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BÁRBARA POLI ULIANO
MARLY DE OLIVEIRA: A POÉTICA DO
ABSURDO
Análise de Contato, Invocação de Orpheu, A Força da Paixão e A
Incerteza das Coisas.
LONDRINA- PARA
2008
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BÁRBARA POLI ULIANO
MARLY DE OLIVEIRA: A POÉTICA DO
ABSURDO
Análise de Contato, Invocação de Orpheu, A Força da Paixão e A
Incerteza das Coisas.
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós- Graduação em Letras
Diálogos Culturais, da Universidade
Estadual de Londrina, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre.
Orientação: Prof.ª. Drª. Regina
Helena Machado Aquino Corrêa.
LONDRINA
2008
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Catalogação na publicação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da
Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina.
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
U39m Uliano, Bárbara Poli.
Marly de Oliveira : a poética do absurdo : análise de
Contato, Invocação de Orpheu, A força da paixão e A
incerteza das coisas / Bárbara Poli Uliano. – Londrina,
2008.
113f. : il.
Orientador: Regina Helena Machado Aquino Corrêa.
Dissertação (Mestrado em Letras) Universidade
Estadual de Lon-drina, Centro de Letras e Ciências Humanas,
Programa de Pós-Graduação em Letras, 2008.
Bibliografia: f. 103-109.
1. Oliveira, Marly de, 1935- – Crítica e interpretação – Teses.
2. Poesia brasileira – História e crítica – Teses. 3. Absurdo (Filosofia) –
Teses. I. Corrêa, Regina Helena Machado Aquino. II. Universidade
Estadual de Londrina. Centro de Letras e Ciências Humanas. Programa
de Pós-Graduação em Letras. III. Título.
Dedico a Teresinha
Salete Poli Uliano,
minha mãe.
AGRADECIMENTOS
A minha mãe, por ter sempre me ouvido e auxiliado da melhor
forma, durante toda a minha árdua e angustiante caminhada.
A orientadora Prof.ª. Drª. Regina Helena Machado Aquino
Corrêa, pela força, amizade e atenção.
Ao meu namorado, Claudio Massaaki Shinkawa, que mesmo,
muitas vezes, sem compreender o motivo de tantas coisas, sempre
esteve ao meu lado.
Aos amigos que torceram por mim, em especial, Jefferson de
Souza, Tânia Salmazo, Adriana Silva, Ângela, Fernanda Oliveira,
pelo apoio, carinho e amizade.
Aos amigos Marcelo da Silva, Regina Broietti, José Ferreira, pelo
companheirismo e amizade, durante nossas longas viagens até
Londrina.
Aos meus amigos: Silvia Calvo, Fernanda Brener, Carina e
Vinícius Lima pela amizade, abrigo e caronas.
Ao Prof. Dr. Carlos Abel, pela atenção e carinho.
A Mônica e Patrícia, filhas de Marly de Oliveira, pela extrema
atenção e pelo carinho destinado a mim e ao meu trabalho.
A Pedro Lyra pela atenção e carinho.
A todos os professores, especialmente ao Prof. Dr. Alamir
Aquino Corrêa, que me instigou a pesquisar Marly de Oliveira; aos
colegas do Programa de Pós-Graduação, Mestrado, em Letras.
Em especial, a todos que não atrapalharam o desenvolvimento
dessa dissertação.
À Fundação Araucária e à CAPES, pelo suporte financeiro.
Num mundo em que predominam a
crueldade, a violência, a injustiça, a fome,
a insegurança, a doença, a dor, acho que
é dever nosso contribuir para que essa
situação se modifique. alguns, no
entanto, puderam fazê-lo através da
poesia. Por outro lado, acho também que
se o que se escreve conduzir à reflexão e
a uma tomada de consciência do que
realmente somos, é possível que alguma
coisa se modifique. Minha grande
esperança está na convicção de que o
pensamento também pode ser uma
forma de ação.
Marly de Oliveira
ULIANO, Bárbara Poli. Marly de Oliveira: a poética do absurdo. 2008.
110p. Dissertação (Mestrado em Letras) Universidade Estadual de
Londrina, Londrina.
RESUMO
Esta dissertação analisa a poética de Marly de Oliveira pelo viés do absurdo. O
estudo, de caráter bibliográfico, está dividido em três capítulos. No primeiro
abordam-se aspectos do estilo poético marliano. Ressalta-se o lado de crítica
da poeta, que ela perpassou pela crítica literária, traduções e até crítica de
arte. Mostra-se como Marly lida com as influências recebidas tanto por poetas
brasileiros quanto estrangeiros, em especial, italianos. Enfoca-se a
preocupação com “lavoro” poético e seu trabalho com a língua, que toca a
dicção clássica. O segundo capítulo abarca o trágico através de uma acepção
moderna. No segundo tópico desse capítulo, analisam-se as escritas e
ideologias de Marly de Oliveira e Albert Camus. Na última parte, analisam-se
quatro livros de Marly, apontando para elementos poéticos e trágicos
(absurdo). Conclui-se que o texto marliano é terreno profícuo ao estudo do
absurdo. Marly de Oliveira, mantendo uma dicção que lhe é peculiar,
apresenta vários elementos da filosofia do trágico camusiano.
Palavras-chaves: Marly de Oliveira, Albert Camus, Filosofia do Absurdo.
ULIANO, Bárbara Poli. Marly de Oliveira: poética do absurdo. 2008.
110p. Thesis (Master of Languages) Universidade Estadual de Londrina,
Londrina.
ABSTRACT
The present thesis analyzes Marly de Oliveira’s poetry through absurd
perspective. The study is bibliographic and it is divided in three parts. The
first one presents Oliveira’s poetry characteristics, influences, especially, from
Italian poets, work with language and the process about building poems.
Marly de Oliveira also has made critics about literature and arts. The second
topic aims at showing tragic through a modern concept. In a second section
of this chapter, Marly de Oliveira’s e Albert Camus’ written and ideoligic are
approximated. In the last part are analyzed four Marly de Oliveira’s books.
Poetics and tragic (absurd) elements are pointed out. The results confirm that
Oliveira’s poetry is fertile to the absurd study. Marly de Oliveira maintains a
particular write and presents vary elements of the absurd philosophy.
Key-words: Marly de Oliveira, Albert Camus, Absurd Philosophy.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................
01
1 MARLY DE OLIVEIRA: UMA EXTENSA TRAJETÓRIA...............
08
1.1 A poeta e sua poética...................................................................................
08
1.1.1 Características da escrita marliana..........................................................
14
2 MARLY DE OLIVEIRA E ALBERT CAMUS: O ABSURDO...........
24
2.1 O trágico........................................................................................................
24
2.2 Os dois autores.............................................................................................
33
2.3
A
Força de Paixão/A Incerteza das Coisas e O Homem Revoltado: o
amadurecimento do absurdo............................................................................
41
3 O ABSURDO NA POÉTICA DE MARLY DE OLIVEIRA...............
46
3.1
C
ontato............................................................................................................
46
3.2
I
nvocação de Orpheu.........................................................................................
54
3.2.1 O mito.........................................................................................................
54
3.2.1.1 Orfismo...................................................................................................
58
3.2.2 O Orpheu de Marly..................................................................................
60
3.3
A
Força de Paixão/A Incerteza das Coisas.....................................................
81
CONCLUSÃO...................................................................................................
96
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................
102
ANEXOS.............................................................................................................
109
1
INTRODUÇÃO
Analisar a obra de qualquer escritor é um desafio. O
estudioso fica entre os gumes afiados de uma espada. Optar por alguém
canônico é correr o risco de falar o dito, escolher um escritor
desconhecido é enfrentar a possibilidade de não encontrar fontes, e se
transformar em um desafio tentador. Como este trabalho, pelo pioneirismo
de uma obra de fôlego que trate exclusivamente do legado poético de Marly
de Oliveira (1935-2007) e pela extensão de sua obra dezenove livros,
sendo duas antologias.
Mais do que pela quantidade, salta aos olhos a qualidade de
uma escritora versátil que domina a língua como poucos. Uma poeta que
aprecia os contrários, porque, concomitantemente, demonstra o sentimento
profundo do lírico e o desencanto do observador-filosófico. Possui a
capacidade de modelar à modernidade, através da linguagem, a antiguidade
dos mitos, dos deuses, da tragédia, do trágico. Vale lembrar que ela não faz
essa viagem poética sozinha, sempre chama o leitor a vir consigo.
O legado poético de Marly surge em 1958 com a publicação
de Cerco da Primavera, o que lhe rendeu um prêmio do Instituto Nacional do
Livro- INL. Mesmo mantendo uma característica muito peculiar que toca o
clássico, a poeta sofreu as influências da literatura pós 1956, um ano tido
como marco para a poesia brasileira (BRASIL, 1973).
2
Em 1956, JK assume o país com um plano audacioso de
desenvolvimento, os “cinqüenta anos em cinco”, do qual Brasília fez parte.
A partir desse ano, verifica-se na literatura brasileira o que Assis Brasil
(1973) denomina de novos rumos de fato. É quando “o conceito [...] de
literatura esteia-se no entendimento de que é plenamente cabível transferir
para o campo literário o conceito de progresso” (BENSE apud. BRASIL,
1973 p. 61). João Cabral na poesia e Guimarães Rosa na prosa,
conjuntamente com a Poesia Concreta, constituem o cenário literário dessa
época:
No contexto da poesia brasileira, o Concretismo afirmou-se
como antítese intimista e estetizante dos anos de 40 e
repropôs temas, formas e, não raro, atitudes peculiares ao
Modernismo de 22 em sua fase mais polêmica e mais
aderente às vanguardas européias. Os poetas concretos
entendem levar às últimas conseqüências certos processos
estruturais que marcaram o futurismo [...], o dadaísmo e, em
parte, o surrealismo, ao menos no que este significa de
exaltação do imaginário e do inventivo no ‘fazer’ poético.
‘São processos que visam a atingir e a explorar as camadas
materiais do significante (o som, a letra impressa, a linha, a
superfície da página; eventualmente, a cor, a massa) e, por
isso, levam a rejeitar toda concepção que esgote nos temas
ou na realidade psíquica do emissor o interesse e a valia da
obra. A poesia concreta quer-se abertamente
antiexpressionista (BOSI, 2002, p. 476).
Assis Brasil (1973, p. 51) ressalta que “o Concretismo seria,
[...], o primeiro movimento brasileiro que [...] não se ‘ajustava’ ou não se
atualizava em relação a movimentos alienígenas, mas dava um passo à
frente, autonomamente à procura de renovação”. Afinal, prossegue Brasil
(idem), “com o Concretismo e ninguém pode negar tal fato
passamos de país importador a país exportador de experiência estética”.
3
Conforme Brasil (1973), o Concretismo enfrentou muitas
críticas, por ser tratar de uma estética ligada ao formalismo e, entre outras,
distante da compreensão do leitor trivial. Assim, surgem outros grupos
incumbidos de tornar a poesia mais acessível e nacionalista.
As discussões entre concretistas e, mais tarde, os
participantes da Poesia Práxis chegaram às ofensas pessoais. Mas o fato é
que enquanto os concretistas apregoavam a destruição do verso, a Poesia
Práxis, especialmente na pessoa de Mário Chamie, procura retomar o verso,
obviamente não da maneira clássica.
Nesse meio alguns poetas, “trabalhando uma linguagem
em boa parte alheia aos programas experimentalistas, (...) diferentes entre si,
mas aproximáveis pela sua concepção de lírica entre moderna e tradicional”
(BOSI, 2002, p.485). Entre esses poetas figura Marly de Oliveira. Bosi
(2002, p. 487) destaca três pontos em comum na escrita desses artífices da
palavra:
1) Ressurge o ‘discurso poético’ e, com ele, o ‘verso’, livre
ou metrificado em oposição à sintaxe ostensivamente
gráfica. 2) Dá-se nova grande margem à ‘fala
autobiográfica’, com toda a sua ênfase na livre, se não
anárquica, expressão do desejo e da memória em
contraste com o desdém pela função emotiva da linguagem
que o experimentalismo formal programava. 3) Repropõe-
se com ardor ‘o caráter público e político’ da fala poética —
em oposição a toda teoria do autocentramento e auto-
espelhamento da escrita. Subordina-se a construção do
objeto à verdade (real ou imaginária) do sujeito e do grupo.
Percebe-se que esses poetas abordam o sofrimento, muitas
vezes biográfico, mas o fazem de uma forma universal. Utilizam-se da
poesia de maneira própria e nela, sem esquecer que é arte, colocam suas
preocupações e reflexões acerca de seu tempo:
4
Não se pode negar que o século XX se apresenta, apesar
tudo, como ‘século trágico’ por excelência: não no
sentido metafórico de tempo marcado por catástrofes
colossais, mas também no sentido próprio, de época
histórica em que a consciência se depara com o
desabamento de alguns pilares éticos (o centro abismal
desse cúmulo de escombros sendo representado pela
Shoah). Nesse quadro a lógica, em particular a gica
histórica, não consegue mais dar conta de uma experiência
fortemente marcada pela negatividade, ao ponto de não se
encaixar mais dentro das molduras apaziguadoras da
‘racionalidade clássica’ (FINAZZI-AGRÒ & VECCHI,
2004, p. 07).
Tendo em vista a situação histórica e político-social que
circundava Marly, é possível encontrar em sua escrita essas marcas,
principalmente no que toca à alienação humana. Mas a poeta não levanta
bandeiras. Marly é sutil. A poética marliana chama aquele leitor interessado
em ver além daquilo que está à sua frente. Percebe-se que a partir de
Contato, a poeta deixa seu lado observador tomar mais espaço em sua
poética. Certas características desenvolvidas mais plenamente de Contato em
diante, como a preocupação com a efemeridade do tempo, pontuavam a
obra da poeta desde de Cerco de Primavera, seu primeiro livro.
Mas é a partir de seu sexto livro que amadurecem sua
observação e pensamento, é nesse momento que Marly começa delinear em
seus versos marcas peculiares do trágico numa acepção mais moderna, de
seu tempo, em que a depressão, a melancolia, a cegueira, o silêncio podem
ser tidos como possíveis formas do trágico. Vale lembrar ao leitor que, se
espera conceitos definidos para o trágico, mormente, ficará frustrado.
Igualmente, se procurar respostas na poética de Marly. Ela, assim como o
trágico, não resolve a questão, na verdade, ela questiona. Finazzi-Agrò e
Vecchi (2004, p. 06) relatam que:
5
Quem pretendesse encontrar aqui [...] uma conceitualização
normativa do trágico moderno e uma definição excludente
dessa categoria acabaria por ficar inexoravelmente
desiludido. De fato, para além da inviabilidade de uma
teorização unívoca e de uma delimitação
espistemologicamente rígida, dentro da monumental
tradição crítica sobre esse tema (se pense, por exemplo, na
inesgotável discussão sobre o caráter trágico ou anti-trágico
da dialética), coexistem, como se verá, quase em conflito
entre si, várias visões hermenêuticas que até decorrem de
bibliografias teóricas heterogêneas.
Características da tragédia e do trágico são pertinentes na
poética marliana, levando-se em conta que a poética de Marly apresenta
contrariedades, heterogeneidades. Em um verso diz-se algo que no seguinte
é desdito; a ênfase nas antíteses, nos paradoxos. Há ainda de se
considerar o pensamento reflexivo e filosófico, que abunda nos versos
marlianos, como observado por Lyra (2004), e que leva Marly a constatar
que o mundo está em queda livre para o desamor, a petrificação, a
robotização, a dominação sem resistências. Tudo isso são sintomas da
realidade trágica em que vive. Mas Marly de Oliveira não se desfaz de seu
traço clássico, fruto dos anos em que viveu em Roma, especializando-se em
Línguas Neolatinas, assunto de sua licenciatura e bacharelado. Por isso, é
possível encontrar em sua poesia mitos e características próprias da tragédia
antiga.
Entretanto, a poeta traça, com suas obras, estreito diálogo
com a filosofia de Camus, o absurdo. Sendo assim, decidiu-se abordar o
trágico, nomeado por Camus como absurdo, na poética de Marly de
Oliveira neste trabalho. Para tal, após constatar tais características em Marly
de Oliveira, dedicou-se o primeiro capítulo a uma visão geral do legado
poético, ressaltando o trabalho primoroso da poeta com tudo o que
envolve língua e poesia. Mostra-se como Marly preocupa-se com o fazer
6
poético, bem como as influências recebidas tanto por poetas brasileiros
quanto estrangeiros, em especial, italianos, com enfoque no pensamento
reflexivo-filosófico da poeta.
No segundo capítulo, delineia-se a influência recebida por
Marly da filosofia camusiana, evidenciada a partir de Contato (1975).
Apresenta-se, primeiro, noções do trágico moderno tecidas por diversos
teóricos como Gumbrecht, Finazzi- Agrò, Mulinacci, entre outros. Após,
traça-se uma aproximação entre a filosofia de Camus e a poesia de Marly de
Oliveira; evidenciando conceitos da filosofia do absurdo.
No terceiro capítulo, analisam-se Contato, Invocação de Orpheu,
A Força da Paixão e A Incerteza das Coisas, procurando identificar como
Marly constrói seus versos líricos misturados com elementos incontestáveis
do trágico camusiano. Ela que mescla elementos do passado e originados
no passado com os de seu tempo, para mostrar e chamar a atenção do
leitor sobre o presente. “Seu pendor natural é para o luminoso —e o
numinoso conquanto saiba inelutável o convívio com as trevas, o
‘daimon’ noturno da subjetividade” (MARQUES, 1984, p. 13). Marly sabe
também que
de fato o que marca a modernidade nas variadas fases de
sua formação e radicalização é uma profunda mudança de
paradigma. Nesse contexto, o trágico faz com que a
experiência universal da dor, do conflito extremo, da aporia,
deixem de ser só representáveis, como tragédia clássica, e se
tornem não apenas pensamento, mas até uma nova
morfologia de pensamento na impossibilidade porém de
alcançar o seu núcleo profundo. E esse é um dos
numerosos trânsitos que o trágico, na sua metamorfose
moderna, conhece (FINAZZI-AGRÒ & VECCHI, 2004,
p. 06).
No que compete ao trágico moderno, levantam-se alguns
sinais, principalmente os mais avultados nos poemas-livros marlianos,
7
como a petrificação e a alienação humana, a passagem do tempo, a mudez,
a cegueira, a imobilidade, o desânimo, a depressão, a tentativa frustrada de
afirmação de si e das coisas, a problemática para exprimir algo amorfo, a
solidão e enfim, a perda.
Do absurdo, abordou-se a consciência absurda, a revolta, a
solidariedade, o não à esperança, o direito à felicidade, o amor pela vida
absurda, trágica. Por fim, pode-se afirmar que quase todo o pensamento de
Camus, na forma de influência adquirida por Marly de Oliveira, está
presente neste trabalho.
8
MARLY DE OLIVEIRA: UMA EXTENSA TRAJETÓRIA
1.1 A poeta
1
Marly de Oliveira nasceu em 1935, no município de
Cachoeiro de Itapemirim, ES. Passou a infância em Campos, RJ, onde fez
os estudos primários em um colégio religioso e os secundários no Liceu de
Humanidades.
Foi com a família para o Rio, como aluna de Letras
Neolatinas da PUC, publicou o Cerco de Primavera (1957). Passou depois
mais de um ano em Roma, cuja Universidade fez os cursos de ‘Storia della
língua italiana’, baseada no De vulgari eloquentia de Dante, com Alfredo
Schiaffini, e de Filologia Românica no Yvain de Chrétien de Troyes, com
Aurélio Roncaglia. Foi importante, nesse período, o contato com Giuseppe
Ungaretti que segundo Moreira (2008, p.01), “ao ler uma breve coletânea de
poemas escritos em italiano pela jovem estudante brasileira, decidiu
entusiasmado apresentá-la pessoalmente em um programa cultural”.
Prossegue Moreira (2008, p.01) que Ungaretti referiu-se “textualmente ao
1
As informações foram extraídas das orelhas do livro Banquete - OLIVEIRA, M. O banquete. Rio de
Janeiro: Record, 1988 e do site Itaú Cultural.: Disponível em: www.itaucultural. com.br. Acessado em 28
abr 2006 e informações recolhidas através de conversas com as filhas de Marly de Oliveira.
9
‘milagre da criação’ daqueles versos escritos por uma estrangeira em ‘um
italiano luminoso’”. Foi em meio a esse ambiente que terminou, em Roma,
a obra Explicação de Narciso (1960).
De volta ao Brasil, foi assistente de Mário Camarinha, na
cadeira de Literatura Hispano-Americana na PUC do Rio e de Petrópolis,
deu aulas de Língua e Literatura Italianas e Literatura Hispano-Americana
na Faculdade das Dorotéias em Friburgo.
Publicou, nessa época, A Suave Pantera (1962) e, mais tarde,
A Vida Natural e O Sangue na Veia (1967).
O casamento com o diplomata Lauro Moreira deu-lhe duas
filhas: Mônica e Patrícia e levou-a algum tempo a Buenos Aires, onde
traduziu, a pedido de Fernando Sabino parte da Nueva antologia personal de
Jorge Luis Borges e começou Contato (1975). Da Argentina, seguiu para a
Suíça. Em Genebra, traduziu do francês, o livro Verso universo em Carlos
Drummond de Andrade, de José G. Merquior.
De volta ao Brasil, ficou alguns anos em Brasília. Colaborou
nos jornais locais e escreveu Invocação de Orpheu (1979), Aliança (1979), A
Força da Paixão/A Incerteza das Coisas (1984). Mudou–se em maio de 1986
para o Rio, de onde seguiu para o Porto. Nessa época, surgem os livros
Retrato, Vertigem, Viagem a Portugal (1986).
Em 1988, casa-se com o poeta e embaixador João Cabral de
Melo Neto. Nesse ano, Marly integra a antologia francesa acerca de poetas
brasileiros. Em 1989, há o lançamento de Obra poética, primeira antologia do
legado literário marliano.
