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Paulo Roberto dos Santos Corval
EXCEÇÃO PERMANENTE
Introdução a uma categoria para a
teoria constitucional no século XXI
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Direito do Departamento de
Direito da PUC-Rio como parte dos requisitos
parciais para a obtenção do título de Mestre
em Direito.
Orientador: José Ribas Vieira
Rio de Janeiro
Março de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510783/CB
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Paulo Roberto dos Santos Corval
EXCEÇÃO PERMANENTE
Introdução a uma categoria para a
teoria constitucional no século XXI
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Direito do Departamento de
Direito da PUC-Rio como parte dos requisitos
parciais para a obtenção do título de Mestre
em Direito.
Prof. José Ribas Vieira
Orientador
Departamento de Direito – PUC-Rio
Prof. Renato de Andrade Lessa
SBI/IUPERJ e UFF
Prof.ª Gisele Guimaraes Cittadino
Departamento de Direito – PUC-Rio
Prof. João Pontes Nogueira
Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro
de Ciências Sociais – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 21 de março de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510783/CB
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do
autor e do orientador.
Paulo Roberto dos Santos Corval
Graduou-se em Direito na PUC-Rio em 2004. Advogado.
Assessor na Procuradoria Regional da República
Região/Ministério Público Federal.
Ficha catalográfica
CDD: 340
Corval, Paulo Roberto dos Santos
Exceção Permanente: Introdução a uma categoria para
a teoria constitucional no século XXI / Paulo Roberto
dos Santos Corval; orientador: José Ribas Vieira. – Rio
de Janeiro: PUC, Departamento de Direito, 2007.
viii.; 156f.:il.: 29,7 cm
1. Dissertação (mestrado) Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro,
Departamento de Direito.
Inclui referências bibliográficas.
1. Direito Teses. 2. Constituição. 3.
Normatividade; 4. Norma. 5. Realidade. 6.
Exceção permanente. 7. Direitos fundamentais.
8. Hermenêutica. 9. Tribunais constitucionais. I.
Vieira, José R. (José Ribas). II. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Direito. III. Título.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510783/CB
Agradecimentos
A Deus, rocha minha, toda honra, toda glória, todo louvor!
À minha esposa Amanda, pela compreensão, amizade e amor imprescindíveis à
conclusão deste trabalho. Foram penosas as horas em que, por causa dos livros e
textos, tive de me afastar de sua maravilhosa companhia.
A meus pais. Jamais poderei pagar a “dívida” que tenho com vocês. Obrigado
pelo apoio e, principalmente, pelas numerosas vezes que, esforçando-se para
entenderem as idéias confusas que lhes expunha, ouviram-me com grande
dedicação.
Ao estimado Prof. José Ribas Vieira, pelo auxílio, otimismo, inspiração e
inacabáveis indicações de leitura.
A Enzo Bello. Lutar ao lado de grandes homens nos engrandece.
A todos os companheiros que ingressaram comigo no mestrado. Vocês tornaram
mais agradáveis esses dois últimos anos. Um grande abraço!
Aos professores do Departamento, pelos muitos ensinamentos, conversas e
auxílio.
A todos os funcionários do Departamento, especialmente ao Anderson e a
Carmen. Sem a ajuda e disponibilidade de vocês seria difícil chegar ao final.
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Resumo
Corval, Paulo Roberto dos Santos; Vieira, José Ribas. Exceção
Permanente introdução a uma categoria para a teoria constitucional
no século XXI. Rio de Janeiro, 2007 156p. Dissertação de Mestrado –
Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
Sobre a teoria constitucional desenvolvida na segunda metade do século XX
(a teoria pós-1945) está assentada a produção teórico-dogmática hegemônica no
direito constitucional brasileiro. Quer na sua matriz valorativa quer naquela
direcionada por princípios e procedimentos é pressuposto que as constituições
detêm uma espécie de normatividade autônoma capaz de regular a vida,
harmonizando, pela via da reciprocidade, a tensão entre norma e realidade. Num
momento de globalização, risco, estado de guerra, Império e neoliberalismo,
entretanto, o consenso teórico alcançado com a tese da normatividade autônoma
da constituição acha-se desestabilizado. Necessária sua reestruturação. A isso se
propõe Exceção Permanente: introdução a uma categoria para a teoria
constitucional no século XXI. A categoria exceção permanente, apresentada nesta
dissertação em suas linhas introdutórias, aponta, ao invés da reciprocidade, em
direção à imanência entre norma e vida, bem assim a um âmbito de
indiscernibilidade em que o discurso jurídico-constitucional é redimensionado,
abrindo horizontes à ação emancipatória e a uma nova compreensão da própria
normatividade. Ilumina a difícil e obscura equação entre constituição e vida,
encontrando-se nela chave adequada para compreender o processo histórico
contemporâneo, diretivas teóricas e mecanismo para articular questões centrais da
teoria constitucional, v.g., constituição, direitos fundamentais, hermenêutica
constitucional e jurisdição constitucional.
Palavras-chave
Constituição; normatividade; norma; realidade; exceção permanente;
direitos; hermenêutica; tribunais constitucionais.
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Abstract
Corval, Paulo Roberto dos Santos; Vieira, José Ribas. Exceção
Permanente introdução a uma categoria para a teoria constitucional
no século XXI. Rio de Janeiro, 2007 156p. Dissertação de Mestrado –
Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
The constitutional theory developed in the second half of the XX century
(the theory of post-1945) bounds the hegemonic theoretic-dogmatic tradition in
the constitutional Brazilian Law. Whether in the valued matrix or in the one
guided by principles and procedures is based on the assumption of the
Constitution’s autonomous normativity that is able to regulate life, harmonizing,
by the way of reciprocity, the tension between norm and reality. However, in a
period of globalization, risk, war state, Empire and neo-liberalism, the theoretic
consensus achieved by the autonomous normativity theory of the constitution is
non-stabilized. Urging a new structure. It is the aim of Exceção Permanente:
introdução a uma categoria para a teoria constitucional no século XXI. Instead of
the reciprocity post-1945 theory, the permanent exception category introduce in
this dissertation points in the direction to the immanence between norm and life,
and to a space of indiscernability whose legal-constitutional speech is re-
dimensioned opening new horizons to the emancipatory action and to a new
comprehension of the normativity. Clarify the difficult and obscure equation
between the constitution and life. As a consequence of that, it is found inside this
permanent exception category an appropriated key to comprehend the
contemporaneous historical process, theorical directives and mechanism to
articulate central questions of the constitutional theory, v.g., constitution,
fundamental rights, constitutional hermeneutic and constitutional jurisdiction.
Key words
Constitution; normativity; norm; reality; permanent exception; rights;
hermeneutics; courts constitutional.
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Sumário
1. Introdução ..............................................................................................09
2. A teoria constitucional pós-1945 e a problemática da normatividade
autônoma da constituição ............................................................................14
2.1. Dinâmica: constituição, direitos fundamentais,
hermenêutica/interpretação, tribunais constitucionais e normatividade
autônoma ....................................................................................................14
2.2. A normatividade autônoma na base da teoria constitucional pós-
1945: Hesse, Häberle, Müller e Zagrebelsky ...............................................27
2.3. Normatividade autônoma em crise .......................................................38
3. Um novo contexto: situação de exceção permanente ...........................44
3.1. Globalização..........................................................................................44
3.2. Risco .....................................................................................................50
3.3. Estado de guerra e Império ..................................................................56
3.4. Neoliberalismo ......................................................................................60
4. Exceção pemanente: uma categoria para pensar a Teoria
Constitucional no século XXI .......................................................................68
4.1. Origens: Carl Schmitt e a República de Weimar ..................................68
4.2. De 1945 a 2001: uma síntese dos novos rumos ..................................82
4.3. Revitalização: o debate norte-americano sobre a constituição de
emergência ..................................................................................................87
4.4. (Re)construindo a exceção ...................................................................95
5. Exceção pemanente: algumas implicações .............................................110
5.1. Pensando o Brasil ................................................................................110
5.2. Constituição, direitos fundamentais, hermenêutica/interpretação,
tribunais constitucionais ..............................................................................119
6. Conclusão ..............................................................................................135
7. Referências bibliográficas .......................................................................143
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Lista de Ilustrações
Quadro 1 Constitucionalistas alemães pós-1945 sobre o papel da
constituição e fatores de sua contextualização social .................................27
Quadro 2 Resumo do debate sobre a globalização, seu conceito e
suas principais implicações .........................................................................47
Quadro 3 Fragmentos da decomposição da modernidade ao longo
do século XX segundo Alain Touraine ........................................................48
Figura 1 Taxas de crescimento global por ano e década no período
de 1960 a 2003 ...........................................................................................62
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1
Introdução
Não é equivocado afirmar que a difusão recente das constituições e do
constitucionalismo segue lado a lado, porquanto a pressupõe, com a maneira de
compreender a relação entre a força normativa da constituição e a realidade, a
vida. A história político-constitucional do ocidente no século passado, marcada
por um acelerado desenvolvimento econômico e tecnológico, por regimes
totalitários, por duas guerras mundiais, pela exploração contínua de países pobres
por grandes potências econômicas e militares e por uma certa incapacidade da
constituição de servir de meio estabilizador da vida, aguça a curiosidade sobre tão
delicada problemática.
A curiosidade lugar à perplexidade quando na segunda metade do século
XX, ainda latentes no imaginário individual e coletivo as atrocidades nazistas e
facistas, alcançou-se, em doutrina, sob o que denominamos teoria constitucional
pós-1945, significativo consenso quanto à tese de que as constituições detêm uma
espécie de vida ativa autônoma não instrumentalizada pelos fatores reais de poder
que Lassalle sustentava, no século XIX, constituírem a essência das constituições,
harmonizando-se, com isso, a tensão entre norma e realidade.
Iniciado um novo milênio com novos ou renovados e fortificados problemas
e desafios, entretanto, o difícil equilíbrio entre norma e vida construído com a tese
da normatividade específica ou autônoma da constituição é desestabilizado,
afigurando-se necessária sua reestruturação. Num momento histórico de
globalização, risco, estado de guerra, Império e neoliberalismo, ou seja, numa
situação de exceção permanente, em que a constituição e sua normatividade
autônoma se encontram, mais uma vez, em crise, portanto, de se perscrutar se
deve ser mantido o consenso teórico pós-1945 ou estabelecida uma reflexão
crítica, ainda que propedêutica, capaz de lançar luz renovadora sobre a difícil e
obscura equação entre constituição e vida.
Esse o propóstio que inspira este trabalho e nos conduzirá, na linha de
pesquisa em teoria constitucional contemporânea, à análise da seguinte
problematização: numa situação de exceção permanente impõe-se construir uma
renovada categoria que, expondo a imanência da realidade no âmbito normativo e
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a existência de um espaço de indiscernibilidade entre norma e vida, redimensione
o discurso jurídico-constitucional e abra horizontes à ação emancipatória extra-
jurídica e a uma nova compreensão da própria normatividade, servindo de chave
adequada para compreender as mudanças do cenário sócio-políco-econômico do
século XXI, de sinalizador de diretivas teóricas e de mecanismo para articular
questões centrais da teoria constitucional: a categoria da exceção permanente.
Tem-se em vista, assim, a situação de exceção permanente que se
consolidou ou se vem consolidando no início do século XXI e a necessidade
de se erigir, por causa disso, uma categoria capaz de reequacionar normatividade e
vida.
Voltar os olhos à exceção permanente mantém acesa a relação entre direito
e política no bojo da teoria da constituição erguida após a Segunda Guerra
Mundial, especificamente no que concerne à atuação dos tribunais ou cortes
constitucionais, ao tema dos direitos humanos, à hermenêutica/interpretação
constitucional e à própria definição de constituição.
Além disso, a categoria da exceção permanente ajudará a compreender por
que as pretensões normativas da teoria pós-1945, que influenciou e influencia
a Constituição brasileira de 1988, não se concretizam, deixando à vista, ainda que
de modo implícito, incongruências da democracia liberal capitalista.
A exceção permanente, em síntese, nos levará a refletir sobre a possível
insuficiência da teoria pós-1945 que, atada à normatividade autônoma da
constituição, não abre maior espaço à complexidade da vida e à problemática do
poder.
Objetiva a dissertação, dessa sorte, introduzir a categoria da exceção
permanente no debate constitucional por nela encontrar adequada chave de
compreensão do momento histórico neste início de milênio e mecanismo crítico e
renovador da teoria constitucional e de suas questões centrais, v.g., constituição,
direitos fundamentais, hermenêutica constitucional e jurisdição constitucional.
Metodologicamente, é ver que a pesquisa se desenvolve num âmbito teório
de análise. Situa-se, no seu aspecto histórico, no discurso da teoria da constituição
dos últimos 60 anos, direcionando a atenção, de forma especial, à influência das
tradições norte-americana e romano-germânica e aos debates formulados no eixo
Estados Unidos e Europa notadamente Alemanha sem, contudo, deixar de
inserir as questões levantadas no contexto brasileiro. Assume, além do mais,
um enfoque multidisciplinar tanto para apontar aquela que seria a deficiência
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maior da teoria constitucional pós-1945 o pressuposto da normatividade
específica ou autônoma da constituição, que mantém separadas norma e realidade
como para indicar uma nova leitura da problemática mediante a introdução da
categoria da exceção permanente.
A empreitada será viabilizada, num primeiro momento, ao se identificar
que a teoria constitucional da segunda metade do século XX está centrada no
pressuposto da normatividade autônoma da constituição e se contextualizar a
noção de exceção permanente no cenário mundial e brasileiro: daí a referência a
uma situação de exceção permanente. Não se fará, quanto a esse aspecto, exame
exaustivo da temática, uma vez que a dissertação apresenta caráter propedêutico
quanto à inserção da categoria da exceção no discurso teórico-constitucional.
Enfatizar-se-á, principalmente, a necessidade de proporcionar maior abertura à
imanência da realidade na norma, à dinâmica histórica e à lógica do poder e de
criar mecanismos de crítica ao pressuposto básico da normatividade autônoma.
No segundo momento desenvolver-se-á de maneira mais detida a categoria
da exceção permanente e, a título exemplificativo, expor-se-á, brevemente,
alguma repercussão sua no debate referente à noção de constituição, à
hermenêutica/interpretação constitucional, aos direitos fundamentais e à atuação
dos tribunais constitucionais.
Necessário esclarecer que essa estrutura da dissertação não corresponde ao
projeto aprovado, em meados de 2006, no exame de qualificação perante a
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
No projeto levantava-se a problemática de que o Supremo Tribunal Federal,
no decorrer do mandato do Presidente Lula, seguindo postura pragmático-
conseqüencialista de decisão, tem se pronunciado de modo favorável às políticas
do governo, ratificando, assim, uma das principais características do cenário
sócio-político de exceção permanente deste início de século, a saber, a
centralização de poder, notadamente, no Executivo.
Objetivaria a dissertação, dessa sorte, analisar, no início do século XXI,
tendo por marco a categoria exceção permanente, a atuão do Supremo Tribunal
Federal naqueles casos em que deliberou sobre políticas que afetavam,
diretamente, os interesses do Executivo a fim de comprovar que o Supremo
Tribunal, não sem assumir uma perspectiva pragmático-conseqüencialista na
aplicação do direito, tem se pronunciado de modo favorável às políticas do
governo, ratificando, repita-se, o que seria uma das características do cenário
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sócio-político de exceção permanente no início do milênio: a centralização de
poder.
No exame de qualificação ponderou a banca, principalmente, no sentido de
que se deveria assegurar distância histórica mais segura para a pesquisa e maior
isenção política, não restringindo o exame ao período do governo Lula. Apontou-
se, ademais, a necessidade de se ampliar o conjunto de decisões do Supremo
Tribunal Federal a serem analisadas.
A exceção permanente emergia, aí, somente como marco teórico para
arrimar a análise da problematização.
Estimava-se que no período de maio a novembro de 2006 conseguir-se-ia
levar a termo a pesquisa. O desenvolvimento do marco teórico e o levantamento e
análise dos acórdãos do Supremo Tribunal Federal e dos votos de seus ministros,
entretanto, na medida em que a empreitada avançava, consumia tempo maior do
que aquele fixado no projeto, de modo que não se mostrava viável concluir a
dissertação na data azada. Isso implicou redefinir o projeto e transmutar aquilo
que seria apenas um marco em problemática central de nossas investigações – não
se pode negar que essa inversão, na verdade, consubstanciava minha pretensão
primeira, nascida em meados de 2005 nas aulas de teoria constitucional
contemporânea ministradas pelo Professor José Ribas Vieira.
Disso resultam conseqüências não desconhecidas do iniciante na pesquisa
jurídica. Antecipo, assim, que ao longo da dissertação serão encontradas
dificuldades no que concerne, notadamente, ao levantamento bibliográfico e à
organização do texto. Nada, contudo, que prejudique o exame da problematização
e do objetivo propostos.
No capítulo seguinte procurar-se-á, por dois caminhos, deixar claro que a
teoria constitucional pós-1945 é caracterizada por uma específica leitura da
normatividade da constituição, a saber, sua força normativa ou, como preferimos,
sua normatividade autônoma: (i) ao se atentar para a articulação dinâmica –
voltada ao fenômeno jurídico-político de quatro temas importantes da teoria
constitucional: constituição, direitos fundamentais, hermenêutica/interpretação,
tribunais constitucionais; (ii) ao se analisar textos de quatro autores que se
destacaram, no âmbito da tradição romano-germânica, na construção da teoria
constitucional pós-1945 e que servem de arrimo à sua internalização e
desenvolvimento no Brasil. Além disso, indicar-se-á que vivenciamos
modificações no cenário sócio-político-econômico que exigem, no início do
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século XXI, uma nova compreesão da normatividade se se almeja um horizonte
emancipatório.
O terceiro capítulo é dedicado a esboçar, sinteticamente, as recentes
modificações sociais em escala planetária que têm conduzido à crise da
normatividade específica ou autônoma da constituição e à imprescindibilidade de
uma nova categoria para compreender a normatividade e a dinâmica do fenômeno
jurídico-político: a exceção permanente. A imagem dessa situação será
apresentada por intermédio de cinco noções globalização, risco, estado de
guerra, Império e neoliberalismo –, deixando mais clara a conclusão do capítulo
primeiro no sentido de que, ante um cenário de agudização do risco, gerador de
dominação, propagador de violência e contrário à criatividade constituinte do ser
humano, em que se reafirma, ainda que implicitamente, o discurso da
insuficiência do regime democrático, a normatividade autônoma que serve de
fundamento da teoria constitucional pós-1945 se vê, realmente, em crise.
Espera-se no quarto capítulo sedimentar a conclusão de que enfrentamos,
hoje, no mundo e também em nosso país, um contexto transformador da
normatividade autônoma que mantém a realidade como dado exterior à
constituição. É o que sinalizada a experiência norte-americana hodierna.
Extraindo as origens da exceção em Schmitt almeja-se, com Aganbem,
(re)construir a categoria adjetiva, agora, pela permanência e direcionada à
reconstrução do normativo, à exposição da imanência entre vida e norma, da zona
de indiscernibilidade não apreendida, em sua totalidade, pelo discurso jurídico-
constitucional que, por si só, é incapaz de conquistas emancipatórias e, por isso,
deve proporcionar maior abertura à política.
O capítulo quinto volta-se, em específico, à esboçar algumas implicações da
categoria da exceção permanente para a teoria constitucional no século XXI,
promovendo, com destaque, uma breve incursão no debate referente aos tribunais
constitucionais.
Na seqüência, a conclusão.
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2
Breve esboço da teoria constitucional pós-1945: a
problemática da normatividade autônoma da constituição
Sumário do capítulo: 2.1. Dinâmica: constituição,
direitos fundamentais, hermenêutica/interpretação,
tribunais constitucionais e normatividade autônoma;
2.2. A normatividade autônoma na base da teoria
constitucional pós-1945: Hesse, Häberle, Müller e
Zagrebelsky; 2.3. Normatividade autônoma em crise.
