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Universidade
Estadual de
Londrina
PAULA GEREZ ROBLES CAMPOS VAZ
CONFIGURAÇÕES DO AMAR:
A
S
A
FETIVIDADES EM
L
UIZ
V
ILELA
LONDRINA
2008
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PAULA GEREZ ROBLES CAMPOS VAZ
CONFIGURAÇÕES DO AMAR:
A
S
A
FETIVIDADES EM
L
UIZ
V
ILELA
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Curso de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Estadual de Londrina, como
requisito parcial à obtenção do título de
Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos Santos
Simon
LONDRINA
2008
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PAULA GEREZ ROBLES CAMPOS VAZ
CONFIGURAÇÕES DO AMAR:
A
S
A
FETIVIDADES EM
L
UIZ
V
ILELA
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Curso de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Estadual de Londrina, como
requisito parcial à obtenção do título de
Mestre.
COMISSÃO EXAMINADORA
____________________________________
Prof. Dr. Luiz Carlos Santos Simon
Universidade Estadual de Londrina
____________________________________
Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul
____________________________________
Prof. Dra. Regina Célia dos Santos Alves
Universidade Estadual de Londrina
Os braços longos do pai eclipsavam a distância
entre as mãos da menina e a estante de livros.
O pai antecipava-me, silenciosamente, a vida –
luminosidades e dores. Sua maneira de
preparar para. Ainda hoje os livros – texturas e
cheiros – são nosso código secreto. Matéria
sob a qual o amor se construiu.
Dedico este trabalho a meu pai, Paulo Campos.
AGRADECIMENTOS
Prof. Dr. Volnei Edson dos Santos e Profa. Dra. Regina lia dos Santos
Alves pelas importantes contribuições no exame de qualificação.
Prof. Rauer Ribeiro Rodrigues que generosamente enviou-me sua tese de
doutorado e o livro de Wania de Sousa Majadas ambos fundamentais para o
desenvolvimento das análises.
Nanci Gerez Robles Campos Vaz, minha mãe, por transformar amor e
compaixão pelos seres vivos em maneira de estar no mundo. Por ser amiga e
confidente. Pelo apoio incondicional a qualquer projeto no qual me envolvo.
Luiz Carlos Santos Simon, por me ensinar sempre, e antes de tudo, a ser
solar.
Eduardo Oliveira Leite que me protegeu, sistematicamente, do peso dos dias
durante a maior parte desse tempo ainda sinto o aroma de alecrim das nossas
manhãs (o amor e suas inusitadas faces).
Adriano Moraes e Marcelo Silva que me receberam por quarenta dias, em um
momento delicadíssimo, fornecendo-me tranqüilidade e apoio. A eles devo a parte
gaúcha da dissertação.
Francis de Lima Aguiar, Paulo Salvetti Jr., Caroline Minorelli Torres e Talita
Robles Esquivel por dividirem comigo a paixão pelo tema, em longas horas de
conversas sempre enriquecedoras, sempre fundamentais para meus processos
internos.
Andrêya Garcia da Paixão Morgado e Adriana Giarola que souberam ser
solidárias e presentes.
CAPES por ter possibilitado dedicação exclusiva, por meio da Bolsa de
Mestrado, durante doze meses.
Se insisto, em amor, no cadinho de
contradições e de equívocos que ele é – a um
só tempo infinito e eclipse do sentido –, é
porque assim ele me permite não sufocar sob o
amontoado de falsas aparências e de
comprometimentos com que nos brinda a
neurose [...]. Amor choque, amor loucura, amor
incomensurável, amor ardência... Tentar falar
dele parece-me diversamente mas não menos
terrivelmente embriagador que vivê-lo.
(Julia Kristeva)
VAZ, Paula Gerez Robles Campos. Configurações do Amar: as afetividades em
Luiz Vilela. 2008. Dissertação (Mestrado em Letras) Universidade Estadual de
Londrina, Londrina.
RESUMO
Este trabalho propõe a reflexão a respeito do tratamento dado pela literatura
brasileira contemporânea à temática amorosa. Parte-se do princípio de que
aconteceram mudanças substanciais nos modelos de estabelecimentos de vínculos
afetivo-sexuais desde a instauração da modernidade até meados do século XX.
Acredita-se ainda na relevância de se considerar a ligação visceral existente entre
prática social e manifestação artística. O corpus central da pesquisa são os contos
de Luiz Vilela. Por se considerar que a produção literária de determinado período
constitui um universo discursivo, julgou-se necessário acrescentar ao corpus contos
de mais quatro autores para a composição de um limitado panorama. Esses autores
são Wander Piroli, Lygia Fagundes Telles, Márcia Denser e Sérgio Sant’Anna.
Palavras-chave: Luiz Vilela. Conto. Amor. Literatura Brasileira Contemporânea.
VAZ, Paula Gerez Robles Campos. Configurations of Loving: the affectivities in
Luiz Vilela. 2008. Dissertação (Mestrado em Letras) Universidade Estadual de
Londrina, Londrina.
ABSTRACT
This work proposes the reflection about the way given by the contemporary Brazilian
literature to the loving argument. It starts by the principle that substancial changes
ocurred in the models to establish affective-sexual entails since the beginning of
modernity until the middle of 20
th
century. The proposal also takes as relevant
considering the existence of a deep connection between social practice and artistic
manifestation. The central corpus that composes the research are Luiz Vilela's tales.
However, considering that the literary production of a certain period constitutes a
discursive universe, it was took as necessary to increase tales by four more authors
to the corpus in order to compose a limited panorama. Such authors are Wander
Piroli, Lygia Fagundes Telles, Márcia Denser and Sérgio Sant'Anna.
Key-words: Luiz Vilela. Tale. Love. Contemporary Brazilian Literature.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................8
2 SOBRE O AMAR: PRÁTICAS SOCIAIS.........................................................13
3 O AMAR E A LITERATURA............................................................................44
3.1 W
ANDER
P
IROLI
:
A QUÍMICA DOS CORPOS ENQUANTO TRANSCENDÊNCIA
............55
3.2
L
YGIA
F
AGUNDES
T
ELLES
:
O CORPO INAPTO PARA O AMOR
................................62
3.3
M
ÁRCIA
D
ENSER
:
LIBERDADE SEXUAL E SOLIDÃO
..............................................71
3.4
S
ÉRGIO
S
ANT
’A
NNA
:
IDENTIDADES TRANSGRESSORAS
......................................79
4 O UNIVERSO FICCIONAL DE VILELA E O AMAR.......................................89
4.1 L
UIZ
V
ILELA
C
ONTISTA
....................................................................................89
4.2
A
NÁLISES
.......................................................................................................98
4.2.1
O Amor
C
omo Vertigem: Redenção e Danação........................................99
4.2.2 A Clausura do Cotidiano Conjugal..........................................................115
4.2.3 A Transitoriedade dos Vínculos..............................................................124
4.2.4 Brechas para o Amor..............................................................................133
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................147
REFERÊNCIAS ..............................................................................................150
ANEXOS..........................................................................................................154
8
1INTRODUÇÃO
Antes de se iniciar a reflexão a respeito das práticas sociais que
constituem ou que são motivadas pelo sentimento que chamamos de amor, é
necessário estabelecer os recortes e evidenciar as perspectivas que norteiam
este trabalho.
O pesquisador pode ocupar variados lugares ao abordar a temática
amorosa. Ao marcar tal ocupação, delimitará o campo de alcance dos seus
olhos, as nuances possíveis na sua observação, a perspectiva, o foco, as
tonalidades emprestadas ao objeto analisado. Este texto se inicia com a
ocupação/construção desse lugar.
Partiu-se do princípio de que a fragmentação entre discurso e prática
social é uma postura teórica e não um dado da realidade. Os discursos – sejam
eles filosóficos, religiosos ou literários sempre estabeleceram relação
retroalimentativa com a realidade, independente do quão idealizantes fossem.
Luhmann afirma que
[...] as representações literárias, idealizantes e mitificantes do amor não
escolhem ao acaso seus temas e pensamentos directores, reagindo
antes deste modo à sociedade e respectivas tendências de mudança;
reflectindo, não de forma absoluta, os quadros de circunstâncias reais
do amor, ainda que apresentados sob forma descritiva, resolvendo
contudo problemas a aparecer, apresentando precisamente
necessidades funcionais do sistema social sob uma forma utilizável pela
tradição (LUHMANN, 1982, p. 22).
Principalmente depois das formulações apresentadas por Foucault, a
partir da década de 1960, a materialidade do discurso tornou-se questão de
grande projeção, ainda que haja discordâncias quanto ao peso (no sentido de
relevância) desse discurso.
Anthony Giddens (1993), apesar de contradizer várias das teorizações
foucaultianas apresentadas na História da Sexualidade, publicada em 1976,
endossa aquelas relacionadas à materialidade discursiva:
Na análise do desenvolvimento sexual, Foucault está correto ao afirmar
que o discurso torna-se essencial à realidade que ele retrata. Desde
que uma nova terminologia para se compreender a sexualidade, as
idéias, os conceitos e as teorias expressos nestes termos penetram a
própria vida social e ajudam a reordená-la (GIDDENS, 1993, p. 39).
9
Buscando ainda respaldo para a afirmação sobre a profundidade dos
discursos na construção do simbólico e, conseqüentemente, na orientação das
práticas de socialização, recorre-se à fala do professor Sérgio Costa:
A excitação sentida ao se atrair por alguém é decodificada como amor a
partir de repertórios culturais disponíveis, que estão materializados em
valores e redes de significações mas também num acervo material de
imagens, produtos, livros, obras de arte etc. É esse conjunto de
referências que permite reconhecer, interpretar e avaliar a natureza e a
intensidade do estímulo sentido (2005, p. 05).
Não a pretensão de se fazer uma caminhada diacrônica pela
literatura. Dessa forma, não é objetivo deste trabalho refletir sobre as formas
como as várias escolas ou períodos literários trataram a temática amorosa.
Entretanto, no momento das análises textuais, muitas vezes, essas questões
aparecem, ou seja, os próprios contos acabam demandando um retorno
comparativo com outras estéticas, pois dialogam com discursos de outras
épocas.
É preciso salientar que a ênfase foi dada muito mais ao amar que ao
amor em si. Sendo assim, os conceitos acerca do amor, como amour-passion,
amor conjugal, amor romântico, amor confluente, constituem parte significativa
da discussão, mas sempre na medida que dizem respeito aos modelos de
conjugalidade, ou seja, que funcionam como legitimadores ou geradores de
práticas.
Necessária agora é a apresentação do recorte espacial e temporal. O
período histórico relevante é a contemporaneidade, especificamente aquela
datada na segunda metade do século XX, a qual podemos chamar de pós-
modernidade
1
. Dessa forma, pode-se dizer que importam as reorganizações
sociais ocorridas a partir do século XVII, quando começa a se delinear o
período conhecido por modernidade.
O espaço é aquele ocupado pelos povos nomeados de ocidentais e,
evidentemente, de ocidentalizados, como é o caso da América Latina. Tal
ressalva é importante para resguardar o presente trabalho da postura
ideologicamente equivocada de avaliar como universais os valores e práticas
oriundos de herança marcadamente ocidental.
1
Não há pretensão de desenvolvimento do debate acerca do termo, embora o posicionamento não seja
neutro e se evidencie no decorrer do texto.
10
Acredita-se na possibilidade de se estabelecer uma cronologia de
alterações na experiência amorosa, em uma espécie de linhagem de rupturas
com os modelos de estabelecimento de vínculos. Da complexidade desses
ciclos, serão escolhidos alguns aspectos considerados de imprescindível
apresentação para a análise dos modelos de conjugalidade e de
relacionamento surgidos contemporaneamente. Importa dizer que não aqui
ligação com teorias que defendam a idéia de evolução ou mesmo de
transformações lineares e homogêneas.
A partir do referido posicionamento, optou-se por construir esta
dissertação da seguinte forma. O capítulo intitulado SOBRE O AMAR:
PRÁTICAS SOCIAIS
buscou organizar uma fundamentação teórica que
recobrisse as transformações nas práticas sociais, relativas à organização dos
vínculos afetivo-sexuais, a partir da instauração da modernidade.
Os modelos de relacionamento surgidos na pós-modernidade são
múltiplos. De acordo com Matos (2000), não é possível negar que esteja em
curso um processo de “destradicionalização” na sociedade brasileira, ou seja,
existem movimentos de ruptura e superação de valores que guiavam o
comportamento tanto pessoal, quanto social:
Um dos focos onde podemos claramente identificar transformações
neste sentido refere-se à dinâmica familiar, naquilo que gosto de
chamar por ´alternativas de conjugalidade` e transformações nas
´identidades e culturas de gênero`: parcerias homo (gays e lésbicas) e
heteroeróticas, acrescidas de novos desafios tais como pactos de
´abertura` nos relacionamentos, casamentos não formais ou com algum
ritual de passagem particular e idiossincrático, moradias separadas etc.;
também modelos de famílias ´descasadas`, na ausência do ´pai
provedor`, a mulher sendo ´cabeça da família` (se casando ou não
novamente) ou na situação em que o pai assume o cuidado integral dos
filhos; e ainda em muitas outras alternativas em gestação (p. 19).
É necessário salientar que as mutações na ordem sociossexual não
apontam para uma escala evolutiva, na qual os modelos antigos seriam
substituídos por novos. A convivência, muitas vezes tensa, entre as várias
possibilidades de arranjos familiares, incluindo os convencionais, é uma
constante na atualidade. Faz parte da natureza mesma do que se chama de
pós-moderno o coexistir da tradição e da inovação.
11
Sendo assim, não seria viável anunciar o fim da família nuclear
burguesa, organizada em torno do pai provedor e da mãe gerenciadora do
ambiente doméstico e da intimidade. A alteração é a contemplação de modos
alternativos de vida, sem que estes sejam condenados aos nichos de baixo
status social ou à completa marginalidade.
O capítulo O AMAR E A LITERATURA é composto por algumas
considerações acerca do gênero conto e das implicações das especificidades
deste no tratamento estético da temática amorosa. Nesse momento é iniciado
uma segunda etapa da pesquisa, ou seja, a análise das citadas práticas
sociais no interior das narrativas curtas.
Foram selecionados quatro contos, de quatro autores diferentes que
compõem, entre outros, a cena literária na qual Luiz Vilela está inserido. Os
contos selecionados são os seguintes: “Amanhã é sempre o mesmo dia”, de
Wander Piroli; “Você não acha que esfriou?”, de Lygia Fagundes Telles; “O
animal dos motéis”, de Márcia Denser e “Estranhos”, de Sérgio Sant´Anna. A
proposta é a construção de um limitado panorama que recubra, dentro do
contexto de produção artística de Luiz Vilela, possibilidades outras de se
configurar o amor.
No capítulo O UNIVERSO FICCIONAL DE VILELA E O AMAR a
centralização do olhar para a produção de Luiz Vilela. A eleição da obra de Luiz
Vilela como foco principal da dissertação teve vários motivos. O universo
ficcional do autor oferece algo bastante interessante: em geral, ele utiliza como
matéria-prima o homem comum. Dessa forma, não estão ali apenas
configurações transgressoras, no sentido de excepcionais, de pouco
abrangentes, de necessariamente extraordinárias.
Além disso, o amor não é um tema de pouca relevância em sua obra. De
acordo com Rauer Ribeiro Rodrigues, “Tema sempre retomado por Luiz Vilela
é o dos laços amorosos e a complexidade das relações de casal” (2006, p.
126). O pesquisador ainda acrescenta:
A complexidade dos relacionamentos de casal é temática
importante em quase todos os escritores, e também o é em Luiz
Vilela. Perto de vinte por cento de seus contos tem por mote
questões oriundas do conflito homem-mulher, e em diversos
contos cujo eixo central é outro, a questão dos relacionamentos
de casal também aparece (RODRIGUES, 2006, p. 138).
12
O tratamento da temática amorosa, ainda assim, não constitui uma
massa homogênea no universo ficcional do autor. vasta variedade de
abordagens, de conceitos, de efeitos de sentidos, de modelos de
conjugalidade. Por essa razão, a análise dos contos foi organizada em blocos,
com dois contos cada um, que trazem alguma similaridade na problematização
do amar.
A primeira seção do último capítulo intitula-se L
UIZ
V
ILELA
C
ONTISTA
e
trata das especificidades da escritura do autor. Dentre tais especificidades, é
possível apontar a valorização do diálogo; o caráter pouco interventivo do
narrador; a valorização do tom coloquial; o gosto pela simplicidade e pela
concisão, entre outras.
A segunda seção compreende as análises textuais. Os contos
selecionados, como foi dito, foram agrupados de acordo com certa
similaridade temática, ou seja, tratam de aspectos singulares do amar. A
seqüência de subtemas favoreceu a constituição de um panorama da temática
amorosa no universo ficcional de Vilela.
13
2 SOBRE O AMAR: PRÁTICAS SOCIAIS
O caminho seguido para a constituição deste capítulo sea análise da
instituição familiar, do casamento e da sexualidade em tempos modernos.
Resgata-se, antes disso, a conceituação de patriarcado. Este é um sistema de
hierarquização que delineou as relações entre homens e mulheres desde
tempos imemoriais, apresentando-se das mais variadas maneiras, nos mais
variados tempos históricos e culturas.
O termo patriarcado nomeia sistemas sociais pautados no poder do pai
sobre os filhos e também no poder do marido sobre a esposa ainda que se
possa considerar a existência de relações patriarcais de produção, de trabalho
e de organização estatal. Esse poder significa forte influência dos pais sobre o
casamento dos filhos; hierarquia do marido sobre a mulher; desvantagem
institucionalizada das filhas com relação à herança.
A civilização começa, partindo do ponto de vista dos sistemas de
produção, quando a caça e a coleta deixam de ser o núcleo organizativo das
sociedades humanas. É com o surgimento da agricultura que se desenvolve a
produção excedente, o acúmulo. A conseqüência é a possibilidade de grupos
de humanos não se dedicarem exclusivamente ao saneamento das
necessidades imediatas: daí o desenvolvimento do artesanato, das religiões e
dos Estados. De acordo com Stearns (2007), a fase de organização conhecida
por civilização se inicia, em quase todas as sociedades, com o patriarcado:
Por volta do quarto milênio a.e.c., também, a maior parte das
sociedades agrícolas tinha desenvolvido novas formas de
desigualdades entre homens e mulheres, num sistema geralmente
chamado de patriarcal com o domínio dos maridos e pais. As
civilizações, de uma forma geral, aprofundaram o patriarcado e, ao
mesmo tempo, definiram seus detalhes de formas distintas que
combinavam com crenças e instituições de forma particular. Nesse
sentido, pondo um selo no próprio patriarcado, cada civilização uniu as
questões de gênero com aspectos de sua estrutura cultural e
institucional (p. 27).
Entretanto, o fato de o patriarcado estar na gênese da quase totalidade
das organizações sociais conhecidas não impediu que a contemporaneidade
assistisse ao seu desmantelamento, pelo menos em grande parte do mundo
ocidental/ocidentalizado (não descartando fenômenos similares entre outros
14
povos). Esse desmantelamento trouxe, como será explicitado adiante,
conseqüências substanciais para a reorganização da vivência afetiva.
Partindo do princípio de que o patriarcado é o ‘pano de fundo’ da criação
de normas e padrões que ordenam o amar, constata-se que ele apenas se
adapta às transformações da modernidade, ou melhor, serve-lhe de
instrumento regulador e mantenedor da ordem.
O século XVII é considerado um marco importante, como foi dito, para
a reorganização da intimidade. uma alteração por conta do recém-surgido
poder do Estado-nação, poder este endossado pela ação da Igreja. De acordo
com Priore:
Ao chegar a Idade Moderna, três mudanças fundamentais têm lugar na
sociedade ocidental: o Estado centraliza-se e seus tentáculos começam
a invadir áreas em que ele nunca, antes, penetrara. Até mesmo a vida
privada. Entre alguns exemplos dessa interferência poderíamos
destacar o estímulo à oficialização dos casamentos e a perseguição aos
celibatários; o reforço à autoridade dos maridos, que passam a exercer
uma espécie de monarquia doméstica; a incapacidade jurídica das
esposas, a quem não era consentido realizar nenhum ato sem
autorização de seus maridos; e quanto aos filhos, estes não podiam
casar sem autorização dos pais (2005, p. 77).
Considera-se esse o século da repressão e da forte intervenção clerical
no gerenciamento da sexualidade e do cotidiano. Gerenciar, normatizar,
domesticar os desejos e as relações amorosas passam a ser questões
necessárias para manter a ordem desse ocidente industrial.
Segundo Foucault (1998), vários estudiosos consideram que o
desenvolvimento do capitalismo e o estabelecimento da ordem burguesa
necessitam da criação daquilo que se chamou Era da Repressão. As
sociedades burguesas inaugurariam o puritanismo moderno. Dessa forma, a
sexualidade, para ser legitimada, deve estar restrita ao espaço doméstico;
sendo dominada pela família conjugal e coberta de seriedade e funções
reprodutivas. O modelo surgido é o do casal legítimo. Há a imposição do
decreto de “interdição, inexistência e mutismo” (p. 11), ou seja, embora se
saiba que outros tipos de prática continuaram existindo, estas não usufruíam
de respaldo oficial.
É possível, ainda segundo Foucault, dizer que a primeira ruptura na
História da Sexualidade seria no decorrer do culo XVII com “[...] o
15
nascimento das grandes proibições, valorização exclusiva da sexualidade
adulta e matrimonial, imperativos de decência, esquiva obrigatória do corpo,
contenção e pudores imperativos da linguagem [...]” (1998, p.126).
2
Essas proibições podem ser avaliadas como uma verdadeira frente de
batalha – tanto do Estado burguês, quanto da Igreja – contra o chamado
amour-passion.
3
Apresentava-se, assim, como alternativa institucionalizada, o
amor conjugal, o amor domesticado pelo matrimônio.
O amour-passion constitui-se da estreita conexão entre o sentimento
amoroso e atração sexual, é uma espécie de amor necessariamente
fisicalizado. Caracteriza-se sempre sob a forma de encantamento devastador,
ligação abrasadora que desvia os indivíduos das atividades rotineiras. O amor
apaixonado aproxima-se da loucura e da doença tal o grau de submersão que
obtém dos envolvidos.
Por isso, tal espécie de relação é tida como uma ameaça à ordem, como
uma espécie de subversão. De acordo com Giddens (1993), a maioria das
civilizações construiu mitos que expunham à condenação, casais formados
com base em tal sentimento. O amor apaixonado é tormenta, danação, desvio.
Convém lembrar que várias tragédias gregas desenvolvem suas tramas tendo
2
Foucault, ao fazer tais afirmações, está reproduzindo o que chama de discurso sobre o século XVII. O
autor, entretanto, aponta uma contradição nisso que nomeou de ‘hipótese repressiva’, pois a partir do
século XVIII há uma profusão vertiginosa de estudos sobre a sexualidade.
3
O termo é utilizado aqui conforme sentido atribuído por Giddens (1993). Entretanto, segundo Ribeiro
(1987), a expressão foi cunhada por Stendhal, em sua obra Do Amor, escrita em 1820. Stendhal
estabeleceu uma tipologia do amor, na qual consta, entre outros, o amor-gosto e o amor-paixão. O amor-
gosto teria prevalecido no início do século XVIII, antes da Revolução Francesa, época conhecida por
douceur de vivre. Tal sentimento acrescenta prazer à vida, mas não coloca em xeque valores e posições
sociais, pois se pauta pelo código do gosto, primando sempre pelo comedimento. A Revolução Francesa
teria libertado a glória do código do gosto soldados descalços, sem uniformes, nem formação regular.
Na esteira da glória, também o amor teria se libertado de tal código. O amor liberto é o amor-paixão.
Agora desconectado de toda a gama de interesses, da razão, do cálculo. Esse sentimento é desmedido, é
aquele que prejudica o amador ou, pelo menos, sua posição na sociedade. Ribeiro (1987, p. 420) define
assim a concepção de Stendhal: “[...] paixão não será mais o que de fora nos ocorre, mas sim o que dentro
de nós revela dimensão secreta e rica. Essa paixão é uma vitória da intimidade o espaço que, a partir do
final do século XVIII, se vai revelando como o da verdade expressa nos sentimentos, contraposto à
falsidade resultante das racionalizações e dominações”. No entanto, o próprio Ribeiro aponta para uma
espécie de natural contradição, típica da geração de Stendhal, presente nessa obra. Esta é um tratado a
respeito do amor forjado em moldes iluministas, seguindo os rigores do método, esmiuçando gêneses e
operações. A valorização do amor-paixão entraria em choque com o combate às superstições, às mentiras,
às ilusões; combate esse que norteava toda a produção daquele tempo. Talvez seja possível afirmar que a
definição adotada por Giddens (1993), conserve, em essência, princípios análogos ao do termo original.
Porém, ele está localizado em outra perspectiva teórica e não adota os marcos temporais, nem as
justificativas históricas utilizadas por Stendhal. O próprio Giddens (1993, p. 48) salienta que
desconsidera, também, o restante da nomenclatura e respectivas conceituações elaboradas pelo citado
autor em sua tipologia amorosa.
16
como núcleo tais mitos. É o caso das creditadas a Eurípedes (IV a.C), como
Medéia, As Troianas e Alceste.
Diante disso, não é difícil supor que a intolerância da modernidade,
ainda em seus princípios, fosse violenta com relação a essa forma de amar.
Ela ameaçava a ordem. Desestabilizava o controle dos corpos. Enaltecia a
sexualidade pagã, sem fins procriativos. Desafiava os tentáculos do Estado.
Zombava das ameaças eclesiásticas.
Havia, ainda, outra incompatibilidade. O amor-paixão nunca teve laços
com a racionalidade, sempre se manteve mais afeito aos filtros, às poções, aos
banhos encantatórios, aos óleos mágicos. Desde a ancestralidade de Tristão e
Isolda, que às amarras da razão, o amour-passion oferece o riso solto dos
transgressores.
Evidente que a Era da Repressão necessitava combater ainda mais
intensamente esse tipo de relação ameaçadora. O principal problema era
manter a distância entre amor e casamento, ou entre o amor exagerado e o
casamento.
A preocupação moderna com o controle dos sentimentos encontra
justificativa em uma série de transformações sociais que trouxeram questões
anteriormente inexistentes. Não havia motivo para policiar as relações dos
casais formais. Na era medieval, amor e casamento nunca estiveram
associados. Tal associação surgiu após o sucesso das idéias renascentistas e
a necessidade de normatizá-la também.
Segundo André Lázaro (1996), o poder religioso e o poder profano
disputam o enquadramento do casamento no final da Idade Média. A
preocupação do modelo leigo é a manutenção do patrimônio. Evidentemente
patriarcal, nesse modelo o que determina o casamento dos filhos é a garantia
da preservação da posição social conquistada pelos ancestrais. Sendo assim,
o casamento laico serve-se de estratégias como a endogamia casamento
entre parentes para evitar a dispersão do patrimônio e o controle da prole
proles numerosas podem atomizar a riqueza. Como se vê, não nenhuma
relação entre esses princípios e questões como o amor, a vontade do
indivíduo, a realização pessoal. Como diz Priore (2005), o casamento era muito
mais uma aliança entre ascendências que um laço afetivo.
17
Curiosamente, vários setores da Igreja eram contra o casamento,
encarado ainda como um mal. O que nos faz supor que o modelo laico gozava
de tranqüilidade para predominar. Posteriormente, a partir do tema da
indissolubilidade, a Igreja passa a lutar pela idéia de que o casamento seria um
compromisso espiritual. Talvez esteja aí o embrião do que mais tarde seria
nomeado como amor conjugal. É preciso acrescentar que o decorrer do século
XII assistia a um avanço dos rituais religiosos sobre as tradições laicas.
Entender o casamento como compromisso espiritual favorece, de acordo com
Lázaro,
[...] a compreensão do casamento como escolha individual, legitimando
matrimônios que escapavam ao controle dos senhores e conferindo à
união conjugal traços de uma forte espiritualização. A forma conjugal do
amor, no entanto, encontrará em seus próprios termos a expressão do
mundo que suporta: o amor do marido por sua mulher chama-se
‘estima’, o da mulher por seu marido ‘reverência’ (1996, p. 84).
Se o casamento passa a, de alguma forma, contemplar sentimentos, a
tensão construída pelo imaginário amoroso dos trovadores, entre amor e
casamento, estava ameaçada. Seria preciso a criação de outras dicotomias
que mantivessem a sociedade organizada, distante dos riscos apresentados
pelo amor apaixonado, ou seja, passando a haver uma forma conjugal de
amor, é preciso garantir que essa forma não se assemelhe à desmedida da
paixão.
É sabido, também, que somente após o Renascimento surgiu uma
ordem social na qual se desenvolveram as noções de intimidade, de
interioridade e de vida privada. Para Lázaro (1996), o conjunto de idéias que
embasaram essas noções tem débito com a ética do amor cortês. É a mítica da
cortesia que reserva ao amor um espaço diverso daquele da ordem social. O
amor faz parte de outra esfera, diversa do cotidiano, do casamento, por
exemplo. Desenham-se, assim, os contornos da intimidade, daquilo que se
contrapunha à “confusão comunitária do mundo medieval” (p. 105).
A intimidade é reforçada pelo neoplatonismo renascentista, por meio da
valorização da interioridade, da vida espiritual, dos hábitos privados. O
neoplatonismo retomou a antiga dicotomia entre corpo e espírito. A alma foi
valorizada em detrimento dos sentidos. Dessa forma, a polaridade
18
trovadoresca entre amor e casamento é substituída pela polaridade entre corpo
e alma.
A partir daí, não ficaria difícil compreender como se forjou a dualidade
entre o amor sacramentado pelas normas do casamento e o amor sexual,
devastador, vil das paixões.
Pode-se concluir, portanto, que a mesma matéria, da qual se formaram
os tecidos sociais da modernidade, alimentou a construção tanto da intimidade,
da interioridade, da vida privada, do amor conjugal quanto o desenvolvimento
dos mecanismos de controle para aquilo que construía.
O amor matrimonial configura-se, portanto, a partir da associação dos
ideais de amor com os valores morais da cristandade (GIDDENS, 1993). Tais
valores plasmados ao neoplatonismo resultaram na “sexualidade casta do
casamento” (p. 50) ainda que aos homens fosse reservada uma maneira de
experienciar uma vida sexual mais liberta, por meio da conivência social com o
padrão duplo. Esclarecendo, aos indivíduos do gênero masculino era permitida
a experiência extraconjugal, ou seja, o ardor do amor apaixonado ficava
reservado às amantes que, prostitutas ou não, estavam excluídas dos setores
privilegiados pelo status da respeitabilidade e da legitimidade. O patriarcado
ajustava-se perfeitamente tanto à dicotomia entre amour-passion e casamento,
quanto à referente ao corpo e à alma. O gênero feminino estava fadado ao
confinamento morno da vida doméstica ou à marginalidade da prostituição e do
concubinato.
O amor é atrelado ao casamento apenas depois de sua devida assepsia.
A ideologia do amor conjugal presta-se ao controle do desejo, à extinção do
amor apaixonado, à clausura da sexualidade transgressora.
Tanto os discursos da Igreja, quanto os manuais de comportamento
disseminavam a noção de casamento atrelada ao controle, ao dever e à
disciplina. A vida conjugal legítima seria análoga ao ato de trilhar o caminho da
educação dos sentidos. O amor conjugal é o amor sublime, pautado pela
contenção e pelo respeito, objetivando enobrecimento espiritual:
Os casamentos iam lentamente esvaziando-se de apetites se eles
tivessem algum dia existido para consolidar-se em uma nebulosa de
sensações domésticas: o bem-querer misturando-se à elevação do
espírito, à devoção e à piedade (PRIORE, 2005, p. 30).
19
Como já foi dito anteriormente, o patriarcado ainda era o ‘pano-de-fundo’
das relações íntimas. Dessa forma, a mulher, além de ter a possibilidade da
vida dupla vetada, ainda era a responsável por receber e prover esse amor
consumido pela ordem familiar. Se, do homem, o amor exigia que sustentasse
financeiramente e protegesse esposa e prole, da mulher exigia submissão e
eficiência na administração da vida doméstica. As qualidades femininas
enaltecidas o a obediência, o recato, a devoção e a abdicação do trânsito
público. Ainda que a contenção fosse, em tese, exigida de homens e mulheres,
a prática era outra e os discursos muito mais veementes com relação aos
impulsos femininos. Sendo assim, é possível afirmar que a ética do amor
conjugal norteia-se pela domesticação dos afetos e pela perpetuação dos
valores e da ordem patriarcal.
A Igreja, finalmente, encontrava saída para o pecado mortal do sexo.
Criava a sexualidade lícita, útil, voltada para a reprodução e limitada a ela. No
entanto, não se pode concluir que a difusão desses conceitos fosse de total
responsabilidade da instituição religiosa. Antes disso, estes são discursos que
configuram uma época, ou seja, partem de diversas ordens institucionais para
delinear certo ethos da modernidade no período antecedente ao século XVIII.
Novamente citando Priore:
O esforço de adestramento dos afetos, dos amores e da sexualidade,
sobretudo a feminina, afinava-se com os objetivos do Estado Moderno e
da Igreja, em tornar a relação entre os sexos mais próxima do ideal da
sociedade católica, evitando as infrações que o pudessem perturbar. A
domesticação do amor conjugal espelhava, assim, a nova ideologia dos
tempos modernos (2005, p. 31).
Objetivando ampliar a discussão acerca do casamento, recorrer-se-á,
agora mais detidamente, ao estudo realizado pelo antropólogo sueco Göran
Therbon, publicado no Brasil em 2006. Therbon filia-se à metodologia da
antropologia global, e a amplitude de seu trabalho recobre os modelos de
arranjos familiares de todo o globo.
É preciso salientar que Therbon preocupa-se especialmente com as
práticas sociais mais freqüentes, e não com aquelas de maior status. Dessa
forma, sua análise fundamenta-se em dados quantitativos e qualitativos,
recolhidos dos mais diversos estudos desenvolvidos a respeito dos sistemas
20
familiares. a ênfase nas práticas usuais e abrangentes em detrimento das
ditadas ou valorizadas pelas instituições.
foram apresentados, neste trabalho, os valores referentes ao
casamento, disseminados pela Igreja e pelo Estado, ou seja, pelos discursos
dominantes. Pode-se concluir que o casamento formal, entre iguais (indivíduos
da mesma classe social e da mesma linhagem étnica), pautado na ética do
amor conjugal, fosse o modelo proposto, legitimado e de maior status social.
No entanto, variadas intercorrências determinam o surgimento de modelos
outros, periféricos limitando o modelo oficial, em grande parte, às classes
sociais mais favorecidas.
Antes de apresentar os dados analisados pelo antropólogo sueco, é
necessário salientar que sua reflexão parte de um viés específico. Therbon
encara o casamento como “uma instituição sociossexual, parte do complexo
institucional mais amplo da família. Como tal, diz respeito a uma ordem sexual
específica, bem como a uma ordem social mais geral” (THERBON, 2006, p.
198).
Nesse sentido, a perspectiva adotada é a de que o casamento não pode
ser
pensado fora da ordem da sexualidade. Ele seria, antes, uma maneira de
ordenar os encontros entre seres sexuados. A função primeira do casamento é
a regulamentação da sexualidade e, posteriormente, do amor e dos afetos.
Quando se fala, neste momento, em regulamentação, não se está retomando a
especificidade do controle da vida íntima surgida com a modernidade. Fala-se
de algo mais geral e mais universal. Algo que organizou os contatos sexuais,
tendo em vista o surgimento dos sistemas sociais humanos. Importa dizer
ainda que, além desse sistema normativo, o casamento, em geral, sempre
afetou aspectos da sociedade como o status e a formação domiciliar.
O que foi dito anteriormente a respeito da ética do amor conjugal e dos
modelos de união sexual difundidos pelo Estado e pelo clero modernos, limita-
se ao que se pregava como norma, ao desejável, ao legitimado.
No entanto, a Europa Ocidental apresentava, nos séculos XVII e XVIII,
um índice considerável de uniões informais, uma alta taxa de natalidade fora do
matrimônio e um grande número de praticantes (normalmente homens) do
sexo extramarital.
21
Segundo Therbon (2006), a América Latina possui especificidades nada
desprezíveis. Para o autor, “a América colonial Ibérica e as Índias Ocidentais
foram palco da maior investida contra o casamento em toda a história” (p. 233).
Priore (2005) aponta que enquanto a Europa construía uma
requintada vida privada, a colônia via-se limitada a um cotidiano precário. Por
aqui, nem mesmo a arquitetura favorecia a privacidade:
A vida rural da maior parte da população, as elites iletradas, a falta de
bibliotecas e escolas, o escravismo, a formação de famílias mestiças e
portadoras de hábitos e valores diversos, o hibridismo cultural tingirão
com cores específicas as representações sobre os afetos e os amores
(p. 22).
Therbon esmiúça a composição dessas ‘cores específicas’. Segundo
ele, não o Brasil, como toda a América colonial tiveram as relações entre os
sexos marcadas por grande incidência de informalidade. O próprio antropólogo
utiliza, entre outras fontes, o clássico trabalho de Gilberto Freyre, Casa-grande
& Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal,
publicado pela primeira vez em 1933, para fundamentar suas afirmativas.
O regime colonial e a escravidão no sistema de plantation foram
determinantes das diferenças na composição matrimonial das Américas. Os
colonizadores ibéricos entravam em contato tanto com as civilizações
indígenas quanto com as africanas. Muitos destes se casavam com mulheres
não européias. O fato de haver pressão ascendente da doutrina oficial para
extinguir uniões entre desiguais e valorizar a pureza racial gerou um grande
número de lares formados em regime de coabitação (THERBON, 2006).
Existem, porém, diferenças consideráveis entre a formação da
sociedade brasileira e a dos outros países da América Latina (que também não
formam um bloco homogêneo do qual o Brasil se diferencia). Apesar da
propensão à informalidade ser uma constante tanto quanto a violência e a
miscigenação – as peculiaridades são relevantes.
Segundo Gilberto Freyre (1998), as populações indígenas dos demais
países da América possuíam valores materiais e culturais acumulados,
configurando “semicivilizações”
4
como eram os Incas, os Maias e Astecas.
4
Grifo nosso.
22
Ressalva seja feita ao fato do termo civilização e dos paradigmas utilizados
para a referida classificação partir da ótica da cultura ocidental.
Tendo em vista que os colonizadores espanhóis encontraram um “povo
articulado em império ou em sistema vigoroso de cultura moral e material
com palácios, sacrifícios humanos aos deuses, monumentos, pontes, obras de
irrigação e de exploração de minas [...]” (FREYRE, 1998, p. 89); a resistência à
invasão, ao domínio e à exploração foi bastante dura. Para Gilberto Freyre
(1998), a tenacidade dessa resistência levou os espanhóis a “despedaçarem
esse bronze nativo que tão duramente lhes resistiu ao domínio para entre os
estilhaços estabelecerem mais a cômodo o seu sistema colonial de exploração
e cristianização” (p. 90).
Seguindo a argumentação do referido pesquisador, a miscigenação teria
ocorrido de maneira diferente no Brasil. Os indígenas aqui, grosso modo,
contavam com uma cultura ainda verde, incipiente novamente é necessário
fazer a ressalva de que tais adjetivações partem de parâmetros cunhados pela
tradição do colonizador. Isso impossibilitou uma resistência vigorosa ao
domínio português, favorecendo a miscigenação e o intercâmbio de valores
culturais:
Organizou-se uma sociedade cristã na superestrutura, com mulher
indígena recém-batizada, por esposa e mãe de família; e servindo-se
em sua economia e vida doméstica de muitas das tradições,
experiências e utensílios da gente autóctone (FREYRE, 1998, p. 91).
Havia, ainda, significativa escassez de mulheres brancas. O número de
indivíduos do sexo masculino, com origem européia, era bem maior em relação
aos do sexo feminino. Muitos pais patriarcais, além disso, relutavam em colocar
suas filhas no mercado de casamentos. Questões como o dote e a herança
tornavam os conventos opções mais atraentes para a preservação do
patrimônio (THERBON, 2006). Sendo assim, muitas das ligações entre
colonizador e colonizado se davam por necessidade e não por opção. Os
portugueses não tinham mulheres européias para estabelecer laços
matrimoniais. As indígenas, por sua vez, entregavam-se ao colonizador como
uma forma de ascensão social (FREYRE, 1998).
Não se considera, aqui, lícito pensar que o fato de os indígenas
brasileiros oferecerem resistência menos intensa evitou a violência do
23
colonizador europeu. Ainda que se levem em conta os vínculos estabelecidos
de maneira pacífica e o intercâmbio natural de valores culturais, não é possível
desprezar a dizimação desses povos e a prática indiscriminada da violência
sexual. Inúmeras mulheres indígenas foram violentadas e geraram filhos “que
os pais cristãos pouco se importavam de educar ou de criar à moda européia
ou à sombra da Igreja” (FREYRE, 1998, p. 93).
Conclui-se que a primeira geração de mamelucos, constituída a partir do
século XVI, inaugurava a família brasileira, criada sob a égide da violência e da
informalidade.
Outro fator que valorizou a informalidade foi a escravidão africana, como
foi dito, no sistema de plantation. Os escravos eram proibidos de casar, mas
encorajados a procriar. As meninas escravas eram “presas sexuais legítimas
para seus senhores, seus filhos e para os capatazes” (THERBON, 2006, p.
236). Surgia, então, uma nova fusão, originando os mulatos. Saliente-se o
caráter violento que a sexualidade assumiu nas colônias, misturando-se ao
castigo não só moral, mas físico, como as práticas de açoitamento.
Segundo Gilberto Freyre (1998), a gênese de muitas das ilustres famílias
brasileiras está na união entre brancos europeus e negras vindas da África
como escravas, muitas vezes, transformadas em donas de casa. No entanto,
nem sempre essas escravas tornavam-se esposas. Muitas delas eram
mantidas como escravas, acrescentando às funções de mucama ou cozinheira
à de prestadora de serviços sexuais.
De maneira semelhante ao ocorrido com as mulheres indígenas, as
uniões, entre europeus e africanas, davam-se, predominantemente, à parte do
casamento formal. Freyre (1998), analisando publicação deixada por Padre
Antunes Sequeira
5
, conclui:
Os homens não gostavam de casar para toda a vida, mas unir-se ou de
amasiar-se; as leis portuguesas e brasileiras, facilitando o perfilhamento
dos filhos ilegítimos, faziam favorecer essa tendência para o
concubinato e para as ligações efêmeras. É verdade que já os
moralistas brasileiros vinham dando combate a tamanha irregularidade,
alguns tendo mesmo lembrado que se não admitissem aos cargos
públicos indivíduos que vivessem em franco concubinato (p. 307).
5
A obra do referido Padre chama-se Esboço Histórico dos Costumes do Povo Espírito-santense desde os
Tempos Coloniais até Nossos Dias. Rio de Janeiro, 1893.
24
O ambiente da casa-grande, típico do sistema escravocrata de
plantation, era voluptuoso. Tanto que a sifilização do país, a partir do século
XVI, é atribuída à “prostituição doméstica sempre menos higiênica que a dos
bordéis” (FREYRE, 1998, p. 318). Entretanto, tal atmosfera licenciosa não
sugere liberdade e autonomia para homens e mulheres. A prática sexual
desvinculada da moralidade cristã fundamentava-se em abuso de poder,
crueldade e violência. O que se tinha eram
[...] condições econômicas e sociais favoráveis ao masoquismo e ao
sadismo criadas pela colonização portuguesa – colonização, a princípio,
de homens quase sem mulher e no sistema escravocrata de
organização agrária do Brasil; na divisão da sociedade em senhores
todo poderosos e em escravos passivos é que se devem procurar as
causas principais do abusos de negros por brancos, através de formas
sadistas de amor que tanto se acentuaram entre nós; e em geral
atribuídas à luxúria dos negros (FREYRE, 1998, p. 321).
O padrão sexual da América Crioula era dualista. Os brancos
aristocratas conservavam suas mulheres em severo regime de reclusão, mas
costumavam manter amantes mestiças. Como era de esperar, a atmosfera de
licenciosidade sexual não incluía as mulheres de origem européia:
À dormida das meninas e moças reservava-se, nas casas-grandes, a
alcova, ou camarinha, bem no centro da casa, rodeada de quartos de
pessoas mais velhas. Mais uma prisão que aposento de gente livre.
Espécie de quarto de doente grave que precisasse da vigília de todos
(FREYRE, 1998, p. 340).
Esse modelo praticamente esquizofrênico de organizar relações de
gênero teve também fundamental importância na atrofia da sexualidade de
determinada classe de mulheres ironicamente a única que desfrutava de
prestígio social. As meninas criadas reclusas eram entregues ainda muito
jovens a casamentos determinados pelo patriarca:
vinha colhê-las verdes o casamento: aos treze e aos quinze anos.
Não havia tempo para explodirem em tão franzinos corpos de menina
grandes paixões lúbricas, cedo saciadas ou simplesmente abafadas no
tálamo patriarcal. Abafadas sob as carícias de maridos dez, quinze,
vinte anos mais velhos; e muitas vezes inteiramente desconhecidos das
noivas. Bacharéis de bigodes lustrosos e brilhantina, rubi no dedo,
possibilidades políticas (FREYRE, 1998, p. 340).
Essa sociedade dual é explicada da seguinte forma por Therbon:
25
Um dos sistemas familiares era minoritário, exclusivo das elites brancas,
com as jovens virgens muito vigiadas por damas de companhia,
casamento cristão indissolúvel, discreta reclusão das mulheres
casadas, e forte pater potestas (poder paterno legal). Ele representou,
basicamente, a variante ibérica da família cristã da Europa ocidental. O
outro sistema, para as classes populares, foi etnicamente misturado,
informal, sem fronteiras claras, com considerável instabilidade, mais
falocrático
6
do que patriarcal, com significativa e, às vezes, forte
matrifocalidade, de proporção relativamente alta de famílias chefiadas
por mulheres (2006, p. 237).
A preocupação em refletir sobre as especificidades da América Latina
justifica-se pela busca de uma análise que não se paute por conceitos
genéricos e universalizantes, sem que sejam feitas as devidas considerações
acerca das práticas sociais espacial e temporalmente localizadas. A produção
literária objeto desta dissertação é produção da contemporaneidade brasileira,
não seria lícito desconsiderar as implicações do tipo de colonização
implementada aqui, especialmente no que diz respeito à organização da
intimidade.
Retomando a idéia de uma cronologia de rupturas acerca do amar,
inicia-se agora uma outra discussão conceitual. Dada a importância conferida
ao advento do amor romântico para o desenho de novas formas de
conjugalidade, é preciso compreender seus fundamentos e as abordagens que
alguns autores dele têm feito.
Acredita-se, aqui, que os séculos que compõem aquilo que chamamos
de época moderna não podem ser tratados ingenuamente como período único,
com concepções estanques acerca do amor. A modernidade inaugura um novo
lugar para o amor na vida social. Entretanto, não se podem aceitar
generalizações excessivas. Durante esse período, várias foram as nuances
fornecidas ao sentido desse amor. Neste trabalho, serão eleitas duas
manifestações ou conceituações específicas, baseadas na relação entre amor
e casamento.
O primeiro conceito foi apresentado. É aquele que inaugura a
vinculação entre amor e casamento, ou seja, o amor conjugal. O segundo
6
Therbon (2006) conceitua patriarcado e falocracia da seguinte forma: “[...] o poder e o controle parentais
serão considerados manifestações do patriarcado, sem deles excluir ou singularizar as mães casamenteiras
e as sogras controladoras, uma vez que são delegadas do poder paterno ou a ele estão vinculadas. O poder
sexual masculino sem significado parental será referido como falocracia, que pode ser considerada irmã
mais moça do patriarcado” (p. 22).
26
surgiu no século XVIII, sendo chamado de amor romântico e suas definições
serão apresentadas a seguir. Deve-se salientar que a nomenclatura adotada é
consoante com Giddens (1993), Lázaro (1996), Priore (2005), entre outros. No
entanto, o estabelecimento de termos é questão de conveniência
epistemológica e sempre contempla variações. Considera-se também que as
formas de amar e de se pensar o amor sofreram, na própria modernidade,
muito mais transformações no sentido de acréscimos e reestruturações que no
sentido de inversões bruscas.
Teríamos, considerando viável uma espécie de linhagem: amor cortês,
amor conjugal e amor romântico. O amor romântico seria definitivo na ligação
entre amor e casamento. O amor conjugal, pautado pela idéia de amizade,
ainda não era suficiente para ser ele mesmo razão do matrimônio. Para se
tornar a base do matrimônio, havia a necessidade de um amor capaz de
constituir um paradigma mais consistente. Isso se com a possibilidade de
assimilação dos elementos do amour-passion.
O consolidar da modernidade e o conseqüente processo de
aburguesamento da sociedade trouxeram transformações tais na ordem social,
que o amor conjugal adquiriu novos contornos, dando passagem para o
fenômeno, até hoje de grande relevância, do amor romântico.
O amor romântico, para Giddens (1993), é formado por uma fusão
bastante surpreendente. Anteriormente, para que o casamento pudesse
comportar tal sentimento, foram-lhe extirpados os elementos do amor-paixão
criando a dicotomia entre o amor legitimado e o marginal. Agora, seria possível
e talvez necessário retomar elementos do amor apaixonado para a
configuração de um comportamento que nem por isso estaria fora das
instituições.
Sendo assim, o amor romântico constitui-se da fusão de vários aspectos.
Permanece a idealização cortês do objeto amado; mantém-se a analogia
(estabelecida ainda no século XII) com a devoção religiosa
7
; reitera-se a
dicotomia neoplatônica entre corpo e alma; acrescenta-se a idéia de liberdade,
presente no amour-passion, tão cara aos iluministas, mas que sempre
7
“Deste modo, o amor está sempre sob o signo da intensificação através dos objectos supra-terrenos. Para
a grande semântica do amor medieval a distinção entre amor a Deus e amor à amada consiste na diferença
que surge quando em ambos os casos se anuncia a unidade mística. O amor elevado apresenta por isso o
seu objecto de um modo no qual estão incluídos conteúdos religiosos [...]” (LUHMANN, 1982, p. 56).
27
caracterizou tal sentimento como transgressor; acrescenta-se, também, o ardor
sexual – embora modalizado por laivos de amor sublime.
Giddens (1993) definiu da seguinte maneira as inovações conceituais
promovidas pelo advento do amor romântico:
O complexo de idéias associadas ao amor romântico pela primeira vez
vinculou o amor com a liberdade, ambos sendo considerados como
estados normativamente desejáveis. O amor apaixonado tem sido
sempre libertador, mas apenas no sentido de gerar uma quebra na
rotina do dever. Foi
precisamente esta qualidade do amour-passion que
o colocou à parte das instituições existentes. Os ideais do amor
romântico, ao contrário, inseriram-se diretamente nos laços emergentes
entre a liberdade e a auto-realização (p. 50).
O amor romântico consolida a posição de centralidade conferida, pela
modernidade, à realização pessoal. Anteriormente, a realização pessoal e,
conseqüentemente, o amor eram fatores marginais na biografia do indivíduo.
No final do século XVIII, com o consolidar dos modos de produção e da
mentalidade burguesa, o amor adquire relevância social, ou seja, a vivência
amorosa passa a dizer respeito também à prática social do sujeito, ou, nas
palavras de zaro (1996, p. 151), ocorre a “integração do desejo do indivíduo
na ordem social”.
Curiosa é a ligação visceral construída entre realização pessoal e vida
amorosa satisfatória. De alguma maneira, a busca pelo amor, por esse amor
nos moldes românticos, torna-se uma espécie de grande objetivo. Ainda que
isso o se de maneira homogênea, que não se possa dizer que a maioria
das pessoas direcione a vida para tal busca, na ordem do simbólico ela é um
fato. Sendo assim, a felicidade íntima transforma-se em valor e não
felicidade íntima sem realização amorosa evidentemente essas são diretrizes
da ordem do simbólico e não da prática social, ainda que uma e outra estejam
visceralmente relacionadas.
É preciso, ainda, acrescentar alguns outros aspectos importantes para a
compreensão do fenômeno (advertindo sempre que aqui foram estabelecidos
recortes, portanto, uma vasta gama de fatores não será abordada). O amor
romântico pauta-se, ainda, pela idealização do outro como complemento para
uma ausência natural do indivíduo, uma espécie de vazio preenchido pelo
encontro do par amoroso. o anseio pela complementaridade, nesse caso,
possível por meio do encontro com o ser amado (GIDDENS, 1993).
28
A noção do outro, como complemento para essa espécie de falta
ancestral, exige que outras categorias sejam a ela agregadas. É assim que o
outro, para ser objeto de amor, deve preencher as prerrogativas de pessoa
especial. A pessoa especial é única e tal encontro cerca-se de grandiosidades
existenciais, portanto, qualquer adversidade, interna ou externa à intimidade do
par, deve ser enfrentada a qualquer custo. Outra categoria importante é a
durabilidade. Uma vez encontrado o ser especial e único, capaz de tornar o
indivíduo completo, pleno, torna-se inevitável a idéia da indissolubilidade do
vínculo, ou aquilo que Giddens (1993) nomeia de “para sempre”.
Como é possível depreender das categorias apresentadas, o amor
romântico está diretamente relacionado ao casamento. Conforme foi dito, o
amor conjugal, pautado pela amizade, não seria suficiente para justificar o
casamento:
Ao buscar na amizade um ambiente para o casamento, é contra o amor-
excesso que se está procurando abrigo. Os atrativos do jogo amoroso e
a intensidade prometida pela sexualidade adiada impedem que a
delicadeza da relação doméstica, assentada sobre a amizade, formule
um paradigma sólido o bastante para tornar-se a base definitiva do
casamento. Foi o amor que impôs o código da intimidade e não a
amizade. Mas o casamento pode absorvê-lo quando o sentimento
torna-se uma referência suficiente para legitimar uma escolha e impor
um destino (LÁZARO, 1996, p. 157).
A necessidade de tornar o amor a base do matrimônio (ideal construído
pela sociedade burguesa do final do século XVIII) é mais uma evidência da
importância social adquirida por tal sentimento. Entre as inúmeras
transformações geradas pela alteração dos modos de produção modernos,
entre as várias formas de reorganização social, está o fortalecimento da família
– instituição diretamente atrelada ao sentimento em questão.
É possível afirmar que tornar o amor a base do casamento liga-se tanto
à causa quanto ao efeito do surgimento do modelo de família burguês. A
família configura-se como uma unidade de afeto. A relação com os filhos
admite maior vinculação sentimental. A maternidade torna-se um valor
diretamente ligado à feminilidade. A família, segundo Lázaro (1996, p. 159),
“[...] se torna o lugar obrigatório dos afetos, dos sentimentos e do amor”.
Isso evidencia a consolidação de processos iniciados no século XVII,
entre eles, a intervenção estatal na regulamentação da intimidade. A família
29
torna-se alvo de interesse do Estado e a manutenção da ordem se dá por meio,
além de outros, dos discursos da pedagogia, da medicina e da economia
(FOUCAULT, 1998).
Quanto à política das relações de gênero, se disse que o patriarcado
não apenas se adequa à modernidade como também lhe serve de base para o
estabelecimento e manutenção de princípios. Resta discorrer a respeito do
papel desempenhado pela ideologia do amor romântico nessa questão.
Como foi dito o ideário romântico tem débito com a cortesania,
especialmente quando recupera a necessidade de idealização do objeto
amado. O amor cortês, de acordo com Bolch (1995), ao idealizar a mulher, não
combatia a misoginia medieval.
Considerar a mulher um ser menor, vil e indigno apresenta o mesmo
princípio que movimenta a glorificação. A mulher sublime, superior, idealizada é
uma abstração, uma entidade etérea tão impedida de participar dos processos
históricos quanto a mulher relegada ao desprezo absoluto. Ambos os
movimentos resultam em clausura, exclusão, afastamento daquilo que é
mundano.
Desde o culo XIX, aceita-se a tese de que a cortesania valoriza a
mulher, sendo uma força contra a misoginia tanto medieval, quanto moderna
(por meio da recuperação do amor cortês efetuada pelos românticos). Nesse
sentido, a invenção do amor romântico ocidental é um processo de liberação
sexual.
Entretanto, Bloch apresenta a desconcertante afirmação de que a
idealização do feminino é apenas mais um estratagema ideológico que reforça
a misoginia. O período de surgimento da cortesania seria época de
ascendência do poder patrimonial feminino.
8
As mulheres estavam se
apropriando de formas masculinas de riqueza (fato que não ultrapassou o
século XVII). Idealizar a mulher foi uma forma de privá-la da participação social,
dos fenômenos históricos. Dessa forma, Bloch propõe uma leitura dialética do
amor cortês que
[...] suponha que a idealização é um espelho invertido e não
simplesmente o reflexo direto de uma base material é apenas isto:
Enquanto a mulher foi uma propriedade da qual se podia dispor, ela foi
8
Para maior aprofundamento, ver Bloch (1995).
30
depreciada de acordo com as noções misóginas aceitas do feminino
como a raiz de todo o mal; mas assim que a mulher tornou-se capaz de
dispor e, mais especificamente, de dispor de propriedades ela foi
idealizada nos termos do amor cortês.
Embora o discurso da cortesania, que coloca a mulher num pedestal e a
adora como a domna controladora, pareça dar às mulheres poder junto
com uma feminilidade apta, ele é contudo outro estratagema da
usurpação sexual, inteiramente análogo ao desenvolvido nos primeiros
séculos da nossa era pelos Padres da Igreja. Não menos que o discurso
da misoginia, o discurso do amor cortês reduz a mulher à condição de
uma categoria; e não menos que o discurso da virgindade salvadora,
ele coloca o fardo da redenção sobre a mulher, a qual, como no duplo
vínculo da articulação fundadora dos sexos no cristianismo, encontra a
si própria na posição polarizada de sedutora e redentora [...] (1995, p.
237).
Ao desvendar o perfil paradoxal da idealização, ao expor estratagemas
de controle e de manutenção da cultura sexista, antes camuflados sob a ética
da cortesania, Bloch nos lança a inquietante certeza de que as maneiras de se
conceituar, representar e codificar a intimidade evidenciam, muitas vezes,
dimensões tentaculares do poder, mantenedoras da ordem vigente, seja ela
qual for.
É preciso, porém, fazer importante ressalva. Apesar de se considerar de
suma relevância as afirmações de Bloch, de se concordar com elas e admitir,
na maioria das vezes, seu caráter pouco questionável; acredita-se ser de certo
radicalismo afirmar que o discurso depreciativo a respeito da mulher funcione
exatamente da mesma maneira que aquele que a enaltece. Justamente por
acreditar na força social das manifestações lingüísticas, defende-se que os dois
processos podem escamotear mecanismos virulentos de sujeição. Entretanto,
a diferença entre um discurso enaltecedor e um depreciador talvez não seja tão
pouco significativa. Ainda que sob jugo patriarcal, a respeitabilidade conferida à
mulher pela prosa trovadoresca é relevante e provavelmente contribuiu para
uma constituição contemporânea menos opressora.
O amor romântico reitera a hierarquização entre os gêneros. As funções
desempenhadas por homens e mulheres, dentro da célula doméstica, são
claramente delimitadas. A idealização feminina, herdada da cortesania, presta-
se a aliar respeitabilidade à boa administração doméstica e afetiva. O espaço
social conferido à mulher é aquele do gerenciamento da intimidade familiar.
