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YGOR RADUY
O
PENSAMENTO
TRÁGICO
EM
GRANDE
SERTÃO:
VEREDAS
:
UMA
PERSPECTIVA
NIETZSCHEANA
LONDRINA
2008
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YGOR RADUY
O
PENSAMENTO
TRÁGICO
EM
GRANDE
SERTÃO:
VEREDAS
:
UMA
PERSPECTIVA
NIETZSCHEANA
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre,
área de concentração: Estudos Literários.
Orientadora: Profa. Dra. Adelaide
Caramuru Cézar.
Londrina
2008
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Catalogação na publicação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da
Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina.
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
R132p Raduy, Ygor.
O pensamento trágico em Grande sertão: veredas : uma perspectiva
nietzscheana / Ygor Raduy. – Londrina, 2008.
195 f.
Orientador: Adelaide Caramaru Cézar.
Dissertação (Mestrado em Letras) Universidade Estadual de Londrina,
Centro de Letras e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Letras,
2008.
Bibliografia: 188-195.
1. Rosa, João Guimarães, 1908-1967 Crítica e interpretação Teses. 2.
Ficção brasileira História e crítica Teses. I. Cézar, Adelaide Caramuru. II.
Universidade Estadual de Londrina. Centro de Letras e Ciências Humanas.
Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.
CDU 869.0(81)-31.09
YGOR RADUY
O
PENSAMENTO
TRÁGICO
EM
GRANDE
SERTÃO:
VEREDAS
:
UMA
PERSPECTIVA
NIETZSCHEANA
COMISSÃO EXAMINADORA
__________________________________________
Profa. Dra. Adelaide Caramuru Cézar
Universidade Estadual de Londrina
__________________________________________
Prof. Dr. Luiz Carlos Santos Simon
Universidade Estadual de Londrina
__________________________________________
Prof. Dr. Paulo Astor Soethe
Universidade Federal do Paraná
Londrina, ___ de _________________ de 2008.
AGRADECIMENTOS
Dedico especialmente este trabalho à Profa. Dra. Adelaide Caramuru Cézar que,
com vasta generosidade, constante disponibilidade e inesgotável vitalidade
(mescladas com a imprescindível dose de exigência), anos me acompanha,
passo a passo, pelos caminhos da leitura e da pesquisa em Guimarães Rosa.
Ao caríssimo Prof. Dr. Volnei dos Santos, pelo inestimável suporte no terreno
do pensamento filosófico.
À minha família, pela confiança e motivação.
Aos meus amigos, Miguel Vieira e Gabriela Canale, pelas conversas longas, pelos
livros emprestados, pela experiência trocada, mas sobretudo pela alegria em tê-
los como companheiros de travessia.
À CAPES, pelo suporte material.
Em circunstâncias de paz, o homem guerreiro se lança contra si mesmo.
Nietzsche
A tragédia imacula o ser.
Anônimo
Eu estou depois das tempestades.
Riobaldo
RADUY, Ygor. O pensamento trágico em Grande sertão: veredas: uma perspectiva
nietzscheana. 2008. 195p. Dissertação (Mestrado em Letras) Universidade
Estadual de Londrina, Londrina.
RESUMO
O presente estudo, intersecção entre os campos da literatura e da filosofia, é uma
reflexão a respeito da presença de um pensamento trágico no discurso de
Riobaldo, protagonista de Grande sertão: veredas, romance de João Guimarães Rosa
publicado em 1956. Os pilares que sustentam a noção de “pensamento trágico”
são, sobretudo, as formulações da filosofia madura de Nietzsche. Parte-se, no
capítulo primeiro, de um esboço da gradual passagem de uma “poética da
tragédia” (de índole aristotélica) a uma “filosofia do trágico”, verificada no
âmbito da modernidade filosófica, especialmente na Alemanha. No pensamento
de Nietzsche, o trágico, como noção que polariza e reflete traços fundamentais
da experiência humana, atua como índice de uma postura francamente afirmativa
em relação à existência, liberta do anseio metafísico por fundamento. No
capítulo segundo, “A negação”, busca-se investigar os diversos estratagemas aos
quais Riobaldo lança mão no intuito de esclarecer o sentido da experiência
narrada. Procedimentos que, de um modo ou outro, barram o acesso ao trágico,
na medida em que burlam ou encobrem os aspectos dolorosos e problemáticos
da existência em favor das ficções do Ser baseadas nos atributos de duração,
permanência, identidade, estabilidade, etc. No capítulo terceiro, “A afirmação”,
entra em cena a possibilidade do trágico, dada a falência das estratégias retilíneas
rumo ao Sentido, captada pela argúcia do próprio narrador. Nesse estágio, busca-
se entrever de que forma a reflexão de Riobaldo opera no limite opaco além do
qual as noções herdadas por uma longa tradição do pensamento são
continuamente postas em questão.
Palavras-chave: João Guimarães Rosa; romance; pensamento trágico.
RADUY, Ygor. O pensamento trágico em Grande sertão: veredas: uma perspectiva
nietzscheana. 2008. 195p. Thesis (Master of Languages) Universidade Estadual
de Londrina, Londrina.
ABSTRACT
The present thesis, intersection between the fields of literature and philosophy,
aims at tracing the presence of a tragic thought in the discourse of Riobaldo,
protagonist of Grande sertão: veredas, novel by João Guimarães Rosa, published in
1956. The sustainers of the conception of “tragic thought” are, over all, the
formulations of Nietzsche´s mature philosophy. At first moment, the thesis
presents a brief sketch of the gradual passage from a “poetic of tragedy” (with
aristotelian traces) to a “philosophy of the tragic”, established at the
philosophical modernity field, specially in Germany. The tragic, in Nietzsche´s
thought, acts as a polarizer and reflective notion for fundamental issues
concerning to the human experience. It operates, indeed, as a signal related to an
affirmative disposition before existence, methaphisycaly released. At the second
chapter, “The denial”, the target is to investigate the many procedures used by
Riobaldo in order to grant a meaning to the reported experience. Procedures
which, somehow, hinder the access to the tragic, deceiting or dissembling life´s
painful features on account of the Being fictions based on qualities as duration,
permanence, identity, stability, etc. At the third chapter, “The affirmation”, the
possibility of the tragic arises, given the failure of the rectilineal strategies
towards the Sense, realized by the narrator himself. In this grade, the goal is
glimpsing how Riobaldo´s meditation proceeds in the shadowy border line
beyond which traditional inherited conceptions are unremittingly disputed.
Key-words: João Guimarães Rosa; novel; tragic thought.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .....................................................................................................1
A possibilidade de um saber trágico.................................9
Estrutura da pesquisa........................................................11
1. CAPÍTULO PRIMEIRO – OS CAMINHOS DO TRÁGICO..................17
1.1 A permanência do trágico............................................................17
1.2 O trágico na Alemanha................................................................23
1.3 Schiller, Schelling e Hegel: a emergência de uma filosofia
do trágico............................................................................................27
1.4 Schopenhauer: o trágico como negação da Vontade............39
1.5 Nietzsche: as faces do trágico.....................................................46
1.5.1
tragédia e metafísica
..................................46
1.5.2
o trágico emancipado
................................60
1.5.3
a vida como jogo
.......................................62
1.5.4
arte e conhecimento trágico
.....................65
2. CAPÍTULO SEGUNDO – A NEGAÇÃO........................................................72
2.1. O romance da falta........................................................75
2.2 O romance do esclarecimento......................................82
2.3 A via metafísica...............................................................94
3. CAPÍTULO TERCEIRO – A AFIRMAÇÃO...................................................110
3.1 Um pensamento vertente.............................................110
3.2 Um olhar trágico............................................................128
3.3 O trágico em travessia...................................................143
3.4 Os poderes do falso.......................................................156
3.5 Alegria trágica: o pacto com a vida..............................167
CONCLUSÃO...........................................................................................................188
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................177
Introdução
Grande Sertão: veredas e o trágico? Como pensar essa relação? Ou antes será
essa relação meramente possível? Mas, de que trágico se trata? Pois há tantos trágicos – há
tantas formas de encarar o trágico, tantas manifestações diferentes de trágico, tantos
pensamentos divergentes sobre o trágico. Trágico e tragédia, trágico e filosofia, trágico e
literatura são níveis distintos entre os quais, todavia, canais intercomunicantes. A
presente pesquisa tem o objetivo de investigar o trágico na literatura através da filosofia.
Trata-se então de um trágico filosófico, um trágico que pensa um trágico pensante. E
quando os limites entre filosofia e literatura não são mais nítidos? Pode-se considerar
uma obra filosófica como uma obra de arte? E uma obra literária, pode ser concebida como
documento filosófico? Qual o limite então, qual a diferença (a semelhança) que separa (que
une) o pensador e o artista? Será a arte uma forma de conhecimento? A filosofia (ao
menos, certa filosofia) uma forma de arte? Ou: pode o trágico fornecer uma perspectiva da
existência? Um testemunho a respeito da vida? Se a resposta for positiva, que perspectiva é
essa? Qual o caráter desse testemunho? Podem tais perspectiva e testemunho serem
consideradas como marcas rastros de um pensamento trágico? E ainda: é possível
identificar a presença dessas marcas no romance de Rosa? A pesquisa opera nesse terreno
emaranhado de perguntas sem respostas e visa, na medida do possível, apresentar o seu
olhar, a sua versão, a sua resposta, fatalmente parcial e limitada, a respeito da questão.
A obra de Guimarães Rosa é marcada por um interesse especulativo, articulado
literariamente, que remete a temas clássicos da filosofia. Paulo Soethe, refletindo sobre a
relevância filosófica de Grande sertão: veredas em artigo publicado na revista Veredas de
Rosa, alude à posição de Thomas Mann, segundo a qual a forma literária do romance não é
“manifestação decadente da epopéia, mas uma realização mais desenvolvida e elevada
dessa forma, capaz de abrigar reflexões filosóficas sob a conformação poética” (SOETHE,
2001, p. 630). Para Soethe, tal posição de Mann aponta para “um movimento significativo
do início do século XX, que abriga autores e pensadores como Alfred Döblin, Gyorg
Lukács, Hermann Broch e Robert Musil”. Para o pesquisador, a “essa linha de romances
filosóficos clássicos da modernidade, ainda que com uma defasagem de vários anos, pode-
se bem associar Grande sertão: veredas, inclusive a partir de menções elogiosas de
Guimarães Rosa a Mann e Musil” (SOETHE, 2001, p. 630). O pesquisador também alude
à posição de Benedito Nunes sobre o romance, para quem “o alto vel de oralidade da
narrativa, sustentado no recuo para o trabalho da linguagem, é inseparável de um alto nível
reflexivo” (NUNES, 1983, p. 200). Soethe ainda salienta que
embora Rosa tenha se manifestado sobre certa filosofia como a “maldição do
idioma”
1
, não se pode desconsiderar a relevância filosófica de sua obra, nem
tampouco seu interesse pessoal por filosofia. Em outros momentos, o escritor
mencionou filósofos com apreço (Unamuno, Kierkegaard, Walter Benjamin,
por exemplo), e dedicou-se comprovadamente à leitura de obras filosóficas e
de história da filosofia. Ainda que com a liberdade do escritor, assim como
Thomas Mann, Rosa dispôs conceitos, formulações e argumentos ao sabor de
critérios estéticos e ficcionais, mas a partir de uma leitura feita com atenção e
empenho (SOETHE, 2001, p. 630-631).
2
A inserção de Grande sertão: veredas na linha do romance filosófico moderno é de
grande interesse para esta pesquisa. Além de Mann e Musil, Rosa ainda nutria grande
interesse pelas obras de Goethe, Kafka e Dostoievski, o que repercute sensivelmente em
seu fazer literário. Kathrin Rosenfield, em ensaio dedicado a investigar a natureza dessas
afinidades, sustenta que
na moldura dos casos e causos da vida sertaneja, o narrador trilha os caminhos
de uma reflexão estética voltada para os temas nobres da filosofia: a questão do
ser dos diálogos platônicos, conjecturas quanto às provas da existência de Deus
(...), ruminações sobre o estatuto da natureza na experiência humana (...) Além
disso, G. Rosa coloca questões que são da ordem da filosofia política, como a
questão do mal (...) O que liga Rosa à filosofia é, portanto, um tema ou, mais
precisamente, um problema que pertence tanto ao misticismo e à religiosidade
como à teologia e à filosofia. Trata-se da temática metafísica, do problema da
relação entre a realidade sensível e o domínio supra-sensível, entre as coisas
cognoscíveis e as incognoscíveis (ROSENFIELD, 1998, p. 171-172).
1
Em entrevista a Günter Lorenz, Rosa diz: “A filosofia é a maldição do idioma” (LORENZ, 1973, p. 324). A
respeito dessa posição do escritor, Susana Kampff Lages argumenta: “A revolta de Rosa contra a filosofia
parece dirigir-se menos contra os textos do que contra o efeito que sua vulgarização possa provocar em
termos de uma suposta conquista de verdades definitivas a respeito do ser humano e do mundo” (LAGES,
2002, p. 79).
2
Em nota de rodapé ao mesmo artigo citado, Soethe informa que “no acervo do Arquivo Guimarães Rosa do
Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, um dos cadernos de estudo para a obra do
escritor (E 17) traz na capa o título ‘Filosofia/Idéias’ e atesta leituras sistemáticas na área. Trata-se de um
caderno escolar, de noventa e cinco folhas numeradas e sem utilização do verso, provavelmente de fins dos
anos 40. A única indicação aproximativa de data (fl.24) é uma lista de livros de Marcel Jouhandeau, em que o
mais recente, De la Grandeur, é de 1952. Assim, grande possibilidade de que as anotações tenham sido
feitas durante o período de concepção e escrita de Grande sertão: veredas, na década entre meados dos anos
40 e 50 (SOETHE, 2001, p. 630-631).
O estudo aqui proposto, no intuito de lançar alguma luz sobre a articulação literária
de temas filosóficos em Rosa, acaba por compartilhar da discussão a respeito da interação
entre os campos da arte e do conhecimento filosófico. Segundo nosso ponto de vista, entre
arte e filosofia há um espaço poroso de intersecção, terreno onde os dois campos se
enlaçam em fecundo diálogo. É nesse campo interseccional que a pesquisa atua,
procurando entrever de que forma temas filosóficos são configurados artisticamente,
revelando a cumplicidade entre espessura estética e pathos reflexivo.
Destarte, configura-se este estudo como experimento analítico que busca entrever, a
partir do pensamento maduro de Nietzsche, as marcas de um conhecimento trágico
presentes no discurso de Riobaldo, protagonista de Grande Sertão: veredas, romance de
Guimarães Rosa publicado em 1956. Com isso, esperamos contribuir para o vivo debate,
sempre renovado, a respeito das múltiplas e às vezes conflitantes interpretações que o
romance vem suscitando desde a época de seu lançamento. Pode-se dizer, segundo
Walnice Nogueira Galvão, que o território descortinado por Rosa pode “ser percebido
segundo três pontos de vista diversos: o geográfico propriamente dito, o mítico e o
metafísico”. A pesquisadora considera que a perspectiva metafísica
3
“transfigura o sertão
em arena abstrata onde o mal grassa, onde se joga o destino de homens e mulheres, onde
Deus e o Diabo travam uma batalha cósmica que tem por trunfo a salvação ou a danação
da alma dos viventes” (GALVÃO, 2006, p.144-145).
Segundo Willi Bolle (BOLLE, 2004, p. 19-20), as abordagens do romance dividem-
se em cinco tipos metodológicos: 1) os estudos lingüísticos e estilísticos, que
proporcionam subsídios para a compreensão do texto difícil, dos quais se destaca o trabalho
monumental de Nilce Sant´Anna Martins, O xico de Guimarães Rosa, entre muitos
outros; 2) as análises de estrutura, composição e gênero, representadas por estudiosos
como Roberto Schwarz, Eduardo Coutinho, Davi Arrigucci Jr, entre outros; 3) a crítica
genética; 4) as interpretações esotéricas, mitológicas e filosóficas às quais se dedicam
pesquisadores como Benedito Nunes, Francis Utéza, Kathrin Rosenfield, Ettore Finazzi-
Agrò e Heloísa Vilhena de Araújo; 5) as interpretações sociológicas, histórias e políticas,
entre as quais se destacam os trabalhos de Walnice Nogueira Galvão, Heloísa Starling e do
próprio Bolle. A pesquisa aqui proposta filia-se claramente à perspectiva filosófica,
3
Acreditamos que Walnice Nogueira Galvão usa o adjetivo metafísico no sentido mais geral de filosófico e
não no sentido mais estrito e dual referente ao estudo do ser oposto à aparência.
embora também se utilize de formulações produzidas por estudiosos que privilegiam o viés
sociológico
4
.
Segundo informação do mesmo autor, a fortuna crítica da obra, em 1999,
acumulava “mais de 1500 títulos” (BOLLE, 2004, p. 19). Para Antonio Candido, “na
extraordinária obra-prima Grande Sertão: veredas de tudo para quem souber ler (...)
Cada um poderá abordá-la ao seu gosto, conforme o seu ofício; mas em cada aspecto
aparecerá o traço fundamental do autor: a absoluta confiança na capacidade de inventar”
(COUTINHO, 1991, p. 294). De fato, quando se tem em mente a quantidade e a
multiplicidade de abordagens que o romance vem suscitando, confirma-se o diagnóstico de
Antonio Candido. Ettore Finazzi-Agrò considera o romance como o “nó ao redor do qual
se enrosca a escrita de Rosa e, por outro lado, o espaço ideal em que o fio do seu discurso
pode ser destrançado” (FINAZZI-AGRÒ, 2001, p. 29). O pesquisador italiano, por outro
lado, atenta para a
dificuldade ou até a impossibilidade de colocar a obra de Rosa dentro de um
esquema hermenêutico e/ou categórico: e não pelo fato de ela ser, de modo
talvez genérico, uma obra-prima, mas sim pelo seu ser, de modo, se possível,
ainda mais genérico, uma obra em que a vastidão e a complexidade do mundo
do mundo moderno tendo dentro de si o antigo, em uma co-presença
característica (...) tentam se representar, tentam se expressar de forma
completa e, justamente, complexa (FINAZZI-AGRÒ, 2001, p.32-33).
Não se almeja, portanto, neste estudo, promover qualquer espécie de “encaixe” da
obra de Rosa em esquematismos hermenêuticos postos de antemão. O que move essa
pesquisa é o amor pela poesia e pelo pensamento filosófico e a curiosidade a respeito
daquilo que pode surgir quando os dois territórios se tocam. Amor do qual deriva,
sobretudo, o cuidado em não distorcer ou reduzir os muitos caminhos que uma literatura
como a de Rosa oferece, mas também a cautela de não sucumbir às muitas armadilhas que
nesses caminhos abundam. Se optamos por unir Rosa e Nietzsche numa mesma reflexão, é
pela percepção do olhar agudo com que ambos miram a condição humana: a ânsia por abrir
inauditos campos de pensamento entravados pelo hábito e pela tradição, a vontade de
liberar, desautomatizar, subverter categorias, ver com novos olhos, multiplicar
perspectivas, incitar a dúvida, promover a especulação, fazer rebentar aquilo que esteve
4
Referimo-nos especialmente a Willi Bolle, autor de grandesertão.br o romance de formação do Brasil
(2004). Este, através de uma leitura intertextual, que aproxima o romance de Rosa de Os Sertões, de Euclides
da Cunha, interpreta Grande Sertão: veredas como relato que oculta uma história cifrada da formação do
país.
cristalizado em potência. E se o trágico comparece como instrumental analítico é por
crermos que a tragicidade expressa aquilo que no humano há de mais humano - o que há de
mais frágil e o que há de mais forte. O trágico toca nas feridas mais dolorosas, assim como
é caminho para a alegria mais genuína. Assim, respeitando a especificidade intransferível
do objeto literário, objetivamos propor uma interpretação, dentre tantas outras possíveis,
que seja entendida mais como experimento do que como busca otimista por uma verdade
última, passível de ser extraída das malhas do texto.
***
Como se sabe, a questão do trágico constitui um longo e rico capítulo da história
do pensamento ocidental, que começa em Aristóteles, prossegue no pensamento medieval,
assume variadas modulações no Renascimento, emerge sob nova roupagem no âmbito no
neo-humanismo iluminista e desemboca na modernidade enriquecido pelas formulações de
pensadores como Schiller, Schelling, Hegel, Hölderlin, Schopenhauer e Nietzsche. Como
observa Albin Lesky,
algo, sem dúvida, que podemos afirmar com inteira segurança: os gregos
criaram a grande arte trágica e, com isso, realizaram uma das maiores façanhas
no campo do espírito, mas não desenvolveram nenhuma teoria do trágico que
tentasse ir além da plasmação deste no drama e chegasse a envolver a
concepção do mundo como um todo (LESKY, 1996, p.27).
Logo, se dermos crédito à informação de Lesky, quando se fala do trágico, que
se distinguir entre o fenômeno estético, religioso e social, bem delimitado e compreendido
no espírito da Grécia clássica do século V a.C., a que damos o nome de tragédia grega e as
posteriores formulações de artistas e pensadores que buscaram, cada qual à sua maneira e
de acordo com sua perspectiva histórica, compreender e reatualizar aquele fenômeno. Por
sua vez, tais formulações distinguem-se entre aquelas de caráter poetológico
5
, fundadas
amplamente em Aristóteles, que buscaram explicar o fenômeno do trágico atentando para a
especificidade formal de suas manifestações isoladas e aquelas que, prescindindo do
fenômeno social e historicamente delimitado, buscaram derivar do trágico o sentido
5
O adjetivo “poetológico”, o dicionarizado, é utilizado por Roberto Machado em seu O nascimento do
trágico para designar o “estudo da técnica poética em geral, sem considerar o poema trágico como expressão
de uma sabedoria ou visão de mundo que a modernidade chamará de trágica” (MACHADO, 2006, p. 24). Ao
longo deste trabalho, o termo é utilizado no mesmo sentido, apontando sempre para o âmbito de uma
“poética da tragédia” voltada sobretudo para as especificidades formais da tragediografia clássica.
filosófico de uma cosmovisão. Um sentido que, inegavelmente, possui raízes no solo da
Grécia do século V, mas que busca ultrapassar as delimitações históricas e sociais do
drama em prol de uma possível ontologia trágica ou, mais modestamente, de um pensar
trágico.
Assim, para Peter Szondi, “desde Aristóteles uma poética da tragédia: apenas
desde Schelling, uma filosofia do trágico” (SZONDI, 2004, p. 23). O estudo elaborado por
Szondi, Ensaio sobre o trágico, publicado em 1961, é de grande interesse no âmbito desta
pesquisa, justamente por ater-se ao processo de elaboração de um pensamento sobre o
trágico considerado como documento ontológico a respeito da condição humana. Ao
analisar a concepção do trágico formulada por uma série de pensadores e artistas, Szondi
torna perceptível o movimento que, a partir de Schelling, possibilita o engendramento de
uma filosofia do trágico, independente de uma poética da tragédia, de índole aristotélica.
Ao estabelecer a distinção entre os dois territórios, Szondi aponta:
Sendo um ensinamento acerca da criação poética, o escrito de Aristóteles
pretende determinar os elementos da arte trágica; seu objetivo é a tragédia, não
a idéia de tragédia. Mesmo quando vai além da obra de arte concreta, ao
perguntar pela origem e pelo efeito da tragédia, a Poética permanece empírica
em sua doutrina da alma, e as constatações feitas a do impulso de imitação
como origem da arte e da catarse como efeito da tragédia – não têm sentido em
si mesmas, mas em sua significação para a poesia (...) A poética da época
moderna baseia-se essencialmente na obra de Aristóteles; sua história é a
história da recepção dessa obra. (...) Dessa poderosa zona de influência de
Aristóteles, que não possui fronteiras nacionais ou temporais sobressai como
uma ilha a filosofia do trágico. Fundada por Schelling de maneira inteiramente
não-programática, ela atravessa o pensamento dos períodos idealista e pós-
idealista, assumindo sempre uma nova forma (SZONDI, 2004, p. 23-24).
Aí, compreende-se bem que a longa soberania da perspectiva aristotélica, a partir
da qual brotou um sem-número de interpretações da tragédia de caráter formal,
poetológico, começa a ser repensada na Alemanha do século XIX. Entenda-se: é uma
tradição sólida e contínua, aquela baseada na Poética de Aristóteles, que pela primeira vez
será reconsiderada e, de certa forma, preterida em favor de uma filosofia do trágico. Pois,
tal como Albin Lesky depreende de sua pesquisa, “a partir do Estagirita, nenhum caminho
nos leva à concepção do trágico no moderno sentido de cosmovisão” (LESKY, 1996, p.
29). Com efeito, é possível verificar o abandono positivo da preceptiva aristotélica, na
medida em que a noção de trágico torna-se parte constituinte dos sistemas filosóficos da
modernidade, a partir de Schelling. Entretanto, é preciso ter em vista os antecedentes que,
na própria Alemanha, no âmbito do classicismo, tornam possível essa virada na reflexão
sobre o trágico.
Em fins do século XVIII, uma certa nostalgia da Grécia, verificada com êxito na
estética de Winckelmann, elege a Grécia clássica como cânone regenerador da arte
moderna. As idéias sobre a arte grega, geradas no círculo do classicismo de Weimar com
Goethe e Schiller, reivindicam para a obra de arte o ideal de beleza clássica e trazem à
tona, com vigor, a possibilidade de uma estética fundada sobre uma certa concepção da
arte grega, herdeira de Winckelmann, fundada sobretudo nas conhecidas categorias
apolíneas de medida, serenidade, harmonia, proporção, comedimento, etc. Desde então, a
tragédia passa a ser vista não apenas como fenômeno estético ordenado por diretrizes
formais, mas também como representação conflitiva da condição humana, capaz de
apresentar algo sobre a própria natureza da existência. Segundo Roberto Machado, a idéia
de trágico como cosmovisão é característica da modernidade. Se até então a reflexão sobre
o trágico girava em volta da aceitação ou transgressão das diretrizes aristotélicas, a partir
de Schelling configura-se, pela primeira vez, uma filosofia do trágico:
é apenas com Schelling que nasce uma filosofia do trágico: uma reflexão sobre
o fenômeno trágico, sobre a idéia de trágico, sobre as determinações do trágico,
sobre o sentido do fenômeno trágico, sobre a tragicidade. Construção
eminentemente moderna, a originalidade dessa reflexão (...) se encontra
justamente no fato de o trágico aparecer como uma categoria capaz de
apresentar a situação do homem no mundo, a essência da condição humana, a
dimensão fundamental da existência (MACHADO, 2006, p. 42).
A partir de Schelling, inúmeros artistas e pensadores dão voz à questão do trágico,
que tem grande fecundidade no âmbito do idealismo alemão pós-kantiano. Na primeira
metade do século XIX, Schopenhauer fornece nova especulação sobre o tema,
caracterizando a ruptura com a tradição idealista. Com Nietzsche, na segunda metade do
século, a questão do trágico adquire feições inusitadas, configurando a ruptura total com o
idealismo precedente. Entende-se o trágico, no pensamento maduro do filósofo, como
disposição anti-metafísica e afirmadora diante da existência. É exatamente sobre esta
concepção, herdeira de todo pensamento anterior, que optamos por trabalhar. Com efeito, a
questão do trágico atravessa a obra de Nietzsche de ponta a ponta, desde as primeiras
preleções como professor da Universidade da Basiléia em 1870 aos escritos derradeiros,
coligidos em sua irreverente autobiografia intelectual, Ecce Homo, de 1888.
É certo que a noção de trágico em Nietzsche adquire diversas feições ao longo de
seu percurso intelectual. Em O Nascimento da Tragédia, de 1872, encontramos o
fenômeno trágico ligado a concepções metafísicas oriundas da leitura de Schopenhauer,
especialmente no que se trata da conciliação, efetuada pela tragédia, entre, de um lado, a
Vontade, tomada como essência e cleo do mundo – representada cenicamente pela
música dionisíaca – e, de outro, o mundo homérico da beleza, da forma e da individuação –
representado pelo impulso apolíneo. Entretanto, a noção do trágico que serve de matriz a
esta pesquisa é aquela exposta na filosofia madura de Nietzsche. Ela difere sensivelmente
daquela noção do trágico exposta em O Nascimento da Tragédia porque rejeita a oposição
metafísica essência-aparência em favor de uma aceitação radical da existência,
independente de qualquer instância supra-sensível.
Portanto, não se trata, de modo algum, nesta pesquisa, de buscar identificar, no
texto de Rosa, os caracteres formais da tragédia presentes na formulação de Aristóteles ou
em qualquer outra. De acordo com a distinção que esboçamos acima, entende-se o trágico
aqui mais como cosmovisão, menos como gênero literário ordenado por diretrizes formais.
Tencionamos ainda deixar claro que o estudo aqui proposto não vem ingenuamente
postular a pertinência de um Rosa nietzscheano ou de uma inspiração nietzscheana
intencionalmente configurada no romance do escritor mineiro. Procura-se, no exercício da
liberdade crítico-interpretativa, propor uma perspectiva de abordagem capaz de lançar luz
sobre alguns dos problemas fundamentais que o texto rosiano suscita. Problemas esses que,
tratados literariamente por Rosa, são agudamente contemporâneos e remetem a uma forma
de pensar que inegavelmente tem, como uma de suas matrizes, o pensamento nietzscheano.
Se atualmente, como nos parece, os intérpretes de Rosa concordam que o regionalismo
rosiano é, em verdade, palco para a encenação de dramas humanos universais, é lícito
avançar um passo e indagar: que espécie de drama se desenrola? E quais conflitos são
postos em cena? De que maneira os personagens de Rosa lidam com tais conflitos? Quais
as dúvidas que os atormentam, os consolos que os tranqüilizam enfim, o que é que os
move? Ao considerar Grande sertão: veredas, é possível perceber que grande parte das
aporias e dilemas tratados pela narrativa encontram ressonância no âmbito de um tempo
onde o estatuto de noções como Deus, sujeito, liberdade, razão, fundamento, é
permanentemente posto em questão.
A possibilidade de um saber trágico
A primeira pergunta que se impõe é a seguinte: afinal, o que nos autoriza
aproximar, de forma tão veemente, a obra de um escritor brasileiro do século XX ao
pensamento de um filósofo alemão do século XIX, e propor afinidades entre eles? Aqui,
apropriamo-nos de uma passagem do estudo do professor Volnei dos Santos intitulado
“Aproximações entre Friedrich Nietzsche e João Guimarães Rosa: a vida enquanto ensaio e
perigo”:
se os dois personagens, o espírito livre, de Nietzsche, e Riobaldo, de J.G. Rosa,
aparecem distantes do tempo e no espaço, aproximam-se sobremaneira no
tratamento que é, através deles, dado ao humano, “essa coisa obscura e velada”
e à percepção da vida enquanto meio de conhecimento e perigo (SANTOS,
2007, p.1).
A vida como meio de conhecimento e perigo, justamente, parece ser o ponto axial a
partir do qual é possível estabelecer um diálogo fecundo entre Nietzsche e Rosa. Uma vez
lançada a semente da dúvida no plano das certezas incondicionais, qualquer critério
ontológico dogmático, candidato a suporte do viver e conhecer, perde a validade e abre
espaço para a reflexão especulativa. Em termos rosianos, a possibilidade de uma vereda
retilínea de acesso ao saber é destronada em favor de uma multiplicidade labiríntica de
veredas que conduzem a direções diversas, a saberes diversos. No campo epistemológico,
deixa-se de crer na possibilidade de um conhecimento verdadeiro e último, oriundo de uma
instância extra-perspectiva, para reconhecer o caráter sempre perspectivístico do
conhecimento. Contudo, é necessário salientar que o perspectivismo
não consiste na doutrina epistemológica segundo a qual o conhecimento varia
de acordo com o ponto de vista, mas na doutrina ontológica de que não um
ponto de vista exterior ao mundo ou seja, um mundo do Ser, de substâncias e
essências, de identidade e permanência. Uma tal concepção não acarreta apenas
a impossibilidade de conhecermos a verdade, mas a inexistência da verdade, no
sentido ontológico do termo, ou seja, de uma constituição inerente ao mundo
da qual o conhecimento seria a representação mais ou menos exata (ROCHA,
2003, p. 17).
Compreende-se que o perspectivismo conduz a uma desfiguração radical da noção
ontológica de verdade. A tal desfiguração procede que tanto viver quanto conhecer tornam-
se atividades experimentais, sempre mais ou menos marcadas pelo signo do perigo,
percepção que aparece disseminada no romance na fórmula “Viver é negócio muito
perigoso...” (ROSA, 1980, p.11).
6
A inexistência de uma perspectiva exterior ao mundo,
por sua vez, deriva basicamente de uma rejeição do dualismo ontológico platônico-cristão
segundo o qual a realidade é dividida em dois níveis distintos o real e o aparente. A
modernidade, que opera uma suposta superação do dualismo ontológico revela-se,
contudo, para Nietzsche, como terreno no qual esse mesmo dualismo continua a medrar. Se
o homem moderno abandona a crença religiosa num plano metafísico – se metaforicamente
“Deus está morto” (NIETZSCHE, 2001, p.148) a modernidade substitui essa instância
pela crença socrática no sujeito racional e no poder perscrutador da ciência, isto é, a
promessa do além-mundo lugar aos projetos de futuro possibilitados pelo avanço
científico e tecnológico. O homem moderno tem, portanto, como tarefa, livrar-se da
sombra insidiosa do “Deus morto” (NIETZSCHE, 2001, p. 135).
Um saber trágico só se efetiva a partir da realização dessa tarefa, ou seja, ele é
possível no momento em que o homem executa a renúncia radical de ambas as versões do
projeto metafísico. Estabelecida a caducidade da noção ontológica de verdade, seja ela
oriunda do saber científico ou da crença religiosa, o homem trágico lança sobre o mundo
um olhar emancipado em relação a tais valorações depreciativas da vida
7
. A nosso ver,
tanto o artista quanto o pensador, admitem o conhecimento como perspectiva dentre outras
apontada em direção à multiplicidade cambiante do devir. No romance, essa noção
cristaliza-se literariamente no caráter ambíguo e reversível que todas as coisas adquirem
sob o olhar de Riobaldo. Logo, tanto viver quanto conhecer aparecem, em Rosa e
Nietzsche, não como ações seguras, retilíneas, infalíveis, mas como experimentos,
tentativas, ensaios, em suma, como negócios muito perigosos.
A estrutura da pesquisa
O alvo primeiro visado pela pesquisa é a delimitação da noção nietzscheana de
trágico, a ser efetivada no primeiro capítulo, de cunho essencialmente teórico. A questão
que norteia toda essa reflexão diz respeito à emergência, anterior a Nietzsche, de um
pensar trágico, ou seja, de uma filosofia do trágico independente de formulações
poetológicas. Busca-se investigar de que forma essa noção configurou-se na Alemanha a
6
Todas as citações de trechos de Grande Sertão: veredas m como referência a 14
ª
edição do romance
publicada pela editora José Olympio em 1980. A partir daqui, limitar-nos-emos a indicar omero da página
do trecho aduzido.
7
No capítulo dedicado à análise do romance, veremos que tanto a crença metafísica quanto a confiança
desmedida no poder do sujeito racional são postas em dúvida por Riobaldo.
partir de fins do século XVIII entre artistas e pensadores. A questão da gradual
constituição, na história da cultura, da noção filosófica do trágico como cosmovisão servirá
para ressaltar a especificidade da concepção nietzscheana. O estudo de diversas
concepções do trágico (Schiller, Schelling, Hegel, Schopenhauer) opera ainda no sentido
de enriquecer a reflexão e ampliar a perspectiva de compreensão do tema. A análise do
romance, entretanto, tomará como suporte somente a concepção nietzscheana do trágico.
O primeiro capítulo apresenta, pois, como primeira seção, uma indagação a respeito
da sobrevivência do trágico, para em seguida esboçar uma breve história do pensamento
sobre o assunto, tentando detectar, ao longo de uma linha diacrônica, as noções
fundamentais elaboradas sobre o trágico e sobre a tragédia a partir do classicismo alemão,
constituindo este último o assunto da segunda subdivisão. O terceiro sub-item, dedicado a
Schiller, Schelling e Hegel, visa apresentar, de forma muito sucinta, a gradual emergência
de uma filosofia do trágico no âmbito do idealismo alemão. O quarto sub-item focaliza a
filosofia de Schopenhauer na qual o trágico concebido é como caminho para a negação da
vontade. Finalmente, a quinta seção do primeiro capítulo é dedicada à apresentação da
concepção do trágico elaborada por Nietzsche, em suas duas fases. A possibilidade de
esboço desse panorama deve muito ao estudo de Roberto Machado, publicado em 2006,
intitulado O Nascimento do Trágico. Machado investiga a formação de um pensamento
sobre o trágico, ao explicitar de que forma, a partir de uma poética da tragédia, de cunho
aristotélico, tomada como estudo analítico da poesia trágica, foi possível a emergência
posterior de uma filosofia do trágico, característica da modernidade.
A parte analítica da pesquisa encontra-se dividida em dois capítulos. No primeiro,
intitulado “A negação” busca-se, grosso modo, identificar as estratégias utilizadas pelo
narrador para conferir um sentido definitivo à existência rememorada. Em Grande Sertão:
veredas, a instabilidade do devir atua como força-motriz de uma narração que se propõe a
ordenar e esclarecer o vivido, a desfazer os nós que a vida atou na alma do jagunço. A
partir daí, configura-se o perene agon entre a vontade de verdade de Riobaldo e a recusa da
matéria vertente em se sujeitar a essa necessidade de ordenamento.
No primeiro tópico, investiga-se a possibilidade de tomar Grande Sertão: veredas
como “romance da falta”. Riobaldo é o narrador em busca de um “norteado” (p. 366) – ou
seja, uma norma, um fundamento, uma lei, uma direção – que confira sentido à sua
existência. Norma essa que sempre lhe escapa, configurando a falta, o vazio, a ausência
que ele busca a todo instante preencher. Na busca pelo sentido, o narrador parece lançar
mão de dois procedimentos: 1) a confiança no poder da razão esclarecida do interlocutor e
2) a crença na transcendência extra-mundana.
Analisaremos, primeiramente, a estratégia racional. Ao longo do texto, torna-se
evidente, no discurso do narrador, o desejo de um saber baseado numa clareza essencial.
Inconformado com a confusão misturada do mundo, ou seja, com o caráter sempre
provisório e insuficiente de qualquer conhecimento, Riobaldo lança mão do saber ilustrado
do interlocutor. O narrador, de certa forma, usa o interlocutor citadino quando recorre à
sua sabedoria douta, oriunda de um contexto urbano pretensamente regido pelo logos. O
romance, nesse momento da análise, aparece como suposto romance do esclarecimento.
No ex-jagunço, à primeira vista, identifica-se uma confiança cega de que tal luz da razão
que emana de tal saber será capaz de lhe mostrar o fio de Ariadne do labirinto mítico onde
se encontra enredado.
No tópico seguinte, focalizamos a segunda estratégia do narrador em sua busca pelo
sentido: a via metafísica. Os ensinamentos de Compadre Quelemém aparecem como
possibilidade de consolo através da numa instância transcendente. Nosso intuito, nesse
momento, é identificar de que forma o narrador encara a possibilidade de redenção no
além-mundo. Buscamos compreender qual a relação que Riobaldo estabelece com essa
espécie de saber dogmático que exige adesão incondicional, obstruindo desta forma a
possibilidade da dúvida.
Em suma, o narrador busca, por um caminho ou outro, encontrar a linha reta que
lhe permita desvendar o sentido último e definitivo de sua existência – “demarcar os
pastos” (p. 169). Entretanto, o mesmo protagonista, ator e espectador do próprio drama,
parece mineiramente duvidar da possibilidade de estabelecimento definitivo do sentido,
que os mesmos pastos que Riobaldo teima em demarcar caracterizam-se pela ausência de
delimitação ou, como ele mesmo diz: “Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem
de fechos” (p. 9). Para Susana Kampff Lages, a “atitude especulativa de Riobaldo desenha-
se entre múltiplos movimentos de avanço e recuo, entre o desejo de crer em algo
absolutamente determinado, verdadeiro e, ao mesmo tempo, a consciência da
impossibilidade de uma crença incondicional” (LAGES, 2002, p. 81). O romance do
esclarecimento, visto mais de perto, apresenta-se como romance da dúvida ou ainda, como
sugere Ettore Finazzi-Agrò, pesquisador italiano da obra rosiana, como romance da
espera, ou seja, da aporia trágica, contradição inconciliável
8
entre a necessidade de uma
Verdade definitiva e a fatal impossibilidade de tal empreendimento. Finazzi-Agrò aponta:
o romance do esclarecimento pode também ser lido como o romance da
dúvida, da suspeita cética em relação a todo conhecer objetivo (...) é este o tom
e o sentido de um mundo procurando certezas e encontrando apenas a dúvida,
ou seja, a duplicidade mascarada daquilo que é verdadeiro (FINAZZI-AGRÒ,
2001, p. 60).
De certa maneira, é possível dizer que o romance encena, no palco da subjetividade
de um mesmo personagem, combate e comunhão entre, de um lado, o saber dogmático que
se crê apto a conhecer de modo objetivo a essência do mundo e, de outro, uma espécie de
ceticismo que reconhece, ao menos em parte, a impossibilidade de tal empreendimento.
Entre, de um lado, a certeza otimista que crê ser possível obter a chave para o
conhecimento de uma realidade inteligível oposta à aparência e, de outro, a persistência de
uma dúvida frente a qual a Verdade surge como entidade inacessível às investidas
grosseiras da ânsia humana por compreender o real valorando e sistematizando
dogmaticamente seus atributos.
O segundo capítulo dedicado à análise do romance, intitulado “A afirmação”,
investiga de que modo, dada a falência das estratégias retilíneas rumo ao sentido, Riobaldo
lida com o terreno do inesclarecível. Nos dois primeiros tópicos do capítulo em questão,
“O pensamento vertente” e “Um olhar trágico”, o objetivo é verificar de que modo a
narração urde a especificidade de um saber que poderíamos qualificar de trágico. Busca-se
identificar, nas reflexões do ex-jagunço, o ímpeto que o leva de encontro aos aspectos
duvidosos e destrutivos da existência. A possibilidade de um pensamento trágico esboça-se
nesse patamar reflexivo que abdica da sanção metafísica ou racionalmente esclarecida
para, em seguida, reconhecer o caráter inaudito de uma realidade em constante mutação.
Nesse ponto da pesquisa, o foco recai sobre o empenho do narrador em reconhecer o
caráter questionável e arbitrário de todo saber que se baseia em distinções radicais. Saber
esse que, de forma alguma, corresponde à essência misturada de um mundo onde os
opostos (Bem e Mal, masculino e feminino, sensível e inteligível, humano e divino)
freqüentemente apresentam-se em cerrada indistinção ou ainda, como num jogo, trocam
8
Albin Lesky indica: “Qualquer tentativa para tentar definir a essência do trágico deve necessariamente
partir das palavras que, a 6 de junho de 1824, disse Goethe ao Chanceler von Müller: ‘Todo o trágico se
baseia numa contradição inconciliável. Tão logo aparece ou se torna possível uma acomodação, desaparece o
trágico’” (LESKY, 1996, p. 31).
sorrateiramente de lugar. Riobaldo alerta: “O sertão aceita todos os nomes” (p. 370). Tal
sertão, metáfora de um mundo inominável e indelimitável – mundo fugidio, arisco, matéria
vertente que não se deixa enformar e que nunca cristaliza em sentido aparece como
espaço onde a fixidez dá lugar à flexibilidade e onde a rigidez das dicotomias cede lugar ao
impulso lúdico da permuta. Nietzsche reflete sobre a agudeza e a desconfiança do filósofo
frente aos encantos da Verdade:
um (...) pendor ao conhecimento, que não deixa escapulir facilmente o caráter
questionável das coisas; e igualmente uma aversão às grandes palavras e gestos
morais, um gosto que rejeita todos os opostos pesados e grosseiros (...) Pois
isso constitui o nosso orgulho, esse leve puxar de rédeas quando o nosso
impulso à certeza arremete impetuoso, esse autocontrole do cavaleiro em suas
mais selvagens cavalgadas (NIETZSCHE, 2001, p. 375).
Até mesmo o leitor menos apurado reconhece na atitude indagativa do ex-jagunço
esse pendor para a sutileza no sentir e no conhecer. Um olhar essencialmente questionador,
talvez desconfiado à moda mineira, certamente refinado demais para as verdades
inabaláveis e lúcido o suficiente para o exercício da dúvida. “Sei o grande sertão? Sertão:
quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota, esses pássaros; eles estão sempre no alto,
apalpando ares com pendurado pé, com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas”
(p.435). Ou ainda: “(...) o sertão só se sabe por alto” (p. 402). Riobaldo delega
metaforicamente o saber sobre o sertão aos pássaros que habitam a altura – o grande sertão
que só se deixa apreender pela visão panorâmica, a alegria e a miséria que não são
facilmente acessíveis ao olhar humano, sempre precário, ao rés do chão, sempre
perspectivo: “Eu quase que nada sei; mas desconfio de muita coisa.” (p. 15) Será
exatamente sobre esse porto flutuante da desconfiança que radica a necessidade de um
saber mais lúdico, mais moldável, menos propenso a distorcer a inocência do devir em
esquemas pré-determinados por dicotomias fixas. Um saber que se reconheça em sua
limitação demasiado humana, que não recorra a sanções ultra-mundanas, que não se
arrogue a capacidade de desmisturar um mundo que é, em seu próprio fundamento (ou na
ausência completa de fundamento), “muito misturado” (p. 169).
Nos três últimos tópicos, “O trágico em travessia”, “Os poderes do falso” e
“Alegria trágica: o pacto com a vida”, investiga-se de que modo, do exercício do saber
trágico, deriva uma postura afirmativa em relação à existência e, ainda, como tal afirmação
é plasmada literariamente. Nesse capítulo, privilegiamos, como suporte teórico, as
formulações de Clément Rosset, pensador contemporâneo que desenvolve brilhantemente
aspectos capitais da filosofia afirmativa de Nietzsche. As idéias de Rosset servem como
uma espécie de fio condutor que permite unificar as diferentes facetas da extensa
problemática da afirmação trágica sob uma perspectiva específica.
Por fim, é necessário esclarecer que, a nosso ver, a relação negação-afirmação no
romance não constitui um processo teleológico no qual, pouco a pouco, o narrador se
libertaria da disposição negativa e se encaminharia rumo à afirmação. Não se trata de uma
via retilínea rumo a uma meta posta de antemão, mas da narração cujo modo de ser é o
caminho tortuoso que se constrói à medida que os diversos componentes mnemônicos de
Riobaldo afloram e suscitam a reflexão: “Contar é muito, muito dificultoso” (p. 142). A
visão que aqui propomos é a do romance como uma rede
9
na qual o pendor negativo e
afirmativo apresentam-se misturados e sobrepostos, sendo tarefa do intérprete, na medida
do possível, tentar destrançar os fios cerzidos pelo ex-jagunço em sua “dificultosa” tarefa
de revisitar o vivido.
9
A idéia de “narração em forma de rede” aplicada a Grande sertão: veredas é desenvolvida por Willi Bolle
em seu grandesertão.br (2004). Bolle indica que Rosa, “em vez de tratar dos complexos temáticos (...) um
por um, em seqüência linear, ele opta por desenvolvê-los simultaneamente, em forma de redes temáticas.
Trata-se de uma narração espaçada ou constelacional, cujas unidades constitutivas são centenas de
fragmentos” (BOLLE, 2004, p. 84).
1. Capítulo Primeiro - Os caminhos do trágico
1.1 A permanência do trágico
Iniciemos a investigação propondo percorrer alguns dos caminhos trilhados pelo
pensamento a respeito do trágico. Tentemos esboçar aqui uma visão panorâmica que
forneça algumas pistas para algo que, acreditamos, embora tenha sido fartamente
investigado, nunca foi completamente elucidado. Indagamos: como um fenômeno artístico
e religioso de curta duração
10
, delimitado por condições históricas, sociais e culturais muito
específicas, que floresceu no seio de uma cultura em pleno processo de transformação
política tal é a forma como se nos apresenta a tragédia ática do século V coube a
ventura de exercer tamanha influência sobre a posteridade, de modo que dois mil e
quinhentos anos depois ainda é capaz de gerar debates e fornecer alimento para a cultura?
Para Meiches, “o trágico, como categoria estética ou princípio filosófico, ultrapassa sua
concretização na tragédia grega, podendo manifestar-se em todo tipo de linguagem artística
e filosófica” (MEICHES, 2000, p. 21).
No âmbito do estudo que ora apresentamos, a questão mostra-se especialmente
pertinente na medida em que nosso objetivo mais geral é investigar indícios de um
pensamento trágico na obra de um escritor que nos é quase contemporâneo. A pergunta
que se impõe é a seguinte: a escritura de Rosa, elaborada a partir de um contexto cultural
radicalmente diverso daquele onde floresceu a tragédia, é capaz de apresentar, malgrado as
abissais diferenças históricas, um pensamento sobre o trágico? Luiz Roncari aponta:
Na base da literatura de Guimarães Rosa está a busca do sério e do trágico,
porém segundo os novos termos da literatura moderna, de recusa da separação
do estilos, e procurando ao mesmo tempo integrar a expressão popular no
10
Vernant e Naquet informam: A tragédia grega aparece como um momento histórico delimitado e datado
com muita precisão. Vêmo-la nascer em Atenas, florescer e degenerar quase no espaço de um século”
(VERNANT & NAQUET, 1999, p.2).
tratamento dos temas da alta literatura. A conclusão a que se chega é a
verificação da impossibilidade da tragédia, na medida em que se constituiu no
país um terreno social demasiado fluido e esgarçado, incapaz de suportar os
dramas trágicos, pelo menos nas camadas inferiores, que demandariam a
existência de troncos familiares estruturados (RONCARI, 2002, p.247, grifos
nossos).
Note-se, nessa passagem, que Roncari, muito precisamente, ressalta a
impossibilidade da tragédia em Rosa como drama alimentado por uma matriz social
aristocrática, ou seja, recusa a tragédia na obra rosiana como configuração artística
determinada por uma estrutura cio-histórica específica
11
. Em contrapartida, o
pesquisador identifica o trágico como aspecto basilar da literatura rosiana. Nesse aspecto,
estamos plenamente de acordo com Roncari. Compreenda-se: refutar a tragédia não
significa refutar o trágico. Aqui deve estar presente a distinção, à qual nos referimos na
Introdução deste estudo, entre o fenômeno culturalmente determinado da tragédia ática e a
posterior elaboração filosófica de um pensamento sobre o trágico como cosmovisão, como
expressão da tragicidade própria da existência.
***
Inegável é a presença do pensamento sobre o trágico na contemporaneidade. Basta
atentar para a quantidade de pensadores que se debruçam sobre o tema, as inumeráveis
publicações acadêmicas e eventos que versam sobre o assunto, assim como as freqüentes
remontagens das peças da tragediografia clássica e as constantes releituras que a tragédia
vem suscitando, para perceber que o trágico não se mumificou numa concepção fixa, não
se tornou peça de interesse museológico, mas constitui matéria viva que continua a
inquietar. Isso se verifica, inclusive, no âmbito da cultura brasileira:
O trágico perambula e atravessa formas, por excelência, modernas,
metamorfoseado pelo romance e pela escrita narrativa, assim como se grava
com uma excepcional força na poesia que se configura como um vetor quase
privilegiado para projetar sua energia. Mas é no contraponto com a cultura
11
Entretanto, a possibilidade de entrever caracteres formais da tragédia grega se faz possível em outros textos
de Rosa, tais como “A hora e vez de Augusto Matraga”, de Sagarana (1946) ou “A terceira margem do rio”,
de Primeiras Estórias (1962) - Cf. SANTOS, Adilson dos. Rastros do trágico em “A Hora e Vez de
Augusto Matraga”. Dissertação de Mestrado defendida nesta Instituição em 2003; CÉZAR, Adelaide
Caramuru. “O trágico em ‘A terceira margem do rio’, de João Guimarães Rosa”, artigo publicado na
coletânea O trágico e seus rastros, organizada pelo professor Volnei Edson dos Santos e publicada pela
Eduel em 2002.
brasileira isolada ou imunizada de suas carnavalizações mais fáceis que o rosto
menos visível do trágico aparece com violência e força irrefutáveis impondo-se
como objeto de uma problematização que envolve os entraves da formação, de
uma modernidade que não se completa, de um presente que não deixa de cortar
(FINAZZI-AGRÒ, AMOROSO & VECCHI, 2006, p.8).
O trágico ainda que remodelado, revisitado, subvertido, vulgarizado, diluído,
modernizado e, quiçá, pós-tragicizado
12
permanece propondo questões às quais não é
possível fornecer nenhuma resposta segura, nada que o lapso histórico e cultural que nos
separa dos gregos tenha podido elucidar. Pois, arriscamos, o objeto que o trágico tem em
vista, é nada mais e nada menos que o humano, a liberdade agônica que caracteriza a
condição humana, o insuperável paradigma da finitude oposto ao ímpeto espiritual de
transcendência, a liberdade do espírito cerceada pela necessidade objetiva. Contradição que
pode ser encarada sob diversos ângulos: sob a perspectiva dialética, corrente no idealismo
alemão, desemboca em conciliação apaziguadora; sob o crivo de Nietzsche, o dilema
trágico é fonte da postura afirmadora que independe de conciliação, como veremos adiante.
Este estudo não tem a pretensão de fornecer resposta alguma a tal emaranhada e
difícil questão a causa e as circunstâncias que determinam a sobrevivência do trágico
que, embora imperscrutável, merece ser colocada. Pois se ampliarmos a perspectiva, nos
salta aos olhos a amplitude e a profundidade com as quais o trágico emerge de sua remota
origem helênica e torna a ser colocado na modernidade. É algo irrefutável e ao mesmo
tempo algo que nos escapa: de que jazida oculta vem a força com que o trágico se impõe
tão fortemente à nossa sensibilidade? Ou seja, o arrebatamento causado pelo trágico, como
quando o leitor ou espectador se depara com a potência granítica da Oréstia ou com a
férrea irreconciliabilidade de caracteres opostos que nos apresenta a Antígona de Sófocles,
mesmo aí, nas tragédias antigas, continua exercendo seu efeito.
Pode-se falar, todavia, como o faz Gerd Bornheim, em morte ou impossibilidade da
tragédia, dada a extinção das condições históricas e sociais sob as quais ela nasceu e se
desenvolveu:
na tragédia grega, a vivência da separação ontológica resulta no
reconhecimento de uma medida reconciliadora que transcende a separação, ao
passo que em nossos dias, a problemática como que se esgota na meditação ou
12
Observam Maria Betânia Amoroso, Finazzi-Agrò e Roberto Vecchi, no prefácio do volume Travessias do
pós-trágico os dilemas de uma leitura do Brasil, que o pós trágico consiste em “uma radicalização do
trágico: no pós-trágico, apesar das ambigüidades precárias que lexicalmente o constroem, o trágico aparece
ao mesmo tempo como limen e limes, limite e limiar da problematização trágica” (FINAZZI-AGRÒ,
AMOROSO & VECCHI, 2006, p. 6).
na experiência da própria separação ontológica, debatendo-se para encontrar
uma medida que possa colimá-la, mesmo através do desespero (BORNHEIM,
1992, p. 92).
É verdade que o horizonte espiritual da tragédia clássica no qual a vida terrena se
torna palco para a ação de uma justiça divina infalível sobretudo quando se pensa na
profunda religiosidade da tragédia de Ésquilo e no qual a desarmonia gerada pela ão
humana é reabsorvida no seio da divindade onipotente, muito deixou de ser o nosso. Se
a desmedida humana, subjetiva, não esbarra numa ordem objetiva e transcendente, que
resta do conflito trágico? Se a ordem transcendente encontra-se em vias de extinção,
impedida de exercer seu efeito purificador, resta que a ordem imanente, propriamente
humana, encontra a si mesma e consigo mesma se debate? Será possível a sobrevivência
do trágico na ausência da caução divina? É o mesmo Bornheim quem aponta:
(...) nossa análise não nos permite concluir que a experiência trágica tenha sido
banida do mundo humano. Devemos dar razão a Duerrenmatt: se a tragédia em
seu estado puro não é mais possível, a experiência trágica inerente ao humano
como é, ainda se pode verificar (BORNHEIM, 1992, p. 91).
A nosso ver, a simples constatação empírica da profunda comoção que a tragédia continua
exercendo, a intuição confusa de que todo aquele universo ainda nos concerne e nos toca, é
prova suficiente de que em algum ponto remoto e ancestral do espírito humano o cerne do
trágico permanece íntegro. Mauro Meiches indaga:
Será, então, apenas como reinterpretação que nos voltamos ao trágico hoje
em dia? Sem dúvida, mas de onde vem esse poder de atração que nos faz
voltar a ele, especialmente ao trágico grego? lugares que ele funda, à
maneira de um arquiteto, que passamos a habitar para sempre (MEICHES,
2000, p. 30).
Para essa direção aponta Nicole Loraux, no artigo “A tragédia grega e o humano”.
A estudiosa, através de uma minuciosa distinção de três termos gregos usados na tragédia
com a significação de homem brotós (homem mortal); ánthropos (homem social); anér
(homem viril) esboça a constituição de uma eticidade trágica que transborda os limites
estabelecidos pelas questões exclusivas à pólis democrática e traz à tona questões relativas
ao próprio caráter humano “o sentimento, embora confuso em cada um, de que se é
irrevogavelmente tocado por outrem” (LORAUX, 1992, p. 20). Segundo a autora, esse
lastro de humanidade evidencia-se no uso que Sófocles faz do substantivo ánthropos, cuja
função não consiste em contrapor a insignificância do homem aos poderes olímpicos, mas
sublinhar o conflito do homem consigo mesmo e com seu semelhante: Ánthropos,
portanto: o homem entre os homens, mal consigo mesmo e com seus semelhantes e, no
entanto, estranho a tudo o que não é humano”. O homem, não em conflito com o divino,
mas consigo mesmo: “uma perpétua tensão, no interior do homem, entre humano e sobre-
humano” (LORAUX, 1992, p. 22). Uma informação, fornecida por Albin Lesky, talvez
auxilie na investigação. Segundo Lesky, o trágico dá seus primeiros passos na
configuração épica da epopéia homérica
13
. Esta, por sua vez, remonta às eras arcaicas da
humanidade:
Karl Jaspers, por exemplo, cita, dentre as (...) manifestações do saber trágico
por ele enumeradas, Homero, as edas e as sagas dos islandeses, bem como as
lendas heróicas de todos os povos do Ocidente à China. Com isso, se afirma
acertadamente que a maioria dos cantos épicos transmitidos pela tradição oral
(...) em sua disseminação pelo mundo e em suas características essenciais, que
em ampla medida continuam iguais, apresenta elementos do trágico. No centro
dessa criação literária ergue-se sempre o herói radioso e vencedor, aureolado
pela glória de suas armas e feitos, mas ele se ergue diante do fundo escuro da
morte certa que, também a ele, arrancará das suas alegrias para levá-lo ao nada
ou a um lúgubre mundo de sombras não melhor do que o nada (LESKY, 1996,
p.23-24).