Em 1991, a poeta lança O Deserto Jardim, feito em
homenagem a João Cabral e a poética cabralina. Em 1995, organiza
conjuntamente a Margaret George a Obra Completa de João Cabral de Melo
Neto. Em 1996, Manuel Graña Etcheverrry lança a coletânea Poesia própria y
10
ajena, do qual Marly de Oliveira participa com “La sangre em la vena” (O
Sangue na Veia. Em 1997, surgem a Antologia poética sobre a obra marliana,
organizada por João Cabral e O mar de permeio, ganhador do Prêmio Jabuti
em 1998. Marly de Oliveira e O mar de permeio marcam a poesia, no ano de
1998, segundo a Encyclopedia Britannica. Em 1999, Marly de Oliveira sofre
uma perda significativa que é a morte de João Cabral. O poeta morreu de
mãos dadas com a mulher enquanto rezavam.
Em 2000, sai do prelo, Uma vez, Sempre, seu último livro.
Em Fourteen Female Voices from Brazil, (2003), organizado por Elzbieta Szoka
(Universidade de Colúmbia), juntou uma amostra de seu legado ao de
outras escritoras para falar de gênero, identidade e etnia. Em 2005, a
“Porcupine Literary Arts Magazine” publica alguns de seus primeiros
poemas, dentre eles: Inscrição/ Inscription; Martírio De Tiradentes/
Martyrdom of Tiradentes; No Cadafalso/ At The Gallows; O
Esquartejamento/ The Quartering; Reflexão/ Reflection.
Após uma intensa vida literária, longe dos holofotes da
fama, Marly falece no Rio, em 01 de junho de 2007.
1.2. A poética filosófica
Marly imprime ao seu legado poético a busca filosófica a
fim de tentar compreender a si e o outro, ambos em relação ao mundo: “no
contato com o outro vou aprendendo sempre alguma coisa sobre mim.
Cada vez tenho menos medo de enfrentar-me” (OLIVEIRA, 1979, p.07).
Prenúncios de um movimento de recolhimento, de introspecção, surgem
11
em Explicação de Narciso e A Vida Natural, mas se concretizam em Contato
(1975). Nele, essas preocupações logram mais espaço e amadurecem a cada
nova produção. Pode-se dizer que “predomina, [...], em suas composições o
tom reflexivo, por pouco não interrogante. Percebe-se que aplica todo o
esmero numa pesquisa que tem o começo nela própria e, por ponto de
chegada, o fluxo aceso do humano, a saber, ela ainda em sua nua
radicalidade” (MARQUES, 1984, p.13):
E foi assim que dei de rosto
com a humana desventura,
preferindo sucumbir
a essa chama interna e pura
a ter por bem assentado
o entendimento do mundo,
ou melhor, a sua fábula,
o esplêndido banquete
para a curiosidade
de artífices, capitães,
reis, filósofos, teólogos
que andam atrás da verdade
como uma pessoa viva,
uma pessoa que exista
com carne, osso e coragem
(Oliveira, 1988, p.53).
Devido a esse questionar filosófico, momentos díspares
que ocorrem num mesmo poema. A partir de Contato, percebe-se grande
incidência de figuras como a antítese e o paradoxo. Pautando-se
basicamente nelas, a poética de Marly de Oliveira ganha uma certa fluidez
tendendo ao incerto, o diz e o desdiz tornam-se quase uno. Desse jogo,
provém, por exemplo: “aquilo que me escapa é que é o sentido”
(OLIVEIRA, 1967, p. 102). Essa aparente instabilidade gera “a impressão
de ebriedade, mas lucidíssima, quase incandescente” (MARQUES, 1984,
p.13).
12
Segundo Pedro Lyra (2004, s/p), “Sua poesia tem uma face
rara na nossa tradição lírica: a sondagem filosófica, o que a torna uma poeta
não apenas do sentimento, comum a todos, mas também do pensamento,
próprio dos grandes”. Lyra (1982, s/p) ainda afirma que: “trata-se de uma
poeta contida, de elaboração meditada, com uma expressão que indica um
rigoroso trabalho de reflexão, tanto ao nível de substância quanto ao nível
da instrumentalidade”.
O recolhimento e o perscrutar filosófico sugerem
melancolia em sua poética mais madura. Na visão de Lyra (2000), as poesias
de Marly aproximam-se da forma de um teorema, pois enfrentam o
problema, além de refleti-lo. A escrita marliana parte de si, estende-se ao
humano e volta para a poeta e sua solidão. “Sou solitária de nascença, como
outros são cegos ou mudos. Não me vanglorio disso, nem me entristeço:
registro. Fracasso sempre, nisto talvez resida minha força: sou devolvida a
mim toda vez que ensaio alguma deserção” (OLIVEIRA, 1979, p. 07-08). A
solidão, algumas vezes, torna-se imagens pintadas por palavras dando
formas a jardins e desertos, outras, é metamorfoseada em descrições
poéticas, nem sempre desencantadas. Afinal “na solidão/ tão árida do
deserto/ é que se prova a esperança” (OLIVEIRA, 1988, p.75).
Costa e Silva (1986, p.13 e 15) afirma que “ninguém escreve
fora da vida. E quem escreva, como Marly de Oliveira, sobre sua vida
[...] toda a sua poesia gira em torno de um eixo: a própria Marly, [..] o
núcleo dela mesma, [...], que é a percepção do mundo”. D a poeta ser
capaz de exprimir, com esplendor e suavidade, que oratio sensitiva
perfecta est poema” (apud. MARQUES, 1984, p. 13).
Ao sair de si e retornar, não se tem a mesma Marly, o
outro contribuiu de alguma forma para essa “nova Marly” que retornou.
Tem-se uma Marly que por mais que lute, prende-se às coisas e às pessoas
13
que a cercam. Por isso, algumas vezes, a voz marliana expressada no
poema, sugere a figura de um conselheiro dos outros e de si mesmo, como
em O Banquete:
Direi que estais acostumados,
e tais protestos e convites
preferis pagar de contado,
de forma objetiva e simples,
a sentar-se a uma outra mesa,
onde outras coisas são servidas,
que não estão no dicionário
cotidiano das comidas.
De que outro pão, de que outro vinho,
com desconfiança pensais
se possa falar num poema
sem ser ocasião da mais
inquietante inquisição
sobre tudo o que nos rodeia;
mesa, ferro, cal, arpão,
o que constrói e o que medeia
entre o meu sim e o vosso não?
(OLIVEIRA, 1988, p. 71).
Marly, observadora atenta, aponta como possível redenção
aos estados deploráveis humanos, a poesia e o amor. Por isso, a escrita
marliana traz o sentir que, conforme Marques (1984, p.13), expõe “uma
sensciência marliana”. Esse sentir se expressa em uma escrita singular e
estético-filosófica que alcança o universal.
Marly vem tecendo e consagrando os seus próprios mitos
fundamentais. Desde o primeiro livro de poemas [...] ela
trabalha e retrabalha uma iluminação central,
multiplicada e projetada sobre horizontes de significados
que tanto mais se alargam quanto mais nítida, precisa e
despojada se torna sua peculiar dicção. Por isso, o percurso
de Marly, mágico e pendular, retoma sempre o princípio de
tudo [...] anula a aridez das lembranças e conflitos pessoais
[...], até chegar à escrita revelada de uma poesia que submete
14
o sofrimento da perda, a amargura do engano, a frieza da
aridez ao ‘império da esperança’ e ao chamado do amor
(CHAMIE, 1988, p.13).
Vale destacar que embora a poesia possua nuances
filosóficas, segundo Marques (1984), a poeta não se desvia do caminho
artístico do lírico, da apresentação de imagens, do trabalho da poesia. Ela
associa o que é próprio do caráter humano: a arte poética e filosófica.
1.1.1 Características da escrita marliana
Marly de Oliveira trabalha com vários artifícios para
estruturar suas poesias e poemas. A intertextualidade é um dos que a poeta
utiliza, mas de uma maneira bastante peculiar.
Acerca da intertextualidade, João Cabral (1994, p.10)
aborda-a com certo desdém: “ainda que possa muitas vezes usar a tal
intertextualidade” (grifo nosso). De certa forma, ele tem razão. A poeta, na
verdade, lança mão da intertextualidade com ares renovados. Segundo
Chaves (1997, p.13-14), “quanto à intertextualidade, [...] que se intensifica
na obra a partir do oitavo livro [...], Marly a exerce de maneira própria,
fugindo às direções tradicionais da paródia, paráfrase ou estilização”.
Ninguém se faz sozinho. O artista também não. Esse não
cria sua arte inteiramente sozinho, espelha-se em outros e isso sucede
infinitamente. Em sua poética, Marly de Oliveira revela os rastros de seus
antepassados artísticos: “Sou filha de Cecília, Drummond, Bandeira,
Augusto Meyer. Irmã de Clarice, Nélida Piñon, José Guilherme Merquior”
(OLIVEIRA, 1979, p.07). Acrescente-se Murilo Mendes. Marly continua:
15
“quando publiquei o ‘Cerco da primavera’, tinha sofrido o impacto das
literaturas espanhola, italiana, francesa entre outras” (OLIVEIRA, 1997,
s/p). Mendes. Costa e Silva (1986, p. 13-14) comenta que:
Marly [...] afirma: ‘Eu não nasci de mim’. Mas de
Campos. Trás-os-Montes, Gênova, Camões, Pessoa,
Montale. E poderia acrescentar Cecília e Vinícius, a cuja
estirpe, de verdade, pertence, pela limpidez da linguagem,
pelo vocabulário de tradição camoneana, pelo visualismo
das imagens, pela preferência por certo tipo de dicção
romântica. Ainda que intelectualmente Marly se afine com
Jorge Guillén e João Cabral de Melo Neto, é outra a sua
família poética, é outra a forma de clareza para a qual foi
afetivamente conduzida, no seu belo, no seu belíssimo saber
fazer, derramada ou concisa, ‘pensierosa’ ou atenta às
minúcias do mundo, tranqüila em sua sensualidade e
aguçada em sua aspiração mística, senhora do verso e do
corte da estrofe, luminosa, precisa e sempre emocionada.
momentos em que a poeta se intratextualiza, ou seja, faz
alusão aos trabalhos passados. Marly de Oliveira rememora suas palavras
dialogando com obras de outros autores, produzindo, assim, várias vozes
num mesmo poema. Em A Vida Natural (1967, p.85), ela escreve: “Chega-
se ao nada ultrapassando tudo”. Trinta e três anos após conforme data
de edição —, a poeta, em O Deserto Jardim (1990, p.59) coloca: “Chega-se
assim ao nada./ Chega-se assim ao tudo”. Marly de Oliveira, mesmo em se
tratando de seus textos, retoma-os de maneira diferenciada:
O retorno aos versos antigos, que são ou não são o que
podiam ter sido, se faz num plano distinto: o da nova
criação poética. Não se tem aqui uma abordagem
puramente crítica da obra [...] mas uma investigação poética,
um julgamento poético. O poeta relê-se; e da releitura faz
novos poemas. Reescrevendo alguns. Juntando partes de
outros para formar um novo todo. Comentando.
Discordando. Acrescentando sonhos de hoje a experiências
de ontem. Não fica, porém, apenas na leitura: revê-se,
16
sendo e escrevendo, de carne e osso e espírito, na plenitude
da vida. Marly sabe que a biografia de um poeta se organiza
com seus versos, e a biografia de quem se fez poeta, com
seus dias (COSTA E SILVA, 1986, p. 12).
Licenciada e Bacharelada em Línguas Neolatinas, seguida de
especialização em Roma, Marly enviesa sua leitura de mundo também pela
“canzone”. Percebe-se a forte presença da Itália, principalmente, no que diz
respeito à poesia italiana. A poeta, enquanto esteve na Itália, conheceu
Ungaretti, poeta que se tornou seu amigo e que exerceu grande influência
na poética marliana. Segundo ela: “minha paixão pela Itália sempre
ultrapassou todo entendimento. Gosto de De Sica, Fellini, Antonioni,
Visconti”. Mas, pontua outros amores por gênios não-italianos: “acho que
o mundo seria diferente se não tivesse tido um Heráclito, um Platão, [...],
um Cervantes, um Shakespeare, um Fernando Pessoa, um Freud”. Chaves
(1997, p.14) assevera que:
A formação universitária de Marly de Oliveira [...] lhe deu
essa intimidade com a poesia criada em línguas neolatinas,
conhecimento que ao longo da existência se foi expandindo
autodidaticamente para outras literaturas. Os poetas
referenciados no conjunto de sua obra comprovam um
universo de leitura tão extenso que lhe confeririam à
intelectualidade a categoria de ‘humanista’, se este rótulo
não soasse atualmente um tanto discriminado no concerto
de máquinas em que se transformou o nosso tempo.
Marly inicia sua carreira literária pós-geração de 45.
Propriamente, pós 1956. Embora haja influências, como João Cabral,
Cecília, Drummond, Murilo Mendes, a poeta tem um estilo próprio que
parte da extrema preocupação com o vocabulário, linguagem e forma, no
início de seus escritos, galgando em seus últimos livros, em um momento
mais maduro, não a total despreocupação, mas nas últimas obras, tal
17
questão não possui o mesmo valor de antes. Ruth Chaves (1997, p. 15)
diz que “a pontuação mais liberada das peias gramaticais, a freqüência de
‘enjambements’ que fratura os sintagmas são procedimentos novos no
discurso” dessa fase amadurecida. Assis Brasil (1975, p.30), um dos poucos
a falar de Marly, em historiografias literárias, argumenta que:
Quer em João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de
Andrade, [...] ou Cecília Meireles numa ampla abertura
de pesquisa poética a partir do Modernismo os novos
têm se beneficiado da ‘tradição’ e da vanguarda, dando a
esta fase da literatura brasileira uma dignidade talvez só
encontrável na época Romantismo.
Marly de Oliveira é um dos poetas dessa linhagem,
beneficamente influenciados pela melhor poesia, mas de
características acentuadamente pessoais. Seu campo de
polarização vai de Cecília Meireles a João Cabral de Melo
Neto, sem deixar também de lado a poesia algo
‘encantatória’ de toda uma tradição latina.
Marly de Oliveira é poeta do “lavoro” poético. Ela busca a
palavra certa, seleciona o vocábulo até o melhor encaixe: “um vocabulário
amplo, culto refinado, que inclui não palavras de uso raro [“absconsos
caminhos, acrimancia, acicate” (Oliveira: 1975, p. 24-25)], mas também
palavras em suas formas clássicas [...] e algumas consagradas na linguagem
poética tradicional” (ALMEIDA PINTO, 2002, p.48).
A poeta elabora sua linguagem, emprega as metáforas que
“dentre as figuras de retórica, sobressaem [...] seja por sua constância, seja
por sua força expressiva ou beleza, as figuras da área da metáfora, fundadas
numa relação de semelhança entre dois termos: metáforas, símbolos,
imagens, comparações ou símiles” (ALMEIDA PINTO, 2002, p. 49).
Segundo Cohen (1974, p.103), “todas as figuras têm por objetivo provocar
o processo metafórico. A estratégia poética tem por único fim a mudança
de sentido. O poeta atua sobre a mensagem para modificar a língua”:
18
“Para mim, este rumo/ alado de primavera. / O vinho da
claridade em copos azuis (OLIVEIRA, 1957,
In:“Presente”).
“É para mim que brilho como um sol/ deserto...”
(OLIVEIRA, 1960, 4).
“Eu morro sem ao menos ter levado
ao auge esta paixão que me acompanha,
inconsistente, o meu discurso não alcança
livrar-me dessa maldição,
por isso dou meu testemunho àqueles
que se consomem na sua flama” (OLIVEIRA, 1979, I).
Em “Será mesmo a harmonia/ o que ouço só com os
olhos?” (OLIVEIRA, 1967, p. 65), Marly transpõe “reações sensoriais de
natureza heterogênea, provocando na mente do leitor um todo homogêneo
e complexo” (RAMOS, 1974, p.106). A poeta associa audição e visão
produzindo uma bela conjunção sinestésica em que se pode “ouvir com os
olhos”.
Em sua fase mais madura, a poeta utiliza-se especialmente
das antíteses e paradoxos para construir sua poética. Marly diz, por
exemplo, “A fria e ardente, luminosa treva,” (OLIVEIRA, 1967, p.97), ela
reúne termos que se opõem para se expressar, tocando, às vezes, o absurdo
paradoxal de “o ouro volatiliza-se, mas meu corpo se banha nesse ouro,”
(OLIVEIRA, 1975, p.21), sabe-se que o ouro não se vaporiza. Todo esse
jogo ratifica a aparente ebriedade de seus poemas.
A musicalidade dos poemas marlianos une-se ao jogo da
aparente ebriedade dos versos. Mas, Marly é segura quanto às formas
poéticas, sejam fixas ou não, e na expressão fonética de suas poesias. A
poeta que pinta com as palavras, também se esmera pela sonoridade de seus
19
poemas. A pena, nesse momento, torna-se a batuta com a qual Marly
comanda os vários instrumentos que contribuem para sua música-poema.
Em 2004, o poema “A passagem veloz do tempo” de O
Mar de Permeio foi musicado por Zezo Ribeiro e gravado no CD Brincadeira,
co-parceria de Zezo Ribeiro e Chico César, lançado pela gravadora
espanhola Nube Negra. Talvez, esse seja o primeiro de muitos poemas
rumo à música, visto a alta qualidade fônica das produções:
A característica mais notável dos textos [...] consiste na
preocupação com a elaboração da linguagem, na procura
consciente da palavra de maior carga expressiva, do ritmo
mais adequado a cada situação poética particular, da
imagem que condensa a idéia e embeleza o discurso; o
poema parece nada ter de gratuito: é fruto de um caminho
de aperfeiçoamento conquistado sempre e nunca
inteiramente (ALMEIDA PINTO, 2002, p.42).
As aliterações, além de auxiliar a formação das imagens,
marcam a musicalidade e conotação dos vocábulos. Por exemplo, neste
trecho: “Para sobreviver com fome,/ sede, fibra, força, farpa (OLIVEIRA,
1988, p.77). O substantivo nu de adjetivações associado à incidência das
fricativas (f, s) separadas por rgulas dão maior significado ao verso,
expressando a miséria, a dor e a força, quase esmiuçada por tantos
obstáculos.
Marly é poeta que aborda a metapoesia . Em seus livros, ela
sempre alude ao fabricar e à função da poesia, daí tanto esmero com o
vocabulário, forma, figuras, ritmo, o debruçar-se sobre o trabalho do lírico
de estar integrado ao acontecimento e como falar dele. Disso surgem
versos como: “A função do poema: conhecer” (OLIVEIRA, 1984, p. 63).
“Criar quase prescinde do que existe/ o que existe é somente/ um ponto
de partida” (OLIVEIRA, 1967, p. 73). “Poesia é caminho, única vertigem”
(OLIVEIRA, 1979, poema I).
20
Num mundo em que predominam a crueldade, a violência,
a injustiça, a fome, a insegurança, a doença, a dor, acho que
é dever nosso contribuir para que essa situação se
modifique. alguns, no entanto, puderam fazê-lo através
da poesia. Por outro lado, acho também que se o que se
escreve conduzir à reflexão e a uma tomada de consciência
do que realmente somos, é possível que alguma coisa se
modifique. Minha grande esperança está na convicção de
que o pensamento também pode ser uma forma de ação
(OLIVEIRA, 1986, s/p).
O apuro de Marly, na tessitura do fazer poético, alcança
maestria, como já observara João Cabral, tanto com o poema curto quanto
com o longo:
[...] nos poemas longos de Marly de Oliveira um tipo
especial de estrutura, como também nos poemas curtos.
Não é uma estruturação em linha contínua, como um
‘tedious argument/of insidious intent’, como dizia Eliot.
Eles não têm o discursivo de um argumento como
princípio, meio e conclusão, como acontece em geral com a
poesia de caráter reflexivo. Eles parecem recomeçar a
reflexão a cada capítulo, mostrando novos aspectos do
objeto de que fala ou novos pontos de partida da
reflexão[...] Nunca aquela penúria verbal de que se queixava
José Guilherme Merquior nos poetas mais jovens de hoje
(MELO NETO, 1994, p. 09).
Quanto à estrutura desses poemas, a poeta também nutre
um estilo próprio. Marly confecciona “poemas-livro”: poemas extensos que
da primeira até a última página tratam do mesmo tema e assunto, não
possuem nomes, às vezes são numerados: “meu conceito de livro como
algo de certa forma pré-concebida, que tem a pretensão de desenvolver um
tema, que voltas sobre si mesmo, na tentativa de apreender o
inapreensível” (OLIVEIRA, 1979, p.09). Essa declaração é dada no livro
Aliança. De Explicação de Narciso (1960) aA Vida Natural (1967) percebe-
21
se certa soberania do modo apolínico de projetar a arte. A partir de Contato
(1975), a poeta entrega, com raros intervalos, o modo de fazer poético ao
território dionisíaco.
O lírico, muitas vezes associado ao dionisíaco, predomina
na composição poética de Marly, porém a poeta mescla sua produção com
rastros do épico e dramático. Ela interage perfeitamente com tudo o que a
cerca, o que Staiger (1974, p. 163) chama de “um no-outro”. Por isso, a
grande capacidade de observação e questionamento. Assim, seus poemas-
livro ganham o traço épico por serem extensos e de certa forma
independentes em suas partes, quase narrativas. A maneira como a poeta
expõe sua visão de mundo um ar de tensão ao texto. A tensão é marca
indelével do gênero dramático. Staiger (1974, p.161-163) explica que:
Uma poesia lírica [...] justamente porque se trata de um
poema, não se pode ser exclusivamente lírica. Participa em
diversos graus e modos de todos os gêneros, e apenas a
‘primazia’ do lírico nos autoriza chamar os versos de líricos.