Isso implica em reclusão, afastamento de qualquer atividade pública. O ideal
31
feminino é regido pela submissão aos interesses do marido, pelo recato, pela
competência para a criação dos filhos.
O culto à maternidade como destino natural das mulheres reforça seu
cerceamento das esferas públicas. Mulheres são educadas para o casamento
e para a maternidade. A realização pessoal de uma mulher não se vinculava a
aspectos profissionais ou financeiros. Importante era a preparação para o
casamento e para a administração do lar.
A idéia do outro como complemento, veiculada pelo amor romântico,
atinge de maneiras diferentes homens e mulheres. A figura feminina é vista
como complemento da masculina. A esposa é uma espécie de satélite em
torno de uma entidade mais forte. A mulher, despojada da vida pública, vive em
função do amor, em função complementar à existência social do marido. A
identidade feminina é, nesse período, diretamente dependente da existência
masculina. A mulher apartada do homem não “é” no sentido de ser social.
Aquelas que não se enquadraram em tal sistema ficaram relegadas à
marginalidade da prostituição ou ao desprestígio da solidão e do celibato.
Apesar disso, Giddens avalia que o amor romântico possibilitou às
mulheres alguns mecanismos de escape antes inexistentes:
As idéias sobre o amor romântico estavam claramente associadas à
subordinação da mulher ao lar e ao seu relativo isolamento do mundo
exterior. Mas o desenvolvimento de tais idéias foi também expressão do
poder das mulheres, uma asserção contraditória da autonomia diante da
privação (1993, p. 54).
Para o autor, se para a mulher estava vetada a possibilidade do padrão
duplo ou da existência social fora do matrimônio, houve, pelo menos, a
consolidação desta como a responsável pelos domínios da intimidade. A fusão
dos ideais do amor romântico com o culto à maternidade conferiu maior
importância à mulher nessa nova vida privada que havia surgido.
Os dados obtidos por Therbon (2006), analisados sob a perspectiva da
antropologia global, apontam para um século XIX ainda completamente
patriarcal. O desmantelamento do referido sistema estaria localizado no século
XX. Evidentemente, o culo XIX apresentava, em certos lugares, sintomas
do declínio patriarcal. No entanto, a sintomatologia se revelou enquanto
transformações e rupturas reais no decorrer do século XX.
32
No século XX houve, em todo o mundo, três processos importantes.
Entre eles estão a secularização (diminuição do poder religioso institucional) e
a redemocratização (substituição das monarquias constitucionais por governos
populares). No entanto, nenhum processo obteve avanços tão consideráveis
quanto o nomeado por Therbon de despatriarcalização. O segundo quartel do
século XX teria sido o período “da mudança global mais rápida e radical da
história do gênero humano e das relações geracionais” (2006, p. 114).
O processo de despatriarcalização
9
foi o principal possibilitador das
formas de conjugalidade contemporâneas. Compreender tal trajetória contribui
para o entendimento dos desenhos afetivos surgidos na pós-modernidade, seja
na vida prática, seja na literatura.
Os três marcos temporais relevantes para o declínio do poder patriarcal
foram: antes da Primeira Guerra Mundial; após a Segunda Guerra Mundial; e
depois de 1968. Em 1915, a Suécia promove a primeira quebra real do
domínio patriarcal no mundo moderno. Ocorre a implementação da nova Lei de
Casamento. Em 1918, a Revolução Russa de Outubro promove um ataque
ainda mais decisivo: torna ilegal qualquer prática patriarcal.
No segundo marco, pode-se localizar o fato de os japoneses terem suas
tradições patriarcais confucianistas e suas normas feudais samurais atacadas
pela ocupação americana. A constituição japonesa, pós-militarista, de 1947,
afirmava a igualdade entre os gêneros. Em relação aos chineses, os
comunistas, doutrinados pelo Comintern, priorizaram a revolução da família,
proclamando uma nova Lei de Casamento em 1950. Na Europa Oriental, o
controle comunista “[...] envolveu uma imediata e radical legislação
antipatriarcal de família, enfatizando a igualdade de gênero, a livre escolha do
casamento, a secularização do casamento e o direito da mulher trabalhar fora
de casa” (THERBON, 2006, p. 115).
No resto do mundo, as mudanças, quando havia, eram embrionárias. As
mulheres da Europa e da América Latina conseguiram o direito ao voto apenas
depois da Segunda Guerra exceção somente para as brasileiras, cujo direito
foi obtido em 1932.
9
Esse é, indubitavelmente, o embrião das relações pautadas pela igualdade de gêneros; da possibilidade
do amor confluente; da legitimação da homoconjugalidade feminina e masculina.
33
De resto, não se pode negar a ocorrência de uma espécie de
preparação global. Exemplo disso é a Declaração dos Direitos Humanos das
Nações Unidas, de 1948. O documento afirmava o direito ao casamento sem
limitações de raça, nacionalidade ou religião. Determinava a igualdade de
direitos entre homens e mulheres. Retirava dos pais o poder de escolha de
parceiros para os casamentos dos filhos.
No final dos anos 1960, o terceiro marco histórico, as ações se
intensificam e ganham maior alcance. 1975 é declarado o Ano Internacional da
Mulher pela Assembléia Geral da ONU. A organização promove duas
conferências históricas, uma no México, outra em Berlim Oriental. Em todos os
continentes, são estabelecidas agências públicas preocupadas com as
relações de gênero.
Elencados os fatos históricos, resta discorrer a respeito das correntes
ideológicas que minaram as bases patriarcais, sob as quais a antiga ordem
ainda se estabelecia. Therbon (2006) identifica quatro vertentes fundamentais.
A primeira é o movimento feminista de mulheres, surgido na primeira
metade do século XX.
O movimento trabalhista socialista é a segunda dessas correntes, tanto
em suas frentes marxista quanto anarquista, ambas detentoras do poder sob a
liderança do comunismo. O movimento considerava que a negação dos direitos
das mulheres e a desigualdade entre os sexos eram heranças feudais
renovadas pela burguesia. O comunismo internacional, ainda que isso pareça
surpreendente, desempenhou papel fundamental nos três momentos de
despatriarcalização. A revolução bolchevique estabeleceu um modelo de
gênero e família que abalava o poder marital. Isso não se restringiu à Rússia,
espalhando-se rapidamente pelo leste da Ásia, pela Europa Oriental e mais
tarde por Cuba. Do movimento revolucionário russo surgem importantes
conceitos a respeito da participação feminina na vida política e no serviço
público
10
. O feminismo era um princípio do marxismo. Segundo Therbon:
O que quer que tenha sido a dimensão feminista da Revolução
Bolchevique, não foi nem oportunista nem simples decoração
ideológica. Tratou-se de uma afirmação de princípio, muito difícil de
10
Além de obras fundamentais como A Mulher e o Socialismo (1879) de Auguste Bebel (líder da
socialdemocracia alemã) e Origens da Família, da Propriedade e do Estado (1874) de Engels. Lênin,
também defendeu, escrevendo e publicando, a igualdade entre os gêneros e a participação social feminina.
34
realizar contra forte resistência e tenaz resiliência, mantida com
reservas pelos líderes soviéticos posteriores que, todavia, não puderam
nunca abandoná-la completamente (2006, p. 129).
Houve ainda o liberalismo secularizado, “de proveniência cristã-
protestante ou judaica – raramente católica” (p. 119). Essa vertente foi de muita
importância para a Escandinávia, sendo também responsável pelo apoio
masculino ao feminismo anglo-saxão, principalmente por meio da repercussão
das obras de Stuart Mill (1869) e Ibsen (1879).
A quarta corrente é composta pelos chamados nacionalistas
desenvolvimentistas, que forneceu os primeiros escritos não europeus e não
americanos contra a opressão masculina. Entre eles estão: Fukuzawa Yukichi,
no Japão; Qsasim Amin, no Egito; e Kan Ywei, na China.
É preciso salientar que a grande repercussão de obras literárias cuja
temática questionava a instituição do casamento, em pleno século XIX, não
deixa de ser sintomática. Esse é o caso de Casa de Bonecas (1879), de Ibsen;
de A Sonata Kreutzer (1889), de Tolstoi, entre outros. O próprio fato de
mulheres adúlteras tornarem-se personagens centrais de narrativas de
prestígio e impacto é um prenúncio de mudanças. Assim temos, entre outras,
Emma Bovary (Madame Bovary, 1857); Anna Karenina (Anna Karenina, 1878)
e Luiza (O Primo Basílio, 1878).
Therbon (2006) não acredita na existência de uma conexão direta
(evolutiva) entre modernização dos meios de produção e despatriarcalização.
Segundo o autor, “[...] os sistemas familiares têm sensibilidade e resiliência
diferentes das mudanças socioeconômicas [...]” (p. 121). Tanto que as
violentas mudanças sociais, ocorridas no continente europeu, nos séculos XVIII
e XIX contrastam com a relativa estabilidade do patriarcado, praticamente
intacto entre 1600 e 1920, no referido continente.
Não haveria, portanto, como endossar a tese dos sociólogos
funcionalistas de meados do século XX. Estes construíram um retrato da
família, partindo do pressuposto de que as revoluções urbanas e industriais
resultaram em revoluções nos sistemas familiares ou conjugais.
Sendo assim, Therbon (2006) avalia que o sistema patriarcal
desenvolveu mecanismos adaptativos diante das significativas transformações
que minavam suas bases. Ou seja, ainda que com menor vigor, o referido
35
sistema resistiu aos processos de proletarização, urbanização e
industrialização.
O primeiro mecanismo adaptativo seria o desenvolvimento da economia
do salário familiar. A sobrevivência da família proletária dependia da soma do
salário de vários de seus membros. O pai, apesar de não ter mais propriedade,
controlava o empreendimento familiar. Sob sua guarda estava o acesso ao
emprego, havendo a possibilidade de expulsar de casa filhos não submissos.
Aqueles proletários que não se enquadravam à economia do salário familiar
nem por isso ameaçavam a ordem estabelecida. O patriarcado comportava
desvios, oferecendo nichos de baixo status para os celibatários e para as
crianças nascidas fora do casamento.
Quanto à escolarização pública em massa, esta se prestava muito mais
à disseminação de valores patriarcais como obediência, disciplina e deferência
do que à sua subversão. As exigências do Estado-nação, com relação ao
comportamento, eram extremamente condizentes com os antigos modos de ser
pai e mãe.
A industrialização possibilitou “[...] a reprodução em larga escala das
normas patriarcais” (2006, p. 43). A grande classe trabalhadora proletária, no
final do século XIX, era cada vez mais masculinizada. Dessa forma, o sucesso
da industrialização acabou fornecendo recursos para que as famílias
proletárias reproduzissem as normas burguesas. Surge assim o homem de
família provedor pertencente à classe trabalhadora.
Dessa maneira se justifica o fato da ruína do patriarcado não ter se dado
ainda no século XVIII ou XIX. Deve-se agregar aqui o ideário do amor
romântico, que apesar de revolucionário em vários aspectos, depende da
diferença entre os gêneros para se sustentar.
Com tais considerações não se quer desprezar a importância das
transformações nos modos de produção e na organização social para a
reestruturação do sistema familiar. Pretende-se, antes, acrescentar as
transformações de ordem ideológica.
Concluindo esta discussão, pode-se dizer que apesar das mudanças
sociais e ideológicas, o patriarcado não desapareceu da face da terra. Ele
ainda vigora entre mais da metade das populações da Ásia, em várias partes
da África, em alguns bolsões da Europa e também entre certos indígenas da
36
América Latina (THERBON, 2006). De qualquer forma, apesar de ainda
governar cerca de 40% da população do mundo, o patriarcado retraiu-se em
toda a parte. A Europa e as Américas tornaram-se sociedades pós-patriarcais.
É preciso alertar para o fato de que considerar uma sociedade pós-
patriarcal não significa afirmar que a desigualdade entre os gêneros tenha
desaparecido:
O pós-patriarcado significa autonomia adulta com relação aos pais e
direitos de família iguais para homens e mulheres não apenas como
direitos proclamados, mas como direitos passíveis de reinvidicação
judicial. Essa é a principal mudança histórica, virtualmente
desconhecida e não praticada antes em nenhum lugar. Além disso,
conforme acabamos de ver, trata-se de uma mudança recente.
Contudo, não significa por si mesma igualdade de gêneros. Homens e
mulheres, como membros da família, assim como em suas capacidades
individuais, estão inseridos em relações sociais de desigualdade. [...]
Uma sociedade pós-patriarcal a homens e mulheres direitos iguais
de ação, mas sua renda relativa drena sua capacidade de ação
(THERBON, 2006, p. 190).
Chega-se agora à seção crucial para este trabalho. A caminhada teórica
efetuada até aqui não teve outro objetivo senão criar um escopo sob o qual se
pudessem desenhar as possíveis configurações do amar na pós-modernidade.
Deve-se salientar que o termo pós-modernidade será usado aqui para designar
o período iniciado por volta da segunda metade do culo XX. A utilização
dessa nomenclatura, entretanto, não aponta para a postura teórica que
defende a ocorrência de uma ruptura brusca com a modernidade. Acreditam-
se, antes, na ocorrência de certas rupturas, algumas transformações e várias
continuidades.
Para continuar, no entanto, é, ainda, preciso estabelecer um
posicionamento. Os debates sobre a condição pós-moderna apontam para a
existência de uma nova dinâmica cultural, para um panorama que, entre outras
denominações, pode ser chamado de multiculturalista. A pesquisadora Marlise
Matos, em seu Reinvenções do Vínculo Amoroso: cultura e identidade de
gênero na modernidade tardia (2000), defende a tese de que multissexualismo
seja a “contraface subjetiva da experiência do multiculturalismo na dinâmica
cultural e social” (p. 27), ou seja, a autora propõe relações entre
“transformação, subversão e abertura da e na própria esfera da cultural [...]e
redefinição, reordenação e reestruturação das “experiências de conjugalidade e
37
da dinâmica das identidades de gênero” (p. 35). Acredita-se também na
viabilidade das relações estabelecidas, nesse sentido, por Matos (2000).
Retomando a discussão acerca dos conceitos com os quais o
construídas, também, as relações afetivas, voltaremos a Giddens (1993), para
conceituar amor confluente, cuja base é o relacionamento puro. Esses termos
são importantes para a compreensão de possibilidades de vivência afetiva
necessariamente pós-modernas, dependentes do processo de
despatriarcalização, tendo, curiosamente, certas dívidas com o ideário
romântico, apesar de significar sua superação (não no sentido do
desaparecimento do referido ideário ou das práticas a ele relacionadas,
conforme foi dito). Enfim, são conceitos fundamentais para o pretendido
traçado do panorama das práticas sociais.
Falar em relacionamento puro, de acordo com Giddens (1993), é falar no
estabelecimento de vínculo afetivo-sexual entre duas pessoas, independente
de modelos tradicionais de conjugalidade. A manutenção do vínculo não está
atrelada a questões financeiras, patrimoniais, religiosas ou judiciais, ou seja, a
quaisquer determinantes exteriores à relação afetiva:
Refere-se a uma situação em que se entra em uma relação social
apenas pela própria relação, pelo que pode ser derivado por cada
pessoa da manutenção de uma associação com outra, e que
continua enquanto ambas as partes considerarem que extraem dela
satisfações suficientes, para cada uma individualmente, para nela
permanecerem (p. 69).
Evidentemente, o relacionamento puro, como parte de uma
“reestruturação genérica da intimidade” (p. 69), liberto dos modelos sexistas
conjugalidade, depende daquilo que podemos chamar de liberdade sexual.
Para que relacionamento puro exista é preciso legitimar o sexo por prazer,
desvinculado de fins reprodutivos, sem necessidade de ser balizado pelo
casamento, podendo envolver indivíduos do mesmo sexo. A sexualidade deixa
de ser regida por quaisquer normas morais ou legais, a normatização depende
de acordo entre parceiros. Não existe restrição quanto ao tipo de ligação
existente entre os envolvidos, ao sentimento, ao número de participantes.
Enfim, a legitimação ocorre pela busca do prazer e os limites e conflitos
derivados dessas práticas são muito mais individuais que sociais.
38
O relacionamento puro pressupõe essa liberdade sexual para ambos os
sexos, e para quaisquer orientações sexuais. Só assim é viável o vínculo
estabelecido a partir de normas íntimas e não de imposições sociais externas.
Entretanto, a referida liberdade pode também ser um impeditivo para a
construção de um relacionamento. A possibilidade da prática da sexualidade
episódica, por exemplo, para homens e mulheres, muitas vezes impossibilita o
vínculo duradouro ou mascara distúrbios comportamentais. Por isso, alguns
dos discursos da medicina, da psicologia e da psiquiatria contemplam relatos e
desenvolvem estudos a respeito de uma valorização do prazer que assume
contornos de compulsão ou vício, acarretando sofrimento ao indivíduo e
envolvendo questões de saúde pública.
O sexo motivado unicamente pelo prazer não é um fenômeno
contemporâneo. Nova é a possibilidade de uma vivência sexual motivada
unicamente pelo prazer, mas sem estar restrita à marginalidade dos
prostíbulos, sem necessitar do aval legitimador fornecido pelo casamento.
Dessa forma, pode-se afirmar, também, que, para vivê-la, homens o
precisam lançar mão do histórico recurso do padrão duplo; mulheres não têm
como única saída a prostituição ou o concubinato e homossexuais não
necessitam da obscuridade do gueto.
De acordo com Giddens (1993), o amor romântico possibilitou e foi
superado pelo surgimento do relacionamento puro, que é a base do amor
confluente. Por amor confluente entende-se aquele que:
[...] é um amor ativo, contingente, e por isso entra em choque com as
categorias ‘para sempre’ e ‘único’ da idéia do amor romântico. A
sociedade separada e divorciada de hoje aparece aqui mais como efeito
da emergência do amor confluente do que como sua causa. Quanto
mais o amor confluente consolida-se em uma possibilidade real, mais se
afasta da busca pela ‘pessoa especial’ e o que mais conta é o
‘relacionamento especial’ (1993, p. 72).
O amor confluente, constituído por uma sexualidade mais livre e pelo
relacionamento puro, seria a face pós-moderna do amor romântico. Vínculos
constituídos a partir do ideário do amor confluente tendem a descartar os
modelos rígidos de organização da intimidade. Por exemplo, as funções
desempenhadas no cerne da vida familiar, anteriormente, eram determinadas
pelo gênero ao qual pertence o parceiro. O amor confluente demanda que a
39
distribuição de funções seja muito mais um acordo íntimo, pautado pela
cumplicidade e norteado pelas características e aptidões de cada indivíduo.
Tendo esses conceitos definidos, parte-se agora para a verificação das
práticas. Ou seja, é preciso observar, por meio de certos estudos, qual o
impacto desses conceitos, em que medida a organização familiar, os arranjos
afetivo-sexuais, os encontros e os anseios amorosos se constituem a partir
dessas noções.
De acordo com Therbon (2006), desde o início da década de 1960, no
norte da Europa Ocidental e no Novo Mundo branco, tem havido uma mudança
dramática nas uniões humanas. Uma das evidências dessa alteração seria a
queda da taxa bruta de nupcialidade nas sociedades ocidentais (e
ocidentalizadas) a partir de 1960. Para Therbon (2006):
O fim do boom de casamentos na família européia e o início de forte
declínio na propensão a casar estão notavelmente sincronizados em
toda a parte ocidental do continente e também através dos oceanos;
incluindo os Novos Mundos [...] (p. 288).
Constatar uma diminuição na ocorrência de uniões formais não
apresenta justificativa, em si mesmo, para a afirmação de que houve uma
reestruturação dos modelos de conjugalidade. É necessário refletir sobre os
significados, as causas e as relações dessa constatação. Como é sabido, na
década de 1960 também está localizado um fenômeno conhecido como
Revolução Sexual. Seguindo a linha de raciocínio iniciada com este texto, tal
fenômeno pode ser considerado, talvez, uma espécie de ápice dos processos
anteriormente descritos. Ápice esse que resulta em desdobramentos tanto de
intensificação quanto de rupturas com o cenário imediatamente anterior. De
qualquer forma, a Revolução Sexual costuma ser considerada uma boa
designação para o marco a partir do qual se iniciam as formas de vida pós-
modernas.
As baixas taxas de nupcialidade são motivadas por processos
sociodemográficos conseqüentes da referida revolução. Tais processos
configuram-se pelo adiamento da idade do casamento; o aumento, bastante
significativo, da coabitação informal; o surgimento de certa tendência a viver
sozinho, tanto como opção em si mesma, quanto como espécie de estágio
40
provisório, posterior ao divórcio, ou anterior ao primeiro casamento; o
aparecimento de uma variedade especial de solteirismo, que inclui filhos.
Conforme foi dito, essas transformações estão alinhadas com muitas
outras, inclusive com o desmantelamento do patriarcado. Importa, agora,
salientar alterações relevantes propiciadas pela Revolução Sexual.
Priore (2005) afirma que a pílula anticoncepcional surgiu como
fundamental inovação tecnológica a favor da definitiva separação entre sexo e
procriação. A pílula pode ser apontada também como a facilitadora da prática
sexual, entre os próprios casais, antes do casamento.
Dentre as transformações, podem ser elencadas as seguintes:
flexibilização da moral sexual; liberdade de trânsito social para casais não
casados; surgimento de um vocabulário amoroso menos eufêmico o
vertiginoso desenvolvimento dos meios de comunicação
11
, em especial da tv,
tem importância determinante nesse aspecto; queda no status da imagem da
“rainha do lar”, popular nos anos de 1950; enfraquecimento da hegemonia da
masculinidade tradicional, gerado pelo impacto do movimento gay; redução da
condescendência com a infidelidade masculina; valorização do prazer sexual
para ambos os gêneros; diminuição radical no número de filhos e aumento de
sua centralidade no universo familiar (PRIORE, 2005).
Antes de prosseguir a discussão, será preciso discorrer um pouco mais
a respeito de um dos tópicos elencado no parágrafo anterior. Assim como o
movimento feminista, o movimento gay teve impacto fundamental na
reorganização dos parâmetros de conjugalidade, sendo indispensável salientar
alguns marcos históricos e avaliar certas conseqüências.
De maneira bastante simplista, pode-se dizer que a racionalidade e o
cientificismo modernos tinham retirado da homossexualidade a carga medieval
do pecado, carga que ainda estava presente no século XIX, por meio de
legislações que a consideravam criminosa. Os estudos a respeito da conduta
sexual humana desculpabilizaram o homossexual quando introduziram o
11
um interessante debate acerca da influência do cinema norte-americano nos comportamentos
sentimentais, realizado por Priore (2005) e por Sterns (2007). Priore traz também dados a respeito daquilo
que Bauman (2004) chamou de boom do aconselhamento, ou seja, publicações que objetivam uma
espécie de orientação sentimental, pautada, muitas vezes, por saberes oriundos de profissionais como
médicos, psicólogos, psiquiatras e pedagogos. A popularidade dessas publicações talvez possa ser
considerada a continuidade s-moderna das publicações científicas que procuravam esmiuçar a
sexualidade humana. Segundo Foucault (1998), esse tipo de discurso se proliferou na modernidade.
41
conceito de patologia. A prática sexual e o sentimento amoroso entre
indivíduos do mesmo sexo passaram a ser consideradas uma doença e,
portanto, algo passível de ser tratado.
Ainda no século XX, existem registros de tratamentos que variam de
internações psiquiátricas até lobotomias, na tentativa de curar os “invertidos”.
Somente em 1973, a homossexualidade é retirada da lista das desordens
mentais da Associação Psiquiátrica Americana (THERBON, 2006).
Com relação a comportamento, até a década de 1960 ainda era
freqüente que os próprios homossexuais reproduzissem o esquema dualista do
heterossexismo dominante. Dessa forma, os guetos eram permeados por
casais que reproduziam a estereotipia do par “bofe” e “boneca” (PRIORE,
2005), ou, no caso das mulheres, da “lady” e da “fanchona”. É na década de
1970 que a idéia de uma sexualidade mais plural começa a ser defendida, por
meio do movimento americano e europeu Gay Power. A antiga dicotomia,
herdada da forja de uma cultura predominantemente estruturada em los
opositivos, cede lugar para casais de “entendidos”. O termo hoje também é
considerado problemático, mas foi importante para a militância que combatia a
reprodução de uma ideologia falocêntrica, na qual a valorizada masculinidade
era pautada por termos como sexo ativo/passivo.
Dessa forma, com relação aos vínculos afetivos, é possível afirmar que,
a partir da década de 1960, surge um novo panorama. Problematizando esse
novo panorama, Priore nos apresenta a seguinte questão:
Apesar dos riscos da aids – a descoberta popularizada nos anos 80 –, a
sexualidade foi desembaraçada da mão da Igreja, separada da
procriação graças aos progressos médicos e, mais, foi desculpabilizada
pela psicanálise e mesmo exaltada. De forma oposta, a ausência de
desejo é que passa a ser perseguida. O casamento, fundado sobre o
amor, não é mais obrigatório e ele escapa às estratégias religiosas ou
familiares; o divórcio não é mais vergonhoso e os cônjuges têm o
mesmo tratamento perante a lei. A realização pessoal coloca-se acima
de tudo: recusamos a frustração e a culpa. Mas tudo isso são
conquistas ou armadilhas? (2005, p. 312)
À guisa de conclusão desta seção, pode-se dizer que temos como
resultado um cenário contemporâneo multifacetado, permeado por
controversas continuidades e rupturas com relação à modernidade.
42
As conseqüências todas dos ciclos sociais que resultaram na Revolução
Sexual, principalmente a consolidação da derrocada patriarcal e a dissolução
da hegemonia da família burguesa, culminaram em uma profusão de novos
modelos de vínculos afetivos.
Dessa profusão de novos arranjos, obviamente, surgem também novas
crises. Da transformação na intimidade, irrompem conflitos outros. Tais
conflitos nutrem-se tanto das novidades quanto dos resquícios, ecos, memórias
históricas, reminiscências que também são constitutivas dessas alternativas de
vida.
Aquilo que Giddens (1993) nomeia de amor confluente, por exemplo, é
uma modalidade de relação menos opressora por não estar fundamentada na
submissão feminina, no código dualista generificado. No entanto, justamente
por abandonar modelos fixos, por não apresentar digos e funções
previamente determinados para cada um dos gêneros, por não possuir o
respaldo da indissolubilidade do vínculo, demanda permanente negociação
entre parceiros – é, portanto, conflituoso, problemático.
Além disso, autores como Therbon (2006) afirmam que o relacionamento
puro é algo restrito às grandes cidades do mundo ocidental rico. Não se pode
mesmo deixar de pensar que divórcio, multiplicidade de parceiros,
independência emocional, abandono de parcerias centradas em preocupações
patrimoniais, dependem de certa situação tanto cultural, quanto econômica.
Essa ressalva quanto à linhagem teórica de Therbon, entretanto, não o
situa, de forma alguma, entre autores que consideram, ou vislumbram uma
tendência ao caos, à dissolução total dos vínculos, ao individualismo
desenfreado. Antes disso, o antropólogo sueco considera que mesmo o
casamento não é uma instituição que está acabando e sim mudando. Ele prevê
que a desigualdade de gênero terá uma vida mais longa que o patriarcado. A
justificativa, para o autor, estaria na profundidade dos padrões de renda
estruturados pelo gênero e na grande diferença existente desde muito na
divisão das responsabilidades familiares. Entretanto, não haveria razões para
duvidar que o processo de equalização, iniciado na segunda metade do século
XX, continue. Tal continuidade não aponta para o fim das uniões sólidas,
nutridas por sentimentos profundos:
43
A revolução sexual não foi um assalto ao casamento e à formação de
casais duradouros. Foi uma afirmativa do direito ao prazer sexual, antes
do casamento e fora tanto quanto dentro dele. Conforme notamos
anteriormente, o casamento também se enriqueceu sexualmente. A
coabitação desenvolveu-se como casamento experimental e como
formação de parcerias secularizadas e informais, que legisladores e
tribunais vêm tornando crescentemente semelhante ao casamento [...].
Ao final dos anos 1990, o direito ao casamento tornou-se uma palavra
de ordem central para gays e lésbicas (THERBON, 2006, p. 455).
O direito ao casamento participar de bandeiras de movimentos por
direitos homossexuais é, realmente, fator significativo enquanto questionador
de posturas que sugerem uma caminhada para um século da solidão. O próprio
Therbon apresenta dados nos quais o viver sozinho é ainda uma forma de vida
com significado marginal
12
, circunscrita a algumas regiões do chamado mundo
rico. O autor afirma que “[...] a nova abertura sexual não destruiu o anseio por
laços emocionais profundos, duradouros e exclusivos” (p. 456).
Sendo assim, neste trabalho, o se endossa o pensamento de
Bauman, segundo o qual a contemporaneidade estaria configurada por uma
liquidez total das relações humanas. Para Bauman (2004), as relações afetivas
estariam, todas elas, regidas pela lógica do consumo, como se o amar
passasse a seguir uma espécie de ética do fast-food. Apesar das fundamentais
reflexões acerca dos problemas afetivos contemporâneos, apresentadas por
Bauman, acredita-se, aqui, que tal linhagem teórica é por demais essencialista
e descomprometida com as questões de poder e de gênero.
Dessa forma, conclui-se a reflexão acerca das práticas sociais que
envolvem a vida amorosa a partir da modernidade. O que será buscado agora
é a verificação e a análise das maneiras pelas quais a literatura tem tratado tal
temática, de que forma a tem problematizado a partir de 1960, em especial no
universo ficcional de Luiz Vilela.
12
O termo marginal aparece aqui no sentido de pouco freqüente, de não ser uma tendência predominante
da humanidade. Não é possível negar que o solteirismo, no entanto, sem condenação a baixo status social,
é conquista contemporânea.
44
3
O AMAR E A LITERATURA
De acordo com Linda Hutcheon (1991), é tendência pós-moderna que as
várias áreas do conhecimento teórico tenham como núcleos de interesses
questões coincidentes com aquelas que motivam ou são evidenciadas nas
produções artísticas.
Sendo assim, não surpreende que a produção de alguns historiadores,
sociólogos, antropólogos, psicólogos, filósofos, entre outros, participe de um
núcleo discursivo no qual também se encontra o resultado de trabalhos de
artistas plásticos, atores, cineastas, músicos e escritores.
As transformações na natureza dos vínculos afetivos, suas novas
modalidades, assim como as conseqüências positivas ou não das
configurações possibilitadas pelo nosso tempo têm sido tema tanto de estudos
teóricos (conforme apresentado no capítulo anterior), quanto de manifestações
literárias (objeto do capítulo que se inicia agora).
Não se quer com isso afirmar que é novidade desses tempos o amor
como tema literário. O amor é tema clássico da literatura, como se sabe.
Apresentando maior ou menor relevância dentro de universos ficcionais ou
períodos históricos distintos, nunca deixou de estar presente. Contemporânea
não é a tematização do amor na literatura. Contemporânea é a
problematização do papel das novas formas de vivência amorosa, com os
conflitos surgidos, com as saídas, as frustrações e realizações advindas
dessas configurações outras.
Dessa forma, é objetivo deste capítulo a busca por algumas dessas
maneiras de se tratar contemporaneamente a temática amorosa na literatura.
Como se sabe, o pós-modernismo é caracterizado pelo plural, pelo múltiplo.
Não seria possível encontrar uma tendência unânime com relação à
abordagem das relações afetivas – que caracterizasse toda a produção literária
brasileira a partir de 1960. Da mesma maneira que tal tendência não existe (e,
se existe, são linhas tênues), não se acredita aqui que se possa falar,
logicamente, em autores que representem de maneira mais ou menos
emblemática tal tendência. Os textos e autores foram escolhidos a partir de
dois princípios: a composição, recortada, do momento literário no qual a
45
produção de Luiz Vilela está inserida e a própria relevância da problematização
acerca do amor presente nos textos.
Considera-se necessária ainda uma justificativa para a existência de um
capítulo destinado a textos que não são os que compõem o corpus central da
dissertação. Tal justificativa encontra-se na preocupação com o contexto de
produção artística. O autor selecionado não será visto como gênio criador,
gerador autônomo de discursos sem pontos de tangências e divergências com
seus pares. Por isso, antes de atentar para as peculiaridades do universo
ficcional construído por Luiz Vilela, optou-se pela tentativa de composição de
uma espécie de limitado panorama. Novamente chama-se Linda Hutcheon
(1991) para justificar a necessidade ou a opção de não se restringir à análise
dos contos de Vilela (que por si só já apresentam uma multiplicidade de
enfoques do sentimento amoroso):
[...] a relação do poder com o conhecimento e com os contextos
discursivos históricos, sociais e ideológicos é uma obsessão do pós-
modernismo. A ênfase sobre essa relação assinala um afastamento em
relação ao pressuposto formalista segundo o qual os textos são apenas
objetos a serem analisados e decifrados. Quando o ‘locus’ do sentido se
desloca do autor para o texto, daí para o leitor, e finalmente para todo o
ato de enunciação, então talvez tenhamos ultrapassado o formalismo e
até a teoria do leitor ‘per se’ (p. 118).
Outra questão que demanda justificativa é a opção por um corpus
composto por textos representantes de um gênero textual específico, ou seja, o
conto. Deve-se salientar que não se pretende aqui efetuar uma discussão
densa acerca das questões teóricas e, sabidamente, polêmicas que envolvem
a categorização do gênero. Não essa pretensão por não se considerar tal
debate, ou seja, as diversas possibilidades conceituais nas quais se
empenham teóricos da narrativa, condizentes com o tipo de análise e com os
marcos teóricos propostos por esta dissertação.
A justificativa para a referida opção nortear-se-á pela relação apontada
por alguns autores entre a narrativa breve e a contemporaneidade (ou pós-
modernidade) e, também, pelo levantamento de algumas considerações sobre
as especificidades dessa maneira de contar e a temática eleita.
É freqüente que as teorizações a respeito do conto, enquanto gênero
narrativo, dêem-se por comparação com o romance. Considera-se que existam
tanto diferenças estruturais quanto de origem. Pensando nas questões relativas
46
à origem, o romance teria suas raízes na epopéia, enquanto o conto, nas
chamadas narrativas domésticas. De acordo com Fábio Lucas:
Grosso modo, podemos dizer que o romance é filho remoto da epopéia
e provém modernamente da História, do relato de viagens e conquistas,
enquanto o conto retira sua origem de várias formas de narrativa
doméstica, a fábula, a anedota, o caso, o provérbio, os enredos curtos
de tom libertino, piedoso ou moralizante, de que cuidou André Jolles
13
,
em obra célebre, sob a denominação de ´formas simples` (1983, p.
106).
É viável a afirmação de que o conto traz nas próprias raízes uma
tendência para um tom menor com relação à narrativa romanesca, pois nasceu
de formas mais ligadas ao cotidiano e desprendidas do tom grandioso que
marca a epopéia. Entretanto, na história do moderno percurso do gênero
existem algumas transformações pontuais que não podem ser desprezadas.
Além disso, costuma-se valorizar o conto justamente na medida em que
ele se distancia do registro escrito de um enredo pertencente à tradição oral.
Para que o conto assumisse autonomia enquanto gênero foi preciso que ele
apresentasse características igualmente autônomas. Ou seja, não poderia ser
mero registro escrito de uma fábula, precisava de elaboração estética
específica; como não poderia ser o esboço de um futuro romance (LINHARES,
1973).
O surgimento do conto em sua acepção moderna costuma ser marcado
pela afirmação de Edgar Allan Poe como contista e teórico do conto. Segundo
Julio Cortázar (1993):
Afirmou-se que o período entre 1829 e 1832 nascer o conto como
gênero autônomo. Na França surgem Mérimée e Balzac, e nos Estados
Unidos, Hawtorne e Poe. Mas este escreveria uma série tão
extraordinária de narrativas a ponto de dar ao novo gênero o empurrão
definitivo em seu país e no mundo, e de inventar e aperfeiçoar formas
que teriam vasta importância futura (p. 122).
A teoria do “efeito único”, desenvolvida por Poe, resultou na descoberta
de uma característica estrutural considerada, ainda hoje, fundamental para a
13
A obra a que se refere bio Lucas intitula-se Formas Simples, tendo sido publicada pela editora
Cultrix, em 1976, com tradução de Álvaro Cabral. É necessário salientar que, segundo Nádia Battella
Gotlib (1999), Jolles contrapõe as chamadas formas simples às formas artísticas, classificando a novela
como uma forma artística. Para a pesquisadora, o gênero ao qual chamamos conto corresponde a uma
forma artística, à novela e não às formas simples.
47
delimitação do gênero. Tal característica é a demanda presente na construção
do conto, diferentemente do romance, por economia dos meios narrativos. Isso
significa, segundo Gotlib (1999, p. 35): “[...] conseguir, com o mínimo de meios,
o máximo de efeitos. E tudo que não estiver diretamente relacionado com o
efeito, para conquistar o interesse do leitor, deve ser suprimido”.
Seguindo a argumentação de Nádia Battella Gotlib, em seu Teoria do
conto (1999), é sabido que Poe dedicou-se a um tipo específico de conto, o
conto de terror. Dessa forma, o princípio da economia narrativa, para ele,
centrava-se na obtenção de um efeito cujo eixo central era o acontecimento ou
o enredo. Esse tipo de texto demanda o que Cortázar (1993) nomeia de
acontecimento extraordinário, sendo de fundamental relevância o desfecho e o
efeito surpresa.
A tradição do conto centrado no fato contado, no acontecimento, será
rompida, segundo Gotlib (1999, p. 46), por Tchekov: “Tchekhov-contista avança
no sentido de libertar o conto de um dos seus fundamentos mais lidos: o do
acontecimento”. Sendo assim, afirma-se que Tchekov inaugura uma vertente
especialmente rica para o conto moderno. São textos em que não existem
grandes ações, nos quais há uma aparente ausência de acontecimentos. Fábio
Lucas (1983, p. 110-111) explica tal ruptura da seguinte maneira:
Paralela ao esplendor do conto de enredo, foi-se formando uma tradição
que remonta a Tchekov, a do drama estático, que reduz a ação externa
ao mínimo. Mais importante do que a cena final, esteio da estrutura
anedótica, é o corpo do relato [...]. Diríamos assim do conto de
atmosfera mais adequado ao ´herói da consciência` do que à
personagem da ação.
A exposição acima interessa para elucidar o surgimento das
especificidades do gênero conto como o conhecemos hoje e, mais
precisamente, sua tendência ao chamado tom menor.
Dando continuidade, acredita-se, portanto, que a relação entre isso que
chamamos tom menor o seja algo que compõe a natureza mesma do conto.
Não é sua brevidade uma característica que demande, fundamentalmente,
tangências com o trato do cotidiano, a simplicidade, a desvalorização daquilo
que é grandioso. Acredita-se que tais características encontrem maiores
justificativas em questões pontuais da história da literatura, suas tendências e
48
predominâncias, ou seja, são características de determinados contos ou do
formato assumido pelo gênero em certa cultura literária, em específico
momento histórico.
Para Fábio Lucas (1983), será com Machado de Assis que a contística
brasileira ganha maior consistência não deixando de ressaltar a
importância de Álvares de Azevedo, com Noite na Taverna. Importa dizer que
Machado alinha-se à tradição iniciada por Tchekov.
Dito isso, conclui-se que a fixação do gênero no Brasil se inicia por
meio de uma tradição muito mais pautada pelo chamado conto de atmosfera.
Talvez falar em conto de atmosfera seja adotar uma denominação por demais
fechada, melhor seria dizer que Machado de Assis consolida o gênero no
Brasil, inaugurando já uma tendência simbolista, mais voltada para elaborações
estéticas, para questões de linguagem em detrimento da centralidade do
enredo ou da anedota. Ou seja, uma maior preocupação com a maneira de
contar e não com o que é contado, embora uma e outra coisa não sejam pares
dicotômicos.
Fábio Lucas (1983) responsabiliza Machado de Assis pela modernização
do conto brasileiro. Segundo o pesquisador, Machado anunciou modificações,
inclinações concretizadas posteriormente. Importa observar como esses
elementos, considerados por Lucas (1983) como modernizadores, resvalam
pela idéia de tom menor, de simplicidade, de intimidade:
É afinada em tom menor [a oralidade], discreto e confidencial. Tem-se
geralmente a impressão de se estar ouvindo contar e, não, lendo uma
estória, a despeito de sua concepção escrita. Para isso, funciona bem o
vocabulário simples sempre muito preciso na elaboração do texto.
Os fatores de aceleração ou de retardamento são engenhosamente
empregados, disso resultando um ritmo desigual, cheio de idas e vindas
que intensificam ou abrandam os estados psíquicos despertados. Na
verdade, o autor reclama a co-participação do leitor para completar o
sentido que ele sugere. No encurtamento da distância entre emissor e
destinatário da mensagem narrativa, portanto, entre a narrativa e a
leitura, é que situamos o traço de modernidade no grande contista (p.
116-117).
Dessa forma, verifica-se que o trajeto percorrido pelo gênero foi no
sentido de se aproximar do despojamento, da simplicidade: “Na verdade, a
visão moderna do conto encarregou-se de despojar a narrativa curta de seu
49
tratamento pomposo e prolixo, tratou de cortar uma floresta de verbosidade,
desbastou a escrita de clichês mortos (LUCAS, 1983, p. 119-120).
Depois de Machado de Assis, outros nomes tiveram grande importância
para que o gênero adquirisse, entre s, autonomia. Deve-se citar a produção,
entre outros, de Monteiro Lobato e Lima Barreto. Será o trajeto desses
escritores que criará o esteio necessário para que o gênero atinja a qualidade
(embora esse seja sempre conceito subjetivo) e popularidade.
Fábio Lucas (1993) considera Lobato responsável por um importante
marco pré-moderno para o gênero. Tal marco se justifica pela utilização de
uma linguagem menos artificial, menos presa a convenções ainda que
primasse pela seqüência de ações e pela técnica do efeito surpresa. Com
Urupês (1918), cujo sucesso foi extraordinário, o gênero se populariza no
Brasil.
A grande importância dos autores que precederam o modernismo diz
respeito a rupturas lingüísticas. Será a aproximação com a oralidade, com a
fluidez que dará a essas produções o caráter de respaldar as inovações
modernistas. Segundo Hohlfeldt (1988), a busca de uma auto-afirmação frente
ao Velho Mundo resultava, muitas vezes, em uma cultura postiça:
A concentração populacional das cidades facilitara a busca de uma
´civilização`, evidentemente importada (e mal assimilada) que implicava
o que David Salles
14
e outros estudiosos chamarão de ´ornamento`,
artifício absolutamente externo que visava dar a afirmação necessária à
obra: as casas recebem ornamentos, também as vias públicas, os
prédios administrativos, e não menos a literatura. Por isso, uma
evidente e crescente preocupação com o lustro da palavra (p. 44).
Daí a importância da obra de Monteiro Lobato para a constituição do
conto enquanto gênero autônomo: “pela primeira vez, a linguagem abre-se
maleavelmente semelhante à oralidade, ganha flexibilidade absoluta, desloca-
se facilmente de um ambiente para outro, sem qualquer artifício evidente”
(HOHLFELDT, 1988, p. 51).
Lima Barreto publicou, em vida, apenas um livro de contos, Histórias e
Sonhos, em 1920. Mas produziu largamente dentro do gênero, tendo contos
publicados em vários jornais da época. O escritor é também considerado
14
Antonio Hohlfeldt (1988) refere-se à obra O ficcionista Xavier Marques: um estudo da transição
ornamental, publicada pela Civilização Brasileira, em 1977.
50
importante para a modernização da literatura brasileira, sendo apontado como
aquele que melhor retrata o espírito de sua época. Além de inúmeras outras
especificidades de seu universo ficcional, cabe destacar a luta contra os
artificialismos de linguagem, contra o ornamento falseado, ou seja, a busca por
algo mais íntimo, visceral (HOHLFELDT, 1988).
É comum que se considere a consolidação do gênero, no Brasil, a partir
de determinado paradigma. Não se pretende aqui questionar tal parâmetro,
mas é necessário evidenciar sua existência. Há, em geral, a valorização do
conto cujo eixo central o seja o enredo, o acontecimento, a anedota. Essa
tendência de composição textual recebe valor e legitimidade. Isso é perceptível
em vários artigos críticos, como, por exemplo, os de Alfredo Bosi (2001), bio
Lucas (1983) e Hélio Pólvora (1971).
Dessa forma, a consolidação e popularização do conto brasileiro,
enquanto gênero autônomo dependeu, além do desenvolvimento de uma
linguagem menos artificiosa, da fixação de um texto menos centrado no
enredo, voltado para a associação do conteúdo com a experimentação formal.
Hélio Pólvora, ao explicar esse processo, comprova a existência do citado
paradigma:
O conto perdia a estrutura óssea em que vivia sustentado. Passava a
depender menos da imaginação de quem o escrevia e mais de sua
sensibilidade para observar, depor, testemunhar. O contista não estava
em busca do assunto, escravo do assunto (1971, p. 17).
É sabido que a geração de 1930 dedicou-se principalmente ao romance
e a de 1945, à poesia. Entretanto, ainda de acordo com Hélio Pólvora (1971)
15
,
a partir da década de 1940, haverá uma profusão de publicações de livros de
contos de grande valor para a literatura brasileira contemporânea. E será,
retomando bio Lucas, este o percurso histórico possibilitador do surgimento
de autores que compõem a cena literária da qual Vilela faz parte: “A prosa
límpida de um Dalton Trevisan, de um Rubem Fonseca, de um Luiz Vilela, é
fruto de um longo percurso” (1993, p. 120). Recorrendo uma vez mais a
15
Autores como Guimarães Rosa; Lygia Fagundes Telles; Graciliano Ramos; Carlos Drummond de
Andrade; José Condé; Autran Dourado; OsLins; José Louzeiro; Ricardo Ramos; Otto Lara Rezende;
Dalton Trevisan; José J. Veiga; Clarice Lispector; Murilo Rubião, entre outros.
51
Hohlfeldt (1988, p. 79), para evidenciar o papel ocupado pela produção de
contos do período, diz o autor:
O conto, porém, espécie de substrato, continuou a ser praticado com
tranqüilidade, e nestas duas décadas surgiram, esparsamente, os livros
que, vistos da perspectiva de hoje, configurariam sua revolução,
sobretudo a partir de Clarice Lispector, Samuel Rawet, João Guimarães
Rosa e Murilo Rubião, abrindo cada qual um veio riquíssimo de
exploração, que nos anos subseqüentes seriam ampliados e
aprofundados por eles mesmos ou pelos que se seguiram.
Tendo em vista o brevíssimo esboço de trajetória de certas tendências,
apresentado acima, iniciaremos agora o caminho por algumas características
do conto enquanto forma breve, autônoma e, portanto, possuidora de
especificidades.
O primeiro ponto que constitui uma especificidade do gênero conto é a
noção de limite. Sendo esta uma narrativa curta, a operação do recorte, a
captação do fragmento a ser narrado torna-se uma característica estrutural,
determinando sua essência. Nesse sentido, o romance é configurado pela
multiplicidade de conflitos, pela possibilidade de desenvolver inúmeros núcleos
temáticos. O conto atua dentro do limite da sua brevidade. Deve operar o
recorte. Logo, a lógica da articulação temática é outra. Importa mais a
capacidade de compactar do que a de ligar episódios.
Julio Cortázar, no clássico ensaio “Alguns Aspectos do Conto”,
publicado na coletânea Valise de Cronópio (1993), diz que romance e conto
permitem uma comparação analógica com cinema e fotografia:
[...] o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar
uma imagem ou um acontecimento que sejam ´significativos`, que não
valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no
espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que
projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito
além do argumento visual contido na foto ou no conto (p. 152).
A demanda pelo recorte nos remete a algo apontado por Poe, ou
seja, a necessidade de economia de meios narrativos. A eficácia do conto,
portanto, vincula-se à precisão. Ainda utilizando imagens apresentadas por
Cortázar (1993), em uma comparação com o boxe, o romance seria uma luta
que se ganha por pontos, enquanto o conto, por knock-out:
52
[...] na medida em que o romance acumula progressivamente seus
efeitos no leitor, enquanto que um bom conto é incisivo, mordente, sem
trégua desde as primeiras frases. Não se entenda isto demasiadamente
literalmente, porque o bom contista é um boxeador muito astuto, e muito
dos seus golpes iniciais podem parecer pouco eficazes quando, na
realidade, estão minando as resistências mais sólidas do adversário
(p. 152).
Partindo do princípio de que o recorte é uma especificidade do conto
enquanto gênero, seria necessário lembrar Fábio Lucas dizendo que “A década
de 60 parece a do esplendor do conto no Brasil” (1983, p. 142). Enquanto
Cortázar afirma que “falar do conto tem um interesse especial para s, uma
vez que todos os países americanos de língua espanhola estão dando ao conto
uma importância excepcional [...]” (1993, p. 149). Assim, julga-se conveniente
trazer para esta reflexão a aproximação, proposta por Luiz Carlos Santos
Simon (1999), entre as características do gênero e o momento pós-modernista.
Sendo o recorte uma demanda fragmentária, Simon (1999) aponta a
relação entre o gênero conto e as tendências contemporâneas em vários
âmbitos:
A noção de fragmentação freqüenta quase todos os níveis de debate
sobre a contemporaneidade. Desde as conversas cotidianas acerca das
divisões de interesses, de especializações profissionais e mesmo no
sentido do mundo que não pode ser apreendido em sua totalidade até a
análise de manifestações do pós-modernismo, a fragmentação tem
lugar garantido enquanto tópico formador da identidade contemporânea
(p. 64).
Sendo assim, encontra-se uma primeira proposta de justificativa para a
restrição do corpus da dissertação a narrativas curtas. Supondo que as formas
breves tenham grande afinidade com o período contemporâneo, contemplando
características estruturais que são análogas às tendências desta época, é
possível imaginar que esta seja uma opção adequada para o mapeamento das
novas formas de conjugalidade, ou melhor, das novas e múltiplas maneiras por
meio das quais a literatura desenvolve a temática amorosa.
Julga-se necessário, ainda, uma outra reflexão. Quais seriam as
relações entre as especificidades do gênero conto e o tratamento da temática
amorosa? Diante do que foi dito a respeito da fixação do gênero no Brasil,
talvez se possa sugerir que a observação de Antonio Candido (1992), a
respeito da crônica, estende-se, de certa forma, para o conto. Ainda que de
53
formas diferentes, tanto um quanto outro tenderia para a “quebra do
monumental e da ênfase” (1992, p. 14).
Sabe-se que muitas vezes o fato contado adquire relevância diante
da maneira como se conta. Esta é a antiga discussão a respeito do valor
devido à forma e ao conteúdo. Também já se sabe que o fato contado é
determinado pela forma, ou seja, a estrutura tem significâncias que acabam por
serem também componentes do conteúdo. Cortázar (1993), ao teorizar sobre a
importância do tema na composição do conto, reafirma a proximidade do
gênero com aquilo que é ordinário, prosaico:
Parece-me que o tema do qual sairá um bom conto é sempre
´excepcional`, mas não quero dizer com isto que um tema deva ser
extraordinário, fora do comum, misterioso ou insólito. Muito pelo
contrário, pode-se tratar de uma história perfeitamente trivial e cotidiana
(p. 154).
Cortázar (1993) avalia que inúmeros dos grandes contos produzidos
possuem uma temática cotidiana, medíocre, prosaica. Para o autor, será o
tratamento literário dado ao tema, especialmente quanto à tensão, que gerará
um conto significativo. A estratégia é partir do fato miúdo, do trivial para
possibilitar a abertura para questões grandiosas: “[...] essa fabulosa abertura
do pequeno para o grande, do individual e circunscrito para a essência mesma
da condição humana” (p. 155).
É curioso pensar na relação entre a tendência para a tematização do
trivial e cotidiano e a temática amorosa. O amor, além de ser um tema clássico,
envolve, em geral, questões grandiosas. No entanto, inúmeros são os contos
que apresentam como eixo temático o amor. A suposição levantada aqui é que
muitos contos, ao operarem o recorte, ao fragmentarem o fato, promovem uma
espécie de ´cotidianização` do tema amoroso.
Dessa forma, não se tratará, muitas vezes, de nada além de um jantar
entre um casal, um passeio, um aniversário de casamento, uma discussão. O
amor é dessacralizado, mundanizado. É a partir do fragmento aparentemente
banal que surgirá a abertura referida por Cortázar (1993). Arrisca-se afirmar
que contemporaneamente o amor enquanto tema costuma ser configurado a
partir de ações ordinárias, ou seja, é cotidiano, para, depois de promovida a
54
abertura, reassumir sua grandiosidade. Não a grandiosidade que requer
eloqüência, mas aquela que reflete grandes dramas humanos.
Isso não significa o endosso de uma fórmula. Não se pretende afirmar
que todos os contos que tematizam as relações afetivas estão estruturados
dentro desses princípios. Conforme foi dito aqui, é característica do nosso
tempo o desprezo por modelos fixos. Esta é antes uma tendência observada,
uma inclinação.
Agora é possível uma segunda proposta de justificativa para a escolha
do gênero conto. Se a inclinação de se abordar o tema a partir de suas
expressões mais cotidianas, não seria este um lugar realmente apropriado para
o estudo das configurações do amar na pós-modernidade?
Concluindo, apresentam-se aqui duas explicações para a escolha do
gênero textual que compõe o corpus desta dissertação. O tema do trabalho são
as configurações do amar na obra de Luiz Vilela, cuja produção surge depois
de 1960. O escopo teórico construído orientou-se para a pesquisa acerca das
novas formas de conjugalidade, de arranjos familiares, de organização e
valoração das relações afetivas. Ainda que o autor em questão tenha também
produção de narrativas longas, o recorte deteve-se nos contos.
Isso porque se acredita na vinculação entre as características estruturais
do gênero e as tendências pós-modernistas, fato que torna o conto um terreno
fértil para a análise das maneiras pelas quais a literatura trata a temática
amorosa. Além de se acreditar que o tratamento da temática a partir de
aspectos cotidianos possibilita um maior espaço para o configurar dos
costumes, dos hábitos e dos conceitos deste momento histórico.
Retoma-se agora aquilo que foi dito no início deste capítulo, ou seja, a
proposta de se compor um breve panorama com contos de outros autores que
compõem a cena literária da qual Luiz Vilela faz parte.
55
3.1 W
ANDER
P
IROLI
:
A QUÍMICA DOS CORPOS ENQUANTO TRANSCENDÊNCIA
Absinto-me de ti, mas sempre vivo
Meus olhos te movendo sem te abrir
Corre solta suassuna noite
Tocaia de animal que acompanha sua presa
Escravo da sua beleza
Daqui a pouco o dia vai querer raiar
(Lula Queiroga e Pedro Luís)
O texto selecionado, de Wander Piroli (1931-2006), chama-se “Amanhã
é sempre o mesmo dia”
16
e está no volume Minha Bela Putana, publicado em
1976.
O conto descreve o encontro entre um casal cuja relação possui um
interdito. O que é narrado são seqüências de ações, como cena filmada,
caracterizando o que Silviano Santiago (1989) chama de ‘narrador pós-
moderno’, ou seja, aquele que mostra em vez de contar, como se estivesse ao
lado do leitor assistindo ao acontecimento. Dessas seqüências e da tênue
focalização interna surgida é possível depreender o não discursivizado, ou a
segunda história, como diria Piglia (2004):
O conto é um relato que encerra um relato secreto. Não se trata de um
sentido oculto que dependa de interpretação: o enigma não é outra
coisa senão uma história contada de modo enigmático. A estratégia do
relato é posta a serviço dessa narração cifrada. Como contar uma
história enquanto se conta outra? Essa pergunta sintetiza os problemas
técnicos do conto (p. 91).
Dessa forma, subliminar está um outro tempo narrativo que nos
apresenta um casal que não está vivenciando um encontro episódico, que não
são desconhecidos: “Desde que saíram juntos pela primeira vez devia ser
sempre assim [...]” (PIROLI, 1984, p. 118). A confirmação de relacionamento
longo, com certa estabilidade se dá também por meio do tempo verbal utilizado
pelo narrador em terceira pessoa: “mergulhava na cama”; “regulava o
chuveiro”; “encontrava o quarto escuro”; “se jogava em cima dele”; “deitava no
seu colo” (p. 117-118). O pretérito imperfeito, como se sabe, denota ação
iniciada no passado, mas ainda não finalizada, ou seja, o referido tempo verbal
possui carga semântica que sugere repetição (repetição ou continuidade
delineada pelo título do conto). Isso associado à insistência do advérbio
16
Todos os contos que constituintes do corpus foram anexados no final da dissertação.
56
‘sempre’: “Mas ele sempre dava umas palmadas” (p. 117) confere ao fato
narrado certa atmosfera ritualística. O encontro é um ritual, obedece a passos e
normas conhecidas pelos dois.
Ainda dos meandros da descrição, pode-se supor que os encontros
acontecem em lugar distante, não se configurando como residência de um dos
parceiros. É, provavelmente, um motel, ou hotel afastado da cidade. Isso se
evidencia no início do conto: “Na hora de sair, ela mergulhava na cama e
dizia que ia ficar” (p. 117). Ou seja, é um lugar do qual ambos precisam partir.
A suposição de que ele seja um homem casado (com outra mulher,
claro), surge da certeza de que quem possui algum interdito social que
impossibilita ou relega ao caráter de secreto aquele relacionamento é o
homem: “E sempre, na volta, ela deitava no seu colo para que ninguém a visse,
ou melhor, para que, se por acaso fosse visto, com o dia quase amanhecendo,
pensassem que ele estava sozinho no carro” (p. 118).
Apesar da narração em terceira pessoa, não tratamento equivalente
para o personagem feminino e para o masculino. Do homem são retratadas,
predominantemente, as ações dessa espécie de jogo ritualístico. Quando
muito, é possível verificar o caráter de transcendência que esse encontro
possui. No entanto, tal transcendência refere-se à química dos corpos, à
grandiosidade da posse: “[...] olhava sorridente seu pequeno e belo animal
estendido na cama, os cabelos negros derramados no travesseiro” (p. 117).
Como se pode notar, quando o foco narrativo atinge a interioridade do homem,
é para revelar deleites sensoriais e restritos à contingência do quarto: “[...]
tomava um banho quase frio para que o calor o enfumasse o vidro e ele,
durante todo o tempo que estivesse , pudesse ver para sempre aquele corpo
abatido na cama” (p. 117).
da personagem feminina, desejos outros são revelados. Existem
maiores momentos de focalização interna, dos quais se podem avaliar desejos
que escapam dos limites do quarto, julgamentos e angústias. Logo no segundo
parágrafo, o foco narrativo nos revela que aquele modelo de relação não
preenchia as fantasias de realização pessoal da personagem feminina:
O que ela desejava era muito simples: um homem que sai para
trabalhar e de tarde volta suado com um embrulho de pão debaixo do
57
braço; e ela, como se ali fosse um lar, e era, deixaria a mesa posta e ela
própria posta para qualquer que fosse a sua fome (p. 117).
É também a mulher que “Achava injusto aquilo” (p. 119), como também
é dela a angústia da despedida: “E quando o carro parava, ela descia correndo
e não olhava para trás para não vê-lo ir embora na manhã de um novo dia que
não seria deles” (p. 119).
Constatando essa não equivalência entre o tratamento dado, quanto ao
foco narrativo, para as duas personagens, percebe-se que o ponto de vista
norteador da narrativa é o feminino.
O efeito de sentido de certas estratégias discursivas utilizadas, como a
descrição detalhada do momento em detrimento da descrição da vida de
ambos fora daquelas paredes, é a intensificação do sentimento de sujeição
humana ao acaso, aos acontecimentos, à forma como a vida se apresenta.