Neste capítulo, ainda que de maneira não exaustiva, destacar-se-á que a
teoria constitucional pós-1945 é caracterizada por uma específica leitura da
normatividade da constituição: sua força normativa ou, como preferimos, sua
normatividade autônoma. Isso é revelado, inicialmente, ao atentarmos para a
articulação dinâmica voltada ao fenômeno jurídico-político de quatro
dimensões importantes da teoria constitucional: constituição, direitos
fundamentais, hermenêutica/interpretação, tribunais constitucionais. Constatar-se-
á a normatividade autônoma, além disso, mediante a análise de textos de autores
que se destacaram, no âmbito da tradição romano-germânica, na construção da
teoria constitucional pós-1945 e que serviram de arrimo à sua internalização no
Brasil. Sinaliza-se, enfim, que vivenciamos modificações no cenário sócio-
político-econômico que exigem, no início do século XXI, uma nova compreesão
da normatividade se se almeja um horizonte emancipatório.
2.1
Dinâmica: constituição, direitos fundamentais,
hermenêutica/interpretação, tribunais constitucionais e
normatividade autônoma
Na segunda metade do século XX, ao término dos anos da grande crise
ocidental, sob o que denominamos teoria constitucional pós-1945, é reafirmada e
consolidada a tese do constitucionalismo clássico no sentido de que as
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constituições detêm uma espécie de normatividade autônoma, de vida ativa
própria, não instrumentalizada pelos fatores reais de poder que Lassalle
sustentava, no século XIX, consubstanciarem a essência das constituições.
1
Reitera-se, num nível elevado de complexidade, após a traumática
experiência das Grandes Guerras Mundiais e do avanço dos regimes totalitários,
notamente do nacional-socialismo alemão, o processo histórico da modernidade
que reveste sob a forma jurídica o universo simbólico responsável pela
reprodução da vida em sociedade. Não se trata, contudo, de uma forma jurídica
pura. Essa judicialização é multifacetada e influenciada por um plexo de
variáveis, tendo em vista, de modo específico, que o direito, além de autorizar,
permitir, regulamentar, sancionar e proibir condutas, cumpre importante função
social integradora, apoiando-se num nexo interno entre ordenação e
fundamentação.
2
A judicialização opera, principalmente nesses últimos 60 anos, pela via da
constituição e de seu entrelaçamento com a moral e a política, nada a obstar se
possa mesmo falar, sem equívocos e talvez numa metonímia, apenas em
constitucionalização. Isso se deve, indicam as experiências alemã dos anos de
1930 e norte-americana do New Deal, ao desgaste da(s) noção(ões) liberal(is) de
lei e de legalidade que, na primeira metade do século XX, viram aumentar a
atuação legiferante do Executivo e a materialização ou substancialização do
ordenamento, bem assim a necessidade de se incorporar essa flexibilização numa
forma que mantivesse a segurança e a estabilidade necessárias ao
desenvolvimento do capitalismo e do próprio ordenamento político-jurídico –
ainda que uma segurança e estabilidade conquistadas ou construídas em meio à
fragmentariedade e à heterogeneidade do mundo.
A constituição é reapresentada para harmonizar essa problemática e manter
as pretensões de controle do poder do Estado num ambiente que não mais
suportava o excessivo formalismo da legalidade e do constitucionalismo
1
LASSALLE, Ferdinand, A essência da Constituição, p. 32: “Esta é, em síntese, a Constituição
de um país: a soma dos fatores reais do poder que regem uma nação”.
2
HABERMAS, Jürgen, Direito e democracia: entre facticidade e validade, v. I, p. 94-112.
Habermas atribui a Max Weber o desvendar dessa característica do direito racional que, ele,
Habermas, irá utilizar na sua compreensão do direito: Max Weber faz jus a esse nexo interno
entre princípio de ordenação e de fundamentação no nível da teoria da ação (...)” (p. 101). Por
ordenação se ressalta a dimensão empírica, objetiva, reguladora do agir social. Por fundamentação,
volta-se à dimensão subjetiva, axiológica, “justificadora” da ordem.
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clássicos.
3
Daí acreditamos a constituicionalização, pela qual a própria noção
de constituição é transformada.
Segundo esclarece Paolo Comanducci, um direito constitucionalizado “(...)
se caracteriza por una Constitución invasiva, que condiciona la legislación, la
jurisprudencia, la doctrina y los comportamientos de los actores políticos”. E,
citando Riccardo Guastini, arrola as principais condições desse processo:
1) existencia de una Constitución rígida, que incorpora los derechos
fundamentales; 2) la garantía jurisdiccional de la Constitución; 3) la fuerza
vinculante de la Constitución (que no es un conjunto de normas programáticas sino
preceptivas); 4) la ‘sobreinterpretación’ de la Constitución (se le interpreta
extensivamente y de ella se deducen principios implícitos); 5) la aplicación directa
de las normas constitucionales, también para regular las relaciones entre
particulares; 6) la interpretación adecuadora de la ley.
4
Simbolizando a constituição, assim, todo o direito, pode-se nela identificar
uma normatividade ampla, ou seja, uma dimenção ordenadora que, superando a
legalidade clássica, viabiliza promover a integração social sob a forma jurídica.
Atendo-se, contudo, às condições referidas por Guastini é possível verificar que,
nesse processo de mutação, a própria iia de constituição é atualizada,
aperfeiçoando-se, a partir do Estado de Bem-Estar Social da segunda metade do
século passado, uma normatividade específica, autônoma, sobre a qual se sustenta
ser a constituição mesma detentora de uma especial capacidade de regular, dirigir
e influir na vida, na realidade.
5
6
3
Sobre o tema confira-se ZABREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justícia,
1995. Também: OLIVEIRA, Rafael Carvalho Resende. Neoconstitucionalismo:
constitucionalização do ordenamento jurídico e a releitura do princípio da legalidade
administrativa. In: Perspectivas da teoria constitucional contemporânea. VIEIRA, José Ribas
(coordenador). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
4
COMANDUCCI, Paolo, Formas de (neo)constitucionalismo: un análises metateórico, 2002, p.
16. Ver, também: CARBONELL, Miguel, Neoconstitucionalismo(s), 2003.
5
A noção de normatividade decorre dos embates referentes à relação entre direito e política,
especialmente, em razão das diferentes maneiras como cada uma dessas esferas de conhecimento
aborda o poder. Sobre o assunto ver BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política. Rio de Janeiro:
Editora Campus, 2000. p. 159-265.
6
Bastante ilustrativo sobre a teoria pós-1945, distinguindo a teoria formal da constituição, em que
esta é considerada “simples instrumento de governo, definidor de competências e regulador de
procedimentos”, da teoria material, segundo a qual a constituição “deve aspirar transforma-se num
plano global que determina tarefas, estabelece programas e define fins para o Estado e para a
sociedade”, além de tratar das concepções procedimentalistas confira-se BERCOVICI, Gilberto,
Constituição e política: uma relação difícil, 2004. Segundo o autor: a “questão da normatividade
da Constituição tornou-se crucial para a Teoria da Constituição, não com relação às críticas mais
conservadoras ou ao debate entre teorias materiais e processuais da Constituição, mas tendo em
vista o papel dos novos tribunais constitucionais (...) O resultado foi a revalorização da
normatividade constitucional também pelas teorias materiais da Constituição. Em seguida,
assumindo postura crítica sobre o tema: “A Constituição não pode ser entendida como entidade
normativa independente e autônoma, sem história e temporalidade próprias (...) adequada ao
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17
Essa específica normatividade serve de base às principais noções da teoria
constitucional – constituição, direitos fundamentais, hermenêutica/interpretação
constitucional
7
e tribunais constitucionais (jurisdição constitucional) que, por
sua vez, são manejadas por distindas orientações políticas.
8
Vejamos tal
articulação, ainda que em breve síntese, de molde a desde agora enfatizar a
necessidade de voltar a atenção à perspectiva dinâmica do fenômeno jurídico-
político.
9
A Assembléia Constituinte e seu resultado – a Constituição de 1988 – foram
influenciados sobremaneira, acentua Gisele Cittadino,
10
pelo constitucionalismo
comunitário brasileiro que, por sua vez, reproduz em muitos aspectos a teoria
constitucional européia pós-1945. De acordo com essa perspectiva sem
pretenção alguma de adentrar em suas distinções intestinas a pretensão
normativa da constituição não é restabelecida como ampliada na tentativa de
compreender questões referentes à justiça social. Abertura constitucional, apelo a
valores, função dirigente da constituição e corte constitucional são produtos dessa
orientação teórica. Força normativa da constituição
11
e axiologia constitucional
são seus pressupostos.
A constituição, nessa linha de entendimento, condensa e conecta valores
compartilhados em uma determinada comunidade. Expressa uma ordem de
preferências e nela se arrima sobre o que determinado grupo considera bom.
Os direitos fundamentais, aí, não consubstanciam simples limitações ao Estado.
Tratam de restrições impostas pela soberania popular aos poderes constituídos do
Estado, revelando uma dimensão objetiva que incorpora no direito positivado
espaço. (...) O pensamento constitucional precisa ser reorientado para a reflexão sobre conteúdos
políticos. Talvez devamos retomar a proposta de Loewenstein, que entendia a Teoria da
Constituição como uma explicação realista do papel que a Constituição joga na dinâmica política.”
7
Por razões didáticas, empregamos hermenêutica e interpretação em sentido equivalente. Não se
olvide, contudo, a acepção distinta dos termos na literatura jurídica contemporânea.
8
As orientações comunitária, liberal e procedimental-deliberativa mereceram destaque por
estarem mais presentes no ambiente teórico-constitucional brasileiro, não esgotando, de modo
algum, a multiplicidade do cenário político, marcado por diferenças de tradição (liberal, elitista,
holista), de enfoque (crítico, empírico, normativo, institucionalista, desconstrutivista, ambiental,
feminista, etc) e de método.
9
A expressão é aqui utilizada, notadamente, na falta de outra melhor, para salientar que a
categoria da exceção permanente sobre a qual se disserta e se especificará nos capítulos seguintes é
contrária à sistemática de entendimento calcada numa normatividade autônoma da constituição.
10
Referimo-nos a CITTADINO, Gisele, Pluralismo, direito e justiça distributiva, 2004, p. 11
passim. Confira-se, ainda: CITTADINO, Gisele. Judicialização da política, constitucionalismo
democrático e separação de poderes. In: A Democracia e os Três Poderes no Brasil. Luiz
Werneck Viana (org.). 1ª reimpressão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
11
É célebre o debate dos escritos de Konrad Hesse e Lassale: HESSE, Konrad. A força normativa
da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.
LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998.
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18
“público” e “privado” aqueles valores em comum. Escrevendo sobre a situação
do direito constitucional alemão na década de 90 do século passado, Konrad
Hesse deixa clara a influência dessa dimensão objetiva que se soma à subjetiva
– na composição dos direitos fundamentais:
La interpretación atual de los derechos fundamentales como principios objetivos no
sólo del ordenamiento constitucional, sino del ordenamiento jurídico en su
conjunto, supera ampliamente dichos planteamientos originários. (...) la Ley
Fundamental, que no quiere ser de ningún modo un orden neutral de valores, ha
erigido en la sección correspondiente a los derechos fundamentales un orden
axiológico objetivo, y él se expressa con valor de principio un robustecimiento de
la fuerza normativa de los derechos fundamentales (....)
12
E, embora o autor não ignore as críticas dirigidas a tal dimensão valorativa,
reconhece que “esta interpretación produces efectos de gran calado que aparecen
por doquier en la jurisprudencia constitucional.”
13
Os direitos fundamentais fazem parte da consciência ética e jurídica.
Concretiza-os a decisão política da comunidade histórica mediante efetiva
participação do grupo de intérpretes da Constituição.
Ao tribunal constitucional incumbe, por instrumentos processuais
específicos e por uma hermenêutica concretizadora,
14
assegurar a efetividade dos
valores e dos direitos deles derivados.
A norma de direito, especialmente a da constituição, não está pronta e
acabada somente com a elaboração do texto legislativo. Cuida, em vez disso, de
um “núcleo materialmente circunscritível da ordem normativa”
15
que se
concretizado no caso individual, na norma de decisão dos tribunais.
16
Ao não
consubstanciar a norma, portanto, procedimento apenas cognitivo, imprescindível
voltar os olhos também aos tribunais constitucionais. É o que deixa claro a
tradição norte-americana do judicial review que fomentou, naquele país, uma
espécie de direito jurisprudencial, materializado, que se difundiu no ocidente e
pode ser sintetizado da seguinte maneira: “a existência da Constituição como lei
12
HESSE, Konrad, Constitución y Derecho Constitucional, 2001, p. 91-92.
13
Ibid., p. 93.
14
Sobre a concretização no âmbito da jurisprudência dos valores ale ver LARENZ, Karl.
Metodologia da ciência do direito. ed. Tradução José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1997. Alinhado à escola hermenêutica concretizadora, que não aceita um sistema de
valores deduzidos racionalmente, mas suscetível de ser apreendido nos dados da cultura ou no
‘domínio do normativo’, tem-se MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito
constitucional. 3ª ed. rev. e ampl.. Renovar: Rio de Janeiro/São Paulo/Recife, 2005.
15
MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional, p. 48.
16
Idem.
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19
suprema implica a sua metamorfose: a jurisdição, chamada a defendê-la,
necessariamente a transforma.
17
Uma constituição que capta e expressa os valores da comunidade conduziu,
na vertente pós-1945, exatamente por isso, em direção à normatividade autônoma.
Via de regra os textos jurídicos hão de refletir uma certa axiologia subjacente. No
discurso comunitário que serviu de base ao desenvolvimento da teoria
constitucional no Brasil, todavia, a constituição passa de receptora à produtora da
vida em comum. A constituição que, num primeiro momento, capta os valores da
comunidade, há de expressar, ativamente, diretivas capazes de os salvaguardar e
controlar as inovações. Daí certa preferência no sentido de que os direitos
fundamentais sejam exigidos com mais intensidade no âmbito comedido dos
tribunais e a hermenêutica se revele imprescindível espaço de ação.
Como acentua Ingeborg Maus, estaria a se disfarçar um decisionismo dos
órgão oficiais de interpretação da constituição – em específico dos tribunais
constitucionais – sob o manto de uma ordem valorativa.
18
A realidade, nada obstante, é externa à norma. Inicialmente a alimenta para,
em seguida, filtrada pelo discurso institucional do direito, ser por ela ativada.
Haveria nessa perspectiva, ademais, excessiva confiança antropológica nas
tradições.
19
Noutras palavras: uma exagerada necessidade de que o legado sócio-
cultural seja confiável e aceito pelos cidadãos para que se possa fazer valer uma
ordem constitucional arrimada em valores compartilhados.
Não indica nossa história, contudo e esse é o maior problema a
existência de alguma “confiança” em instituições, tradições ou princípios nem
haver sido a normatividade constitucional capaz de encontrar correspondência
adequada com a realidade. Tem-se, em vez disso, um Estado assentado na
exploração, na segregação, na racialização, no privilégio de grupos econômicos,
no autoritarismo e num certo militarismo.
20
De semelhante conclusão não escapa a visão liberal, que manifesta a crença
numa constituição o delineada por valores, mas por princípios assegurados,
17
VIEIRA, J. R., Da vontade do legislador ao ativismo judicial: os impasses da jurisdição
constitucional, p. 227.
18
MAUS, Ingeborg, Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial
na ‘sociedade órfã’, 2000, p. 192.
19
Cf. CITTADINO, Gisele, Princípios constitucionais, direitos fundamentais e história, p. 101-
108.
20
Sobre o tema, de modo sintético, confira-se VIEIRA, José Ribas, O autoritarismo e a ordem
constitucional no Brasil, 1988. Ao Prof. Ribas deve-se atribuir o ineditismo de tratar a constituição
sob a categoria da exceção, ainda que utilizado o sintagma num sentido diferente daquele a que se
refere a categoria da exceção permanente aqui postulada.
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20
precipuamente, por intermédio da atuação de bloqueio do tribunal constitucional.
De acordo com a pespectiva liberal contemporânea, a constituição
estabelece um procedimento capaz de assegurar direitos e liberdades básicas.
Destaca John Rawls, arrimado nas idéias de Agresto, que “uma constituição
democrática é a expressão, fundada em princípios, na lei mais alta, do ideal
político de um povo de se governar de uma certa maneira”.
21
Esse ideal, para
Rawls, é articulado pela razão pública.
A sociedade política e todo agente razoável e racional
22
têm, na visão do
autor,
uma fórmula de articular seus planos, de colocar fins numa ordem de prioridade e
de tomar suas decisões de acordo com esses procedimentos. A forma como uma
sociedade faz isso é sua razão; a capacidade de fazê-lo também é sua razão,
embora num sentido diferente: é uma capacidade intelectual e moral, baseada nas
capacidades de seus membros humanos.
23
(grifou-se)
A razão da sociedade é a “razão de seus cidadãos, daqueles que
compartilham o status da cidania igual”
24
, mostrando como as coisas devem ser.
25
Seu objetivo é o bem blico: “aquilo que a concepção política de justiça requer
da estrutura básica das instituições da sociedade e dos objetivos e fins a que
devem servir”.
26
27
21
RAWLS, J., O pluralismo político, p. 282.
22
Ibid., p. 93-97: “As pessoas são razoáveis em um aspecto básico quando, entre iguais, por
exemplo, estão dispostas a propor princípios e critérios como termos eqüitativos de cooperação e
submeter-se voluntariamente a eles, dada a garantia de que outros farão o mesmo. Entendem que
essas normas são razoáveis a todos e, por isso, as consideram justificáveis para todos, dispondo-se
a discutir os termos eqüitativos que outros propuseram”. Isso corresponderia a um desejo moral
básico do ser humano. O razoável, por sua vez, é um elemento da idéia de sociedade como um
sistema de cooperação eqüitativa (...) Os agentes razoáveis e racionais são normalmente as
unidades de responsabilidade da vida política e social (...) O racional é uma forma distinta do
razoável; aplica-se a um agente único e unificado (quer seja um indivíduo ou uma pessoa jurídica),
dotado das capacidades de julgamento e deliberação ao buscar realizar fins e interesses
peculiarmente seus. O racional aplica-se à foma pela qual esses fins e interesses são dotados e
promovidos, bem como à forma segundo a qual são priorizados. Aplica-se também à escolha dos
meios (...) Na justiça como eqüidade, o razoável e o racional são considerados duas idéias básicas
distintas e independentes. (...) Dentro da idéia da cooperação eqüitativa, o razoável e o racional são
noções complementares. Ambos são elementos dessa idéia fundamental, e cada um deles conecta-
se com uma faculdade moral distinta respectivamente, a capacidade de ter um senso de justiça e
com a capacidade de ter uma concepção de bem. (...) Outra diferença básica entre o razoável e o
racional é que o razoável é público de uma forma que o racional não é. Isso significa que é pelo
razoável que entramos como iguais no mundo público dos outros (...)”.
23
Ibid., p. 261.
24
Idem.
25
Ibid., p. 262.
26
Idem.
27
Em síntese, expõe o autor na página 309 que a estrutura básica é “a maneira pela qual as
principais instituições sociais se encaixam no sistema, e a forma pela qual essas instituições
distribuem os direitos e deveres fundamentais e moldam a divisão dos benefícios gerados pela
cooperação social”.
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21
A razão, assim, é pública, segundo Rawls, em três sentidos:
[E]nquanto a razão dos cidadãos como tais, é a razão do público; seu objeto é o
bem público e as questões de justiça fundamental; e a sua natureza e conceito são
públicos, sendo determinados pelos ideais e princípios expressos pela concepção de
justiça política da sociedade e conduzidos à vista de todos sobre a base.
28
A razão pública depositada na constituição, no entanto, não há de impor
limites a todos os setores da vida e a todas as questões políticas. Restringe-se, em
vez disso, aos elementos constitucionais essenciais e às questões de justiça básica.
A constituição liberal é, dessa sorte, constituição-garantia, afigurando-se “melhor
não sobrecarregá-la com muitos detalhes e qualificações”.
