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jamais, nunca, never, poderá ter alguém ou ser alguém, a não ser nas imbecilidades do
tipo O Direito de Nascer e nos filmes da Pelmex, yo soy tuya hasta la muerte, aquele trem.
Mas não é só isso: eu não queria tê-la também apenas fisicamente; não tinha
intenções escusas, para falar difícil. Não procurava um caso, uma aventura; nada
disso. Tem gente que precisa ter pelo menos uma vez na vida pegado a mulher de
outro para sentir-se realizado como homem; mas eu não, eu sou mais modesto,
procuro me realizar por outros modos, além do que esse negócio de mexer com
mulher dos outros só dá complicação e das complicações quero distância, basta as
que já tenho dentro de mim. A não ser quando a mulher do outro já não é bem do
outro, reconhecidamente do outro, aí ela é como qualquer prostituta, só que faz a
coisa por diletantismo e não por profissão. Mas ainda assim prefiro a profissional: a
gente vai, trepa, paga, não fica devendo favor, nem amor, nem amizade, volta pra
casa e esquece, não lembra nem mais o nome, Dalva ou Glória ou Marlene ou
Valéria ou Paula ou Mara, tudo é a mesma coisa, o mesmo buraco, pernas, peitos,
boca, palavrões, gemidos, uma explosão no escuro, a nota em cima da mesa,
acabou-se, de volta pra casa dormir, nenhum problema, remorso, aflição, saudade,
nada, o corpo sossega, a alma não incomoda, e o animal ronca feliz.
Não era isso o que eu queria com ela. Para dizer a verdade, a idéia de sexo
com relação a ela só servia para atrapalhar, para estragar. Era estranho: a gente bate
o olho numa mulher e vai logo imaginando ela pelada, mas com ela eu não fiz isso,
não fazia isso, porque não quis ou sei lá por quê, o fato é que eu não fazia. Era as-
sim como uma garotinha de quatro anos: a gente olha e não vai pensar nela pelada,
se bem que tem muitos que não perdoam nem garotinha de quatro anos. Às vezes
eu tentava pensar nela com o marido — como ela seria naquela hora, na cama, os
dois, tudo; mas era como se eu mastigasse uma borracha, a borracha afundava
depois voltava; era assim. O pensamento durava pouco, de repente eu lembrava dela
como a via na Escola e o pensamento sumia.
Bolas, se não era sexo, o quê que eu queria com ela? O quê que eu queria: era
isso que eu me perguntava. E eu não sabia responder. Nem sei ainda. É outra coisa
das histórias de amor: tudo é claro, o sujeito sempre sabe porque faz isso ou porque
deixa de fazer, porque gosta duma dona ou porque não gosta. Pode ser que seja
assim mesmo na realidade, com os outros, mas eu, eu não sou assim, eu sou confuso
e complicado, e então tudo fica confuso e complicado, as coisas, as pessoas, o
mundo todo, e começa a sair tudo errado e a gente começa a ter medo e a encolher-
se num cantinho escuro, porque se a gente mexe o dedinho cai um elefante na
cabeça da gente, e então a gente não mexe nem o dedinho e fica bem quieto lá no
escuro olhando as pessoas que passam juntas lá fora alegres e rindo, e sem entender
porque as pessoas estão lá fora e eu estou aqui escondido e com vontade de estar lá
fora também com as pessoas, e então vai dando uma tristeza muito grande na gente
e uma vontade de nunca mais sair do escuro, e quando vê a gente já está mexendo o
dedinho para um elefante cair na cabeça, mas nenhum elefante cai, nenhum, e então
o céu fica vazio de arrebentar o coração, e tudo fica mais escuro ainda.
Eu não sabia o que queria com ela. Não sabia. Amor platônico? À primeira
vista parecia ser isso, mas não era, era diferente, era uma coisa muito mais profunda,
dolorosa, desesperada, violenta, única, irremediável, absoluta, era um desejo de
abraçá-la, estreitá-la no meu peito, o rosto no meu rosto, esmagá-la tão fortemente
contra mim que quando abrisse os braços ela tombasse morta como uma criancinha