Não há, como poderia haver, banalização do tipo de relação vivenciada
pelo casal o momento é transcendente, não é reduzido o papel da
sexualidade, sendo assim, o sexo não se figura como faceta degradada do
amor. Ou seja, o conto não apresenta a insatisfação feminina com a condição
de amante como uma conseqüência lógica do tipo de prática vivida. Não a
configuração daquilo que Giddens (1993) aponta como o amour-passion, para
o qual as sociedades construíram mitos nos quais casais são condenados à
danação. Aliás, o amor extraconjugal, neste caso, não tem a força
desestruturadora das normas. Não rompimento com o institucionalizado. A
ordem permanece. Nada do arrebatamento inevitável provocado pelo amour-
passion. Talvez a configuração apresentada seja uma espécie de comprovação
de que a sexualidade transgressora também tem seus espaços e suas normas.
Esse reforçar da impotência humana diante dos fatos vem também da
inexistência de culpados: a personagem masculina não é retratada como
desprovida de caráter, como o ‘aproveitador’. O tratamento dual, típico do
humanismo, fornecido aos seres não se verifica aqui. Não a divisão entre
bons e maus, certos e errados. O homem despe-se do estereótipo redutor do
‘canalha’ entregue a jogos de sedução e a mulher despoja-se da estereotipia
da leviana, vulgar ou da vítima indefesa. Nesse sentido, interessa dizer que
contemplar o caráter múltiplo da natureza humana é característica tanto das
teorias como das artes pós-modernas. Conforme foi dito, é típico do
58
humanismo da modernidade recorrer a pares dicotômicos para cobrir a
realidade de significados. De acordo com Matos (2000), contemporaneamente
os pares opositivos foram substituídos pelo conceito de múltiplo:
Nesse emaranhado de discursos sobre multiplicidade e diferença que
caracteriza a experiência da modernidade tardia, as categorias de
homem/mulher, natureza/cultura, feminino/masculino pouco a pouco
perdem terreno em termos de poder explicativo (p. 55).
Aos pares apontados pela pesquisadora podem ser acrescentados
outros, de relevância para a análise do conto em questão, como corpo/alma,
bom/mau, bem/mal, culpado/inocente. Nesse universo ficcional as coisas
apenas são. E tal possibilidade é construída, também, por meio da presença de
um narrador pouco interventivo, sem ambições de julgamento ou de denúncia.
Dessa forma, talvez se possa pensar que a frustração da mulher adquira ares
de delicadeza que a tornem ainda mais pungente.
Quanto ao retrato do amar, dois são os eixos analíticos selecionados
aqui. O primeiro relaciona esse retrato ao histórico das práticas sociais. O
segundo, às maneiras como a literatura brasileira tem abordado a temática, ou
seja, localiza o conto em um histórico discursivo que possui especificidades
bastante significativas.
Se retirarmos do texto apenas o fato contado, despindo-o da gama
significante que envolve as formas de contar, poderemos avaliar que o conto
apenas reforça práticas sociais de amplo respaldo desde muito tempo.
Teríamos então apenas um homem que possui uma amante. Conforme foi
dito na seção anterior, o padrão duplo, para o gênero masculino, sempre teve
aceitação social. Localiza-se, então, uma ausência de novidade. A sexualidade
casta do casamento (PRIORE, 2005) encontra vazão extraconjugal. No
entanto, esta seria uma visão reducionista do discurso enquanto prática. Seria
despojar a literatura de seus efeitos de sentido mais contundentes.
Várias são as rupturas apresentadas por Piroli. Ainda neste eixo da
análise, é possível pensar em um contraponto aos próprios discursos das
sociologias contemporâneas (apresentados na primeira seção deste trabalho),
quando estas apontam a convencionalidade do amor doméstico como uma
imposição social. Aqui, esse ideário surge como uma demanda interna da
personagem, um desejo despido de pressões sociais. Algo que compõe suas
59
perspectivas de realização pessoal: “O que ela desejava [...]” (p. 117, grifo
nosso).
Dessa forma, é possível verificar a inexistência da idéia de casamento
vinculada à manutenção da posição social ou do patrimônio, tão cara às
estruturas patriarcais. Também não se observa a interferência de valores
morais da cristandade, normalmente atrelados à noção de amor conjugal. O
casamento, a união oficial configura-se como uma fantasia, uma vontade de
enquadramento. Como se a vida organizada em torno dos princípios da família
nuclear burguesa pudesse apagar todas as angústias e solidões com as quais
a personagem sofre.
Além disso, como conseqüência da focalização interna, a perspectiva do
conto é a da personagem feminina. Essa personagem pode ser considerada
como pertencente ao grupo que Hutcheon (1991) nomeia de ex-cêntrico, ou
seja, a situação enfatizada é a da mulher. Não de qualquer mulher. De uma
mulher que ocupa lugar diferenciado, é a amante, a outra, a que está à
margem do institucionalizado, do “centro”. Voltar olhos e ouvidos para esses
grupos, seja em discursos teóricos, seja em discursos artísticos é tendência
pós-moderna:
Mais uma vez, é para a década de 1960 que nos devemos voltar se
quisermos encontrar as raízes dessa mudança, pois foi nesses anos
que ocorreu o registro, na história (Gutman 1981, 554)
17
, de grupos
anteriormente ‘silenciosos’ definidos por diferenças de raça, sexo,
preferências sexuais, identidade étnica, status pátrio e classe. Nas
décadas de 70 e 80 houve o registro cada vez mais rápido e completo
desses mesmos ex-cêntricos no discurso teórico e na prática artística,
pois os andro- (falo-), hetero-, euro- e etnocentrismos foram
intensamente desafiados (HUTCHEON, 1991, p. 89).
O objetivo agora é efetuar a inserção do conto em uma linhagem
discursiva específica, ou seja, o discurso literário. Talvez inserção não seja o
termo adequado, posto que a obra está, por si só, inserida nessa linhagem.
O que se busca é o desvendamento dos efeitos de sentido operados por certas
opções lingüísticas no interior da referida linhagem.
O primeiro ponto é a utilização da analogia entre seres humanos e
animais para a explicitação da relação entre as personagens. O segundo é a
17
O sistema de referência foi mantido de acordo com o padrão utilizado pelo livro citado.
60
utilização de metáforas que alinham concretização de práticas afetivo-sexuais
àquelas referentes à satisfação das necessidades básicas, ou melhor,
fisiológicas do homem. Tais procedimentos estão presentes no texto e,
entende-se aqui, constituem o centro gerador da atmosfera dessa narrativa.
Em “Amanhã é sempre o mesmo dia” a admiração e a ternura do
homem pela sua amante é assim descrita: “[...] olhava sorridente o seu belo e
pequeno animal estendido na cama” (p. 117). O narrador estabelece analogias
dessa ordem durante todo o conto: “E ela vinha com a leveza de um felino [...]”
(p. 118); “[...] e rolavam na cama como dois bichos [...]” (p. 118); “[...] ela
deslizava para o chão, uma gata [...]” (p. 118). O narrador não atribui apenas
ao olhar masculino esse tipo de construção. À afirmação de que tinham de sair,
a mulher responde: eu sei animal, eu sei
18
(p. 118). É também a ela que se
atribui o desejo de possuir um lar no qual “deixaria a mesa posta e ela própria
posta para qualquer que fosse a sua fome” (p. 117).
Diante do levantamento efetuado acima, seria inevitável não remeter tais
procedimentos a uma escola literária específica, ou seja, o Naturalismo
19
.
Conclui-se, portanto, que aqui o resgate de um mecanismo lingüístico
vastamente explorado na literatura brasileira, perceptível nas obras de Aluísio
Azevedo, Adolfo Caminha, Júlio Ribeiro e Inglês de Souza. A questão é
verificar como essas metáforas e analogias configuram cosmovisões díspares
quando se confrontam momentos histórico-estéticos diferentes.
Janaína Fernandes Rebello, em tese de doutorado intitulada A
Multiplicidade de Enfoques sobre o Amor na Narrativa Brasileira (2006), ao
comparar Romantismo e Naturalismo, diz o seguinte:
Durante o Naturalismo é abandonada qualquer visão de cunho
espiritualista em relação ao amor. Se no Romantismo casavam-se
almas, no Naturalismo a fusão material, a posse imediatista. [...] O
sentimentalismo amoroso é substituído, no Naturalismo, pela redução
ao aspecto físico, pela reiteração obsessiva do sexo (p. 69).
Dessa forma, a autora observou que durante o Naturalismo operou-se
uma espécie de desvalorização do sentimento amoroso. O amor surgia como
tema muito mais para evidenciar a natureza degradada do ser humano “e a
18
Grifo do autor.
19
É necessário salientar que o se pretende aqui um estudo aprofundado da escola literária em questão.
Serão apenas abordados alguns pontos relevantes para a análise.
61
sexualidade, da forma como é exercida pelos pares, é mais um indício desta
redução animalizante” (REBELLO, 2006, p. 81). Curioso é que o caminho
lingüístico para a construção de tais significados é justamente, entre outros, a
utilização de metáforas zoomorfizantes, de analogias entre práticas afetivo-
sexuais e necessidades puramente fisiológicas. Ou seja, expressões lexicais
colhidas do plano da animalidade prestavam-se ao objetivo de confirmar a
concepção do ‘homem-besta’ e de reforçar a banalização do amor.
No texto de Wander Piroli os efeitos de sentido são outros. Essas
metáforas e analogias associadas aos outros elementos que compõem a
narrativa fornecem à relação retratada um caráter de transcendência. Na pós-
modernidade, em alguns autores, enfatizar o corpo, o sexo, não possui uma
relação direta com o reducionismo, ou seja, não traz compulsoriamente uma
carga semântica pejorativa.
Contemporaneamente, em certos contextos, representar ligações
humanas utilizando comparações com funções primitivas pode conferir a essas
ligações força e vitalidade. O Naturalismo utilizava tais processos endossando
o cientificismo, o materialismo que, em vez de romper definitivamente com as
dicotomias neoplatônicas, apenas mostrava uma outra face, um mundo que
ainda se explicava por lógicas binárias. Dessa forma, se o Romantismo optava
por mostrar um amor idealizado, com homens e mulheres em constante conflito
entre as vilezas do corpo e as nobrezas da alma, o Naturalismo salta para o
pólo oposto, eliminando a alma, mas retratando o corpo como algo
imanentemente degradado.
Isso posto, chega-se aqui a um primeiro esboço de configuração pós-
modernista do amar. O homem apaziguado com a própria animalidade. Corpo
e alma fundidos para a construção de relações com transcendências e
degradações. A lógica binária substituída pela multiplicidade, ou, neste caso,
pela fusão.
Sendo assim, temos neste conto uma das maneiras por meio da qual a
literatura contemporânea configura o relacionamento amoroso. No texto
selecionado, o termo amor não é mencionado. O campo lexical é voltado para
a ação e não para a reflexão sobre sentimentos. Descrevem-se práticas.
A atmosfera construída pode gerar a sensação de impotência do sujeito
diante dos acasos algo que remete à idéia de sina, de destino. A
62
referida aproximação entre relações afetivas e necessidades humanas básicas,
primárias (ou primitivas?) fornece aspecto de transcendência, portanto, não
carga pejorativa e sim o contrário. No entanto, esse ‘primitivismo’, essa
sujeição das personagens distancia o amar das esferas controláveis por um
sujeito consciente, ‘dono de si’, capaz de decidir se aquela vivência é boa ou
ruim. o rompimento com a racionalidade do sujeito cartesiano. As
personagens têm consciência, mas é consciência da impossibilidade de
controle.
Dessa forma, ao mesmo tempo em que o aspecto ritualístico ou a idéia
de posse fornece às relações algo de místico – maior que a vontade dos
homens, um quase-destino corpóreo retira dessas relações a racionalidade
que o amor confluente (GIDDENS, 1993) demanda. Entretanto, a
indissolubilidade dos vínculos, quando sugerida, não é resultado das políticas
de controle da intimidade; da necessidade estatal de se institucionalizar uniões;
de exigências geradas por convenções sociais. Os amantes se pertencem por
meio da mística fusão com o outro. Pertencimento, aqui, não é sinônimo de
opressão.
Isso não significa alegrias e satisfações plenas. O conto sugere, antes,
que dores e anseios são componentes naturais da existência e, portanto,
inevitáveis.
3.2 L
YGIA
F
AGUNDES
T
ELLES
:
O CORPO INAPTO PARA O AMOR
Por que não me deixaste adormecida
E me indicaste o mar, com que navio
E me deixaste só, com que saída
Por que desceste ao meu porão sombrio?
(Chico Buarque)
O segundo conto selecionado para compor este panorama, intitulado
“Você não acha que esfriou?”, foi publicado em 1995, no volume A Noite
Escura e Mais Eu, de Lygia Fagundes Telles (1923). O conto é narrado em
terceira pessoa, embora o uso freqüente do discurso indireto livre opere uma
espécie de fusão entre narrador e protagonista. Dessa forma, o texto é
construído a partir da ótica de Kori, sendo quase inexistentes as possibilidades
63
de confirmação ou o levantamento de interpretações que ultrapassem tal
posição discursiva.
Bakhtin (2004), em seu Marxismo e Filosofia da Linguagem, publicado
na Rússia em 1929, desenvolve um estudo a respeito das maneiras de citação
do discurso de outrem. A partir das formulações de Gertraud Lerch, o citado
autor nos apresenta a seguinte definição:
As formas dos discursos direto e indireto são condicionadas por um
verbo introdutório (disse, pensou, etc.). Dessa maneira, o autor joga
sobre o herói a responsabilidade daquilo que é dito. Pelo contrário, no
discurso indireto livre, graças à omissão do verbo introdutório, o autor
apresenta a enunciação do herói como se ele mesmo se encarregasse
dela, como se se tratasse de fatos e não simplesmente de pensamentos
e palavras (BAKHTIN, 2004, p. 185).
Neste conto, a utilização do discurso indireto livre é de fundamental
relevância para a constituição da atmosfera e dos efeitos de sentido. No
momento em que as duas vozes (narrador e personagem) exprimem-se
conjuntamente, por meio de uma única construção (BAKHTIN, 2004), a ótica de
Kori adquire contornos de veracidade, como se suas interpretações e
sensações configurassem fatos inquestionáveis. Assim, aquilo que poderia
gerar a sensação, por exemplo, de uma visão distorcida, conseqüência de
problemas de baixa auto-estima, surge com a intensidade de realidade
concreta, respaldando a crueldade e a amargura do relato.
20
O tempo no qual a diegese se estrutura é o breve espaço que cobre o
momento posterior a uma tentativa frustrada de relação sexual. Esse será o
momento em que narrador e protagonista apresentarão a configuração ali
estabelecida e suas implicações.
No decorrer do conto, tal configuração é apresentada nos entrecortes do
diálogo entre o casal, por meio dos pensamentos e de algumas falas de Kori. A
protagonista é uma mulher de 45 anos, casada com um arquiteto chamado
Otávio e mãe de um filho. O encontro descrito é com Armando, amigo do casal,
20
Fábio Lucas, falando de Lygia Fagundes Telles, Autran Dourado e Clarice Lispector, aponta a
utilização desse recurso como responsável por certo tom confidencial que caracterizou a modernização do
conto no Brasil. Segundo o pesquisador, isso se deu por meio do “[...] primado do narrador em primeira
pessoa ou [d]a maestria com que normalizaram o estilo indireto livre, achegando-se a consciência da
personagem, a vivência interior, à percepção do leitor” (1983, p. 127).
64
apaixonado por Otávio. A relação sexual não acontece. Envolvida nessa aura
de frustração, Kori efetua uma série de análises acerca de sua vida íntima.
Este é muito mais um texto sobre o desamor. Antes de nos apresentar a
configuração do triângulo amoroso nascido sob a égide do fracasso, a
construção de uma atmosfera marcada pela angústia, pelo desejo de fuga e
pela confirmação da ausência de saídas. Tal atmosfera é produzida por meio
da refinada lucidez, toda ela permeada de cruel ironia, com a qual o narrador
utiliza tanto a própria voz quanto a de Kori. É avaliando uma característica do
amante que a existência do referido triângulo se confirma: “Mas Armando
estava longe de ser um homem simples: levar para a cama a mulher do amigo
não revelava certa complicação? E um amigo pelo qual ele estava
apaixonado” (TELLES, 1998, p. 37).
a apresentação de um modelo de conjugalidade. Com relação às
práticas sociais, os primeiros pontos de rompimento anunciam-se na gênese
do casamento entre Kori e Otávio, ou seja, em um tempo anterior ao tempo do
fato narrado, portanto, anterior à existência da relação extraconjugal feminina.
A questão patrimonial determinou a ligação do casal. Entretanto, não
aqui indícios da ação do poder patriarcal. Não é viável a afirmação de que o
casamento entre Kori e Otávio foi, antes, uma ligação entre ascendências e por
isso não comportava o amor, como ocorria antes do surgimento da ideologia do
amor conjugal.
Kori detém o patrimônio e o utiliza para comprar o sentimento do qual
não se julga merecedora. É uma espécie de negócio nos moldes capitalistas,
no qual o que é silenciosamente vendido não é algo palpável. A consciência a
respeito desse acordo não surgiu na mulher de 45 anos que se surpreende
com o fracasso de seu casamento. Kori sempre soube e agiu como sujeito
determinante de seu destino, conforme se observa na seguinte passagem:
Ah! mamãe, então eu não sei? Otávio não me ama nem pode me amar,
ele é tão ambicioso, quer fazer sucesso, quer fazer filhos e olha para
isto, olha! pediu abrindo as pernas e apontando para a pequena fenda
descorada (p. 45).
Quando a mulher de 45 anos fala para Armando sobre o próprio
casamento, é com a lucidez calculista de um comerciante:
65
--Acho que podemos falar francamente. Ou não? Você sabe, o nosso
casamento foi pura conveniência, eu me apaixonei perdidamente.
Perdidamente. E o amado Otávio queria apenas fazer um bom negócio
e fez, você sabe bem, com o tempo as coisas foram entrando em seus
lugares, se a querida mãezinha fosse viva ela diria que foi um
casamento muito especial, ele precisava de dinheiro. Eu precisava de
amor. Ele tem todo o dinheiro que quis ter, paguei caro, concordo, mas
a gente não tem mesmo que pagar pelas emoções? (p. 47)
Apesar do tom irônico e da frieza presente na fala da protagonista, não
podemos afirmar que ela não veja ligação entre amor e casamento. Kori estava
apaixonada: “eu me apaixonei perdidamente”. A questão não é um casamento
por conveniência ocorrido porque casamentos são naturalmente assim. Kori
acredita na existência do amor. Ela não pode é acreditar-se como objeto de
amor. A posição ocupada pela personagem é sempre de sujeito amante.
Logo no início do texto há a seguinte passagem:
Acho que não passo de uma romântica meio sebosa.
--Os românticos são sebosos.
--O que foi, querida? O som não está alto?
Ela cobriu o seio que se descobriu ao estender o braço.
--Eu disse que às vezes fico romântica e imagina se lugar para
romantismo nesta viragem do século (p. 36).
Em um primeiro momento pode-se pensar que a personagem credita à
contemporaneidade a ausência de amor em suas relações. É possível supor
que seu ideário norteie-se pela noção de amor romântico, pois na passagem
acima a expressão é usada como sinônimo de amor, e que para tal sentimento
não lugar no mundo contemporâneo. Seria, então, um puro caso de
anacronismo. Uma espécie de mulher cuja intimidade constitui-se a partir de
valores de outro momento histórico.
Entretanto, tal hipótese não se sustenta no delinear do conto. A lucidez e
a frieza de Kori parecem, muito mais, maneiras de mascarar uma inadequação
ainda mais dolorosa. A tentativa de compra de um amor justifica-se por ela
acreditar ser esta a única alternativa. Kori não pode ser amada, nem mesmo
desejada. Este ´não poder` está marcado em sua carne, em sua compleição
física. São várias as passagens que comprovam a imagem que a mulher tem
de si mesma: “[...] retardava o instante de mostrar os seios que lembravam dois
ovos fritos. Frios” (p. 40). Qualquer movimento no sentido de acreditar na
66
possibilidade de ser amada é tratado como uma constrangedora ilusão: “Até
eu, este cocô de mulher, me apaixonar perdidamente por esta beleza de
homem” (p. 42).
A inaptidão para o amor não é conseqüência de um corpo marcado pelo
envelhecimento, não tem relação com a perda de viço provocada pelo tempo.
No dia do casamento com Otávio, ainda muito jovem, Kori tem uma crise de
choro que é assim descrita:
Especial, ela repetiu, chegando a boca até a superfície da água,
aspirando o vapor enquanto olhava para os seus pequenos seios
recolhidos, murchos. O sexo de uma menina desvalida, os pêlos
escassos bordejando a fenda entre as pernas finas como fios de
macarrão meio entortados, amolecidos na água morna (p. 44).
Tal constituição corpórea é considerada uma espécie de marca ancestral
determinante, como se desde tempos imemoriais a personagem estivesse
fadada ao desamor: “Minha avó era feia, todas as mulheres da minha família
são feias” (p. 42). Logo depois, Kori acrescenta “Feias e ricas” (p. 42),
apontando para a natureza também ancestral da prática de contrair matrimônio
via posição social.
Conforme foi dito na primeira parte deste trabalho, uma das funções
do modelo de casamento cunhado pela sociedade burguesa seria aquela de
domesticar os afetos (PRIORE, 2005), de normatizar a sexualidade
(FOUCAULT, 1998). O casamento seria o espaço para uma vivência afetiva
que não ameaçasse a ordem necessária ao bom funcionamento daquele
modelo de organização social.
Curiosamente, a personagem nos apresenta um casamento esvaziado
de emoções, amparado por uma estrutura que apenas garante a manutenção
de um modelo. Até mesmo o contato sexual esteve reduzido, quase
exclusivamente, a fins reprodutivos: “[...] desde o nascimento do Júnior não
temos mais as chamadas relações sexuais. Resolvemos assim,
tranqüilamente” (p. 47).
O aspecto de relação conveniente é mantido ainda que Kori saiba do
caso extraconjugal de Otávio, no qual a amante está grávida e paixão. Ela
diz para Armando: “Mas não se preocupe, querido, vamos passar por essa
crise sem a menor mudança, fica calmo, vamos continuar igual. Otávio, você
67
sabe, gosta de dinheiro e eu gosto da companhia dele, a gente se entende” (p.
48).
Entretanto, tal configuração não foi produzida pela espécie de laço
existente entre Otávio e Kori. Ou seja, não é a instituição familiar que elimina
da vida dessa mulher a possibilidade de fervor sexual. Isso desde sempre
esteve marcado em seu corpo. Tanto que a liberdade para estabelecer um
vínculo extraconjugal não é suficiente para que ela se torne desejável.
Sendo assim, a relação com Armando também não se consuma. Ao
argumento de que sendo Armando homossexual, este não poderia desejá-la,
Kori nos apresenta a seguinte justificativa: “E se eu fosse um homem? Ele ia se
apaixonar por mim? Não ia não, em homem eu seria o mesmo desastre” (p.
42).
Observa-se, dessa forma, a existência de uma configuração social outra
e de significados outros para instituições tradicionais. O padrão duplo é uma
possibilidade para a mulher sem que isso implique em sanções sociais como
destituição da herança; perda da guarda dos filhos; condenação a nichos de
baixo status social. Durante a modernidade, especificamente durante o período
de prevalência do ideário do amor romântico, “o confinamento da sexualidade
feminina ao casamento era importante como um símbolo da ´mulher
respeitável´” (GIDDENS, 1993, p. 58).
A homossexualidade de Armando, ainda que esta não seja declarada,
não é apontada pela protagonista como algo a ser problematizado, como uma
razão para que ele fosse impossibilitado de transitar por ambientes não
marginalizados.
O casamento antes de conter os exageros e transbordamentos de uma
afetividade transgressora presta-se ao papel de mascarar a inaptidão de Kori
para o amor. É na instituição familiar que ela encontra maneiras de não
publicizar a própria solidão.
É necessário dizer, ainda, que o conto em questão nos traz a visão que
a protagonista tem de si mesma. Por meio do discurso indireto livre, a voz do
narrador é também a voz de Kori. Não há como saber se tal inaptidão é
conseqüência de uma imagem exageradamente negativa de si mesma ou se
tal imagem encontra eco no ambiente em que a personagem transita. De
qualquer forma, a referida visão de si mesma surge por meio de um processo
68
de desnudamento da personagem. O desnudamento físico de Kori, diante de
Armando, é acompanhado do desnudamento de processos emocionais diante
do leitor. Conforme já foi dito, tal ambivalência acentua o tom de inevitabilidade,
de ausência de saídas, ou seja, a naturalização da inaptidão de Kori. Torna-
se “natural” que ela não possa ser objeto de amor.
A outra perspectiva analítica considerada viável é aquela que insere o
conto de Lygia Fagundes Telles na referida linhagem discursiva literária, ou
seja, nos modos de se representar literariamente o amar. Há, neste conto, a
permanência de algumas temáticas, contingentes das relações afetivas, que
foram preocupações de outros momentos literários.
O tratamento da temática amorosa, durante o Romantismo, organizou-
se, em alguns momentos, em torno do combate a uma das formas de
manifestação do patriarcado
21
, ou seja, o casamento por interesse. Segundo
Coutinho (2002, p. 302):
O patriarcalismo da sociedade brasileira do século passado regulava a
constituição da família e legitimava a intervenção discricionária dos pais
no casamento dos filhos, para a defesa da família e da sociedade, os
casamentos tinham de ser ditados não pelo amor, mas pelos interesses
familiares e sociais; a mulher deveria desposar aquele que lhe
indicassem os pais, pois sua posição na sociedade lhe exigia o papel de
guardar e transmitir riqueza, através do casamento de conveniência.
Contra essa moral burguesa é que lutam os românticos, heróis e
heroínas, defendendo os direitos do sentimento e do coração.
22
foi dito, em outro momento desta análise, que, no caso deste conto,
questão do patrimônio, mas não a intervenção paterna na decisão da
filha. No entanto, surge o casamento ´por interesse` que funcionava, nas
narrativas românticas, como uma espécie de violento obstáculo à realização
plena do amor. Observa-se aqui que a abordagem contemporânea é outra. Se
o casamento ´por interesse` aparece: “[...] o nosso casamento foi pura
conveniência [...]” (p. 47); interesse financeiro e afetivo podem ainda que
de forma irônica serem colocados em um mesmo patamar: “[...] ele precisava
de dinheiro [...]. Eu precisava de amor” (p. 47).
21
Ainda que o ideário de amor romântico contemple um modelo de estabelecimento de vínculo
fundamentado em valores patriarcais e falocêntricos. Aliás, o amor romântico depende de uma
organização sexista da vida íntima.
22
Exemplos disso são, entre outros, Inocência de Taunay e Senhora de Alencar.
69
O problema revelado nos meandros do textos é de outra ordem. Apesar
do contrato entre Kori e Otávio parecer justo, o amor não é apresentado como
algo comprável. O jogo não foi tão limpo assim. Kori não teve o amor do qual
precisava. O texto não nos mostra uma representação da qual se possa
depreender que o sentimento amoroso, incluindo nele o desejo sexual, seja
algo que se possa adquirir por meio de contratos financeiros. O obstáculo é o
desamor.
Se compararmos Otávio a um personagem de José de Alencar,
notaremos também uma outra gama de valores morais presentes neste conto.
O personagem é Fernando Seixas de Senhora. Assim como Otávio, Seixas é
um indivíduo movido pela ambição. Entretanto, tal ambição desempenha
papéis muito diversos nessas narrativas. Na obra de Alencar, a ambição é uma
falha de caráter a ser corrigida por um sentimento sublime, quase sagrado: o
amor. Neste conto, o amor não tem aquela característica, usual nas suas
versões românticas, de “[...] retificador de condutas [...]” (ALENCAR, 2002, p.
262).
A ambição de Otávio desempenha função outra na narrativa, não sendo,
necessariamente, algo a ser redimido. É a ambição do marido que confere
segurança à esposa. A estabilidade do modelo conjugal ambicionado por Kori –
como o único do qual é merecedora depende, fundamentalmente, da
natureza ambiciosa de Otávio: “Otávio, você sabe, gosta muito de dinheiro e eu
gosto da companhia dele [...]” (p. 48). Saber desse traço da personalidade de
Otávio, conforta Kori. Fornece a certeza da indissolubilidade do vínculo. O
dinheiro pode não ser suficiente para a obtenção do amor, mas é para a
manutenção do vínculo, ainda que exista uma amante, ainda que ela esteja
grávida, ainda que ele a ame. O amor não redime. Nem o amor de Kori por
Otávio, nem o de Otávio pela outra.
Existe, também, neste conto, a constituição de uma imagem feminina.
Tal imagem está diretamente ligada ao tratamento do tema amoroso, pois a
personagem constrói, por meio dessa imagem, a justificativa para a frustração
afetiva que permeia suas relações. Considera-se possível estabelecer um
diálogo entre a imagem de mulher que Kori nos apresenta e os valores nela
contido e as imagens e valores contidos, grosso modo, em manifestações
românticas e naturalistas.
70
Sabe-se que o período histórico que comporta o Romantismo é
fundamentado no dualismo entre corpo e alma. se disse que a visão
romântica de amor, expressa nas obras do referido período, valorizava o amor
sublime, enobrecido por sua distância com relação às vilezas da matéria
corpórea.
Dessa forma, a mulher enaltecida, em geral, em obras românticas,
possui uma imagem distanciada da opulência sexual. Notam-se moças miúdas,
pálidas, frágeis, como é de se esperar de parceiras para relações etéreas, que
transcendem a vida mundana: “[...] as heroínas são moças castíssimas, virgens
que nem sequer intentam o contato carnal com os amados(REBELLO, 2006,
p. 52). Ainda de acordo com Rebello, “Não é incomum, no Romantismo, a
exclusão da relação física no amor cultuam-se amores puros e idealizados, e
a sexualidade é, não raro, a parte ´suja` das relações amorosas” (2006, p. 37).
no período que comporta as obras naturalistas, uma outra imagem
feminina é apresentada. Surge uma espécie de “outro lado da moeda”. A
mulher extremamente sensualizada, portadora de formas opulentas é retratada
com o objetivo de evidenciar a degradação humana, a proximidade do ser
humano com as baixezas da matéria, da animalidade. De acordo com Lúcia
Miguel Pereira:
E o sexo, que dantes fora banido das narrativas, entrou a ocupar uma
posição exagerada, refletindo talvez uma mudança de ponto de vista em
relação às mulheres. O determinismo biológico então em voga e as
lições de Charcot sobre a histeria transformaram, efetivamente, em
fêmeas os antigos anjos
(1988, p. 30).
Retornando ao nosso objeto de análise, o que torna Kori inapta (partindo
do ponto de vista apresentado pela personagem e endossado pelo narrador)
para o amor é, justamente, seu corpo. E como é esse corpo? Não seria o
mesmo corpo distanciado da fêmea, cultuado na literatura romântica?
Há, no conto, uma associação entre magreza, feiúra e incapacidade
reprodutiva. A palidez das heroínas românticas se traduz agora em doença
(Kori fala de si como tendo sido uma “criança anêmica”), ausência de
vitalidade. Isso se evidencia no trecho em que a personagem diz da decepção
do pai diante do filho: “A débil criança de sangue aguado que o pai recebera
71
com aquele ar aborrecido com que recebia uma construção que não deu certo,
era arquiteto. Nenhuma inspiração, diria a avó da harpa” (p. 43).
Associa-se magreza à falta de feminilidade e à incapacidade de produzir
filhos saudáveis. O estereótipo que surge, de maneira subliminar, valorizado é
o da fêmea, da reprodutora. Sendo assim, uma das contemporâneas maneiras
de se representar o amor é vinculando uma multiplicidade de aspectos antes
apartados uns dos outros. Casamento bem realizado contempla fervor sexual e
aspectos reprodutivos. A mulher é também mea e isso não é degradação.
Pelo contrário, a desgraça de Kori é não ser suficientemente fêmea (ou não se
julgar ser) para despertar desejo. Se não desperta desejo, o pode ser objeto
de amor. Novamente, amor e atração física não são pares binários.
3.3 M
ÁRCIA
D
ENSER
:
LIBERDADE SEXUAL E SOLIDÃO
Vê se ao menos me engole
Não me mastigue assim
Canibais de nós mesmos
Antes que a terra nos coma
Cem gramas,sem dramas
Por que a gente é assim?
(Frejat/Cazuza)
O próximo conto a ser analisado é de Márcia Denser (1952), intitulado
“O Animal dos Motéis”, publicado em volume de mesmo nome, no ano de 1981.
A presença deste texto justifica-se, principalmente, pela apresentação de um
aspecto bastante interessante das práticas afetivo-sexuais na pós-
modernidade, ou seja, aquilo que Giddens (1993) chama de sexo episódico. A
proposta de análise é refletir acerca de tal prática, levando em consideração
suas relações com o estabelecimento do vínculo amoroso e, evidentemente,
buscar os efeitos de sentidos propostos pelo texto literário.
“O Animal dos Motéis” (2005) tem, como é recorrente na literatura pós-
modernista, foco narrativo fluido. O conto é iniciado em primeira pessoa:
“Deitamos ouvindo Roberto Carlos, a voz dos motéis [...]” (p. 93). Depois
terceira pessoa: “Apoiada nos cotovelos, a cabeça dela surge no horizonte do
espelho” (p. 94). E a utilização do discurso indireto livre: “O dedo contorna os
72
lábios dela: vai me calar, me silenciar com esse beijo, entupir-me com essa
língua” (p. 99). Apesar da ocorrência de algumas focalizações internas do
personagem masculino: “Afagava-lhe o rosto, os cabelos hesitando, ganhando
tempo, com medo de falar” (p. 99); o conto é todo conduzido pela ótica
feminina.
A sexualidade episódica, de acordo com Giddens, fundamenta-se “na
busca de parceiros sexuais transitórios [...]”, ou seja, são “ligações de curto
prazo, despersonalizadas” (1993, p. 160), podendo ser chamado de “sexo
episódico impessoal” (1993, p.163). Retomando o conto, a atmosfera de
impessoalidade se constrói no primeiro parágrafo: “Porque sexo é isso
mesmo. Essa gana de rastejar com Roberto, no coito dos motéis” (p. 93). A
única menção mais pessoal é a música de Roberto Carlos. Não referência a
um parceiro, a um tipo de prática, nem mesmo a preferências sexuais,
estereótipos, biotipos, etc.
A seqüência é uma descrição minuciosa do motel. No entanto, a minúcia
funciona para evidenciar a ausência de singularidade e não o contrário:
[...] as toalhas embaladas em sacos plásticos, os lençóis castanhos com
ramagens duvidosas entre encardido e vestígios de cor, os três
espelhos redondos montados em curvim (um em frente ao outro, no
meio da cama, o terceiro no teto, sobre a cama)
(p. 93).
Finalmente a caracterização do espaço como genérico se confirma: “[...]
todos os motéis são sempre o mesmo motel” (p. 94).
Não a alegria que poderia ser provocada pela química dos corpos.
Não o culto à liberdade conquistada, ou seja, à liberdade sexual feminina.
As formas de vida proporcionadas pela contemporaneidade surgem
dilacerantes, dolorosas, redutoras. A própria maneira de se organizar os
espelhos nos motéis guarda uma intencionalidade que aponta para a redução
do sujeito a pedaços de carne:
[...] claro que para nos transformar numa espécie de confuso coquetel
de siris assados: pernas, braços, carnes vivas, canteiros de patas,
antenas, pêlos moventes, espiando de esguelha uma outra hidra em
perspectiva no espelho da frente, de trás, de cima, de baixo,
devassados, misturados, confundidos [...] (p. 94)
73
Observe-se que a referida redução não é algo provocado pelo homem.
Dessa forma, não se pode afirmar que haja uma questão como a opressão
masculina, a atrofia gerada por modelos de conjugalidade pautados por
diferenças hierarquizantes de gênero. Os dois indivíduos estão vitimados pelo
mesmo processo: “claro que para nos transformar [...]”
23
(p. 94). Novamente, o
outro transformado pelos espelhos do motel não é alguém com especificidades.
É qualquer homem. o são apresentadas características que o singularizem,
nem mesmo fisicamente.
Ainda a respeito do trecho acima reproduzido, considera-se interessante
estabelecer um diálogo com o conto “Amanhã é sempre o mesmo dia” (1984),
de Wander Piroli. A imagem humana refletida pelo jogo de espelhos do motel é
transformada em linguagem, no conto de Márcia Denser, por meio de um
campo semântico sugestivo: “siris assados”; “patas”; “antenas”; “pêlos”, ou
seja, retomam-se as metáforas zoomorfizantes. Entretanto, ao contrário do que
faz Piroli, tais metáforas aqui são, como eram no período naturalista,
carregadas de significados degradantes. que na narrativa pós-modernista a
animalização e a fragmentação do corpo humano “pernas”; “braços”; “carnes
vivas” reforçam os significados de reificação, de uma espécie de
massificação que nos torna a todos fragmentados e anônimos, ou seja, são
tributados a transformações sociais e não explicados por meio de
determinismos cientificistas.
Sabe-se que o referido conto compõe um livro no qual todos os contos,
apesar de serem independentes, têm como protagonista Diana, uma intelectual
liberada dos padrões comportamentais impostos às mulheres. Sabe-se, ainda,
que todos os textos apresentam uma espécie de crítica à mecanização das
relações, resultante do apogeu das formas capitalistas de organização social.
Segundo Lucas (1983, p. 131),
Os episódios-contos têm o motel como signo típico, pois designa um
ponto de encontro para relações efêmeras, em que duas solidões se
superpõem. Naquele ambiente é que se evidencia a glória e o calvário
de Diana [...]. Proliferam ali objetos e utensílios de gosto duvidoso,
espelhos, luzes indiretas, toalhas e sabonetes plastificados, som,
interfone, TV, enfim, uma parafernália de luxo, que não aproxima as
pessoas, antes as afasta, sublinhando a vacuidade e o mercantilismo de
tudo aquilo.
23
Grifo nosso.
74
No decorrer do conto, a confirmação de que aquele encontro é
mesmo o que se chama de sexo episódico. Essa confirmação é possível por
meio de alguns diálogos estabelecidos entre o casal. Não há vínculo entre eles.
É o personagem masculino quem diz: “--Você está precisando de um homem”
(p. 97). É também ele quem diz coisas típicas entre pessoas que acabaram de
se conhecer: “Garota engraçada, você” (p. 98); “Bebe sempre vodca pura?”(p.
99).
A própria descrição do ato sexual em si, que poderia resultar na
explicitação da intimidade máxima vivida entre um casal, é feita de maneira
impessoal, genérica, por meio de verbos no infinitivo e de plurais:
[...] o ato irrefletido de cuspir, separar as coxas e tomar a primeira
estocada, recuar, avançar, senti-lo rígido como um cilindro de aço vivo e
então capturá-lo de leve, uns cinco centímetros, não mais, e sugá-lo
para dentro, frente a frente, de cócoras, como crianças brincando com
bolinhas de gude, hipnotizadas pelo movimento das bolinhas que rolam,
evoluem, param, prosseguem, o entrechoque das bolinhas líquidas,
nova fisgada, novo recuo de quadris, as bocas navegando nas bocas,
no rio das bocas [...] (p. 100).
O olhar do narrador funciona como um tipo de zoom usual em filmes
pornográficos. Em nenhum momento são apontadas características dos
sujeitos. A prática descrita é mecânica. Não a denúncia da intimidade, a
descrição de uma engrenagem em funcionamento. Engrenagem que funciona
independente das especificidades do operador.
Ainda de acordo com Giddens (1993), a sexualidade episódica é prática
antiga entre o gênero masculino, estando vinculada ao amparo social do qual o
padrão duplo sempre desfrutou. Contemporaneamente, é também recurso
utilizado pelas mulheres. Entretanto, a referida prática costuma surgir
associada a uma recusa ou incapacidade de estabelecimento de vínculos mais
íntimos e duradouros, como também ao vício e à compulsão problemas aos
quais tanto homens quanto mulheres estão sujeitos.
Dessa forma, o sexo impessoal praticado por sujeitos não mais
respaldados pela ética do padrão duplo pode ser uma forma de vida que
impossibilite o estabelecimento do relacionamento puro, por não condizer com
a necessidade de confiança e negociação que ele demanda: “No
relacionamento puro, a confiança não tem apoios externos e tem de ser
75
desenvolvida tendo-se como base a intimidade” (1993, p. 153). Sendo assim,
assumir essa prática como uma maneira de organizar a vivência afetiva pode
ser considerada uma maneira de evitar o contato íntimo com o outro, por mais
contraditório que isso possa parecer.
É preciso salientar, também, que tais considerações não constituem uma
regra. O próprio Giddens (1993) pensa na liberdade para a sexualidade
impessoal como algo portador de pontos positivos. Segundo o autor, nem
sempre tais encontros representam “estratagemas de controle ou um vício
[...]” (p. 162), podendo resultar em maneiras enriquecedoras de vivência do
cotidiano:
Por sua própria natureza, ela permite o poder sob a forma da própria
prática sexual: o único determinante é o gosto sexual. Este certamente
faz parte do prazer e da realização que a sexualidade episódica pode
proporcionar, quando despojada de suas características compulsivas
(1993, p. 162).
Dessa forma, o autor conclui que “[...] não está totalmente claro que a
sexualidade episódica seja inerentemente incompatível com as normas
emergentes do relacionamento puro” (p. 163).
Partindo da definição de sexualidade episódica e do pressuposto de que
é esta a configuração de prática afetiva apresentada pelo conto, a questão
agora serefletir acerca dos significados que tal configuração pode assumir
nesse texto.
A crise apresentada pela personagem principal mantém relação direta
com o modelo de relação afetiva estabelecido. É possível supor que esteja ali
proposta uma espécie de crise ligada às expectativas de realização pessoal, ou
àquilo que Giddens (1993) nomeia de “projeto reflexivo do eu” (p. 90).
O sexo episódico não aparece como uma opção por um estilo de vida,
ainda que tal estilo fosse estigmatizado. Aparece, antes, como uma fatalidade,
como algo do qual não se pode fugir, a não ser na solidão e uma solidão
também marcada por angústias:
É como uma sina, ela pensa, contemplar esta cabeça com fria ternura
ou recorrer mais para trás, para uma piedade distante detonada pelo
álcool, pela solidão, aquele sanduíche cinzento de noites de leitura e
insônia e cigarros, como uma única noite boreal, amanhecer e
crepúsculo, luz intermediária e intermitência de néon, de café, de
76
galeria, de esperar sem mais esperar, suplicar, implorar por aquilo que
sequer tem nome [...]. É como uma sina (p. 94).
A utilização da palavra ´sina` nos remete à idéia de vício, ou seja, de
“comportamento contraposto à escolha” (GIDDENS, 1993, p. 90), pois,
conforme foi dito, o sexo episódico tem grande tendência a apresentar laços
com a compulsão: “A compulsividade no comportamento sexual, assim como
em outras áreas, é o embotamento da autonomia” (1993, p. 91).
Não há neste conto a constituição da idéia de destino como algo
transcendental. A sina é, antes, a repetição de algo incontrolável e altamente
nocivo, como se a personagem estivesse assujeitada pelo próprio desejo: “[...]
porque esses encontros são acidentes vertiginosos cujo resultado é o titã de
mil olhos [...]” (p. 99). O desejo dessa mulher é uma relação duradoura, é amor.
Ela obtém prazer dessas relações sexuais. está a crítica. O prazer, ainda
que intenso, será sempre pouco. Não é suficiente para suprir a necessidade de
construção de relacionamentos sólidos. Sendo assim, conclui-se que há a
possibilidade de sexo pleno, independente de nculos afetivos, mesmo para
mulheres. Mas essa prática, de acordo com o texto, é dilacerante:
[...] sinto-os aqui dentro, cegos, surdos, solitariamente, me tocando até
a loucura, me penetrando até a loucura. Certo, o prazer também é meu,
mas duplamente solitário, uma tarefa que cumprimos tão
distraidamente, tão alheiamente como um violino que se tocasse a si
próprio num dormitório de quartel, tarefa da qual poderia, deveria,
nascer amor e música, no entanto... (p. 97).
24
Sendo assim, a representação da vivência afetivo-sexual norteada pelo
que se chama de sexualidade episódica, adquire contornos negativos,
vinculados à compulsão e ao vício. É preciso atentar para o fato de que
novamente a literatura centraliza o foco em um sujeito “ex-cêntrico”
(HUCTHEON, 1991). A personagem principal é uma mulher. Além disso,
mantém uma prática considerada transgressora. A sexualidade episódica é
considerada tendência masculina e para tanto o aval social. Não marca
textual de que a personagem sofra sanções sociais referentes ao gênero. No
entanto, evidencia-se a constituição de um personagem que rompe com certas
estereotipias de gênero (além da prática sexual em si).
24
Grifo nosso.
77
Em um primeiro momento, diante de uma mulher aparentemente
intelectualizada (cita Hemingway e Cortázar), a postura do homem remete ao
clichê da figura masculina interessada “apenas” em sexo, alheio às angústias
da companheira e enfastiado diante de sua fala. Depois surge outro clichê. É
ele quem diz: “
Você complica tudo” (p. 97).
Há ainda a vinculação entre complicação e romance:
--Por você mesma. Imagina que eu sou um idiota. Sei o que está
pensando. Essa história de toureiros fodidos e do tal Hemingway. Muito
complicado, não acha?
--Então nada de romance?
--As mulheres não mudam...
--Nem os homens. É bobagem (p. 97).
De acordo com Howard Bloch (1995), a figura feminina tem sido
apresentada como verborrágica e provocadora de problemas desde a Idade
Média, sendo curioso verificar como estruturas discursivas muito antigas
possuem capacidade de permanecer e se adequar a outras configurações
sociais:
A noção de que a mulher é, por natureza, mais faladora do que o
homem é certamente uma das matérias-primas do preconceito
antifeminista. [...] E antes que se pense que tal linguagem abusiva sobre
a mulher como abuso verbal está restrita à Idade Média, basta correr os
olhos pelos textos subseqüentes para se ver que nem a associação da
mulher com a verbosidade nem os termos específicos do lugar-comum
mudaram muito. O topos da mulher tagarela é um aspecto persistente
no antifeminismo Ocidental. [...] A qualidade da mulher de provocar
confusão liga-se, na concepção medieval do problema, à do discurso
(BLOCH, 1995, p. 27).
Há, portanto, o reforço a um clichê do senso comum. Na ótica do
personagem masculino a insatisfação feminina surge como um exagero típico
do gênero ao qual ela pertence. O outro clichê reforçado refere-se à
insinuação, presente no texto, de que homens objetivam sexo e mulheres,
amor. A ruptura é que a mulher surge como alguém que também quer e tem
prazer, não sendo marginalizada em função disso, mesmo sem o respaldo
institucional do casamento. A problematização é mesmo o caráter vicioso do
tipo de prática descrito e a impossibilidade dessa prática resultar em vínculo
minimamente duradouro. É o próprio homem quem diz: “O que quer? É bom
78
pra mim, bom pra você (p. 98). O fato é que este ´bom` é considerado pouco e
frustrante, ou seja, a liberdade conquistada não resulta em satisfação.
A imagem de mulher construída pelo texto remete a rompimentos
comportamentais que ultrapassam as práticas sexuais. Isso é evidenciado no
momento em que a mulher opta por vodca na hora de pedir a bebida. O
estranhamento do homem é imediato. Ele chega a ter receio de perguntar.
Quando a pergunta é formulada, fica claro o quanto os hábitos dessa mulher
são, de certa maneira, considerados inadequados para o gênero ao qual
pertence:
--Bebe sempre vodca pura?
As bandejas passeiam no pátio repletas de coquetéis de frutas, martínis
doces...
--O que há de errado?
--Para as garotas boazinhas.
--E você? Não é? (p. 99)
É preciso pensar que estilo de vida é algo que, segundo Giddens (1993, p. 86),
adquiriu significados mais densos contemporaneamente:
Quando grandes áreas da vida de uma pessoa não são mais compostas
por padrões e hábitos preexistentes, o indivíduo é continuamente
obrigado a negociar opções de estilo de vida. Além disso e isto é
crucial –, tais escolhas não são apenas aspectos ´externos` ou
marginais das atitudes do indivíduo, mas definem quem o indivíduo ´é`.
Em outras palavras, as escolhas de estilo de vida constituem a narrativa
reflexiva do eu.
Partindo da citação acima, é preciso dizer que não há, necessariamente,
a atribuição da impossibilidade do vínculo duradouro ao estilo de vida de Diana.
Entretanto, é viável arriscar a interpretação de que as escolhas dessa mulher
impliquem em tal impossibilidade. Ela não é uma “garota boazinha”, ou seja,
está apartada do comportamento convencional. Assumir uma prática
considerada típica do comportamento masculino, como a sexualidade
episódica, pode inscrever a personagem em um terreno movediço. A questão é
identitária. A mulher não se forja a partir de estereótipos, mas também o
consegue encontrar um perfil que lhe seja satisfatório.
O rompimento com a estereotipia parece sugerir uma crise. O modelo
anterior é negado, mas ainda não se encontrou outras formas de constituição.
Isso remete aos problemas conseqüentes das mudanças profundas ocorridas
79
no papel social feminino e da impossibilidade, para certos indivíduos, de
construir relações partindo de modelos questionados por tal mudança.
Segundo Julia Kristeva:
Nós perdemos a força e a relativa segurança que os velhos códigos
morais emprestavam a nossos amores, interditando-os ou fixando seus
limites. Transferimos o amor para a categoria do inconfessável, em
benefício do prazer, do desejo, quando não da revolução, da evolução,
da organização, da gestão, portanto em proveito da Política. Antes de
descobrirmos sob os escombros dessas construções ideológicas, porém
ambiciosas, quase sempre exorbitantes, às vezes generosas, que elas
eram tentativas desmedidas ou tímidas de matar uma sede de amor.
Reconhecê-lo não é recuar modestamente, mas talvez confessar uma
pretensão grandiosa (1988, p. 25).
A configuração apresentada pelo conto de Márcia Denser também, como
o de Lygia Fagundes Telles, transita pelo desamor, pela impossibilidade de
realização amorosa. No caso do texto em questão, tal impossibilidade deriva
muito mais de transformações sociais do que de alguma característica
essencial da personagem. A impressão é que as mudanças propiciadas pela
emancipação feminina geraram uma situação problemática. a liberdade,
mas não vínculo, não amor: “Como se fosse possível o amor, como se
fosse muito fácil, muito simples. Possível. Fácil. Simples” (p. 96).
3.4 S
ÉRGIO
S
ANT
´A
NNA
:
IDENTIDADES TRANSGRESSORAS
Rapte-me camaleoa, adapte-me a uma cama boa
Capte-me uma mensagem à toa
De um quasar pulsando loa, interstelar canoa
Leitos perfeitos, seus peitos direitos me olham assim
Rapte-me, adapte-me, capte-me, it’s up to me, coração
(Caetano Veloso)
O conto “Estranhos” de Sérgio Sant´Anna (1941) foi publicado em 1997,
na antologia Contos e Novelas Reunidos, pela Companhia das Letras. Narrada
em primeira pessoa, a história contada é a de um homem que durante uma
visita a um apartamento disponível para locação, depara-se com uma
desconhecida também interessada em conhecer o imóvel. No momento mesmo
dessa visita uma relação sexual entre eles. Esse envolvimento sexual se
decisivo na vida do narrador.
80
O personagem-narrador inicia o texto descrevendo a desconhecida. O
efeito de sentido depreendido dessa descrição é a configuração inicial e
portanto ainda mais relevante de um perfil feminino que subverte as
estereotipias identitárias de gênero. Curioso é que diferentemente do conto de
Lygia Fagundes Telles, no qual a utilização do discurso indireto livre sustenta a
dubiedade entre aquilo que Kori pensa a respeito de si e aquilo que é real, aqui
o recurso e o efeito são outros. A imagem de mulher que ele retrata talvez não
seja algo perceptível apenas pelo estilo de roupa, talvez dependa também de
traços comportamentais. Provavelmente, ambos os aspectos sejam
complementares. No entanto, o personagem assume tais possibilidades por
meio de um texto que se pretende relato e se permite, em alguns momentos,
metalingüístico: “Ou talvez eu tenha pensado essas coisas todas depois,
tornando-me capaz de escrever sobre elas desse modo” (SANT´ANNA, 2000,
p. 529).
Quanto à idéia do perfil construído, a mulher apresenta, na visão do
narrador, aspecto tenso: “Notei que ela estava nervosa, pelo modo como dava
tragadas seguidas no cigarro, amassava com a mão fortemente cerrada o
caderno de classificados de um jornal [...]” (p. 529). O fato de ela fumar já pode
ser considerado um traço de personalidade menos convencional, ou menos
afeito a normas. Clarice, a noiva do narrador, surge no conto como sinônimo de
estabilidade, de possibilidade de relacionamento construído nos moldes do
amor conjugal. Ao contar que é um ex-fumante, o personagem revela: “Eu
havia deixado de fumar por causa de Clarice, que era antitabagista militante”
(p. 535). Sendo a noiva apresentada como mulher mais convencional, é
possível supor uma associação entre o hábito de fumar e uma postura mais
transgressora. O cigarro aparece com essa simbologia ainda em outra
situação:
Ela pôs um cigarro na boca, sem acendê-lo, e uma senhora juntou-se a
nós. Logo depois o elevador chegou, um pessoal saiu, deixamos a
senhora entrar primeiro, depois entrou ela, depois eu. A senhora desceu
no quinto andar e, até lá, ficou olhando de cara feia para o cigarro
apagado nos lábios da mulher, que sustentou o seu olhar. Assim que a
senhora saiu, ela acendeu o cigarro, embora houvesse uma plaqueta de
proibição [...] (p. 530).
81
Percebe-se que manter o cigarro nos lábios, ainda que apagado, é
considerado uma espécie de ousadia provocativa não apenas pelo narrador,
mas também pela senhora que os acompanhava. O narrador, denunciando a
natureza altiva daquela mulher, ainda diz que ela sustentou o olhar em vez de
se constranger diante da “cara feia”. Depois o cigarro foi aceso, fechando
assim a idéia de contravenção. Agora não era apenas o olhar de reprovação
que ela enfrentava, e sim uma placa de proibição. Pois bem, essa é o primeira
marca verificável externamente que permite depreender a construção de
determinado perfil. Existem outras.
Retomando o primeiro parágrafo do conto, que coincide com o primeiro
olhar do narrador para a mulher, temos o seguinte:
Mas nem por isso era menos bonita ou elegante, usando um vestido
listrado, de tecido meio rústico, que ostentava uma simplicidade que
devia ter custado algum dinheiro. Os sapatos pretos grandões, desses
de amarrar, concediam-lhe uma aparência um tanto exótica, um ar de
força, quase brutalidade, talvez premeditada, um toque masculino que
não impedia de evidenciar a mulher em todos os seus aspectos (p.
529).
Associando os efeitos de sentido atribuídos ao tabagismo, ou melhor, à
maneira dessa mulher vivenciar o tabagismo, com uma vestimenta que
concede atributos como ´força`, ´quase brutalidade`, tem-se o que o próprio
narrador considera ´um toque masculino`. Sendo assim, é possível afirmar
que o personagem-narrador também avalia altivez, ousadia, brutalidade e força
como características consideradas masculinas.
No decorrer do conto, a partir do próprio diálogo entre eles, toma-se
conhecimento de que a mulher tem trinta e quatro anos e procura apartamento
em função do parceiro estar mantendo um envolvimento com uma mulher de
dezoito anos. As reações e o próprio vocabulário utilizado por ela confirmam
esse aspecto de pouca adequação à estereotipia identitária do gênero
feminino. São reações agressivas: “Sem aviso prévio, ela desatou um choro
convulsivo, de dor e de raiva, e avançou com os punhos cerrados na minha
direção” (p. 533). O vocabulário é “grosseiro”:
-- Mas o filho da puta também está comendo outra [...]
Acariciei os seus cabelos de um modo paternal:
-- É por isso que você está procurando apartamento?
82
Ela fez que sim, com a cabeça:
-- Ele está comendo uma garota de dezoito anos. Você compreende
bem o que isso significa? (p. 534).
Conclui-se, portanto, que a construção de um perfil feminino que
subverte a estereotipia feminina de gênero, principalmente no momento em
que rompe
características como passividade, enternecimento, insegurança
(MATOS, 2000). Além disso, é preciso lembrar que tais características apontam
para a definição de determinado estilo de vida. Conforme foi dito na análise
do conto de Márcia Denser, Giddens (1993) afirma que contemporaneamente
as atitudes do indivíduo acabam por definir quem a pessoa é, ou seja, possuem
um peso muito maior que em períodos anteriores.
No entanto, a simetria entre a protagonista de “O Animal dos Motéis” e a
mulher descrita aqui se limita a esse traço de pouca adequação àquilo que
socialmente se naturalizou como feminino. Em “Estranhos” o referido traço não
contribui para a construção de uma atmosfera de amargura; não aponta para o
sexo episódico enquanto comportamento compulsivo; não sugere inadequação
social responsável por solidão amorosa.
A mulher aqui possui um vínculo estável com outro homem, embora não
seja uma relação dentro dos parâmetros tradicionais (lembrando novamente
que o termo remete ao modelo de família nuclear burguesa). Quando requisita
camisinha ao narrador-personagem, o diálogo se estabelece da seguinte
forma:
[...] ela acabou por fazer a inevitável pergunta do final do século.
-- Você trouxe camisinha?
-- Não, eu e Clarice somos monogâmicos e não usamos.
-- Mas eu e ele não somos e não confiamos em ninguém ela disse,
indo até onde deixara sua bolsa. Remexeu dentro e depois atirou
para mim uma camisinha (p. 536).
A prática do sexo episódico possui, para a mulher, a função de resgate
de auto-estima, de comprovação de poder, de vingança. Funções estas não
observadas, mas aceitas e desfrutadas pelo narrador:
[...] ajoelhando-se então para chupar o meu pau, fazendo-o crescer de
uma forma incomensurável, que dava a ela uma satisfação intensa, que
talvez não tivesse muita coisa a ver comigo eu via nos seus olhos de
cobra –, mas com o cara que estava comendo a garota de dezoito anos,
83
como se ela quisesse provar a ele o seu poder, que acabava provando
a mim e muito bem (p. 534).
A função de recuperação da auto-estima perdida torna-se arma de
sedução para o narrador-personagem. Assim, ele entra nessa espécie de jogo:
“Sabia que [...] o fato de eu ter uma noivinha de dezenove anos [na verdade
era vinte e quatro] faria aumentar o seu desejo, desta vez por mim mesmo,
nem que fosse para provar mais alguma coisa(p. 536). E a desconfiança dele
se confirma:
Quanto aos orgasmos dela, da segunda fase, foram quase certamente
falsos e teatrais e, por vezes, tive de tapar sua boca. Como se ela
quisesse anunciá-los ao prédio inteiro, talvez ao mundo, mais
particularmente a Clarice, ao tal coroa e sua garotinha. Mas o que
importa, já que os meus foram verdadeiros, assim como meus
sentimentos? (p. 537).
O sexo episódico o a enfraquece. O que ocorre é o contrário disso.
Ela sai do apartamento com o poder recuperado. Agora ela pode retomar o
romance com o homem que a traiu. O movimento foi solitário, não foi de
estabelecimento de vínculo com o parceiro sexual. No entanto, o sentido, para
ela, é positivo, é de acréscimo, de recuperação de si própria.
