem elaboração
219
racional quase gnóstica, na medida em que os conceitos tentam explicar a experiência
de pecado em termos narrativos, isto é, tomando literalmente o aspecto narrativo do
símbolo, e tentam fundar na base narrativa do símbolo a universalidade da experiência
de Queda.
A “quebra” do mito do pecado original envolve uma série de movimentos,
portanto, começando pela crítica do núcleo mítico do símbolo mítico, que é o próprio
conceito de Deus subjacente. Envolve, em primeiro lugar, a transformação dos
conceitos de tentação, pecado, desobediência, e condenação, em termos de uma
concepção não objetiva de divindade; em segundo lugar, a rejeição do elemento
narrativo do símbolo mítico, também a partir da visão da divindade como o
incondicionado transcendente, de tal modo que a separação de Deus deixe de ser vista
como evento temporal, para ser vista como um estado, uma condição em relação ao
incondicionado.
A crítica é completada, enfim, com a purificação dos aspectos cognitivos do
mito. No caso dos símbolos míticos racionalizados – os dogmas cristãos – isto é muito
importante, ao contribuir para eliminar ou reintepretar conceitos falsos desenvolvidos
para sustentar a literalidade do núcleo mítico. É o caso, por exemplo, da noção de
“hereditariedade” do pecado. Esta noção seria um conceito construído para explicar a
solidariedade humana no pecado, cujo único valor residiria no fato de indicar a
importância teológica dessa solidariedade.
Parece que o centro de todo o processo de ruptura do símbolo mítico do pecado
original se encontra mesmo a rejeição do elemento temporal do mito, que o constitui
como narrativa. A partir desta decisão hermenêutica torna-se possível ressignificar todo
o símbolo em termos existenciais. De fato, no volume II da sistemática, Tillich principia
a sua discussão da simbólica da Queda refletindo sobre a necessidade e a dificuldade de
220
eliminar a referência temporal implícita neste mito. Em sua avaliação, como vimos,
seria finalmente impossível eliminar completamente a referência temporal do mito, mas
não porque ela seja necessária teologicamente, no sentido próprio. Ela é necessária em
razão do salto qualitativo que separa essência e existência. Assim, ele nos informa de
que o mito é apenas parcialmente desmitologizado; é semidesmitologizado (TS:324).
O problema parece ser que a liberdade humana é responsável pela efetivação da
essência na existência, pelo salto que leva da condição de potencialidade para a de
atualidade, e a condição de efetivação existencial é, desde o início, temporal. Não há
lapso temporal entre essência e existência; mas a existência tem início temporal,
enquanto que a essência não tem. Falar de “transição”, portanto, é falar
imperfeitamente, para expressar a “distância” entre potência e ato.
Tillich explica isto como a impossibilidade de falar do divino senão em termos
temporais (TS:325). No caso do símbolo da Queda, no entanto, rigorosamente falando,
não estamos falando do divino, mas do humano. É claro que a noção de “transição
essência-existência” envolve um pólo divino, referente à “ação” de Deus de originar a
liberdade finita em sua essencialidade, mas Deus não é o responsável pela efetivação
existencial da essência. A liberdade humana parece ser, aqui, a origem do elemento
temporal do mito que resiste à desmitologização completa no tratamento do símbolo da
Queda.
3.1.5. Síntese
A finalidade da nossa discussão, até este ponto, consistiu em examinar de que
forma a teoria simbólica de Tillich funciona como instrumento de elucidação dos
símbolos religiosos, a partir de sua interpretação da simbólica da Queda. Nossa
221
investigação nos permitiu chegar a algumas conclusões preliminares: (1) Tillich
reconhece da existência de níveis distintos na constituição do símbolo da Queda, mas
percebe uma coerência substancial no desenvolvimento do conceito agostiniano de
pecado, de forma que a sua interpretação efetiva do símbolo procura explicar, em
termos existenciais, a visão protestante-agostiniana do pecado, e não meramente seu
fundo mítico primitivo; (2) o procedimento de Tillich parece ser “de cima para baixo”,
na medida em que ele sempre parte da analítica existencial para a leitura dos símbolos,
por meio dos existentialia; (3) a classificação dos símbolos religiosos de Tillich não
contemplava adequadamente a particularidade da simbólica da Queda, mas o seu
sistema já trazia em si as condições para uma classificação adequada; identificamos
assim um terceiro nível simbólico; (4) a interpretação dos símbolos da Queda exige
aperfeiçoamentos na via simbolica de Tillich: o critério cristomórfico de Tillich parece
ser insuficiente para julgar símbolos de Queda, exigindo uma discussão mais ampla do
conceito de critério, e sua solução para o problema do conhecimento religioso exige
igualmente discussão mais ampla.
Quanto a este último ponto, nossa constatação central é a de que a interpretação
dos símbolos em Tillich opera por meio de uma tradução da carga positiva do símbolo
em termos ontológicos. O estudo da simbólica da Queda mostra o fato com muito mais
clareza que os outros símbolos, devido à sua natureza introspectiva, isto é, ao fato de
não terem outro referente senão o próprio homem em estado de alienação. Assim,
mesmo não descrevendo nenhuma característica positiva e não-relacional do
incondicionado, o símbolo pode ser, e é interpretado por Tillich, à base de seu conteúdo
antropológico, que é sempre traduzido em termos ontológicos existenciais.
222
Tendo em mente estas conclusões, passaremos, na segunda parte do capítulo, a
uma apresentação de algumas respostas críticas à teoria do símbolo de Tillich e à sua
interpretação do símbolo da Queda.
223
3.2. Interações Críticas em Torno da Interpretação Simbólica da Queda
de Paul Tillich
3.2.1. Considerações em Torno da Interpretação do Símbolo da Queda em Tillich
Nossos estudos mostraram que Tillich interpreta o símbolo da Queda desde a sua
formulação conceptual Agostiniana. Toma-o, pois, não apenas como analogia cinética,
ou como narrativa mítica, mas como um símbolo mítico racionalizado, correlacionando-
o com sua ontologia. Vimos também que Tillich utiliza um sistema de ontologia
baseado principalmente em Schelling, mas com muitos elementos originais, para
descrever a condição “caída” da existência humana.
84
De Schelling, no qual Tillich reconheceu um precursor do existencialismo, ele
recebeu o princípio da identidade, ou seja, da unidade ontológica de todas as coisas no
incondicionado,
85
e a noção de que essa unidade divina reúne em si a vontade-liberdade
e o logos. Essa unidade é rompida na criatura humana, que no ato de buscar a sua
liberdade e de atualizar-se, rebela-se contra o seu fundamento divino.
86
Ao examinar em detalhe as condições e a dinâmica deste rompimento no
sistema de Tillich, observamos uma aparente inconsistência: seria a queda uma
condição necessária para a plenitude humana? Ou, como pôs Tillich: “A descrição que
acabamos de fazer porventura não ‘ontologiza’ e, assim, suprime a realidade da queda e
da alienação?” (TS:338). A sua resposta, como vimos, é que ambas são logicamente
84
“O que aprendi de Schelling determinou minha linha de pensamento filosófico e teológico” (HPC,
2005:142).
85
Princípio esse recebido por Schelling de Espinosa (HPC, 2005:143).
86
“Assim o mito da queda é por ele [Schelling] interpretado, na tradição de Platão, de Orígenes e de
Boehme, como a queda transcendental. A queda não teria acontecido no passado, mas sempre, em todas
as criaturas. Essa queda seria o afastamento criativo de onde viemos sob o poder da liberdade” (HPC,
2005:147).
224
distinguíveis, mas ontologicamente idênticas. A Queda é, ontologicamente falando, a
transição essência-existência, sendo identificada, portanto, em um ponto de articulação
ontológica, com a criação: “Criação e Queda coincidem na medida em que não existe
um ponto no tempo e no espaço no qual a bondade criada se estivesse efetivada e tivesse
existência” (TS:338). Tillich diz, ainda, que “A criação efetivada e a existência alienada
são idênticas. Só o literalismo bíblico tem o direito teológico de negar essa afirmação”
(TS:338). Essa colocação sugere uma interpretação da Queda diferente da interpretação
clássica e agostiniana.
O problema foi discutido em mais de uma ocasião. Um dos mais famosos
trabalhos sobre o assunto foi o artigo de Reinhold Niebuhr, Biblical Thought and
Ontological Speculation in Tillich´s Theology (1952), citado por Tillich na sua
Sistemática (TS:338). No artigo Niebuhr se pergunta se o método de Tillich, de
“pressionar as questões ontológicas” até o ponto de mostrar que elas apontam para a
realidade última, que seria o tema da própria mensagem bíblica, não teria finalmente
falseado a imagem bíblica do homem (Niebuhr, 1952:218).
Segundo Niebuhr, a doutrina do “pecado original” não estaria meramente
contida no relato de Gênesis, mas seria uma pressuposição de todo o pensamento
bíblico. Nas perspectivas bíblicas, ele aparece como o egoísmo que contradiz a estrutura
da existência humana mas que, ainda assim, é inevitável. Temos, pois, uma reunião da
admissão da liberdade e absoluta responsabilidade humana pelo pecado, com o
reconhecimento de sua universalidade e inevitabilidade. Em Tillich, no entanto,
teríamos uma ênfase na base ontológica desse paradoxo que “sutilmente” altera o
significado dessa inevitabilidade (fate), de uma condição histórica para uma condição
ontológica (Niebuhr, 1952:219). Contra a referência de Tillich ao mito da queda
225
transcendente, encontrado na gnose e em Orígenes, Niebuhr sustenta que a Bíblia
apresenta apenas um mito da queda histórica.
A origem da dificuldade estaria na ontologia de Tillich. Na interpretação de
Niebuhr, ele vai além de apontar o estado de Queda como uma contradição de um ser
com a sua própria essência, postulando uma contradição entre o fundamento divino
único, além da existência, e esta, enquanto particularidade finita. Neste último caso, fica
impossibilitada a idéia de que o homem possa contradizer a sua própria natureza
particular, desde que a alienação se refere a algo que está além da particularidade
humana. (Niebuhr, 1952:221). Contra isso Niebuhr argumenta que a possibilidade do
pecado humano estaria, não na contradição com o “Ser” essencial e infinito pelo mero
fato da existência finita, mas na contradição com o seu ser essencial, que também seria
finito (Niebuhr, 1952:222).
Niebuhr aponta ainda que, em razão da ontologia, Tillich não dá o devido lugar
ao mito da inocência original como símbolo histórico, desde que essa inocência não é
relacionada por ele com a existência temporal e atual do homem, mas com seu
fundamento essencial, antes do tempo. A bondade da criação existe apenas na
potencialidade, e não na atualidade. Contra isso Niebuhr aponta a existência de duas
histórias em Gênesis, uma simbolizando o princípio da história e a outra a corrupção da
liberdade na história (Niebuhr, 1952:223,224). Finalmente, ele argumenta que a
preocupação com o problema do mal natural, e o esforço por correlacioná-lo com a
religião bíblica, não pode ser usada para negar o mito da inocência original:
[...] se um esforço é feito para solucionar isso ontologicamente, nós
terminamos com a difícil conclusão de que a existência temporal é
realmente má. É boa apenas quando é potencial e não atual. Assim a
linha é ultrapassada entre o que sempre separou a atitude cristã em
relação ao tempo e à história das especulações do pensamento
ocidental clássico e do misticismo oriental (Niebuhr, 1952:225).
226
Em sua resposta a Niebuhr, Tillich se defende (1) citando exemplos bíblicos de
uma intuição da existência de um mal além do homem, e parcialmente responsável por
sua Queda, como a serpente, a besta do caos, Satanás, as forças irracionais da natureza,
etc. (2) Além disso, aponta o fato de que diversos filósofos, como Platão, Orígenes,
Kant e Schelling foram atraídos pelo mito da queda transcendente como evidência a
favor de considerar-se o mal como necessidade estrutural. (3) Argumenta, também, que
a expressão “pecaminosidade universal” só teria sentido se algo em nossa liberdade a
tornar inevitável. Lembra o exemplo dos calvinistas supralapsarianos, que relacionam a
Queda com o decreto de Deus, como uma linguagem dramática que exige interpretação
ontológica. E respondendo a Daubney, outro crítico, (4) nega ter feito qualquer
identificação entre finitude e queda, “implicitamente ou explicitamente” (Tillich,
1952:343,344).
As respostas de Tillich não parecem ser plenamente suficientes, no entanto: (1)
Não apenas no dogma, mas na própria tradição bíblica, a presença de um mal “natural”
nunca é usada como explicação para o mal humano, mesmo quando é admitida. O
exemplo mais evidente é o próprio caso de Gênesis, que utiliza a serpente apenas para
indicar a oportunidade da Queda, e jamais para indicar uma alegada base ontológica
para o mal humano. (2) O posicionamento de diversos filósofos importantes a favor do
mito da queda transcendental é um ponto a favor desse mito, mas nada significa, em
termos da objeção de Niebuhr. Ele não estava, num primeiro momento, alegando que o
mito da queda transcendental seria absolutamente inconcebível, mas que estaria em
contradição insolúvel com o mito histórico de Gênesis. Quanto a isso, Tillich
permaneceu em silêncio. (3) A expressão “pecaminosidade universal” só implica uma
necessidade estrutural se nós já pressupomos certa ontologia como explicação literal da
experiência de Queda. A resposta de Tillich neste ponto parece não concordar com a
227
própria noção tillichiana de que os símbolos religiosos não podem ser plenamente
conceptualizados e, assim, expressos em linguagem literal. Ou seja, Tillich efetivamente
explica o símbolo com risco para o paradoxo. Contra isso Niebuhr argumenta que o
mistério não pode ser dissolvido em nome da ontologia; o paradoxo de liberdade e
universalidade deve ser mantido.
(4) Tillich de fato se esforça para mostrar que não identifica finitude e mal.
Entretanto, em algumas ocasiões ele disse explicitamente que o ato de escolher a auto-
efetivação como ser particular, finito, implicava automaticamente a alienação. Não seria
a qualidade da decisão existencial a origem da alienação, mas o afastamento da
perfeição da potencialidade essencial, isto é, a própria auto-constituição do ser centrado
como tal, não importando o conteúdo concreto da decisão. Este afastamento e auto-
constituição como liberdade finita implica alienação do infinito e, portanto, Queda.
Observamos, ainda, que Tillich herdou de Schelling esta compreensão. Podemos dizer
que, em Tillich, finitude não é queda, mas tampouco é uma potencialidade neutra. Ela
se aproxima mais de uma potencialidade para a alienação, aguardando apenas
efetivação.
O assunto foi reexaminado, mais recentemente, por Joel R. Smith (Creation,
Fall, and Theodicy in Paul Tillich’s Systematic Theology, 1984). Smith mostra que, de
fato, a noção de uma criação “não-atualizada” não faz justiça à noção bíblica e cristã de
Criação (como o indicou, antes, Niebuhr, apontando o mito da inocência original). A
Queda não pode, assim, ser relacionada diretamente com a mera atualização da criação.
Nós devemos enfatizar aqui que, em nossa interpretação, não é a
atualização da criação per se que distorce a criação. A criação requer
atualização para ser criação no sentido pleno, assim sua atualização na
existência é essencialmente boa [...] A criação atualizada e a alienação
são idênticas, não porque a atualização per se resulta em alienação,
mas porque a liberdade humana participa na atualização e sempre a
distorce. (Smith, 1984:145).
228
Prosseguindo em seu argumento, Smith indicará ainda que, desde que Tillich
identifica o cumprimento da Criação com a atualização da liberdade finita, que é a
Queda, é a realização da criatividade divina que, enfim, conduz o homem à Queda.
Deus determina, portanto, a partir de sua vontade criativa, o destino trágico da Queda,
cooperando com o homem para a sua realização (Smith, 1984:149,151). Essa
identificação traz conseqüências para a teodicéia de Tillich, ao estabelecer, enfim, a
Queda como o meio necessário para a realização da divina criatividade e, assim, do
próprio Deus.
As críticas de Niebuhr e de Smith podem ser sintetizadas como se segue: há uma
tendência no sistema de Tillich de identificar Criação e Queda ou, mais precisamente,
de tornar a Queda uma condição para o cumprimento da criação e, assim, para a auto-
realização de Deus como Criador.
87
Essa tendência não é intencional, obviamente. Uma séria consideração crítica do
pensamento de Tillich não pode, no entanto, se contentar com suas declarações de
intenção, adiando a tarefa primordial de perguntar pela lógica interna de seu sistema,
comparando intenções com resultados efetivos. Não se pode, também, alegar que o
símbolo cristão da Queda, em sua forma agostiniana, foi tão somente uma construção
artificial da teologia clássica, que Tillich procurou superar. O próprio Tillich não
procurou simplesmente abandonar o símbolo da Queda, mas sim reinterpretá-lo,
buscando seu sentido profundo. Além disso, como observaram outros intérpretes,
Tillich pretendeu-se agostiniano, e efetivamente pressupôs a forma agostiniana clássica
do símbolo da Queda como ponto de partida para a sua discussão no volume II de sua
87
Isso, possivelmente, fará Tillich tornar necessárias para a plena humanidade do homem, certas formas
de mal. Isto é, de interpretar um ou mais formas de existência humana que, tradicionalmente, seriam
consideradas “caídas” como sendo essenciais para a realização humana e, formas de existência “boas”,
como sendo indignas da verdadeira humanidade. Trata-se, naturalmente, de mera hipótese, ou sub-
hipótese aguardando futura verificação.
229
Sistemática. Nesse caso, então, precisamos avaliar os resultados de Tillich levando em
consideração suas intenções teológicas originais.
A breve discussão acima estabelece um problema concreto, a partir do qual se
pode discutir a hermenêutica teológica de Paul Tillich. Ele toma o símbolo mítico
racionalizado da Queda e o reinterpreta para torná-lo significativo; nessa
reinterpretação, uma correlação é feita entre a profundidade religiosa representada no
símbolo cristão, e a reflexão ontológica sobre a experiência do mal. O resultado final,
no entanto, parece ser teologicamente problemático, na medida em que a relação entre
Criação e Queda, como explicada por Tillich, parece ser imposta ao símbolo cristão, ao
invés de ser obtida a partir dele.
3.2.2. Considerações em Torno da Teoria do Símbolo Religioso de Paul Tillich
A teoria Tillichiana do símbolo gerou todo um corpo de literatura secundária,
contemplando vários de seus aspectos e implicações. Uma das primeiras críticas, por
Wilbur Urban, incluída no quarto volume da edição das Main Works de Tillich, já foi
considerada por nós no primeiro capítulo, devido a seu papel na própria formulação da
teoria Tillichiana. Urban apontou que a noção de conhecimento simbólico só faz sentido
em contraste com o conhecimento não-simbólico.
88
Isso levou Tillich a admitir que ao
menos alguma proposição literal sobre Deus teria de ser possível: a noção de que Deus
seria o “Ser-em-si” (being-itself), além da estrutura eu-mundo (Reply:334).
Permaneceu, entretanto, o problema: o que se pode dizer sobre o “Ser-em-si”? Seria o
discurso ontológico também simbólico?
88
“Como eu tenho buscado mostrar, a noção de conhecimento simbólico (e verdade simbólica) é sem
sentido, exceto em contraste com o conhecimento não-simbólico” (Urban, [1940], MW/4:270).