29
Os direitos fundamentais que compõem a razão pública referem-se às
liberdades básicas. Abrangem, via de regra, aqueles direitos que a doutrina
jurídica costuma adjetivar de direitos de primeira geração/dimensão sem
descuidar, ao menos em nível teórico, de inserir garantias existenciais mínimas.
30
A razão pública incide em um espaço determinado, um fórum público, que
integra cidadãos e autoridades do Estado. Os tribunais constitucionais aplicam a
razão pública limitada às questões essenciais e evitam que a lei seja corroída
pela legislação de maiorias transitórias. Não agem, entretanto, sustenta Rawls, de
maneira apenas defensiva. Antes, conferem “uma existência apropriada e contínua
à razão pública, ao servir de exemplo institucional”
31
. O papel de instituição
exemplar decorre, para Rawls, de se reconhecer que a “constituição não é o que a
Suprema Corte diz que ela é, e sim, o que o povo, agindo constitucionalmente por
meio de outros poderes, permitirá à Corte dizer o que ela é.”
32
Se a constituição expressa a razão publica limitada às questões mais
essenciais e se os direitos outra sorte não têm senão as liberdades básicas, em
28
RAWLS, John, loc. cit..
29
Ibid., p. 282.
30
Para Rawls está pressuposto em seu primeiro princípio de justiça a noção de garantias básicas
de existência: “(...) o primeiro princípio, que trata dos direitos e liberdades básicos e iguais, pode
facilmente ser precedido de um princípio lexicamente anterior, que prescreva a satisfação dessas
necessidades básicas dos cidadãos, ao menos à medida que a satisfação dessas necessidades seja
necessária para que os cidadãos entendam e tenham condições de exercer de forma fecunda esses
direitos e liberdades. É evidente que um princípio desse tipo tem de estar pressuposto na aplicação
do primeiro princípio”. (pp. 49-50) Ver também BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica
dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002,
notadamente as páginas 123-139. E: LOBO TORRES, Ricardo. A cidadania multidimensional na
era dos direitos. In: Teoria dos direitos fundamentais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
31
Ibid., p. 286.
32
Ibid., p. 288. Rawls, nesse ponto, segue bem de perto a tese exposta em ACKERMAN, Bruce.
We the people: Foundations. Cambridge: The Belknap Press & Harvard University Press, 1991.
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22
muito pouco o mínimo, quem sabe –, poderá contribuir o povo por
intermédio dos canais institucionais ou não.
A interpretação constitucional deverá, com efeito, instrumentalizar os
juízes para que reflitam a razão pública, viabilizando que os magistrados se
utilizem dos “valores políticos que julgam fazer parte do entendimento mais
razoável da concepção pública e de seus valores políticos de justiça e razão
pública”
33
.
Esclareça-se, como orienta o próprio Rawls, que valores, aqui,
diferentemente da pespectiva comunitária, não representam uma concepção ética,
mas um conjundo de princípios deontológicos influenciados, sem dúvidas, por
ideais. Isso não obstante, ainda que uma axiologia constitucional não seja
invocada na perspectiva liberal, sob a razão pública permanece a difícil separação
ente os planos axiológico e deontológico.
O pressuposto da normatividade autônoma na visão liberal é evidente. Mais
ainda, talvez, do que na perspectiva comunitária. Para “só” se concretizarem
princípios deontológicos a normatividade específica da constituição é
imprescindível. Uma constituição que aspira a ser portadora de normas tem de
atuar, ela própria, sobre a vida, dirigi-la. Não por outro motivo, acreditamos, os
liberais brasileiros sempre pugnaram pela diminuição da constituição.
A realidade, também aqui, é externa à norma, servindo, por vezes, para se
aprisionar ou desestabilizar mais ainda a vida ativa da constituição e, com isso,
reprimir impulsos de criatividade e inovação que residem fora da constituição.
Via alternativa é apresentada por um procedimentalismo centrado,
especificamente, em premissas discursivas muito bem lançadas por Habermas,
34
para quem, nas sociedades contemporâneas, a democracia não pode se fundar nem
em princípios substantivos nem em valores compartilhados, mas apenas em
procedimentos garantidores da formação da vontade democrática e essa seria a
substância da constituição.
35
33
Ibid., p. 287.
34
Especialmente HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Trad.
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. I e II. Também:
VELASCO, Juan Carlos. Para ler Habermas. Madrid: Allianza Editorial, 2003.
35
Destaque-se que a visão de Habermas, ainda que aqui esteja agrupada no marco teórico pós-
1945, apresenta complexidade e peculiaridades que, apesar de não serem objeto de análise nesta
dissertação, colocam-na, sem dúvida, numa etapa de transição teórica. A superficialidade com que
se esboçou as conclusões do autor, contudo, não deixará defasada a pesquisa. Diga-se isso,
principalmente, porque a virada em direção a um procedimentalismo já se expressava em Kelsen e
Bobbio, como bem aduz Boaventura de Souza Santos e Leonardo Avritzer em: SANTOS, B. de S.
(org.), Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa, p. 44 et. seq.
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23
Opera-se, nesse caso, na direção da moral social kantiana, segundo a qual,
assevera Maus, a conduta seria determinada pela sua compatibilidade com um
processo de verificação:
Kant enprega a faticidade da construção da moral social à ‘antropologia empírica’ e
desenvolve na sua filosofia da moral, com o princípio do imperativo categórico, um
processo de verificação da universalidade das máximas de agir, o qual deve ser
enfrentado por todos os indivíduos. A utilização de uma instância moral pretende
nesse sentido romper com a linha tradicional dos arranjos morais empíricos
exatamente pelo fato de submeter expectativas de condutas, normais morais e
modelos éticos às máximas do processo de verificação do imperativo categórico,
em vez de considerá-los vinculantes e indicá-los como modelos a serem seguidos.
36
Habermas assume que representações individuais distinguem-se de
pensamentos – que ultrapassam os limites da consciência singular, empírica – para
dizer que uma proposição formulada por interlocutares se assenta num substrato
de “idealidade”. O conteúdo do pensamento está vinculado e é determinado
por um estado de coisas que pode ser expresso numa proposição assertórica.
Além do conteúdo assertivo, uma determinação ulterior: “se ele é
verdadeiro ou falso”. O sentido veritativo, destaque-se, não se remete à existência
do objeto sobre o qual se faz a assertiva, mas à “permanência de um estado de
coisas correspondente”
37
reconhecido intersubjetivamente, um certo conteúdo
ideal que, embora só possa ser acessado de maneira aproximada, precisa ser
admitido no âmbito dos fatos.
Adota Habermas o pressuposto de que no interior de um mundo
compartilhado pelos sujeitos, numa comunidade de interpretação, é que se
formam as proposições e se produzem os pensamentos. A verdade ou o
verdadeiro é explicitada a partir da pretensão existente de que a proposição
formulada por alguém será por outrem, não sem crítica, compreendida, tendo-se
em conta uma espécie de “consenso obtido por condições ideais”. A verdade
emerge como resgate de um pretensão de validade criticável e o real é o que
“pode ser representado em proposições veritativas”.
38
Na sociedade, essa estrutura lingüística-comunicacional é igualmente
constatada por Habermas.
O agir comunicativo, que tem em vista “o entendimento lingüístico como
mecanismo de cordenação da ação, faz com que as suposições contrafactuais
36
MAUS, Ingeborg. op. cit., p. 189.
37
HABERMAS, J., op. cit., p. 32.
38
Idem.
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24
daqueles que orientam seu agir por pretensões de validade adquiram relevância
imediata para a construção de ordens sociais”.
39
A tensão entre faticidade e
validade, nesse contexto, seria estabilizada, segundo Habermas, na “integração
social realizada por intermédio do direito positivo”.
40
Isso é esclarecido pelo autor
pela referência ao mundo da vida, ao risco de dissenso e à regulamentação
normativa de interações.
O mundo da vida, “um complexo de tradições entrelaçadas, de ordens
legítimas e de identidades pessoais (...) preconizado pelo agir comunicativo”,
41
incorpora a idealidade pressuposta pelas pessoas que se comunicam. Há, contudo,
embutido no entendimento comunicativo, um risco de ruptura, de dissenso,
resultante da própria tomada de posição crítica do receptor da mensagem. Risco
que se agrava nas sociedades secularizadas e complexas, uma vez que num
universo de maior pluralização de formas de vidas e de individualização de
histórias de vida, no qual não há mais espaço para ordens normativas mantidas por
referências meta-sociais, as zonas de convergência que se encontram na base do
mundo da vida são inibidas.
42
Para obstar a dissolução é necessário se estabelecer uma regulamentação
normativa de interações marcada por duas condições contraditórias: de um lado, a
necessidade de estabelecer modificações que façam alguém, ainda que o ator
estratégico, adaptar seu comportamento a um linha desejada; de outro, mister
desenvolver, por essa regulamentação, uma força integradora entra em cena o
direito.
O direito apresenta tanto uma dimensão de validade social, ou seja, da sua
possível aceitação pelos membros da coletividade e controle de suas condutas,
como de legitimidade (ou só validade), medida pela “resgatabilidade discursiva de
sua pretensão de validade normativa”, pela fundamentação das normas: a
aceitação da ordem jurídica é distinta da aceitabilidade dos argumentos sobre a
qual ela se apóia. Dessa sorte, por intermédio do direito, que funciona como uma
ordem capaz de mediar a comunicação e manter unidas pessoas que atuam de
maneira estratégica, preocupadas com seu próprio sucesso, e aquelas que agem
desinteressadamente, alcança-se a almejada integração social.
39
Ibid., p. 35.
40
Idem.
41
Ibid., p. 42.
42
Ibid., p. 44.
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25
A normatividade, nesse contexto, emerge como um tipo de pressuposto da
faticidade, porquanto o direito extrai sua força do entrelaçamento entre a
aceitação, garantida pela coerção e pela orientação induzida da conduta, e a
aceitabilidade, a pretensão de legitimidade que se acenta na idéia de
autolegislação.
Mas não é o direito que promove integração. Mecanismos de mercado e
de poder adminitrativo – o sistema – também produzem integração social. O
direito com eles interage, por vezes promovendo-os nível externo da tensão
entre faticidade e validade. O direito mantém, como meio organizacional de uma
dominação política, característica extremamente ambígua. Com freqüência, “o
direito confere a aparência de legitimidade ao poder ilegítimo”
43
. Por outro lado,
por se vincular a uma instância de solidariedade, assentado também no mundo da
vida, o direito é capaz de funcionar como um elemento transformador do sistema.
A evitabilidade da instrumentalização do direito e da constituição, sua
metonímia contemporânea, passa, especialmente, pela associação da produção do
direito a um Estado Democrático de Direito, em que se conciliam as leis de
coerção e de liberdade pela fixação de direitos fundamentais e, ao mesmo tempo,
da produção do direito pelos cidadãos. O direito não vale apenas porque é posto,
mas porque é posto de acordo com um procedimento democrático.
Nada disso obstante, ainda que flexibilizado ou relativizado, também se
detecta o pressuposto da normatividade específica ou autônoma da constituição
que caracteriza a teoria pós-1945.
A constatação de o direito e, por conseguinte, a constituição ser capaz de
funcionar como um elemento transformador do sistema no Estado Democrático de
Direito recebe especial relevância. Para resguardar o procedimento democrático
assim como para garantir valores e princípios tomar a constituição como norte
da vida se torna imprescindível. Isso é acentuado quando se constata que a
realidade continua exterior, representada, no dizer de Habermas, em proposições
veritativas.
A identidade social, nessa perspectiva, é promovida por uma cidadania
juridicamente participativa que se expressa por canais jurisdicionais e também,
diretamente, pela mobilização e pressão política sobre os tribunais e outras
instituições, consolidando o discurso jurídico como imprenscindível mecanismo
de racionalização do poder e das relações sociais. E a crença na potencialidade do
43
Ibid., p. 62.
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26
discurso jurídico se mostra assentada no pressuposto da específica normatividade
da constituição, na sua capacidade de ordenar, por si só, a realidade política e
social.
Os direitos fundamentais representam princípios universais que, positivados
na constituição e na legislação infraconstitucional por mecanismos democráticos,
viabilizam a comunicação intersubjetiva
44
e o procedimento mesmo de formação
da vontada política.
Os tribunais constitucionais, mediante técnicas de interpretação e
hermenêutica de caráter principiológico, servem à proteção do processo de
criação democrática do direito. Funcionam como arenas de debates e deliberações
sobre assuntos públicos e coletivos, ensejando a participação dos atores sociais no
processo decisório mediante a apresentação de argumentos racionais.
45
Os
tribunais vêem-se invadidos pela presença de diversos grupos sociais e compõem
uma espécie de instância intermediadora pois intermediador também é o direito
entre os impulsos comunicativos do mundo da vida, o entorno simbólico e
cultural em que as pessoas compartilham pré-compreensões de experiências e que
dá sentido à vida, e o sistema, o domínio em que as ações das pessoas são
determinadas por lógicas de interesse e de utilidade, em específico, a lógica do
dinheiro, do mercado, do poder e do Estado.
A solução tem forte teor conciliatório e se propõe a harmonizar tutela de
direitos fundamentais e democracia, bem como superar a problemática confiança
antropológica nas tradições. Ainda assim, contudo, além da falácia de que
procedimentos se veriam isentos de alguma substancialização principiológica, em
países de cidadania enfraquecida, brutal desigualdade social, instituições
ineficazes e com boa parte da população relegada à formalidade do voto sem ter
protegidas sequer as condições sociais mínimas de autonomia pública e privada é
difícil crer na sua viabilidade, embora muitas de suas contribuições destacando-
se a valorização da ação humana pela via do discurso – mereçam, senão inconteste
acolhimento, especial atenção.
44
Cf. HABERMAS, Jürgen. Sobre a legitimação baseada nos direitos humanos. Tradução por
Gisele Cittadino e Maria Celina Bodin de Moraes da versão espanhola Acerca de la legitimación
basada en los derechos humanos, capítulo 5 do livro La constelación posnacional, Madrid,
Editorial paidós, 2000. E ainda: HABERMAS, Jürgen. Soberania popular como procedimento. In:
Novos estudos CEBRAP. Trad. de Márcio Suzuki. São Paulo, n.º 26, março, 1990. Sobre os
direitos fundamentais em Habermas confira-se NASCIMENTO, Rogério Soares do. A ética do
discurso como justificação dos direitos fundamentais na Obra de Jürgen Habermas. In:
Legitimação dos direitos humanos. Lobo Torres (org.). Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 451-498.
45
HABERMAS, Jürgen. Soberania popular como procedimento, p. 322.
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27
Tudo considerado, embora sem pretender análise exauriente da dinâmica
das múltiplas orientações políticas, é ver que tanto a perspectiva comunitária
como a liberal e a procedimentalista sustentada, de maneira peculiar e, ao que
tudo indica, com maior sofisticação, por Habermas, revelam a comum crença
numa normatividade autônoma da constituição.
Não se ignora, em momento algum, a óbvia existência de uma dimensão
normativa, por menor que seja, na referência ao direito ou à moral. Ao
acentuarmos a crença na força normativa autônoma do direito nas perspectivas
citadas objetivamos salientar, tão somente, a ênfase especial que se tem conferido
à dimensão normativa da constituição e à sua “espetacular” capacidade de
regulação das vicissitudes do mundo.
2.2
A normatividade autônoma na base da teoria constitucional pós-
1945: Hesse, Häberle, Müller e Zagrebelsky
A restauração da pretensão normativa autônoma no âmbito da teoria
constitucional pós-1945 não se evidencia apenas na dinâmica do fenômeno
jurídico-político. Na tradição romano-germânica que entre nós se difundiu por
autores como Hesse, ller e Häberle ela se mostra bem clara e a tônica de seu
discurso é enfatizada e resumida no quadro elaborado por José Ribas Vieira no
artigo A contribuição das trajetórias constitucionais americana e alemã para
redefinir o conceito de Constituição pós-45
46
e que aqui tomamos de empréstimo,
acrescentando-se, mas adiante, referências a Gustavo Zagrebelsky:
QUADRO 1: CONSTITUCIONALISTAS ALEMÃES PÓS-45 SOBRE O PAPEL DA
CONSTITUIÇÃO E FATORES DE SUA CONTEXTUALIZAÇÃO SOCIAL
Variáveis/Autores Hesse Müller Härberle
Obra
A força normativa da
constituição
Métodos de trabalho do
direito constitucional
Hermenêutica
Constitucional – a
sociedade aberta
Data
1959 1972 1975
Ciência
Constitucional
Valorizada,
prevalente é o
“sollen”
É um dos elementos na
concretização da norma
– a teoria da constituição
Filtragem
Constitucional
46
RIBAS VIEIRA, José (org.), Perspectivas da teoria constitucional contemporânea, p. 197-209.
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28
Variáveis/Autores Hesse Müller Härberle
Intérpretes
Rechtfrage vesus
Machtfrage (Direito
versus Poder)
Concretizadores –
igualdades dos entes
públicos competentes e
presença dos atingidos
Predomina o papel
do juiz
Papel da
Constituição
Jurídico como guia
da constituição aberta
Dado de entrada de um
conjunto de prescrições a
serem concretizadas em
cotejo com seu âmbito
Fundamentos da
teoria constitucional
na filtragem
constitucional
Foco da doutrina
Controle da
constitucionalidade
das normas/leis
Controle e método de
decisões judiciais em
sede
Controle da
Constitucionalidade
das normas/leis
Esclareça-se que embora outros autores contribuam para o desenvolvimento
do constitucionalismo pós-1945 poder-se-ia adicionar, por exemplo, os mestres
lusitanos e espanhóis selecionamos textos de Hesse, Häberle, Müller e
Zagrebelsky porque serviram e têm servido de base à construção da teoria
constitucional pós-1945 na tradição romano-germânica e, em específico, ao
pensamento brasileiro sob a Constituição de 1988. Além disso, neles se detecta o
momento inicial da onda neoconstitucionalista que, nos últimos anos, com a
aproximção das teorias do direito e da constituição, desenvolve e dissemina os
pressupostos da construção jurídica levada a efeito a partir da segunda metade do
século XX.
Não nos detivemos no exame do dirigismo constitucional de Canotilho,
autor de inegável influência na doutrina brasileira, por ser bastante conhecida,
entre nós, suas obras e teses, bem assim por se inspirar e se compatibilizar o autor
com a tradição e a teoria expressas nos textos acima indicados. Registre-se, tão
somente, que o autor de Constituição dirigente e vinculação do legislador
47
, de
1982, com a flexibilização e as inserções de idéias veiculadas no prefácio à
edição do livro, em 2001,
48
muitas delas indicativas de conclusões que se
divisarão aqui, embora por caminho distinto, continua a assentar suas reflexões na
confiança de uma normatividade constitucional autônoma. É ler:
(...) a Constituição dirigente era um projeto da modernidade (...).
Quer queiramos quer não, quanto a essa Constituição dirigente temos de ser
humildes e dizer que ela acabou. Mas isto não pode significar que sobreviveram
algumas dimensões importantes da programaticidade constitucional e do dirigismo
constitucional (....).
Portanto, quando se colocam essas questões de ‘morte da constituição’, o
importante é averiguar por que é que se ataca o dirigismo constitucional. Uma
47
CANOTILHO, J. J. G., Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a
compreensão das normas constitucionais programáticas, 1982.
48
Id., Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das
normas constitucionais programáticas, 2001.
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coisa é dizer que estes princípios não valem e outra é dizer que, afinal de contas, a
constituição não serve para nada, não limita nada. O que se pretende é uma
coisa completamente diferente da problematização que vimos efectuando: é
escancarar as portas dessas políticas sociais e econômicas a outros esquemas que,
muitas vezes, não são transparentes, não o controláveis. Então eu digo que a
constituição dirigente não morreu.
49
Não se fa exame detalhado da vasta produção teórica de cada autor.
Buscar-se-á, em vez disso, idéias centrais lançadas em textos ou livros que, pelo
menos no cenário brasileiro, têm inegável difusão.
Voltemo-nos, inicialmente, para Hesse e sua obra de referência sobre a
normatividade específica ou autônoma da constituição.