Lesky constata a possível origem do trágico na fonte universal da epopéia, que
apresenta invariavelmente o orgulho voluntarioso do herói contraposto à indiferença de
uma força cósmica inexorável. Em contrapartida, Vernant e Naquet reconhecem a situação
intermediária do drama trágico, subordinado tanto aos valores arcaicos do mito épico
quanto aos novos valores da pólis democrática:
No conflito trágico o herói, o rei e o tirano ainda aparecem bem presos à
tradição heróica e mítica, mas a solução do drama escapa a eles: jamais é dada
pelo herói solitário e traduz sempre o triunfo dos valores coletivos impostos
pela nova cidade democrática (VERNANT & NAQUET, 1999, p. XXI).
13
A respeito da ligação íntima entre epopéia e tragédia, vale recorrer ao testemunho dos antigos. Platão, pela
boca de Sócrates, no livro X da República, refere-se a Homero como “o maior dos poetas e o primeiro dos
tragediógrafos” (PLATÂO, 1989, p. 472).
Será lícito, porém, a partir da ligação estreita que a tragédia mantém com a tradição
épica
14
avalizada por Lesky, deduzir a existência de um sentimento trágico universal que,
todavia, só se desenvolveu plenamente, em sua forma artística, entre os gregos? Será
provável postular que a causa da permanência do trágico em nossos dias radica aí, nessa
sua origem ancestral, de forma que o pensamento do trágico encontra-se enraizado no
humano, inscrito nos porões da alma, como marca indelével? São questões às quais não
ousamos aqui fornecer uma resposta, mas que valem como pesquisa e especulação.
Todavia, consideramos plausível encarar a morte da tragédia como morte de uma forma
artística determinada por padrões culturais que não vigem, como morte de uma
configuração artística específica do helenismo clássico. Como se sabe, já em Eurípides, o
mais tardio dos Trágicos, o pathos trágico oscila sob a influência do pensamento sofístico e
da razão socrática. Mas não acreditamos ser possível, a partir daí, deduzir a morte do
trágico enquanto tal, isto é, morte da cosmovisão específica do trágico, morte daquilo que
no trágico é mais essencial, ou seja, o eterno conflito entre o humano e o mistério no qual o
humano transita e goza e sofre.
Como conseqüência, apresenta-se plenamente plausível, a nosso ver, investigar a
emergência de um pensamento trágico em Grande Sertão: veredas. No romance que põe
em cena o ex-jagunço em monólogo dialógico não buscamos encontrar a expressão de uma
suposta tragédia sertaneja, nem é nosso objetivo identificar em Riobaldo os caracteres
tradicionais do herói trágico, nem mesmo interpretar as reviravoltas do enredo a partir de
categorias aristotélicas como peripécia, reconhecimento ou catástrofe
15
. Reforçamos: a
pesquisa empreendida, entenda-se, não tem pretensão alguma de vincular o romance às
especificidades formais da tragédia. Esperamos sim, conseguir entrever, no discurso do ex-
jagunço, algo que remeta a uma concepção existencial do trágico, especialmente da forma
como este foi pensado pelo Nietzsche maduro.
1.2 O trágico na Alemanha
14
Vernant e Naquet ainda apontam que o enraizamento da tragédia “na tradição das narrativas míticas
explica que, sob muitos aspectos, se encontre mais arcaísmos nos Trágicos que em Homero” (VERNANT &
NAQUET, 1999, p.4).
15
Peripécia, reconhecimento e catástrofe são noções fundamentais da concepção aristotélica da tragédia
exposta na Poética. Para o Estagirita, a peripécia [peripateia] é “a alteração das ações, em sentido contrário
(...) segundo a verossimilhança ou a necessidade”; o reconhecimento [anagnorisis], por sua vez, é “a
passagem do desconhecimento ao conhecimento”; a catástrofe [katastrophé] “é uma ação de que resultam
danos e sofrimentos” (ARISTÓTELES, 1999, p. 49-50).
Neste ponto, faz-se necessário que voltemos por um momento a atenção para o
desenvolvimento do pensamento sobre o trágico. Para que possamos esboçar a concepção
nietzscheana tardia do trágico, é importante que, antes de tudo, conheçamos algo do
percurso desse tema na história do pensamento, a saber, aquele que diz respeito às
concepções, ainda de cunho poetológico, elaboradas a partir do classicismo alemão, com
Winckelmann, Goethe e Schiller, e posteriormente desenvolvidas, tendo em vista uma
filosofia do trágico, por Schelling, Hegel e Schopenhauer. Busca-se ressaltar a
especificidade da concepção nietzscheana do trágico inserindo-a no processo de
desenvolvimento de um pensamento sobre a Grécia que floresce na Alemanha a partir de
meados do século XVIII. Tal posicionamento é baseado na idéia de Roberto Machado
segundo a qual só é
possível compreender profundamente a significação do pensamento de
Nietzsche sobre a tragédia, e até mesmo sua ambição, característica do último
período de sua filosofia, de ser o primeiro filósofo trágico ou o inventor do
ditirambo dionisíaco, se o inserirmos nesse movimento de idéias sobre a
tragédia e o trágico existente na Alemanha desde o início da modernidade,
movimento sem paralelo em nenhum outro país (MACHADO, 2006, p.43).
Acreditamos que o trágico em Nietzsche ganha seu devido relevo quando posto
em contraste com o pensamento que o antecedeu e do qual ele é herdeiro. Todavia, se a
herança recebida ainda é aproveitada e reformulada no primeiro período de sua reflexão, na
filosofia tardia de Nietzsche, sob a violência das marteladas da crítica radical da cultura
que lhe é peculiar, dela resta pouco ou nada. Assim, tentemos esboçar, de forma muito
sucinta, tais antecedentes, a começar por uma breve análise daquilo que se convencionou
chamar de classicismo alemão ou classicismo de Weimar. Embora ainda não encontremos,
no âmbito desse movimento, uma reflexão filosófica sobre o trágico, é certo que nele
radicam os germes que darão origem a tal reflexão. Interessa-nos sobretudo, nesse período,
a retomada do modelo artístico grego como instrumento de regeneração da arte na
modernidade.
A arte torna-se tema específico de conhecimento filosófico sistematizado em
meados do século XVIII. A estética termo proveniente do grego aistesis, sensação é
inaugurada na Alemanha por Alexander Baumgarten em sua Estética (1750), que concebe
o conhecimento sensível revelado pela arte como uma das vias de acesso à verdade. Tal
modalidade de conhecimento, diga-se de passagem, é tida como inferior ao conhecimento
lógico fornecido pela razão. Em 1755, Winckelmann, aluno de Baumgarten, considerado
pai da moderna história da arte, por ter deslocado a reflexão sobre a arte das “biografias de
artistas pelo estudo histórico das próprias obras” (MACHADO, 2006, p.10), inaugura uma
nova maneira de pensar a relação entre arte antiga e moderna. Como sustenta Pedro
Süssekind em prefácio ao Ensaio sobre o trágico, no
Iluminismo, as primeiras teorias estéticas modernas procuram se definir sempre
em relação à Antiguidade, tomada ainda como modelo ou referência. A obra de
Boileau, que influenciou toda a produção do teatro clássico francês, é um
exemplo disso, assim como a reflexão estética sobre a arte grega de
Winckelmann ou de Lessing, na Alemanha (SZONDI, 2004, p. 16).
Nas Reflexões sobre a imitação da arte grega na pintura e na escultura (1755),
Winckelmann compreende a arte grega como modelo para a regeneração da arte de seu
tempo, considerada por ele como decadente. A arte moderna alemã, pensa Winckelmann,
deve abandonar os excessos formais do rococó e do maneirismo e inspirar-se no ideal de
“nobre simplicidade e serena grandeza” que caracterizou a arte helênica do período
clássico, sobretudo no campo da pintura e da escultura, tornando-se assim “uma imitação
de segundo grau, uma imitação da imitação” (MACHADO, 2006, p.12). Uma mimesis
dupla, portanto, mediada por um modelo no qual a soberania espiritual subjuga o poder da
natureza sensível. Winckelmann valoriza o que na arte grega caracteriza o ideal de beleza
representado, em termos nietzscheanos, pelo estado apolíneo – a beleza, a medida, a
proporção, a altivez e a simplicidade das figuras atributos tais que denotam, para
Winckelmann, a superioridade da alma, tomada como instância moral, em detrimento da
natureza pulsional e das exigências do corpo. A obra canônica que aparece na reflexão de
Winckelmann como expressão máxima desse modelo, “a regra perfeita da arte da
escultura”, (MACHADO, 2006, p.11) é o célebre grupo escultural Laocoonte
16
que
representa o sacerdote de Apolo e seus dois filhos asfixiados por duas poderosas serpentes.
Segundo Winckelmann, apesar do intenso sofrimento físico, a face do sacerdote evidencia
a fortaleza moral de sua alma, que não se curva perante a ruína do corpo. Nas palavras de
Winckelmann, citadas por Schiller no ensaio “Sobre o patético”, de 1793,
16
“O Laocoonte foi descoberto em 1506 no decurso de uma escavação casual, na colina esquilina de Roma”
(MONDADORI, 1968, p. 35). A obra, entalhada em mármore, sofreu diversas restaurações no século XX.
Atribuída a Agesandro, Polidoro e Atenodoro, data do século II ou I a. C. Atualmente encontra-se no Museu
do Vaticano, em Roma.
Laocoonte é uma natureza no ápice da dor, talhada segundo a figura de um
homem que tenta concentrar contra esta a consciente energia do espírito.
Fazendo o seu sofrimento com que os músculos intumesçam e se contraiam,
surge na fronte ressaltada o espírito armado de fortaleza (WINCKELMANN,
apud SCHILLER, 1991, p. 125).
É interessante ainda observar que, por trás da concepção estética de Winckelmann,
encontra-se, nitidamente configurado, um posicionamento moral em relação ao homem e à
arte. O dualismo rígido entre natureza sensível e natureza espiritual e a plena superioridade
da segunda sobre a primeira, permite-nos entrever a índole marcadamente metafísica dessa
estética. O espiritual, na grande obra de arte, desdenha e subjuga o sensível em prol de sua
soberania. Ou seja, a obra de arte torna-se símbolo máximo da valorização incondicional
do transcendente e da depreciação do corpóreo, como no Laocoonte. Tal concepção,
elaborada pelo historiador, que reivindica a necessidade de imitação do modelo grego no
intuito de regenerar e revigorar a arte moderna na Alemanha, influenciará sobremaneira, a
partir de então, todo o pensamento posterior, especialmente no que diz respeito ao
classicismo alemão, ao qual fornece um ideal estético. Como observa Roberto Machado,
Essa concepção de uma imitação criadora que deve tornar os alemães tão
inimitáveis quanto os gregos aparece com toda a força na exigência paradoxal
que Winckelmann propõe a seus contemporâneos: “O único meio de nos
tornarmos grandes e, se possível, inimitáveis, é imitar os antigos”
(MACHADO, 2006, p.13).
No fim do século XVIII, as preceptivas estéticas de Winckelmann serão em grande
parte adotadas por Goethe, depois de sua viagem à Itália, realizada entre 1786 e 1788.
Goethe abandona o entusiasmo pelo irracionalismo romântico característico do Sturm und
Drang
17
, movimento que lhe deu as tintas com as quais compôs seu Werther, e volta-se, na
companhia de Schiller, em Weimar, para um projeto artístico marcado pelo classicismo.
Anatol Rosenfeld aponta que tanto Goethe quanto Schiller superam
os arroubos prometéicos da juventude e o culto do elementar, aliando-se na sua
admiração pelo modelo clássico grego, então concebido como ‘nobre
17
Segundo Anatol Rosenfeld, o Sturm und Drang “empolgou as letras germânicas mais ou menos de 1770 a
1785. Violentamente oposto aos cânones clássicos franceses, adotando um rosseauismo desbragado e
professando o culto do nio titânico’ (...) esse movimento de emancipação que se esmerava na revolta
anárquica (...) é definido na Alemanha como pré-romântico” (ROSENFELD, 1997, p. 36).
simplicidade e tranqüila grandeza’. É um ideal humanista que, usando termos
modernos (...), procura não eliminar e sim disciplinar severamente as forças
dionisíacas exaltadas na juventude, integrando-as, tanto na arte como na vida,
no contexto da meta apolínea (ROSENFELD, 1997, p.36).
Goethe amplia o foco de ação da estética de Winckelmann ao levar sua concepção
da re-atualização do ideal grego de beleza, antes confinada à pintura e à escultura, aos
campos da poesia e da arte dramática. Esse posicionamento caracteriza uma ruptura formal
na concepção teatral de Goethe, com um abandono de uma dramaturgia de bases
shakesperianas e uma volta às fontes clássicas” (MACHADO, 2006, p.14). A peça
exemplar que caracteriza de modo evidente a adesão de Goethe ao ideal clássico é Ifigênia
em Táuride (1787). Anatol Rosenfeld refere-se à personagem da peça como “uma
encarnação (não muito carnal) do sonho clássico de Winckelmann que via os gregos
através de uma aura de ‘nobre simplicidade e serena grandeza’” (ROSENFELD, 1997,
p.15). As diretrizes dessa tendência encontram-se expostas na correspondência entre
Goethe e Schiller, que vai de 1794 a 1805, considerada “grande documento do chamado
classicismo de Weimar, quando os dois amigos estão sempre recorrendo à análise da arte
grega e à teoria dos gregos para formular as leis gerais da arte” (MACHADO, 2006, p.21).
É pertinente sublinhar, no contexto do classicismo alemão, que se estende de 1786
a 1805, a supremacia estética, inaugurada por Winckelmann, do ideal da Grécia apolínea,
tomada como modelo para a arte da modernidade. Modelo esse que, a partir de fins do
século XVIII, entrará em conflito direto com o Romantismo nascente. Medida, nobreza,
serenidade e contenção, atributos clássicos adotados por Goethe e Schiller, serão
confrontados com as tendências românticas ao onírico, ao bizarro, ao fragmentário, ao
excêntrico, ao original. Um conflito se estabelece e transparece nitidamente na
correspondência dos envolvidos. Anatol Rosenfeld refere-se à relação conflituosa entre
Schiller, defensor da estética clássica, e Friedrich Schlegel, adepto das tendências
românticas. “Não se trata apenas de atritos e antipatias pessoais, nem do choque de
gerações. A raiz é o profundo antagonismo entre atitudes e concepções fundamentais
relativas à vida, moral, arte e sociedade” (ROSENFELD, 1997, p.38).
1.3 Schiller, Schelling e Hegel: a emergência de uma filosofia do trágico
Nesse panorama, o pensamento de Schiller aparece como terreno intermediário
entre a poética da tragédia e a filosofia do trágico. Dado que a reflexão sobre a arte
dramática elaborada por Schiller manteve estreito vínculo com a sua produção teatral,
verifica-se nela ainda um caráter poetológico, preocupado em fornecer diretrizes para sua
própria prática artística. A respeito de Schiller, observa Anatol Rosenfeld:
As suas especulações estéticas, inspiradas principalmente por Kant,
forçosamente haveriam de ligar-se a problemas do teatro, da arte poética e da
teoria da literatura, uma vez que era, antes de tudo, um dramaturgo e poeta. De
certo modo, é a partir de suas preocupações de homem de teatro e escritor
criativo que se lançou às cogitações mais gerais da estética filosófica
(ROSENFELD, 1997, p.19).
Por outro lado, inspirado na ética e na estética kantianas, Schiller elabora aquilo
que se poderia chamar de uma primeira e ainda acanhada filosofia do trágico. Nos
ensaios
18
produzidos entre 1792 e 1795 em Weimar, durante o período de sua fecunda
amizade com Goethe, Schiller concebe a tragédia como conflito humano encetado entre
natureza sensível e natureza inteligível. Confronto entre a necessidade natural e a liberdade
transcendente. Em Schiller, o conflito trágico se configura entre, de um lado, o sofrimento
inerente à imanência exposta ao remoinho de afetos e paixões e, de outro, a esfera moral
supra-sensível concebida como vontade livre, como faculdade autônoma capaz de fazer
frente às agruras impostas pela instância imanente. Isto é, o que Schiller, apoiado em Kant,
denomina supra-sensível, configura-se como liberdade subjetiva que faculta ao humano
autonomia em relação à sensibilidade.
A conciliação entre liberdade e necessidade é representada na arte pelo jogo lúdico
das duas instâncias, configurando a realização da liberdade no terreno da necessidade. No
ensaio “Acerca do patético”, Schiller elabora o elogio do julgamento estético nos seguintes
termos:
opomos a absoluta capacidade da vontade, e o infinito poder dos espíritos à
coação da natureza e às limitações da sensibilidade. Por essa razão, o
julgamento estético liberta-nos, enlevando-nos e entusiasmando-nos, porque
tão-só pela mera faculdade de querer absolutamente e pela mera capacidade
virtual da moralidade nos encontramos em notória vantagem sobre a
sensibilidade, e porque já, através da mera possibilidade de negarmos a coação
da natureza sente-se lisonjeado o nosso desejo de liberdade (SCHILLER, 1991,
p. 139).
18
Os mencionados ensaios são “Acerca da arte trágica”, “Acerca do sublime” e “Acerca do patético”, todos
contidos no volume Teoria da Tragédia publicado em São Paulo pela E.P.U. em 1991.
Em Schiller, o dualismo liberdade espiritual/necessidade sensível deve muito à
teoria kantiana do sublime. Grosso modo, para Kant, o sentimento do sublime,
especialmente em sua modalidade dinâmica, ancora-se na impotência física do humano
contraposta à natureza fenomenal apresentada como potência ameaçadora:
Rochedos audazes sobressaindo-se por assim dizer ameaçadores, nuvens
carregadas acumulando-se no céu, avançando com relâmpagos e estampidos,
vulcões em sua inteira força destruidora, furacões com a devastação deixada
para trás, o ilimitado oceano revolto, uma alta queda-d’água de um rio
poderoso etc. tornam a nossa capacidade de resistência de uma pequenez
insignificante em comparação com o seu poder. Mas o seu espetáculo só se
torna tanto mais atraente quanto mais terrível ele é, contanto que, somente, nos
encontremos em segurança; e de bom grado denominamos este objetos
sublimes, porque eles elevam a fortaleza da nossa alma acima de seu vel
médio e permitem descobrir em nós uma faculdade de resistência de espécie
totalmente diversa, a qual nos encoraja a medir-nos com a aparente onipotência
da natureza. (KANT, 2002, p. 107).
Nesse confronto, afirma-se a superioridade da razão humana, tomada como poder
supra-sensível que resiste à ameaça natural. Triunfo absoluto da razão, independência
completa da razão em relação ao sensível, “potência absoluta de nossa razão como força
moral, isto é, do destino do homem como ser moral, superior à natureza” (MACHADO,
2006, p.64). Em contrapartida, fracasso absoluto da instância sensível, incapaz de macular
aquilo que se configura no homem como essência inteligível, a saber, a completa liberdade
moral. Ao pensar o trágico a partir da categoria kantiana de sublime, deslocando o
privilégio concedido por Kant à natureza para o terreno da arte, Schiller confere ao
trágico um traço ontológico que o diferencia das reflexões anteriores. O herói da tragédia,
cuja vida é posta em risco por um objeto supremo de terror, exprime sua superioridade
como resistência moral aos flagelos impostos pela natureza, submetendo-se ao castigo
mesmo consciente da ausência de culpa.
Na dramaturgia de Schiller vislumbra-se de maneira nítida a força da vontade moral
no caráter de Maria Stuart, protagonista da peça homônima composta em 1800. A
inflexibilidade da soberana escocesa, que não se curva perante “à todo-poderosa rainha da
Inglaterra pedindo-lhe perdão por um crime que não cometera” (MACHADO, 2006, p.74)
provoca sua condenação à morte. Se há derrota sensível, como no caso da morte da
heroína, a esta se sobrepõe a vitória espiritual. Para Schiller,
o fim último da arte é a representação do supra-sensível, e é sobretudo a arte
trágica que o realiza, corporificando-nos a independência moral de leis naturais
no estado da paixão. chegamos a conhecer o livre princípio em nós pela
resistência que exterioriza à violência das emoções (SCHILLER, 1991, p. 113).
Verifica-se a mesma idéia que inspirou a Winckelmann o elogio do Laocoonte,
do qual Schiller, nesse mesmo ensaio, inclui um longo excerto. Constitui situação
semelhante, para Schiller, o mito trágico de Prometeu, herói que explicita a robustez de sua
liberdade não se dobrando ao aguilhão de Zeus, isto é, ao aceitar o castigo que lhe foi
imposto sem comprometer sua dignidade moral. A tragédia, assim compreendida, é
definida por Schiller como a apresentação sensível do supra-sensível, ou seja, é tomada
como manifestação estética capaz de apresentar algo de essencial sobre o ser, capaz de
expor aquilo que, numa perspectiva cartesiana, constitui o atributo fundamental do humano
entendido como res cogitans, a saber, sua faculdade intelectual e a potência moral daí
advinda que caracteriza o sujeito do conhecimento kantiano como legislador. Pode-se
afirmar assim, com Roberto Machado, que “Schiller foi o primeiro a elaborar uma teoria
do trágico”. Pioneiro na maneira de conceber “o trágico, a partir do sublime, como um
aspecto fundamental da existência humana”, Schiller entende a tragédia “como expressão
dessa visão do homem”. Trata-se de “uma idéia moderna, estranha ao pensamento grego e
a toda a história da humanidade até sua época” (MACHADO, 2006, p.72).
O pensamento de Schelling, considerado por muitos como a máxima expressão
filosófica do Romantismo, compreende a arte como grau máximo do saber. A reflexão de
Schelling sobre a tragédia estabelece um novo paradigma. Com ela, segundo Peter Szondi,
“tem início a história da teoria do trágico que volta sua atenção não mais para o efeito da
tragédia, e sim para o próprio fenômeno trágico” (SZONDI, 2004, p. 29). Fruto do
idealismo florescente na Alemanha no despontar do século XIX, a teoria da arte
desvincula-se radicalmente de uma preocupação poetológica ou prescritiva em relação à
produção dos gêneros poéticos para aparecer como parte integrante do corpus filosófico.
Nesse aspecto, é interessante observar a forma como Schelling introduz, em sua Filosofia
da Arte (1802), o estudo dos gêneros considerados individualmente: “Não quero dar
definições. Cada gênero da arte é determinado somente por seu lugar, esta é sua definição.
(...) No fundamento de cada gênero poético está uma Idéia” (SCHELLING, 2001, p. 289).
Se nas primeiras teorias estéticas da modernidade, forjadas no bojo da Ilustração, ainda
prevalecia o ideal da arte grega como modelo normativo para a produção artística, no
pensamento idealista caberá ao filósofo, portanto, a busca por tal Idéia subjacente às
manifestações isoladas de cada gênero. Pedro Süssekind esclarece:
a estética se liberta de seu caráter normativo e visa a um conhecimento que se
basta a si mesmo’. Integrada aos sistemas estéticos de Schelling ou de Hegel, a
reflexão sobre os gêneros poéticos não é uma determinação de formas e regras
para escrever poesia, mas uma busca dos conceitos que estão por trás de cada
gênero (...) Nesse caso, uma poética filosófica investiga as tragédias como
exemplo, a partir dos quais se pode extrair a concepção do trágico (SZONDI,
2004, p. 17).
Se no pensamento de Schiller a teoria ontológica da tragédia mostra-se ainda
vinculada a uma perspectiva moral ou seja, a instância supra-sensível é identificada ao
âmbito antropológico da moralidade na reflexão elaborada por Schelling, em especial
aquela contida em sua Filosofia da Arte, a idéia de trágico excede os limites da
subjetividade humana e passa a ser pensada no âmbito do absoluto. Na busca por um
princípio incondicionado, um substrato último sobre o qual fundar o conhecimento,
Schelling toma como instância referencial a noção de eu absoluto, concebido como
identidade dos contrários, como completa indiferença entre sujeito e objeto. No terreno do
eu absoluto cessa qualquer espécie de conflito espírito e natureza, sensível e inteligível,
finito e infinito, fenômeno e coisa em si isto é, as várias antinomias que obstruem a
ascensão a um saber totalizante são desabilitadas. Trata-se de uma esfera onde reina a
identidade pura e incondicionada. Na oitava das Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e
o criticismo, Schelling propõe que a intuição do absoluto seja realizada a partir de dentro
do sujeito que conhece:
Com efeito, em todos nós reside uma faculdade secreta, maravilhosa, de retirar-
nos da mudança do tempo para nosso íntimo, para nosso eu despido de tudo
aquilo que vem de fora, e, ali, na forma da imutabilidade, intuir o eterno em
nós. Essa intuição é a experiência mais íntima, mais própria, e unicamente dela
depende tudo aquilo que sabemos e cremos de um mundo supra-sensível. Essa
intuição, em primeiro lugar, nos convence de que algo é, em sentido próprio,
enquanto todo o restante, ao qual transferimos essa palavra, apenas aparece
(SCHELLING, 1979, p. 24).
A principal tarefa da filosofia seria, portanto, conhecer o absoluto, essa unidade
essencial e última. E o melhor caminho que franqueia o conhecimento do absoluto é o
fenômeno artístico. Segundo Schelling, a arte é capaz de expor tal reino da identidade que
constitui o eu absoluto por possibilitar uma apreensão imediata da coisa-em-si, ou, em
termos kantianos, uma intuição intelectual, entendida como um conhecimento não-
conceitual, não-discursivo e imediato da essência do ser. Enquanto para Kant, tal esfera do
absoluto, tomada como fundamento último do ser, poderia ser apenas pensada, nunca
conhecida, que a ela não corresponderia nenhuma intuição empírica, para Schelling,
através da arte, o absoluto torna-se acessível ao conhecimento. Em Schelling, a arte não
constitui apenas objeto ou parte da filosofia, mas “o principal meio do exercício
filosófico”, configurando, em tal subordinação da filosofia à arte “uma espécie de inversão
do platonismo” (MACHADO, 2006, p.93). Se no livro X da República de Platão o poeta é
expulso da cidade ideal
19
por estar preso às malhas do sensível e por enredar também
nessas malhas aquele que frui de sua obra, distanciando ambos, artista e fruidor, da
essência inteligível do Bem, em Schelling dá-se exatamente o contrário. O artista genial, ao
lograr efetuar uma bem sucedida síntese conciliadora entre as forças inconscientes da
natureza e a legislação racional do espírito, apresenta, através de sua obra, o infinito
apresentado de modo finito. A arte assim, é elevada a um estatuto supremo, a uma “altitude
metafísica onde o racional não chega” (NUNES, 1989, p. 25) por conseguir conjugar,
segundo Benedito Nunes, a ordem externa dos fenômenos e a ordem interna da liberdade,
unificando ambas numa realidade absoluta. Acaba-se assim, por obter a total
indiferenciação entre pensamento e arte, filosofia e poesia, evidente na obra de poetas tais
como Keats, Hölderlin, Wordsworth e Novalis. Roberto Machado indica:
A arte é a relação direta, imediata, do espírito humano com a coisa em si, a
forma de conhecimento imediato do absoluto, o lugar da manifestação do
absoluto. A intuição estética, intuição intelectual objetivada, é um
conhecimento não-conceitual em contraposição ao conhecimento conceitual do
entendimento, ao qual está vedado o acesso ao absoluto, à identidade
originária, porque pode captar o que está cindido (MACHADO, 2006,
p.94).
Para Schelling, assim como para Schiller, o âmago da tragédia abriga o conflito
entre liberdade e necessidade. No item da Filosofia da Arte intitulado “Da Tragédia”,
Schelling analisa Édipo Rei. Análise esta que, para Peter Szondi, inaugura a teoria do
trágico (SZONDI, 2004, p. 29). Entenda-se que o escrito de Schelling tem, segundo
Szondi, um caráter demarcador: o pensamento do trágico mostra-se agora totalmente
19
No diálogo entre Sócrates e Gláucon, no livro X da República, lê-se: “ó Gláucon, quando encontrares
encomiastas de Homero, a dizerem que esse poeta foi o educador da Grécia (...) deves beijá-los e saudá-los
como sendo as melhores pessoas que é possível (...) mas reconhecer que, quanto a poesia, somente se devem
receber na cidade hinos aos deuses e encómios aos varões honestos e nada mais” (PLATÃO, 1989, p. 472).
desvinculado de uma poética da tragédia. Édipo, culpado-inocente, é tima de ardil do
destino. Não erro, o hamartia, como para Aristóteles. pura fatalidade: a mais
alta infelicidade concebível é se tornar culpado, pela fatalidade, sem verdadeira culpa”
(SCHELLING, 2001, p. 317). É vã a luta do herói contra a potência fatal do destino, mas é
preciso que o herói lute. É preciso ainda que o herói expie pelo crime inevitável. É preciso
expiar voluntariamente um crime urdido por mãos sobre-humanas para que apareça, com
toda a nitidez, a soberana liberdade do herói, para que a perda da liberdade apareça como
triunfo dessa mesma liberdade. Como percebe argutamente Szondi, em Schelling a
liberdade entra em desacordo consigo mesma, ela é “sua própria adversária”. Escreve
Schelling, no mencionado item, “Da tragédia”:
Mas que o culpado, que apenas sucumbiu à supremacia do destino, seja no
entanto castigado, era necessário para mostrar o triunfo da liberdade, era
reconhecimento da liberdade, honra que lhe cabia. O herói tinha que lutar
contra a fatalidade, senão de modo algum haveria conflito, exteriorização da
liberdade; ele tinha que sucumbir àquilo que está sujeito à necessidade, mas
para não deixar a necessidade vencer sem ao mesmo tempo a vencer de novo, o
herói tinha também de expiar voluntariamente a culpa infligida pelo destino.
O maior pensamento e a maior vitória da liberdade é suportar voluntariamente
também o castigo por um crime inevitável, para assim, na perda de sua própria
liberdade, demonstrar essa mesma liberdade e sucumbir, porém, ainda com
uma declaração de sua vontade livre (SCHELLING, 2001, p. 319).
Nessa passagem encontra-se explicitado o essencial da concepção do trágico
elaborada por Schelling: o embate entre a liberdade humana e a inexorabilidade do destino
como forma de elogio à liberdade. É importante atentar aí, em primeiro lugar, para o fato
de que o herói não sucumbe sem luta; em segundo lugar, para o fato de que o herói expia
voluntariamente a falta engendrada pelo destino. Resta observar que, para Schelling, o
núcleo significativo do trágico não reside propriamente no conflito, mas na conciliação
dialética que a tragédia estabelece entre liberdade e necessidade, sendo justamente este viés
dialético que confere à sua interpretação do trágico um caráter ontológico. Como Roberto
Machado aponta, Schelling expõe o seu raciocínio filosófico tomando como fio condutor
um exemplo concreto de tragédia” (MACHADO, 2006, p.99). Isto significa que o trágico
em Schelling passa a ser pensado independentemente do terreno poetológico, “como sendo
o próprio esquema da dialética, tal como ela é pensada no idealismo absoluto: a conversão
do negativo em positivo graças à reduplicação do negativo” (MACHADO, 2006, p. 99).
Entenda-se: a dissolução da liberdade (negativo) converte-se em triunfo dessa mesma
liberdade (positivo) quando o herói decide voluntariamente submeter-se à potência do
destino e ao castigo por ela imposto (negativo reduplicado). Para Schelling, o enredo
trágico é a representação artística do processo dialético. A intuição estética suscita a
intuição intelectual do absoluto. E a tragédia constitui o gênero mais adequado para tornar
sensível a conciliação dialética entre liberdade e necessidade que desemboca no absoluto,
terreno no qual as contradições já não vigoram mais.
Se em Schelling, trágico e dialética flertam um com outro, com Hegel tal
aproximação consuma-se de forma cabal. Como aponta Szondi, “interpretado por Hegel
como autodivisão e autoconciliação [Selbstentzweiung und Selbstversöhnung] da natureza
ética, o processo trágico manifesta pela primeira vez e de modo imediato sua estrutura
dialética” (SZONDI, 2004, p. 38). É notório que a estética elaborada por Hegel está
subordinada às leis do processo dialético. Avança Szondi: “em Hegel tragicidade e
dialética coincidem” (SZONDI, 2004, p. 39). René Wellek, por sua vez, salienta que
A estética de Hegel constitui o coroamento de todo um extraordinário
desenvolvimento da especulação alemã em matéria de arte. Hegel resume,
embora com uma diferença, o que haviam dito Kant, Schiller, Schelling e
Solger, (...) cujo pensamento elabora para formar um sistema de estética que,
por sua vez, constitui apenas uma pequena parte de uma filosofia total do
espírito, da história e da natureza (WELLEK, 1967, p. 282, grifo nosso).
Percebe-se a arte, e nela a tragédia, como um capítulo a mais, um momento a mais
do processo dialético e, diga-se de passagem, não o mais valorizado. Se em Schelling a arte
reluz como via privilegiada de acesso ao saber, como manifestação do absoluto supra-
sensível no sensível, o sistema hegeliano relega a arte a uma posição, como veremos,
modesta, inferior à religião e à filosofia. Dada a complexidade do pensamento hegeliano,
limitar-nos-emos aqui a esboçar, de forma sucinta, a sua concepção do trágico
indissoluvelmente ligada aos princípios gerais de sua filosofia. Exponhamos então, da
forma mais breve possível, tais princípios.
Para Kant, a realidade só nos é acessível através das doze categorias a priori do
entendimento e das formas espaço-temporais da sensibilidade. A sensibilidade recebe os
dados do mundo empírico e gera intuições que são retrabalhadas pelo entendimento,
processo pelo qual são produzidos os conceitos. Isto significa que a coisa em si, enquanto
substrato básico do real, permanece a nós inacessível. A estrutura de nosso instrumento
cognitivo condiciona e impõe limites ao conhecimento. A mente humana não está apta a
alcançar o real em si, isto é, as leis que regem o conhecer humano não são aplicáveis à
coisa em si. Esta permanece sempre para além do conhecimento. Por conseguinte, os
objetos da metafísica dogmática existência de um ser supremo, de uma causa última, a
imortalidade da alma, a existência do universo enquanto totalidade são desclassificados
pelo criticismo kantiano, que a eles não corresponde nenhuma intuição empírica
adequada. O pensamento de Hegel, em contrapartida, constitui um imenso esforço de
reatar conhecimento e realidade, entre os quais o criticismo kantiano estabelecera uma
fratura. Se Kant está empenhado em delimitar os princípios do conhecimento, Hegel,
ultrapassando o criticismo, esmera-se em alcançar o princípio último da realidade – a
Razão.
Grosso modo, Hegel identifica o Ser com a Razão, ou seja, reconhece, na própria
estrutura da realidade um princípio que a torna inteligível ao conhecimento humano. Se o
conhecimento do sujeito opera por meio da razão e se tal razão está, de certo modo,
presente no próprio objeto a ser conhecido, resulta que a possibilidade de conhecer até o
fim é revalidada. “Para Hegel, a razão é o princípio das coisas e, como tal, não é a ‘noite
escura’ impenetrável ao pensamento. Pois o pensamento humano é também razão, e basta
que ele desça à sua profundidade para captar a razão e, assim, o absoluto” (HEGEL, 1999,
p. 358). Tal razão inerente ao real apresenta-se como um continuum processual de índole
dialética que pode ser verificado, por exemplo, na concepção hegeliana de história,
entendida como processo teleológico de ascensão do espírito do mundo rumo à
conscientização cada vez maior de si mesmo.
O processo dialético culmina na noção hegeliana que identifica o ser ao nada
20
:
Assim, “cada coisa só é na medida em que, a todo momento de seu ser, algo que ainda não
é vem a ser, e algo que agora é, passa a não ser” (HEGEL, 1999, p. 15). A proposição
hegeliana da coexistência do ser e do nada evidencia o caráter processual do real.
Tentativa de passagem da lógica formal, binária, que exclui uma terceira possibilidade,
para uma lógica ternária que evidencia a contraditoriedade dinâmica da realidade. No
primeiro estágio do processo, algo que é traz em si a sua própria contradição, o seu próprio
não-ser (Tese); no segundo estágio tal contradição torna-se explícita e estabelece o conflito
(Antítese); no terceiro estágio a contradição é suspensa [aufgehoben] pela Síntese que
unifica Tese e Antítese numa unidade superior: “duas idéias que se opõem se revelam
como momentos de uma terceira que, por sua vez, contém as duas primeiras, elevando-as a
20
Mais tarde, Schopenhauer, notório adversário de Hegel, dirá: “Uma filosofia cuja tese fundamental prega
‘O ser é o nada’ é digna de um hospício. Em qualquer lugar fora da Alemanha é justamente para o hospício
que a remeteriam” (SCHOPENHAUER, 2006, p. 86).
uma unidade superior” (MACHADO, 2006, p.113). A dialética hegeliana apresenta-se,
deste modo, não como norma do pensar, mas como ontologia, isto é, intenta revelar a
própria estrutura da realidade.
Em sua Estética
21
(1835), Hegel defende, contrariando Kant, o belo artístico como
superior ao belo natural. Na arte, procede-se a uma transfiguração do conteúdo espiritual
nas formas do sensível: “o belo artístico é o sensível que se sabe espiritual” (MACHADO,
2006, p.111). O belo, para Hegel, “é o espírito absoluto em sua existência sensível, a idéia
manifestada na aparência sensível” (MACHADO, 2006, p.111). A arte, assim
compreendida, faz as vezes de mediadora entre a sensibilidade e o pensamento: “A arte é a
mediadora entre a realidade sensível e finita, por um lado, e o pensamento puro, a
liberdade infinita do pensamento conceitual, por outro” (MACHADO, 2006, p.111). Vale
observar que, para Hegel, a indispensável presença da matéria sensível na arte, isto é, a
inevitável presença da figura [Gestalt] que serve de suporte ao espiritual, é aquilo que
desvaloriza a arte, que a finitude da matéria sensível não é capaz de compreender a
infinitude do espírito. Como, na arte, a liberdade do pensamento ainda apresenta-se
ancorada a um necessário substrato sensível, disso se deduz a inferioridade do fenômeno
artístico em relação a outras manifestações do espírito mais independentes da
sensibilidade, pois na arte ainda subsiste a contradição entre natureza e espírito,
necessidade e liberdade. A arte, para o pensamento hegeliano, aponta para a morte ou
dissolução [Auflösung] da própria arte, no sentido em que a seu devir processual
corresponde um desembaraço, sempre mais completo, do elemento sensível. Wellek
considera, com acuidade, que a estética hegeliana torna-se, assim, uma anti-estética, uma
oração fúnebre da arte” (WELLEK, 1967, p. 284). Para melhor esclarecer este aspecto, é
necessário ter em vista que, para Hegel, o espírito participa de três momentos distintos - o
subjetivo, o objetivo e o absoluto:
O primeiro é a vida interior do espírito em diferentes níveis e momentos do
desenvolvimento dialético, como alma, consciência e espírito; o segundo é o
espírito em suas produções exteriores, obras das sociedades humanas: a
história, o direito, os costumes; o terceiro o espírito em suas manifestações
mais elevadas: a arte, a religião e a filosofia é a esfera da vida espiritual em
21
A Estética, como esclarece Roberto Machado, “não é propriamente um livro de Hegel; é um conjunto de
notas escritas por ele para seus cursos e de anotações de alunos feitas entre 1818 e 1819, reunidas e
publicadas, postumamente, em 1835” (MACHADO, 2006, p.110). Observamos ainda que parte da estética de
Hegel encontra-se em sua Fenomenologia do Espírito (1806-1807).
que o espírito sai da realidade efetiva externa, volta-se sobre si próprio, faz de
si próprio seu objeto e se reconhece como o que é (MACHADO, 2006, p. 113).
A arte é o primeiro dos três momentos do espírito absoluto, seu estágio inferior,
sua etapa objetiva, limitada pela sensibilidade. A etapa da arte é superada pela religião,
momento subjetivo do espírito, sendo este superado pela filosofia que unifica a
objetividade da arte e a subjetividade da religião, momento em que o espírito,
exteriorizado, pensa a si próprio e toma consciência de suas manifestações. Na segunda
parte da Estética, Hegel procede a uma divisão hierárquica da arte em três momentos: arte
simbólica, arte clássica e arte romântica. Esta última constitui o estágio mais elevado, no
qual o material sensível se particulariza para se adequar ao conteúdo espiritual. A arte
romântica, por sua vez, subdivide-se em três aspectos igualmente hierarquizados,
caracterizando uma libertação cada vez mais radical do sensível: pintura, música e poesia.
Para Hegel, a poesia, considerada como estágio superior da arte, procede a uma
aniquilação do sensível, convertido em mero sinal. Posição curiosa, a nosso ver, que
desconsidera a espessura formal da linguagem, assim como ignora íntima relação da
palavra com as formas da sensibilidade e com os dados do mundo exterior. Como percebe
Wellek, “Hegel subestima sistematicamente a sólida camada da poesia como uma
‘exterioridade acidental’ e decide que a superfície estética (...) da literatura não é a
linguagem, mas ‘a representação interna e a própria intuição’” (WELLEK, 1967, p. 285).
A poesia, por sua vez, compreende a tradicional divisão tripartite dos gêneros
épico, lírico e dramático. A poesia dramática constitui a forma mais elevada por conjugar a
objetividade do épico à subjetividade do lírico, isto é, apresenta uma ação objetiva que tem
como motor uma instância subjetiva. O último item da Estética, denominado “A poesia
dramática” conduz, finalmente, à concepção hegeliana do trágico, que o filósofo apresenta
no sub-item “As espécies de poesia dramática e seus movimentos históricos principais”.
Para Hegel, o tema da tragédia grega é o divino o divino compreendido como substância
ética primordial: “na tragédia o divino se manifesta eticamente” (MACHADO, 2006,
p.129). Ao entrar no mundo da vida, a unidade da substância ética (tese) se fragmenta,
objetivando-se em disposições éticas individuais. O pathos individual do herói, contraposto
a outros fragmentos da substancialidade ética, acaba por gerar o conflito trágico (antítese),
o que anula a harmonia divina presente no primeiro estágio, quando a substância ética
ainda não se fragmentara. Segue-se daí, com a morte ou ruína do herói, a conciliação
(síntese) entre as individualidades éticas conflitantes e a restauração da harmonia
primordial. O individual imerge no seio da substância divina. O espírito absoluto, depois
de atravessar a contraditoriedade do mundo objetivo, reencontra a si mesmo,
restabelecendo a unidade perdida. Fica evidente a própria estrutura da lógica dialética
identificada no decorrer do processo trágico.
É importante observar que as forças éticas que colidem na tragédia são ambas
justificadas: “mesmo se a realização de uma ação invade o domínio de outra vontade
humana, opondo-se ao pathos de outro caráter, que reivindica os seus direitos reagindo, a
luta se trava entre personagens que defendem direitos igualmente legítimos” (MACHADO,
2006, p.131). Como em Antígona, tragédia preferida por Hegel: a lei divina encarnada pela
heroína choca-se com a lei humana, representada por Creonte. Compreende-se que, após a
conciliação, a justiça relativa e unilateral do pathos individual é superada pela justiça
eterna e substancial que acaba por absorver nela mesma as unilateralidades conflitantes. À
passagem descendente do universal unitário e harmônico ao particular fragmentado e
desarmônico segue-se, em direção inversa, a passagem ascendente do particular ao
universal: auto-divisão e auto-conciliação da eticidade absoluta. Na tragédia de Sófocles, a
morte de Antígona e a ruína de Creonte correspondem à desfiguração da unilateralidade e à
restituição da substância ética primordial.
1.4 Schopenhauer: o trágico como negação da Vontade
Assim como em Schelling e Hegel, a concepção do trágico elaborada por
Schopenhauer
22
está intimamente ligada aos princípios de sua filosofia. A correlação estrita
entre sistema filosófico e consideração do trágico, mais uma vez, demonstra que o trágico,
também em Schopenhauer, deve ser considerado sob o ponto de vista ontológico: como
expressão de uma determinada posição a respeito da existência, independente de uma
poética da tragédia. Contudo, o pensamento de Schopenhauer constitui uma profunda
ruptura com o idealismo de Fichte, Schelling e Hegel na medida em que recusa o
22
Levando em conta a influência direta que o pensamento de Schopenhauer exerceu sobre o primeiro
Nietzsche, julgamos pertinente a abertura de um tópico especial para a exposição da concepção
schopenhaueriana do trágico.
estabelecimento da Razão como o aspecto mais fundamental do Ser ou, numa perspectiva
antropológica, o conhecimento como a faculdade mais fundamental do homem.
A crítica da razão em Schopenhauer consiste em despotenciar o conhecimento de
índole racional, tomando-o como inferior ao conhecimento intuitivo. Isto é, o
conhecimento científico abstrato é colocado num grau inferior em relação ao conhecimento
intuitivo proporcionado pela arte. Tal espécie de intuicionismo, que desloca a razão de seu
posto de supremacia, constitui, a nosso ver, um desvio importante na medida em que abre
um território novo do qual Nietzsche também partilhará onde o saber não se encontra
necessariamente vinculado ao racional, sendo este apenas uma das formas possíveis de
apreensão do real. Nesse território, a razão encontra-se, de certa forma, reduzida a um
posto subalterno. Roberto Machado alega:
Pretendendo ser o único herdeiro legítimo de Kant, considerando nula a
“impostura” de Fichte, Schelling e Hegel, Schopenhauer é, antes mesmo de
Nietzsche, o primeiro a denunciar a metafísica pela prioridade que ela atribui à
razão. (...) Schopenhauer
23
pretende subverter o ensino dos outros idealistas
alemães, sobretudo ao defender que a razão é apenas um fogo fátuo sobre um
abismo de trevas e horrores” (MACHADO, 2006, p.170).
Para Schopenhauer, assim como para Kant, o conhecimento humano é limitado por
sua própria estrutura, ou seja, se conhece o mundo através das lentes apriorísticas do
intelecto. Uma filosofia transcendental é, no sentido kantiano, aquela ocupada em conhecer
tais condições a priori do conhecimento “presentes em nossa mente e sensibilidade, que se
aplicam à experiência e possibilitam o mundo como uma série de fenômenos conectados
entre si” (BARBOZA, 2003, p. 24). A filosofia de Schopenhauer pode ser compreendida
como uma filosofia transcendental na medida em que investiga tais condições a priori da
mente e compreende o mundo como representação do sujeito que conhece a partir do
princípio da razão constituído pelas formas espaço-temporais e pela categoria de
causalidade. Desta forma, o entendimento, alimentado pelos dados empíricos, e a partir das
categorias que lhe são próprias, forja a realidade, fabrica o real, sendo este entendido como
“conclusão do entendimento” (BARBOZA, 2003, p. 27) ou, em outras palavras, como
efeito subordinado ao sujeito que conhece, sendo mais apropriado denominá-lo efetividade
[Wirklichkeit]. O mundo como representação é objeto que pressupõe um sujeito. Por
23
A observação que se segue, aduzida por Roberto Machado, reflete a posição de Jacques Taminiaux, que
considera Schopenhauer “o último dos grandes filósofos do idealismo alemão” (TAMINIAUX, apud
MACHADO, 2006, p.170).
conseguinte, tudo o que o sujeito conhece a partir do seu entendimento é representação,
isto é, fenômeno estilhaçado na pluralidade causal e espaço-temporal, restando o núcleo do
real inacessível.
Por outro lado, Schopenhauer identifica, permeando e subjazendo ao mundo
fenomênico da representação, o princípio da Vontade concebida como núcleo atemporal,
substrato último, uno, indivisível e incorruptível; substância e essência de tudo o que
aparece, fulcro primário e originário da existência; força irracional e cega, presente no
inorgânico, no vegetal, no animal e no homem. A Vontade é o em-si da representação e
não se encontra submetida ao princípio da razão. Constitui o fundamento infundado, não
conhece regras, causas, efeitos nem finalidades. Apesar de ser una em sua essência, ela
também é múltipla: ao submeter-se ao princípio da individuação
24
, a Vontade se multiplica,
estilhaça sua unidade nas incontáveis formas de existência individual. Essas formas, todas
advindas do mesmo núcleo volitivo, lutam entre si. Resulta que o sofrimento, efeito da
auto-discórdia da Vontade, domina o campo da existência. Schopenhauer aponta para o
caráter irremediável e injustificável da dor, que nenhuma fábula metafísica pode atenuar.
Alle Leben Leiden ist, isto é, toda vida é sofrimento, como quer Schopenhauer, para quem
todo ser individual encontra-se submetido à força tirânica, de caráter irracional e cego, que
constitui a Vontade: “O sentido mais próximo e imediato de nossa vida é o sofrimento”
(SCHOPENHAUER, 2007, p. 113). Nesse pensamento, a dor é a realidade positiva,
enquanto o prazer é concebido como negativo, ausência momentânea de dor.
É necessário, ainda, reconhecer um terceiro nível, intermediário, entre esses dois
pólos: a Idéia. Noção reconhecidamente platônica, constitui a objetivação mais adequada
da vontade, “manifestação mais imediata da coisa em si” (MACHADO, 2006, p. 172),
portanto, ainda representação. Contudo,
não se trata de uma representação como é o fenômeno, o mundo fenomenal. A
grande diferença em relação ao fenômeno é que as idéias não são sujeitas à
pluralidade e à mudança. Elas são inalteráveis, únicas e idênticas, são
protótipos ou formas eternas das coisas, fora do espaço, do tempo e da
causalidade (MACHADO, 2006, p.172).
Compreende, pois, a concepção epistemológica de Schopenhauer, três níveis
distintos: (a) o nível básico e sem fundamento da Vontade; (b) o nível médio das Idéias,
24
Retomada de um conceito da escolástica, o principium individuaitionis consiste nas formas espaço-
temporais sob as quais se apresenta a pluralidade dos entes compreendidos no campo da representação.
representações mais gerais referentes a arquétipos eternos das coisas e não submetidas ao
princípio da razão; (c) o nível da representação, espaço da pluralidade e da impermanência,
manifestação sempre mediata e imperfeita da coisa em si. O homem comum, enredado na
vida cotidiana, conhece apenas fenômeno: uma multiplicidade intrincada de representações
distribuídas no espaço-tempo. Tanto a coisa em si quanto a Idéia permanecem ocultas
sobre o véu de Maia
25
da individuação. Para tal homem, a dor constitui a realidade
positiva. O conhecimento subsiste exclusivamente sob a servidão da Vontade e a única
perspectiva palpável é a morte. Ele pode, todavia, através do conhecimento, elevar-se
acima da individuação e atinar com a certeza de que esta é meramente ilusória. A única
realidade é a Vontade, que é eterna portanto a morte não é capaz de atingir o cerne da
existência: “impõe-se-nos irresistivelmente o pensamento de que o nascimento e a morte
não afetam em nada a essência verdadeira das coisas: esta permanece ilesa, é portanto
imperecível, e permanece em cada ser, continuamente e sem fim” (SCHOPENHAUER,
2007, p. 41).
Ademais, Schopenhauer identifica um estado no qual a força de imposição dos
motivos da Vontade é atenuada: trata-se da contemplação estética. Aqui se começa a
deslindar o pensamento de Schopenhauer sobre a arte. O sujeito, em tal estado
contemplativo, torna-se sujeito puro do conhecimento: conhece não mais submetido ao
sofrimento imposto pela Vontade e à limitação imposta pelo princípio da razão e obtém um
acesso intuitivo e imediato ao campo da Idéia.
O estado contemplativo pressupõe um conhecer de modo intuitivo, isto é, de forma
não mediada. Assim, o sujeito liberta-se do princípio da razão e apreende intuitivamente a
essência a Idéia dos objetos. Para Schopenhauer, tal modalidade cognitiva de acesso
imediato à Idéia pode ser fruída pelo sujeito tanto mediante o belo natural, quanto
mediante a produção ou contemplação de objetos artísticos. Como aponta Wellek,
a arte repete idéias eternas apreendidas através da pura contemplação, do
essencial e permanente em todos os fenômenos do mundo. Essas idéias não
são, certamente, conceitos gerais, mas as essências das coisas, as quais, na arte,
são intuídas, percebidas, e não simplesmente pensadas (WELLEK, 1967, p.
275).
25
Na tradição hindu, a palavra “Maia”, do sânscrito, tem, entre outros, o sentido de “ilusão”. A imagem do
véu de Maia traduz a barreira que separa a percepção humana da realidade eterna e imutável e a isola no
mundo do efêmero e do ilusório. Schopenhauer é grande apreciador da filosofia indiana e utiliza várias das
formulações da escola Vedanta em sua reflexão.
Através da arte obtém-se a visão imediata, desligada das formas espaço-temporais.
Ultrapassagem da limitação do conhecimento científico e passagem para uma outra forma
de saber uma saber artístico. Em meio ao turbilhão do campo representacional, o sujeito
logra distinguir com nitidez a Idéia pura, separada daquilo que a condiciona como mero
fenômeno. A arte, para Schopenhauer,
retira o objeto de sua contemplação da torrente do curso do mundo e o isola
diante de si; e esse particular, que era na torrente fugidia uma parte ínfima a
desaparecer, torna-se um representante do todo, um equivalente no espaço e no
tempo do muito infinito. A arte se detém nesse particular, a roda do tempo
pára; as relações desaparecem para ela. Apenas o essencial, a Idéia, é seu
objeto (SCHOPENHAUER, 2003, p.59).
Um terreno estável meta-empírico, instaurado para além do oceano do devir, que
presentifica uma essência atemporal da coisa. Compreende-se que o pensamento de
Schopenhauer sobre a arte não estabelece precisamente uma estética, mas uma ontologia,
“uma metafísica, uma teoria especulativa da arte. Posição que o coloca em continuidade
com Schelling, Hegel e Hölderlin, apesar de todas as críticas que faz à metafísica idealista”
(MACHADO, 2006, p.177).
Para o pensador, todo ser humano, em maior ou menor grau, possui a capacidade da
contemplação intuitiva. Entretanto, é o gênio que a realiza de forma profunda e duradoura.
Conceito fundamental da “Metafísica do Belo”, o gênio viola as fronteiras do
conhecimento ordinário, extrapola a representação e ascende em direção à Idéia
desvinculada do vir-a-ser. Portanto, a genialidade, para Schopenhauer, constitui uma
habilidade especial para se desvencilhar da opressão da Vontade e posicionar-se como puro
sujeito do conhecimento capaz de apreender a Idéia e comunicá-la através das várias
formas do objeto artístico:
a essência do gênio é a capacidade de apreender nas coisas efetivas sua Idéia
(...) a capacidade de perder-se na intuição, de abandonar o conhecimento a
serviço da vontade , isto é, de perder de vista seu interesse, seu querer, seus
fins, de desfazer-se de sua personalidade e permanecer como puro sujeito que
conhece, claro olho cósmico (SCHOPENHAUER, 2003, p. 66).
A “Metafísica do Belo” empreende uma divisão hierárquica das artes, de acordo
com os graus cada vez mais perfeitos de objetivação da Vontade. Na base do sistema
encontra-se a arquitetura, seguida, em ordem crescente, pelas seguintes artes: jardinagem;
pintura paisagística; escultura e pintura de animais; escultura e pintura de homens; poesia
e, no topo, considerada com a mais excelsa das artes, a música, concebida como expressão
imediata da coisa em si. No terreno da poesia, Schopenhauer, assim como Hegel, considera
a arte trágica como o mais perfeito dentre os fazeres poéticos. A seção de número 51 da
terceira parte de O Mundo como vontade e representação é toda dedicada à poesia. As
últimas considerações desta seção dizem respeito à arte trágica: “Como ápice da arte
poética, tanto com respeito à grandiosidade do efeito como à dificuldade da realização,
deve-se considerar a tragédia, que como tal é reconhecida” (SCHOPENHAUER, 2005, p.
100).
E qual a razão indaga-se - que justifica, para Schopenhauer, o alto posto da
tragédia entre as modalidades da poesia? Vejamos o que ele mesmo diz:
É muito significativo e digno de atenção para o conjunto de nossas
considerações, que o fim desta mais alta realização poética seja a apresentação
do lado terrível da vida, que o sofrimento inominável, a miséria da
humanidade, o triunfo da maldade, o cínico domínio do acaso, a queda sem
salvação do justo e inocente, nos sejam aqui revelados, pois nisto reside uma
indicação significativa sobre a constituição do mundo e da existência
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 100).
Com efeito, Schopenhauer identifica na tragédia aquilo que seu pessimismo
metafísico já afirmara de antemão: a vida é sofrimento e subsiste sob a tirania irrestrita da
Vontade. Isso significa que a tragédia apresenta, no mais alto grau de objetivação, a
discórdia interna da Vontade consigo mesma e a insignificância do humano quando
opresso pela força cega desse auto-embate. Vislumbra-se então, de que modo a formulação
schopenhauriana do trágico configura-se como ontologia: o trágico explicita uma certa
concepção do mundo e da existência que coincide com aquela já apresentada pelo pensador
na segunda parte de sua obra principal.
Verifica-se ainda a notável especificidade de tal compreensão do trágico quando
comparada àquelas elaboradas anteriormente no âmbito do classicismo e do idealismo.
Tanto para Schiller quanto para Schelling e Hegel, o trágico é a apresentação de uma
potência humana ética e moral, seja imanente ou transcendente, que eleva o homem e
dignifica sua condição. Mesmo que o conflito trágico acarrete a morte ou a ruína do herói,
dele sempre se apreende um Sentido maior que inscreve o humano num campo situado
para além das limitações impostas pela finitude e confere à liberdade humana a força ética
ou espiritual capaz de fazer face às adversidades do mundo objetivo. Em Schopenhauer,
verifica-se a inversão ou desfiguração desse raciocínio, já que a vitória pertence à Vontade,
ou antes, não vencedor: o homem é mero joguete lançado em turbilhão e não sentido
algum que justifique sua queda. O herói é esmagado por forças sobre as quais não tem
qualquer domínio e disso não resulta uma afirmação de sua dignidade, mas a negação da
mesma. Se para Schelling, por exemplo, a tragédia expõe o triunfo supremo da liberdade
daquele que sofre e expia voluntariamente um crime inevitável engendrado pelo destino,
para Schopenhauer o trágico é o triunfo supremo da necessidade à qual está submetido o
herói.
O trágico, assim compreendido, possibilita uma introvisão que ultrapassa o véu de
Maia da individuação e distingue a verdadeira natureza da existência, isto é, traz à tona o
conhecimento da eterna discórdia da Vontade consigo mesma. Desse conhecimento resulta
uma atitude resignada que conduz à negação do querer. Atitude tal baseada na certeza de
que a vida não pode nos oferecer nenhuma satisfação verdadeira:
esse conhecimento, purificado e elevado pelo próprio sofrimento, atinge o
ponto em que o fenômeno, o véu da maja, já não mais ilude, é percebida a
forma do fenômeno, o principium individuationis, desaparece o egoísmo nele
baseado, com o que os motivos, outrora poderosos, perdem seu poder, e em seu
lugar o conhecimento perfeito da essência do mundo, atuando como quietivo
da vontade, apresenta a resignação, a renúncia, não unicamente da vida, mas
mesmo de todo querer viver (SCHOPENHAUER, 2005, p. 100).