230
Outra crítica importante veio do filósofo analítico americano William P. Alston,
segundo o qual (1) no sistema de Tillich um símbolo não pode ser julgado em termos da
adequação ao seu referente, que ele simboliza, pois nada pode ser dito sobre este
referente – o ser em si – que não seja simbólico (Alston, 1961:256); e (2) em suas
discussões teológicas, especialmente na Sistemática, Tillich efetivamente tenta traduzir
a linguagem simbólica da religião em termos não-simbólicos, por meio da ontologia
(Alston, 1961:261). Na mesma direção, Paul Edwards argumentou que metáforas sobre
o incondicionado que não possam ser traduzidas em linguagem literal seriam metáforas
irredutíveis, implicando em que seriam completamente ininteligíveis, sem sentido
(Edwards, 1999[1965]:114).
Em seus trabalhos posteriores no campo da linguagem religiosa, Alston retomará
o problema mais geral da viabilidade das “metáforas irredutíveis”, que seriam metáforas
incapazes de tradução literal, isto é se o conteúdo proposicional da declaração
metafórica é passível de expressão literal (Alston, 1989[1980]:26). Segundo Alston,
toda metáfora é o uso de uma descrição literal de uma realidade, usada em certo
momento para descrever outra, com base em uma semelhança das realidades. Assim,
qualquer componente do conteúdo proposicional de uma expressão metafórica é
concebível, conceptualizável, podendo ser semanticamente correlacionado com um
predicado (Alston, 1989[1980]:30). Isso inviabilizaria totalmente a noção de que
qualquer realidade poderia ser usada como metáfora para Deus, desde que isso
implicaria em admitir qualquer declaração literal sobre Deus como sendo verdadeira,
destruindo a possibilidade do discurso teológico (Alston, 1989[1980]:33,34). Embora
Alston admita que Tillich, ao menos em princípio, não se inclua na categoria dos “pan-
metaforicistas”, desde que ele rejeita o valor cognitivo de declarações positivas sobre
Deus (mesmo que metafóricas), argumenta novamente que Tillich não é totalmente
231
consistente com a sua teoria, pois tenta explicar o conteúdo positivo dos símbolos em
termos de sua ontologia. Com uma imagem humorística, Alston sugere que Tillich foi
apanhado “com seu dedo no pote de geléia da interpretação metafísica literal” (Alston,
1989[1980]:36).
Richard Grigg (1985) apresentou um detalhado estudo da concepção Tillichiana
de símbolo religioso em relação com a noção de empowerment, no qual explora as
possibilidades da teoria considerando as críticas de vários teólogos e filósofos, e de
William Alston, em especial. Tomaremos Grigg, então, como referência para o contato
entre Tillich e Alston. Grigg aponta que o teólogo atribui ao símbolo, a princípio, duas
funções principais, que vamos chamar de f1 e f2: (f1) proporcionar dados negativos ou
relacionais sobre o incondicionado de forma figurativa e (f2) cumprir o papel de
representar e apresentar o incondicionado à consciência (Grigg, 1985:28,29). Esta
última seria a sua função principal. Reagindo então à primeira objeção de Alston, Grigg
tenta mostrar que a experiência de “fortalecimento” (empowerment) por meio de um
símbolo se torna a evidência efetiva de que ele representa verdadeiramente o
incondicionado, dando-o, assim, à consciência do crente (Grigg, 1985:49). Desse modo,
o conteúdo concreto do símbolo não seria fundamental; o valor do símbolo não estaria
em sua capacidade figurativa (f1) – a final, o incondicionado não pode ser figurado –
mas em sua capacidade de trazer o incondicionado ao crente (f2). Nesse caso, Tillich
teria optado por uma interpretação puramente representacional do símbolo religioso
(f2).
Quanto à segunda questão de Alston, Grigg reconhece que há um verdadeiro
desafio: “[...] pode um símbolo que não descreve nenhuma característica positiva e não-
relacional de seu referente ser interpretado?” (Grigg, 1985:53). Uma interpretação
implica em descrição literal do que é dado à consciência. Se o símbolo, em seu
232
conteúdo figurativo, diz respeito apenas à situação que lhe deu origem, a sua
interpretação seria, inevitavelmente, uma explicação literal dessa situação, e nada mais.
Grigg faz suas as palavras de Robert Scharlemann, que teriam sido aceitas pelo próprio
Tillich:
[...] “asserções religiosas são simbólicas (referindo-se à profundidade
do ser), asserções ontológicas são literais (referindo-se à estrutura do
ser), e asserções teológicas são descrições literais da correlação entre
os símbolos religiosos e os conceitos ontológicos” (Scharlemann,
1966, apud Grigg, 1985:55)
O ponto destacado por Scharlemann seria que os símbolos religiosos não trazem
informações sobre o ser-em-si, nem sobre a nossa relação com “Ele” – essas são dadas
pela ontologia, sempre de forma negativa e relacional – mas põe diante do indivíduo a
realidade do incondicionado, fornecendo assim o conteúdo para a correlação entre
ontologia e religião, feita pela teologia. A correlação teológica, aqui, é descrita por
Grigg como hermenêutica (que ele distingue da correlação apologética); a ontologia
filosófica constitui, então, como atividade cultural, a “forma” da religião, cujo
“conteúdo” é dado nos símbolos, e a teologia seria a explicação dessa relação. Nessa
explicação, o conteúdo informacional, ou literal, é totalmente suprido pela ontologia; o
símbolo religioso representa e apresenta o incondicional de modo vivo, mas sem
comunicação de conteúdo conceitual.
Como é evidente, o conteúdo concreto dos símbolos torna-se um aspecto apenas
acidental, em todo o processo, desde que as “formas” através das quais a interpretação
do símbolo se dará já “sabem”, por assim dizer, qual é o seu conteúdo; pois este não é
informacional, mas experiencial e indizível.
89
89
Que a tendência geral da teoria de Tillich é a de eliminar o símbolo religioso, em sua concretude, fica
evidente quando ele admite que, numa situação ideal, a realidade falaria simultaneamente de si mesma e
do incondicionado, de tal modo que toda a realidade se tornaria símbolo, e a linguagem dispensaria
completamente o símbolo. Desapareceria, então, a linguagem religiosa, como tal: “A idéia é que, se Deus
é tudo em todos, não há mais a necessidade de falar de Deus em símbolos especiais, e mesmo de usar a
palavra ‘Deus’” (MW4 [1940]:269). A linguagem religiosa só existe, ainda, porque estamos afastados de
233
O que conecta certo símbolo e certa questão ontológica é a experiência de
empowerment, que se dará relacionada a um ou outro elemento da estrutura ontológica,
filosoficamente descrita, produzindo um dado objetivo para a interpretação (Grigg,
1985:58,59). Grigg resume: “[...] o método hermenêutico de correlação, implícito, dá
uma interpretação indireta de um símbolo religioso localizando-o entre as estruturas do
ser na base da transformação observável que ele potencia (empowers)” (Grigg,
1985:60).
O conteúdo concreto do símbolo teria, assim, um papel limitado ou nulo, ao
menos no interior da teoria do símbolo de Tillich. Entretanto, não é isso o que se vê nas
suas discussões teológicas desde que, nelas, ele se preocupa com o conteúdo concreto
do símbolo, suas complexidades e formação histórica. Grigg reconhece aqui a
ambigüidade:
Tillich aqui funde uma visão do significado simbólico interpretável
através da correlação hermenêutica com uma visão que não admite
essa interpretação. Especificamente, ele falha em manter separadas a
função menor dos símbolos religiosos – a expressão figurativa e os
detalhes relacionais sobre o ser-em-si – e a sua função essencial –
“representação” (Grigg, 1985:69).
Segundo este intérprete, essa abordagem ambígua teria de fato gerado uma
contradição na obra de Tillich, desde que, além de representar o incondicionado para a
consciência – função essa não-interpretável, isto é, não traduzível literalmente – os
símbolos aparecem expressando o incondicionado de modo negativo e relacional, mas
somente para serem interpretados ontologicamente e, enfim, superados. Grigg lembra
que essa foi exatamente a crítica de Alston (Grigg, 1985:71,72).
Deus, dependentes de irrupções do incondicionado por meio de símbolos. Nessa abordagem, a linguagem
religiosa é um fruto da alienação, sob as condições da existência, isto é, um fruto da Queda!
234
3.2.3. Síntese
Na conclusão da primeira parte deste capítulo, extraímos quatro idéias centrais:
(1) a dependência da análise de Tillich de uma tradição teológica específica, isto é, da
visão protestante-agostinana de pecado, (2) a abordagem que vai da ontologia ao
símbolo, (3) a necessidade de reunir os símbolos de Queda em um nível simbólico
distinto, (4) a natureza introspectiva e antropológica dos símbolos da Queda exige um
critério e um método atento à sua carga semântica positiva. Vamos agora tentar
estabelecer uma relação entre essas conclusões preliminares e as interações críticas
discutidas acima.
Em primeiro lugar: qual é o significado da crítica americana à teoria do símbolo
de Tillich para a nossa discussão? É que, na ambigüidade no tratamento dos símbolos
religiosos, Tillich finalmente utiliza a função figurativa (f1) para suprir as limitações
inerentes a uma hermenêutica simbólica baseada puramente na função representativa
(f2) ultrapassando, na prática, a sua teoria metodológica e introduzindo um elemento de
arbitrariedade. A negação de que o símbolo possa ser expresso literalmente, isto é, o
valor cognitivo do seu uso como f2, é utilizada para rejeitar a tradução literal de certos
aspectos de sua carga figurativa, que é substituída por uma outra carga, literal,
comunicada pela ontologia filosófica; entretanto, os aspectos figurativos são
interpretados positivamente quando há correspondência analógica ou metafórica entre
eles e os conteúdos ontológicos.
Em segundo lugar: retornando ao símbolo da Queda, encontraremos essa
operação, na medida em que Tillich pretende, de fato, interpretar o símbolo em sua
forma Agostiniana, considerando certos elementos figurativos ao longo da sua
discussão, mas finalmente desistindo de considerar todos esses aspectos –
especificamente, abrindo mão de uma diferenciação suficientemente fiel entre Criação e
235
Queda, em nome da ontologia. No resultado final, portanto, o símbolo, per se, em sua
concretude, tem um papel limitado na explicação dos problemas da existência; sua
função é muito mais sugestiva ou mesmo inspirativa, sendo que a ontologia é que
finalmente fornece a carga semântica. Esse fato é especialmente problemático quando
se considera que, enfim, Tillich nos fornece muitas exposições literais sobre as
realidades “reveladas” pelos símbolos religiosos. Fica a pergunta: porque não considerar
as respostas já presentes nos conteúdos concretos dos símbolos, como ponto de partida,
ao invés de partir da ontologia para encontrar confirmação nos símbolos? Não seria
melhor admitir que os complexos conceituais e imagéticos que compõe os símbolos
religiosos, como o próprio símbolo da Queda, não são “metáforas irredutíveis”, nem são
vazios de importância cognitiva, mas fornecem já, ao pensamento, conteúdos
informacionais, ainda que negativos e relacionais, sobre o incondicionado? Ou, ao
menos, dar um status mais definido para estes conteúdos antropológicos, discutindo
novamente a teoria do símbolo e o método de sua interpretação?
90
A crítica americana à teoria simbólica de Tillich encontra eco na constatação que
fizemos, na primeira parte deste capítulo, de que os símbolos de Queda tem uma
referência antropológica, introspectiva, e que o seu valor simbólico não se encontra em
uma referência ao incondicionado, mas em uma referência ao homem como liberdade
finita. Tillich lança mão de uma analítica existencial para interpretar os símbolos
conceituais que compõe o dogma tradicional, e os traduz para a linguagem ontológica
através dos existentialia. Parece que Alston e Grigg estão certos, nesse ponto: Tillich
acaba por utilizar a função figurativa dos símbolos para construir o discurso teológico,
90
Isto, naturalmente, tornaria mais fácil considerar a crítica de Niebuhr, na medida em que viabilizaria
uma leitura mais atenta, do símbolo racional e do núcleo mítico adâmico, e uma disposição maior para
manter intactos seus aspectos paradoxais. No caso especial do mito adâmico, a dissociação qualitativa
(ainda que não temporal) entre auto-efetivação existencial e auto-alienação.
236
traduzindo-a para termos existenciais. Então eles tem uma função cognitiva imprevista
pela teoria simbólica de Tillich.
Quanto à crítica de Niebuhr à tendência de confusão entre Criação e Queda,
precisamos mencionar que ela não é um problema marginal. Nosso estudo mostrou que
a transição essência-existência é a espinha dorsal do sistema de Tillich, tendo
importância central para toda a simbólica da Queda. Podemos dizer que ela funda essa
simbólica. Além disso, nossa discussão na primeira parte deste capítulo mostrou que um
critério para julgar o valor dos símbolos de Queda só pode ser a própria capacidade de
distinguir essência e existência, Criação e Queda, bondade essencial e alienação
existencial. Isto simplesmente reflete as raízes do pensamento de Tillich na tradição
antignóstica-agostiniana-protestante de Tillich.
Nesse caso, portanto, nosso estudo revelaria a necessidade de um duplo
aperfeiçoamento na teoria do símbolo de Tillich: (1) primeiramente, uma teoria do
símbolo religioso mais refinada, capaz de lidar com a carga positiva dos símbolos com
mais atenção e (2) um procedimento hermenêutico mais indutivo, capaz de ouvir com
mais atenção “empírica” a voz dos símbolos religiosos. Tendo em mente essas
observações, passaremos ao contraponto com as idéias de Paul Ricoeur.
237
3.3. O Tratamento do Símbolo da Queda em Paul Ricoeur, em
Comparação com a Abordagem de Tillich: Um Contraponto
Metodológico
O filósofo francês Paul Ricoeur (m. 2006), tratou extensivamente da
interpretação do símbolo cristão da Queda em sua Simbólica do Mal (Symbolique du
Mal, 1960) e, especificamente, do símbolo em sua forma agostiniana na Simbólica do
Mal Interpretada, IV parte da obra O Conflito das Interpretações (Le Conflit des
Interpretations: Essais D’Hermeneutique, 1969). Num texto posterior, O Mal, Um
Desafio à Filosofia e à Teologia (Le Mal – un défi à le philosophie et à la théologie,
1986) ele focaliza o problema do sofrimento e, em Pensando Biblicamente (Thinking
Biblically, 1988) ocupou-se de reflexões exegéticas em torno de Gênesis 1-3. Além
disso, Ricoeur desenvolveu uma reflexão importante sobre a filosofia da liguagem
religiosa, e uma teoria funcional do símbolo religioso que foi aplicada na interpretação
do símbolo da Queda.
Em razão dessas características, elegemos Ricoeur para um exercício
comparativo com Paul Tillich, a fim de iluminar a teoria do símbolo e os procedimentos
intepretativos de Tillich, e pensar possíveis enriquecimentos metodológicos. Em nossa
abordagem, aqui, vamos apresentar a teoria do símbolo de Ricoeur, inicialmente. Em
seguida vamos nos concentrar em uma exposição detalhada da Simbólica do Mal
Interpretada, que será a fonte principal para nossa reflexão, aproveitando insights das
outras obras, quando pertinente. No final do capítulo, apesentaremos uma discussão
crítica em comparação com Tillich.
238
3.3.1. O Símbolo e a Linguagem Religiosa em Paul Ricoeur
(1) A Natureza do Símbolo
Em Existência e Hermenêutica (O Conflito das Interpretações, 1969), Ricoeur
explica que o sentido surge freqüentemente de forma dupla ou múltipla, em sua
arquitetura, e descreve as expressões significantes que apresentam essa característica
como expressões simbólicas.
Chamo de símbolo toda estrutura de significação em que um sentido
direto, primário, literal, designa, por acréscimo, outro sentido indireto,
secundário, figurado, que só pode ser apreendido através do primeiro
(Ricoeur, 1969/1978:15)
O campo hermenêutico seria constituído exatamente pelo esforço de
compreensão dessas expressões multívocas. Interpretar significaria, então, “decifrar o
sentido oculto no sentido aparente”, desdobrando “os níveis de significado implicados
em sua significação literal” (Ricoeur, 1969/78: 15). As diferentes interpretações, em
conflito no tratamento de cada símbolo, revelam, por um lado, a sua riqueza semântica.
Entretanto, também reduzem a riqueza simbólica, encontrando sempre, de modo
restritivo, aquilo que já estavam mesmo procurando. Mas elas são relativas a seu ponto
de partida e, assim, à sua própria “grelha de leitura” (Ricoeur, 1969/78:16). Por essa
razão uma hermenêutica simbólica deveria confrontar e submeter à crítica os sistemas
de interpretação, realizando uma arbitragem “entre as pretensões totalitárias de cada
uma das interpretações” (Ricoeur, 1969/78:17), para captar toda a riqueza do símbolo.
No artigo Hermenêutica dos Símbolos e Reflexão Filosófica (Em: O Conflito das
Interpretações, 1969) Ricoeur desenvolve com maior profundidade a busca de
articulação entre reflexão filosófica e hermenêutica dos símbolos, retomando a crítica às
“filosofias do ponto de partida” cartesiana e husserliana, que pretendem uma filosofia
sem pressuposições para refletir diretamente sobre o eu. Para Ricoeur essa via curta é
239
ilusória, e o melhor caminho é partir da “plenitude da linguagem”, indo além do
“deserto da crítica”, para ouvir o símbolo. E os símbolos do mal seriam paradigmáticos
para este exercício.
Ricoeur organiza os símbolos em três níveis: o nível primário, ou semântico, o
nível secundário, o mítico, e o nível terciário, ou dogmático, ou do mito racionalizado
(Ricoeur, 1978:244, 267). No nível primário está a linguagem elementar, o signo
simbólico, que reflete mais diretamente a experiência penitencial e confessional. No
segundo nível está o mito, cuja particularidade é o elemento narrativo, dramático. E, no
terceiro nível, está o símbolo dogmático ou racional, o símbolo mítico que passou por
um trabalho construtivo ou reconstrutivo, no qual se tentou criar uma cópia racional de
sua imagem literal.
Na teoria de Ricoeur, o símbolo é um signo, mas nem todo signo é um símbolo.
O signo tem uma intencionalidade única. Ele significa apenas uma coisa, em certo
contexto. O símbolo, no entanto, encerra uma dupla intencionalidade. Fala-se, por
exemplo, de uma mancha. O sentido literal é físico, mas o que se quer dizer, através da
imagem literal, é uma condição religiosa. O sentido é dado através do literal, mas não é
mais o literal. O signo é transparente, porque diz o que quer dizer diretamente. O
símbolo é opaco, porque seu sentido é um sentido segundo, que é dado através do
literal mas que o transcende (Ricoeur, 1978:244).