A seqüência sílaba — palavra — frase explica [...] porque os
gêneros são aqui enumerados segundo a ordem lírico
épico dramático. Os gêneros especificados
posteriormente não podem prescindir dos anteriores.
Posso, claro, formar sílabas [...] Mas não posso expressar
nenhuma palavra sem formar ao mesmo tempo uma sílaba,
nem posso formular uma frase sem empregar palavras, e
com elas sílabas. Assim o gênero dramático depende do
gênero épico. A objetividade nele reduz-se a simples
pressuposto [...], tem, entretanto que estar presente, para
que possa ser julgada no conjunto. [...] Que o gênero épico
continua na dependência do lírico parece menos evidente.
Contudo, quem quer apresentar uma coisa, terá que antes
introjetá-la, senão essa coisa não o sensibiliza, nem a nós, e
sua exposição será ‘seca’ justamente porque abdica do
fluido do elemento lírico. Os atos originários da
apresentação, pressupõe o ‘um no-outro’. Não podem
proceder de outro ponto.
22
Marly de Oliveira internalizou para a carreira e vida
particular, a questão poético-lírica de Staiger, o “um no-outro”. Percebe-se
que em sua solidão poética, Marly é perspicaz, pensadora e questionadora
do real. Como tal, não apreciava os holofotes do meio artístico. A escrita
marliana prima pelo refletir. Nem todos primam por reflexões. Em A Força
da Paixão, a poeta escreve:
Um dia vou ser biografia.
Nem isso, talvez, uma inscrição
numa pedra qualquer,
no pó que o vento leva,
na memória inconstante dos que amei
de forma certa.
(OLIVEIRA, 1984, p.40)
Em uma homenagem feita a ela, em Junho de 2007, na
Academia Paulistana de Letras, Mário Chamie e Lygia Fagundes Telles
relataram a amizade desfrutada ao lado da poeta e sua aversão às luzes da
fama (vide anexos).
Clarice Lispector, outra grande amiga da poeta, relata: “Eu
mesma não sei como consegui quebrar o pudor que Marly de Oliveira tem
de aparecer em público [...] Por que o grande público não a conhece?”
(LISPECTOR, 1975, s/p). Instigante tal questionamento porque a
produção de Marly é longa. Acentuando o foco usado para esse trabalho,
Eduardo Lourenço (2001, p.202) talvez possa responder, em parte, a
pergunta de Clarice:
O trágico autêntico é rejeitado, por instinto, pela opinião
ledora do grande país. Não terá sido apenas por cansaço ou
evolução natural que Jorge Amado, pouco a pouco,
abandonou a sua atitude crítica, denunciadora dos aspectos
intoleráveis da sociedade provincial da Bahia, por uma
literatura cada vez mais lúdica e euforizante. [...] antitrágica.
23
Marly persiste e insiste. Faz com seus textos concentrem
maior tensão ao expor questões filosóficas e de teor trágico, especialmente
o trágico de Albert Camus: o Absurdo. Mesmo desencantada, ela ainda
tenta apontar um caminho, mas percebe os rastros do Absurdo a constituir
cada vez mais, a vida “moderna” humana:
Não pretendo que creiam em mim; além de inútil, muito
trabalho, mas acho bom que cada um creia em si mesmo.
Sei que o discurso assertivo pode não ser verdadeiro e acho
que o mundo é absurdo, como Camus (OLIVEIRA, 1979,
p. 08).
24
MARLY DE OLIVEIRA E ALBERT CAMUS: O ABSURDO
2.1 O trágico
Marly inclinou-se ao trágico, especialmente, àquele que
Camus nomeou como absurdo. Implicitamente, a poeta preenche suas
obras com a filosofia camusiana e com outras formas filosóficas do trágico.
Logo, pode-se dizer que a autora faz de sua poesia fonte de nutrição ao
sentimento do trágico.
Verdadeiramente, de tempos em tempos, o retorno ao
tema da tragédia e do trágico. A tragédia, que traduz a mudança de
propostas políticas e legislativas na antiga Grécia, reencontra espaço a partir
de seu fruto, o trágico. Apesar de várias mudanças quanto à perspectiva de
análise, o trágico se espalha pela modernidade de várias maneiras.
O trágico assumiu, na modernidade, sinônimo de
ocorrência desastrosa, catastróficas, eventos tristes. Acontecimentos de
grande extensão tanto em vítimas quanto em abrangência são batizadas por
tragédias bem como massacres e chacinas. Em um âmbito particularizado, a
perda de algo estimado, de uma pessoa, seja por morte violenta ou não,
25
perdas em geral, ocorrências tidas como “ironias do destino” também se
caracterizam acontecimentos trágicos ou tragédias.
Os meios de comunicação m verdadeira filia pelas
palavras “tragédia” e “trágico”. Perdeu-se a “forma” da tragédia e a acepção
originária, mas ficou o espírito dela transformado em modo de existência,
em filosofia. Por isso:
nomear o trágico significa de imediato assumir o risco do
labirinto, cair em uma rede de incertezas, ser levado através
de um dédalo a procurar até mesmo lingüisticamente figuras
recompositivas de um conflito [...] que apazigüem
temporariamente o perturbante contato do extremo
(VECCHI, 2001, p. 113).
Segundo Finazzi Agrò e Vecchi (2004), o trágico não mais
se percebe somente como uma encenação, tornou-se pensamento e forma
de se pensar. A experiência universal da dor, do conflito extremo constitui
a modernidade.
Para Staiger (1974), o trágico se manifesta como o
desmoronamento de uma situação plenamente estável e confiada. Em
outras palavras “quando se destrói a razão de uma existência humana,
quando uma causa final e única cessa de existir, nasce o trágico [...], no
trágico a explosão do mundo de um homem, de um povo, ou de uma
classe” (STAIGER, 1974, p. 147).
Para Vecchi (2004), o conflito entre as realidades
permanece na impossibilidade de um acordo de paz. Staiger (1974, p.148)
menciona que “o trágico [...] não frustra apenas um desejo ou uma
esperança casual, mas destrói a lógica de um contexto, do mundo mesmo”.
Chega-se, dessa forma, à mudez sobre o real, à impossibilidade de
expressão, ao calar que alcança o extremo através da morte. Mas, mesmo
assim, o impasse não se resolve porque:
26
o conflito moderno é assim destinado a manter-se aberto,
contradição flagrante que não se fecha e não se resolve. A
escrita configura formas que, porém, sendo destinadas à
insuficiência, devem por força investir nas mesclas, nos
ornatos, nos artifícios, para costurar algum sentido no
tecido dilacerado do trágico [...] Desse ponto de vista, a
forma trágica configurável mostra essencialmente a
insuficiência de qualquer forma trágica. No entanto é um
vazio[...] que deixa os restos de uma presença que foi
tentada e não vingou, sinal de um esvaziamento, de um
era que é, na sua irrepresentabilidade, pensamento ausente
mais do que ausência de pensamento (VECCHI, 2004,
p.123).
Houve o declínio da tragédia devido a sua inadequação.
Modernamente não se pode criar tragédias moldadas pelas antigas. Não se
têm mais homens inteiros como os heróis da epopéia, o homem moderno é
multifacetado. “No trágico moderno a realidade histórica vai substituindo o
mito, o que implica como foi observado que na tragédia clássica é o mito
que representa o material da realidade” (apud. VECCHI, 2001, p. 119-20).
Assim, mesmo com alguns elementos trágicos “atualizados”,
atrás da reciclagem de signos próprios da tragédia, se
delineia uma preocupação que se inflete na tentativa de
recortar formas trágicas de uma modernidade irredutível à
mediação racional, à conciliação pacificadora que o
‘Aufhebung’, apesar da colisão que também inclui, de fato
subentende. O conflito fica em aberto, exposto em suas
bordas cortantes, à procura de uma forma trágica que possa
dar conta dele em todo o seu porte (VECCHI, 2004, p.
120).
À procura de formas, de acordo com Mulinacci (2004), o
trágico acabou por se adaptar a forma literária escolhida para se manifestar,
desligando-se, assim, do conceito puro de tragédia, pautando-se mais na
fenomenologia literária do mesmo.
27
O trágico não pode ser pensado através [...] de uma
reconciliação racional, mas da exposição dos extremos” (apud. VECCHI,
2004, p.115). Para Mulinacci (2004, p.162), a tragédia deve ser tomada
“como modalidade de apreensão artística do espírito trágico” em um
âmbito geral. Ao se tentar escrever, continua Mulinacci, pretende-se expor
justamente “aqueles conflitos que se agitam no interior da realidade
moderna e de que o sentido do trágico se alimenta”.
Pode-se dizer que na concepção moderna, o trágico é o
conflito apresentado como chaga. Compara-se, de certa maneira, o herói da
tragédia grega e a pessoa comum moderna: a vontade, para ambos, não se
modificou ao longo, de mais ou menos, vinte e cinco séculos. Se para o
herói não havia “vontade”, visto que esse pensava agir por sua escolha, mas
não o era; hoje, não obstante, a vontade recobra esse valor, ou seja, não se
pode falar em vontade pertencente à pessoa comum, personagem desse
ambiente trágico construído e mantido, por exemplo, pelo sistema
econômico, pela questão margem e centro, a melancolia, o não-sujeito.
Ainda mais, no Brasil que:
esse fenômeno assume um relevo ainda maior, portanto
mais trágico, em um contexto periférico que atravessou a
experiência colonial, onde as formas foram em geral
oriundas de outros contextos e a vida muito mais irredutível
pelas palavras outras: um trágico no trágico (VECCHI,
2004, p.123).
Tem-se, então, “o trágico como dialética” (SZONDI apud.
SÜSSEKIND, 2004, p.10) para vida, para as relações interpessoais.
Tropeça-se, assim, em outro obstáculo: o indivíduo. Na tragédia antiga, o
fato de se elevar o indivíduo em detrimento da comunidade, desencadeava
todo o processo da tragédia culminando, geralmente, com a morte do herói.
O grande óbice, atualmente, é delimitar, individualizar as pessoas, para que
28
sejam realmente indivíduos. “Na modernidade [...], é cada vez mais difícil
calcular a medida do indivíduo, uma vez que a própria noção de ‘si mesmo’
já parece melancolicamente anacrônica” (STERZI, 2004, p. 108).
A atual conjuntura social valoriza tudo e todo aquele que
detentor de certo poder, status quo, junto dela proclame convincentemente
que não o porquê do trágico. Em contrapartida, várias pessoas, em sua
privacidade e, na grande maioria, em vasta miséria sofrem a tirania desse
grupo e sentem todo o peso da realidade trágica. Assim, para amenizar o
despotismo uma máscara cômica que a sociedade usa. Exatamente o
antitrágico. Para Adorno:
Todos podem ser como a sociedade todo-poderosa, todos
podem se tornar felizes desde que se entreguem de corpo e
alma, desde que renunciem à pretensão de felicidade. Na
fraqueza deles, a sociedade reconhece sua própria força e
lhes confere uma parte dela. Seu desamparo qualifica-os
como pessoas de confiança. É assim que se elimina o
trágico. Outrora, a oposição do indivíduo à sociedade era a
própria substância da sociedade. Ela glorificava ‘a valentia e
a liberdade do sentimento em face de um inimigo poderoso,
de uma adversidade sublime, de um problema terrificante’;
Hoje, o trágico dissolveu-se neste nada que é a falsa
identidade da sociedade e do sujeito, cujo horror ainda se
pode divisar fugidiamente na aparência nula do trágico
(ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 144).
Essa “aparência nula do trágico” esconde a real situação de
alienamento e descrença da maioria da população que, enfeitiçada pela
facilidade com que é proposta a vida, deixa–se levar. Gumbrecht (2001)
relata que na modernidade não há mais paradoxos. descomplicação
acerca de tudo:
Encontramos, confrontados com um espaço público quase
completamente tragicofóbico [a anulação do trágico
levantada por Adorno] e uma esfera privada
29
freqüentemente tragicofílica. As sociedades
contemporâneas certamente fornecem instrumentos
poderosos de desparadoxificação, ou seja, instrumentos que
lhes permitem remover todo e qualquer potencial de
tragédia do espaço público. [...] Há realmente toda uma
indústria, altamente diversificada (e cada vez mais global),
que oferece [...] artifícios de desparadoxoficação que evitam
a tragédia [...] Você está convencido de que é ‘uma mulher’,
a despeito de seu corpo masculino? Uma cirurgia transexual
vai fazê-lo sentir-se bem melhor. [...] mesmo para quem não
pode pagar essas técnicas, o que antes era uma ‘situação
trágica’ passou a ser um problema prático de criar para si
uma história de crédito e de encontrar o mercado de
dinheiro apropriado. A única limitação ‘trágica’ que ainda
não desapareceu é realmente a morte (GUMBRECHT,
2001, p. 15-6).
A “desparadoxoficação” recai sobre o poder do dinheiro.
Diante da situação apresentada, não necessidade de crise de nenhuma
ordem, porque tudo se apresenta como comprável, inclusive, a decência.
Ninguém precisa furar os olhos porque cometeu algo hediondo, mesmo
sem saber, como Édipo. Hoje, a cegueira domina.
Aliás, o cego bem como a cegueira perfazem a ambigüidade
trágica. Na tragédia antiga, o homem tomado pela cegueira, daímōn (delírio,
loucura) não possui noção exata de seus atos. Passado esse momento, ele
enxerga a desgraça em que está. Por outro lado, existe, envolto por certo ar
místico e surpreendente, a figura do cego que tudo vê, personificado por
Tirésias, o mais afamado vidente, seguido por Cassandra e outros.
Ginzburg (2004, p. 92-3) levanta duas maneiras para se abordar a cegueira,
numa reflexão teórica e estética. Apesar de ser um assunto muito difícil:
ele pode ser tratado em pelo menos dois aspectos. O
primeiro é em uma abordagem mais indireta, pensando a
cegueira como metáfora. Nessa linha, tomando as
referências da tradição, a representação da cegueira é
associada conotativamente aos limites do conhecimento, à
30
ilusão, à incerteza. O segundo, ainda mais delicado, consiste
em pensar a cegueira não como metáfora, mas como uma
forma específica de experiência, caracterizada pelo limite,
pela exposição do ser humano à fronteira do inumano, da
incomunicabilidade, da impossibilidade de viver senão em
uma condição trágica.
Têm-se as duas maneiras: pessoas relegadas ao inexprimível,
pessoas massificadas. Não é mister perfurar os olhos e sair a vagar, porque,
conscientemente, faz-se atrocidades contra uma nação toda, e ainda
possibilidades de justificá-las, livrando o praticante de qualquer julgamento
efetivo. Esse não se interessa pelo impacto que sua atitude poderá causar
nos outros, está preocupado em sair ileso. Parece que, realmente, a ilusão
do progresso e da felicidade para todos esmeram-se em camuflar a face do
trágico. Atos de uma sociedade tragicofóbica. Gumbrecht (2001, p.18),
explicita que:
o sentimento aqui em questão não é igual a nos expor’ ao
pensamento e à visão das tragédias dos outros e às mortes
dos outros. Na verdade, gostamos mesmo é de vê-los sofrer
e morrer. A razão desse desfrute, seria ela de cunho
altamente ou puramente estético? A saber que, mais
ainda que os espectadores das tragédias de Sófocles,
estamos vivendo num espaço público e numa esfera privada
onde absolutamente tudo é suposto como sendo
‘negociável’, o que significa que tudo é suposto como sendo
contingente, ou seja, nem necessário, nem impossível.
As palavras de Gumbrecht reforçam que, quem quer
detenha o poder, inclua-se o poder de compra, fará valer sobre quem não
detém ou não resistir. O jogo de “aparência X essência” nunca desapareceu.
um trágico nulo aparentemente, porque a encenação desse perdura na
sutil troca de máscaras, na ribalta das relações sociais, na ironia cortante, na
máscara cômica que esconde a face trágica do real, em favores devidamente
31
recompensados, em atos que visando o bem pessoal, não lembram em nada
a preocupação com o coletivo, como na tragédia antiga:
Em um tempo em que o supremo valor e derradeira meta
dos mais poderosos indivíduos humanos se tornaram
‘sobreviver politicamente’ (e acho que havia algumas razões
para admirar esses indivíduos por fazê-lo), talvez não
possamos deixar de ter saudades dos heróis capazes de
morrer elegantemente pelo menos no palco
(GUMBRECHT, 2001, p.18).
Diante dessa “exposição de extremos”, a literatura tenta se
situar. Esforça-se para exprimir o que não é exprimível: os paradoxos que
mantêm o trágico, que se tornou ontológico. Às vezes, alguns literatos não
conseguem isso, construindo cenas horrendas, não trágicas, como observa
Pfeiffer (2001, p. 62):
Em todo o caso, chama a atenção o fato de que na literatura
européia desde o século XIX quase não mais formas de
catástrofe e de fracasso que se designariam como trágicas. A
literatura tem grande dificuldade de conferir grandeza e
inexorabilidade a conflitos entre indivíduos e a sociedade.
Talvez a literatura que conhecemos em forma de livros não
seja, ‘per definitionem’, uma mídia para a tragicidade.
Talvez ela utilize a aparência do trágico para sugerir
perspectivas da complexidade cognitiva e emocional pela
qual somos assoberbados no cotidiano.
Todavia, que se levar em conta que não forma
definida do trágico. Outro fator preponderante e abordado, a questão da
ascensão burguesa e o surgimento do romance que traz “a catástrofe
anestesiada [por um] ritmo envolvente” (MULINACCI, 2004, p. 170-1).
Apesar das divergências, a literatura aborda as sombras da
vivência e “ao falar da sombra, afirmam-se a insatisfação com o que existe e
persistência naquilo que fica por dizer. Configura-se uma poética trágica”
32
(LINS, 2004, p. 65). Não obstante, a escrita literária reflete o sujeito
dissoluto: “dividido entre uma unidade que não o contém e uma
multiplicidade que o dispersa” (MULINACCI, 2001, p. 166). Passa a expor
as indecisões, as contradições infinitas do mundo moderno, “[os] conflitos
insolúveis que permanecem como tais, interiorizando-se na consciência do
indivíduo como aporia intrínseca à condição dele” (idem).
Os exemplos literários que possuem marcas do trágico,
podem ser colhidos na literatura brasileira. Vecchi (2004) aponta para Os
Sertões - Euclides da Cunha, Canaã- Graça Aranha, A esfinge - Afrânio
Peixoto. Finazzi-Agrò (2004) lançou trabalhos a respeito do trágico em
Grande Sertão: Veredas Guimarães Rosa. Sanseverino (2004) aponta em
Drummond marcas do trágico. E há outros mais por serem analisados.
Após essa visão do trágico moderno, pode-se eleger alguns
pilares que o sustentam: a ambigüidade, o paradoxo, o sujeito tentando
o ser —, a massa contra poucos, a perda, a essência e a aparência, o conflito
aberto. Pode-se sentir que as engrenagens da máquina-mundo estão em
atrito intenso.
É desse atrito que Camus falará em suas obras. Para ele o
trágico chama-se absurdo e é nesse meio, em que o mundo cala-se diante
do apelo, do desespero, que Camus ratificará a necessidade de viver.
Expondo idéias um tanto paradoxais, Camus afirma e se questiona sobre
“onde está o absurdo do mundo? Será esse esplendor ou a lembrança de
sua ausência? Com tanto sol na memória, como pude apostar no absurdo?
Espantam-se em volta de mim; eu também me espanto, por vezes [...] Falar
dele, em suma, vai levar-nos novamente ao sol”.
Marly de Oliveira sensibiliza-se igualmente com o desajuste
moderno. Ao tentar exprimi-lo, Marly revela traços camusianos em sua
obra.
33
2.2 Os dois autores
O trágico camusiano é bastante perceptível em obras de
Marly de Oliveira. Esse traço filosófico em Marly é sentido especialmente a
partir de Contato (1975), sua quinta obra. Albert Camus revela o sentimento
do trágico, pode-se considerar, desde seus primeiros escritos como, por
exemplo, O Avesso e o Direito (1995).
No livro em questão, Camus apresenta cenas da vida
comuns carregadas de ironia, dor, sofrimento e angústia. Prima por
descrições às vezes tocadas pelo veio Naturalista, devido ao asco que certos
detalhes chegam a provocar. Segundo Guimarães (1971, p. 32), “o livro é
um poema de morte e solidão, confrontadas com a luz do mundo [...] Parte
do [livro] é como uma ilustração do ser-para-a-morte de Heidegger. A
morte deixa de ser último fato, e é [...] estrutura permanente de nosso ser.”
Apesar de escrever tais histórias ainda muito jovem, Camus
deixa implícito o que irá nortear seus escritos posteriores, especialmente, o
fato de viver, o valor legado a isso, mesmo em condições não muito
agradáveis e a grande mudez do mundo frente aos apelos humanos. Quilliot
(apud. GUIMARÃES, 1971, p. 48) argumenta que “é o grito da carne e dos
sentidos que ele [Camus] escuta, sempre recomeçado e cada vez único”.
Marly de Oliveira constata a crueldade mundana a partir de
sua quinta composição, Contato (1975). Este marca o início da caminhada
através das agonias humanas frente a um ambiente hostil e silencioso.
Entretanto, Marly demonstra claramente a influência exercida por Camus
em Invocação de Orpheu (1979). Nele, a questão do Absurdo é extremamente
34
arrolada, especialmente da maneira como Camus tratou do assunto em O
Homem Revoltado (1963), Bodas em Tipasa (1964) e em O mito de Sísifo (2007).
Sísifo é visto por Camus como um herói absurdo, porque é
consciente de seu infindável castigo: rolar eternamente uma pedra ao topo
da montanha e quase alcançando o topo, a rocha rola ao do monte.