O trágico em Schopenhauer é compreendido como exortação ascética. A mais alta
realização da poesia é um canto que maldiz a vida. Um convite a rejeitar a existência, na
certeza de que a dor que ela pressupõe, sendo irremediável e injustificável, é motivo
suficiente para negá-la. Para Schopenhauer, como para Anaximandro
26
, a própria
existência é culpada e a individuação é um crime pelo qual é preciso expiar. uma
injustiça congênita à existência, um mal enraizado no próprio individuar-se. É esse mal que
a tragédia tem por função revelar e trazer à superfície da consciência: “O verdadeiro
sentido da tragédia constitui a visão mais profunda, de que o expiado pelo herói não são
seus pecados particulares, mas sim o pecado original, isto é, a culpa da existência ela
própria” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 101). No entanto, paradoxalmente, a tragédia
26
Segundo Anaximandro, “de onde as coisas tiram a sua origem, devem também perecer, segundo a
necessidade; pois elas têm de expiar e se ser julgadas pelas suas injustiças de acordo com a ordem do tempo”.
Citado por Nietzsche em A filosofia na época trágica dos gregos (NIETZSCHE, 1995, p. 33).
suscita alegria no espectador. Que tipo de alegria pode provir de uma desvalorização
radical da vida? Roberto Machado assevera:
A catástrofe trágica nos convence de que a vida é um pesadelo do qual é
preciso acordar. Mas como? Afastando-nos da vontade de viver. A negação
dessa vontade, que é a própria resignação, resulta do conhecimento do conflito
da vontade consigo mesma. O que explicaria a alegria que a apresentação do
lado terrível da existência provoca. É esse conhecimento, dessa consciência do
que a vontade é e da necessidade de se desinteressar dela, libertando-se do
princípio da individuação, que dá alegria (MACHADO, 2006, p. 186).
O conhecimento artístico que a tragédia oferece volta-se contra a Vontade, sem
lograr efetuar, contudo, sua total negação. A alegria que ele suscita provém da resignação,
única atitude sensata diante da insensatez da existência. Uma alegria sui generis, por certo
uma alegria sombria alegria que se volta contra si mesma e que contraria em seu próprio
fundamento o princípio de qualquer alegria, que é, justamente, o contentamento
incondicional que impele à existência e aspira por mais vida. A alegria trágica, em
Schopenhauer, é o contrário disso, pois que nasce da rejeição da vontade de viver que, em
termo nietzscheanos, é sintoma de uma vida em declínio. Para Schopenhauer, a finalidade
da tragédia é prover o espectador com tal conhecimento, que tem como conseqüência uma
renúncia radical da vida. Aproximam-se o herói trágico e o asceta, na medida em que
ambos ultrapassam a fronteira ilusória de Maia e obtêm, cada qual a seu modo e em
diferentes graus, um conhecimento perfeito da essência do mundo que atua, por sua vez,
como quietivo do querer.
1.5 Nietzsche: as faces do trágico
Herdeira de Kant e de Schopenhauer, a concepção do trágico elaborada pelo jovem
Nietzsche opera ainda com a noção metafísica de uma essência eterna que subjaz e permeia
o campo sensível da individuação. Apesar dessa herança, que Nietzsche mais tarde tratará
de rejeitar com veemência, a primeira concepção nietzscheana do trágico traz elementos
diferenciais que anunciam o que será, mais tarde, o trágico no contexto do pensamento
maduro do filósofo. Um desses elementos, que permanecerá nos escritos posteriores,
contraria expressamente a fórmula schopenhaueriana da tragédia como doadora de um
saber que leva à negação da vida. Trata-se da alegria trágica entendida como estimulante
da vida. Ou seja, a alegria no sentido próprio da palavra alegria como júbilo, satisfação,
transbordamento de vida, isto é: afirmação.
1.5.1 tragédia e metafísica
Voltemos por um instante a atenção para a especificidade desse primeiro
pensamento de Nietzsche a respeito da tragédia. Ele está exposto no livro publicado por
Nietzsche em 1872, O nascimento da tragédia a partir do espírito da música
27
. Na
segunda edição, lançada em 1887, Nietzsche altera o título para O nascimento da tragédia
ou helenismo e pessimismo e inclui um segundo prefácio denominado “Tentativa de
autocrítica”. Esquematicamente, quatro idéias fundamentais que Nietzsche desenvolve
aí: a) uma teoria acerca da gênese da tragédia ática concebida como resultado do confronto
entre dois impulsos artísticos de natureza diversa – o apolíneo e o dionisíaco; b) a denúncia
da morte da tragédia, levada a cabo pelo advento do pensamento socrático e do teatro
euripedeano, que concedem primazia à via da racionalidade e ao método dialético; c) uma
análise cáustica da modernidade, entendida como cenário esterilizado culturalmente pela
confiança excessiva nos poderes da razão; d) a esperança vigorosa de um renascimento da
arte trágica no âmbito da cultura alemã. Os indícios de tal renascimento são identificados
sobretudo no drama musical wagneriano e no pensamento de Kant e Schopenhauer.
Em primeiro lugar, interessa-nos destacar a teoria nietzscheana a respeito do
nascimento da arte trágica. Como surgiu a tragédia? O problema da gênese tem uma
importância fundamental na medida em que clarifica os pressupostos sobre os quais a
tragédia pôde se assentar, embora por tempo muito limitado, ao mesmo tempo em que, sem
possuir necessariamente verossimilhança histórica, leva à compreensão de uma dualidade
que acaba por iluminar o próprio pensamento do filósofo a respeito do trágico. Se, segundo
a perspectiva de Nietzsche, a questão da gênese é um labirinto (NIETZSCHE, 1992, p.
51), esse labirinto encontra-se fundado não sobre uma base pretensamente neutra ou
objetiva, mas é a própria perspectiva do filósofo que lhe vida. Mais precisamente:
entender a gênese da tragédia, tal como Nietzsche a entendeu, leva à compreensão, não
27
Na época em que o livro foi publicado, Nietzsche era professor de filologia clássica da Universidade da
Basiléia. As teses defendidas no livro suscitaram grande polêmica entre os filólogos. Wilamowitz-
Möllendorff denunciou o caráter não-científico da obra, que subordina a filologia à filosofia e à música
(MACHADO, 2005). O volume organizado por Roberto Machado e publicado em 2005, Nietzsche e a
polêmica sobre O nascimento da tragédia traz, entre cartas, artigos, réplicas e tréplicas dos diversos
personagens envolvidos, o conteúdo dos debates.
tanto da tragédia em si, mas daquilo que o pensador identifica ali e que, podemos dizer, diz
respeito à sua concepção do trágico. Essa concepção primeira será posteriormente alterada,
mantendo-se, contudo, certa continuidade, como veremos no tópico seguinte.
Segundo a tradição ale inaugurada por Winckelmann e Goethe, a civilização
grega é, antes de mais nada, a civilização de Apolo. A estatuária, a arquitetura e a literatura
homérica configuram-se, para a estética moderna, como sinais claros da presença apolínea
na arte e no pensamento gregos. Tendência apolínea que se manifesta em categorias como
forma, medida, harmonia, proporção entre as partes elementos que, como vimos, são
pilares da estética de Winckelmann, baseada na nobre serenidade e serena grandeza. Para
Nietzsche, o impulso apolíneo está relacionado diretamente à imagem onírica entendida
como capacidade humana de figuração:
a bela aparência do mundo do sonho, em cuja produção cada ser humano é um
artista consumado, constitui a precondição de toda arte plástica, mas também
(...) de uma importante metade da poesia. Nós desfrutamos de uma
compreensão imediata da figuração, todas as formas nos falam, não nada
que seja indiferente e inútil. Na mais elevada existência dessa realidade onírica
temos ainda, todavia, a transluzente sensação de sua aparência (NIETZSCHE,
1992a, p.28).
Aí se encontra o essencial: o sonho, como matriz da figuração, é pai da arte plástica
e de parte da poesia, ou seja, o estado apolíneo constitui, por excelência, o terreno da
aparência, entendida como ilusão artística que cria a bela forma, força criadora que, na
Grécia clássica, revestiu o mundo com a capa da luminosidade ofuscante dos heróis
homéricos ou que talhou no mármore o perfil dos deuses. Apolo é o impulso estético
direcionado ao belo, aquilo que molda e que confere contorno, aquele que é capaz de
extrair da natureza informe a imagem celestial. Da mesma forma, o panteão olímpico é
resultado dessa potência figuradora. É propriedade dos deuses e heróis serem entidades
luminosas, a ponto de Zeus, nos relatos mitológicos, confundir-se com Hélio, o Sol.
Nietzsche identifica na etimologia do nome de Apolo o elemento luminoso - Febo Apolo é
o resplendente, a divindade da luz e do brilho. Compreende-se pois, que Apolo esteja
diretamente relacionado à individuação. Utilizando a fórmula cara a Schopenhauer,
Nietzsche compreende Apolo como “esplêndida imagem divina do principium
individuationis (NIETZSCHE, 1992a, p.30). Contraposta à individuação barco frágil em
meio ao mar tempestuoso, segundo imagem schopenhaueriana utilizada por Nietzsche
estende-se o turbilhão cego e irracional da Vontade eterna, dentro da qual toda
individuação se dilui.
A caracterização da Grécia como civilização apolínea, porém, é insuficiente para
Nietzsche. O filósofo, com efeito, não crê que o apolíneo seja “um estado tão simples,
resultante de si mesmo, por assim dizer inevitável, que tenhamos de encontrar à porta de
cada cultura, qual um paraíso da humanidade” (NIETZSCHE, 1992a, p.38) Sem entrar em
detalhes acerca da análise nietzscheana sobre as condições que levaram ao esplendor a arte
apolínea, concentremo-nos no essencial: segundo Nietzsche, atingir tal estado de harmonia
e serenidade não foi, de modo algum, para o grego, decorrência natural de circunstâncias
históricas ou predisposição inata. Ao contrário: o grego apolíneo é, sobretudo, um
vitorioso. Vitória sobre uma sensibilidade extremamente sensível ao sofrimento, que
necessita da bela aparência para conservar-se na vida. Vitória sobre o fundo dionisíaco da
existência o abismo insaciável da Vontade schopenhaueriana. Vitória, em última
instância, sobre o substrato instintual presente no humano, ou seja, aquilo que, no próprio
homem, ameaça ultrapassar a medida apolínea. Diz Nietzsche:
O grego conheceu e sentiu os temores e os horrores do existir: para que lhe
fosse possível de algum modo viver, teve de colocar ali, entre ele e a vida, a
resplendente criação onírica dos deuses olímpicos. Aquela inaudita
desconfiança ante os poderes titânicos da natureza, aquela Moira [destino] a
reinar impiedosa sobre todos os conhecimentos, aquele abutre a roer o grande
amigo dos homens que foi Prometeu, aquele horrível destino do sagaz Édipo,
aquela maldição sobre a estirpe dos Átridas, que obriga Orestes ao matricídio
(...) foi, através daquele artístico mundo intermédio dos olímpicos,
constantemente sobrepujado pelos gregos ou, pelo menos, encoberto e
subtraído ao olhar (NIETZSCHE, 1992a, p.36-37).
É Dioniso a divindade que, para Nietzsche, encarna essa sabedoria pessimista
presente no cerne da alma helênica, expressa de forma célebre na resposta de Sileno
28
ao
rei Midas, quando este lhe pergunta qual dentre as coisas é a melhor e a mais preferível
para o homem. Na versão de Nietzsche, Sileno responde ao rei:
28
Segundo nota de J. Guinsburg à sua tradução de O Nascimento da Tragédia, Sileno é um “semideus,
preceptor e servidor de Dionísio. Filho de Pã ou, segundo outras versões, de Hermes e Géia, era representado
como um velho careca, de nariz chato arrebitado, montado num asno ou amparado por sátiros, que
acompanhava o cortejo do deus por toda parte e de cuja ebriedade falava sempre a voz mais profunda do
saber e da filosofia” (NIETZSCHE, 1992a, p. 147).
Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas
a dizer-te o que para ti seria mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti
inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso,
porém, o melhor para ti é logo morrer (NIETZSCHE, 1992a, p. 36).
A geração dos olímpicos, a teogonia olímpica do júblio”, substituta da “primitiva
teogonia titânica dos terrores” (NIETZSCHE, 1992a, p. 37) é compreendida como o fruto
mais esplendoroso desse mecanismo de proteção contra tal sabedoria popular que, no
entanto, está enraizada no heleno e que, mesmo de forma velada ou obscura, é parte
integrante dele. Na contracorrente da tradição culminante em Winckelmann, que promove
a hiper-valorização do elemento apolíneo, Nietzsche destaca o papel absolutamente
fundamental do dionisíaco, sem o qual torna-se vã toda tentativa de compreensão da
Grécia. É evidente, nesse sentido, o distanciamento de Nietzsche em relação à reflexão
sobre o trágico na Alemanha do século XIX. Se Nietzsche continuidade ao projeto de
Goethe e Winckelmann de revisitação da Grécia como fonte de uma nova postura sobre a
arte moderna, a introdução do elemento dionisíaco como item fundamental dessa reflexão
é algo inédito. Diz Nietzsche: “Somos impressionados de forma bem diferente ao examinar
o conceito de ‘grego’ desenvolvido por Goethe e Winckelmann, e o achamos incompatível
com aquele elemento do qual nasce a arte dionisíaca o orgiástico”. E ainda: “Realmente
não duvido que Goethe, por princípio, tenha excluído algo semelhante das possibilidades
da alma grega” (NIETZSCHE, 2006, p.105). Roberto Machado salienta que há uma grande
diferença entre Nietzsche e
os pensadores que iniciaram a política cultural alemã de valorização da arte
grega como modelo do que deve ser a arte moderna. É que, negando que os
gregos tenham sido exclusivamente ou essencialmente apolíneos como
pensava Winckelmann com sua célebre “nobre simplicidade e calma grandeza”
Nietzsche relacionará a serenidade apolínea com um aspecto mais profundo
da Grécia, o dionisíaco, que não tinha sido pensado por eles (MACHADO,
2005, p. 10).
Furor da natureza para o qual não limite possível, região de sombra onde a luz
de Apolo revela-se como artifício, Dioniso é exatamente a divindade que abole a
configuração limitada dos entes o humano e a fera, o nobre e o escravo, o feminino e o
masculino, todos os pares que, cotidianamente, polarizam-se como heterogêneos,
entrelaçam-se no festim do deus: se Apolo é pureza, Dioniso é mistura. Se Apolo é deus da
arte plástica, Dioniso patrocina a arte não-figurada da música. Em As Bacantes, as
matronas tebanas, tomadas pela mania, abandonam seus respectivos lares, renunciam ao
seu papel social e fogem para os arredores da pólis, onde se comportam como animais
ferozes. Emerge nelas a natureza animalesca, o fundo bárbaro e primitivo que subjaz à
superfície da cultura. No fim da tragédia, sob a maldição do deus enfurecido, Sêmele,
auxiliada por suas irmãs, destroça Penteu, seu filho, com as próprias mãos:
se ouviam / lamentações confusas e Penteu gemia / nos momentos finais de
sua luta contra a morte; / ao mesmo tempo as três irmãs, gritando uníssonas, /
aceleraram o esquartejamento; uma / logo arrancou do moribundo um de seus
braços; / outra um dos pés inda calçado na sandália, / e as três tiraram de seus
flancos lacerados / as carnes palpitantes. Com as mãos sangrentas, / como se
disputassem um jogo de bola / elas lançavam em todas as direções / restos do
corpo de Penteu (EURÍPEDES, 1993, p. 262).
A cena do esquartejamento revela o fundamental do caráter de Dioniso. No
sacrifício horrendo que a mãe inflige ao filho, configura-se a abolição do laço familiar. E
no desmembramento do filho é a própria individuação que é abolida, a própria figuração
que é negada. Os pedaços do corpo de Penteu são usados como brinquedo.
Desmembramento social e individual. Quando essa potência ilimitada irrompe, ambas as
estruturas encontram-se ameaçadas. Mas Dioniso não é apenas horror. Ao fiel, ele oferece
o êxtase oriundo perda momentânea dos limites da individuação. Por um instante, a
própria essência das coisas revela-se àquele que comunga nos rituais dionisíacos. Segundo
a visão schopenhaueriana adotada pelo jovem Nietzsche, quando se rompem os limites da
individuação, é a Vontade voraz que se a conhecer. Por outro lado, o mundo apolíneo
aparece, nesse momento, como o que realmente é: mera ilusão, mera capa luminosa, véu de
Maia que esconde o fundo essencial.
É importante salientar que Nietzsche compreende o a cultura grega, mas toda
cultura, como resultado do delicado equilíbrio que permite a convivência pacífica desses
dois impulsos. Um fragmento póstumo de junho de 1883, diz: “a cultura é apenas uma fina
casca de maçã que envolve um caos incandescente” (NIETZSCHE, 2005, p.147). Safranski
considera que, para o Nietzsche dessa época,
o dionisíaco (...) é o próprio inaudito processo da vida, e culturas não são senão
tentativas frágeis e sempre ameaçadas de criar dentro delas uma zona de
“vivibilidade” (Lebbarkeit). Culturas sublimam as energias dionisíacas; as
instituições culturais, rituais, significados, são representações, símbolos, que se
alimentam da verdadeira substância vital, mas mesmo assim a mantêm à
distância. O dionisíaco jaz diante da civilização e debaixo dela, é a dimensão a
um tempo sedutora e ameaçadora do Inaudito (SAFRANSKI, 2005, p. 58).
Compreende-se que, irrefreado, Dioniso represente perigo letal para o grego
apolíneo, com sua especial aptidão ao sofrimento e, mais ainda, represente perigo para toda
a estrutura da pólis. No século V, sob as reformas de Psístrato, as “classes populares se
elevam” e a essa “ascensão social corresponde também a admissão dos cultos populares – a
religião de Dioniso e Demetér – na pólis fechada e aristocrática” (PAZ, 1982, p. 246). Com
a proximidade dos cultos dionisíacos é toda uma armação cuidadosamente montada que
vacila. Pois quando o grego retorna dos estados dionisíacos em direção à vida cotidiana,
esta é sentida com náusea “uma disposição ascética, negadora da vontade”
(NIETZSCHE, 1992a, p. 56). Depois de conhecer a voracidade irrefreada da essência do
mundo, irá o grego, como queria Schopenhauer, sucumbir ao sofrimento e negar a ilusão
constitutiva da cultura, negando com isso a própria possibilidade de construir, em torno de
si, um espaço apolíneo que permita a vida? A tragédia é a chave desse conflito. Roberto
Machado salienta que
a experiência dionisíaca, tendo significado um acesso à verdade da natureza,
uma verdade que mostra que a natureza é desmesurada ou que a verdade é
desmesura, faz o homem compreender a ilusão em que vivia ao criar um
mundo de beleza justamente para mascarar a verdade. A visão da essência
eterna e imutável das coisas faz com que ele desista de agir e construir uma
civilização (MACHADO, 1999, p. 22).
A arte trágica, para Nietzsche, é aquela que opera a admirável façanha de unir, no
mesmo fenômeno artístico, os dois impulsos adversários. Apolo e Dioniso dão-se as mãos
a sabedoria pessimista de Sileno é revertida e a vida volta ser algo sumamente desejável:
‘A pior coisa de todas é (...) morrer logo; a segunda pior é simplesmente morrer um dia
” (NIETZSCHE, 1992a, p. 37). A sabedoria dionisíaca, expressa através da música, ganha
uma cobertura apolínea: o universo da cena e da palavra. Diz Nietzsche, a respeito do
homem grego: “Ele é salvo pela arte, e através da arte salva-se nele a vida”
(NIETZSCHE, 1992a, p. 55). O caráter destrutivo e aniquilador de Dioniso é camuflado
pela arte luminosa de Apolo. Através da tragédia, torna-se possível viver Dioniso sem ser
destruído, isto é, sem renunciar à individuação apolínea: “Aqui, neste supremo perigo da
vontade, aproxima-se, qual feiticeira da salvação e da cura, a arte: ela tem o poder de
transformar aqueles pensamentos enojados sobre o horror e o absurdo da existência em
representações com as quais é possível viver” (NIETZSCHE, 1992a, p. 56).
A tragédia, para Nietzsche, tem origem nos cultos rurais da Grécia arcaica. Um
grupo de homens travestidos em sátiros entoa, em louvor a Dioniso, um canto ditirâmbico.
A música constitui o elemento-chave: através dela a sabedoria dionisíaca transpassa o fiel e
permite a experiência extática. As fronteiras se dissolvem, como se nunca houvessem
existido:
Agora o escravo é homem livre, agora se rompem todas as rígidas e hostis
delimitações que a necessidade, a arbitrariedade (...) estabeleceram entre os
homens. Agora, graças ao evangelho da harmonia universal, cada qual se sente
não unificado, conciliado, fundido com o seu próximo, mas um só, como se
o véu de Maia houvesse sido rasgado e, reduzido a tiras, esvoaçasse diante do
misterioso Uno-primordial (NIETZSCHE, 1992a, p. 31).
Nesse trecho, percebe-se o quanto a concepção nietzscheana do trágico e do
dionisíaco é permeada, nesse momento, pelo pensamento de Schopenhauer. Rasga-se o véu
de Maia da representação aparente e multíplice para que o homem tenha acesso à essência
una da Vontade, que o funde com a natureza e com os outros homens. O par Vontade-
representação é onipresente. Em relação à música, a idéia também provém de
Schopenhauer: a arte musical é expressão imediata da essência do mundo. Nietzsche
compartilha inteiramente da concepção schopenhauriana da música, concebida como
rainha das artes, a única a permitir o acesso imediato à Vontade essencial, ao plano
metafísico para além da representação
29
. Roberto Machado pondera que é:
profundamente inspirado em Schopenhauer, e na apropriação que dele faz
Wagner em seu Beethoven que Nietzsche pensará a música como espelho
dionisíaco do mundo considerado como essência ou fundamento, portanto,
como uma arte essencialmente metafísica (MACHADO, 2006, p. 228).
Pois é exatamente a música, a arte dionisíaca por excelência, via de acesso
privilegiada ao saber dionisíaco que subjaz a todo artificioso edifício de imagens apolíneas,
que constitui, ao ver de Nietzsche, a matriz da tragédia. É da música que nasce o mito
trágico, concebido como expressão imagética da sabedoria de Dioniso. Isto significa que a
29
Nietzsche cita Schopenhauer ao argumentar que a música não é, como as demais artes, mero “reflexo
[Abbild] do fenômeno, porém reflexo imediato da vontade mesma e, portanto, representa, para tudo o que é
físico no mundo, o metafísico, e para todo fenômeno, a coisa em si” (NIETZSCHE, 1992a, p. 97).
música transpõe, traduz, revela o saber dionisíaco em imagens capazes de expressar esse
mesmo saber. Na evolução da arte trágica, segundo a hipótese de Nietzsche, a turba satírica
transmuda-se em coro. Do Dioniso natural ao Dioniso artístico. O arcaico festejo religioso
transforma-se em fenômeno artístico, sem que com isso perca seu significado religioso. O
coro musical dionisíaco descarrega na cena um mundo de imagens apolíneas – encena-se o
mito trágico, expressão de um saber obscuro e dilacerador, mas que é a tal ponto envolto
nas malhas de Apolo que a aniquilação do herói chega a parecer bela ao espectador. Daí
decorre que a cena trágica seja a realização apolínea de um estado dionisíaco que se
origina da música extática do coro. A música é o coração da tragédia.
Como já indicado no começo deste tópico, em relação à finalidade da tragédia, o
pensamento do primeiro Nietzsche difere do de Schopenhauer. Se para este, como vimos,
trata-se, através do saber oferecido pela arte trágica, de negar a vontade e, com ela, a vida,
em Nietzsche dá-se o oposto. A tragédia, ao revelar o fundo essencial, dionisíaco, da
existência e ao promover o sacrifício do herói, expressão máxima da individuação
apolínea, produz alegria. Uma alegria trágica que consiste em aceitar a vida integralmente.
A dimensão atroz, incompreensível, cruel e dolorosa da existência é afirmada quando se
compreende que, sob todos esses males que são males da individuação jaz a vontade
perene e indestrutível. Uma “alegria que não é mascaramento da dor, nem resignação, mas
a expressão de uma resistência ao próprio sofrimento” (MACHADO, 1999, p.25). A
alegria, então, é alegria pelo aniquilamento do individual apolíneo em prol do universal
dionisíaco, alegria avalizada pela certeza de que a vida, em seu substrato, é infinitamente
mais poderosa do que sua representação individuada. Nietzsche explica:
nos exemplos individuais de tal aniquilamento é que fica claro para nós o
eterno fenômeno da arte dionisíaca, a qual leva à expressão a vontade em sua
onipotência, por assim dizer, por trás do principium individuationis, a vida
eterna para além de toda a aparência e apesar de todo aniquilamento. A alegria
metafísica com o trágico é uma transposição da sabedoria dionisíaca
instintivamente inconsciente para a linguagem das imagens: o herói, a mais
elevada aparição da vontade, é, para o nosso prazer, negado, porque é apenas
aparência, e a vida eterna da vontade não é tocada de modo nenhum por seu
aniquilamento. “Nós acreditamos na vida eterna”, assim exclama a tragédia;
enquanto a música é a idéia imediata dessa vida (NIETZSCHE, 1992a, p. 101-
102).
Acrescente-se que a arte trágica, assim compreendida, é capaz de oferecer ao
espectador um consolo metafísico:
Cumpre-nos reconhecer que tudo quanto nasce precisa estar pronto para um
doloroso ocaso; somos forçados a adentrar nosso olhar nos horrores da
existência individual e não devemos todavia estarrecer-nos: um consolo
metafísico nos arranca momentaneamente da engrenagem das figuras mutantes.
Nós mesmos somos realmente o ser primordial e sentimos o seu indomável
desejo e prazer de existir; a luta, o tormento, a aniquilação das aparências se
nos afiguram agora necessários, dada a pletora de incontáveis formas de
existência a comprimir-se e a empurrar-se para entrar na vida, dada a
exuberante fecundidade da vontade do mundo; nós somos trepassados pelo
espinho raivante desses tormentos onde quer que nos tenhamos tornado um só,
por assim dizer, com esse incomensurável arquiprazer na existência e onde
quer que pressintamos, em êxtase dionisíaco, a indestrutibilidade e a
perenidade desse prazer. Apesar do medo e da compaixão, somos os ditosos
viventes, não como indivíduos, porém como o uno vivente, com cujo gozo
procriador estamos fundidos (NIETZSCHE, 1992a, p. 102-103).
Compreende-se, deste modo, a tragédia, para o primeiro Nietzsche, como arte
metafísica. O consolo oferecido pela tragédia tem sentido em vista a um substrato
essencial dionisíaco localizado para além da representação apolínea. Nesse aspecto, é
possível entrever, em tal concepção do trágico, uma continuidade em relação à reflexão
alemã sobre o trágico que vínhamos descrevendo. Com efeito, malgrado as diferenças, de
Schiller ao primeiro Nietzsche, a tragédia só ganha sentido quando compreendida como via
de acesso a tal substrato metafísico. É certo que a natureza desse substrato varia de
pensador a pensador. Como é certo também que nenhum deles, de uma forma ou outra,
prescinde de uma instância além do sensível para conferir sentido ao trágico.
Refaçamos rapidamente o percurso: em Schiller, a potência moral e supra-sensível
do espírito é capaz de fazer frente à necessidade imposta pela natureza; em Schelling, a
tragédia franqueia, via intuição intelectual, o acesso ao Absoluto, compreendido como
unidade essencial e última; em Hegel, a tragédia é vista como encenação dialética da
negação de eticidades unilaterais rumo à síntese da Eticidade absoluta. Em Schopenhauer,
a reflexão sobre o trágico sofre uma alteração importante, em conformidade com a sua
metafísica da vontade o substrato existencial que a tragédia permite vislumbrar é
destituído da índole racional ou ética que tinha no pensamento anterior. Portanto, o plano
metafísico sofre uma grave desfiguração: torna-se um monstro de feições terríveis que,
uma vez entrevisto, deve conduzir, paradoxalmente, à sua própria negação, se é que isto
seja possível. Passa-se do idealismo, que concebe a essência como Razão ou Eticidade
supremas, para um pessimismo que enxerga apenas uma torrente desenfreada e
irracional. Essa herança schopenhaueriana do inteligível como monstruoso será
aproveitada por Nietzsche, que a transmuda na figura de Dioniso. Mas, para Nietzsche, o
contato com o metafísico não conduz à negação, ao contrário, conjugado às forças
apolíneas da figuração, conduz à alegria afirmativa.
É certo, contudo, que Nietzsche distancia-se da tradição quando reflete sobre as
condições que levaram à morte da tragédia. Nesse contexto, o nascimento da filosofia
socrática que coincide com a gênese da Razão ocidental esteriliza o solo de onde
brotara a arte trágica e inaugura uma cultura inteiramente distinta. Arma-se o embate entre
arte e ciência, ou seja, entre a consideração trágica e a consideração teórica do mundo. As
forças obscuras do dionisíaco, força-motriz da tragédia, são neutralizadas pela luz gélida da
racionalidade, que exige, acima de tudo, a supremacia da consciência em detrimento do
âmbito instintual. O postulado socrático de que pode ser belo aquilo que é consciente e
racional é o atestado de óbito da tragédia, tal como era concebida por Ésquilo e Sófocles.
Na medida em que a beleza torna-se serva da razão, a sabedoria dionisíaca cede espaço a
um saber que se compraz na clareza e na compreensibilidade. Para Nietzsche, Eurípedes é
o grande representante dessa tendência.
Nietzsche pinta a figura de Eurípedes como o artista que traz à cena o socratismo
estético, a estética racionalista, que introduz “na arte o pensamento e o conceito, a tal ponto
que a produção artística deriva da capacidade crítica. Momento em que a consciência, a
razão e a lógica, despontam como novos critérios de produção e avaliação da obra de arte”
(MACHADO, 1999, p.30). Na tragédia euripedeana, reinam a dialética, a pintura de
caracteres e o refinamento psicológico. Para Eurípedes, a tragédia antiga aparece como
incompreensível e desarmônica. Seu intelecto inclinado ao raciocínio impede-o de ser
transpassado pelo páthos dionisíaco, que prescinde de qualquer compreensão. Não sendo
capaz de perceber que a alma da tragédia reside precisamente em tal território do
inesclarecível, no qual ele definitivamente não se sente à vontade, Eurípedes, como bom
socrático, retira da tragédia aquilo que era sua força: “Excisar da tragédia aquele elemento
dionisíaco originário e onipotente e voltar a construí-la de novo puramente sobre uma arte,
uma moral e uma visão do mundo não-dionisíacas – tal é a tendência de Eurípedes”
(NIETZSCHE, 1992a, p. 78). J. Guinsburg, tradutor de O nascimento da tragédia, salienta,
no posfácio da obra, que
Eurípedes e Sócrates são, pois, na perspectiva de O nascimento da tragédia,
duas faces da mesma máscara, que é, no entanto, primordialmente, a do
Sofista. É ele que, “demônio” dialético de uma razão crítica, se apresenta no
aerópago como demiurgo de uma nova consciência estribada na ciência e no
poder do intelecto; é ele que, em nome de suas “luzes”, repudia como absurdo
íntimo do existente o seu caráter ilusório e aparente; é ele que (...) precipita o
gênio trágico da Grécia e a representação misteriosófica de Dioniso no limbo
do não-ser (NIETZSCHE, 1992a, p. 164).
Assim, segundo Nietzsche, declina a arte trágica. Ou, mais exatamente, não declina,
mas morre cabal e repentinamente, perecendo com ela também o saber artístico
proveniente do dionisíaco, agora restrito ao âmbito cultual. Nesse vazio aberto pela
tragédia, pode-se agora desenvolver-se a tendência socrática – “aquela inabalável fé de que
o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais profundos do ser e
que o pensar está em condições, não de conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-lo”
(NIETZSCHE, 1992a, p. 93). Em lugar do homem trágico, entra em cena o homem teórico,
aquele que crê na eficácia de sua razão, que tem “fé na escrutabilidade da natureza das
coisas, atribui ao saber e ao conhecimento a força de uma medicina universal e percebe no
erro o mal em si mesmo” (NIETZSCHE, 1992a, p. 94).
Nietzsche opõe ao pessimismo trágico, que todavia era capaz de conduzir à alegria
e à afirmação, o otimismo teórico. Este, desligado das forças vitais e confiante unicamente
no poder do intelecto, indica um declínio das forças criadoras do homem em prol de uma
hipertrofia do gico. Ao instinto sobrepõe-se a consciência; ao saber artístico sobrepõe-se
o saber teórico, resultado da investigação dialética; à dissonância e obscuridade trágicas
sobrepõem-se a clareza e a compreensibilidade conquistadas pela Razão. Se o saber trágico
era uma forma bem sucedida e afirmativa de lidar com a transitoriedade, o sofrimento e a
morte, enfim, com o Inaudito da vida e a ausência de um sentido inequívoco para o existir,
a razão socrática despreza esse saber e institui, ela mesma, um Sentido baseado na
associação entre virtude e conhecimento. Como assinala Machado, “desprezando o instinto
em nome da criação artística consciente que tem como critério a razão, o discernimento, a
clareza do saber, o socratismo condena a arte e o saber trágicos” (MACHADO, 1999, p.
31).
A concepção nietzscheana do nascimento e da morte da tragédia conduz a uma
crítica da modernidade. Para Nietzsche, a supremacia da razão socrática estende-se por
toda posteridade. A consideração trágica do mundo foi e permanece, para Nietzsche,
subjugada pela consciência racional. A modernidade, herdeira das Luzes e do progresso
técnico-científico, é essencialmente socrática. Mas a razão encontra seus limites ela se
depara inevitavelmente com o inclarificável. Para Nietzsche, a cultura socrática moderna
encontra-se em crise: “o homem moderno começa a pressentir os limites daquele prazer
socrático de conhecimento e, do vasto e deserto mar do saber, ele exige uma costa”
(NIETZSCHE, 1992a, p. 109). A cultura moderna segura “o cetro de sua infalibilidade”
com “mãos trêmulas, primeiro por medo de suas próprias conseqüências, segundo porque
ela mesma não está mais convencida, com a ingênua confiança anterior, da perene validade
de seus fundamentos”
30
(NIETZSCHE, 1992a, p. 111).
Dessa análise, importa-nos ressaltar alguns aspectos. O primeiro diz respeito à
valorização da arte em detrimento da ciência, posição que parece permanecer no
pensamento posterior do filósofo. Como indicamos, no primeiro período de sua
produção, Nietzsche, apesar das divergências em relação à tradição, ainda não se encontra
emancipado em relação ao dualismo metafísico de fundo platônico, que institui a
desvalorização ontológica da aparência. À desvalorização ontológica sobrepõe-se, contudo,
a valorização estética do aparente, do ilusório, tomado como instância imprescindível à
manutenção da vida. Nota-se, portanto, a marca de um pensamento próprio que se anuncia,
sobretudo na compreensão da finalidade da tragédia como afirmação do existir, na crítica
aguda dirigida à supremacia da razão socrática e na apologia da arte concebida como
alternativa à racionalidade e aos erros engendrados por sua supremacia ao longo da história
do pensamento. Na arte, essência e aparência, verdade e beleza encontram-se em
comunhão indissolúvel. Machado pondera que
se a arte tem mais valor do que a ciência, e é sempre utilizada por Nietzsche
como paradigma em sua crítica da verdade, é que enquanto a ciência cria uma
dicotomia de valores que situa a verdade como valor supremo e desclassifica
inteiramente a aparência, na arte a experiência da verdade se faz
indissoluvelmente ligada à beleza, que é uma ilusão, uma mentira, uma
aparência (MACHADO, 1999, p. 32).
Com Roberto Machado, acreditamos que o “estudo da relação entre metafísica de
artista e metafísica conceitual (...) vai muito mais longe do que uma simples questão de
estética, remetendo em última instância, como sempre em Nietzsche, ao problema da
verdade” (MACHADO, 1999, p. 31). O próprio Nietzsche, quando revisita as teses de seu
primeiro livro na “Tentativa de autocrítica”, escrita entre 1886 e 1887, época em que o
30
Todavia, Nietzsche é capaz de identificar, dado o esgotamento da razão socrática, em meio a tal “deserto
mar do saber”, os indícios de um redespertar do espírito trágico uma cultura trágica anuncia-se ao jovem
Nietzsche, especialmente em Kant, que impôs limites severos ao conhecimento; em Schopenhauer, de onde
Nietzsche retira grande parte do aparato teórico de seu primeiro livro e, sobretudo, no drama musical de
Richard Wagner.
pensador escreve prefácios para a segunda edição de seus livros, aponta que o problema
“com chifres” que transparece sob o fundo metafísico de O nascimento da tragédia é “o
problema da ciência mesma a ciência entendida pela primeira vez como problemática,
como questionável” (NIETZSCHE, 1992a, p. 15). Nesse sentido, interessa-nos apontar
para o fato singular de que todas as linhas da exegese nietzscheana da tragédia – do
nascimento à morte convergem, enfim, para o problema axial do conhecimento, que será
tema privilegiado da reflexão posterior do filósofo. Problema que é tratado sob uma
perspectiva crítica que se dirige, sobretudo, à confiança socrática na adequação perfeita e
imediata entre realidade e pensamento e no privilégio concedido à consciência como sede
de um saber último e esclarecedor. Para Nietzsche, essa confiança e esse privilégio não
passam de uma ilusão metafísica. A filosofia desclassifica a ilusão artística e o saber
trágico que dela provém em prol do pensamento racional que se supõe instrumento
necessário e suficiente para a decifração do existente.
O pensador parece apontar para o fato de que a vida, quando apartada de sua
dimensão dionisíaca, torna-se uma vida estéril. Uma existência não-artística que, em sua
crença na penetrabilidade do existente pelo conhecimento racional, não produz senão
sistemas gélidos que nada têm a ver com a vida mesma. Não será ingênua essa confiança
excessiva na razão? Não faltará aí uma certa dose salutar de desconfiança? Como amigo da
sabedoria, não deveria o filósofo perguntar-se pela origem e pela validade dessa entrega
incondicional? É o que fica expresso, de maneira formidável, na passagem, imaginada por
Nietzsche, em que o próprio Sócrates desconfia da infalibilidade de seu método:
será assim devia ele perguntar-se que o não compreensível para mim não é
também, desde logo, o incompreensível? Será que não existe um reino da
sabedoria, do qual a lógica está proscrita? Será que a arte não é até um
correlativo necessário e um complemento da ciência? (NIETZSCHE, 1992a, p.
91).
1.5.2 o trágico emancipado
Depois de haver esboçado, em linhas gerais, a primeira concepção nietzscheana do
trágico, resta-nos apontar para o pensamento a respeito do trágico elaborado pela filosofia
madura
31
de Nietzsche. Para montar um quadro sucinto da concepção tardia de Nietzsche a
31
Apontamos que a produção do filósofo costuma ser didaticamente dividida em três períodos. O primeiro,
sob a influência de Kant, Schopenhauer e Wagner, compreende, em especial, O nascimento da tragédia
respeito do trágico, privilegiamos, sobretudo, alguns aforismos de A gaia ciência e de
Além do bem e do mal. Caracteriza-se aí a passagem de uma reflexão destrutiva dos valores
constituintes da metafísica ocidental para, nos textos mais tardios, um pensamento
afirmativo, mais interessado na construção de novos valores do que na negação e
destruição dos valores caducos. A análise que aqui propomos vai em busca da
configuração definitiva daquilo que Nietzsche denomina conhecimento trágico, saber
trágico, postura trágica diante da vida. Nessa fase, observamos que a noção de trágico
encontra-se em plena independência das especificidades formais da tragédia, assim como
afasta-se radicalmente do pensamento sobre o trágico originado em Schelling, constituindo
assim uma espécie de contra-noção, de caráter não-conceitual, que busca contrapor-se ao
niilismo metafísico e preencher, com uma atitude afirmativa de adesão à vida, as lacunas
deixadas pela morte dos ideais superiores.
A nosso ver, o trágico em Nietzsche parece resultado de um tríplice movimento: a)
uma genealogia corrosiva das ficções engendradas pela metafísica; b) a instauração de uma
outra perspectiva a respeito da existência que se configura, sobretudo, na noção de vida
como vontade de poder
32
; c) a possibilidade de construção, a partir dessa nova perspectiva,
de uma postura afirmativa, ou seja, trágica, em relação à existência.
Assim sendo, o que nos parece mais conveniente como estratégia que permita
organizar, no espaço limitado desse estudo, a noção de trágico em Nietzsche é acercar-se,
primeiro, do procedimento genealógico, enfocando, em seguida, a construção de uma nova
perspectiva a respeito da existência. Por fim, discutir a possibilidade da construção de um
saber trágico, isto é: saber alegre, fruto de uma vontade afirmativa, que renuncia à
necessidade de ficções depreciadoras da vida.
Como ponto de partida, indaguemos: o que significa, no contexto da filosofia
nietzscheana, a noção de genealogia? A nosso ver, significa insurgir-se contra a idéia de
uma origem indiferente ou neutra dos valores, contra a crença em valores eternos, não-
condicionados, derivados de uma instância supra-sensível ou de um fundamento último.
Para Nietzsche, todo e qualquer valor é resultado de determinadas condições que o
(1872) e as Considerações extemporâneas (1873-6); o segundo período compreende Humano, demasiado
humano (1878), Aurora (1881) e A gaia ciência (1882-6); o terceiro e último período compreende Assim
falou Zaratustra (1882-5), Além do bem e do mal (1886), Genealogia da moral (1887) e toda a produção do
ano de 1888: Ecce homo, O caso Wagner, Nietzsche contra Wagner, Crepúsculo dos ídolos e O anticristo.
Entre 1886 e 1887, Nietzsche escreve prefácios para suas já publicadas obras O nascimento da tragédia,
Humano demasiado humano, Aurora e A gaia ciência. Esta última obra ganha, além do prefácio, um quinto
livro intitulado “Nós, os impávidos”. Existe ainda um vasto repertório de escritos não publicados em vida,
denominados Fragmentos póstumos, cujo espólio abrange todos os períodos de produção do filósofo.
32
Em alemão, Wille zur Macht. Outros tradutores e comentadores preferem “vontade de potência”.
originaram e que permitiram, a partir daí, a sua vigência. Deleuze aponta que genealogia
“quer dizer ao mesmo tempo valor da origem e origem dos valores” (DELEUZE, 1976, p
2). Trata-se de investigar, num mesmo movimento, tanto aquilo que origem a
determinada forma de valoração quanto a distância ou a qualidade diferencial - nobreza ou
decadência - presentes na origem do valor:
Nietzsche se dirige ao mesmo tempo contra a elevada idéia de fundamento, que
deixa os valores indiferentes à sua própria origem, e contra a idéia de uma
simples derivação causal ou de começo insípido que coloca uma origem
indiferente aos valores. Nietzsche forma o conceito novo de genealogia. O
filósofo é o genealogista (DELEUZE, 1976, p.2).
É importante ressaltar que, depois da ruptura com Schopenhauer, o pensamento de
Nietzsche torna-se cada vez mais avesso à possibilidade de se pensar a existência a partir
da arcaica estrutura bipartida essência-aparência. Com efeito, em seus escritos da
maturidade, Nietzsche volta-se violentamente contra a noção dualista platônica e contra a
longa tradição por ela inaugurada no pensamento ocidental.
1.5.3. a vida como jogo
Para compreender melhor essa problemática, convém abordar sucintamente uma
das noções-chave do pensamento maduro de Nietzsche, elaborada de forma sistemática a
partir de meados da década de 80 a vontade de poder. Não se trata de uma forma de
vontade no sentido que classicamente tem esse termo na tradição filosófica, pois Nietzsche
rejeita a compreensão da vontade enquanto faculdade de um sujeito, nem tampouco de
desejo de dominação ou aspiração ao poder. O sentido da vontade de poder diz respeito a
um processo de domínio e crescimento. A realidade, em Nietzsche, configura-se como
jogo de forças. O caráter da força é expansão, crescimento, domínio. Nesse movimento, a
força depara-se necessariamente com a resistência de outras forças, opostas a ela. No
aforismo 259 de Além do bem e do mal, a noção é explicitada:
a vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho
e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e,
no mínimo e mais comedido, exploração. (...) A “exploração” não é própria de
uma sociedade corrompida, ou imperfeita e primitiva: faz parte da essência do
que vive, como função orgânica básica, é uma conseqüência da própria vontade
de poder, que é precisamente vontade de vida (NIETZSCHE, 1992b, p.171).
Nietzsche compreende a vida como guerra, expansão e resistência, como embate
contínuo de forças, perene agon que jamais encontra equilíbrio, termo definitivo. A matriz
desse pensamento parece residir em Heráclito: o ser é o devir. Ou seja, o ser não é, tudo
está em devir. Antípoda de Parmênides, para quem o Ser, o pensamento heraclítico
reconhece o caráter mutante e transitório da existência tudo que é o não-ser, isto é,
mudança, passagem, metamorfose, trânsito. Afirmar o ser do devir é substituir a ontologia
disjuntiva é ou não é – pela aditiva é e não é: as coisas são, não sendo. O caráter do ser
é o não-ser. Diz Heráclito: “Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não
somos”; e também: “O combate é de todas as coisas pai” (HERÁCLITO, 1999, p. 92-93,
grifos nossos). Heráclito pensa o combate como princípio. Nietzsche bebe nas fontes de
Heráclito. Deleuze explica:
Heráclito é o pensador trágico. O problema da justiça atravessa sua obra.
Heráclito é aquele para quem a vida é radicalmente inocente e justa.
Compreende a existência a partir de um instinto de jogo, faz da existência um
fenômeno estético, não um fenômeno moral ou religioso. Por isso Nietzsche o
opõe ponto por ponto a Anaximandro, como o próprio Nietzsche se opõe a
Schopenhauer. Heráclito negou a dualidade dos mundos, negou o próprio ser.
Mais ainda: fez do devir uma afirmação (DELEUZE, 1976, p.19).
A noção de vontade de poder configura-se, a nosso ver, sobre essa base heraclítica.
A vida é um processo interpretativo contínuo. Tudo o que vive esforça-se para fazer
prevalecer a sua força, a sua interpretação. A duração é um mero estado transitório que
expressa a vitória de um grupo de forças sobre outro. Nietzsche entende o mundo e a vida
como uma combinação de forças, jogo imprevisível e complexo sem nenhuma finalidade
intrínseca. A vida, assim compreendida, não pode mais ser vítima de recriminação, como
pensaram Anaximandro e Schopenhauer. Não erro a ser expiado porque não
intencionalidade no devir, ou seja, o devir não é culpado ele é essencialmente inocente,
como uma criança que joga, segundo uma imagem de Heráclito, e nesse jogo constrói e
destrói mundos como se fossem castelos de areia: “Tempo é criança brincando, jogando;
de criança o reinado” (HERÁCLITO, 1999, p. 93). Em fragmento stumo, Nietzsche
escreve:
E sabeis o que o “mundoé para mim? Devo mostrá-lo a vós no meu espelho?
Este mundo: um gigante de força, sem início, sem fim, uma dimensão fixa e
brônzea de forças, que não aumenta nem diminui, que não se consome, mas
apenas se transforma (...) jogo de forças e de ondas de força ao mesmo tempo
único e múltiplo”, que se acumulam aqui e, ao mesmo tempo, atenuam-se em
outro lugar, um mar de forças que se lançam e fluem para si mesmas, mudando
eternamente (...) transbordando das mais simples para penetrar nas mais
complexas, do mais tranqüilo, do mais rígido, do mais frio para o mais ardente,
o mais selvagem, e depois novamente regressando da plenitude para o simples,
do jogo das contradições para o prazer da harmonia, afirmando a si mesmo
ainda nessa igualdade de seu caminhos e anos (...) Esse meu mundo dionisíaco
de criar eternamente a si mesmo, de destruir eternamente a si mesmo (...)
Quereis um nome para esse mundo? Uma solução para todos os seus enigmas?
(...) Esse mundo é a vontade de poder e nada além disso! E também vós
mesmos sois essa vontade de poder e nada além disso! (NIETZSCHE, 2005,
p. 212-3).
A noção de vontade de poder, se aceita, invalida automaticamente o dualismo
metafísico. As várias figuras da instância substancial ser, idéia, coisa em si, vontade -
perdem terreno para a compreensão da estrutura interpretativa do ser. A própria noção de
ser como fundamento estável é invalidada quando se considera o existente como
movimento e disputa contínuos. Assim como a noção de sentido também perde seu caráter
unívoco. Não um sentido, infinitos sentidos que derivam de infinitas perspectivas
33
.
Não há fixidez, há movimento. Segundo Deleuze,
a história de uma coisa é geralmente a sucessão das forças que dela se
apoderam e a co-existência das forças que lutam para delas se apoderar. Um
mesmo objeto, um mesmo fenômeno muda de sentido de acordo com a força
que se apropria dele. (...) O sentido é então uma noção complexa: sempre
uma pluralidade de sentidos uma constelação, um complexo de sucessões,
mas também de coexistências. (...) Não existe sequer um acontecimento, um
fenômeno, uma palavra, nem um pensamento cujo sentido não seja múltiplo.
Alguma coisa é ora isto, ora aquilo, ora algo de mais complicado segundo as
forças (...) que dela se apoderam (DELEUZE, 1976, p.3).
Assim, se Nietzsche admite fundamento, ele só pode consistir na completa ausência
de fundamento. Se Nietzsche admite verdade, são as verdades plurais e transitórias,
resultantes do jogo de forças, perene conflito entre forças dominantes e dominadas. A vida,
segundo essa perspectiva, é concebida como arte, como atividade estética, como sedução,
dissimulação, ofuscamento. Mas ainda uma distinção a fazer. Como esclarece Viviane
Mosé, “se a resultante das forças (...) tem a predominância de forças dominadas, trata-se de
33
A respeito da noção nietzscheana de “perspectivismo” cf., especialmente, o aforismo 374 de A gaia ciência
(NIETZSCHE, 2001, p. 278): “O mundo tornou-se novamente ‘infinito’ para nós: na medida em que não
podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre infinitas interpretações” (NIETZSCHE, 2001, p. 278).
uma vontade negativa de potência”. Pelo contrário, se o predomínio é o das “forças
dominantes, trata-se de uma vontade afirmativa de potência” (MOSÉ, 2005, p.94). Ou seja,
existe a vontade que se exerce através da negação da potência, e a vontade cuja ação é a
afirmação da potência.
O estranho fenômeno de uma vontade que nega a si mesma, uma vontade que se
volta contra seu próprio princípio, que é expansão, criação, movimento: esta é, para
Nietzsche, a especificidade da vontade de verdade uma força que se insurge contra o
caráter essencialmente contraditório e agonístico, logo doloroso, do existir e, como
antídoto, fabula a existência de mundo outros, dotados das qualidades que a vida,
entendida como vontade de poder, não apresenta verdade, duração, permanência,
equilíbrio, estabilidade. Nietzsche pergunta: “O que em nós aspira realmente ‘à verdade’?
(NIETZSCHE, 1992b, p. 9). Coloca-se o problema do valor dessa vontade. A busca
desenfreada pela verdade é sintoma de uma vida que declina. Vontade negativa que se
expressa na exigência científica de certeza, que crê na razão científica como corretora e
aperfeiçoadora da existência ou no dogamtismo filosófico, confiante na vigência de valores
eternos, incondicionais. O contrário disso é a vontade afirmativa, própria da existência
trágica, que compreende o saber como invenção que impele à vida e percebe que a
experiência da alegria é inseparável da experiência da dor.
1.5.4 arte e conhecimento trágico
Identifica-se, nos textos de Nietzsche, uma espécie de apologia da aparência
baseada na compreensão do caráter ilusório e artístico de todo conhecimento e mesmo de
toda a vida. É o que se encontra expresso no aforismo 54 de A gaia ciência:
O que é agora, para mim, aparência? Verdadeiramente, não é o oposto de
alguma essência que posso eu enunciar de qualquer essência, que não os
predicados de sua aparência? Verdadeiramente, não é uma máscara mortuária
que se pudesse aplicar a um desconhecido X e depois retirar! Aparência é, para
mim, aquilo mesmo que atua e vive, que na zombaria de si mesmo chega ao
ponto de me fazer sentir que tudo aqui é aparência, fogo-fátuo, dança de
espíritos e nada mais que, entre todos esses sonhadores, também eu, o
“homem do conhecimento” danço a minha dança (NIETZSCHE, 2001, p. 92).
Como se sabe, os escritos de Nietzsche divergem da tradição filosófica por
constituírem um todo anti-sistemático que valoriza, em especial, a forma, geralmente
sucinta, do aforismo. Como se observa, em menor escala, em Schopenhauer, o texto
nietzscheano parece operar um deslocamento significativo em relação à própria forma do
discurso filosófico. É rara em Nietzsche a análise fria e impessoal, nos moldes científicos.
Ao contrário, o que se encontra é verve, energia, vigor, enfim, caracteres que denotam um
comprometimento visceral do filósofo com o seu pensamento. Ao mesmo tempo,
identifica-se um mascaramento, um pudor, que reluta em desnudar ou esquadrinhar de uma
vez seu objeto e confia no poder do sugerido, do entrevisto, do vislumbrado. São
recorrentes em Nietzsche o esmero formal, a agilidade, o pendor para o irônico, assim
como para o cômico, o uso das mais diversas figuras de linguagem, a variedade de tons e a
multiplicidade de vozes, o colorido sugestivo das imagens, em suma, todo um aparato
poético-estilístico que convive em harmonia com o rigor e a penetração das análises. O
pensamento configura-se como experimento, conforme sustenta Oswaldo Giacoia Jr.:
Em estreita conexão com o aspecto formal e o estilo aforístico, vemos
Nietzsche apresentar, de modo exemplarmente claro, seu modo de fazer da
filosofia um experimento do pensamento, para cujo bom resultado inúmeros
recursos são indispensáveis, tais como o rigor metodológico, a penetração
analítica, mas também a ironia, a paródia, a caricatura enfim, o humor e a
leveza. (GIACOIA, 2002, p. 9)
O aforismo 345 de A gaia ciência expressa bem o pensamento segundo o qual
aquele que pensa deve estar intensamente envolvido naquilo que pensa:
todos os grandes problemas exigem o grande amor, e deste são capazes apenas
os espíritos fortes, redondos, seguros, que se apóiam firmemente em si
mesmos. Faz considerável diferença que um pensador se coloque pessoalmente
ante seus problemas, de modo a neles achar seu destino, sua miséria e também
sua felicidade maior, ou então “impessoalmente”: isto é, somente com os
tentáculos da fria e curiosa reflexão. Nesse último caso nada se conseguirá,
podemos estar certos: pois os grandes problemas, ainda quando se deixam
tocar, não se deixam agarrar por fracotes com sangue de barata, este é o seu
gosto desde tempos imemoriais (NIETZSCHE, 2001, p. 236).
Qual a importância desta questão no estudo aqui proposto? Trata-se exatamente de
apontar, no pensamento de Nietzsche, para um aspecto fundamental: aquele que diz
respeito ao íntimo parentesco entre conhecimento e arte. O trecho acima aduzido, embora
pareça expressar apenas uma idiossincrasia do filósofo, remete, na verdade, a algo que
caracteriza toda a sua crítica ao modelo do pensamento gico-racional. A partir do
nascimento e disseminação da filosofia socrático-platônica, a arte foi expulsa do campo do
conhecimento. Leve-se em consideração as duras invectivas de Platão contra a poesia no
contexto de sua cidade ideal
34
. Com efeito, a emergência do pensamento racional como
instrumento filosófico privilegiado pressupõe uma ruptura entre sujeito e objeto do
conhecimento. Institui-se o paradigma da objetividade científica, de modo que o
conhecimento artístico, no qual o sujeito da criação encontra-se intimamente implicado na
construção e na avaliação de seu objeto, é desclassificado. Movimento que se radicaliza no
platonismo na medida em que toda aparência ou seja, toda arte, invenção, criação, ilusão
é ontologicamente rejeitada em favor do Bem em si, isto é, a instância ontológica plena,
o Ser essencial subjacente ao sensível. Como esclarece Roberto Machado, trata-se de
dois tipos de ilusão: a ilusão socrática, ilusão metafísica, que considera a
verdade superior à aparência; e a ilusão artística, consciente do valor da ilusão,
que sabe tudo é ilusão, “figuração”, “transfiguração”, criação. (...) poder-se-ia
dizer que enquanto a “mentira” da ciência seria querer encontrar a verdade do
mundo em outra coisa que não a aparência, a “verdade” da arte é acreditar na
imagem como imagem, na aparência como aparência. (...) a superioridade da
arte sobre a ciência é não opor verdade a ilusão, é afirmar integralmente a vida
(MACHADO, 1999, p. 40).
Em sentido oposto, a filosofia nietzscheana restitui à arte o espaço que lhe foi
tomado. Para Nietzsche, a ilusão é aspecto constitutivo do próprio conhecimento. Tome-se
como exemplo o citado aforismo 54 de A gaia ciência que caracteriza, nesse sentido, o
homem do conhecimento, o filósofo ou o cientista, como “mestre de cerimônia da
existência”, ilusionista apto a “prolongar a dança terrestre” (NIETZSCHE, 2001, p. 92). O
ilusório, para Nietzsche, é absolutamente indispensável para a vida – a vida mesma, em seu
perene criar e destruir, nascer e perecer, a vida como vontade de poder, é
fundamentalmente artística. Nesse sentido, negar a ilusão significa negar a própria vida.
No aforismo 4 de Além do bem e do mal, Nietzsche explicita essa idéia:
a nossa inclinação básica é afirmar que os juízos mais falsos (...) nos são os
mais indispensáveis, que, sem permitir a vigência das ficções lógicas, sem
medir a realidade com o mundo puramente inventado do absoluto, do igual a si
mesmo, o homem não poderia viver que renunciar aos juízos falsos equivale
a renunciar à vida, negar a vida. Reconhecer a inverdade como condição de
vida (...) uma filosofia que se atreve a fazê-lo se coloca, apenas por isso, além
do bem e do mal (NIETZSCHE, 1992b, p. 12).
34
A república, especialmente Livro X. (PLATÃO, 1989).
Daí depreende-se ainda o fundo expressamente moral do pensamento lógico, isto é,
desmascara-se a suposta neutralidade da verdade. As noções instituídas como verdadeiras,
não o são por possuírem em si verdade intrínseca, mas por serem úteis e indispensáveis à
vida. O conhecimento é valorizado na medida em que possui força necessária para
promover a vida. Isso significa que conhecer, mais do que reproduzir, é inventar. Um
conhecimento compreendido não como mimesis, mas como poiesis, em seu sentido grego
35
de criação, fabricação. Conhecimento não como imitação, mas como construção do real
que depende do talento humano de criar e ficcionar. Em suma, um conhecer vinculado ao
que constitui no homem sua faculdade artística, inventiva, artífice.
Por outro lado, a hipertrofia do lógico e a busca desenfreada por uma Verdade
objetiva implicada a vontade de verdade corresponde, ao ver de Nietzsche, a uma
equivalente atrofia dos instintos criadores fundamentais e, pressupondo uma vontade
negativa de poder, indica um declínio de vida. Assim, as noções metafísicas que instauram,
para além da mudança e da provisoriedade essenciais à vida, um território imaginário de
estabilidade, duração e permanência, são compreendidas por Nietzsche como sintomas de
uma vida enfraquecida que procura mascarar o incognoscível com a roupagem de um
sentido indubitável, seja ele laico ou religioso. O aforismo 347 de A gaia ciência é
elucidativo a este respeito porque relaciona diretamente a necessidade de fé a um estado de
carência, de esgotamento da vontade, ao mesmo tempo em que desnuda o íntimo
parentesco entre ciência e metafísica:
Alguns ainda precisam da metafísica; mas também a impetuosa exigência de
certeza que hoje se espalha de modo científico-positivista por grande número
de pessoas, a exigência de querer ter algo firme (...) : também isso é ainda a
exigência de apoio, de suporte, em suma, o instinto de fraqueza (...) A é
sempre mais desejada, mais urgentemente necessitada, quando falta a vontade:
pois vontade é, enquanto afeto de comando, o decisivo emblema da soberania e
da força. Ou seja, quanto menos sabe alguém comandar, tanto mais anseia por
alguém que comande (NIETZSCHE, 2001, p. 241).