Importa iniciar uma outra reflexão agora. O perfil de mulher apresentado
pelo conto já foi apresentado. Já se disse também dos significados do encontro
para a mulher. Entretanto, o próprio olhar do narrador denuncia também um
perfil masculino e as conseqüências do vivido, para ele, são bastante diversas
do que foram para ela.
De alguma maneira, o conto nos apresenta uma inversão com relação
aos papéis que são socialmente determinados para cada gênero. O narrador-
personagem afirma que a mulher concordou em subir sem a presença do
porteiro para ver o apartamento, depois de concluir que ele era inofensivo:
“Aquele exame minucioso, e talvez o seu resultado, me irritara” (p. 530). Ou
seja, ser perceptivelmente inofensivo não é algo agradável.
O pesquisador Pedro Paulo Oliveira, em seu A Construção Social da
Masculinidade (2004), afirma que a associação entre masculinidade e
agressividade foi sendo construída desde a Antigüidade, ganhando importantes
argumentos do cientificismo para sobreviver ao mundo moderno:
84
Papel importante nesse sentido seria prestado pelo darwinismo que, no
final do século XIX, forneceu a narrativa científica fundamental para
descrever o pensamento acerca do mundo social. Os atributos de força
física e propensão à agressividade representavam agora os
instrumentos utilizados pelos mais capazes para vencer na luta pela
sobrevivência (OLIVEIRA, 2004, p. 55).
O personagem não fala de si como o homem idealizado pela
modernidade: “Podia ser mera projeção da minha cabeça, claro, pois também
sou meio neurótico e até fizera um pouco de análise, antes de conhecer
Clarice, que me dava segurança” (SANT´ANNA, 2000, p. 532). Insegurança
não é atributo considerado tipicamente masculino, não pelo ideário moderno:
No final do século XIX, a associação do darwinismo com as
competições esportivas era comum e não foram poucos os que viam
nos grandes esportistas símbolos de uma masculinidade vitoriosa ideal.
As competições reproduziam o cenário de luta pela sobrevivência, onde
o mais apto era o mais bem desenvolvido e adaptado, normalmente
também o que mais se aproximava do homem idealmente valorizado:
forte, agressivo, disciplinado (OLIVEIRA, 2004, p. 63).
O que chama a atenção no conto não é a apresentação de um homem
que rompe com essas estereotipias, mas a presença também do contraponto,
ou seja, de uma mulher que traz justamente traços dessa masculinidade
esperada socialmente. Note-se que o espírito de competição, com simbologia
tão marcante, surge no conto como mecanismo de defesa feminino, como já foi
dito nas páginas anteriores. O homem se sente constrangido diante dela até
com relação à própria atividade profissional:
Ela se dirigiu para a janela, sem perguntar qual era o meu jornal ou a
área do jornalismo em que eu atuava, e achei melhor assim. Pois não
sei por que, senti que me sentiria um idiota se dissesse a uma mulher
como aquela que eu era subeditor de um segundo caderno, fazendo
entrevistas por telefone e escrevendo frescuras sobre artistas
egocêntricos (SANT´ANNA, 2000, p. 532).
A dicotomia entre valores masculinos presentes na mulher e
femininos – presentes no homem – é carregada de cargas valorativas. O
personagem se sente atraído e, ao mesmo tempo, subjugado pelo poder da
mulher, por isso a vergonha pelo trabalho que tem, por isso o esforço para
85
impressioná-la: “Percebi que estava querendo impressioná-la, o que, a julgar
por sua resposta, não consegui” (p. 531).
Dessa forma, é possível afirmar que mesmo as noções de masculino e
feminino estando invertidas, aquilo que é tipicamente considerado masculino
permanece valorizado. É preciso lembrar, no entanto, que, de acordo com
Oliveira (2004),
Não existe nenhuma essência a-histórica que possa definir o que é
masculino em si, apenas representações sociais girando em torno de
um conjunto de qualidades que o definem em função de seu contraste
quando comparado ao feminino, de acordo com um contexto sócio-
histórico bastante específico (p. 274).
Não sendo a masculinidade algo essencial, nem as práticas a ela
atribuídas, é no próprio ato sexual que a inversão, denunciada pela
atmosfera do conto, confirma-se:
Virei-me de bruços e ela veio por cima de mim, de um modo que me fez
conhecer melhor o mecanismo das mulheres, ou pelo menos de certas
mulheres, e também dos homens, ou pelo menos de certos homens,
como eu e o coroa devasso. Esfregando ritmadamente a xoxota em
minha bunda, ela dizia coisas como ´meu benzinho, eu te adoro, vou te
comer todinho`. E assim ela gozou, inquestionavelmente, pois não
captei nada de teatral em seu orgasmo (SANT´ANNA, 2000, p. 535).
É relevante salientar que a noção de posse, de domínio atrelada à
penetração tem sido algo fundamental para a constituição do imaginário sexual
tanto de homens quanto de mulheres. Essas noções estão relacionadas ao
ideário, conforme foi dito, da modernidade, que recobria o mundo de
significados por meio da elaboração de los opositivos: “A oposição
masculino/feminino é reforçada através de outras dicotomias paralelas, tais
como forte/fraco, grande/pequeno, pesado/leve, quente/frio, claro/escuro,
dominante/dominado, ativo-penetrante/passivo-penetrado [...]” (OLIVEIRA,
2004, p. 274).
Avalia-se aqui que tal dicotomia é reforçada. No entanto, é construída
também uma situação surpreendente. a posse sexual de acordo com todos
os preceitos a não ser o considerado fundamental: a penetração física. Além
disso, há, neste conto, uma outra questão absolutamente subversiva. foi
dito, durante a análise, que as noções de feminino e masculino são reforçadas,
86
inclusive mantendo-se a valorização do que se considera naturalmente
masculino.
Quando se pensa na inversão do pólo opositivo masculino/feminino, é
inevitável que venha à tona a questão da homossexualidade. Em geral, a
inversão significa também homo-orientação:
Se o feminino representava a idéia de delicadeza, fragilidade,
insegurança e instabilidade, entre outros, o que pensar dele quando
encarnado em comportamentos e condutas de agentes masculinos? A
elaboração imaginária e incorporada do lugar simbólico feminino num
agente masculino foi, e ainda é, sinônimo de infâmia, desonra,
desclassificação social (OLIVEIRA, 2004, p. 73).
O autor está se referindo ao período moderno e aos ecos que dele
restam contemporaneamente. No entanto, o agente masculino em questão é
homo-orientado. Daí a grande subversão apresentada pelo conto. Tanto o
homem quanto a mulher o heterossexuais, ainda que haja uma inversão de
condutas. A grande diferença aqui, com relação às representações usuais, é
que normalmente uma inversão identitária tão profunda implica também em
homo-orientação. Dessa forma, tem-se uma heterossexualidade que também
se questiona, rejeitando modelos fixos de constituição de identidade e,
conseqüentemente, alterando os modelos de estabelecimentos de vínculos.
Também surpreendente é o desfecho da história. Aquilo que para a
mulher foi sexo episódico, com objetivo absolutamente individual de
recuperação de auto-estima – no caso dela diretamente associada com o poder
de sedução; para o narrador personagem foi algo transcendente, que modificou
radicalmente sua vida.
A experiência vivida com aquela estranha, para o narrador, gerou os
efeitos transcendentes da química dos corpos. Aquilo que para Diana de
Márcia Denser apenas acentuava a distância entre o casal, para ele promoveu
fusões transformadoras:
Foi um desses beijos profundos, sexuais, sem nada a ver com os beijos
dos que se amam. Enquanto ele transcorria, ela foi soprando a fumaça
para dentro da minha boca lentamente. [...] Se palavras podem
descrever tal experiência, devo dizer que ela me alucinou como se eu
fosse um fumador de ópio, e que foi a maior intimidade que jamais tive
com uma mulher, como se eu a conhecesse em todas as suas
entranhas (SANT´ANNA, 2000, p. 535).
87
Antes de mais nada, é preciso ressaltar que a intimidade gerada é
sexual mas não genital, o que em si é algo inusitado. O vivido, para o
narrador-personagem, o assume a banal naturalidade de um encontro
prazeroso, casual, depois do qual a vida cotidiana retoma seu curso. Ele não é
um homem para quem o padrão duplo ainda é opção viável:
O espelho no qual agora eu me olhava, percebendo que alguma coisa
mudara em meu rosto, talvez uma inocência perdida, pois estava
traindo Clarice pela primeira vez. Tentei pescar lá no fundo de mim uma
velha culpa, conhecida minha, e não consegui encontrá-la. Concluí que
aquilo não era uma traição, era um acontecimento tão inexorável quanto
uma catástrofe. Eu fora atropelado pelo destino e me restava sair de
novo ao seu encontro (p. 537).
Impossível não fazer menção ao personagem do conto “Tremor de
Terra”, de Luiz Vilela, analisado no capítulo seguinte. Também ele, além de
apresentar traços disso que talvez se possa chamar de uma nova
masculinidade, aguardava esse momento único, epifânico.
A desconhecida do conto de Sérgio Sant´Anna retoma o ritmo de sua
vida, seja ele qual fosse. O narrador-personagem é vitimado pelo amour-
passion (GIDDENS, 1993). Aluga o apartamento no qual conheceu a mulher. O
referido apartamento é descrito pejorativamente desde o início do conto, não só
por ser próximo a uma favela, perigoso, mas por desagradar o gosto mesmo do
personagem. Isso intensifica o caráter de sacrifício da atitude:
O que mais dizer?
Terminei com Clarice, voltei a fumar e vim morar sozinho, pagando uma
mixaria de aluguel, no apartamento 1101, B, do Condomínio Bois de
Boulougne, na expectativa, talvez fantasiosa, pelo menos em sua
segunda parte, de que o coroa um dia aprontasse mais alguma com a
mulher, e ela, farejando o meu destino, viesse me usar para uma nova
vingança (p. 538).
Note-se que, para ele, a expectativa de ser ´usado` não é algo que gere
rancor. Não uma inversão grosseira, um homem se comportando como a
mocinha que teve a vida destruída por um mal-feitor. luminosidade nessa
espera. É um sujeito inteiro, dono de suas vontades, quem decide esperar.
88
O conto termina com uma abertura que aponta para coragem e
esperança. Ainda que o personagem esteja sozinho, morando em um lugar
ruim, há algo de grandioso nessa expectativa, nessa possibilidade de amor:
Às vezes, engatinhando com as luzes todas apagadas, vou deitar-me
no assoalho daquele quarto em que fui possuído pela mulher.
Entrincheirado atrás de uma parede, acendo um cigarro, dou uma
tragada funda, e penso naquela que me penetrou até o âmago (p. 538).
89
4
O UNIVERSO FICCIONAL DE VILELA E O AMAR
4.1
L
UIZ
V
ILELA
C
ONTISTA
Luiz Vilela nasceu em Ituiutaba (MG), em 1942. Inscreveu-se no
panorama da literatura brasileira contemporânea em 1967, com a publicação
do volume de contos Tremor de Terra. Embora nos interesse aqui a incursão
do autor pelo gênero conto, não se pode deixar de considerar a existência de
produção significativa também nos gêneros romance e novela
25
.
É preciso dizer que apesar da evidente relevância do esforço de críticos
literários no estabelecimento de tipologias que localizam o autor no cenário de
tendências da contística brasileira contemporânea, não se considerou
necessária uma exposição aprofundada de tais tipologias. As justificativas são
duas. Primeiro, quando se julgou necessário, tais críticos foram chamados para
a fundamentação das análises. Segundo, a fortuna crítica do autor está
cuidadosamente organizada e analisada na tese de doutorado de Rauer
Ribeiro Rodrigues, apresentada, em 2006, na Universidade Estadual de São
Paulo (campus de Araraquara), sob orientação do Prof. Dr. Luiz Gonzaga
Marchezan. Alguns desses pontos também são tratados na dissertação de
mestrado de Celia Mitie Tamura, apresentada, em 2006, ao Curso de Pós-
Graduação da Universidade Estadual de Campinas, sob orientação do Prof. Dr.
Antonio Arnoni Prado.
Dessa forma, ainda que se recorra a alguns pontos presentes na já
citada fortuna crítica, a proposta aqui é construção de um texto breve, sem
maiores verticalizações, acerca de algumas classificações e, principalmente, de
características que constituem o universo ficcional de Luiz Vilela.
Como se sabe, no final da cada de 1950 e início da década de 1960,
teve início o que se pode chamar de boom da produção de contos no Brasil. É
sabido também que faz parte da própria constituição das produções pós-
modernistas a ausência de linhas mestras, de tendências hegemônicas, de
25
Os romances publicados pelo autor foram: Os Novos, 1971, pela Genasa (RJ); O Inferno é aqui mesmo,
1979, pela Ática (SP); Entre Amigos, 1983, também pela Ática (SP) e Graça, 1989, pela Estação
Liberdade (SP). As novelas foram: O Choro no Travesseiro, 1979, pela Ática (SP); Te amo sobre todas
as coisas, 1994, pela Rocco (RJ) e Bóris e Dóris, 2006, pela Record (RJ).
90
características emblemáticas que unifiquem a referida produção, a partir de
tendências mais ou menos unânimes, como acontecia nos períodos anteriores.
Claro que não se quer dizer que a produção anterior constituía uma massa
uniforme. Não norma ou estilo de época que dilua as características
pessoais de cada escritor ou que impeça a formação de universos ficcionais
particulares.
Antes disso, o que se afirma aqui é que o múltiplo e o plural passaram a
ser a única tendência dominante, por isso a dificuldade em conciliar, por
exemplo, contistas contemporâneos com definições precisas. O crítico
Temístocles Linhares (1973) opta pela utilização de três categorias, ainda
assim pouco contrastantes. O autor divide os contos contemporâneos em
fantásticos, realistas “de notas psicológicas e sociais” (p. 13) e regionalistas,
afirmando que, embora o regionalismo contemple o realismo, ele apresenta
uma valorização localista que o diferencia. Luiz Vilela é considerado escritor de
tendência realista, ladeado por Clarice Lispector, Dalton Trevisan, Lygia
Fagundes Telles, Rubem Fonseca, entre outros. Necessária aqui é a ressalva
de que o universo ficcional desses autores, muitas vezes, apresenta diferenças
consistentes.
Antonio Hohlfeldt (1988) propõe outro modelo classificatório: conto
rural, alegórico, psicológico, de atmosfera, de costumes e sociodocumental.
Interessantes aqui são, principalmente, as categorias conto de costumes e
conto sociodocumental. Curiosamente, tal divisão coloca em grupos diferentes
autores que, em geral, costumam ser alinhados com Luiz Vilela. De acordo
com o próprio autor, as duas categorias guardam grande similaridade,
diferenciando-se por uma especificidade presente no conto de costumes:
[...] de modo geral, a característica comum desses escritores, se é a
representação quase documental da realidade, é também uma
representação mediante concentração, ampliação, por vezes caricatura,
através de técnicas específicas, como a ironia, o humor ou o sarcasmo
(1988, p. 160).
Dessa forma, a presença do humor, da ironia e do sarcasmo seria a
diferença fundamental entre este tipo e o sociodocumental. Aqui Hohlfeldt
(1988) coloca Dalton Trevisan, Otto Lara Resende, Márcia Denser, Rubem
Fonseca, José Condé, Deonísio da Silva, entre outros.
91
A categoria conto sociodocumental fundamenta-se nos seguintes traços,
considerados comuns ao grupo:
[...] a preocupação em dar ou ser a palavra das classes mantidas à
força na subaternidade da estrutura social; preocupação significativa,
neste contexto com a infância; dialogação como principal
característica estilística e, enfim, [...] a possibilidade do uso do material
ficcional como matéria-prima para a reflexão sociológica (HOHFELDT,
1988, p. 184).
A produção de Luiz Vilela é categorizada neste tópico ao lado de autores
como Herberto Sales, Ricardo Ramos, Edilberto Coutinho, Jefferson Ribeiro de
Andrade, Domingos Pellegrini Jr, Wander Piroli, João Antonio e Ignácio de
Loyola Brandão.
Antonio Hohlfeldt salienta que um grupo e outro não apresentam
características díspares e, antes disso, possuem traços comuns. No entanto,
não deixa de ser questionável que a característica principal dos contos de
costumes seja a ironia, sendo que este é um elemento presente na obra de
Vilela
26
. Da mesma forma, a forte presença do diálogo e a construção de
universos ficcionais voltados para setores marginalizados definidores do
conto sociodocumental são fortes características de Dalton Trevisan e
Rubem Fonseca.
Talvez não exista maneira, contemporaneamente, de se criar tipologias
sem incorrer em julgamentos contestáveis. Alfredo Bosi (2001), refletindo a
respeito da produção de Dalton Trevisan, diz que um modo de escrever
criado nos anos 1960, nomeado por ele de brutalista e assim definido:
A dicção que se faz no interior desse mundo é rápida, às vezes
compulsiva; impura, se não obscena; direta, tocando ao gestual, quase
ruído. Está, necessariamente, fazendo escola: junto a Rubem Fonseca,
ou na sua esteira, algumas páginas de Luiz Vilela, de Sérgio Sant´Anna,
de Manoel Lobato, de Wander Piroli, [...], de Moacyr Scliar [...] (p. 18).
A propósito, por exemplo, da inclusão, efetuada por Alfredo Bosi (2001),
do nome de Luiz Vilela naquilo que o pesquisador nomeia de escritura
brutalista, é possível iniciar a reflexão acerca do universo ficcional do contista.
De acordo com Majadas (2000), não é possível dizer que a produção de Vilela
26
Ver Rodrigues (2006).
92
seja “norteada pela agressividade, pela secura e pela ausência de ternura pelo
ser humano” (p. 28). Ainda que o contista construa textos nos quais, em geral,
é denunciada a precariedade da existência humana, Majadas (2000) afirma
que a matéria-prima da qual as histórias são tecidas é a profunda compaixão
pelo ser humano.
Sendo assim, Luiz Vilela teria na ternura e na compaixão, presentes em
sua maneira de ver o mundo e de construir universos narrativos, uma
diferenciação fundamental com a prosa de Dalton Trevisan e de Rubem
Fonseca, por exemplo. Majadas (2000) cita o seguinte comentário feito pelo
crítico paraibano Hildeberto Barbosa Filho, em artigo escrito para o jornal O
Momento, em dezembro de 1984:
Não se pode ver em Luiz Vilela um autor pessimista, angustiado, seco,
na linha por exemplo, de um Dalton Trevisan, de um Rubem Fonseca.
Ao contrário, de suas histórias ressuma uma garoa afetiva pelas coisas,
brota muito amor pelos homens, se extrai um toque poético e lírico, que
singulariza artisticamente sua expressão (apud MAJADAS, 2000, p. 28).
Entretanto, ainda que sejam inúmeras as diferenças entre a escritura e a
visão de mundo dos três autores, não como negar características similares
que acabam sendo decisivas para a formação daquilo que se costuma chamar
de prosa urbana. O crítico Augusto Massi (2001) compara os referidos autores
a partir de uma perspectiva histórica, localizando a consolidação de um tipo
específico de ficção:
Na grande família dos contistas brasileiros, Luiz Vilela (1942) é o irmão
caçula de Rubem Fonseca (1925) e Dalton Trevisan (1925). Os três
pertencem ao centenário tronco do realismo e foram decisivos para o
estabelecimento, entre nós, de uma sólida tradição de prosa urbana.
Com acentuada dicção coloquial e domínio técnico do diálogo,
escaparam às seduções da vertente regionalista. Desta perspectiva são
herdeiros da melhor prosa modernista, moldada pelo realismo crítico de
Graciliano Ramos, pelo lirismo materialista de Rubem Braga e pelo
classicismo suburbano de Marques Rebelo. Não obstante o laço de
parentesco que os aproxima, cada qual conquistou um espaço ficcional
próprio, dotado de um estilo extremamente pessoal e inconfundível (p.
7).
Como se nota, não unanimidade entre os críticos no momento de
alinhar autores. Para esta dissertação, a melhor alternativa foi considerar a
produção contemporânea como constitutiva de um mesmo universo discursivo
93
sem desprezar, obviamente, as aproximações e distanciamentos feitos pelos
críticos citados. Ainda que a maneira de contar e o cosmos criado por cada
autor tenham sempre especificidades decisivas, considera-se que, de uma
maneira ou de outra, as questões que atravessam o homem em tempos s-
modernos são semelhantes, seja na prática artística, seja na prática social (que
não exclui a artística), seja na prática teórica.
Importa, neste momento, ressaltar algumas das especificidades do
universo ficcional de Luiz Vilela. O autor não traz (esta é a hipótese levantada)
em seus textos muitas das características apontadas como tipicamente pós-
modernistas. Não em seus contos o ritmo vertiginoso; a profusão
cinematográfica de imagens; a apropriação (pelo menos não de maneira
significativa, embora apareça como elemento fundamental em certos contos,
como em “Por toda a vida” e “Domingo”
27
) das estruturas ou temáticas típicas
dos gêneros massivos; mecanismos como a reciclagem, o pastiche e a
paródia; o tom palavroso; o recurso da imagem de violência; a configuração
das sexualidades por meio de um léxico normalmente considerado agressivo.
O professor Rauer Ribeiro Rodrigues diz que
Na verdade, em uns poucos contos de Vilela dos anos 60 e 70
encontramos ‘experimentalismos’ tomando a palavra na acepção
restrita com que certos ‘vanguardeiros’ a vêem tais como fluxo de
consciência, frases sem ponto, multiplicidade de narradores, cortes
cinematográficos (2006, p. 46).
Rodrigues segue a argumentação questionando o uso muitas vezes
redutor que se faz do termo experimentalismo. Segundo o pesquisador tal
redução acontece
[...] por não se considerar que os procedimentos, as técnicas, as
estratégias narrativas e as opções discursivas compõem um aparato
que foi moldado ao longo da história da literatura e da evolução da
língua, e que o escritor de nossos dias tem tal aparato à sua disposição,
para ser utilizado livremente e com criatividade, escolhendo as soluções
que sejam as mais adequadas para a sua narrativa, de conformidade
com os efeitos de sentido que pretenda obter. E ainda, que o
experimentalismo pode se verificar em outros níveis de escrita (2006, p.
47).
27
Contos publicados nos volumes Tremor de Terra (1967) e No Bar (1968), respectivamente.
94
Portanto esta argumentação não caminha no sentido de afirmar que, se
um pós-modernismo, Vilela não é um autor que dele faça parte. Não é este
o caso. É sabido que o termo pós-modernismo não pretende nomear uma
escola literária, portanto, não apresenta uma proposta estética definida ou
uniforme. De acordo com Linda Hutcheon (1991) é do próprio pós-modernismo
a existência de diversos caminhos para se conceber e produzir literatura.
Sendo assim, se são típicos da nossa época a profusão de estilos e o
abandono da busca por uma escritura que atenda aos valores de determinado
sistema, se a contradição tornou-se ela mesma um valor, pode-se pensar em
buscar quais aspectos do estilo de Luiz Vilela o inserem no panorama da
literatura brasileira contemporânea dita pós-modernista.
Pois bem, os textos de Vilela valorizam a tematização do cotidiano e do
prosaico. O narrador não se configura como o clássico transmissor de
experiências definido por Benjamin (1985); muito menos como o onipresente e
onisciente narrador realista (fruto de uma visão cartesiana do sujeito) há, em
geral, a configuração daquilo que Santiago (1989) nomeia de narrador pós-
moderno. De acordo com Rauer Ribeiro Rodrigues (2006):
As estratégias narrativas de Vilela [...] visam economia discursiva,
eliminando intervenções do narrador que não sejam cinematográficas e
indiquem tão o que não se evidenciava pelas falas; assim, ficam
restritas às que descrevam o imprescindível para a configuração do
sentido que o ficcionista quer imprimir à narrativa (p. 165).
ainda a concretização dos sujeitos fragmentados e anônimos. Ocorre
a supressão de elementos da narrativa como, por exemplo, a eliminação ou
neutralização da figura do narrador: contos constituídos apenas por diálogos ou
apresentando narrador pouco interventivo, ou seja, aquilo que Majadas (2000)
nomeia de método dramático. Surgem temas muito caros à atualidade como a
incomunicabilidade mesmo nas relações mais íntimas, como ocorre no conto
“Ousadia”
28
no qual o marido encontra dificuldades para manifestar seu desejo
por práticas sexuais menos convencionais. Entre os referidos temas, estão
ainda o da inadequação aos valores sociais ou o da angústia do sujeito que se
sabe impotente diante dos sistemas de socialização. O conto “Uma
28
Tarde da Noite, 1970.
95
Namorada”
29
, por exemplo, problematiza a questão da incapacidade de
pertencimento social do narrador. O pertencer surge no imaginário do rapaz por
meio da figura de uma namorada, como se possuir uma parceira significasse
necessariamente adequação social.
Outra questão bastante recorrente é a inevitabilidade do acaso. Pode-se
dizer que o amor, muitas vezes, depara-se com esse acaso enquanto força
maior. Dessa forma, o tratamento da temática amorosa, em Luiz Vilela, muitas
vezes, tem um sabor de inevitável aceitação dos fatos, como ocorre em “A
Chuva nos Telhados Antigos”
30
. Quando tal aceitação não ocorre, surgem
tensões outras. Em “Abismos”
31
o amor sentido é tão avassalador que o
personagem deseja a morte do objeto amado, como tentativa de libertar-se do
sentimento.
Conforme se pode notar, a temática amorosa, no universo ficcional de
Vilela, alinha-se a outras, apresentando, em geral, uma essência semelhante,
ainda que por meio de configurações diversas. As experiências vividas pelos
personagens e a maneira de estruturar literariamente tais vivências resultam
sempre em significados que apontam para o drama existencial humano.
Tem-se, então, partindo da sistematização efetuada por Majadas (2000),
a abordagem de temas que de recorrentes que o, constituem um traço da
escritura do autor. Daquilo que a pesquisadora nomeia de “incontrolável
humanismo” (MAJADAS, 2000, p. 30), de uma preocupação visceral com a
precariedade da existência humana, surgem temas variados. Dessa forma, são
constantes na narrativa de Vilela, o tempo já passado; a infância, muitas vezes,
tendo na fantasia maneira de superação de uma realidade opressora; a
impotência humana diante da realidade, impotência representada por meio de
loucos, bêbados, marginais que encontram na invenção do não vivido, mas
desejado, alternativas de escape; a velhice focalizada a partir do cerceamento
dos sonhos, da perda da vivacidade, da coragem e do poder de luta; a
inevitabilidade da morte; a relação intensa entre homens e animais.
Dessa gama de possibilidades temáticas, uma merece especial atenção
em função do vínculo que possui com as relações amorosas. A solidão é
29
Tarde da Noite, 1970.
30
O Fim de Tudo, 1973.
31
Lindas Pernas, 1979.
96
drama constante para as personagens criadas pelo autor. Tal solidão é tratada,
muitas vezes, como constitutiva da própria natureza humana, configurando
aquilo que Majadas (2000) nomeou de calvário do homem. Citando a
pesquisadora:
A solidão, na obra de Luiz Vilela, ocupa grande espaço: a solidão da
criança, do jovem, do velho, dos animais; a solidão entre quatro paredes
ou entre amigos; a solidão na rua estreita de uma cidadezinha ou na
larga avenida de uma capital. Até o narrador em terceira pessoa está
envolvido por esse sentimento de ausência do outro. Ele é contaminado
pela solidão da personagem sobre a qual fala, pelo espaço onde a
personagem transita, e até mesmo pelos objetos que cercam a
personagem (p. 67).
Todos esses aspectos são tratados por meio de uma opção estrutural.
Vilela opta pela delicadeza. Ainda que a violência esteja presente no mundo
real e na ficção, Vilela opta pela delicadeza: na maneira de construir o universo
ficcional; no trato com a linguagem; na valorização e utilização do não-dito
(repletos de silêncio, os contos). O choque, o corte, a dor estão presentes, mas
nos chegam de forma delicada. De acordo com Majadas (2000), a utilização do
silêncio é um recurso eleito por Vilela desde sua primeira obra e tem como
função manter a emoção fluindo subterraneamente, sem romper com uma
espécie de passividade presente na superfície da narrativa.
As características mais acentuadamente surpreendentes do autor o
aquilo que se irá chamar aqui de precisão e simplicidade (ou leveza?). A
precisão aparece na supressão de tudo que o for essencial perspicácia de
engenheiro. Como foi dito o gosto pela precisão tem relação visceral com o
gênero conto. A narrativa curta favorece a manipulação pontual. Italo Calvino,
em suas Seis Propostas para o Próximo Milênio, especificamente quando fala
da rapidez, argumenta a favor da narrativa curta:
Estou convencido de que escrever prosa em nada difere do escrever
poesia; em ambos os casos, trata-se da busca de uma expressão
necessária, única, densa, concisa, memorável. [...] É difícil manter esse
tipo de tensão em obras muito longas [...]. (CALVINO, 1990, p. 61).
Vilela parece perseguir tal densidade, e a precisão no trato da narrativa
curta é o caminho escolhido. Assim, retira as arestas, os excessos, recobre a
superfície com silêncios, subentendidos, entrelinhas: ou seja, recusa o tom
97
verborrágico ou as imagens grandiosas. Aproxima-se, assim, de certa forma,
do conto popular: “A principal característica do conto popular é a economia de
expressão” (CALVINO, 1990, p. 50).
Para que essa precisão se concretize como eficiência narrativa uma
outra característica a ela se associa formando um mecanismo estético
estruturador da tensão: a simplicidade.
A simplicidade configura-se nesses contos sob vários aspectos. Há, em
geral, o tom de cotidiana banalidade, de “desimportância”, como se nada
excepcional estivesse sendo dito; a história contada é simples: a morte de um
peixe, um aniversário, a primeira namorada, a comemoração das bodas de um
casal, o final de um namoro. São acontecimentos corriqueiros, mas que
recobrem pesos, densidades, questionamentos. Recobrem não para esconder,
mas para fazer aparecer de maneira outra e, talvez por isso, mais contundente.
De acordo com Majadas (2000):
Essa utilização do contexto diário está comprometida com uma
linguagem simples, de fácil acesso [...] estamos diante de uma
simplicidade ardilosa, que nos expõe ao risco de ficar apenas na
periferia de tais obras. [...] Os aspectos humanos, e por serem
humanos, universais, povoam a narrativa de Luiz Vilela de uma forma
tão natural e verdadeira, que se torna difícil detectá-la à primeira vista.
Parece tudo tão óbvio e despretensioso! (p. 20)
Possivelmente, o que se chama aqui de simplicidade seja uma das
facetas daquilo que Calvino (1990) chama de leveza. Ele diz:
[...] no mais das vezes, minha intervenção se traduziu por uma
subtração do peso, ora às figuras humanas, ora aos corpos celestes,
ora às cidades; esforcei-me sobretudo por retirar peso à estrutura da
narrativa e à linguagem (CALVINO,1990, p. 15).
Para argumentar a respeito da leveza, Calvino recorre ao mito da
Medusa. Perseu, para cortar a cabeça do monstro sem olhar para ela, a
observa indiretamente, através do espelho:
Perseu consegue dominar a pavorosa figura mantendo-a oculta, da
mesma forma como antes a vencera, contemplando-a no espelho. É
sempre na recusa da visão direta que reside a força de Perseu, mas
não na recusa da realidade do mundo de monstros entre os quais
estava destinado a viver, uma realidade que ele traz consigo e assume
como fardo pessoal (CALVINO, 1990, p. 17).
98
Talvez a força dos contos de Vilela possua a mesma natureza da força
de Perseu. O conto não nos oferece a visão direta, a exposição crua, talvez daí
a leveza, talvez daí o peso subliminar. Importante salientar a idéia de que optar
por leveza não significa fugir da realidade. Caso fosse isso, teríamos de admitir
que obras que primam pelo leve são aquelas de uma literatura evasiva, “cor-
de-rosa”, descomprometida com
os dramas do seu tempo ou da natureza
humana. Não é este o caso.
A leveza aqui é técnica. A realidade é visceralmente tratada, mas não
mostrada de maneira direta não se olha para Medusa diretamente. Nestes
textos, a simplicidade, a aparente banalidade apenas recobre um fervilhar
pulsante de significados densos. E a leveza não é uma maneira de desviar o
olhar. A leveza tem função narrativa: armar a tensão pelo seu oposto.
4.2
A
NÁLISES
O pequeno panorama, composto pelos contos de Wander Pirolli, Lygia
Fagundes Telles, Márcia Denser e Sérgio Sant´Anna, já nos permitiu vislumbrar
algumas das tendências de abordagem da temática amorosa que cercam o
universo ficcional de Luiz Vilela. Ou seja, esses eram os discursos literários
constituintes da época (lembrando sempre a intencionalidade e os limites
impostos por qualquer recorte ou seleção).
Para a constituição do corpus, agora restrito à produção do autor que
centralizou as atenções desta pesquisa, efetuou-se um mapeamento de todos
os contos que tematizassem aspectos da relação amorosa. As obras das quais
foram escolhidos os contos são Tremor de Terra (1967); No Bar (1968); Tarde
da Noite (1970); O Fim de Tudo (1973) e Lindas Pernas (1979)
32
.
O referido mapeamento resultou na seleção de dezessete contos,
permanecendo oito para a composição da parte analítica do trabalho. A
seleção final partiu da opção pela formação de grupos temáticos. Ou seja, os
contos foram agrupados de acordo com certa similaridade temática, por
32
O único livro do qual não foi selecionado nenhum conto é A Cabeça, publicado em 2002, pela Cosac &
Naif.
99
tratarem de aspectos singulares do amar. A seqüência de subtemas favoreceu
a constituição de um panorama que abrangesse as formas e significados que a
temática amorosa desempenha no universo ficcional de Luiz Vilela.
4.2.1 O Amor como Vertigem: Redenção e Danação
O amor é um grande laço, um passo pra uma armadilha
Um lobo correndo em círculos pra alimentar a matilha
O amor é como um raio galopando em desafio
Abre fendas, cobre vales, revolta as águas dos rios
Quem tentar seguir seu rastro, se perderá no caminho
Na pureza de um limão ou na solidão do espinho
(Djavan)
Os contos que compõem este grupo o “Tremor de Terra”, publicado
em volume homônimo, em 1967, e “No Bar”, também publicado em volume
homônimo, em 1968.
O ponto de contato entre esses dois contos é o fato de o amor ser, de
uma forma ou de outra, concretizado pela narrativa como centro da vida do
sujeito. Conforme se tratará de refletir durante a análise, ainda que cada texto
tenha seu eixo próprio de problematização e de realização artística, há neles
uma maneira próxima de abordar a temática amorosa. É possível depreender
certa proximidade entre o amor retratado aqui e a conceituação do amor-paixão
(ou amour-passion, ou ainda amor apaixonado) e também do amor romântico.
De alguma forma, o amor é tratado como sentimento desestabilizador,
aproximando-se do êxtase, da loucura e da morte. É curioso como um conceito
que precede a Idade Média (no caso no amor-paixão) e outro que data do final
do século XVIII (amor romântico) ainda vigorem no imaginário coletivo.
Interessante notar como tais conceitos adquirem novos contornos e envolvem
novas problemáticas em uma obra contemporânea.
O conto “No Bar” (1984), diferentemente da maioria dos contos do autor,
é verborrágico. A presença de um narrador-personagem que fala, teoriza,
analisa não é algo usual em Luiz Vilela. Nesse conto, existe tal característica: o
pensamento é discursivizado. O trabalho é muito mais a tessitura do dito que
do não dito. Isso aponta para certo tom ensaístico, reflexivo que Hutcheon
(1991) alinha às tendências pós-modernistas da arte.
100
Retomando a idéia de recorte como característica desse gênero literário,
a cena capturada para o desenvolvimento da narrativa é um pequeno
fragmento, um curto momento no qual o narrador-personagem expõe a um
interlocutor algumas passagens decisivas de sua juventude. O ambiente é um
bar. O texto se inicia no decorrer da conversa, partindo de algo prosaico,
usual, ou seja, um bate-papo entre dois homens que tomam cerveja: “Você não
está me ouvindo, eu digo. Estou sim, diz ele. Você está bêbado, você não
está mais ouvindo o que eu estou falando” (VILELA, 1984, p. 150).
O ambiente não apresenta nada de extraordinário, não haverá também
nenhum acontecimento surpreendente. A linguagem é fluida, pida,
cadenciada pelo ritmo da oralidade. No entanto, na fala do narrador-
personagem e na urdidura do jogo narrativo serão abordadas questões
pontuais para o homem contemporâneo. Esta análise estrutura-se a partir do
pressuposto de que o referido conto nos apresenta uma questão fundamental,
ou seja, a crise do sujeito pós-moderno. Tal crise fundamenta-se na crítica
visceral aos princípios racionalistas que constituíram a modernidade.
Sendo assim, a proposta é pensar a respeito das formas pelas quais tal
crise se configura por exemplo, o drama da incomunicabilidade, tema
vastamente abordado por Vilela. Além disso, defende-se a idéia de que a
noção de amor apresentada, assim como a história de amor narrada, são
facetas da crise do sujeito, são formas de atacar o ideário da modernidade e
evidenciar o drama da inadequação contemporânea.
Primeiro ponto: existe a construção de uma atmosfera que respalda as
angústias do narrador-personagem. A problemática da solidão humana, antes
de ser dita, concretiza-se em atmosfera. A via de concretização, supõe-se, está
na própria elaboração das características e do papel desempenhado pelo
interlocutor do protagonista. O papel desempenhado pelo outro na narrativa é o
de pontuar a fala do narrador-personagem, de ouvi-lo e, vez ou outra, trazê-lo
de volta de suas digressões: “E depois, como que foi? Pergunta meu amigo,
enquanto olho para a rua, que começa a ficar deserta [...]” (p. 156).
Nada se sabe da vida do interlocutor e ele funciona muito mais como um
tipo de espelho no qual se reflete o discurso ímpar do narrador, do que como
indivíduo pleno com o qual um outro se comunica. Várias são as falas do
protagonista que apontam para o fato de a conversa não estar acontecendo de
101
fato. Ele desconfia que seu interlocutor não esteja ouvindo por conta da
embriaguez; que não está compreendendo o que é dito por ignorância e,
depois, conclui que diálogos reais são impossíveis, que estamos todos
condenados a não conseguir atingir o outro:
Falei sim, mas isso não tem importância nenhuma. O que a gente diz
não quer dizer nada. A gente diz porque não há outro jeito, mas dizendo
ou não dizendo, na mesma. A gente diz porque tem medo. Somos
crianças no escuro, que têm medo e falam alto para ouvir a própria voz.
Você sabia que a gente só ouve a própria voz? (p. 151)
Além disso, não nenhum sinal de afeto entre eles, de amizade sólida,
de companheirismo. O narrador-personagem caracteriza seu interlocutor de
maneira pejorativa e isso deve ser considerado como um elemento constituinte
da ambiência de solidão proposta pelo conto:
[...] você estava falando naquele troço, como chama, é um nome meio
complicado, como que é, e ele fica procurando lembrar a porra desse
nome complicado, o imbecil. In-ter-sub-je-ti-vi-da-de mo-na-do-ló-gi-ca,
eu digo. Exato, diz ele, arreganhando a boca suja de chope é isso o que
eu queria falar [...] (p. 150).
Pois bem, criada a referida atmosfera, o protagonista contará ao
narrador dois fatos decisivos de sua juventude. O primeiro deles foi a doença
mental do melhor amigo, depois o relacionamento vivido com uma mulher que
o abandonou: “Quando aconteceu aquilo [a doença de Lúcio], foi uma queda
terrível para mim. Só me reergui bem depois, com Lídia mas foi para tornar a
cair: assim é a vida” (p. 153).
Voltemos então o olhar para o caso ocorrido com Lúcio. Ele e Branco (o
narrador-personagem) eram amigos inseparáveis. Frágeis diante da realidade,
supriam a inadequação com um arsenal cultural que os diferenciava
positivamente dos demais, é o próprio Branco quem rememora: “[...] nós dois
também, os gênios da praça” (p. 153). A intensidade da ligação entre os dois
pode ser confirmada com a seguinte passagem:
E é o que acontecia conosco: falávamos muito para calar, não tanto um
ao outro, mas cada um a si mesmo. Tínhamos medo do silêncio, ele era
forte demais para nós. Como falávamos e líamos! Emendávamos o dia
com a noite, sempre juntos, amparando uma solidão na outra, como
uma carta de baralho na outra, para não cairmos os dois (p. 153).
102
Se esse vínculo não era suficiente para resolver a solidão para a qual
Branco nos inevitavelmente fadados, ao menos a existência de alguém que
compartilha angústias da mesma ordem minimizava o desamparo. É uma
espécie de identificação pela falta, pelo não pertencimento, pela ausência de.
Como aleijões que se unem por se reconhecerem um no outro e assim forjarem
uma sensação de pertencimento.
A crise que detonou a loucura de Lúcio surgiu de uma questão
aparentemente teórica que também angustiava Branco. Os jovens haviam
descoberto uma confirmação para a impossibilidade de comunicação humana.
Concluem que as mônadas, conceito cunhado por Leibniz, são incomunicáveis
porque não têm janelas. O conto constrói uma espécie de alegoria para a
frustrante descoberta da natureza inevitável das coisas:
As mônadas não têm janelas por isso são incomunicáveis. Cada um
de nós uma mônada, você uma mônada, eu outra, ele outra, e ninguém
podendo se comunicar, entende? Se era assim, viver era um inferno,
uma porcaria. Aquele dia nós morremos, e quando fomos para casa, é
como se cada um tivesse ido para o túmulo. Ele depois ressuscitou,
mas eu não, eu continuo morto, entende? (p. 150)
O que o personagem está chamando de “ressuscitar” é a saída
apresentada pelo texto, ou seja, o ingresso em uma ordem outra que não a da
consciência. A doença do amigo é reconhecida como a única maneira de
escapar da natureza ontológica da solidão humana, solidão irremediável,
constitutiva do gênero humano. A tensão surge da certeza de que o homem é
um ser sociável e depende do outro para existir, estando, ao mesmo tempo,
condenado à incomunicabilidade. Lúcio encontrou uma saída, libertou-se da
lógica racionalista, desvencilhou-se da realidade: “Encontrei! encontrei! ele
berrava feito um louco no telefone. Encontrou o quê, meu Deus? A solução!
Solução? solução de quê? Quê que a gente faz, quando não janelas nem
portas? a gente sai pela chaminé!” (p. 151).
Neste conto, salta aos olhos uma característica da escritura de Vilela,
apontada por Fábio Lucas (1970):
[...] seus contos trazem profunda significação filosófica, apanham o
homem mutilado por sua incapacidade de comunicar-se. Os seres não
transmitem a sua essência e sofrem, arruínam-se. A palavra torna-se
um veículo imperfeito e enganador (p. 127).
103
No decorrer do conto, é possível depreender, em vários momentos, a
desvalorização do racionalismo iluminista. Temos um sujeito em crise, para o
qual as antigas respostas não são suficientes. A estabilidade que as
sociedades pré-modernas obtinham de uma organização pautada pela
centralidade divina muito deixou de ser possível. De acordo com Stuart Hall
(1999):
As transformações associadas à modernidade libertaram o indivíduo de
seus apoios estáveis nas tradições e nas estruturas. Antes se
acreditava que essas eram divinamente estabelecidas; não estavam
sujeitas, portanto, a mudanças fundamentais. O ´status`, a classificação
e a posição de uma pessoa na ´grande cadeia do ser’ a ordem
secular e divina das coisas predominavam sobre qualquer sentimento
de que a pessoa fosse um indivíduo soberano (p. 25).
O narrador-personagem não poderia se amparar nesta “ordem divina
das coisas”, é por isso que ele mesmo questiona o poder de intervenção divina,
subvertendo uma célebre passagem bíblica: “Meu Deus, meu Deusinho, eu te
perdôo porque você não sabe o que faz, eu também não sei o que faço, e
estou bêbado, e cansado, e só” (VILELA, 1984, p. 151).
No entanto, o conceito cartesiano de “sujeito racional, pensante e
consciente, situado no centro do conhecimento” (HALL, 1999, p. 27) não é
suficiente para cobrir a realidade de significado. A ordem do mundo é outra.
Não deixa de ser significativo que a primeira crise da personagem tenha como
substância um conflito conceitual com um filósofo racionalista, como é o caso
de Leibniz
33
. O narrador-personagem parece nos dizer que a razão não é
viável, não pode se configurar como saída diante da realidade contemporânea.
Segundo Hall (1999), data da primeira metade do século XX um quadro
que perturba tanto a noção de sujeito, quanto a de identidade. Dessa forma,
houve uma ruptura nos discursos do conhecimento moderno. O autor aponta
cinco grandes avanços na teoria social e nas ciências humanas ocorridos no
pensamento, na segunda metade do século XX. Tais avanços resultaram no
descentramento final do sujeito cartesiano. Os avanços apontados são, grosso
modo, os seguintes: as novas interpretações do pensamento marxista; a
descoberta do inconsciente por Freud; as pesquisas lingüísticas de Saussure; a
33
Leibniz (1646-1716), grosso modo, construiu seu pensamento a partir de uma síntese entre o
racionalismo cartesiano e o finalismo aristotélico (CHAUÍ, 2004).
104
genealogia do sujeito moderno construída por Foucault e, finalmente, o impacto
do movimento feminista.
Sendo assim, Hall (1999) nos mostra um caminho por meio do qual, “[...]
o ´sujeito` do Iluminismo, visto como tendo uma identidade fixa e estável, foi
descentrado, resultando nas identidades abertas, contraditórias, inacabadas,
fragmentadas, do sujeito pós-moderno” (p. 46).
Isso posto, a busca será por verificar como as angústias do narrador-
personagem podem confirmar sua configuração como sujeito pós-moderno,
principalmente por meio das críticas e avaliações que este faz acerca de sua
vida e da realidade.
Conforme foi dito, é sintomático que o narrador nos apresente como
marco fundamental de sua vida uma descoberta acerca da impossibilidade da
proposta de um filósofo racionalista. É igualmente sintomático o fato de ele não
considerar a saída encontrada por Lúcio como um quadro patológico. Antes
disso, ele tece críticas aos procedimentos oferecidos pela medicina. Na ótica
de Branco, a autoridade da ciência é algo questionável, algo que beira a
ignorância, a incapacidade para perceber essências que transcendem essa
lógica. Branco questiona a capacidade explicativa do cientificismo:
Levaram ele num psiquiatra, o psiquiatra disse que era um caso muito
sério, mas que com uns choques talvez ele ficasse bom. O animal.
Queria estar na hora para dar um murro na fuça dele. Deram os
choques, mas Lúcio ´não ficou bom`. Felizmente. O médico, por fim,
disse que era um caso irrecuperável, que a psiquiatria, apesar de
altamente evoluída, não podia fazer nada naquele caso; arrumou uns
nomes complicados, embrulhou o pessoal, pegou os seus cobrinhos e
foi dormir o sono dos justos. Tentaram outros médicos também, outros
lugares, mas a opinião era sempre a mesma: um caso irrecuperável.
Está vendo como eles não entenderam nada? (VILELA, 1984, p. 157)
Além disso, o protagonista valoriza estágios nos quais o poder da
consciência está diluído. A plenitude da consciência não oferece respostas,
funciona como prisão, como algo que turva a realidade. Ao expor as sensações
provocadas pela embriaguez, é assim que Branco se expressa:
[...] uma claridade que me cega de tão clara, uma febre nos olhos, na
testa, na garganta. Depois vem uma calma, um abandono, uma
sensação de paz, de que tudo está bem, e parece que vejo as coisas
com maior clareza e que perco aquilo que me segura e me espreita
como um olho pelo buraco da fechadura quando começo a falar (p.153).
105
O personagem manterá a mesma linha de raciocínio ao expressar suas
opiniões sobre o amor. Mais que isso, a própria maneira como ele se entrega à
vivência amorosa é em si uma crítica às amarras impostas pela
racionalidade moderna. Temos então dois eixos complementares: o que é dito
sobre o amor e o que é vivido. São eixos convergentes e o ponto de contato é
a crise desse sujeito que já não se enquadra nos moldes racionalistas de vida.
O relacionamento estabelecido entre Branco e Lídia continha o ar
desestabilizador da ordem presente no conceito de amor-paixão. Como se
sabe, a modernidade trouxe inúmeros discursos normatizadores da intimidade.
O amor-paixão foi sempre combatido por trazer em si algo ameaçador da
ordem social. Esse rompimento com a ordem aproxima-se da loucura, do
estado de embriaguez, do entorpecimento, ou seja, de outras formas de
libertação da consciência valorizadas pelo narrador-personagem. É assim que
alinhada à importância conferida ao que aconteceu com Lúcio, está a relação
com Lídia.
Nota-se que o modelo de vínculo construído com essa mulher tem como
base algo aproximado do amor-paixão, justamente pelo caráter de centralidade
que o amor ocupa na vida do sujeito e a conseqüente desordem instaurada a
partir dele:
Como gostei de Lídia. Escrevi poemas, bebi, chorei por causa dela.
Pensava nela vinte e quatro horas por dia, acordado ou dormindo.
Apanhei essas rugas que você vê aqui; antes meu rosto era liso como o
de uma criança. Emagreci, pensei em suicídio. Ela era tudo para mim,
não havia escolha: ela era Deus, a felicidade, a alegria, a juventude,
tudo (p. 154).
Deve-se salientar, entretanto, que o conceito de amor-paixão geralmente
engloba uma ligação entre amor e atração sexual. De acordo com Giddens
(1993, p. 48):
O amor apaixonado é marcado por uma urgência que o coloca à parte
das rotinas da vida cotidiana, com a qual, na verdade, ele tende a
conflitar. O envolvimento emocional com o outro é invasivo tão forte
que pode levar o indivíduo, ou ambos os indivíduos, a ignorar as suas
obrigações habituais. O amor apaixonado tem uma qualidade de
encantamento que pode ser religiosa em seu fervor. Tudo no mundo
parece de repente viçoso, embora talvez ao mesmo tempo não consiga
captar o interesse do indivíduo que está tão fortemente ligado ao objeto
do amor. O amor apaixonado é especialmente perturbador das relações
106
pessoais, em um sentido semelhante ao do carisma; arranca o indivíduo
das atividades mundanas e gera uma propensão às opções radicais e
aos sacrifícios.
Dessa forma, é preciso dizer que a proximidade entre a configuração
amorosa apresentada pelo narrador-personagem e o conceito de amor-paixão
limita-se ao caráter de arrebatamento que o sentimento apresenta. Não , no
conto, nenhuma menção aos aspectos sexuais do relacionamento.
Branco atribui à figura da mulher amada a potencialidade de conter em
si a redenção de todos os aspectos negativos da realidade. O amor é
transcendência, ruptura, sublimação, êxtase. Falando de amor, o narrador
personagem novamente fará forte oposição ao ideário racionalista. Ele
despreza os ideais de saúde e equilíbrio. Somente o amor-paixão é verdadeiro:
Veja um sujeito que está amando, mas amando mesmo, como eu
estava naquela época, e me diga se ele não é um sujeito doente. Claro,
os equilibrados, os normais, os sadios, todos esses tipos nojentos
[...]. Eles amam porque amar é uma coisa que eles têm de fazer, como
tem de comer e dormir; arranjam uma mulher porque é uma coisa que
eles têm de arranjar um dia, como têm de arranjar uma casa, um filho,
uma posição social, para viver em harmonia com o rebanho [...]. Amor é
uma coisa que queima, que devora, que enlouquece às vezes, que
mata. Amor sadio: essa nojeira dos livros sobre a arte de viver (p. 154).
Entretanto, a realidade não é algo que o personagem pode realmente
transcender. Os aspectos prosaicos da existência lhe devolvem ao estado de
consciência, sugerindo que o êxtase provocado pelo amor é tão efêmero
quanto a embriaguez. É assim que Lídia o abandona. Assim como em outros
aspectos da vida, o sujeito está entregue a sua própria solidão, o amor sentido
não é suficiente para atingir o outro. Dessa forma, ao contrário da condenação
que poderia se abater sobre um casal entregue ao amor apaixonado, aparece
um outro tipo de danação. É a miséria do desamor:
O amor é o que existe de mais solitário no homem. A gente costuma
pensar no amor como algo que estivesse no ar e aparecesse de
repente para unir duas pessoas mas não, não é assim, não é nada
disso. O amor é solitário, é uma coisa que está aqui dentro, uma coisa
que a gente sente pelos outros e que os outros podem não sentir pela
gente. Amar alguém é descobrir a nossa solidão. Isso eu sentia muito
com dia. Gostava tanto dela que dizia: ela tem de gostar de mim, não
é possível que ela não goste de mim. Era possível sim (p. 155).
107
Sendo assim, o amor-paixão configura-se como um reforço para a
solidão ontológica do sujeito. Ainda que o sentimento e o conceito existam, eles
não são suficientes, a força do acaso é maior. Não importava o quanto Branco
amasse Lídia. Ela, por uma razão ou por outra, não correspondeu ao
sentimento. O amor não se concretiza em realização pessoal em função do
acaso, de algo muito banal, muito simples, mas contra o qual não se tem
nenhuma arma: ela não o amava. As reflexões de Branco acerca do amor
terminam com esse gosto da tragicidade do nada, do vazio, do não haver.
“Tremor de Terra” (1967) é também narrado em primeira pessoa. Da
mesma forma que em “No Bar” (1984), a construção textual se a partir do
discursivizado. O personagem nos conta sua história, diz dos seus sentimentos
e tece avaliações a respeito de questões que o afligem, não havendo, porém, a
presença do interlocutor.
É necessário lembrar que a utilização da primeira pessoa relativiza o que
é contado, ou seja, não se sabe se as impressões registradas são frutos
apenas da percepção do narrador ou se possuem existência objetiva: “Daí
advém a ambigüidade que, para o leitor e para a própria personagem,
desenha-se em cada narrativa, que ela se sente potencialmente contestável
pela realidade” (HOHLFELDT, 1988, p. 119). O efeito de sentido apreendido é
uma valorização da intimidade, da percepção íntima. Neste conto, é ela quem
importa. A concretude das coisas só tem significado quando balizadas pelo
sujeito. Importa mais como ele viu e sentiu do que a precisão realista.
Em “Tremor de Terra” é possível dizer que o eixo central da narrativa é
uma história de amor. A vivência amorosa não está diluída entre angústias
outras do personagem. um tom confessional, não a construção de uma
cena, de um momento no qual se passa o enredo. O narrador nos conta
diretamente o vivido. É uma narrativa tensa, ritmo nervoso marcado por
pontuação precisa. A utilização do fluxo de consciência acentua tal ritmo,
propiciando não o conhecimento das angústias da personagem como a
própria forma vertiginosa de suas sensações.
A história é a história de um sentimento, não de um relacionamento. O
narrador, quando tinha quase vinte anos, apaixona-se por uma professora. Ela
é uma mulher casada, tem filhos e nem sequer soube do sentimento nutrido
pelo rapaz. O amor assume a forma de uma espécie de encantamento
108
epifânico, transformando a vida do narrador. É possível depreender do conto
questões relativas ao amor sentido, à visão do narrador acerca do amor e,
ainda, algumas continuidades e rompimentos quanto aos aspectos
generificados das relações.
Primeiro o amor sentido. Esse amor não se apresenta com
tendências ao amor confluente (GIDDENS, 1993), que seria uma modalidade
contemporânea de organizar o sentir. O amor do jovem pela professora
constitui-se de elementos associados aos conceitos de amor-paixão e de amor
romântico. Evidente que não é pretensão desta análise a precisão
classificatória. Isso nem seria possível. Esses conceitos não são suficientes
como não costumam ser os conceitos para dar conta da complexidade dos
sentimentos humanos. Procura-se, antes, desvendar tendências, perceber
continuidades, subversões, enfim, os contornos que, muitas vezes, padrões
antigos assumem diante de uma realidade outra.
Logo no início do texto, o narrador nos apresenta a natureza
surpreendente do que sentiu. O sentimento foi tão arrebatador e grandioso que
a linguagem não é suficiente para lhe cobrir de significados. Deve-se salientar
que apontar para a impossibilidade de transformar o sentido em linguagem
pode ser considerado uma valorização do caráter irracional do sentimento. É
algo que de tão imenso não se reduz a categorias lógicas. Acredita-se que a
crítica à racionalidade moderna esteja também presente neste conto: “O que
senti, não parava de escrever se fosse falar nisso, algumas coisas nem ia ter
jeito de falar de tão estranhas e incompreensíveis” (VILELA, 1967, p. 155).
A primeira proximidade com o ideário do amor romântico está no fato de
o amor acontecer à primeira vista. Dessa forma, não há a valorização, presente
no amor confluente, do relacionamento especial. A pessoa é especial e o
relacionamento não tem importância determinante. O encontro tem algo de
mágico: “Apaixonei-me de cara, no primeiro dia, no primeiro instante, foi um
troço doido, eu não escutei uma vírgula do que ela falou na aula, não
despregava os olhos dela, era uma coisa maluca, um desatino” (p. 155).
Retomando as observações de Giddens (1993) acerca do conceito de
amor romântico:
109
Freqüentemente considera-se que o amor romântico implica atração
instantânea – amor à primeira vista. [...] O ´primeiro olhar` é uma atitude
comunicativa, uma apreensão intuitiva das qualidades do outro. É um
processo de atração por alguém que pode tornar a vida de outro
alguém, digamos assim, ´completa` (p. 51).
No entanto, o ideário romântico pressupõe a noção de continuidade, de
envolvimento. Ainda que o foco seja a “pessoa especial” que inevitavelmente
fará do relacionamento algo positivo, o relacionamento não é dispensável.
Então, verifica-se uma ruptura. O narrador sabe que o relacionamento não é
possível e não pretende lutar por isso. Tanto que notasinais de que ela é
casada como a aliança no dia seguinte. Nas narrativas românticas o usual
é que o casal sofra com um impeditivo social para a consumação do amor.
Aqui não há a constituição do casal. O sentimento é unilateral.
Outro ponto que aproxima a vivência do narrador com os conceitos de
amor romântico é a certeza que esse narrador tem de que um outro indivíduo
pode suprir a incompletude humana. Ainda de acordo com Giddens (1993), o
encontro da pessoa especial preenche um vazio na auto-identidade do sujeito,
como se o indivíduo fragmentado se tornasse uno, complementado pelo outro.
Uma visão de tendência mais contemporânea, mais próxima dos ideais de
amor confluente, partiria da certeza de somos naturalmente fragmentados e
que vazios não são preenchíveis por outros indivíduos. Veja a importância
creditada pelo narrador ao papel dessa “pessoa especial” em sua vida:
Era como se durante toda a minha vida, desde criança, estivesse
procurando uma coisa decisiva para mim e para isso tivesse batido
milhares de vezes diferentes em portas fechadas por trás das quais
estava o que eu procurava, mas a porta não se abria [...]; mas de
repente ela havia entrado na sala, entrando como entraria em qualquer
outro dia e do modo como qualquer outra pessoa entraria, e eu
descobria que era ela o que eu havia procurado todo aquele tempo, a
coisa decisiva, mais importante, a que daria sentido a todas as outras, a
peça fundamental que estava faltando para tudo funcionar (p. 156).