Orpheu parelha-se a Sísifo. Fora as diferenças, Orpheu obstina-se por viver
e reviver Eurídice, mas perde a esposa para sempre e ganha a morte ao
prenúncio de conseguir a façanha.
Em O mito de Sísifo, Camus apresenta indícios do que para
ele é o Absurdo: “o absurdo comanda a morte” (CAMUS, 2007, p.22). O
filósofo é plenamente a favor da vida e acredita que nada, nenhuma
moralidade justifica as “matemáticas sangrentas que ordenam nossa
condição” (CAMUS, 2007, p.30). Por outro, se nada é capaz de justificar
uma convivência desumana, o suicídio, apesar da situação miserável, não é
saída nem solução para o absurdo.
Segundo Camus (2007), uma das maneiras do nascimento
do absurdo se dá quando o homem inicia a busca por respostas ou por algo
que lhe preencha e que não é encontrado. “Se expressar aquele singular
estado de alma em que o vazio se torna eloqüente [...] em que o coração
procura em vão o elo que lhe falta, ela é então um primeiro sinal do
absurdo” (CAMUS, 2007, p. 27).
Camus reconhece que o homem é um ser naturalmente
contraditório. Mas uma das piores contradições humanas é viver esperando
pelo amanhã. Afinal a efemeridade espreita a vivência humana e é bastante
provável que não se alcance o futuro para realizar algo planejado. Sendo
assim, o filósofo valoriza o viver um dia por vez, realizar hoje o que puder.
Camus exprime o conceito do Carpe diem.
35
Se recuso obstinadamente todos os ‘mais tarde’ do mundo,
é porque se trata em verdade de não renunciar à minha
riqueza presente. Não me agrada acreditar que a morte se
abre para outra vida. Para mim é uma porta fechada. Não
digo que é um passo que cumpre dar e sim que é uma
aventura horrível e suja (CAMUS, 1964, p.18).
Entretanto, o pensador reconhece que o mundo escapa à
compreensão humana. “O mundo nos escapa porque volta a ser ele
mesmo. Aqueles cenários disfarçados pelo hábito voltam a ser o que são.
Afastam-se de nós” (CAMUS, 2007, p. 29). O homem seria capaz de
entendê-lo se pudesse torná-lo humano, familiar. Justamente por não ter
essa capacidade, é que contradições entre o que um instante lhe era
próximo e agora não.
Camus resgata, assim, o jogo entre aparência e essência
associando-o ao pensamento absurdo. Dessa forma, torna relativa a
verdade, porque “com exceção dos racionalistas profissionais, desistimos
hoje do verdadeiro conhecimento” (CAMUS, 2007, p. 32). Não verdade
absoluta perante ao pensamento absurdo. Quanto ao homem, o filósofo
afirma que “não é tão fácil a gente tornar-se o que se é, reencontrar sua
medida profunda” (CAMUS, 1964, p.09). Por outro lado, “não
fronteiras entre o que um homem quer ser e aquilo que é” (CAMUS, 2007,
p. 93).
Então, o que mantêm os opostos: mundo e homem,
aparência e essência; dialeticamente unidos? Segundo Camus (2007), seriam
os laços de ódio, pois “o absurdo depende tanto do homem quanto do
mundo. Por ora, é o único laço entre os dois. Ele os adere um ao outro
como só o ódio pode juntar os seres” (CAMUS, 2007, p.35).
Mesmo assim, pior que uma vida absurda é não ter vida, ou
seja, apesar de o mundo se prostrar mudo diante da fala humana, pior é
deixar de nele existir. Sabe Camus que “o destino humano processa-se na
36
oposição e exige coragem” (GUIMARÃES, 1971, p. 32). Assim, o suicídio
encarado por Camus como o grande problema filosófico, pelo menos na
modernidade, é visto como uma fuga covarde e imprópria.
Se o trágico constatado é a própria realidade, a fuga do
trágico é a fuga da realidade. Logo, é suicídio. O suicídio é a
fuga da confrontação entre os dois termos que realizam o
absurdo. Não é só a morte que me dou, negando a
consciência, mas é também a concordância com o real, a
procura de justificação, no irracional, para a realidade
(GUIMARÃES, 1971, p. 58).
Percebe-se a ação imprópria do suicídio, quando se
visualiza o absurdo como um despertador, que tem por função acordar o
homem da alienação que sofre. Não é o fim, mas o início, pois a partir do
momento em que ele percebe sua condição medíocre e maquinal,
impulsiona-se por modificá-la. Assim, surge o absurdo.
Sendo o absurdo a atitude contrária a toda forma de
resignação, eis porque Camus recusa a esperança. Aquele tipo de esperança
que consiste em aguardar a melhora de algo futuramente. Também em
acomodar-se com tal espera, “pois a Esperança [...] equivale à resignação. E
viver não é resignar-se” (CAMUS, 1964, p.33).
O absurdo é justamente o não acomodar, não esperar pelo
futuro nem se resignar. O absurdo é ação contra um estado de coisas
tacitamente aceitas que geram alienação, morte, violência e exploração de
inocentes. Enfim, é escolher realmente por uma forma ativa de vida. “Há o
bem e o mal, o vencedor e o vencido [...] mas mudar as coisas de lugar é
tarefa dos homens é preciso escolher entre fazer isso ou nada” (CAMUS,
1964, p. 65/69-70).
Camus considera a vida somente na Terra, pois nesse
“grande templo que os deuses desertaram, todos os meus ídolos têm pés de
37
barro” (CAMUS, 1964, p.47). Não cabe esperar por uma providência divina
nem aguardar por uma vida celestial que recompense os sofrimentos
terrestres, pois “os deuses desertaram” a terra. Segundo Guimarães (1971),
é impossível negar o mal, em uma atitude agostiniana, pois ele se faz
presente como uma realidade irrefutável. “A lucidez exige a aceitação do
mal, mesmo que implique na rejeição da divindade.” (GUIMARÃES, 1971,
p.33). Dessa forma, cabe ao homem desejar saber de seu caminho.
E esse é, ao mesmo tempo, seu grande pecado,
assemelhado ao de Édipo. Desejar saber, “este justamente, é o único
pecado do qual o homem absurdo pode se sentir ao mesmo tempo culpado
e inocente” (CAMUS, 2007, p. 61-62). Mas o mal, que é também a dor da
solidão e morte, coloca o homem diante de si. Percebe-se então que o mal
provém do próprio homem (GUIMARÃES, 1971). Resta ao homem
superar esse entrave. Dessa forma, “a grande tarefa camusiana é a da
superação do absurdo, o que não quer dizer sua eliminação”
(GUIMARÃES, 1971, p. 34).
Assim, o absurdo configura-se como escolha consciente
pela vida. Mesmo não agradável, é preciso amá-la. Tem-se uma esperança
de enfrentamento à situação de abandono quando se opta pela vida. Essa
constituída livre de símbolos e convenções. Daí Camus (1964, p.51/ 46/72)
afirmar que:
Para compreender o mundo, é preciso por vezes afastar-se
dele; para melhor servir os homens, mantê-los durante um
momento à distância [...] Sentimos que se trata no caso de
empreender a geografia do deserto. Mas esse deserto
singular é sensível aos que são capazes de nele viver sem
jamais enganar a sua sede. É então, e então, que ele se
povoa das águas vivas da felicidade [...] a inocência precisa
da areia e das pedras. E o homem desaprendeu de viver aí.
38
A necessidade de distância relaciona-se à vida livre de
convenções e simbologias. É necessário tomar distância e recorrer, até
mesmo, à aridez a fim de que se torne visível a situação alienadora e de
desamparo, na qual os homens vivem. Quiçá, recuperar a essência da
existência sem maldade, violência, morte. Essa, especialmente, é o grande
obstáculo à felicidade ôntica humana.
Marly também recorre ao deserto para provar do amor e de
bons sentimentos: na solidão/ tão árida do deserto/ é que se prova a
esperança” (OLIVEIRA, 1988, p.75). É da esperança camusiana que Marly
se refere, não a esperança que aguarda simplesmente, mas que age para que
algo aconteça. A poetisa compartilha do fato de que, vez ou outra, faz-se
necessário despojar-se das coisas para alcançar algo melhor nesta existência.
Camus (1964, p. 41/42) ao relatar sobre homens religiosos
que abnegam riquezas e optam pela pobreza, justifica a opção ressaltando
que “esse esplendor do mundo [...] parecia-me que era como a justificação
daqueles homens [...] Se se despojam, é para uma vida maior (e não para
outra vida)”. Camus (2007, p.106) afirma ainda:
A imaginação pode acrescentar muitos outros, ancorados
no tempo e no exílio, que também sabem viver à medida de
um universo sem futuro e sem fraqueza. Este mundo
absurdo e sem deus é povoado então por homens que
pensam com clareza e não esperam nada.
Percebe-se que Marly de Oliveira comunga das idéias de
Camus. O paradoxo, a contradição, a inexistência de uma entidade superior
capaz de salvar os humanos da mudez e crueldade instalados no mundo.
Todos esses princípios são vistos em suas poesias a partir de Contato e
perpetuados nos livros ulteriores. Camus imprime uma ideologia muito
forte em Marly. Como o filósofo, Marly acredita e deixa essa idéia em seus
poemas que “só uma ação útil, aquela que recriaria o homem e a Terra.
39
Eu jamais recriarei os homens. Mas é preciso pensar ‘como se’” (CAMUS,
2007, p. 102). Por isso, Marly insiste tanto na necessidade de mudança, de
perspectiva diante do mundo.
Tanto a mudança de atitude quanto assumir que o homem é
feliz ontologicamente é preciso. Camus ressalta que “não vergonha em
ser feliz. Mas hoje o imbecil é rei, e chamo imbecil aquele que tem medo de
gozar” (1964, p.11), porque para ser feliz, é necessário trazer dentro si a
revolta. Revolta que se prostra contra tudo que é capaz de ferir, matar e
oprimir o homem.
Marly deixa implícito em suas obras a necessidade de ser
feliz, porém não a demonstra de forma a contemplá-la em seus “enredos
poéticos”. Os eu líricos sempre estão na ânsia de consegui-la. Apesar de
expressões diferentes para a mesma busca, tanto a poeta quanto o filósofo
são unânimes sobre a importância da felicidade para o homem, durante sua
existência terrena.
Mesmo assim, Camus sabe que é “possível a felicidade, mas
existe a morte” (GUIMARÃES,1971, p. 31). Sem dúvida, o maior calar do
mundo à natureza humana. Mas o absurdo disso, “não é esta constatação
da brutalidade [...]. Mas é a constatação violando o meu desejo de vida.”
(idem, p. 32). Não seria absurdo se não houvesse o conhecimento que em
oposição à morte há vida. Daí a necessidade de amar a vida e inteirar-se
dela como um todo, aproveitando, em um casamento perfeito, ao ximo
o que a natureza oferece, passando por cima da dor. Marly também encerra
esse desejo.
Torna-se relevante lembrar que a felicidade humana, tanto
para Camus quanto a Marly, valida-se na medida em que todos os homens
são capazes e podem ser felizes. Entretanto, se um sofre, a felicidade se
extingue também aos demais. Porque, “‘sim, diz Rambert, mas pode existir
40
vergonha em ser feliz sozinho’. Creio que aqui, são enunciadas as palavras
de solidariedade e a razão da revolta” (GUIMARÃES, 1971, p. 40). Daí nos
poemas marlianos, principalmente em Invocação de Orpheu (1979), existirem
vozes em uníssono proclamando e clamando a união dos homens em busca
de seus direitos, em especial, a felicidade.
Pode-se constatar, então, que o absurdo “é um ponto de
partida e não um estado. [...] Transformar um sentimento em estado é
negar qualquer saída e concordar com o que oprime. Fazer do absurdo uma
regra de vida é viver no desespero” (GUIMARÃES, 1971, p.52). Mas,
necessidade de se recorrer à lucidez e essa traz à tona ao homem que a tem,
que ele é perecível e maquinal, pois tem uma rotina infindável, tal como
Sísifo. Assim, qual o sentido a vida tem para esse homem?
Terá algum significado, segundo a ideologia camusiana,
quando esse homem admitir que para viver e chegar a felicidade dessa
vivência, necessita de três verdades: “ausência total de esperança, recusa
contínua do real que se nos oferece e insatisfação consciente.”
(GUIMARÃES, 1971, p.58). Porque o mundo não tem sentido humano.
Não como compreendê-lo. O homem lança seu grito ao mundo
embalde. Ele “não se deixa abarcar pela racionalidade e contraria toda
ordem e clareza que queiramos lançar” (idem, p. 55).
O homem dito absurdo procura, assim, segundo Guimarães
(1971), a relação entre a inteligência que constata a angústia em um mundo
surdo. Essa relação é medida pelo absurdo. Feita tal relação, o homem
absurdo aceita, mesmo que angustiantes, as certezas relativas encontradas.
Num mundo sem sentido, permanece a exigência humana
de sentido. Nada pode ser feito para satisfazê-la. Sou
obrigado a manter o caos reinante, mas este caos, este
inferno, é meu lugar. Assim me imponho frente a uma
realidade que me contraria e frente qual sou impotente. O
41
confronto do homem com a realidade é favorável ao
homem. Ele é o grande inocente.
O homem absurdo tem que viver. Viverá sem apelo, sem
esperança. Outra vez não anulará problema. A tentação
seria a negação da consciência: o suicídio. Porém, um
absurdo que nasceu da consciência tem que viver como
verdade, logo, viver na consciência. É possível viver sem
apelo? (GUIMARÃES, 1971, p. 59-60).
Sim, é possível. Como Guimarães (1971) coloca, tudo
incide na revolta. Ela é responsável por manter o espírito consciente e dar
ao homem a noção da realidade. Mesmo sendo uma negação, a revolta está
plena de afirmação de um outro ponto, de uma perspectiva. Assim, é nesse
ambiente de conflito, mas nunca de desistência, que Camus e Marly de
Oliveira exibem seus escritos.
2.3
A Força da Paixão/A Incerteza das Coisas
e
O Homem
Revoltado
: o amadurecimento do absurdo.
O absurdo, para o próprio Camus, é tido como ponto de
partida. Jamais como fim ou ponto estático. Dele, deve-se partir em busca
de uma análise mais profunda da vida humana. E assim faz Camus.
A revolta aparece como o amadurecimento do pensamento
absurdo. Em O Homem Revoltado, Camus sugere limites a esse pensar, pois o
homem vive no mundo deserdado dos deuses como mesmo afirma o
42
filósofo. Aumenta a iminência de ações desenfreadas e absolutas. Assim, os
limites são necessários não para castrar, mas para direcionar o foco das
idéias resultantes do pensamento absurdo:
As conseqüências absurdas, dizendo que devo viver, não
dizem que não devo matar o outro. A indiferença a que
fomos jogados pode ser assassina. Afirmando-me, sem
afirmar o outro, não estou impedindo de atingi-lo. Os
exemplos históricos são numerosos e as ideologias que não
conseguem pôr os valores humanos, os limites da ação,
matam. O absurdo pode assassinar, mas a revolta salva
(GUIMARÃES, 1971, p. 64).
Sendo assim, percebe-se que o pensamento consegue se
concretizar na revolta que pode ser considerada a prática do pensar
absurdo. A revolta “é a suprema afirmação do homem” (GUIMARÃES,
1971, p. 64), que sabe o porquê de seu desconforto diante do status quo
apresentado e vivenciado.
Segundo Camus (1963, p. 26) “a análise da revolta conduz,
pelo menos, à desconfiança de que existe uma natureza humana”. Sendo
humana, a revolta no indivíduo, incita-o a recuperar algo que lhe
pertence, não o que não possui. A revolta busca afirmar algo que está
desrespeitado (GUIMARÃES, 1971).
Se a revolta concretiza o absurdo, na medida em que lhe
estabelece limites, acerta-lhe o foco de luta. O indivíduo revoltado é
incapaz de ser egoísta, pois se o fosse, segundo a óptica camusiana, não
seria um revoltado. Ele é filantropo. Importa-se com o desejo humano em
geral. Se grita, ele o faz por todos os homens.
Dessa forma, não espaço para nada que indique o
absoluto, porque esse margem à injustiça. “O diálogo revoltado é a vida
opondo-se ao monólogo da injustiça. A injustiça se realiza através do
monólogo e, desde que haja necessidade de monólogo, a injustiça está
43
presente” (GUIMARÃES, 1971, p. 67). Mesmo que esse discurso seja em
prol da absoluta justiça.
Destaca-se então que tudo o que tenha um caráter absoluto
será considerado por Camus, algo mentiroso, mascarado. A revolta busca a
liberdade humana para ser feliz e ter consciência de seus passos. Ela
pretende que o homem não caia nas três supremas injustiças que se
expressam por monólogos, a saber: “Opressão, mentira e terror”
(GUIMARÃES, 1971, 67). Assim, Camus aponta para o relativismo. A
revolta afirma-se no relativo. “Nenhum homem estima sua condição livre,
se ela não é justa ao mesmo tempo, nem justa se não é livre” (CAMUS,
1963, p. 349).
O revoltado, em Camus, tem um princípio simples a seguir:
“não aceitar o injusto, recusar a criação, contestá-la todo momento.
Afirmar o homem, afirmar o direito à justiça e à felicidade, é a tarefa do
revoltado” (GUIMARÃES, 1971, p.69). Mas, tudo dentro do relativo, pois
o excesso caracteriza o absoluto.
Em toda sua obra, a partir, de Contato, Marly de Oliveira
segue o preceito acima citado. Ela jamais aceita o injusto, ao contrário,
contesta-o a todo instante e recusa a criação. Esse último é bastante
polêmico, pois há a renúncia, novamente confirmada, de Deus, como
criador. A verdade dessa recusa feita por ambos, Marly e Camus, pauta-se
no desprezo que Ele relegou ao mundo. Se o amasse, não deixaria tanta dor
permanecer. Em A Força da Paixão e em A Incerteza das Coisas, Marly
corresponde ao pensamento camusiano:
O deus que nasce é contumaz
merecedor de fé. Não é perverso
como dizem as más línguas,
nem tão bom que não permita
mil crianças morrendo em seu lugar
44
— destino inescrutável.
(FP, p. 42).
Tudo é fruto do arbítrio
de um implacável Deus
que segundo nos dizem
quer nosso bem, e, pois nos ama
de forma tão tortuosa e tão cruel.
(IC, p.92)
Conforme Guimarães (1970), se o revoltado não chegar à
inexistência do Ser criador, chegará invariavelmente ao antiteísmo, pois a
existência de tanto horror aos humanos, faz com que Deus perca sua glória.
Mas, o fato de Deus não existir, revela a opção pelo humano. Assim, o
ateísmo aparece, na verdade, como uma forma de salvar o Criador de
qualquer questionamento, inclusive sobre sua existência.
O indivíduo revoltado, mediante tal constatação, vê-se só.
Mas, isso encerra toda uma responsabilidade que ele tomou para si, pois
“sem Deus e sem regras absolutas, o homem é plenamente livre. A
responsabilidade que antes pertencia à divindade [vista como uma situação
trágica, porque o homem esà mercê das vontades supremas], com sua
morte passa a ser do homem” (GUIMARÃES, 1971, p.73). Portanto,
continua Guimarães, o homem inteira-se de que “a liberdade exige o
estabelecimento de limites normativos da ação: a ausência da lei não é
liberdade”. O homem deve, definitivamente, “considerar-se como uma
fatalidade, não querer se fazer de outro modo do que se é” (CAMUS, 1963,
p. 95).
Os dois poetas, em suas obras, buscam mostrar aos homens
quem são e como a humanidade é. Para isso, tecem seus textos com um fio
base: o calar do mundo diante da súplica humana. O mutismo traduziria ou,
pelo menos, abordaria o conceito de trágico trazido por ambos, pois “toda
mudez é separação” (GUIMARÃES, 1971, p.67), mas seus escritos buscam
45
a união e a felicidade humana. Assim, a ação de enfrentamento mostra-se
como possível solução, diante da condição de vida:
E foi assim que dei de rosto
com a humana desventura,
preferindo sucumbir
a essa chama interna e pura
a ter por bem assentado
o entendimento do mundo,
ou melhor, a sua fábula,
o esplêndido banquete
para a curiosidade
de artífices, capitães,
reis, filósofos, teólogos
que andam atrás da verdade
como uma pessoa viva,
uma pessoa que exista
com carne, osso e coragem
(Oliveira, 1988, p.53).
Marly de Oliveira, “de carne, osso e coragem”, irá atrás da
verdade humana em seus poemas. É o grito da carne que a poeta ouve e
exprime em Contato, Invocação de Orpheu, A Força da Paixão e A Incerteza das
Coisas. Neles, tem-se o homem absurdo e revoltado que se importa com os
outros, busca a união entre os feitos de barro e deserdados pelos deuses.
Marly está no encalço da consciência que alerta para a vivência alienada e
salva pela revolta e pelo amor.
46
O ABSURDO NA POÉTICA DE MARLY DE OLIVEIRA
3.1
Contato
Contato (1975) pode-se considerar como obra-transição na
poética de Marly de Oliveira. Explicação de Narciso (1960), O Sangue na Veia e
A Vida Natural (1967) já trazem gérmens do que se radicalizaria e se
concretizaria em Contato e poesias ulteriores. A obra revela-se construída
por paradoxos e antíteses baseados em um forte refletir filosófico sobre o
existir. Marly consegue aplicar nesse livro a “função da linguagem como
‘sentido’ de algo que [...] escapava” (OLIVEIRA, 1997, 242). A objetividade
sustentada até A Suave Pantera torna-se um falar contemplativo sobre a
efemeridade, o estado de coisas, o que é real e aparência.