Konrad Hesse, criticando o isolamento entre realidade fática e
normatividade que, no seu entender, seria postulado por Jellinek, Schmitt e, em
especial, Ferdinand Lassalle argumenta que esses elementos se condicionam
reciprocamente, conferindo à constituição, não sem limitações, força normativa
autônoma, força própria motivadora e ordenadora da vida social.
Segundo Hesse “a norma constitucional não tem existência autônoma em
face da realidade (...) sua essência reside na sua vigência, ou seja, na circunstância
de que a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade”.
50
A
pretensão de eficácia (vigência) implica vinculação às condições históricas de sua
realização e ao elemento valorativo, ou “substrato espiritual”, de um determinado
povo. Isso opera, na visão do autor, como um limite à constituição jurídica ou
normativa, pois não é possível descartar o real. Não se cuida, todavia, apenas de
uma espécie de adaptação inteligente à realidade:
A norma constitucional somente logra atuar se procura construir o futuro com base
na natureza singular do presente. Tal como exposto por Humboldt alhures, a norma
constitucional mostra-se eficaz, adquire poder e prestígio se for determinada pelo
princípio da necessidade. Em outras palavras, a força vital e a eficácia da
Constituição assentam-se na sua vinculação às forças espontâneas e às tendências
dominantes do seu tempo, o que possibilita o seu desenvolvimento e a sua
ordenação objetiva. A Constituição converte-se, assim, na ordem geral objetiva do
complexo de relações da vida. Mas, a força normativa da Constituição não reside,
tão somente, na adaptação inteligente a uma dada realidade.
51
(grifou-se)
A constituição pode impor tarefas e, dessa sorte, consubstanciar, ela mesma,
uma força ativa se existir a disposição de orientar efetivamente a própria conduta
49
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.), Canotilho e a constituição dirigente, 2003, p.
14 e 31.
50
HESSE, K., op. cit, p. 14.
51
Ibid., p. 18-19.
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30
segundo a ordem nela estabelecida, ou seja, se houver o que Hesse denomina
vontade de constituição, originada de três vertentes:
(...) na compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa
inquebrantável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme.
Reside, igualmente, na compreensão de que essa ordem constituída é mais do que
uma ordem legitimada pelos fatos (e que, por isso, necessita estar em constante
processo de legitimação). Acrescenta-se também na consciência de que, ao
contrário do que se dá com uma lei do pensamento, essa ordem não logra ser eficaz
sem o concurso da vontade humana.
52
.”
53
(grifou-se)
Interessante observar que a vontade de constituição, a disposição de orientar
a própria conduta de acordo com a constituição, é um elemento fático, sujeito à
dimensão do conflito e que, em Hesse, acaba neutralizada pela sua própria
origem: (i) compreensão da necessidade de uma ordem inquebrantável, (ii) que
não se legitima por fatos e (iii) que depende de a vontade ser exercida sobre algo
que, em si mesmo, já é capaz de força normativa.
Não bastasse esse limite consistente em se se assentar a constituição jurídica
sobre a realidade, indica Hesse, também, dois pressupostos da constituição: de
conteúdo e de práxis.
No que tange ao conteúdo, assevera que a constituição pode estar vinculada
a elementos sociais, políticos, econômicos e espirituais (axiológicos) de tal modo
que, alterados esses, ela também se modifica, mantendo-se como força ativa
autônoma. Assim, de acordo com o autor, quanto mais se aproximar a substância
da constituição da realidade mais se desenvolverá, em segurança, sua força
normativa. Isso depende, todavia, de se estabelecer uma constituição sintética,
limitada, se possível, “ao estabelecimento de alguns poucos princípios
fundamentais, cujo conteúdo específico, ainda que apresente características novas
em virtude das céleres mudanças na realidade sócio-política, mostre-se em
condições de ser desenvolvido”
54
. E mais, a Constituição deve ser capaz de
incorporar, mediante ponderação, estruturas que lhe são mesmo contrárias. No
dizer de Hesse:
Se pretende preservar a força normativa dos seus princípios fundamentais, deve ela
incorporar, mediante meticulosa ponderação, parte da estrutura contrária. Direitos
52
Ibid., p. 19-20.
53
HESSE, K., loc. cit.
54
Ibid., p. 21.
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31
fundamentais não podem existir sem deveres, a divisão de poderes de pressupor
a possibilidade de concentração de poder (...).
55
Quanto à práxis, cuida-se de observar a vontade de constituição, tendo em
vista que quem sacrifica um interesse em favor da preservação de um princípio
constitucional fortalece o respeito à constituição. Daí ser perigoso para a
normatividade constitucional a revisão constante e ser “a estabilidade condição
fundamental de eficácia da Constituição.”
56
Com base nisso Hesse sustenta que, embora a constituição jurídica esteja
condicionada pela realidade histórica e que a pretensão de eficácia de suas normas
somente possa ser realizada se observada essa realidade, ela logra conferir forma e
modificação à vida social, sendo nas situações de necessidade e emergência que
ela tem a oportunidade de se impor e fazer valer sua preponderância sobre os
elementos puramente fáticos:
Se os pressupostos da força normativa encontram correspondência na Constituição,
se as forças em condições de violá-la ou de alterá-la mostrarem-se dispostas a
render-lhe homenagem, se, também em tempos difíceis, a Constituição lograr
preservar a sua força normativa, então ela configurara verdadeira força viva capaz
de proteger a vida do Estado contra as investidas do arbítrio (...) Importante,
todavia, não é verificar, exatamente durante o estado de necessidade, a
superioridade dos fatos sobre o significado secundário do elemento normativo,
mas, sim, constatar, nesse momento, a superioridade da norma sobre as
circunstâncias fáticas.
57
Da breve síntese que se vem de apresentar extrai-se que a reciprocidade de
Hesse atesta, tão só, a contextualização da normatividade da constituição, isto é, a
necessidade de se ver o dado normativo sobre uma base fática exterior. A
normatividade específica da constituição caminha, por assim dizer, ao lado da
realidade e com ela mantém constante troca.
Disso não se distanciam Härberle e Müller.
Segundo Häberle, a cultura, numa acepção descritiva, tem seu núcleo
formado por um conjunto complexo de conhecimentos, crenças, artes, leis,
costumes e usos sociais que, por um lado, decorrem de certas ações e, de outro, as
condicionam. Os elementos mais relevantes para estabelecer a noção de cultura,
entretanto, devem ser apresentados numa acepção multidimensional: em nível
histórico, a tradição, o legado social; em nível normativo, regras e usos sociais,
55
Idem.
56
Ibid., p. 22.
57
Ibid., p. 25.
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32
incluindo valores e ideais de conduta; em nível psicológico, adaptação superadora
de problemas, processo de aprendizagem; em nível estrutural, como símbolo ou
como modelos de organização da própria cultura
58
. Há, assim, na seara da cultura,
aspectos tradicionais, inovadores consistentes no desenvolvimento da tradição
e plurais, uma vez que diferentes grupos humanos produzem tradição e a inovam.
Sob essa inspiração, Härberle sustenta que a teoria constitucional faz
referência constante a um arquétipo a constituição democrática no ocidente
que se compõe de elementos ideias, reais, estatais e sociais voltados a alcançar a
realização ótima de um dever-ser, a saber: (i) a dignidade humana derivada da
cultura de todo um povo e de direitos humanos universais, entendidos como
vivências de um povo que obtém sucesso na consolidação de sua identidade na
tradição histórica e nas suas próprias experiências, representando esperanças na
forma de desejos e aspirações para o futuro; (ii) soberania popular como forma de
identificação por colaboração que se renova de forma cada vez mais aberta e
responsável; (iii) a constituição como pacto, sobre o qual se formula objetivos
pedagógicos e valores de orientação possíveis e necessários; (iv) divisão de
poderes no âmbito estatal e social; (v) Estado de Direito e Estado Social de
Direito, nos quais se mantêm uma cultura constitucional aberta, que sustenta o
pluralismo como verdadeiro princípio.
59
A constituição, dessa sorte, num regime democrático,
no se limita sólo a ser un conjunto de textos jurídicos o un mero compendio
de reglas normativas, sino la expressión de um certo grado de desarrollo
cultural, un medio de autorrepresentación propria de todo un pueblo, espejo
de su legado cultural e fundamento de esperanzas y deseos.
Las Constituiciones de letra viva, entendiendo letra viva aquellas cuyo resultado es
obra de todos los intérpretes de la sociedade abierta, son en su fondo y en su forma
expressión e instrumento mediador de cultura, marco reprodutivo y de recepciones
culturales, y depósitos de futuras ‘configuraciones culturales, experiencias y
vivencias, y saberes.
60
E mais:
La Constitución es pues, sobre todo, expresión viva de un statu quo cultural ya
logrado que se halla en permanente evolución, un medio por el que el pueblo pueda
58
HÄBERLE, P., Teoía de la constitución como ciencia de la cultura, p. 25.
59
Ibid., p. 33-34. Ver, também: HÄBERLE, Peter. Libertad, igualdad, fraternidad: 1789 como
historia, actualidad y futuro del Estado constitucional. Trad. Ignacio Gutiérrez. Madrid: Trotta,
1998.
60
Ibid., pp. 34-35.
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33
encontrarse a mismo a través de su propria cultura; la Constitución es,
finalmente, fiel espejo de herencia cultural y fundamento de toda esperanza.
61
A constituição e o direito como um todo são apenas um aspecto do universo
cultural e a “aceptación de una Constitución (...) nunca presupone, de por si,
garantía alguna de que el Estado constitucional se encuentre ‘de hecho’ realizado
hier et nunc (...)”:
62
la realidad jurídica de todo Estado constitucional es tan sólo un fragmento de la
realidad de toda Constituição viva, que a lo largo y ancho de su texto y contexto no
es sino una de sus formas culturales. De ahí que los proprios textos de la
Constituición deban ser literalmente cultivados (la voz cultura como sustantivo
procede del verbo latino cultivare) para que devengan auténtica Constituición.
63
A normas da constituição, destarte, densificam um agregado cultural mais
amplo que, nos termos do que se expôs até aqui, são para Häberle um “concepto
extrajurídico de Constitución (...)”,
64
sobre o qual se manifesta uma cultura
constitucional. A constituição consubstancia, nesses termos, um processo público
cultural e é desvendada, de acordo com o autor, por uma interpretação
pedagógica. Cláusulas de permanência outra coisa não objetivariam, nesse
contexto, senão preservar e ampliar para o futuro legados sociais apreendidos pelo
povo.
A constituição democrática estaria, então, para Häberle, arrimada num
processo político que, ao longo de gerações, vem se consolidando no ocidente. E,
dessa forma, diferencia-se da mera constituição política, ainda que,
historicamente, essa possa preceder a constituição cultural hoje sedimentada e em
constante densificação.
A interpretação/hermenêutica constitucional, seguindo Häberle, deve se
voltar para essas especificidades culturais, colocar o ato normativo no tempo e
integrá-lo à realidade blica. Mas, salienta o próprio autor, não constitui espécie
de “varita mágica que resuelva en un abrir y cerrar de ojos cualesquiera problemas
hermenéuticos (....)”.
65
A relação entre constituição e vida leva Häberle a direcionar o olhar aos
agentes conformadores da “realidade constitucional”, isto é, a quem a interpreta, e
61
Ibid., p. 145.
62
Ibid., p. 35.
63
Idem.
64
Ibid., p. 36.
65
Ibid., p. 47.
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não apenas à indagação referente às tarefas e todos da interpretação. Sustenta
que no processo de interpretação constitucional participam indivíduos, grupos e
órgãos estatais, em síntese, todas as potências públicas, não sendo possível
estabelecer um elenco cerrado de intérpretes, tendo em vista que “quem vive a
norma acaba por interpretá-la ou pelo menos por co-interpretá-la.”
66
Não restringe a interpretação, portanto, ao um sentido estrito dirigida à
explicitação de sentido de uma norma, de um texto mas a amplia em direção à
atualização da constituição, na qual os operadores do direito apenas detêm
primazia, mas não exclusividade. Aspira a obter uma “interpretação orientada pela
realidade democrática”, fazendo plural tanto a formação como o desenvolvimento
do direito ao mesmo tempo em que reconhece que o intérprete também está
inserido na esfera pública e na realidade.
Os métodos e princípios servem para disciplinar ao mesmo tempo em que
são disciplinados o processo de interpretação. Ademais, atuam como filtros da
opinião pública, filtros sobre os quais a força normatizadora da publicidade (...)
atua e ganha conformação”.
67
Os tribunais constitucionais devem zelar por esse
processo e para manter a integração social pela constituição.
Postula Häberle, ainda, que a “democracia do cidadão está muito próxima
da idéia que concebe a democracia a partir dos direitos fundamentais e não a partir
da concepção segundo a qual o Povo soberano limita-se apenas a assumir o lugar
do monarca.”
68
Reforça o autor a noção de constituição como um processo público.
Há, sem dúvida, inegáveis ganhos nessa concepção, ampliando-se
significativamente o entendimento do fênomeno jurídico-político ao se abrir a
norma à realidade e ao poder. O que Häberle chama de forças pluralistas da
sociedade, que “representam um pedaço da publicidade e da realidade da
Constituição”,
69
são incorporadas, pela via da interpretação, à própria
constituição, que atua como um espelho do real. Todavia, assevera o autor, a
constituição “não é (...) apenas um espelho. Ela é, se se permite uma metáfora, a
66
HÄBERLE, P., Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da
constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da constituição, p.
13.
67
Ibid., p. 43 e 44.
68
Ibid., p. 38.
69
Ibid., p. 33.
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35
própria fonte de luz (...). Ela tem, portanto, uma função diretiva eminente”
70
(grifou-se).
A específica normatividade constitucional, ainda que mitigada, em Häberle,
pela integração do direito no âmbito cultural, perdura na forma da reciprocidade.
Norma e vida, por mais próximas que se possam encontrar na teoria do autor,
continuam separadas. O elemento jurídico-normativo é visto, sem dúvida, como
parte do real, mas mantém sua autonomia, sua força ativa, conduzindo à crença de
uma imprescindível força emancipatória do direito – leia-se: da constituição.
Também Friedrich Müller nos serve de exemplo do tratamento que a teoria
constitucional pós-1945, não sem conquistas e importantes construções, confere à
tensão entre norma e realidade: reciprocidade.
Pretende Müller, por sua metódica, termo que abrange hermenêutica,
interpretação, métodos de interpretação e metodologia, conscientizar os
operadores do direito da relevância de suas formas de trabalho. Faz isso a partir de
uma crítica da teoria tradicional da interpretação, calcada na gica silogística de
resolução de casos, e da atuação do Tribunal Constitucional Federal alemão nas
questões concernentes aos direitos fundamentais, notadamente quanto ao
tratamento axiológido desses direitos.
Müller se volta à normatividade constitucional específica para desenvolver
sua metódica concretizadora e, como Häberle, admite um círculo mais amplo de
intérpretes da constituição para sustentar que a
tarefa da práxis do direito constitucional é a concretização da constituição por meio
da instituição configuradora de normas jurídicas e da atualização de normas
jurídicas no Poder Legislativo, na administração e no governo; ela é a
concretização da constituição que primacialmente controla, mas simultaneamente
aperfeiçoa o direito na jurisprudência, dentro dos espaços normativos.
71
Esclarece o autor que se deve separar a norma do texto da norma,
distinguindo-se o programa da norma e o âmbito da norma, o teor literal e a
normatividade. É bastante trabalhoso explicitar, em poucas linhas, toda a tese do
autor. Naquilo que aqui nos interessa, entretanto, é ver que Müller, na linha da
reciprocidade de Hesse, ensina que o
teor literal da norma expresa o ‘programa da norma’, a ‘ordem jurídica’
tradicionalmente assim compreendida. Pertence adicionalmente à norma, em vel
70
Ibid., p. 34.
71
MÜLLER, F., Métodos de trabalho do direito constitucional, p. 36.
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hierarquico igual, o âmbito da norma’, i. é, o recorte da realidade social na sua
estrutura básica que o programa da norma ‘escolheu’ para si ou em parte criou para
si como seu âmbito de regulamentação (...). O âmbito da norma pode ter sido
gerado (prescrições referentes a prazos, datas (...) regras institucionais e
processuais) ou não-gerado pelo direito.
72
A realidade encontra expressão no direito apenas em parte, recortada,
podendo por ele também ser gerada. Revela-se, aí, portanto, ainda que já se
sustente uma certa correspondência originária entre normatividade e vida, a
vinculação de Müller à concepção teórica s-1945 de uma normatividade
autônoma da constituição. Segundo Müller, o âmbito da norma, isto é, o
fragmento do âmbito material destacado pelo programa da norma “transcende a
mera facticidade de um recorte da realidade extrajurídica (...) não é (...) uma
‘força normativa do fático’.”
73
Isso resta mais claro quando o próprio Müller, após analisar o que denomina
elementos de concretização da norma, com especial atenção para a norma
constitucional, conclui que o trabalho do direito constitucional está embebido em
pontos de vista de política constitucional, mas
com isso nem o caráter vinculante do direito constitucional, onde ocorreu uma
pré-decisão normativa, nem a racionalidade e objetividade exigidas pelo Estado de
Direito, até onde ela é em princípio possível na ciência jurídica, devem ser
questionados.
74
Não se pode desconhecer, no entanto, que Müller apresenta uma visão
transformadora da comprensão da reciprocidade entre norma e realidade expressa
nas noções de força normativa, força ativa ou normatividade autônoma da
constituição. A normatividade explicita no texto que se encontra no apêndice da
edição de seu Métodos de Trabalho do Direito Constitucional (Concretização
da Constituição) “não é nenhuma propriedade substancial dos textos no código
legal, mas um processo efetivo, temporalmente estendido, cientificamente
estruturável”,
75
a saber: “o efeito dinâmico da norma jurídica, que influi na
realidade que lhe deve ser atribuída (normatividade concreta) e que é influenciada
por essa realidade (normatividade materialmente determinada).”
76
Acrescente-se aos autores citados Gustavo Zagrebelsky.
72
Ibid., p. 42.
73
Ibid., p. 44.
74
Ibid., p. 90.
75
Ibid., p. 130.
76
Idem.
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37
O autor, que abre sua obra El derecho dúctil afirmando que os grandes
problemas jurídicos jamais se encontram nas constituições, nos códigos, nas leis
ou nas decisões dos juízes, mas em outro âmbito, naquilo que está pressuposto e
além do direito,
77
é categórico ao afirmar que “las Constituciones contemporaneas
intentam poner remedio a estos efectos destructivos del ordenamiento jurídico
mediante la previsión de un derecho más alto, dotado de fuerza obligatória incluso
para el legislador.”
78
Zagrebelsky na constituição a função normativa ampla que no início
mencionamos, a integração social,
79
sem, com isso, querer impor a constituição
como uma nova figura abstrata de soberano. O autor é sensível ao fato de a
unidade promovida pela constituição ser de caráter compromissário, tendo em
conta a fragmentariedade, a série de divisões que caracterizam o Estado na
segunda metade do século XX.
Vislumbra, sem embargo, sua normatividade autônoma ao tratar da
dualidade entre lei e direito manifestada na concepção francesa de direitos –
“estatalista, objetivista y legislativa” e norte-americana “preestatalista,
subjetivista y jurisdicional”.
80
A atual constituição de matriz européia, para Zagrebelsky, se situa entre
ambas concepções. Atribui dignidade constitucional tanto à lei como aos direitos.
Obsta, ao mesmo tempo, um jusnaturalismo centrado na supervalorização dos
direitos e a concepção que supervaloriza a lei. A constituição, dessa sorte, não
consubstancia manifestação de poder. Na visão constitucionalista pós-1945 do
autor se destaca
la capacidad de la Constitución, planteada como lex, de convertirse em ius; fuera
de formalismos, em la capacidad de salir Del área Del poder y de lãs frías palabras
de un texto escrito para dejarse atraer a la esfera vital de las convicciones y de las
ideas queridas, sin las cuales no se puede vivir y a las que se adhiere con calor.