Outra questão interessante diz respeito às tangências e discrepâncias
entre os conceitos de amor-paixão e de amor romântico. Conforme foi dito
ainda nesta seção, o amor-paixão é marcado pelo seu caráter transgressor, por
retirar o indivíduo de suas atividades cotidianas, contendo sempre o caráter de
arrebatamento violento. Isso é narrado pelo personagem, ele não consegue
110
dormir na noite que a conheceu, e explica que não ficou “simplesmente”
pensando nela: “[...] porque a coisa era muito mais vasta, muito mais profunda,
era como uma dança louca de todas as células do meu corpo” (p. 156). Depois,
ele desenvolve uma espécie de obsessão, de necessidade de saber detalhes
cada vez mais específicos da vida da mulher. O sentimento invade a vida do
narrador e determina outro formato para seu cotidiano.
Entretanto, também conforme foi dito, o amor-paixão costuma
apresentar ligação com a atração sexual. Na fala do narrador tem substancial
importância o caráter o sexual do amor sentido. Sendo assim, talvez se
possa dizer que haja mesmo uma proximidade maior com o ideário do amor
romântico, que, de acordo com Giddens (1993), guarda relações com o amor-
paixão:
O amor romântico, que começou a marcar sua presença a partir do final
do século XVIII, utilizou tais ideais [valores morais da cristandade] e
incorporou elementos do amour-passion, embora tenha-se tornado
distinto deste. [...] na medida em que a atração imediata faz parte do
amor romântico, ela tem de ser completamente separada das
compulsões sexuais/eróticas do amor apaixonado (p. 50-51).
O narrador, enquanto conta e analisa seus sentimentos, buscando
sentido para o vivido, esclarece: “[...] eu não queria tê-la também apenas
fisicamente; não tinha intenções escusas, para falar difícil (p. 158)”. Depois
complementa: “Para dizer a verdade, a idéia de sexo com relação a ela
servia para estragar. Era estranho: a gente bate o olho numa mulher e vai logo
imaginando ela pelada, mas com ela eu não fiz isso, não fazia isso [...]” (p.
159).
Sendo assim, considera-se que seja possível uma primeira conclusão.
Este é um conto contemporâneo que guarda em sua maneira de abordar a
temática amorosa uma proximidade com o conceito de amor romântico. Como
se sabe, tal visão acerca do amor é o centro da maioria das narrativas do
período literário conhecido como Romantismo. Por isso, o caminho a ser
seguido por esta análise agora será no sentido de refletir sobre a localização
desse conceito no interior da narrativa, suas implicações e significados para a
construção da auto-identidade do narrador. Além disso, as narrativas do
período chamado de Romântico costumavam ter desdobramentos diferentes
111
em conseqüência de tal sentimento. Busca-se aqui verificar como o ideário do
amor romântico pode fazer parte das angústias do homem pós-moderno.
no início do conto, o narrador nos sugere uma inadequação. O que
ele sente não condiz com a realidade. É um sentimento pouco apropriado para
a idade dele, para a situação social dela:
[...] e eu apaixonei-me por ela como se eu fosse um rapazinho de
quinze anos e ela uma garota de quinze, mas eu não tinha quinze anos,
tinha quase vinte e ela mais de vinte e era casada e mãe e dona de
casa e professora, uma mulher com todos os requisitos para isso (p.
155).
Ou seja, o que ele sente, a importância do sentimento e a idealização da
mulher não são mostrados como coisas naturais. Antes, a marca do
impróprio, do ininteligível: “[...] como era infantil e maluco o que estava
acontecendo comigo” (p. 157). Esse estranhamento é uma marca da
natureza contemporânea do texto. O amor entendido como o personagem o
entende não é um componente do senso comum, é estranho.
Pensando na construção de uma auto-identidade, pode-se verificar que
o amor tem papel fundamental. Amar de maneira aproximada ao ideário do
amor romântico permite ao narrador diferenciar-se de certo perfil masculino
desprezado por ele. Talvez seja possível supor que se tenha, neste conto, o
delinear de uma nova masculinidade, pelo menos em alguns pontos. Por
exemplo, o narrador tece críticas ao fato de muitos homens tratarem suas
companheiras como objeto:
Não, não é isso, é o tipo da frase que eu detesto, o tipo da frase falsa;
ela não era ´minha`, nem eu queria tê-la; isso é influência das histórias
de amor que andei lendo, sempre tem um sujeito que diz de uma
mulher que ´ela é minha`, como se estivesse falando de uma escova de
dentes; pois um cara desses merece mesmo uma dona que seja como
uma escova de dentes (p. 158).
um homem questionando os paradigmas da masculinidade
34
. Ele
rejeita, inclusive, o “repertório cultural disponível” (COSTA, 2005, p. 05),
quando se refere à influência das “histórias de amor”. Dessa forma, o próprio
conto se constitui em uma alternativa, em um outro tipo de discurso para esse
repertório cultural. É assim, também, que ele questiona e menospreza a
34
Tal questionamento pode ser notado também no personagem do conto “Esse amor besta com inicial
maiúscula”, publicado em Tarde da Noite (1970).
112
competição sexual entre os homens, a postura do conquistador: “Tem gente
que precisa ter pelo menos uma vez na vida pegado a mulher de outro para
sentir-se realizado como homem; mas eu não, eu sou mais modesto [...]” (p.
158).
Ele é um homem que se sente diferente dos outros, que atribui a si
características usualmente consideradas femininas: “[...] eu sou confuso e
complicado [...]” (p. 159). O diferencial ora aparece como ponto positivo, ora
como negativo. É assim que ele se diminuído diante do marido de sua
amada:
Ele era simpático por que tenho vergonha de dizer bonito? Pois bem:
ele era bonito; alto, forte, elegante. Cônsul. Rico. Inteligente. Inteligente
eu também sou, às vezes tão inteligente que sou completamente doido.
Mas não sou bonito, nem tenho pinta de galã, sou todo desengonçado,
e principalmente não sou rico nem cônsul; não sou merda nenhuma (p.
163).
Ou seja, há, na visão que o personagem tem de si mesmo, o forte
sentimento de não pertencer, de ser diferente dos demais. É possível afirmar
que a maneira desse homem compreender o amor também componha o
quadro de inadequação. No momento em que ele consegue definir o que
realmente esperava ter com aquela mulher, a subversão violenta do ideário
romântico, como, aliás, de qualquer ideário que suponha continuidade,
estabelecimento de vínculo, enquadramento em rotinas aqui talvez se possa
supor maior proximidade com o amor-paixão –, organização racional do
cotidiano:
´Acaba virando` - é isso que mata o amor. Acaba virando tédio. Acaba
virando desespero. Acaba virando ódio. Acaba virando angústia. Acaba
virando infelicidade. E é isso que não haveria com ela. Não haveria
´acaba virando`, porque seria um momento só, mas um momento no
qual entraria tudo o que eu pensara, sentira, imaginara, desejara,
lembrara, esquecera, sonhara, tudo, um momento tão forte, tão
profundo, tão vasto, tão absoluto, que depois dele poderia haver o
suicídio ou a resignação total. Seria algo maravilhoso e terrível como
um tremor de terra (p. 161).
Novamente, como no conto “No bar”, estamos diante da valorização de
intensidades que subvertem a ordem racionalista instaurada pela sociedade
burguesa, ou seja, surgida com a modernidade. O êxtase buscado pelo
narrador não é condizente com nenhuma maneira racional de organização
113
social. Aproxima-se do caos, conforme imagem utilizada por ele mesmo: tremor
de terra. Temos, então, o amor assumindo a função de retirar o homem das
amarras da consciência.
Note-se que o personagem traz consigo a espera desse “tremor de terra”
desde a infância, portanto isso não estava restrito ao sentimento amoroso: “É o
que desde criança espero, um tremor de terra, algo que abalasse, que
tremesse, que sacudisse tudo” (p. 161). A espera antiga de algo que rompesse
com as lógicas estabelecidas alinha-se ao sentimento amoroso. Entretanto, o
tremor não acontece, assim como não a efetivação desse amar enquanto
estabelecimento de vínculo. Isso se concretiza no texto como uma derrota
daquilo que é sublime e grandioso em favor da rotina esvaziada de sentido e
regida por convenções:
[...] não, não vou encher a cara, vou pra casa dormir isso: vou para a
casa dormir, vou por o pijama, escovar os dentes, deitar, rezar uma ave-
maria, e amanhã vou arranjar uma namorada, Sônia ou Lúcia ou Marta
ou Regina ou Beatriz ou Marisa, e vou chamar ela de meu bem e ela vai
me chamar de meu bem e vou dar presentes para ela e ela vai dar
presentes pra mim e vamos ao cinema e vamos beijar e vamos ficar
noivos e casar e ter filhos e engordar e envelhecer e ter netos e morrer
e ser enterrados na terra que nos seja leve (p. 164).
O narrador conclui a fala apontando para a adequação ao esperado, ao
convencional, ao modelo de família nuclear burguesa. O amor sentido pela
professora não poderia ter continuidade. O tremor de terra não viria. Observa-
se que a inadequação do narrador ao modelo valorizado pela sociedade tem
relação direta com sua maneira de amar e de conceituar o amor. Outro
rompimento pode ser apontado aqui. O casamento apresenta-se como
adequação à norma. No entanto, o oposto à normatização da intimidade não é
a sexualidade transgressora. Não há aqui a dicotomia entre a sexualidade
casta do casamento e o arrebatamento sexual do amor-paixão.
Dessa forma, retoma-se a afirmação que a s-modernidade prima pelo
múltiplo. Os pares dicotômicos, organizados em formas estanques,
desaparecem, ou melhor, adquirem contornos fluidos. O amor pela professora
é devastador, mas se distancia do ardor sexual. O casamento permanece
como uma forma esperada de organização da intimidade, com seus aspectos
de emoções controláveis, mas isso para o narrador. O casamento da
professora com Ricardo não é tratado como um relacionamento falseado, de
114
fachada. Concluindo, a antiga polaridade entre o amor domesticado pelo
casamento e o arrebatamento das paixões adquire contornos múltiplos: não é o
ardor sexual que torna o sentimento intenso. A subversão da racionalidade não
possui pontos de tangência com o esquema dual, tão ao gosto da
modernidade, entre corpo e alma.
Além disso, apesar dessa inadequação não resultar em uma saída
satisfatória para a personagem, ela é apresentada pelo conto como algo
positivo. O amor enquanto êxtase é valorizado por meio da sua ausência, por
meio do não acontecido, do vazio gerado pelo não haver.
Partindo agora para a explicitação de algumas conclusões possíveis, os
dois contos analisados trazem um ponto de tangência, ou seja, o sentimento
amoroso, independente do vínculo surgido dele, possui força revolucionária. O
amor é tratado como antídoto ao aprisionamento da razão, da consciência. A
cosmovisão construída pelo humanismo iluminista, com todos os seus
desdobramentos, teria, na força arrebatadora desse sentimento, forte opositor.
Nos dois contos, Vilela não nos deu personagens que tiveram seus
dramas existenciais dissolvidos pelo envolvimento amoroso com o outro. Tanto
em um quanto em outro, a realização afetiva enquanto acontecimento fica
suspensa, como um tipo de possibilidade que não vingou. O não acontecer
nunca se materializa com contornos grandiosos. Lídia não amava Branco. A
professora tinha um casamento feliz com Ricardo. A força é do acaso. Note-se
que a inevitabilidade do acaso tem sido apontada como eixo significativo de
vários contos analisados nesta dissertação.
Entretanto, ainda que esses sujeitos permaneçam enredados em
infelicidades, os contos não trazem em si uma visão totalmente melancólica da
vida contemporânea. A construção de personagens que acreditam e discorrem
a respeito dessa força redentora presente no amor, é por si só algo que
sugere saídas. Retomando o que foi dito, contar a angústia do desamor é
também uma forma de enaltecer o amar.
115
4.2.2 A Clausura
do Cotidiano Conjugal
Ele fala em cianureto
E ela sonha com formicida
Vão viver sob o mesmo teto
Até que alguém decida
(Chico Buarque)
Os contos selecionados para esta análise abordam a temática amorosa
a partir do choque entre o idealizado como vivência satisfatória e a realidade. O
amor seria incompatível com as demandas da realidade. O dia-a-dia torna os
casais incomunicáveis, embrutecidos. As perspectivas de futuro, construídas
ainda sobre um ideário romântico, são frustradas por uma vida doméstica banal
e pouco lúdica. Esse viés temático foi depreendido dos contos “Por toda a vida”
e “Nosso dia”, ambos presentes no volume Tremor de Terra, publicado em
1967. Curiosamente, ambos os textos centralizam a focalização na
personagem feminina.
O conto “Nosso dia” é narrado em terceira pessoa. Conforme observou
Rauer Ribeiro Rodrigues (2006):
Constatamos que em ´Nosso dia` o autor utilizou-se do diálogo, de fluxo
de consciência e de asserções narrativas rápidas, quase rubricas
cênicas, indicando gestos. O narrador é onisciente, mas sua onisciência
desvenda apenas alguns flashes do pensamento da mulher. O discurso
expõe a história como uma cena, o leitor sendo um voyeur que assiste
ao desenrolar dos fatos na privilegiada posição de convidado invisível
do jantar (p. 165).
Como é habitual na produção de Vilela, conforme foi dito, tem-se uma
espécie de neutralização da voz do narrador e grande ênfase nos diálogos.
Dessa forma, o narrador oscila entre o retrato das ações do homem e dos
pensamentos da mulher. Esse movimento pendular resulta na exposição do
distanciamento existente entre o casal, ou seja, entre os gestos do homem e as
lembranças da mulher aflora o não-dito, o silêncio. Aquele silêncio estrutural
utilizado como recurso narrativo intensificador da tensão. O narrador o
analisa, não julga, não tece comentários, apenas mostra, intercalando
silenciosamente.
A mulher preparou um jantar especial. É aniversário de dez anos de
casamento. O homem não valoriza a iniciativa. Não há, para ele, significado
naquela celebração. O título do conto carrega uma dose de ironia. “Nosso
116
dia” aponta para algo que inclui os dois parceiros. No entanto, apenas para a
mulher esse dia tem algo extraordinário. A utilização do vocábulo “nossoserá
uma constante na fala da mulher, acentuando a expectativa de unidade. Sendo
a expectativa acentuada, mais intenso torna-se o desnudar da inexistência da
unidade desejada.
A primeira fala da mulher é: “— O franguinho é especialmente pela data.
Para comemorar a nossa
35
data” (VILELA, 1967, p. 57). O narrador
imediatamente focaliza o marido: “O homem quebrou o pescoço do frango e
chupou fazendo barulho a boca lambuzada de gordura, os fios escuros da
barba crescida brilhando” (p. 57). A imagem masculina é intencionalmente
grosseira e desconectada dos sentimentos e fantasias da mulher. no início
do conto a idéia de unidade entre o casal é rompida.
O narrador focaliza o pensamento dela: “Dez anos, a mulher estava
pensando, dez anos” (p. 57). Ela tenta mostrar para o marido a importância da
data: “— Dez anos, hem...” (p. 57). Não é ouvida. A fala do marido é de quem
não ouviu, de quem está alheio, centrado na satisfação das necessidades
básicas, fisiológicas:
-- Cadê a pimenta?
-- Mais? Pus três malaguetas!
--Três malaguetas; quê que é três malaguetas nessa comida toda? (p.
57).
A memória da mulher continua trazendo para o presente algo que
transgride o ritmo cotidiano. A recuperação da memória tem a função de
tentativa de rompimento com uma vivência banalizada, despida de
transcendências, como se recordar o ritual do casamento católico pudesse
trazer para a realidade qualquer coisa de mágico. É assim que o dia do
casamento é rememorado como muito azul. No entanto, a tentativa não
apresenta eficácia:
(Um dia tão azul... sou hoje a mulher mais feliz do mundo... você está a
noiva mais bonita do mundo...)
-- Merda, esse osso não quebra!
-- Lembra aquela velhinha que quis nos cumprimentar primeiro que todo
mundo? “Muitas felicidades, meus pombinhos, muitas felicidades...
Lembra?
35
Sempre que a expressão “nosso” aparecer na fala na mulher, será usado itálico.
117
-- Uma velhinha? Não sei.
-- Ô, aquela velhinha, aquela velhinha magrinha que nos cumprimentou
primeiro que todo mundo, não lembra?
-- Vou lembrar uma coisa dessas?
-- Mas foi no nosso casamento, bem.
-- E quê que tem isso? (p. 58).
A necessidade de subverter uma realidade tacanha é tão intensa que se
dá por meio da recuperação do ritual. Nesse caso, o ritual do casamento
religioso. Trazer à tona fatos acontecidos naquele dia é luta contra a ausência
de emoção e transcendência que constitui a vivência do casal. O ritual é
recuperado ainda através de certos símbolos. Para tornar o dia especial, extra-
cotidiano, a casa foi enfeitada com lírios – a mesma flor que enfeitou a igreja.
A falta de unidade entre o casal impede que o rompimento com a aridez
da existência concreta se efetue. O homem não se desvincula de questões
práticas, não adere ao jogo, não se comove. Os lírios perdem a função
ritualística e transformam-se em aquisição inútil, em desperdício de dinheiro. A
frustração do esforço da mulher resulta numa explosão discursiva que
evidencia o quanto suas expectativas com relação a vida afetiva o se
concretizaram:
-- Você não tem sensibilidade. Você não pode compreender essas
coisas. Você não sabe o que é ternura, o que é carinho. Foi para você,
para nós, pelo nosso dia, que eu comprei os lírios. Foi para isso
também que eu enfeitei a casa, que eu coloquei essa toalha nova na
mesa; mas você não notou nada disso. Nada disso teve importância
para você. Foi como se eu não tivesse feito nada disso. Uma palavra,
esperava pelo menos uma palavra, esperava pelo menos uma
palavrinha sua sobre o nosso dia, uma palavra de carinho, uma
brincadeira... Nada. Foi como nos outros dias, não teve absolutamente
nenhuma diferença dos outros dias; como nos outros dias, desde que
você sentou aqui você só pensou em uma coisa: comer; comer e beber.
Não teria importância nenhuma se eu não estivesse aqui. Não,
nenhuma (p. 60).
A configuração apresentada, no âmbito das práticas sociais, es de
acordo com os padrões tradicionais de conjugalidade
36
. Sendo assim, temos o
vínculo afetivo balizado pela instituição familiar e pelo ritual católico. A dinâmica
familiar também obedece aos princípios convencionais, ou seja, a divisão de
tarefas é pautada pelas funções historicamente atribuídas a cada gênero. A
36
Os princípios que normatizaram a família nuclear burguesa estão expostos no primeiro capítulo desta
dissertação. Os termos tradicional e convencional referem-se, necessariamente, a tais princípios.
118
mulher administra o espaço doméstico. O homem é provedor. A referida
distribuição de papéis é tratada como algo natural e as funções advindas dela
não são questionadas: é da esposa a obrigação de trazer mais pimenta para a
mesa; é do esposo a obrigação de trazer recursos financeiros para a casa. Até
mesmo os estereótipos identitários de gênero são confirmados. A mulher afeita
a fantasias, o homem, a demandas da vida prática: “Engraçado, então eu dou
um murro lá na loja para você depois comprar lírios? Tem graça” (p. 59).
A atmosfera criada pelo conto nos remete ao casamento esvaziado de
apetites, explicitado por Priore (2005). O nculo entre os parceiros é dado
como algo indissolúvel. Ainda que a mulher atribua o caráter mesquinho de sua
vida diária à postura do marido, não sequer a menção da possibilidade de
rompimento. Os modelos pré-estabelecidos surgem tão determinantes que até
o mecanismo de recuperação da transcendência fundamenta-se na memória
de um ritual socialmente definido. Não há o rememorar de um tempo de
harmonia e ternura, de uma outra etapa do casamento ou do namoro.
Rememoram-se a data mesma do casamento, os clichês, as promessas
consagradas pela tradição. Portanto, não se pode pensar que o casal viva uma
crise, uma situação de desgaste.
É possível afirmar que a frustração da personagem feminina, portanto,
tenha relação com uma expectativa cunhada em bases românticas. Tal
conclusão é viável por conta do resgate do ritual do casamento católico, que se
fundamenta na idéia de união de almas, de encontro mágico entre pessoas
especiais, sendo, ainda hoje, indissolúvel.
A sobrevivência do ideário romântico é algo apontado por Luhmann
(1991):
O romantismo sobrevive portanto ainda às tendências naturalistas e
evolucionistas da segunda metade do século XIX mas com prejuízo
de todas as tensões profundas e sob a forma de um ilusionismo
aparentemente sério, em breve exposto ao desmascaramento (p. 200).
É assim que a iniciativa feminina não sensibiliza seu parceiro. O homem
segue seu jantar como se o jogo proposto fosse um devaneio inadequado,
resvalando ao ridículo, desalinhado da realidade. Ainda que o personagem não
verbalize, fica subentendido que aquela comemoração não se encaixa na
ordem do real. Logo que a mulher termina de expor suas expectativas, ele diz:
119
-- Quê mais? Estou esperando.
-- Não tem mais. Já acabei.
-- Já? Bem: então agora me deixe comer em paz o homem arrotou e
continuou a comer (VILELA, 1967, p. 60).
Dessa forma, ainda segundo Luhmann (1991), teria surgido o
romantismo para o homem comum, disseminado por meio de filmes e livros de
fácil compreensão e despido de sua anterior função social. O risco apontado é
a constituição de um imaginário que, de tão apartado da realidade
contemporânea, gere grandes choques entre o esperado e o vivido.
Retomando Rebello (2006, p. 21), “[...] a visão romântica do amor, embora não
seja a única, é, até hoje, a mais popular na literatura em geral.”
No entanto, não estamos diante de narrativas românticas. Não , em
nenhum dos contos analisados neste bloco temático, obstáculo externo
relevante para a união de duas almas apaixonadas. A união se concretiza. Em
“Nosso dia”, de acordo com as lembranças da mulher, também o homem vivia
uma espécie de enlevo romântico: “[...] você está a noiva mais bonita do mundo
[...]” (VILELA, 1967, p. 58). As histórias aqui o iniciadas depois do e foram
felizes para sempre, de acordo com Rauer Ribeiro Rodrigues (2006), é
freqüente que os personagens de Vilela o apresentem aptidões para viver o
amor conjugal
37
: “Na ficção de Luiz Vilela, o ser humano parece fadado ao
destino das seguidas desilusões, parece inexoravelmente voltado para a
solidão, vocacionado para a discórdia” (p. 142).
Sendo assim, diante da possibilidade de casamentos livres de pressões
externas, problemas outros surgem. Segundo Luhmann (1991), o romantismo
[...] celebra o invulgar através de uma orgia delirante devido à
liberalização do casamento em relação às pressões de natureza social
e familiar. Todavia, raramente toma providências face ao quotidiano
amoroso daqueles que contraem casamento e que mais tarde se
encontram numa situação da qual se consideram culpados (p. 198).
Diante dessa “celebração do invulgar”, certamente ainda presente no
imaginário da mulher e também reforçada pela atmosfera do conto, ganha
imensa dramaticidade o contraste entre o homem tentando quebrar um osso de
frango engordurado e a expectativa de transcendência proposta pelos lírios.
37
O termo amor conjugal não está ligado, aqui, à definição conceitual apresentada no primeiro capítulo
da dissertação.
120
O próximo conto a ser analisado, “Por toda a vida”, é estruturado de
maneira bastante diversa do anterior. O narrador em terceira pessoa conta a
história, ou seja, o papel ocupado pelo diálogo é menor. Além disso, o recorte
recobre todo o desenvolvimento da história da formação de uma família, desde
o início do namoro até certo momento do casamento, já com filhos.
Este conto é bastante propício para a reflexão acerca do conflito entre
idealização e realidade. Note-se que a própria estrutura da narrativa é uma
espécie de arremedo irônico de um folhetim romântico. A atmosfera criada
sugere uma história de amor aproximada do que se convencionou chamar de
literatura “cor-de-rosa”, “água-com-acúcar”, surgida a partir da disseminação e
da popularização do gosto romântico:
38
Ele trabalhava numa carpintaria. Quando a sirene apitava às cinco
horas ela corria para a janela da sala e ficava esperando-o passar na
calçada. Ele surgia com o rosto já voltado na direção da janela, sabendo
que ela estaria ali à sua espera. Cumprimentava-a com ligeira
inclinação de cabeça, ao que ela respondia também com uma
inclinação. Então ela deu o primeiro sorriso: ele ficou olhando muito
perturbado, e sem saber o que fazer tornou a inclinar a cabeça. E na
tarde seguinte os dois sorriram ao mesmo tempo. E na outra tarde, de
longe ele já a viu no portão. E chegou o momento de dizerem as
primeiras frases (VILELA, 1967, p. 33).
no primeiro parágrafo, acima reproduzido, é possível notar não
apenas a presença do ideário romântico, constituindo a dinâmica psíquica de
uma das personagens, como em “Nosso dia”. A própria narrativa é
romantizada. O namoro iniciado lentamente. A moça protegida pelo ambiente
doméstico, deixando-se ver pela janela. Depois, o casal apaixonado
enfrentando a oposição familiar. Como se sabe, é típico das narrativas
românticas que o empecilho a ser enfrentado para a concretização do amor
seja anterior ao casamento e tenha relação com fatores externos ao casal:
patrimônio, posição social, entre outros. No conto em questão, a mãe não
aprova o relacionamento:
-- Isso não basta. Sem dinheiro ninguém vale nada hoje. É o dinheiro
que manda. Em toda parte é assim. Você ainda é moça e inexperiente.
É melhor casar com um homem bom e rico do que com um bom e
pobre. Não estou desfazendo dele, parece até ser um bom rapaz. Mas
38
Não é objetivo desta dissertação avaliar as questões ideológicas presentes nessas classificações, embora
não se desconsidere a existência de tais questões.
121
você ainda é inexperiente. Casar com uma pessoa pobre hoje não é um
bom negócio (p. 34).
Seguindo nessa espécie de pastiche de folhetim, nenhum conflito
substancial é evidenciado. Até certa altura, a narrativa é coberta de clichês. A
oposição familiar é enfrentada sem maiores dramas:
O resto da família se dividia: os a favor e os contra. Os a favor falavam
da inteligência do rapaz. Os contra falavam da pobreza. Quanto aos
dois, não ligavam nem a uns, nem a outros. Só pensavam no seu amor.
Decidiram se casar e nada no mundo poderia impedir isso (p. 36).
Do centro da própria diegese, a partir de uma fala da mãe, o conto
procura marcar um espaço diverso daquele ocupado pelas produções da
cultura de massa: “-- Isso é invenção dessas novelas de rádio, minha filha, a
realidade não é assim. Qualquer um sabe que é melhor ser rico do que ser
pobre. Se a gente pudesse escolher não havia um só pobre no mundo (p. 34).”
Dessa forma, é possível afirmar que o texto efetua uma manobra
estrutural. Primeiro apropria-se de elementos de um gênero massivo. Esse
gênero fundamenta-se na vulgarização dos elementos das narrativas do
romantismo. Depois, no núcleo mesmo da narrativa, subverte a dinâmica do
referido gênero, tecendo críticas ao repertório ideológico presente, por
exemplo, nas novelas de rádio. O referido repertório insinua-se no próprio
conto, na própria configuração da história de amor contada e também na
maneira de contar. Será com o desenrolar da história do casal que a subversão
assumirá maior concretude. O ideário romântico novamente assumirá ares de
ilusionismo, de fantasia anacrônica. O mecanismo utilizado por Luiz Vilela
neste conto é considerado tipicamente pós-modernista. De acordo com
Figueiredo (2004),
[...] a arte tenta marcar o seu lugar dobrando-se sobre o discurso da
cultura de massa, mas para instituí-lo como ingenuidade observada,
chamando a atenção para sua retórica, desnaturalizando-a. A
linguagem da cultura de massa é trabalhada como um sistema
semiológico primeiro para o qual a arte se volta, com o propósito de
esvaziar seu sentido ideológico, transformando-o num mero estilo,
numa forma vazia de que a arte se apodera. [...] É por isso que uma
vertente significativa da ficção contemporânea parece encenar um estilo
de encenação, representando modos enunciativos e inflexões dos
subgêneros depreciados pela alta cultura, lançando mão de seus
estereótipos temáticos e técnicos (p. 240).
122
Pois bem, retornando para o âmbito daquilo que é contado, o narrador
nos apresenta uma ligação constituída pelo sentimento amoroso e
absolutamente adequada aos padrões convencionais. O início da relação é
retratado como harmoniosa e satisfatória para ambos:
À tarde ela o esperava no portãozinho da rua. Ele vinha com o rosto
cansado. Diziam frases curtas sobre a lida do dia, e quando entravam,
ele a puxava contra si e beijavam-se. Depois iam para a cozinha, ele
olhava as panelas suspirando fundo e dizendo:
-- Hum...
-- No forno tem bolinho de arroz – ela dizia.
Era o preferido dele. Ele abria o forno:
-- Olha pra lá, faz de conta que você não está vendo...
[...] Enquanto acabava de fazer a comida ela escutava-o no banheiro
lavando-se e cantado músicas de carnaval. Largava um minuto as
panelas, unia as mãos, e erguendo os olhos para o alto dizia baixinho:
-- Meu Deus, eu vos agradeço, eu vos agradeço... (VILELA, 1967, p.
37).
Na seqüência, ocorre a subversão definitiva. Toda a atmosfera de
realização pessoal criada em torno da vivência amorosa torna-se frágil diante
das demandas da realidade. O primeiro filho com saúde delicada. O salário
insuficiente do homem. O desgaste da mulher dividida entre a máquina de
costura, a lida doméstica e os filhos. O cenário adquire contornos
amesquinhados. A grandiosidade da expectativa contrasta-se com o cotidiano
repleto de problemas nada grandiosos. O grande amor não resiste ao preço do
leite em pó:
Ele viu o restinho no fundo da lata e disse que ela não se importava de
fazer economia, não colaborava com ele. Ela ficou calada para evitar
discussão. Ele continuou: disse que tanto tinha a mãe de sovina quanto
ela de esbanjadora: aquela armação dos óculos, por exemplo (que ela
acabara usando por causa do bordado à noite), havia outras que eram a
metade do preço, mas ela gostava de coisas finas... (p. 38).
A
partir desse momento, haverá a desconstrução gradual de tudo aquilo
que foi idealizado como vida em comum. Os “filhos para encher a casa inteira”
(p. 35) são retratados como motivo de aborrecimento: “— Esse diabinho, ele
me paga” (p. 41). O plano de crescimento econômico, construído durante o
namoro: “— Um dia teremos tudo: uma casa grande, arejada, com jardim e
quintal, os melhores móveis, carro, roupas finas, tudo do bom e do melhor...”
123
(p. 35), efetua-se de maneira unilateral. O homem passa a ser gerente da
oficina, a economia doméstica se equilibra.
No entanto, apenas o personagem masculino desfruta da ascensão:
“Passou a vestir-se melhor e a barbear-se todo dia” (p. 39). A mulher continua
dobrada sobre a máquina de costura. A perspectiva de realização, depositada
no casamento, resulta em amarga decepção. O homem, seguindo parâmetros
convencionais, busca realização no padrão duplo:
De manhã, sozinha no quarto, ela se contemplou no espelho: magra.
-- Magérrima – corrigiu-se.
Branca. Branquela. Anêmica. E aqueles óculos parecia uma velha.
Como seria a outra? Cheia, macia, perfumada... Ele a abraçaria, lhe
diria palavras de amor, lhe daria beijos na despedida...
-- ‘Reuniões’ e atirou os óculos com força na cama, sem coragem de
quebrá-los (p. 40).
Sendo assim, o conto opera uma dupla desmistificação, denunciando
não apenas a ingenuidade presente na retórica do discurso da cultura de
massa (FIGUEIREDO, 2004), como também a ilusão característica do ideário
do amor romântico (LUHMANN, 1991).
Concluindo este bloco temático, é preciso ainda chamar a atenção para
um aspecto evidenciado nos modelos de conjugalidade apresentados por
esses contos. Como foi dito, os dois textos trazem relacionamentos
cunhados em bases tradicionais. Ambas as narrativas apontam para vivências
frustrantes, do ponto de vista da realização afetiva. Não como deixar de
observar que as relações são hierarquizadas a partir de diferenças de gênero,
como é natural nos modelos convencionais. A focalização é centrada, também
nos dois contos, na personagem feminina. Daí a possibilidade de se verificar
que além do caráter nocivo de um imaginário cunhado no ideário romântico,
uma outra questão aparece: a ausência de alternativas para as mulheres que
compactuam com esses modelos de relacionamento. Nos dois contos, as
personagens femininas são configuradas como vítimas, seja das próprias
fantasias, das próprias escolhas, seja da natureza mesma de seus
companheiros.
124
4.2.3
A Transitoriedade dos Vínculos
Que a triste hora do fim se faz notória
E continuar a trajetória
É retroceder
Não há no mundo lei que possa condenar
Alguém que a um outro alguém deixou de amar
(Arlindo Cruz)
Para a composição deste bloco temático, foram escolhidos dois contos
que se organizam em torno do fim do relacionamento amoroso. Os referidos
contos são “Numa cidade estrangeira”, publicado no volume O Fim de Tudo,
em 1973 e “Amor”, publicado em Tarde da Noite, 1970.
A tônica da análise é a compreensão do impacto do contemporâneo
caráter transitório dos vínculos e suas conseqüências. Tendo em vista o final
do casamento indissolúvel, gerado pela gama de transformações sociais
ocorridas no século XX, conforme discutido no primeiro capítulo desta
dissertação, é possível pensar em crises decorrentes da natureza, muitas
vezes efêmera dos casos afetivos.
Giddens (1993) localiza o caráter transitório como algo constitutivo da
natureza mesma do relacionamento puro “que continua enquanto ambas as
partes considerarem que extraem dela [da relação] satisfações suficientes,
para cada um individualmente, para nela permanecerem” (p. 69). Isso aponta
para uma maior liberdade, ou seja, uma espécie de saída para a infelicidade
gerada por vínculos que, apesar de frustrantes, precisavam ser mantidos. Não
se pode negar que um caráter extremamente positivo nessa não
obrigatoriedade de continuação.
Entretanto, é impossível não voltar os olhos para a instabilidade
provocada pelo advento do relacionamento puro, ou pelas novas formas de
conjugalidade surgidas no período s-moderno. Uma relação liberta de
determinantes externos/sociais que a sustentem traz para a dinâmica afetiva
um peso muito maior e, naturalmente, gera insegurança. Giddens (1993)
considera que a transitoriedade dos vínculos compõe uma contradição
estrutural dos relacionamentos puros:
Para criar um compromisso e desenvolver uma história compartilhada,
uma pessoa deve se dar à outra. Ou seja, deve proporcionar, por
palavras e atos, algum tipo de garantia à outra de que o relacionamento
125
pode ser mantido por um período indefinido. Mas um relacionamento
nos dias de hoje não é, como foi um dia o casamento, uma ´condição
natural` cuja durabilidade pode ser assumida como certa, exceto em
algumas circunstâncias extremas.
Uma característica do relacionamento puro é que ele pode ser
terminado, mais ou menos à vontade, por qualquer dos parceiros em
qualquer momento particular. Para que um relacionamento tenha a
probabilidade de durar, é necessário o compromisso; mas qualquer um
que se comprometa sem reservas arrisca-se a sofrer muito no futuro, no
caso do relacionamento vir a se dissolver (p. 152).
Importa aqui a reflexão acerca da maneira como esses contos geram
sentidos a partir da crise do indivíduo diante da transitoriedade, do efêmero, do
não controlável.
“Numa cidade estrangeira” inicia-se com a discussão entre o casal já em
andamento. nia e Téo estão em um táxi, em Londres. É uma conversa
definitiva, Vânia decidiu terminar o relacionamento. Téo tem dificuldades para
aceitar. O conto retrata o desespero desse homem diante do inevitável. São as
últimas tentativas de convencer a mulher a permanecer na relação. o se
sabe há quanto tempo o casal está em Londres, nem a razão da viagem. Sabe-
se que estão hospedados em hotel: “Nós passamos no seu hotel, você pega
suas coisas de novo, e nós voltamos para o meu hotel” (VILELA, 1973, p. 10).
A narração é em terceira pessoa. O narrador é pouco interventivo.
Descreve ações que pontuam o diálogo, dispensando avaliações: “O homem
estava curvado para frente, as mãos cruzadas entre as pernas, o rosto
franzido” (p. 10). A focalização interna é pouco utilizada. Quando acontece é
para retratar um sentimento ou pensamento referente ao momento mesmo da
narrativa, não sendo recuperados fatos ou sentimentos anteriores: “Um
sentimento de amoleceu a fisionomia da mulher. O homem se animou,
abraçou-se a ela com paixão e desespero” (p. 13).
Dessa forma, conclui-se que o importante é mesmo o momento
recortado. Centrando a tensão no momento, -se valor, justamente, ao que
está acontecendo, ou seja, ao desespero de Téo diante do abandono de Vânia.
O foco narrativo recai sobre o personagem masculino. Isso ocorre na maioria
dos textos de Vilela, tendência esta já apontada por Majadas (2000).
A configuração do vínculo apresenta traços de continuidade e de
rompimentos com os modelos tradicionais. A primeira intervenção do narrador
esclarece: “A mulher continuou olhando pela janela do táxi. Era bonita e bem
126
mais nova do que homem” (p. 9). Depois é evidenciado que o homem é
detentor de situação econômica superior à da mulher: “Que importa o meu
dinheiro? E além do mais é pouco gentil de sua parte dizer isso. Pelo menos
ingrata você poderia não ser. Se não fosse eu uma hora dessas você não
estaria aqui em Londres” (p. 10). Isso configura um modelo balizado pelo
senso comum: o homem mais velho estabelece laço com a mulher mais jovem.
A posição econômica superior equivale à juventude e beleza da parceira. O
narrador apenas lança a possibilidade desse relacionamento ter como tônica a
obtenção de vantagens financeiras por parte da mulher. Não ocorre
confirmação disso. De qualquer forma, esta é uma configuração coerente com
modelos estabelecidos por uma sociedade hierarquizada a partir das relações
entre os gêneros.
Entretanto, muitos são os pontos de rompimento. O casal não se
constituiu baseado em contrato institucional. o casamento formal. A
manutenção ou não do relacionamento diz respeito à esfera da intimidade
apenas.
Interessante pensar o quanto as alterações nas identidades de gênero
são determinantes para a postura do homem diante do final da relação. De
alguma forma, a instabilidade gerada pela transitoriedade dos vínculos
tangencia uma subversão com as formações identitárias convencionais. É a
mulher quem abandona. Ela não depende da figura masculina para transitar na
vida blica. Curiosamente, a referida dependência recai sobre a figura
masculina. Ou seja, uma subversão seguida de uma inversão: a subversão
está na mulher existindo enquanto ser social autônomo. A inversão está no
homem que depende da figura feminina não para gerenciar o universo
doméstico, mas para guiar seu trânsito público:
-- Você não tem pena de me largar sozinho numa cidade como essa?
Um velho sozinho perdido numa cidade estrangeira; você não tem
coração? Não sei nem falar inglês.
-- E o Pedro, seu amigo?
-- Pedro; vou ficar andando com ele feito menino agarrado na barra da
saia da mãe? E de noite? e de noite a voz do homem tremia como se
ele estivesse quase chorando, é o Pedro que vai dormir comigo?
é?... (p. 12).
127
Téo não corresponde ao que Matos (2000) chama de “modelos
inflacionários e estereotípicos de masculinidade: força, virilidade,
agressividade, atividade, violência, sadismo, autoridade etc” (p. 187). É ele
quem chora: “No escuro os olhos dele brilhavam molhados” (VILELA, 1973, p.
12). É ele quem se sente frágil e desprotegido: “[...] não me deixe sozinho, não
tenho mais ninguém [...]” (p. 13).
Essas características, ou seja, fraqueza, vulnerabilidade, insegurança,
dependência são constitutivas da estereotipia feminina de gênero, assim como,
“[...] passividade, interioridade, enternecimento, fragilidade, masoquismo e
sensibilidade [...]” (MATOS, 2000, p. 187). Até mesmo esses dois pontos
apresentados por Matos (2000), sadismo e masoquismo, aparecem invertidos.
A crueldade surge como atributo da mulher:
Ela se voltou, irritada:
--Eu disse que acabou, Téo, foi isso que eu disse: acabou.
Compreende? Acabou. Fim.
-- Você é cruel... – ele choramingou.
-- Você devia se olhar num espelho disse ela ver o tanto que você
está ridículo (VILELA, 1973, p. 11).
Note-se que o homem é ridicularizado especificamente por não estar
conformado dentro da estereotipia masculina. A fragilidade e a dependência
fornecem a Téo uma carga de baixo status.
No entanto, ainda que Téo não confirme os padrões e as características
atribuídas ao gênero masculino, o desespero causado pela efemeridade do
vínculo o leva a recorrer a valores morais que não condizem com a ética
contemporânea que, muitas vezes, norteia a construção dos contratos íntimos
entre amantes. Matos (2000), ao dizer da importância dessa nova ética para
suas análises sobre os novos arranjos conjugais, apresenta-nos a seguinte
definição:
Sabemos que faz diferença quando, em nossas análises, somos
capazes de nos livrar da visão religiosa e da versão patriarcal de amor,
ambas enviesadas, buscando com isso a formulação de uma nova ética
que esteja melhor refletida na confiança, no cuidado com o outro e na
responsabilidade, do que na obrigação e no dever (p. 24).
O personagem, entretanto, desamparado pelos modelos tradicionais que
previam a indissolubilidade do contrato, fundamenta sua argumentação em
128
valores morais aproximados da obrigação e do dever. É como se ele buscasse,
por meio da recuperação desses valores, recuperar também a estabilidade
perdida. Sendo assim, ele tenta sensibilizar Vânia gerando pena, apelando
para princípios calcados na obrigação: “Você não tem pena de me largar
sozinho numa cidade como essa?” (VILELA, 1973, p. 12), e também no dever:
“-- Você volta, você tem de voltar, eu te amo, você não pode me deixar
sozinho, não pode [...]” (p. 13).
Assim sendo, conclui-se que o conto evidencia aquilo que Giddens
(1993) nomeia de contradição estrutural do relacionamento puro. A
transitoriedade dos vínculos é, ao mesmo tempo, conquista e perda. A dor de
Téo resvala pela dificuldade de aceitar o final de um relacionamento sem
justificativas outras além de “acabou”. É como se o personagem não
conseguisse cobrir de sentido a inevitabilidade do acaso.
É preciso dizer que o conto contempla com naturalidade a natureza
fluida dos laços afetivos. Ainda que Téo lute para sustentar o laço existente
entre eles, ainda que ele se desespere, aceitar a decisão da companheira é
uma necessidade, não há nada para ser feito:
Ele viu-a caminhando, subindo a escada e desaparecendo na porta
giratória do hotel. Mesmo assim continuou olhando, como se esperasse
que de repente, num dos giros da porta, ela surgisse e viesse
caminhando de volta para ele. Mas sabia que ela não voltaria: nem
agora, nem nunca mais (VILELA, 1973, p. 14).
A aceitação diante de fatos que escapam ao controle do sujeito é
também algo recorrente nas narrativas de Vilela: “[...] o espaço que medeia da
‘resignação’ ao ‘determinismo [que ] nas coisas [acontecimentos]’ é o locus
no qual a vida se constrói nos contos de Luiz Vilela” (RODRIGUES, 2006, p.
143).
Dessa forma, verifica-se que nesse conto de Vilela a configuração de
uma tendência contemporânea, ou seja, indivíduos em crise com a natureza
fluida dos vínculos. É também preciso observar que a literatura pós-modernista
aponta para a inexistência de padrões, novos ou antigos, unânimes. Note-se
que os contos recobrem um universo híbrido, com personagens constituídos
por estruturas novas e antigas; relacionamentos que não se encaixam em
modelos estanques. Não a constituição de um universo ficcional que sugira
129
a transição de um padrão tradicional para um inovador. Eles se fundem
produzindo algo que é híbrido.
O outro conto selecionado estrutura-se, também, com predominância do
diálogo. Em “Amor” (1970) o caminho de construção dos sentidos que cercam
o final da relação é outro. “Numa cidade estrangeira” (1973) estrutura-se a
partir de um narrador pouco interventivo, conformado no conceito de narrador
pós-moderno cunhado por Silviano Santiago (1989). O narrador não se presta
à função de contar, transmitir experiência, ou seja, não é o narrador clássico
conceituado por Benjamin (1987). O narrador mostra em vez de contar como
se estivesse ao lado do leitor assistindo ao acontecimento.
No conto “Amor”, o narrador apresenta a mesma característica: pontua a
ação e oferece algumas focalizações internas, reveladoras sempre do
momento presente, despidas de análises ou da recuperação da memória do
personagem. O foco escolhido pelo narrador é o personagem masculino. A
focalização interna limita-se a ele. Importa verificar é que a referida focalização
sempre é utilizada para marcar o quanto o homem estava alheio às
inquietações da namorada. No momento em que ela tenta mostrar um sapato
na vitrine, enquanto o diálogo prossegue, o narrador diz: “Ele olhava fixo para o
vidro, aproximando e afastando a cabeça, tentando apanhar a imagem
completa de seu rosto que parecia fugir numa brincadeira diabólica” (VILELA,
1970, p. 69).
A diferença fundamental entre os dois contos, quanto ao discurso
narrativo, está na atmosfera. O tom de “Numa cidade estrangeira” é grandioso.
A fala de Téo é tensa, modulada em tom maior. A discussão entre ele e Vânia
é pesada, íntima. Em “Amor” o tom é menor. A tensão surge do não dito, dos
silêncios. O conto apresenta atmosfera, freqüente na contística de Vilela, de
aparente banalidade. A tensão se arma a partir da leveza, mecanismo já
abordado no início deste capítulo.
Evidenciando o recorte, o que aqui é um casal de namorados, cujo
vínculo já existe há algum tempo:
-- Você não é mais como era antes, quando nos conhecemos...
-- E você; acha que é a mesma? Ninguém é sempre o mesmo.
-- Você era alegre, brincalhão (p. 71).
130
Mas que o consegue se comunicar novamente a temática da
incomunicabilidade humana. Subliminar ao diálogo está uma distância crucial
entre eles. No vácuo do silêncio, o desentendimento em função de algo
aparentemente banal (ele não prestou atenção quando ela mostrou o sapato,
depois se irritou com a cobrança), forma-se a densa solidão dos dois, surge
algo maior. É assim que o namoro acaba: “-- Não combinamos mais mesmo”
(p. 72).
O rompimento é a formalização da distância que se instaurara entre o
casal. A efemeridade dos vínculos surge da incapacidade de se fazer
compreender pela companheira. O alheamento do homem é compreendido
como desamor:
-- Bem, eu estou cansado, você não vê? não vê que eu estou cansado?
Olha para a minha cara: não vê?
-- Não é cansaço.
-- Então me diga quê que é.
-- Você sabe.
-- Não sei.
-- Sabe sim.
-- Juro que não sei.
-- Você não gosta mais de mim.
-- É? Escuta: porque você diz isso se sabe que gosto, hem?
-- Se você gostasse você não estaria assim (p. 71).
Ele não consegue evitar que ela desista do namoro. Não é possível que
a comunicação se estabeleça. Ela tinha compreendido as coisas de outro
modo. As decisões são individuais. A transitoriedade dos vínculos é tratada
com naturalidade. Em nenhum momento ele questiona o direito da
companheira romper. Quando argumenta em favor da permanência, é no
sentido de negociação. Nada aponta para uma noção de amor centrada na
obrigação e no dever. Negociar é o que resta para casais formados a partir da
ética do relacionamento puro ou das relações não hierarquizadas. O argumento
passa por outro caminho:
-- Acho que não é o caso disso... Não é o caso da gente terminar... Eu
sei, reconheço que estou mesmo como você falou; mas não é minha
culpa – falou de cabeça baixa como quem pede perdão. – Não é porque
eu quero que eu estou assim (p. 72).
131
Não a configuração de um relacionamento pautado pela hierarquia
entre os gêneros. As questões identitárias de gênero não são problematizadas.
A última fala do narrador, que fecha o conto, apresenta uma conclusão que
sugere a constatação de uma dificuldade cuja origem não tem responsáveis
aparentes. O amor é uma vivência difícil, isso é da natureza mesma do
sentimento: “Ele ficou vendo o ônibus se distanciar pela avenida, o rosto
abatido, pensando porque o amor era tão difícil” (p. 73).
Talvez se possa pensar também na configuração do sujeito pós-
moderno. A fragmentação e o anonimato gerado pelas formas contemporâneas
de vida seriam contribuintes para a incomunicabilidade humana e esta uma
agravante para a impossibilidade de laços amorosos. O alheamento dele tem
relações com o ritmo contemporâneo da vida. Ele o seu rosto difusamente
refletido na vitrine: “um rosto cansado, encardido, a barba crescida” (p. 69). A
impressão é que ele mesmo se fragmenta e perde suas referências diante do
caos da cidade:
Era fim de tarde, avenida movimentada, pessoas voltando para casa
com embrulhos, rapazes na beirada do passeio, colegiais em grupos,
lojas fechando, filas, rostos cansados, gastos, suados, barulho dos
lotações, estalo dos elétricos (p. 70).
Isso o consome. uma espécie de fugere urben, uma necessidade de
fuga desse universo caótico onde, talvez, olhar para o outro e para si mesmo
não seja possível: “[...] pensando como devia ser bom estar àquela hora em
cima daquela serra, aquela serra calma, longe, azulada, que aparecia no fim
da avenida, por trás dos edifícios” (p. 70).
Retomando a idéia de que é técnica recorrente na produção do autor a
estruturação da tensão por meio do não dito, do silenciado, é possível supor
que um fervilhar de sentidos recobertos pela banalidade do fato contado. A
conversa ordinária entre um casal de namorados recobre de linguagem
significados e tensões outras. Daí a necessidade da escavação para a
descoberta dessa outra história, ocorrida enquanto o diálogo acontece.
A história silenciada é a do sujeito anônimo, submerso no caos urbano.
Isso não é dito, não surge como algo do qual o personagem tenha consciência.
O ritmo corrosivo da cidade dilui a identidade o rosto distorcido na vitrine ,
gera alheamento o cansaço que impede de ver o outro –, impossibilita a
132
comunicação não como se fazer entender pela mulher amada. Dos
silêncios desta narrativa é possível depreender uma tendência identificada por
Tânia Pellegrini (2001) na literatura produzida a partir dos anos de 1960:
A industrialização crescente desses anos vai – em última instância – dar
força à ficção centrada na vida nos grandes centros urbanos, que
incham e se deterioram, daí a ênfase na solidão e angústia relacionados
a todos os problemas sociais e existenciais que se colocam desde
então (p. 117).
Dessa forma, o não dito aponta para o jovem oprimido pelo espaço
urbano, desejando fuga, impossibilitado de estabelecer comunicação com o
próximo mesmo nas relações mais íntimas. O projeto da modernidade visava à
edificação de um espaço asséptico, planejado, compartimentalizado em
categorias e divisões que deveriam evitar o caos. Tal projeto correspondia a
uma idéia de mundo “que se pensava possível de construir em nome da ordem
e do progresso” (RESENDE, 2005, p. 3). No entanto, os centros urbanos não
deixam de apontar as falhas desse projeto. A cidade e seu ritmo
inevitavelmente caótico o caos parece ser parte constitutiva do ambiente
urbano atravessam o sujeito, interferindo, como no caso deste conto, na
capacidade dos indivíduos manterem vínculos amorosos consistentes.
Tânia Pellegrini (2001) apresenta característica desse “espaço urbano
ficcionalizado” que remete à condição do personagem retratado pelo conto.
Segundo a pesquisadora, o referido espaço
[...] foi aos poucos se transformando numa possibilidade de
representação dos problemas sociais, até se metamorfosear num
complexo corpo vivo, de que os habitantes são apenas parte, a parte
mais frágil, admitamos, cujas vozes são as menos audíveis na
turbulência das ruas (p. 28).
Sendo assim, o conto “Amor” aborda a fluidez dos vínculos enfatizando a
importância do espaço urbano na constituição do protagonista. A turbulência do
cotidiano torna o amar algo complicado, difícil. O cansaço gerado pelo ritmo
urbano retira do homem as possibilidades de acesso ao outro. Majadas (2000),
referindo-se a um tema recorrente na ficção de Vilela, ou seja, a solidão, diz o
seguinte:
133
Açoitado por insatisfações, incoerências, dúvidas, pressões sociais e
condicionamentos diversos que lhe arrebatam a subjetividade e o
convertem em um ser amorfo, totalmente desintegrado de seu projeto
pessoal de existência, o homem é arremessado a uma irredutível
solidão (p. 26).
Essa desintegração entre o homem e seu projeto pessoal de existência
encaixa-se perfeitamente ao protagonista deste conto. O sujeito tornado amorfo
por espaços e ritmos de vida que ele não pode alterar acaba trazendo em si
impeditivos para o estabelecimento de vínculo amoroso duradouro com o outro.
Tendo em vista a análise dos dois contos, pode-se concluir que o
casamento como única forma de legitimar o amor passou a conviver com
legitimidades outras. Além disso, a natureza indissolúvel do contrato tornou-se
questão tão obsoleta que não chega a ser tematizada, não nas histórias de
rompimento selecionadas.
A questão da qual se retira matéria-prima para a produção literária é de
outra ordem. O que é representado é a crise do sujeito diante da
transitoriedade do vínculos no caso do primeiro conto. No entanto tal
transitoriedade é algo aceito, naturalizado. é um dado da realidade. No
caso do segundo conto, a efemeridade do vínculo leva a reflexões acerca das
dificuldades que cercam o amor. Essas dificuldades têm uma origem ainda
mais essencial: surgem da dificuldade humana de estabelecer contato com o
próximo. O aspecto efêmero do relacionamento condiz com o cenário
vertiginoso e caótico da grande cidade em tempos pós-modernos.
4.2.4
Brechas para o Amor
A vida toda eu esperei por agora
Sentir o teu perfume assim tão de pertinho
Esse teu cheiro que existe só na flora
Naquelas flores que também contêm espinhos
A vida toda eu esperei essa glória
Beijar mordendo esses teus lábios de fruta
Boca vermelha
Cor de amora
Cor de aurora
(Itamar Assumpção)
Este bloco temático trata da possibilidade de rompimento com a cláusula
de exclusividade sexual pressuposta nos contratos tradicionais de casamento.
Utilizando um vocabulário mais adequado aos padrões morais que
134
fundamentam os referidos contratos, o mote deste bloco é a traição ou a
infidelidade, especificamente, a infidelidade feminina. Os contos dos quais a
referida temática foi depreendida são: “A Moça”, publicado no volume Lindas
Pernas, em 1979; e “Primos”, publicado no volume O Fim de Tudo, em 1973.
No conto “A Moça” (1979), o narrador em terceira pessoa, apesar de
onisciente, assume a perspectiva de Marialva e descreve o sentido ou pensado
dentro dos limites do recorte proposto pela diegese, ou seja, ainda que haja
focalização interna, não rememoração, não há retomada de experiências
passadas. Dessa forma, o contado acontece no momento mesmo da leitura. A
vivência de Marialva, sendo concomitante ao ato de narrar, transporta para a
atmosfera do conto as expectativas, as surpresas, os medos e fantasias do
personagem.
Isso pode ser observado pelo próprio título do conto. A moça chama-se
Adriana, mas isso será revelado a Marialva no decorrer da narrativa.
Estamos, portanto, todos alinhados com Marialva: assim o narrador nos
conduz. Retoma-se novamente o conceito de ´narrador pós-moderno`, cunhado
por Silviano Santiago (1989) e explicitado no momento da análise do conto
de Wander Piroli. Note-se como a inquietação do personagem já é mostrada no
primeiro parágrafo do conto:
Por duas vezes surpreendera a moça olhando e sorrindo para ela.
Sentia que era observada com insistência. Mas tinha certeza, tinha
certeza absoluta de que não a conhecia. Guardava bem a fisionomia
das pessoas. A moça devia estar tomando-a por outra. podia ser
isso (VILELA, 1979, p. 107).
Na seqüência, a moça inicia uma conversa trivial, o fato de não se
conhecerem de outro lugar se confirma. Elas estão em uma lanchonete. Nesse
diálogo aparentemente banal, ficamos sabendo que Marialva é de Goiás e que
está no Rio de Janeiro em lua de mel: “— Estou esperando meu marido, mas
acho que ele ainda demora (p. 108)”.
Da trivialidade da conversa entre duas desconhecidas que fazem
companhia uma para outra, começa a ser construída uma atmosfera de
delicada sensualidade. O olhar do narrador, fundido ao da protagonista, passa
a observar aspectos que resultam nessa atmosfera: “Tinha um sorriso lindo, os
135
dentes perfeitos e muito brancos, os lábios cheios, vermelhos, de um contorno
sedutor” (p. 108).
O encantamento de Marialva inicia-se antes mesmo que haja a
insinuação do assédio. Paralela à conversa cotidiana entre duas pessoas que
acabaram de se conhecer, transborda o encantamento da protagonista. Note-
se que tal encantamento é sensorial. Ela não a conhece. Estas são impressões
depreendidas daquilo que se pode ver e sentir rapidamente:
Sentia-se ridiculamente provinciana. A moça [...] tinha uma segurança e
um encanto nos gestos e na maneira de falar que a faziam sentir-se
mais encabulada ainda, amarrada e estúpida. E era incrivelmente
bonita: tinha olhos grandes, brilhantes e vivos, e uma boca que dava
vontade de ficar olhando. Tinha também um corpo bem feito: quase
magra, a pele bronzeada de praia, uma blusa preta decotada mostrando
o começo dos seios que eram pequenos, os bicos aparecendo
ligeiramente ela observou enquanto a moça abria a bolsa para tirar o
maço de cigarros (p. 108).
Importa observar que o olhar lançado para a moçaé sensualizado. No
entanto, a função da conquistadora, daquela que atrai, que seduz é
desempenhado pela moça. Subliminar aos convites aparentemente apenas
gentis, desenha-se um intenso jogo de sedução. Novamente, como foi
observado no conto “Nosso Dia”, um movimento pendular entre a fala do
narrador e o diálogo apresentado.
O jogo de sedução localiza-se exatamente no vácuo do movimento do
pêndulo. Apesar do retraimento da protagonista, a moça diz: “— Faz isso: eu
vou te dar meu endereço; se vocês quiserem... Talvez alguma coisa que
possam precisar ...” (p. 110). Observe-se que esta é uma fala trivial. A moça
prossegue: “– Você, por exemplo, não vai fazer compras? ... Sei de ótimas
butiques. Poderíamos ir juntas, enquanto seu marido resolve problemas...” (p.
110). Quando o narrador focaliza Marialva, o ato de ir fazer compras juntas
adquire outros contornos: “Olhou bem para a moça; chegava a estranhar tanta
gentileza numa pessoa que ela mal acabara de conhecer. ouvira falar muito
da camaradagem carioca, mas mesmo assim... [...] Estava achando estranho
aquilo” (p. 110).
Conforme se pode observar, a iniciativa é de Adriana, embora desde o
princípio o encantamento da protagonista tenha sido evidenciado. Marialva
deixa-se encantar. ´Convidativa` é a moça: “– Que que você acha?...
136
perguntou a moça, com uma expressão convidativa, parecendo ainda mais
bela, irresistivelmente bela” (p. 110).
A investida da moça é confirmada lentamente. Quando a protagonista
descobre o que havia de secreto naquele convite, o sentimento é de medo. Há,
em verdade, uma descoberta íntima, assustadora. Descoberto é o desejo
duplamente interdito, pois não tem como objeto o marido nem alguém do sexo
oposto. O que parece é medo não do ímpeto sedutor de Adriana, mas do
próprio desejo desconhecido e agora aflorado: “Olhou-a de novo e teve
vontade de dizer: ´você é linda`; e vontade de vontade de beijar aquela boca
maravilhosa” (p. 111).