Contato marca a mudança do olhar de Marly sobre a vida e
as coisas, nem por isso menos amorosa, mas falta o encanto. Percebe-se
que a partir desse contato real do mundo, a poeta lança um olhar mais
reflexivo, muitas vezes contraditório, mas direcionado a discernir o que
realmente são aparências do real e o que é real. Vale ressaltar que:
47
O termo reflexão não deve ser entendido como simples ato
de pensar, mas como uma ‘atitude’. A reflexão é uma
atitude de prudência da liberdade humana, face às
necessidades das leis da natureza. Como bem o indica a
palavra ‘reflexio’, isto é, inclinação para trás’, a reflexão é
um ato espiritual de sentido contrário ao desenvolvimento
natural; isto é, um deter-se, procurar lembrar-se do que foi
visto, colocar em relação a um confronto com aquilo que
acaba de ser presenciado. A reflexão, por conseguinte, deve
ser entendida como uma tomada de consciência (JUNG
apud. BRANDÃO, 2007, p.183).
E essa “atitude”, às vezes em demasia, como o caso de
Orpheu, suscita uma nova regência para esse livro e para as obras
posteriores, principalmente Invocação de Orpheu. Segundo Guimarães (1971),
a obra camusiana pode ser dividida em três planos que abrangem a
sensibilidade, a razão e a ação. Marly, a partir de e com Contato, ratifica sua
sensibilidade, mas abre espaço explícito à razão com indícios a uma ação
efetiva.
Se para Camus (apud. GUIMARÃES, 1971), o contato dos
homens com o mundo anularia as desigualdades revelando laços fraternos e
solidários para Marly, esse toque mais aprofundado, torna nítido o jogo
aparência x essência que rege o mundo. Somente em obras vindouras,
Marly abordará o sentimento de união transmitido por Camus. Por isso,
Contato parece ser “o mais hermético dos livros” (MELO NETO, 1994,
p.08), enquanto para Marly de Oliveira:
‘Contato’, eu disse e reafirmo, é ‘la recontre manquée’
que fala Lacan. É o meu fracasso diante da opacidade do
outro ou da minha vontade de transparência. Pensar a
emoção fez da linguagem um sistema, ao que tudo indica,
48
pouco acessível, pois aquilo que estrutura o discurso é o
mesmo que se faz existir através dele (1997, p. 243).
O poema está divido em vinte e sete poemas. Como já dito,
a poeta concebe o poema como algo a ser desenvolvido sob o mesmo
tema. Marly de Oliveira através de paradoxos como “o ouro volatiliza-se”
(OLIVEIRA, 1975, p.21)
2
, constrói imagens de seu contato consigo
mesma, com o mundo, com o outro:
Aspiro à desistência
para chegar à firme realidade
do que já é , embora o rio siga
seu curso, e minha vida
não tenha mais que o amor que ainda a resguarde
(p.14).
Apesar de dizer: “nem sei a que vim” (p.11). Uma constante
a partir dessa obra, Marly encarrega-se de descobrir a essência das coisas,
destituí-las da aparência enganadora: “Desliga-se o aparente/ do real com
dureza de diamante” (p.25). Mas, dúvidas, tropeços: “Mas como
descobrir a soterrada, / a umbrosa, a que me oprime, a aliciante, / a difícil
verdade sem dolência [...]?” (p.25).
A preocupação com tempo provoca musicalidade em suas
poesias. Marly medeia nas palavras de Nietzsche (2005, p. 45), “a melodia
original que procura agora uma figura de sonho paralela e que a exprime na
poesia”. A efemeridade que tanto aflige o ser humano, deixa-o inseguro
sobre si, no sentido em que não tem certeza quanto ao propósito de sua
existência, se é que há algum fim:
O terrível é o tempo, a minha forma
de não ver o contínuo
2
A partir daqui, todas as citações de Contato, são retirados de: OLIVEIRA, M. Contato. Rio de Janeiro:
Imago, 1975.
49
real, os confundidos no presente
vários tempos que o mesmo tempo forja.
O abranger sucessivo
das coisas, é que impede a minha urgente
vontade de entender o que em mim sente.
De olhos postos na vida e na esperança,
contemplo com espanto esse inclinar-se
de frondes e de sombras
sobre a erva. Sei de mim que sou grave,
e tenho intensidade
sem luxúria, e o sentido que busco
de mim e do que vive é esse profundo
não-saber minucioso de luz vária. (p.15)
O sujeito lírico busca entender sua origem, quem é, através
de um reencontro com a natureza. Apesar de ainda não compreender
exatamente, sabe que esse conhecimento é multifacetado, tocando o
ambíguo. A preocupação do eu lírico retrata a dos homens em geral. O
homem é ávido para desvendar sua origem, seu futuro, mas até o oráculo
fala através de ambigüidade. O destino. O futuro. Quem sabe sobre eles?
Por absconsos caminhos
seguimos desparzidos, prescientes
dos ditames do fado cavilosos,
do querer sempre grato, o sonho infrene,
as iluminações, os desvarios,
insones pensamentos amorosos.
De que vale o que aprovo ou desaprovo?
o insistir nessa mínima verdade
que é ter um corpo, um eu, um certo jeito
de ver e perceber
a sutil, desconexa realidade
que sou e me circunda
para além dessa tão restrita área
de entendimento? Sabe-se a fortuna
boa ou má quando atua? (p. 25)
50
O tempo, tido por Unamuno (apud. Gumbrecht, 2001)
como última fronteira trágica moderna, interfere no situar-se no mundo:
“O contínuo presente, essa falácia/ com que meu iludo e elido/ o
problema maior: o irreversível/ minucioso fluir de tudo” (p.16, poema IV).
Antes, porém o presente era a única certeza, a convergência de futuro e
passado: “o justo convergir/ de futuro e passado nesse eterno/ Presente...”
(p. 13, poema II). O sentimento do trágico não dá certeza perante às coisas.
Acredita-se agir, mas não se é agente e sim, o que sofre a ação. Nessa
ambigüidade, acredita-se optar pelo bem, prende-se a ele com toda alma.
Entretanto, no fim, a bruma se desfaz e o homem desolado se descobre
desde o início manipulado por forças superiores ao conhecimento humano
(VERNANT & NAQUET, 2005).
Tentar escapar dessa manipulação é o desejo de Marly
inspirada em Camus. Mas, não fuga, por exemplo, do maior carrasco
humano: o tempo. Esse é imperdoável. Por outro lado, negar o futuro pela
perspectiva da esperança é justamente a saída mais viável. Deve-se viver o
hoje. Daí Marly, mesmo que paradoxalmente, afirmar que “olhar para trás”,
um gesto bastante significativo, que será melhor abordado em Invocação de
Orpheu, não merece atenção, porque “[...] A memória é um vínculo
imperfeito/ e vão impedimento/ para o livre sentir” (p.13, poema II). Essa
memória liga o eu lírico ao passado cujo é empecilho. Todavia, segundo
Meiches:
[o espetáculo trágico] não perdoa nenhuma inconsciência.
[...] O pretexto da inconsciência ou da ignorância refere-se à
nossa história com suas amnésias que nos possibilitaram
viver. É preciso esquecer para poder viver. Mas é desse
esquecido que o espetáculo trágico nos fala, afirmando que
ele faz parte de nós. (2004, p. 94).
51
A poeta bem sabe disso, por isso sua construção é
paradoxal. Para viver, é necessário olvidar o passado, mas qual a maneira, se
o “ressentido passado, fogo lento/ que inexiste e persiste, / não obstante,
corroendo o presente,/ corroendo o futuro, que é o presente/ disfarçado
em roupagens de não ser” (p.16, poema IV). No movimento trágico da
existência (a)temporal, abordada por Marly de Oliveira, mesmo sendo o
passado inexistente “o desconforto da transitoriedade faz do passado um
assunto que volta” (MEICHES, 2000, p.95). Portanto, não se pode negar
que ele constitui a história da existência humana, influencia o caminho e o
destino a serem percorridos.
O jogo dos contrários feito pelos paradoxos, antíteses,
afirmações e negações também abarcaram o amor. Este marca a trajetória
de Marly de Oliveira, desde o primeiro livro. Amor, ora descrito, num
sentido personificado, como um ser que pode envolver o mundo e as
pessoas, ora sentimento que nutre a pena da escritora.
Nos primeiros livros, antes deste, a autora tenta definir o
amor por diversas vezes, especialmente em O Sangue na Veia (1967). A
partir de Contato, o amor tornou-se meio de resolução à realidade trágica. A
poeta deu-lhe mais uma acepção e o tornou mais contraditório do que já
era: “Minha ausência é amor”. Essa afirmação é uma contrariedade, mas o
sujeito lírico insiste: “O meu amor que pensa/ o incompreensível, nítido/
universo, não busca no imediato fruir, na mera urgência/ de não ser,
o sentido/ das coisas” (p. 11, poema I, grifo meu).
Apesar das contrariedades, o eu lírico explica que sua
ausência é amor, no sentido em que “ausência” é falta de aparência que
integra o duo aparência e essência. Ele afirma que seu amor “não busca o
imediato”, ou seja, o que é facilmente visível, mas a essência, o que de
mais recôndito. O amor que Marly expressa não é de aparências, não serve
52
para manter um status quo, mas sim por ser expressão do que é realmente.
Assim, tanto para Camus quanto para Marly “o amor aparece como uma
verdade no mundo. É ele o grande sim que dizemos à realidade. Amar é
entrar num perfeito acordo com o mundo.” (GUIMARÃES, 1971, p. 26).
[...] embora o rio siga
seu curso, e minha vida
não tenha mais que o amor que ainda a resguarde
(p.14, poema II).
O fino amor que sinto
resiste à fria pedra, à dura gema,
e se exercita na constância da água;
e cresce enigma, absinto,
ora dilui, ora dilata a pena.
Esmorece? edifica? Em forma lenta
permite, e não, o anelado contato
com o que é, sem atrever-se ao mínimo
movimento de entrega.
O gesto volta em ondas para dentro:
tenho o rosto tranqüilo e o peito ardendo.
Mas quem salva do tempo esse passivo
contemplador do amor e do infinito?
(p.15, poema III).
Sendo o amor um “símbolo perfeito” (p. 13, poema II)
Marly descrê na capacidade dos homens, se petrificados, compreenderem-
no. A preocupação com a petrificação do coração humano, devido à
mecanização do homem, claramente abordado em Invocação de Orpheu
(1979), tem seus prenúncios em Contato: “mas como perceber/ sem
fragmentar ou dividir esse acabado/ símbolo e círculo? Eu que sei de
números? (p.13, poema II). Números que têm servido para nomear
pessoas, exprimir a riqueza e a miséria humana. A poeta visualiza a perda
do sentimento de coletividade, fraternidade, solidariedade. Diante disso,
apesar de cativa de um destino ditado pelos deuses e pela modernidade
53
trágica, a voz poética renega toda forma de alienação possível, fato que será
ratificado veementemente em Invocação de Orpheu e obras ulteriores:
Ressentido passado, fogo lento
Que inexiste e persiste,
não obstante, corroendo o presente,
corroendo o futuro, que é o presente
disfarçado em roupagens de não ser.
Tens-me cativa, porém não submissa,
atenta ao desconcerto
de avarias que vão ao infinito,
que não busquei, que aufiro.
(p. 16, poema IV)
54
3.2 Invocação de Orpheu
Lançado em 1979, Invocação de Orpheu continuidade ao
pensar filosófico-trágico pré-anunciado em Contato. Para a poeta:
“‘Invocação de Orpheu’ experimenta a iminência do encontro, vislumbra
uma conjunção que não se realiza. É a nostalgia da completude, a revolta
contra o absurdo de sua impotência diante dos deuses cruéis” (OLIVEIRA,
1997, p. 243).
Se, em Contato, o encontro é perdido (‘la recontre
manquée’), o eu lírico não se encontra no outro nem em si mesmo; em
Invocação de Orpheu aborta-se definitivamente a possibilidade desse contato.
Porque “invocar Orpheu é deplorar a condição humana, pactuar com o
sentido da recusa implícito na sua atitude diante da vida, sempre dada e
retirada sem complacência ou explicação” (OLIVEIRA, 1979, s/p).
3.2.1 O mito
De acordo com Brandão (2000), a origem de Orpheu
remonta à Trácia. Teria sido filho de Calíope. De qualquer maneira,
55
Orpheu liga-se ao mundo da música e poesia. Ao tangir a lira e a cítara, era
capaz de acalmar tormentos, as árvores curvavam-se para ouvi-lo, os
animais selvagens o seguiam e até as pessoas mais iradas sentiam-se
tomadas de bons sentimentos devido à música.
Integrou a expedição dos Argonautas. Comandada por
Jasão que recrutou mais de cinqüenta nobres jovens, como Orpheu, para
integrar a tripulação da nave Argon, a expedição buscava o Velocino de
Ouro, pele do carneiro alado Crisomalo. Jasão precisava desse velocino
para retomar seu reino e resgatar seus primos Frixo e Hele da madrasta Ino.
Iniciado nos mistérios, acredita-se nos dionisíacos, divulgou os cultos em
honra a Dioniso. Era considerado um verdadeiro educador, por isso alguns
povos tinham por ele verdadeira veneração, principalmente, os habitantes
da Trácia.
Quando retornou da expedição, casou-se com a ninfa
Eurídice. Esta, fugindo de um perseguidor, pisou numa serpente que a
picou tirando-lhe a vida. Inconformado, Orpheu vai até Hades, deus dos
Infernos e dos mortos, implorar a volta da esposa.
Com suas habilidades poético-musicais, Orpheu maravilhou
o mundo das profundezas. Os castigos eternos cessaram pelos instantes em
que ele tocou, castigos como o de Sísifo. Destinado a eternamente
empurrar uma pedra enorme até o topo de uma montanha, porém quando
ele quase chega lá, a pedra volta ao pé do monte.
Sensibilizados por aquela prova de amor, Hades e
Perséfone, permitiram que Orpheu resgatasse a esposa para casa, desde
que, durante todo o trajeto, até a saída do Mundo dos Mortos, ele não
olhasse para trás. Porém, a dúvida de que a amada não o estivesse
acompanhando, de que os deuses o enganaram, assolou Orpheu que olhou
56
para trás. Nesse momento, Orpheu vê Eurídice que se esvaiu no ar. O vate
tentou retornar, mas Caronte, o barqueiro do Rio Estige, não permitiu.
Desesperado, Orpheu não quis mulher alguma. Furiosas
pelo descaso, as Mênades (bacantes) esquartejaram-no. Por causa disso, os
deuses enfurecidos lançaram uma peste devastadora na Trácia.
Desesperados, os habitantes foram consultar o oráculo. Esse informou que
para acalmar a ira divina era necessário encontrar a cabeça do vate e
prestar-lhe honras fúnebres. Feito isso, a peste acabou e o espírito de
Orpheu migrou aos Campos Elísios, onde permanece encantando os
imortais com sua música.
Segundo Brandão (2000), no mito de Orpheu, dois
elementos que se destacam como importantes para a sua interpretação.
Primeiramente, “olhar para trás” sempre foi algo visto como sorte.
“Seguir em frente” é enfrentar, descobrir novas coisas, rumar ao futuro. É a
posição que o sol nasce, a luz, o leste, o oriente, o sul, a destra. Rumar à
direita tem a mesma concepção de ir em frente. Liga-se à atividade
masculina.
“olhar para trás” é voltar, retroceder, pender às trevas.
Não se deve retornar ao passado, pois aquilo que foi não pertence mais ao
agora. Significa também o lado esquerdo, o oeste, o norte, o ocidente, a
noite que concebe o dia, por isso o lado esquerdo liga-se também à
feminilidade passiva. Brandão (2000, p. 145) explicita que:
Os pontos cardeais atestam igualmente não apenas a
dicotomia matrilhinhagem-patrilinhagem, mas também o
azar e a sorte, o perigo e a segurança. Talvez, partindo-se do
inglês, as coisas fiquem mais claras: ‘West’, ‘oeste, cf.
‘Wespero’, é a tarde, a boca da noite, como em grego [...]
(hespéra), ‘tarde’, em latim ‘uespera’, tarde e em português
57
véspera, vespertino... ‘Oeste’ é onde ‘morre’ o sol e começa
a noite, donde em latim ‘occidens’, o que morre, ‘ocidente’:
é o lado nobre da matrilinhagem, e nefasto para a
patrilinhagem, porque é a ‘esquerda’. ‘Noorth’ ‘norte’, cf.
‘ner’, ‘debaixo’, isto é, à esquerda do nascimento do sol. É
também um dos lados propícios à matrilinhagem. Daí ‘Ner-
eu’, ‘Nereidas’, divindades da água, vinculadas ao feminino.
‘Easte’, ‘leste’, cf. ‘awes’, idéia de ‘brilhar’, em grego [...]
(eós), aurora’; em latim existe o adjetivo, da época da
decadência ‘ostrus’, ‘- a’ , ‘- um’, ‘vermelho’, que está ligado
a ‘oriens’, ‘o que nasce’, o sol nascente. [...] Leste, a direita, é
o lado nobre da patrilinhagem. ‘South’, ‘sul’, cf. ‘sawel’,
‘swen’, ‘à direira do nascimento do sol’, é igualmente um
dos lados do masculino.
Quando Orpheu olhou para trás “regresso[u] ao passado, às
‘hamartíai’, às faltas, aos erros, é a renúncia ao espírito e à verdade”
(BRANDÃO, 2000, p.145). Para Orpheu, o passado do momento em que
olhou para trás, significava Eurídice morta.
O segundo elemento é a cabeça, que representa a
sabedoria, a alma. É sede do pensamento. “É bom deixar claro que essa
parte do corpo possuía em quase todas as culturas uma importância
extraordinária” (BRANDÃO, 2000, p. 148). Por isso, o crânio de um
inimigo corajoso era oferecido como troféu, no caso de uma guerra, ao
vencedor. Quanto mais crânios alguém possuísse melhor, acreditava-se que
mais energia vital deteria. Vale lembrar que não cabeças humanas eram
cultuadas mas também de animais.
58
3.2.1.1 Orfismo
Além do culto público aos deuses olímpicos, havia
celebrações marginais. De acordo com Brandão (2000), o Orfismo é um
movimento complexo surgido entre os séculos VI-V a.C. Seus iniciadores
tiveram por oráculo o crânio de Orpheu e foram influenciados pelas
celebrações dionisíacas, apolíneas e pelo pitagorismo. Entretanto “ao
mesmo tempo [...], se coloca numa postura francamente hostil a muitos
postulados dos movimentos religiosos supracitados” (BRANDÃO, 2000,
p.150). Por exemplo, “a religião apolínea era o bem viver; a órfica, o bem
morrer. Fundamentando-se numa singular antropologia, numa inovadora
teogonia e em novíssima escatologia, o Orfismo aprendeu a reservar as
lágrimas para os que nasciam e o sorriso para os que morriam...”
(BRANDÃO, 2000, p. 151).
Uma das promessas dos seguidores do Orfismo era
imortalidade da alma. Eram adeptos do ascetismo, vegetarianismo, jejuns
ferrenhos, abstenção de carne e ovos, castidade e acastidade absoluta.
Todo esse esforço visa à salvação do homem, visto que a doutrina é
soteriológica.
Para iniciação ritualística, dos quais não muito
conhecimento, dava-se ênfase “aos livros sagrados”. Os órficos
acreditavam nos castigos no Mundo dos Mortos e na glorificação da psiqué
nos Campos Elíseos. Entendiam que o corpo é o cárcere da alma, o que
leva a considerar uma “estreita conexão da [doutrina] órfica com o
neoplatonismo” (FRANZ, 2001 p. 84).
59
Além disso, para os seguidores do Orfismo, a alma era
capaz de metempsicose que é uma “doutrina segundo a qual uma mesma
alma pode animar sucessivamente corpos diversos, homens, animais ou
vegetais; transmigração” (FERREIRA, 1999, versão 3.0). Infere-se que para
um órfico castigo pior do que viver é voltar à vida. Brandão (2000, p.168)
destaca:
O Orfismo tudo fez para se impor ao espírito grego. De
saída, tentou romper com um princípio básico da religião
estatal [pertencente ao deus Apolo] a secular maldição
familiar, segundo a qual, [...], cada membro do ‘génos’ era
co-responsável e herdeiro das ‘hamartíai’, das faltas
cometidas por qualquer um de seus membros. Os órficos
solucionaram o problema de modo original: a culpa é
sempre de responsabilidade individual e por ela (e foi a
primeira vez que a idéia surgiu na Grécia) se paga aqui;
quem não conseguir purgar-se nesta vida, pagará por suas
faltas no além e nas outras reencarnações, até a catarse final.
Mas, diante do citaredo trácio erguia-se a ‘pólis’ com sua
religião tradicional [...] o Orfismo pediu socorro às musas
[...] mas [...] o Orfismo jamais passaria, na Grécia, de uma
“seita”, de uma confraria. Foi uma pena!
60
3.2.2 O Orpheu de Marly
Marly retrata um Orpheu que aparenta ser idêntico ao mito.
Mantém algumas características, inclusive alguns ensinamentos da doutrina
órfica da qual Orpheu tornou-se “oráculo-fundador”. Em “A morte
debruça-se sobre mim,/ que não aceito,/ eu que desprezo a vida/ e a
embelezo, no entanto, tenho horror a essa morte infinita” (poema XXVI),
percebe-se o traço da doutrina órfica, haja vista os órficos celebrarem a
morte e chorarem os nascimentos, que a vida é o tempo dado às almas
para se livraram de todos os delitos. Mas, se terminada a leitura do excerto,
tem-se a certeza de que o Orpheu de Marly difere-se. O Orpheu marliano é,
também, camusiano, pois renega a morte infinita, que é a perda de Eurídice,
e a petrificação humana. Para Marques (1984, p.14):
A mensagem da autora de Invocação de Orpheu’ está ao
alcance de quem quer que se deixe atravessar
prismaticamente pelos raios do humano. Aqueles que,
contudo, tenham por hábito jornadear entre as galerias de
espelhos dos grandes textos poéticos das várias idades, mais
fruirão as semáforas cruzadas que sulcam de luz e de
‘pathos’ as páginas do presente livro.