81
77
ZABREBELSKY, G., El derecho ctil: ley, derechos, justícia, p. 9: Lo que es
verdaderamente fundamental, por el mero hecho de selo, nunca puede ser puesto, sino que debe ser
siempre pressupuesto. Por ello, los grandes problemas jurídicos jamás se hallan en las
constituciones, en los digos, en las leyes, en las decisiones de los jueces o en otras
manifestaciones parecidas del ‘derecho positivo con las que los juristas trabajan, nunca han
encontrado allí solución. Los juristas saben bien que la raíz de sus certezas y creencias comunes,
como la de sus dudas y polémicas, está en otro sitio. Para aclarar lo que de verdad les une o les
divide es preciso ir más al fondo o, lo que es lo mismo, buscar más arriba, en lo que no aparece
expresso.”
78
Ibid., p. 39.
79
Ibid., p. 40: “En la nueva situación, el principio de constitucionalidad es el que debe asegurar la
consecución de este objetivo de unidad.”
80
Ibid., p. 58.
81
ZABREBELSKY, Gustavo. La ley, el derecho y la Constitución, p. 23.
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38
A constituição não pode ser deixada ao mundo exclusivo das leis ou posta
em seu lugar, como fonte mais alta e abstrata. De acordo com Zagrebelsky,
devemos fazê-la “fuerza constitutiva de um idem sentire político, difundido em
todos los estratos sociales”, de modo que esteja presente em todas as relações
interpessoais, nos pequenos grupos, na coletividade que conforma o Estado e,
mais além, em contextos transnacionais, difundindo princípios e valores
universais.
Esse o ponto de partida de Zagrebelsky: uma constituição que dirige a vida,
mas que se encontra aberta, flexível; que o traça um projeto de vida em comum,
mas estabelece suas condições de possibilidade. Sobre ele o autor sustenta a
imprescindibilidade de se resgatar o processo histórico – numa linha semelhante à
noção de cultura de Häberle – na compreensão da teoria constitucional.
82
Nada disso obstante, ao se dirigir à história, Zagrebelsky, o sem alguma
ambigüidade, avança em direção à superação da normatividade autônoma da
constituição. Para Zagrebelsky, nos últimos anos a absoluta presunção de
legitimidade da constituição vem perdendo força. Já não se deve construir o
pensamento, sustenta o autor, a partir da constituição em direção à vida. Antes, o
ponto de início da reflexão de ser o próprio real, invertendo-se o sentido do
vetor: da realidade à constituição:
caído la presunción absoluta de legitimidad de la constitución. Su valor ya no es
un a priori de la vida política y social. Se ha operado un derribo que no condena
necessariamente la constitución, pero que le impone una conversión: ya no es
desde la constitución desde onde se puede mirar la realidad, sino que es desde la
realidad donde se debe mirar la constitución. (...)
La legitimidad de la constitución depende entonces de quiem la ha hecho y ha
lablado por medio de ella, sino de la capacidad de ofrecer respuestas adecuadas a
nuestro tiempo (...). En resumen: la constitucion no dice, somos nosotros los que la
hacemos decir.
Mantém o autor, assim, a realidade como exterior, como dado paralelo ao
normativo.
82
Expresso nesse sentido ZABREBELSKY, Gustavo. Historia y constitución. Trad. Miguel
Carbonell. Madrid: Mima Trottta, 2005. O texto original, publicado na Itália, é do ano de 1996.
Concepção similar se encontra na teoria norte-americana em autores como Stephen Griffin, Bruce
Ackerman, Mark Tusnet e Cass Sustein. Excelente resumo sobre o tema se em DUARTE,
Fernanda; VIEIRA, José Ribas. (Orgs.). Teoria da Mudança Constitucional. Sua Trajetória nos
Estados Unidos e na Europa. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2005.
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39
Zagrebelsky e todos os autores aqui mencionados, no entanto, ainda que
apresentem especificidades e, por vezes, avistem a insuficiência da
normatividade autônoma da constituição e sua reciprocidade tem-na como
imprescindível referência.
Mudanças do cenário sócio-político-econômico neste início de culo estão
a exigir, contudo, uma postura crítica em face da crença na específica força
normativa da constituição, ou seja, na normatividade autônoma que lhe assegura a
teoria pós-1945.
2.3
Normatividade autônoma em crise
A globalização crescente das últimas décadas do culo XX traz à tona
mudanças no cenário político, econômico e cultural. As fronteiras dos Estados-
nação e de sua soberania são esgarçadas pela força do capital financeiro,
expandindo-se, em anos recentes, o projeto neoliberal. Vive-se, no limiar do
século XX, numa sociedade do risco que emergir uma nova articulação da
soberania e dos meio de produção da vida: o Império.
A coerção é reorganizada e a guerra consubstancia recurso e gica
constante de poder no Império,
83
em especial por parte de seu principal agente, os
Estados Unidos, que, sob o impacto do 11 de setembro de 2001, não titubeiam em
se utilizar de medidas de exceção que ano após ano vem adquirindo inevitável
84
permanência. Ressurge o discurso de que a estabilidade apenas é assegurada pela
aplicação de poderes e métodos de exceção.
O ataque do dia 11 de setembro, o atentado ao sistema metroviária inglês, a
recente determinação do l'etat d'urgence na França (2005), as ondas de violência
83
É ler HARDT, M.; NEGRI, A., Multitude, 2004; HARDT, M.; NEGRI, A., Império, 2004;
NEGRI, A., Cinco lições sobre Império, 2003. Também: GUIMARAENS, Francisco de. O poder
constituinte na perspectiva de Antonio Negri: um conceito muito além da modernidade
hegemônica. Dissertação de mestrado. Orientador Carlos Alberto Plastino; Co-orientador Adriano
Pilatti. Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Direito, 2002.
84
A “inevitabilidade” e permanência seriam inerentes à própria noção de terrorismo. Segundo
Bruse Ackerman os ataques terroristas farão parte do futuro ocidental, requerendo, urgentemente,
novos conceitos constitucionais para assegurar a democracia e proteger as liberdades civis. No seu
entender, “o projeto auto-consciente de um regime de emergência talvez seja a melhor defesa
disponível contra um ciclo de nico-dirigido de permanente destruição”: ACKERMAN, B., The
emergency constitution, p. 1029.
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40
no Estado de São Paulo em meados de 2006 e, nos últimos dias de dezembro
desse ano, no Estado do Rio de Janeiro, a manutenção da exploração econômica e
do programa neoliberal nos governos dos países ocidentais acentuam a tensão do
modelo de Estado Democrático que tem na constituição seu instrumento político-
jurídico para superar os problemas da vida em sociedade e no tribunal
constitucional seu guardião.
Achamo-nos ante um cenário político e econômico global-nacional, gerador
de dominação, propagador de violência e contrário à criatividade constituinte do
ser humano, que revela características semelhantes àquelas encontradas em
estados de exceção, emergência ou sítio da primeira metade do século XX, nos
quais os preceitos fixados na ordem jurídica, embora vigentes, não são efetivados.
Reafirma-se a lógica da insuficiência do regime democrático.
Bastante interessantes são as referências de Hardt e Negri.
Este novo alicerce de legitimidade inclui novas formas e novas articulações do
exercício da força legítima (...) Essa espécie de intervenção continua, portanto, ao
mesmo tempo oral e militar, é realmente a forma lógica do exercício da força, que
deriva de um paradigma de legitimação baseado num Estado de exceção
permanente e de ação policial. As intervenções são sempre excepcionais, apesar de
ocorrerem continuamente; elas tomam a forma de ações policiais, porque são
voltadas à manutenção da ordem interna. Dessa forma, a intervenção é um
mecanismo eficaz que mediante ações policiais contribui diretamente par a
construção da ordem moral, normativa e institucional do Império.
85
(grifou-se)
A problemática se intensifica se nos ativermos ao cenário brasileiro. Afinal,
não são estranhas as características da anunciada situação de exceção permanente
num país marcado pela inoperância da legislação protetora dos direitos
fundamentais, pela concentração de poder no Executivo, pela sucessão de planos
milagrosos para salvar a economia, por ocupar a periferia do capitalismo, pela
acumulação do capital estruturada na exploração do subdesenvolvimento e que se
vê governado por uma lógica de exceção permanente
86
e por uma crescente
retórica do binário medo/segurança.
87
Vivemos, segundo Denninger, num momento histórico de reorganização do
projeto constitucional da modernidade. A constelação liberdade, igualdade e
85
HARDT, M.; NEGRI, A., Império, p. 57.
86
Bercovici vislumbra entre nós um estado de exceção econômica permanente. Cf. BERCOVIVI,
G., Constituição e Estado de exceção permanente: Atualidade de Weimar, 2004.
87
É significativo nesse sentido haver se decidido no referendo do dia 23 de outubro pela
manutenção do comércio de armas de fogo no Brasil.
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41
fraternidade dá lugar a outra: segurança, diferença e solidariedade
88
.
Isso não obstante, a nova tríade não deve ser compreendida nem como
“‘valores básicos’ para uma nova geração de textos constitucionais”
89
nem como
um novo conjunto de ideais constitucionais ou como um modelo de uma política
internacional de direitos humanos – e nisso nos distanciamos de Denninger. Trata-
se, antes, de um desafio decorrente das alterações do processo histórico que, no
capítulo que se segue, tentaremos exemplificar reportando-nos à situação de
exceção permanente.
Crer na força normativa autônoma das constituições, na sua capacidade
reguladora da vida conforme propugna a teoria pós-1945, é bastante difícil e
talvez leviano – no início deste milênio. Direitos fundamentais são vilipendiados e
por vezes, servem para encobrir e legitimar sua própria violação. A jurisdição
constitucional, as novas técnicas hermenêuticas e as próprias constituições não
podem, por si, autonomamente, fazê-los efetivos, quer em escala local quer em
nível mundial. Não é sem motivo que Canotilho discorre sobre uma possível
mudança na maneira de compreender a constituição dirigente. Segundo o autor:
a Constituição dirigente está morta se o dirigismo constitucional for entendido
como normativismo constitucional revolucionário capaz de, por si, operar
transformações emancipatórias (...) Contra os que erguem as normas programáticas
a ‘linha de caminho de ferro’ neutralizadora dos caminhos plurais da implantação
da cidadania, acreditamos que os textos constitucionais devem estabelecer as
premissas fundantes das políticas públicas num Estado e numa sociedade que se
pretendem continuar a chamar de Direito, democráticos e sociais.
90
Ainda quando prevalecem os direitos é duvidoso que isso se tenha
conseguido sem ação política, pela imposição da força ativa da constituição ou de
tratados e normas internacionais que, simbolicamente, são por vezes a ela
equiparados ou integrados. Nem se pode dizer que houve uma vontade de
constituição, na linha de Konrad Hesse, uma vez que o agir da multidão, via de
regra, não se volta a implementar algo garantido pela norma, mas a instituir
possibilidades que não se apresentam à mente sem uma boa dose de impulso
88
DENNINGER, Erhard. ‘Segurança, Diversidade e Solidariedade’ ao invés de ‘Liberdade,
Igualdade, Fraternidade’, 2003. Em sentido contrário: HABERMAS, Jürgen. Remarks on Erhard
Denninger’s triad of diversity, security and solidarity, 2000, pp. 524 e ss. E ainda: ROSENFELD,
Michael. American Constitutionalism Confronts Denninger’s New Constitutional Paradigm, 2000.
89
DENNINGER, Erhard. ‘Segurança, Diversidade e Solidariedade’ ao invés de ‘Liberdade,
Igualdade, Fraternidade’, p. 44.
90
CANOTILHO, J.J. G, Constituição dirigente e vinculação do legislador, 2001, prefácio.
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42
criativo e emancipador.
91
A normatividade autônoma da constituição revela, na sua estrutura, a
característica que Zizek, citando Alain Badiou, atribuiu ao século XX: a paixão
pelo real
92
. Pretende manter contato pleno com a realidade, mas, ao enfrentá-la,
manifesta certa repugnância pelo que está diante de si e se isola na mera
reciprocidade. Almeja emancipação e conquistas por intermédio de sua
capacidade regente, mas, confrontada com o real, transmuta-se em imobilidade.
A solução da aporia, na linha de Zizek, não está no movimento de
descortinar a aparência ou, traduzindo para nossos propósitos, em simplesmente
abandonar a força normativa, a normatividade autônoma, e desvendar a realidade
que sob ela se esconde. Tudo indica ser a eventual resposta mais complexa:
Geralmente dizemos que não se deve tomar ficção por realidade (...). Aqui a lição
da psicanálise é o contrário: não se deve tomar a realidade por ficção é preciso
ter capacidade de discernir naquilo que percebemos como ficção, o núcleo duro do
Real que temos condições de suportar se o transformarmos em ficção.
Resumindo, é necessário ter a capacidade de distinguir qual parte da realidade é
‘transfuncionalizada’ pela fantasia, de forma que, apesar de ser parte da realidade,
seja percebida num modo ficcional. Muito mais difícil do que denunciar ou
desmascarar como ficção (o que parece ser) a realidade é reconhecer a parte da
ficção na realidade ‘real’.
93
A normatividade, portanto, não precisa ser abandonada, mas reconstruída ou
mesmo “recompreendida”.
A normatividade na versão pós-1945, como força ativa própria, outra coisa
não é senão a construção de um período histórico cada vez mais chocado pela
realidade que nele mesmo se produz. Seguindo o paradoxo de Zizek, trata-se de
uma ficção real. Esclareça-se: (i) o núcleo duro do real consiste em saber que a
constituição (metonímia contemporânea do próprio direito), por si só, em nada
afeta e dirige a vida (e esse parece haver sido o grande trauma da primeira metade
do século XX e que ainda perdura); (ii) afigurando-se insuportável a “descoberta”,
transmuta-se, transfuncionaliza-se esse dado real de modo que a incapacidade
91
A multidão, esclarecem Hardt e Negri, teria pelo menos três demandas no contexto hodierno:
cidadania global como direito de controle do movimento num espaço mundializado; um salário
social e uma renda garantida para todos; um direito à reapropriação (um telos) caracterizado por
cinco aspectos: controle do sentido, do significado e das redes de comunicação; controle de
máquinas, de tecnologia; criação coletiva da história; complexidade da vida; poder constituinte, o
produto da imaginação criadora da multidão. Cf. HARDT, M.; NEGRI, A., Império, p. 421-437.
92
ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas
relacionadas. reimpressão. Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 19 et.
seq.
93
Ibid., p. 34.
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43
regulatória da constituição é vista como ficção. Para simplificar o percurso cria-se
a idéia de força normativa da constituição ou, como preferimos, de normatividade
específica ou autônoma.
Tudo aponta, então, no sentido de que se faz necessária uma nova categoria
para compreender os novos tempos. A exceção permanente, acreditamos,
permitirá entender de maneira adequada porque as pretensões normativas da teoria
pós-1945, que influenciou e influencia a Constituição brasileira de 1988, não
se concretizam. Deixará entrever, de igual modo, algumas incongruências da
democracia liberal capitalista, conforme bem apontam Domênico Losurdo para
quem a tradição liberal, marginalizadora e elitista, é contrária à democracia
94
e
Ellen Wood, a qual, seguindo a tradição marxista ortodoxa, sustenta a também
manifesta contradição entre democracia e capitalismo
95
.
A exceção permanente, em síntese, nos levará a refletir sobre a possível
insuficiência da teoria pós-1945 que, atada à normatividade autônoma da
constituição, mantém uma indesejável ficção que dificulta a abertura do
pensamento constitucional às influências do poder, à complexidade das relações
humanas e à incorporação do processo histórico e da política.
Antes, contudo, mister esclarecer o contexto histórico de exceção que
reivindica essa nova categoria. Isso se realizado no capítulo que se segue,
salientamos, referindo-se, brevemente, a cinco noções-chave: globalização, risco,
estado de guerra, Império e neoliberalismo.
94
Ver LOSURDO, Domenico, Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio
universal, 2004.
95
WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo
histórico, 2003.
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3
Contexto: situação de exceção permanente
Sumário do capítulo: 3.1. Globalização; 3.2. Risco; 3.3. Estado
de guerra e Império; 3.4. Neoliberalismo.
Afirmou-se no capítulo anterior que recentes modificações sociais em escala
planetária têm conduzido à crise da normatividade específica ou autônoma da
constituição, exigindo-se uma nova categoria para compreender a normatividade e a
dinâmica do fenômeno jurídico-político: a exceção permanente.
O contexto que reivindica essa nova categoria compõe o que se denomina, aqui,
situação de exceção permanente.
Adiante será traçada uma imagem dessa situação por intermédio de cinco noções-
chave (globalização, risco, estado de guerra, Império e neoliberalismo), deixando mais
clara a conclusão do capítulo primeiro no sentido de que, ante um cenário de agudização
do risco, gerador de dominação, propagador de violência e contrário à criatividade
constituinte do ser humano, em que se reafirma, ainda que implicitamente, o discurso da
insuficiência do regime democrático, a normatividade autônoma que serve de
fundamento da teoria constitucional pós-1945 se vê, realmente, em crise.
3.1
Globalização
A globalização é invocada de maneira exaustiva nos discursos políticos,
econômicos, culturais, sociológicos e jurídicos. Carece, contudo, de uma definição
única e universalmente aceita, afigurando-se mesmo contestável que sobre ela se
estabeleça concepção homogênea.
Segundo Ulrich Beck, globalização abarca, simultaneamente, idéias de
interconexão, de fluxos transfronteiriços e de superação de espaço e de tempo, bem
como uma transformação histórica que importa na renovação de conceitos com os quais
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45
se estava familiarizado: sociedade, identidade, Estado, soberania, legitimidade,
violência e domínio.
1
E indaga Beck se vivemos em meio à transfomação, à passagem de uma
Primeira Modernidade, caracterizada por Estados-nação e relações territoriais, a uma
Segunda Modernidade, cosmopolita, como compreender a nova dinâmica mundial?
A resposta do autor passa pela concepção de risco, pela idéia de uma nova política
interior-mundial e de uma nova teoria crítica com intenção cosmopolita. Voltaremos a
Beck mais à frente, em específico à sua noção de sociedade do risco em escala
planetária. Por ora, concentrar-se-á no fenômeno da globalização, utilizando-nos, pela
objetividade e clareza, da exposição de David Held e Anthony MacGrew.
2
3
Oferecem os autores um “conceito básico”, em certa medida operacional, de
globalização, repartindo-o em aspectos materiais, espaço-temporais e cognitivos.
O aspecto material se refere à identificação de fluxos de comércio, de capital e de
pessoas em todo o globo, que são facilitados por infra-estruturas
“física (como os transportes ou sistemas bancários), normativa (como as regras do
comércio) e simbólica (a exemplo do inglês usado como língua franca) que criam
precondições para formas regularizadas e relativamente duradouras de interligação
global”.
4
Mais do que a ampliação de relações e atividades sociais, asseveram os autores,
tem-se uma magnitude ou intensidade crescente de fluxos globais de tal monta que
1
BECK, Ulrich, Poder y Contra-Poder en La era Glabal: la nueva economia política mundial, p. 13-14:
“En el presente libro se acepatan ambos enfoques, pero al mismo tiempo se da un paso esencial más allá y
se entiende y expone la globalización como una transformación histórica. En consecuencia, la atual
visión del mundo, basada en la distinción entre nacional e internacional, queda disuelta en un espacio de
poder de la política interior mundial todavia difuso. Sin embargo, fue en el horizonte de dicha distinción
donde se acuño la imagen del mundo de la Primeira Modernidade, conceptos (y teorias), clave, como
sociedad, identidad, Estado, soberania, legitimidad, violencia y dominio. De modo que en libro plantea la
siguiente pregunta: ¿como traducir a conceptos un mundo, una dinámica mundial, en que los problemas
causados por una modernización radicalizada suprimen los pilares y lógicas de acción del orden moderno
(el orden del Estado nacional) así como determinadas distinciones fundamentales e instituciones básicas
en la historia? La respusta (...) es: la nueva política interior mundial, que aqui y ahora va más allá de lo
nacional e internacional, se ha convertido en un juego de metapoder de resultado totalmente abierto, un
juego que estipulará de nuevo las fronteras, reglas y distinciones básicas no sólo de lo nacional y lo
internacional, sino también de la economia mundial y el Estado, de los movimentos civiles
transnacionales, de las organizaciones supranacionales y de los gobiernos y sociedades nacionales.”