A protagonista buscava refúgio para a mulher desejante e desejável que
havia surgido talvez à sua revelia. Queria o resguardo do legitimado. Queria
proteção de si mesma. A roupa que estava usando tornou-se mais sensual
repentinamente:
Estava doida para ele chegar, para estar junto dele, e para irem
embora. Sentia-se pouco a vontade ali, num ambiente que não era o
seu. As pessoas passavam pela mesa e paravam quase a seu lado,
olhando para seus seios que ficavam bem visíveis, por mais que
puxasse o decote para cima, o que fazia a todo instante pretextando
consertar o broche. Arrependia-se de ter posto aquele vestido (p. 111).
Interessante, neste conto, é que a abordagem do homoerotismo
esquiva-se da configuração de estereotipias identitárias de gênero que
conduzem à determinada figura de homossexual feminina. O foco é muito mais
o desvendamento do desejo intimamente desconhecido. Sendo Adriana aquela
que desempenha a função de sedutora, poderíamos ter uma personagem
moldada a partir das estereotipias definidas por uma cultura de gênero. O
termo cultura de gênero, aqui, coincide com a definição de Matos (2000):
Portanto, por culturas de gênero designo um conjunto articulado e
articulável de idéias, padrões de comportamento, meios simbólicos,
significados, práticas, sentidos e valores resultantes do dispêndio de
energia humana na produção, construção e cultivo sociais, que definem
posições, lugares, papéis e funções cultivadas por um ou outro sexo (ou
ainda a ausência de caracterização deste tipo), e que cumprem a tarefa
de marcar social, situacional e historicamente (no tempo e no espaço)
determinado plano relacional de gênero (p. 40).
137
Priore (2005), conforme foi dito no primeiro capítulo desta dissertação,
diz que aa década de 1960 era ainda muito freqüente que homossexuais
reproduzissem o esquema dualista do heterossexismo dominante. Ou seja, os
casais formados por mulheres, muitas vezes, eram constituídos por indivíduos
que assumiam o comportamento culturalmente considerado masculinizado, as
´fanchonas` ou ´caminhoneiras`; e indivíduos assumindo o lo oposto, ou
seja, a ´lady`. Segundo Matos (2000), é preciso pensar que a reprodução do
referido esquema dualista foi, a seu tempo, uma forma de resistência, uma
espécie de possibilidade de reação à cultura fálica de gênero. Essa foi uma,
entre outras formas de reação, possivelmente a mais popular e não se pode
negar que não existam ainda hoje tais modelos comportamentais.
Sendo assim, a constituição da personagem Adriana rompe com o que
se pode chamar de uma espécie de expectativa. Ela não se enquadra no
estereótipo da lésbica masculinizada. O encanto da protagonista é pela
feminilidade exuberante de Adriana: “lábios cheios, vermelhos, de um contorno
sedutor” (p. 108). Confirmando essa beleza tipicamente feminina, sem o traço
de exotismo gerado por mulheres que apresentam comportamento considerado
masculino, o marido de Marialva comenta:
-- Que moça linda, hem? disse ele. Como que você ficou
conhecendo ela?
-- Por acaso: ela chegou e começamos a conversar.
-- É muito bonita (VILELA, 1979, p. 112).
A diferença que importa entre elas não é identidade de gênero ou de
orientação sexual, e sim de outra ordem. Marialva admira na moça a mulher
independente que ela própria não é. O ar de feminino requinte é ressaltado até
mesmo pelo narrador, quando este justifica o fato de os bicos dos seios da
moça estarem visíveis em função do movimento de abrir a bolsa (p. 110).
Durante todo o conto, são sugeridas questões quanto ao estilo de vida
de Adriana. Tais questões se contrapõem ao estilo de Marialva, ou seja, esta
se sente pejorativamente provinciana diante da moça. Aqui é preciso retomar
novamente a consideração de Giddens (1993) quanto à importância do estilo
de vida contemporaneamente, ou seja, hábitos e práticas dizem quem o sujeito
é.
138
Paralelo ao encantamento de Marialva pela beleza da moça, surge a
percepção da mulher de hábitos mais urbanos e independentes. Quando a
protagonista conta que está em lua de mel, a moça faz um ar de malícia. A
reação da outra é de constrangimento: “Ela baixou os olhos enrubescida.
Sentia-se ridiculamente provinciana” (p. 108). Depois Marialva estava tomando
guaraná e não era fumante. O narrador comenta: “A moça acendeu o cigarro
com a elegância e com a displicência de quem fumava muito tempo” (p.
108). A independência de Adriana surpreende a protagonista:
--Tenho um apartamento aí, mora eu e uma amiga minha. Esses dias
ela está viajando, estou lá sozinha.
-- Você não tem medo?
A moça sorriu.
-- Já estou acostumada, já fiquei sozinha muitas vezes.
-- Pois eu acho que eu não ficaria uma só vez... (p. 109).
Conclui-se, portanto, que a atmosfera de delicada sensualidade
construída pelo conto é muito mais pautada pela luminosidade da descoberta
da possibilidade de vivências outras, de desejos outros que pela reflexão
acerca da orientação sexual dos sujeitos envolvidos. Essas questões não são
sequer colocadas. Em nenhum momento é retratada alguma crise de
identidade, algum drama que aponte para isso. Talvez se possa pensar que
“Há agora heterogeneidade e pluralismo – cultural e ao mesmo tempo subjetivo
onde ser capaz de se imaginar e exercer muitos papéis sexuais não se
constituiu ainda em norma” (MATOS, 2000, p. 69), e provavelmente não se
constitua, mas a possibilidade de existência fora da marginalidade é algo real.
Embora não se saiba se as angústias de Marialva estão mais voltadas
para o medo de trair o marido em plena lua de mel ou para o receio de manter
relações sexuais com outra mulher, sabe-se que o medo existe. o interdito
para o desejo despertado:
A moça estendeu a mão e ao tocar broche encostou-a suave e
decididamente na sua pele. Ela sentiu a respiração parar; seu coração
bateu com toda força, sua cabeça parecia inchar de sangue.
[...] Olhou-a por entre as pancadas de seu coração, e agora
compreendia tudo, já não havia mistério: os olhos da moça falavam
claramente, olhando firmes para os seus; não havia mais sorriso neles,
somente a expressão ansiosa e aflita do desejo [...] (p. 112).
139
Em seguida o marido aparece. A vontade da protagonista é de fuga: “[...]
queria que ele a apertasse com toda a força e a protegesse. [...]” (p. 112). O
transtorno gerado pela descoberta do próprio desejo é tão intenso que ela
chega a modificar os planos da viagem, a querer partir do Rio de Janeiro.
Entretanto, a fuga não é possível. Não é da moça que ela tinha medo. O
pavor surgia das possibilidades descobertas dentro de si, na própria pele, na
própria capacidade de desejo erótico de vivência de fantasias íntimas. No final
do conto, a protagonista entrega-se ao desvendamento da própria feminilidade
e esse desvendar está vinculado à secreta e inevitável vontade de entregar-
se à moça:
E então, no espelho, naquele corpo de mulher, jovem e belo, duas mãos
pousaram sobre os seios, envolvendo-os acariciantes mas não eram
suas mãos, eram as mãos de outra mulher, mãos macias e quentes e
que sabiam acariciar como nenhumas outras. E agora desciam pelas
suas ancas, rodeavam as coxas e iam lentamente subindo até a carne
ardente e úmida. E já não eram somente mãos, era também aquela
boca maravilhosa, que percorria todo o seu corpo numa alucinante
viagem (p. 114).
Voltando agora o olhar para a questão da subversão do pacto de
exclusividade sexual que o casamento supõe, o conto apresenta algumas
questões bastante inovadoras. Primeiro é preciso dizer que um posterior
encontro entre a protagonista e a moça é uma suposição: o texto termina com
Marialva decidindo ficar no Rio e com o pensamento em Adriana. No entanto, a
análise desenvolvida aqui parte do pressuposto de que a concretização ou não
da prática não é o mais relevante.
Ao contrário do que se poderia pensar, o texto não nos apresenta uma
mulher infeliz, vítima de um marido opressor. A relação parece equilibrada,
carinhosa. Quando a esposa decide mudar os planos da viagem sem maiores
explicações, o marido, apesar de contrariado, é compreensivo:
Ele a olhava, sem entender, sem encontrar uma explicação para aquilo
.
-- Nós não vimos nada ainda... A gente fica mais uns dois dias, depois a
gente vai.
-- Não, quero ir amanhã.
-- Mas por que, bem? Qual o motivo? Me diz...
-- Eu já disse: é que eu não quero ficar.
-- Está bem ele disse; - então nós vamos. Pra onde você quer ir (p.
113)
140
Não também nenhum indício de nculo instituído por questões
patrimoniais, determinação patriarcal ou qualquer outro fator que pudesse
apontar para os casamentos de conveniência, esvaziados de emoções,
conforme discorrido no primeiro capítulo deste trabalho (PRIORE, 2005;
THERBON, 2006).
Sendo assim, a infidelidade não se configura como uma saída para a
infelicidade gerada por uma vida doméstica amesquinhada. Não também o
tom de denúncia. se disse, partindo dos estudos realizados por Rebello
(2006), que a traição foi temática fartamente utilizada pelos escritores realistas
para denunciar a natureza corrupta do ser humano.
O narrador não efetua julgamentos, nem conduz a narrativa com intuito
de gerar efeitos de sentido moralizantes. Ainda que o medo esteja presente no
momento da descoberta do desejo, não se pode afirmar que exista uma ênfase
em aspectos morais como culpa, ou em reflexões acerca de pares como
certo/errado, moral/imoral, natural/anti-natural.
Novamente, a representação artística se curva à inevitabilidade do
acaso: as coisas são. Os desejos existem. Apartados das moralidades, as
possibilidades de vivência com o próprio corpo, sejam elas quais forem,
surgem cobertas de alegria
39
. A protagonista vive em um tempo em que
fantasias íntimas podem ser vividas, por mulheres, muitas vezes, sem maiores
conseqüências sociais ou emocionais: “Ela sorriu; e então abraçou-o: -- Eu te
amo disse, enquanto seu pensamento voava cheio de expectativa para outra
pessoa, longe dali, num outro ponto da cidade” (p. 114).
O conto “Primos” (1973) é narrado em primeira pessoa pelo personagem
masculino, Guy. Assim como em “A Moça”, o narrado desenvolve-se no
momento mesmo do narrar, ou seja, uma similaridade na maneira de
estruturar a tensão, a atmosfera é construída lentamente, em cumplicidade
com o leitor.
O narrador-personagem é primo de Rosana. O conto se inicia já no
decorrer da visita de Guy para Rosana. A primeira parte do conto, por meio de
39
É curioso verificar que no mesmo volume no qual foi publicado “Primos”, confirmando a versatilidade
do autor, esteja o conto “Cadela” em que a infidelidade feminina resulta em perda de respeitabilidade e
em violência sexual.
141
um diálogo ameno e afetuoso, entre primos que o moram na mesma cidade,
revela que Rosana tem filhos e é casada com Lauro, que está viajando:
-- Se chover você dorme aqui; você devia ter vindo para aqui. Ao menos
assim eu tenho uma companhia. Acho ruim quando o Lauro está
viajando.
-- Você tem medo?
-- Não é medo não; é mais preocupação com as crianças; às vezes uma
necessidade... (VILELA, 1973, p. 224).
A narração em primeira pessoa sugere que o clima de sensualidade
surgido depois não era algo premeditado, sendo antes força do acaso, das
possibilidades múltiplas que a própria realidade oferece. O próprio clima parece
favorecer o posterior aflorar dos desejos:
Um trovão sacudiu o céu. Houve uma pausa. E então a chuva caiu, uma
chuva pesada. Fiz uma careta para Rosana.
-- Está vendo? – ela disse – você não quis vir para aqui, agora vai ter de
ficar. Daqui um pouco já vou até arrumar tua cama (p. 224).
A chuva, o fato de o carro estar com o marido, a ausência de telefone, o
sono pesado das crianças, o estoque de cerveja, ou seja, a primeira parte do
conto parece inocentar moralmente os dois personagens (ou apenas o
narrador?) como se algo superior ao controle deles favorecesse o desenrolar
daquele encontro. Note-se que o pensamento de Guy é despretensioso, sem
ardis de conquista:
O fato é que eu não estava com idéia de pousar ali. Não que houvesse
algo de mais; não havia: eu gostava muito de Rosana e me dava bem
com Lauro. não tinha muita intimidade com eles o que não
chegava a ser um problema. E quanto ao convite de Rosana, eu sabia
que era sincero, pois ela sempre fora muito atenciosa, muito generosa.
Eu não queria simplesmente por hábito. Talvez um pouco de timidez
também: por maior que seja minha ligação com um amigo ou parente,
prefiro sempre ir para um hotel (p. 225).
Na trivialidade da conversa, sempre Rosana trazendo cervejas. A
atmosfera constrói-se. O ambiente familiar, doméstico passa a comportar certa
lascívia. O álcool parece libertar o narrador-personagem para recordar.
Repentinamente, há a entrega delicada a uma rememoração sensualizada:
Não era meu plano, mas até que estava achando bom ali, com aquela
chuva fora, sentado num sofá macio, fumando e tomando uma
142
cervejinha gelada, com uma prima de que eu gostava muito. Além de
gostar Rosana era de minhas primas a mais bonita. Ela era muito
bonita. Desde de adolescente eu achava. Diria até que desde de
menino, pois lembro-me que nessa época eu já a admirava (p. 227).
Nesse momento o jogo de sedução se instaura. Conforme foi dito, o
narrado é concomitante ao narrar neste conto, portanto, o monólogo interior de
Guy ocorreu enquanto Rosana buscava mais cerveja. Assim que ela retorna,
ele propõe o jogo: “—Você não sabe no que eu estava pensando eu falei” (p.
227).
Depois de revelar o pensamento e de perceber que, mesmo
constrangida, Rosana aceitou jogar, Guy assusta-se: “Pareceu-me aquele
instante que íamos entrando num terreno perigoso; preferi mudar de tom” (p.
228). Entretanto, o referido tom é alterado apenas por um momento. Ambos
continuam no jogo. Assim como entre Marialva e Adriana, não havia
possibilidade de retrocesso: “[...] apenas tive a certeza, enquanto escutava o
barulho da chuva fora, de que aquilo iria até o fim, de que eu não me
impediria mais de falar, nem ela me pediria que não falasse” (p. 234).
De qualquer forma, é estabelecido um jogo de sedução. Se no conto “A
Moça”, o encantamento se dá por meio do olhar a beleza de Adriana, a
maneira de gesticular, a desenvoltura; em “Primos” o encantamento é
provocado pela revelação do desejo. Sendo assim, recordar e revelar tornam-
se arma de conquista. A maneira reticente de Guy exerce uma espécie de
função estimulante em Rosana. O papel de Rosana no jogo é favorecer,
possibilitar a revelação. Em várias passagens do texto ela estimula o primo a
prosseguir, ainda que de maneira levemente dissimulada:
-- Quais são essas coisas... – perguntou.
-- Essas eu não posso dizer.
-- Não? Por que? Tem sacanagem? ... ela deu um começo de
gargalhada.
-- Você está rindo mas o negócio é sério.
-- Então me conta. Por que você não pode dizer?
-- Certas coisas a gente não diz.
-- Não? Pois eu acho que a gente pode dizer tudo.
-- Você acha mesmo?
-- Claro, por que não?
-- É, você tem razão. Eu também penso assim (p. 232).
143
Rosana estimula o contar dissimulando, sendo irônica, dando ares de
pouca importância ao que está acontecendo: “[...] me fazendo uma declaração
de amor dentro de minha própria casa...” (p. 230); “—Será que você está
querendo mesmo me dar uma cantada?...” (p. 233). O narrador-personagem,
entretanto, duplamente ardiloso, primeiro apresenta-se ao leitor sem
pretensões sexuais com a prima, gerando a impressão que a própria natureza
conspirava para aquele encontro. Depois, aproveita-se da ardente curiosidade
de Rosana para gerar a autorização dela mesma para a revelação do desejo,
conforme demonstrado no parágrafo acima.
O desejo do narrador-personagem é imponente demais para não seduzir
Rosana. Diante da intensidade do sentimento dele, as normas se dissolvem. É
curioso que se trata de desejo físico. A atração sexual novamente não é tratada
como algo pejorativo, banal, vulgar. De tão intenso, ultrapassa a força do
tempo. Outro aspecto interessante, é que ao contrário do que normalmente
ocorre nos contos de Vilela, aqui a comunicação ocorre. O desejo de Guy
desperta desejo em Rosana: o jogo se realiza:
-- Eu sofria com isso falei; sofria porque era para mim uma coisa
impossível; nunca aconteceria nada, eu nunca veria aquele corpo que
estava ali quase me encostando, oculto apenas por um pedaço de
pano, e no entanto mais distante que a lua. Eu tinha quase raiva de
você, raiva porque você tinha aquele corpo. Por outro lado, é
engraçado, eu de algum modo acreditava que o impossível ainda
aconteceria, e é por isso que eu não desistia; como que a gente vai
desistir daquilo que a gente mais deseja? [...] é que eu via mesmo
como era impossível, como aquilo jamais aconteceria, não tinha jeito de
acontecer; se fosse por um acaso, por um milagre; a palavra é essa:
milagre. Porque te dizer aquilo tudo eu jamais diria. E no entanto estou
te dizendo agora. Estranho, né? (p. 239)
Dessa forma, ocorre a revelação, a paixão oculta do narrador-
personagem, secreta desde a adolescência, o desejo jamais vivido ou
revelado. Não se sabe se em algum momento da vivência dos dois Rosana
também sentiu algo por Guy, mas esse desejar intenso, silencioso, por tantos
anos guardado a seduz. Em certa altura ela parece querer lembrar a si própria
e ao outro que a relação entre eles é interdita. Note-se que o diálogo perdeu a
leveza anterior: “—Não sou mais uma adolescente; sou uma mulher; uma
mulher casada e mãe de dois filhos” (p. 238). No entanto, essa fala sugere
144
muito mais uma resistência típica da dinâmica do conquistado do que uma
suspensão do jogo. Logo depois ela diz:
-- Eu achei bom você dizer.
-- Você achou? Por que?
-- Não sei – ela disse. – Achei bom.
[...]
-- Depois disso; você falou que foi na adolescência; e depois?
você foi conhecendo outras meninas e a coisa foi
desaparecendo. Ou não desapareceu?... (p. 239).
Rosana segue estimulando o desnudamento da memória, favorecendo o
aflorar do desejo latente, tateando para certificar o quanto disso ainda existe.
é uma outra Rosana que é mostrada: “Eu fitei-a, fitei seus olhos negros, que
me pareceram misteriosos e indevassáveis” (p. 235). O narrador revela seus
melindres, a ausência de intencionalidade, construída na primeira parte do
conto, transforma-se em estratégia discursiva, pois ele nunca deixou de
acreditar que esse desejo poderia ser vivenciado: “[...] eu de algum modo
acreditava que o impossível ainda aconteceria” (p. 239); “[...] era uma coisa
muito profunda para desaparecer” (p. 239). Quando Rosana pergunta como foi
depois que ela casou, ele confessa:
-- Quando você casou? Eu pensei: agora acabou mesmo, agora o
impossível ficou de fato impossível. Mas mesmo assim, todas as vezes
que eu te encontrava, tudo aquilo voltava, eu sentia tudo de novo, eu
era o mesmo adolescente e você a mesma Rosana, a Rosana sonhada
e impossível... (p. 240).
A utilização do verbo no passado é mais uma estratégia. O desejo se
instalou, é presente. A rememoração de uma época menos livre de
responsabilidades, ou seja, a adolescência, complementa a instauração da
possibilidade de realização do contato sexual interdito. Rememorando, o
narrador-personagem liberta a ambos das noções de conseqüência presentes
na vida adulta: ele se torna o mesmo adolescente e ela a mesma Rosana: “Ela
também não falou mais. Ficou em à minha frente. Seus olhos me olharam
profundamente, como se atravessassem toda a minha vida. E então, devagar,
com gestos firmes, ela começou a desabotoar o vestido” (p. 241).
Com relação ao discurso literário, interessa dizer novamente que o
desejo sexual não assume significados negativos. Desejar o outro, sem
145
pretensões de relacionamento amoroso, assume, antes, contornos grandiosos.
Observe-se que toda a fala de Guy está restrita ao contato carnal, ao
encantamento físico, no entanto, isso surge fundido com certa idéia de amor. É
assim que Rosana diz que está ouvindo uma declaração de amor. Da mesma
maneira ela conclui: “— Quer dizer que eu era uma espécie de paixão oculta?”
(p. 239). O que fornece densidade ao desejo é exatamente sua durabilidade:
“[...] era uma coisa muito profunda para desaparecer [...]” (p. 239).
Neste conto, entregar-se ao sexo episódico não tem vínculos com a
compulsão ou com o vício (GIDDENS, 1993). A própria narrativa assume um
ritmo que confirma a diferença entre desejo e impulso, ou seja, não aquilo
que Guy queria foi fartamente protelado, como a própria maneira de contar
incorpora a idéia de retardamento da satisfação. Conforme Bauman (2004),
Em sua versão ortodoxa, o desejo precisa ser cultivado e preparado, o
que envolve cuidados demorados, a árdua barganha com
conseqüências inevitáveis, algumas escolhas difíceis, e concessões
dolorosas. Mas pior de tudo, impõe que se retarde a satisfação, sem
dúvida o sacrifício mais detestado em nosso mundo de velocidade e
aceleração. Em sua reencarnação radical, aguçada e sobretudo
compactada pelo impulso, o desejo perdeu a maior parte de tais
atributos protelatórios [...] (p. 27).
Pois bem, a realização do desejo, da maneira como foi apresentada pelo
conto, dependeu de algumas transformações nos modelos de estabelecimento
de vínculos. A sexualidade feminina não está confinada ao casamento, tão
pouco é possível dizer que a divisão entre mulheres imaculadas e impuras,
central para a sexualidade masculina (GIDDENS, 1993), é mantida. Ainda que
Rosana assuma a prática do padrão duplo, ela não é representada como uma
devassa. Antes disso, o narrador-personagem nos apresenta uma mulher que
não deixa de ser digna de respeito em função de suas opções sexuais. Essas
são possibilidades contemporâneas que não excluem, e sim possibilitam, no
conto, a realização disso que Bauman (2004) nomeia de desejo em sua versão
clássica. As transformações sociais não geraram, necessariamente, as
parcerias “padrão shopping”:
Guiada pelo impulso [...], a parceria segue o padrão do shopping e não
exige mais que as habilidades de um consumidor médio,
moderadamente experiente. Tal como os outros bens de consumo, ela
deve ser consumida instantaneamente (não requer maiores
146
treinamentos nem uma preparação prolongada) e usada uma vez,
´sem preconceito`. É antes de mais nada, eminentemente descartável
(BAUMAN, 2004, p. 27).
Dessa forma, é possível concluir que os dois contos apresentam
mulheres que constituíram família a partir de um modelo convencional.
Entretanto, esse modelo não é retratado como algo opressor, problemático ou
despido de emoções, ou seja, o sexo extraconjugal não é saída ou
conseqüência de qualquer frustração evidenciada. O pacto de exclusividade
sexual é rompido em função de questões íntimas, vontades secretas satisfeitas
ao gosto transgressor do acaso.
147
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo de destradicionalização das sociedades, em especial, a
brasileira, culminou com a ruptura e com a superação de valores que guiavam
o comportamento tanto pessoal, quanto social. As formas alternativas de
conjugalidade, ou seja, aquelas que não correspondem ao modelo de família
nuclear burguesa adquiriram respaldo social anteriormente inexistente.
Entretanto, falar em superações e rupturas o corresponde a um
cenário contemporâneo no qual teríamos partido de um formato específico para
outro, numa espécie de caminhada evolutiva. As alterações nos modelos de
estabelecimento de vínculos afetivo-sexuais resultaram, grosso modo, na
concretização da possibilidade do múltiplo. Dessa forma, a única afirmação
taxativa viável refere-se à convivência, muitas vezes tensa, com a pluralidade
de arranjos familiares.
Conforme se afirmou desde o início desta pesquisa, a ligação entre
prática social e manifestação literária tende a ser visceral. Sendo assim, a
literatura brasileira contemporânea, nos momentos em que torna o amar o
tema central de suas produções, não deixou de tratar dessas questões.
Partindo do universo ficcional de Luiz Vilela, é possível verificar como a
idéia de pluralidade pode estar presente na produção de um mesmo autor. Os
contos analisados não sugerem o fim da família nuclear burguesa, embora
denuncie seus dramas. Em “Nosso Dia” e “Por Toda a Vida” o casamento
convencional é apresentado como clausura e o amor conjugal como fantasia
incompatível com a realidade. Entretanto, em “A Moça” e “Primos”, apesar do
rompimento com a cláusula de exclusividade sexual, as mulheres retratadas
não parecem insatisfeitas com os parceiros oficiais. É necessário dizer ainda
que nesses dois últimos contos o casamento tradicional conta com uma
subversão, ou seja, o padrão duplo é vivenciado por personagens femininas.
A idéia de pluralidade é justamente esta: existem subversões muitas
vezes sutis. O casamento é convencional, mas até certo ponto. Isso não
significa extinção do casamento, que permanece inclusive com a manutenção
de certas hierarquias de gênero. Existem subversões radicais, como é o caso
da personagem Diana do conto de Márcia Denser.
148
A composição de um pequeno panorama, com trabalho de outros
contistas, trouxe para esta discussão algumas configurações interessantes. Em
Wander Piroli, a amante cujas fantasias mais íntimas de realização associam-
se à imagem da dona de casa tradicional.
O conto de Lygia Fagundes Telles nos apresenta o casamento motivado
por interesses patrimoniais, mas apartado da autoridade patriarcal. O molde da
negociação é capitalista e o que se tenta comprar é amor. Delineia-se ainda a
imagem de um corpo inapto para o amor, ou seja, a afirmação de que a
matéria corpórea é parte fundamental da prática amorosa.
Márcia Denser nos apresenta uma personagem feminina amargurada
com a própria autonomia. A liberdade sexual, a possibilidade de entregar-se a
prazeres físicos provoca uma sensação de não pertencimento. Os modelos de
estabelecimento de vínculos anteriores são negados e ainda não foram
encontradas alternativas. Para Diana, a alternativa ainda é o sexo episódico,
impessoal e curiosamente solitário.
Em “Estranhos” de Sérgio Sant’Anna uma radical subversão com as
estereotipias identitárias de gênero. Recupera-se aqui o caráter vertiginoso no
amour-passion. O resultado é um homem que transforma completamente sua
vida, abandonando uma relação estável para se entregar a uma expectativa de
vivência arrebatadora que provavelmente não se concretizará.
Todas essas possibilidades de tratamento da temática amorosa,
resguardando as especificidades da escritura de cada autor, nos confirmam a
idéia de pluralidade. A preocupação pós-modernista aponta para o retrato do
amor enquanto um dos dramas humanos. As questões morais ou éticas
adquirem valor ou são trazidas à tona na medida em que dizem respeito a
dores e angústias dos personagens.
O amar, no universo da contística de Luiz Vilela, também contempla a
pluralidade. Não se considera possível depreender uma função específica para
o amor em suas narrativas, nem mesmo um tratamento uniforme fornecido à
referida temática.
Poder-se-ia afirmar, por exemplo, que os contos “No Bar” e “Tremor de
Terra” confirmam a impossibilidade da realização amorosa. Realmente, tanto
em um quanto em outro texto os personagens estão solitários e a esperança de
realização afetiva é muito mais uma frustração que uma esperança. Entretanto,
149
são contos que nos trazem uma visão grandiosa do amor. Ainda que estejam
sozinhos, os personagens acreditam no amor como força arrebatadora,
subversiva, transcendente. A vivência amorosa, satisfatória ou não, é centro da
crise do sujeito e também mecanismo de crítica aos princípios racionalistas que
constituíram a modernidade.
A confirmação das múltiplas abordagens da temática amorosa no
universo ficcional de Vilela se evidencia, ainda, quando comparamos dois
blocos temáticos desta dissertação. Em “Nosso Dia” e “Por Toda a Vida” o
ideário romântico é ridicularizado diante de uma vida conjugal amesquinhada.
Dessa forma, a indissolubilidade dos vínculos, sustentada ainda hoje pelo
casamento católico, significa clausura, infelicidade. Entretanto, a
transitoriedade desses mesmos vínculos possibilitada por arranjos afetivos
menos convencionais aponta para a nostalgia de uma estabilidade perdida em
“Numa Cidade Estrangeira” e “Amor”.
O amar em “A Moça” e “Primos” configura-se como a possibilidade de
transgressão erótica. A cláusula de exclusividade sexual, pressuposta nos
contratos de casamento, é rompida. então a abertura para vivências outras,
para a descoberta de desejos ocultos, para a realização de fantasias antigas.
Finalizando, o amor, nos textos analisados, é tratado como um drama
humano não mais coberto de significados a partir dos pares dicotômicos
propostos pelo racionalismo da modernidade. Dessa forma, certo e errado
deixaram de ser categorias consideráveis quando não fazem questão para o
sujeito. Corpo e alma o constituem mais pólos opositivos: o amor contempla
o sexo e vice-versa.
A família nuclear burguesa também não desapareceu da literatura, nem
é retratada como modelo necessariamente falido. Suas crises são expostas,
como também são expostas crises de modelos outros de conjugalidade. Da
mesma maneira, evidenciam-se dores e alegrias dentro e fora das tradições.
As liberdades conquistadas não recobrem a temática amorosa de
deslumbramentos ou euforias. Ora resultam em realizações luminosas, ora em
armadilhas claustrofóbicas.
De qualquer forma, o amor permanece como tema e não perdeu seu
status de questão fundamental na realização pessoal do sujeito.
150
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154
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ANEXOS
155
AMANHÃ É SEMPRE O MESMO DIA
Wander Piroli
Na hora de sair, ela mergulhava na cama e dizia que ia ficar. Pode ir, ciau.
E ele, de pé no meio do quarto e com a toalha enrodilhada na cintura, olhava
sorridente o seu belo e pequeno animal estendido na cama, os cabelos negros
derramados no travesseiro. Algum dia isso aconteceria.
O que ela desejava era muito simples: um homem que sai para trabalhar e de
tarde volta suado com um embrulho de pão debaixo do braço; e ela, como se ali
fosse um lar, e era, deixaria a mesa posta e ela própria posta para qualquer que fosse
a sua fome. Algum dia.
Mas ele sempre dava umas palmadas em suas nádegas nuas e dizia vamos, e ela
respondia hoje eu vou ficar aqui com a voz preguiçosa, e ele ia sozinho para o boxe e
tomava um banho quase frio para que o calor não enfumasse o vidro e ele, durante
todo o tempo que estivesse lá, pudesse ver para sempre aquele corpo abatido na
cama. Depois ele regulava o chuveiro, aumentando o calor, até que não a visse mais
através do vidro.
Ao sair, encontrava o quarto escuro e a cama vazia, e ela de repente saltaria
no seu pescoço, e ele a levaria no colo ao boxe, e os dois se beijariam através do
vidro enfumaçado.
Enquanto ela se banhava cantando uma canção antiga e obscena, ele se
enfiava dentro das roupas e esperava sentado na cama, o cigarro aceso, o resto da
bebida na mão.
E ela vinha com leveza de um felino, e se jogava em cima dele, e rolavam na
cama como dois bichos, até que ele a dominasse e dissesse nós temos de sair, e ela
respondesse ofegante eu sei animal, eu sei.
E ele então sentava na cama e ela deslizava para o chão, uma gata, e calçava-
lhe as meias e os sapatos. Se as meias eram de náilon, tinha mais trabalho, mais ela
nunca permitiu que ela o ajudasse.
Desde que saíram juntos pela primeira vez devia ser sempre assim. E sempre,
na volta, ela deitava no seu colo para que ninguém a visse, ou melhor, para que, se
por acaso fosse visto, com o dia quase amanhecendo, pensassem que ele estava
sozinho no carro.
Passando algum tempo, ela perguntava estamos chegando?, e antes que ele
dissesse sim, ela dizia eu sei, eu sei, e algo de ruim desabava sobre os dois, e ela se
erguia e punha ordem nos cabelos. Achava injusto tudo aquilo. E quando o carro
parava, ela descia correndo e não olhava para trás para o vê-lo ir embora na
manhã de um novo dia que não seria deles.
VOCÊ NÃO ACHA QUE ESFRIOU?
Lygia Fagundes Telles
Ela foi desprendendo a mão que ele segurava e virou-se para a parede. Uma
parede completamente branca, nenhum quadro, nenhum furo, nada. Se houvesse ali
156
ao menos em pequeno furo de prego por onde pudesse entrar e sumir. Lembrava-se
agora do mínimo inseto a se enfiar aflito na frincha da argamassa de cal, forçando a
entrada até desaparecer, estava fugindo. A evasão dos insetos é mais fácil, pensou e
entrelaçou as mãos. O que você faz logo depois do amor? Era a pergunta cretina
que outros cretinos responderam num programa de televisão. Acendo um cigarro e
fico olhando para o teto, disseram alguns em meio de risadinhas. Outros foram mais
longe, Enfio a cueca e vou até a geladeira buscar uma latinha de cerveja. Ou uma asa
de frango. Mais risadas. E o entrevistador não lembrou de perguntar como eles se
comportariam numa situação mais delicada, aquela onde não aconteceu nada. Para
onde então a gente deve olhar? Ela voltou-se para Armando recostado no espaldar
da cama, os cotovelos apoiados nos travesseiros, fumando e ouvindo música com
uma expressão do mais puro enlevo. Acho que não passo de uma romântica meio
sebosa.
— Os românticos são sebosos.
— O que foi, querida? O som não está alto?
Ela cobriu o seio que se descobriu ao estender o braço.
Eu disse que às vezes fico romântica e imagina se lugar para
romantismo nesta viragem do século. Viragem, viragem, ouço falar em virada mas
viragem não é mais profundo? Me faz pensar em águas agitadas, redemoinho...
Com um tímido assobio, Armando tentou acompanhar a frase do disco.
Desistiu quando deu com próprias mãos ali em disponibilidade sobre o lençol.
Inclinou-se depressa para pegar o copo de uísque que tinha deixado no chão.
O que eu queria dizer, Kori ele começou. Tomou um gole de uísque e
pigarreou. — Acho que me emocionei demais, compreende? Me habituei a um certo
tipo de mulher que prefiro pagar, não, não são propriamente putas — acrescentou e
a palavra putas foi quase sussurrada. Enfim, fiquei emocionado e na emoção,
compreende?
Kori ficou olhando a parede, Misericórdia! E ele ainda perguntava se ela
estava compreendendo.
— Minha mãe fugia da realidade como o diabo da cruz e inventou que eu era
uma moça muito especial. Você se atrapalhou, querido, mulheres especiais
atrapalham. Ou não? Ah, Armando, será que vai me dar explicação? Vamos, meu
lindo, esqueça pediu, franzindo a boca num esgar. E devia ainda ficar ali
consolando muito sutil. E ainda por cima tinha que ser generosa.
— Algum compromisso, Kori? Você está meio tensa.
Eu, tensa? Não, que idéia. Prometi levar o filhote ao Jardim Zoológico,
ele quer ver os ursos mas tenho tempo.
157
— E depois?
Depois. Ele queria saber o que vinha depois. O tom era de um distraído sem
maior interesse em ouvir a resposta mas ela sentia a ansiedade pulsando sob a pele
dessa distração. O que vocês vão fazer hoje? ele podia ter perguntado se fosse um
homem simples. Se fosse mais simples ainda poderia dizer, Minha querida, me
perdoe mas foi um equívoco, não era você que devia estar na cama comigo, erro de
pessoa, compreende? Mas Armando estava longe de ser um homem simples: levar
para a cama a mulher do amigo já não revelava uma certa complicação? E um amigo
pelo qual ele estava apaixonado.
— Inacreditável.
— O quê, Kori?
— Tudo isso ela disse e fez um gesto. — Essa desordem, essa loucura do
mundo, a ETs aparecendo aos montes, você sabe, aqueles pequenos seres
invasores. E parece que esses são malignos, mas o ET defuntinho que vi numa
revista tinha a cara de um humano tão triste acrescentou e tocou no ombro nu
do homem. Meu aniversário é amanhã mas Otávio inventou hoje uma ceia, a
celebração na véspera.
— Trinta anos, Kori?
Com esta minha pele de papel de seda amarfanhado devo aparentar muito
mais e ele falando em trinta anos, não era mesmo delicado? Fixou no homem o
olhar comovido, o delicado Armando. o cínico mas delicado. Acariciou-lhe o
queixo. Meu pobre querido. Eu também sou uma pobre querida, todos
queridíssimos e contudo. Fechou os olhos. E os olhos dos mortos, aqueles olhos
que continuam vendo depois da morte? Mas esses mortos que nos amaram tanto
não podem mesmo ajudar? Mãezinha era uma que já estaria aqui em meu redor mas
acho que eles não podem fazer nada. Ou fazem e a gente não percebe?
Amanhã completo quarenta e cinco, tenho quatro anos menos do que
Otávio, vocês o têm a mesma idade? Vai, querido, me agora um uísque com
bastante gelo pediu e apontou para o aparelho de som. Como é bonito esse
quarteto.
— Bach para mim é um deus.
— Eu sei.
Mas ignorei o principal, ela pensou e abaixou a mão sobre o lençol. Total
ignorância pelo menos até o momento em que ele abriu a porta e disse, Querida
Kori, que alegria. E o abraço sem a menor alegria, podia ter disfarçado. Não
disfarçou. Entra, minha querida. Se naquele exato instante ela inventasse um
pretexto assim que sentiu a coisa no ar emitindo sinais, a sugestões. Diga que
Otávio apareceu inesperadamente, a forca dos inesperados e por isso não pode ficar.
158
Ou diga que o seu filho está queimando de febre ou então que houve um vazamento
de gás, isso é grave, gás! Que a cozinheira aspirou e agora ela es no hospital,
depressa, diga o que quiser mas embora! Tirou o casaco e ficou. Ficou como se
precisasse mesmo de se certificar, como se tivesse que ver Armando fazer aquele
gesto, levantar o disco, um pequeno gesto igual ao do padre Severino levantando a
hóstia. No êxtase, a revelação. Então é isso, ficou repetindo lá por dentro enquanto
Armando ia mexendo nos discos e perguntando o que ela gostaria de ouvir agora,
quem sabe uma ópera? Ela estranhou a própria voz em falsete, falava em falsete
quando ficava postiça, Ótimo, Armando, a Carmen. Ele voltou sem pressa no seu
andar elástico, a voz grave, impostada. Pronto, querida, a Maria Callas, disse e
beijou-a de leve no pescoço, na orelha, mas evitando a boca. Ela chegou a ter um
leve desfalecimento, mas o que eu estou fazendo aqui?! Tarde demais para sair
correndo, Um imprevisto! Sentiu-se no palco quando começaram as carícias no sofá
e sem o menor fervor, mas podia haver fervor? As almofadas que ele teve o cuidado
de ajeitar para deixá-la mais confortável, a penumbra atenuando o constrangimento.
Que papel miserável, miserável, miserável. E pediu mais uísque. Com a consciência
do sorriso alvar que esboçou, ainda quis ajudá-lo, ele tentava agora desabotoar-lhe o
sutiã mas se atrapalhou no colchete e na impaciência, a quase irritação, Que difícil,
Kori! Propositadamente ela reteve as alças nas pontas dos dedos, retardava o
instante de mostrar os seios que lembravam dois ovos fritos. Frios. Ele enervou-se.
Ela então soltou as alças. Misericórdia! E virou a cara quando ele beijou-lhe os bicos
bem leve, parecia mais interessado em ver esses seios do que beijá-los. Pensou no
filme da véspera, Indiana Jones, tantas ciladas. E caíra numa cilada ainda maior,
habilmente armada para satisfazer a curiosidade desse amante, amante? que queria
apenas vê-la de perto na plenitude das sardas e dos ossos. Encolheu-se. Espera,
querido, meu brinco caiu, espera! Ela conseguiu dizer e inclinou-se para procurar o
brinco entre as almofadas. Queixando-se do som, não estava muito alto?, ele
levantou-se e propôs: e se a gente tirar a ópera e botar Mozart? Ela concordou, Sim
Mozart! Vestiu depressa a blusa para cobrir os seios enquanto ele repetia o gesto do
padre Severino, o gesto, não precisava mais nada. Os olhos do padre da cor da
batina e a boca úmida como um talho aberto na cara macerada, Sois cristão? Sim, sou
cristão pela graça de Deus. As longas aulas de catecismo na igreja com vasos de opalina
e imagens sofredoras nos altares, padre Severino também um sofredor, curvado para
o menino de olhos enviesados, Você pecou por pensamentos, palavras ou obras? O
menino desviava para o chão o olhar estreito e não falava, olhava. O padre
insistindo meio ofegante, Anda, vem comigo conversar na sacristia. Fechava a
porta.
— Está dormindo, Kori? Ficou aí tão quietinha.
Dormindo? Não, que idéia. Fechei os olhos para ouvir melhor. Então me
lembrei de um padre da minha infância, ele tocava esse Mozart no órgão da igreja. O
que o senhor estocando? eu perguntei um dia e ele me disse, Mozart. E mandou
que eu repetisse até guardar, Mozart, Mozart.
— Ele era bom para você?
159
Era melhor para os meninos, ela pensou e colheu na língua a pedra de gelo
reduzida a uma lâmina. Triturou-a nos dentes.
Acho que sim, não sei, sei que um dia ele desapareceu da cidade, houve
alguma coisa na igreja e ele desapareceu. Veio no lugar o padre Pitombo, que era
velho. Mas foi com o outro que aprendi que não se pode olhar a hóstia porque Deus
está nela. Eu fingia que não olhava, abaixava a cabeça, mas assim que se distraíam,
olhava depressa, queria ver se Deus estava mesmo lá dentro.
— E estava?
Não sei ela respondeu e demorou o olhar no homem. E Otávio? Sabia
desse amor? Evidente que sim mas deixava-se amar, era vaidoso demais. E meio
cínico. Gostava mesmo de mulher mas se divertia, Cada qual com sua diversão, diria
a avó inglesa dedilhando a harpa. — Minha avó sabia tocar harpa. Era tão bonita!
— A sua avó?
Não querido, a harpa. Minha aera feia, todas as mulheres da minha
família são feias.
Feias e ricas. Mas sem perder as ilusões, isso é que não, perder as ilusões,
jamais. Até eu, este cocô de mulher, me apaixonar perdidamente por esta beleza de
homem e ainda esperando que ele, apaixonado pelo outro, compreende? Um caso
especial, diria a mãe. Especialíssimo. E se eu fosse um homem? Ele ia se apaixonar
por mim? o ia o, em homem eu seria o mesmo desastre e Armando era um
esteta. Será que ele gostaria de ouvir notícias sobre Otávio? Pois vou lhe dar ao
menos esse prazer, pensou e teve vontade de rir.
— Sê afável, mas não vulgar — murmurou ao aconchegar o lençol em
dobras de gargantilha até o pescoço. — É uma citação, Armando.
Ele inclinou-se bem-humorado sobre a mulher que se esquivou.
Faz uma citação importante, desconfio que é importante, e depois fica
se escondendo.
o estou me escondendo, Armando, estou com frio. Você não acha
esfriou?
— Vou buscar uma coberta.
Ela o reteve pelo pulso.
Não é preciso, querido, tomo mais este gole e já me levanto avisou e
sacudiu o copo até que os cubos de gelo se acomodassem no fundo. Fechou a cara,
mas era justo? Ser usada como ponte para que ele chegasse até o outro, ponte? Nem
isso. Quis apenas ver nos detalhes a mulher com a qual esse outro tivera seus
160
orgasmos. Poucos, é certo. Mas no acaso deles não chegaram a fazer um filho? A
débil criança de sangue aguado que o pai recebera com aquele ar aborrecido com
que recebia uma construção que não deu certo, era arquiteto. Nenhuma inspiração,
diria a avó da harpa. Apontou a sala. — O telefone está tocando, Armando! Não vai
atender?
Ele levantou-se devagar. Sentia-se observado e se exibia anesse mínimo
movimento de vestir o chambre que estava na poltrona. Acompanhou-o com o
olhar. Ele fechara as cortinas deixando apenas uma luminária embaçada num canto,
todas as providências para que não ficasse muito exposto o patinho feio enquanto o
cisne merecia toda a luz do mundo. Era um cisne curioso mas delicado e teria ainda
que agradecer tanta delicadeza? Até quando? Em latim ficava melhor, mas esqueceu
como era em latim. Mas se lembrava — e quanto! de outras coisas, por exemplo,
daquela véspera do casamento. A banheira cheia até às bordas, ela mergulhada até às
orelhas e ouvindo pela porta entreaberta a mãe falando, falando, Minha Kori vai dar
uma noiva o especial! Especial, ela repetiu, chegando a boca aa superfície da
água, aspirando o vapor enquanto olhava para os seus pequenos seios recolhidos,
murchos. O sexo de uma menina desvalida, os pêlos escassos bordejando a fenda
entre as pernas finas como fio de macarrão meio entortados, amolecidos na água
morna. Sentou-se num susto na banheira, cruzou os braços, Mamãe! Vem depressa,
mamãe, depressa!, chamou aos gritos. A mulher veio correndo e ficou um instante
olhando da porta, paralisada no susto. Puxou-a para fora da banheira com a antiga
energia com que socorria o bebê roxo de frio no meio do banho, Que é isso Kori?
Que choro é esse, filhinha, aconteceu alguma coisa? Embrulhou-a na toalha. Caiu
sua pressão, Kori, é a pressão? Estava em nico e ao mesmo tempo, indignada, O
que aconteceu, filha? Alguém a feriu? ficou perguntando enquanto começou a
massagear-lhe o peito com álcool canforado exatamente como fazia para animar a
criança anêmica. Kori esfregou a cara na toalha para enxugar as lágrimas e o ranho,
Ah! mamãe, então eu o sei? Otávio não me ama nem pode me amar, ele é tão
ambicioso, quer sucesso, quer fazer filhos e olha para isto, olha! pediu abrindo as
pernas e apontando a pequena fenda descorada. Está vendo? Por aqui não passa
nem um ovo quanto mais uma cabeça!
Pois passou ela disse e encarou Armando que voltava. tudo bem
querido? perguntou, e antes de ouvir a resposta atirou o lençol para o lado, fez
um desafiante movimento de ombros e levantou-se nua. O seu banheiro é ali?
Queria tomar uma ducha.
Ele ficou parado, olhando a mulher que se descobriu e agora atravessava o
quarto com tamanha soberba, uma expressão divertida nos olhos bem abertos, Ah,
é? parecia perguntar quando passou junto dele. A torneira quente corresponde à
água quente, querido? Porque lá em casa, até hoje as torneiras da ducha estão
trocadas.
Trocadas? ele repetiu e apertou com forca o cinto do chambre. Ainda
não se recuperara do susto. Seguiu-a até o banheiro, o olhar baixo, interrogativo.
Abriu o armário branco. Aqui estão as toalhas, Kori. E os sabonetes, olha aí,
várias cores e vários perfumes, queria que ficasse à vontade.
161
Mas eu estou à vontade ela disse e teve um olhar complacente para a
própria nudez refletida no espelho. Desviou o olhar para o homem. Seu
banheiro, Armando. Tanta luz, tanta claridade, é terrível.
— Terrível? Espera...
Não, por favor, o apague nada, deixa assim. Um banheiro glorioso.
Feliz. Olha quantas lavandas você tem!
— Na próxima vez encontrará a sua marca, compreende?
— E como sabe a marca da minha lavanda?
Mas o é a mesma do Otávio? ele disse e ficou subitamente corado.
Disfarçou, mostrou-lhe os chinelos, os chinelos!
Ela calçou os chinelos grandes demais e se pôs na frente do homem. Aspirou
o perfume do sabonete verde que apertava entre as mãos. Baixou para o sabonete o
olhar úmido, que coisa mais bela era o amor.
— Bem, ao banho, que ainda tenho os ursos e a ceia, um programa forte.
Ele animou-se de repente. Tomou-a pelos ombros e contou que na véspera
tinha comprado uma caixa de vinho da melhor qualidade, será que podia colaborar?
Na ceia, Kori. Se é que estou mesmo convidado, não quero atrapalhar,
compreende?
Esintimado, querido! Mas leve uma garrafa, nossa adega está cheia
demais, uma garrafa. Apareça por volta das dez, que bom, vai ajudar a aliviar o
clima. Nesta semana o clima ficou pesado.
— Pesado?
Ela beijou de leve o peito nu do homem e sobre ele fechou a gola do
chambre.
— Acho que agora podemos falar francamente. Ou não? Você sabe, o nosso
casamento foi de pura conveniência, eu me apaixonei perdidamente. Perdidamente.
E o amado Otávio queria apenas fazer um bom negócio e fez, você sabe bem, com
o tempo as coisas foram entrando em seus lugares, se querida mãezinha fosse viva
ela diria que esse casamento foi muito especial, ele precisava de dinheiro. Eu
precisava de amor. Ele tem todo o dinheiro que quis ter, paguei caro, concordo, mas
a gente não tem mesmo que pagar pelas emoções? Que não duraram muito, desde o
nascimento do Júnior não temos mais as chamadas relações sexuais. Resolvemos
assim, tranqüilamente. E se o clima tem pesado um pouco é porque tem uma
novidade...
162
Ele a olhava através do espelho com uma expressão voraz.
— Uma novidade? Que novidade?
— Ele tem uma amante, querido. Otávio tem uma amante e ela está grávida.
Agora era ela que o olhava pelo espelho. No quarto, o concerto de cordas
parecia chegar ao fim, mais altos os violinos na apoteose.
— Uma amante? Eu conheço?
Não querido, você não conhece, ela não é do nosso grupo, uma mocinha
bonita, mas simples, secretária, aquela história. E ele está apaixonado.
É extraordinário, Kori, nunca pensei. É extraordinário ele repetiu e de
repente ficou lívido. — E está grávida?
— Grávida. Mas não se preocupe, querido, vamos passar por essa crise sem a
menor mudança, fica calmo, vamos continuar igual. Otávio, você sabe, gosta de
dinheiro e eu gosto da companhia dele, a gente se entende. Ninguém está
enganando ninguém e isso é importante, é um jogo silencioso. Mas limpo. Acho que
nossa ceia vai ser ótima! E tire esse concerto que está muito triste, bota de novo
uma ópera, quero a Maria Callas aos berros!
Ele saiu num andar vacilante. Assim de costas, com o chambre largo e um
tanto curvo, ele pareceu ter envelhecido de repente. Ela afastou-se do espelho e
abriu as torneiras. Lançou ainda um olhar até o quatro onde ele estava andando
assim meio cambaleante em torno do aparelho de som.
— Mas que ducha deliciosa! — ela disse e levantou os braços. Abriu a boca e
riu meio engasgada, tossindo em meio do riso. Uma delícia! repetiu e
recomeçou a rir porque podia imaginá-lo encegado de desespero, não conseguido
achar o disco. Apressou-o. Quero, a Carmen! E ficou séria, vendo a água de
mistura com a própria voz escorrer estilhaçada até desaparecer no ralo.
O ANIMAL DOS MOTÉIS
Márcia Denser
Mas sempre acabo em seus braços / do jeito
que você quer... - Desabafo - Roberto Carlos
Deitamos ouvindo Roberto Carlos, a voz dos motéis, Por que me arrasto a teus
pés?. Porque sexo é isso mesmo. Essa gana de rastejar com Roberto, no coito dos
motéis. Ele diz: esse motel foi bom, e eu olho o banheiro, caixa amplificadora de
163
fibroplast, as toalhas embaladas em sacos plásticos, os lençóis castanhos com
ramagens duvidosas entre encardido e vestígios de cor, os três espelhos redondos,
montados em curvim (um em frente ao outro, no meio a cama, o terceiro no teto,
sobre a cama), claro que para nos transformar numa espécie de confuso coquetel de
siris assados: pernas, braços, carnes vivas, canteiro de patas, antenas, pêlos
moventes, espiando de esguelha uma outra hidra em perspectiva no espelho da
frente, de trás, de cima, de baixo, devassados, misturados, confundidos, ao preço da
diária, porque (e então eu sei por quê) todos os motéis o sempre o mesmo motel,
o animal mitológico, a quimera que se arrasta interminavelmente na madrugada ao
som de Roberto Carlos.
Apoiada nos cotovelos, a cabeça dela surge no horizonte do espelho. A brasa
do cigarro, no ponto quase central da bola ensombrecida, como o primeiro sol de
um universo, inflama-se:
—Você já leu Hemingway?
— O quê?
— Perguntei se você já leu...
— É importante? – ele soergue-se ligeiramente.
— Fatos. Parece que ele só se preocupa com os fatos, no princípio. Naquele conto
do toureiro, não lembro o título. Começa que o sujeito bate na porta do patrão, quer
voltar às corridas, o patrão não está interessado, diz: só nas noturnas, trezentos
pesos, discutem o salário. Muito seco, direto. De repente, o patrão olha bem na cara
do toureiro e pensa: é assim que todos morrem. E pronto. Eis a cabeça do monstro,
a cutilada na boca do estômago, Hemingway nos pega despre...
— E o cara? Morre ou o quê? – reprime um bocejo.
— A morte só o rodeia. Toda a tourada. Ele a persegue. Ela o arranha e o
abandona. Mas ele volta a provocá-la. Como um cego. Ou um tolo. É inútil. Duas
vezes entre os chifres do touro. Debaixo das patas dos cavalos. A espada se parte.
Não acerta — o que é muito simples para um veterano — o local exato no dorso do
animal, do diâmetro de uma moeda de prata. A morte apenas o maltrata, como se
estivesse brincando, como se ele não a merecesse, como...
— Mas ele morre?
—Não sei, o picador...
— Como não sabe? Então esse Hemingway...
— Precisaria ler a estória.
— Certo. Você já me contou.
A brasa desaparece no espelho, se apaga.
É como uma sina, ela pensa, contemplar esta cabeça com fria ternura ou
recorrer mais para trás, para uma piedade distante detonada pelo álcool, pela solidão,
aquele sanduíche cinzento de noites de leitura e insônia e cigarros, como uma única
noite boreal, amanhecer e crepúsculo, luz intermediária e intermitência de néon, de
café, de galeria, de esperar sem mais esperar, suplicar, implorar por aquilo que
sequer tem nome. O toureiro não merecia a morte.
É como uma sina. Rastejar com Roberto, você é mais que um problema, é uma
loucura qualquer, porque ele sabe de uma porção de coisas sem saber, coisas que eu
ignoro, lembra a Maga, aquela personagem do Cortázar que, por sinal, ignora
164
Hemingway e este, claro, além de você e todos, todos nós, amantes e condenados e
Roberto.
Um touro espreita no fundo dos olhos dele: duas faíscas cúmplices
transmitem a ordem ao dedo áspero que vadiamente começa a percorrer a coxa,
cilindro macio de luz negra. O dedo vai subindo, pincelando as penugens invisíveis
partículas fosforescentes na superfície da pele —, o dedo, e então são os
dedos, vão se abrindo, agarrando, numa fofa mordida, a região dos pêlos,
capturando os lábios, separando-os com delicadeza: o indicador resvala pela fresta
úmida. Imobiliza-o um instante dentro e então o leva à boca. A cabeça está
inclinada sobre seu ventre, mas ela sabe que ele sorri: um garoto mergulhando o pão
na panela e experimentando o molho. Olha-a, a mão agora pousada no seio, o tato
pegajoso, feito clara de ovo.
— Você complica tudo – os olhos são faíscas perversas.
Como se fosse possível o amor, como se fosse muito fácil, muito simples.
Possível. Fácil. Simples. Do diâmetro de uma moeda de prata. Uma fresta úmida. O
ponto exato. Amor.
— Nunca estive na Espanha, ou no México. Ela acende outro cigarro.
— Ou aqui. Está precisando de um homem.
— Já pensei nisso. Aliás, não faço outra coisa.
— Pergunto se você já fez algo a respeito.
— Sinceramente...
— Por você mesma. Imagina que eu sou um idiota. Sei o que está pensando. Essa
estória de toureiros fodidos e do tal Hemingway. Muito complicado, não acha?
— Então, nada de romance?
— As mulheres não mudam...
— Nem os homens. É bobagem. Penso: sinto-os pulsar aqui dentro, cegos, surdos,
solitariamente, me tocando até à loucura, me penetrando até à loucura. Certo, o
prazer também é meu, mas duplamente solitário, uma tarefa que cumprimos tão
distraidamente, tão alheiamente como um violino que se tocasse a si próprio num
dormitório de quartel, tarefa da qual só poderia, só deveria, nascer amor e música,
no entanto...
— Roberto Carlos – ele aponta o alto-falante.
— Não estou falando de fundo musical e depois isso é outra história (por que me
arrasto?).
— Está querendo dizer que eu só me masturbo?
— Que nós.
— Isso. Que nós.
— Também não sente assim?
— Sei lá. Às vezes...
— É isso.
— O que quer? É bom pra mim, bom pra você...
— Exato. Bom-mim, bom-você, um em Guadalupe, outro no Japão, se fodendo
pela internet.
— Garota engraçada, você. Vamos beber? Fisgou o cardápio na mesinha.
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A brasa inflamou-se novamente no espelho: uma erupção solar. Mas este já é
um outro capítulo: agora beber, começar a beber e ladeira abaixo.
— Vodca. Quero vodca.
— Pura? O telefone suspenso na pergunta, a expressão surpresa.
— Não. Com gelo.
Pousa o fone no gancho. Fita-a intrigado, ajustando o travesseiro. O corpo
enorme, em potente repouso, não faz parte do rosto. Coça os cabelinhos do peito.
Ela está enrodilhada ao pé da cama (como se camas redondas tivessem alguma
referência. São como o universo, não há direção, norte, sul, direita, esquerda, em
cima, embaixo, esses caras são mesmo diabólicos, Deus é diabólico, ou seremos nós
que...).
Ele se inclina acariciando-lhe as ancas dobradas, avaliando-as no espelho às
suas costas, as nádegas projetando aquele invisível biquíni de sol. Afaga-lhe o rosto,
os cabelos hesitando, ganhando tempo, com medo de falar:
— Bebe sempre vodca pura?
As bandejas passeiam no pátio repletas de coquetéis de frutas, martínis
doces...
— O que há de errado?
— Para as garotas boazinhas.
— E você? Não é?