Assim, para lamentar a perda não de Eurídice, mas da
condição humana, no sentido humanitário e humanista
3
, há, na obra,
3
Humanitário refere-se a alguém que se preocupa com o bem-estar da humanidade. Humanista refere-se
à doutrina do Humanismo. Uma de suas acepções é que o homem criou os valores morais, a partir de
fatores que condicionam a vida humana, por exemplo, psicológicos, econômicos, históricos entre outros.
61
mistura de vozes que lamentam, informam e consolam-se. Ouve-se ora a
voz do eu poético, ora de Orpheu, outras vezes, eu poemático e poético se
confundem. É o “eu” que se desdobra em um “não-eu” e que vive essas
duas faces. Segundo Chaves:
Quando repensa o mito, o lírico apela, [...], para uma
segunda ‘persona’ (o personagem mítico) que se sobrepõe à
primeira, numa dialética de identificação e distanciamento,
de incorporação e desdobramento, em que o poeta se torna,
simultaneamente, o ator e o espectador de si mesmo [...]
Complexo é o jogo de interação das ‘personas’ em
‘Invocação de Orpheu’ [...] nos quarenta e seis poemas que
o compõem, o EU lírico freqüentemente se distancia, para
deplorar Orpheu, em sua recusa de admitir a perda.[...]
Embora domine a voz de Orpheu, ouve-se às vezes,
claramente, a voz do poeta e ambiguamente, e com alguma
freqüência, a voz indistinta: de Orpheu e/ou do poeta?
(1979, s/p).
Marly de Oliveira apesar de, em algumas passagens, negar o
caráter absurdo de Orpheu; concebe-o como um mito absurdo. Orpheu se
aproxima de Sísifo, pois tinha ciência de que se olhasse para trás, perderia
Eurídice. Orpheu é apegado à vida, mesmo que absurda, por isso a
tentativa de resgate de Eurídice que para ele era símbolo de vida. Sendo
assim, o vate não pode se conformar, porque conformar é aceitar. “Ah,
tanto me foi dado/ e retirado, que profundo anseio/ clama vingança contra
o Fado” (OLIVEIRA, 1979, poema XIII)
4
.
(Vide Dicionário Aurélio - FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio –
século XXI. Versão 3.0. Nova Fronteira/ Lexikon Informática Ltda, nov. 1999). No caso do poema de
Marly, o eu poético e Orpheu apontam para perda dessas características: não há preocupação com a
coletividade, nem valores que respeitam e elevem o homem, ao contrário, o homem está destruindo
outros.
4
Todas as citações referentes ao livro Invocação de Orpheuo extraídas de: OLIVEIRA, M. Invocação de
Orpheu. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1979. (o livro não é paginado, por isso os poemas serão
referidos pela numeração dos mesmos).
62
Invocação de Orpheu e O mito de Sísifo surgem em momentos
complicados na conjuntura mundial. Este expressa marcas do conturbado
momento da Segunda Guerra. Aquele, as marcas de uma ditadura vigente e
da Guerra Fria. De qualquer modo, ambos expressam as disparidades, em
sua maioria gritante, entre o que é dito e realmente feito; o cotidiano
essencialmente violento, miserável e cruel que a aparência esconde. Sem
dúvida, um grande inconformismo com o conformar-se. Por isso que
Orpheu canta:
O canto é minha explicação,
mesmo que diga o que não sei,
Sou o sentido do que se transforma,
do que resiste à petrificação
[...]
eu vos ensino a insubmissão do amor,
a inquietude que leva até o inferno
em vida, o êxtase, o delírio. Eu vos ensino
a dor e vos ensino a cólera,
que ela vos salve de vosso
destino menor e implacável. E vos ensino a glória.
(poema IV)
Orpheu canta uma espécie de ladainha rogando pela vida.
Desejando-a com ardor. “O texto de Marly de Oliveira diz de Orfeu na sua
volta do Inferno. Orfeu sem Eurídice. Uma elegia que não se constrói para
perder-se no vento. Um lamento, sim, mas que ordena. Uma invocação.
Uma imprecação. Contra os deuses e contra as máquinas” (CHAVES,
1979, s/p). Nesse cantar, Orpheu tenta mostrar o estado alienado em que a
maioria se encontra e, simultaneamente, expressar seu amor por Eurídice,
leia-se vida terrena, bem a revés do que pregava o Orfismo.
63
O Orpheu marliano-camusiano carrega em sua essência o
absurdo, ou seja, o trágico. Se acaso pensar-se em herói trágico antigo,
Orpheu preencheria, muito satisfatoriamente, os requisitos. Para Fischer
(2001, p. 88), “a trajetória do herói trágico está marcada pela individuação
absoluta do protagonista: ele enfrenta seu destino solitariamente, e não tem
como ser diferente é trágico o indivíduo que se destaca contra o
fundo da massa”. Orpheu, segundo os moldes da tragédia, comete falta
grave, hamártēma. Ele desconfia da palavra divina. Deixa-se levar pela
soberba, ira, hybris e entra no jogo brumoso do enredo trágico: acredita ter
optado pelo que era certo, mas, ao final, descobre que escolheu aquilo que
não poderia, acaba sendo vítima de “uma força cruel que nos desdenha”
(poema II). Trata-se, conforme Vernant (2005), da lógica ambígua da
tragédia.
Por outro lado, Orpheu encaixa-se à realidade dos apelos
humanos, ou melhor, à mudez do mundo em relação ao desespero
humano. Orpheu, por Marly, é humanizado. Sofre, na carne, as agruras de
uma vivência paradoxal, em que quanto mais se busca a vida, mais se
depara com o absurdo. Entretanto, seguindo a filosofia proferida por
Camus, Orpheu não recusa de forma nenhuma a vida. Paga o preço por ela,
cujo é o sofrimento horrendo de ver Eurídice desfalecida.
Orpheu é talhado nos moldes da filosofia do absurdo,
quando Marly o coloca consciente da situação mundana. Ele busca a união
dos homens com mundo, pois acredita assim acabar com indiferenças,
preconceitos, a perda da vida, da dignidade, a incapacidade de expressão, a
efemeridade implacável do tempo, a perda dos homens pela mecanização
do mundo, o caráter negociável de praticamente tudo, a cegueira quase
coletiva. Mas mesmo consciente, Orpheu não tem a intenção de ser Cristo.
Aqui, nega-se Orpheu como herói absurdo.
64
Sem dúvida a “descida ao inferno não é o caminho da
glória, mas o calvário da suprema humilhação. Orpheu não carregava a
cruz, mas a lira. pretendera resgatar a sua Eurídice; não a todos os
homens” (Chaves, 1979, s/p). Orpheu expõe a individualidade, confronta-
se com a lei dos homens e dos deuses. Têm-se as duas ordens hegelianas: a
lei divina e a humana. O que ele declara como um atrito de eticidades (vide
Szondi, 2004).
O atrito ético levantado por Hegel margem para a
semelhança entre Orpheu e Prometeu, conforme Chaves (1979) já atentara.
A insurreição daquele aproxima-o deste e, concomitantemente, o afasta.
Necessário reavivar que Marly constrói Contato e Invocação de Orpheu calcados
em antíteses e paradoxos. Prometeu rouba o segredo do fogo e o aos
homens, isso o transforma em um delator, por isso, um traidor, que de
pagar por sua soberba, tal como o sujeito lírico e Orpheu, este por renegar
seu destino, aquele por renegar a alienação humana. Chaves (1979, s/p)
relata que: “A Grande Recusa, simbolizada em Orfeu [...] é a denúncia de
uma ordem fundada unilateralmente no ‘princípio de rendimento’ que
Marcuse define através do valores da competição, produtividade e trabalho
alienado”. Nietzsche (2005, p. 60-61) explica a situação da seguinte forma:
[O] mito de Prometeu é o valor excessivo que a
humanidade primitiva atribui ao fogo como sendo o
verdadeiro paladino de qualquer cultura que desponta. O
fato, porém, é que o homem governa livremente este fogo,
e que não o recebe apenas como uma dádiva celeste, como
raio inflamável ou incêndio solar. Isto parecia a tais
contemplativos, homens primitivos, um ultraje, um roubo
à natureza divina. Assim, mostra-nos desde o primeiro
problema filosófico uma oposição melindrosamente
insolúvel entre homem e Deus e coloca-a como um bloco
de pedra no limiar de toda a cultura. O melhor e o mais
excelso de que pode participar a humanidade ela o consegue
65
por um ultraje, sendo obrigada a arcar com todas as suas
conseqüências, isto é, com todo o dilúvio de sofrimentos e
desgostos com que as divindades têm de afligir o gênero
humano, que nobremente se eleva.
Por outro lado, Prometeu constitui o herói do labor e do
progresso. Pode-se concebê-lo numa perspectiva positivista. O progresso
da humanidade, objetivando acúmulo de capital, esintimamente ligado a
esse pensar. Prometeu tornou-se o “herói cultural” da sociedade ávida pelo
progresso:
Mais especificamente, abordaremos os “heróis culturais”
que persistiram na imaginação como símbolos da atitude e
dos feitos que determinaram o destino da humanidade. E
logo de saída defrontamos com o fato de que o herói
cultural predominante é o embusteiro e o rebelde (sofredor)
contra os deuses, que cria a cultura à custa do sofrimento
perpétuo. Ele simboliza a produtividade, o esforço
incessante para dominar a vida; mas, na sua produtividade,
abençoada e maldita, o progresso e o trabalho sofrido estão
inextricavelmente interligados. Prometeu é o herói-
arquétipo do princípio de desempenho (MARCUSE, 1975,
p.146).
Para Chaves (1979, s/p), “o Ocidente agônico vive sob o
signo de Prometeu. Afundada na mística tecnologia e do progresso, a
sociedade [...] minimiza a criatividade, castra, massifica, robotiza”. Sendo
Prometeu o ícone dessa sociedade opressora onde Orpheu sofre e,
concomitantemente, incita a insurreição dos homens diante de um estado
de coisas, torna-se Orpheu o oposto de Prometeu, portanto, afastam-se:
Se Prometeu é o herói cultural do esforço laborioso, da
produtividade e do progresso através da repressão, então os
símbolos de outro princípio de realidade devem ser
procurados no pólo oposto. Orfeu e Narciso (como
66
Dioniso, com quem são aparentados: o antagonista do deus
que sanciona a lógica de dominação, o reino da razão)
simbolizam uma realidade muito diferente. Não se
converteram em heróis culturais do mundo ocidental, a
imagem deles é a da alegria e da plena fruição; a voz que
não comanda, mas canta; o gesto que oferece e recebe; o
ato que é paz e termina com as labutas de conquista; a
libertação do tempo que une o homem com deus, o homem
com a natureza. [...] A canção de Orfeu desfaz a
petrificação, movimenta as florestas e as pedras — mas
movimenta-as para que comunguem na alegria.
(MARCUSE, 1975, p. 147-151).
Entretanto, na composição de Marly, a lira e o canto não o
salvaram de ser dilacerado pelas bacantes e, principalmente, pela sociedade
constituída de pessoas anestesiadas pela alienação que sofrem, absortas na
mecanização que as impedem de ver a efemeridade do tempo. Orpheu
indigna-se:
De pedra os corações à minha volta,
sabem tão pouco! insensíveis à luta
com o invisível. Nada os assusta,
senão o imediato, o concreto.
Não percebem que estão de passagem
que o frêmito da folha, o vento
que dispersa o que se diz, o toque
de sombra na folhagem são sinais
evidentes da partida. (poema IX).
Orpheu e o eu poético reconhecem “que viver é perder”
(Chaves, 1979, s/p). Reconhecendo seu fim último que é a morte
inexorável, Orpheu sofre por esse fim sem possibilidades de fuga, pois o
que lhe aparecia como tal foi retirado sem complacência: “Eu esperava o
amor, esse milagre/ que roubasse ao fluxo do tempo” (poema XXVII). O
mundo (os deuses), com sua surdez e mudez austera, somente machuca
Orpheu com seus jogos de aparência e essência. Não lhe dá explicações:
67
De repente me encontro com esse fato
simples, cruel, eterno:
jamais tornar a ver-te,
ó imagem que amei,
terna, entre sombras
(poema XXVI).
[...]
Nenhum lugar onde apoiar a fronte,
o peito sem sossego.
Nenhuma explicação, somente a dor
vai dilatando a sombra ao meu redor.
(poema XXXVII).
Orpheu amansou feras com seu canto, apaziguou revoltas,
sobretudo amou. Serviu conforme seu dom exigia, mas os deuses não lhe
deram clemência. Tal qual o homem mecânico que serve, mas sua vivência
e fim são inclementes: a alienação, a morte de seus sentidos para consigo
mesmo e os outros.
E era tanto o amor, tamanha a dor,
que a terra comovida se agitou.
Não lhe valeu o canto, a música divina,
a que arrastara a rocha detida
em sua força inanimada,
que aplacara até mesmo o reino antigo
e sombrio, e que amansara as feras.
O que lhe deram logo retomaram,
o que se tem se perde, e esvai-se o mel
da mais terna esperança
no severo destino, esse de amar,
condenado ao suplício de servir
— sem qualquer recompensa —
a uma força cruel que nos desdenha.
(poema II)
68
Para tentar amenizar a perda, o sujeito lírico e Orpheu
procuram permanecer o quanto for possível no mundo. Uma das maneiras
de manter o contato com o mundo e permanecer nele é manter laços
fraternos e solidários. Mas, o mundo não se deixa abarcar pelo humano,
como bem lembra Camus. O vate e o eu lírico, ao mesmo tempo, que
tentam se agarrar a sinais de familiaridade, percebem que nada lhes é
comum:
Se se pudesse ao menos vislumbrar
no não – sentido que rege a coisa viva
um indício, o mais vil, o mais precário,
de que não é inútil essa busca!
(poema XXXIV).
[...]
Oh, mundo! Ó forma vaga
que me distrai de mim!
(poema XXVIII).
A incapacidade de entender o mundo é vista desde a
abertura do livro. Marly abre sua obra, como lembra Chaves (1979),
utilizando parte de uma dAs Elegias de Duíno, de Rainer Maria Rilke como
epígrafe. As obras de Rilke, principalmente pós-primeira guerra, trazem
questões existencialistas e reflexões acerca do desencanto que cobre o
século XX. Não se pode obscurecer a força de: “Não, não mais buscar. E
que a essência do teu grito seja esta voz aflorada de teu ser”. Exatamente a
voz que aflora, elege a poesia como caminho:
Poesia é caminho, única vertigem
além do amor, além da anunciação.
Nenhum anjo desceu, mas revelou-se
de súbito o segredo, que ficou,
apesar da curiosa indagação,
69
intacto e intocado.
O eu poético essencialmente amor une-se a Orpheu, que
também por amor viveu e sofreu. A diferença entre as duas profundezas
dá-se quando o eu poético declara: “Foi-se com o que foi o que foi, /
atendamos ao mito do presente” (poema I). Marly não precisa descer ao
inferno mitológico, pois esse se instaurou no âmbito terrestre. Mas, a poeta,
assim como Camus, cede ao homem o direito à felicidade. Marly acredita
no amor, na reflexão e na poesia para enfrentar a mudez mundana.
Portanto, “a luta é necessária. Faz-se imprescindível um grito; e é possível
falarmos de um ‘grito filosófico’. Um grito que seja escutado por todos, que
fira os ouvidos dos indiferentes [...] Um grito claro”. (GUIMARÃES, 1971,
p. 15).
Atender ao mito presente também acarreta em viver o hoje,
o carpe diem percebido na filosofia camusiana. O que se espera do futuro em
um mundo deserdado pelos deuses? Não há lugar à esperança, à fé, que
ser agir pelo hoje, pois essa é a certeza:
Houve um tempo em que me submeti,
tal o susto, tamanha a dor, a vã
expectativa, insidiosa.
Não sei a que vim, não saberei
jamais o que há por trás
(poema XXIX).
[...] Não me salvou o verso,
salvou-me a cólera sem vileza
e esse poder de amar sem
sem esperança,
em meio a tanto verde.
(poema XXXIII).
70
O mundo descrito por Camus e vivenciado pelo Orpheu
marliano se equivalem. Ele não é explicável pelo ser humano. a falsa
interação entre homem e mundo. Mas, se está nele e, em verdade, não o
desejo de deixá-lo. Prova disso é Orpheu desesperado por sua felicidade
terrena que se personifica em Eurídice. Para continuar no mundo, o
homem precisa saber de si. Portanto, com tanto horror, o mundo não tem
deuses nem criadores e o homem é responsável por seus atos, caminhos,
por ser.
Cresço na minha solidão
sem argumento contra o Fado,
sem atinar com o caminho
que levaria à presença
solene. Onde se esconderão,
órfãos de toda companhia
humana, seus Criadores?
(poema XXII).
[...]
tal o poder do ódio que o persegue,
a cegueira dos deuses, se de fato,
habitantes do Olimpo,
pairam acima do nosso triste fado.
(poema XXXII).
[...]
Fui desde sempre o órfão, o deserdado
da Fortuna.
(poema XXXIII).
Sendo órfãos, logo responsáveis por si mesmos, os homens
necessitam do saber. O absurdo incide em conhecer claramente a situação
vivida. Mas, vivenciando a situação, torna-se difícil conhecê-la. Muitas
71
vezes, afastar-se e recorrer ao deserto, à aridez, à reflexão, em uma busca
interna e silenciosa ajuda a visualizar uma solução:
Vasto é o deserto quando nada se quer,
mais vasto quando nada se busca,
mas se persiste no desejo de intuir
em meio a tal desolação
o sentido de estar agora, aqui,
o ouvido rente à erva
que cresce no chão.
(poema XIX).
[...]
Eu podia conclamar os deuses
ou disfarçar a solidão na companhia
das ninfas seduzidas de meu canto,
prefiro recolher-me em mim, ao desencanto
desta paisagem fria
e deserta.
(poema XXV).
Ao recolher-se, o homem Orpheu vislumbra a repressão do
mundo claramente. Se ele acaso se individualiza, isso ocorre no sentido de
rebater as forças que querem feri-lo. Mas, Orpheu não é egoísta. O absurdo
foca-se contra a injustiça. Orpheu é um homem revoltado: “Não me faleis
de inocência, /nem delícias de um vago paraíso,/nem perdão” (poema
XXI). Por isso, consegue ver a situação com lucidez, que desencanta, mas
que lhe revela a verdade:
A terra se prosterna a vossos pés,
e eu me retiro, solitário,
sem entender por que motivo,
vingança me dais, deuses cruéis
e injustos.
Acaso fui além do que devia?
72
Algum limite acaso ultrapassei?
Mas se o que tenho herdei
de vós mesmos, e agora
recebo este silêncio, essa cifrada
linguagem que se perde na folhagem
que o vento agita, delicado.
(poema XVIII).
Orpheu vê sua condição. Possui a revolta questionadora de
sua realidade. Afinal, para quê sofrer? Se a natureza que o envolve lembra
em tudo Tipasa e o vate busca a felicidade. Orpheu luta por algo que é seu.
Eurídice é a felicidade. Ele reivindica simplesmente o que é seu, ou pelo
menos era, até os deuses, o mundo cruel lhe tirarem. Assim, vários
“não” ao criador em sua imprecação. Orpheu opta pelo que é próprio do
humano:
Não creio na justiça prometida,
todos verão um dia
a face do abandono.
(poema XIV).
Quem mediu com sua mão a água do mar
e avaliou a dimensão dos céus?
Para os deuses tudo é igual a nada
e ao vazio, por isso não nos confortam
na nossa fraqueza, eles que criaram
toda a vegetação e tudo que é vivo.
Querem que os celebremos e exaltemos,
pretendem nossa inteira submissão,
chamam-nos surdos, cegos e insensatos,
porque voltamos atrás,
recusamos a rota traçada no deserto
e na solidão.
(poema XV).
[...]
73
Sou escravo de mim, não de seu jugo.
Não está no temor toda a sabedoria,
e nem na aceitação deste absurdo,
mas no descobrimento da alegria.
(poema XVI).
Quando clama pela felicidade, Orpheu o faz por toda
humanidade. Há vergonha em ser feliz sozinho, como lembra Rambrent de
Camus. Orpheu inflama, com seu canto-discurso, todos os homens a
lutarem pela felicidade. O vate revela ser um filantropo, tanto que baseado
nisso o eu lírico se autodenomina “serva do amor”:
Eis a Serva do amor, ei-la aqui junto
da imagem que projeto distraída,
descendo com Orpheu e sua Lira
ao Inferno, no intuito de buscá-la,
a inspiração, o sopro desta vida.
(poema I).
A “Serva do amor” pode ser visto como sofrimento trágico.
As paixões sempre dilaceraram o homem, seja devido a esse ser um sujeito
filosoficamente mal-educado, seja pela cegueira que envolve os heróis
trágicos, ou ainda, pela ânsia de alertar sobre a alienação. Fato é que a
paixão acarreta sofrimento. “Eu morro sem ao menos ter levado/ ao auge
esta paixão que me acompanha,/ inconsistente, o meu discurso não
alcança/ livrar-me dessa maldição” (poema XIV).
Nessa declaração tem-se, uma vez mais, a voz confundida.
O eu poético, como que se desdobra na imagem de Orpheu, numa espécie
de autenticidade e reflexo, aparência e essência, aconselhador e
aconselhado, “de tal modo que não se sabe definir se o sujeito identifica-se
com o conselheiro, com o aconselhado ou, cindido, com ambos”
(SANSEVERINO, 200, p. 135), a procura de alívio, kátharsis.
74
Entretanto, tal libertação aparece na forma de união.
Orpheu e o eu lírico unem o clamor para unir os homens, a fim de que
lutem por seus ideais, libertação, expressão, especialmente, que lutem para
serem felizes. Por isso, o desespero órfico ao visualizar “corações de
pedra”. Daí maldizer-se por saber mais dos outros, do que de si mesmo.