2
HELD, David, MCGREW, Anthony, Prós e contras da globalização, 2001.
3
Confira-se sobre o tema BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1999; BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2000. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2003. MAUS, Ingeborg. From nation-state to global state, or the decline of democracy. In:
Constellations, v. 13, n.º 4, 2006, p. 465-484.
4
HELD, D.; MCGREW, A., Prós e contras da globalização, p. 12.
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46
Estados e sociedades ficam cada vez mais enredados em sistemas mundiais e redes de
interação.
Aí o aspecto espaço-temporal.
Espaços alargados ainda que virtualmente e tempo reduzido ao imediato. As
ações individuais e coletivas e as organizações alcançam escala inter-regional, senão
intercontinental, sem que isso signifique, necessariamente, que a ordem global descarte
os níveis locais, nacionais e regionais. Exemplos que não deixam dúvida: a internet, a
negociação em mercados financeiros e as crises econômicas (v.g. a crise asiática de
1997).
No seu aspecto cognitivo, a globalização se “expressa numa conscientização
popular crescente do modo como os acontecimentos distantes podem afetar os destinos
locais (e vice-versa), bem como em percepções públicas da redução do tempo e do
espaço geográfico.”
5
Na medida em que enfatizado, reconstruído ou substituído um ou mais desses
aspectos, variam as posições sobre a globalização.
De acordo com Held e MacGrew é possível sintetizar todo o conjunto de
argumentos referentes à globalização – num dualismo um tanto “grosseiro”, não deixam
de assinalar – na dictomia globalistas e céticos. De um lado, os globalistas, que
consideram ser a globalização contemporânea um acontecimento histórico real e
significativo. De outro, os céticos, que a concebem como uma “construção
primordialmente ideológica ou mítica de valor explicativo marginal”
6
.
Isso não obstante, certos de que nem as teses dos céticos nem a dos globalistas
esgotam a complexidade e as sutilezas das divergentes interpretações da globalização,
de acordo com os autores os termos da dictomia servem de tipos ideais, “recursos
heurísticos que ordenam um campo de investigação e identificam as áreas primárias de
consenso e dissensão”, ajudando “a esclarecer as linhas mestras de argumentação e,
com isso, estabelecer pontos de discordância fundamentais.”
7
Sob essa premissa constroem, em quadro, um resumo sobre o debate da
globalização que aqui, por seu forte caráter didático e clareza, tomaremos de
empréstimo:
5
Ibid., p. 13.
6
Ibid., p. 9.
7
Ibid., p. 10.
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47
QUADRO 2: RESUMO DO DEBATE SOBRE A GLOBALIZAÇÃO, SEU CONCEITO E SUAS
PRINCIPAIS IMPLICAÇÕES
8
Céticos Globalistas
1. Conceitos Internacionalização,
não globalização
Regionalização
Um mundo, moldado por
fluxos, movimentos e redes
sumamente extensos,
intensivos e rápidos através
das regiões e continentes
2. Poder Predomina o Estado nacional
Intergovernamentalismo
Desgaste da soberania, da
autonomia e da legitimidade
do Estado
3. Cultura Ressurgimento do
nacionalismo e da identidade
nacional
Surgimento da cultura
popular global
Desgaste das identidades
políticas fixas
Hibridização
4. Economia Desenvolvimento de blocos
regionais
Triadização
Novo imperialismo
Capitalismo global
informacional
Economia transnacional
Nova divisão global do
trabalho
5. Desigualdade Defasagem crescente entre o
norte e o sul
Conflitos de interesse
irreconciliáveis
Desigualdade crescente nas e
entre as sociedades
Desgaste das antigas
hierarquias
6. Ordem Sociedade internacional de
Estados
Persiste inevitavelmente o
conflito entre os Estados
Gestão internacional e
geopolítica
Comunitarismo
Gestão global em camadas
múltiplas
Sociedade civil global
Organização política global
Cosmopolitismo
Da leitura que se fizer dessa transformação histórica contemporânea, mais ou
menos afastada do tipo globalista ou do tipo cético, será possível inferir e construir
conseqüências para uma compreensão que se almeja adequada da sociedade, da política,
da economia, da cultura e do direito – notadamente da teoria constitucional.
Adiantamos que se seguirá, sob o marco da exceção permanente, próximo do tipo
ideal globalista sem que disso se possa inferir algum compromisso com as premissas
dessa perspectiva teórica. Embora não se vá, aqui, ingressar a fundo no tema, a ele se
referindo com o singelo objetivo de traçar uma adequada contextualização deste início
de milênio, sob o marco da exceção permanente se transitará entre as duas vertentes, ora
aproximando-se dos globalistas, ora dos céticos, de modo que se deixará entrever, aos
poucos, as nuances que a idéia de exceção permanente permite trazer para o âmbito
8
Ibid., p. 92.
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48
jurídico.
Nova formas de tecnologia e de relações econômicas e culturais emergem na
segunda metade do século XX e desestabilizam conceitos e maneiras de compreender o
mundo que, até então, revelavam-se suficientes para que se pudesse saciar a curiosidade
humana.
Segundo Alain Touraine,
9
quatro fragmentos expressam a decomposição da
modernidade ao longo do século XX: a sexualidade, o consumo, a empresa e a nação.
Relacioná-los é o desafio que, entende o autor, pode ser compreendido ao se distinguir
a ordem da mudança e a ordem do ser, separando, de igual modo, a ordem pessoal da
ordem coletiva.
De acordo com o sociólogo francês:
Essas duas dicotomias [mudança e ser / ordem pessoal e coletiva] integram-se facilmente.
À esperança de uma modernização endógena, do triunfo das luzes da razão e das leis da
natureza afastando ilusões da consciência, às falsidades das ideologias e à irracionalidade
das tradições e dos privilégios sucede o reconhecimento brutal das forças cuja diversidade
desorganiza o campo social e cultural. A idéia de modernidade é substituída pela ação
modernizadora; esta mobiliza forças não modernas, liberta o indivíduo e a sociedade até
então prisioneiros das leis impessoais da razão depois de terem ido da lei divina (...)
Em segundo lugar, e mais simplesmente, vemos se separar a ordem pessoal da
ordem coletiva (...).
Num esboço de suas idéias:
QUADRO 3: FRAGMENTOS DA DECOMPOSIÇÃO DA MODERNIDADE AO LONGO DO
SÉCULO XX SEGUNDO ALAIN TOURAINE
----
SER MUDANÇA
Ordem individual Sexualidade Consumo
Ordem coletiva Nação Empresa
Cada fragmento traz em si, simultaneamente, “a marca da modernidade e a da
sua crise.”
10
Completa o modelo destacar que a racionalidade, em meio a essa
fragmentação, é reduzida, no pesamento moderno, à racionalidade instrumental, à
“procura dos meios mais eficazes para atingir os objetivos que escapam aos critérios da
9
TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade. 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
10
Ibid., p. 109.
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49
racionalidade na medida em que dependem dos valores sociais ou culturais (...)”.
11
A sexualidade refere-se à construção ou destruição do sujeito. O consumo
acentua as transformações econômicas, notadamente a produção e o consumo de massa,
dominados pelo marketing. A empresa traz à mente a organização da produção e a
nação os problemas de identidade e reconhecimento.
Destaque-se que a separação de Touraine entre mudança e ser é aqui utilizada por
seu caráter didático, sem preocupação em se manter fiel a todo o contexto em que são
inseridos os termos na obra do autor. Permite-nos, assim, principalmente, salientar a
idéia de que não se pode olvidar da inseparabilidade, no cenário hodierno, entre a
dimensão das lutas por reconhecimento – ser: sexualidade e nação – e por distribuição –
mudança: empresa e consumo – ambas atingidas pela globalização.
A produção da vida, assim, toda ela, é modificada no ambiente globalizado que
emerge na segunda metade do século XX e, na hipótese de vir a ser controlada ou ditada
por um centro produtor, ainda que ideológico, imaterial, ter-se-á configurada, conforme
expõe Boaventura de Sousa Santos, uma globalização hegemônica e
desemancipatória.
12
A globalização atua sob esses distintos aspectos e, com isso, promove alterações
das formas e condições da vida. Enfraquece, principalmente, o elemento que Held e
Mcgrew denominaram cognitivo e desestabiliza o significado dos conceitos de
segurança, controlabilidade e certeza que marcam a época moderna.
Não basta, contudo, referir-se à globalização se se pretende, aqui, ainda que de
maneira sumária, compreender as nuances do atual momento histórico.
Por ela, é bem verdade, pode-se simplificar fenômenos que, sem dúvida,
encontram-se na base de qualquer reflexão atual sobre o universo político-jurídico
mutações concernentes às idéias de Estado, poder, economia, cultura, política, etc. Sem
embargo, pelo menos na acepção aqui empregada, não apreende nem especifica o
conceito de globalização pormenores importantes do amplo espectro de transformações
contemporâneas. Daí referir-se, na seqüência, às noções de risco, estado de guerra,
Império e neoliberalismo na tentativa de melhor expressar o cenário neste início de
século.
11
Ibid., p. 109.
12
SANTOS, Boaventura de Sousa (org.) Democratizar a democracia: os caminhos da democracia
participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, pp. 13-84.
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50
50
3.2
Risco
Risco consubstancia, na visão de Ulrich Beck,
uma abordagem moderna para prever e controlar as futuras conseqüências da ação
humana, as várias conseqüências não planejadas da modernização radicalizada. É uma
tentativa institucionalizada, um mapa cognitivo, para colonizar o futuro. Toda sociedade
tem, é claro, experimentado perigos. Mas o regime de risco é uma função da nova ordem:
não nacional, mas global. Ele está mais intimamente conectado com um processo de
tomada de decisão administrativo e técnico. Risco pressupõe decisão. Essa decisão foi
previamente tomada com normas fixas de calculabilidade, conectando meios e fins ou
causas e efeitos. Tais normas são precisamente o que a 'sociedade de risco mundial'
invalidou. Tudo isso se tornou muito evidente com o seguro privado, talvez o melhor
símbolo da calculabilidade e da segurança alternativa que não cobre desastre nuclear,
nem mudanças climáticas e suas conseqüências, nem a quebra econômica da Ásia, nem o
risco pouco-provável e de elevada-conseqüência das várias formas de tecnologia futura.
13
Encontrando na globalização seu ponto de partida, a categoria do risco traz a
possibilidade de se aprofundar na difícil empreitada de compreender a situação histórica
na virada do milênio: risco, acabou-se de transcrever, é uma “função da nova ordem”. A
concepção de risco, de modo especial de sociedade do risco mundial sobre a qual nos
deteremos adiante não se restringe a descrever e a indicar as mudanças
contemporâneas. Antes, combina o discurso descritivo ao construtivo, viabilizando
mesmo uma leitura enriquecida das alterações sociais, políticas, econômicas, culturais e
cognitivas apontadas pela referência que aqui se fez à globalização.
Sociedade do risco mundial, de acordo com Beck, pode ser sintetizada por oito
idéias-força:
14
“(1) real virtuality”; (2) “lost the dualism between nature and culture”;
(3) “threatening future”; (4) “mathematicized morality”; (5) “manufactured
uncertainty”; (6) “knowledge or unawareness realized in conflicts of (re)cognition”; (7)
13
BECK, Ulrich, World Risk Society, p. 3-4. Segundo o autor: “But what does risk mean? Risk is the
modern approach to foresse and control the future consequences of human action, the various unintended
consequences of radicalized modernization. It is an (institucionalized) attempt, a cognitive map, to
colonize the future. Every society has, of course, experienced dangers. But risk regime is a function of
new order: it is not national, but global. It is rather intimately connected with an administrative an
technical decision-making process. Risks presuppose decision. These decision were previously
undertaken with fixed norms of calculability, connecting means and ends or cause end effects. These
norms are precisely what ‘world risk societyhas rendered invalid. Al of this becomes very evident with
private insurance, perhaps the greatest symbol of calculation and alternative security which does not
cover nuclear disaster, nor climate change and its consequences, nor the breakdown of Asian economies,
nor the low-probability high-consequences risk of various forms of future technology.”
14
Ibid., pp. 133-152.
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51
“global and local reconstituted as the ‘globality’ of risks e (8) “distinction between
knowledge, latent impact and symptomatic consequences”.
Real vituality, virtualidade real. Risco está entre segurança e destruição:
“não-mais-porém-não-agora não mais confiança/segurança, não agora
destruição/desastre é o que o conceito de risco expressa e o que faz dele uma estrutura
pública de referência. A sociologia do risco é a ciência das potencialidades e dos
julgamentos de probabilidades (...). Destarte, riscos ‘são’ um tipo de realidade virtual, de
virtualidade real (...). Apenas se pensarmos no risco em termos reais, ou melhor, um
tornando-se real (uma virtualidade) pode a materialização social ser entendida”
15
.
Acentua-se, dessa forma, que a sociedade do início do século XXI há de ser
entendida pela materializão de potências virtuais, de fluxos não de essências
definidas e estagnadas e por mediações particulares da ciência, da política, da
economia e do conhecimento comum.
Tem-se, com isso, uma nova percepção da ontologia rompendo-se o dualismo
entre natureza e cultura (lost the dualism between nature and culture) e, também, da
decisão.
Partindo da problemática concernente à ecologia, ao meio-ambiente, Beck
enfatiza que se precisa amalgamar as visões realistas, que mais se preocupam em
diagnosticar mudanças da sociedade global, e construtivistas, que crêem na
possibilidade de construir um discurso de coalisão transnacional. Isso porque, destaca o
autor, o ambiente e, por conseguinte, o universo do ‘ser’ de uma maneira geral tem
aspectos naturais e culturais imbricados.
16
Vivemos num mundo híbrido que, ao mesmo
tempo, é objeto de percepções culturais, julgamentos de moral, política e tecnologia, e
expressão da natureza. Um mundo complexo e ambivalente.
Indo um pouco além – se é que não se estará, implicitamente, em harmonia com o
discurso do autor – na sociedade do risco mundial deve-se compreender o ‘ser’, o
universo ontológico, como um vir-a-ser. Há determinações e limites naturais, diretivas
fixas; porém, a realização, a concretização dessas linhas de força determinadas está
aberta, passível de construção, destruição e/ou reconstrução no âmbito da cultura.
15
Ibid., p. 135-136: “no-longer-but-not-yet no longer trust/security, not yet destruction/disaster is
what the concept of risk expresses and what makes it a public frame of reference. The sociology of risk is
a science of potentialities and judgements about probabilities (…). So risks ‘are’ a type of virtual reality,
real virtuality (…). Only by thinking of risk in terms of reality, or better, a becoming-real (a virtuality)
can social materialization be understood”.
16
Ibid., p. 23-31.
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52
A tarefa de realizar linhas de força, virtualidades, é mediada pela potência criativa
do ser humano
17
na política, na economia, no direito, etc. A consciência disso traz
responsabilidade e, por sua vez, decisão. É o que sugere Beck, ao comentar um exemplo
de subpolítica (política realizada fora dos canais representativos do sistema
institucional), decorrente do surgimento dos casos de BSE (bovine spongiform
encephalopathy) na Inglaterra:
O ‘tornar-se real’ do risco do BSE está diretamente relacionado com sua mediação. Agora
que ‘nós’ sabemos que ‘existem’ riscos possíveis ‘nós’ assumimos uma responsabilidade.
Essa responsabilidade toma a forma de uma decisão sobre comer bife ou outro produto
bovino ou não (...) A despeito de o cálculo do risco se manter problemático, como uma
virtualidade, ele opera exatamente na mesma direção. A inexperada acessibilidade ao
‘conhecimento’ no que se refere à possível relação entre o BSE e a CJD transformou um
perigo em risco: nós agora temos uma decisão a tomar com conseqüências para nós
mesmos, aqueles que amamos e possivelmente para o resto do mundo (...)
18
.
Essa decisão, destaque-se e isso parece não haver sido percebido por Beck
deve ser compreendida no sentido de que proporciona abertura à dinâmica do ingresso
da realidade, da vida, no normativo. Por outro lado, também é indicativa de que a
incerteza na sociedade do risco mundial pode levar à produção autoritária da decisão – o
que ocorre ao se agravar a sociedade do risco num contexto de guerra constante,
conforme se comentará adiante.
A terceira idéia-força se refere ao fato de a ação humana ter, agora, por parâmetro,
um threatening future, um futuro ameaçado de violência e destruição.
Risco relaciona passado, presente e futuro. Segundo Beck
O passado perdeu seu poder de determiner o presente. Seu lugar de causa da presente
experiência e ação está sendo tomado pelo futuro, isto é, algo não-existente, contruído e
fictício. Nós estamos discutindo e argüindo sobre algo que não está em cena, mas poderá
acontecer se nós continuarmos navegando no mesmo curso.
19
17
Sobre a criatividade humana é interessante a leitura de WINNICOTT, Donald Woods. O Brincar e a
Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 2005.
18
BECK, Ulrich, World Risk Society, p. 136-137. “The ‘becoming-real’ of the risk of BSE is directly
related to its mediation. Now that ‘we’ know that there ‘are’ possible risks, ‘we face a responsibility.
This responsibility takes the form of a decision whether to eat beef and other bovine products or not (...)
Although the calculability of this risks has remained problematic, as a virtuality, it operates in exactly the
same way. The sudden accessibility of the knowledge’ regarding the possible relationship between BSE
e CJD has thus transformed a hazard into risk: we now have a decision to make with consequences of
ourselves, our loved ones and possibly the rest of our world (…)”
19
Ibid., p. 137. The past loses it power to determine the present. Its place as the cause of present-day
experience and action is taken by the future, that is to say, something non-existent, constructed and
fictious. We are discussing and arguing about something which is not the case, but could happen if we
continue to steer the same course.”
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53
Problemas ambientais, financeiros, bélicos e identitários num cenário globalizado
trazem ao imaginário novas ameaças futuras e impõe que a ação humana as leve em
conta. E mais, na medida em que o futuro é, no presente, uma potencialidade,
invocando-o são abertas oportunidades de questionar noções e conceitos e, assim, vias
de atuação do poder na sociedade. Conforme salienta Beck: “O brilhante risco arranjado
da globalização, entretanto, já se tornou um instrumento para reabrir a questão do poder
na sociedade.”
20
Por mathematicized morality o autor quer destacar que na sociedade de risco
mundial os discursos nem são fatuais nem somente valorativos. Ou expressam os dois
aspectos ao mesmo tempo ou algo entre eles.
Representam, à semelhança dos cálculos matemáticos, ponderações e avaliações.
Voltados, nada obstante, à resposta sobre vida humana e sua complexidade, os discursos
devem descrever aspectos da natureza combinando-os a percepções culturais
normativas.
Quinta idéia-força da sociedade do risco hodierna cuida do controle e da
manufactured uncertainty.
No primeiro estágio da modernidade, segundo Beck, risco significava
essencialmente um meio de calcular as conseqüências não previsíveis, apresentando-se
na forma de variáveis estatísticas, de probabilidades e de cálculos atuariais. Hoje, na
pós-modernidade ou, de acordo com o autor, na segunda modernidade, a natureza se
“industrializada” e as tradições e as ideologias relativizadas, produzindo novas
incertezas que não mais são desvendadas e calculadas na lógica probabilística-atuarial:
“quanto mais nos esforçamos para ‘colonizar’ o futuro com o auxílio da categoria do
risco, mas ele saia de controle”.
21
Produz-se uma síntese entre conhecimento e incerteza numa dinâmica de luta por
reconhecimento (sexta idéia-força knowledge or unawareness realized in conflicts of
(re)cognition). A manufactured uncertainty apresenta uma dupla referência. Em
primeiro lugar, quanto mais se desenvolve o conhecimento, mais se abrem esferas de
ação humana e novos riscos surgem. Para citar um exemplo do próprio Beck: por haver
alargado o saber sobre as funções do cérebro, não se consegue, atualmente, definir ao
certo o momento da morte. Em segundo, tem-se a circunstância de que do não-
20
Ibid., p. 138. “The brilliantly staged risk of globalization, however, has already become an instrument
for reopening the issue of power in society.”