Como se processa essa dinâmica semântica? Por meio da analogia que há entre o
sentido primeiro, literal, e o sentido segundo, simbólico. Há um vínculo analógico, nos
diz Ricoeur. Não é o mesmo que uma analogia comum, pois esta depende de uma
proporção, de uma “regra de três”, poderíamos dizer. A relação analógica é conhecida
porque as realidades comparadas estão simultaneamente a meu acesso, de modo
240
independente. No vínculo analógico do símbolo, no entanto, o conteúdo analógico é
expresso apenas por uma realidade, por um dos termos: o literal:
[...] no símbolo não posso objetivar a relação analógica que liga o
sentido segundo ao sentido primeiro. É vivendo no sentido primeiro
que sou arrastado por ele além de si mesmo: o sentido simbólico é
constituído no e pelo sentido literal, o qual opera a analogia ao dar o
análogo (Ricoeur, 1978:244).
A relação analógica não pode ser objetivada; não conseguimos capturar e tratar
conceptualmente a relação do sentido literal com o não-literal, porque o não literal não é
disponibilizado independentemente, imediatamente, como termo de comparação, mas
apenas mediatamente, pelo sentido literal. A relação analógica constituinte do símbolo é
interna a ele, e nos dá o sentido simbólico por excesso, então, como algo que “não cabe”
no signo. “É nesse sentido que o símbolo é doador. É doador porque ele é uma
intencionalidade primária que dá o sentido segundo” (Ricoeur, 1978:244-245).
A inteligência dos símbolos só se concretiza, para Ricoeur, quando se torna um
pensamento a partir do símbolo. Ele critica tanto a leitura gnóstica, presente na
mitologização dogmática, como a alegoria. Esta seria uma interpretação falsa, porque
sabe o sentido antes de ouvir a palavra.
91
Com linguagem viva ele ataca a manipulação
filosófica do símbolo mítico, que lhe esvazia o sentido:
Assim fizeram os estóicos com as fábulas de Homero, de Hesíodo. O
sentido filosófico sai vitorioso de seu envoltório imaginativo. Ele aí
estava, inteiramente armado, como Minerva no crânio de Júpiter. A
fábula nada mais era que uma veste. Veste caída, seu despojo tornou-
se vão. Em última instância, o alegorismo implica que o sentido
verdadeiro, o sentido filosófico precedeu a fábula que constitui tão
somente um disfarce secundário, um véu intencionalmente lançado
sobre a verdade para confundir os simples. Minha convicção é de que
é preciso pensar por trás dos símbolos, mas a partir dos símbolos, em
conformidade com os símbolos; que suja substância é indestrutível,
que eles constituem o fundo revelador da palavra que habita entre os
homens. Em suma, o símbolo dá a pensar (Ricoeur, 1978:252).
91
“A alegoria é um procedimento didático. Facilita a aprendizagem, mas pode ignorar-se em qualquer
abordagem diretamente conceptual. Em contrapartida, não existe nenhum conhecimento simbólico
excepto quando é impossível apreender directamente o conceito e quando a direcção para o conceito é
indirectamente indicada pela significação secundária de uma significação primária” (Ricoeur, 1976:67-
68).
241
(2) O Símbolo Mítico
Quanto ao mito, Ricoeur afirma que eles não constituem para nós, modernos,
explicações da realidade, mas mantém uma função exploratória, na medida em que
exprimem “o elo entre o homem e aquilo que ele considera como seu Sagrado”
(Ricoeur, 1978:356). A razão de sua riqueza de sentido teológico é o fato de ele retirar
seu significado da experiência e da confissão de pecado da comunidade que o articulou.
Ela dá ao mito uma subestrutura de significações, que ele reúne e dramatiza.
O pensamento em torno do símbolo mítico exige um trabalho especial. Ricoeur
atribui uma dupla função à demitização. Ela significa, em primeiro lugar, a
desmistificação, a renúncia ao mito, como forma de “desalienar” o homem. Além disso,
envolve a desmitologização, o “reconhecer o mito como mito”, para “liberar o seu
fundo simbólico”. Neste caso, o que se desfaz é a racionalização construída a partir do
mito, o seu “pseudologos” (Ricoeur, 1978:282). Pensar a partir do símbolo mítico,
portanto, exige um esforço de demitização, mas tal que o fundo simbólico, o “excesso”,
seja devidamente recuperado, e não eliminado; que a desmistificação se mantenha
articulada com a desmitologização.
(3) Metáfora e Símbolo
Bem mais tarde, em Teoria da Interpretação: o Discurso e o Excesso de
Significação (1976), Tillich aprofunda e esclarece sua compreensão do símbolo,
utilizando-se de contribuições da teoria da metáfora. Uma diferença conceitual surge:
agora, depois de um maior contato com a linguística contemporânea e com a filosofia da
linguagem anglo-americana, Ricoeur distinguirá, no símbolo, entre o elemento
242
semântico e o não-semântico (Ricoeur, 1976:57). Haveria um duplo sentido verbal, e
outro não-verbal.
Considerando a teoria da metáfora, Ricoeur destaca a superação da tradição do
positivismo lógico, herdeira de Aristóteles e da retórica clássica, que via a metáfora
como mero adorno ou recurso retórico, como tropo, vazio de qualquer inovação
semântica ou carga cognitiva. Essa visão teria sido superada, no século XX, pelos
trabalhos de autores como I. A. Richards, Max Black e outros, que mostraram a
conexão da metáfora, não à semântica da palavra, mas à semântica da frase:
A metáfora tem a ver com a semântica da frase, antes de dizer respeito
à semântica de uma palavra. E, visto que uma metáfora só faz sentido
numa enunciação, ela é um fenômeno de predicação, não de
denominação. Quando o poeta fala de um “anjo azul” ou de um
“manto de tristeza”, põe em tensão dois termos que, segundo
Richards, podemos chamar o teor e o veículo. E só o conjunto
constitui a metáfora (Ricoeur, 1976:61).
Ora, Ricoeur já havia apontado o desaparecimento do discurso no interior do
radicalismo da linguística estrutural, defendendo que a linguagem é constituída não
apenas de signos, mas também de frases, sendo estas duas realidades mutuamente
irredutíveis. O sentido não emerge da palavra, independentemente; desse modo, é
preciso uma ciência da frase, uma semântica, além de uma semiótica: “Quanto a mim, a
distinção entre semântica e semiótica é a chave de todo o problema da linguagem, e os
meus quatro ensaios baseiam-se nesta decisão metodológica inicial” (Ricoeur, 1976:20).
Isto inclui, naturalmente, o terceiro ensaio da obra, “Metáfora e Símbolo”, que estamos
considerando.
Segue-se, portanto, que a metáfora em Ricoeur, em linha com os
desdobramentos recentes, é prenhe de significados que não podem ser reduzidos a seus
elementos constituintes. Não há desvio no sentido literal das palavras que compõe a
metáfora, mas um choque, um conflito de duas interpretações, posto pela combinação
243
de palavras que dizem respeito, literalmente, a realidades heterogêneas: “A rocha da
salvação”; a “beleza da santidade”. Trata-se de uma “impertinência semântica” que
gera uma nova pertinência semântica (Ricoeur, 1976:62).
Mas o que torna a metáfora necessária? Não o mero desejo de adorno, mas a
ausência de categorias adequadas, na linguagem corrente, para dizer alguma coisa. A
metáfora é uma forma de criar um sentido que não está disponível no depósito
linguístico comum; é uma “[...] inovação semântica que não tem estatuto na linguagem
estabelecida e que apenas existe em virtude da atribuição de um predicado inabitual ou
inesperado” (Ricoeur, 1976:63). A metáfora cria uma “nova extensão de sentido”, e não
pode ser traduzida porque cria o seu sentido (Ricoeur, 1976:64).
O estudo dos símbolos é um pouco mais complicado, segundo Ricoeur, devido a
seu pertencimento a diversos campos de investigação, e ao fato de ele reunir o
linguístico e o não-linguístico. Ricoeur se concentra neste último aspecto, e tenta usar
algo da teoria da metáfora para clarificar o símbolo (Ricoeur, 1976:66).
Falando sobre o aspecto semântico do símbolo: em primeiro lugar, Ricoeur
utiliza a “torção metafórica” como modelo para a extensão do sentido no símbolo.
Assim como a metáfora cria sentido por extensão, por meio do choque de
interpretações, o símbolo criaria sentido “por excesso”. Não há, no entanto, “dois
sentidos”, no símbolo. O significado simbólico é parte de um único movimento, que
nasce do significado literal. O “resíduo” ou “excedente” de sentido no símbolo vem
unicamente pela significação primária, como “o sentido de um sentido” (Ricoeur,
1976:67).
Há também uma proximidade do símbolo com a metáfora, no processo
analógico, na semelhança. Em ambas supõe-se a relação de semelhança, mas na
metáfora seria mais fácil mostrar isso, por estar distribuída nos termos da frase, do que
244
no símbolo, no qual a semelhança analógica está assimilada a um único termo do qual
brota o excedente (Ricoeur, 1976:68).
Finalmente, há o fato de haver mais no símbolo do que em seus equivalentes
conceptuais. Daí não se deve concluir que o símbolo é absolutamente irredutível e
exclusivo do pensamento conceptual, segundo Ricoeur, pois a teoria da metáfora mostra
a possibilidade de novas articulações e extensões de sentido e, assim, novos
instrumentos de representação da realidade, a partir da assimilação de campos
semânticos até o momento separados. A metáfora não é meramente o adorno, como
dizem os positivistas, mas a inovação semântica, a extensão semântica; como tal, ela faz
parte do pensamento conceptual presente ao inaugurar a emergência de outro espaço;
ela é a ponta de lança, a matriz do conceptual. Ricoeur quer dizer que o símbolo teria
poder semelhante, ao constituir novas possibilidades semânticas, e novas possibilidades
de pensar:
Eis porque a teoria dos símbolos se aproximou da teoria kantiana do
esquematismo e da síntese conceptual pela metáfora. Não é necessário
negar o conceito para admitir que os símbolos suscitam uma exegese
infindável. Se nenhum conceito pode esgotar a exigência de ulterior
pensamento produzido pelos símbolos, esta idéia significa apenas que
nenhuma categorização dada pode abarcar todas as possibilidades
semânticas de um símbolo. Mas só o trabalho do conceito é que pode
testemunhar este excesso de sentido (Ricoeur, 1976:69).
O símbolo seria apropriado, então, poderíamos dizer, para pensar o novo, para
imaginar o futuro, para dizer aquilo que não está dado ainda na linguagem atual. Seria
uma forma de discurso de promissão, de esperança. O símbolo dá a pensar, portanto,
pois dá, como a metáfora, algo que não posso pensar sem ele. O símbolo apresenta o
sentido como um dom escatológico.
E o que seriam os aspectos não-semânticos dos símbolos? Aqueles que não se
prestam à análise linguística e lógica, não podendo ser transcritos (Ricoeur, 1976:69). A
opacidade do símbolo localiza-se também aí. Essa é a razão porque eles podem ser
245
estudados, por exemplo, pela psicanálise, como meio de compreender, na atividade
onírica, o seu significado. A psicanálise procura “sentido” no símbolo, mas o interpreta
como expressão de forças inconscientes, combinando em seu discurso uma fala
“hidráulica”, energética, física, com o procedimento exegético:
[...] uma tal conceptualização mista não trai alguma deficiência da
conceptualização da psicanálise, mas, pelo contrário, o
reconhecimento exato do lugar onde o seu discurso ocorre: na mistura
de força e sentido, de impuso e discurso, de energética e semântica.
[...] A metáfora ocorre no universo já purificado do logos, ao passo
que o símbolo hesita na linha divisória entre o bios e o logos. Dá
testemunho da radicação primordial do Discurso na Vida. Nasce onde
a força e a forma coincidem (Ricoeur, 1976:70-71).
A radicação vital do símbolo lhe daria um caráter distinto, pré-racional,
possibilitando interpretações não-semânticas. Esta conexão interna une o discurso com
o interior das coisas, do mundo mesmo. Os símbolos religiosos, especificamente, estão
ligados ao sagrado que está no mundo, e manifestam este sagrado ao indicar o laço vital
do verbo com o pré-verbal: a água, o céu, a terra, o ar, a fertilidade, etc.
O carácter ligado dos símbolos é que constitui toda a diferença entre
um símbolo e uma metáfora. A última é uma invenção livre do
discurso; o primeiro está vinculado ao cosmos [...] No universo
sagrado, a capacidade de falar funda-se na capacidade que o cosmos
tem de significar, por conseguinte, a lógica do sentido deriva da
estrutura real do universo sagrado (Ricoeur, 1976:73).
Há pois uma “aderência” do símbolo ao universo sagrado, que funda a sua
fertilidade semântica e, ao mesmo tempo, é um fato não-semântico, é a base vital do
semântico. Mas é claro que a ligação vital do símbolo não se manifesta sem a sua
interpretação, sem uma “hermenêutica mínima”, no interior do discurso. A linguagem
surge, assim, como a “espuma na superfície da vida” (Ricoeur, 1976:75).
Ricoeur tem mais a dizer sobre a relação entre símbolos e metáforas. Em sua
percepção, o símbolo tem uma vitalidade, uma longevidade, que não tem paralelo na
metáfora. Isto se daria por sua radicação cósmica. Mas a metáfora muitas vezes se
246
assemelha ao símbolo, inclusive em sua durabilidade. Ricoeur sugere que a abrangência
e a durabilidade de certas metáforas de grande poder seria dependente de sua ligação
aos símbolos, ao falar de infra-estrutura simbólica e superestrutura metafórica.
Aparentemente, é como se certas experiências humanas
fundamentais constituíssem um simbolismo imediato que preside à
mais primitiva ordem metafórica. [...] este simbolismo antropológico e
cósmico está numa espécie de comunicação subterrânea com a nossa
esfera libidinal e por ela com o que Freud chamou o cambate entre
gigantes, a gigantomachia entre o eros e a morte [...]. Tudo indica que
a experiência simbólica exige um trabalho do sentido, a partir da
metáfora [...] este estrato profundo apenas se torna acessível a nós na
medida em que se forma e articula a um nível linguístico e literário,
uma vez que as metáforas mais insistentes se pegam ao
entrelaçamento da infra-estrutura simbólica e da superestrutura
metafórica (Ricoeur, 1976:77).
O fundo vital se exprime, portanto, nos símbolos, mas estes só se aprofundam e
fazem revelar suas possibilidades por meio de articulações linguísticas, nas quais a
metáfora é tem papel mediatório, como forma de criar extensões de significado. O
símbolo teria, assim, um papel fundamental, na constituição das bases de um campo de
significados, em suas condições de emergência e desenvolvimento; seria o ponto de
conexão entre estes campos e seu fundamento vital.
A metáfora torna possível distinguir aquilo que o símbolo apresenta de um modo
confuso, através de seu vínculo analógico interno, não dito, pois a tensão do enunciado
metafórico apresenta a natureza do vínculo de forma explícita, linguisticamente
expressível (Ricoeur, 1976:80). E o símbolo é a fonte original do poder da metáfora; ele
tem raízes vitais, e transfere à metáfora seu excesso de sentido:
As metáforas são precisamente a superfície linguística dos
símbolos e devem o seu poder de relacionar a superfície semântica
com a superfície pré-semântica nas profundidades da experiência
humana à estrutura bidimensional do símbolo (Ricoeur, 1976:81).
A discussão de Ricoeur sobre a relação entre símbolo e metáfora é posterior à
Simbólica do Mal Interpretada, mas constitui um desdobramento coerente com a teoria
247
do símbolo apresentada nesta obra. A correlação ajuda a esclarecer o processo de
criação de sentido no símbolo, de um modo geral, como um excedente semântico.
Quanto ao caso do símbolo mítico e do símbolo dogmático, na medida em que eles, a
um modo semelhante à metáfora, reúnem sentidos simbólicos em complexos mais
amplos, constituindo campos de sentido, seria o caso de perguntar se há alguma
semelhança estrutural entre o símbolo secundário ou terciário e a metáfora.
(4) Linguagem Religiosa
Em Philosophy and Religious Language (1974), Ricoeur apresentou um estudo
mais amplo a respeito do problema da linguagem religiosa, no qual estabelece um
diálogo com a filosofia analítica anglo-americana da religião, comparando-a com o
pensamento hermenêutico, e considerando as preocupações deste ambiente filosófico,
para isolar três pressuposições de uma filosofia da linguagem religiosa.
A primeira tese seria a de que de que a fé religiosa sempre se expressa na
linguagem, sendo que o pensamento hermenêutico focaliza o substrato mais inferior da
linguagem popular (ao passo que a analítica privilegia o discurso teológico). Ricoeur
destaca a necessidade de considerar os modos concretos de discurso ao compreender a
linguagem (Ricoeur, 1995:37-38). Desenvolvendo este último tema, ele chega à sua
segunda tese: a forma do discurso também é teologicamente significante para a sua
compreensão. Por esta razão, a narrativa tem um papel teológico tão importante para a
religião bíblica:
Não é qualquer teologia que pode ser posta em uma forma narrativa,
mas apenas uma teologia que proclame Yahweh como o grande ator
de uma história de libertação. Sem dúvida é este ponto que forma o
maior contraste entre o Deus de Israel e o Deus da filosofia Grega. A
teologia das tradições nada sabe de conceitos de causa, fundamento ou
essência [...]. Esta forma de falar de Deus não é menos significante
que a dos Gregos. É uma teologia homogênea com a própria estrutura
248
narrativa, uma teologia na forma de Heilsgestchichte (Ricoeur,
1995:40).
A terceira pressuposição seria a de que uma a verdade do discurso religioso deve
ser medida por critérios particulares, apropriados a esta forma de discurso. Ricoeur se
lança, então, a explicar o funcionamento do discurso religioso, mostrando como a
escrita em geral, a literatura e a poesia em especial, se constituem por meio de uma
progressiva eliminação da função denotativa ou referencial do discurso, abolindo a
referência ao que é dado, o mundo. Mas este processo seria uma astúcia semântica; uma
forma de dizer mais do que a linguagem ordinária pode dizer:
[...] a abolição da referência de primeira ordem, uma abolição
consumada pela ficção e pela poesia, é a condição de possibilidade
para a liberação de uma segunda ordem de referência que atinge o
mundo não apenas no nível dos objetos manipuláveis, mas no nível
que Husserl designou pela expressão Lebenswelt, e que Heidegger
chama de ser-no-mundo (Ricoeur, 1995:42).
Com esta genial observação, Ricoeur mostra a reprodução, no nível da criação
narrativa e poética, do mesmo mecanismo de transbordamento ou excesso semântico
que caracteriza o símbolo e a metáfora, cuja função seria capacitar o discurso sobre as
realidades existenciais, isto é, aquelas realidades que constituem possibilidades criativas
da liberdade humana. O distanciamento produzido pela abolição da referência direta
ao mundo torna possível a redescrição imaginativa da realidade e, assim, a sondagem
de novas formas de compreensão da vida. Uma importante implicação disso é que a
interpretação do texto poético deve manter o máximo de cautela, num esforço respeitoso
por capturar a plenitude da forma ser-no-mundo apresentada nele, por “vivenciar” a sua
proposta, evitando impôr categorias externas. Para captar o sentido de um texto
religioso e, vale dizer, de um conjunto simbólico, deve-se ter em mente este mecanismo
de imaginação e renovação semântica, e levar a sério o que discurso religioso nos dá a
pensar:
249
A “preocupação última” poderá permanecer muda se não receber o
poder de uma palavra de interpretação incessantemente renovada
pelos sinais e símbolos que tem, por assim dizer, educado e formado
esta preocupação através dos séculos (Ricoeur, 1995:47).