O dedo contorna os lábios: vai me calar, me silenciar com esse beijo, entupir-
me com essa língua, porque esses encontros são acidentes vertiginosos cujo
resultado é o titã de mil olhos, mil bocas famintas que murmuram te amo, te amo, e
que respondem te amo, te amo, zumbindo num cercado de mentiras ciciantes de
sons no espelho, dimensão da penumbra da vida, caixa de música abafando um só
tema a repetir te amo, te amo, perseguindo o elo de uma cadeia prisioneira que nos
abandona assim que sai da boca, e a sua repetição implica a perseguição eterna
daquilo que já esteve atrás da boca, do travesseiro. Ao formularmos com os lábios o
rolo doce da língua e da saliva, saltamos à frente do tempo e imediatamente nos
sentimos abandonados por esse pássaro fugidio que se debate, te amo, te amo, ato
irrefletido do cuspir, separar as coxas e tomar a primeira estocada, recuar, avançar,
senti-lo rígido como um cilindro de aço vivo e então capturá-lo de leve, uns cinco
centímetros, não mais, e sugá-lo para dentro, frente a frente, de cócoras, como
crianças agachadas brincando com bolinhas de gude, hipnotizadas pelo movimento
das bolinhas que rolam, evoluem, param, prosseguem — o entrechoque das
bolinhas líquidas — nova fisgada, novo recuo de quadris; as bocas navegando nas
bocas, no rio das bocas, no mar das bocas, nas cavernas dos dentes e da língua, na
correnteza das bocas, gargantas, ventres molhados e lá embaixo o borbulhar
estourando as margens que recuam, cedem, enquanto ele bombeia, macho e terno, e
bate e bate, martela o limite viscoso, implorando para nascer de novo, e combate e
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se estimula e a maltrata porque ela uiva, sussurra obscenidades — as primeiras
palavras que um homem escuta, e as últimas —, evoluindo, insuportável, maldita,
insuportável, adorável, não é mais prazer, não é mais dor e é o milagre, a vertiginosa
erupção, um terremoto visto ao longe e o centro de um furacão, assistir a uma
catástrofe atômica e ao mesmo tempo estar no centro como Deus, como Deus,
como Deus.
Depois do violento crepitar frio, o movimento cessa e então voltar a ouvir o
vento se lastimando nas marquises dos edifícios, nas estruturas de aço da cidade
industrial mais próxima e, não fosse o vento, poder ouvir até a nós mesmos (que é a
última coisa que gostaríamos de ouvir na freqüência dos motéis), por isso nosso ego
logrado retorna, monstro rugidor e oceânico, às cavernas interiores, lá se
aferrolhando.
Lá em cima, no espelho, duas, quatro, seis, oito larvas rotas, libertas do
emaranhado.
Termina a cerveja e dá-lhe uma palmada na coxa:
— Vamos embora (pensando bem, amanhã eu nem vou trabalhar / e além do mais...).
— Ainda tem vodca – ela aponta um dedo preguiçoso para o copo, dois terços
vazio.
— Fica pra outra vez – ele já veste a camisa.
Ao saírem, nos espelhos, Roberto Carlos.
Esperando. Prometendo. Rastejando.
ESTRANHOS
Sérgio Sant´Anna
Cheguei à portaria daquele edifício, em Botafogo, para ver o apartamento,
quase ao mesmo tempo que uma mulher. Notei que ela estava nervosa, pelo modo
como dava tragadas seguidas no cigarro, amassava com a mão fortemente cerrada o
caderno de classificados de um jornal, e também pelo batom que transbordava a
linha dos seus lábios, como se houvesse se pintado às pressas. Mas nem por isso era
menos bonita ou elegante, usando um vestido listrado, de tecido meio rústico, que
ostentava uma simplicidade que devia ter custado algum dinheiro. Os sapatos pretos
grandões, desses de amarrar, concediam-lhe uma aparência um tanto exótica, um ar
de força, quase de brutalidade, talvez premeditada, um toque masculino que o
impedia de se evidenciar nela a mulher em todos os seus aspectos. Ou talvez eu
tenha pensado essas coisas todas depois, tornando-me capaz de escrever sobre elas
desse modo. Naquele instante eu estava preocupado em ver logo o apartamento.
Quando o porteiro estendeu a chave na minha direção, pois eu chegara um
pouco antes, ela disse com uma voz que pretendia ser durona, igual aos seus
sapatos.
— Não podemos subir todos juntos?
O porteiro tornou a recolher a chave, mantendo-a suspensa nos dedos, como
se fôssemos crianças disputando um doce.
167
A senhora vai me desculpar, mas não posso largar a portaria ele disse.
O apartamento está vazio e, se a senhora não se importar, pode subir sozinha
com ele — o porteiro apontou a chave na minha direção.
Ela olhou pra mim de cima a baixo, como se me avaliasse, até concluir que
eu era inofensivo.
— Por mim, tudo bem — ela disse.
Aquele exame minucioso, e talvez o seu resultado, me irritara. E também o
fato de o porteiro ter perguntado a ela se se importava de subir comigo, e não a
mim, que chegara primeiro, se me importava de subir com ela. Afinal, estávamos
disputando o mesmo apartamento. Então apenas dei de ombros, indiferente.
Mal fiz isso, ela tomou a chave da mão do porteiro e seguiu em frente pela
aléia, ou fosse como fosse que se chamava aquela passagem que, margeando o
estacionamento a céu aberto, ia dar no bloco B, onde ficava o tal apartamento.
Enquanto ia atrás dela, pensei que não estava sentindo nenhuma vontade de
morar naquele condomínio composto de dois caixotões verticais, com o nome
absolutamente ridículo de Bois de Boulogne. De fato, era todo ajardinado e havia
algumas árvores, para parecer bucólico e ecológico. Havia também um playground à
vista, o que significava muitas crianças quando não fosse hora de colégio, e uma
piscina escondida em algum lugar (eu lera no classificado), que devia ser um tanque
grande, também cheio de crianças. Na verdade eu e Clarice preferíamos começar
nossa vida num desses prédios mais antigos, com uma arquitetura humana, e não
tínhamos a menor intenção de ter filhos tão cedo. Mas eu ia ver o apartamento.
Estava de férias e programado para ver apartamentos.
Depois de subir dois lances de escadinhas, alcancei a mulher no hall dos
elevadores do bloco B, onde nos comportamos como dois estranhos que de fato
éramos um para o outro. Ela pôs um cigarro na boca, sem acendê-lo, e uma senhora
juntou-se a nós. Logo depois o elevador chegou, um pessoal saiu, deixamos a
senhora entrar primeiro, depois entrou ela, depois eu. A senhora desceu no quinto
andar e, até lá, ficou olhando de cara feia para o cigarro apagado nos lábios da
mulher, que sustentou o seu olhar. Assim que a senhora saiu, ela acendeu o cigarro,
embora houvesse uma plaqueta de proibição, visível no meio de vários grafitezinhos
infantilóides, alguns meio nazistas, alguns obscenos. Mas não seria eu, um ex-
fumante, que iria me incomodar com o cigarro dela.
Também es procurando apartamento muito tempo? perguntei,
para quebrar o gelo entre nós.
— Não, este é o segundo. Mas são todos umas merdas.
— É verdade — eu disse, apaziguadoramente, achando graça.
Chegamos ao décimo primeiro andar, o do nosso apartamento, e vi que a mão
dela tremia ao tentar enfiar a chave. Eu disse “Me licença”, peguei a chave e a
introduzi facilmente na fechadura.
Ela entrou, olhou ao seu redor, até encontrar um banheiro, onde se trancou
imediatamente. Fui abrir a janela da sala, pois fazia um calor abafado ali dentro,
apesar de ser outono. A primeira coisa que notei na paisagem foi o morro, a menos
de um quilômetro de distância. Dava pra ver as pessoas subindo e descendo a favela,
como num formigueiro não se pode ser original nessas coisas. Depois olhei para
baixo e encontrei a piscina. Era melhor do que um tanque e devia estar fechada e
essa hora da tarde, porque não havia ninguém lá. Mas o playground começava a se
168
povoar e os gritos chegavam ali em cima, mas eram menos crianças do que eu
imaginara. Ainda observei mais algumas coisinhas nos arredores, tentando vê-los
também com os olhos da Clarice.
Dei-me conta de que a mulher estava demorando no banheiro e desconfiei
de alguma coisa. Cocaína, por exemplo. Mas, afinal, eu não estava com ela, podia ver
o apartamento sozinho e ir embora, pois concluíra, mais ou menos, que o imóvel
não fazia o gênero de Clarice.
Ao virar-me para examinar melhor a sala, reparei numas irregularidades na
parede me frente, onde o sol batia nesse instante. A massa e a pintura tinham sido
retocadas havia muito pouco tempo, em alguns pontos, formando pequenos
calombos. Aproximei-me para vê-los de perto, quando a mulher saiu do banheiro.
Fumava outra vez, o batom em seus lábios fora alinhado e se maquiara em torno
dos olhos, que brilhavam, avermelhados. Podia ser cocaína, porque o seu nariz
também estava congestionado, mas achei possível que ela houvesse apenas chorado
e quisesse disfarçar com a maquiagem.
Fingi não reparar nisso e pressionei o dedo num daqueles calombos que
cedeu um pouco.
Podem ser tiros eu disse. Eles devem ter extraído as balas. Por isso
o aluguel é tão barato.
Percebi que estava querendo impressioná-la, o que, a julgar por sua resposta,
não consegui.
Você acha barato por uma pocilga dessas? Precisa ver o banheiro. É
ridículo.
— Estou falando de preço de mercado.
É possível ela falou, olhando em direção à janela. Mas a favela está
longe.
Os fuzis alcançam dois quilômetros eu disse, e vi que continuava
querendo impressioná-la.
Você é da polícia? ela perguntou, com uma voz falsamente neutra e
ingênua, que significava ironia com toda certeza.
— Não, sou jornalista.
Ela se dirigiu para a janela, sem perguntar qual era o meu jornal ou a área do
jornalismo em que eu atuava, e achei melhor assim. Pois, não sei por que, senti que
me sentiria um idiota se dissesse a uma mulher como aquela que eu era subeditor de
um segundo caderno, fazendo entrevista por telefone e escrevendo frescuras sobre
artistas egocêntricos.
Ela atirou a ponta do cigarro em baixo e ficou observando ele cair. Depois
virou-se para mim e disse, antes de se debruçar novamente no parapeito.
— É uma boa altura.
De repente, me passou pela cabeça que ela tivesse vindo ver o
apartamento para se jogar de cima. Podia ser mera projeção minha, claro, pois
também sou meio neurótico e até fizera um pouco de análise, antes de conhecer
Clarice, que me dava segurança. Mas, por via das dúvidas, resolvi voltar à janela,
onde poderia intervir caso a mulher fizesse menção de pular. Confesso que, além do
fato em si de não querer que um semelhante meu se autodestruísse, pensei também
nas complicações com a polícia, com a imprensa e com Clarice. Como iria explicar a
169
ela por que estava vendo apartamento com outra mulher que ainda por cima se
atirara dele?
Mas, assim que me aproximei da mulher, ela disse:
— Vou dar mais uma olhada por aí.
Enquanto ela foi ver um dos quartos, que dava para os fundos do prédio, fui
ver outro bem em frente ao dela, procurando afastar a idéia de suicídio da cabeça.
Na verdade, sabia que deixara a análise antes de remexer num lodo mais profundo, e
talvez para não ter de fazê-lo. E aquela mulher, apesar de tudo, me dava a impressão
de gostar muito da vida. Apenas tinha de ser a vida que ela gostava.
O quarto que vi era comum, um desses quadrados que os construtores fazem
economizando espaço. Também fora pintado recentemente, mas não havia
calombos nas paredes. Abri a janela e depois fui dar uma olhada no armário
embutido. Tentei abrir uma das gavetas e percebi que alguma coisa e estava
emperrando. Puxei com forca e um sutiã, empoeirado, acabou por soltar-se. Peguei-
o e observei que, pelo seu tamanho e desenho, fora usado por uma mulher de seios
pequenos, provavelmente uma jovem.
Nesse instante, ouvi-a exclamar alguma coisa no outro quarto, que não deu
para entender direito. Mas dali eu podia vê-la segurando um objeto que não
consegui identificar. Devolvi o sutiã à gaveta, depressa, fechando-a em seguida.
— Vem cá ver — a mulher me chamou em voz alta.
Dirigi-me rapidamente para e encontre-a suspendendo uma tira de cortina
japonesa, que ela desenrolava do chão, onde devia ter sido largada na mudança.
Nela, havia um buraco de bom tamanho.
Balas! a mulher disse, com uma espécie de alegria, embora o buraco
fosse só um. — O tiro deve ter entrado pelo outro quarto, atravessou o corredor e a
bala veio se alojar aqui. Aliás, pode até ter saído de novo — ela mostrou a janela que
havia aberto. Você tinha razão. Os sacanas deixaram esse lixo aqui (ela largou a
cortina com repugnância) e acharam que a gente não ia perceber.
Fiquei satisfeito com aquele reconhecimento e acrescentei, excitado:
— Vi poucas crianças no playground. Deve ter muita gente deixando o
prédio.
Foi nesse momento que ela disse sua grande frase, que me fez compreendê-la
melhor:
— Morrer não tem a menor importância. O horrível é ficar velha!
Você está longe disso eu disse, sentindo-me metade idiota, metade
cafajeste. Mas percebi que uma centelha se acendera em seus olhos.
Estou com trinta e quatro anos a mulher disse e olhou para mim, com
uma certa expectativa.
Parece ter bem menos falei, embora ela pudesse ter também trinta e
seis. — E mesmo que não parecesse, é uma bela idade.
— Ele parece que não acha — ela retrucou, amargamente.
— Ele quem?
— Não interessa. E você, quantos anos tem?
— Trinta e dois.
— Ele tem cinqüenta — ela falou com orgulho.
Foi que eu disse a grande besteira, ou talvez não, levando-se em conta o
que aconteceu depois.
170
— Ele te abandonou?
Sem qualquer aviso prévio, ela desatou um choro convulsivo, de dor e de
raiva, e avançou com os punhos cerrados na minha direção. Recuei, amedrontado.
Mas, em vez de me bater, ela se agarrou ao meu corpo, esfregando-se nele em
movimentos sofregamente ritmados. Olhei para a janela, preocupado que alguém
estivesse nos vendo. Felizmente não havia nenhum edifício alto nas proximidades.
Ninguém jamais me abandonou, entendeu? ela gritava. Ninguém,
ouviu?
Claro eu disse, correspondendo ao seu abraço um tanto
mecanicamente, pois continuava com medo.
Mas o filho da puta também está comendo outra ela disse, e agora
chorava mais livremente.
Acariciei os seus cabelos de um modo paternal:
— É por isso que você está procurando apartamento?
Ela fez que sim, com a cabeça:
Ele está comendo uma garota de dezoito anos. Você compreende bem o
que isso significa?
Compreendo eu disse. E, de fato, compreendi tudo cada vez mais.
Essas coisas acontecem — tentei consolá-la.
Foi o suficiente para ela me empurrar, com brutalidade.
Vocês são todos iguais. Não pense que não vi você pegando naquele
sutiã. Eu não preciso usar, veja!
Ela arrancou o vestido de baixo para cima, de um golpe. Havia parado de
chorar tão subitamente quando começara.
Eram seios perfeitos. Talvez houvessem sofrido uma plástica, mas que
importância tinha isso se eram tão bonitos e gostosos? Não havia outra coisa a fazer
senão acariciá-los, enquanto enfiava a mão em sua calcinha branca, e a mulher por
sua vez, desatava o meu cinto, para depois baixar minha calça e minha cueca, tudo
de uma vez, ajoelhando-se então aos meus pés para chupar meu pau, fazendo-o
crescer de uma forma incomensurável, que dava a ela uma satisfação intensa, que
talvez não tivesse muita coisa a ver comigo eu via em seus olhos de cobra ,
mas com o cara que estava comendo a garota de dezoito anos, como se ela quisesse
provar a ele o seu poder, que acabava provando a mim e muito bem.
Pedi um tempo, porque senão aquilo ia terminar logo, e também para tirar a
camisa e os sapatos nos quais minha calça e cueca haviam se enroscando, fazendo
com que eu tivesse de me apoiar na cabeça da mulher para não perder o equilíbrio.
Enquanto eu tirava tudo, ela tirou a calcinha:
— Você quer que eu fique com ou sem os sapatos? — ela perguntou.
— Com os sapatos — eu disse.
Ela deu um risinho:
— Eu sabia. Vocês são todos homossexuais enrustidos.
Ignorei aquele comentário, pois não sou machista, e preferi observar
meticulosamente a xoxota dela, que era bastante ostensiva, mas bem proporcionada
e agradável de ver, com os seus cabelinhos aparados.
Ela demonstrava sentir prazer com a minha observação e acendeu
calmamente mais um cigarro.
171
Poxa, como você fuma, heim? eu disse, apenas por dizer, ou porque
aquele silêncio contemplativo me deixava um pouco embaraçado.
A resposta dela foi dar uma tragada funda e provocativa, para depois
aproximar-se de mim, pedindo que eu a beijasse na boca. Foi um desses beijos
profundos, sexuais, sem nada a ver com os beijos dos que se amam. Enquanto ele
transcorria, ela foi soprando a fumaça para dentro da minha boca, lentamente. Eu só
havia parado de fumar por causa da Clarice, que era antitabagista militante; então
não tossi nem me engasguei, pelo contrário; traguei numa boa até o fundo, retendo
o mais que pude a fumaça em meus pulmões. Se palavras podem descrever tal
experiência, devo dizer que ela me alucinou como se eu fosse um fumador de ópio,
e que foi a maior intimidade que jamais tive com uma mulher, como se eu a
conhecesse em todas as suas estranhas. A falta de hábito, porém, fez com que eu me
sentisse meio tonto, e fui descendo meu corpo, trazendo o dela comigo.
Quer que eu faça com você uma coisa que faço sempre com ele? ela
perguntou.
— Quero – eu disse, ainda meio grogue.
— Então vira de bruços.
Saí do meu estupor e ergui a cabeça, assustado:
— Só se você apagar o cigarro.
Não sou sadomasoquista ela disse com desprezo, amassando o cigarro
no assoalho.
Virei-me de bruços e ela veio por cima de mim, de um modo que me fez
conhecer melhor o mecanismo das mulheres, ou pelo menos de certas mulheres, e
também dos homens, ou pelo menos de certos homens, como eu e o coroa devasso.
Esfregando ritmadamente a xoxota em minha bunda, ela dizia coisas como “meu
benzinho, eu te adoro, vou te comer todinho”. E assim ela gozou,
inquestionavelmente, pois não captei nada de teatral em seu orgasmo. Foi uma série
de tremores silenciosos, apenas ligeiramente arfantes, quase introspectivos, até ela
cair ao meu lado, satisfeita. Depois deitou a cabeça em meu peito e começou a fazer
risquinhos nele, com suas unhas pontiagudas.
— Por favor, não faça isso — eu disse.
— Não faço por quê? — ela continuou com mais força.
Segurei os braços dela.
— Eu sou noivo.
Ela deu uma gargalhada artificial e levantou-se, abruptamente:
— Não acredito. Estamos quase no século vinte e um e você é noivo. Cadê a
aliança?
o uso. Foi apenas uma forma de dizer, que eu e Clarice vamos nos
casar.
Bem, nesse caso talvez seja melhor eu ir embora ela disse, dirigindo-se
até onde estavam jogadas suas coisas. o quero atrapalhar a vida de vocês.
Quantos anos a Clarice tem? — ela perguntou, como que casualmente.
Dezenove eu disse, embora a Clarice tivesse vinte e quatro. não
falei dezoito porque ia parecer coincidência demais.
Se houvesse algum objeto ali para jogar na parede, tenho certeza que ela teria
jogado. Como não havia, ela dava pontapés no ar, tentando chutar os sapatões para
longe, o que não conseguiu, pois eles estavam firmemente amarrados. Então ela s
172
o vestido, mas pelo avesso. Ao retirá-lo, quase se sufocou com ele, ao contrário da
maneira graciosa e segura como o fizera da primeira vez. E acabou por estar de
novo nua, e de sapatos, chorando mansinho, como se tudo aquilo a houvesse feito
amadurecer anos, conformar-se à realidade.
Eu não sou burro, embora as coisas que escrevia para o segundo caderno
muitas vezes fossem. Continuei ali deitado, nu, esperando que a histeria dela
passasse. Sabia que se aquela mulher não cometesse nenhuma ação sem retorno, o
fato de eu ter uma noivinha de dezenove anos faria aumentar o seu desejo, desta
vez por mim mesmo, nem que fosse para provar mais alguma coisa. E, realmente,
enxugando as lágrimas, ela acabou por fazer a inevitável pergunta do final do século.
— Você trouxe camisinha?
— Não, eu e Clarice somos monogâmicos e não usamos.
Mas eu e ele não somos e não confiamos em ninguém ela disse, indo
até onde deixara sua bolsa. Remexeu lá dentro e depois atirou para mim uma
camisinha.
Era para usar com aquele veado ela fez questão de informar. Mas se
você fizer alguma perversão comigo eu vou gritar.
— O que você chama de perversão?
— Se chegar perto, eu aviso — ela disse.
Fui pôr aquele troço no banheiro, onde estava mesmo precisando ir.
dentro, tentei descobrir o que ela achara tão ridículo, pois era uma peça comum, até
confortável, com uma boa banheira. Imaginei que deviam ser os azulejos brancos,
com figuras azuis de Vênus e de anjinhos tocando trombetas, possivelmente
copiadas de terceira o do banheiro de algum palácio na Europa. E não pude
deixar de pensar, incomodado, que Clarice gostaria daquele banheiro, talvez o
consideraria a melhor coisa do apartamento.
Ou teria a mulher implicado com o espelho oval, com bordas trabalhadas em
metal prateado? O espelho no qual agora eu me olhava, percebendo que alguma
coisa mudara em meu rosto, talvez uma inocência perdida, pois estava traindo
Clarice pela primeira vez. Tentei pescar no fundo de mim mesmo uma velha
culpa, conhecida minha, e não consegui encontrá-la. Concluí que aquilo não era uma
traição, era um acontecimento o inexorável quanto uma catástrofe. Eu fora
atropelado pelo destino e só me restava sair de novo ao seu encontro.
Encontrei a mulher na sala, deitada de costas num colchãozinho que ela disse
ter achado no quarto de empregada. Estava nua até dos sapatos, e, com as pernas e
os olhos semicerrados, parecia a noivinha que, tenho certeza, ela estava
representando, com alguma rubor nas faces, talvez de ruge, mas o que importava?
Descrições de pormenores sexuais são deselegantes e enfadonhas. Se as
cometi, anteriormente, foi por considerar que certos atos obedeciam a uma lógica e
motivação radicais, a uma sexualidade invulgar e, por que não dizer?, refinada
que poderão servir ao enriquecimento do eventual leitor deste relato, feito por quem
não se pretende mais do que um repórter.
Mas creio poder revelar que gastamos duas camisinhas e fizemos de tudo,
nesse segundo movimento, menos o que, imaginei, devia ser a tal perversão. Quanto
aos orgasmos dela, da segunda fase, foram quase certamente falsos e teatrais e, por
vezes, tive de tapar sua boca. Como se ela quisesse anunciá-los ao prédio inteiro,
173
talvez ao mundo, mais particularmente a Clarice, ao tal coroa e sua garotinha. Mas o
que importa, já que os meus foram verdadeiros, assim como os meus sentimentos?
O meu grande erro, talvez, tenha sido querer traduzir esses sentimentos,
comentando o crepúsculo que vimos cair, o luar que agora banhava os nossos
corpos, o canto tardio de cigarras de outono. E houve um momento em que cheguei
a dizer, ternamente:
— Poderíamos até morrer juntos.
Isso lembrou-lhe que devia ir embora.
É melhor descermos separados, depois de todo esse escândalo. Eu vou
primeiro e você entrega as chaves, está bem? — ela disse.
— Pretende ficar com o apartamento? — perguntei enquanto nos vestíamos.
— Uma gaiola dessas? Você deve estar brincando.
— Vai voltar para aquele cara?
— Agora já posso — ela disse.
Vai contar para ele o que aconteceu? perguntei, ajoelhando-me para
amarrar os seus sapatos, enquanto ela acendia mais um de seus cigarros.
Tudo é possível — ela disse. — Mas não aconselho você a fazer o
mesmo. Sua noivinha não iria perdoá-lo.
— Talvez eu não queria ser perdoado.
— Você é louco — ela disse, encaminhando-se para a porta.
Quis acompanhá-la até o elevador, mas ela não deixou.
— Me diga ao menos o seu nome — implorei.
— O que passou, passou, está certo? Que importância têm os nomes?
— Não quer nem saber o meu?
— Não — ela disse batendo a porta.
O que mais dizer?
Terminei com Clarice, voltei a fumar e vim morar sozinho, pagando uma
mixaria de aluguel, no apartamento 1101, B, do Condomínio Bois de Boulougne, na
expectativa, talvez fantasiosa, pelo menos em sua segunda parte, de que o coroa um
dia aprontasse mais alguma com a mulher, e ela, farejando o meu destino, viesse me
usar para uma nova vingança.
Até o momento em que escrevo, isso o aconteceu. Mas, entre intervalos
mais ou menos longos de tediosa calmaria, muitas coisas acontecem em Bois e suas
redondezas: batalhas entre traficantes no morro Dona Marta, o pipocar de fuzis e
metralhadoras, foguetes sinalizadores cruzando os ares, incursões da polícia e do
exército na favela, helicópteros voando rasante sobre o bairro e, de vez em quando,
balas perdidas, que já furaram novamente as paredes da sala e dos quartos.
Às vezes, engatinhando com as luzes todas apagadas, vou deitar-me no
assoalho daquele quarto em que fui possuído pela mulher. Entrincheirado atrás de
uma parede, acendo então um cigarro, dou uma tragada funda, e penso naquela que
me penetrou até o âmago.
Troquei o segundo caderno pelo setor de polícia do jornal, comprei um
binóculo potente, para observar o morro, e instalei um fax no quarto desabitado de
empregada, cujo colchão, onde às vezes durmo, conservei. Dali, o local mais seguro
do imóvel, envio as últimas notícias para a redação, às vezes quase na hora do
fechamento do caderno Cidade. Escrevo à mão e assim transmito as páginas, pois
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meu micro levou um balaço que varreu para sempre sua memória, igual a um ser
humano quando apaga. Estamos furando todos os concorrentes no noticiário da
Dona Marta.
Num domingo, enquanto olhava pensativo da janela para baixo,
testemunhei quando um senhor, usando um desses shorts largos, foi alvejado pelas
costas por um franco-atirador, no momento em que mergulhava na piscina
semideserta do condomínio. Caiu provavelmente morto na água, cujo azul se
tingiu de vermelho, num contraste macabro na manhã ensolarada de primavera. Foi
o que escrevi, e não cortaram.
Pensei, também, que morrer talvez não tivesse mesmo a menor importância.
O sujeito havia saído de cena em grande estilo, enquanto nós, aqui, continuamos
sofrendo por razões diversas, incluindo as minhas.
Mas não estava simplesmente fazendo frase quando escrevi, para finalizar a
matéria, com esperança de que a mulher me lesse, entendesse tudo viesse me
encontrar, que morrer é muito fácil no Bois de Boulogne.
NO BAR
Luiz Vilela
Você não está ouvindo, eu digo. Estou sim, diz ele. Você está bêbado,
você não está mais ouvindo o que eu estou falando. Como não estou? diz ele,
abrindo muito os olhos; você estava falando naquele troço, como chama, é um
nome meio complicado, como que é, e ele fica procurando lembrar a porra desse
nome complicado, o imbecil, in-ter-sub-je-ti-vi-da-de mo-na-do-ló-gi-ca, eu digo.
Exato, diz ele, arreganhando a boca suja de chope é isso o que eu queria falar; e aí,
quê que aconteceu?
Nós estávamos desesperados porque havíamos descoberto que ela é
impossível. Leibniz, ouviu falar em Leibniz? A comunicação das consciências. As
mônadas não m janelas por isso são incomunicáveis. Cada um de nós uma
mônada, você uma nada, eu outra, ele outra, e ninguém podendo se comunicar,
entende? Se era assim, viver era um inferno, uma porcaria. Aquele dia nós
morremos, e quando fomos para casa, é como se cada um tivesse ido para o túmulo.
Ele depois ressuscitou, mas eu não, eu continuo morto, entende? Não, não vai dizer
que entende, é mentira, como que você me entende, se eu mesmo não me entendo?
Mas você não falou? diz ele, arrotando chope na minha cara. Falei sim, mas isso não
tem importância nenhuma. O que a gente diz não quer dizer nada. A gente diz
porque não outro jeito, mas dizendo ou não dizendo, na mesma. A gente diz
porque tem medo. Somos crianças no escuro, que têm medo e falam alto para ouvir
a própria voz. Você sabia que a gente ouve a própria voz? E que eu chorei por
causa disso? E que eu também ri por causa disso? Ai meu Deus, essa vida é uma
merda, por que estou com vontade de chorar e não choro? Por que estou com
vontade de morrer e o morro? Meu Deus, meu Deusinho, eu te perdôo porque
você não sabe o que faz, e eu também não sei o que faço, e estou bêbado, e
cansado, e só.
Aquele dia s morremos, eu continuo, e ele diz compreendo, mas sei que
não compreende, e isso não me importa. Aquele dia nós morremos. Passamos
dois dias sem nos vermos, e então, no terceiro dia, ele ressurgiu dos mortos e subiu
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ao céu pela chaminé. Encontrei! encontrei! ele berrava feito um louco no telefone.
Encontrou o quê, meu Deus? A solução! Solução? solução de quê? Quê que a gente
faz, quando não janelas nem portas? a gente sai pela chaminé! O quê? a gente sai
pela chaminé? você ficou maluco? Encontrei! encontrei! Era impossível falar com
ele do jeito que estava; fiquei de ir de noite e desliguei. Mas de tarde ele me tele-
fonou de novo: vai dizendo os São Franciscos que você lembra. Como? Os São
Franciscos, os retratos que você lembra, é urgente, preciso saber qual deles sou eu!
Qual deles sou eu? São Francisco? você está regulando, Lúcio? que negócio é esse?
Depressa, irmão, é urgente! Irmão? que frescuragem é essa agora? Os São Francis-
cos, preciso saber, os retratos, as pinturas que você lembra! Eu não estava
entendendo nada daquilo, já com vontade de desligar, mas alguma coisa me impedia,
não sei, acho que era a voz dele, estava diferente, aquilo não era brincadeira, ele
tinha dessas brincadeiras malucas, mas aquilo não era brincadeira. Resolvi tocar a
coisa pra frente; falei os São Franciscos que lembrava: não, não, ia ele dizendo. Falei
todos os de Giotto; o de El Greco: não, não. Olha, já está enchendo, sabe? Por
favor, irmão, a voz dele implorava. Mas falei todos, antigos e modernos! Não
falou, esfaltando um, sei que está, e é esse. Pensei mais um pouco, aí lembrei do
de Portinari. Bem, falei, tem também o de Portinari, na Pampulha. É ele! é ele!
gritou, tão alto que o telefone até tiniu. É ele! louvado seja Deus! louvado seja o
irmão telefone! Bom, eu falei, então tudo certo, né? pois agora é minha vez: você
vai me contar tintim por tintim essa maluqueira toda, tá? Nem acabei de falar
direito, ele tinha desligado; fiquei puto da vida. Que diabo era aquilo afinal? Eu não
entendera bulufas. Que negócio era aquele de chaminé, de São Francisco? Ele tinha
dessas brincadeiras, mas aquilo ultrapassava tudo. Sua voz, sua voz é que começou a
me preocupar. Acabei decidindo ir àquela hora mesmo na casa dele, e fui. Ele não
estava lá, a empregada disse que ouvira ele falando em Pampulha, acho que ele
escava meio grogue, ela falou, mas isso eu sabia que ele não estava, ele não ficava
assim quando estava bado; bêbado ele não estava. Pampulha. Peguei um táxi e
chispei para lá. Fui direto para a igreja. Ele estava lá, como eu imaginara: parado
diante do São Francisco. Cheguei perto e falei: ô Lúcio, que negócio é esse de — ele
olhou para mim e sorriu; é esse sorriso que eu não posso esquecer, um sorriso tão
suave, tão longe de tudo. Eu — ele disse, apontando para o São Francisco. Eu.
É engraçado o que acontece comigo quando bebo: um momento em que
tudo parece fundir aqui dentro, um calor, um fogo que me queima e me vontade
de expandir, quebrar as coisas, destruir, uma força selvagem que me impulsa, me
empurra, uma claridade que me cega de tão clara, uma febre nos olhos, na testa, na
garganta. Depois vem uma calma, um abandono, uma sensação de paz, de que tudo
está bem, e parece então que vejo as coisas com maior clareza e que perco aquilo
que me segura e me espreita como um olho pelo buraco da fechadura quando
começo a falar. Amor, necessidade de amor: era isso o que havia no fundo de tudo.
Intersubjetividade monadológica, comunicação das consciências, eram apenas
nomes complicados que tirávamos dos livros que amos, para encobrir uma coisa
simples: amor e que nós usávamos não sei se por vergonha de confessar nossa
carência, nosso desamparo, nossa solidão, ou se por uma espécie de recusa em
admitir que nós, sim, nós dois também, os gênios da praça, pagássemos tributo ao
que havia de mais banal no mundo, e que o que havia de mais banal no mundo era
exatamente o mais importante. Mas éramos muito jovens. Os jovens complicam
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demais as coisas. Se a gente olha a fundo, a gente que as coisas não são assim tão
complicadas. A complicação está é em s, nas palavras que usamos. Perdemo-nos
em palavras e perdemos as coisas, eis o que acontece. E não podemos escapar disso.
Sabe, chega um tempo em que a gente olha para a palavra como para um sapato
gasto, estragado, e sujo, que não adianta mais lavar, nem engraxar, nem consertar. E
então a gente sente uma coisa doída, algo que é como que a nostalgia do silêncio. As
palavras são um exílio, essa é que é a verdade. Mas naquela época eu não
compreendia nada disso. E falávamos, falávamos, falávamos. Mas falar, muitas vezes
é apenas um modo de calar sabia disso? E é o que acontecia conosco: falávamos
muito para calar, o tanto um ao outro, mas cada um a si mesmo. Tínhamos medo
do silêncio, ele era forte demais para nós. Como falávamos e líamos! Emendávamos
o dia com a noite, sempre juntos, amparando uma solidão na outra, como uma carta
de baralho na outra, para não cairmos os dois. Quando aconteceu aquilo, foi uma
queda terrível para mim. Só me reergui bem depois, com Lídia mas foi para
tornar a cair: assim é a vida.
Lídia tinha o rosto mais lindo que vi. Pinturas, retratos, atrizes de cinema,
ninguém, mas ninguém mesmo tinha um rosto tão bonito como o dela. A boca, o
nariz, os olhos, os cabelos sedosos parece até que estou repetindo um lugar-
comum de subliteratura, mas era a verdade, vou fugir à verdade porque ela é um
lugar-comum? Afinal de contas a vida está cheia de subliteratura e tudo acaba sendo
lugar-comum, a própria vida é um lugar-comum, quer lugar-comum mais comum
do que a vida? Como gostei de Lídia. Escrevi poemas, bebi, chorei por causa dela.
Pensava nela vinte e quatro horas por dia, acordado ou dormindo. Apanhei essas
rugas que você aqui; antes meu rosto era liso como o de uma criança. Emagreci,
pensei em suicídio. Ela era tudo para mim, não havia escolha: ela era Deus, a
felicidade, a alegria, a juventude, a vida, tudo. Você vai dizer que isso nem era
mais amor, era doença; mas quem falou que amor não é doença? Veja um sujeito
que está amando, mas que está amando mesmo, como eu estava aquela época, e me
diga se ele não é um sujeito doente. Claro, os equilibrados, os normais, os sadios,
todos esses tipos nojentos que serão vomitados da boca de Deus no Juízo Final.
Eles amam porque amar é uma coisa que um homem tem de fazer, como tem de
comer e dormir; arranjam uma mulher porque é uma coisa que eles têm de arranjar
um dia, como têm de arranjar uma casa, um filho, uma posição social, para viver em
harmonia com o rebanho e morrer na santa paz do Senhor, com missa no sétimo
dia e esquecimento no sétimo s. Amor, dizem eles quando sentem uma
coceirinha no peito ou no sexo. "Amor." Amor é uma coisa que queima, que
devora, que enlouquece às vezes, que mata. Amor sadio: essa nojeira dos livros
sobre a arte de viver. Arte de viver: outra nojeira. Não se esgote, não pense no
amanhã, não se preocupe depois das dez da noite, não beba, não fume, sorria sem-
pre, a vida é uma maravilha, Deus me sorri, etcétera. Palhaçada.
Eu estava falando de Lídia. Veja como são as palavras: elas nos carregam, nos
embriagam, nos tonteiam. Quando eu era pequeno, ficava tocando de roda para ver
as coisas ao meu redor girarem; mas depois era uma sensação horrível: eu parava e
as coisas continuavam girando, queria pará-las e não tinha jeito; o recurso era fechar
os olhos e esperar. Então aquilo passava. As palavras são assim, a gente começa a
falar, vai falando, falando, até ficar tonto, até sentir náusea, até querer vomitar.
Náusea da palavraé isso. A gente desejar ficar um dia inteiro sem falar nada, sem
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pensar nada, sem lembrar nada. Se a gente pudesse ficar morto por um dia inteiro e
depois continuar vivendo; mas. . . Lídia: foi como te falei: uma coisa louca; amor,
doença, nem sei mais o quê. E ela — ela era assim: Branco, eu acho que você é meio
doido. Hum; meio doido. É assim que ela dizia. E você sabe como é: um sujeito
meio doido é divertido até certo ponto; depois começa a aborrecer, a tornar-se
incômodo. E então quê que a gente faz? A gente vira-lhe as costas. Foi isso o que
ela fez, minha querida Lídia. A gente diz: quê que os outros vão pensar de mim? Ou:
você não compreende as coisas. Ou: você acha que eu preciso de você? Ela não
precisava. Eu é que precisava dela.
O amor é o que existe de mais solitário no homem. A gente costuma pensar
no amor como algo que estivesse no ar e aparecesse de repente para unir duas
pessoas mas não, não é assim, não é nada disso. O amor é solitário, é uma coisa
que es aqui dentro, uma coisa que a gente sente pelos outros e que os outros
podem não sentir pela gente. Amar alguém é descobrir a nossa solidão. Isso eu
sentia muito com Lídia, Gostava tanto dela que dizia: ela tem de gostar de mim, não
é possível que ela não goste de mim. Era possível sim.
Mas por que estou te contando tudo isso? Não tem nada de extraordinário, é
uma coisa que está acontecendo todo dia em todo lugar do mundo, a gente está can-
sado de ler nos jornais, fui apenas um caso entre mil. E além disso, passou, esse
amor foi uma espécie de despedida, de adeus à minha adolescência. Sinto que estou
mudando, que muitas coisas em mim estão ficando para trás e que outras estão
vindo: uma nova maneira de viver, mais fria, mais dura, mais contida. Pena que
Lúcio não tenha podido ver nada disso. Pena? Não sei. É engraçado: eu de certo
modo sabia que aquilo acabaria acontecendo. Várias vezes eu disse para ele: olha,
desse jeito você vai acabar virando santo. Perto dele o que eu entendia por amor era
apenas egoísmo disfarçado. Para ele a comunicação devia haver não somente entre
as consciências, mas também entre as consciências e as coisas; não devia haver
separação entre nada no mundo; gente, animal, planta, pedra, vento, tudo devia se
comunicar. Comunicação, quer dizer: amor — a palavra que não dizíamos. Depois li
Bergson, Heidegger, Whitehead: eles diziam quase a mesma coisa, só que de maneira
mais complicada. Lúcio dizia: você acha que eu posso me comunicar com outra
consciência, se não me comunico primeiro com essa cadeira aqui? IrCadeira
ele diria depois. Irmão Rádio, irmão Telefone, irmão Gato, irmão Cachorro, irmã
Barata, irmã Pulga, irmão Antônio, irmão Pedro, irmão Branco, irmã Flor, irmã
Fumaça, irmã Lua, irmão Sol, o universo inteiro uma irmandade inseparável. Uma
vez ele chegou debaixo duma laranjeira e disse: irmã Laranjeira, estou com vontade
de chupar uma laranja e parou a mão: uma laranja caiu bem em cima da mão
dele. Você não acredita, né? Mas eu vi.
E depois, como que foi? pergunta meu amigo, enquanto olho para a rua, que
começa a ficar deserta; é meia-noite, a pilha dos cartões de chope está alta e começo
a sentir sono. Depois do quê? Depois da igreja, o que aconteceu depois disso. Bem:
fui com ele para a casa dele. Voltamos de lotação. Ele veio cantando cânticos de São
Francisco, e todo mundo olhando para nós. Acenei que meu amigo era gira, depois
tive remorso: por que não disse a verdade? Em casa os pais haviam chegado, não
estavam sabendo de nada, foi um rebuliço, uma confusão, gritos, essa coisa toda,
não vou contar tudo, é muito grande e já estou com sono. Levaram ele num
psiquiatra, o psiquiatra disse que era um caso muito sério, mas que com uns choques
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talvez ele ficasse bom. O animal. Queria estar na hora para dar um murro na fuça
dele. Deram os choques, mas cio não ficou bom. Felizmente. O médico, por fim,
disse que era um caso irrecuperável, que a psiquiatria, apesar de altamente evoluída,
não podia fazer nada naquele caso; arrumou uns nomes complicados, embrulhou o
pessoal, pegou os seus cobrinhos e foi dormir o sono dos justos. Tentaram outros
médicos também, outros lugares, mas a opinião era sempre a mesma: um caso
irrecuperável. Está vendo como eles não entenderam nada?
No começo ele vivia solto. Passava o dia no quintal, conversando com as
árvores e os passarinhos. Era maravilhoso, uma coisa maravilhosa. Depois é que
começou a sair na rua e fazer pregações sobre o amor não tinha mais medo da
palavra, que era repetida milhares de vezes. Parava no meio da Avenida, em
qualquer lugar, e começava a falar. Logo juntava de gente. Uma vez prenderam ele
como agitador comunista. Nome: Francisco. Lugar onde nasceu: Assis. Estado de
São Paulo? Não, Itália, Toscana. Itália? Olha aqui, moço, não vem fazer hora com a
minha cara não, que eu te desço o braço, ouviu? Era triste e cômico ao mesmo
tempo. Depois ele começou a dar tudo o que tinha para os pobres. Passou às coisas
da casa, chegou a levar a televisão para um favelado que não tinha onde cair morto;
coisas assim. Foi então que resolveram mantê-lo permanentemente trancado num
quarto — um quarto com janelas gradeadas para ele não fugir. Não compreenderam
que já não podia haver mais prisões para ele.
TREMOR DE TERRA
Luiz Vilela
Tinha um rostinho que me encantou, um rostinho lindo como não sei
como o quê, não encontro nada que possa dar uma idéia de como era lindo o
rostinho dela, um rostinho maravilhoso, e eu apaixonei-me por ela como se eu fosse
um rapazinho de quinze anos e ela uma garota de quinze, mas eu não tinha quinze
anos, tinha quase vinte e ela mais de vinte e era casada e mãe e dona de casa e
professora, uma mulher com todos os requisitos necessários para isso. Apaixonei-
me de cara, no primeiro dia, no primeiro instante, foi um troço doido, eu não
escutei uma vírgula do que ela falou na aula, não despregava os olhos dela, era uma
coisa maluca, um desatino. O que eu senti, não parava de escrever se fosse falar
nisso, algumas coisas nem ia ter jeito de falar de o estranhas e incompreensíveis.
Era como se eu durante toda a minha vida, desde criança, estivesse procurando uma
coisa decisiva para mim e para isso tivesse batido milhares de vezes diferentes em
portas fechadas por trás das quais estava o que eu procurava, mas a porta não se
abria e eu não tinha o que procurava, nem sabia o que era, e continuava procurando;
mas de repente ela havia entrado na sala, entrado como entraria em qualquer outro
dia e do modo como qualquer outra pessoa entraria, e eu descobria que era ela o que
eu havia procurado todo aquele tempo, a coisa decisiva, mais importante, a que daria
sentido a todas as outras, a peça fundamental que estava faltando para tudo
funcionar. Isso foi uma das muitas coisas que senti. Nessa noite eu ainda não
sabia nada sobre ela, nem pensei se ela era casada ou não, estava tão embevecido
nela que o olhei para a aliança no dedo; como iria lembrar dum detalhe desses
naquela hora? E que diferença faria se visse a aliança? Isso era tão sem importância
quanto a cor dos sapatos dela que eu também não vi. Ela estava ali, tinha aparecido,
179
tinha surgido do fundo do nada, estava ali na minha frente, bem ali na frente diante
dos meus olhos maravilhados, em carne e osso, movendo-se, falando, piscando,
sorrindo, passando a mão nos cabelos, estava ali depois de uma eternidade de
espera, eu podia fechar os olhos que ela estava ali, podia sair pra rua e ver e ouvir e
falar e fazer todas as coisas que tinha feito ontem quando ela ainda não existia e
voltar e chegar na porta da sala e olhar que ela estava ali, podia ir pra casa
entristecer-me, desesperar-me, gritar, chorar, e eu saberia que ela estava ali, que ela
existia, que ali ou em outro lugar, mesmo o mais distante do mundo, havia agora um
espaço em que ela estava, havia um corpo se movendo que era o dela, e uns olhos e
uma boca e uma voz e um modo de olhar e de sorrir e de falar que eram os dela, que
eram ela, desde agora e para sempre ela.
Essa noite eu o dormi, é óbvio. Fiquei pensando nela o tempo todo, se
bem que "pensando" é um modo de dizer, porque a coisa era muito mais vasta,
muito mais profunda, era como uma dança louca de todas as células do seu corpo.
Amanheci pregado, incapaz de levantar da cama. E durante o dia aconteceu aquele
negócio que é chato pra burro e que tinha me acontecido de outras vezes: eu não
conseguia ver direito o rosto dela na memória; a hora que eu fixava bem uma parte,
os olhos por exemplo, o resto apagava, se deformava e eu tinha de correr para pegá-
lo, e perdia o que conseguira um troço exasperante. E eu não sabia o que
fazer para esperar passar um dia inteiro, pois a próxima aula dela só seria na noite do
dia seguinte e então a veria de novo. Nessa espera eu não pensei, não analisei,
não refleti sobre o que estava acontecendo, não fiz nada disso, podia mesmo
esperar e isso já não era fácil.
Na segunda noite, embora o maravilhamento fosse o mesmo, comecei a
descobrir os detalhes, o primeiro dos quais que ela era casada; mas não foi pela
aliança, foi depois da aula, quando a vi saindo com um sujeito que logo vi ser seu
marido. Um cara boa pinta, de terno. Ele era cônsul, fiquei sabendo depois. Soube
também que tinham filhos; e comecei a querer saber de tudo, onde moravam, de
onde tinham vindo, onde ela estudara, quando casara, tudo que se relacionava com a
vida dela, mesmo coisas pequenas. Ia sabendo isso através de conversas com os
outros. Não sei que interesse eu tinha nisso, mas era uma sensação engraçada: cada
vez que eu sabia um dado novo era como se eu me aproximasse mais dela, como se
ela fosse mais minha. Por outro lado, o que eu ia sabendo me mostrava com um
terrível sadismo como ela era de outro e como era infantil e maluco o que estava
acontecendo comigo. "O ano passado os dois estavam viajando pela Europa"
como se houvesse uma risadinha sádica por trás disso. Ela dizia: "O Ricardo diz que
eu sou muito apressada"; eu não pensava nela, na pressa dela, pensava no Ricardo e
morria de ódio dele, nunca odiei tanto um cara assim, e um cara que nunca me tinha
dito uma só palavra, para ele eu nem existia. Como que ele podia estar com a mulher
que nascera para mim? Quê que eles estavam fazendo juntos? Ela era minha!
Ela era minha, mas eu nunca fiz nada para tê-la. Não, não é isso, é o tipo da
frase que eu detesto, o tipo
da frase falsa; ela não era "minha", nem eu queria
tê-la; isso é influência das histórias de amor que andei
lendo, sempre tem um sujeito que diz de uma mulher que "ela é minha", como se
estivesse falando de sua escova de dentes; pois um cara desses merece é mesmo uma
dona que seja como uma escova de dentes. Mas ninguém é de ninguém, e ninguém
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jamais, nunca, never, poderá ter alguém ou ser alguém, a não ser nas imbecilidades do
tipo O Direito de Nascer e nos filmes da Pelmex, yo soy tuya hasta la muerte, aquele trem.
Mas não é isso: eu não queria tê-la também apenas fisicamente; não tinha
intenções escusas, para falar difícil. Não procurava um caso, uma aventura; nada
disso. Tem gente que precisa ter pelo menos uma vez na vida pegado a mulher de
outro para sentir-se realizado como homem; mas eu não, eu sou mais modesto,
procuro me realizar por outros modos, além do que esse negócio de mexer com
mulher dos outros complicação e das complicações quero distância, basta as
que tenho dentro de mim. A não ser quando a mulher do outro não é bem do
outro, reconhecidamente do outro, ela é como qualquer prostituta, que faz a
coisa por diletantismo e não por profissão. Mas ainda assim prefiro a profissional: a
gente vai, trepa, paga, o fica devendo favor, nem amor, nem amizade, volta pra
casa e esquece, não lembra nem mais o nome, Dalva ou Glória ou Marlene ou
Valéria ou Paula ou Mara, tudo é a mesma coisa, o mesmo buraco, pernas, peitos,
boca, palavrões, gemidos, uma explosão no escuro, a nota em cima da mesa,
acabou-se, de volta pra casa dormir, nenhum problema, remorso, aflição, saudade,
nada, o corpo sossega, a alma não incomoda, e o animal ronca feliz.
Não era isso o que eu queria com ela. Para dizer a verdade, a idéia de sexo
com relação a ela servia para atrapalhar, para estragar. Era estranho: a gente bate
o olho numa mulher e vai logo imaginando ela pelada, mas com ela eu não fiz isso,
não fazia isso, porque não quis ou sei por quê, o fato é que eu não fazia. Era as-
sim como uma garotinha de quatro anos: a gente olha e não vai pensar nela pelada,
se bem que tem muitos que não perdoam nem garotinha de quatro anos. Às vezes
eu tentava pensar nela com o marido como ela seria naquela hora, na cama, os
dois, tudo; mas era como se eu mastigasse uma borracha, a borracha afundava
depois voltava; era assim. O pensamento durava pouco, de repente eu lembrava dela
como a via na Escola e o pensamento sumia.
Bolas, se não era sexo, o quê que eu queria com ela? O quê que eu queria: era
isso que eu me perguntava. E eu não sabia responder. Nem sei ainda. É outra coisa
das histórias de amor: tudo é claro, o sujeito sempre sabe porque faz isso ou porque
deixa de fazer, porque gosta duma dona ou porque não gosta. Pode ser que seja
assim mesmo na realidade, com os outros, mas eu, eu não sou assim, eu sou confuso
e complicado, e então tudo fica confuso e complicado, as coisas, as pessoas, o
mundo todo, e começa a sair tudo errado e a gente começa a ter medo e a encolher-
se num cantinho escuro, porque se a gente mexe o dedinho cai um elefante na
cabeça da gente, e então a gente não mexe nem o dedinho e fica bem quieto lá no
escuro olhando as pessoas que passam juntas lá fora alegres e rindo, e sem entender
porque as pessoas estão lá fora e eu estou aqui escondido e com vontade de estar lá
fora também com as pessoas, e então vai dando uma tristeza muito grande na gente
e uma vontade de nunca mais sair do escuro, e quando a gente já esmexendo o
dedinho para um elefante cair na cabeça, mas nenhum elefante cai, nenhum, e então
o céu fica vazio de arrebentar o coração, e tudo fica mais escuro ainda.
Eu não sabia o que queria com ela. Não sabia. Amor platônico? À primeira
vista parecia ser isso, mas não era, era diferente, era uma coisa muito mais profunda,
dolorosa, desesperada, violenta, única, irremediável, absoluta, era um desejo de
abraçá-la, estreitá-la no meu peito, o rosto no meu rosto, esmagá-la o fortemente
contra mim que quando abrisse os braços ela tombasse morta como uma criancinha
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morta ou tivesse repentinamente desaparecido para sempre como desaparecera a
menina loira na noite de circo dos meus dez anos deixando no cheiro de pipoca e na
marchinha que foi ficando para trás toda a tristeza da vida. Não era amor platônico.
Amor platônico é um negócio meio besta, de fresco. Às vezes pode ser até bom no
começo, mas depois acaba virando um troço chato e irritante. "Acaba virando" é
isso, é isso que mata o amor. Acaba virando tédio. Acaba virando desespero. Acaba
virando ódio. Acaba virando angústia. Acaba virando infelicidade. E é isso que o
haveria com ela. Não haveria "acaba virando", porque seria um momento só, mas
um momento no qual entraria tudo o que eu pensara, sentira, imaginara, desejara,
lembrara, esquecera, sonhara, sofrera, tudo, um momento tão forte, tão profundo,
tão vasto, tão absoluto, que depois dele poderia haver o suicídio ou a resignação
total. Seria algo maravilhoso e terrível como um tremor de terra. Exato: como
um tremor de terra. É o que desde criança espero, um tremor de terra, algo que
abalasse, que tremesse, que sacudisse tudo. Uma vez, quando tinha sete anos, fiquei
horas acordado esperando o tremor, que na minha imaginação devia ocorrer àquela
noite. Eu não estava com medo, o interessante é isso; esperava-o como esperava a
chegada de Papai Noel na noite de Natal, quando era menor. O tremor não veio e
até hoje o espero, e em certas noites quase rezo implorando a Deus que ele venha
nessas noites em que ando pela rua sem vontade de ir a nenhum lugar e de
conversar com ninguém e de ficar em casa e de andar e de viver e de morrer,
quando o nenhum problema, quando tudo está assim e vai ficar desse jeito
como dois mais dois igual a quatro e um outro dia vai vir e depois outra noite e
depois outro dia e outra noite e tudo mudando e nada mudando enquanto uns estão
nascendo e outros crescendo e outros envelhecendo e outros morrendo e outros
nascendo e hoje é o século vinte e amanhã o século vinte e um e depois de amanhã
o século vinte e dois quando eu estarei tão morto e inexistente como estou no
século dez e outros estarão vivos e outros morrendo e outros nascendo e crescendo
e envelhecendo e morrendo sob o mesmo sol do homem de Neandertal e dos
assírios e dos fenícios e dos egípcios e dos gregos e dos romanos e dos hunos e de
Átila e de São Francisco e de Lucrécia Bórgia e de Colombo e de Lutero e de
Descartes e de Marquesa de Pompadour e de Byron e de Napoleão e de Beethoven
e de Abraão Lincoln e de Van Gogh e de Marx e de Machado de Assis e de Kafka e
de Greta Garbo e de Carlitos e de Hitler e de Marilyn Monroe e de Brigitte Bardot e
de minha bisavó e de meu avô e de meu pai e minha mãe e meu, meu sol, o sol que
olho hoje e que amanhã olhará para a minha sepultura quando eu estarei no escuro
da terra virando escuro e terra, um punhado do terra que restará de tudo o que eu
sou nesse instante, desse coração que está batendo, desse peito que está respirando,
dessas veias que estão pulsando, dessa voz, dessas mãos, desse pensar, desse sentir,
desse querer, desse viver, dessa carne, desse osso, um punhado de terra, nada
mais do que isso, punhado, punhadinho, terra, partículas de terra, átomos, prótons e
eléctrons; nessas noites eu quase imploro a Deus um tremor de terra. Talvez esse
tremor de terra será minha morte que virá um dia, e aquele momento o prelúdio, o
ensaio para esse outro, maior e definitivo.
Tudo parece claro dizendo assim mas nada era claro. Às vezes pensava
em conversar com ela depois da aula, mas não fazia isso, e não era por timidez nem
nada, era como se eu tivesse medo, um medo indecifrável. Um dia quase conversei:
ela ia descendo a escada e eu atrás pronto para chamá-la; mas comecei a pensar:
182
diabo, quê que eu quero com ela? prá quê que eu vou conversar com ela? vou falar
de minha vida e saber da dela? mas pra quê? e depois? vou mostrar pra ela o que
sinto por ela? mas e daí? eu nem sei direito o que sinto por ela ia pensando tudo
isso numa espécie de febre fria, e então chegamos no saguão e o marido dela estava
esperando-a: ele envolveu-a com o braço e os dois saíram. Tinha chovido e a rua
estava molhada. Eles foram andando abraçados, de capa, conversando e rindo. Às
vezes ela ria mais alto, jogando a cabeça para trás num gesto bem dela. Uma hora
pararam em frente a uma vitrina e ficaram olhando, ela apontando para as roupas,
ele naquela indiferença tranqüila e sorridente do esposo que tem ao lado a mulher
amada como se tivesse Deus e todas as legiões de anjos. Ele era simpático por
que tenho vergonha de dizer bonito? Pois bem: ele era bonito; alto, forte, elegante.
Cônsul. Rico. Inteligente. Inteligente eu também sou, às vezes tão inteligente que
sou completamente doido. Mas não sou bonito, nem tenho pinta de galã, sou todo
desengonçado, e principalmente o sou rico nem cônsul; não sou merda nenhuma.
Isso: merda nenhuma. E se eu caísse àquela hora na rua, a enxurrada podia me
carregar sem susto para o bueiro: eu o ia nem entupir. Se eu tivesse um revólver
àquela hora eu a teria matado mas não tinha revólver e se tivesse também não
teria feito nada (preciso ler menos a última página do jornal). Eu ia seguindo-os de
longe, sem nenhuma intenção; começara a segui-los na saída da Escola e ia se-
guindo. Era bonito os dois juntos assim, abraçados, rindo, andando pela calçada
molhada de chuva, as vitrines iluminadas. Era uma cena comum mas tão mara-
vilhosa que se tornava quase insuportável para mim vê-la. Era aquilo que eu queria,
que eu sonhava para mim um dia? Não sei, sonhei tudo, foi a coisa que mais fiz
até hoje, e é por isso decerto que eu não tenho nada e que eu vivo levando na
cabeça. Pois de agora em diante não vou sonhar mais. Juro.
Depois eles entraram em casa e a porta se fechou. Eu falei sozinho: merda,
qualquer mulher é igual a qualquer mulher (não, não é, não é, não é ou é?).
Continuei andando e quando vi estava na zona e uma mulher me beijava me
chamando de amorzinho "quem é amorzinho?", eu falei; "com que direito você
me chama de amorzinho? quê que é amor? essa esfregação, essa mexeção, essa
afobação?"; "ê", ela falou, "você é bicha?"; "me diga, me diga quê que é amor!" Eu
falava aquilo, eu estava possesso. Estava é morrendo: aquilo eram os gritos de
minha agonia. Deixei ela no quarto me chamando de bicha e fui saindo sem dar
bola pra nada; houve um cara que me segurou, sei quem e para quê, mas eu tirei o
corpo, ou foi ele que tirou o dele, não sei, e fui andando, ninguém podia me segurar
àquela hora; fui andando e depois eu estava no meio da rua na chuva e não havia
mais ninguém perto; continuei andando e passei por um bar e pensei: vou encher a
cara; mas depois pensei: não, não vou encher a cara, vou pra casa dormir isso:
vou pra casa dormir, vou pôr o pijama, escovar os dentes, deitar, rezar uma ave-
maria, e amanhã vou arranjar uma namorada, Sônia ou Lúcia ou Marta ou Regina ou
Beatriz ou Marisa, e vou chamar ela de meu bem e ela vai me chamar de meu bem e
vou dar presentes para ela e ela vai dar presentes pra mim e vamos ao cinema e
vamos beijar e vamos ficar noivos e casar e ter filhos e engordar e envelhecer e ter
netos e morrer e ser enterrados na terra que nos seja leve.
183
POR TODA A VIDA
Luiz Vilela
Ele trabalhava numa carpintaria. Quando a sirene apitava às cinco horas ela
corria para a janela da sala e ficava esperando-o passar na calçada. Ele surgia, com o
rosto já voltado na direção da janela, sabendo que ela estaria ali à sua espera.
Cumprimentava-a com ligeira inclinação da cabeça, ao que ela respondia também
com uma inclinação. Então ela deu o primeiro sorriso: ele ficou olhando muito
perturbado, e sem saber o que fazer tornou a inclinar a cabeça. E na tarde seguinte
os dois sorriram ao mesmo tempo. E na outra tarde, de longe ele já a viu no portão.