21
Ibid., p. 139. “[t]he more we attemp to colonizethe future with the aid of the category of risk, the
more it slips out of control”.
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conhecimento ou do conhecimento potencial (que o autor denomina unawareness)
advém, de igual modo, novos riscos.
Toda a produção da vida se encontra imersa numa gica de incertezas,
imprevisibilidades e de novas esferas de possibilidade a exigir que se redefina a atuação
política da sociedade e o debate sobre autoridade pública, cidadania, ética, definições
culturais, etc. Segundo Beck
Tudo cai sob um imperativo de evitabilidade. A vida diária, então, torna-se uma
involuntária loteria de sorte. A probabilidade de um ‘vencedor’ aqui não é
provavelmente maior do que na loteria semanal, mas isso tornou quase impossivel não
tomar parte dessa rifa de desgraças em que o ‘vencedor’ adoeça e talvez morra. (...) Uma
coisa é clara: como alguém age nessa situação não é mais algo que possa ser decidido por
especialistas. Riscos indicados (ou obscurecidos) por especialistas ao mesmo tempo os
desarmam, porquanto levam todas as pessoas a decidir por si mesmas (...) Esses tópicos
estabelecem questões concernentes à autoridade do público, às definições culturais, aos
cidadãos, aos parlamentos, aos políticos, à ética e à auto-organização.
22
Os novos riscos decorrem, simultaneamente, dos avanços e da ausência de saber
são globais e locais – essa a sétima idéia força.
A exemplo dos problemas relacionados à ecologia e às finanças, os novos riscos
não conhecem fronteiras. Nem por isso, contudo, tornam-se problemas apenas de
âmbito internacional. Alteradas as configurações de espaço e tempo, no mundo
globalizado é necesário que se enfrentem os riscos com medidas globais, regionais e
locais, difundindo-se o espaço da ação política. Como escreve Beck: “[n]a sociedade do
risco mundial a lógica do controle entra em colapso internamente. Assim, a sociedade
do risco é uma (latente) sociedade política.”
23
Oitava idéia-força que auxilia a compreender o cenário contemporâneo de uma
sociedade mundializada e adjetivada pelo risco está, consoante Beck, em distinguir
“knowledge, latent impact and symptomatic consequences”.
Grosso modo, quer o autor ressaltar que o impacto do dano não se identifica,
necessariamente, com o local de sua origem, movendo-se, muitas vezes, sem que seja
22
Ibid., p. 141. “Everything falls under an imperative of avoidance. Everyday life thus becomes an
involuntary lottery of misfortune. The probability of a ‘winner here is probably no higher than in the
weekly lottery, but it has become almost impossible not to take part in this raffle of evils where the
‘winner’ gets sick and may even die. (…) One thing is clear: how one acts in this situation is no longer
something that can be decided by experts. Risks pointed out (or obscured) by experts at the same time
disarm these experts, because they force everyone to decide for themselves (…) These issues raise
questions about the authority of the public, cultural definitions, the citizenry, parliaments, politicians,
ethics, and self-organization.”
23
Ibid., p. 142. “In the world risk society the logic of control collapses from within. So, risk society is a
(latent) political society.”
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percebido. Além disso, a percepção do dano do risco e de seus sintomas é relativizada
pelas referências culturais. No local da origem pode não se conhecer ou simplesmente
não se levar em consideração o risco de uma determinada atividade ou de um fato que,
na zona de impacto, no local que suporta, diretamente, as conseqüências, poderá ser
devastador.
Mais uma vez, vê-se, no contexto hodierno, a necessidade de abrir, pela política,
mais espaços de interação humana para lidar com os novos riscos. Com razão destaca
Beck: “quanto menos riscos são reconhecidos publicamente, mais riscos são
produzidos”.
24
Da menção à sociedade do risco mundial, portanto, extrai-se, notadamente,
enriquecendo o esboço que aqui se pretende fazer do atual momento histórico, a
imprescindibilidade de conferir maior espaço ao universo político se se objetiva
viabilizar ações emancipatórias. Num contexto em que a própria atuação humana
produz incertezas em escala planetária, requerendo um olhar para o futuro, amplia-se a
dinâmica política.
Bem enfatiza Ulrich Beck que na sociedade do risco mundial a responsabilidade e
a decisão são revalorizadas de forma a exigir que se redimensione o debate sobre
autoridade pública, cidadania, ética, identidades culturais, etc. No que toca,
principalmente, à normatividade autônoma da constituição, a politização que viemos de
sublinhar é forte indicativo de que se deve buscar uma nova compreensão da relação
entre norma e vida.
Determo-nos nas idéias de risco e de sociedade do risco mundial, no entanto,
ainda deixa de fora certas nuances.
Precisamos de uma visão mais larga para retratar os dois últimos decênios, uma
perspectiva que também considere as noções de estado de guerra, Império e
neoliberalismo, uma vez que, na virada para o século XXI, não parece haver dúvida
sobre o aumento da gravidade da situação de risco na sociedade global, afigurando-se
mesmo possível asseverar que o mundo pós-11/09 se encontra sob o “risco” do contínuo
estado de guerra e que, nele, a imprescindibilidade da política e da reconfiguração da
normatividade autônoma da constituição pressuposta na teoria pós-1945 será ainda mais
acentuada.
24
Ibid., p. 144.(…) the less risks are publicly recognize, the more risks are product”.
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56
3.3
Estado de guerra e Império
Para Hardt e Negri, a possibilidade de se estender a democracia, hoje, está
obscurecida e ameaçada por um aparente estado de conflito permanente. Os ataques de
11 de setembro abriram uma nova era de guerra
25
e pelo menos uma das chaves para se
entender esse violento estado de guerra global está na noção de exceção.
26
Nos anos trinta do século XX, segundo os autores, a tradição germânica-européia
buscava isolar a guerra para as margens da sociedade, limitando-a a momentos
excepcionais. Baniu-se a guerra do interior do Estado-nação, dirigindo-a ao exterior ao
mesmo tempo em que se separava a guerra da política. A guerra seria exceção. Paz, a
normalidade.
Atualmente, contudo, espalham-se pelo globo numerosas guerras civis e conflitos
armados: da África Central à América Latina e da Indonésia ao Iraque e ao Afeganistão.
Isso nos conduz a refletir sobre a possibilidade de ruptura da separação entre guerra e
política. A guerra e o conflito são trazidos para o interior dos Estados num período em
que a própria distinção entre interno e externo se revela ultrapassada. A
excepcionalidade da guerra, com efeito, torna-se regra: “O estado de exceção tornou-se
permanente e geral; a exceção tornou-se a regra, pervertendo as relações internacionais
e internas.”
27
A noção de estado de exceção na tradição germânica
28
remete à suspensão
temporária da constituição e do direito. De modo semelhante o estado de sítio francês e
os poderes de emergência na Inglaterra.
29
A constituição, aí, precisa ser suspensa para
que seja salva, evidente paradoxo remediado pela brevidade da exceção.
Na tradição norte-americana, segundo Hardt e Negri, tem-se o excepcionalismo,
expressão de duplo significado. De um lado, remete ao clamor dos anos da
independência no sentido de excepcionar a corrupção das formas européias de soberania
25
HARDT, M.; NEGRI, A., Multitude: war and democracy in the age of Empire, p. 4.
26
Ibid., p. 5: “The first key to undestanding our brutal global state of war lies in the notion of exception
or, specifically, in two exceptions, one Germanic and the other American in origin.
27
Ibid., p. 6; “The state of exception has become permanent and general; the exception has become the
rule, pervading both foreing relations and the homeland.”
28
Confira-se JAKAB, A., German Constitutional Law on State of Emergency – Paradigms and Dilemmas
of a Traditional (Continental) Discourse, 2006.
29
Sobre o tema ROSSITER, C., Constitutional Dictatorship: Crisis government in the modern
democracies, 2005.
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57
e domínio, revitalizando as virtudes republicanas. De outro, o excepcionalismo significa
exceção ao direito.
30
É o caso, por exemplo, dos acordos internacionais (sobre meio-
ambiente, direitos humanos, desarmamento, etc) que os Estados Unidos, usualmente,
não observam. Aquele que comanda, assim, não está submetido à obediência.
As duas acepções caminham juntas. Para Hardt e Negri, os Estados Unidos, uma
vez impulsionados e norteados pelas virtudes republicanas, tendem a considerar corretas
apenas as suas ações e concepções de bem, o se afigurando necessário, por isso,
acolher normas internacionais postas por nações não virtuosas. Existe, aí, verdadeira
contradição, uma vez que as virtudes republicanas sempre se erigiram contra a tirania e
o domínio de alguém que se posiciona acima da lei e do direito.
Interconectadas as perspectivas germânica e norte-americana (notadamente no
segundo sentido do excepcionalismo), tem-se caraterizado o estado global de guerra
permanente, em que a guerra, promiscuída senão totalmente identificada com o poder e
a política, torna-se relação social permanente. Consoante Hardt e Negri, arrimados em
Foucalt,
Guerra, em outras palavras, tornou-se a matriz geral de todas as relações de poder e
técnicas de dominação, esteja ou não envolvida a mortantade. Guerra transmutou-se num
regime de biopoder, isto é, uma forma ou regra com o objetivo não apenas de controlar a
população, mas de produzir e reproduzir todos os aspectos da vida social.
31
As freqüentes metáforas de guerra contra o terror, contra as drogas, contra a
pobreza, etc – apenas ratificam a assertiva.
Nada obstante, trata-se de uma nova perspectiva sobre a guerra que, bem se
destacou quando mencionada a problemática da globalização e da sociedade do risco
contemporânea, não conhece limites de espaço e tempo, sendo mesmo guiada pela
indeterminação e incerteza. A brevidade da exceção, caráter principal na perspectiva
germânica e européia do século XX, repercutindo até hoje na arquitetura jurídica, perde
todo o sentido ao iniciar o século XXI.
Conseqüência dessa “nova guerra”, além disso, é o desmonte da separação entre
relações políticas internas e internacionais, notadamente no que toca ao poder de
polícia.
30
HARDT, M.; NEGRI, A., Multitude: war and democracy in the age of Empire, p. 8.
31
Ibid., p. 13: “War, in the other words, becomes the general matrix for all relations of power and
techniques of domination, whether or not bloodshed is involved. War has become a regime of biopower,
that is, a form of rule aimed not only at controlling the population but producing and reproducing all
aspects of social life.”
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58
Atividade militar e de polícia se misturam e o “inimigo”, tradicionalmente o
estrangeiro, agora se encontra ao nosso lado: é o integrante da “classe perigosa”, o
marginalizado dos centros de poder e de capital. E mais, a identificação do “inimigo”,
ainda que supostamente se manifeste de forma concreta e objetiva, como pretendia
Schmitt
32
, é isso: uma aparência. O terrorista e o marginal, por exemplo, são
inimigos abstratos e toda a humanidade, em razão disso, pode ser arregimentada na
sociedade de risco global para “guerrar” contra semelhante ficção.
Nesse contexto de transição para o século XXI se reestruturado o poder
soberano: o Império, pelo qual a situação mesma de exceção permanente é, acreditamos,
conservada.
Sobre o conceito de Império esclarecem Hardt e Negri:
Entendemos 'Império', entretanto, como algo completamente diverso de 'imperialismo'
(...) [O] Império não estabelece um centro territorial de poder, nem se baseia em
fronteiras ou barreiras fixas (...) O conceito de Império caracteriza-se fundamentalmente
pela ausência de fronteiras: o poder exercido pelo Império não tem limites. Antes e acima
de tudo, portanto, o conceito de Império postula um regime que efetivamente abrange a
totalidade do espaço, ou que de fato governa o mundo 'civilizado' (...) o Império se
apresenta (...) como um regime sem fronteiras temporais, e, nesse sentido, fora da
História ou no fim da História (...) O objeto de seu governo é a vida social como um todo
e assim o Império se apresenta como um paradigma de biopoder.
33
Toda a produção e reprodução da vida é nele alcançada: economia, política,
cultura, religião, etc. O Império consubstancia um novo registro de autoridade capaz de
lidar com as transformações evidenciadas na sociedade do risco mundial ou
globalizado.
O poder no Império não se define em termos apenas negativos nem sobre um
exclusivo domínio sobre a morte. Bem acentuam Hardt e Negri sua feição positiva, de
produção da vida:
O poder soberano mantem-se apenas pela preservação da vida de seus súditos (...) Mais
importante que as tecnologias negativas de aniquilação e tortura, assim, é o caráter
construtivo do biopoder. Guerra global o deve somente trazer morte, mas também
produzir e regular a vida.
34
32
Ver: SCHMITT, Carl, Teologia Política, 2006; SCHIMITT, Carl. La defesa de la constitución: estudio
acerca de las diversas especies y possibilidades de salvaguarda de la constitución, 1983; SCHIMITT,
Carl. Teoria de la constitución, 1992. E tamm: DYZENHAUS, D., Legality and Legitimacy, 1997.
33
HARDT, M.; NEGRI, A., Império, p. 57.
34
HARDT, M.; NEGRI, A., Multitude: war and democracy in the age of Empire, p. 31: “Sovereign
power lives only by preserving the life of its subjects (…) More important than negative technologies of
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Isso resta ainda mais claro se observado que o clamor por segurança perdida na
sociedade do risco associa-se, no presente, à defesa e à conservação, requerendo, para
tanto, ação, atividade positiva do Estado para moldar e regular a sociedade. Um Estado
em constante ão para produzir e reproduzir a vida social, para tudo disciplinar e
controlar sob o sígno da guerra ou da exceção.
A violência é legítimada, no Império, pelo resultado.
35
Não a partir de direitos
humanos, valores morais ou estruturas jurídicas. Dessa sorte, a violência do mais forte é
legítima enquanto a violência do mais fraco é marginalizada e enquadrada em algum
daqueles conceitos abstratos antes mencionados, em especial o de terrorismo. Nessa
empreitada pretende o Império tolher, em meio a uma situação de exceção permanente,
a potência humana criativa que viabilizou e é capaz de viabilizar, de modo constante,
mutações imprescindíveis à vida social.
A democracia, nessas circunstâncias, se desacreditada. É dominada por
mecanismos de exceção invocados para, supostamente, “salvá-la”. Mas não se trata de
salvamento; antes, de sua própria destruição. A democracia se operacionalizada por
mecanismos jurídico-constitucionais de exceção, e, por mais estranho que pareça, é não-
democrática: dominadora, racista, excludente dos pobres, etc. Segue, via de regra, como
bem escreve Domenico Losurdo, uma tradição liberal-conservadora que desde seu
início se revelava desemancipatória.
36
Diferente do que ocorria no mundo bipolarizado, em que democracia
consubstanciava, grosso modo, antônimo de totalitarismo facista ou comunista, hoje
tudo leva a crer que o conceito mesmo de democracia ingressou num tormentoso
declive, demandando que se construa renovados modos de compreensão, instituições e
práticas democráticas.
Tem-se, assim, uma das mais importantes tranformações do contexto social,
político e econômico que nos inspirou a utilizar o sintagma exceção permanente.
Falta, todavia, mais um componente dessa situação complexa: o neoliberalismo,
que não deve ser entendido apenas por sua feição de teoria econômica em favor da
sociedade organizada pelo mercado, mas, notadamente, pelos seus aspectos ideológicos,
enaltecedores do individualismo, da livre empresa, da liberdade negativa e da proteção
de mínimos de subsistência.
annihilation and torture, then, is the constructive character of biopower. Global war must not only bring
death but also produce and regulate life.”
35
Ibid., p. 30.
36
Cf. LOSURDO, D., Democracia ou Bonapartismo, 2004, p. 15 et. seq.
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60
3.4
Neoliberalismo
Ideologia que se tem beneficiado da organização Imperial e de certa forma sua
gestora é o neoliberalismo. Na medida em que o poder soberano se organiza de
maneira difusa, em rede, e o mercado, principalmente na economia internacional,
consegue mitigar a soberania dos Estados em determinados assuntos, espraia-se o
discurso de que se tem de buscar, preponderantemente, a liberdade individual e a livre
empresa. Aos Estados incumbe manter, como no liberalismo clássico, a estrutura
administrativa básica, garantindo, por exemplo, serviços públicos de base água,
saneamento e educação a integridade da moeda e a segurança mediante utilização de
recursos militares e ações de polícia. A intervenção direta na economia e no mercado
deve ser evitada.
A liberdade, no neoliberalismo, é valor supremo. Liberdade negativa, saliente-se,
reforçando o individualismo e a atuação econômica sem amarras estatais. O
desenvolvimento do neoliberalismo a partir de 1970, todavia, aponta para caminhos
mais complexos do que a simples revitalização de uma acepção negativa da liberdade.
Primeiro, porque acolhe em sua visão de liberdade, sem maiores preocupações,
ações de evidente caráter autoritário para, com isso, difundir a liberdade e a dignidade,
construindo, mundo afora, estruturas de mercado livre. É o caso da intervenção no
Iraque. Bem acentua Harvey que a administração Bush, em 19 de setembro de 2003,
quando Paul Bremer era o líder da Coalisão Provisória que comandava o Iraque,
promulgou quatro ordens que incluíram ampla privatização de empresas públicas,
proteção dos direitos das empresas estrangeiras na região, abertura dos bancos
iraquianos e repatriação de ganhos.
37
Segundo, porque o neoliberalismo encontrou um terreno favorável em meio a
distintas perspectivas políticas. O terror das Guerras Mundias e a destruição promovida
na Europa levaram a um espécie de acordo em favor de um Estado liberal-democrata
com algumas preocupações sociais para viabilizar a restabilização da ordem. O Estado
de Bem-Estar – que se consolidou como alternativa ao autoritarismo do início do século
37
HARVEY, D., A Brief history of neoliberalism, p. 6. Exemplo histórico citado por Harvey ocorreu no
Chile. Segundo o autor, o primeiro experimento de formação do Estado neoliberal (…) ocorreu no Chile
depois do golpe de Pinochet em 11 de setembro de 1973.
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61
XX não obstou o predomínio livre-cambista,
38
tendo em vista que erigido em
harmonia com os interesses do capital em face da crise da primeira metade do século
XX. A complexidade do desenvolvimento neoliberal é ainda acentuada por se verificar,
em sua base, uma espécie de dominação paradoxal. O pensamento neoliberal emerge,
não se pode negar, em meio a conquistas de identidade e liberdade. As mulheres
alcançaram maior espaço na sociedade, ampliaram-se as lutas contra o racismo e a
desigualdade. Destarte, as regras e os princípios normativos que integram hoje, no
ocidente capitalista, o Estado Democrático de Direito sob influência neoliberal
fomentam, à maneira do paradoxo, uma cultura contrária às garantias e aos valores que,
sedimentados na história, visam a assegurar a solidariedade e a vida digna de todos. De
acordo com Martin Hartmann e Axel Honneth:
Qualquer um que inicie hoje uma atividade específica para investigar as novas
transformações das sociedades capitalistas do Ocidente enfrentará, imediatamente,
dificuldades não esperadas em razão dos déficits dessa usual modalidade de trabalho. Não
as fronteiras entre cultura e economia, mundo da vida e sistema, não podem mais ser
determinadas sem ambigüidade; hoje o que conta como progresso é mais contestado do
que no passado. O que é confuso – de fato causa perplexidade – sobre a situação
contemporânea talvez seja que, enquanto os princípios normativos das décadas passadas
ainda possuem aceitação performativa, abaixo da superfície eles parecem haver perdido
seu significado emancipatório ou terem sido transformados; em muitas instâncias eles se
tornaram meros conceitos legitimadores de uma nova etapa da expansão capitalista. (...)
hoje, a maior parte do progresso normativo das últimas décadas transmutou-se em seu
oposto, uma cultura que reduz solidariedade e independência, e, sob pressão de uma
neoliberal antidomesticação do capitalismo, torna-se mecanismo de integração social.