Percebe-se, portanto, que a preocupação de Ricoeur com a consideração para
com o símbolo religioso, em sua forma plástica e em seu conteúdo positivo, como via
para compreensão da existência, se encaixa numa percepção mais ampla sobre a função
da religião, como forma de “abrir a realidade do possível” (Ricoeur, 1995:46), e da
linguagem religiosa, como forma de dizer o novo, para além do que está dado e sabido
pelo homem.
3.3.2. A Interpretação da Simbólica do Mal em Paul Ricoeur
Passemos agora aos estudos de Ricoeur sobre o pecado. Na Simbólica do Mal
Interpretada (1969) ele pressupõe os resultados mais básicos da anterior Simbolique du
Mal (1960) e toma como ponto de partida a articulação racional da noção cristã de
pecado como desenvolvida por Agostinho: o dogma do pecado original.
Ricoeur pretende refletir sobre o significado desse símbolo que “quer ser um
conceito”, procurando compreender o trabalho teológico que se cristalizou nele
(Ricoeur, 1969/78:227). Isso implica, inicialmente, em desfazer o conceito, mostrando
que ele é um falso conceito, um falso saber, nascido da tentativa de reunir uma
questionável interpretação jurídica do pecado com uma noção biológica de
hereditariedade; tal destruição teórica teria, no entanto, a finalidade de mostrar que
somente um símbolo conceitual poderia transmitir os significados que quer transmitir, e
que seriam o seu sentido intencional, ou eclesial (Ricoeur, 1978:228).
92
92
Aqui, Ricoeur poderia colocar-se sob o juízo Alstoniano contra o conceito de metáfora irredutível.
Afinal, se o símbolo conceitual, como falso-conceito, for literalmente inexpressível, será como uma
250
(1) O “Excesso” de Sentido no Símbolo Agostiniano
Em sua forma literal, como falso saber, o conceito de pecado original precisa ser
destruído, para que se reencontre a intenção ortodoxa, no fundo simbólico de sua
constituição. Essa destruição é necessária porque a forma racionalizada do símbolo
surgiu na reação ao gnosticismo, de tal modo que constituiu-se em formatação quase-
gnóstica. Esta formatação ou enunciado seria uma forma falsa de saber destinada à
dissolvição.
Para Ricoeur, a forma agostiniana da doutrina do pecado original seria uma
síntese da idéia de que o pecado é obra da liberdade e, portanto, não tem ser ou
natureza, com a de que ele é quase natural, desde que experimentamos a presença do
mal como algo que nos ultrapassa. A primeira idéia explicitou-se no embate com o
gnosticismo, como dissemos, na medida em que este via o pecado não como um fazer,
mas com “o estado de ser-no-mundo”, com a própria existência; como coisa e mundo.
Contra essa gnose do mal, os Padres gregos e latinos, com
unanimidade impressionante, repetiram: o mal não tem natureza, o
mal não é alguma coisa; o mal não é matéria, não é substância, não é
mundo. Ele não é em si, ele é de nós [...] O mal não é ser, mas fazer”
(Ricoeur, 1978:230).
O homem é o “ponto de emergência do mal no mundo”, em seus atos de
liberdade. A resposta ao mal é, então, o arrependimento. Esta seria a tradição
penitencial, segundo Ricoeur, de Israel e da Igreja Cristã, expressa com clareza solar na
metáfora irredutível, o que é semanticamente impossível. Se Ricoeur pretende apontar para a obscuridade
causada pela paradoxalidade do símbolo, combinada com o uso de conceitos-limite (limiting-concepts),
devemos reafirmar que qualquer paradoxo pode ser apresentado em linguagem literal. O que, talvez, não
pode ser lingüisticamente descrito (nos diria Alston), é o impacto psicológico, ou estético, etc que, nesse
caso, não tem ligação necessária com a forma plástica do símbolo. Entretanto, Ricoeur é muito mais sutil;
a metáfora não é irredutível por alguma estrutura de necessidade, mas por contingência: ela surge, em
certo momento, devido à impossibilidade de se pensar uma realidade possível nos termos dos materiais
conceituais presentemente possuídos. Mas, desde que a metáfora tenha aberto o caminho, ele pode ser
visto e, então, pensado.
251
polêmica de Agostinho com os Maniqueus. Agostinho explica o mal em termos éticos,
não trágicos, como o cita Ricoeur: “Se há penitência, é que há culpabilidade; se há
culpabilidade, é que há vontade; se há vontade no pecado, não é uma natureza que nos
coage (Contra Felicem)” (Agostinho, apud Ricoeur, 1978:231).
A partir do material conceitual neoplatônico, Agostinho explicará o mal como
uma direção existencial inversa à conversão e ao ato criativo de Deus, uma aversio a
Deo e uma tentativa de retornar ao nada (ad non esse). O problema, segundo Ricoeur,
foi que esta negatividade não era suficiente para dar conta da positividade do mal e do
pecado, expressa na noção de natureza corrompida. A controvérsia antipelagiana
tornaria impossível ignorar estes elementos, conduzindo à formulação quase gnóstica do
pecado original (Ricoeur, 1978:232).
Segundo Ricoeur, a positividade da experiência do mal, ou, diríamos, a
positividade da negatividade, expressou-se com o esquema da herança, o pensamento de
que o mal transcende a escolha individual, ainda que se realize nela. Agostinho não
parte do nada para construir sua explicação; ele se fundamenta na percepção bíblica de
uma solidariedade humana no pecado, como em Romanos 5.12. Em Paulo, o pecado é
parcialmente jurisdizado e personalizado, mas o elemento trágico-mítico permanece no
conceito de solidariedade, e retorna explicitamente, enfim, pelo “biologismo da
transmissão hereditária”, na formulação clássica de Agostinho (Ricoeur, 1978:234).
Este processo foi anterior à controvérsia antipelagiana, portanto. Estava inscrito na
própria tradição bíblica. E Agostinho já teria uma noção adiantada de pecado original
quinze anos antes do primeiro tratado antipelagiano (Ricoeur, 1978:235). Nesta época
(397 d.C.) Agostinho afirma, a partir de Rm 9.10-29 que a rejeição de Esaú no ventre
seria evidência de culpabilidade herdada.
252
O combate com o pelagianismo, portanto, deu-se como reação a um exagero de
super-eticização do pecado, mas operando a partir de uma percepção bíblica e empírica
da profundidade do mal. Equilibrando-se entre o maniqueísmo e o pelagianismo,
ligando o pecado à vontade, contra o primeiro, e afirmando a unidade da espécie
humana no primeiro pecado, Agostinho constrói a sua síntese inconsistente do jurídico
com o biológico (Ricoeur, 1978:236). Assim sintetiza uma visão ética do mal com uma
visão trágica do mal, contra a ontologicação gnóstica e a eticização pelagiana do mal.
93
Ricoeur efetivamente rejeita toda a forma de conceptualização promovida por
Agostinho, mas aceita a sua intenção teológica. Assim declara ousadamente, por
exemplo, no que tange ao conflito entre Agostinho e Pelágio:
Não hesito em dizer que Pelágio pode ter tido mil vezes razão contra o
pseudoconceito de pecado original, mas Santo Agostinho fez passar,
através dessa mitologia dogmática, alguma coisa de essencial que
Pelágio desconheceu inteiramente. Pelágio talvez tenha sempre razão
contra a mitologia do pecado original e principalmente contra a
mitologia adâmica, mas é Agostinho que sempre tem razão através e
apesar dessa mitologia adâmica (Ricoeur, 1969/78:237).
O conceito dogmático de pecado original seria, então, um símbolo racional: uma
expressão analógica, que traz um excesso de significação, exigindo um trabalho de certo
modo arqueológico, para revelar sua composição complexa e seus múltiplos níveis de
significado. Sua artificialidade ou plasticidade quer expressar uma realidade profunda
da experiência humana que está além da possibilidade de conceptualização. Ricoeur
sublinha três traços dessa profundidade da experiência penitencial: o realismo do
pecado, como realidade que transcende a consciência interna do indivíduo, como
ruptura objetiva de uma relação, a solidariedade humana no pecado, que se expressa em
uma unidade metafísica do homem, e a experiência de escravidão, de cativeiro sob o
pecado. Esses traços resistem à eticização, e forçam a Igreja a construir o conceito de
93
Nesse ponto, como em vários outros, a interpretação de Ricoeur assemelha-se à de Tillich.
253
pecado original, de pecado como quase-natureza (Ricoeur, 1978:238-239). A
inconsistência do símbolo corresponde a este excesso de sentido.
Segundo Ricoeur, então, não residiria na forma plástica do mito-símbolo o ser
Palavra de Deus, mas em seu poder revelante, quanto à condição humana. O mito-
símbolo revela essa condição, e por isso é revelante, é Palavra de Deus ao homem,
através e apesar de sua “forma” – mesmo que tivesse uma forma completamente
diferente, enfim (Ricoeur, 1969/78:239).
Quanto ao dogma, em si, seria um enxerto; uma interpretação literal e pseudo-
histórica, que deveria ser rejeitado, enquanto não se reconhecer como
fundamentalmente mítico – e essa seria a diferença entre o puro mito, em seu caráter
revelante, e a mitologia,
94
que seria um grande mal (Ricoeur, 1969/78:140,141). A
formulação agostiniana, em sua absurdidade, foi necessária para produzir,
especularmente, na reflexão sobre o mal, a profundidade positiva da regeneração, para
gerar o seu antítipo, e seria válida se abordada através da hermenêutica dos símbolos.
(2) A Dinâmica Subjacente ao “Excesso”
É claro que o símbolo racionalizado, como a Igreja o recebeu em Agostinho, é
uma etapa avançada do pensamento religioso, que nasceu com os símbolos primários,
tornou-se narrativa mítica, e cristalizou-se em conceito, em símbolo mítico
racionalizado. Os símbolos primários, que Ricoeur organiza em três grupos sucessivos
94
“Jamais será suficientemente dito o mal que fez, à cristandade, a interpretação literal, cumpriria dizer,
‘historicista’, do mito adâmico. Ela a enterrou na profissão de uma história absurda e em especulações
pseudo-racionais sobre a transmissão por assim dizer biológica de uma culpabilidade por assim dizer
jurídica da falta de um outro homem, lançado na noite dos tempos, em alguma época entre o pitecantropo
e o homem de Neanderthal. Com isso, o tesouro escondido no símbolo adâmico foi dilapidado. O espírito
forte, o homem racional, de Pelágio a Kant, Feuerbach, Marx ou Nietzsche, terá sempre razão contra a
mitologia, enquanto o símbolo dará sempre a pensar para além de toda crítica redutora. Entre o
historicismo ingênuo do fundamentalismo e o moralismo exsangüe do racionalismo abre-se o caminho da
hermenêutica dos símbolos” (Ricoeur, 1978:340).
254
– mácula, pecado e culpabilidade – passaram por um longo processo dinâmico de
reconfigurações. No centro do simbolismo da mácula, encontra-se o esquema da
“exterioridade”, do mal vindo de fora. No simbolismo do pecado, construído sobre as
cinzas daquele, temos o mal como relação rompida, como o que eu faço, a base da
tradição penitencial. No da culpa, temos a interiorização e racionalização. Mas
permanece, sempre, um elemento de exterioridade, na noção de um cativeiro ao pecado
e à culpa (Ricoeur, 1978:245-246). Os símbolos primários mantém uma estrutura
própria, mesmo ao se tornar parte de narrativas míticas. Com essas narrativas, no
entanto, temos um importante salto qualitativo.
O mito, símbolo secundário, depende do símbolo primário, mas tem uma
especificidade, dada pela narrativa, que o universaliza, na figura do homem original, dá
uma orientação para a história, e dramatiza a experiência de culpabilidade. O estudo
comparativo dos mitos seria uma etapa necessária à sua interpretação filosófica. Neste
estudo, Ricoeur descobriu que os mitos evoluem por meio de luta constante, de
destruição e absorção, e que haveria uma oposição fundamental dominando esta
evolução:
Essa dinâmica está animada por uma oposição fundamental.
De um lado, os mitos que referem a origem do mal a uma catástrofe
ou a um conflito original anterior ao homem, do outro, os mitos que
referem a origem do mal ao homem (Ricoeur, 1978:247).
De um lado, então, temos o mito trágico e o mito cosmogônico, representados
pelo Enuma Elish, ou por Prometeu Acorrentado, ou pelo mito órfico da queda
transcendental, todos caracterizando o mal como realidade anterior e maior que o
homem. Já o mito bíblico seria “o único mito propriamente antropológico”,
“comprimindo a origem do mal num instante simbólico”. Na verdade, nos diz Ricoeur,
o conflito estaria refletido no próprio mito Adâmico, no fato de haver uma tragicidade
255
dramática no relato, na presença da serpente, o “outro do mal humano”, o retorno
silencioso do mito trágico que é desmitologizado no mito Adâmico (Ricoeur, 1978:248-
249).
O esquema de exterioridade que se projeta no cormpo-túmulo dos
órficos, no Deus mau de Prometeu, no combate originário do drama de
criação, esse esquema é, sem dúvida, invencível. Esta é a razão
porque, escorraçado pelo mito antropológico, ele ressurge em seu seio
e se refugia na figura da serpente [...] Assim, o mito trágico é
reafirmado e ao mesmo tempo destruído pelo mito adâmico (Ricoeur,
1978:249).
Nitidamente, é dessa guerra de mitos, ou da dinâmica subjacente a esta guerra de
mitos, que emergirá a formulação agostiniana do pecado original, ainda que operando a
partir de um centro antropológico, dado pelo mito adâmico. Revela-se uma dinâmica
profunda do processo mítico que não permite tratar o debate dogmático, como o
encontramos em Agostinho, como mero devaneio escolástico; que torna-o manifestação
profunda do espírito humano, exigindo consideração filosófica.
(3) Interpretando o “Excesso” (i): Como Pensar a Totalidade?
Ricoeur quer tratar hermeneuticamente a simbólica do mal, esforçando-se para
evitar o Cyla da gnose, em sua fixação pelo tema trágico e sua recusa à crítica racional,
e o Caríbdis da alegoria, que usa o símbolo como mera ilustração do conceito (Ricoeur,
1978:252); para não permanecer na tendência puramente desmitologizante do
pensamento reflexivo, nem na tendência gnóstica do pensamento especulativo.
O pensamento reflexivo constrói uma visão ética do mal, a partir da afirmação
da liberdade humana, negando a substancialidade do mal, e posicionando-se a favor do
mito antropológico. Essa visão ética é o que se encontra em Kant, em Pelágio, e no
Agostinho antimaniqueu:
256
Pode-se afirmar que é Santo Agostinho que, ao colocar em contato
direto, se posso assim dizer, o poder do nada (néant) contido no mal e
a liberdade em ação na vontade, radicalizou a reflexão sobre a
liberdade, a ponto de fazer dela o poder originário de dizer não ao ser,
o poder de “faltar” (deficere), de “declinar” (declinare), de tender para
o nada (ad non esse) (Ricoeur, 1978:254).
É esta intuição de Agostinho, nos diz Ricoeur, a base para uma futura filosofia
da vontade que explicará o mal como salto qualitativo e acontecimento. Essa elaboração
seria feita por Kant, através da oposição entre vontade e natureza, e da formalização do
conceito de mal, que é separado do passional e identificado como a subversão de uma
relação, isto é, a subversão do imperativo categórico. A visão kantiana seria o
equivalente reflexivo do esquema bíblico do afastamento, em oposição ao esquema
órfico da exterioridade (Ricoeur, 1978:255). O mal é ação, é a subversão da relação no
poder da liberdade.
Essa interpretação do mal não é suficiente, no entanto, para dar conta da riqueza
da experiência. O mal como algo já dado, já presente antes, o esquema de exterioridade,
é algo visível mesmo no mito adâmico, embora de forma subordinada. Como pensar
essa “hereditariedade”, essa quase-natureza do mal, sem cair na gnose?
Ricoeur volta a Agostinho nesse ponto, para mostrar que, em sua tentativa de
racionalizar a culpabilidade universal, ele constrói uma síntese inconsistente de visão
jurídica de imputação de pecado e visão biológica de herança, mas constitui nessa
síntese o excesso de sentido:
O que, no entanto, é preciso sondar no conceito de pecado
original não é sua falsa clareza, mas sua tenebrosa riqueza analógica
[...]. A intenção do pseudo-conceito de pecado original é, então, a
seguinte: incorporar à descrição da vontade má, tal como foi elaborada
contra Mani, e a gnose, o tema de uma quase-natureza do mal. A
função insubstituível do conceito é, então, a de integrar o esquema de
herança ao de contingência. [...] Assim é constituído, por intermédio
de um conceito absurdo, um antítipo da regeneração (Ricoeur,
1978:258).
257
A inconsistência do símbolo conceitual se dá, portanto, não como falta de
sentido, mas como um excesso que não se pode exprimir sinteticamente, exceto pela
construção de uma noção contraditória, cuja função não é tanto dizer algo, mas manter a
tensão de dos aspectos da experiência sem uma resolução unilaterial, seja gnóstica, seja
eticizante.
Segundo Ricoeur, Kant, mais tarde, criticará o pecado original como falso saber,
procurando encontrar suas condições de possibilidade, que seriam seu fundamento
transcendental. Ele rejeita a “naturalidade” do mal, exceto como um modo de ser da
liberdade cuja origem se encontra nela mesma, no caminho da compreensão ética, mas
reconhece haver algo de insondável no fato de o mal sempre estar aí, a despeito de só
poder ser obra da liberdade. Kant teria completado Agostinho, então, ao “destruir
definitivamente o envoltório gnóstico do conceito de pecado original”, mas admitindo o
mistério da universalidade de sua presença (Ricoeur, 1978:259).
O trágico retorna, portanto, colocando um limite na desmitologização
empreendida pelo pensamento reflexivo, e na própria formatação ética do problema do
mal. O efeito residual que os mitos tiveram sobre o mito adâmico se repete em
Agostinho, no símbolo racional do pecado original, e na visão kantiana do mal radical,
pondo em dúvida a segurança e a certeza de si, o orgulho oculto na humildade
eticizante. No fim, afirma Ricoeur, essa antropologia trágica conduzirá a uma teologia
trágica, que põe um Deus irredutível ao ético, e induz a percepção de um “mistério
divino do mal” (Ricoeur, 1978:260).
O que se pode fazer, em termos de pensamento, diante dessa tensão, que nasce
nos simbolos primários, avança na batalha dos mitos, é articulada no nível terciário do
símbolo racional agostiniano, e permanece refinada mas indissoluta em Kant? Ricoeur
aponta o futuro como caminho, lembrando o fato de que “[...] os símbolos do ‘começo’
258
só recebem seu sentido completo de sua relação com símbolos do ‘fim’”. Deixando a
esquerda especulativa da gnose e a direta reflexiva da alegoria, Ricoeur aponta a
necessidade de pensar a totalidade, de integrar o mal de algum modo numa totalidade
que seria temporalmente localizada no fim, no futuro (Ricoeur, 1987:261).
Há aqui um outro perigo, no entanto. Ricoeur confessa que “[...] nenhuma
grande filosofia da totalidade está em condições de dar uma explicação, de dar as razões
dessa inclusão da contingência do mal num desígnio significante” (Ricoeur, 1978:262).