E chegou o momento de se dizerem as primeiras frases. Um ano depois entre risos e
beijos, recordariam esse momento, quando estavam o perturbados, tão
apaixonadas um pelo outro, que nenhum dos dois conseguia falar nada, nem mesmo
uma dessas frases banais sobre o tempo.
Toda tarde ela ia esperá-lo no portão, e ficavam conversando, ela do lado de
dentro, e ele na calçada. Ele falava sobre sua vida: viera de uma cidadezinha do
interior, onde viviam ainda os pais. Eram pobres, o pai era pedreiro, a mãe
trabalhava numa padaria. Viera com um amigo num transporte de carga, gostara da
cidade e resolvera ficar depois entrara para a carpintaria, serviço que fazia antes
em sua terra. Estava satisfeito; não ganhava muito mas gostava do serviço. Ainda
haveria de ter um dia a sua própria carpintaria. Mas para isso ainda teria que
trabalhar muito. Ela contou que também não eram ricos; o pai tinha um armazém,
viviam disso. Eram cinco irmãos, todos menores e estudando. A despesa era grande.
O pai trabalhava muito para dar conta. A mãe ajudava na costura, fazendo as roupas
dos meninos. Ela era a filha mais velha e ajudava fazendo bordados para fora.
Nós somos pobres e você ainda namora um rapaz mais pobre do que
nós? — falou a mãe, que não viu com bons olhos aquele namoro.
— Quê que tem isso, Mamãe? Ele é trabalhador, inteligente.
Isso não basta. Sem dinheiro ninguém vale nada hoje. É o dinheiro que
manda. Em toda parte é assim. Você ainda é moça e inexperiente. É melhor casar
com um homem bom e rico do que com um bom e pobre. Não estou desfazendo
dele, parece ser até muito bom rapaz. Mas vo ainda é inexperiente. Casar com
uma pessoa pobre hoje não é um bom negócio.
— E a senhora, não casou?
— Casei. Mas naquele tempo as coisas eram diferentes, não eram como hoje.
A vida era mais fácil. Hoje a pessoa que não tem sua conta no banco não consegue
nada, é um joão-ninguém.
— Eu gosto dele. E ele gosta de mim.
— Amor só não basta.
muita gente que é pobre e vive feliz; mais feliz do que outros que são
ricos.
Isso é invenção dessas novelas de rádio, minha filha, a realidade não é
assim. Qualquer um sabe que é melhor ser rico do que ser pobre. Se a gente pudesse
escolher não havia um só pobre no mundo.
— Nós não somos ricos e vivemos felizes.
Inês, você não me escutou sempre? Você não sabe que tudo que falo é
para seu bem? Então por que você não quer me atender agora, minha filha? Você
184
não tem experiência da vida. João pode ser um rapaz muito bom, o digo que não
seja, mas tantos outros aí, tantos outros que também são bons, e que estão em si-
tuação melhor que a dele...
—A senhora parece ter mágoa de ser pobre.
— Minha filha...
Nem sei quê que é amor para a senhora. A senhora parece que pensa
em dinheiro.
— É assim que você agradece os conselhos de sua mãe?...
De noite saíam de mãos dadas pelo quarteirão, parando na loja de roupas da
esquina para olhar as vitrines. Quase nada do que viam ali podiam comprar, mas
faziam muitos planos.
— Quando formos ricos — ela dizia.
— Nós ainda seremos ricos — ele completava.
No domingo iam ao cinema. Ele vinha de terno e gravata — sempre o
mesmo terno azul-marinho —, a camisa muito branca e impecavelmente passada.
Aquela pobreza digna e limpa a encantava. Ele dizia:
— Gosto duma roupa bem passada.
E esse pequeno capricho, que ela achava maravilhoso, como que fazia
desaparecer sua pobreza. Ela o adorava. Ele também a adorava.
Um dia ainda teremos tudo: urna casa grande, arejada, com jardim e
quintal, os melhores móveis, carro, roupas finas, tudo do bom e do melhor...
— E urna porção de filhos também.
— Também. Filhos para encher a casa inteira...
Eles se abraçavam no escuro e juravam amor por toda a vida.
A mãe, cansada de falar, entregou a filha a Santa Inês, que era a sua santa
protetora. O pai quase nada falava. Escutava as conversas, presenciava as
discussões, e ora concordava com uma, ora com outra. Chegava muito cansado do
serviço. Dizia para a mulher que orientasse bem a filha, e para a filha dizia que
pensasse no que estava fazendo. E ia jogar baralho na casa dos amigos.
O resto da família se dividia: os a favor e os contra. Os a favor falavam no
trabalho e na inteligência do rapaz. Os contra falavam na pobreza. Quanto aos dois,
não ligavam nem a uns nem a outros. Só pensavam no seu amor. Decidiram se casar
e nada no mundo poderia impedir isso.
Depois de um curto noivado, casaram e foram passar a lua-de-mel no Rio.
Ficaram poucos dias por causa do dinheiro que era pouco. Foram morar numa
casinha de propriedade do pai dela. A mãe relutara um pouco por causa do genro, a
quem o ocultava a sua hostilidade; mas como estava em jogo também a filha, e
como afinal de contas a burrada assim se referia ela àquele casamento
estava feita e não tinha mais conserto, o jeito era cooperar do melhor modo que
pudesse. O aluguel era barato. Com o dinheiro que ele ganhava e mais o pouco que
ela recebia pelos bordados, que continuava a fazer e mais agora para ajudar na
despesa, viviam razoavelmente bem.
Tudo na casa era modesto, os móveis, os enfeites, os talheres. Alguns destes
tinham sido presentes do casamento, e sendo pobre tanto a família dela quanto a
dele (a dele mais ainda), os presentes tinham sido escolhidos entre os mais baratos
nas lojas da cidade. O mais caro fora dos pais dela: a bateria da cozinha. Dos pais
dele fora a Sagrada Ceia de madeira, que colocaram na parede da copa. O patrão,
185
que muito o estimava, dera um jogo de talheres. Tios e amigos da família dela ha-
viam dado os outros presentes: jarras, jogos de copos e de xícaras, manteigueira,
faca de o, cinzeiros, uma plaquinha de madeira com a figura de dois pombinhos
trazendo nos bicos uma faixa com a frase: "Aqui reina o amor e a felicidade" foi
pendurada à entrada da sala.
À tarde ela o esperava no portãozinho da rua. Ele vinha com o rosto
cansado. Diziam frases curtas sobre a lida do dia, e quando entravam, ele a puxava
contra si e beijavam-se. Depois iam para a cozinha, ele olhava as panelas suspirando
fundo e dizendo:
— Hum...
No forno tem bolinho de arroz ela dizia. Era o preferido dele. Ele
abria o forno:
— Olha pra lá, faz de conta que você não está vendo...
Tirava dois, um na mão, e o outro que punha inteiro na boca e ia comendo a
caminho do banheiro. Enquanto acabava de fazer a comida ela escutava-o no
banheiro lavando-se e cantando músicas de carnaval. Largava um minuto as panelas,
unia as mãos, e erguendo os olhos para o alto dizia baixinho:
— Meu Deus, eu vos agradeço, eu vos agradeço...
Os apertos vieram com o primeiro filho, que batizaram de Antônio, em
homenagem ao avô paterno. Era um garotinho mirrado e vivia nos médicos e
farmácias. As consultas caras, os remédios pela hora da morte, no fim do mês as
contas por pagar e a falta de dinheiro, empréstimos, dívidas. A mulher punha o
pequeno para dormir e ficava até mais de meia-noite bordando, enquanto ele do
outro lado da mesa conferia recibos e contas. Não, se o patrão o aumentasse o
seu ordenado teria de procurar outro serviço, daquele jeito não era mais possível.
Era bom empregado e o patrão aumentou. A sogra soube e insinuou um aumento
no aluguel: quatro filhos para educar, todos pequenos, de grupo quanto não
tinham pago aquele mês?
Depois que a sogra saiu ele disse para a mulher:
— Sua mãe é mais sovina que não sei o quê. . .
— Ela é minha mãe.
E daí? Gosto muito de você, mas sua mãe, faça-me o favor. Ela é tarada
com dinheiro. . .
— É minha mãe, viu! — a mulher gritou batendo o pé.
Ele deu uma risadinha e saiu para rua.
O menino começou a chorar no quarto, ela o pegou, o menino não parava de
chorar, ela gritou, o menino chorou mais ainda e ela também começou a chorar,
chorava e ninava o menino e pedia a Nossa Senhora que tivesse pena dela e de
todos eles.
Com um ano o menino arribou, as visitas ao médico espaçaram, a despesa
diminuiu. Então veio o segundo, isto é: os segundos — duas menininhas.
— Meu Deus! — ele exclamou torcendo as mãos.
As gêmeas nasceram bem fortes e mamavam que nem duas bezerrinhas, no
dizer da mãe, cujo leite acabou logo no começo. Tinha de comprar leite em pó.
Nem bem uma lata acabara ela já comprava outra.
Ele viu o restinho no fundo da lata e disse que ela não se importava de fazer
economia, não colaborava com ele. Ela ficou calada para evitar discussão. Ele
186
continuou: disse que tanto tinha a mãe de sovina quanto tinha ela de esbanjadora:
aquela armação dos óculos, por exemplo (que ela acabara usando por causa do bor-
dado à noite), havia outras que eram a metade do preço, mas ela gostava de coisas
finas...
— Já disse que as outras estavam me machucando.
— Gosta de luxo . . . Quem sabe você pensa que é a Gina Lollobrigida?
Ele segurou-lhe o queixo, ela fugiu de sua mão afastando o rosto: sentiu o
cheiro da pinga. Começou a chorar.
— Chora, chora... Lágrimas de pecadora arrependida...
No outro dia ele pediu-lhe desculpas e explicou que estava muito chateado:
pedira novo aumento ao patrão e ele negara, um explorador, só pensava no bolso
dele, os empregados que se danassem.
—Ele tem sido tão bom para você, bem...
— Bom? aquele ladrão? Pois sim... Um velhaco, isso é o que ele é.
Ela queixou-se à mãe: toda tarde ele chegava meio embriagado. A mãe não
teve meias palavras:
— Essa gentinha é assim mesmo: quando não dá em ladrão dá em pinguço.
A filha se derreteu em lágrimas, o pai veio consolá-la. Abraçando-a e dando
tapinhas no ombro, repreendia a mulher:
— Isso é coisa que se fale de um genro, Joana?
A mulher não parou:
Falta de prevenir é que não foi. Cansei de falar. A filha chorava, o pai
dando tapinhas:
Isso passa, minha filha, todo homem tem dessas coisas, todo homem
gosta de tomar seu traguinho de vez em quando, seu pai mesmo o é assim? no
entanto, modéstia à parte, não sou bom marido e bom pai? São coisas, deixa a
situação de vocês melhorar que isso passa, você vai ver. Pode confiar no seu pai, eu
sei como são essas coisas...
Enfim as coisas melhoraram. O patrão não só aumentou seu ordenado,
como também logo depois convidou para substituir o gerente, que morrera.
— O senhor é como um pai para mim ele disse, sem saber como externar
sua gratidão.
Passou-se a vestir-se melhor e a barbear-se todo dia. Era outra coisa dar
ordens. Às vezes ficava na parte mais alta da oficina observando o serviço: guinchos
de serras, motores resfolegando, homens carregando tábuas, batidas de martelo,
cheiro bom de madeira e de verniz e de repente sua imaginação estava longe.
Enchia o peito, empinava o queixo: mas por enquanto era o gerente e ia dar
uma ordem.
Em casa a despesa começava a equilibrar. Os meninos cresciam sadios, com
uma ou outra doença ocasional. A mulher continuava bordando para fora. Quando
ele chegava de noite das reuniões ainda a encontrava curvada sobre a máquina.
Planejaram muitas coisas hoje?... ela perguntou, olhando por cima dos
óculos, enquanto ele se mirava no espelho, primeiro de frente e depois de perfil,
antes de desatar a gravata.
— Mais ou menos...
— Vou ter que comprar uns carretéis novos amanhã.
— O quê?...
187
— Uns carretéis. Uns carretéis de linha.
Ela tornou a olhar por cima dos óculos: ele admirava os dentes. Depois
foi assobiando baixo para o quarto, terminando a música num grande bocejo de
braços abertos — ela o seguia por cima dos óculos. Dez minutos depois já o
encontrou roncando. Deitada ao lado dele ficou de olhos abertos, escutando os
latidos do cão no vizinho.
De manhã, sozinha no quarto, ela se contemplou no espelho: magra.
— Magérrima — corrigiu-se.
Branca. Branquela. Anêmica. E aqueles óculos parecia uma velha. Como
seria a outra? Cheia, macia, perfumada... Ele a abraçaria, lhe diria palavras de amor,
lhe daria beijos na despedida...
"Reuniões" e atirou os óculos com força na cama, sem coragem de
quebrá-los.
Gritou pelo menino: o menino não respondeu.
— Esse diabinho, ele me paga.
Pegou a correia velha e saiu atrás dele.
Você grita demais com esses meninos ele disse no almoço, palitando
os dentes enquanto lia o jornal.
Ela não respondeu e gritou mais ainda.
Ele foi para a sala levando o jornal. Espichou os s sobre a mesinha nova
de fórmica, acendeu um cigarro e continuou a ler a notícia sobre o lançamento de
mais um foguete espacial.
NOSSO DIA
Luiz Vilela
A mulher:
— O franguinho é especialmente pela data. Para comemorar a nossa data.
O homem quebrou o pescoço do frango e chupou fazendo barulho a
boca lambuzada de gordura, os fios escuros da barba crescida brilhando.
Pegou a garrafa de cerveja e encheu o copo aa espuma crescer acima da
borda. Olhou para a mulher, que estendera o copo:
— Você não pode.
— Só um pouquinho. Hoje é nosso dia...
— Depois vai queixar dor de cabeça.
Vou não. E mesmo que... Hoje é nosso dia, não tem importância se... É
só um pouquinho, só até aqui... aí...
A garrafa ficou no meio da mesa.
— Quero ver à noite.
— Não vou ter nada, você vai ver.
— Quero ver.
Dez anos, a mulher estava pensando, dez anos.
— Dez anos, hem...
— Cadê a pimenta?
— Mais? Pus três malaguetas!
— Três malaguetas; quê que é três malaguetas nessa comida toda?
— Pimenta demais faz mal pra saúde.
— Deixa fazer.
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— Vai virar fogo.
— Você vai ou não vai buscar?
— Que pressa, não pode esperar um pouco não?
A mulher buscou a pimenta. O homem pegou o vidrinho e pôs três no prato.
Esmagou-as, distribuiu o vermelho pela comida.
— Estou lembrando... era um dia tão azul, lembra?...
A cabeça: lembro sem interromper a vigilância dos olhos no prato de
comida.
(Um dia tão azul... sou hoje a mulher mais feliz do mundo... você está a noiva
mais bonita do mundo...)
— Merda, esse osso não quebra!
Lembra aquela velhinha que quis nos cumprimentar primeiro que todo
mundo? "Muitas felicidades, meus pombinhos, muitas felicidades..." Lembra?
— Uma velhinha? Não sei.
Ô, aquela velhinha, aquela velhinha magrinha que nos cumprimentou
primeiro que todo mundo, não lembra?
— Vou lembrar uma coisa dessas?
— Mas foi no nosso casamento, bem.
— E quê que tem isso?
— Você devia lembrar.
— Pois não lembro de nenhuma velhinha.
— Não sei como você não lembra...
— Vê se vou lembrar duma coisa dessas.
(A igreja toda enfeitada de lírios...)
— Você viu os lírios?
— Lírios?
— Na sala, os lírios que eu comprei, você não viu?
— Comprou?
vem você... Não precisa fazer essa cara de reprovação, não custaram
tão caro assim; você nem sabe quanto custaram...
— Não sei nem quero saber; estragaria minha digestão.
— Se fosse uma bebida você não falava nada.
— Claro, uma bebida...
— Mas lírios...
— Quê que eu vou fazer com lírios?
— É, você não tem mesmo sensibilidade.
— Ter sensibilidade com o dinheiro dos outros é fácil.
— Pensei que o dinheiro fosse nosso.
É nosso, mas não para gastar à toa. Engraçado, então eu dou o murro
na loja para você depois comprar lírios? Tem graça.
Você não tem sensibilidade. Você não pode compreender essas coisas.
Você não sabe o que é ternura, o que é carinho. Foi para você, para s, pelo nosso
dia, que eu comprei os lírios. Foi para isso também que eu enfeitei a casa, que eu
coloquei essa toalha nova na mesa; mas você não notou nada disso. Nada disso teve
importância para você. Foi como se eu não tivesse feito nada disso. Uma palavra,
esperava pelo menos uma palavra, esperava pelo menos uma palavrinha sua sobre o
nosso dia, uma palavra de carinho, uma brincadeira... Nada. Foi como nos outros
189
dias, não teve absolutamente nenhuma diferença dos outros dias; como nos outros
dias, desde que você sentou aqui pensou em uma coisa: comer; comer e beber.
Não teria importância nenhuma se eu não estivesse aqui. Não, nenhuma. Nenhuma
importância.
— Quê mais? Estou esperando.
— Não tem mais. Já acabei.
? Bem: então agora me deixe comer em paz o homem arrotou e
continuou a comer.
AMOR
Luiz Vilela
Ela apontou para a vitrine:
— Olha ali que amor de sapato!
Chegaram mais perto. Ele viu seu rosto refletido difusamente no vidro: um
rosto cansado, encardido, a barba crescida.
— Não é um amor?
— É.
Qual que você espensando? Estou falando é aquele ali, aquele branco
ali, ó.
— Eu sei.
— Aquele branco de lá.
Ele olhava fixo para o vidro, aproximando e
afastando a cabeça, tentando apanhar a imagem
completa de seu rosto que parecia fugir numa brincadeira diabólica.
— Você acha mesmo?
— Acha o quê?
— Bonito, esse sapato, o quê. . .
— Acho; não falei que acho?
— Então qual que é ele?
— Aquele ali — arriscou.
— Não.
— Estou falando aquele segundo, de lá pra cá.
— Na fila de cima?
— É.
— Também não.
— Então é aquele furadinho ali.
— Furadinho? Ah; também não.
— Então não sei, pronto.
Começou a andar, de cara fechada. Ela o acompanhou.
Era fim de tarde avenida movimentada, pessoas voltando para casa com embrulhos,
rapazes na beirada do passeio, colegiais em grupos, lojas fechando, filas, rostos
cansados, gastos, suados, barulho dos lotações, estalo dos elétricos.
— Estava só querendo puxar conversa — ela falou. — Não era caso de
você ficar assim.
— Assim?
— Com essa cara.
— Quê que tem minha cara?
190
— Nada. Não tem nada.
Ele olhou para ela: ela não olhou para ele.
— Está bem, aqui minha cara, ó — fez uma careta alegre. — Está boa assim?
Não foi pra chatear que eu estava perguntando; queria puxar conversa;
você estava tão calado. . .
Eu sei, bem, eu sei ele falou, sem raiva, sem irritação, sem mágoa,
pensando como devia ser bom estar àquela hora em cima daquela serra, aquela
serra calma, longe, azulada, que aparecia lá no fim da avenida, por trás dos edifícios.
Mas se você não quer conversar, então não conversemos; como você
quiser.
Eu quero quero o quê? pensou, sem se importar com a resposta,
olhando para um lotação que passou soltando fumaça.
— Você anda tão diferente... — ela desabafou. — Calado, distraído. . .
ríspido. . .
— Estou cansado.
— Você sempre diz isso.
— E quê que você queria que eu dissesse?
— A verdade.
— E essa não é a verdade?
— Não.
— Então qual que é a verdade? Ela não respondeu.
— Hem, qual que é a verdade? Você não vai me dizer?
Ela não respondeu.
— Bem, então não diga.
— Você não é mais como era antes, quando nos conhecemos...
— E você; você acha que é a mesma? Ninguém é sempre o mesmo.
— Você era alegre, brincalhão. . .
Bem, eu estou cansado, você não vê? não que eu estou cansado? Olha
pra minha cara: não vê?
— Não é cansaço.
— Então me diga quê que é.
— Você sabe.
— Não sei.
— Sabe sim.
— Juro que não sei.
— Você não gosta mais de mim.
— É? Escuta: porque você diz isso se sabe que eu gosto, hem?
— Se você gostasse você não estaria assim.
— Assim como?
— Como está agora.
— Ai meu Deus — ele passou a mão pelo rosto sofridamente.
— Aí, não estou dizendo? Não pode falar nada que você explode.
— Isso é explodir?
— Você está uma pilha.
bom; então não vou falar mais nada, não posso falar mais nada que
você diz que eu estou explodindo, ríspido, uma pilha e não sei mais o quê.
— Não fale, a boca é sua.
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— Sua é que não é.
— Ainda bem.
O silêncio ia inteirar um quarteirão, quando ele falou:
Porque não podemos passar sem brigas? Porque a gente tem que estar
sempre brigando?
— Não é minha culpa.
— Eu sei: é minha.
— Hoje por exemplo; estava só puxando conversa e você...
— Foi ríspido, já sei; não precisa começar tudo de novo.
— Quer saber duma coisa? O melhor é nós terminarmos.
— Terminarmos? Ele sentiu um frio.
— Não combinamos mais mesmo.
De repente tudo perdido, não mais palavras nem gestos, só um espaço
escuro sufocando a garganta.
Acho que não é caso disso... Não é caso da gente terminar. . . Eu sei,
reconheço que estou mesmo como você falou; mas não é minha culpa falou de
cabeça baixa, como quem pede perdão. o é porque eu quero que eu estou
assim.
Haviam chegado ao ponto do ônibus, que já estava para sair.
— Vou tomar esse ainda — disse ela. — Tenho de chegar mais cedo hoje em
casa.
Ele olhou para ela, e não sabendo o que dizer, voltou a olhar para o chão.
— Até logo — ela disse.
— Amanhã te telefono?
— Se você quiser.
— E você?
Ela já havia entrado no ônibus.
Da janelinha olhou para ele: mas não sorriu, nem abanou-lhe a mão.
Ele ficou vendo o ônibus se distanciar pela avenida, o rosto abatido,
pensando porque o amor era tão difícil.
NUMA CIDADE ESTRANGEIRA
Luiz Vilela
— Se você desse pelo menos um motivo — disse ele.
A mulher continuou olhando pela janela do táxi. Era bonita e bem mais nova
do que o homem.
Se você pelo menos apresentasse uma razão, me convencesse; mas nada,
nada! — ele abriu os braços.
Ela virou a cabeça para olhá-lo: ele estava com uma expressão zangada. Era
noite e no escuro do carro seus cabelos pareciam ainda mais brancos.
Ela voltou a olhar pela janela. O táxi agora tinha entrado numa rua apertada e
com pouca luz.
— Vânia...
— O quê.
Ele pôs a mão na coxa dela:
192
Diga que é mentira; que era brincadeira. Hem?... Hem, amorzinho?...—
deu-lhe umas palmadinhas.
Ela ficou olhando para ele.
Nós passamos no seu hotel, você pega suas coisas de novo, e nós
voltamos para o meu hotel. Eu pago tudo lá, você não precisa se preocupar com
nada.
Eu nunca preciso me preocupar com nada, não é? Você sempre paga
tudo. Ele fez um gesto de aborrecimento:
Estou falando uma coisa e você vem com outra. Que importa o meu
dinheiro? E além do mais é pouco gentil de sua parte dizer isso. Pelo menos ingrata
você poderia não ser. Se não fosse eu uma hora dessas você não estaria aqui em
Londres.
— Se é pelo dinheiro eu te pagarei depois, pode ficar tranqüilo.
Ele fez outro gesto, e então ficou calado, olhando para fora.
O chofer virou-se para trás e perguntou algo. A mulher respondeu em inglês.
— Quê que ele perguntou?
— O nome da rua.
— Você não disse pra ele?
Claro que disse, Teo, do contrário não estaríamos aqui. Ele quis se
certificar.
O homem estava curvado para a frente, as os cruzadas entre as pernas, o
rosto franzido.
Se você desse pelo menos um motivo concreto para fazer isso tornou
a dizer.
— Quantas vezes você vai repetir essa frase, hem?
— Vou repetir até você dizer o que eu estou pedindo.
— Eu já disse, Teo, já disse mil vezes.
— Quê que você disse? Ela ficou calada.
— Quê que você disse? — ele insistiu.
Ela se voltou, irritada:
Eu disse que acabou, Teo, foi isso que eu disse: acabou. Compreende?
Acabou. Fim.
— Você é cruel... – ele choramingou.
Você devia se olhar num espelho disse ela: ver o tanto que você
está ridículo.
Se eu estou assim a voz dele ficou trêmula,é que eu te amo; eu não
estaria assim se eu não te amasse.
Tinham chegado a Trafalgar Square. Havia uma multidão de pessoas em
frente a uma enorme televisão colocada ali. A mulher pôs o rosto na abertura do
vidro e perguntou em inglês; o chofer respondeu com poucas palavras.
— Quê que ele disse?...
— É para televisionar a chegada à lua. Tinha esquecido que era hoje. Quando
chegar no hotel vou ver.
— Você vai mesmo?
— Por que não?
— Estou perguntando se você vai mesmo para o hotel — ele esclareceu.
A mulher suspirou:
193
Vou, Teo, vou mesmo para o hotel; o seja aborrecido; o falemos
mais nisso.
— Mas e eu, Vânia?
— Você o quê?
— Que será de mim?
— Quem te escuta falando desse jeito até pensa que você vai morrer...
E vou mesmo ele disse; se você me deixar será como morrer. A
mulher olhou para a rua.
Você não tem pena de me largar sozinho numa cidade como essa? Um
velho sozinho perdido numa cidade estrangeira; você não tem coração? Não sei nem
falar inglês.
— E o Pedro, seu amigo?
Pedro; vou ficar andando com ele feito menino agarrado na saia da mãe?
E de noite? e de noite a voz do homem tremia como se ele estivesse quase
chorando, — é o Pedro que vai dormir comigo? é?...
— Como se faltasse mulher nessa cidade...
o falta não; mulher nunca faltou; nem aqui nem em nenhum lugar
ele falava aos arrancos; olhou para ela: — Você não entende? não entende?...
No escuro os olhos dele brilhavam molhados. Um sentimento de
amoleceu a fisionomia da mulher. O homem se animou, abraçou-se a ela com
paixão e desespero:
Vaninha, volte, Vaninha; eu te dou o que você quiser, o que você me
pedir; não me deixe sozinho, não tenho mais ninguém, nada mais me importa, volte,
diga, diga que você vai voltar, que nós vamos no hotel para pegar suas malas; e
amanhã nós vamos passear de barco pelo Tâmisa, lembra que eu te prometi isso?
lembra, coração? Meu amorzinho...
— Comporte-se, Teo, estamos num táxi.
— Que importa, ele é inglês e eu te amo, eu te amo, meu amor, meu tudo...
— Para, Teo.
Você volta, você tem de voltar, eu te amo, você não pode me deixar
sozinho, não pode — e o homem disparou a chorar com o rosto no colo da mulher.
Ela pôs a mão em sua cabeça e ficou olhando-o, sem saber o que fazer.
O táxi tinha parado. O homem continuava na mesma posição, mas agora
estava em silêncio, como se tivesse adormecido.
— Teo; chegamos. Wait a moment, please — disse a mulher na abertura.
O chofer descansou o braço na porta e ficou olhando para a rua.
— Teo. Levante. Tenho de descer. O chofer está esperando.
Ele levantou. Passou a mão pelo rosto. A mulher o observava.
— Eu já vou, Teo.
Ele sacudiu a cabeça. Olhava para a frente.
— Teo — ela pousou a mão de leve em seu joelho: — não fique triste.
— Eu não estou triste.
Ela o olhou mais um pouco, e então disse até logo e saiu do carro.
Ele viu-a caminhando, subindo a escada e desaparecendo na porta giratória
do hotel. Mesmo assim continuou olhando, como se esperasse que de repente, num
dos giros da porta, ela surgisse e viesse caminhando de volta para ele. Mas sabia que
ela não voltaria: nem agora nem nunca mais.
194
A MOÇA
Luiz Vilela
Por duas vezes surpreendera a moça olhando e sorrindo para ela. Sentia que
era observada com insistência. Mas tinha certeza, tinha absoluta certeza de que não a
conhecia. Guardava bem a fisionomia das pessoas. A moça devia estar tomando-a
por outra. Só podia ser isso.
Mesmo assim, querendo mais uma vez se certificar, voltou a olhar
disfarçadamente para ela e dessa vez a moça não apenas sorriu, como ainda se
levantou e veio andando em sua direção:
— Eu te conheço. . . — disse a moça, ainda sorrindo:
— de onde? . . .
Ela gaguejou qualquer coisa, e agora sim: de perto não tinha mais nenhuma
dúvida de que nunca vira aquela pessoa em sua vida.
— Você não lembra?... — perguntou a moça.
— Não sei... — ela respondeu; — parece que. . .
— Como que é seu nome?
— Marialva.
— Marialva. . . — a moça repetiu. — Tenho certeza... Você não é daqui.
— Não, sou de Goiás.
— Você não esteve aqui outras vezes?
— No Rio?
— É.
— Não, essa é a primeira vez.
Que coisa estranha. . . Tenho certeza que. . . É, talvez seja engano meu;
talvez alguém parecido com você. . .— a moça sorriu graciosamente.
Tinha um sorriso lindo, os dentes perfeitos e muito brancos, os lábios cheios,
vermelhos, de um contorno sedutor.
— Posso sentar? . . .
— Pode...
— Ou você está esperando alguém?
— Estou esperando meu marido, mas acho que ele ainda demora.
A moça se sentou com muito charme.
— Ele foi numa secretaria ali arranjar uns papéis — acabou de contar.
— Vocês estão a passeio?
— Lua de mel.
— Hum. . . — a moça fez um ar de malícia.
Ela baixou os olhos enrubescida.
Sentia-se ridiculamente provinciana. A moça, que devia ser apenas um pouco
mais velha do que ela, era muito educada, e além disso tinha uma segurança e um
encanto nos gestos em maneira de falar que a faziam sentir-se mais encabulada
ainda, amarrada e estúpida. E era incrivelmente bonita: tinha os olhos grandes,
brilhantes e vivos, e uma boca que dava vontade de ficar olhando. Tinha também
um corpo bem feito: quase magra, a pele bronzeada de praia, uma blusa preta
decotada mostrando o começo dos seios que eram pequenos, os bicos aparecendo
195
ligeiramente ela observou enquanto a moça abria a bolsa para tirar o maço de
cigarros:
— Quer?
— Não, obrigada; eu não fumo.
A moça acendeu o cigarro com elegância e com a displicência de quem
fumava há muito tempo. Apagou o fósforo e olhou ao redor, procurando o garçom.
— Vou pedir alguma coisa; você está tomando o quê?
— Guaraná — respondeu com vergonha.
Mas a moça, com um ar de naturalidade (querendo apenas ser gentil?), disse:
— Acho que vou tomar um guaraná também. Garçom — chamou.
O garçom veio.
— Um guaraná.
— Grande ou pequeno?
— Grande; e bem gelado.
O garçom anotou no bloquinho e se foi, parando em outra mesa para
atender outro pedido. Quase todas as mesas do barzinho estavam ocupadas, e havia
um movimento contínuo de gente entrando e saindo. Era uma tarde quente de
verão, a temperatura por volta dos 35 graus.
Eu não disse ainda meu nome falou a moça com um de seus belos
sorrisos: — Adriana.
— Você é daqui mesmo?
A moça sacudiu a cabeça, afirmativa.
Tenho um apartamento aí, mora eu e uma amiga minha. Esses dias ela
está viajando, estou lá sozinha.
— Você não tem medo?
A moça sorriu.
— Já estou acostumada, já fiquei sozinha muitas vezes.
— Pois eu acho que eu não ficaria uma só vez. . .
A moça tornou a sorrir, e a conversa morreu por um instante entre elas.
Foi a moça quem recomeçou:
— Você não foi à praia ainda. . .
— Praia? Não, mas...
— Você não pode deixar de ir.
Eu vou; é que faz dois dias que estamos aqui. Mas nós vamos. Vir ao
Rio e não ir à praia, né. . .
— Pois é...
— Nós vamos sim ...
— Vocês já viram muita coisa?
— Mais ou menos; meu marido teve de arranjar esses papéis, sabe como é.
— Quê que ele faz, seu marido.
— Ele é bancário.
— E vocês vão ficar muitos dias?
— Talvez uma semana; mais uns cinco dias.
— Vocês têm alguém no Rio?
— Alguém ...
— Um conhecido, uma pessoa para andar com vocês, mostrar a cidade...
— Não... Nós...
196
— Se vocês quiserem um guia...
— Não sei, meu marido... Talvez ele...
— Eu sei, vocês estão em lua de mel...
— Não é isso, é que... Acho que...
Faz isso: eu vou te dar meu endereço; se vocês quiserem... Talvez alguma
outra coisa que vocês possam precisar...
Pegou uma tirinha de papel e escreveu. Entregou a ela.
— Muito obrigada — ela disse, e guardou o papel na bolsa.
Você, por exemplo, não vai fazer compras? . . Sei de ótimas butiques.
Poderíamos ir juntas, enquanto seu marido resolve os problemas...
Olhou bem para a moça; chegava a estranhar tanta gentileza numa pessoa
que ela mal acabara de conhecer. ouvira falar muito na camaradagem do carioca,
mas mesmo assim. . . Devia haver algo nela que atraíra a moça talvez a
semelhança com a pessoa que ela conhecera e com quem a confundira. Não sabia o
que era. Estava achando estranho.
Quê que você acha?... perguntou a moça, com uma expressão
convidativa, parecendo mais bela ainda, irresistivelmente bela.
Observou-a bem, procurando descobrir alguma intenção secreta naquele
convite, naqueles olhos brilhantes e sorridentes que esperavam. E então, de repente,
sentiu algo indefinível, algo que a fez desviar-se da moça como se tivesse medo.
O garçom chegou com o guaraná. Abriu e serviu à moça. Esta, em seguida,
quis servir-lhe; ela agradeceu dizendo que não queria, mas a moça insistiu e pôs.
— Você não vai ficar bêbada com isso.
Ela riu meio envergonhada.
As duas beberam.
— E então, quê que você diz?... — a moça voltou, querendo uma resposta.
Olhou-a de novo e teve vontade de dizer: "voé linda"; e vontade de
vontade de beijar aquela boca maravilhosa.
Olhou para um ponto na mesa:
— Vou falar com meu marido; se ele...
A gente vai às compras e depois pode dar umas voltas de carro... Tenho
um Corcel.
Sacudiu a cabeça mudamente. E então, querendo mudar a conversa, olhou as
horas:
— Não sei quê que houve que ele está demorando tanto...
— Burocracia é assim mesmo — disse a moça tranqüilizando-a.
Faz quase uma hora e olhou para a pracinha em frente, esperando ver
o marido entre as inúmeras pessoas que passavam.
Estava doida para ele chegar, para estar junto dele, e para irem embora.
Sentia-se pouco a vontade ali, num ambiente que não era o seu. As pessoas
passavam pela mesa e paravam quase a seu lado, olhando para seus seios que
ficavam bem visíveis, por mais que puxasse o decote para cima, o que fazia a todo
instante pretextando consertar o broche. Arrependia-se de ter posto aquele vestido.
— Você tem um lindo broche — disse a moça.
— Presente do meu marido...
— Posso vê-lo?
— Claro. . .
197
A moça estendeu a mão e ao tocar o broche encostou-a suave e
decididamente na sua pele. Ela sentiu a respiração parar; seu coração bateu com
toda a força, sua cabeça parecia inchar de sangue.
A moça retirou a mão:
— É lindo seu broche...
Olhou-a por entre as pancadas de seu coração, e agora compreendia tudo,
não havia mistério: os olhos da moça falavam claramente, olhando firmes para os
seus; não havia mais sorriso neles, somente a expressão ansiosa e aflita do desejo. E
de súbito viu alguém que entrava no bar:
— Meu marido! — disse quase num grito.
Ele veio até a mesa e ela abraçou-se a ele.
Meu bem... queria que ele a apertasse com toda a força e a protegesse.
— Por que você demorou assim?...
Nunca vi gente mais enrolada disse ele, e antes de continuar olhou
constrangido para a moça.
— Ficamos nos conhecendo — ela apresentou-a. Os dois apertaram as mãos
formalmente.
— Vamos, benzinho? — ela disse se levantando.
— Vamos; quê que vocês tomaram?
— Deixa que eu pago — disse a moça.
Absolutamente disse ele, enfiando a mão no bolso interno do paletó e
tirando a carteira.
O garçom veio e ele pagou. Despediu-se da moça. Depois ela:
— Até logo — disse secamente.
— Tiau — a moça respondeu, com um de seus belos sorrisos.
O casal foi caminhando pela calçada.
Que moça linda, hem? disse ele. Como que você ficou conhecendo
ela?
— Por acaso: ela chegou e começamos a conversar.
— É muito bonita.
— Por que você demorou tanto assim, benzinho?...
O pessoal lá é dureza e ele contou para ela tudo o que se passara,
enquanto na esquina esperavam um táxi.
Dentro do táxi, a caminho do hotel, ela disse inesperadamente:
— Bem, eu quero ir embora amanhã.
— Amanhã? embora? por quê?
— Porque eu quero. Me deu vontade.
— Mas você estava gostando tanto. Quê que houve?...
— Nada. Me deu vontade.
Ele a olhava, sem entender, sem encontrar uma explicação para aquilo.
Nós não vimos nada ainda... A gente fica mais uns dois dias, depois a
gente vai.
— Não, quero ir amanhã.
— Mas por que, bem? Qual o motivo? Me diz ...
— Eu já disse: é que eu não quero ficar.
— Está bem — ele disse; — então nós vamos. Pra onde você quer ir.
— Qualquer lugar.
198
— Qualquer lugar? Você não tem nem uma idéia?
— Cabo Frio — ela disse, falando o primeiro nome que lembrou.
Cabo Frio? Está bem; então nós vamos pra Cabo Frio. Esresolvido.
Amanhã?
— É.
— Tá, então está resolvido.
Chegaram ao hotel. Subiram calados. Ela mantinha um silêncio misterioso, e
ele, amuado com aquela mudança brusca nos planos, perdera a vontade de
conversar.
— Quer tomar banho primeiro? — ele perguntou. — Vou fazer a barba.
— Pode ir; eu vou depois.
Ele tirou a roupa, vestiu o roupão e foi para o banheiro. Ela escutou o
chuveiro funcionando.
Deitada na cama, ela olhava fixo para o globo de luz no teto. Então se
levantou e ficou diante do espelho do guarda--roupa se olhando, olhando os seios
que apareciam no decote. Segurou o broche um instante, sentindo o contato de sua
própria o mas como se fosse a mão de outra pessoa. Desceu o per atrás,
puxou as mangas do vestido e observou-o deslizar suavemente por sobre os seios;
depois acabou de empurrá-lo até o chão.
Observou-se ainda um instante, as tetas aparecendo fora do minúsculo
soutien, tirou-o, e os seios ficaram livres e soltos, em toda a sua exuberância e
beleza. Com mais um gesto ela acabou de ficar nua.
E então, no espelho, naquele corpo de mulher, jovem e belo, duas mãos
pousaram sobre os seios, envolvendo-os acariciantes mas não eram suas mãos,
eram as mãos de outra mulher, mãos macias e quentes e que sabiam acariciar como
nenhumas outras. E agora desciam pelas suas ancas, rodeavam as coxas e iam
lentamente subindo aa carne ardente e úmida. E já não eram somente as mãos,
era também aquela boca maravilhosa, que percorria todo o seu corpo numa
alucinante viagem.
O marido saiu do banheiro. Ela estava de penhoar, debruçada à janela,
olhando a cidade iluminada, e então voltou-se:
— Bem, eu estive pensando... Vamos ficar no Rio mesmo.
— É? — e ele abriu os braços: desistia de entendê-la.
Ela foi até ele:
— Não fique com raiva de mim, benzinho. .
— Eu simplesmente não te entendo mais.
É que eu estive pensando e... Achei que seria melhor a gente ficar aqui
mesmo.
— Claro que é
— Você não acha?
— Foi o que eu te falei, não foi?
— Você não fica com raiva?...
— Claro que não; ficaria se a gente fosse embora.
Ela sorriu; e então abraçou-o:
— Eu te amo disse, enquanto seu pensamento voava cheio de expectativa
para outra pessoa, longe dali, num outro ponto da cidade.
199
PRIMOS
Luiz Vilela
Eu tinha me levantado para ir embora:
— Ainda é cedo — ela disse.
são mais de dez horas respondi olhando o relógio; vou ter que levantar
de madrugada amanhã para viajar.
Nem acabamos essa garrafa ela disse; vamos acabar primeiro, depois
você vai...
— Bem...
— Senta, senta aí...
Acabei cedendo e me sentando novamente. Ela pôs nos copos o que restava da
cerveja. Era a segunda garrafa que bebíamos.
— Hoje está bom pra uma cerveja – ela disse.
É eu concordei; com esse calor... Ainda bem que está armando chuva.
É por isso que eu queria ir.
Ê, mas voé bobo, hem... Quê que tem se chover? Será que você está na
casa de um estranho?
Eu ri.
Se chover você dorme aqui; você devia ter vindo para aqui. Ao menos assim
eu tenho uma companhia. Acho ruim quando o Lauro está viajando.
— Você tem medo?
Não é medo; é mais preocupação com as crianças; às vezes uma
necessidade...
— Isso é mesmo.
— Medo até que eu não tenho.
Um trovão sacudiu o céu. Houve uma pausa. E então a chuva caiu, uma chuva
pesada. Fiz uma careta para Rosana.
Esvendo? ela disse. Você não quis vir para aqui, agora vai ter de
ficar. Daqui um pouco já vou até arrumar sua cama...
Fui à janela. Era uma janela grande dessas de levantar e baixar. Nós estávamos
na sala do primeiro andar; Rosana morava num sobradinho. Ela veio à janela
também. Ficamos olhando a chuva cair na rua.
— É muita água... — eu disse.
— É – ela disse; — estava precisando.
— Estava mesmo — eu concordei.
A chuva foi mudando de direção, começou a pingar na janela. Rosana foi fechar,
eu a ajudei a janela era meio pesada. Deixou aberto um pedaço em cima: ali não
chovia, e o calor continuava forte.
Nesse tempo, quando chove, parece que o calor aumenta mais ainda ela
observou.
— É sim — eu disse.
Vou dar uma olhada no quarto dos meninos, às vezes quando chove muito
entra água na janela; senta aí...
Eu sentei. Acendi um cigarro. Fiquei fumando e olhando para a chuva através da
vidraça. Chovia pra valer, com relâmpagos e trovões. Era começo das chuvas, e as
primeiras são quase sempre assim, tempestuosas.
200
Pensei como faria para ir embora. Lauro viajara no carro deles e não tinham
telefone para eu poder chamar um táxi; telefonavam de um armazém perto, que
àquela hora estava fechado. Se é também que eu encontraria táxi com toda aquela
chuva; apesar de que em cidade do interior seja bem mais fácil.
O fato é que eu não estava com idéia de pousar ali. Não que houvesse algo
demais; não havia: eu gostava muito de Rosana e me dava bem com Lauro. não
tinha muita liberdade com eles – o que não chegava a ser um problema. E quanto ao
convite de Rosana, eu sabia que era sincero, pois ela sempre fora muito atenciosa,
muito generosa. Eu não queria simplesmente por hábito. Talvez um pouco de
timidez também: por maior que seja minha ligação com um amigo ou parente,
prefiro sempre ir para um hotel.
— Está tudo certo — ela disse, voltando.
— Eles estão dormindo?
— Estão; eles são bons para dormir. Não dão quase nenhum trabalho.
Ela tinha acabado de sentar, mas levantou de novo:
— Trazer mais uma cerveja, né?...
— Tem? — eu perguntei.
Tem um estoque aí. A gente sempre guarda para o caso de uma visita, ou então
pra gente mesma. O Lauro não é muito de beber, mas eu, se deixasse, acabava
com o estoque em pouco tempo...
— Eu seria mesma coisa...
— Quem sabe se a gente acaba com ele hoje, hem?
— Não seria nada mal... — eu falei.
Ela riu. Foi buscar a cerveja. Seus sapatos, de salto alto, iam descendo os degraus
da escada. Escutei depois o barulho de garrafas.
Não era meu plano, mas eu até que estava achando bom ali, com aquela chuva
fora, sentado num sofá macio, fumando e tomando uma cervejinha gelada, com
uma prima de que eu gostava muito. Além de gostar Rosana era de minhas primas a
mais bonita. Ela era muito bonita. Desde adolescente eu achava. Diria até que desde
menino, pois lembro-me que nessa época eu admirava. Rosana era dois anos mais
velha do que eu; estava com trinta.
Ela vinha subindo a escada.
— Demorei?
— Não.
Ela abriu, encheu os copos. Sentou. Nós bebemos. A cerveja estava ótima.
— Você não sabe em quê que eu estava pensando — eu falei.
— Pensando? Na viagem...
— Não.
— Na chuva...
— Também não.
Ela fez uma cara de quem procurava.
— Sabe em quê? — eu falei. — Você nunca adivinharia.
— Quê que é.
— Estava pensando em você.
Em mim? ela fez uma cara de espanto, curiosidade e riso; mas qque
você estava pensando?...
201
vou te disser... peguei meu copo e tomei um gole da cerveja. Sabe quê?
Estava pensando que você é a minha prima mais bonita, apesar do cacófato.
Ela riu, depois fez uma cara fingida de pose.
É verdade eu falei; verdade que eu estava pensando isso e que você é a
minha prima mais bonita.
Guy, você o tinha mais nada pra pensar?... ela disse, meio embaraçada, o
que me deixou um pouco também — Acho que essa cerveja está fazendo
efeito...
Eu ri. Devia estar meio vermelho; eu tinha sensação de que ela percebera tudo o
que estivera pensando, o que evidentemente não era possível, mas foi a sensação
que eu tive àquela hora. Para sair do embaraço, continuei falando:
— É verdade, sério mesmo, eu estava pensando isso.
Mas quê que você estava pensado? A respeito de quê? Agora você tem de me
contar, fiquei curiosa... ela disse rindo, mas com algo de sério nos olhos, o
que me fez de novo ficar embaraçado.
— Você está achando que é alguma coisa secreta?... — perguntei.
— Não sei, uai – ela ergueu os ombros; — você é quem sabe.
Pareceu-me aquele instante que íamos entrando num terreno perigoso; preferi
mudar o tom:
Não, boba eu disse, não tem nada de secreto; apenas eu estava pensando
aqui nas primas e cheguei à conclusão de que você é a mais bonita delas. E é
mesmo, quê que tem dizer isso?
— Não tem nada, uai.
— Pois é.
Ela fumou, olhando para o cigarro.
— Então thank you very much pelo elogio — disse.
— E te digo mais — eu continuei; — toda vida achei isso.
— Toda vida?...
— Você não acredita?
— Acredito...
Eu ri, pelo modo que ela falou.
— Desde menino, desde aqueles tempos em que a gente brincava junto.
— Guy, você já está ruim...
— Ruim?
— Nunca ti vi falando assim.
— Decerto é o calor...
Ela riu.
— Se eu não te conhecesse e se você não fosse meu primo eu até pensaria que isso é
uma declaração de amor...
O barulho da chuva aumentou, chamando nossa atenção. Ela estava mais forte
ainda.
— Puxa, faz tempo que não vejo uma chuva assim — comentei.
— Essa está forte mesmo.
De repente a luz apagou.
— Tinha de acontecer — ela falou.
— Sempre que chove apaga?
— Quando chove mais forte. Já estava até demorando...
202
— Volta logo ou fica muito tempo assim?
— Às vezes volta, às vezes demora mais...
Ficamos um instante em silêncio, no escuro, escutando a chuva e os trovões. Os
relâmpagos clareavam a sala.
— Que pé d’água!...
A luz voltou.
— Ôba — falamos juntos e olhamos rindo um para o outro.
— Não pode é falar nada senão ela vai embora... — disse Rosana.
Passou mais um pouco; a luz parecia ter-se novamente firmado.
Rosana pegou um cigarro; eu peguei um tembém, acendi os dois. Pus mais
cerveja nos copos; na garrafa ficou só um restinho.
Pois é... ela disse; Guy, meu primo, me fazendo uma declaração de amor
dentro de minha própria casa...
Eu ri.
— Pra você ver... — falei. — Já pensou seu o Lauro ficasse sabendo?...
— O Lauro? Nem gosto de pensar.
— << Casal de primos pego em flagrante delito de adultério pelo marido da
mulher.>>
Ela deu uma gargalhada.
— Já pensou uma notícia dessas, quando meus pais e os seus lessem? — e deu
outra gargalhada, jogando a cabeça pra trás no sofá.
— É, você falou que eu estava ruim, mas acho que você é que está — eu disse.
— Ai, Guy, seria bom demais... Já pensou? Principalmente sua mãe, quando
lesse o jornal.
— Seria engraçado mesmo...
— Seria ótimo...
— E Tia Jandira?
Outra gargalhada, ela não parava de rir.
— Rosana, você está bêbada...
— Ai, Guy... — ela só respondia, rindo, as lágrimas escorrendo. Então sentou-se
direito, enxugou os olhos.
— Seria bom demais, gente...
— Seria sensacional...
— Um escândalo na família...
— Seria demais da conta...
Ela pegou a garrafa.
— Olha... — eu sacudi o dedo.
— Deixa de ser bobo, Guy, você não acha que eu fico bêbada só com isso?
— Fica não: você já está.
— Vá á merda, sô.
— Ôpa, assim é que eu gosto.
— Eu pra ficar bêbada tenho de beber muito; sua prima aqui não é mole num
copo não.
— E eu, você acha que eu sou?
— Você não sei.
— Você achou que eu que já estava bêbado.
— Você me fez uma declaração de amor, quê que você queria que eu achasse?
203
— <<Declaração de amor>>...
— Não foi não?... — ela olhou para mim: — Então diga que não foi.
— Digo.
— Que foi ou que não foi?
Peguei meu copo.
— Mas sabe, Rosana?... Eu tinha que te dizer isso um dia, senão eu ia ficar
frustrado pro resto da vida.
— É? Coitadinho...
— Mesmo, ia ficar frustrado pro resto da vida. E não é só isso, hem; há muito
mais coisas...
— Muito mais coisas? Nossa... — ela disse, e eu percebi de novo aquele
embaraço de antes, apesar dela procurar mostrar-se à vontade, ou por isso mesmo.
— Quais são essas coisas... — perguntou.
— Essas eu não posso dizer.
— Não? Por que? Tem sacanagem?... — ela deu um começo de gargalhada.
— Você está rindo mas o negócio é sério.
— Então me conta. Por que você não pode dizer?
— Certas coisas a gente não diz.
— Não? Pois eu acho que a gente pode dizer tudo.
— Você acha mesmo?
— Claro, por que não?
— É, você tem razão. Eu também penso assim.
— Então diz. Não é nenhuma cantada que você vai me dar, é?
— Quem sabe? Quê que você faria se fosse?
— Quê que eu faria? — ela ficou me olhando, depois disse: — Não, Guy, você
já fez onda demais, agora conte as tais coisas.
— Você não respondeu minha pergunta.
— Sua pergunta? — ela tornou a me olhar; e então pôs as mãos na cintura: —
Será que você está querendo mesmo me dar uma cantada?...
— Sabe que eu até gostaria? Mas não tenho coragem.
Ela deu uma gargalhada.
— Ai, Guy, você hoje... Mas e as coisas, você vai contar ou não vai?
— Vou, eu vou contar sim...
Houve um silêncio.
— Mas antes vou ao banheiro — falei, me levantando.
Ela indicou: era uma das portas que davam para a sala. Depois que entrei
escutei-a descendo a escada.
Olhei-me no espelho: eu estava naquela fase que é até agradável, quando
como que uma neblina diante dos olhos, e aquele amargo na boca, e o corpo meio
flutuante. Eu não pensei muita coisa; na verdade não pensei nada apenas tive a
certeza, enquanto escutava o barulho da chuva fora, de que aquilo iria até o fim,
de que eu não me impediria mais de falar; nem ela me pediria que não falasse.
Quando saí do banheiro Rosana tinha voltado a primeira coisa que vi
foram duas garrafas novas de cerveja na mesa.
— Trouxe duas dessa vez — ela disse. — Agora nós temos que beber.
— Nós beberemos — eu falei.
204
Ela encheu os copos de novo. Acendemos novos cigarros. Ela encostou a
cabeça de lado no sofá e olhou pra mim:
— Agora conte...
— É difícil, sabe?
— Por que?
— Você pode não gostar, ou... sei lá...
Você disse que eu talvez não te conheça, Guy; e você, será que você me
conhece?...
Eu fitei-a, fitei seus olhos negros, que me pareceram misteriosos e indevassáveis.
— É, pode ser; talvez eu não te conheça direito também.
Ela olhava pra mim.
— Então?... Conte; agora sou eu que estou pedindo...
Eu vou contar... eu disse. É uma espécie de obsessão, compreende?
Uma obsessão com você.
Ela não disse nada; me olhava fixamente.
Isso deve ter começado quando era menino, quando a gente brincava junto.
Não sei dizer exatamente quando, mas sei que foi nessa época. Lembro que... Mas
isso é outra coisa...
— Quê que é — ela quis saber.
Coisa à toa, você não vai lembrar... Você lembra daquele milharal que tinha
no fundo de sua casa?
— Milharal? Lembro.
— E uma vez que você me chamou lá, você lembra?
— Eu te chamei? — ela fez uma cara de estranheza.
— Você devia ter nove anos.
Ela franziu a testa procurando lembrar. Ao contrário do que eu dissera, eu tinha
a certeza de que ela devia se lembrar daquilo; mas, embora esperasse que ela fosse
dizer que não lembrava, eu não sabia agora se ela estava mentindo ou dizendo a
verdade.
— Não, não lembro de nada não. Te chamei lá e quê que houve?
— Bem: quando nós chegamos lá você levantou o vestido.
Ela riu admirada.
— Eu fiz isso?...
— Você não lembra?
— Juro que não lembro.
— É engraçado — eu falei. — Mas o mais interessante é o detalhe.
— Que detalhe?
— Você não tinha nada por baixo.
Ela deu uma gargalhada.
— Ai meu Deus; mas como que eu não me lembro nada disso?...
Eu observei-a bem, mas não consegui saber se ela estava dizendo a verdade.
— Pois é — falei.
— Essa é boa... — ela disse rindo.
Mas não é isso que eu ia te dizer; o que eu ia te dizer é na adolescência. Você
sabe como foi a educação lá em casa a respeito de sexo; na sua também. que na
sua era mais livre. Seus pais não eram tão rígidos.
— Até certo ponto — ela disse, soprando a fumaça.
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Os meus eram muito mais. E depois entrava também o temperamento; você
era extrovertida e eu não: eu era fechado, tímido. Não sei se você lembra disso.
Lembro que sempre que eu ia na sua casa você estava fechado lá no seu
quarto.
Mas de uma coisa você não sabe; que sempre que você chegava eu saía para
te ver.
— É? Você fazia isso?...
— Fazia.
Pois eu não sabia mesmo... ela disse com uma expressão divertida;
nunca notei isso...
Você não ia notar; você não me dava muita bola, você vivia cercada de fãs e
namorados.
Ela sorriu.
— Não era assim?...
— Mais ou menos...
Eu não; todas as minhas atenções se concentravam em você. Sabe, eu tinha
inveja de você.
— Inveja?
Engraçado, ? Mas é verdade; tinha inveja porque você podia ver o seu
corpo e eu o. Quando eu estava na sua casa e você ia tomar banho, eu ficava
imaginando lá dentro, você se olhando no espelho, e então... Puxa, eu ficava doido...
Ela sorriu um pouco.
Era natural que isso acontecesse eu continuei. É que com a educação
que tive, muito rígida, parece que tudo o que se relacionava a sexo se concentrou m
você, porque você era a menina que eu mais via, e por azar, ou por sorte, uma
menina muito bacana. Aliás, era e continua sendo.
Continua sendo... Como se nada tivesse mudado... Não tenho mais quinze
anos, Guy; tenho trinta.
— Eu sei.
Não sou mais uma adolescente; sou uma mulher; uma mulher casada e mãe
de dois filhos.
— Eu sei; claro.
— Houve um silêncio meio constrangedor entre nós. Peguei meu copo.
Eu te avisei falei: certas coisas a gente não diz. Não avisei? Mas você
insistiu para eu contar...
— Eu achei bom você dizer.
— Você achou? Por que?
— Não sei — ela disse. — Achei bom.
Outro silêncio.
— E depois — ela perguntou.
— Depois?
Depois disso; você falou que na adolescência; e depois? você conhecendo outras
meninas e aí a coisa foi desaparecendo. Ou não desapareceu?...
Meu coração batia forte.
— Você quer mesmo saber? Não desapareceu.
Ela pegou o copo de cerveja.
— Quer dizer que sou uma espécie de paixão oculta...
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— <<Uma espécie>> você disse bem...
Silêncio de novo.
— Sabe — eu falei, — era uma coisa muito profunda para desaparecer, mesmo com
o tempo; afinal de contas não são tantos anos assim.
Tomei um longo gole de cerveja.
Eu sofria com isso falei; sofria porque era pra mim uma coisa impossível;
nunca aconteceria nada, eu nunca veria aquele corpo que estava ali quase me
encostando, oculto apenas por um pedaço de pano, e no entanto mais distante
que a lua. Eu tinha quase raiva de você, raiva porque você tinha aquele corpo.
Por outro lado, é engraçado, eu de algum modo acreditava que o impossível
ainda aconteceria, e é por isso que eu não desistia; como que a gente vai desistir
daquilo que a gente mais deseja? De que modo aconteceria, eu não sei;
acontecia muitas vezes nos sonhos, mas eu acordava e era pior: é que eu via
mesmo era impossível, como aquilo jamais aconteceria, não tinha jeito de
acontecer; se fosse por um acaso, por um milagre; a palavra é essa: milagre.
Porque te dizer aquilo tudo eu jamais diria. E no entanto estou dizendo agora.
Estranho, né?
Olhei para ela; ela olhava fixo para o chão.
— E quando eu casei — ela perguntou.
Quando você casou? Eu pensei: agora acabou mesmo, agora o impossível ficou
de fato impossível. Mas mesmo assim, todas as vezes que eu te encontrava, tudo
aquilo voltava, eu sentia tudo de novo, era o mesmo adolescente e você a
mesma Rosana, a Rosana sonhada e impossível.
Eu parei de falar. Peguei meu copo e bebi o resto da cerveja.
— Essa é que é a verdade, por mais estranho que pareça — terminei.
— E agora? — perguntou.
— Agora?
— Agora que estamos aqui.
Não entendi bem o que ela quis dizer, mas meu coração começou a bater forte de
novo.
— Você sente as coisas que você falou?
— Sinto — eu disse.
— Tudo o que você falou?
— É.
Houve um silêncio imenso, enorme. Meu coração batia disparado.
— E se o impossível acontecesse? — ela disse, me olhando nos olhos.
Meu rosto latejava, eu não consegui falar nada.
Ela também não falou mais. Ficou em à minha frente. Seus olhos me olharam
muito, olharam profundamente, como se atravessassem toda a minha vida. E então,
devagar, com gestos firmes, ela começou a desabotoar o vestido.
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