A linguagem, antes mesmo da ciência e das religiões, constitui a primeira forma
que materializa essa necessidade de um substrato estável da qual Nietzsche depreende o
instinto de fraqueza. Justamente porque se recusam a reconhecer tragicamente o caráter
cambiante do devir, a perecibilidade e a inconstância próprias de tudo o que vive, tais
35
Como informa o Dicionário Houaiss, a palavra “poesia” deriva do substantivo grego poíésis, eós que
remete a “criação; fabricação, confecção” (HOUAISS, 2007).
noções conduzem a uma depreciação da vida, isto é, ao niilismo. O homem metafísico,
aquele que crê na verdade como instância supra-sensível, o faz necessariamente através de
uma recusa do devir. Sua afirmação é possível através da negação, sua ação só se
concretiza pela reação. Obcecado pela identidade, perde de vista a diferença. Crente na
estabilidade, ignora (ou finge ignorar) que tudo o que é vivo incessantemente muda.
Confiante na eternidade, desperdiça a dádiva do instante. Em última instância, arraigado à
crença na fixidez da verdade, recusa a arte e mascara ou recalca o caráter afirmativo da
ilusão e da invenção, atividades imprescindíveis à vida. A atividade estética é sobrepujada
pela crença metafísica na verdade, ela mesma produto, não assumido como tal, dessa
atividade. Como propõe Mosé, a “característica da verdade é, antes de tudo, esconder (...)
que a arte, a invenção, é sua matriz, seu fundamento (...) A reatividade da verdade (...)
reside em que se trata de uma interpretação que mascara sua proveniência” (MOSÉ, 2005,
p.104).
Compreende-se a amplitude da crítica nietzscheana. Para o pensador, a razão
ocidental, tomada de modo panorâmico, é basicamente niilista. Desde Sócrates, Nietzsche
diagnostica a substituição do poder criador do homem pela vontade de verdade. Machado
esclarece essa idéia:
Mais forte que o conhecimento, a arte foi, no entanto, desclassificada por ele
em seu desejo de verdade. O que significa justamente o início de um período
de decadência que, sob diferentes formas, se tem perpetuado na história. A
alternativa proposta por Nietzsche é inverter essa correlação de forças, negando
a negação da vida através da arte trágica considerada como afirmação
(MACHADO, 1999, p. 40).
A nosso ver, o pensamento crítico e genealógico de Nietzsche incide sobre três
momentos históricos cruciais. No primeiro momento, a filosofia socrático-platônica institui
a razão, em detrimento da arte trágica, como instrumento privilegiado de decifração e
correção da existência e instaura o dualismo metafísico. No segundo momento, a
emergência do cristianismo, concebido como vulgarização do platonismo, prega a negação
ascética do corpo e do instinto e acentua o caráter sacrílego e sofredor da existência como
via de acesso ao reino metafísico da bem-aventurança. O terceiro momento, que coincide
com o nascimento da modernidade filosófica, consiste no ocaso da crença religiosa no
Deus supra-sensível e na emergência, com Descartes, do sujeito como lugar da razão,
sujeito como subjetividade autônoma e substancial. Para Nietzsche, nos três momentos
transparecem, mais ou menos delineadas, determinadas figuras do niilismo. Entende-se
que, para o pensador, niilismo significa perigo para vida; niilismo é, sobretudo, expressão
de uma vida debilitada. A tarefa do filósofo, como genealogista, é desconstruir o
emaranhado de crenças sob a qual se estruturaram moral e cultura niilistas – cujo fulcro é a
idéia de verdade para, a partir daí, propor a criação de novos valores que ajam não como
consolos reativos, mas como estimulantes da vida. Que papel desempenha o trágico?
Deleuze considera que
o trágico não está (...) numa nostalgia da unidade perdida. O trágico está
somente na multiplicidade, na diversidade da afirmação enquanto tal. O que
define o trágico é a alegria do múltiplo, a alegria plural. Essa alegria não é o
resultado de uma sublimação, de uma purgação, de uma compensação, de uma
resignação, de uma reconciliação. Trágico designa a forma estética da alegria,
não uma fórmula médica, nem uma solução moral da dor, do medo ou da
piedade. O que é trágico é a alegria (DELEUZE, 1976, p. 14).
Em um fragmento póstumo de 1883, Nietzsche diz: ‘O herói é alegre’ isso
escapou até agora aos poetas trágicos” (NIETZSCHE, 2005, p.152). Configura-se portanto
o trágico, emancipado do dualismo metafísico, como noção combativa que busca substituir
as ficções depreciativas da vida por uma atitude afirmativa. Em sua reflexão madura,
Nietzsche nega expressamente a tese expressa em O nascimento da tragédia que concebe o
espetáculo trágico como fonte de consolo metafísico. Na “Tentativa de autocrítica”, o
filósofo propõe o riso como antídoto contra a depreciação da vida:
Não! Vós deveríeis, aprender primeiro a arte do consolo deste lado de vós
deveríeis aprender a rir, meus jovens amigos (...); talvez, em conseqüência
disso, como ridentes, mandeis um dia ao diabo toda a “consoladora metafísica”
– e a metafísica em primeiro lugar! (NIETZSCHE, 1992a, p. 23).
Compreende-se, por conseguinte, o trágico justamente como aquilo que permite
substituir o instinto de fraqueza, isto é, a necessidade de consolo, por uma superabundância
de forças capaz de afirmar o caráter mutante e ilusório do existente. Pela renúncia às
ficções de estabilidade e permanência, o trágico apresenta-se como reconhecimento da
matriz artística da existência, seu perene fluir e refluir. Trágica é a abdicação a um sentido
último e definitivo e a compreensão de que todo sentido é resultado de um olhar
perspectivo, ou seja, trágica é a neutralização da crença em uma instância extra-perspectiva
da qual derive uma Verdade cabal. É trágico aquele que ama, incondicionalmente, a vida.
Aquele que aprende “a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas” (NIETZSCHE,
2001, p. 187). Trágico é o que não faz exigências desmesuradas à vida, que não avalia a
vida tomando como critério a fábula inacessível de uma vida ideal. É também trágico, por
fim, aquilo que permite converter o medo em alegria o medo suscitado por uma
existência errante e transitória em alegria que toma partido dessa mesma errância e
transitoriedade.
2. Capítulo Segundo - A negação
A investigação da presença do trágico em Grande sertão: veredas, tendo em vista a
especificidade que o conceito adquire na obra madura de Nietzsche, é uma tarefa a ser
realizada com cautela, que apresenta alguns riscos que o intérprete deve assumir sem
tentar ocultá-los. Em primeiro lugar, deve-se deixar claro o óbvio: o escopo da pesquisa é o
objeto literário e não a obra filosófica. Na aproximação entre literatura e filosofia, a
segunda age como instrumento que permite identificar problemas e amplificar a
ressonância de certos temas trabalhados literariamente por Rosa. Sendo assim, é preciso
levar em conta os possíveis deslizes da pesquisa em relação a temas próprios da seara
filosófica, que a problemática do trágico em Nietzsche envolve muitas variantes, que
remetem a diferentes fases do pensamento do filósofo, podendo ser abordada por múltiplas
perspectivas. Na tentativa de delimitar, na amplidão do campo do trágico, um viés
específico, optamos por operar com noção de conhecimento trágico. O direcionamento da
pesquisa, portanto, está pautado numa reflexão epistemológica, uma indagação a respeito
da natureza e dos limites do conhecimento. Na prática, isso desemboca na exploração da
natureza das diversas estratégias das quais o narrador lança mão na tentativa de
compreensão do vivido. Em outras palavras, buscamos entrever as matrizes que conferem
espessura poética à especulação de Riobaldo. No prólogo de A gaia ciência, Nietzsche
opera uma distinção entre duas espécies de filosofar:
Num homem são as deficiências que filosofam, no outro as riquezas e forças. O
primeiro necessita da sua filosofia, seja como apoio, tranqüilização,
medicamento, redenção, elevação, alheamento de si; no outro ela é apenas um
formoso luxo, no melhor dos casos a volúpia de uma triunfante gratidão
(NIETZSCHE, 2001, p. 10-11).
A partir dessa distinção básica, é possível questionar a natureza da especulação
riobaldiana e identificar nela os diferentes matizes entrelaçados que apontam ora para um
pensar resultante de uma força, ora para um pensar resultante da fraqueza. De fato, a
reflexão de Riobaldo mescla as duas atitudes de um lado, a necessidade metafísica de
consolo e tranqüilização; de outro, um transbordamento de força. Em todos os casos, o que
está em jogo é a vida: sua afirmação ou sua negação; sua aprovação ou sua depreciação.
Para fins analíticos, este segundo capítulo trata especialmente do jogo, sempre reiterado,
entre os estratagemas niilistas e a persistência de uma dúvida que o ex-jagunço insiste em
recolocar. Essa relação entre crer e duvidar, confiar e desconfiar, entregar-se à ou à
errância do conhecimento é uma das tensões que perpassa toda a narrativa e abre espaço
para uma multiplicidade de pensares alternativos, de concepções filosóficas conflitantes
ou ambíguas, de olhares sobre a existência que continuamente contradizem um ao outro ou
se anulam mutuamente. Como observa Finazzi-Agrò, a escritura do romance abre-se à
multiplicidade, na medida em que não decide
seguir uma direção, mas espalha-se em todas as direções, percorrendo todas as
estradas que cortam o seu caminho, não deixando, finalmente, cair as hipóteses
que de contínuo aparecem ao longo do percurso, mas cultivando, pelo
contrário, todas as virtualidades discursivas, seguindo todas as veredas que se
abrem diante da narração ou dentro dela (FINAZZI-AGRÒ, 2001, p. 36).
O terceiro capítulo, por sua vez, propõe-se a investigar a presença ou a ausência
daquilo que propriamente se pode chamar de conhecimento trágico, isto é, um
conhecimento que deriva de uma postura afirmativa de aprovação à vida. Uma espécie de
vida que abdica da busca niilista por fundamento ou sentido últimos e que se compraz na
própria precariedade do conhecimento e vulnerabilidade do existente, afirmando-as ambas
no mesmo movimento.
Trocando em miúdos, interessa-nos investigar de que modo o narrador do romance
lida com o limite opaco da existência além do qual todo conhecimento revela-se
ambivalente e reversível. Tomando como referencial o pensamento nietzscheano, é
possível indagar: no contexto do romance, em que medida o fundo abismal do existente é
transmutado em saber alegre através de uma afirmação criadora ou, ao contrário, rejeitado
por meio de uma negação hostil à vida?
Em segundo lugar, é preciso delimitar, dentro do vasto material que o romance
oferece, um campo privilegiado passível de interpretação. Deixamos claro que o método de
análise textual aqui utilizado incide menos sobre os acontecimentos efetivos da diegese e
mais nas pausas reflexivas constantes ao longo do narrado. Tais pausas, que ora surgem
como pequenas frases ou palavras soltas, significantes nimos, nonadas significativos
muito discretamente entremeados ao curso da narração, ora ganham em extensão e
perfazem várias páginas, constituem núcleos onde se condensam vários dos motivos
recorrentes no romance. Como percebeu Willi Bolle, um dos traços que caracteriza o estilo
e a composição do romance é um modo de escrever “disjuntivo”. Diz Bolle:
Existem, espalhados pelo grande sintagma do romance, alguns conjuntos de
frases discretas que contêm informações estratégicas. Semeadas de forma bem
espaçada, essas frases são distantes umas das outras e camufladas por longos
trechos com assuntos apresentados enfaticamente, tais como batalhas,
envolvimentos afetivos, dúvidas existenciais, casos exemplares, especulações
metafísicas... Aparentemente de importância menor, as frases em questão são
observações feitas en passant, formando, no entanto, uma rede de recados
secretos (BOLLE, 1998, p. 269).
Neste estudo, o corpus textual submetido à análise é justamente essa rede disjuntiva
de recados camuflados. Tais recados, a nosso ver, são capazes de revelar algo não sobre a
estória
36
narrada, mas sobre o próprio pensamento do narrador a respeito da estória, sendo
36
Sobre o uso da variante “estória”, Marli Fantini observa: “O neologismo estória, não figurando então nos
dicionários, aparece no título “Uma estória de amor”, novela editada no conjunto do Corpo de Baile, em
1956. O uso desse vocábulo na novela diz respeito ao acervo das narrativas provenientes da tradição oral e
preservadas no sertão mineiro. Mas seu emprego se desdobra para representar uma nova forma de ler ( e
refazer) os fundamentos da ‘história’ ” (FANTINI, 2003, p. 219). De fato, Rosa estabelece um dualismo entre
“história” e “estória”, explicitamente referido no início do primeiro prefácio de Tutaméia: A estória não
quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História.” (ROSA, 2001, p. 29). A nosso ver, tal
dualismo remete à relação, verificada em Aristóteles, entre os planos da poesia e da história, ou seja, da
criação e do relato pretensamente fiel do passado. Rosa, evidentemente, filia-se ao plano da criação,
justamente esse pensamento o objeto privilegiado da pesquisa. Nas pausas reflexivas, a
narração, momentaneamente livre da tarefa de ordenar a seqüência dos fatos, concentra-se
em constatações e indagações que apontam para a necessidade de interpretar o vivido. A
nosso ver, é nesse terreno indagativo que o texto abre em meio aos fios narrativos que as
atitudes de Riobaldo perante as questões que ele próprio suscita surgem mais delineadas,
permitindo ao intérprete sondá-las de maneira efetiva. José Carlos Garbuglio, ao atentar
para a estrutura bipolar do romance, distingue dois planos narrativos:
A linha objetiva trata dos fatos em sentido diacrônico, acompanhando a
sucessão dos acontecimentos que aparecem de maneira fracionária (...) A
subjetiva os e analisa em sentido sincrônico, buscando penetrar no fundo
das causas e conseqüências dos acontecimentos. Por isso, se pode falar numa
linha horizontal ou horizontalizável, onde estão contidos os sucessos e numa
linha vertical onde se processa a especulação desses fatos. A primeira é
expositiva, a segunda de natureza crítica. Não seria preciso advertir que essas
linhas não aparecem em estado de pureza, mas se interpenetram e intercruzam
dentro do romance, formando um corpo inteiriço, um sistema (GARBUGLIO,
1972, p. 22).
Dada a possibilidade de distinguir, para efeitos de análise, entre uma linha
expositiva e uma linha crítica, tomamos esta última como recorte da pesquisa. Tendo em
mente que o romance continuamente mescla os dois planos, já que o hermeneuta do vivido
é também o seu protagonista, interessa-nos sobretudo atentar, não para o vivido em si, mas
para o modo como o velho Riobaldo o reprocessa e re-significa. Se, como percebe
Garbuglio, (GARBUGLIO, 1972, p. 23) a narração dos sucessos passados apresenta o
narrador como homo actuandi e a especulação do presente traz à cena o homo cogitandi, a
investigação focaliza preferencialmente o segundo, não mais como herói atuante imerso
nos labirintos de andança e jagunçagem, mas como andarilho do conhecimento, herói
especulativo para quem a guerra não consiste mais na lida sangrenta com rifles e
winchesters, mas se faz agora nos campos de guerrilha do pensamento e da palavra.
2.1. O romance da falta
abdicando expressamente de um fazer literário intencionalmente engajado ou factual. O dicionário Houaiss
registra o verbete “estória” como regionalismo: “narrativa de cunho popular e tradicional” (HOUAISS,
2007).
A primeira pergunta que se impõe ao investigador é: como acercar-se de um
romance tão múltiplo como Grande sertão: veredas? Como abordar uma obra que se
caracteriza pelo seu ser labiríntico, pelo seu evidente emaranhar-se em torno de si mesma?
Talvez, uma boa estratégia seja acercar-se daquilo que move a narração – sua força-motriz.
É lícito indagar: de onde se origina a palavra de Riobaldo? Ou então: qual o objetivo de tão
prolongada narração? O que incita Riobaldo a narrar? A palavra de Riobaldo nasce do
vazio, ex nihilo “Nonada” (p. 9) e sua intenção oculta é atingir o Ser ou a Verdade, no
sentido ontológico de instância ou entidade metafísica capaz de conferir sentido àquilo que
permanece velado, inacessível ao conhecimento. Kathrin Rosenfield indica:
A aspiração do narrador não é a rememoração enquanto anamnese de suas
próprias determinações geográficas (o sertanejo) e sociais (o jagunço). O que
está em jogo é a memória busca de uma verdade universalmente válida que
transcenda os fatos particulares da vivência singular (ROSENFIELD, 2006, p.
201).
Em outras palavras, o relato origina-se de uma insatisfação essencial, ou seja, da
busca dessa “verdade universalmente válida”. Riobaldo indaga: “onde é que está a
verdadeira lâmpada de Deus, a lisa e real verdade?” (p. 260). Perseguição desenfreada pela
“lâmpada de Deus”, metáfora luminosa do fundamento do ser que afasta o engano do devir
temporal e permite contemplar “a lisa e real verdade”. Nesse sentido, o narrar de Riobaldo
parece mimetizar os descaminhos da própria história do pensamento ocidental, desde suas
origens gregas, enquanto busca, sempre frustrada, de um fundamento ontológico
subjacente à multiplicidade do real. O desejo enraizado profundamente na narração
consiste na busca desse fundamento capaz de conferir ordem e compreensibilidade ao
“relato sem pés nem cabeça” (p. 187) que é a vida. No aforismo 6 de Além do bem e do
mal, Nietzsche procura desvelar o nexo oculto que permite curto-circuitar pensamento
filosófico e confissão pessoal:
Gradualmente foi se revelando para mim o que toda grande filosofia foi até o
momento: a confissão pessoal de seu autor, uma espécie de memórias
involuntárias e inadvertidas; e também se tornou claro que as intenções morais
(ou imorais) de toda filosofia constituíram sempre o germe a partir do qual
cresceu a planta inteira. De fato, para explicar como surgiram as mais remotas
afirmações metafísicas de um filósofo é bom (e sábio) se perguntar antes de
tudo: a que moral isto (ele) quer chegar? (NIETZSCHE, 1992b, p.13).
É interessante perceber aqui que o que constitui, no campo da filosofia,
coincidência velada (e desvelada por Nietzsche) entre o texto confessional e o texto
filosófico, encontra-se, no objeto literário, plenamente à mostra. De fato, em Grande
sertão: veredas, a rememoração da experiência vivida e a pergunta pelo sentido
compartilham o mesmo espaço. O pensamento do narrador nasce da própria vida e das
indagações que a vida lhe impõe. No caso de Riobaldo, seu pensamento coincide com a
exploração de suas memórias voluntárias e o involuntárias, como acontece no texto
filosófico. A “filosofia” de Riobaldo
37
é, imediatamente, sua “confissão pessoal”. E ainda:
caracterizar, num primeiro momento, Grande sertão: veredas como romance da falta,
significa, como ponto de partida, identificar o “germe” a partir do qual “a planta cresce”, o
marco-zero a partir do qual a narração toma corpo. Tal germe, a nosso ver, é justamente a
experiência da falta de sentido, da necessidade imperiosa de sentido e da busca desenfreada
por ele. Segundo nossa perspectiva, toda a narrativa é movida por um desejo essencial de
clareza e compreensibilidade que, em léxico nietzscheano, configura-se como vontade de
verdade. Veja-se:
Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era um só coisa – a
inteira cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que
era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma
pessoa viver – e essa pauta cada um tem – mas a gente mesmo, no comum, não
sabe encontrar; como é que sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber?
Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Senão, a vida de todos ficava sendo o
confuso dessa doideira que é (p. 366, grifos nossos).
Incapaz de assimilar a errância e a falta de um sentido evidente para sua existência,
o narrador parte em busca de um saber esclarecedor e último “a coisa inteira”.
Inconformado com o “confuso” e a “doideira” do real que, paradoxalmente, reconhece
como efetivos “o confuso dessa doideira que éinveste na procura da “norma”, da
“receita”, do caminho certo” que lhe conduza rumo a um sentido pacificador. O sertão,
entretanto, como indica o próprio título do romance, é composto pelo emaranhado de
veredas e o desejo de uma vereda certa, pré-estabelecida, ecoa no vazio, ou seja, não
encontra algo que lhe corresponda no plano da experiência. Daí advêm a dor, a angústia e a
insatisfação que agem como mola propulsora do narrado. A angústia nasce justamente
37
Com “filosofia de Riobaldo” não se pretende postular que a narração se encontre armada sobre um sistema
filosófico, da forma como é tradicionalmente concebido, mas apenas indicar a emergência, articulada
literariamente, de um pensamento sobre a vida e sobre o mundo nas reflexões do narrador.
onde termina a possibilidade de conferir sentido à experiência. Perceba-se ainda que o
signo da falta parece inscrito no próprio nome do narrador, segundo etimologia proposta
por Augusto de Campos – “como não enxergar nesse nome a etimologia de invenção Rio +
baldo (frustrado?)” (COUTINHO, 1991, p. 338). De fato, o dicionário Aurélio informa que
o adjetivo “baldo” remete a “falto, falho, carecido, carente”, assim como o particípio
“baldado” remete a “frustrado, malogrado, inútil, vão” (FERREIRA, 1999, 259). É essa
carência, essa falha, essa falta estrutural inserida, como estigma, no nome do ex-jagunço,
que procuramos investigar aqui. Para Cláudia Braga de Andrade, em ensaio de cunho
psicanalítico publicado na revista Veredas de Rosa, a falta impressa no nome de Riobaldo
encobre a própria estrutura do sujeito. É justamente pela falta que o desejo
comparece no campo do sujeito. Essa é a idéia que Freud desenvolve em seu
livro A interpretação dos sonhos. O desejo é definido por uma falta. Uma falta
estrutural impossível de ser satisfeita, que faz com que o desejo seja
indestrutível. Não pode ser nomeado, não se trata de desejo de algo, é pura
falta. A tentativa de recuperar o que está perdido para sempre sua perda
original o coloca no movimento desejante. Assim Riobaldo percorre seu rio,
carecido de algo que possa fazê-lo nomear seu desejo (ANDRADE, 2001, p.
124).
A fonte do verbo de Riobaldo é uma ausência que, ao mesmo tempo em que se
encontra expressa na primeira palavra do romance e inscrita no nome do narrador,
dissemina-se ao longo do relato na forma de reflexões que apontam para a impossibilidade
do sentido último. Riobaldo, sem forças para afirmar o devir em suas múltiplas
configurações, esforça-se por encontrar a fixidez direcional de um “norteado” que,
entretanto, nunca lhe é dado. Inconformado com a falta de limites entre as coisas que
compõem o “mundo misturado” (p. 169), busca estabelecer um “regulamento” que garanta
a pureza dos opostos e impeça a mistura: “Parar o bom longe do ruim, o são longe do
doente, o vivo longe do morto, o frio longe do quente, o rico longe do pobre. O senhor não
descuide desse regulamento” (p. 294, grifo nosso). A palavra “regulamento” aparece, nessa
passagem, como a sugerir a necessidade de uma lei, uma determinação universal, apta a
converter o princípio da mistura em princípio de imiscibilidade. E ainda:
Que isso foi o que sempre me invocou , o senhor sabe: eu careço de que o bom
seja bom e o rúim ruím, que de um lado esteja o preto e de outro o branco, que
o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero todos
os pastos demarcados...(...) Ao que, este mundo é muito misturado... (p. 169).
Como se percebe, a necessidade de demarcação, de limite, é frustrada pela própria
natureza misturada do mundo. A pureza de cada um dos opostos apresentados – bom-ruím;
preto-branco; feio-bonito; alegria-tristeza – é, ao longo do narrado, posta à prova. A
estrutura estanque da dicotomia revela-se uma estrutura fluida, composta de gradações
entre os extremos ou, mais radicalmente, a própria dicotomia perde a validade, na medida
em que cada elemento apresenta-se imediatamente contaminado com outros que lhe são
estranhos. Assim, admite-se que a pureza do conceito deriva apenas do hábito lingüístico.
Este, por sua vez, tem origem na necessidade humana de organizar o devir, de restringir a
multiplicidade e a mistura a compostos estáveis, configurados lingüisticamente.
Ao atentar para a estrutura bipartida da diegese, que opera com dois planos
distintos – o da narração e do narrado – verifica-se que a busca de certeza efetiva-se apenas
no tempo da narração. Isto é, quem procura a “coisa inteira” é o Riobaldo velho,
barranqueiro:
De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos.
Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp´ro
não fantasêia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos
dessossegos, estou de range rede. E me inventei nesse gosto, de especular idéia
(p. 11).
Do trecho aduzido depreende-se que Riobaldo, quando jovem homo actuandi,
contentava-se com a ação, “fazia e mexia”, “moía no asp´ro”, “não pensava”, não
“fantaseiava”. O tempo do narrado é o tempo das guerrilhas e reviravoltas de uma vida
nômade como jagunço. Vida movimentada, turbilhão movente que não permite a pausa
temporal necessária para a reflexão: “Ao que, naquele tempo, eu não sabia pensar com
poder. Aprendendo eu estava?” (p. 262). O tempo da narração, ao contrário, é o tempo da
“folga” e do “range rede” sedentário que convida à especulação e ao pensamento próprios
do homo cogitandi: “Do jeito é que retorço meus dias: repensando. Assentado nessa boa
cadeira grandalhona de espreguiçar” (p. 234). Walnice Nogueira Galvão, em seu estudo
pioneiro As formas do falso, observa que a tarefa de Riobaldo é “transformar seu passado
em texto”. E ainda: “Enquanto o passado era presente se fazendo, no caos do cotidiano,
Riobaldo não teve tempo para refletir o suficiente – embora fosse um indagador – e
compreender” (GALVÃO, 1972, p.82). Esses dois tempos – o do narrado e o da narração –
reúnem de forma exemplar os dois protótipos do narrador analisados por Benjamin:
A figura do narrador se torna plenamente tangível se temos presentes esses
dois grupos. “Quem viaja tem muito o que contar”, diz o povo, e com isso
imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos
com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair de seu país e
que conhece suas histórias e tradições. Se quisermos concretizar esses dois
grupos através de seus representantes arcaicos, podemos dizer que um é
exemplificado pelo camponês sedentário, e outro pelo marinheiro comerciante.
Na realidade, esses dois estilos de vida produziram de certo modo suas
respectivas famílias de narradores (BENJAMIN, 1993, p. 198-199).
Em Riobaldo estão presentes ambos os protótipos do narrador. O camponês
sedentário, apresentado no tempo da narração extrai a matéria narrada da errância do
jagunço pelo sertão, configurada no tempo do narrado. Entretanto, é impossível pensar os
dois tempos como se fossem estanques e independentes. Tenha-se em vista que toda a
narração do Riobaldo jagunço é feita sob a perspectiva do Riobaldo barranqueiro. Assim, a
ação romanesca, já que narrada a posteriori, apresenta-se fundida inextricavelmente à
posição do fazendeiro idoso e assentado. D que todos os fatos expostos no romance
passam inevitavelmente pelo filtro subjetivo da memória, que reordena o vivido de acordo
com o valor de cada lembrança: “A lembrança da vida da gente se guarda em trechos
diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não
misturam. (...) Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de
recente data(p. 77-78). Para Willi Bolle, a mesclagem dos planos narrativos caracteriza
uma “construção em abismo”, sendo esta “o princípio de composição do romance”.
Pensando o romance em termos de uma “invenção labiríntica”, Bolle indica que o “aspecto
teseico e dedálico estão imbricados em Grande sertão: veredas. Trata-se de um labirinto
narrado (a história das erranças de Riobaldo) entrelaçado com a labirinto da narração.
Um labirinto dentro de um labirinto” (BOLLE, 2004, p. 82). Davi Arrigucci Jr., retomando
a tipologia benjaminiana do narrador, observa:
Riobaldo se apresenta como o homem que, tendo acumulado longa experiência
na ação e no convívio com outros homens a vida de aventuras do jagunço ,
agora assentado na condição social e travado pela doença, se põe a narrar (...)
Nele, a mobilidade do marinheiro e o sedentarismo do agricultor protótipos
do narrador, para Benjamin se reúnem de modo exemplar. Tendo acumulado
um “saber de experiências feito”, pelas muitas andanças através do sertão,
agora, imobilizado e doente, o expõe a um interlocutor letrado da cidade, a
fim de compreender o que viveu (ARRIGUCCI, 1994, p. 18).
O pendor filosófico de Riobaldo, seu gosto de “especular idéia” nasce nesse tempo
do sedentarismo, no momento em que o narrador, antevendo os “prazos”, ou seja, a
perspectiva da finitude, necessita conferir sentido ao que viveu. Riobaldo é um pensador
que busca um sentido redentor, capaz de justificar a vida. Genealogicamente, pode-se dizer
que o pensamento riobaldiano nasce de um estado de cansaço e de sofrimento: “Ah, a
gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso” (p. 11). Ou então, considerando a
hipótese de percorrer o sertão como guia do interlocutor: “Não fosse meu despoder, por
azías e reumatismo, aí em ia” (p. 23). No aforismo 370 de A gaia ciência, Nietzsche diz:
Toda arte, toda filosofia pode ser vista como remédio e socorro, a serviço da
vida que cresce e que luta: elas pressupõem sempre sofrimento e sofredores.
Mas existem dois tipos de sofredores, os que sofrem de abundância de vida,
que querem uma arte dionisíaca e também uma visão e compreensão trágica da
vida e depois os que sofrem de empobrecimento de vida, que buscam
silêncio, quietude, mar liso, redenção de si mediante a arte e o conhecimento
(...) O mais rico em plenitude de vida, o deus e o homem dionisíaco, pode
permitir-se não a visão do terrível e discutível, mas mesmo o ato terrível e
todo luxo de destruição, decomposição, negação; nele o mau, sem sentido e
feio parece como que permitido, em virtude de um excedente de forças
geradoras, fertilizadoras, capaz de transformar todo deserto em exuberante
pomar. Inversamente, o que mais sofre, o mais pobre de vida necessita ao
máximo de brandura, paz e bondade, tanto no pensar como no agir e, se
possível, de um deus que é propriamente um deus para doentes, um “salvador”;
e igualmente da lógica, da compreensibilidade conceitual da existência pois a
lógica tranqüiliza, dá confiança – , em suma, de uma certa estreiteza cálida que
afasta o medo, um encerrar-se em horizontes otimistas (NIETZSCHE, 2001, p.
272-3).
À primeira vista, com efeito, é possível caracterizar o narrador do romance como o
sofredor fraco que necessita de apoio e suporte para assimilar a vida, da forma como ela se
apresenta (ou se apresentou). Numa primeira leitura, avulta a impossibilidade de
reconhecer, no pensamento do ex-jagunço, os indícios de um saber trágico. Riobaldo, visto
nesse momento como antítese do homem dionisíaco, desprovido da “abundância e
plenitude de vida” que caracteriza o saber trágico, parece carecer de filtros, sejam eles
lógicos ou religiosos, que apazigúem a sua consciência atormentada. Como veremos
adiante, o narrador, para aplacar o sofrimento, lança mão de ambos os recursos descritos
por Nietzsche: tanto o saber ilustrado do interlocutor, que aparece como possibilidade de
esclarecimento racional do vivido, quanto o suporte religioso oferecido por Compadre
Quelemém. Segundo nossa interpretação, ambos podem ser lidos como maneiras de tentar
edulcorar, sublimar – mais precisamente, burlar o “terrível” e o “discutível”, assim como
os aspectos destrutivos e inauditos da existência. Como aponta Nietzsche, o saber trágico
consiste, sobretudo, na capacidade transformadora que converte o negativo em positivo, a
rejeição em afirmação, o sofrimento do “deserto” na alegria fértil do exuberante pomar”.
A postura de Riobaldo, em princípio, aponta para a insuficiência de tal capacidade, de
forma que, para aceitar sua existência, ele necessita, antes de tudo, negá-la em nome de sua
obsessiva vontade de verdade. Passemos então à análise dessas duas estratégias de
negação.
2.2 O romance do esclarecimento
Coexistem, em Grande sertão: veredas, confrontos em diversos níveis.
Temporalidades, espacialidades e formas narrativas distintas convivem misturadas no
romance, sendo justamente essa mistura, como esclarece, em ensaio magistral, Davi
Arrigucci Jr., que constitui uma das chaves do narrado (ARRIGUCCI, 1994). Tempo do
atraso e da miséria e tempo da modernização; espaço rural do mito e espaço urbano da
razão científica; narrativa épica e romance de formação. Diz Arrigucci:
A perspectiva do sertão vem do fundo de outro espaço e de outro tempo, com
tudo o que tem de real e de imaginário, de consciente e de inconsciente, e se
confronta com a perspectiva da cidade, sob a forma dramática desse debate (...)
Arrancado do meio do sertão, a fala do Narrador se dirige para a cidade; o livro
por assim dizer traz para o presente e para o mundo urbano as peculiaridades
de uma região a princípio atrasada, imersa em outros tempos: esse é o
movimento do mito à pergunta pelo sentido; do espaço arcaico, em múltiplas
gradações, rumo ao espaço urbano e moderno do universo burguês. O esquema
narrativo adotado (...) propicia justamente esse movimento do enredo ou do
mythos rumo ao diálogo esclarecedor, porque neste se encena a pergunta pelo
sentido. (...) Para se compreender, portanto, como essa interrogação própria do
romance surge para Riobaldo no miolo mesmo do sertão, é preciso refazer sua
travessia individual em busca de esclarecimento (ARRIGUCCI, 1994, p. 19-
20).
Para Arrigucci, Grande sertão: veredas encena a passagem da narrativa épica
tradicional, de matriz oral, representada no romance pelos muitos causos entremeados à
diegese central, ao romance de formação cujo protagonista é o “herói problemático”. Em
outros termos, de acordo com Benjamin, passa-se do narrador “que sabe dar conselhos”
(BENJAMIN, 1993, p. 200) ao narrador que, desprovido dessa sabedoria, busca
compreender o que viveu. “A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode
mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe
conselhos nem sabe -los” (BENJAMIN, 1993, p. 201). O interessante é perceber de que
forma esses dois tipos de narrativa – épica e romanesca – coexistem imbricadas no
romance. Arrigucci aponta: “O sertão é um espaço tão vasto, tão vago e indeterminado
quanto o mar dos narradores épicos, mas também é o lugar de uma travessia individual, ou
seja, da travessia de um romance de formação” (ARRIGUCCI, 1994, p. 24). De dentro do
grande sertão, ou seja, do mar épico dos causos exemplares dotados de uma sabedoria que
basta si mesma, emerge uma vereda, um caminho individual, uma trajetória particular cujo
sentido não se revela. Nessa trajetória, aquela sabedoria tradicional, antes firme, mostra-se
insuficiente, falha, incapaz de fornecer respostas satisfatórias às dúvidas do narrador.
Arrigucci observa ainda que tal experiência,
que equivale a um momento de individuação do ser, suscita a pergunta que
corresponde à individuação do herói de romance, pois a dimensão da
experiência individual que o diferencia e o afasta da comunidade dos homens e
das narrativas da tradição oral (ARRIGUCCI, 1994, p. 26).
O romance que encena dramaticamente o movimento do mito ao esclarecimento
(e vice-versa) metaforiza a passagem de uma forma de pensamento supostamente
“primitiva” e “arcaica”, possuidora de uma sabedoria fundada na tradição, para o domínio
racional efetivado no campo de um monólogo dialógico ou, mais precisamente, segundo
Roberto Schwarz, um diálogo “pela metade, ou diálogo visto por uma face. De qualquer
modo, trata-se de um monólogo inserto em situação dialógica” (COUTINHO, 1991, p.
379). Contudo, a especificidade do romance consiste em não aderir a um território ou outro
mito ou razão mas radicar justamente no ponto neutro de transição locus flutuante
onde razão e mito aparecem entrelaçados. Um movimento, pois, que não se completa e
acena para a persistência de um hibridismo fundamental. Finazzi-Agrò sustenta que
a estória contada e seu sentido se descobrem no interior de um incessante
“estar em relação”, de um conectar-se sem fim de instâncias em aparência
incongruentes ou longínquas (...) O próprio modo de narrar de Guimarães Rosa
acena, nessa perspectiva, para uma lógica que não tem lugar e que procura, por
isso, o seu lugar entre verdades heterogêneas, mediando sempre entre sentidos
e entre lugares alternativos, entre “lógicas” diferentes (FINAZZI-AGRÒ, 2001,
p. 114).
Finazzi-Agrò parece captar aí o modo de ser do texto rosiano: o impulso de
mediação, o instalar-se nesse lugar terceiro e instável entre “verdades heterogêneas”.
Contudo, se a especificidade do texto como um todo aponta para a divergência de sentidos
múltiplos, o “cerzidor” desse mesmo texto lança-se à procura angustiada de um sentido
fundante, convergente, apto a desmisturar a multiplicidade, abarcando-a com seu suposto
poder unificador e logicizante.
Como já apontamos na Introdução, o lançar mão do saber instruído do interlocutor
parece ser o caminho estratégico rumo a um suposto esclarecimento. Riobaldo quer
respostas definitivas: “o senhor me diga: preto é preto? branco é branco?(p. 188). Nesse
sentido, o saber do homem instruído que ouve a narração atua, supostamente, como auxílio
na tarefa de organizar o vivido: “o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o
senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda” (p. 79). Riobaldo confia (ou
quer ou finge confiar) na suposta “sensatez” e “fidelidade” do interlocutor, identificado
nesse trecho à imagem do papel espaço onde a transcrição “letrada” do emaranhado oral
conferiria a este alguma espécie (duvidosa) de ordenamento. O narrador impõe ao
interlocutor um labor cognitivo expresso em ordem seqüencial ouvir, pensar, repensar e
redizer. Atente-se, nas duas últimas ações, para a presença do sufixo “re”. Trabalho de
tradução, ou melhor, de retradução
38
, de transcrição de um código marcado pela dúvida a
outro cujo poder, para Riobaldo, consiste em estabelecer a certeza. Em outro trecho,
Riobaldo salienta a função iterativa, reiterativa do interlocutor: “O senhor pense outra vez,
repense o bem pensado” (p. 86). Assim, a experiência vivida é subordinada a um longo
processamento o viver é submetido a uma extensa maquinaria de pensamento e
linguagem. Tal processamento, no plano do narrador, compreende o lapso que vai do viver,
passa pelo pensar e desemboca na confusa matéria narrada e, no plano do interlocutor,
parte do ouvir, passa pelo repensar para chegar então a um (virtual) redizer. Redizer tal
que, para Riobaldo, tem a importância funcional de uma palavra esclarecedora, “conselho”
supostamente hábil para reverter em kosmos pleno de significado o kaos narrativo
desprovido de sentido aparente. Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche deslinda
poeticamente a especificidade de uma vontade subjacente à vontade de verdade:
38
O verbo “retraduzir”, no dicionário Aurélio, em sua segunda acepção, significa traduzir para uma língua
um trecho ou obra em língua original já traduzida para uma ngua intermediária (FERREIRA, 1999, p.
1760). Configura-se, portanto, o trabalho do interlocutor como retradução”, “tradução secundária”, que o
discurso de Riobaldo é, uma vez, tradução de sua experiência. O interlocutor deve atuar uma segunda vez,
traduzindo novamente aquilo que já foi uma vez traduzido pelo narrador em forma de discurso.
“Vontade de conhecer a verdade” chamais vós, os mais sábios dentre os sábios,
àquilo que vos impele e inflama? Vontade de que todo existente possa ser
pensado: assim chamo eu à vossa vontade! Quereis, primeiro, tornar todo o
existente possível de ser pensado, pois, com justa desconfiança, duvidais de
que já o seja. Mas ele deve submeter-se e dobrar-se a vós! Assim quer a vossa
vontade. Liso, deve tornar-se, e súdito do espírito, como seu espelho e reflexo.
(...) Quereis ainda criar o mundo diante do qual possais ajoelhar-vos: tal é a
vossa derradeira esperança e embriaguez (NIETZSCHE, 2007, p. 144).
O narrar riobaldiano traz, como marca inconfundível, a necessidade de submeter o
vivido a uma ordem racional supostamente unânime. Trazer para o campo da razão àquilo
que à razão se esquiva, esclarecer racionalmente aquilo que se furta ao esclarecimento,
tornar “pensável” aquilo que se apresenta arisco ao pensamento. Compreende-se melhor o
ímpeto riobaldiano ao esclarecimento quando se tem em vista a resultante do processo
genealógico: subjacente à suposta neutralidade da busca pela “verdade”, uma vontade
afirmativa de poder que busca dominar e submeter o vivido ao pensamento, tornar o
existente “súdito do espírito”, reverter o lado “crespo” e insubmisso da experiência em
“lisura” e compreensibilidade especulares. Todavia, o próprio Riobaldo parece ter a muito
sutil consciência de que a tentativa de conter a vida no molde pré-determinado dessa
espécie de saber vai contra o próprio modo (vertente) de ser da vida. No trecho acima
aduzido, a fala de Zaratustra alude à desconfiança dos próprios “sábios dentre os sábios”
em relação à vontade de tornar “todo o existente possível de ser pensado” “pois com
justa desconfiança, duvidais de que o seja”. De fato, o que aparece tanto em Zaratustra
quanto na reflexão de Riobaldo, é a persistência oculta de uma dúvida que habita o cerne
mesmo da vontade de verdade. O ímpeto a um esclarecimento último parece trazer, como
estigma, o germe de um ceticismo que aponta para a impossibilidade da tarefa. Assim, a
empresa de organização do vivido esbarra na natureza fugidia do existente – “a ação
escorregada e aflita, mas sem sustância narrável” (p. 106) que não se deixa conter pelas
redes linguísticas do sentido.
***
O interlocutor do romance é a todo instante adulado com expressões que valorizam
o seu saber letrado em detrimento do saber rústico do narrador, que ele mesmo caracteriza
como irrisório: “Sou um sertanejo, nessas altas idéias navego mal. Sou muito pobre
coitado. Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma
doutoração” (p. 14). Lancemos por um instante o olhar para a relação ambivalente que o
romance estabelece entre narrador e interlocutor. Refletindo sobre as dificuldades de
narrar, Riobaldo observa:
O senhor tolere minhas más devassas no contar. É ignorância. Eu não converso
com ninguém de fora, quase. Não sei contar direito. (...) Agora, neste dia
nosso, com o senhor mesmo me escutando com devoção assim é que aos
poucos vou indo aprendendo a contar corrigido (p. 152).
Como observa Walnice Nogueira Galvão, os
repetidos elogios à capacitação do interlocutor têm muito da manha rústica, que
exagera para pôr no seu devido lugar, para reduzir a proporções mais razoáveis.
Por isso, seus louvores se entremeiam de reivindicações quanto à posse e à
intransmissibilidade da experiência: a experiência é dele, não do interlocutor
(GALVÃO, 1972, p. 83).
Assim, uma leitura atenta é capaz de identificar a ambivalência presente na relação
entre narrador e interlocutor, aspecto esse magistralmente analisado por Lígia Chiappini no
ensaio Grande sertão: veredas a metanarrativa como necessidade diferenciada”,
publicado em 1998 na revista Scripta (CHIAPPINI, 1998). Ao mesmo tempo em que
Riobaldo confere crédito irrestrito ao saber do interlocutor “para depois lhe pedir
conselho” (p. 166), reclama para si a posse exclusiva de um saber que o interlocutor não
detém. “O senhor mal conhece essa gente sertaneja” (p. 199); “Mas, como vou contar ao
senhor? (...) O senhor não sabe, o senhor não vê” (p. 448); “Olhe: jagunço se rege por um
modo encoberto, muito custoso de eu poder explicar ao senhor” (p. 129); “Que explicação
dou ao senhor?” (p. 137); “o senhor já presenciou essas circunstâncias?” (p. 272).
A sagacidade de Riobaldo consiste, então, nesse duplo movimento de elogio ao
saber do outro e reivindicação de um saber próprio. Willi Bolle atenta para o caráter
eminentemente irônico da narração, “conforme o sentido etimológico de eironeia (‘fingida
ignorância’).” O pesquisador ainda considera como elemento irônico o fato de “o sertanejo
ser o dono absoluto da fala, enquanto o doutor da cidade fica reduzido ao papel de mero
ouvinte”. Bolle acrescenta:
a situação narrativa em Grande Sertão: veredas configura-se como o exato
oposto do ensaio historiográfico de Euclides, enquanto o letrado como
representante da elite modernizadora monopoliza o discurso. A inversão dos
papéis costumeiros é um estratagema de Guimarães Rosa para chamar a
atenção sobre o desequilíbrio de falas entre as forças sociais. O seu narrador
sertanejo, note-se bem, não é nada “simples”, mas uma pessoa que conhece
muito bem a gramática e a retórica, uma figura altamente elaborada, um
jagunço letrado. Sob a rude aparência manifesta-se uma inteligência aguda
(BOLLE, 2004, p. 40-41)
Não se deve deixar de lado o fato de que tal “estratagema” havia, décadas antes,
dado bons frutos em matéria de literatura regionalista. Reportamo-nos aqui à obra do
pelotense João Simões Lopes Neto, Contos Gauchescos (1911), cuja estrutura narrativa é
idêntica àquela usada por Rosa no romance de 1956. No livro do gaúcho, o velho peão de
estância Blau Nunes dirige seu denso discurso a um interlocutor que, similarmente ao
romance, encontra-se narrativamente emudecido e que é oriundo de um universo urbano,
culturalmente diverso daquele do qual participa o narrador do relato. Tais interlocutores,
num e noutro caso, mostram-se muito interessados na matéria narrada, anotando-a em
cadernetas e formulando perguntas ao narrador. A imagem desses interlocutores revela a
recorrência de um olhar erudito debruçado sobre a realidade rústica das regiões agrárias
39
.
Trata-se do contato entre universos e saberes distintos mythos e logos e do
delicado equilíbrio que tal contato pressupõe. Um plano bipartido em que o imaginário
mítico, povoado por forças sobrenaturais, mescla-se à razão “esclarecida” representada
pela figura do interlocutor. A consciência de Riobaldo parece constantemente oscilar entre
os dois planos. Observe-se, nesse trecho, o sertão, como espaço onde reina a fantasia
mítica, examinado pela perspectiva “esclarecida” de Riobaldo:
O senhor deve de ficar prevenido: esse povo diverte por demais com a
baboseira, dum traque de jumento formam tufão de ventania. Por gosto de
rebuliço. Querem-porque-querem inventar maravilhas glorionhas, depois eles
mesmos acabam temendo e acreditando. Parece que todo o mundo carece
disso. Eu acho, que (p. 59).
39
Essa dinâmica, comum a Rosa e a Simões Lopes Neto, a nosso ver, pode ser interpretada sob um ponto de
vista transculturador - segundo as formulações de Àngel Rama contidas no ensaio seminal "Os processos de
Transculturação na Narrativa Latino-Americana" (RAMA, 2001) - que encena o contato de guardiões da
memória coletiva, ameaçada pelo impacto modernizador, com instâncias culturais de índole racional-
cientificista provindas de ambientes urbanos. Coincidência ou não, tal procedimento revela, para além de
afinidades meramente formais entre os escritores, um mesmo ímpeto transculturador. Segundo Luís Augusto
Fischer, “talvez não seja possível falar de influência direta de Simões Lopes sobre Guimarães Rosa, mas não
há dúvida de que a relação existe, e mais, que é verossímil de que o mineiro tenha tido contato com a obra do
gaúcho (...) Seja como for, é certo que, na ordem cronológica, foi Simões Lopes Neto quem desatou o nó que
até então prendia a matéria regional numa camisa-de-força que a impedia de alçar-se ao nível adequado de
enunciação literária” (LOPES NETO, 2000, p.16).
Curiosamente, nesse “todo o mundo” inclui-se o próprio narrador, obcecado pela
existência do demônio. Se, num primeiro momento, Riobaldo identifica racionalmente o
demônio aos “crespos do homem”, afirmando sentenciosamente que “solto, por si, cidadão,
é que não tem diabo nenhum. Nenhum! É o que digo” (p. 11) sua própria narrativa
encarrega-se de contradizê-lo, que a figura mítica e individualizada do Mal sempre
ressurge na fala do ex-jagunço. Apesar de caracterizar sarcasticamente a fantasia mítica
como “baboseira”, o próprio Riobaldo compartilha, em certa medida, desse imaginário.
Eduardo Coutinho, num artigo dedicado à análise da coexistência do logos e do mythos no
romance, sugere que a necessidade que Riobaldo sente de negar a existência do diabo atua
como
componente lógico-racional de sua cosmovisão que o impele a narrar sua
história ao interlocutor um cidadão urbano culto na esperança de que este
confirme a não-existência da entidade. Todavia, a própria necessidade de
insistir sobre esse fato e de procurar auxílio de um outro para sustentar seu
ponto de vista já indica a hesitação do personagem e sua oscilação entre os dois
mundos (COUTINHO, 2002, p. 115).
Riobaldo, ele mesmo bipartido entre o jagunço pactário e o letrado, busca extrair do
“senhor” o veredicto racional capaz de invalidar o mito demoníaco, sendo esta mesma
busca, um sinal claro da persistência, em seu imaginário, do plano mítico. Com efeito, uma
das primeiras questões que o ex-jagunço dirige ao interlocutor refere-se à crença ou à
descrença deste na figura do diabo. Pergunta para a qual, curiosamente, Riobaldo tem
uma resposta:
Solto, por si, cidadão, é que o tem diabo nenhum. Nenhum! - é o que digo.
O senhor aprova? Me declare tudo, franco é alta mercê que me faz: e pedir
posso, encarecido. Este caso por estúrdio que me vejam é de minha certa
importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado e
instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião
compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela (p. 11).
A resposta negativa do interlocutor serve como confirmação daquilo que o narrador
esperava, ou melhor, desejava ouvir “gosto de toda boa confirmação” (p. 22). Ou
então: “E as idéias instruídas do senhor me fornecem paz. Principalmente a confirmação,
que me deu, de que o Tal não existe” (p. 33). Em outras palavras: a opinião de Riobaldo
sobre o demoníaco, embora firmada de antemão, necessita do aval e do suporte de uma
razão outra, estrangeira, para poder consolidar-se em definitivo. Em outra passagem, muito
semelhante à supracitada, Riobaldo inquire o interlocutor sobre a possibilidade efetiva do
pacto:
Se tem alma, e tem, ela é de Deus estabelecida, nem que a pessoa queira ou não
queira. Não é vendível. O senhor não acha? Me declare, franco, peço. Ah, lhe
agradeço. Se que o senhor sabe muito, em idéia firme, além de ter carta de
doutor. Lhe agradeço, por tanto. Sua companhia me dá altos prazeres (p. 22).
A nova resposta negativa do interlocutor entusiasma Riobaldo, que coincide com
seu desejo, de forma que os elogios ao saber do outro se intensificam. Os “altos prazeres”
decorrem, portanto, do suposto resultado favorável do processo de esclarecimento.
Percebe-se em que aspecto as “luzes” da razão são prazerosas a Riobaldo: elas lhe são
úteis. Mesmo que não possuam em si verdade intrínseca e definitiva, dada a oscilação do
pensamento de Riobaldo entre razão e mito, elas lhe servem como instrumento
apaziguador e conservador da vida. Em outra passagem, Riobaldo alude à necessidade de
um processo de esclarecimento universal:
Olhe: o que devia de haver, era de se reunirem-se os sábios, políticos,
constituições gradas, fecharem definitivo a noção proclamar por uma vez,
artes assembléias, que não tem diabo nenhum, não existe, não pode. Valor de
lei! assim davam tranqüilidade boa à gente. Por que o Governo não cuida?!
(p. 15).
À invalidação geral do mito corresponde à validação de uma ratio niveladora,
reivindicação ingênua de um poder esclarecedor, hábil para revelar como inócua a mítica
“fantasiação”. Se tal ingenuidade é logo percebida e posta à prova pelo narrador – “Ah, eu
sei que o é possível. Não me assente o senhor por beócio” (p. 15) nem por isso deixa
de ser sintomático o desejo por uma razão universalmente válida. Em outras palavras, por
trás do discurso ingênuo, desponta o ardor por um saber livre de qualquer gosto pelo
ilusório e pelo fantasioso, saber que neutralize o emaranhado mítico, submetendo-o ao
“valor de lei”. Uma lucidez definitiva, cabal, que não traga em si a marca de nenhuma
perspectiva particular, mas que seja fruto de uma perspectiva geral esclarecida ou de uma
extra-perspectiva avalizada por “sábios” e “políticos” reunidos em “assembléias”. A parte
de Riobaldo que habita o universo mítico clama pela razão última capaz de extirpar de uma
vez e definitivamente a angústia do pactário. Nietzsche reflete sobre as noções de falso
e verdadeiro e indica que essas qualificações decorrem da utilidade ou inutilidade de certos
juízos para a vida:
Por trás de toda lógica e de sua aparente soberania de movimentos existem
valorações, ou, falando mais claramente, exigências fisiológicas para a
preservação de determinada espécie de vida. Por exemplo, que o determinado
tenha mais valor que o indeterminado, a aparência menos valor que a
“verdade”: tais avaliações poderiam, não obstante a sua importância reguladora
para nós, ser apenas avaliações de fachada (...) tal como pode ser necessário
para a preservação de seres como nós (NIETZSCHE, 1992b, p.11).
No caso do narrador de Grande sertão: veredas, a necessidade do suporte lógico
coincide com a necessidade, a “exigência fisiológica”, mais fundamental, de impor ordem
e determinação ao que viveu, extirpando, via saber racional, a potência maléfica do mito. A
“determinação” fornecida pela razão é valorizada em detrimento da “indeterminação” do
plano mítico, a “verdade” racional em detrimento da “aparência” fantasiosa da figura
demoníaca. Como apontamos no capítulo dedicado a Nietzsche, as noções instituídas como
verdadeiras, não o são por possuírem em si verdade intrínseca, mas por serem úteis e
indispensáveis à vida. O conhecimento é valorizado na medida em que possui força
necessária para promover a vida. Giacoia Jr. observa que o “valor da verdade é relativo à
instância de avaliação que a institui como pretensamente incondicional. A verdade é valor
em relação à vida, meio de conservação e incremento da vida”. Giacoia esclarece que
a consciência filosófica não pode evitar a pergunta fundamental: qual é o valor
que está na origem da verdade? Vista sob o prisma da verdade pensada como
absoluto, esse valor é falso, porque inteiramente condicionado por interesses,
por desejo de conservação e crescimento, por vontade de poder. A conclusão
do experimento nos conduz à inverdade presente na origem da verdade como
valor incondicional (GIACOIA, 2002, p. 18).
Nietzsche age como genealogista, expondo como as noções de verdadeiro-falso
derivam de critérios de utilidade e conservação da vida. A vida – única instância a partir da
qual se pode estabelecer valores:
A falsidade de um juízo não chega a constituir, para nós, uma objeção contra
ele; é talvez nesse ponto que a nossa nova linguagem soa mais estranha. A
questão é em que medida ele promove ou conserva a vida, conserva e até
mesmo cultiva a espécie; e nossa inclinação básica é afirmar que os juízos mais
falsos (...) nos são os mais indispensáveis (NIETZSCHE, 1992b, p.11).
A “verdade” veiculada pela razão, no romance, permite (aparentemente) destronar a
configuração mítica, já que tanto a existência efetiva do demônio quanto a possibilidade de
comércio da alma são invalidadas pela “idéia firme” do interlocutor. O saber racional
desestrutura o mito, relegando-o ao terreno da mera “doideira” e “fantasiação” (p. 10). Fica
evidente, nesse sentido, o embate entre o terreno fluido e emaranhado da linguagem mítica
e a firmeza, segurança e tranqüilidade conferidas pela “veracidade” racional, concebida
como instrumento tranqüilizador e conservador da vida. No entanto, verifica-se que a
“verdade” esclarecida proveniente do universo “culto” do interlocutor é valorizada por
Riobaldo na medida em que corresponde ao seu interesse de desvencilhar-se do mito. O
pretenso absolutismo de tal veracidade é rechaçado na medida em que sua promiscuidade
com o não-verídico é desvelada. A pergunta genealógica pelo valor da vontade de verdade
encontra-se aí respondida: tal veracidade só ganha valor porque corresponde a um interesse
e a uma necessidade que a “suma doutoração” (p. 14) do interlocutor pode, em certa
medida, satisfazer.
Pois é justamente nessa “suma doutoração” que Riobaldo busca extrair a ciência
capaz de desenredá-lo de suas angústias. Kathrin Rosenfield estabelece um paralelo
sugestivo entre a relação narrador-interlocutor em Grande Sertão: veredas e o título do
primeiro prefácio de Tutaméia, coletânea de quarenta contos, entremeados por quatro
prefácios, que Rosa publicou em 1967. O mencionado prefácio, denominado “Aletria e
hermenêutica”, é composto, segundo a autora, por um dualismo entre a incapacidade de ler
(aletria, identificada a alexia) e a habilidade de interpretar e atribuir sentido ao texto
(hermenêutica). Rosenfield percebe que o narrador do romance “conta e reconta, diz,
desdiz e rediz, sem jamais aceder à explicitação do sentido, ao conhecimento
discursivamente articulado, da verdade do seu relato” (ROSENFIELD, 2006, p. 206). O
interlocutor, por sua vez, “é chamado a saber, isto é, a explicitar e a interpretar o sentido da
travessia do narrador. Sua tarefa não é a de ouvir e registrar os périplos de uma vida alheia,
mas a de ter e de entender o figurado de uma espessa nebulosa de signos” (ROSENFIELD,
2006, p. 206). A pesquisadora ainda observa que
o saber hermenêutico, a explicitação do sentido, parece situar-se a
eqüidistância da matéria concreta (aletria) e da incapacidade de ler, de
estabelecer vínculos literais (alexia). A função do senhor, do crítico, do leitor é
a de introduzir no “balancê” das letras, na mobilidade indeterminada e
nebulosa das coisas vividas e narradas as pontes e os elos que asseguram a
densidade da trama poética (ROSENFIELD, 2006, p. 206-7).
O sentido, como quer Rosenfield, pode ser “construído pelas “pontes
hermenêuticas” (ROSENFIELD, 2006, p. 206) capazes de estabelecer vínculos entre os
componentes aparentemente desconexos do fluxo verbal. A narração delega a tarefa de
estabelecer tais pontes ao interlocutor que, todavia, nunca se pronuncia ou, quando se
pronuncia, sua fala, lida nas entrelinhas da fala do narrador, vem apenas, como vimos, a
título de confirmação daquilo que Riobaldo esperava ouvir. A figura do interlocutor,
como sugere a estudiosa, corresponde também às figuras do crítico e do leitor. É a nós,
portanto, leitores de Rosa, que cabe a tarefa hermenêutica de construir, no espaço nebuloso
da alexia, o nexo capaz de atribuir sentido. O próprio narrador sugere a necessidade dessa
tarefa interpretativa:
o que lhe basta, que menos mais, é pôr atenção no que contei, remexer vivo o
que vim dizendo. Porque não narrei nada à toa: só apontação principal, ao que
crer posso. Não esperdiço palavras. Macaco meu veste roupa. O senhor pense,
o senhor ache. O senhor ponha enredo (p. 234, grifos nossos).