Saber esse que como Camus expressa: “este justamente, é o único pecado
do qual o homem absurdo pode se sentir ao mesmo tempo culpado e
inocente” (CAMUS, 2007, p. 61-62):
E se o sentido for a maldição
que pesa sobre o anseio de entender?
Eu escolhera o paraíso,
e recebi o inferno, a danação.
(poema XXXIV).
Nessa busca, o eu poético depara-se com duas ordens: a de
forças superiores e o desejo, a vontade humana. Na maioria das tragédias
antigas, o choque de tais ordens, uma a se consolidar, a do direito, e a outra
a resistir, a religiosa, imputaram ao homem, herói trágico, que não soube
deslizar entre os paradoxos, a punição máxima: a morte.
Mas, a condição de Orpheu é trágica e absurda em um
ambiente moderno. “E a idéia da antiga conjunção/ com o Todo de onde
viemos?” (poema I). Se houvesse criadores, eles não deixariam a dor, a
fome, o totalitarismo, a violência permanecer no mundo. que
esqueceram desse lugar, esse se tornou deserdado e órfão e os homens
devem escolher pelo que é próprio de si mesmos. Nada de absolutismos,
pois isso é falso. Portanto, homem, propriamente o poeta e deus se
equivalem no canto órfico:
Quem valoriza a solidão de um deus
ou de um poeta? Ambos intuem
75
— em secreta harmonia
com o que não entendem —
apenas o que existe, não o criam.
(poema XLI).
Orpheu renega o que lhe impõem, porque isso não o
pertence. Ele rejeita veementemente o que não quer. O vate é dono de seu
caminho, assim como incita os homens a sê-lo. Mas, Orpheu quer Eurídice
e é por ela que ele se arrisca e por ele também, afinal a felicidade é o direito
do homem:
Por isso vos maldigo para sempre
e me recuso à aceitação da vida
que me dais sem qualquer explicação.
Em mim vedes o Não
estampado de forma absoluta,
que isso vos incite
a deixar-me a mim mesmo.
(poema XIX).
Nas palavras de Marly (1979, s/p): “a história de Orpheu é
a história do homem que não se conforma com sua perda fundamental e
deita o seu lamento ao ouvido surdo do tempo, até que é destruído pela
fúria das Mênades”. Orpheu/sujeito lírico representa o homem não
alienado que constata a ira do tempo, descobre-se e à mercê da fúria e
das Fúrias dos que não permitem subversões.
O viver trágico se traduz em mudez, na incapacidade de dar
forma ou expressão ao sentir. A “intraduzibilidade” marca o pensar e o agir
trágico, por isso, Orpheu e o eu poético tentam em quarenta e seis poemas
exprimir a dor, o pesar, o grito sufocado na tentativa de tirar da margem do
esquecimento as pessoas que também se esqueceram de si, de seus direitos.
Mas é insuficiente. Orpheu proclama: “não penso”. Na realidade trágica,
76
esse não é o caso, o não pensar se constitui um “pensamento ausente mais
do que ausência de pensamento” (VECCHI, 2004, p.123):
E diz Orpheu: perco a noção de mim.
Não caminho, não penso,
flutuo entre estas árvores,
espero o teu chamado, o teu apelo,
ó tu, que me tocaste em sonho a Lira
e desvelaste
o encoberto Desejo. O canto de que vale
no mundo efêmero e vazio?
Eu que movia tudo, sou movido
de tua lembrança agora,
mas tão sem esperança,
que meu canto recua até o silêncio.
(poema III).
Orpheu declara: “perco a noção de mim” (poema III). Ele
indaga pelo conhecimento de si e do outro. Se pelo outro, o indivíduo se
conhece, onde se perdeu esse querer? Orpheu, mesmo não sendo Cristo,
incita os homens ao processo de conhecimento mútuo, para conhecer a si.
Esquecer dos outros, é esquecer de si. Mesmo que o mundo ou “ninguém
lhe ouve o vão suspiro,/ ninguém lhe entende a dor” (poema VI), precisa-
se continuar a lutar pela vida e para que ela se torne digna.
Mas, Orpheu visualiza a própria falta de razão. Estar sem
Eurídice é perder o sentido humanitário e humanístico. Definitivamente
“Orpheu [...] é o dizer da perda” (MELO NETO, 1994, p.09). Ao final, a
voz de Orpheu e do eu poético unem-se para juntas lamentarem a perda do
amor, a dor, o não motivo:
Nenhum lugar onde apoiar a fronte,
o peito sem sossego.
Nenhuma explicação, somente a dor
vai dilatando a sombra ao meu redor.
77
Mas se houvesse um sentido para além
do que posso captar neste silêncio?
(poema XXXVII).
Mesmo vendo a falta da felicidade, Orpheu e o eu poético
tomam posição contrária à situação. Cortam o silêncio, característica
indelével do trágico, e elegem o canto e a poesia como lema de vida. Tal
como Unamuno (apud. Gumbrecht, 2001), Marly sabe da morte e o
transcorrer austero do tempo. Assim, o eu poético e Orpheu unem suas
habilidades: poesia e canto, respectivamente, para tentar despertar os
homens de um sistema alienador, mudo e atroz:
O canto é minha explicação,
mesmo que diga o que não sei.
Sou o sentido do que se transforma,
do que resiste à petrificação
e não conheço o declínio. Ó vós que ouvis
o que vos diz Orpheu, sabei que tudo
repara o tempo, salvo a morte,
mensageira do escuro, poderosa,
que põe nos corações desde o princípio
seu germe vingador. Nenhuma Fúria
se lhe compara, nenhum sustento é eterno,
mesmo se subtraído à seiva que arde
nas veias grossas do Mundo. Sois mortais
e vosso sacrifício há de ser grande,
que nada nos é dado sem o cobro
dos deuses.
(poema IV).
Orpheu e o eu poético inflamam uma revolta das massas,
em que a arma é a insubmissão a toda a imposição de atitudes, pensamento,
comportamento. O amor é uma das possíveis saídas, a fim de que os
mortais fiquem livres de um “destino menor” que pode ser a mecanização,
a petrificação, tendo em vista a perda de valores humanos:
78
Ouvi, no entanto, vós que a ilusão
Buscais sempre na vã agitação:
eu vos ensino a insubmissão do amor,
a inquietude que leva até o inferno
em vida, o êxtase, o delírio. Eu vos ensino
a dor e vos ensino a cólera,
que ela vos salve de vosso
destino menor e implacável. E vos ensino a glória.
(poema IV).
Desde o início, Marly ampara-se em ambigüidades,
antíteses, paradoxos para compor seu discurso. Nesse meio adverso, em
que é retrato do mundo, os homens são chamados a colaborar. Segundo
Chaves (1997, p. 12-3):
Navegando na contra-corrente de uma civilização pós-
moderna, tecnológica, robotizada, Marly de Oliveira usa a
linguagem como um antídoto para esse mundo
desumanizado, ou, como afirmou Adorno [...] ‘uma forma
de reação à coisificação do mundo, ao domínio das
mercadorias sobre os homens. Na mesma diretriz de
Adorno, Marly já repensara o canto de Orfeu.
Mesmo reconhecendo que: “Nascemos incumbidos/cegos,
no entanto, displicentes/qual se tivéssemos a eternidade/ pela frente/ [...]/
Desprevenidos, imaturos,/ afundamos no escuro/ de um dia afrontar/ a
sucessão das estações/ [...]/ Aqui começa a aprendizagem dolorosa.”
(poema X). Orpheu insiste: “Não sei a que vim, não saberei/jamais que
por trás/ desse meu não saber aflito/medalha que levo comigo/ pendurada
ao peito.” (poema XXIX). Esse jogo que, muitas vezes, contraria-se e
domina o texto, relega ao poema uma aparente ebriedade. Essa é um
artifício que a poeta usa para esmaecer o cerne poético relegado ao sujeito
Orpheu.
79
a impressão de que nada se afirma, “pois o discurso se
afirma no dizer e se nega no dito e na forma de dizê-lo. Esse movimento
[...] impede a existência da conciliação” (SANSEVERINO, 2004, p.144).
Todas essas voltas “reforçam essa característica de alguém que não alcança
a síntese, nem consegue conviver com a contradição” (SANSEVERINO,
2004, p.137). Mas, o sentido da revolta órfica repousa justamente na
incapacidade de viver com a contradição, no caso, à sua felicidade. Por isso,
ele luta e anima os homens a fazerem o mesmo: “Não lhes darei a outra
face/não hei de sucumbir a tanta afronta,/Ruína e raiva e ultraje são a
obra/de seu engano e erro./Sou escravo de mim, não de seu jugo.” (poema
XVI).
Infelizmente, Orpheu tem sua trajetória interrompida pelas
Forças Superiores. Marly mistura, nesse momento, a tragédia antiga e o
absurdo. Orpheu, por ser revoltado com o destino imposto, sofre a ira das
Fúrias e seu canto-lamento é brutalmente abafado: “Não canto mais. Meu
canto era um lamento/ que os deuses dispersavam,/ enquanto me iludia, eu
que movia/ o mundo, não movia/ [...]/ aqueles que me condenavam/ a
este exílio, dentro de mim.” (poema XL). No entanto, seu pathos, que se
explica como um ímpeto de luta contra o status quo (STAIGER, 1974); não
é em vão. O eu lírico que o seguia de perto, apreende o ensinamentos
revoltosos de Orpheu e continuará a saga.
Aqui, concebe-se a certeza sobre a pergunta feita no poema
de abertura do livro: “E a idéia da antiga conjunção/ com o Todo de onde
viemos?”. A resposta não difere daquilo de que é inferido desde o início:
“tudo aquilo/ que tem consciência de que é,/ separado do todo.” (poema
XLII- grifo nosso). O sujeito lírico que continua o alerta iniciado por
Orpheu, então, declara: “Estou alerta/ e descubro outra ordem para o
mundo” (poema XLIII).
80
Essa outra ordem é continuar a gritar filosoficamente pela
consciência dos homens. Há, indubitavelmente, a “intraduzibilidade” do
meio trágico, mas é necessário enfrentá-lo e amar a vida absurda, porque
isso significa ter ciência do que se escolhe. Por isso, o eu poético corta o
silêncio e alerta “nada nos preserva/ do Atual.” (poema XLVI). Mais tarde,
em Retrato (1986), Marly declararia:
Por isso Orpheu foi símbolo
de tudo o que me ocorreu,
do que perdi (e nunca tive,
só descobri depois),
e me fez guardiã de um segredo
cujo sentido esqueci.
Por isso falei e falo
do que não sei e o canto
é minha explicação
e sou o sentido de que se transforma,
do que resiste à petrificação
e não aceita o declínio.
Confundem-se nossas vozes.
Eu que pensava regê-lo,
fui regida por ele.
(OLIVEIRA, 1986, p. 39).
81
3.3
A Força da Paixão
e
A Incerteza das Coisas
A Força da Paixão e A Incerteza das Coisas (1984) mantêm o
tom dado por Invocação de Orpheu. Isso significa que estão presentes nesses
livros, entre outras características, a alta qualidade poética, a
intertextualidade, inclusive com poeta e idioma italianos, além da reflexão,
da constatação sobre a realidade trágica. Nas palavras da autora A Força da
Paixão e A Incerteza das Coisas aprofundam a perda pressentida”
(OLIVEIRA, 1997, p. 243). Para Miketen (1984, p. 19):
A expressão de sensibilidade e o entusiasmo do martírio
que se manifestam [nesses dois livros], de Marly de Oliveira,
revelam o desprendimento de um agente criador que se
sacrifica, sofre e perde os falsos encantos de um mundo
convencional pelo excesso de lucidez com que vê a vida.
Em Invocação de Orpheu, havia duas “personas”, como
levantado por Chaves (1979), ou seja, o eu lírico desdobra-se em duas
projeções de Marly, e uma dessas mascara-se com o mito de Orpheu.
Convida-se o leitor para um diálogo travado, na verdade, de Marly para
Marly.
Isso se torna mais evidente nesses dois livros publicados em
conjunto. Mas aqui, Miketen (1984, p. 23) relata que a poeta abandona “a
história da ‘persona’ para a projeção em direção ao transcendente”. Sendo o
discurso pautado em antíteses e paradoxos, é possível, em uma mesma
82
estrofe, afirmar-se e negar-se, dizer e desdizer, atingindo quase a anulação.
Tem-se o “eu” que se desdobra em um “tu”. É um sujeito que tenta se fixar
em um desses, mas não consegue: “Vou vivendo de mim e tão sem mim,/
que às vezes me surpreendo” (OLIVEIRA, 1984, p. 29)
5
. A aparente
ebriedade do livro anterior instaura-se nesses em uma espécie de
“amorfidade” para pessoas, coisas, atitudes:
Vem a dor importuna e move inteira
a estrutura das coisas que de novo
busca forma, outra forma ainda indecisa,
enquanto debruçada sobre mim
medito no ouro puro deitado e tanta pérola
à chama de uma vela,
(FP, p.52).
Sem estrutura possível, diante de uma “forma informe.”
(IC, p. 81), o eu-lírico tenta quase desesperadamente achar algo de concreto
em que se apoiar, uma segurança, algo bem diverso do que se apresenta na
atual condição. Nessa demanda, seu discurso, em certos pontos, chega ao
paradoxal, e atinge o absurdo, visto que o sujeito procura a forma no ouro
puro. Esse por si só nunca tomará forma, ele precisa de algum outro
elemento, como o cobre, a prata, para que liga e assim o ourives possa
trabalhar.
Descrevendo um movimento claudicante diante do mundo
mudo, o discurso do sujeito parte do que é tido por real aao absurdo e
oscila entre esses extremos. É um discurso aflito, pois tenta alertar sobre
alienação tal como um ourives lidando com um metal precioso buscando a
forma certa. Mas, o trabalho do eu lírico galga as maiores dificuldades,
porque a liga da qual precisa, depende da vontade, do despertar dos outros
5
As citações retiradas de A Força da Paixão e de A Incerteza das Coisas referem-se a OLIVEIRA, M. A
Força da Paixão / A Incerteza das Coisas. Brasília, Thesaurus, 1984. Serão mencionados no texto
como FC e IC, respectivamente.
83
homens. Como poderia ele procurar forma para uma realidade trágica que
“mostra essencialmente a insuficiência de qualquer forma” (VECCHI,
2004, p. 123).
Defrontando-se com a insegurança, o sujeito lírico não tem
em que se apoiar, por isso, conforme Vecchi (2004), a fala contraditória, e a
escrita fadada a não conter, não expressar qualquer tipo de “forma trágica”.
Ciente da situação, o eu lírico diz: “Assim percebo e não percebo/ à
medida em que tento descrevê-lo:/ [...]/ [...] não saber o modo seco e certo
de traduzi-lo [...]/ Que a palavra, tentando ser exata,/ mente o sentido
inicial, que fica,/ apesar de intocado, deturpado/ por uma apreensão
destituída/ de verdade, em verdade disfarçada. (FP, p.55).
Frente a tanta “amorfidade”, o eu lírico percebe que uma
das conseqüências é a ignorância. Ele abre A Força da Paixão declarando
tacitamente que “A dor de ser consiste em não saber./ O mais é a
passagem/ vista da minha janela,/ onde o sol entra/ e não aquece.”(FP, p.
29), ou seja, a ignorância é o grande mal do homem, por não reconhecer
aquilo que podem lhe impor. Reconhecer implica perceber de novo, aceitar,
ver que algo se modificou, o reconhecimento, como explica Aristóteles
(2005, p.47), “faz passar da ignorância ao conhecimento”. E é isso o que
mais deseja o sujeito lírico: conhecer.
Justamente, a passagem, o caminho do não saber é o que
dói no infortunado sujeito. Ele busca a via do conhecimento, porque se
tornou “forçoso descobrir o que nos cobre/ a visão imperfeita não
recobra/ a impureza das coisas em estado puro.” (IC, p.81). Aqui, continua
a saga do sujeito lírico de Invocação de Orpheu, ele quer a essência, repudia
toda a forma de petrificação, alienação, porque alienados são incapazes de
perceber a desgraça que sofrem.
84
O sujeito lírico que “Tudo está sujo, sujo,” (IC, p.81).
Entretanto, numa posição irônica e que contraria todo o seu dito até aqui,
ataca: “mas não precisa de perdão, nem culpa” (idem). Ele aponta para a
“desparadoxificação” do real, como atenta Gumbrecht (2001), para a
sociedade tragicofóbica e a vida privada tragicofílica. O eu lírico percebe
que a sociedade tragicofóbica tenta camuflar as podridões, mas para ele, “o
morto/[está] inesquecido ainda./ Não houve enterro nem velório,/ por
isso o cheiro: putrefato.” (IC, p. 88).
O eu lírico percebe que hoje seria inimaginável a existência
de um Édipo, que assumindo toda a culpa, fura os olhos por vergonha,
para salvar a comunidade. Afinal, o eu lírico enxerga que há amparos
contumazes aos culpados, de modo a livrá-los de tal peso.
Indubitavelmente, o ato do reconhecimento é “sol [que]
entra e não aquece”, pois a verdade nem sempre é agradável. E como alerta
Camus, saber é caminho para dois destinos: a culpa e a inocência. Porém, o
homem absurdo e revoltado prima pela verdade e a busca com ardor.
Através dela, ele consegue a liberdade de todas as formas de castração da
consciência. Mesmo que a verdade não seja acolhedora:
No escuro, o canto. E o sono da criança.
Não fosse a dureza do mundo,
a incerteza das coisas prontas a explodir,
o câncer, a vitória
do perjuro, a aceitação
da mentira, sempre inglória,
a fome, o desconcerto, o desvario,
os que vivem sem dentes para agarrar
a matéria mais tosca
sob a ponte de seu destino, infenso
à mínima alegria
— e se estaria em paz.
(IC, p.82).
85
Diante de tanta iniqüidade, o sujeito lírico sente-se amuado.
Como cantar se até Orpheu cessou o toque da lira, “o canto de que vale/
no mundo efêmero e vazio?” (poema III). Então, ele pede ao oráculo que
recobre o gosto de escrever, como Orestes, n’ As Eumênides de Ésquilo,
quando suplica a Apolo que sua missão seja vitoriosa. Mais propriamente,
como que em uma epopéia, refazendo o gesto de Camões, recorre a uma
musa inspiradora que o faça recobrar o ânimo. Ele invoca justamente
Calíope, mãe de Orpheu:
Aqui, minha Calíope, à maneira
do primeiro entre os poetas
de nossa língua, te invoco,
por que o gosto me tornes do escrever
que vou perdendo.
(FP, p.31).
Parece que nem mesmo Calíope, a musa inspiradora, foi
capaz de animar o sujeito lírico, que, ao final de seu apelo, ele declara:
“Não creio mais em nada” (FP, p. 31). Sua visão ácida e clara, não permite
os enganos da alienação, nem que esses se apropriem dele. Entretanto, ele
enxerga o trágico em sua vida. Não consegue nutrir esperanças, pois se
acomodar não é a solução. Por isso, o “não” à esperança:
Não deixe, enfim, ninguém ter disposto
o peito a grandes obras, disse o poeta
no canto quinto. Eu desisto, no entanto,
pois não posso sozinha organizar
o mundo em que me afundo.
O recurso do médico, do remédio,
não valem a esperança desertada.
(FP, p. 35).
A função da esperança: convencer
que o poema, o teorema, a ciência, a invenção,
86
o semáforo, a história, a explosão
de Hiroshima; Picasso e sua glória;
o decalque, a estrutura, a rachadura,
a ruptura, a eternidade, a desmemória;
a ignorância, a pobreza, a riqueza,
a insuficiência, a morte têm sentido.
(FP, p. 63).
A esperança pelo amanhã leva o indivíduo à acomodação, a
aceitar as ruínas as quais sua vida reduziu-se. Dessa forma, afunda-se em
escombros, que “no princípio/ está meu fim. que umas após outras/
não se levantam casas, desmoronam-se” (FP, p.45). Infelizmente, não são
ruínas, mas escombros que “diferentemente da ruína, mostra de fato a
permanência de um resto não dialético, não redutível [...] conflito aberto,
[...] que fica exposto e não se resolve” (VECCHI, 2004, p. 116). Isso é fato,
todavia a verdade pode ser encarada ou aceita. Se aceita, todas as agruras
tomam peso insuportável. Surge um dos males mais comuns na
modernidade que é a depressão:
A depressão é um estado de espírito,
é uma incompreensão que nos reveste
do ínfimo, do ambíguo e sem remédio,
que substitui a ânsia de infinito;
é pedir, sem pedir, a quem nos pede
tempo, paixão e dor, que nos ajude
a suportar o luto imerecido,
em razão da fraqueza que nos rege:
é estranha forma de consciência
— morte — que nem se sabe, embora lute,
uma forma de inércia ou de aparência
de água tranqüila como a de um açude
que açula o que ficou da impermanência
al tornar della mente, che si chiuse.
(FP, p.50).
87
O eu lírico, por outro lado, como sujeito absurdo, enxerga e
enfrenta a verdade da situação. O desânimo até pode espreitá-lo, mas ele se
fia na sua ação de homem consciente de seu caráter perecível. Como tal,
sofre a tragédia que é a inexorabilidade do tempo e da morte. O homem
moderno trágico luta desesperadamente para fugir, mas não escapatória:
“O dia também pode quebrar-se/ em mil pedaços./ Acostuma-te a isso.”
(IC, p.83), porque:
Não duram a flor, o cérebro, a ciência.
O dinossauro é mera ficção
dos sentidos. Não dura a crítica,
nem o amor que se rege por razão.
Não dura a experiência mais provada,
o veneno mais forte se transforma
no obediente, longo sofrimento
que pôde revolver meu pensamento.
(FP, p.33).
De repente o presente é já passado
— e ora mortos nos deixa e separados.