Isso se aplica a sistemas não-dialéticos, monistas, como os de Plotino e Spinoza, que
negam-se a pensar o mal, dissipando-o como ilusão, ignorando a sua presença. O
sistema dialético de Hegel faria um pouco melhor, ao integrar efetivamente o trágico.
Mas no final, o mal é transformado em algo menor, menos denso; em uma
“contradição”, ou “negatividade”. A reconciliação deixa de ser perdão, para ser
superação. O mal deixa de ser injustificável, e torna-se quase necessário (Ricoeur,
1978:263-264).
Não havendo resposta positiva como posse presente, isto é, não havendo sistema
capaz de integrar racionalmente a gratuidade do mal e a sua universalidade trágica,
como o diria Tillich, é preciso olhar para o futuro, aguardando a reconciliação não no
sistema, mas na escatologia. Ricoeur usa as expressões “a despeito de “, “graças a” e
“quanto mais” para expressar uma forma de imaginação religiosa que vê o mal
retroativamente, a partir da sua derrota futura (Ricoeur, 1978:264). O falso saber do
símbolo racional negativo, do pecado original, seria meramente a imagem negativa (o
antítipo) da esperança positiva da graça, de um processo no qual o trágico do mal seria
reconhecido e superado.
259
(4) Interpretando o “Excesso” (ii): Como o Símbolo da Queda nos Ensina a Pensar
Reflexivamente
Ricoeur, em mais de uma ocasião, expressou sua aderência à tradição reflexiva
da filosofia, característica da corrente moderna, englobando Descartes, Kant, o
idealismo alemão, Husserl, e o pensamento hermenêutico; a forma de pensamento que
parte do reconhecimento da posição do Si, o Self, e que se constrói sobre a realidade do
Ego. Nessa tradição, o ego se dá no pensar, não como evidência factual, mas como
pressuposição. Isto não seria suficiente para descrever a natureza da reflexão, porque o
ego do Ego cogito não é dado imediatamente, não é intuição. Ele só é dado “no espelho
de seus objetos, de suas obras e, finalmente, de seus atos”:
A primeira verdade – existo, penso – permanece tão abstrata e vazia
quanto é invencível. Ela precisa ser “mediatizada” pelas
representações, pelas ações, pelas obras, pelas instituições, pelos
monumentos que a objetivam. É nesses objetos, no mais amplo
sentido do termo, que o ego deve se perder e se encontrar (Ricoeur,
1978:275).
Se a consciência não é dada imediatamente, se o que temos é uma apercepção
vazia de conteúdo cognitivo, a consciência é uma tarefa. Saber de si é algo que só se
alcança mediatamente, através das objetivações da consciência. O auto-conhecimento
que a tradição reflexiva procura, portanto, não pode ser atingido com sucesso sem a via
longa da interpretação dos símbolos. Não é suficiente a crítica; é preciso a
“reapropriação do nosso esforço por existir” que está além de nós. Ricoeur descreve isto
como a tarefa de “igualar” a experiência concreta, objetiva, ao “existo” da reflexão. E
apoiando-se em Spinoza, relaciona essa tarefa com a apreensão do esforço de ser
(conatus) do ego (Ricoeur, 1978:276-277). Em suma, “A reflexão é a apropriação de
nosso esforço para existir e de nosso desejo de ser, através das obras que atestam esse
esforço e esse desejo” (Ricoeur, 1978:277)
260
Ora, entre as obras que atestam este esforço, estão os símbolos. Há, como o diz
Ricoeur, uma “conexão primitiva” entre o ato de existir e os símbolos. Em nossa
discussão sobre a teoria do símbolo de Ricoeur, vimos como ele diferencia os signos e a
metáfora do símbolo, a partir da característica deste último de situar-se no limiar de bios
e logos, no vínculo entre o vital e a poiética linguística.
Uma dificuldade, no entanto, se interpõe ao estudarmos os símbolos: o evidente
“conflito de interpretações”, que parece tornar a forma hermenêutica de pensamento
uma rua sem saída. Para mostrar a saída, Ricoeur oporá a fenomenologia da religião e a
psicanálise, indicando ao mesmo tempo sua relação interna.
Ricoeur ressalta três traços da fenomenologia da religião: ela tem um enfoque
descritivo, referindo o fenômeno religioso a seu objeto, que Ricoeur denomina como “o
sagrado”; procura a verdade que há nos símbolos, no liame entre o significado e o
significante, a partir da estrutura do símbolo; e quer a compreensão do próprio ser, a
reminiscência do sagrado, por meio da linguagem religiosa.
Ricoeur opõe, em seguida, ao pensamento fenomenológico, o pensamento
psicanalítico, ponto por ponto. Em primeiro lugar, a psicanálise é funcionalista,
buscando explicar o fenômeno religioso referindo-o a condições subterrâneas, a um
conjunto de pulsões fundamentais para fora do campo religioso. Quanto ao significado
do símbolo religioso, este não é encontrado na plenitude do próprio símbolo; esta é a
ilusão a ser superada, por meio de uma compreensão da verdadeira função das
representações religiosas na economia da vida, e a “reminiscência” é explicada a partir
das raízes arqueologicamente reconstruídas da ilusão religiosa, como o retorno de um
fantasma do passado, o retorno do recalcado.
Como dimensionar esta contradição radical de intepretações? Ricoeur aponta,
inicialmente, que a psicanálise esforça-se para destruir o privilégio da consciência,
261
reduzindo-a a um processo quase-físico, “hidráulico” subjacente (uma “psico-
dinâmica”), pré-consciente, naturalístico, mas que ela, enfim, não pode fazê-lo. A
consciência está aí. O que a psicanálise faz, efetivamente, é ajudar a contestar a
imediaticidade da consciência, mostrando-a como tarefa, como algo secundário
(Ricoeur, 1987:273). Mas isto significa ir além dos símbolos mais ligados à infância,
reconhecendo que a maturação humana introduz novas representações que são
irredutíveis às anteriores. A exegese da consciência mostrará, enfim, uma insuficiência
no modelo hidráulico. Assim, haveria uma dialética além apenas da diversidade
metodológica de fenomenologia e psicanálise, refletida no próprio objeto: o processo da
consciência:
As duas espécies de hermenêutica, que descrevemos na primeira parte,
repousam nessa polaridade das “metapsicologias”. A oposição entre
inconsciente e espírito exprime-se na dualidade mesma das
interpretações. As duas ciências da interpretação representam dois
movimentos contrários: um movimento analítico e regressivo em
direção ao inconsciente, um movimento sintético e progressivo em
direção ao espírito (Ricoeur, 1978:274).
Há uma dinâmica e uma transformação tal, no processo da consciência, que
torna o movimento da psicanálise ao inconsciente e ao fundamento pré-consciente e
pulsional da consciência válido, tanto quanto o movimento fenomenológico em direção
às representações do espírito. Estas últimas pertencem à ordem do “derradeiro”, ao
escatológico, àquilo que funda a esperança pois se localiza no futuro (Ricoeur,
1978:274). É como se cada uma contemplasse uma “ponta” do processo.
Aqui, aponta Ricoeur, encontra-se a relevância deste conflito hermenêutico para
a filosofia reflexiva. Trata-se de uma dupla “humilhação” da consciência que, perdida
de si mesma, se reencontra atrás de si, na psicanalítica do símbolo e, adiante de si, na
fenomenologia do símbolo. A reflexão precisa da mediação do símbolo, e esta lhe é
dada por meio de uma arqueologia e de uma escatologia da consciência (Ricoeur,
262
1978:278). Através da arqueologia, a reflexão lança a suspeita, desconfia da falsidade,
da ilusão das expressões da consciência em sua literalidade; através da fenomenologia, a
reflexão procura a verdade no processo dialético (Hegel) de destruição e reconstituição
das representações do espírito.
95
Dando um passo à frente de Hegel, no entanto, Ricoeur deixa claro que a
verdade do espírito não é o saber absoluto ao qual o processo dialético conduziu, mas
uma promessa nunca concretizada. Daí sua descrição da fenomenologia dos símbolos
religiosos como uma escatologia da consciência: é que ela nunca traz um saber, mas
apenas a imaginação escatológica, a expressão da paixão pelo possível, da esperança
(Ricoeur, 1978:279). Não há saber absoluto; apenas símbolos do sagrado, que estão à
frente das representações do espírito. Estas se dirigem para o absoluto, guiadas pelos
símbolos, mas não o alcançam.
Os símbolos revelam a dupla dependência da consciência ao inconsciente e ao
Sagrado – quase poderíamos dizer, ao pó e ao Espírito divino. Esta é a razão porque a
análise dos símbolos se dividiu em uma arqueologia psicanalítica (por exemplo) e em
uma escatologia fenomenológica. Não se trata de um acidente, mas de um reflexo da
própria constituição do espírito humano (Ricoeur, 1978:280), que se projeta
semanticamente, criando o novo, ou expressando o novo, o possível futuro, a partir das
mesmas raízes terrenas, arcaicas, regressivas. Não é esta a própria estrutura de
significação do símbolo em Ricoeur, como vimos? Não é o sentido segundo dado
95
“O espírito é a ordem do derradeiro, o inconsciente, do primordial. Assim a significação da consciência
não está em si mesma, mas no espírito, ou seja, na sucessão de figuras que arrastam a consciência para
frente” (Ricoeur, 1978:279).
263
através do sentido primeiro? Não é assim a criação de sentido no processo metafórico, e
na evolução dos símbolos míticos e dogmáticos?
96
Só há uma forma, portanto, de pensar a totalidade: por meio da interpretação da
simbólica religiosa. É que ela projeta, em seu excedente, o novo, o que não está dado
pelo saber filosófico. Evidentemente, mostra-se aqui a insuficiência de uma simbólica
da negatividade, do mal apenas. Pois a simbólica do mal não diz o futuro, e sim o
passado e o presente. De que modo, então, ela se encaixa nesta explicação? Ricoeur já
havia nos advertido: a corrupção do pecado original é o antítipo da regeneração.
Pode-se afirmar que o simbolismo do mal é sempre o reverso de um
simbolismo da salvação, ou que um simbolismo da salvação é a
contrapartida de um simbolismo do mal [...] a hermenêutica do mal
aparece como uma província particular no seio de uma interpretação
geral do simbolismo religioso. Por enquanto, consideraremos o
simbolismo do mal tão somente como o reverso de um simbolismo
religioso (Ricoeur, 1978:267).
O simbolismo do mal é o reverso. Mais do que isso, é o antítipo da graça. Ele é
construído negativamente, não apenas como resposta à experiência do pecado, mas
também à experiência da salvação. Nesse sentido, ele reflete especularmente o excesso
de sentido que o símbolo da salvação apresenta, de uma forma invertida. O excesso de
sentido presente no símbolo agostiniano do pecado original tem seu correspondente no
excesso de sentido presente na lógica da graça (a “lei da superabundância” de Ricoeur).
O excesso de sentido dos símbolos de salvação pensa a totalidade por meio de uma
lógica paradoxal, “solucionando” o mistério do mal, cuja profundidade é captada pelo
excesso de sentido dos símbolos do mal.
O simbolismo do mal é o reverso, mas nem por isso deixa de ser fundamental.
Ele tem uma posição privilegiada, na medida em que nos ensina a pensar o mecanismo
96
“A ordem progressiva dos símbolos não é exterior à ordem regressiva dos fantasmas. Mergulhando nas
mitologias arcaicas do inconsciente, novos signos do Sagrado se elevam. A escatologia da consciência é
sempre uma repetição criadora de sua arqueologia” (Ricoeur, 1987:281).
264
do “excesso” semântico (surplus of meaning), por meio do fracasso de toda explicação
racional totalizante; mostrando de forma exemplar “[...] que há sempre mais nos mitos e
nos símbolos que em toda nossa filosofia [...] o fracasso de todos os sistemas de
pensamento que pretendam absorver os símbolos num saber absoluto” (Ricoeur,
1978:280). Então, a reflexão mediada pela hermenêutica dos símbolos nos faz ver um
Self, uma consciência de si, que não depende apenas do que está atrás de si, mas
também do que está à frente, no futuro, no eschaton.
(5) Interpretando o “Excesso” (iii): Demitizar a Acusação
Nos dois artigos finais da Simbólica do Mal Interpretada (Demitizar a Acusação
e A Interpretação do Mito da Pena), Ricoeur se propõe a interpretar os símbolos
religiosos de julgamento e condenação, aprofundando, por um lado, a aplicação de seu
método, e o próprio conteúdo de sua interpretação, ao deixar o foco na experiência
subjetiva da “consciência julgada” e passar à representação simbólica da acusação e da
ira divina, isto é, à “consciência julgante”.
No primeiro artigo, Ricoeur procura mostrar como a fé supera a acusação e
introduz uma crítica da consciência julgadora, uma acusação da acusação.
Inicialmente, opõe Freud e Kant, o grande “divórcio metodológico” na interpretação da
obrigação moral. Em Kant, a reflexão descobre uma estrutura transcendental, fundante,
que deve simplesmente ser reconhecida: o “imperativo categórico”. Em Freud, temos
uma hermenêntica, que explica a obrigação moral como estrutura derivada e adquirida,
cujas raízes são descobertas por um procedimento genealógico, de decifragem.
Assim, em Freud, a consciência julgante deixa de ser primeira e se torna
segunda, posta sob a suspeita genealógica, sendo correlacionada com o desejo. Freud
265
desmistifica a acusação, ao desvelar uma patologia do dever, ao descrever
geneticamente a origem da lei, traçando-a a um fundo psíquico, e ao mostrar a
dependência das “renúncias” a um sistema de equilíbrio dinâmico de pulsões. Mas todo
este trabalho teria um valor filosófico:
A crítica freudiana da acusação tem uma significação
filosófica que cumpre agora destacar. Eu a resumirei nesta fórmula:
remontar da moral da obrigação a uma ética do desejo de ser ou do
esforço para existir (Ricoeur, 1978:285).
Esta significação filosófica deve ser apropriada pela reflexão, segundo Ricoeur,
para retomar o problema ético, e não para abandoná-lo. Essa retomada é possível no
ponto em que se articulam a arqueologia da consciência, em sua negatividade destrutiva
(o momento da “desmistificação” do mito) e a escatologia da consciência, em sua
positividade construtiva (a desmitologização). No lugar em que ambos os movimentos
nos dizem algo sobre a consciência.
Ora, este “lugar” é a compreensão do sujeito como esforço, apreendida não
diretamente, mas por meio de suas objetivações simbólicas. Tanto a arqueologia como a
escatologia do sujeito revelam seu esforço, e o conteúdo deste esforço: “O originário
ético está, pois, na articulação dos nossos dois movimentos de pensamento da
destruição mítica e da instrução simbólica” (Ricoeur, 1978:286).
O kantismo criou uma “cortina de fumaça”, por assim dizer, ao separar o desejo
e a moralidade, inscrevendo transcendentalmente a obrigação moral. A obrigação foi
assim “formalizada”, e a busca da felicidade, tornada mero princípio material. Contra
essa separação, Ricoeur cita Spinoza que, em sua noção de conatus, de esforço,
descreve a natureza essencial do sujeito. O homem é a “afirmação do ser na carência do
ser”. Esta concepção seria capaz de fazer justiça à descoberta de Freud e, ao mesmo
tempo, fundar uma ética não formalista:
266
O dever é apenas uma peripécia da exigência e da aspiração. Como diz
Nabert: “A posição de ser, a consciência deve à relação que seu desejo
mantém com uma certeza primeira, cuja lei é apenas a figura. A ordem
do dever contribui para revelar ao eu um desejo de ser cujo
aprofundamento confunde-se com a própria ética” (Ricoeur,
1978:287).
Cai desmistificada, portanto, a acusação. Ela não é, de fato, algo separado do
meu desejo; ela é uma figura criada pelo esforço, de modo invertido, negativo. A
desconstrução Freudiana demonstra a natureza artificial da obrigação moral, mas não
chega ao ponto de reconhecer que o desejo, enfim, produziu a representação da
obrigação porque a queria essencialmente.
Aqui Ricoeur retorna à interpretação do símbolo religioso, em sua apresentação
da obrigação moral como mandamento. A idéia de que ela seria mandamento é o mito, e
deve ser desmistificada. A teologia moral deve, então, superar esta representação e
encontrar a relação da obrigação com o desejo, sua origem última (Ricoeur, 1978:288).
Ricoeur lembra que, em Kant, a questão da religião é a questão da totalidade. A
religião imagina e deseja apaixonadamente a superação de toda alienação, o “objeto
inteiro da vontade”; a religião se relaciona ao esquema do desejo de totalidade (Ricoeur,
1978:289).
97
A moralidade é, aqui, apenas um momento da religião; nela a realização do
mandamento aparece como um aspecto da esperança da totalidade. Já vimos, a
propósito, que a superação do mal faz parte dessa totalidade que, em Hegel, é posse
presente mas, na simbólica religiosa, é esperança futura. Cristo constitui, para Ricoeur
(a partir de Kant), o esquema por excelência da esperança, a representação do desejo de
97
Ricoeur recorre, aqui, à doutrina kantiana dos esquematismos, que constituem formas da imaginação de
explorar o real conectando experiência sensória e categorias racionais. A doutrina do esquematismo
representa, para Ricoeur, a capacidade humana de pensar aquilo que não é, mas, pode ser; de imaginar o
futuro possível: “Em sua capacidade esquematizadora, a imaginação é criativa; ela não apenas reproduz
imagens de objetos no mundo, mas cria figuras de tempo que permitem às categorias serem aplicadas ao
mundo”. Vanhoozer celebra a aplicação dessa categoria à narrativa por Ricoeur como uma “jogada
brilhante”: “[...] a narrativa não mais aparece como a imaginação de alguma coisa no mundo, o produto
da imaginação reprodutiva, mas antes como uma figura criativa do tempo, o produto da imaginação
criativa” (Vanhoozer, 1990:45).
267
ser em seu acabamento; o esquema da totalidade (Ricoeur, 1978:291). Esta
representação é promessa, objeto de esperança, e nunca posse de um sistema racional.
É assim que a interpretação do símbolo religioso constrói a escatologia da
consciência; mostrando como ela é constituída a partir de sua representação do futuro,
que diz o objeto do desejo de forma positiva. Aqui, como se vê, o que é ordenado
miticamente na representação da obrigação moral, é desejado miticamente no esquema
“crístico”; a imagem da obrigação é, assim, a forma inversa daquilo que é desejado
positivamente, apresentada desde a experiência de alienação e impossibilidade, de
ausência presente. O mito da “acusação” é a forma negativa do símbolo de Cristo.
Tal compreensão deve levar, então, à superação da visão do mal como
desobediência à obrigação. Essa visão seria ainda mítica. Ricoeur propõe uma
interpretação querigmática do mal:
Cumpre, pois, proceder à inversão completa da problemática:
o mal não é a primeira coisa que compreendemos, mas a última; ele
não é o primeiro artigo do Credo, mas o último. Uma reflexão
ascendente sobre a origem do mal não é religiosa [...] porque discerne
um inescrutável que não pode ser enunciado senão miticamente. O que
qualifica como religiosa essa meditação é uma inteira reinterpretação
de nossas noções de mal e de culpabilidade, a partir do querigma
(Ricoeur, 1978:292).