Nessa passagem ao incitar o interlocutor (o leitor) a “remexer vivo” e a “pôr
enredo”, Riobaldo aponta significativamente para o papel necessariamente ativo daquele
que ouve (lê) a narração. Ao receptor do narrado é dada a tarefa de preencher as lacunas de
sentido e estabelecer as “pontes hermenêuticas”. Eduardo Coutinho percebe que
a busca de autoconhecimento empreendida pelo protagonista estende-se ao
leitor, que a incorpora à sua própria experiência vivencial, e se torna, por sua
vez, outro narrador, dando origem a uma espécie de corrente que vai
aumentando gradativamente cada vez que uma nova pessoa começa a ler o
romance. (...) Desse modo, em vez de permanecer como consumidor passivo da
obra, o receptor de uma visão de mundo já formada, e de cuja configuração não
participara, ele é transformado num agente, num possível modificador da
realidade representada (COUTINHO, 2005, p. 126-127).
A passagem do interlocutor-leitor de um estado de passividade receptiva para um
outro de atividade, que agencia a formação do sentido, “remexe vivo” na matéria narrada
incorporando-a à sua própria experiência, é característica essencial do romance. Tal como
aponta Rosenfield, “verdade e sentido não se encontram na narração nem no narrado, mas
em um ‘além’ que pertence à interpretação e ao ato hermenêutico” (ROSENFIELD, 2006,
p. 204). E ainda: “o sentido das coisas não se desvenda na mera evocação dos fatos,
acontecimentos e nomes, mas permanece latente e secreto na ‘armação’ do texto”
(ROSENFIELD, 2006, p. 205). Entretanto, dada a diversidade de interpretações o
colorido hermenêutico que o romance possibilita, as noções de verdade e sentido perdem
qualquer densidade ontológica para se reencontrarem, multiplicadas, na pluralidade
perspectivística que a obra de arte pode abarcar. A univocidade, desta forma, reverte em
plurivalência, a unidade revela-se múltipla e a identidade desdobra-se na diferença das
muitas veredas que o romance permite trilhar.
Ademais, se Riobaldo encontra certo conforto na razão esclarecida do interlocutor,
isso não dilui de forma alguma sua dúvida. A nosso ver, o que o romance a todo instante
repropõe é a aguda percepção do narrador de que a razão, embora possa atuar como
instrumento do conhecimento, não é capaz de desvelar por completo aquilo que repousa
na obscuridade velada do mistério. Essa percepção atravessa a narração inteira e cristaliza-
se numa rie de discretos “recados”, sentenças que imitam a estrutura aforismática dos
provérbios populares: “A gente sabe bem aquilo que não entende” (p. 286). Tal saber,
que prescinde do entendimento racional, isto é, que termina por renunciar ao otimismo
teórico, promotor da confiança da razão como “medicina universal” (NIETZSCHE, 1992a,
p. 94), pode ser caracterizado como o anúncio de um outro saber, um saber trágico. A
emergência dessa forma de pensamento, entretanto, será tema do último capítulo desse
estudo. Por enquanto, basta apontar para a insuficiência do método racional. Insuficiência
essa, percebida e expressa por Riobaldo ao longo de toda a narrativa.
2. 3 A via metafísica
Segundo nossa perspectiva, a segunda via aberta por Riobaldo para compreender e
conferir sentido ao que viveu reside na possibilidade de transcendência metafísica. Questão
essa, inextricavelmente ligada às noções, ora conflitantes, ora complementares, de bem e
mal. De fato, a questão arcaica do bem e do mal atravessa o romance de ponta a ponta e
constitui um dos temas privilegiados das divagações do ex-jagunço. Será o mundo
ordenado por uma instância divina? Um kosmos onde o Mal aparece como mera
perturbação da ordem? Ou terá o Mal uma densidade ontológica própria, encarnada na
figura do diabo? Serão Bem e Mal terrenos independentes ou serão eles diabolicamente
misturados? Para Arrigucci Jr., em Grande sertão: veredas, “a questão da mistura parece
estar, na essência, ligada à própria idéia do demoníaco” (ARRIGUCCI, 1994, p.14). De
fato, Riobaldo percebe: “Arre, ele está misturado em tudo” (p. 12). É possível, a partir daí,
delimitar um dos sentidos (pois vários) que o demoníaco, em contraposição ao divino,
assume em Grande sertão: veredas.
O demoníaco o Mal , no romance, pode ser compreendido como aquilo que,
sendo essencialmente “misturado”, impede a compreensão e a distinção entre as coisas e
suas qualidades. Para Riobaldo, o demônio corresponde a um movimento e mudança
incessantes; ao contrário, Deus o Bem é identificado à fixidez e à estabilidade de um
estado definitivo: “Senhor sabe: Deus é definitivamente; o demo é o contrário Dele...” (p.
35); “Deus estável” (p. 219). O par Deus/diabo reproduz, nessa perspectiva, a tradicional
dicotomia, de origem platônica, entre aquilo que, sendo estável e distinto, pode ser objeto
do conhecimento e aquilo que, sendo informe e mutável, não pode ser devidamente
conhecido. Nas primeiras páginas do relato, o diabo é identificado ao “azougue maligno”:
“E o demo – que é só assim o significado dum azougue maligno” (p. 12). De origem árabe,
a palavra “azougue”, segundo o dicionário Aurélio, em sua primeira acepção, é a
“designação vulgar do mercúrio” (FERREIRA, 1999, p. 246). Na língua cotidiana,
“azougue” tem o sentido daquilo ou daquele que, sendo rápido e múltiplo, torna-se confuso
e difícil de ser acompanhado pelo pensamento ou pelo olhar. Rosenfield estabelece,
coerentemente, uma relação entre o “azougue maligno” e a noção platônica de
malignidade:
“Azougue” significa o ser ou a qualidade do mercúrio, isto é, da “matéria
vertente” por excelência, da coisa fugidia que se subtrai a todo domínio, a todo
controle e limite racional. Definir o mal como movimento escorregadio que
contamina tudo significa reatar com a imagem milenar da malignidade
platônica: Sócrates acusa a “essência hermogênea” de impedir o acesso à visão
clara e luminosa, ao conhecimento racional e puro da idéia, inviabilizando ou
pelo menos pondo permanentemente em perigo a articulação de um discurso
verídico sobre o mundo (ROSENFIELD, 2006, p. 218).
Segundo a pesquisadora, “essa problemática aparece em quase todos os diálogos
socráticos” (ROSENFIELD, 2006, p. 219). A “essência hermogênea”, ou seja, própria de
Hermes-Mercúrio é associada diretamente àquilo que veda o acesso ao conhecimento.
Ainda para Rosenfield, no romance, a questão do mal está ligadaà problemática da
abertura significativa, do movimento mercuriano do sentido que põe em perigo limites,
normas e regras indispensáveis ao julgamento e à ordem do ver e do pensar”
(ROSENFIELD, 2006, p. 218). No Crátilo, Sócrates caracteriza Hermes como o
“trapaceiro, fértil em discursos e comerciante labioso, qualidades essas que se assentam
exclusivamente no poder da palavra” (PLATÃO, 2001, p. 179). É necessário apontar ainda
que Hermes é pai de Pan, misto de homem e bode, divindade ambígua por excelência,
“filho híbrido de Hermes, macio em cima e áspero e hircino, ou trágico, em sua porção
inferior”. Sócrates relaciona o hibridismo de Pan ao discurso: “É evidente que Pan é
discurso ou irmão de discurso”. O discurso, por sua vez, “indica todas as coisas (...) e
circula e se movimenta sem parar, além de ser de natureza híbrida, verdadeira e falsa ao
mesmo tempo”. Um pouco à frente, o filósofo vincula de forma mais explícita tal faceta
híbrida e enganosa de Pan à metade “baixa” e “áspera” do sátiro: “o que de falso mora
embaixo com a multidão dos homens, e é áspero como bode da tragédia, pois, em verdade,
o maior número das fábulas e das mentiras se encontra justamente no domínio da tragédia”
(PLATÃO, 2001, p. 180).
Caracteriza-se, no pensamento platônico, a essência hermogênea como aquela,
multiplicando e embaralhando os discursos, movimentando-se sem parar, impede o acesso
ao logos palavra transparente que reflete o verdadeiro ser das coisas. Na mentalidade
grega arcaica, “a linguagem é um dom dos deuses, os quais no-la deram para dizer o ser e
as coisas assim como elas são. (...) Assim, tudo é simples. Falar é dizer o ser, é refletir o
kosmos tal como ele é, por meio do instrumento que os deuses nos deram para esse fim”
(ROGUE, 2005, p. 9). Contudo, na época clássica, a proliferação do discurso revela a
ambivalência da palavra. Aniquila-se, na teia do discurso sofístico, o logos arcaico, no qual
a palavra era pura expressão do ser. Christophe Rogue, em seu estudo sobre Platão,
sinaliza:
É esse desvio do discurso que Sócrates não aceita. O fundamento do
procedimento socrático é recusar o desvio e o aviltamento do logos. Mais do
que qualquer outro, Sócrates obrigou-se a essa disciplina do logos que quer
que, sempre, se compreendesse bem o que falar quer dizer. (...) A vocação
filosófica de Platão situa-se nesse ponto preciso. Platão retoma, em seguimento
ao seu mestre, uma investigação que tem por meta encontrar o acordo entre o
logos e as coisas (ROGUE, 2005, p. 10-11).
Identifica-se no pensamento socrático-platônico uma nostalgia da adequação exata
entre linguagem e ser. O logos estilhaçado dos sofistas é uma corrupção do logos original.
O sofista revela, através das artimanhas do discurso, o caráter plástico da linguagem – seu
discurso é falso e verdadeiro ao mesmo tempo. O trunfo do sofista é o elemento
hermogêneo, mercurial do discurso. Rogue evoca as Antilogias, de Protágoras, “onde ele
demonstra a fluidez da linguagem, defendendo sucessivamente teses opostas” (ROGUE,
2005, p. 10). No romance rosiano, a qualidade demoníaca, o caráter marcadamente
“misturado” do mundo, reflete diretamente no discurso do ex-jagunço, ele mesmo um
discurso “misturado”, escorregadio, hesitante, interrogante, sofístico. Platonicamente, a
narração revela-se como logos corrompido, descolado do ser e evoca a nostalgia de um
“Nome (quintessência da totalidade transparente e evidente) perdido nos anagramas e
trocadilhos de uma linguagem pervertida: a linguagem ambígua e nebulosa do homem
expulso do Paraíso e da sua errança no universo da Queda” (ROSENFIELD, 2006, p. 203).
O sertão é palco de uma travessia interminável onde afloram as propriedades demoníacas
da mistura. A propriedade divina, ao contrário, é identificada à capacidade de
desembaralhar – desmisturar – o caos discursivo e existencial, fixando, cristalizando,
estabilizando a “matéria vertente” e desvelando, por trás do movimento, a aura divina do
Nome:
Deus está em tudo conforme a crença? Mas tudo vai vivendo demais, se
remexendo. Deus estava mesmo vislumbrante era se tudo esbarrasse, por uma
vez. (...) Tudo o que já foi, é o começo do que vai vir, toda a hora a gente está
num cômpito” (p. 237).
O movimento incessante – demoníaco – do mundo impede a visão clara de Deus. A
linguagem, inserida nesse mundo movente, torna-se também ela obstáculo para a
percepção da verdade veiculada pelo divino. Riobaldo percebe a vida como devir que não
“esbarra” e como “cômpito”, ou seja, lugar onde os caminhos se cruzam ou desembocam,
multiplicidade divergente de veredas que não convergem para uma vereda única de acesso
ao ser. Esse “tudo” que “vive demais” e “se remexe” evoca a noção nietzscheana de vida
como vontade de poder, pluralidade não-intencional de forças em perpétuo movimento e
combate que “não esbarra”. O vislumbre de Deus, ao contrário, é possibilitado
hipoteticamente pela suspensão, cessação, parada, fixação, “esbarramento” desse mover-se
contínuo. Logo, o caráter de Deus a fixidez aparece diametralmente oposto ao caráter
da vida o movimento. Entre as noções de vida e Deus arma-se uma espécie de conflito
trágico, uma “contradição inconciliável” (LESKY, 1996, p. 31). Rogue observa que
O esforço de definição, de reaplicação da linguagem ao ser, que Platão
empreende seguindo a Sócrates, vai levá-lo a esse momento fundamental que é
a constituição do dualismo ontológico, a saber, a idéia de que há dois níveis
distintos de realidade, o sensível e o inteligível (ROGUE, 2005, p. 12-13).
Ainda para Rogue, o projeto platônico mais fundamental define-se como
“vontade de libertar-se do múltiplo para chegar ao um”, de “escapar da multiplicidade
sensível para alcançar a unidade pura da Idéia” (ROGUE, 2005, p. 14). Compreende-se
que a instauração do dualismo ontológico revela-se como desejo de unidade e fixidez e
como rejeição da multiplicidade. Desejo esse que, como Riobaldo enuncia sinteticamente,
contradiz o próprio modo de ser da vida. Para reaplicar a linguagem ao ser, é preciso
“inventar”, para além da vida, um território de essências fixas e eternas que permitam
reconferir ao logos sua veracidade extraviada.
Nesse ponto, parece-nos pertinente confrontar a necessidade metafísica de Riobaldo
com a crítica nietzscheana do platonismo. Como apontamos no capítulo anterior, para
Nietzsche, o dualismo ontológico platônico, vulgarizado pelo pensamento cristão, camufla
um ódio ao devir. Dada a incapacidade do sujeito de afirmar tragicamente a vida, faz-se
necessária a aspiração a uma outra vida. Como apontamos na Introdução, trata-se de
estabelecer, sobreposta à dolorosa inconstância do devir, a fantasia de um mundo sem dor,
acessível ao conhecimento, pleno de atributos identidade, unidade, duração que a vida
não apresenta. Em princípio, a sede de religião de Riobaldo apresenta-se como sintoma
dessa espécie de niilismo negativo que abdica do real em prol do ideal. Rejeição da
dolorosa errância do viver em favor do plano metafísico garantido pela religião, que aponta
para uma incapacidade de lidar com o sofrimento e com a perspectiva da finitude:
Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo esperança: sempre um
milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente
perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e
pequenas horas, não se podendo facilitar é todos contra os acasos. Tendo
Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim, certo. Mas,
se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque
existe dor. E a vida do homem está presa encantoada – erra rumo (...) O inferno
é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer
um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo (p. 48-49).
Nessa passagem, Riobaldo identifica a figura de Deus a um lastro de segurança que
permite conferir um sentido à dor existencial. Tal segurança, advinda da existência divina,
contrapõe-se à “vida burra”, ou seja, à vida desprovida de sentido e transcendência, a vida
como amálgama desdivinizado de forças, como “vai-vem” sem intencionalidade. Ao
contrário da imprecisão misturada que caracteriza o demoníaco no romance, a figura de
Deus é associada à exatidão “Deus era fortíssimo exato” (p. 259). O homem sem Deus,
lançado na arena de um mundo hostil, luta contra “os acasos” e percebe tragicamente a
própria liberdade como um fardo, que “não tem licença de coisa nenhuma”. A imagem
tradicional do Céu, espaço da transcendência que garante uma além-vida individualizada
“um fim com depois dele a gente tudo vendo” (p. 49) é aquilo que faculta ao narrador
uma (pseudo?) libertação da angústia doentia implicada na perspectiva da finitude.
Lembremos que, para Nietzsche, uma filosofia pode ser encarada como “sintoma” de certa
espécie de vida:
sabemos (...) para onde o corpo doente, com sua necessidade,
inconscientemente empurra, impele, atrai o espírito para sol, sossego,
brandura, paciência, remédio, bálsamo em todo e qualquer sentido. Toda
filosofia que põe a paz acima da guerra (...) toda metafísica e física que
conhece um finale, um estado final de qualquer espécie, todo anseio
predominantemente estético ou religioso por um Além, Ao-lado, Acima, Fora,
permitem perguntar se não foi a doença que inspirou o filósofo (NIETZSCHE,
2001, p. 11).
Sob esse ângulo, torna-se claro que o desejo de Riobaldo por um finale
transcendente deriva daquilo que Nietzsche identifica como doença ou, na perspectiva das
forças, como vontade negativa de poder cuja resultante indica a predominância de forças
dominadas que se voltam contra a vida, depreciando-a em nome do anseio religioso por um
plano extra-mundano. O “estado final” descrito pelo filósofo aparece, no romance,
plasmado na imagem tradicional do Céu, plano divino, vida verdadeira para onde acedem
as almas bem-aventuradas depois de enfrentarem as privações e provações da vida terrena.
Kathrin Rosenfield sustenta, nesse sentido, que a reflexão de Riobaldo move-se
nas figuras, metáforas, sentenças e narrativas legadas por uma longa tradição
cristã, o que lhe imprime às vezes uma aparência demasiadamente pacata e
convencional. Entretanto, a maneira de operar, de “remexer vivo” com as
determinações e formas tradicionais do pensamento crente, vai subverter
sutilmente os conteúdos dogmáticos, fazendo aparecer na matéria evangélica
deslizes, aporias e problemas especulativos extremamente modernos
(ROSENFIELD, 2006, p. 220).
De fato, subjacente ao discurso crente de Riobaldo, emergem sutilmente as figuras
da dúvida e da especulação próprias do pensamento contemporâneo. É curioso observar
que a crença do ex-jagunço na possibilidade de transcendência configura-se,
sugestivamente, mais como desejo e necessidade de transcendência do que propriamente
como incondicional o que fica bem expresso no uso do verbo querer: “A gente quer
céu” (p. 49, grifo nosso). Para Nietzsche, o anseio de uma forte não é a prova de uma
forte fé, antes o contrário” (NIETZSCHE, 2006, p. 70). Em outras palavras, a aspiração
desmedida pela crença revela-se, paradoxalmente, como sinal de descrença ou, ao menos,
de dúvida em relação ao conteúdo da crença. Ademais, a perspectiva da finalidade
transcendente configura-se não como prazeroso desvelamento da “verdade”, mas como
desejo dos efeitos positivos (sentimentos de prazer) que tal “verdade” é capaz de legar ao
sujeito. Nietzsche percebe que moral e religião “inscrevem-se inteiramente na psicologia
do erro: (...) a verdade é confundida com o efeito do que se acredita como verdadeiro”
(NIETZSCHE, 2006, p.45). É preciso observar ainda que o consolo metafísico oferecido
pela prática religiosa mostra-se insuficiente a Riobaldo, configurando o que Rosenfield
entende como uma sutil subversão dos “conteúdos dogmáticos”:
Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de
todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me
chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de
Compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso,
vou no Mindubim, onde uma Matias é crente, metodista: a gente se acusa de
pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me
suspende. Mas é só muito provisório (p. 15, grifo nosso).
É curioso perceber que ânsia desmedida de Riobaldo por religião parece apontar
para a própria insuficiência dessa via. Como se, querendo abarcar todas as doutrinas, não
abarcasse nenhuma e, querendo beber água de todo rio, acabasse por não matar a sede. O
consolo oferecido pela via religiosa mostra-se, no fim das contas, “muito provisório”. Da
mesma forma, os ensinamentos de Quelemém não satisfazem plenamente o narrador.
“Compadre meu Quelemém é quem muito me consola. (...) Mas ele tem de morar longe
daqui, na Jijuã, Vereda do Burití Pardo (p. 10, grifos nossos). Quelemém, apesar do
consolo que oferece, mora sugestivamente “longedo narrador. Em outra passagem, surge
mais explícita a insatisfação do narrador com a perspectiva da crença: “Às vezes não aceito
nem a explicação do Compadre meu Quelemém; que acho que alguma coisa falta” (p.
237).
A nosso ver, Compadre Quelemém encarna no romance a figura sacerdotal que
oferece a Riobaldo a possibilidade, via sofrimento, de uma salvação no além-mundo.
Grosso modo, sua doutrina, que mescla concepções espíritas e católicas, exorta Riobaldo à
busca de transcendência e ao reconhecimento da natureza divina como ordenadora do caos,
sendo o mal mera perturbação provisória dessa ordem fundamental, avalizada por Deus e
materializada imageticamente no Céu espiritual. Riobaldo, refletindo sobre culpa e
expiação, recorre a Quelemém. Este lhe replica que “por perto do Céu, a gente se alimpou
tanto, que todos os feios passados se exalaram de não ser feito sem-modez de tempo de
criança, más artes. (...) Por isso dito, é que a ida para o Céu é demorada” (p. 20). Em suma,
o ensinamento do sacerdote, cujo cerne é a existência de um sentido transcendente e extra-
mundano que justifica a existência e anula o estigma do mal, serve como tranqüilizante e
consolo a Riobaldo: “Compadre meu Quelemém me conselhos, de tranqüilidade” (p.
366). Como exposto no capítulo precedente, a necessidade de consolo metafísico, para
Nietzsche, é sintoma de uma vida que declina. A crença incondicional no plano metafísico
é interpretada pelo filósofo como hostilidade à vida:
a criação de valores superiores Deus, bem, a verdade significa, para
Nietzsche, a negação da vida em nome de uma outra vida, uma vida melhor; a
negação do mundo em nome de um outro mundo: o mundo verdadeiro. Se a
religião judaico-cristã e a metafísica socrático-platônica são por natureza
niilistas é porque julgam e desvalorizam a vida temporal a partir do mundo
supra-sensível e eterno considerado como bom e verdadeiro (MACHADO,
1994, p. 24).
Com efeito, um pensamento trágico, da forma como Nietzsche o concebe, pode
configurar-se mediante a renúncia às ficções depreciadoras da vida, das quais a crença
tradicional no Deus cristão é apenas uma das faces. Nisso consiste a especificidade do
trágico nietzscheano em contraposição às concepções elaboradas por seus antecessores, nas
quais a noção de trágico ganha consistência quando confrontada com uma dimensão
metafísica, seja ela ética, dialética ou espiritual. A própria possibilidade de um saber
trágico, no sentido amplo de um saber artístico, que agencie ativamente o sentido, é
aniquilada quando, de antemão, instaura-se um Sentido verídico e último: “Compadre meu
Quelemém reprovou minhas incertezas” (p. 13). Fica claro que a possibilidade da dúvida
esbarra no dogma. A crença entrava o movimento que resulta na interrogação. A fé, como
aponta Nietzsche, mina o terreno do conhecimento: “se é necessário antes de tudo fé, então
se deve pôr em descrédito a razão, o conhecimento, a indagação: o caminho para a verdade
torna-se proibido” (NIETZSCHE, 2007, p.28). No aforismo 46 de Além do bem e do mal,
Nietzsche relaciona a idéia de ao sacrifício de qualidades vitais: “Desde o começo a
cristã é sacrifício: sacrifício de toda liberdade, todo orgulho, toda confiança do espírito em
si mesmo” (NIETZSCHE, 1992b, p. 52). O pensador ainda sustenta que “a moral cristã é
uma ordem; sua origem é transcendente; ela está além de toda crítica, de todo direito à
crítica; ela tem a verdade apenas se Deus for a verdade – ela se sustenta ou cai com a fé em
Deus” (NIETZSCHE, 2006, p. 66).
Em contrapartida, a dúvida, em detrimento da incondicional, apresenta-se como
topos da narração que, nesse sentido, pode ser considerada como eminentemente inquieta e
indagadora. Encontram-se, por todo o romance, expressões interrogativas, insistentemente
reiteradas, que apontam para a permanência da dúvida: “Será não? Será?” (p. 11). Tal
permanência não transparece apenas na reflexão lúcida do narrador, mas encontra-se
articulada poeticamente ao longo do romance em expressões que apontam para
radicalidade de um interrogar que carece até mesmo do objeto a respeito do qual se
interroga, configurando a emergência da estranha figura de uma dúvida aberta, autônoma,
pronta a perscrutar o nonada de minúsculos devires: “Que é que diz o farfal das folhas?”
(p. 237). Dúvida que não poupa a interrogação acerca da própria identidade: “O senhor
pergunte: quem foi que foi que foi o jagunço Riobaldo?” (p. 236). De acordo com Finazzi-
Agrò, se é possível ler Grande sertão: veredas como romance do esclarecimento, é
possível lê-lo também como romance da dúvida. O pesquisador, refletindo sobre a
onipresença da dúvida no romance, observa:
uma palavra [dúvida] que o nosso uso cotidiano alisou como uma velha moeda,
mas que, todavia, a nossa travessia da obra de Guimarães Rosa nos pode
devolver polida e ainda resplendente do seu significado originário: “duvidar”,
produto etimológico de um duo-habitare, de um residir no duplo, de um estar
na ambigüidade. Com efeito, é ainda este o sinal oblíquo, o signo ambivalente,
sob o qual se desenvolve a sua escrita; é este o tom e o sentido de um mundo
procurando certezas e encontrando apenas a dúvida, ou seja, a duplicidade
mascarada daquilo que é verdadeiro. De fato, não se pode ler Grande sertão:
veredas, senão como domínio do “certo no incerto”, como lugar universal da
dúvida: como espaçamento infinito de uma interrogação irresoluta (FINAZZI-
AGRÒ, 2001, p. 60).
Narrador atormentado pela dúvida, Riobaldo não se contenta, como apontamos
acima, com a perspectiva de redenção metafísica oferecida pela doutrina de Compadre
Quelemém. É justamente essa insuficiência trágica que caracteriza sua atitude de perene
interrogação: “Vivendo, se aprende. Mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras
maiores perguntas” (p. 312). Habitante do duplo, suspenso entre mito e razão, entre crença
no sentido transcendente e reconhecimento da impossibilidade de sentido, o ex-jagunço
tece o narrado sobre a base flutuante do paradoxo. Como efeito, tal paradoxismo espraia-se
por toda a narração na forma de expressões oximoréticas que, ao invés de revelar
identidade, aprofundam a diferença.
Compadre meu Quelemém sempre diz que eu posso aquietar meu temer de
consciência, que sendo bem assistido, terríveis bons-espíritos me protegem.
Ipe! Com gosto... Como é de são efeito, ajudo com meu querer acreditar. Mas
nem sempre posso. O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim,
forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo...
(p. 14-15, grifos nossos).
O trecho acima é revelador na medida em que desnuda o estatuto que a verdade
oferecida por Quelemém possui para Riobaldo. Susana Kampff Lages percebe que “o
descanso que o Riobaldo-barranqueiro encontrou junto ao Compadre Quelemém de Góis
soa a moeda falsa: sua figura representa uma certeza como tantas outras às quais Riobaldo
presta tributo durante o narrar, somente para em seguida dela se desfazer” (LAGES, 2002,
p. 83). Assim como o saber racional do interlocutor era valorizado, como vimos, pela
sua utilidade enquanto instrumento tranqüilizador e, mesmo assim, apresentava-se
insuficiente, também a doutrina do sacerdote age como portadora de um são efeito”.
Novamente, presentifica-se a idéia nietzscheana que deduz o valor de um juízo a partir de
sua utilidade como conservador da vida. Ademais, ao atentar para o sintagma “ajudo com
meu querer acreditar”, percebe-se que a crença de Riobaldo configura-se, novamente,
como descrença, ou melhor, como desejo de crença, necessidade de crença que,
nietzscheanamente, é compreendida como necessidade de “remédio e socorro” decorrente
de um “empobrecimento de vida” (NIETZSCHE, 2001, p. 272-3).
Por outro lado, a emergência do saber trágico é sutilmente anunciada quando o
narrador declara que “nem sempre pode” acreditar. Em seguida, Riobaldo afirma
enfaticamente sua diferença – “Eu sou é eu mesmo” – e, ainda, salienta a independência de
seu pensar em relação ao dogmatismo “eu toda a minha vida pensei por mim, forro
40
.
Trata-se, justamente, de um pensar alforriado da dimensão metafísica, livre da dívida e
pronto para a dúvida, isento da imposição de fixidez e sentido, desobrigado da crença, ou
seja, preparado para trilhar as veredas muito perigosas do conhecimento e da vida. Não é
por acaso, a nosso ver que um dos leitmotivs-chaves do romance seja exatamente “Viver é
negócio muito perigoso...” (p. 11). No mesmo sentido, sugere Nietzsche, em fragmento
póstumo: “Nossa vida precisa ser mais perigosa(NIETZSCHE, 2005, p. 83). A nosso ver,
a noção de perigo no sentido proposto pelo artista e pelo filósofo, remete ao desvencilhar-
40
O Dicionário Aurélio aponta, como segunda acepção da palavra “forro” os seguintes significados:
1.Liberto; alforriado 2.Livre de dívidas; desobrigado. 3. Que não paga foro. 4. Liberto, livre, isento
(FERREIRA, 1999, p. 932).
se da tranqüilidade fictícia dos consolos gicos e metafísicos para (tragicamente) arriscar-
se no trânsito e na multiplicidade isto é, na incerteza própria da existência. Rosenfield
argumenta:
O sincretismo do compadre Quelemém, firmemente apoiado na Boa Nova
cristã, aponta para os dois dispositivos fundamentais para elaborar, “alimpar”
esse avesso: sofrimento e amor. As figuras da Paixão redentora do Cristo
surgem assim como os instrumentos de uma Ordem preestabelecida que faz
com que nenhum mal seja absolutamente gratuito, mas apenas provação e
carência temporária cuja livre aceitação será compensada por um bem maior. É
isso o que diz o compadre. Riobaldo, parcialmente seduzido pela grandiosa
promessa escatológica, não consegue, no entanto, embarcar plenamente nessa
genuína e forte. (...) A inabalável na onisciência, onipotência e bondade
de Deus (...) é um caminho que Riobaldo considera carinhosamente, mas ele
termina por considerá-lo um além que não lhe é mais garantido. A salvação do
Evangelho é substituída por um caminho sinuoso que passa pela “errança”: a
travessia do sertão desdobra “neblinas”, fantasmas, maravilhas e terrores de
uma “ignorância” que se aproxima do olhar ingênuo que abarca todo o campo
de um saber-por-vir (ROSENFIELD, 2006, p. 220).
Segundo nossa perspectiva, a expressão usada por Rosenfield, “abarcar todo o
campo do saber-por-vir”, significa precisamente a capacidade de abrir-se à multiplicidade
dos sentidos que a vida oferece. Significa justamente não instalar-se na validade dogmática
de um sentido último, não fechar-se numa perspectiva fixa, mas contemplar a diversidade,
sabendo gozar a afirmar tragicamente essa diversidade. Em várias passagens do romance, o
narrador enfatiza sua diferença, advogando independência em relação a crenças ou a
chefias. Reiterando seu gosto especulativo, Riobaldo, ao contrapor-se aos companheiros de
jagunçagem, percebe em si mesmo, realçada, a diferença: “eu fiz um pensamento: que eu
era muito diverso deles todos, que sim. Então, eu não era jagunço completo, estava ali no
meio executando um erro. Tudo receei. Eles o pensavam (p. 271). Ou ainda: “Tudo,
naquele tempo, e de cada banda que eu fosse, eram pessoas matando e morrendo, vivendo
numa fúria firme, numa certeza, e eu não pertencia a razão nenhuma, não guardava e
nem fazia parte” (p. 110). Também o ensinamento de compadre Quelemém, no qual
deposita certa confiança, não é aceito por inteiro, deixando margem a um espaço onde
brota a dúvida. Veja-se esta passagem:
Ah, formei aquela pergunta
41
, para compadre meu Quelemém. Que me
respondeu: que por perto do Céu, a gente se alimpou tanto, que todos os feios
passados se exalaram de não ser (...) Como a gente não carece de ter remorso
do que divulgou no latejo de seus pesadelos de uma noite. Assim que: tosou-se,
floreou-se! Ahã. Por isso dito, é que a ida para o Céu é demorada. Eu confiro
com compadre meu Quelemém (...) Só que isto a ele não vou expor. A gente
nunca deve de declarar que aceita inteiro o alheio essa é que é a regra do
rei! (p. 20, grifo nosso).
A explicação de Quelemém, embora acatada em certa medida por Riobaldo, não o é
de todo. A prática de um livre-pensar é garantida pela regra do rei”, que exime Riobaldo
de entregar-se cegamente à doutrina. Ao “não aceitar inteiro o alheio”, o ex-jagunço
astuciosamente escapa do grilhão do dogmatismo e reivindica um pensamento resultante
da própria especulação. Um pensamento próprio, marcado pela diferença, nascido da
especificidade de uma reflexão feita no recesso de uma consciência imune ao dogma. Em
Nietzsche, diferença e solidão aparecem como índices positivos. Um pensamento
emancipado, que exercita e aprofunda a própria diferença, não se deixando aturdir ou
enfraquecer por categorias alheias, faz parte da noção nietzscheana de grandeza:
o ser-nobre, o querer-ser-para-si, o poder-ser-distinto, o estar-só e o ter-que-
viver-por-si são parte da noção de “grandeza”; e o filósofo revelará algo do seu
próprio ideal quando afirmar: “Será o maior aquele que puder ser o mais
solitário, o mais oculto, o mais divergente, o homem além do bem e do mal, o
senhor de suas virtudes, o transbordante de vontade: pode ser tanto múltiplo
como inteiro, tanto vasto como pleno” (NIETZSCHE, 1992b, p. 120).
De fato, no romance, a impermeabilidade do narrador a credos, ideologias ou
papéis sociais permite a articulação de um olhar crítico que se furta a escolhas pré-
determinadas e frequentemente relativiza, por meio da justaposição de imagens
contraditórias, “verdades” tidas como certas. É curioso observar que tal método incide não
sobre aquilo que do exterior lhe é imposto, mas age internamente, o que permite ao
narrador voltar-se sobre sua própria reflexão, questionar-se a si próprio e à sua maneira de
apreensão do mundo.
Como percebe Rosenfield, uma passagem sugestiva do romance que articula
sequencialmente duas imagens contraditórias e constitui um bom exemplo desse pensar
41
A tal pergunta, formulada parágrafos antes, é a seguinte: “mesmo no u, fim de fim, como é que a alma
vence se esquecer de tantos sofrimentos e maldades, no recebido e no dado?” (p. 19).
emancipado, signo nietzscheano de nobreza, que vínhamos comentando. Nesse
movimento, a possibilidade de transcendência espiritual é “violentamente ‘cortada’”
(ROSENFIELD, 2006, p. 226) pela constatação dolorosa do apagamento de um fim
redentor:
o que minha vocação pedia era um fazendão de Deus, colocado no mais tope,
se braseando incenso nas cabeceiras das roças, o povo entoando hinos, até os
pássaros e os bichos vinham brisar. Senhor imagina? Gente valente,
querendo só o Céu, finalizando (p. 47-48).
O desejo de uma transcendência realizada na Terra, plasmada na imagem do
“fazendão de Deus”, é contrabalançada por imagens que revertem a ventura em desventura,
a felicidade da redenção em angústia de uma finitude sem vistas a qualquer além. Tal
perspectiva transparece no causo, narrado em seqüência, da moça do Barreiro-Novo:
Como deu uma moça, no Barreiro-Novo, essa desistiu um dia de comer e só
bebendo por dia três gotas de água de pia benta, em redor dela começaram
milagres. Mas o delegado-regional chegou, trouxe os praças, determinou o
desbando do povo, baldearam a moça para o hospício de dôidos, na capital,
diz-se que lá ela foi cativa de comer, por armagem de sonda (p. 48).
A figura ascética da moça que opera milagres e institui, por via da santidade, uma
ligação direta entre humano e divino, é aniquilada de forma brutal pela transferência da
suposta santa para o “hospício de dôidos”. A autoridade divina é maculada pela autoridade
secular e a ligação com o divino é obstruída pelo “delegado-regional”. O encanto arcaico
da realidade sertaneja eivada de misticismo é submetida a tratamento clínico na “capital”.
A santidade, em confronto com o saber oriundo do contexto urbano, reverte em patologia.
O que era santificação reverte em manía, disposição mórbida. Acrescente-se ainda que, no
contexto mesmo do causo, a possibilidade de transcendência bem-aventurada é posta em
xeque:
Porque, num estalo de tempo, tinham surgido vindo milhares desses, para
pedir cura, os doentes condenados: lázaros de lepra, aleijados por horríveis
formas, feridendos, os cegos mais sem gestos, loucos acorrentados, idiotas,
héticos e hidrópicos, de tudo: criaturas que fediam. (...) E aquela gente gritava,
exigiam saúde expedita, rezavam alto, discutiam uns com os outros,
desperavam de sem virtude requeriam era sarar, não desejavam Céu
nenhum. Vendo assaz, se espantava da seriedade do mundo para caber o que
não se quer (p. 48).
Ao “fazendão de Deus”, lugar de “gente e valente, querendo o Céu”
contrapõe-se brutalmente a galeria de doentes e martirizados que “não desejavam Céu
nenhum”. A possibilidade de redenção metafísica é contaminada pelo miasma do
sofrimento carente de sentido, do Mal que se esgota em si mesmo, que não é passagem
para uma “vida verdadeira”. A multidão de doentes condenados”, imagem de um inferno
radicado na Terra, é o revés maligno da transcendência terrestre sugerida pela imagem
anterior. Assim, é o próprio narrador quem, atentando para a ambivalência do real,
encarrega-se de instalar, em si mesmo, o germe da suspeita. O desejo idealista do
“fazendão de Deus” é posto à prova pela crueza do real desprovido de sentido
transcendente. Rosenfield observa que, no romance, as metáforas da harmonia, da ordem
e da beatitude celeste encontram-se permanentemente contrabalançadas pelas imagens de
um fim maligno, simples anulação, sofrimento estéril e destruição sem transcendência nem
sentido” (ROSENFIELD, 2006, p. 226). A pesquisadora ainda percebe que a narração é
construída “em torno de imagens oximoréticas que iluminam, de um lado, a esperança num
Fim redentor (realização da transcendência, da Justiça e da Bondade divinas), de outro, um
fim meramente fatual, término despojado de qualquer sentido transcendente”
(ROSENFIELD, 2006, p. 232). Ademais, a articulação sequencial dessas imagens
contraditórias constitui, a nosso ver, um índice da inquietação do narrador em relação à sua
própria (necessidade de) crença.
De ex-jagunço crente que assomava à primeira vista, Riobaldo passa a ex-jagunço
desconfiado: “Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor
concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre o senhor solte em minha frente
uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!” (p. 15). Rosa
reformula parodisticamente o socrático “Só sei que nada sei” e lhe adiciona o elemento
essencial da desconfiança e da busca na imagem significativa do “cão mestre” rastreando a
“idéia ligeira”. O conhecimento, desta forma, configura-se menos como um retilíneo ir ao
encontro, mas como tortuosa empresa de investigação cujo ponto de partida é a
desconfiança
42
. Conhecer como buscar o nebuloso camuflado no “fundo de todos os
matos”; conhecer como perseguir aquilo que não se sujeita à prisão do sentido dado e
aceito mas, como animal arisco, precisa ser rastreado em locais de difícil acesso. Essa
42
Em outra passagem, que reitera a anterior, Riobaldo afirma: “Quem desconfia, fica sábio” (p. 107).
Novamente, a figura da desconfiança aparece como aliada do conhecimento.
disposição ativa de “cão mestre” contrasta com a disposição passiva da exigida pela
doutrina metafísica. Riobaldo, apesar de seduzido pela proposta religiosa, “não embarca
plenamente nessa ”, como diz Rosenfield. Ele quer” acreditar mas não “pode(p. 15)
é nisso que reside a força indagativa de sua narração. Perdida a possibilidade (não a
necessidade) de crença, abre-se a via da interrogação, a ser trilhada pelo philosophos. No
aforismo 2 de A gaia ciência, Nietzsche alude àquilo que considera como “desprezível”:
estar em meio a essa rerum concordia discors [discordante concerto das coisas]
e toda a maravilhosa incerteza e ambigüidade da existência e não interrogar,
não tremer de ânsia e gosto da interrogação, nem sequer odiar quem interroga,
talvez até se divertindo levemente com este – isto é o que percebo como
desprezível (NIETZSCHE, 2001, p. 54).
É justamente a impossibilidade de, frente ao espetáculo misterioso da existência,
não interrogar, não pôr em dúvida, que caracteriza o narrador do romance como inveterado
sujeito interrogante e confere a seu discurso um caráter especulativo ao qual não bastam
nem o saber esclarecido que lhe oferece o douto interlocutor, nem a perspectiva de
redenção metafísica veiculada por Quelemém. Conforme sugere Nietzsche, o pendor para
o conhecimento pressupõe a “ânsia e gosto da interrogação”. Em Riobaldo, essa ânsia e
esse gosto surgem mesclados a uma urgente necessidade de crença. Uma dualidade que
acaba por configurar a ambigüidade intrínseca do personagem, dividido entre uma
implacável vontade de verdade e uma percepção aguda da impossibilidade de estabelecer
verdades últimas, um saber sensível à deformação restritiva que todo credo dogmático
impõe ao caráter cambiante do real.
3. Capítulo Terceiro – A afirmação.
3.1 Um pensamento vertente
No capítulo anterior, buscamos mostrar de que forma Riobaldo, em sua busca pela
“lisa e real verdade” (p. 260), lança mão de artifícios lógico-metafísicos. Artifícios que
agem sobre a experiência vivida de forma a torná-la assimilável, revertendo seus aspectos
duvidosos e destrutivos em matéria compreensível e mascarando a experiência da falta de
fundamento com a promessa de transcendência a ser realizada no plano extra-mundano.
Procuramos ainda desvelar, segundo o método genealógico, no contexto do romance, o
valor da origem de tais artifícios, que nascem invariavelmente de um estado de penúria e
esgotamento das forças criadoras. Tal estado pode ser reconhecido, dada a situação
intermediária em que o narrador se encontra no entremeio entre a vida aventuresca da
jagunçagem e a perspectiva dos “prazos” (p. 11) impostos pela finitude como
necessidade de um eixo retilíneo de sentido que ordene o périplo sinuoso da errância.
Carente do ímpeto que o conduzia em direção à vida movimentada, a narração do velho
Riobaldo nasce da necessidade de paz e consolo: “E as idéias instruídas do senhor me
fornecem paz” (p. 33); “Compadre meu Quelemém me conselhos, de tranqüilidade” (p.
366). Como incapacidade de assimilar o devir em toda sua inextricável complexidade,
como necessidade ficcional de conferir à vida finalidade e significado, a confiança na razão
e a incondicional em um sentido redentor barram, em princípio, a possibilidade de um
pensamento trágico.
A tal postura de Riobaldo corresponde uma grande parcela da história do
pensamento que, justamente porque se recusa a reconhecer o real, da forma como este se
apresenta, isto é, ininteligível e cruel
43
, engendra ficções destinadas a atenuar o caráter
doloroso da realidade. Clément Rosset, na trilha aberta por Nietzsche, percebe que
se interrogamos a história da filosofia, percebemos que a maior parte das
filosofias puderam alcançar sua meta, isto é, a proposição de uma teoria
geral do real, mediante a estranha condição de dissolver o objeto mesmo de sua
teoria, de reenviá-lo a este quase nada (...) próprio às coisas sensíveis quer
dizer, às coisas reais – consideradas como existentes apenas pela metade e com
muito custo. Como se a realidade (...) pudesse (...) ser apreendida em seu
conjunto pelo filósofo se contestada em seu princípio mesmo (...) O
pensamento de uma insuficiência do real – a idéia de que a realidade só poderia
ser filosoficamente levada em conta mediante a um princípio exterior à
realidade mesma (Idéia, Espírito, Alma do mundo etc.) destinado a fundá-la,
explicá-la e mesmo justificá-la constitui um tema fundamental da filosofia
ocidental (ROSSET, 1989, p. 14).
43
Utilizamos aqui a noção de crueldade do real na acepção de Clément Rosset: “o caráter único, e
consequentemente irremediável e inapelável da realidade – caráter que impossibilita ao mesmo tempo
conservá-la à distância e atenuar seu rigor pelo recurso a qualquer instância que fosse exterior a ela
(ROSSET, 1989, p. 17).
A idéia de Rosset, explicitada em seu O princípio de crueldade, é que a história da
filosofia ergueu-se, em grande parte, sobre o solo de uma desavença com o real. A filosofia
promove uma depreciação da realidade imediata, dado seu caráter fugaz, cruel e
inapreensível na terminologia de Rosset: insuficiente. A partir daí, tenta-se, de todo
modo, encontrar, fora do real, um princípio capaz de fundamentá-lo. Para Rosset, tal olhar
depreciativo “é uma expressão particularmente eloqüente do ‘princípio de realidade
insuficiente’ que constitui o credo comum a toda denegação filosófica do real” (ROSSET,
1989, p. 15). A realidade, sendo ininteligível, é encarada como insuficiente, como
destituída de valor. O pensador sustenta que o principal objetivo das empresas filosóficas
“não é revelar a verdade ao homem, mas sim fazê-lo esquecê-la: fazer ‘passar’ sua
crueldade, como um medicamento faz provisoriamente cessar uma dor” (ROSSET, 1989,
p. 24). E ainda: “o que a moral censura não é, de modo algum, o imoral, o injusto, o
escandaloso, mas sim o real única e verdadeira fonte de todo escândalo” (ROSSET,
1989, p. 25). No Ocidente, o platonismo surge como matriz dessa modalidade de
pensamento que propondo-se a compreender e interpretar o que existe, “só tem olhos e
atenção para o que não existe” (ROSSET, 1989, p. 16). Ao postular o real como mero
duplo imperfeito de um mundo de essências eternas e imutáveis, Platão acaba por
representar constantemente como desprezível e indigno do homem o que
constitui ao contrário, sua tarefa mais alta e mais difícil: (...) acomodar-se ao
real, encontrar sua satisfação e seu destino no mundo sensível e perecível (...)
A última palavra da filosofia de Platão (...) parece-me, assim, resumir-se a este
simples e aberrante adágio: se a verdade é cruel, é que ela é falsa e deve, por
conseguinte, ser ao mesmo tempo refutada pelos sábios e dissimulada ao povo
(ROSSET, 1989, p. 25).
Em contrapartida, a possibilidade do pensamento trágico envolve uma adesão amorosa ao
real, diametralmente oposta àquela depreciação do real descrita por Rosset como freqüente
na história da filosofia. Rosset elabora, com vistas a uma outra espécie de prática
filosófica, o “princípio da realidade suficiente” isto é, pensar no real e a partir do real,
tomando a crueldade, a ininteligibilidade e a provisoriedade não como signos de
imoralidade, injustiça e escassez ontológica, mas como ponto de partida para um
pensamento que, apesar das dificuldades implicadas, toma partido da realidade e abdica
do “nada” das ficções do ser. Na contramão do dualismo ontológico platônico, que nega o
devir em nome da ascese ao “conhecimento verdadeiro”, o pensar trágico prescinde da
necessidade de fundamento e constrói a si mesmo a partir de uma afirmação do devir e da
precariedade de todo conhecimento. Como aponta Marcel Conche, “o mundo da sabedoria
trágica é aquele em que não estamos seguros de nada, em que não podemos contar com
coisa alguma, em que, de constante, existe a instabilidade, numa palavra, o mundo de
Heráclito (CONCHE, 2000, p. 219-220).
Como foi exposto no tópico deste estudo dedicado a Nietzsche, em O nascimento
da tragédia, Dioniso é concebido como representação da unidade primordial subjacente à
superfície do mundo apolíneo. Trata-se de uma concepção evidentemente metafísica, com
acentos schopenhauerianos e cristãos. No último período de sua produção filosófica, a
partir de 1885, Nietzsche concebe o dionisíaco como capacidade de afirmar integralmente
a existência ou, ainda, capacidade de conceber afirmativamente a existência como perpétua
criação e destruição. Assim, é fundamental atentar para a especificidade da concepção
nietzscheana madura do trágico. Se o par Apolo-Dioniso, pensado pelo Nietzsche jovem,
deve muito à metafísica schopenhauriana da vontade, o pensamento maduro de Nietzsche,
distanciado de Schopenhauer, rejeita o dualismo ontológico: o “segundo Dioniso” é
representante de uma afirmação radical da existência. Afirmação que abdica de qualquer
“além” para fazer valer seu emblema no terreno da vida enquanto tal:
O Dionísio da Origem da Tragédia ainda “resolvia” a dor; a alegria que ele
experimentava ainda era uma alegria de resolvê-la e também de levá-la à
unidade primitiva. Mas agora Dionísio captou precisamente o sentido e o valor
de suas próprias metamorfoses: ele é o deus para quem a vida não é para ser
justificada, para quem a vida é essencialmente justa. Mais do que isso, é ela
que se encarrega de justificar, “ela afirma até o mais áspero sofrimento”
(DELEUZE, 1976, p. 13).
A alegria de “resolver” a dor é substituída pela alegria de afirmar a dor como parte
inextirpável do existir. Não reconciliação. afirmação. Neste terceiro capítulo,
intitulado justamente “A afirmação”, busca-se investigar a possível presença de tal ímpeto
afirmativo, próprio do “segundo Dioniso”, no discurso de Riobaldo. A nosso ver, é
possível reconhecer, no pensamento do ex-jagunço, um equilíbrio precário entre duas
maneiras de lidar com a realidade vivida, dois modos diversos de encará-la: um modo
negativo e um modo afirmativo. O primeiro, exposto no tópico anterior, consiste em tentar
esquivar-se da dor que permeia o existir, cerrando os olhos frente ao inesclarecível,
fugindo daquilo que é confuso e problemático, refugiando-se nos terrenos da razão e da
metafísica: “Mas eu fui sempre um fugidor. Ao que fugi até da precisão de fuga” (p. 142).
Nietzsche identifica, dentre os impulsos daquilo a que “o povo chama de espírito”, um
impulso que é esquivo a certo tipo de conhecimento:
uma brusca decisão de não saber, de encerrar-se voluntariamente, um
fechamento das janelas, um dizer Não interiormente a essa ou aquela coisa, um
não-deixar que algo se aproxime, um estado defensivo ante muita coisa
conhecível, uma satisfação com o obscuro, com o horizonte que se fecha, um
acolhimento e aprovação da insciência (NIETZSCHE, 1992b, p. 137).
No discurso do ex-jagunço, é fácil identificar essa natureza esquiva, esse “encerrar-
se em horizontes otimistas” (NIETZSCHE, 2001, p. 273), esse não-querer-ver o que a vida
apresenta, essa “denegação do real”, como diz Rosset. No entanto, o refúgio da certeza
revela-se um falso refúgio. A tentativa de esquadrinhar o passado e extrair da narrativa o
Sentido esbarra na natureza fugidia da matéria narrada. A linguagem é outra armadilha: ora
excessiva, ora vazia, a palavra esvoaça ao redor de seu objeto e, ao invés de determinar-lhe
a identidade, multiplica-lhe a diferença. A narração age como reveladora de uma
multiplicidade que, em princípio, o ex-jagunço recusa-se a ver. O projeto de busca de uma
razão fundante e ordenadora floresce em maquinaria de verter e reverter sentidos, acumular
paradoxos e minar tentativas de fixidez. Para João Adolfo Hansen,
GS: V é uma máquina heteróclita de produção de efeitos de essências e
reminiscências: como máquina, suas partes diferentes encaixes, polias,
engrenagens, motor são artificiosíssimas em seu maneirismo, i.é, funcionam
bem, e isso significa: não funcionam, fazem com que outros funcionem,
transmitem, engatam outras experimentações imaginárias (HANSEN, 2000, p.
22).
É curioso perceber que a narração do ex-jagunço, como se dotada de autonomia e
caráter, volta-se contra ele próprio: contra sua vontade de verdade, estabelece um campo
onde o contraditório prevalece; contra seu desejo de ordenamento, pluraliza os planos
temporais e mistura as lembranças de diferentes datas; contra seu desejo de paz e
estabilidade, desnuda a luta contínua, a massa heraclítica desvela a vida como constante
rivalidade, combate e superação; contra sua aspiração à razão harmônica, traz à tona a
irracionalidade dissonante. Finazzi-Agrò sinaliza:
É natural então que, dentro de uma realidade plural e indecifrável, um texto
fundado sobre esse desejo de clareza, sobre essa vontade de enxergar a
distinção entre as coisas simples, seja quase compelido, pelo contrário, a se
envolver sempre mais nas dobras do inexplicável (FINAZZI-AGRÒ, 2001, p.
46).
Como percebeu Willi Bolle, o “aspecto teseico e dedálico estão imbricados em
Grande Sertão: veredas(BOLLE, 2004, p. 82). Isto é: aquele que enfrenta o labirinto
(Teseu) coincide com aquele que é responsável pela sua construção (Dédalo). Em outras
palavras: ao tentar desvencilhar-se da teia labiríntica de suas andanças jagunças e decifrar
o sentido daquilo que então se passou, Riobaldo acaba por se enredar, mais profundamente,
no labirinto de sua própria rememoração. A narrativa, vista desse ângulo, revela seu caráter
autofágico significante e significado são feitos e desfeitos, construídos e destruídos,
armados e desarmados. A lógica interna do romance parece obedecer a este princípio
criativo/destrutivo através do qual aquilo que se afirma num ponto é logo negado em outro.
João Adolfo Hansen indica:
Quando fala, Riobaldo produz, no ato de fala, uma unidade instantânea e
precária das versões do que afirma, unidade imediatamente pulverizada por
outra designação retificadora, ampliação do dito, diminuição, atenuação e,
principalmente, negação ou denegação, de maneira que o processo de produção
e de distribuição de seu discurso vai-se dando como espécie de suspensão
valorativa (HANSEN, 2000, p. 87).
Assim, a “coisa inteira” (p. 366), pela qual Riobaldo “peleja”, revela-se coisa
estilhaçada ou fluida, “matéria vertente” (p. 79). O “caminho certo” rebenta no
emaranhado confuso de caminhos – “Esta vida está cheia de ocultos caminhos” (p. 119). A
demarcação dos pastos cede passo à amplitude de um lugar indemarcável “O sertão é
sem lugar” (p. 268). A luz da “lâmpada de Deus” esbarra na opacidade do “sombrio das
coisas” (p. 33). A “receita” do “verdadeiro viver” permanece “escondida e vivível mas não
achável” (p. 366). A tentativa de “enfiar idéia, achar o rumozinho forte das coisas” (p. 135)
é frustrada pela mobilidade intrínseca da vida rememorada, pela “astúcia que têm certas
coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares” (p. 142). De fato, o modo
de ser da narração parece contradizer a necessidade que lhe origem a nosso ver,
reside a ambigüidade fundamental do romance. A busca de um logos capaz de dizer o ser
depara-se com a volatilidade dionisíaca do vir-a-ser. O sertão locus ilocável da vida e do
mundo – impetuoso e arisco, escapa dos limites do pensamento e da palavra:
Rebulir com o sertão, como dono? Mas o sertão era para, aos poucos e poucos,
se ir obedecendo a ele; não era para à força se compor. Todos que malmontam
no sertão alcançam de reger em rédea por uns trechos; que sorrateiro o
sertão vai virando tigre debaixo da sela (p. 284).
Faz-se necessário, portanto, investigar, na matéria narrada, um outro olhar em
direção à vida. Olhar tal que, a despeito da ânsia de Riobaldo por estabelecer limites
precisos entre as coisas, sensibiliza-se para perceber a convencionalidade ou mesmo a
ausência das demarcações. Este consiste aceitar o desafio que o real impõe e que passa
necessariamente pela experiência da dor. Modo justamente trágico, que consiste em não
desviar o olhar quando a vida apresenta-se ambígua, áspera, perigosa, humanamente
indelimitável. Riobaldo, após rememorar o horror infernal da galeria de “doentes
condenados”, que assomam em busca de cura, no comentado causo da moça milagreira
do Barreiro-Novo, constata: “Vendo assaz, se espantava da seriedade do mundo para caber
o que não se quer” (p. 48). No exercício desse “ver assaz”, ou seja, ver muito, ver em
profundidade, não desviando o olhar, o narrador depara-se com “a seriedade do mundo”,
ou seja, a face propriamente monstruosa da existência, capaz de abrigar tanto a beleza e a
harmonia, quanto “aquilo que não se quer”. Demanda trágica por uma vontade aguda de
conhecimento que não se esquiva frente ao monstruoso mas, em ímpeto perquiridor,
interroga continuamente, busca continuamente, pesquisa até no fundo de todos os matos”
(p. 15). Em Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche reflete sobre o artista trágico:
Que comunica de si o artista trágico? Não mostra ele justamente o estado sem
temor ante o que é temível e questionável? Esse estado mesmo é altamente
desejável (...) Ele o comunica, tem de comunicá-lo, desde que seja um artista
(...) A valentia e liberdade de sentimento ante um inimigo poderoso, ante uma
sublime adversidade, ante um problema que suscita horror é esse estado
vitorioso que o artista trágico escolhe, que ele glorifica. Diante da tragédia, o
que há de guerreiro em nossa alma festeja suas saturnais; aquele que está
habituado ao sofrimento, o homem heróico exalta a sua existência com a
tragédia – apenas a ele o artista trágico oferece o trago desta dulcíssima
crueldade (NIETZSCHE, 2006, p. 77-78).
Com efeito, o saber trágico que aflora na narração pertence a essa espécie de
estado vitorioso descrito por Nietzsche. Se a escolha da via metafísica e a confiança
incondicional no saber racional constituem sintomas de uma derrota das forças do
indivíduo frente àquilo que a existência apresenta como estranho ou como doloroso, o
caminho do pensar trágico demanda uma certa valentia do espírito em face do
sofrimento, não se valora depreciativamente a vida, não se barganha a vida em troca do
ideal do Ser. Na disposição trágica, a vida é enaltecida justamente porque é vir-a-ser,
contradição e transitoriedade. Em Riobaldo, tal ímpeto “guerreiro” remete à vontade lúcida
e impetuosa que não recua frente ao “temível” e ao “questionável”, mas faz desse
“problema que suscita horror” a própria matéria-prima do narrado. Uma tal forma de
pensar não tenta edulcorar, sublimar ou suprimir o aspecto doloroso da existência, mas
reconhece na dor e na superação o modo de ser de tudo o que vive. Romance da falta,
romance do esclarecimento, romance da dúvida romance da busca apaixonada pelo
conhecimento. Volnei dos Santos ao pensar uma aproximação entre Riobaldo e o espírito
livre de Nietzsche, esboça um retrato deste último:
sua contemplação sem as consolações metafísicas e sem a culpabilização da
existência seria a de um andarilho apaixonado pelo conhecimento: seja pelos
labirintos da alma humana, seja pelos caminhos tortuosos que o conhecimento
estabelece em relação ao mundo da vida. Deste modo, em sua errância não
busca mais portos seguros em mundos por detrás, mas procura, isto sim, se
acercar das coisas mais próximas. Busca, sem consolações religiosas, trilhar o
caminho dos perigos próprios para aquele que se arrisca na aventura de um
mundo apenas demasiado humano (SANTOS, 2007, p. 2).