(FP, p.44).
Mas, o sujeito lírico é um homem revoltado e absurdo, por isso, ousado e
corajoso o suficiente para enfrentar a única certeza da humanidade: a
morte. “Spesse volte avèn che mi saluta/tanto di presso l’agnosciosa
morte,/que penso em convidá-la/para um encontro face a face” (FP, p.38).
Exatamente tal atitude ele tenta ensinar e espalhar entre os homens.
Apesar de o conflito aberto acentuar a aparente ebriedade
poética de Marly, apresentando um discurso que diz e desdiz como:
Não sei pensar: ando caminhos,
Desviada de mim ou descentrada.
(FP, p. 67).
Mas sabe acaso a quê? A quem?
88
[...]
Quem me retém ainda/
tão flama em fria pérola?
Ah, que me impede, quem me paralisa?
(FP, p. 61 e 44);
o sujeito lírico é capaz de construir sua constatação amarga e desencantada
quando se trata da sonolência humana, o não despertar: “morte é tudo o
que vemos acordados./ O que vemos dormindo/ é sono apenas” (FP,
p.70). O eu lírico tem a impressão de que o homem está fadado a não ver
sua caminhada entorpecida. Em outros momentos, continuidade à
missão de alertar acerca da alienação, da aparência: “o que se vê não é o que
se vê” (FP, p.59), e indica que mesmo difícil, o “melhor é ser deixando-se
de ser,/ ou ser garimpo de seu próprio ser” (FP, p. 43). Seu aviso a fim de
despertar, de despetrificar, não deixa de ser uma constatação:
Há homens que se deitam sobre a relva.
Há homens que, diversos de outros homens,
têm seus filhos e ocupam-se com eles.
Há homens que trabalham e não pensam,
outros pensam: não agem
e estão sempre à beira do abismo.
Há homens que com o tempo retomaram
o curso do seu destino humano
(enquanto outros recuaram).
Não navegam, não gritam, não perturbam.
Contudo, persuadem.
(IC, p. 96).
O grito do sujeito lírico é filosófico. Ele não necessita de
estardalhaço para passar sua mensagem. Sem dúvida, o grande objetivo
desse sujeito é despertar os homens para a realidade fétida que invade a
vida. Essa está sendo roída pelo desprezo que a relegam:
Há também outro tipo de rato
89
vestido de cordeiro,
insidioso, insigne.
Como quem nada quer,
tece a trama.
Dir-se-ia uma aranha
luminosa tecendo
o labirinto perfeito
— destrutível, no entanto.
(IC, p.99).
A alienação e seu labirinto são destrutíveis, a partir do
momento que o homem o absurdo e se torna revoltado; quando
questiona os absolutismos que se dizem a favor da verdade e encara seu
estado de orfandade: “E a Verdade? E a Razão? e o suporte/em que eu
ingenuamente construí/a pedra, onde assentar/tudo o que penso e
vi?/[...]/Fiou-se o coração de muito isento/[...]/[...] Estou/ de novo órfã
(FP, p.30). Como Orpheu, o eu lírico não aceita o que lhe impõem e desafia
a ordem estabelecida. Nessa verdadeira caçada pelo que de fato é real, o eu
lírico, seguro de seus passos, brada:
Não nasci quando dizem que nasci,
Nasci depois. Tenho registro falso
e muito equívoco em conseqüência disso.
Este destino humano: inexplicável.
A fala humana: forma de esconder,
por exigência de uma vã aparência,
o que seria tão simples,
tão fácil de corrigir.
(FP, p.58).
O trabalho forçado de mentir,
que não existe no reino mineral,
onde a desordem é mínima.
(Vide Murilo)
(FP, p.34)
90
O sujeito lírico delata a tentativa de um todo empenhado
em esconder o trágico, que realmente existe, a fim de perseverar o poder
concretizado, porque sabe que a vida é tragicofílica. Tendo esse caráter, a
vivência faz com que o homem muito mais questione que encontre
respostas ou aceite seu fracasso: “Que fazer se não sei o que de ser/ de
mim, de meu império fracassado,/ da razão que levava ao certo e
firme/destino do que sempre se esquivou/à cegueira da força ou da
paixão?” (FP, p. 51). Além da cegueira, muito comum no trágico cenário
moderno, da tácita aceitação do universo como ele se apresenta; o risco do
suicídio ronda muito de perto os homens que, em vez de, enfrentar as
agruras e amar a vida, acabam por desistirem. Enxergar a verdade, tentar
melhorar a vida e amá-la, mesmo que injusta e órfã de um Criador, são os
ensinamentos do sujeito lírico:
O deus que nasce é contumaz
merecedor de fé. Não é perverso
como dizem as más línguas,
nem tão bom que não permita
mil crianças morrendo em seu lugar
— destino inescrutável.
(FP, p. 42).
Tudo é fruto do arbítrio
de um implacável Deus
que segundo nos dizem
quer nosso bem, e, pois nos ama
de forma tão tortuosa e tão cruel.
(IC, p.92).
O caminho para o deus
exige que se queira o que se quer.
O deus indiferente. O deus estático,
que sequer se aproxima daquilo que criou
e nos desdenha,
(FP, p. 68).
91
O sujeito lírico questiona os deuses. Mais que isso, ele
relativiza o poder supremo divino; negando-lhe, realmente, um caráter
supra-humano, sobrenatural. O sujeito lírico humaniza a “maldade divina”
e apesar de afirmar que o deus “não é perverso/ como dizem as más
línguas”, ele nega essa afirmação — basta lembrar do jogo ambíguo e
contraditório do discurso trágico —, quando o coloca como um deus cruel
e indiferente às misérias humanas.
O eu lírico não aceita humilhação ou subjugação. Nessa
ânsia, ele conclama os outros, o leitor a repudiarem tal cabresto. Não é
possível “suportar o insuportável”, ele que visualiza os caminhos trágicos
do não saber. Como não se rebelar se os homens, irmãos de sofrimento,
estão “tão sem esperança/ que uma vez conjugados bem e mal,/ nem por
isso a verdade é atingida:/ permanece a ignorância, estrela calma,/
mostrando o itinerário sem saída/ que mais que tudo a alma tiraniza.” ( FP,
p. 45, grifo meu). Mais uma vez, Marly alude a Rambrent e à vergonha em
ser feliz solitariamente. Impossível não sentir “a dor/ dos outros
insinuando-se/sempre na nossa dor” (IC, p.88).
A saída para amenizar o conflito trágico torna-se a união
entre os homens, tanto na dor quanto na alegria. A solidariedade para com
o próximo abre caminhos para uma vivência absurda, sim, mas revoltada
porque o homem é consciente das agruras, das possíveis máscaras que
cercam o seu estar no mundo:
Eu também senti o teu espasmo obscuro
de ser humilde entre os nem tão humildes
embora não embriagada ou tonta
dos prazeres humanos.
Também o mundo me foi negro e duro
e tentei crer na dor com alguma nobreza,
92
no espírito imortal de que falavas:
mas só mudança vi, e indiferença
na prodigiosa Natureza
das coisas sem certeza.
(FP, p. 62).
O sujeito lírico tece uma constatação funesta e cortante.
Construída com substantivos nus, secos que funcionam como uma espécie
de “bofetada”. Isso é um alerta para que o homem não permaneça em uma
vivência fadada à ignorância, à aparência, à desmemória: “doravante o
silêncio é mais profundo,/ se permito que a memória/ perdendo sua
função.” (FP, p. 47).
Vale destacar a trajetória contrastante da memória em Marly
de Oliveira, aaqui. Em Contato, a memória é tida como empecilho para o
livre sentir. Algo que lembra o passado e por isso não merece atenção. Em
Invocação de Orpheu, rememorar valeu ao herói a ira dos deuses, visto que
Orpheu olhou para trás e permaneceu ligado ao passado Eurídice—
renegando a natureza, a lira e qualquer mulher.
Nestes dois livros, A Força da Paixão e A Incerteza das Coisas,
a memória serve como constante lembrete sobre as atrocidades, a alienação
infligida à humanidade. Como lembrete, sua função pauta-se, mormente,
em evitar ou, pelo menos, diminuir a incidência de tais acontecimentos
desumanizadores. Na modernidade, o lembrar, assim como o trágico, é
constante, “porque a memória não me dá trégua” (FP, p. 64). Ela mantém a
vitalidade dos “conflitos que se agitam no interior da realidade moderna e
de que o sentido do trágico se alimenta” (MULINACCI, 2004, p. 117).
Indubitavelmente, o trágico é a realidade de vida a ser
encarada. A vivência terrena com todas suas pontas cortantes deve ser
amada e concebida como absurda. O presente pode não ser agradável, mas
93
não se pode esperar pelo futuro, haja vista os homens serem órfãos, pois os
deuses negaram e se esqueceram da humanidade.
Diante disso, é muito fácil odiar que amar:
Amá-lo ainda assim, aspiração
pretensiosa. Tão mais fácil
o ódio, a fúria, a destruição, o caos,
que aceitamos sem dúvida
ou qualquer argüição.
A tempestade, a nau contra o rochedo
em desamparo. A fome, que persiste,
desafiando sistemas e tornando
penosa a prepotência.
(IC, p. 93).
Mas, justamente, amar é a grande lição que o absurdo
camusiano relega ao homem. “Por isso não me culpo nem te culpo./ De
fato estéril/ é a terra não cuidada, o amor/ não adubado pela no amor”
(FP, p. 72). “Fé no amor”, o sujeito coloca o amor acima e apesar de tudo.
Ele é o único que expresso por gestos de solidariedade, fraternidade,
partilha podem amenizar as bordas cortantes da condição órfã humana.
O alerta do sujeito lírico não termina. Ele continua como
um murmúrio na memória. Pode não ter alcançado ainda tudo o que
pretendia, e o conflito estar aberto, mas o eu lírico reflete e afirma:
Houve um tempo em que pensei
na pedra colocada sobre a pedra:
acreditava na reconstrução.
Hoje vejo paredes levantadas
e as conservo
e luto para que nos abriguem
a mim e meu rebanho
sem pastor.
Não me atrevo a mais nada.
Mas sei que fui chamada
94
e escolhida. Cumpri
com o meu dever e sei-o bem.
Inutilmente? Não, como Pessoa,
porque cumpri.
(IC, p. 94).
O sujeito lírico permanece um exímio observador sobre o
jogo da aparência e essência. A própria poeta ratifica tal condição
observadora, quando se despe da máscara, da persona, e claramente assume
a palavra. Finaliza o “poema-livro” com uma descoberta e, ao mesmo
tempo, uma constatação. Ainda que no último momento, uma vez mais, o
leitor é convidado a surpreender-se e refletir com Marly:
A humildade de Borges. Quando o vi
pela primeira vez e lhe mostrei
o coração repleto de admiração,
me respondeu: Si algun día te dás cuenta
de que no soy lo que tú te imaginas,
no digas que no te avisé.
Esta frase impregnou a minha vida.
(FP, p. 75).
Na obra de Marly de Oliveira, desde Contato, existe a ânsia
em responder aos questionamentos torturantes, a partir do momento em
que o sujeito lírico viu além da aparência humana. A poeta mostra um
Orpheu humanizado pela dor e pelo amor. Apresenta seu dilaceramento
pelas Fúrias, por ele renegar imposições. Assim, o eu lírico sente que a
iniqüidade das relações, das pessoas, do mundo tende a permanecer e que
as farpas da existência, àquele que se rebela, tornam-se cada vez mais
agudas.
Em A Força da Paixão e A Incerteza das Coisas, a visão é
extremamente clara, quase corrosiva. O sujeito percebe a podridão que
cerca as relações sociais, que não passam de troca de favores devidamente
95
recompensados. Mas, todos devem ficar alerta, pois “volta e meia lutamos
com o assédio/ dos ratos. Roem, roem,/ [...]/ São ignóbeis, terríveis” (IC,
p.97). Na alienação, não há liberdade que não seja condicionada.
Marly não a petrificação, o perecer dos outros como
percebe o fenecer de si mesma. Mas, não alerta para as agruras humanas
como forma de renegar a vida terrena ou tentar nutrir ódio pelo viver. A
poeta canta as agruras, os sofrimentos de uma vida absurda com vistas a
“desalienar” os homens. Não pretende que os leitores, que os homens
odeiem sua vivência e se conformem com o status quo atual. Pelo contrário,
Marly, influenciada pela filosofia camusiana, aponta para a necessidade da
revolta constante mas também para o amor como salvação e proteção
contra o esmorecimento, a petrificação e a aceitação tácita das farpas da
vida trágica.
96
CONCLUSÃO
Marly de Oliveira é dona de invejável bagagem cultural, que
se reflete em suas produções poéticas, dada uma certa dicção clássica. A
poeta possui uma maneira muito própria de lidar com a língua, de utilizar a
intertextualidade. Segundo Chaves (1997, p.13-14), “quanto à
intertextualidade, [...] que se intensifica na obra a partir do oitavo livro [...],
Marly a exerce de maneira própria, fugindo às direções tradicionais da
paródia, paráfrase ou estilização”. momentos em que Marly se
intratextualiza. Segundo Costa e Silva (1986, p.12), esse processo de
“retorno aos versos antigos, que são ou não são o que podiam ter sido, se
faz num plano distinto: o da nova criação poética. Não se tem aqui uma
abordagem puramente crítica da obra [...] mas uma investigação poética, um
julgamento poético.”
Marly é poeta do “lavoro” poético. Como tal, está sempre
em busca de encaixes perfeitos, tanto no ritmo, quanto na sintaxe.
sempre a procura pelo melhor vocábulo que sirva ao som, ao sentido, à
estrutura versal. Ela lida muito bem com as figuras de linguagem. Na busca
intensa pela perfeição, chega a usar palavras raras, gerando um certo
hermetismo poético consciente, que mostra o interesse em produzir esse
97
efeito, como por exemplo, no poema-livro Contato, classificado por João
Cabral (1994, p.08) como “o mais hermético dos livros”.
Ressalte-se ainda que Marly concebe seus poemas como
livros - “poemas-livro”, assim chamados por serem longos poemas,
aparentemente soltos, mas que estão unidos pelo mesmo tema. Relata a
própria poeta: “meu conceito de livro como algo de certa forma pré-
concebida, que tem a pretensão de desenvolver um tema, que dá voltas
sobre si mesmo, na tentativa de apreender o inapreensível” (OLIVEIRA,
1979, p.09).
Por tentar apreender o inapreensível, a essência e não a
aparência, Marly imprime aos seus poemas um discurso e pensamento
reflexivo-filosófico. Segundo Pedro Lyra (2004, s/p) “Sua poesia tem uma
face rara na nossa tradição lírica: a sondagem filosófica, o que a torna uma
poeta não apenas do sentimento, comum a todos, mas também do
pensamento, próprio dos grandes”. E todo o movimento poético marliano
está ligado a isso.
A partir de Contato, acentuam-se pensamentos esboçados
nos livros anteriores. Nele se concretizam preocupações como a passagem
do tempo, a alienação, a perda da noção de indivíduo. É um olhar
amadurecido direcionado ao humano e suas relações. Desse olhar resulta
um discurso contraditório que diz e depois desdiz, feito por antíteses e
paradoxos.
Vale lembrar que Marly não se esqueceu do trabalho com a
linguagem. Mas a reflexão, como tomada de consciência, pois é como se ela
parasse e observasse, visse o reflexo que o movimento humano, que a ação
humana lhe causa. Daí seus sujeitos serem fadados à contradição, por
questionarem a realidade que os rodeiam, por verem demais. Por isso,
chegam a ficar cegos pelo desejo de cada vez mais enxergar.
98
Devido essa característica saliente, percebeu-se que os
sujeitos líricos marlianos, como a própria poesia, mormente a partir de
1975, trazem à tona elementos do trágico, especialmente do trágico de
Albert Camus.
Percebeu-se também que a escrita de Marly, muito mais
questiona, expõe a chaga que responde ou cicatriza. Não respostas ou
definições, tal como o trágico. O leitor que procura definições, tanto em
Marly quanto na teorização do trágico, não as encontrará.
Contato (1975) é divisor de águas na escrita poética de Marly
de Oliveira. Os livros anteriores, especialmente, Explicação de Narciso (1960),
O Sangue na Veia e A Vida Natural (1967) já traziam esboços do que seriam,
a partir deste livro, traços marcantes na obra de Marly. O constante encanto
de outrora esmaeceu e a poeta entrou em contato com a essência humana,
algo que tanto persegue daqui por diante. Ela esmera-se em desfazer
qualquer aparência. Marly verifica a realidade trágica vivida. Assim, a poeta
busca se desvencilhar do tempo implacável e aponta o amor como possível
saída para os homens.
Em Invocação de Orpheu, o absurdo camusiano com leves
toques de tragédia antiga são perfeitamente acomodados pelas duas
“personas” de Marly. Ela desdobra-se em Orpheu, o mito, e ao mesmo
tempo, em um sujeito rico. Orpheu e o sujeito lírico carregam a carga do
trágico moderno que pode englobar a incapacidade de expressão, o silêncio,
a cegueira, o desencanto, o fenecer, o o-sujeito, a alienação, a
petrificação, para citar alguns. Também carregam o absurdo,
especialmente, no que compete à revolta. O fato é que ambos carregam
pesos parecidos, e essa similaridade também é sentida no discurso e no
decorrer poema em que há mistura entre essas vozes diferentes, mas
semelhantes.
99
Desenvolve-se no extenso poema, uma característica
marcante de Marly, uma espécie de canto contra petrificação, a favor do
despertar humano para o perigo que é perder a noção de si e do outro.
Nessa busca do auto-conhecimento, da essência, da “despetrificação”,
Orpheu morre tima de sua luta levada adiante pelo eu-lírico. Ciente de
toda a problemática trágica, declara pesaroso: “nada nos preserva do Atual”
(OLIVEIRA, 1979, poema XLVI). Mas não desiste da vida.
Para ratificar a idéia desenvolvida, especialmente em
Orpheu, A Força da Paixão e A Incerteza das Coisas (1984) dão continuidade
ao movimento pendular do diz e desdiz, às antíteses e paradoxos que
constituem a fala do sujeito lírico absurdo. O conflito definitivamente está
aberto e mostra suas bordas cortantes.
Marly declara que a dor maior é a ignorância, entre outros.
Ela aborda a cegueira, o sono, a dificuldade expressão e busca por tentar
superá-la, bem como, transgredir as pedras e as ferragens que escondem a
essência das coisas. “A máquina do mundo para mim/ jamais se abriu”
(OLIVEIRA, 1986, p.57), nem precisa, Marly é exímia observadora.
Tal qual, ela incita que o homem seja absurdo e revoltado.
Não se contente em esperar pela felicidade, mas que a busque com todo
ardor. A poeta, em seus sujeitos líricos, quer que o homem veja a realidade
trágica, mas que não deixe de amar sua existência.
O sujeito trágico parece que se degenera, nem afirma nem
nega completamente, indeciso, imóvel, quase sem expressão para tanta dor,
mas sua face absurda é essencialmente revolta. Tem-se o pathos em um
duplo sentido, conforme explica Staiger (1974, p.122): “os gregos [...]
consideram ‘pato’-lógico tudo o que comove ou que de algum modo
perturba o espírito. Daí não [...] fazer a distinção entre Lírica e ‘Pathos’”.
100
Entretanto, modernamente, o pathos pode ser explicado como um ímpeto
contra o status quo (STAIGER, 1974).
os dois na poética marliana, o sujeito trágico absurdo
lutam por um determinado objetivo: a despetrificação. Sujeito lírico observa
as atrocidades, o discurso falacioso com vistas à manipulação de indivíduos
que mais e mais perdem a noção do que é ser indivíduos. Assim há,
gradativamente, a anulação da tragédia e percebe-se, com Gumbrecht
(2001), que não existe possibilidade de heróis genuinamente trágicos,
porque toda ação tem amparo seja na lei, seja na ética moderna.
A outra face desse pathos é a reservada a expressividade
lírica de Marly, o “um-no-outro” que Staiger define como a verdadeira
disposição rica. momentos em que o poeta e seu objeto se
interpenetram de tal forma criando impossibilidade de separação. A poeta
faz isso com o ritmo, com o trabalho com a linguagem, com o pensamento
reflexivo-filosófico. Afinal, conforme Staiger (1974, p.120), “a linguagem
do ‘pathos’ confunde-se, facilmente, com a linguagem lírica”. Marly de
Oliveira promove essa confusão harmonicamente. Com a poesia lírica, ela
interage com a tensão. Ela observa e reflete sobre a situação, o status quo
sem perder a dimensão poética.
Assim, percebe-se que a poética de Marly é profícua ao
estudo do trágico, especialmente do absurdo. Mas ela pode oferecer muito
mais. A escrita marliana é mina para exploradores que apreciem o manejo
seguro e eficiente com a língua, bem como, a fluidez, o jogo brumoso, o
dizer e o negar, tudo com o objetivo de uma observação reflexivo-
filosófica. E que o apreciador não se engane, a flexibilidade da escrita de
Marly não a impede de manter uma qualidade impecável no que compete
ao fazer poético, mas pode frustrar àqueles que buscam conceitos definidos
ou definições. Marly de Oliveira questiona a si e ao leitor. Sem bandeiras ou
101
panfletos, ela usa o poema não para confortar, mas para acordar, despertar,
“despetrificar”. Marly faz de seus poemas lírico-dramáticos servidores tanto
do sentir quanto do pensar, refletir. É isso o que a diferencia dos demais
poetas e que a presente dissertação esmerou-se por apresentar.
102
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109
ANEXOS
110
Ata da reunião da APL em homenagem a Marly de Oliveira.
111
Marly de Oliveira e Grande Otelo.
112
Foto para contracapa dos livros A Força da Paixão/ A Incerteza das Coisas (1984).
Foto para a contracapa do livro Uma Vez, Sempre (2000).
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