A viabilidade dessa reinterpretação é confirmada quando se constata que os
mitos evoluem por um processo de destruição de outros mitos e reconstrução a partir de
materiais anteriores; as representações do espírito avançam por um modo dialético; é
claro que a crítica psicanalítica pode mostrar a dependência final dos símbolos em
relação ao pré-consciente, às pulsões fundamentais. Mas essa forma de abordagem
deixa passar a experiência do novo na evolução do espírito, testemunhada pelo
constante processo de criação semântica que encontramos na simbólica, na metáfora, no
discurso, e no próprio pensamento do novo – a imaginação. Já falamos sobre isso antes;
268
Ricoeur descobriu, para seu mérito, no conflito da hermenêutica arqueológica com a
hermenêutica fenomenológica, uma estrutura constitutiva do sujeito.
A tarefa aqui é mostrar como as produções culturais, de uma parte,
prolongam objetos arcaicos perdidos; de outra parte, transgridem a
função de simples volta do recalcado. A profecia da consciência não é
exterior à sua arqueologia. O símbolo é um fantasma renegado e
ultrapassado, mas de forma alguma abolido. É sempre sobre algum
vestígio de mito arcaico que são enxertadas as significações
simbólicas apropriadas à interpretação reflexiva (Ricoeur, 1978:294).
Ricoeur quer, portanto, que tomemos o mito da acusação, destruído,
desmistificado por Freud, e resgatemos o seu fundo simbólico revelante, que estaria
presente graças à influência atrativa do sagrado sobre a consciência, desde o eschaton,
influência que motivou a “correção sem fim” do mito, na história religiosa, e que foi
motivada, por sua vez, pelo desejo de expressar a totalidade, o esquema crístico.
A própria fé introduz a eliminação da acusação, criticando a consciência
julgadora e abolindo a visão moral do mundo. Isto se dá na literatura de sabedoria, em
Jó, principalmente, quando a fé chega ao ponto de renunciar à absolutidade da
obrigação moral, como princípio de interpretação, e amar a Deus aceitando o mistério
do mal. Ao mesmo tempo, nos diz Ricoeur, devemos aceitar a consolação da boa nova
do amor de Deus por nós, crer que a ira de Deus é uma expressão de seu amor, enfim.
O significativo, então, no mito da acusação, isto é, nas partes da simbólica do
mal que dizem respeito à acusação (lei, justiça, juízo) é sua conexão originária com o
desejo da realização ética plena, cujo esquema supremo é o Cristo. O esfoo do ser por
atingir essa realização interior se expressa, em razão da experiência da culpabilidade,
por uma inversão, que é a acusação, desmistificada por Freud; e se expressa,
positivamente, no símbolo querigmático. E a chave para compreender o verdadeiro
significado das imagens invertidas, do mito da acusação denunciado pela arqueologia da
269
consciência é a escatologia da consciência: a consideração séria da “paixão pelo
possível” manifesta nos símbolos de salvação.
(6) Interpretando o “Excesso” (iv): A Interpretação do Mito da Pena
No último artigo da Simbólica do Mal Interpretada, Ricoeur pretende mostrar
que a idéia de penalidade, a lógica da pena, no contexto religioso, é um conceito mítico,
a ser superado. A penalidade implica um sofrer, um fazer sofer, uma equivalência do
mal cometido e do mal sofrido/inflingido da penalidade, e uma unidade de querer na
qual a falta é paga – o culpado. Ricoeur aponta um incômodo empírico: o crime é
realizado pela vontade do culpado, mas a pena pela vontade do juiz – outra vontade. Há
uma assimetria, portanto.
O mito da pena, na religião, tem características especiais, que o tornam
atipicamente lógico, mito-lógico: o fato de, no conceito de expiação, existir uma
unidade da vontade do crime e da pena. A vontade divina que concede a lei, concede a
purificação da mácula, através da pena. A lógica que explica a relação entre o crime e o
castigo é, assim, uma lógica de poderes, não de idéias (Ricoeur, 1978:299). O raciocínio
proporcional, no direito, trai uma racionalidade mítica, ao supor a unidade interna de
crime e castigo. E não haveria como superar isto na prática:
Tal é a aporia do direito penal: racionalizar a pena segundo o
entendimento, eliminando o mito da expiação, é ao mesmo tempo
privá-la de seu princípio. Ou, para exprimir essa aporia nos termos de
um paradoxo: o que na pena é o mais racional, a saber, que ela vale o
crime, é ao mesmo tempo o mais irracional, a saber, que ela o apaga
(Ricoeur, 1978:300).
Essa teoria penal encontra expressão no cristianismo, em suas idéias sobre
pecado original, expiação, e justificação. Mas, segundo Ricoeur, o mistério da cruz não
é totalmente capturado pela teoria da satisfação penal. Ela seria uma racionalização de
270
segundo grau de um mistério maior; a jurisdicização da experiência da graça. Esta,
embora apresentada em termos judiciários, transbordaria os limites do pensamento
jurídico (Ricoeur, 1978:301).
Para desmitologizar a pena, Ricoeur recorre à explicação de Hegel para a aporia
do direito penal, que a religião explica mitologicamente. Segundo Hegel, nos Princípios
da Filosofia do Direito, a noção de pena supõe uma identidade interior de crime e pena.
Essa identidade pode ser explicada ontologicamente, quando se relaciona o direito, num
nível abstrato e formalizado, como a liberdade de todo sujeito de ser sujeito, ser pessoa.
A violação do direito seria, então, a violência a este princípio e, assim, a meu próprio
direito, ao violar o outro. A pena deriva-se logicamente, então, da necessidade da
realidade do direito de reconciliar-se consigo mesma, suprimindo a violação do direito.
A pena seria, então, o resultado da negatividade do crime, ligada a ele por necessidade
ontológica. Daí a validade de uma lógica de equivalência. “Com efeito, ao punir o
criminoso, eu o reconheço como ser racional que colocava a lei ao violá-la. Submeto-o a
seu próprio direito” (Ricoeur, 1978:303). O enigma da pena é, portanto, solucionado,
dentro do âmbito da filosofia do direito.
Ricoeur argumenta que a demitização do mito da pena seria simplesmente
manter a noção de pena neste campo, do direito abstrato, recusando moralizá-la ou
divinizá-la. Ela não pode ser moralizada porque, ao ser trazida para as relações pessoais,
torna-se mera vingança, ato da vontade particular (ao invés de expressão do direito
universal) e, como tal, mera repetição do crime. Além disso, a transformação da lógica
penal em intenção moral aprisiona a própria moral na dinâmica da consciência
julgadora, e impedindo a superação da vontade particular, que é a característica da
vontade de universalidade. Esta conduzirá sempre ao perdão e à reconciliação, isto é, ao
abandono do juízo particular (Ricoeur, 1978:405). Este é o caminho moral, o caminho
271
da adesão pessoal ao próprio fundamento ontológico do direito, que quer a unidade, não
a separação.
98
O além da punição é o igualamento das duas consciências, a
reconciliação, que se chama “perdão” na linguagem da religião, ou
“comunidade” na linguagem da moralidade objetiva, vale dizer, em
última análise, da política (Ricoeur, 1978:306).
O mito acontece, portanto, quando a consciência tenta transportar a lógica da
pena, válida no direito, para a intenção moral, reforçando uma consciência julgadora e
destruindo a possibilidade da unidade, consagrando a separação e a irreconciliação.
A penalidade deve ser pensada, então, a partir da rejeição resoluta de uma
aplicação da lógica da equivalência – este é o elemento destruído através da
desmistificação. Ela deve ser pensada a partir do que Ricoeur, seguindo Kierkegaard,
exprime como “lei da superabundância”. A linguagem jurídica, na religião, descreve
analogicamente as relações de pessoas. Mas não é suficiente para dar conta da totalidade
dessas relações, e da nossa relação com Deus, em especial. Outras relações a
complementam, nas Escrituras: a metáfora do casamento, por exemplo, e a noção de
Aliança, principalmente:
Mas a conceptualidade jurídica jamais exauriu o sentido da
Aliança. Esta jamais cessou de designar um pacto vivo, uma
comunidade de destino, um laço de criação, que ultrapassa
infinitamente a relação de direito. Essa é a razão porque o sentido da
Aliança pode se investir em outros “figurativos”, tais como a metáfora
conjugal de Oséias e de Isaías. É aí que vem se exprimir o excesso de
sentido que não encontra lugar na figura do direito (Ricoeur,
1978:308-309).
Retorna, então, a noção de excesso de sentido. Aquilo que o pecado rompe é
muito mais do que a analogia jurídica pode exprimir; assim, o conceito de pecado deve
98
A coisa pode ser colocada da seguinte forma: o crime deve ser punido, no criminoso, porque a sua
vontade se afastou da máxima universal do direito; a própria máxima exige, nele, a reação. Mas desejar a
vingança subjetivamente é iniciar o movimento de rejeição da máxima que está consumado no criminoso,
opondo-se ao espírito da máxima do direito que é a identidade. Buscar a reconciliação é a única forma de
superar a contradição, no âmbito moral.
272
ser desjuridicizado. Isto nos leva a um conceito de pecado como separação e
desenraizamento, e não como mera transgressão da lei. Além disso, a noção de “ira
divina” deve ser também desjuridicizada, liberta da visão moralista-jurídica de mundo.
Neste caso, “O Deus trágico ressurge das ruínas da retribuição”; um Deus cuja ira não
pode ser reduzida à lógica da equivalência (Ricoeur, 1978:309). A ira divina passa a ser
vista como o outro lado, o ou o outro símbolo da mesma separação que o conceito de
pecado expressa. Enfim, todo o elemento teo-lógico, todo o pólo transcendente da
simbólica do mal, incluindo a lei/acusação, a ira divina e a condenação, deverão ser
vistos de forma unitária, como o efeito da separação, o contrário da unidade com o
Sagrado:
Se tal é o pecado em seu sentido hiperjurídico, cumpre dizer
que a pena outra coisa não é que o próprio pecado [...]. Essa relação
jurídica de querer a querer é apenas a imagem de uma situação mais
fundamental, na qual a pena do pecado é o próprio pecado como pena,
a saber, a própria separação [...] toda a simbólica da lei deve ser
colocada no mesmo nível que as mitologias de caráter cosmológico
(Ricoeur, 1978:310).
Ricoeur volta a Paulo, para mostrar que ele adota uma lógica paradoxal ao lidar
com os conceitos jurídicos, e o celebra como o inventor da “inversão do pró ao contra”
que seria repetida por Lutero, Pascal e Kierkegaard. É a lógica da sobra e do excesso, a
lógica da graça, que destrói a lógica da equivalência. Assim, em Romanos 5.15-17,
Paulo declara que a ação da graça não pode ser comparada com a ação do pecado, pois é
superabundante. A lógica penal, da equivalência, é inadequada para expressar essa
relação, permanecendo apenas como memorial, como o mito destruído que testemunha
a sua própria superação. Como tal, serve de fundo à percepção superior que é
apresentada no Evangelho (Ricoeur, 1978:312-314).
(7) Interpretando o “Excesso” (iv): A Superação da Culpa a partir da Esperança
273
Em Culpabilidade, Ética e Religião, Ricoeur voltará a tratar dos símbolos do
mal, retomando o enfoque da consciência julgada, que ele havia deixado nos dois
últimos artigos da Simbólica do Mal Interpretada. Ricoeur pretende estabelecer uma
distinção entre o que a religião e a ética dizem sobre a culpa.
Partindo de um estudo semântico da linguagem do pecado, Ricoeur aponta a
presença de vários elementos: a idéia de infecção externa, quase física, a de ação moral,
a ruptura da relação, o poder escravizador. Mas o pecado surge sempre como condição
real, objetiva. Já a culpabilidade tem caráter subjetivo, derivado de uma jurisdicização
do pecado seguida de sua interiorização na consciência. Historicamente, este processo
conduziu a uma gradualização da culpabilidade, e à sua individualização radical,
desembocando, finalmente, na consciência escrupulosa e no início de uma patologia da
culpa. Mesmo antes dessa patologia, no entanto, é claro, como mostra Ricoeur, que a
noção de culpabilidade não dá conta de toda a experiência humana do mal (Ricoeur,
1978:356-359).
Voltando-se para a reflexão ética, Ricoeur mostra a existência de uma relação
interna entre a liberdade, a obrigação moral, e o próprio mal. Afirmar a liberdade é
assumir a responsabilidade pelo mal; confessar o mal é reconhecer essa
responsabilidade. A obrigação também se liga ao mal, desde que ele pode ser pensado
como a negação do que devia ser, e o dever ser é aquilo que se pode ser, mas se escolhe
não ser (Ricoeur, 1978:361-362).
Ricoeur encontra em Kant o máximo que a reflexão ética pode produzir, quanto
ao mistério do mal: a afirmação quase-pelagiana da liberdade humana como ponto de
emergência do mal, por lado, mas o reconhecimento da finitude do saber humano,
inclusive na compreensão do porquê da presença universal do mal. Essa seria a “versão
kantiana”, em forma de silêncio especulativo, do mito adâmico de um pecado original.
274
Há, tragicamente, e não se sabe porque, um “cativeiro interior que faz com que eu não
possa não fazer o mal” (Ricoeur, 1978:364).
O que dirá a religião a respeito? Segundo Ricoeur, o discurso religioso sobre o
mal se caracteriza pela esperança. Vimos como essa percepção de Ricoeur se insinuou
por toda a sua interpretação do mal, desde sua teoria do símbolo, até à sua exposição da
função dos símbolos religiosos para uma compreensão escatológica da consciência,
passando pela apropriação da teoria kantiana dos esquematismos, e da dialética do
espírito de Hegel. Neste artigo ele é mais explícito:
Em primeiro lugar, com Kierkegaard, podemos chamar a
liberdade segundo a esperança de a paixão pelo possível; esta fórmula
enfatiza, contrariamente à sabedoria do presente e a toda resignação à
necessidade, a marca da promessa sobre a liberdade; a liberdade,
confiada ao Deus que vem, está pronta para o radicalmente novo; ela é
a imaginação criadora do possível (Ricoeur, 1978:364).
Ao abrir o futuro diante do homem, apresentando-lhe a “lógica da
superabundância” de Paulo, a religião incita a reconstrução dos mitos, para exprimir
essa novidade. Altera, assim, o discurso sobre o mal, condicionando-o à promessa de
sua superação, e transformando-o qualitativamente, de transgressão da lei para a
separação e busca de autonomia (Ricoeur, 1978:365). Com isso, a lógica da
equivalência, que está na raiz da culpabilidade, é quebrada e superada.
E ainda, conferindo ao homem uma visão da totalidade, como o possível, a
religião pede a reconciliação de dever e desejar, de virtude e felicidade; na imaginação
do possível, a esperança religiosa introduz a conquista, no homem, dessa reconciliação.
Mas ela nunca é posse presente; é esperança. A utopia totalitária seria a patologia da
esperança, a mentira da síntese prematura, que ronda a religião mas não faz parte de sua
essência.
275
O próprio mal é sentido, pela esperança, como parte da economia divina da
superabundância. A fé está, portanto, disposta a aceitá-lo, não como bem, mas como
aquilo que chegará ao fim, que servirá ao Reino de Deus, mesmo que não “saibamos” o
seu começo (Ricoeur, 1978:366).
(8) O Problema do Sofrimento
Ricoeur apresentou uma conferência em Lausanne, no ando de 1985, intitulada
O Mal: Um Desafio à Filosofia e à Teologia, na qual retoma alguns temas anteriores, e
focaliza o problema que a teodicéia tentou, sem sucesso, resolver, referente ao
sofrimento.
Ricoeur sustenta que devemos, ainda, pensar o mal, mas deixando claro que há
um esgotamento no projeto da teodicéia, pela superação do pensamento teo-ontológico,
na aplicação da lógica da não-contradição e na busca de totalização sistemática
(Ricoeur, 1988:22). Partindo daí, inicia uma breve apresentação fenomenológica da
experiência do mal.
Aponta, primeiramente, a disparidade entre o mal cometido e mal sofrido mas,
ao mesmo tempo, a relação interna entre eles, que tantas vezes emerge. Haveria, então,
uma raiz comum do pecado e do sofrimento (Ricoeur, 1988:24)? Além disso, há a
experiência, no campo moral, de ser ao mesmo tempo culpado e vítima do pecado,
expressa no mito do pecado original (Ricoeur, 1988:25). Como explicar essa
experiência? Há uma profundidade maligna única por trás de tudo isso?
A reflexão sobre o mal progrediu em diversos níveis: o nível mítico, que
incorpora o mal na origem do cosmo e do homem; o nível sapiencial, que tenta explicar
o porque do mal, a partir da teoria da retribuição, inicialmente – mas efetuando, em Jó, a
276
sua destruição; o nível da gnose, que vê o mal de um modo essencialmente trágico, e o
da gnose antignóstica, articulado pelos Pais da Igreja e Agostinho, em especial
(Ricoeur, 1988:26-32). Agostinho tem um papel central, reunindo ontologia e teologia
numa onto-teologia, de-substancializando o mal, introduzindo o mal na esfera do ato, da
liberdade humana, e apresentando uma visão penal da história. Com ele consolida-se a
idéia de pecado original, como explicação da solidariedade humana no pecado e da
prioridade da vontade na origem do pecado através da fusão de uma noção de
transmissão biológica à de imputação jurídica. Nasce o mito racionalizado, o símbolo de
nível terciário (Ricoeur, 1988:32-34).
Mas nem Agostinho, nem Pelágio respondem à questão do sofrimento injusto, e
de sua relação com o pecado. No estágio da teodicéia, cuja melhor expressão foi
Leibiniz, apresenta-se uma espécie de cálculo para demonstrar-se que o balanço total é
positivo, que o mal tem razão de ser. O projeto fracassa porque não faz justiça à
gratuidade e irracionalidade do mal. E Kant, ao iniciar a destruição do projeto da
teodicéia, acaba finalmente por retirar do sofrimento a sua pertinência filosófica
(Ricoeur, 1988:37).
O pensamento especulativo, depois de Kant, tenta dar uma resposta a partir da
noção de negatividade, começando por Hegel. Ele lida com o conflito introduzindo no
sistema o trágico, e mostrando a sua necessidade lógica. De Hegel, Ricoeur tirou a
noção de que o mal estaria contido na própria acusação que gera a visão moral do mal
subjacente à simbólica religiosa da lei e da condenação, como tivemos a oportunidade
de observar (Ricoeur, 1988:40). No pantragicismo panlogicista de Hegel, no entanto,
Ricoeur admite, a reconciliação vem separada de qualquer consolação, de modo que o
sistema marginaliza as suas vítimas (Ricoeur, 1988:42).
277
É na dialética quebrada de Karl Barth que Ricoeur encontrará alguma coisa.
Barth relaciona o mal com um nada que é hostil a Deus, e não apenas a sua ausência.
Refletindo cristologicamente, ele vê o mal como aquilo que Cristo venceu na Cruz,
como o que está conquistado, ainda que não totalmente eliminado, pela permissão de
Deus (Ricoeur, 1988:44). Mas o que seria este mal “positivo”?