A nosso ver, tal caracterização aponta nitidamente para o que até aqui nhamos
chamando de saber trágico. Como percebe Santos, dada a falência das consolações
metafísicas, o conhecimento assume o caráter de errância, que é necessariamente tortuosa e
que pressupõe necessariamente o perigo não havendo verdade alguma aceita de
antemão, o pendor ao conhecimento requer disposição aventureira para o risco e para a
surpresa. “Deveras se que o viver da gente não é tão cerzidinho assim?(p. 86). O
próprio Cerzidor (p. 126) um dos codinomes do narrador depara-se com a constatação
de que na cerzidura
44
da vida lapsos, vazios, espaços de incerteza que convocam à
exploração. Essa cerzidura falha, tessitura que se abre para o campo do incognoscível,
aponta para a própria natureza enigmática do texto “do latim textum-i, entrelaçamento,
tecido” (CUNHA, 1987, p. 768) – que, em seus volteios, seu ir-e-vir em busca da “lâmpada
de Deus”, depara-se, paradoxalmente, com a opacidade do “sombrio das coisas” (p. 33) e,
interrompendo o fluxo da diegese, abre espaço para grandes pausas reflexivas, vácuos
textuais onde o sentido escapa. O textum rosiano, apresenta-se, assim, salpicado de
costuras visíveis ou rasgos impossíveis de cerzir. Nesse jogo lexical, o incognoscível
identifica-se, malgrado a estranheza do neologismo, com o incerzível aquilo que, não
44
Cerzir: [Do lat. sarcire, 'remendar'.] 1.Coser (peças de um tecido), de modo que não se notem, ou mal se
notem, as costuras (FERREIRA, 1999, p. 448).
possuindo “sustância narrável” (p. 106), não é passível de ser expresso senão pela sua
própria ausência, tutaméia
45
ou nonada de sentido, negatividade que encontra porto no
terreno do poético. Com Octavio Paz, compreendemos que a poesia é capaz de dizer o
indizível:
Há, enfim, imagens que realizam o que parece ser uma impossibilidade tanto
lógica quanto lingüística: casamento dos contrários. Em todas elas apenas
perceptível ou inteiramente realizado observa-se o mesmo processo: a
pluralidade do real manifesta-se como unidade última, sem que cada elemento
perca sua singularidade especial. As plumas são pedras, sem deixarem de ser
plumas. A linguagem, voltada sobre si mesma, diz o que por natureza parecia
lhe escapar. O dizer poético diz o indizível (PAZ, 1982, p. 136).
Para Guimarães Rosa, da mesma forma que para Octavio Paz, a poesia, ao
alargar horizontes lingüísticos, desautomatizando e vivificando os sentidos enrijecidos
pela tradição, é o que possibilita, em conseqüência, o descerramento de modalidades de
pensamento até então insuspeitas. O trabalho com a linguagem é, ao mesmo tempo,
intervenção no pensamento. No “Diálogo com Günter Lorenz”, Rosa cita Goethe:
“Poesie ist die Sprache des Unaussprechlichen”, isto é, “Poesia é a linguagem do
indizível” (LORENZ, 1973, p. 348). Em Grande sertão: veredas, o projeto audacioso
do narrador consiste justamente em dizer o indizível, contemplar aquilo que não pode
ser contemplado, pensar aquilo que não pode ser pensado, responder àquilo que, por
natureza, não pode ser respondido: “O diabo existe e não existe? Dou o dito.” (p. 11).
Narrativamente, o projeto configura-se como tentativa de contar a “matéria vertente”:
Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma
vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender
do medo e da coragem, e da que empurra a gente para fazer tantos atos, dar
corpo ao suceder (p. 78-79).
Vista sob esse ângulo, a perquirição riobaldiana articula-se como tentativa de
decifração daquilo que move o ser humano em direção à ação. O que constitui objeto
efetivo da narração rememorativa do ex-jagunço é uma realidade vertente que não se deixa
apreender. Destarte, o procedimento narrativo configura-se como tessitura de uma malha
45
O significado da palavra “tutaméia”, que dá título à última coletânea de contos publicada por Rosa, é
esclarecido, pelo próprio autor, no glossário que acompanha quarto prefácio da obra: “tutaméia: nonada,
baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta, quiquiriqui, tuta-e-meia, mexinflório, chorumela, nica, , quase-nada;
mea omnia” (ROSA, 1985, p. 184).
densa de linguagem a fim de reunir os cacos do passado no intuito de artisticamente
reorganizá-los. O texto é uma rede discursiva à procura do sentido escorregadio que nunca
se desvela por completo. Narração que se articula, paradoxal e desafiadoramente, a
despeito à busca obsessiva do narrador pelo sentido. Sob essa perspectiva, entende-se o
exercício de narrar (ou pensar) como perene atravessar que, se não chega a porto nenhum,
para usarmos uma metáfora bem ao gosto de Rosa é ao menos capaz de contemplar a
multiplicidade da corrente:
Agora, que mais idoso me vejo, e quanto mais remoto aquilo reside, a
lembrança demuda de valor se transforma, se compõe, em uma espécie de
decorrido formoso. Consegui o pensar direito: penso como um rio tanto anda:
que as árvores das beiradas mal nem vejo... Quem me entende? (p. 260).
Para Willi Bolle, “a metáfora fluvial impregna a composição de Grande Sertão:
Veredas na sua essência(BOLLE, 2004, p. 77). A imagem do pensamento como corrente
fluvial, matéria fluídica que mal conhece a fixidez das “árvores das beiradas”, pensar que
parece mimetizar a própria vida, que (in)fundado na natureza fugidia da vida, constitui,
segundo a perspectiva aqui adotada, a plasmação poética do pensamento trágico.
Pensamento que abdica da segurança estável de possíveis margens e define seu modo de
ser como movimento e fluxo. Daí que, se a vida é matéria vertente, o pensamento que se
propõe a pensá-la também deve sê-lo um pensamento vertente, um pensar fluvial,
movível. Pensamento que se configura não como aceitação incondicional de um
fundamento delimitador, mas que, à revelia dos limites impostos, atua como escoadouro
que, em seu fluxo, mescla continuamente as noções e categorias tradicionais. Em
Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche critica a tradição filosófica acusando-a de “egipcismo”,
isto é, certo modo de filosofar que rejeita a diferença engendrada no fluxo do vir-a-ser e se
compraz na elaboração de conceitos supostamente atemporais:
Vocês me perguntam o que é idiossincrasia nos filósofos?... Por exemplo, sua
falta de sentido histórico, seu ódio à noção mesma do vir-a-ser, seu egipcismo.
Eles acreditam fazer uma honra a uma coisa quando a des-historicizam, sub
specie aeterni [sob a perspectiva da eternidade] quando fazem dela uma
múmia. Tudo que os filósofos manejaram, por milênios, foram conceitos-
múmias; nada realmente vivo saiu de suas mãos. Eles matam, eles empalham
quando adoram, esses idólatras de conceitos (...) A morte, a mudança, a idade,
assim como a procriação e o crescimento, são para eles objeções até mesmo
refutações. O que é não se torna; o que se torna não é... (NIETZSCHE, 2006,
p. 25).
Um pensamento que, ao perceber-se impotente contra o vórtice da temporalidade,
volta-se contra ela e exprime sua aversão ao tempo e ao devir vingando-se com o
engendramento do que Nietzsche, não sem uma dose de sarcasmo, denomina de
“conceitos-múmias”, construtos eternos e estáveis, pretensamente imunes ao tempo. Por
outro lado, o mundo sensível, como terreno da temporalidade e da mudança, é rebaixado
ao posto do não-ser: “o que se torna não é...”. Rosa Maria Dias propõe:
Impotente por não poder deter o fluxo do tempo, a vontade se vinga da
temporalidade. O instinto de vingança instaura o mundo do devir como
ilusório, mentiroso, contraditório: ele é tal como não devia ser. A negação do
mundo da temporalidade gera os ideais supratemporais e rebaixa o temporal à
categoria do que ainda não é (DIAS, 1994, p. 40).
Como afirmação do devir, o pensamento trágico opõe-se ao instinto de vingança
que gera as ficções supratemporais. Se a vigência das filosofias que operam com a fixidez
des-historicizante de conceitos mumificados deve sua origem a um ódio
46
ao devir, na
disposição trágica do conhecimento, o devir é afirmado enquanto tal. A mudança deixa de
ser objeção ou mesmo refutação contra o mundo e converte-se em possibilidade de
afirmação. Assim, se os “idólatras de conceitos” objetam, contra o mundo, que aquilo que
está em perene mudança não pode ser objeto de conhecimento, o trágico, liberto da
necessidade de fundamento, reivindica a mudança e propõe-se a agir nesse terreno fluídico.
Na rede disjuntiva de recados do romance, o pensamento trágico consubstancia-se
literariamente através da imagem, sempre reiterada, do rio:
Eu queria a muita movimentação, horas novas. Como os rios não dormem. O
rio não quer ir a nenhuma parte, ele quer é chegar a ser mais grosso, mais
fundo. O Urucúia é um rio, o rio das montanhas. Rebebe o encharcar dos
brejos, verde a verde, veredas, marimbús, a sombra separada dos buritizais, ele.
Recolhe e semeia areias. Fui cativo, para ser solto? (...) O Urucúia, o chapadão
derredor dele. Estas árvores: essas árvores. (...) Mesmo na hora em que eu for
morrer, eu sei que o Urucúia está sempre, ele corre (p. 329).
46
No aforismo 15 de O anticristo, Nietzsche reflete sobre o íntimo parentesco entre as ficções metafísicas e o
ódio ao real: “Somente depois de ter inventado o conceito de “natureza” em oposição a “Deus”, “natural”
teve de ser igual a “reprovável” todo esse mundo fictício tem raízes no ódio ao natural (- a realidade! -), é a
expressão de um profundo mal-estar com o real...” (NIETZSCHE, 2007, p. 21).
A passagem acima é parte de uma pausa reflexiva que o ex-jagunço realiza logo
após a rememoração do pacto. A disposição ativa e desafiadora que Riobaldo adquire após
a cena nas Veredas-mortas consolida-se em ímpeto movente, desejo de “movimentação,
horas novas”. Sugestivamente, a vontade afirmativa do recém-pactário é imediatamente
associada ao rio, que não busca um estado final, “quer é chegar a ser mais grosso, mais
fundo”. O rio, elemento natural que materializa esteticamente o vir-a-ser, é o mediador
entre o estado de carência e o estado (transitório) de plenitude atingido através do pacto:
“Fui cativo, para ser solto?”. A busca pelo fundamento, nesse contexto, parece ser
substituída por um desejo de aumento e transbordamento de potência. A partir de tais
pressupostos, é possível entender sob outro olhar a narração como um continuum fluvial
que nunca “esbarra” e que, significativamente, consuma-se (sem se consumar) com o signo
do infinito. É válido, nesse ponto, mencionar uma idéia alternativa referente à etimologia
do nome do narrador, sugerida por Willi Bolle:
Diferentemente das exegeses convencionais, que entendem o nome de Rio-
baldo como o de um homem “frustrado” ou, por compensação, de alguém que
atingiu a “plenitude”, a minha leitura se faz por uma via etimológica diferente.
A partir do verbo alemão baldowern (explorar) podemos remontar ao
substantivo hebraico ba´al-davar, que designa “o dono das palavras e das
coisas”. Na Idade Média, “um eufemismo para o diabo”, a palavra migrou
através do ídiche baldower (...) para o alemão, mais especificamente para a
linguagem dos marginais, sendo o Baldowerer “aquele que sonda o lugar e as
oportunidades para um crime”. No século XIX, o verbo baldowern passou para
a linguagem coloquial no sentido de “explorar, auscultar, investigar” (BOLLE,
2004, p. 8).
Bolle identifica em -baldo tanto a marca demoníaca quanto o pendor investigativo,
explorador, matizado com certa carga de ilicitude criminosa. Se conjugarmos essa acepção
ao outro significante que compõe o nome Rio dois são os resultados: pode-se entender
etimologicamente Riobaldo como “explorador de um rio”, como procede Bolle, ou,
inversamente, como “rio que investiga”. Esta última interpretação, embora mais estranha,
parece-nos tanto mais significativa dado o fato de o próprio narrador imprimir ao seu
pensar, como vimos, a marca fluvial. A nosso ver, a imagem do “rio investigador” é
particularmente sugestiva, que aponta para o modo de ser fluvial de um pensamento que
se propõe a auscultar o vivido. A marca do pensamento trágico é aqui compreendida como
qualidade vertente e demoníaca “O diabo é sem parar” (p. 235). O rio aparece, pois,
como metáfora de pensamento que “não esbarra” na fixidade trea do fundamento ou do
dogma, mas desliza sobre as pedras do leito, não se detendo aqui ou ali, mas fluindo
sempre. Um pensamento em devir, que surge como resultado de um aprendizado:
“Consegui o pensar direito: penso como um rio tanto anda (...) Quem me entende?(p.
260). Tal pensamento, que Riobaldo considera positivamente como “o pensar direito”, tem
a propriedade de não se cristalizar em fórmulas definitivas, ousando abrir-se para a
diferença: “um rio é sempre sem antiguidade” (p. 113).
Nesse sentido, um pensamento sempre novo um pensar moldável, experimental,
que toma a mudança e não a permanência como cifra da possível inteligibilidade das coisas
e avança sobre o terreno perigoso do que ainda não se sabe: “Vou lhe falar. Lhe falo do
sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. umas
raríssimas pessoas e essas poucas veredas, veredazinhas.” (p. 79). Nessa passagem
surge, bem delineada, o caráter opositivo da expressão que título ao romance:
justaposição da amplidão indelimitável do grande sertão com a pequenez das veredas,
reiterada pelo diminutivo “veredazinhas”. É curioso perceber que a reflexão sobre o
conhecimento irrompe atrelada à conformação da paisagem geográfica, configurando
aquilo que, em outro sentido, Bolle denomina de “sertão como forma de pensamento
(BOLLE, 1998, p. 259). A nosso ver, é possível interpretar essa passagem na qual
aparecem, revestidos de significado, os dois sintagmas presentes no título do romance, sob
um viés epistemológico, ou seja, como uma reflexão a respeito do ato de conhecer.
Na oposição entre Grande sertão e veredas, o primeiro sintagma pode ser tomado
como representação do campo do incognoscível ou daquilo que, estando oculto, convida ao
conhecimento e à investigação: “Do que não sei”. O Grande sertão é a seara maiúscula na
qual o trabalho especulativo pode se desenvolver. O segundo sintagma, por sua vez, indica
o modo de ser de tal especulação, a forma adotada por esse pensamento. Forma esta que
não é necessariamente metódica, que associada aos caprichos e volteios das veredas,
tomadas essas na acepção, propriamente mineira e rosiana, de curso água cercado de
buritizais. A relação entre o pensamento e a corrente fluvial é reiterada, desta vez matizada
pelo modo de ser tortuoso e restrito da vereda em relação à totalidade territorial do sertão.
Observe-se ainda que, no título, a palavra “vereda” aparece flexionada no plural, como a
sinalizar para a multiplicidade de caminhos divergentes que se abrem ao espírito apto ao
conhecimento: “Mas os caminhos é que estão se jazendo em tudo no chão, sempre uns
contra os outros; retorce que os falsíssimos do demo se reproduzem” (p. 281). A imagem
recorrente do labirinto presta-se à compreensão do estatuto necessariamente tortuoso que
com que o ato do conhecimento comparece no romance. Os caminhos que “estão se
jazendo em tudo no chão” e que labirinticamente articulam-se “uns contra os outros
respondem à potência de misturabilidade dos “falsíssimos do demo”, ou seja, à
impossibilidade de aceder ao ser, ao fundamento, ao sentido último de onde possam
derivar normas e valores capazes de fazer convergir a pluralidade das rotas da errância em
um “caminho certo, estreito”. Volnei dos Santos observa:
Seja como for, tanto com o espírito livre percebendo seu caminho na medida
em que ara e revira as terras da metafísica, quanto com Riobaldo rememorando
e ensaiando compreender a travessia anteriormente feita pelo sertão, tem-se
presente uma sorte de predestinação ao labirinto, posto saber, mesmo idoso,
que nunca se sai, apenas se caminha (SANTOS, 2007, p. 3).
No pensamento nietzscheano, o ocaso da idéia de fundamento transcendente,
fenômeno característico da modernidade, encontra-se expresso sob a célebre rmula da
“morte de Deus
47
e remete à perempção dos valores absolutos que até então guiavam a
conduta humana. Trata-se de uma constatação, efetivada num contexto histórico
específico, do decesso dos valores transcendentes e do declínio da autoridade eclesiástica,
substituída pela autoridade humana fundada na consciência e na razão. Como observa
Roberto Machado, a morte de Deus “é a condição, o pressuposto histórico que motiva as
reflexões afirmativas e críticas de toda a filosofia de Nietzsche” (MACHADO, 1994, p. 22-
3). De fato, a perda do fundamento divino, extra-mundano é condição sine qua non para a
elaboração de uma filosofia afirmativa e para o despontar de uma nova concepção do
conhecimento. A partir de uma perspectiva trágica, é possível dizer que a morte dos
valores (até então considerados) superiores, valores em nome dos quais a vida era
depreciada, conduza a uma postura afirmativa em relação à existência. Superar o niilismo
negativo, isto é, a negação da vida em nome de uma vida ideal, consiste em substituir tal
negação por um dionisíaco Sim a tudo o que antes foi negado.
Em Grande sertão: veredas, é possível vislumbrar, através de certos índices que a
narrativa apresenta, a problemática da perda do fundamento transcendente. Como vimos no
capítulo anterior, Riobaldo recusa-se a sacrificar sua liberdade interrogante a um credo
incondicional, preferindo afirmar sua diferença e trilhar os caminhos muito perigosos” do
conhecimento: “Sempre fui assim, descabido, desamarrado” (p. 115). O pensamento
alforriado, “desamarrado” em relação ao dogmatismo, cristaliza-se na substituição da
incondicionalidade da fé pela persistência da dúvida. Todavia, se essa problemática
47
Cf. A gaia ciência, aforismo 125 (NIETZSCHE, 2001, p. 147-148).
emerge, em princípio, como negação, como recusa, esta mesma recusa é caminho para a
afirmação. A partir do momento em que começa o trabalho da desconfiança, abre-se
espaço para o trágico, entendido como postura afirmativa diante da existência. Para
Nietzsche, a morte de Deus pode ser a semente de uma nova liberdade:
O maior acontecimento recente o fato de que “Deus está morto”, de que
crença no Deus cristão perdeu o crédito começa a lançar suas primeiras
sombras sobre a Europa. Ao menos para aqueles poucos cujo olhar, cuja
suspeita no olhar é forte e refinada o bastante para este espetáculo, algum sol
parece ter se posto, alguma velha e profunda confiança parece ter se
transformado em dúvida (...) Talvez soframos demais as primeiras
conseqüências desse evento, e estas, as suas conseqüências para nós, não são,
ao contrário do que talvez se esperasse, de modo algum tristes e sombrias, mas
sim algo difícil de descrever, uma nova espécie de luz, de felicidade, alívio,
contentamento, encorajamento, aurora... De fato, nós, filósofos e “espíritos
livres” ante a notícia de que “o velho Deus morreu” nos sentimos como
iluminados por uma nova aurora: nosso coração transborda de gratidão,
espanto, pressentimento, expectativa enfim o horizonte nos aparece
novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem
novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda a
ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente
aberto, e provavelmente nunca houve tanto “mar aberto” (NIETZSCHE, 2001,
p. 233-234).
A nosso ver, a abertura radical de perspectiva permitida pela degeneração do
fundamento, transfigurada esteticamente por Nietzsche na imagem marítima, corresponde,
no romance, à magnitude indelimitável do Grande sertão. Magnitude e indelimitação
reiteradas ao longo da narrativa em diferentes pontos da rede disjuntiva do texto. Logo no
início:
O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é
pelos campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas,
demais do Urucúia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui
não é dito sertão? Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos;
onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde
criminoso vive seu cristo-jesus arredado do arrocho de autoridade. (...) Esses
gerais são sem tamanho (p. 9).
À suposta delimitação do sertão sancionada pelo indefinido “uns”, Riobaldo
contrapõe a idéia de um lugar que, “se divulgando”, se expande indefinidamente: “O sertão
é sem lugar” (p. 268). Para Finazzi-Agrò, a idéia de sertão no romance pode ser
compreendida a partir do paradoxo de uma espacialidade atópica
48
que indica “a existência
de um lugar no próprio ato de o negar”. Para Finazzi-Agrò, “o sertão rosiano se localiza e
se define apenas na perda dos seus limites, na impossibilidade de qualquer localização, no
seu estar ‘em toda parte’” (FINAZZI-AGRÒ, 2001, p. 93). A carência de “fechos” capazes
de conter a vasteza do sertão permite a errança do “criminoso” num espaço intocado pelo
“arrocho de autoridade”. A impermeabilidade do sertão à autoridade incondicional pode
ser lida na chave nietzscheana da amplidão marítima desprovida dos entraves da lei
transcendente. O impedimento divino reverte em liberdade humana, possibilidade de
“zarpar ao encontro de todo perigo”: “O senhor aonde é o sertão? Beira dele, meio
dele?” (p. 451). A coerção da autoridade reverte em abertura que permite realizar a
perigosa travessia. Empreendimento que, segundo aponta Nietzsche, requer uma espécie de
“ousadia” do conhecimento que, a nosso ver, faz jus ao pathos especulativo e indagador de
Riobaldo, ao seu declarado gosto de “especular idéia” (p. 11) e à astuta lucidez que, à
revelia de sua necessidade de crença, não lhe permite contentar-se com dogmatismos:
“acho que sempre desgostei de criaturas que com pouco e fácil se contentam. Sou deste
jeito” (p. 115). Em outra passagem, no fim da narrativa, Riobaldo desdobra
poeticamente a imagem do sertão:
Sertão velho de idades. Porque serra pede serra e dessas, altas, é que o
senhor bem: como é que o sertão vem e volta. Não adianta se dar as costas.
Ele beira aqui, e vai beirar outros lugares, tão distantes. Rumor dele se escuta.
Sertão sendo do sol e os pássaros: urubú, gavião – que sempre voam, às
imensidões, por sobre...Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia
e se abaixa. Mas que as curvas dos campos estendem sempre para mais longe.
Ali envelhece vento. E os brabos bichos, do fundo dele (p. 410).
O trecho aduzido faz eco a uma outra passagem, citada no capítulo anterior:
“Serras que se vão saindo, para destapar outras serras. Tem de todas as coisas. Vivendo, se
aprende. Mas o que se aprende, mais, é a fazer outras maiores perguntas” (p. 312). A
seqüencialidade presente na construção “serra pede serraou “serra que destapa serra”
remete ao perene atravessar de um pensamento cuja força motriz reside no ímpeto
interrogativo que produz as “outras maiores perguntas”. De onde se deduz que: atrás da
“serra”, ou seja, do desafio que leva à interrogação e ao conhecimento, não repousa a
veracidade cristalina do sentido, mas sim outra(s) serra(s), isto é, outros problemas que,
48
Atopia: prefixo de negação A + -topia, do grego tópos, lugar.
por sua vez, conduzem à nova interrogação e assim por diante. O pensamento, como
havíamos observado, é compreendido como devir interrogante e fluídico que não se fixa
num determinado ponto, mas conserva os olhos sempre à frente, como sugere a supracitada
passagem da página 410: “Mas que as curvas dos campos estendem sempre para mais
longe”. Tal espacialidade movente é própria do sertão, que “vem e volta”, “se alteia e se
abaixa”, “beira aqui, e vai beirar outros lugares”. Em outra passagem, Riobaldo indica:
“Mas o sertão está movimentante todo-tempo – salvo que o senhor não vê” (p. 391).
O caráter móvel desse espaço parece remeter a uma antiga discussão filosófica. A
constatação heraclítica do ser do devir, do caráter permanentemente mutável das coisas,
põe em risco qualquer possibilidade de conhecimento efetivo. Afinal, como estabelecer um
saber seguro sobre algo cuja configuração é sempre outra, cuja forma é sempre mutante?
Como estabelecer algo definitivo sobre um sertão “movimentante” que não oferece “chão
nem razão” (p. 225), um mundo desgovernado e movente, onde irrompem, de quando em
quando, as potências hermogêneas da mistura? Rememorando a selvageria da guerra,
durante o episódio do cerco na fazenda dos Tucanos, Riobaldo indaga: “Então o mundo era
muita doideira e pouca razão?” (p. 262). Frente a esse estado de coisas, apela-se, em vão,
para a estabilidade fictícia da linguagem ou, à maneira platônica, para a fixidez de um
campo de essências eternas e imutáveis. Sendo a realidade ampla demais e ao mesmo
tempo escassa demais para o conhecimento – “demasiado ampla para ser percorrida,
demasiado escassa para ser compreendida” (ROSSET, 2002, p. 14) a filosofia platônica
institui uma fratura (chôrismos) entre o campo sensível do devir e o campo inteligível dos
fundamentos. Fabrica-se uma exterioridade estável capaz de fornecer um substrato sólido
para o saber. Aristóteles observa que Platão
estava convencido da verdade da doutrina heraclitiana, segundo a qual todas as
coisas sensíveis (...) estão sempre se dissipando, de modo que, para que o
conhecimento ou pensamento tenha um objeto, outras entidades permanentes
além das sensíveis têm de existir, pois o pode haver conhecimento de coisas
que estão em estado de fluxo (ARISTÓTELES, Apud GOTTLIEB, 2007, p.
72).
Por outro lado, a deterioração da idéia de um fundamento transcendente, verificada
por Nietzsche no âmbito da modernidade, permite a construção de um pensamento que,
sem o filtro do ideal, se acerque da mutabilidade daquilo que está próximo. Aceitar o
desafio que o devir impõe implica na renúncia às ficções de estabilidade e numa disposição
trágica do conhecimento para a errância no “mar aberto”: “Travessia perigosa, mas é a da
vida” (p. 410). Em Grande sertão: veredas, a narrativa apresenta uma série de imagens nas
quais a constatação da mutabilidade passa pela percepção do caráter reversível das coisas e
de suas qualidades. Para Finazzi-Agrò, a busca pelo estabelecimento de limites precisos
torna-se, para Riobaldo, “paixão desmedida por uma marginalidade essencial em que os
opostos se encontram e se misturam, em que as antinomias se confundem numa condição
neutra que está (...) ‘de viés’ sobre a evidência geométrica das divisões” (FINAZZI-
AGRÒ, 2001, p. 54). De fato, a reflexão do narrador deixa entrever, a todo instante, uma
inquietante atração pelo híbrido, ou seja, pelo caráter oscilante das antinomias. A
investigação de Riobaldo revela o caráter entrançado de um espaço onde a pureza de um
elemento é continuamente contaminada por outros elementos, aparentados ou opostos,
pondo em xeque as próprias noções de identidade e de oposição.
3.2 Um olhar trágico
A investidura trágica do romance configura-se literariamente em certas imagens,
estrategicamente espalhadas ao longo da narração que aludem a uma certa concepção do
mundo e da vida. O narrador, à maneira do filósofo, perscruta o existente: essa pesquisa, ao
invés de constância, constata inconstância; ao invés de lei ou fundamento ordenador,
depara-se com a desordem de um espaço em perene mutação. Finazzi-Agrò percebe que a
“peregrinação do jagunço no interior da sua região equivale ao errar do filósofo nos
territórios da sensação, e a batalha deste último contra o erro e a dúvida corresponde à
batalha travada por Riobaldo contra a indistinção do Hermógenes” (FINAZZI-AGRÒ,
2001, p. 89). O narrado apresenta indícios de uma desconstrução conceitual que deriva da
percepção da convencionalidade e da força de ilusão presentes em toda tentativa de
restringir o vir-a-ser ao cerco da palavra. Um desses indícios aparece logo no início do
romance: “O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água
se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água ou desfaz o barranco, sobra
cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso... (p. 11). Revestida por uma
enganadora “simplicidade” sertaneja, a agudeza desse pensamento reside em seu caráter
analítico do grego analysis, “ação de decompor um todo em suas partes componentes”
(CUNHA, 1997, p. 43). Ao decompor e separar os elementos que constituem a noção de
“cachoeira”, Riobaldo atenta para o mero caráter convencional que subjaz ao signo. A
noção esboroa-se, dando lugar a um vazio “sobra cachoeira alguma?” que desemboca
na interrogação acerca da própria natureza do real.
A firmeza do que antes parecia estabelecido sob o rótulo de “cachoeira” é minada
pela disjunção de seus componentes que, ilhados em si mesmos, perdem qualquer função
denotativa, restando-lhe uma mera função iterativa que, a rigor, não diz nada. O que antes
poderia ser tomado por uma substância – a Idéia de cachoeira – é submetido a um processo
que, ao estilhaçar a unidade material, estilhaça também a unidade ontológica, revelando,
por trás da forma, o puro devir que consome a água, desfaz o barranco e, por fim, entrava o
pensamento metafísico. Segundo Nietzsche, para que “surgisse o conceito de substância,
que é indispensável para a lógica, embora, no sentido mais rigoroso nada lhe corresponda
de real por muito tempo foi preciso que o que de mutável nas coisas não fosse visto
nem sentido” (NIETZSCHE, 2001, p. 139). O olhar de Riobaldo, em contrapartida,
sensibiliza-se para a mutabilidade e percebe a distorção que a idéia de substância introduz
na realidade. A crença na entidade substancial é invalidada por um pensar trágico que não
rechaça o vir-a-ser – a natureza fugidia e “vertente” do mundo mas faz dele a sua própria
condição. Nesse sentido, é significativo que o exemplo escolhido por Riobaldo seja
justamente o signo vertente da cachoeira. Para Rosenfield,
desde o início do texto, a especulação riobaldiana trata esses problemas
fundamentais [o ser, o sentido, a finalidade do mundo] à revelia dos métodos
consagrados. Se para a filosofia e a teologia, a partir de Platão, o não-ser é por
definição o incognoscível, Riobaldo aproxima-se do problema do fim e do
sentido, do ser e da razão pelo lado negativo (ROSENFIELD, 2006, p. 225).
De fato, à revelia de Platão, é pela face do não-ser que o narrador empreende sua
reflexão
49
. Ao tentar devassar o terreno obscuro do incognoscível, ao questionar-se sobre
as “razões do não-ser” (ROSA, 1980, p.142), o pensamento de Riobaldo ultrapassa a
barreira daquilo que, tradicionalmente, pode ser pensado e arrisca-se na seara dos
“avessos” (p. 11), isto é, daquilo que, não sendo visível, delimitável ou inteligível, rompe
os limites do pensamento racional e abre espaço para aquilo que denominamos pensamento
trágico. O questionamento da noção de substância, discretamente inserido no narrado,
multiplica-se no romance em uma série de outras imagens que apontam para o caráter
reversível e mutável do existente. Tais imagens cristalizam-se, de modo mais evidente, nas
49
Essa problemática foi minuciosamente tratada por Kathrin Rosenfield em seu Os descaminhos do demo
(1989), depois inserido no volume Desenveredando Rosa (2006). Neste estudo, parte-se dessa questão no
intuito de delinear um possível pensar trágico no romance.
reflexões do narrador a respeito do próprio espaço no qual os sucessos da narrativa se
desenrolam. Observa Willi Bolle:
Sinônimo de “mato longe da costa”, lugar ermo e escassamente povoado, o
sertão é, até as primeiras décadas do século XX, o oposto do litoral urbanizado
e “civilizado” (...) Constituindo assim o “interior”, a hinterlândia ou o miolo do
território brasileiro, entre a velha zona canavieira do Nordeste, as metrópoles
do Sudeste e a Floresta Amazônica, o sertão inspirou escritores como Euclides
da Cunha e Guimarães Rosa a construir um relato alegórico do país (BOLLE,
2004, p. 50).
Sertão é, geograficamente, o espaço remoto da distância e da lonjura, terreno do
desconhecido, daquilo que está longe da civilização, que não pode ser facilmente acessado:
espaço da diferença, espaço da alteridade. Se tomarmos o interlocutor do romance como o
senhor letrado, munido de lápis e caderneta, que transparece na fala de Riobaldo, o sertão
aparece como espacialidade exótica a ser palmilhada e pesquisada. O sertão pode ser
objeto de estudo antropológico, etnográfico. O próprio interlocutor do romance é
identificado à figura do cientista: “Assim como o senhor, que quer tirar é instantâneo das
coisas, aproximar a natureza” (p. 58). Em Rosa, a Poesia só se permite nascer depois de
uma exaustiva documentação da paisagem física e humana. São muito conhecidas as suas
cadernetas e o seu constante hábito de compendiar cada detalhe a respeito do ambiente. O
“escritor-pesquisador”
50
se permite artista depois dessa profunda imersão na
referencialidade daquilo que escolhe como motivo de sua arte. Em 1952, Rosa volta ao
sertão mineiro e imerge novamente naquela paisagem, exercendo papéis simultâneos de
biólogo, etnólogo e filólogo interessando em armazenar o máximo de informação
possível. Em 1956, vêm à luz Corpo de Baile e Grande sertão: veredas. Apesar de todo o
exaustivo trabalho de resgate e documentação científica, a Poesia está no auge. O material
bruto recolhido pelo escritor a dissecação do mundo agira como potencializadora de
seu ofício poético. Assim, as diretrizes da geografia são distorcidas pela invenção. Ainda
que Rosa esteja atento às peculiaridades humanas e naturais da região, é certo que o sertão
rosiano não é meramente um espaço mimético. Rosa molda a matéria-prima telúrica e lhe
50
Sobre a caracterização de Rosa como escritor-pesqusador, Marli Fantini esclarece: “Maria Neuma
Cavalcanti, coordenadora do Acervo João Guimarães Rosa no IEB-USP, registra que, mesmo sem visar à
realização de determinada obra, o escritor-diplomata esteve sempre mobilizado para documentar-se e
armazenar idéias. Pertencente, segundo Cavalcante, à família dos escritores-pesquisadores emblematizados
por Flaubert, Rosa, consciente que arte é mais dicção do que ficção, concebia a criação literária não
simplesmente como inspiração, mas como construção, elaboração, fruto de muito trabalho (FANTINI, 2003,
p. 48).
imprime a sua marca. Para Antonio Candido, o mapa da geografia rosiana, se observado
atentamente,
se desarticula e foge. Aqui, um vazio; ali, uma impossível combinação de
lugares; mais longe, uma rota misteriosa, nomes irreais. E certos pontos
decisivos parecem existir como invenções. Começamos então a sentir que a
flora e a topografia obedecem frequentemente a necessidades da composição;
que o deserto é sobretudo projeção da alma (...) Aos poucos vemos surgir um
universo fictício, à medida que a realidade geográfica é recoberta pela natureza
convencional (COUTINHO, 1983, p. 124).
O sertão de Rosa, transfigurado, notabiliza-se como espaço da reversibilidade.
Lugar onde, segundo um dos leitmotivs do romance, as coisas são e não são. Assim, é
possível que o sertão seja rico, fértil, dadivoso, que seja banhado por rios e que se
apresente em paisagens nas quais se perde o olhar. É possível que a flora seja exuberante e
que a fauna seja diversificada – é possível que o sertão floresça e que seu rios sejam limpos
e piscosos. Que seus chefes sejam justos e seus homens corajosos. É possível até mesmo
imaginar um sertão idílico, onde se ama e se vive em paz. Logo depois que Riobaldo
reencontra o Menino, agora jagunço Reinaldo, e une-se à gente de Joca Ramiro, o bando é
obrigado a esperar, por questões estratégicas, num remanso às margens do rio das Velhas.
É o momento em que Riobaldo, incitado pelo amigo, atenta para a beleza do mundo:
O Reinaldo mesmo chamou minha atenção. O comum: essas garças,
enfileirantes, de toda brancura; o jaburu; o pato verde, o pato preto, topetudo;
marrequinhos dansantes; martim-pescador; mergulhão (...) Até aquela ocasião,
eu nunca tinha ouvido dizer de se parar apreciando, por prazer de enfeite, a
vida mera deles pássaros, em seu começar e descomeçar dos vôos e pousação
(p. 111).
Nesse ínterim, Riobaldo e Diadorim travam as primeiras conversas como jagunços.
A descoberta de um espaço harmônico onde a natureza se revela generosa e aprazível é
também aquele em que a primeira aproximação entre os dois amigos culmina num pacto de
amizade. Trata-se de uma das passagens do romance na qual o sertão beira o fantástico e o
maravilhoso, evocativo da mítica Idade do Ouro:
Os dias que passamos ali foram diferentes do resto de minha vida. Em horas,
andávamos pelos matos, vendo o fim do sol nas palmas dos tantos coqueiros
macaúbas, e caçando, cortando palmito e tirando mel de abelha-de-poucas-
flores, que arma sua cera cor-de-rosa. Tinha a quantidade de pássaros felizes,
pousados nas crôas e nas ilhas. E até peixe do rio se pescou. Nunca mais, até o
derradeiro final, vi o Reinaldo tão sereno, tão alegre. E foi ele mesmo, no cabo
de três dias, quem me perguntou: “Riobaldo, nós somos amigos, de destino
fiel, amigos?” “– Reinaldo, pois eu morro e vivo sendo amigo seu!” – eu
respondi. Os afetos. (...) Então, eu vi as cores do mundo. Como no tempo em
que tudo era falante, ai, sei. (...) Só um bom tocado de viola é que podia remir a
vivez de tudo aquilo (p. 115).
Em episódio posterior, logo após o julgamento de Zé Bebelo, o bando, sob o
comando de Titão Passos, faz parada no Guararavacã do Guaicuí. A amizade por Diadorim
revela-se amor: “fiquei sabendo que gostava de Diadorim de amor mesmo amor mal
encoberto em amizade. (...) Eu tinha gostado em dormência de Diadorim (...) no fofo dum
costume. Mas, agora, manava em hora, o claro que rompia, rebentava” (p. 220).
Novamente, aflora o caráter idílico do sertão, agora matizado de alguma incerteza e
inquietação : “Ao quando um belo dia, a gente parava em macias terras, agradáveis. As
muitas águas. Os verdes já estavam se gastando. Eu tornei a me lembrar daqueles pássaros”
(p. 218). Riobaldo pressente a força que lhe molda o destino: “Mas foi nesse lugar, no
tempo dito, que meus destinos foram fechados. Será que tem um ponto certo, dele a gente
não podendo mais voltar pra trás? Travessia de minha vida. Guararavacã”(p. 220). Logo
depois, seguindo viagem, sinais de aridez e morte: “Mas, depois, com o secar, de magros e
fracos os bois se atolavam no embrejado, até morrerem alguns. Os urubús espaceavam,
quando o céu empoeirado” (p. 223). O céu turvado pela poeira, a morte dos bois e a
presença funesta dos urubús parecem anunciar a iminente reversão dos sucessos, a
peripécia trágica que é força motriz da segunda parte do romance. Parágrafos depois,
emerge a reviravolta: “O Gavião-Cujo levantou um braço, pedindo prazo. À fé, quase
gritou: – ‘Mataram Joca Ramiro!...’ ” (p. 224).
Situada pouco antes da metade do romance, o assassinato de Joca Ramiro, como
reviravolta central que impulsiona a ação posterior, corresponde ao violento decesso de
uma lei, à radical desaparição de um fundamento ordenador de ordem transcendente.
Repare-se, a esse respeito, na aura divina com que o chefe é idealizado: “Joca Ramiro...
Esse nem a gente conseguia exato real, era um nome só, aquela graça, sem autoridade
nenhuma avistável, andava por longe, se era que andava” (p. 140). De fato, Joca Ramiro
ocupa no romance o posto de uma espécie de divindade terrena: ele é o “messias” (p. 115),
o “imperador em três alturas” (p. 138), monta um “cavalão branco, ginete” (p. 217) e mora
sugestivamente na fazenda “São João do Paraíso” (p. 217), além do fato de que, após o
crime, os homens de Hermógenes passam significativamente a ser denominados de “os
judas” A morte da figura sagrada perpetrada por aquele que, no romance, representa o mal
absoluto carente de qualquer justificação, corresponde, como reversão matricial da diegese,
ao irromper de forças “demoníacas”, isto é, emersão das potências incontroláveis da
mistura, que revolvem as delimitações e impedem o conhecimento. Rosenfield aponta que
a
morte de Joca Ramiro é menos um assassinato político atribuível a uma
rivalidade banal do que a representação do choque violento entre dois
princípios contraditórios (a lei do discurso e a lei da força pulsional) no qual a
força obscura e primordial se afirma vitoriosa. Hermógenes não representa
apenas um princípio arcaico e anacrônico (...) mas, ao contrário, ele é a figura
de uma selvageria atemporal, anti-histórica, inerente a qualquer momento da
condição humana (ROSENFIELD, 2006, p. 293).
O choque entre a lei do discurso e a lei pulsional encobre o embate entre um mundo
apolíneo de estruturas e hierarquias bem definidas e um mundo movente e dionisíaco que
ignora qualquer artifício civilizacional. Embate que se instaura no centro do romance,
definindo-lhe a estrutura. A nosso ver, a morte de Joca Ramiro efetua uma fratura entre a
primeira metade, regida pela fortuitidade da memória do narrador, na qual predomina a
fusão de planos temporais; e a segunda metade, na qual a narrativa parece lançar-se
vertiginosa e certeira rumo ao desfecho, o que reduz consideravelmente a presença de
pausas reflexivas e de interpolações temporais. A morte de Joca Ramiro, pois, pode ser
tomada como ponto nodal da estrutura do romance. O sertão como kosmos tomando a
palavra em sua acepção grega de universo regido por leis infalíveis reverte no sertão
como kaos universo carente de qualquer ordenamento: “Ao que não havia mais chão,
nem razão, o mundo nas juntas se desgovernava” (p. 225) é o que observa Riobaldo após
a notícia da morte do chefe. Esse corte, portanto, efetivado no plano horizontal do enredo
romanesco, é o acontecimento que sensibiliza o olhar de Riobaldo para os aspectos
destrutivos e caóticos da realidade, agudizando sua percepção acerca daquilo que a
narrativa plasma sob o signo do demoníaco. Tal percepção contamina, do começo ao fim
do narrado, o plano vertical do pensamento e da especulação e prepara o terreno para
aquilo que poderíamos chamar de pensamento trágico.
O romance revela novamente seu caráter autofágico, já que o cenário mítico da
bonança onde se desenrola o início do idílio amoroso entre Riobaldo e Diadorim é
massacrado pela voracidade ancestral que emerge em diversos episódios da segunda
metade o longo cerco na fazenda dos Tucanos (p. 244-280); o encontro com o universo
arcaico dos catrumanos (p. 289-294); a passagem pelo povoado do Sucruiú (p. 297-301); a
dolorosa errância sob a chefia de Bebelo (p. 280-316); a batalha do Tamanduá-tão (p.
414-422) e o desfecho no arraial do Paredão (p. 439-452). Riobaldo observa, logo após a
cena do julgamento: “Como é que eu podia ter pressentimento das coisas terríveis que
vieram depois, conforme o senhor vai ver, que já lhe conto?” (p. 217).
Em passagem significativa, o narrador configura poeticamente o caráter
massacrante do sertão como deglutição de seu próprio ego: “O sertão me produz, depois
me enguliu, depois me cuspiu do quente da boca...” (p. 443). É possível, pois, que o
aprazível reverta em inóspito e que o sublime reverta em terrível. Lugar do informe e do
disforme, terra de turbilhões sanguinários, dos reinados de ódio, o sertão surge como
espaço do roubo, degola, saque, rapinagem. É possível que irrompa, das brenhas do sertão,
aquele fundo originário e cego que ameaça a cultura. E que o que antes parecia uma figura
humana apareça desfigurado; que o que antes semelhava justiça revele-se como ira; que o
que antes era paz idílica descambe em impulso irrefreado de destruição e morte. Parece ser
esse, segundo Riobaldo, o estatuto que a guerra desempenha no romance. Ao olhar
desconfiado do jagunço, a guerra aparece como fenômeno “irredutível às suas causas
imediatas e supostamente racionais percepção que aponta para o excesso, o resto
radicalmente irracional e mortífero enquanto fundamento e alavanca real do fenômeno da
guerra” (ROSENFIELD, 2006, p. 238).
O sertão configura-se como espaço da barbárie. De fato, o “Paraíso” ordenado
por Joca Ramiro reverte no “inferno feio deste mundo: que nele não se pode ver a força
carregando nas costas a justiça, e o alto poder existindo só para os braços da maior
bondade” (p.295). O “alto poder”, a “força” que garante a vigência da justiça e a prática da
bondade imprescindíveis à organização da malha social desmantela-se ou se oculta sob a
não-regência das potências mortíferas do “inferno feio deste mundo”. Inferno que
materializa-se na cena emblemática em que, sob o comando de Bebelo, o bando de
jagunços atravessa o povoado do Sucruiú, tomado pela peste da bexiga preta. Nessa
passagem, as feições infernais do sertão não surgem da atividade guerreira, mas parecem
emergir da própria natureza em forma de “horrorosa doença” (p. 295):
Algum dia, depois de hoje, hei de esquecer aquilo. Arruado que era até bem
largo, mas mal se enxergavam aquelas casas. Ao demais rezando, ao real vendo
eu vim. Casas coisa humana. Em frente delas todas, o que estavam era
queimando pilhas de bosta seca de vaca. O que subia, enchia, a fumaça
acinzentada e esverdeada, no vagaroso. E a poeira que demos fez corpo com
aquele fumegar levantante, tanto tapava, nos soturnos. tossi. cuspi, no
entrecho de minhas rezas. Voz nem choro não se ouviu, nem outro rumor
nenhum, feito fosse decreto de todas as pessoas mortas, e até os cachorros,
cada morador. Mas pessoas mor que houvesse: por trás da poeira, para da
fumaça verdolenga se vislumbravam os vultos, e as tristes caras deles, que
branqueavam, tantas máscaras. Aos homens e mulheres, apartados tão
estranhos, caladamente, seriam os que estavam jogando todo o tempo mais
rodelas de bosta seca nas fogueiras isso que deviam de ter por todo remédio.
Nem davam de nossa vinda, de seus lugares não saíam, não saudavam. Do
perigo mesmo que estava maldito na grande doença, eles sabiam ter quanta
cláusula. Sofriam a esperança de não morrer. Soubesse eu onde era que
estavam gemendo os enfermos. Onde os mortos? Os mortos ficavam sendo os
maus, que condenavam. A reza reganhei, com um fervor. Aquela travessia
durou um instantezinho enorme. (...) Deus que tornasse a tomar conta deles,
do Sucruiú, daquele transformado povo (p. 297).
O horror do Sucruiú dissolve os valores e invalida os costumes. Ele começa por
silenciar a fala humana – não se ouve voz ou choro – e desfigurar os contornos do humano:
as pessoas aparecem como “vultos” por trás da fumaça, as faces convertidas em
“máscaras”. Trata-se do mal que des-humaniza, isto é, que paralisa ou aniquila aquilo que
é próprio da cultura. Os habitantes, desligados dos hábitos da vida coletiva, não saem de
seus lugares; paralisados, não saúdam a tropa dos jagunços. Às casas “coisa humana”
sobrepõe-se o tóxico “fumegar levantante” que, “no vagaroso”, parece dissolver o povoado
e borrar os limites entre os entes. O espaço torna-se duvidoso “Onde os mortos?”, assim
como o tempo parece ambíguo, na fórmula oximorética do “instantezinho enorme”. O que
o sertão abriga e que não escapa ao olhar perscrutador de Riobaldo, é uma negatividade
radical e desprovida de sentido, presença espessa e inexorável de um Mal, um não-ser que
desafia o entendimento. Sugestivamente o Sucruiú aparece, para Riobaldo, como espaço
abandonado pela potência divina de ordenação – “Deus que tornasse a tomar conta deles” –
e preenchido pela “fumaça verdolenga”, subproduto da matéria pútrida, que impede a visão
clara e distinta.
Na rede disjuntiva do romance, as imagens da névoa ou bruma, nuvem, neblina –
podem ser tomadas como metáfora de uma invisibilidade, de um limite de opacidade que
impede o conhecimento, que se interpõe entre sujeito e objeto. Sugestivamente,
Riobaldo associa a neblina à figura de Diadorim: “Diadorim é minha neblina...” (p. 22).
Encarnação de uma duplicidade inextricável, uma mistura indissociável, um mistério
hermeticamente selado que impede compreensão e conhecimento, tal personagem age
como o núcleo gerador de uma perplexidade que se estende a todos os outros elementos do
narrado. Diadorim, a nosso ver, é a metáfora humana do incognoscível, daquilo que,
mesmo estando próximo, não pode ser tocado nem conhecido. Rosenfield percebe que, no
romance, o “vivido esconde-se no enigma, nas “neblinas de Siruiz” ou no nome de
“Diadorim minha neblina” , imagens da deformação do sentido e da verdade
originária” (ROSENFIELD, 2006, p. 203). A pesquisadora, remetendo ao mencionado
tema platônico da essência hermogênea, evidencia que
Riobaldo (...) compartilha o horror platônico do “azougue maligno” de maneira
diferente, matizada e quase “positiva”. Em vez de banir o lado “crespo” e
“misturado” de sua reflexão, Riobaldo faz dessa estranha opacidade seu objeto
de conhecimento procedimento insólito que atribui às aparências, aos
engodos e enganos da vida um valor positivo. A pergunta que anima as
divagações reflexivas do narrador poderia quiçá ser formulada da seguinte
maneira: (...) Não seria o mal menos ausência e negatividade abstrata do que
um “ser” cuja forma particular pode ser apanhada no ritmo do seu aparecer
múltiplo? (ROSENFIELD, 2006, p. 218-9).
A nosso ver, a possibilidade de um pensar trágico cristaliza-se à medida em que os
aspectos destrutivos da existência deixam de ser relegados ao campo do não-ser platônico e
passam a constituir objeto válido de investigação. A posição de Rosenfield , ao perceber a
forma positiva com a qual Riobaldo aborda o problema do Mal, parece apontar nesse
sentido. Na perspectiva de Clément Rosset, o pensar trágico supõe que a existência, ao
mostrar-se dolorosa, deixe de pertencer ao campo irrisório de uma insuficiência ontológica
para mostrar-se plena, e não mutilada naquilo que tem de duvidoso e difícil (ROSSET,
1989). Da mesma forma, em Nietzsche, o trágico deriva de um olhar agudo, pronto a
perceber o movimento incessante de criação-destruição como um dos aspectos
constitutivos da existência. Em O crepúsculo dos ídolos, Nietzsche reflete sobre o trágico:
A psicologia do orgiástico como sentimento transbordante de vida e força, no
interior do qual mesmo a dor age como estimulante, deu-me a chave para o
conceito do sentimento trágico, que foi mal compreendido tanto por Aristóteles
quanto, sobretudo, por nossos pessimistas. A tragédia está tão longe de provar
algo sobre o pessimismo dos helenos, no sentido de Schopenhauer, que deve
ser considerada, isto sim, a decisiva rejeição e instância contrária dele. O dizer
Sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos; a vontade de
vida, alegrando-se da sua própria inesgotabilidade no sacrifício de seus mais
elevados tipos a isso chamei dionisíaco, nisso vislumbrei a ponte para a
compreensão do poeta trágico. Não para livrar-se do pavor e da compaixão,
não para purificar-se de um perigoso afeto mediante sua veemente descarga
assim o compreendeu Aristóteles –: mas para, além do pavor e da compaixão,
ser em si mesmo o eterno prazer do vir-a-ser esse prazer que traz em si
também o prazer no destruir... (NIETZSCHE, 2006, p. 106).
Percebe-se que a noção nietzscheana do trágico articula-se em oposição
veemente a duas outras interpretações, duas “más compreensões” do fenômeno. Em
primeiro lugar, Nietzsche rejeita a teoria aristotélica da catarse, que concebe a tragédia
como instrumento purgativo capaz de livrar o espectador do pavor e da compaixão. Na
chave aristotélica, a tragédia atuaria como phármakon capaz de reestabelecer o equilíbrio
emocional ameaçado pelo excesso de um “perigoso afeto”. Em segundo lugar, Nietzsche
volta-se contra a interpretação do trágico proposta por Schopenhauer. Para este último,
como vimos, a tragédia, dando a conhecer as reais intenções da vontade, isto é, a eterna
discórdia da vontade consigo mesma, conduz à resignação e, em última instância, é
caminho para a negação da vontade. A arte trágica, para Schopenhauer, é expressão de um
profundo pessimismo a respeito da existência. Para Nietzsche, dá-se exatamente o
contrário. É importante perceber, nesse aspecto, o quanto o pensamento nietzscheano, em
sua fase madura, afasta-se da metafísica da vontade de Schopenhauer, opondo-se a ele, no
que diz respeito ao trágico, de maneira, diríamos, antitética. A tragédia, para Nietzsche,
não seria expressão de um pessimismo, senão sua “instância contrária”, isto é, não se trata
de dizer Não à vida, negando-a no momento em que ela se apresenta dolorosa, mas trata-se
de, com clara consciência da dor e da destruição nela compreendidas, “dizer Sim à vida
mesmo em seus problemas mais duros e estranhos”.
Compreende-se que, para reagir afirmativamente à vida, é preciso, antes de tudo,
não ocultar aquilo que ela traz de problemático:
A única mas grande fraqueza dos argumentos filosóficos que tendem a fazer
duvidar da plena e inteira realidade do real é que estes dissimulam a verdadeira
dificuldade que existe em levar em consideração o real e somente o real:
dificuldade que, se reside secundariamente no caráter incompreensível da
realidade, reside antes de tudo e principalmente em seu caráter doloroso
(ROSSET, 1989, p. 17, grifo nosso).
Rosset percebe que é justamente do caráter doloroso da existência (e não do caráter
incompreensível) que deriva a principal dificuldade de aceitação integral do real. A
construção de um saber trágico deve passar, necessariamente, pela experiência da dor.
Toda tentativa de mascarar ou ocultar a dor reverte em depreciação da vida, que esta é
invariavelmente dolorosa. Em Primeiras estórias, coletânea de 21 contos publicada por
Rosa em 1962, há um texto que pode ser útil na investigação a respeito da forma através da
qual Rosa plasma literariamente a busca por uma espécie de conhecimento que aqui
denominamos trágico. Propomos, pois, uma breve análise intertextual. “O espelho”,
undécimo conto da coletânea, está estrategicamente colocado no centro do livro, entre as
dez primeiras e as dez últimas narrativas. O procedimento narrativo, sugestivamente, é o
mesmo utilizado em Grande sertão: veredas: um narrador dirige-se a um interlocutor
emudecido e narra-lhe um experimento. O texto, assim como no romance, começa com um
travessão que origem à enunciação: “– Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura,
mas experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições”
(ROSA, 2005, p. 113). Tal experiência, segundo o narrador, foi capaz de prover-lhe com
alguma espécie insólita de conhecimento: “Dela [da experiência] me prezo, sem
vangloriar-me. Supreendo-me, porém, um tanto à-parte de todos, penetrando conhecimento
que os outros ainda ignoram” (ROSA, 2005, p. 113). O ponto de partida do experimento é
um acontecimento casual, narrado sob a forma de uma “revelação”:
Foi num lavatório de edifício público, por acaso. (...) Descuidado, avistei... (...)
E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao
derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem,
causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era logo descobri... era eu,
mesmo! O senhor acha que algum dia eu ia esquecer essa revelação? (ROSA,
2005, p. 115).
A partir desse lance inicial, o narrador inicia a busca por uma suposta face essencial
que ele crê ser possível vislumbrar, na superfície de espelhos, após um gradativo processo
de apagamento das marcas e condicionamentos que a vivência cotidiana imprimira em seu
rosto. Uma face neutra, verdadeira, nua, livre de “preconceitos afetivos” e “modelos
subjetivos” postos de antemão. Caracterizando-se como “caçador de [s]eu próprio aspecto
formal”, a investigação visa devassar o terreno obscuro que subjaz à máscara”, encontrar
“o núcleo dessa nebulosa”, desvendar a “vera forma” oculta atrás do “disfarce do rosto
externo”. Tentando desnudar-se do “elemento hereditário”, do “contágio das paixões”, das
“sugestões de outrem”, a pesquisa configura-se como procura de si mesmo: “Desde aí,
comecei a procurar-me ao eu por detrás de mim à tona dos espelhos (...) Isso, que eu
saiba, antes ninguém tentara” (ROSA, 2005, p. 116-117). Após avanços e recuos, o
resultado da investigação é aterrador:
Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi. Não vi nada.
o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol, água limpíssima, à dispersão da
luz, tapadamente tudo. Eu não tinha formas, rosto? Apalpei-me, em muito.
Mas, o invisto. O ficto. O sem evidência física. (...) E a terrível conclusão: não
haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um... des-
almado? Então, o que se me fingia de um suposto eu, não era mais que, sobre a
persistência do animal, um pouco de herança, de soltos instintos, energia
passional estranha, um entrecruzar-se de influências, e tudo o mais que na
impermanência se define? (ROSA, 2005, p. 118-119).
Curiosamente, a busca pelo substrato essencial depara-se com o nada. Aquilo que
constituiria o núcleo substancial da personalidade, sede de uma consciência autárquica,
uma essência visível e, por isso, cognoscível, revela-se como um radical não-ser. Supondo
existir um fundamento estruturante de seu ser, cerne espiritual imaculado pelas influências
não-essenciais vindas do exterior, o narrador é confrontado com o abismo da ausência
desse fundamento. O “eu por detrás de mim” a “vera forma” revela-se o “ficto”, isto é,
o simulado, o ilusório, o inventado; a unidade da alma desmantela-se, revela-se artifício; a
existência central des-centraliza-se, estilhaçando-se em instintos, heranças, paixões e
influências, a fixidez verte em “impermanência” instintual. Isto é: o que se supunha uno,
imóvel e indivisível revela-se multiplicidade provisória e cambiante. A busca por um
centro de fixidez e estabilidade é frustrada a existência surge, ela mesma, como fábula,
ficção, máscara, ilusão em última instância, arte, compreendida como capacidade
estética, sempre renovada, de transmutar a potência fluídica do vir-a-ser em compostos
dotados de uma inteligibilidade que é sempre relativa, sempre perspectiva.
Em termos nietzcheanos, a crença na unidade estável do eu é vestígio do atomismo
materialista de raízes pré-socráticas que insiste na presença de um fundamento material
subjacente à realidade física. Trata-se do “atomismo da alma”, necessidade metafísica da
“crença que vê a alma como algo indestrutível, eterno, indivisível, como uma mônada, um
atomon”. Em “O espelho” é justamente tal crença que parece ser posta à prova. Superada,
tal crença abre espaços para “novas versões e refinamentos da hipótese da alma: (...) ‘alma
mortal’, ‘alma como pluralidade do sujeito’, ‘alma como estrutura social dos impulsos e
afetos’” (NIETZSCHE, 1992b, p. 19). Para Finazzi-Agrò,
nas Primeiras Estórias, como já em Grande sertão, o Absoluto que habita (n)o
centro revela-se apenas no vazio duvidoso da sua indefinição e da sua nulidade:
o homem que, diante do espelho, vai à procura da sua “vera forma”, encontra,
afinal, a “total desfigura”, o “brilhante e polido nada” (...) A procura narcisista
de um Eu original, central e absoluto revela-se uma queda no abismo do nada;
revela-se, melhor ainda, um ato diabólico – faustiano – de entrega a uma
alteridade invisível (...) em relação à qual a única salvação, a única
possibilidade de se tornar de novo visível, está no cruzamento passional, no
deixar-se deslizar na impermanência dos instintos (FINAZZI-AGRÒ, 2001, p.