O nada também vem de Deus, mas em outro sentido, diferente da
proveniência da criação boa, isto é, para Deus, eleger no sentido de
eleição bíblica, é rejeitar algo que, por ser rejeitado, existe sob o modo
de nada. Este lado de rejeição é de alguma forma a “mão esquerda” de
Deus. “O nada é o que Deus não quer. Ele só existe porque Deus não o
quer”. De outro modo, o mal só existe como objeto da cólera de Deus
(Ricoeur, 1988:45).
O nada é, então, não-coordenável com o bem. Não faz parte da economia do
bem, mas de uma outra economia que é uma anti-economia, sobre a qual Deus também
reina, negativamente. Ricoeur sugere uma interpretação Kierkegaardiana, paradoxal de
Barth, para compreendê-lo, aqui, como evitando qualquer conciliação entre o bem e o
mal em si mesmos. Nesse ponto ele observa a aproximação de Tillich:
Barth não excedeu os limites que ele próprio se impôs de um discurso
rigorosamente cristológico? E não reabriu assim a via às especulações
dos pensadores do Renascimento, retomadas – com que poder! – por
Schelling, a respeito do lado demoníaco da divindade? Paul Tillich
não teve medo de dar este passo que Barth ao mesmo tempo encoraja
e recusa (Ricoeur, 1988:46).
Ricoeur, tampouco, decide-se a respeito, e cautelosamente sugere aceitarmos a
realidade do caráter aporético do pensamento sobre o mal, como possivelmente a
solução adequada ao problema; o reconhecimento da misteriosidade do mistério, obtido
e enriquecido exatamente pela tentativa milenar de sua superação (Ricoeur,
1988:46,47).
99
E aponta, para além do pensamento, a necessidade de dissociar a fé em
99
Ele nunca perde, no entanto, como se percebe em sua leitura de Barth, a percepção de uma origem
divina última do mal, como condição de sua possibilidade na finitude. Assim, em Thinking Biblically, ele
observa que, em Gênesis 2-3 o mal parece estar “inscrito na estrutura ética da criação”, como uma
fragilidade e vulnerabilidade intrínseca (Ricoeur, 1998:77), e o modelo da criação como “batalha”,
indicado por Claus Westermann e ressaltado por Jon Levenson, confirma essa vulnerabilidade. Mesmo
278
Deus da explicação da origem do sofrimento, a necessidade de crer em Deus apesar do
mal, renunciando aos desejos, aceitando o sofrimento, recusando-se a pensar o mal do
interior do “ciclo de retribuição” do pensamento penal (Ricoeur, 1988:51-53).
3.3.3. Síntese e Comparação: A Interpretação do Pecado em Tillich e em Ricoeur
Podemos iniciar nosso trabalho comparativo tentando organizar a contribuição
de Ricoeur, trazendo também alguns enriquecimentos. Primeiramente, destacaremos
três teses gerais sobre a hermenêutica do símbolo de Ricoeur: (1) ele apresenta uma
sofisticada teoria do símbolo religioso, na qual estabelece uma firme conexão entre o
significado simbólico e o significado literal que lhe dá sustentação. (2) A hermenêutica
de Ricoeur se baseia na rejeição da imediaticidade da consciência, de tal forma que esta
só pode ser recuperada, pelo pensamento reflexivo, através do estudo arqueológico e
escatológico das objetivações culturais do espírito humano (a via longa), incluindo o
discurso e os símbolos religiosos. (3) A teoria do símbolo de Ricoeur insere-se no
interior de uma filosofia da linguagem religiosa segundo a qual a imaginação religiosa
separa-se dos sentidos ordinários do mundo criando em seu discurso novas
possibilidade existenciais, segundo uma lógica de esperança e de transbordamento
semântico.
Na interpretação da Queda, as características que isolamos, da teoria ricoeuriana
da linguagem religiosa, encontram reflexo: (1’) Ricoeur encontra o poder revelante do
símbolo agostiniano no interior de sua forma plástica, pela mediação de seu sentido
literal, e procura extrair o sentido simbólico através da explicação de como os estratos
assim, ele lembra: “A lição de Gênesis 2-3 é, por certo, não a de que deveríamos confundir fragilidade e
maldade, finitude e culpa. A origem do mal é, ao invés disso, apresentada ali como distinta e, finalmente,
como enigmática” (Ricoeur, 1998:79).
279
do símbolo conceitual se constituíram e se articulam. Para tanto, ele dá grande atenção
os níveis inferiores da evolução do símbolo, às razões de sua constituição, e a que tipo
de realidade imaginada e possível ele pertence.
Ricoeur pensa os símbolos de um modo rigorosamente indutivo (2’), ainda que
retroativo, procurando compreender a consciência pela mediação do símbolo. O
símbolo, para ele, dá a pensar, significando isto que ele é dizente, que tem um conteúdo
para a autocompreensão do intérprete. Assim, as idéias de Ricoeur sobre o mal são
obtidas à base do estudo dos mitos, e do mito agostiniano, especialmente.
Por meio de seu procedimento hermenêutico, de pensar o mal a partir de uma
imaginação de esperança (3’), Ricoeur resiste a explicar o mal a partir do sistema, isto é,
a partir das condições de pensamento dadas presentemente; a partir da razão autônoma.
Kevin Vanhoozer, resume a crítica de Ricoeur a Hegel: “Para Hegel, a filosofia não
pode dizer o que deve ser no futuro, antes, apenas aquilo que veio a ser é a manifestação
racional do Geist” (Vanhoozer, 1990:41). O pensamento de Hegel é, assim, uma
filosofia da reminiscência, pensando apenas o que está dado, incapaz de sondar a
experiência a partir da imaginação do novo, das possibilidades futuras. Tomando Hegel
como exemplo, Ricoeur rejeita todo pensamento que não é estruturalmente aberto à
esperança, como forma de pensar o passado.
Ou seja: em Ricoeur, o mal é pensado retroativamente, desde a visão
esperançosa de sua realização, de modo que a interpretação dos símbolos do mal não
deve tentar reduzi-los a um sistema conceptual não paradoxal.
Comparando a abordagem Ricoeuriana com a de Tillich, percebemos, em
princípio, diversos pontos de contato: o mesmo insight na natureza simbólica do dogma
do pecado original, o reconhecimento da importância do símbolo conceptual
agostiniano para a teologia e a filosofia, a clarificação do papel construtivo da
280
explicação ética e da explicação trágica na constituição do símbolo conceptual, o papel
central dado à liberdade finita na originação do mal, a aplicação de um procedimento
hermenêutico, etc.
100
Há, também, importantes diferenças: (1) a teoria do símbolo de Tillich não
estabelece conexão necessária entre o sentido simbólico e o conteúdo positivo do
símbolo, ao contrário de Ricoeur, que constrói essa ligação em sua teoria. Tillich supõe
que a função primária do símbolo é representacional, sendo que seu conteúdo concreto,
em princípio, não é essencial. Já Ricoeur procura o sentido religioso do símbolo em sua
construção histórica e analógica positiva, considerando apenas isso como verdadeira
interpretação (2) Tillich parte da ontologia para interpretar o símbolo, enquanto que
Ricoeur parte do próprio conflito das interpretações do símbolo, que revelaria as suas
camadas de sentido; o procedimento de Tillich é, assim, menos indutivo e, o de Ricoeur,
mais indutivo.
Tillich apresenta (3) uma tendência a explicar o pecado em termos do sistema,
de modo que a razão do mal é dada desde a explicação ontológica; Ricoeur, por seu
lado, a partir da lógica paradoxal e escatológica, localiza a totalidade que incluirá o mal
apenas no futuro, como objeto de esperança, sem explicação racional presente.
101
Um
dos indícios disso é o fato de Ricoeur afirmar explicitamente que a interpretação
religiosa dos mitos deve ser dada querigmaticamente, isto é, pensar a partir da esperança
retroativamente; os signos do mal sendo pensados “por último”; enquanto isso, Tillich
nos diz que o entendimento deve começar com o entendimento dos símbolos da
100
Vale destacar a observação de Vanhoozer de que, em Ricoeur, há uma distinção entre as “estruturas
fundamentais da vontade” e a sua “condição atual”, “uma distinção que sem dúvida lembrará os teólogos
da distinção entre a criação e a queda” (Vanhoozer, 1990:23).
101
Fazendo-nos lembrar das preocupações de Niebuhr, quanto a tornar uma tragédia inexplicável em um
processo ontológico.
281
alienação existencial, que contém a pergunta, para só então seguir para os símbolos da
resposta.
102
Vamos discutir, mais à frente, possíveis contribuições da interpretação
Ricoeuriana para Tillich. Antes disso, no entanto, colocaremos uma discrepância que a
nossa investigação metodológica parece apontar. Ricoeur usa um método indutivo e
indireto de compreensão da existência, pela via de uma atenção maior à estrutura dos
símbolos, e critica a abordagem direta da analítica existencial. Tillich usa uma
abordagem “de cima para baixo”, procedendo de uma analítica existencial para os
símbolos. Curiosamente, no entanto, eles obtém muitos resultados semelhantes,
especialmente na interpretação do pecado original mas, também, na explicação da
natureza da culpa, da origem divina do mal e, quero destacar, do significado dos
símbolos de julgamento.
A aporia se encontra aqui, na certeza de Ricoeur de que uma filosofia da
consciência humana construída diretamente, por meio da análise ontológica, não é um
caminho adequado para a reflexão, e que esta deve ser uma hermenêutica, procurando
pensar a consciência indiretamente, pela intepretação de suas objetivações. Mas, se é
assim, porque Tillich, usando uma abordagem ontológica, obteve tais sucessos na
explicação do mal e na compreensão da existência?
102
“Nós devemos começar de baixo e não de cima. Nós devemos começar com a experiência humana de
crise e as questões implicadas nela, e então proceder aos símbolos que reinvindicam conter a resposta”
(MW6[EARS]:396.
282
3.4. Teoria Simbólica e Teologia em Paul Tillich: Reflexões Construtivas
Em sua interpretação da Queda, Tillich estabelece uma conexão sofisticada entre a
tradição hamartiológica cristã antignóstica-agostiniana-protestante e o pensamento
existencialista, uma compreensão filosófica moderna do ser humano que redescobriu, a partir
da metade do século XIX a situação humana como alienada e irreconciliada.
Para estabelecer esta conexão, Tillich empreendeu uma profunda investigação do
progresso da simbólica da Queda, por um lado, e desenvolveu uma analítica da existência, por
outro. Com essa analítica ele se voltou para a tradição hamartiológica cristã, a fim de
interpretá-la em seus termos. Na articulação de dogma tradicional e filosofia, como aspecto
central de seu método de correlação, encontrava-se a teoria do símbolo religioso de Tillich.
Nosso estudo objetivou compreender a aplicação dessa teoria simbólica ao símbolo da Queda,
ou à simbólica conceptual da Queda, para ganhar uma melhor aproximação do trabalho
hermenêutico de Tillich. É claro que haveria muito mais a dizer quanto ao problema do
método em Tillich, mas isto estaria fora de nossos objetivos. Nosso problema é a teoria do
símbolo de Tillich, e sua aplicação específica ao símbolo da Queda.
Na quarta e última subseção do capítulo 3, procuraremos apresentar uma síntese final
dos resultados de nossas investações, relacionando o que descobrimos examinando
diretamente como a teoria do símbolo foi aplicada ao símbolo agostiniano da Queda,
considerando as reações críticas a Tillich, e comparando seu método com a abordagem de
Paul Ricoeur.
283
3.4.1. O que Tillich alcança com sua interpretação?
Positivamente falando, deve-se reconhecer que a interpretação de Tillich representa
uma grande conquista. Considerando, em primeiro lugar, a sua interpretação da tradição
hamartiológica cristã, é notável a penetração que Tillich apresenta nos problemas centrais da
teologia do pecado, e o estabelecimento claro de uma conexão interna entre as idéias luterana,
agostiniana e antignóstica de pecado. Ao estudar a sua própria interpretação da tradição, no
capítulo 2 deste trabalho, verificamos que a adesão de Tillich a esta tradição não é feita sem
uma compreensão consciente e detalhada de sua unidade interna e de seu progresso histórico.
Tendo se proposto a interpretar o símbolo, ou o complexo simbólico da Queda,
percebemos ainda que a interpretação existencial empreendida por Tillich segue sua estrutura
própria e divisão sistemática particular mas, nem por isso, ignora as características definidoras
do dogma tradicional. Como observamos, ainda no capítulo 2, Tillich dá respostas a cada
problema teológico que a tradição enfrentou, explicando seu significado simbólico. Assim, ele
(1) toma em consideração a diferenciação entre criação e Queda, como diferença essência-
existência, (2) dá conta da universalidade do pecado explicando-a como universalidade
trágica, (3) expressa o “pessimismo” protestante-agostiniano e a necessidade da graça, (4)
descreve a essência do pecado em termos relacionais, a partir da noção de auto-alienação
existencial, e (5) leva a sério em sua interpretação a crítica moderna do símbolo racional da
Queda.
Tillich não trabalha, portanto, no vazio; sua percepção do símbolo, que ele interpreta
na Sistemática, é uma compreensão atenta à sua estrutura e sua evolução histórica, e ele lança
mão dessa percepção historicamente e sistematicamente articulada em seu trabalho
intelectual.
3.4.2. Uma Dificuldade Importante
284
Apesar disso, a interação crítica com o pensamento de Tillich em torno da Queda
identificou uma dificuldade importante, no tocante à primeira diferenciação estabelecida pela
tradição hamartiológica: a separação entre Criação e Queda. Como pudemos observar, esta
separação se projeta em toda a tradição e tem a sua contrapartida na ontologia do próprio
Tillich, por meio do conceito de transição essência-existência, que ele descreve como “a
espinha dorsal” de seu sistema. Este conceito é central no sistema porque ele, exatamente,
funda todo o discurso filosófico sobre as condições de alienação existencial. Sem este
conceito não haveria como construir os existentialia e uma analítica da existência.
Em termos simples, a dificuldade se localiza em uma ambigüidade na explicação do
vir-a-ser do pecado. Apesar de afirmar com toda a clareza que a finitude é essencialmente
boa, e que é a liberdade humana que realiza o pecado, mas dentro de uma universalidade
trágica que o torna também seu destino, Tillich parece às vezes relacionar a “pecaminosidade”
do pecado com a própria auto-afirmação do ser finito, e não apenas com uma forma possível
dessa afirmação. E Tillich expressa nitidamente essa tendência em sua explicação do mito
Adâmico. O fato de sua interpretação não responder suficientemente às intuições religiosas
envolvidas nessa distinção não pode ser ignorado, se o que estamos discutindo é a adequação
de sua interpretação simbólica. Teria essa dificuldade alguma relação com a sua teoria
simbólica?
3.4.3. Limitações Hermenêuticas?
Vamos colocar o problema nos termos mais negativos, inicialmente. Vimos que, sob o
impacto da ontologia, a teoria Tillichiana da linguagem religiosa se converte em teoria
puramente representacional dos símbolos religiosos, cujo sentido seria, então,
lingüisticamente incomunicável. Sua função seria a de apresentar à consciência a realidade
285
última, sendo que a descrição literal da experiência humana dessa realidade seria dada pela
ontologia.
William Alston apontou aqui uma aparente inconsistência: a objeção apresentada, por
Tillich, contra o valor cognitivo ou teológico da carga semântica literalmente traduzível dos
símbolos, é a de que a realidade que eles manifestam é inefável. Entretanto, uma descrição
literal é apresentada em termos ontológicos. A teoria relativiza a importância da carga
semântica dos símbolos, mas é ignorada na aplicação das categorias ontológicas aos símbolos.
Uma aplicação totalmente consistente da abordagem representacional tornaria a
consideração pela forma concreta dos símbolos algo finalmente supérfulo, mas também
inviabilizaria a própria descrição ontológica da nossa experiência da realidade última, algo
que Tillich não poderia admitir. Isso seria muito problemático, de todo modo, pois os
símbolos conceituais, como o da Queda, são o resultado de um trabalho teológico cristalizado,
que põe, a nós, um sentido. Eles não são imagens mudas, mas textos. Eles dizem alguma
coisa, não apenas representam; são palavras do ser. Sentindo a inviabilidade de uma
interpretação puramente representacional do símbolo, Tillich, aparentemente, contradiz a sua
teoria formal, retornando a uma abordagem figurativa dos símbolos, até certo ponto, e
extraindo sentidos da forma concreta do símbolo.
Esta ambigüidade permite a ele re-significar os conteúdos figurativos dos símbolos
religiosos, a partir dos conceitos literais de sua ontologia, descartando aqueles aspectos do
símbolo que não podem ser harmonizados com a ontologia. Desse modo, Tillich aproveita a
maior parte da formulação clássica do dogma, elucidando-o parcialmente. Entretanto, a
diferenciação bíblica e antignóstica entre Criação e Queda, a despeito de sua importância, é
suavizada por não se ajustar à ontologia. O símbolo da Queda deixa, nesse ponto, de pôr o
sentido, tornando-se antes uma ilustração ou alegoria de uma realidade humana que encontra
expressão literal na descrição ontológica. Não será que Tillich, aqui, se coloca sob o juízo de
286
Ricoeur contra alegoria? Percebe-se uma forte tendência a usar o símbolo como ilustração da
verdade ontológica, como vestimenta que se torna finalmente desnecessária, ao menos para o
ontologista.
Mas não podemos exagerar essa dificuldade a ponto de fazer injustiça a Tillich. Como
nosso estudo mostrou, é evidente que ele não impôs, pura e simplesmente, o sentido
ontológico à simbólica da Queda. Apenas a ignorância do profundo contato de Tillich com a
história da evolução do símbolo racional do pecado poderia levar a tal conclusão. Se Tillich
tivesse usado um procedimento totalmente centrado na ontologia, dificilmente teria produzido
uma interpretação do símbolo da Queda tão coerente com uma tradição específica,
respondendo a cada um de seus temas centrais. Parece-nos, além disso, que a prática de
interpretação simbólica de Tillich não é totalmente coerente com a sua teoria simbólica, mas
isso conta a favor de sua interpretação, e não contra, mesmo com a dificuldade mencionada
quanto à diferença Criação/Queda. Assim, precisamos de uma hermenêutica dos símbolos que
dê conta dos sucessos hermenêuticos de Tillich e, ao mesmo tempo, nos ajude a entender as
limitações que a sua teoria pode ter posto a seu trabalho.
3.4.4. Uma Crítica e uma Contribuição Ricoeuriana a Tillich
Em nossa perspectiva, a abordagem Ricoeuriana dos símbolos seria mais adequada
como método de abordagem mais sensível à sua estrutura, por um lado, e em termos
específicos, para explicar o próprio procedimento de Tillich. A abordagem Ricoeuriana evita
consistentemente a dissolução da carga semântica dos símbolos em uma ontologia pré-
estabelecida, e trata os símbolos religiosos de forma indutiva, captando e descrevendo as
camadas de sentido com atenção constante a seu processo histórico de constituição. Nela
permite-se, pois, que o símbolo diga alguma coisa, através e a despeito de sua forma plástica.
287
O símbolo não é meramente uma alegoria a serviço da ontologia, mas uma fonte de idéias
positivas sobre a realidade. É uma palavra dirigida a nós, não uma imagem sobre a qual
falamos. Essa abordagem o aproxima bastante de Reinhold Niebuhr, no que tange à
reverência pela forma concreta do símbolo, a despeito de sua paradoxalidade. A este respeito,
citamos Ricoeur:
‘O símbolo dá a pensar’: essa sentença que me encanta diz duas coisas. O
símbolo dá. Não ponho o sentido, é ele que dá o sentido. Mas o que ele dá é
‘a pensar’, do que pensar. A partir da doação, a posição. A sentença sugere,
pois, ao mesmo tempo, que tudo já está dito em enigma e que, contudo, é
preciso sempre tudo começar e recomeçar na dimensão do pensar (Ricoeur,
1978:243).
Mas um contraponto Ricoeuriano à hermenêutica de Tillich descerá mais
profundamente, ultrapassando o conceito de símbolo e atingindo o próprio uso da ontologia.
Em sua crítica à fenomenologia de Heidegger, Ricoeur observa que este escolhe uma via
curta para solucionar o problema hermenêutico. Essa via curta consiste na ruptura com o
debate em torno da metodologia hermenêutica, seguido de um salto direto para uma ontologia
do ser como compreendente. Ricoeur objeta que uma ontologia do ser como compreensão não
pode ser feita subtraindo-se ao círculo hermenêutico, e às exigências metodológicas da
interpretação. O resultado de uma fenomenologia fundamental, direta, é que perdemos a
possibilidade de construir critérios positivos para a interpretação e para o julgamento do
conflito das interpretações (Ricoeur, 1978:12,13).
Esta é a razão, possivelmente, porque, como observamos no capítulo 1, Tillich não
promoveu mudanças significativas em sua teoria do símbolo, no contexto dos debates com
filósofos norte-americanos. Em nossa perspectiva, a teoria do símbolo de Ricoeur descreve
com maior cuidado a relação entre o sentido literal e o sentido propriamente simbólico, de um
modo que justificaria melhor a própria atividade interpretativa de Tillich, de efetivamente
explicar a carga positiva dos símbolos em termos ontológicos.
288
Como alternativa a uma via curta de compreensão existencial, Ricoeur sugere que
tomemos, como ponto de partida, as formas derivadas da compreensão, para chegar, a partir
delas, ao ser interpretante. Essa via longa se daria pela por meio da linguagem, num enfoque
semântico, que se torna o lugar concreto para a auto-reflexão (Ricoeur, 1978:13). No
movimento de interpretação dos símbolos, em especial, é que o ser interpretado é dado a nós.
Portanto o filósofo deverá praticar uma “ascese da subjetividade”, desapropriando-se da
origem do sentido e abrindo para receber o sentido por meio de uma abertura para os símbolos
(Ricoeur, 1978:20,21):
A tarefa dessa hermenêutica é a de mostrar que a existência só vem à palavra,
ao sentido e à reflexão, procedendo a uma contínua exegese de todas as
significações que se manifestam no mundo da cultura. A existência não se
torna um “si” – humano e adulto – senão apropriando-se desse sentido que
reside inicialmente “fora”, em obras, instituições, monumentos de cultura,
onde a vida do espírito é objetivada [...] ao se compreender a si mesmo nos e
pelos signos do sagrado, o homem opera a mais radical despossessão de si
mesmo que é possível concebermos (Ricoeur, 1969/78:23).
O resultado disso será, sim, uma ontologia; mas uma ontologia quebrada, não
triunfante. Não será uma ciência, e será provisória. Será precária, “militante e quebrada”. Será
“[...] a terra prometida para uma filosofia que começa pela linguagem e pela reflexão”
(Ricoeur, 1978:24).
Queremos tomar essa reflexão de Ricoeur, aqui, como ponto de partida para a crítica a
Tillich. Ricoeur torna explícitas as suas razões para preferir uma abordagem indutiva dos
símbolos, por meio do desdobramento de sua arquitetura multívoca, para captar sua riqueza
semântica. Sem perder as preocupações existenciais e ontológicas, ele está certo de que o
melhor caminho para a auto-compreensão é uma leitura das objetivações do espírito humano,
mas uma leitura auto-reflexivamente atenta, e justa na consideração do conflito das
interpretações, que se torna manifestação privilegiada da profundidade existencial do ser
humano. Por isso uma ontologia, para Ricoeur, só pode ser militante e quebrada;
289
desapossada, assim como homem que ouve e se compreende a partir dos símbolos, que lhe
põe, a partir de fora, o seu significado.
Aqui, exatamente, se encontrariam as limitações da hermenêutica teológica de Tillich;
é que ela parece ser triunfante, no sentido Ricoeuriano. É triunfante porque não é
desapossada; de certo modo, já sabe a resposta que o símbolo religioso lhe dará, e este
funciona principalmente como ilustração de uma realidade que já está descrita pela ontologia.
É um procedimento ex-cátedra, “de cima para baixo”. Não é que os símbolos religiosos não
tenham importância; eles, ainda assim, são fundamentais, para Tillich, pois trazem à
consciência do crente a realidade última. Entretanto, eles são mudos, ou quase, em teoria; e se
não o são, é porque Tillich não pode ser totalmente consistente com a sua teoria. Pode-se
dizer que eles falam algo, talvez, mas apenas se usarmos uma analogia visual para a
experiência lingüística. Eles seriam muito mais janelas para captar o incondicionado – janelas
servem para vermos algo, mas não são vistas, e nada significam em si mesmas. Falando
Ricoeurianamente, poderíamos dizer que, em Tillich, não é o símbolo que dá a pensar, sobre
nós mesmos, ontologicamente, mas a ontologia, de nós mesmos, é que nos dá a pensar, sobre
o símbolo.
Mas isto não é injusto com o que sabemos, no tocante à interpretação da Queda
desenvolvida por Tillich? Sim, a ontologia de Tillich parece ser triunfante, no sentido
negativo. Mas, como observamos no item 3.3.3, não é verdade que a ontologia de Tillich é de
fato, triunfante, em muitos aspectos? Tillich não obtém uma interpretação absolutamente
consistente, mas quem poderia fazê-lo? O que cumpre destacar, aqui, é que Tillich, por meio
de um procedimento, senão dedutivo, sem dúvida bastante centrado na ontologia, consegue
também aproximar-se de seu objeto, e explicar o símbolo religioso existencialmente. E a
evidência da viabilidade de seu método, em resposta a Ricoeur, é a ampla coerência obtida
com ele, a partir de uma aproximação metodologicamente diversa ou, até mesmo, inversa.
290
Isto nos leva a pensar que a filosofia da consciência de Ricoeur, talvez, não seja
totalmente apropriada para explicar a experiência de autoconhecimento. É claro que não
haveria como manipular um problema filosófico de tal amplitude no espaço que temos aqui,
mas sugerimos a possibilidade de uma filosofia da consciência que explique o
autoconhecimento como resultado de uma relação dialética entre a interpretação das
objetivações do espírito em sua atividade criativa, e a intuição interna do eu; que reconheça
um elemento de imediaticidade a ser correlacionado com o que é dado mediatamente pelos
símbolos. Que reconheça o poder da consciência de saber de si, mesmo sem negar que não se
pode saber tudo de si, sem considerar as criações do si.
Podemos pensar, então, em uma abordagem dialética, de forma a enriquecer a
abordagem Tillichiana, introduzindo um elemento indutivo, como o encontramos em Ricoeur.
A finalidade desse elemento seria prover uma referência objetiva para a auto-reflexão, e
manter a consciência “humilhada”, por assim dizer, aberta à possível contradição entre o que
o símbolo religioso diz e uma ontologia direta gostaria de dizer. Uma metodologia que
proceda do símbolo à autocompreensão, indutivamente, ao lado da analítica existencial, de
modo a manter o pensamento ontológico que interpreta o símbolo uma expressão plenamente
consciente de si, que una o que se pode saber imediatamente com o que não se sabe senão
mediatamente. De modo a quebrar a ontologia, mas não a ponto de impossibilitar sua
permanente reconstrução a partir da religião bíblica. Para brincar um pouco com as imagens
Ricoeurianas, poderíamos dizer: a ontologia seria a terra prometida, para o hermeneuta, mas
também o êxodo. Uma ontologia quebrada não precisaria ser totalmente ausente; precisaria
ser dada, mas ainda não...
Uma hermenêutica do Símbolo da Queda, e de outros símbolos tradicionais, no
contexto de uma ontologia quebrada, mas não destruída, deverá, pois, ouvir o que os símbolos
dizem, através de sua forma plástica. E suas camadas de sentido, postas, à luz, no conflito
291
hermenêutico, e literalmente expressas como discurso teológico, mesmo que em formas
paradoxais, tornar-se-ão o ponto de partida para intérpretes desapossados refazerem as suas
ontologias, infinitamente, afinal de contas, como nos ensinou o próprio Tillich, “A correlação
de ontologia e religião bíblica é uma tarefa infinita” (MW4[BRSUR]:388).
292
CONCLUSÃO
O problema que orientou a elaboração deste trabalho foi, em termos bem gerais, o da
relação entre a religiãoblica e a análise ontológica da existência e, em termos menos gerais,
o problema da interpretação da linguagem religiosa e sua conexão com o pensamento
reflexivo, que procura a auto-compreensão por meio da ontologia. Em termos bem
específicos, escolhemos discutir a questão da hermenêutica da religião a partir do eixo da
interpretação da Queda em Paul Tillich. Tendo em vista a centralidade da teoria do símbolo
religioso em sua hermenêutica teológica, nosso estudo tornou-se uma investigação sobre a
aplicação que Paul Tillich desenvolve de sua teoria sobre a simbólica cristã da Queda, a fim
de compreender a relação entre o conteúdo simbólico do discurso religioso e o ponto de
partida ontológico na construção de seu pensamento.
A reflexão precisaria então, por necessidade, considerar primeiramente a própria
teoria do símbolo de Paul Tillich, e em seguida a sua interpretação da simbólica da Queda.
No primeiro capítulo do trabalho contemplamos em detalhe a teoria do símbolo de Tillich e
tivemos a oportunidade de considerar suas características principais: sua estrutura dupla de
sentido, a diferença entre a carga semântica e o referente incondicionado e não-objetificável, a
estruturação mítico-simbólica da linguagem religiosa, a superação criativa da via eminentiae e
da via negationis. Destacamos ali os problemas ligados à questão do conhecimento religioso
no debate americano, e a necessidade sentida de um critério que contemplasse melhor o
conteúdo positivo dos símbolos.
No segundo capítulo, após uma breve introdução à tradição hamartiológica cristã até o
século XX, examinamos a fundo as idéias de Tillich sobre o mal e o pecado, em duas etapas:
uma histórica, e a outra sistemática. Primeiramente, colocamos toda a atenção em sua
293
recepção da história da teologia cristã do pecado, e obtivemos um importante resultado:
apesar de toda a sua engenhosidade hermenêutica, Tillich é um teólogo bastante conservador,
no que tange à aderência à sua tradição teológica. Ele mantém-se na tradição antignóstica,
procurando manter a bondade da criação e a sua diferença em relação à Queda; afirma, com
Agostinho, a universalidade trágica do pecado, bem como a sua origem temporal ética,
através da liberdade humana; mantém a noção Luterana de depravação total e rejeita o
conceito católico-escolástico de donum superadditum; descreve a essência do pecado em
termos relacionais, como separação, aversio a Deo, expressa em incredulidade, hybris, e
concupiscência.
Mas Tillich não fica só na recepção; ele cruza a riqueza da tradição com uma profunda
penetração no pensamento moderno e, em especial, no existencialismo, tendo F. Schelling
como mestre principal. Assim, na sua Teologia Sistemática, ele empreende uma interpretação
ontológico-existencial da condição humana de alienação, que apresentamos no final do
capítulo dois de nosso trabalho. Aqui pudemos constatar a centralidade da noção de transição
essência-existência, como conceito estruturante da Sistemática e de toda a visão de Tillich
sobre negatividade da existência.
No terceiro capítulo da dissertação principiamos o engajamento crítico com as idéias
de Tillich, examinando com mais detalhe a coerência entre teoria simbólica e resultado
hermenêutico, considerando as aproximações feitas por Tillich entre os símbolos e a analítica
existencial. Observamos, aqui, que Tillich usa uma aproximação primariamente (embora não
exclusivamente) dedutiva, partindo da análise da existência para os símbolos, e que ele dá
muito mais importância, na prática, à carga positiva dos símbolos, do que a sua teoria prevê.
No caso da simbólica da Queda, esta importância é tal, devido à sua referência antropológica
e “introspectiva”, que concluímos ser preciso reconsiderar a classificação e o próprio critério
para avaliação simbólica.
294
Ainda no terceiro capítulo, apresentamos algumas interações críticas de Tillich com
outros filósofos e teólogos, em torno dos problemas do símbolo e da Queda. Ouvindo o
debate com estes pensadores, foi possível constatar, por um lado, que a teoria do símbolo de
Tillich atribui papel limitado à estrutura e conteúdo dos símbolos, não descrevendo com
clareza suficiente o seu significado teológico; e, por outro, que a sua interpretação da Queda
não tem sucesso completo em um ponto central: a bifurcação simbólica entre criação e queda,
que corresponde, em seu sistema, à transição essência-existência.
Para pensar o significado desses fenômenos, introduzimos, na terceira seção do
capítulo três, o pensamento de Paul Ricoeur, em sua própria interpretação da simbólica do
pecado e do mal, considerando com atenção os detalhes de sua teoria simbólica e de seus
pressupostos hermenêuticos. Vimos que Ricoeur utiliza uma teoria simbólica mais refinada
que a de Tillich, no tocante ao mecanismo de geração semântica, e ao papel que a carga
positiva dos símbolos reliosos têm para a compreensão da existência. Além disso, verificamos
que o método de Ricoeur é rigorosamente indutivo, a partir de uma filosofia da consciência
“humilhada”, que renuncia à imediaticidade da auto-reflexão em favor de um pensamento
indireto, pela “via longa” do estudo das objetivações do espírito humano.
Comparando a proposta de Ricoeur com a de Tillich no final do capítulo três
constatamos, em primeiro lugar, que a teoria simbólica de Ricoeur atribuir um papel mais
explícito ao conteúdo positivo dos símbolos, como o locus da interpretação, e que ela
explicaria melhor, tanto a prática efetiva de Tillich, em sua interpretação da simbólica da
Queda, como o seu lapso na diferenciação entre criação e queda. Avançando mais
profundamente na reflexão, no entanto, detectamos a presença de uma questão hermenêutica
subjacente, que mostrava, ao mesmo tempo, as semelhanças e diferenças entre os dois
pensadores: o problema da filosofia da consciência e da metodologia da reflexão. A diferença
de abordagem entre Tillich, que prioriza a ontologia, e a de Ricoeur, que é indutiva, remonta a
295
uma compreensão sobre o acesso do Si a si mesmo que, em Ricoeur, é indireto, mediado pelo
símbolo e, em Tillich, tende a ser direto, ao menos, em sua interpretação dos símbolos
religiosos. Ou, alternativamente, que o sentido é revelado no símbolo, para Ricoeur, enquanto
que, para Tillich, o sentido está oculto no símbolo, sendo revelado pela analítica existencial.
Mas isso não é tudo. A despeito da falha que apontamos na interpretação da Queda, a
nossa conclusão foi de que, na maior parte, Tillich tem sucesso em estabelecer conexões
significativas entre a simbólica da Queda e a sua analítica existencial, e grande parte dos
resultados que ele obteve pela via curta, ou direta, são semelhantes aos obtidos por Ricoeur,
que usou a via longa da audição dos símbolos. Isto se deve, em parte, ao fato de Tillich ter
efetivamente dado grande consideração à estrutura e à evolução da simbólica da Queda.
Afinal, como observamos antes, a abordagem de Tillich não é exatamente dedutiva. Mesmo
assim, pensamos que isso relativiza defesa, empreendida por Ricoeur, da superioridade da via
longa, e dá razão a Tillich, no uso de uma via curta. A conclusão, portanto, é a de que o
projeto de correlacionar religião bíblica e ontologia continua válido, se mantivermos uma
hermenêutica “de mão dupla”, ouvindo aos símbolos para entender o Si, e ouvindo o Si para
entender os símbolos; se buscarmos uma ontologia construtiva, “empiricamente” aberta, e
sujeita à correção que a audição dos símbolos pode proporcionar.
Qual a relevância de tal discussão? Em primeiro lugar, discutir um problema que
aflige a tradição Tillichiana, que é o da relação entre filosofia e religião, no contexto da
linguagem, e manter a busca Tillichiana pelo “ponto de fusão”, como a descreveu Etienne
Higuet. Mas, além disso, colocar uma questão para pensar, tendo em vista a importância
contemporânea do enfoque hermenêutico à teologia. Não é suficiente procurar o valor da
expressão religiosa em seus significados; é necessário considerar como receber tais
significados. E o desenvolvimento de uma abordagem que mantém os símbolos religiosos
296
audíveis faz toda a diferença, não apenas em termos de pensamento, mas também de vivência
religiosa.
Pensamos que tal discussão tem relevância, também, para a discussão sobre as
relações entre a fé e os diversos campos do conhecimento e para a ciência em especial. A
despeito da popularidade das interpretações instrumentalistas da ciência moderna, segundo as
quais os elementos não-empíricos das teorias são simplesmente “ficções úteis” para a
manipulação e criação técnica, muitos cientistas, filósofos e teólogos engajados no diálogo
contemporâneo entre a religião e as ciências acreditam ser indispensável à ciência o uso de
categorias metafísicas. Mais do que isso, muitos pensam que é possível construir ontologias
com valor regulatório, mesmo que essas ontologias sejam abertas à correção permantente.
Neste contexto, o pensamento de Tillich ainda é válido, por seu interesse em pensar as
coisas sistematicamente e ontologicamente. Parece claro, no entanto, que já não é mais
possível um pensamento ontológico que não seja ferido, humilhado e aberto à experiência
objetiva. A partir do estudo-teste da interpretação da simbólica da Queda, pensamos que a
proposta de Tillich precisa ser ajustada para expressar melhor a necessidade manter-se aberta
à possível tensão entre a ontologia e o conteúdo simbólico.
Isto exigiria, para o futuro, um engajamento aprofundado na questão da viabilidade de
modificações na teoria do símbolo de Tillich, e em sua interpretação da natureza da transição
essência-existência; acima de tudo, no entanto, exigiria o engajamento com o problema
apontado por Ricoeur, da relação entre o pólo imediato e o pólo mediato da consciência, e seu
significado em termos de metodologia hermenêutica da religião.
297
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FICHA CATALOGRÁFICA
Carvalho, Guilherme Vilela Ribeiro de
A interpretação da Simbólica da Queda em Paul Tillich : um estudo em
hermenêutica teológica / Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho. São Bernardo
do Campo, 2007.
302p.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Metodista de São Paulo, Faculdade
de Filosofia e Ciências da Religião, curso de Pós-Graduação em Ciências da
Religião.
Orientação de: Etienne Alfred Higuet
1. Símbolo religioso 2. Ontologia 3. Teologia dogmática 4. Tillich, Paul,
1886-1965 – Crítica e interpretação 5. Pecado 6. Hermenêutica teológica
I. Título.
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