65).
Apesar das evidentes diferenças entre o conto e o romance, a busca pelo sentido
levada a cabo pelo narrador de “O espelho” assemelha-se à busca do ex-jagunço por um
fundamento que nunca se desvela. Assim como o narrador do conto, Riobaldo esforça-se
na busca por um substrato estável da subjetividade, pela alma” subjacente aos impulsos
transitórios do corpo: “O que é que uma pessoa é, assim por detrás dos buracos dos
ouvidos e dos olhos?” (p. 270) indaga o ex-jagunço. No plano psicológico, a procura
rememorativa pelo “Riobaldo original”, imune às reviravoltas do vivido esbarra no
esfacelamento da integridade identitária, que revela-se somente no plano cambiante de um
“retrato em devir” (SANTOS, 2007, p. 2). De fato, o percurso vivencial de Riobaldo
articula-se num trânsito que frustra o reconhecimento de uma identidade estável.
Tomemos, a título de exemplo, as reviravoltas da vida como jagunço. O narrador, de início
professor e secretário de Bebelo, passa a fazer parte do bando deste último, para em
seguida desertar: Fugi. De repente, eu vi que o podia mais, me governou um desgosto”
(p. 105). Após o encontro casual com Reinaldo, Riobaldo passa a integrar o bando de Joca
Ramiro, rival de Bebelo. Após a morte de Joca Ramiro, Bebelo, exilado após o
julgamento, retorna e toma a chefia do bando. Após longas andanças infrutíferas sob o
comando deste último, o próprio Riobaldo, já pactário, assume o comando do grupo a fim
de vingar a morte do antigo chefe.
Percebe-se que o modo de ser trajetória é um ziguezaguear no qual, conforme o
ponto do narrado, emergem registros identitários discordantes entre si. De professor a
jagunço raso, de jagunço raso a pactário e chefe do bando, de chefe do bando a
latifundiário, as diversas faces de Riobaldo alternam-se, de forma a impedir o
reconhecimento de um caráter unívoco subjacente aos diversos “Riobaldos” que a narração
põe em cena. Num dos trechos mais significativos a esse respeito, Riobaldo indaga: “Eu,
quem é que eu era? De que lado eu era? Bebelo ou Joca Ramiro? Titão Passos... o
Reinaldo... De ninguém eu era.” (p. 117). Em outra passagem, ao dar-se conta da
selvageria guerreira implicada na lida da jagunçagem, Riobaldo problematiza a sua (não)
afinidade com o bando: “Então, eu era diferente de todos ali? Era” (...) E eu era igual
àqueles homens? Era” (p. 133) A não-identificação com a práxis da guerra, rejeição de um
estado animalesco ao qual o jagunço-letrado não se identifica, acontece simultaneamente à
identificação afirmativa com aquele mesmo universo. A identidade, portanto, apresenta-se
fissurada em pólos inconciliáveis que se resolvem no domínio flutuante da dúvida, em
seu sentido etimológico, apontado por Finazzi-Agrò, de duo-habitare, isto é, “um residir
no duplo, um estar na ambigüidade” (FINAZZI-AGRÒ, 2001, p. 60). A problemática do
“atomismo da alma” levantada por Nietzsche, parece, portanto, encontrar eco no contexto
do romance (e do conto), na medida em que a própria identidade do(s) protagonista(s) é
posta em questão e, revela-se, enfim, como multiplicidade, sinalizando para aquilo que
Nietzsche propõe como “novas versões e refinamentos da hipótese da alma”
(NIETZSCHE, 1992b, p. 19).
Entretanto, a percepção do esfacelamento da própria identidade é apenas um dos
elementos que conferem espessura crítica ao olhar que o ex-jagunço lança em direção ao
vivido. Olhar cuja agudeza emancipada, ou seja, a capacidade especulativa de refletir sem
o suporte metafísico da idéia de fundamento, seja em nível psíquico seja em vel
ontológico, é indispensável para a articulação daquilo que denominamos pensamento
trágico. No caso de Riobaldo, o primeiro passo em direção a uma postura trágica consiste
em o ocultar (ou o ocultar de todo) a perspectiva inexorável da perda do fundamento.
É somente essa disposição ativa do pensar que pode conduzir ao trágico. Na medida em
que a reflexão de Riobaldo mostra-se independente da necessidade de esclarecimento
através de um saber último; na medida em que tal reflexão abdica também da possibilidade
de redenção oferecida pela instância religiosa, o caminho ao trágico começa a se delinear:
“Ah, mas, no centro do sertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão mais certa de
mais juízo!” (p. 217). Significativamente, o centro do sertão” é o local onde as categorias
estabelecidas jogam entre si, alternando-se. Assim como no centro
51
de Primeiras estórias
habita um experimento a respeito da alma, no qual a fixidez lugar à impermanência,
expondo a nulidade daquilo que fora antes tomado por fundamento, o “centro do sertão”
e o centro do romance, como objeto material
52
é o espaço onde referenciais instituídos
(razão e doideira) mostram-se flexíveis e intercambiáveis. Sob essa perspectiva, o
51
Atente-se ainda para o fato de que, significativamente, na ordem da coletânea, o conto posterior a “O
espelho” é “Nada e nossa condição”. Similarmente ao conto que a precede, a narrativa em terceira pessoa
apresenta o protagonista, Tio Man´Antônio, como representação da alma sobre a qual opera-se um gradativo
e cada vez mais radical desnudamento. A perspectiva existencial do “nada” é plasmada literariamente em
signos que apontam para o estatuto de uma negatividade que, no percurso do protagonista, é levada às
últimas conseqüências.
52
Grande sertão: veredas abriga, exatamente em seu centro, uma longa pausa reflexiva (p. 235-237) em que
os diversos temas da narrativa aparecem entrelaçados poeticamente. No último pico deste estudo,
examinaremos uma passagem do trecho central.
pensamento afirmativo, produto das forças e riquezas do narrador, parece eclipsar, por
instantes, aquele pensar que nasce de suas fraquezas e deficiências (NIETZSCHE, 2001, p.
10). De fato, o pensar trágico, da forma como Nietzsche o compreende, pressupõe uma
superabundância de forças que permitem ao pensador afirmar integralmente a vida. Faz-se
necessário um
excedente de forças pois precisamente tão longe quanto a coragem pode
ousar adiantar-se é o que determina a medida das forças com as quais a gente
se aproxima da verdade. O discernimento, o dizer-sim à realidade é, para o
forte, uma necessidade tão grande quanto a covardia e a fuga da realidade o
“ideal” o é para o fraco, subjugado sob a inspiração da fraqueza
(NIETZSCHE, 2002, p. 90).
O trágico, portanto, configura-se em clara oposição às perspectivas de fuga do real,
todas elas, de uma forma ou outra, sustentadas pela idéia de um fundamento ordenador ou
subjacente ao fluxo do vir-a-ser. Todas elas, em função do caráter mutável e doloroso do
existente, sustentadas pela busca de uma outra vida, um outro mundo. Todas elas,
portanto, negação e depreciação desta vida, deste mundo. Buscamos, pois, nos dois
primeiros tópicos deste capítulo, identificar, no discurso de Riobaldo, a especificidade de
um olhar que decide não fugir, não alhear-se, não eximir-se dos aspectos violentos,
destrutivos e duvidosos trazidos à tona pela rememoração da experiência. A partir daqui, é
necessário investigar a forma pela qual a agudeza desse olhar dá origem (ou não) a uma
postura afirmativa trágica diante da existência e de que maneira o narrado articula
esteticamente essa afirmação.
3.3 O trágico em travessia
Clément Rosset, ao refletir sobre os pressupostos de uma “filosofia trágica”,
propõe:
La première vérité que nous enseigne l´analyse psycologique est qu´il n´y a pas
de situations tragiques, que l´idee de tragique repose tout entière dans un
rapport entre deux situations, qu´elle est la representation ultériere du passage
d´un état à um autre, qu´en conséquence, on peut parler de mécanisme
tragique, pas de situation tragique (ROSSET, 1991, p. 7).
A recusa da fixidade contida na idéia de “situação trágica” e sua substituição pela
mobilidade da noção de “mecanismo trágico” é uma intuição valiosa. Ela vale na medida
em que permite que nos aproximemos um pouco mais daquilo que, em Grande sertão:
veredas, buscamos identificar como um pensamento trágico. Para Rosset, o trágico
presentifica-se na ligação entre uma situação e outra; o trágico efetiva-se na passagem de
um estado a outro, constituindo, portanto, não uma situação, mas um mecanismo.
Observamos que em Grande sertão: veredas, os possíveis sentidos da experiência
comparecem como parceiros de um perene estar-em-trânsito. No romance, essa questão
aparece literariamente plasmada no tema da travessia, desdobrado em inúmeras passagens:
Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu
atravesso as coisas e no meio da travessia não vejo! estava era entretido
nas idéias dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer
passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito
mais em baixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é
muito perigoso? (p. 30).
O trecho aduzido é um dos principais “recados” a respeito da profunda suspeita do
narrador sobre a possibilidade de um aceder certeiro ao conhecimento. Entre uma margem
e outra, o modo de ser fluídico da passagem opera um desvio da rota planejada, de modo
que o conhecedor (o nadador), ao atingir a “outra banda” num ponto muito “mais em
baixo” daquele antes objetivado, depara-se não com aquilo que esperava encontrar, mas
com algo muito diverso. Compreende-se a agudeza da reflexão do ex-jagunço: a força
movente do vir-a-ser, ao exceder ou ignorar a humana necessidade de certeza, frustra a
empreitada otimista rumo ao saber, isto é, opera desvios imprevistos, cancela, em seu
modo impetuoso de ser, toda e qualquer possibilidade de um atravessar retilíneo e seguro.
A natureza fluídica da realidade sabota a legitimidade de um acesso ao saber que se supõe
infalível, de forma que o projeto de reta efetiva-se como passeio voluteante e oblíquo. O
pensamento de Riobaldo, a nosso ver, põe à prova a confiança socrática numa razão que se
supõe instrumento adequado na busca pela verdade.
Para Nietzsche, o otimismo socrático, responsável pela morte da arte e do saber
trágicos, é sintoma inequívoco de um instinto de decadência
53
. Na medida em que a
racionalidade, a partir de Sócrates, ao assumir um caráter tirânico, rejeita o campo
instintual, a própria vida é desvalorizada em prol da ascese racional a um suposto
53
Cf. Crepúsculo dos ídolos, “O problema de Sócrates” (NIETZSCHE, 2006, p. 17-23).
conhecimento verdadeiro capaz de pôr a nu a estrutura ontológica da realidade. A luz
diurna da razão visa domesticar os instintos fundamentais
54
e instaurar a supremacia da
consciência racional. A socrática vontade de verdade exprime, sob a ótica nietzscheana,
um cansaço em relação à vida e uma negação de valores imprescindíveis à vida:
Sócrates é o primeiro gênio da decadência: ele opõe a idéia à vida, julga a vida
pela idéia, coloca a vida como devendo ser julgada, justificada, redimida pela
idéia. O que ele nos pede é que cheguemos a sentir que a vida, esmagada sob o
peso do negativo, é indigna de ser desejada por si mesma, experimentada nela
mesma. Sócrates é o “homem teórico”, o único verdadeiro contrário do homem
trágico (DELEUZE, 1976, p. 11).
O saber trágico, em contrapartida, afirma a vida mesmo em seus aspectos
questionáveis e terríveis. Isto é: enquanto homem teórico, tornado fisiologicamente doente
ao rechaçar seus instintos fundamentais, despreza a existência naquilo que ela tem de
transitório, ininteligível e ilusório, o homem trágico, dotado de um excedente de forças
ativas, lida afirmativamente com a transitoriedade, com a incerteza e com a ilusão, sabendo
jogar com os “desvios” impostos pela impetuosidade da “correnteza”. Em Grande sertão:
veredas, a tendência a tomar a “verdade” como um alvo a ser atingido, é invalidada pela
percepção riobaldiana de que não alvo, ou seja, que a realidade é o próprio, humano
atravesssar. De fato, em Grande Sertão: veredas, o mecanismo de passagem substitui
tragicamente a “verdade” procurada. Poderíamos falar, portanto, com Clément Rosset, de
um mecanismo trágico:
A gente vive repetido, o repetido, e, escorregável, num mim minuto, está
empurrando noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para
de tantos assombros... Um sempre está no escuro, no último derradeiro é
que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se
dispõe para a gente é no meio da travessia (p. 52).
54
Nesse ponto, faz-se necessária uma breve nota explicativa. A valorização do âmbito instintivo, na filosofia
de Nietzsche, remete à noção de “fisiologia da potência”. “Instinto” pode ser compreendido, nesse contexto,
como força, energia, potência, atividade, expansão. Em fragmento póstumo, Nietzsche propõe: “A
multiplicidade e a desagregação dos instintos, a falta de um sistema que os coordene produz uma ‘vontade
fraca’; sua coordenação sob a predominância de um deles produz a ‘vontade forte’ no primeiro caso
oscilação e falta de centro de gravidade; no segundo, precisão e clareza de direção” (NIETZSCHE, Apud
MACHADO, 1999, p. 91-92). A decadência instaurada pelo saber socrático remete, portanto, a uma anarquia
dos instintos e a uma hipertrofia do lógico. Para Nietzsche, o “conhecimento não é neutro, desinteressado,
pois tem nos instintos suas raízes ocultas, inconscientes” (MACHADO, 1999, p. 95). Segundo o filósofo,
portanto, a supressão do terreno instintual corresponde a uma castraçãodo intelecto (NIETZSCHE, 1998,
p. 109).
O ex-jagunço atenta para o caráter imprevisível e “escorregável” da vida e para a
impossibilidade de, em meio ao “escuro”, atingir um conhecimento cabal e definitivo. Em
outra passagem, Riobaldo indaga: “A gente vive não é caminhando de costas?” (p. 423).
Ao caráter duvidoso de todo conhecimento último, justapõe-se a percepção da inexistência
de um finale, uma meta pré-determinada a ser atingida, já que as ações viver e atravessar
coincidem. A constatação de que o real “se dispõe para a gente é no meio da travessia”
pode ser lida como o modo justamente trágico de pensamento apto a afirmar o ser do devir
ou, mais radicalmente, tal constatação põe em dúvida o estatuto da noção mesma de Ser,
no sentido proposto por Parmênides, de realidade única e primordial ou, no sentido
platônico, de substrato ontológico de essências fixas e eternas. Riobaldo está muito mais
próximo de Heráclito quando afirma, despretensiosamente: “eu vejo é o puro tempo vindo
de baixo, quieto mole, como a enchente duma água... Tempo é a vida da morte:
imperfeição. Bobices minhas o senhor em mim não medite” (p. 445). A reflexão sobre o
tempo, camuflada pela duvidosa modéstia de Riobaldo, alude a uma concepção do real
como processo imerso no fluxo da temporalidade “como a enchente duma água”. No
tempo, a vida, pelo fato de mudar a todo instante, é continuamente atravessada pela morte.
Sob a potência movente do tempo, o ser traz em si o não-ser: “tudo é e não é...” (p. 12).
Heráclito, segundo Nietzsche, após negar “a dualidade de dois mundos totalmente
diferentes”,
não pôde coibir-se de uma maior audácia da negação: negou o ser em geral.
Pois o único mundo que ele conservou (...) nada mostra de permanente, nada
de indestrutível, nenhum baluarte no seu fluxo. Heráclito exclamou mais alto
do que Anaximandro: “Só vejo o devir. Não vos deixeis enganar! É à vossa
vista curta e não à essência das coisas que se deve o facto de julgardes
encontrar terra firme no mar do devir e da evanescência. Usais os nomes das
coisas como se tivessem uma duração fixa; mas até o próprio rio, no qual
entrais pela segunda vez, não é o mesmo que era da primeira vez”
(NIETZSCHE, 1995, p. 40).
A suspeita da inexistência de “terra firme” e noção de uma realidade que se
configura como fluxo” perpassam de ponta a ponta a narrativa e desembocam, reiteradas,
na última palavra do romance “Travessia” (p. 460). Entretanto, a concepção do mundo
como eterno vir-a-ser esbarra no inconformismo do narrador. No romance, o mesmo
Riobaldo que se caracteriza como “pobre menino do destino” (p. 16), reivindica para si o
poder de, a despeito da impermanência e do fluxo, governar a própria vida. Imerso na
errância dos caminhos da jagunçagem e na potência demoníaca da guerra, representação de
um Mal que independe de qualquer razão ou intencionalidade – “desgraça sem mão
mandante, ofensa sem nenhum fazedor” (p. 262) Riobaldo sofre a condição do sujeito
impotente frente a uma realidade caótica que não se deixa governar pela vontade humana.
Ao rememorar a sangrenta batalha na fazenda dos Tucanos, Riobaldo reflete:
Mesmo com a minha vontade toda de paz e descanso, eu estava trazido ali, no
meio daquela diversidade, despropósitos, com a morte da banda da mão
esquerda e da banda da mão direita, com a morte nova em minha frente, eu
senhor de certeza nenhuma. Sem Otacília, minha nôiva, que era para ser dona
de tantos territórios agrícolas e adadas pastagens, com tantas vertentes e
veredas, formosura dos buritizais. O que era isso, que a desordem da vida podia
sempre mais do que a gente? (p. 268).
A despeito de sua necessidade de “paz e descanso”, a persistência da guerra,
representação do caráter destrutivo da vida, assim como sua lealdade ferrenha à figura
hermética de Diadorim, condenam Riobaldo a permanecer indefinidamente preso à
condição de jagunço raso, privado do sossego redentor projetado na imagem idealizada de
Otacília. “Adjaz que me aconformar com aquilo eu não queria, descido na inferneira.
Carecia de que tudo esbarrasse, momental meu, para se ter um recomeço. (...) Eu queria
minha vida própria, por meu querer governada” (p. 268) O “senhor de certeza nenhuma”,
ao constatar na “desordem da vida” uma potência superior ao seu desejo de paz, instala-se,
assim, num limbo, numa “espera” indeterminada entre a realidade materializada na
“inferneira” da jagunçagem e a promessa virtual de um “recomeço”: “o sertão é uma
espera enorme” (p. 436). Nesse sentido, Ettore Finazzi-Agrò caracteriza Grande sertão:
veredas como “romance da espera”:
Talvez, tudo aquilo que foi ou será dito sobre Grande sertão: veredas, tudo
aquilo que está escrito em volta da obra de Guimarães Rosa, poderia ser
resumido numa definição simples: ele é o romance enorme da “espera”.
Romance do bado, neste sentido, do “longo sábado” de que nos fala George
Steiner, isto é, do tempo que se encaixa e se suspende entre o dia da dor, da
solidão e do luto e o dia da libertação da nossa cegueira (...) A “espera”, então,
como lugar eternamente incluído entre o desespero e a esperança, como lugar
terceiro que parece apagar os dois lugares entre os quais ele se coloca e se
dispõe (...) No fundo, o texto de Rosa é apenas esse nonada que se escreve sem
parar no avesso do Tempo e da História (...) é, afinal, esse aguardar teimoso
um sentido último e definitivo, relembrando e recontando, na inação forçada do
sábado, a caótica experiência de uma vida feita de dores prolongadas e de
alegrias efêmeras (FINAZZI-AGRÒ, 2002, p.122-123).
A idéia do pesquisador italiano sugere que o romance é a expressão dilatada de uma
a-poria “visto que póros tem, justamente, o significado de ‘trânsito’ e que o alfa inicial
guarda, como se sabe, valor negativo” (FINAZZI-AGRÒ, 1998, p.112) isto é, de um
estado de suspensão entre o sofrimento causado pela derrocada do fundamento e a
perspectiva escatológica de uma redenção. Este lugar terceiro onde o romance se coloca
seria, para Finazzi-Agrò, a expressão de uma Falta que nasce da percepção da
impossibilidade de um sentido último. Veja-se:
A natureza verdadeiramente, radicalmente trágica de Grande Sertão consiste,
então, nesse instalar-se numa aporia espacial e histórica, no seu colocar-se
numa Falta (...), no seu habitar uma dialética aparentemente sem saída, mas
que todavia alude a uma forma muito antiga de pensamento: àquela que,
pensando (n)o limite entre as coisas, chega a intuir o caráter disforme de
qualquer lógica, a impossibilidade de qualquer limite, naufragando na ausência
dos confins, na total impermanência, na fluidez de todas as fronteiras
(FINAZZI-AGRÒ, 2002, p. 124).
Compreende-se que, para o pesquisador, a investidura trágica do romance
presentifica-se no terreno “neutro” de uma aporia que, por definição, impede a
possibilidade de resolução do conflito, evocando a noção goethiana do trágico como
“contradição inconciliável”. Sob o ponto de vista nietzscheano, a aporia de que fala
Finazzi-Agrò pode ser interpretada como o período de transição entre a vigência dos
valores transcendentes e a derrocada desses mesmos valores efetuada pela modernidade
científica e filosófica. Para Nietzsche, a deterioração do fundamento, ao mesmo tempo em
que se apresenta como evento catastrófico, dado o desaparecimento de valores superiores
que até então guiavam a conduta humana, pode atuar como abertura para um pensamento e
uma postura trágicos diante da vida. Como observa Roberto Machado, “a morte de Deus
cria um vazio que pode ser acentuado pelo último homem, para quem não mais valor,
ou preenchido pelo super-homem, produto da criação de novos valores(MACHADO,
2001, p. 55). Obviamente, não intencionamos aqui, de maneira alguma, identificar
Riobaldo ao super-homem
55
nietzscheano. Interessa-nos apenas apontar para os traços de
uma postura trágico-afirmativa em relação à vida verificada na narração do ex-jagunço
55
Neste estudo, adotamos a concepção de Roberto Machado, segundo a qual “super-homem é todo aquele
que supera as oposições terreno-extraterreno, sensível-espiritual, corpo-alma; é todo aquele que supera a
ilusão metafísica do mundo do além e se volta para a terra, valor à terra. Neste sentido, super-homem é
superação, ultrapassagem” (MACHADO, 2001, p. 46).
um ímpeto que age no sentido de desvencilhar-se das amarras de valores mortos ou
moribundos e encaminhar-se à tarefa da criação de novas perspectivas de valoração.
Desse modo, o naufrágio na “ausência dos confins” e na “total impermanência” de
que fala Finazzi-Agrò pode ser interpretado positivamente como a abertura que permite a
Riobaldo não naufragar, mas afirmar a si mesmo e à sua própria precariedade em relação à
dor dessa espera. A nosso ver e nesse ponto distanciamo-nos da posição do pesquisador
italiano a “inação forçada do sábado” reverte, em Grande sertão: veredas, em ação
afirmativa que faz do próprio dilema aporético o solo do qual brota um novo saber. O
romance que encena a passividade de um aguardar do qual nunca emerge o sentido pode
ser lido, a nosso ver, como o romance que extrai dessa mesma ausência de sentido a sua
força.
Assim, se a ambivalência das reflexões do narrador permitiu tomá-lo, num primeiro
momento da análise, como sujeito carente, seja do consolo metafísico, seja da luz diurna da
razão, num segundo momento, ao analisarmos atentamente a rede disjuntiva de recados do
romance, identifica-se em seu discurso um pendor afirmativo que prescinde de ambos os
estratagemas e que logra afirmar a vida mesmo em face dos duros sofrimentos que ela lhe
apresenta. Como observamos, o germe dessa afirmação é a insuficiência do
esclarecimento por via racional e a dúvida em relação ao dogmatismo religioso.
Um traço relevante a ser salientado como índice de uma postura trágica é a
subversão aguda, que o romance opera, em relação aos valores, especialmente às noções de
bem e mal. As figuras de Deus e do diabo, curiosamente, persistem na narrativa, como
parte indestrinçável do imaginário mítico no qual Riobaldo se insere. Entretanto, ambos
passam a ser compreendidos não mais na chave maniqueísta. Um e outro se revelam como
potências insondáveis, cujo caráter reversível põe em risco a todo instante a integridade
física e moral do homem. É possível observar com clareza que os valores tradicionais
atribuídos às representações das divindades ínferas ou celestiais, durante o decorrer da
narrativa, fazem “balancê” (p. 142), ou seja, revelam-se permutáveis, móveis, duvidosos:
E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de
traiçoeiro gosto! A força dele, quando quer moço! me o medo
pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho (...) E
Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza (p. 21).
O trecho acima, altamente sugestivo, destaca o caráter ambíguo da potência divina.
Em passagens como essa, a noção de Deus ganha outros contornos, aproximando-se muito
de uma concepção de divindade cara ao paganismo helênico, no qual o divino, moldado à
imagem do homem, era dotado de astúcia e volubilidade que o permitiam, assim como no
romance, “divertir-se” e “economizar-se” cruelmente com o espetáculo das (des)venturas
humanas
56
. Em A genealogia da moral, Nietzsche caracteriza os deuses gregos como
“amigos de espetáculos cruéis”. Afirma o pensador que os gregos não conheciam
“condimento mais agradável para juntar à felicidade dos deuses do que as alegrias da
crueldade”. E indaga: “Com que olhos pensam vocês que os deuses homéricos olhavam os
destinos dos homens? Que sentido tinham no fundo as guerras de Tróia e semelhantes
trágicos horrores? Não como duvidar: eram festivais para os deuses” (NIETZSCHE,
1998, p. 58). O filósofo refere-se a uma época trágica, quando o mundo terreno era um
palco sob os olhares amistosos ou inamistosos dos deuses.
Em Grande sertão: veredas, o olhar de Riobaldo sobre a divindade, em certas
passagens, “escorrega” da concepção tradicional cara ao Ocidente cristão para outra que
remete claramente ao paganismo: “Deus perdoa? O senhor podia perguntar: Deus, para
qualquer um jagunço, sendo um inconstante patrão, que às vezes regia ajuda, mas, outras
horas, sem espécie nenhuma, desandava de proteção se acabou, e pronto:
marretava!” (p. 179). Ou nesta outra passagem: “Deus vem, guia a gente por uma légua,
depois larga. Então, tudo resta pior do que era antes. Esta vida é de cabeça-para-baixo,
ninguém pode medir suas perdas e colheitas(p.112). O defrontar-se com a ausência de
uma inteligibilidade intrínseca capaz de tornar mensuráveis os reveses da vida tem
ressonância na (des)confiança de Riobaldo em relação a uma suposta “fidelidade” do
divino o “inconstante patrão”. Sônia Maria Viegas Andrade percebe que, em Grande
sertão: veredas, o “mundo é uma totalidade fluida, em que as razões aparecem
concretizadas em manifestações. (...) O maniqueísmo bem-mal alimenta o mecanismo dos
opostos, mas é logo driblado pela força do cosmos que não espera o entendimento lógico
para dar seu próximo passo (ANDRADE, 1985, p. 62). Vejamos a reflexão que se segue ao
supracitado trecho da página 21:
A pois: um dia, num curtume, a faquinha minha que eu tinha caiu dentro dum
tanque, caldo de casca de curtir, barbatimão, angico, sei. Amanhã eu
tiro...” – falei, comigo. Porque era de noite, luz nenhuma eu não disputava. Ah,
então saiba: no outro dia, cedo, a faca, o ferro dela, estava sido roído, quase por
metade, por aquela agüinha escura, toda quieta. Deixei para mais ver. Estala,
56
Rosenfield observa que o sentido do sagrado, em Rosa, define-se no campo de uma “religiosidade
concreta, real e, nesse sentido, próxima do sincretismo pagão” (ROSENFIELD, 2001, p. 96).
espoleta! Sabe o que foi? Pois, nessa mesma da tarde, aí: da faquinha só se
achava o cabo... O cabo por não ser de frio metal mas de chifre de galheiro.
está: Deus... Bem, o senhor ouviu, o que ouviu sabe, o que sabe me
entende... (p. 21).
O experimento enigmático da corrosão do metal da “faquinha”, levada a termo no
tempo exíguo que vai da noite da imersão à tarde seguinte, parece apontar para a força
aniquiladora oculta nos elementos naturais, “naquela agüinha escura, toda quieta”.
Curiosamente, a percepção da voracidade destrutiva da natureza, matizada por um leve
traço humorístico “Estala, espoleta!” surge posposta à constatação do caráter
“traiçoeiro” de Deus, de forma que a inexorabilidade da finitude e a reflexão sobre o divino
articulam-se num mesmo movimento. Ao final do trecho, o predicativo do sujeito “Deus” é
elidido e a tarefa de compreensão do caso é transferida ao interlocutor. De qualquer forma,
a potência divina aparece associada a uma força devastadora e hostil que acaba por “trair”
a constituição aparentemente sólida dos entes. Ao final do experimento, Riobaldo percebe
(ou deixa que o interlocutor-leitor perceba), tragicamente, que tal “traição” constitui o
modo de ser da realidade mesma, em seu perene criar e destruir. Observemos, pois, uma
outra passagem, na qual Riobaldo, após rememorar a cena sangrenta da matança dos
cavalos no cerco da fazenda dos Tucanos, problematiza o estatuto da divindade:
E nisto, que conto ao senhor, se o sertão do mundo. Que Deus existe, sim,
devagarinho, depressa. Ele existe mas quase por intermédio da ação das
pessoas: de bons e maus. Coisas imensas no mundo. O grande-sertão é a forte
arma. Deus é um gatilho? (p. 260).
Assim como, no começo da narrativa, Riobaldo associara a figura do diabo aos
“crespos do homem”, deslocando a exterioridade mítica do demônio à interioridade do
humano, aqui esse deslocamento parece também aplicar-se à figura divina, na medida em
que esta passa a coincidir com a vontade do homem. Da hipótese metafísica da existência
de Deus como entidade autônoma, seja ao modo cristão ou ao modo pagão, caminha-se
para uma concepção imanente da divindade, cuja existência é assegurada “por
intermédio da ação das pessoas”. A responsabilidade pelo agenciamento das virtualidades
do “sertão do mundo” cabe, pois, ao humano. Metaforicamente, a destreza ou a imperícia
no manuseio da “forte arma” são atributos que encontram efetividade no terreno
subjetivo da vontade humana. O sentido da indagação final “Deus é um gatilho?”
aponta justamente para o exercício de uma liberdade que depende diretamente da
capacidade humana de escolha.
A dúvida acerca do fundamento transcendente acarreta, por sua vez, o
questionamento radical dirigido às hierarquias e oposições de valores. O olhar agudo de
Riobaldo não deixa escapar o caráter moldável e “demasiado humano” de valorações tidas
como inflexíveis. Nas reflexões de Riobaldo parece atuar aquele “pendor do homem de
conhecimento”, de que nos fala Nietzsche,
ao tomar e querer tomar as coisas de modo profundo, plural, radical: como
uma espécie de crueldade da consciência e gosto intelectuais, que todo
pensador valente reconhecerá em si, desde que tenha endurecido e aguçado
longamente o seu olhar para si mesmo (NIETZSCHE, 1992b, p. 137-138).
O pensamento de Riobaldo, de fato, fazendo jus ao seu desgosto por “criaturas que
com pouco e fácil se contentam” (p. 115), toma a forma de uma investigação acerca do real
que não encontra sua satisfação na mera constatação superficial dos fatos, mas pretende ir
sempre além, revirando o terreno da superfície e revelando a complexidade oculta sob as
aparências. Revestidas sob a capa de uma enganosa simplicidade sertaneja, tais reflexões,
lidas em seu subtexto, surgem como sofisticadas investigações a respeito da natureza
“misturada” dos valores e das qualidades atribuídas aos seres: “Viver é muito perigoso...
Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode estar sendo se querendo o mal,
por principiar. Esses homens!” (p. 16). A periculosidade do viver é associada ao terreno
poroso que divide as noções de bem e mal e à virtual reversibilidade desses valores. No
segundo aforismo de Além do bem e do mal, Nietzsche ataca a crença nas oposições de
valores, isto é, o pensamento que nega a possibilidade de que algo nasça de seu oposto; ou,
melhor dizendo, a crença segundo a qual valores tidos como nobres não podem surgir dos
seus opostos “baixos” e vice-versa. Diz o filósofo:
Este modo de julgar constitui o típico preconceito pelo qual podem ser
reconhecidos os metafísicos de todos os tempos; tal espécie de valoração está
por trás de todos os seus procedimentos lógicos; é a partir desta sua “crença”
que eles procuram alcançar seu “saber”, alcançar algo que no fim é batizado
solenemente de “verdade”. A crença fundamental dos metafísicos é a crença
nas oposições de valores. Nem aos mais cuidadosos entre eles ocorreu duvidar
aqui, no limiar, onde mais era necessário: mesmo quando haviam jurado para si
próprios de omnibus dubitandum [de tudo duvidar]. Pois pode-se duvidar,
primeiro, que existam absolutamente opostos; segundo, que as valorações e
oposições de valor populares, nas quais os metafísicos imprimiram seu selo,
sejam mais que avaliações-de-fachada (...) Com todo valor que possa merecer o
que é verdadeiro, veraz, desinteressado: é possível que se deva atribuir à
aparência, à vontade de engano, ao egoísmo e à cobiça um valor mais alto e
mais fundamental para a vida. É até mesmo possível que aquilo que constitui o
valor dessas coisas boas e honradas consista exatamente no fato de serem
insidiosamente aparentadas, atadas, unidas, e até talvez essencialmente iguais a
essas coisas ruins e aparentemente opostas. Talvez! Mas quem se mostra
disposto a ocupar-se de tais perigosos “talvezes”? (NIETZSCHE, 1992b, p.
10).
A nosso ver, Riobaldo é alguém que se mostra disposto a ocupar-se desses
perigosos “talvezes” a que Nietzsche se refere. É, justamente, um dos temas centrais do
romance o problema da distinção entre valores que, se num primeiro olhar mostram-se bem
definidos, num segundo olhar, mais atento, não apresentam a mesma “pureza” e não
surgem mais como opostos, apresentando-se, como diz Nietzsche, “insidiosamente
aparentados”: “Acho que, às vezes, é até com a ajuda do ódio que se tem a uma pessoa que
o amor tido a outra aumenta mais forte” (p. 145). Riobaldo, a partir de suas observações,
instaura o exercício da dúvida que, aos olhos de Nietzsche, falta aos metafísicos. Logo no
início da narrativa, há uma passagem sugestiva a esse respeito:
Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas,
não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que mata?
Agora, o senhor viu uma estranhez? A mandioca-doce pode de repente virar
azangada motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada no terreno
sempre, com mudas seguidas, de manaíbas vai em amargando, de tanto em
tanto, de si mesma toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandioca-brava,
também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum
mal. E que isso é? (p. 11-12).
É muito curioso perceber a forma como Rosa, através das observações
(aparentemente) prosaicas do narrador sertanejo, infiltra na narrativa questões de ordem
ética que remetem a uma longa tradição do pensamento. Aquilo que alimenta pode, em
outras circunstâncias, envenenar, e vice-versa: aquilo que envenena pode servir de
alimento. A vaga explicação racional aventada por Riobaldo para explicar o fenômeno o
replantio contínuo não logra, no entanto, diluir o mistério que envolve a reversibilidade.
Assim, o comentário a respeito da mandioca-doce e da mandioca-brava, colocado
estrategicamente no início da narrativa, anuncia, de forma sutil, o problema que será
investigado ao longo de todo romance: a pergunta, sempre reiterada, pelo estatuto do bem e
do mal e sobre a (im)possibilidade de se estabelecer limites entre um e outro. Para
Rosenfield,
o olhar riobaldiano penetra fundo naquelas regiões limites da moralidade que
mostram o húmus do qual nasce o homem ético e racional. E, apesar de sua
sede de religião, ele deixa entrever que o milagre da eclosão dos valores
humanos pode confundir-se com o acaso. (...) Nisso, a fé riobaldiana aproxima-
se da audácia nietzscheana. Ela é uma sede de verdade e beleza que não recua
diante da visão do caos e da violência (ROSENFIELD, 2006, p. 223).
Num dos trechos mais reveladores a respeito, Riobaldo rememora as andanças
labirínticas do bando sob o comando de Bebelo. Trata-se da narração sombria dos
“ruins dias” passados no lugar chamado Coruja: “Daí, despropositou o frio, vezmente. E
quase que todos os companheiros estavam adoecidos” (p. 304). Com o poder de
Bebelo desacreditado, o bando sofre os rigores da doença e do clima. Em tal situação de
“atrasamento geral” (p. 306), Riobaldo identifica, nas relações do grupo, certa dose de
altruísmo. No momento de dificuldade, a “bondade” dos jagunços uns com os outros
sensibiliza o olhar do narrador. Este, padece de um mal no fígado e recebe de um
companheiro bondoso um chá de urumbeba:
Raymundo cozinhou para mim um chá de urumbeba. Era um recurso para
aliviar meu achaque, e era dado com bondade. Isso mesmo foi o que eu disse a
Raymundo Lé, agradecido: É um recurso para aliviar meu achaque, e estou
vendo que é dado com bondade...” (...) Ali, naquela hora, eu conferi como era
usual a gente estimar os companheiros, em ajuntado (p. 307).
E, logo após:
E o Sidurino disse: “A gente carecia agora era de um vero tiroteio, para
exercício de não se minguar... A alguma vila sertaneja dessas, e se pandegar,
depois, vadiando...” Ao assaz confirmamos, todos estávamos de acordo com o
sistema. Aprovei, também. Mas, mal acabei de pronunciar, eu despertei em
mim um estar de susto, entendi uma dúvida, de arpejo: e o que me picou foi
uma cobra bibra. Aqueles, ali, eram com efeito os amigos bondosos, se
ajudando uns aos outros com sinceridade nos obséquios e arriscadas garantias,
mesmo não refugando a sacrifícios para socorros. Mas, no fato, por alguma
ordem política, de se dar fogo contra o desamparo de um arraial, de outra
gente, gente como nós, com madrinhas e mães eles achavam questão natural,
que podiam ir salientemente cumprir, por obediência saudável e regra de se
espreguiçar bem. O horror que me deu o senhor me entende? Eu tinha medo
de homem humano (p. 307).
Espantado, o narrador percebe que a bondade altruísta e a violência brutal nascem
de um solo comum, isto é, que o homem ético e racional, capaz de solidariedade e ajuda
mútua, coincide com o homem que, naturalmente, se compraz na crueldade e na
destruição, “como por regra de se espreguiçar bem”. Os mesmos homens, “amigos
bondosos”, capazes de “sacrifícios para socorros” são aqueles nos quais habita uma
selvageria “natural” que requer, vez ou outra, uma válvula de escape. Em outra passagem,
constata Riobaldo: “Quase todo mais grave criminosos feroz, sempre é muito bom marido,
bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses!” (p. 12). Assim, os valores
da eticidade e da selvageria encontram-se de tal forma misturados que já não é possível
dizer que constituam opostos, nem mesmo afirmar com segurança que sejam
fundamentalmente distintos. Repare-se ainda que o “sistema” jagunço é, em princípio,
aprovado também por Riobaldo “Aprovei, também” que percebe, em si mesmo, a
vigência misturada das disposições éticas e selvagens. Voltando a Nietzsche, constata-se a
possibilidade efetiva de “que aquilo que constitui o valor dessas coisas boas e honradas
consista exatamente no fato de serem insidiosamente aparentadas, atadas, unidas, e até
talvez essencialmente iguais a essas coisas ruins e aparentemente opostas” (NIETZSCHE,
1992b, p. 10). Para Meiches, o trágico cria
novos aspectos da experiência humana; situa o homem num terreno totalmente
movediço de valores e práticas, em que ele nunca mais poderá encontrar
configurações cuja permanência seja garantia de bem-estar. O homem é
colocado como um grande problema: sua maneira de proceder na vida em
sociedade é um enigma de tal ordem de complexidade que acaba poro
comportar soluções (MEICHES, 2000, p. 34).
É interessante salientar que a percepção aguda de Riobaldo conduz a um “susto” e a
um “horror” que, sugestivamente, não encontram sua razão de ser num Mal exterior, mas
concretizam-se como “medo de homem humano”, ou seja, medo do amálgama ancestral
que subjaz à própria noção de “humanidade”, horror que deriva da percepção do fundo
animalesco de onde brota a cultura
57
. A análise da reversibilidade ou mesmo da
57
Em A genealogia da moral, Nietzsche, ao refletir sobre a história da origem dos valores morais, atenta para
o fundo de crueldade subjacente à cultura: “Ah, a razão, a seriedade, o domínio sobre os afetos, todos esses
privilégios e adereços do homem: como foi alto o seu preço! Quanto sangue e quanto horror no fundo de
todas as ‘coisas boas’!” (NIETZSCHE, 1998, p. 52). Kathrin Rosenfield sustenta que “Rosa conhecia com
certeza as reflexões nietzscheanas sobre as estranhas metamorfoses dos valores aristocráticos e guerreiros sob
o impacto da reação sacerdotal” (ROSENFIELD, 2004, p. 231). Não levamos à frente a fecunda análise da
relação entre a genealogia nietzscheana da moral e a problemática dos valores em Grande sertão: veredas
por reconhecer que tal discussão transborda os limites materiais e os objetivos deste estudo.
coincidência entre valores supostamente opostos” conduz ao vislumbre de uma dinâmica
referente ao posicionamento de Riobaldo em relação à própria experiência narrada. Como
verificamos no capítulo anterior, a força-motriz da narração reside numa “falta”, isto é,
num estado de penúria e esgotamento que leva o narrador a reunir instrumentais capazes de
conferir ao vivido um sentido unívoco e apaziguador. A nosso ver, porém, o romance
parece sutilmente indicar que a experiência negativa da falta faz parte do próprio
mecanismo que permite reverter o medo e o horror iniciais em coragem e alegria. Do
próprio niilismo da falta parece nascer, pois, uma disposição ativa, trágica, afirmativa em
relação à existência.
3.4 os poderes do falso
O que eu fui, o que eu fui. (...) Um homem é escuro, no meio do luar da lua
lasca de breu. Dentro de mim eu tenho um sono, e mas fora de mim eu vejo um
sonho um sonho que eu tive. O fim de fomes. Ei, boto machado em toda
árvore. Eu caminhei para diante. Em, ô gente, eu dei mais um passo à frente:
tudo agora era possível (p. 329).
O trágico, segundo o pensamento maduro de Nietzsche, não consiste em
sublimação, purgação, reconciliação, tampouco negação da vontade de vida consiste em
afirmação. Se a tradição alemã, até Schopenhauer, compreende o trágico como acesso a um
conhecimento instaurado para além da vida; se, de certa forma, todas as concepções pré-
nietzscheanas do trágico até mesmo aquela pensada pelo Nietzsche jovem podem ser
consideradas, de uma forma ou outra, metafísicas, a postura do Nietzsche maduro
empreende um deslocamento radical e instala o trágico no cerne da vida mesma. Para
Deleuze, intérprete de Nietzsche, a “afirmação (...) é a essência do trágico” (DELEUZE,
1976, p. 14). No pensamento maduro de Nietzsche, a recusa do dualismo ontológico
transfere o trágico para o domínio da vida pensada como vontade de poder. Como observa
Rosa Maria Dias, vontade de poder é, para Nietzsche, “sobretudo criação” (DIAS, 1994, p.
34). Entretanto, como indica a estudiosa, o pensamento da criação conjuga-se ao
pensamento da destruição:
Assim como estamos submetidos à lei do crescimento, também estamos
submetidos à lei da morte. Essa idéia não deve nos acabrunhar, pelo contrário,
devemos suportá-la com certo júbilo. Sem a destruição não processo
criador. É ele que mantém a vida, a força de vida (DIAS, 1994, p. 38).
Todo criar, supõe, imediatamente, o destruir. Criação e destruição são parte de um
mesmo movimento: o trabalho da aniquilação abre espaço para a diferença. No
pensamento trágico de Nietzsche, essa duas noções – o prazer da criação e a dor da
destruição (ou vice-versa) encontram-se mutuamente implicadas: “todo vir-a-ser e
crescer, tudo o que garante o futuro implica a dor (NIETZSCHE, 2006, p. 106). A “lasca
de breu” metáfora do humano frente à opacidade do incognoscível encontra na
capacidade e no prazer de destruir “Ei, boto machado em toda árvore!” – a possibilidade
de futuro, de “caminhar para diante” e de conceber, doravante, a vida como potencialidade
ilimitada sujeita ao trabalho de criação “tudo agora era possível”. O trecho supracitado,
parte da pausa reflexiva posterior ao pacto, figura como expressão de uma alegria criadora
que supõe, como condição necessária, a destruição. Marcel Conche define a felicidade
trágica como aquela que “encontramos no próprio devir, na mudança e no tempo,
considerado tanto destruidor como criador” (CONCHE, 2000, p. 243). O trágico reside,
portanto, na vida que, abdicando das ficções do Ser, é capaz de afirmar a fluidez de um
vir-a-ser que conjuga, em seu movimento perpétuo, os atos de criar e destruir.
No romance, a reflexão de Riobaldo é capaz de captar, inúmeras vezes, o elo oculto
entre criação e destruição. Localizado no início do texto, o causo de Pedro Pindó e do
menino Valtêi fornece indícios de um tema que reaparecerá em outros pontos da narrativa:
Mire veja: se me digo, tem um sujeito Pedro Pindó, vizinho daqui mais seis
léguas, homem de bem por tudo em tudo, ele e a mulher dele, sempre sidos
bons, de bem. Eles têm um filho duns dez anos, chamado Valtêi (...) Pois
essezinho, essezim, desde que algum entendimento alumiou nele, feito mostrou
o que é: pedido madrasto, azedo queimador, gostoso de ruim do fundo das
espécies de sua natureza. Em qual que judia, ao devagar, de todo bicho ou
criaçãozinha pequena que pega (...) O que esse menino babeja vendo, é
sangrarem galinha ou esfaquear porco. “Eu gosto de matar...” uma ocasião
ele pequenino me disse. Abriu em mim um susto; porque: passarinho que se
debruça o vôo já está pronto! Pois, o senhor vigie: o pai, Pedro Pindó, modo
de corrigir isso, e a mãe, dão nele, de miséria e mastro botam o menino sem
comer, amarram em árvores no terreiro, ele nuelo, mesmo em junho frio,
lavram o corpinho dele na peia e na taca, depois limpam a pele do sangue, com
cuia de salmoura. (...) Arre, que agora, visível, o Pindó e a mulher se
habituaram de nele bater, de pouquinho em pouquim foram criando nisso um
prazer feio de diversão como regulam as sovas em horas certas confortáveis,
até chamam gente para ver o exemplo bom (p. 13-14).
O prazer sádico da criança abre em Riobaldo um “susto”. Todavia, o paroxismo da
destruição gratuita associada ao gozo é apresentado como disposição inata: Valtêi era
“gostoso de ruim do fundo das espécies de sua natureza”. Ainda mais atordoante, o
sadismo adquirido dos pais parece apontar para a existência efetiva de um “mal” que
escapa a qualquer explicação racional e que é tanto mais assustador quanto mais revela-se
como a outra face de um suposto “bem”. Observe-se que Pindó, no início do causo, é
caracterizado como “homem de bem por tudo em tudo”; “ele e a mulher dele, sempre sidos
bons, de bem”. Por trás da narração do causo, parece habitar a pergunta inquietante: que
espécie de ímpeto obscuro habita o “casal de bem” e é capaz de fazê-lo obter um “prazer
feio de diversão” da dor do próprio filho? A descrição minuciosa do procedimento dos pais
aplicado ao martírio do filho revela ainda o desenvolvimento de uma crueldade refinada,
ciente de sua eficiência. O olhar acurado de Riobaldo mostra-se permanentemente atento
para aquilo que, sendo humano, parece exceder ou anular a noção de humanidade e
contradizer os atributos tradicionalmente vinculados ao homem. Para Rosenfield, Riobaldo
trata o problema da ordem pelo lado oposto – a partir da constatação de um mal
aparentemente gratuito, sem sentido, sem fim, situado além do obscuro gozo
estéril que acompanhas às vezes a destruição. O olhar de Riobaldo parece
fascinado pela aparência gratuita e radicalmente irracional do mal, e quanto
mais ele afirma a sua necessidade mais ele volta a interrogar a opacidade
enigmática do sadismo, o mistério do gozo destruidor – de uma maldade
radical que se como carente de causa e de razão, despojada também de
qualquer finalidade (ROSENFIELD, 2006, p. 223).
Como apontamos, o caminho para o trágico, passa necessariamente pela
constatação dos aspectos dolorosos e terríveis da existência. Constatação tal, efetivada
desde o início da narrativa, que onipresente na temática dos “causos” que abrem o
romance
58
. Como se pode perceber, a reflexão do ex-jagunço, ao invés de operar um
desvio em relação àquilo que não pode ser suficientemente elucidado, age como
exploradora do terreno do incognoscível. O causo de Pedro Pindó, situado na primeira
seqüência do romance, atua como prelúdio indicativo de uma adesão ao real que espalhará
seus traços durante todo o narrado. A necessidade de paz e tranqüilidade, paradoxalmente,
revela-se como investigadora daquilo que de menos tranqüilizador: o caráter
necessariamente destrutivo de uma realidade que continuamente burla toda fixidez para
afirmar-se como movimento perene. A vontade de verdade, esboçada em princípio, sofre
58
A temática da opacidade do mal, presente no causo de Pedro Pindó, pode ser também identificada nas
outras pequenas narrativas do início do romance: o causo do Aleixo (p. 12); o causo de Jazevedão (p. 16); o
causo de Firmiano; o causo do casamento entre primos carnais” (p. 48). Já avançada a narrativa, o causo de
Maria Mutema, narrado por Jõe Bexiguento, retomará, de maneira aprofundada, a mesma problemática.
uma decisiva desfiguração que encaminha o narrado para índices de uma existência
absolutamente desprovida de fundamento. A possibilidade do trágico está, justamente,
fundada na persistência desse olhar “fascinado” como diz Rosenfield pela opacidade
que denuncia os limites da razão e abre espaço para a abordagem daquilo que foge aos
domínios da racionalidade. Nietzsche, refletindo sobre a arte trágica na “Tentativa de
autocrítica” ao Nascimento da tragédia, indaga:
um pessimismo da fortitude? Uma propensão intelectual para o duro, o
horrendo, o mal, o problemático da existência, devido ao bem-estar, a uma
transbordante saúde, a uma plenitude da existência? talvez um sofrimento
devido à própria superabundância? Uma tentadora intrepidez do olhar mais
agudo, que exige o terrível como inimigo, o digno inimigo em que pode pôr à
prova a sua força? Em que deseja aprender o que é “temer”? O que significa,
justamente, entre os gregos da melhor época, da mais forte, da mais valorosa, o
mito trágico? E o descomunal fenômeno do dionisíaco? O que significa, dele
nascida, a tragédia? (NIETZSCHE, 1992a, p. 14).
Compreende-se que, para o pensador, o trágico deriva do excedente de forças que
permite encarar o fundo abismal da existência sem que, com isso, seja preciso negá-la. Ao
contrário, é justamente a partir de tal ímpeto, que se torna possível afirmar a vida em todas
as suas dimensões, mesmo as mais dolorosas. Em Grande sertão: veredas, a disposição
trágica do conhecimento parece também derivar dessa “intrepidez do olhar mais agudo”,
desse “voltar a indagar-se” para o qual a destruição aparece, em última análise, como parte
constituinte do existir. O “pessimismo da fortitude” proposto por Nietzsche parece, assim,
encontrar seu lugar no romance, na medida em que este, a todo momento, toma como
objeto de perquirição o “duro”, o “horrendo”, o “problemático” da existência.
No decorrer da narrativa, a temática da opacidade do mal será aliada, sobretudo, à
figura de Hermógenes: “O Hermógenes: mal sem razão...” (p. 409) Na vivência em meio
ao bando deste último, revela-se a Riobaldo o fundo cruel da existência travestido nos usos
brutais do companheiros de bando. O contato com os usos e costumes jagunços faz as
vezes de iniciação do narrador no universo animalesco da jagunçagem. Em sua
rememoração, Riobaldo mostra-se sensível a todas as manifestações daquilo que, ao
afrontar a ordem ética, é reconhecido sob o signo do mal: “Ser ruim, sempre, às vezes, é
custoso, carece de perversos exercícios de experiência” (p. 131). Representação de uma
potência opaca e indelimitável, a figura de Hermógenes, associada diretamente ao diabo,
exerce sobre Riobaldo um misto de repulsa e fascínio:
Esse Hermógenes belzebú. (...) O Hermógenes, homem que tirava seu prazer
do medo dos outros, do sofrimento dos outros. Aí, arre, foi que de verdade eu
acreditei que o inferno é mesmo possível. Só é possível o que em homem se vê,
o que por homem passa. Longe é, o Sem-olho. E aquele inferno estava próximo
de mim, vinha por sobre mim. Em escuro, vi, sonhei coisas muito duras (p.
139).
Assim como no causo de Pedro Pindó, a crueldade o prazer na manutenção do
sofrimento alheio intriga o narrador que, a despeito de sua repulsa, situa-se “próximo
desse território. A imagem do inferno é discursivamente articulada sob o emblema daquilo
que, em outros pontos do narrado, aparece plasmado na expressão “homem humano”: “Só
é possível o que em homem se vê, o que por homem passa” (p. 139). A qualidade
demoníaca novamente é transferida da exterioridade mítica para o campo da subjetividade
humana. Ao que parece, o narrador, ao invés de optar pelo reconhecimento de um Mal
objetivo, um Mal em si ao qual corresponderia, naturalmente, um Bem em si relativiza
a noção e prefere conceber o mal como disposição interna daquele que o pratica, o que
acaba por contradizer a noção paradigmática do inferno em moldes cristãos oferecida por
compadre Quelemém: “A gente viemos do inferno – nós todos – compadre meu Quelemém
instrui. Duns lugares inferiores, tão monstro-medonhos, que Cristo mesmo lá conseguiu
aprofundar por um relance a graça de sua sustância alumiável” (p. 40).
A postura de Riobaldo, vista sob essa ótica, surge como agudo interrogar-se acerca
da existência de valores que subsistam por si mesmos, independentes da sanção humana. O
caráter “demasiado humano” de toda valoração e mesmo de todo conhecimento, problema
nietzscheano por excelência, subsiste em Grande sertão: veredas discretamente inserido
em certos pontos da rede discursiva. A alteridade demoníaca de Hermógenes, percebida em
princípio com repugnância, reverte em admiração e identificação: o Hermógenes,
arrenegado, senhoraço, destemido. Rúim, mas inteirado, legítimo, para toda certeza, a
maldade pura. (...) Até amigo meu pudesse ser; um homem que havia” (p. 309). Ou, mais
radicalmente: “o Hermógenes estava deitado ali, em mim encostado era feito fosse eu
mesmo” (p.164). A percepção aguda do Outro demoníaco em si mesmo culmina, enfim, no
travamento do pacto. Finazzi-Agrò compreende a estratégia do pacto como recurso de
Riobaldo “para sair da duplicidade, mergulhando, finalmente e totalmente nela, para
encontrar, também ele, o meio da travessia’ em que a verdade se oculta e se manifesta na
sua diabólica e, ao mesmo tempo, divina ambigüidade”. Entretanto, para Riobaldo,
não haverá atalhos rumo ao Sentido; para ele, de fato, não haverá senão (...) a
condenação inapelável à condição de eterno transeunte, obrigado, até o fim, a
sujeitar-se à dúvida, sem morar em lugar nenhum, sem chegar a nenhuma
certeza fora da certeza inconsistente e fatal da passagem (FINAZZI-AGRÒ,
2001, p. 61).
A nosso ver, a “condenação” à dúvida, de que fala o estudioso italiano, pode ser
lida paradoxalmente como “libertação”, como percepção enfim efetivada da
impossibilidade de aceder, por “atalhos”, rumo a um sentido apaziguador e definitivo. O
conhecimento trágico se manifesta como percepção do caráter antropomórfico,
falsificador e perspectivístico de todo conhecimento: “A razão normal de coisa nenhuma
não é verdadeira, não maneja” (p. 268). Ou, ainda, como constatação da inexistência de um
fundamento extra-perspectivo do qual seria possível derivar o sentido de um mundo que se
manifesta como puro vir-a-ser de forças em conflito. No espaço do Grande sertão, a
integridade dos valores mostra-se subvertida pelas potências da mistura e valores
supostamente opostos brotam da mesma fonte. Da mesma forma, o ser das coisas se
desvela no movimento fluvial do seu vir-a-ser: o real consolida-se única e precariamente
no próprio trânsito entre “verdades” distintas. “O que é que o buriti diz? É: Eu sei e não
sei...” (p. 303). No romance, a proximidade (ou a identidade) entre “saber” e “não saber”
corresponde à multiplicidade de sentidos da experiência rememorada e ecoa a
mencionada fusão operada pela narrativa entre ser e não-ser. Note-se que a sentença é
atribuída à imagem do buriti, símbolo recorrente em toda obra de Rosa, que evoca o modo
de ser labiríntico dos cursos d´água em cujas margens cresce a palmácea. O labirinto, por
sua vez, evoca a idéia do conhecimento como errância entre “verdades” distintas. A
investidura trágica da narração cristaliza-se à medida em que a noção de Ser é abalada pela
agudeza da reflexão de Riobaldo. O trágico ganha terreno quando a possibilidade do
desdobramento metafísico da ininteligibilidade do real num plano inteligível de essências
imutáveis entra em contradição com os dados da experiência. Para Silvia Rocha,
tanto o ceticismo quanto o perspectivismo constatam que o conhecimento é
ilusão. Mas se para o primeiro isso é índice de uma carência com relação ao
ideal racional do conhecimento absoluto, para o segundo isso não constitui
motivo para desvalorizar o conhecimento. Ali onde o cético limita-se a
constatar que o conhecimento é ilusão, o trágico vai além e afirma a
necessidade dessa ilusão: “Deve-se querer até a ilusão é nisto que consiste o
trágico”
59
(ROCHA, 1999, p. 226).
59
Silvia Rocha cita o aforismo 37 de “O livro do filósofo” (NIETZSCHE, 1984, p. 28).
De fato, o perspectivismo proposto por Nietzsche, ao apontar para impossibilidade
de um conhecimento extra-perspectivo, desterra toda pretensão ao “saber absoluto” para o
campo do ilusório. Todavia, a compreensão do caráter ilusório do conhecimento não
conduz, como no ceticismo, a uma depreciação do mesmo e, por extensão, da vida. Não se
trata de um apagamento das possibilidades de vida nem de um obstáculo intransponível ao
exercício do saber. Pelo contrário: o saber trágico é uma abertura para o exercício dico
do conhecimento, um convite a percorrer o labirinto de veredas, assim como o
franqueamento de novas atitudes perante o existir. Como percebe Rosenfield, a reflexão de
Riobaldo faz uso de um “procedimento insólito que atribui às aparências, aos engodos e
enganos da vida um valor positivo” (ROSENFIELD, 2004, p. 218). A nosso ver a ação de
“atribuir aos engodos e enganos da vida um valor positivo” permite ao narrador tomar a
“ilusão” não como índice de uma impotência do conhecimento nem como motivo de
depreciação da vida que irrompe da experiência rememorada, mas como o próprio campo
de ação no qual o pensamento toma corpo. Rosa Maria Dias percebe que “Nietzsche
amplia a noção de arte para dar conta dos atos que produzem continuamente a vida. Viver
é estar sempre criando novas possibilidades de vida” (DIAS, 1994, p. 35). A ampliação da
noção de “arte” para dar conta do caráter da vida tomada como criação ininterrupta é de
extrema importância no contexto de nossa análise, na medida em que reflete, de modo
muito peculiar, o teor da reflexão riobaldiana. Como exposto no aforismo acima citado por
Rocha, um dos atributos fundamentais do trágico é a percepção da necessidade de ilusão
como atributo indissociável da vida. Para Deleuze, “a compreensão nietzscheana da arte é
uma concepção trágica” (DELEUZE, 1976, p. 83). Segundo o pensador, Nietzsche concebe
a arte como o
mais alto poder do falso, ela magnifica o “mundo enquanto erro”, santifica a
mentira, faz da vontade de enganar um ideal superior. (...) A atividade da vida
é como um poder do falso, enganar, dissimular, ofuscar, seduzir. Mas para ser
efetuado, esse poder do falso deve ser selecionado, reduplicado, ou repetido,
portanto, elevado a um poder mais alto. (...) A arte precisamente inventa
mentiras que elevam o falso a esse poder afirmativo mais alto, ela faz da
vontade de enganar algo que se afirma no poder do falso. Aparência, para o
artista, não significa mais a negação do real nesse mundo, e sim seleção,
correção, reduplicação, formação. Então, verdade adquire talvez uma nova
significação. Verdade é aparência. (...) Em Nietzsche, nós os artistas = nós os
procuradores de conhecimento ou de verdade = nós os inventores de novas
possibilidades de vida (DELEUZE, 1976, p. 84-85).
No romance, a tentativa de transpor a fluidez da “matéria vertente” para o campo da
linguagem esbarra na convencionalidade do signo. O poder do verbo, em princípio, está
aquém da experiência e tal impotência é percebida pelo narrador: “E um vero jeito de
tudo se contar uma vivença dessas?” (p. 445, grifo nosso). Entretanto, a força poética
rompe as comportas da univocidade verbal e reata com a noção de sentido como
multiplicidade. Por conseqüência, a pretensão a uma fidedignidade do narrado à
experiência é imediatamente posta de lado para dar lugar à percepção do ato de narrar
enquanto arte. A ruptura entre Ser e logos, combatida pelo pensamento platônico, é
deliberadamente assumida. O narrado é tecido no espaço aberto entre o mundo e a
linguagem: “Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto” (p. 142, grifo
nosso). A constatação da “falsidade” do discurso, ou seja, de seu caráter ilusório, artístico,
desarma a tentação de veracidade como adequação, conformidade, exatidão, fidelidade.
“Verdade” passa a coincidir com “invenção” ou com “arte”. Por conseguinte, a meta do
“vero jeito” de narrar cede ao poder do falso:
A qualquer narração dessas depõe em falso, porque o extenso de todo sofrido
se escapole da memória. E o senhor não esteve lá. O senhor não escutou, em
cada anoitecer, a lugúgem do canto da mãe-da-lua. O senhor não pode
estabelecer em sua idéia a minha tristeza quinhoã. Até os pássaros, consoante
os lugares, vão sendo muito diferentes. Ou são os tempos, travessia da gente?
(p. 304, grifo nosso).
Na passagem citada, Riobaldo percebe que a imersão na temporalidade do estar-
em-trânsito (mais do que os percalços da memória) é diretamente responsável pelo caráter
“falso” da narração. A verdade unívoca do testemunho é frustrada pela mobilidade da
jornada. Esta, enquanto se faz, apresenta, como sua marca, a diferença: “Até os pássaros,
consoante os lugares, vão sendo muito diferentes”. Jaime Guinzburg, em estudo sobre o
caráter fragmentário da narração do romance, observa que a atitude do narrador perante a
experiência rememorada
assume a parcialidade inerente ao conhecimento, a subjetividade inevitável que
se envolve nele. E toma então essa subjetividade não como um problema
técnico a ser suprimido em nome de uma objetividade supostamente neutra,
mas pelo contrário como ponto de partida capaz de definir humanamente a
pertinência de seu trabalho intelectual e de seu modo de encarar a
racionalidade. Assim, o conhecimento abandona a posição falsa e autoritária do
poder total, infinito, e assume sua medida humana: nunca inteiramente racional
ou inteiramente objetivo, mas sim marcado pelas circunstâncias do sujeito
cognoscente, seus interesses e seus limites: tem por isso um caráter
necessariamente parcial, fragmentário (GUINZBURG, 1997, p. 67).
O abandono da pretensão de objetividade do conhecimento e a assunção da
subjetividade como “medida humana” apontam, enfim, para a presença viva de uma
disposição trágica de Riobaldo como explorador de seu próprio passado. Exploração tal
que, voltando-se sobre si mesma, percebendo em si mesma a infiltração do “falso”, assume
a própria precariedade. E mais: faz desta mesma precariedade a força que confere uma
dimensão agudamente humana ao narrado. O conhecer parcial e precário não é, como
aponta Guinzburg, tratado como “problema técnico”, mas antes assumido enquanto tal. A
nosso ver, ao caráter necessariamente parcial e fragmentário do conhecimento soma-se o
seu caráter ilusório, artístico, artífice de um passado cuja “veracidade” estática é
continuamente burlada pelos movimentos da subjetividade: “Mas, mente pouco, quem a
verdade toda diz” (p. 276). A marca da “mentira”, instalada no terreno da “verdade” corrói
a pretensão do conhecimento absoluto e devolve ao ato de conhecer sua medida humana.
Paradoxalmente, no romance, o reconhecimento dos limites humanos do conhecimento age
como propulsor de uma narração que, ao perceber-se perspectivística, concede a si mesma
a faculdade criadora que, por sua vez, questiona ou transborda qualquer limite. Narração
viva, nesse sentido, pois que perenemente insatisfeita, empenhada a todo instante em criar
e recriar seus objetos. João Adolfo Hansen indica que
em GS: V um efeito geral de trituração da forma que, reagrupada em nova
síntese, imediatamente é dissolvida para ser aglutinada, e outra vez, ainda,
apagada, no nada. A operação é observável na maneira indecisa pela qual
Riobaldo se constitui sujeito no discurso, desdizendo o que diz e vice-versa,
recusando-se mesmo a fixar o que diz em proposições que pudessem ser
consideradas definitivas e definidas (...): o efeito geral é o de uma pesquisa do
sentido, a busca mítica do “quem” do real na proliferação do diverso. Anti-
clássico, o texto recusa a forma pois esta facilmente se imobiliza na
petrificação de uma regra, perdendo assim a linguagem sua potência de
indicação, seu conteúdo poético e intuitivo (HANSEN, 2000, p. 109-110).
O trituramento dos significantes, que evoca o mencionado modo de ser
autofágico do romance, confere à narração, como quer Hansen, o caráter de uma “pesquisa
do sentido”. Pesquisa que, ao recusar a cristalização da forma, efetiva-se através da (re)-
potenciação das virtualidades da linguagem. Sendo inviável, no âmbito restrito deste
estudo, aprofundarmo-nos na relação entre a linguagem e o pensamento em Grande sertão:
veredas, limitar-nos-emos a indicar que, no romance, a pluralização do sentido está
diretamente vinculada a um certo tratamento da linguagem. Para Nietzsche, as leis
gramaticais da linguagem tornam-se, com o tempo, leis do pensamento, isto é, passam a
condicionar o pensamento
60
. Pela transposição da estrutura da linguagem ao campo do real,
o homem imagina adquirir posse de um saber efetivo sobre o mundo. A partir do momento
o caráter meramente denominativo, instrumental da palavra é neutralizado pelo
esquecimento, instaura-se uma correspondência ilusória entre saber e nomear, isto é,
estabelece-se a crença na correspondência entre o nome e a coisa nomeada. Assim, o
mundo do devir e da pluralidade, submetido ao sistema de signos internalizado, reverte no
mundo organizado e estável da linguagem. Pelas lentes irremovíveis da linguagem, passa-
se a enxergar o mundo da diferença e da mudança como o mundo firme da identidade e da
duração.
A nosso ver, assim como o pensamento metafísico funda-se na estabilidade do
conceito, um pensamento trágico pode se configurar caso tenha como suporte uma
palavra trágica uma palavra que deslize entre os sentidos, não se detendo aqui nem ali,
não aderindo a este ou aquele, mas contemplando a diversidade e o jogo. Para Viviane
Mosé,
as palavras, quando assumidas como signo, como sinal, podem afirmar a vida.
As palavras, quando não atadas à vinculação de sentido, são como molduras
vazadas onde a vida se configura. As palavras na solidão são abertas, e não
fechadas como são quando conceito. Não possuindo interioridade, as palavras
se configuram como uma abertura para a exterioridade (MOSÉ, 2005, p. 126).
Em Grande sertão: veredas, a ruptura do laço instituído entre significante e
significado lugar a uma multiplicidade de outros “laços” que reatam com a pluralidade
de significação. Significantes como “Deus”, “diabo”, “vida”, “sertão”, só para citar os mais
evidentes, são de tal maneira plurisignificativos que escapam ao papel de meros
instrumentos de denotação conceitual. A palavra, ao invés de fechar-se sob a univocidade
do conceito, abre-se para a diversidade de sentidos, por vezes conflitantes entre si. Palavra
revolta, fugidia, gasosa, aberta à multiplicidade, “moldura vazada”; palavra que escapa da
correspondência estrita entre designação e designado. Palavra descolada do achatamento
semântico imposto pela gregariedade e que propõe a si mesma o desafio de dizer o devir,
60
Cf. especialmente o texto de 1873 “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral” (NIETZSCHE, 1999,
p. 53-60); o aforismo 11 de Humano, demasiado humano (NIETZSCHE, 2005, p. 20-21); o aforismo 354 de
A gaia ciência (NIETZSCHE, 2001, p. 247-250) e o aforismo 268 de Além do bem e do mal (NIETZSCHE,
1992, p. 182-183).
de contar a “matéria vertente”, de traduzir o enigma daquilo que não pode ser dito,
transposto, traduzido em linguagem comum.
3.5 Alegria trágica: o pacto com a vida
Como toda experiência humana, a vida de Riobaldo é uma confrontação com a
perspectiva da errância e da perda. Sua reflexão, deste modo, esmera-se por perscrutar os
recantos mais frágeis do humano: os terrenos cúmplices da dor e do medo. Neste, que é o
último tópico deste estudo, buscaremos explorar a engrenagem do mecanismo trágico que
permite a passagem – ou melhor, o convívio entre o sofrimento e a alegria que insiste em
fazer valer o seu emblema durante toda a narração. A constatação do caráter doloroso da
existência emerge em diversos pontos do romance:
Informação que pergunto: mesmo no Céu, fim de fim, como é que a alma
vence se esquecer de tantos sofrimentos e maldades, no recebido e no dado? A
como? O senhor sabe: coisas de medonhas demais, tem. Dor do corpo e dor
da idéia marcam forte, tão forte como o todo amor e raiva de ódio. Vai, mar...
(p. 19).
Note-se que a redenção provida pela perspectiva teleológica da transcendência o
“fim de fim” é sutilmente perturbada pela presença quase palpável da dor. A passagem
parece sugerir que o finale legitimado pela crença é matizado pela aguda percepção
empírica que não deixa de lado as “coisas medonhas demais”. O saber da natureza
implacável do sofrimento parece ser encarado pelo narrador como possível obstáculo à
ascensão ao plano metafísico: a marca produzida pela dor, de tão profunda, entrava o bem-
aventurado esquecimento. O conhecimento da dor, portanto, humaniza, isto é, devolve o
sujeito à sua medida humana, aponta novamente para a terra ao fazer emergir, com toda
força, a inexorabilidade do sofrimento.
O conhecimento de Riobaldo a respeito do caráter terrível da existência é, por um
lado, herança de sua experiência nas lides guerreiras da vida jagunça. A prática da guerra
põe o personagem em contato com os paroxismos do sofrimento físico e espiritual. Porém,
a experiência da dor, em Riobaldo, parece provir menos da experiência da guerra e mais do
trauma ocasionado pela paixão interdita e nunca consumada por Diadorim. O desfecho no
arraial do Paredão, a morte de Diadorim e a conseqüente revelação de sua identidade
sexual abrem na alma do ex-jagunço uma ferida que, a despeito do tempo passado, parece
jamais cicatrizar:
Como foi que não tive um pressentimento? O senhor mesmo, o senhor pode
imaginar de ver um corpo claro e virgem de môça, morto à mão, esfaqueado,
tinto todo de seu sangue, e os lábios da boca descorados no branquiço, os olhos
dum terminado estilo, meio abertos meio fechados? E essa moça de quem o
senhor gostou, que era um destino e uma surda esperança em sua vida?! Ah,
Diadorim... E tantos anos já se passaram (p. 147).
A passagem, eivada de profunda carga emotiva, surge camuflada ainda na primeira
metade da narração. Incompreensível na primeira leitura do romance, o emergir
“extemporâneo” da imagem de Diadorim morto(a) transgride a própria intenção do
narrador de só revelar o segredo ao fim da narrativa: “para o senhor divulgar comigo, a par,
o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube” (p. 453).
Curiosamente, o “travo de tanto segredo” é “destravado” muito antes do momento
propício. A frágil armação temporal do narrado, sob esse olhar, parece ser insuficiente para
conter a potência da imagem que causa sofrimento. O “recado” da dor, sugestivamente
antecipado, aflora na teia de outros tantos “recados” do romance tornando explícito aquilo
que devia ser mantido oculto até a hora devida. A própria estrutura temporal da narrativa
apresenta-se rasgada, portanto, pelo corte da lembrança dolorosa; vergada pelo peso
daquilo que, sendo, por excelência, o centro nervoso da dor de Riobaldo, burla o
hermetismo do segredo e comparece explicitamente na superfície do texto. Atente-se ainda
para a minúcia, francamente mórbida, com que o corpo morto de Diadorim é descrito: “um
corpo claro (...), esfaqueado, tinto todo de seu sangue, e os lábios da boca descorados no
branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio abertos meio fechados”. A obscenidade da
imagem detalhada do cadáver intensifica a agudeza da dor, tornando-a novamente
presente. O caráter “vertente” da lembrança, ancorado no poder evocativo da palavra,
ignora a pudicícia da morte e traz o terrível ao primeiro plano. A nosso ver, a presença
obsedante da dor, aqui configurada de forma explícita, perpassa insidiosamente toda a
narração, conferindo-lhe tom e espessura afetiva. A perda de Diadorim, como perda de um
“destino” e de uma “surda esperança”, como ferida incurável, é a mácula que imprime em
cada palavra do romance a marca do sofrimento.
No aforismo 114 de Aurora, intitulado “Do conhecimento daquele que sofre”,
Nietzsche associa diretamente a experiência da dor ao conhecimento:
A condição de pessoas doentes que se acham longa e terrivelmente
martirizadas por seus sofrimentos, mas cujo entendimento não é turvado por
isso, é algo de valor para o conhecimento (...) A partir de seu estado, quem
sofre intensamente olha com espantosa frieza para fora, para as coisas: todos os
pequenos encantos mendazes que habitualmente rodeiam as coisas, quando o
olho do homem sadio as percebe, desaparecem para ele: e ele próprio surge à
sua frente, sem plumagem e sem cor. (...) A enorme tensão do intelecto, que
quer fazer frente à dor, faz com que brilhe sob nova luz tudo aquilo para que
olha: e a indizível atração conferida por toda luminosidade nova é, com
freqüência, forte o bastante para (...) fazer o prosseguimento da vida parecer
sumamente desejável para o sofredor. (...) Nosso orgulho se rebela como
nunca: é para ele um estímulo sem igual, ante um tirano tal como é a dor, ante
todas as insinuações que nos faz, para que testemunhemos contra a vida
tomar o partido justamente da vida contra o tirano. Nessa condição nos
defendemos exasperadamente de todo pessimismo, para que ele não pareça
conseqüência de nosso estado e nos humilhe, como se fôssemos derrotados
(NIETZSCHE, 2004, p. 85-86).
Sob tal olhar, não nos parece fantasioso afirmar que a agudeza das reflexões de
Riobaldo derive justamente de sua condição de sujeito sofrente. Que seja justamente a
perseverança da dor que lhe faculte olhar o real a partir de perspectivas mais ou menos
incomuns, isto é, aquela percepção, sempre reiterada, das contradições e ambigüidades que
subjazem à superfície aparentemente pacífica das coisas. O mergulho na dor é,
precisamente, a descoberta do modo de ser conflitivo do real. Nesse sentido, é possível
afirmar, com Nietzsche, que a dor age, no romance, como parceira do conhecimento,
removendo da realidade os “encantos mendazes” e preparando o olhar para o caráter
problemático ou inaudito daquilo que, em outras circunstâncias, apareceria como lisa
compreensibilidade.
Como apontamos no segundo capítulo, é a falta, inscrita no nome do narrador,
que age como força-motriz da narração. Será, pois, justamente, a difícil reversão da falta
em força que consuma, enfim, o mecanismo trágico cujas engrenagens vínhamos tentando
explorar. Como indica Nietzsche, a tirania da dor, paradoxalmente, pode agir como
estímulante da vida e defesa contra a derrota do pessimismo. Tomar partido da vida mesmo
em face do sofrimento constitui o modo de ser da existência trágica, antítese da existência
pessimista que, em face da dor, engendra mecanismos depreciadores da vida. Para
Nietzsche, o trágico ganha sua máxima expressão quando o tormento da existência serve
de propulsor para a afirmação, e não o contrário, como na concepção de Schopenhauer,
para quem o trágico é via de acesso a uma espécie de saber que age como caminho para a
negação da vida. A esse respeito, observa Clément Rosset:
No que diz respeito ao conhecimento do trágico, sabemos que ele não é
considerado por Nietzsche como uma mutilação da alegria, uma parte de
beatitude subtraída a ela mesma pelo efeito do sofrimento, mas constitui, ao
contrário, um acréscimo de gáudio que prevalece sobre o sofrimento (...)
Nietzsche não cansa de repetir que todo pensamento que não é imbuído de
conhecimento trágico, que tenta desviar da evidência da morte, do efêmero, do
sofrimento, dá, inelutavelmente, lugar a filosofias-remédio, como a ontologia
eleata ou a metafísica platônica, chamadas menos para dar conta da existência
do que, incansavelmente, para testemunhar contra ela (ROSSET, 2000, p. 43).
Sob a perspectiva aqui adotada, o pensamento de Riobaldo, como pensamento
perpassado pelo sofrimento, não opera o desvio em relação ao trágico. Diríamos até que
Riobaldo mostra-se incapaz de aceder a tal desvio, que a agudeza da dor impossibilita o
esquecimento ou a sublimação. É necessário observar, contudo, que entre a experiência do
sofrimento e a aprovação da vida um elemento indispensável, mencionado por Rosset,
um medium sem o qual a passagem entre um e outro se faz insana ou impossível. A alegria
trata-se da peça-chave imprescindível que faz “funcionar” adequadamente o mecanismo
trágico. Em Grande sertão: veredas, é notória a presença assídua do tema da alegria,
evocado diversas vezes durante a narração, pensado e repensado por Riobaldo,
frequentemente em relação dialética com o medo e em relação complementar com a
coragem.
Na primeira passagem do romance em que coragem e alegria surgem conjugadas
Riobaldo e Diadorim atravessam um momento crítico. Após a morte de Joca Ramiro, parte
do bando é dizimada pelas tropas do governo. Perseguidos pelos hermógenes, os jagunços
rumam em direção ao rio São Francisco, no intento de cruzá-lo, em busca de aliança com
as forças de Medeiro Vaz. Na jornada em direção ao rio, Riobaldo experimenta o prazer:
De mim, vim, com Diadorim, Alaripe, Jesualdo e João Vaqueiro, e o Fafafa.
Era para o outro lado, era para os meus Gerais, eu vinha alegre, contente. (...)
Nesse meu, caminho fazendo, tirei minha desforra: faceirei. Severgonhei.
Estive com o melhor de mulheres. Na Malhada, comprei roupas. O vau do
mundo é a alegria! (p. 231-232).
“Vau”, como se sabe, é o “local raso de um rio, mar, lagoa, por onde se pode
passar a ou a cavalo” (HOUAISS, 2007). A metáfora do rio comparece novamente na
narrativa, desta vez para indicar que, ao ver do narrador, a travessia se faz necessariamente
sob o signo da alegria, ou seja, do mecanismo aprovador que, a despeito da inexorabilidade
do sofrimento, gera a aprovação da existência. No romance, a possibilidade da alegria é
diretamente vinculada à coragem. No parágrafo seguinte, já à beira do grande rio, os
amigos dialogam: “– ‘Você tem receio, Riobaldo?’ Diadorim me perguntou. Eu?! Com
ele em qualquer parte eu embarcava, até na prancha de Pirapora! ‘Vau do mundo é a
coragem...’ eu disse” (p. 232). Nessa passagem, prevalece o eco da travessia anterior,
quando do encontro com o Menino, primeiro enfrentamento de Riobaldo contra o medo e
primeiro reconhecimento da coragem. Naquela ocasião, Diadorim diz a um Riobaldo
dominado pelo medo: “– ‘Carece de ter coragem...’” (p. 83). Nesta segunda travessia do rio
São Francisco, estando os personagens adultos e em meio às dificuldades da guerra, a
coragem se faz mais urgente, e desta vez surge entrelaçada à alegria. O encontro com o rio,
rememorado, coincide com a evocação dos dois “vaus” do mundo, isto é, dos dois
elementos imprescindíveis ao atravessar .
Ao tentarmos decifrar o sentido global que o tema do medo adquire na narração,
deparamo-nos com indícios de que, mais do que temor relacionado a um referente
específico, o medo de Riobaldo é a própria reação do humano quando confrontado com o
caráter incerto da vida e com a precariedade de todo conhecimento a respeito da vida:
“Tivesse medo? O medo da confusão das coisas, no mover desses futuros, que tudo é
desordem” (p. 298). Como apontamos neste estudo, a rejeição do modo de ser
“misturado” da vida gera em Riobaldo a ânsia pela demarcação” de limites que acaba se
revelando empresa impossível. Como agora parece claro, tal rejeição, se pesquisada mais a
fundo, aparece como o que realmente é: medo daquilo que, como puro vir-a-ser, não pode
ser previsto ou controlado. Medo do “mover desses futuros”, da “desordem” e da
“mistura”; medo, enfim, do próprio caráter movente e transitório da existência, assim como
do modo de ser indistinguível ou incognoscível das coisas e de suas qualidades. O medo,
sob esse aspecto, pode ser tomado como a semente da qual germina a ânsia por ficções
metafísicas capazes de abrandar ou mascarar a dor e a provisoriedade. Sob a perspectiva
das forças, uma força reativa, ou seja, que não age propriamente, mas re-age à natureza
impetuosa do devir ficcionando o fundamento que organiza e que insere, na “desordem” da
temporalidade, a “ordem”. Todavia, como toda a narração parece querer demonstrar, o
medo reativo da existência encontra sua contrapartida imediata no par coragem e alegria:
O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí
afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O
que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais no
meio da alegria, e inda mais alegre no meio da tristeza! Só assim de repente, na
horinha em que se quer, de propósito – por coragem (p. 241-242).
Nessa passagem, o caráter cambiante da vida o “correr” que “embrulha tudo”
aparece justaposto à necessidade de uma coragem altiva que promove uma alegria capaz de
fazer frente ao sofrimento. Analisando melhor, trata-se de uma alegria que, ao invés de
servir de camuflagem ou remédio para a dor, é instaurada no seio do próprio sofrimento:
“ficar (...) inda mais alegre no meio da tristeza”. Para além de qualquer intento de
conciliação entre liberdade e necessidade, o lugar do trágico, sob a ótica nietzscheana, se
consuma na agudeza da contraditoriedade entre os dois termos, isto é, no caráter
sumamente paradoxal do júbilo que medra no terreno mais hostil e, aparentemente, menos
propício:
Não alegria alguma que não seja sentida quero dizer, obviamente,
provada, posta em evidência pelo conhecimento da pena: essa associação de
idéias está no âmago de tudo o que Nietzsche sente e pensa, ela é o fundamento
de sua filosofia. (...) Na verdade, quase toda a obra de Nietzsche deveria ser
invocada para ilustrar essa aliança secreta, selada por Nietzsche desde O
nascimento da tragédia, entre a infelicidade e a felicidade, o trágico e o
jubiloso, a experiência da dor e a afirmação da alegria (ROSSET, 2000, p. 41-
42).
De fato, se algo que persiste em toda filosofia de Nietzsche, da juventude à
maturidade, é precisamente o sentido de um pensamento promovedor e afirmador da
existência. Até onde podemos afirmar, não nada que Nietzsche tenha escrito, que o
guarde, ainda que indiretamente, um ímpeto essencialmente afirmativo. Toda a sua
pedregosa empresa de desconstrução da moral e da metafísica ocidentais parte, a nosso ver,
da percepção aguda de que tais mecanismos foram erigidos sobre o solo de um pensamento
depreciador da vida, de que sua vigência irrestrita pode conduzir, em última instância, ao
esgotamento da vida. O pensamento trágico, como antídoto ao niilismo, contrapõe ao
cansaço da vida esgotada uma plenitude
61
criadora capaz de reverter a correlação negativa
de forças. Tal plenitude encontra sua máxima expressão no exercício de uma alegria que
61
Rosa Maria Dias cita um fragmento stumo do outono de 1887: “A embriaguez é um estado no qual nós
colocamos uma transfiguração e uma plenitude nas coisas e as elaboramos imaginativamente até que elas
reflitam nossa própria plenitude e o nosso próprio prazer de viver” (NIETZSCHE, Apud DIAS, 1994, p. 37).
nasce na dor, em meio à “confusão” e à “desordem”, e que possibilita, a despeito dos
evidentes obstáculos colocados, a afirmação incondicional da existência. Rosset reflete
sobre o caráter paradoxal da alegria:
Ou a alegria consiste em uma ilusão efêmera de ter acabado com o trágico da
existência: nesse caso a alegria não é paradoxal, mas é ilusória. Ou consiste em
uma aprovação da existência tida por irremediavelmente trágica: nesse caso a
alegria é paradoxal mas não é ilusória. Não é surpreendente que eu
preferência ao segundo termo da alternativa, persuadido não somente que a
alegria consegue acomodar-se com o trágico, mas ainda e sobretudo, que ela
consiste apenas neste e por este acordo com ele. (...) Por isso, direi em uma
palavra, que verdadeira alegria se ela é ao mesmo tempo contrariada e se
está em contradição com ela mesma: a alegria é paradoxal ou não é alegria
(ROSSET, 2000, p. 24-25, grifo nosso).
Como indica Rosset, trágico e alegria não se excluem, mas se associam. A
“verdadeira alegria”, como “aprovação da existência”, requer, de certa forma, o trágico; tal
alegria só se consuma em presença do irremediável. A existência de Riobaldo, perpassada,
como vimos, pelo sofrimento, traz em seu bojo a possibilidade da alegria trágica:
“Somente com alegria é que a gente realiza bem mesmo até as tristes ações” (p. 316),
observa Riobaldo, logo antes da rememoração do pacto, evidenciando novamente o
vínculo paradoxal entre as disposições, aparentemente opostas, da dor e do júbilo. Tal
vínculo comparece ainda nesta outra passagem: “Hê, de medo, coração bate solto no peito;
mas de alegria ele bate inteiro e duro, que até dói, rompe para diante na parede” (p. 140,
grifo nosso). O trecho traz, poeticamente configurado, o possível convívio entre a dor e
uma alegria que parece querer transbordar os limites do objeto que a suscita ou do sujeito
que a sente, rompendo “para diante na parede”, para afirmar-se como alegria total,
independente de qualquer estímulo referencial. Como indica Rosset, “há na alegria uma
mecanismo aprovador que tende a ir além do objeto particular que a suscitou, para afetar
indiferentemente qualquer objeto e chegar a uma afirmação do caráter jubiloso da
existência em geral” (ROSSET, 2000, p. 7). Ao medo generalizado da “confusão” da
existência opõe-se, portanto, uma alegria também generalizada ou, como diz Rosset,
“totalitária”, no sentido em que percebe como desejável o todo da existência, não seus
objetos particulares. Para Marcel Conche, a
sabedoria trágica consiste, pois, na afirmação do ser, isto é, da vida, e o que a
distingue é o fato de tratar-se de uma afirmação total. O sábio apolíneo, o
homem moral, o asceta, etc. afirmam o homem menos alguma coisa ( a razão
sem a paixão, a vontade sem o desejo, o espírito sem o corpo, etc.). Isto porque
aprovam apenas uma parte de si mesmos. Cindem o homem em diversos lados
e escolhem. Por que não, se à custa dessa mutilação, atingem a paz, a
felicidade? Sim, mas que felicidade? A razão é um estado de frieza e de
lucidez. Não uma grande felicidade sem alguma extrapolação, sem alguma
embriaguez (CONCHE, 2000, p. 216).
A posição de Conche é especialmente reveladora na medida em que estabelece
muito nitidamente a especificidade da perspectiva trágica e permite-nos elucidar melhor a
natureza da aprovação total da existência. O homem trágico recusa a cisão operada pelo
homem moral: não clivagem e escolha, há afirmação indiferenciada daquilo que
compõe o existir. Ou melhor, os pretensos “opostos” estabelecidos pelo ponto de vista
moral (corpo-espírito; bem-mal; desejo-vontade; razão-paixão) são pensados o na chave
dicotômica, mas em sua orgânica indissociabilidade.
Na reflexão de Riobaldo, o sentido da alegria parece ser o de uma força ativa
capaz de impelir em direção à vida: “Alegria do jagunço é o movimento galopado. Alegria!
Eu disse? Ah, não, eu não. O senhor de repente rebata essa palavra, devolvida, de volta
para os portos de minha boca...” (p. 426); ou: O senhor tenha na ordem seu quinhão de
boa alegria, que até o sertão ermo satisfaz” (p. 396). A alegria, como disposição íntima, é
estreitamente vinculada ao modo de ser ermo” do sertão que, neste caso, parece consistir
no espaço aberto que acolhe e atualiza as virtualidades humanas. “Sabe o senhor: sertão é
onde o pensamento da gente se forma mais forte que o poder do lugar” (p. 22). Este parece
ser, inclusive, um dos sentidos mais essenciais que a palavra “sertão” adquire na rede do
romance espaço moldável onde a liberdade humana, insubmissa a qualquer princípio
exterior, tem passe livre para criar aquilo com que se defronta ou, nos termos de Riobaldo,
espaço onde o “poder do lugar” está diretamente submetido ao ímpeto criador do
“pensamento da gente”. É este o sentido que Riobaldo capta quando diz: “Acho que o
espírito da gente é cavalo que escolhe estrada: quando ruma para tristeza e morte, vai o
vendo o que é bonito e bom” (p. 143). A força do humano, neste caso, coincide com a
capacidade de “ver” aquilo que, na diversidade da existência, impele para vida: “entendi
que podia escolher de largar ido meu sentimento: no rumo da tristeza ou da alegria – longe,
longe, até o fim, como o sertão é grande...” (p. 424). Na imensidade indelimitável do
sertão, o homem é o criador do próprio itinerário, não havendo caminho algum traçado de
antemão. A ausência de um fundamento último de onde derivem diretrizes capazes de
orientar o caminhar delega ao homem a tarefa de criar a própria trajetória.
Em outro ponto da narrativa essa idéia surge melhor delineada. Trata-se da
passagem na qual o bando, sob a chefia de Riobaldo, cruza com o “velho da paciência”:
“Homem no sistema de quase-dôido, que falava no tempo do Bom Imperador” (p. 393).
Esse personagem, misto de louco e sábio, que parece viver em outra época, intriga
Riobaldo: “Deus pai, como aquele homem sabia todas as coisas práticas da labuta, da
lavoura e do mato, de tanto tudo” (p. 393). O jagunço, então, pergunta ao velho: ‘Mano
velho, tu é nado daqui ou de onde? Acha mesmo assim que o sertão é bom?...’ E recebe,
em forma de enigma, a resposta: “– ‘Sertão não é malino nem caridoso, mano oh mano! :
... ele tira ou dá, ou agrada ou amarga, ao senhor, conforme o senhor mesmo’ (p. 394).
Riobaldo, desconcertado não entende, naquela ocasião, as palavras do velho: “Dele o dito,
eu não decifrava” (p. 394). Como no mito edipiano, a decifração da fala oracular, de fato,
pode ser efetivada quando a própria experiência do sujeito lhe desvela o sentido. Deste
modo, a compreensão do dito enigmático caberá ao Riobaldo barranqueiro que, tendo
vivido o que lhe cabia, percebe que o mistério trágico do sentido reside na dimensão
humana. É o humano, enfim, o doador de sentido, o criador do próprio horizonte. O sertão,
em si, não é “malino nem caridoso”, diz a sabedoria da loucura. O bem e o mal (e os
demais pares de opostos estabelecidos pela perspectiva moral), passam a meras efígies que
ocultam, em seu suposto vigorar absoluto, a capacidade humana de conferir valor.
Nietzsche reflete sobre o caráter humano dos valores:
O que quer que tenha valor no mundo de hoje não o tem em si, conforme sua
natureza a natureza é sempre isenta de valor: foi-lhe dado, oferecido um
valor, e fomos nós esses doadores e ofertadores! O mundo que tem algum
interesse para o ser humano, fomos nós que o criamos! Mas justamente este
saber nos falta, e se num instante o colhemos, no instante seguinte voltamos a
esquecê-lo (NIETZSCHE, 2001, p. 204).
É precisamente a posse desse saber apontado por Nietzsche que parece estar em
jogo no romance. Um saber que é fugidio e que a todo momento escapa pela via do
esquecimento. Perceber a si mesmo como criador é o lance decisivo que, se consumado,
permite a Riobaldo abdicar da busca sôfrega por um sentido alheio, extraído de uma razão
extrínseca, e passar a encarar-se como artista, forte o bastante para conceber um sentido
próprio, individual. Para Zaratustra, a especificidade do homem consiste em sua
capacidade de avaliar e criar o sentido: “Valores às coisas conferiu o homem, primeiro,
para conservar-se criou, primeiro, o sentido das coisas, um sentido humano! Por isso ele
se chama ‘homem’, isto é: aquele que avalia. Avaliar é criar: escutai-o, ó criadores!”
(NIETZSCHE, 2007, p. 86). No capítulo intitulado, “Do caminho do criador”, Zaratustra
indaga: “Queres (...) seguir o caminho da tua angústia, que é caminho no rumo de ti
mesmo? (...) Podes dar a ti mesmo o teu mal e o teu bem e suspender a tua vontade acima
de ti como uma lei? Podes ser o teu próprio juiz e vingador da tua lei?(NIETZSCHE,
2007, 89). Apossar-se do saber arisco que confere a todo sentido sua dimensão humana e
criadora ou, segundo Zaratustra, tornar-se o juiz de sua própria lei, é um desafio reproposto
inúmeras vezes no romance, aflorando em diversos pontos da rede narrativa. Durante a
rememoração da já mencionada segunda travessia do rio São Francisco, Riobaldo reflete:
Dando no meu corpo, aquele ar me falou em gritos de liberdade. Mas liberdade
aposto ainda é alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de
grandes prisões. Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e
que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer. Sou um homem
ignorante. Mas, me diga o senhor: a vida não é cousa terrível? (p. 233).
Observe-se que o tema da alegria surge, aqui, conjugado a uma concepção de
liberdade que depende diretamente da disposição criadora. Uma liberdade que está sempre
por fazer e cujo modo de obtenção é necessariamente individual. O “pobre caminhozinho”
pode ser lido, justamente, como o modo de ser doloroso de um perene atravessar em
direção a uma “verdade” que só se efetiva no âmbito da experiência subjetiva. Retomando
os termos de Zaratustra, o “caminho da aflição” de Riobaldo, “no dentro do ferro de
grandes prisões”, é aquele que conduz, em última instância, à sua própria condição de
sujeito caminhante, ou seja a ele mesmo. É necessário acrescentar ainda, que a solidão
como elemento indispensável ao criador comparece no romance em trechos como:
“Homem foi feito para o sozinho? Foi. Mas eu não sabia” (p. 143); ou ainda: “Um ainda
não é um: quando ainda faz parte com todos” (p. 142). Para Riobaldo, “um” se torna
“um”, isto é, só se consuma como sujeito criador a partir do momento em que, afastando-se
do todo, logra estabelecer, ao redor de si, o espaço necessário para a construção do sentido
individual.
Gostaríamos de finalizar este tópico com uma breve análise de um trecho
francamente enigmático da narrativa. Exatamente no meio do romance (p. 235-237)
uma longa pausa reflexiva que mescla vários dos temas mais caros ao narrador
62
. Motivos
62
Gabriela Reinaldo registra que, em 29 de outubro de 1963, Rosa escreve a Mário Calábria, cônsul-geral do
Brasil em Munique: “Pois bem – e posso dizer, porque outro crítico que não tenho à mão para aqui
transcrever, o notou e revelou, também acontece, no livro, a certo momento, esta coisa: é que na página
306 da primeira edição, começa um parágrafo enorme que dura quatro páginas. Começa com “Urubu?.”
como o medo, a alegria, a dor, a coragem, o caráter indelimitável do sertão, aparecem
poeticamente trançados. O trecho medial sintetiza o teor da reflexão de Riobaldo,
permitindo ao intérprete reconhecer “em flagrante” a especificidade do pensamento que se
encontra espalhado pela grande teia do narrado. Para Rosenfield, esta “parte do texto
constitui um verdadeiro ‘magma’ a fusão de todos os elementos essenciais em uma
matéria hiper-concentrada” (ROSENFIELD, 1992, p. 52). A nosso ver, é justamente nesse
“magma”, no qual a hiper-concentração do significado parece querer romper o arcabouço
formal da linguagem, que a possibilidade de um pensamento trágico surge com melhor
nitidez:
Digo ao senhor: tudo é pacto. Todo caminho da gente é resvaloso. Mas,
também, cair não prejudica demais a gente levanta, a gente sobe, a gente
volta! Deus resvala? Mire e veja. Tenho medo? Não. Estou dando batalha. É
preciso negar que o “Que-Diga” existe. Que é que diz o farfal das folhas? Estes
gerais enormes, em ventos, danando em raios, e fúria, o armar do trovão, as
feias onças. O sertão tem medo de tudo. Mas eu hoje em dia acho que Deus é
alegria e coragem (...). O senhor escute o buritizal. E meu coração vem comigo
(p. 237).
Verifica-se que a potência divina passa a ser circunscrita ao terreno da disposição
humana da alegria e da coragem concebidos ambos como os “vaus do mundo”,
elementos que permitem a realização da travessia no sertão hostil das “feias onças” e que
armam combate contra a ameaça reativa do medo. De fato, a força reativa é substituída
pelo ímpeto guerreiro e por uma concepção de vida como conflito e superação: “Tenho
medo? Não. Estou dando batalha”. Na constatação de que “tudo é pacto”, surge, velada, a
percepção de que a trama do real é arquitetada pela pactuação do sentido. A estratégia do
pacto pode ser lida, metaforicamente, como a face mítica da expressão de um saber
segundo o qual o mundo a que se tem acesso é resultado da disposição humana de pactuar,
ou seja, de decidir os possíveis sentidos da experiência. Na cena do pacto, é sugestiva a
reiteração da presença de uma força decisória de afirmação individual:
Ah eu, eu, eu! “Deus ou o Demo para o jagunço Riobaldo!” A pé firmado.
Eu esperava, eh! De dentro do resumo, e do mundo em maior, aquela crista eu
repuxei, toda, aquela firmeza me revestiu: fôlego de fôlego de fôlego da
naquela página. E vai terminar na página 309. Pois bem, nesse longo parágrafo, mais ou menos no meio do
livro, o que temos é uma exposição, entrecruzada, de todos os motivos principais (...). Um trançadinho de
motivos que são, aliás, muitíssimos mais do que o AC aponta.” (REINALDO, 2005, p. 152).
mais-força, de maior coragem. A que vem, tirada a mando, de setenta e
setentas distâncias do profundo mesmo da gente (p. 319).
Logo em seguida, ao invocar Satanás pela segunda vez, Riobaldo recebe apenas o
silêncio: “Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais”
(p. 319). Num movimento peculiar ao romance, a potência mítica exterior é transferida
para o plano humano. A força atribuída ao demônio é, em última análise, a força humana, o
fôlego humano, poder que vem “do profundo mesmo da gente”. Da mesma forma, o
silencioso vazio da ausência da entidade é preenchido pela persistência da presença
humana “a gente mesmo, demais”. São índices que, curiosamente, fazem com que a
figura do demônio perca todo poder de fundamento externo capaz de intervir nos rumos da
vida do narrador e passe a coincidir com ele mesmo: “o demo então era eu mesmo?(p.
356). O pacto, sob essa perspectiva, pode ser compreendido pelo viés afirmativo de um
pacto com a vida
63
, isto é, pacto com o paradoxo da precariedade e da força que define o
humano. Disso resulta a cristalização de um saber trágico que, ao fim do romance, surge
reiterado: “Nonada, O diabo não há. É o que eu digo, se for... Existe é homem humano” (p.
460). Ao término da narrativa, a perspectiva trágica da perda do fundamento transcendente
(divino ou diabólico) materializa-se sinteticamente na constatação afirmativa da existência
de “homem humano” que, elipticamente, oblitera a crença niilista no sentido extra-
mundano e abre caminho para uma vida fundada na habilidade humana de ficcionar o
sentido.
Na imensa rede de temas e motivos do romance, o saber trágico aflora em
coexistência com a diversidade de outros saberes que, mesclados entre si, conferem ao
narrado sua qualidade misturada, seu caráter plural que levou Finazzi-Agrò a caracterizá-lo
como Obra-mundo (FINAZZI-AGRÒ, 2001, p. 31). Ao fim da dificultosa tarefa de
transpor a vida em palavra, o narrador declara: “No que narrei, o senhor talvez até ache
mais do que eu, a minha verdade” (p. 454). A verdade de Riobaldo, esfacelada na
amplitude de uma palavra aberta à multiplicidade do sentido, ganha espessura quando
assumida como ficção. Para Nietzsche, “o dizer-sim à realidade é, para o forte, uma
necessidade tão grande quanto a covardia e a fuga da realidade - ‘o ideal’ o é para o
fraco, subjugado sob a inspiração da fraqueza” (NIETZSCHE, 2002, p. 90). Ao longo deste
63
Kathrin Rosenfield compreende o pacto como afirmação simbólica da relação de Riobaldo com as forças
vitais: “Riobaldo como que reconhece que toda e qualquer ação é simultaneamente uma opção por uma ou
outra faceta, a realização de uma tendência mortífera ou, ao contrário, vitória de um desejo vital”
(ROSENFIELD, 2006, p. 302).
estudo, buscamos explorar, em Grande sertão: veredas, a emergência de um pensamento
nascido da força: pensamento que surge em contraposição explícita àquele nascido da
fraqueza e da necessidade de consolo, coexistindo ambos no mesmo personagem. Em
Riobaldo, buscamos o indício da postura trágica que, perpassada pelo sofrimento, é capaz
do dionisíaco e alegre dizer-sim à realidade. Na mobilidade vertente de um pensar que se
propõe a contemplar o devir, buscamos iluminar a abundância de força que prescinde dos
ideais de fixidez e estabilidade para afirmar-se na perenidade do fluxo. Na agudeza de um
ímpeto indagador que não desvia o olhar frente ao sombrio e ao inaudito, a coragem
necessária a uma afirmação integral da existência. E a alegria, por fim, como coroamento e
consumação de tal saber, possibilidade do trânsito, força demasiado humana capaz de “dar
batalha” ao aguilhão do medo ou do demo, seu duplo anagramático.
Conclusão
O que pode ser demarcado, a título de conclusão, é o íntimo entrecruzar-se de arte e
pensamento na escritura de Rosa. Operar nesse terreno poroso (isto é, arriscar-se no
entremeio de literatura e filosofia) é, mais do que pensar o romance, pensar com o
romance, seguindo os fios que o narrado abre e investigando as questões que o narrado
sugere. A nosso ver, o trabalho com o pensamento, ao invés de “desvendar” e trazer à luz
supostas formações de sentido ocultas no fundo lodoso da obra, permite ao intérprete fazer-
se navegante e acompanhar, por si mesmo, o fluxo daquilo que a narrativa põe em
movimento. A arte trabalha nos limites do pensamento conceitual, dando forma ao
“indizível” que ficou inacessível ao trabalho da razão. O trabalho artístico, potenciado pela
intuição criadora, transita em lugares de difícil acesso ao pensador
64
. O sentido, portanto,
de buscar o “pensamento da arte” reside na tentativa de entrever de que forma o artista
reformula, repropõe e reatualiza, à sua maneira, o material esquivo ao pensamento.
A opção por Nietzsche, da mesma forma, vem da percepção da estreita proximidade
que a produção do filósofo guarda com o terreno do artístico. Para Benedito Nunes, o
“pensamento nietzscheano foi o primeiro a consagrar a opção nupcial da filosofia com a
poesia” (NUNES, 2000, p. 3). Para Nietzsche, os grandes problemas exigem a grande
paixão do conhecimento. O influxo poético intervém aí como corrupção das pretensões de
neutralidade e objetividade; como instrumento de investigação que burla continuamente os
limites frágeis entre o pensamento e a criação.
Ao longo deste estudo, buscamos investigar alguns dos temas e problemas
presentes no romance de Rosa à luz daquilo que, com Nietzsche, denominamos
conhecimento trágico. A nosso ver, a narração, colada ao itinerário da existência do
narrador-personagem, age de forma a tornar cada vez mais nítidos os contornos de um
conflito que aqui buscamos iluminar: a necessidade ontológica de fundamento (que traz em
si a exigência do consolo metafísico) contraposta à constatação trágica da ausência de uma
garantia unívoca de sentido (que traz consigo os apanágios da alegria e da coragem).
Conflito ao qual, ironicamente, caberia nomear de “trágico”, que o narrado
aparentemente não apresenta nenhuma espécie de conciliação ou de escolha que permitiria
conferir à trajetória de Riobaldo o aspecto de uma progressão teleológica rumo a quaisquer
metas pré-estabelecidas. O caminho da existência, mimetizado no discurso e plasmado
com força vital na linguagem, não responde a nenhum compromisso finalista ou
escatológico, afirmando-se antes na fecundidade dos contrastes que o atravessam. Grande
sertão: veredas, como o demonstrou a crítica, é uma obra que cultiva a ambigüidade ou
o pluralismo das perspectivas. Tentar enquadrar o romance neste ou naquele modelo
ideológico é perder de vista a própria natureza da matéria (mesclada) que o constitui e o
horizonte (plural) onde opera.
64
São inúmeros os pensadores, homens da reflexão sistemática que, percebendo ou imputando uma falência à
escrita filosófica, adentraram o espaço da literatura e das artes para construírem outro tipo de saber, tal como
o próprio Nietzsche, Sartre, Bataille, Camus, Klossowski, entre tantos outros.
Daí que, é pouco provável que uma pesquisa desse gênero conduza a conclusões
apaziguadoras ou, em outras palavras, a pesquisa não reduz a ampla a rede de recados do
romance a apenas um fio que corresponda a um recado unívoco e “edificante”. O sentido
está sempre à frente, sempre à espera (ou à espreita) e a pergunta impossível, potenciada
pela lemniscata ao desfecho, continua a ser reproposta: “O diabo existe e não existe?”
(p.11). A possibilidade de respondê-la afirmativamente corresponde à tarefa de assumir a
vida como feixe de alternativas dissonantes ou como terreno em constante mutação.
Entenda-se: o trágico o consiste em optar por uma das alternativas (ser ou não-ser) mas
pensá-las em conjunto, como indica o próprio narrador: “Tudo é e não é” (p. 12). Marcel
Conche, baseado em Nietzsche e Heráclito, investiga os pressupostos de uma sabedoria
trágica:
O mundo é uma ordem, um arranjo, uma estrutura. É preciso que os entes
sejam mantidos juntos: formar um mundo é, em Heráclito, a sua maneira de
estarem juntos. O mundo não é um ente. (...) Os entes aparecem e desaparecem
, mas sempre haverá entes que sempre estarão dispostos em mundo. O que
existiu, existe e existirá não é um ente, nem o Ser, mas o princípio, simultânea
e indissociavelmente, do ser e do não-ser dos entes. (...) Os entes não são senão
processos. Mais exatamente: cada ente não existe senão por um processo duplo
(dois processos de sentido inverso) de criação e destruição. Desfaz-se e refaz-
se incessantemente. (...) O entes não fazem senão aparecer e desaparecer.
permanece o Jogo. Um jogo em que ninguém ganha, e em que o escopo
primordial é quanto ao ser e ao não-ser, um jogo trágico. Não se pode nem
mesmo dizer que haja um Jogador. apenas o Jogo se jogando a si mesmo,
por conseguinte, na completa “inocência”, na completa irresponsabilidade
(CONCHE, 2000, p. 223-226).
É possível, pois, que os contornos de um pensamento trágico em Grande sertão:
veredas sejam visíveis, não na seqüência dos sucessos da experiência rememorada, mas
sobretudo na própria idéia de “mundo” que o narrado apresenta através das lentes do
narrador. Idéia tal que, configurada literariamente pelos signos do rio e da travessia, remete
diretamente ao princípio trágico da mutação. A ausência do Sentido (a ausência de Deus
como fonte do Sentido) lugar, portanto, à visão do todo discordante e de suas partes em
conflito, ou melhor, como quer Conche, em jogo. Jogo que comporta, num mesmo
movimento, o sofrimento da ausência (ou da perda) de demarcações, própria do Grande
sertão, e a alegria de sabê-lo vasto e ilimitado e pleno de veredas. Em Riobaldo, coabitam
a busca angustiada pelo fundamento (supostamente) atenuada pela perspectiva metafísica e
a demanda trágica pela afirmação incondicional da vida, secundada pela imperatividade
dos emblemas da alegria e da coragem. Instaurado o jogo entre o credo incondicional e o
exercício da suspeita, a narração avança na forma de uma longa especulação em que,
todavia, o desfecho não coincide com o “achamento” do sentido. A busca pela “receita, a
norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver” (p. 366) permanece
inconclusa e aponta para a própria questão do homem
65
. Para Rosenfield, o que
impede Riobaldo de chegar ao fim dessa sua tarefa é a “matéria vertente”, isto
é, as reviravoltas não apenas individuais, mas inscritas em todas as coisas e
experiências humanas. O “verter” incessante das coisas sentimentos, destinos
e veredas reitera-se ao nível da narração, da ambivalência e da abertura das
palavras, a “matéria vertente” tornando-se metáfora da condição humana em
todas as suas dimensões (ROSENFIELD, 2006, p. 202).
O ato de narrar, no romance, corresponde ao próprio exercício (tortuoso) do
pensamento filosófico que se compraz em sua própria incompletude. Na alegria da
precariedade habita o trágico, e nos habita. A felicidade do trágico requer o amor ao
precário, ao fugaz, ao frágil. Propõe Conche: “É verdade que o homem trágico tem
presente no espírito a fragilidade das coisas, mas nem por isso dá a elas menos importância
e valor. Ao contrário, mesmo reconhecendo-lhes o valor e a importância, não fica cego ao
seu caráter radicalmente fugaz” (CONCHE, 2000, p. 239). Assim, os sentidos (provisórios)
do narrado só se vislumbram durante o seu próprio fluir e refluir, estando o trágico
exatamente no espaço móvel do texto que parece mimetizar o caráter instável de um vir-a-
ser que nunca cristaliza em sentido: “O senhor entende, o que conto assim é resumo; pois
no estado do viver, as coisas vão enqueridas com muita astúcia” (p. 310). A “astúcia”
própria do “estado do viver”, ou seja, o perene trânsito, a harmonia discordante que burla
as certezas e define a condição humana enquanto eterna busca, instaura o lugar do real a
um passo além da linguagem. Mas a linguagem, em Rosa, também guarda suas astúcias.
Ao abdicar do estatuto de suposto instrumento representacional, a palavra rosiana opera
desestabilizando as cristalizações de sentido.
Cremos que a experiência que Grande sertão: veredas apresenta é, antes de tudo,
uma experiência de linguagem. Como fundamento de todo conhecimento, a linguagem,
65
Marcel Conche indica: “No horizonte de todas as questões filosóficas encontra-se a questão da sabedoria:
por que viver? Por que viver de um modo e não de outro? (...) O filósofo é o homem que sendo “homem”,
descobre que não sabe exatamente o que isso significa. Isso equivale a dizer que ele não pode saber se faz
bem em viver como vive durante o tempo em que não respondeu a pergunta: o que é viver como homem?
Ou: o que é o homem? A “questão do homem”: é essa a questão inicial em filosofia (CONCHE, 2000, p.
107).
para Nietzsche, é a matéria-prima e o substrato do edifício conceitual metafísico. Em
conseqüência, a possibilidade de edificação de um outro saber sobre a vida, um saber
trágico, passa, necessariamente, por uma intervenção sobre esse território. Intervenção esta
que, a nosso ver, Rosa realiza de modo radical. O mundo da identidade e da duração,
quando revisitado pelo signo fluido do romance, revela-se como mundo da mudança e da
diferença. Em outras palavras, o mundo unitário do Ser, potenciado pela palavra trágica,
aparece multiplicado no(s) mundo(s) do devir.
Afirmar o ser do devir, como em Heráclito, significa abdicar à fixidez contida na
idéia de fundamento, sustentada pela linguagem, e assumir o instável como condição do
existir. Nietzsche propõe:
Quando empregamos a palavra “felicidade” no sentido que lhe atribui a nossa
filosofia, não pensamos primeiro, como os filósofos lassos, ansiosos e
sofredores, na paz exterior e interior, na ausência de dor, na impassibilidade, na
quietude, no “ócio dos ócios”, numa posição de equilíbrio, em algo que seja
equivalente a um sono profundo sem sonho. Nosso mundo é bem mais o
incerto, o instável, o variável, o equívoco, um mundo perigoso, talvez,
certamente mais perigoso do que o simples, o imutável, o previsível, o fixo, e
tudo o que os filósofos anteriores, herdeiros das necessidades do rebanho e das
angústias do rebanho, honraram acima de tudo (NIETZSCHE, Apud
CONCHE, 2000, p. 219).
Na contramão da tradição filosófica platônica que institui, para além do real, um
mundo fictício de qualidades eternas e imutáveis, a perspectiva nietzscheana restitui o real
(sua complexidade antinômica) ao pensamento. A audácia do pensamento trágico consiste
em desprender-se das imposturas “demasiado humanas” do sentido e lançar-se rumo ao
“perigo” de um mundo isento de garantias postas de antemão. O riobaldiano “Viver é
negócio muito perigoso” (p. 11), recado insistente reiterado ao longo de todo o romance,
ecoa a adesão nietzscheana por um pensamento que não se furta à contemplação do
“incerto”, do “instável”, do “variável”, do “equívoco”.
Por outro lado, o trabalho de elaboração do trágico, no romance, efetua-se, como
esperamos ter demonstrado, em vivências de Riobaldo que o conduzem, reflexivamente, ao
questionamento de paradigmas estabelecidos por uma longa tradição do pensamento.
Paradigmas tais como a noção de sujeito concebido como entidade autônoma e substancial,
o estatuto pétreo de valores morais, a adequação entre linguagem e realidade, a perspectiva
de redenção metafísica, são submetidos, ao longo do narrado, a um minucioso processo
(genealógico, diríamos) de desmontagem, que acaba por revelá-los como impostura
destinada a mascarar o caráter doloroso da experiência humana.
O trágico depende, portanto, de uma disposição do pensamento apto a penetrar nos
territórios “sagrados” das ficções humanas que tornam mais ameno o existir. Contudo, a
felicidade do homem trágico, como aponta Nietzsche, não reside nos recantos de paz e
estabilidade. O trágico, no romance, é fruto de um trabalho meditativo que o narrador,
como “cão mestre” (p.15) (e a despeito de sua necessidade de fundamento), está
constantemente disposto a realizar.
Não se deve deixar de lado, entretanto, a percepção de que o trágico se como
passagem, como transformação, como exercício de luto que supera a dor da destruição e
abre o lugar da criação. No breve histórico do trágico, apresentado no capítulo primeiro,
buscamos iluminar o itinerário que o pensamento sobre o trágico percorre no bojo da
modernidade. O trágico em “passagem” pela modernidade sofre o gradual desligamento da
preceptiva aristotélica e firma-se como categoria apta a polarizar traços da experiência
humana. Do classicismo de Goethe e Schiller em Weimar, nos últimos decênios do século
XVIII, passando ao idealismo, e deste ao sopro destrutivo da crítica nietzscheana da
cultura, no último quartel do culo XIX, articula-se gradualmente, no espaço de um
século, a filosofia do trágico. Nesta pesquisa, tal itinerário, embora não atue diretamente
como instrumental na análise do romance, faz ressaltar a especificidade que o conceito
adquire com Nietzsche e a partir de então
66
. Não como noção pronta e acabada, mas como
transformação contínua, o trágico nietzscheano, emancipado das configurações formais do
drama, é fruto de uma época e de uma certa visão da existência. Não se poderia ignorar a
escalada do trágico pelos diversos patamares do pensamento sem o risco de perder de vista
o feixe significativo essencial que a noção traz e que diz respeito ao trágico como
transformação.
Com Meiches, acreditamos que o trágico “discute sem cessar esse semipterno
movimento das formas: na escritura do texto que o estabelece, na sua própria tessitura, na
constituição de sua definição. (...) Falar de transformação, da transitoriedade de qualquer
forma é, intrinsecamente, nomear o trágico (MEICHES, 2000, p. 20). Neste estudo,
66
Aqui, voltamos a frisar a posição de Roberto Machado segundo a qual se torna “possível compreender
profundamente a significação do pensamento de Nietzsche sobre a tragédia, e até mesmo sua ambição,
característica do último período de sua filosofia, de ser o primeiro filósofo trágico ou o inventor do ditirambo
dionisíaco, se o inserirmos nesse movimento de idéias sobre a tragédia e o trágico existente na Alemanha
desde o início da modernidade, movimento sem paralelo em nenhum outro país (MACHADO, 2006, p.43).
portanto, buscamos iluminar o movimento (sempre a se fazer) que conduz o narrador da
negação das formas instáveis do devir à afirmação trágica de tal instabilidade. Entretanto, a
separação entre os campos da negação (capítulo segundo) e o da afirmação (capítulo
terceiro), necessária para fins analíticos, não deve encobrir o fato de que ambas coabitam o
sujeito da narração. É apenas no ímpeto de um pensamento em travessia que o trágico
sobrevive. Tal estar-em-trânsito define a especificidade da própria condição humana
pensada por Nietzsche:
O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem uma corda
sobre um abismo. É o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o
perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e parar. O que de grande, no
homem, é ser ponte, e não meta: o que pode amar-se, no homem, é ser uma
transição e um ocaso. Amo os que não sabem viver senão no ocaso, porque
estão a caminho do outro lado (NIETZSCHE, 2007, p. 38).
A noção nietzscheana do humano como “ponte”, como “transição” ou como
“ocaso” traduz bem o que até aqui vínhamos tentando exprimir, isto é, o lugar
intermediário de um pensamento em perene exercício. Pensar e viver tragicamente
consiste, então, em abdicar dos lugares (im)postos pela tradição e pela vida gregária e
habitar com alegria e coragem os vaus do mundo esse não-lugar, essa terceira margem
que é o lugar insituável da travessia.
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