39
Têm-se, ao que tudo indica, senão sinais de esgotamento ao menos de forte
debilitação do construto social, político, econômico e jurídico erigido sobre os pilares
do paradigma da modernidade, do qual é tributário o Estado Democrático de Direito,
38
BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G., Dicionário de política, op.cit., p. 717, v. 2: “(...) em
sua acepção mais simples e limitada, o livre cambismo é uma doutrina favorável à liberdade econômica
(...) é a visão mais pura e integral do liberalismo (...) O atual credo livre-cambista (...) é, pois, assim
entendido, uma forma de individualismo que não de se confundir, porém, com o anarquismo
individualista (...)”.
39
HARTMANN, M.; HONNETH, A., Paradoxes of Capitalism, 2006, p. 41. No original: “Anyone who
sets out to investigate the new transformations of Western capitalist societies today will quickly run up
against the deficits of this long serving model. Not only can the borders between culture and the
economy, life-world and system, no longer be unambiguously determined; today what counts as progress
is more contested than ever before. What is confusing indeed, perplexing about the contemporary
situation may be that, while the normative principles of past decades still possess a performative
currency, beneath the surface they seem to have lost their emancipatory meaning or been transformed; in
many instances they have become mere legitimating concepts for a new level of capitalist expansion. (…)
today much of the normative progress of the last decades has been turned into its opposite, a culture that
decreases solidarity and independence, and, under pressure of a neoliberal de-domestication of capitalism,
has become a mechanism of social integration.”
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62
configurando, ao nosso sentir, situação de exceção permanente cuja análise outro
objetivo não revela a não ser o de contribuir para o entendimento dos complexos
institutos e relações político-jurídicos num momento em que a sociedade crescer,
nem sempre oculto, políticas antiemancipatórias.
Essa crescente onda neoconservadora, esclarece Harvey, resulta do próprio
movimento neoliberal que, no final do século XX, almeja superar a insustentabilidade
de seus postulados, evidenciada ao se verificar que os dois gigantes econômicos que
têm dirigido o mundo em meio a recessão global depois de 2001, Estados Unidos e
China, atuam como Estados de economia keynesiana, mantendo alto déficit público para
financiar investimentos em ações militares, consumo e criação de infra-estrutura, bem
assim ao se observar países que, à semelhança do Brasil, aderiram à receita econômica
neoliberal e não alcançaram, de uma maneira geral, as espectativas de recuperação e de
desenvolvimento proclamadas por essa doutrina. É conferir o baixo crescimento global
nos últimos 40 anos:
40
FIGURA 1: TAXAS DE CRESCIMENTO GLOBAL POR ANO E DÉCADA DE 1960 A 2003
Além disso, a principal “conquista” no processo neoliberal seria a redistribuição e
não a geração de bem-estar e de renda, o que se operou, segundo Harvey, por um
processo de acumulação por despossessão (accumulation by dispossession), “a
continuação e proliferação de práticas de acumulação que Marrz tratou como
‘primitivas’ ou ‘originais’ durante o nascimento do capitalismo”.
41
Nesse processo se
insere a
40
HARVEY, D., A Brief History of Neoliberalism, p. 154.
41
Ibid., p. 159: “the continuation and proliferation of accumulation practices which Marrz had treated of
as ‘primite’ or ‘original’ during the rise of capitalism”.
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63
ordinarização e privatização da terra e a forçada expulsão de populações de pequenos
agricultores (compare os casos, descritos acima, do México e da China, onde 70 milhões
de pequenos agricultores são considerados para remoção em tempos recentes); conversão
de várias formas de direitos de propriedade (comum, coletiva, estatal, etc) em exclusivas
propriedades privadas (representada de modo mais acentuado na China); supressão de
direitos de áreas de uso comum; ordinarização da força de trablho e supressão de formas
alternativas (nativas) de produção e consumo; processo colonial, neocolonial e imperial
de apropriação de valores (incluindo recursos naturais); monetarização da troca/comércio
e da tributação, particularmente da terra; o comércio escravo (que continua
particularmente na indústria do sexo); a usura, a dívida nacional e, mais devastador de
todos, o uso do sistema de crédito como meio radical de acumulação por despossessão. O
Estado, com o monopólio da violência e das definições legais, exerce papel crucial tanto
protegendo como promovendo esses processos.
42
A acumulação por despossessão compõe-se, para o autor, de quatro características
principais: (i) privatization and commodification; (ii) financialization; (iii) the
management and manipulation of crisis; (iv) State redistributions.
Privatization and commodification, privatização e ordinarização. Quer dizer que o
processo de propagação neoliberal abre novos espaços para a acumulação de capital em
domínios até então não integrantes do universo da lucratividade. Utilidades públicas
(aguá, telecomunicações, transporte, energia), provisões de segurança social (educação,
previdência, saúde) e instituições públicas (universidade, laboratórios de pesquisa,
prisões) são abertos ao capital privado (aí a privatization). Em prol da lógica do
aumento da produção e do capital, o domínio privado de materiais genéticos e remédios,
bem como a exploração crescente do meio ambiente e a
ordinarização/banalização/massificação de formas culturais pela indústria de turísmo e
de entretenimento levam à ordinarização e à mercantilização da natureza e de formas
culturais minoritárias (aí a commodification). O Estado a tudo assiste e de tudo toma
parte. Ora se afasta, flexibilizando sua regulação, ora se aproxima mediante seu mais
eficaz “serviço público”: a força.
O crescimento do mercado financeiro e de uma economia voltada à exploração da
moeda (financialization) é característica a todo tempo comentada. Não parece haver ano
42
Idem.: “commodification and privatization of the land and the forceful expulsion of peasant populations
(compare the cases, described above, of Mexico and China, where 70 milion peasants are thought to have
been displaced in recent times); conversion o various forms of property rights (common, collective, state,
etc.) into exclusive private property rights (most spectaculary represented by China); suppression of rights
to the commons; commodification of labour power and suppression of alternative (indigenous) forms of
production and consumption; colonial, neocolonial, and imperial processes of appropriation of assets
(including natural resources); monetization of exchange and taxation, particulary of land; the slave trade
(which continues particulary in the sex industry); the usury, the national debt and, most devastating of all,
the use of credit system as radical means of accumulation by dispossession. The state, with its monopoly
of violence and definitions of legality, plays a crucial role in both backing and promoting these
processes.”
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64
em que os bancos, pelo menos assim se tem acompanhado nas informações amplamente
divulgadas na imprensa brasileira, não atinjam lucro recorde, sem importar o cenário
econômico.
Por the management and manipulation of crises se refere Harvey, principalmente,
à armadilha das crises de débito e da dívida externa. Mediante empréstimos “de
salvação” países se tornam reféns da economia internacional e das potências dirigentes,
viabilizando a transferência de expressiva parcela de suas riquezas para países mais
ricos. Opera-se aqui, com toda a clareza, a acumulação por desposseção.
A quarta característica cuida da atuação redistributiva do Estado. A distribuição
de renda e de incentivos no Estado neoliberal privilegia o fomento de empresas em
setores econômicos específicos com o objetivo de manter acesa a economia, esteja ou
não em crise. Criam-se subsídios e benefícios tributários para empresas, flexibilizam-se
direitos trabalhistas e, às vezes, instituem-se alguns benefícios sociais simbólicos. Ao
mesmo tempo, cresce a marginalização em setores da sociedade que não conseguem se
incluir no mercado.
Tudo isso contribui, na verdade, para que sob o processo neoliberal se assista ao
que Harvey denomina commodification of everything, a ordinarização de todas as
coisas:
Presumir que os mercados e o sinal do mercado pode melhor determinar todas as decisões
alocativas é presumir que todas as coisas podem, em princípio, ser tratadas como
mercadorias/produtos. Ordinarização presume a existência de direitos de propriedade
sobre processamentos, coisas, e relações sociais, que um preço pode lhes ser estipulado e
que tudo isso pode ser tratado como parte num contrato. O mercado é imaginado para
funcionar como um guia apropriado – uma ética – para toda ação humana.
43
Não fica fora desse processo o meio ambiente, cuja degradação cresce ano-a-ano.
A exploração de recursos energéticos e a necessidade de se extrair o máximo de
matérias naturais possíveis para manter elevados níveis de consumo é constante no
período da dominação neoliberal.
No âmbito político-constitucional, não se pode olvidar que o neoliberalismo
cresce ao lado do discurso dos direitos humanos, em específico, dos direitos de primeira
43
Ibid., p. 165: “To presume that markets and market signal can best determine all allocative decisions is
to presume that eveything can in principble be treated as commodity. Commodification presumes the
existence of property rights over processes, things, and social relations, that a price can be put on them,
and that them can be traded subject to legal contract. The market is presumed to work as an appropriate
guide – an ethic – for all human action.”
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65
geração: “indubitavelmente, a insistência neoliberal no individual como elemento
fundamental da vida política-econômica abre a porta para um ativismo de direitos
individuais”.
44
Também não pode passar despercebido o fato de que o freqüente apelo à ação
jurídica se harmoniza com uma aparente preferência do processo neoliberal de levar os
debates políticos, em especial aqueles de relevância econômica, ao Judiciário e ao
Executivo, esquivando-se dos tormentosos processos de criação de normas no
Legislativo e de “ameaçadoras” mutações emergentes por vias não-institucionalizadas.
Trata-se de uma revalorização normativa de caráter apenas emancipatório ou de
uma forma bastante inteligente e aceitável para, em regimes democráticos, administrar-
se, com alguma previsibilidade, o domínio? A resposta aponta no sentido da
simultaneidade, como acreditamos restar claro ao se refletir sob o marco da exceção
permanente.
Essas particularidades do neoliberalismo, seus defeitos, não se impõem à
sociedade sem críticas. O 11/09 expõe exatamente isso. Com lucidez peculiar esclarece
José Maria Gomez:
(...) a partir de meados da década de noventa, a retórica dominante da celebração foi
perdendo fôlego diante das duras réplicas da realidade.
(...) o tripé direitos humanos individuais/modelo econômico neoliberal/democracias
eleitorais passou a ser alvo de um acelerado processo de deslegitimação, contestação e
busca de significados alternativos. Decerto, ele não deixou de ser dominante nos
discursos e, no caso dos últimos anos, também na prática. (...) Mas uma nova fase se
perfila de maneira clara a partir dos atentados terroristas do 11 de setembro de 2001 e da
conseqüente virada da estratégia de segurança dos Estados Unidos.
Com efeito, o ataque inusitado aos símbolos do poder financeiro e militar norte-
americano, no seu próprio território, por uma rede islãmica transnacional (e não por um
Estado) e através de meios civis (e não militares convencionais) desencadeou uma forte
reação do governo Bush, cujas expressões mais visíveis têm sido a realização de duas
guerras (na Ásia Central e no Meio Oriente), a implantação de severos dispositivos de
segurança nacional e global (...) e a formulação oficial, em novembro de 2002, da 'Nova
Grande Estratégia Imperial' (...) Nessa reformulação estratégica, os Estados Unidos
anunciaram ao mundo que não admitirão que nenhum Estado aspire à igualdade ou à
supremacia militar, e que eles se auto-atribuem o direito exclusivo de usar a força militar
(...) ainda que isso implique transgredir o direito internacional, o obter apoio dos
aliados tradicionais (...) nem contar com a autorização da organização encarregada dos
assuntos de paz e segurança internacional (ONU).
45
44
Ibid., p. 176: “undoubtelly, the neoliberal insitence upon the individual as the foundation element in
political-economic life opens the door to individual rights activism”.
45
GOMEZ, J. M., Direitos Humanos, Desenvolvimento e Democracia na América Latina, p. 82-83.
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66
Estar-se-ia, agora, bem frisou José Maria Gomez, ante um estado de exceção
permanente:
(...) o mais poderoso Estado do planeta (...) assume-se como um império belicoso global,
uma espécie de Leviatã imperial que reivindicava para si o poder soberano absoluto de
decretar o Estado de Exceção permanente, sem limites de espaço e tempo, nem entraves
jurídicos, morais ou político-institucionais, toda vez que sua segurança nacional
irremediavelmente global – for considerada sob ameaça ou perigo.
46
O estado de guerra a que, com Hardt e Negri, nos referimos, o estado de exceção
permanente, é, ao que tudo indica, expressão do neoconservadorismo autoritário citado
por Harvey:
A grande pergunta seria, dessa maneira, como está a extensão do expressivo
descontentamento e como seria possível lidar com isso.
A consolidação do autoritarismo neoconservador, assim, emerge como uma resposta
potencial. Neoconservadorismo (...) sustenta o rumo neoliberal no sentido da construção
do mercado assimétrico das liberdades, mas faz as tendências antidemocráticas do
neoliberalismo explícitas por meio de uma virada para o autoritarismo, hierárquico, e
feqüentemente munido de meios militares de manutenção da lei e da ordem. No Novo
Imperialismo eu explorei a tese de Hanna Arendt de que a militarização difundida no
estrangeiro e no âmbito doméstico caminham, de modo inevitável, de mãos dadas, e
concluí que a aventura internacional dos neoconservadores, tempos planejada e
legitimada após os ataques de 9/11, dividiu tanto o corpo político nos EUA como a
estratégia geopolítica de manutenção da hegemonia no controle sobre os recursos do
petróleo. Medo e insegurança, interna e externamente, (...) são ambos muito facilmente
manipulados por propósitos políticos.
47
Muito maior razão se tem, portanto, na atual situação de exceção permanente,
para ratificar a tese de Hannah Arendt no sentido de que a sociedade que se formou no
século XX excluiu a capacidade humana de ação ou de imaginação criativa, se nos
aventurarmos pela psicanálise – em favor do labor e do trabalho.
48
46
Ibid., p.83.
47
HARVEY, D., A Brief History of Neoliberalism, p. 195: “The big question would then be how
extensive an expressive the discontent is, and how it might be handle. The consolidation of
neconservative authoritarianism then emerges as one potential answer. Neoconservatism (…) sustains the
neoliberal drive towards the construction of asymmetric market freedoms but makes the anti-democratic
tendencies of neoliberalism explicit through a turn into authoritarian, hierarquical, and even militaristic
means of maintaining law and order. In The new Imperialism I explored Hannah Arends thesis that
militarization abroad and at home inevitably go hand in hand, and concluded that international
adventurism of the neocoservatives, long planned and legitimized after the 9/11 attacks, had as much-
divided body politic in the US as it did with a geopolitical strategy of maintaining global hegemony
through control over oil resources. Fear and insecurity both internally and externally were all too easily
(…) manipulated for political purposes.”
48
Confira-se: ARENDT, Hanna. A condição humana. 10ª ed.. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2005.
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67
Tudo considerado, globalização, risco, estado de guerra, Império e neoliberalismo,
ainda que abordados aqui em breves linhas, permitem uma imagem adequada dos
desafios e tendências que se colocam, neste início de século, para o direito, em
específico para o direito constitucional. Deixam manifesta a transformação da
constituição material, a alteração dos fatores reais de poder que condicionam e influem
de modo decisivo na normatividade jurídica e na sua crise.
Unidas, essas noções formam um contexto que desafia a capacidade reguladora da
constituição, indicando ser necessária sua reestruturação para abrir maior espaço a uma
dimensão política não-juridicializada ou, pelo menos, a uma perspectiva que não atribua
ao jurídico-constitucional a potência emancipatória que se lhe tem conferido a teoria
pós-1945.
Rumo à passagem da situação para a categoria da exceção atentar-se-á no próximo
capítulo, ainda que de maneira resumida, à experiência de crise na República de
Weimar e à abordagem schmittiana da exceção, bem assim ao ressurgir do discurso
emergencial (ou de exceção) nos Estados Unidos da América pós-09/11 e à
(re)configuração da idéia de exceção em Giorgio Agamben a fim de explicitar a
categoria da exceção permanente e indicar algumas de suas características.
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4
Exceção pemanente: uma categoria para pensar a Teoria
Constitucional no século XXI
Sumário do capítulo: 4.1. Origens: Carl Schmitt e a República
de Weimar; 4.2. De 1945 a 2001: uma síntese dos novos
rumos; 4.3. Revitalização: o debate norte-americano sobre a
constituição de emergência; 4.4. (Re)construindo a exceção.
Exceção permanente, sustentamos, não se restinge a trazer à mente um contexto
sócio-político-econômico. Consubstancia mesmo uma categoria útil à reflexão em teoria
constitucional no início do século XXI.
Neste capítulo, destarte, espera-se sedimentar a conclusão de que enfrentamos,
hoje, no mundo, um contexto transformador da normatividade autônoma que mantém a
realidade como dado exterior à constituição. É o que sinalizada, de modo expresso, o
ressurgir do discurso emergencial (ou de exceção) nos Estados Unidos da América pós-
09/11. Além disso, percorrendo as origens da exceção em Schmitt almeja-se
(re)construir, com Agamben, a categoria adjetiva, agora, pela permanência e
direcionada à reconstrução do normativo, à exposição da imanência entre vida e norma,
da zona de indiscernibilidade não apreendida, em sua totalidade, pelo discurso jurídico-
constitucional que, por si só, é incapaz de conquistas emancipatórias e, por isso, deve
proporcionar maior abertura à política.
4.1
Origens: Carl Schmitt e a República de Weimar
1
Terminada a Primeira Guerra Mundial, em um contexto marcado pela desordem
interna e por significativa fragmentação política, submetida às restrições do Tratado de
1
Para uma visão geral da doutrina constitucional alemã sobre o estado de emergência ou de exceção,
confira-se JAKAB, A., German Constitutional Law on State of Emergency – Paradigms and Dilemmas of
a Traditional (Continental) Discourse, 2006.
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69
Versalhes e perante a ascensão do comunismo russo, a Alemanha redigiu sua
constituição.
2
De acordo com Gilberto Bercovici, a Constituição de Weimar, denominada
“compromisso constitucional”, era criticada, principalmente, porque além de traçar a
estrutura sica do Estado, em consonância com as constituições erigidas sob a tradição
liberal, adotava em sua segunda parte um rol de direitos fundamentais individuais e
sócio-econômicos que se identificariam com as pretensões da esquerda social-
democrata e comunista.
3
A Constituição de Weimar pôs fim ao Segundo Reich, mas não ao legado
autoritário e militar do Império. A instauração de uma democracia liberal após a
Primeira Guerra Mundial não era evidente na Alemanha. A social democracia
representada pelo SPD (Partido Social Democrata) e pelo USPD (Partido Social
Democrata Independente) – sua dissidência à esquerda – o partido católico, de centro, e
o partido democrata (DDP Partido Democrata Alemão) compunham a maioria na
Assembléia Constituinte, debatendo o projeto de constituição elaborado por Hugo
Preuss, no qual não havia capítulo relativo aos direitos fundamentais. Foi na
constituinte, em face da proposta de Friedrich Neumann, que se acrescentou a segunda
parte da constituição, estabelecendo-se os direitos e deveres dos alemães.
Aboliu-se o governo monárquico do Império e a soberania restou expressamente
conferida ao povo alemão. À semelhança da constituição anterior, contudo, manteve-se
a forma federal de Estado com caráter centralizador.
4
O art. 48 da Constituição de
Weimar, na trilha do art. 68 da Constituição do Império, autorizava o presidente a tomar
2
Sobre o contexto daquele período esclarecem, de forma resumida, Igor de Abreu e Manuela Martins
em DUARTE, F.; VIEIRA, J. R., op. cit., p. 181 passim.: “O período entre as Guerras Mundiais
representou uma época de crise para os Estados da Europa central, não de suas Constituições mas,
também dos seus próprios Estados; estes, à época, imersos em um processo de transformação social (...).
As bases da transição estatal se apresentaram na Alemanha de um modo bem distinto. (...) A população e
o território da Alemanha permaneceram sustentavelmente inalterados. Seus problemas existenciais
surgiram por outros motivos. Num ponto estava a transformação da identidade como estado: a Alemanha,
que antes havia reivindicado a grandeza e o prestígio internacional de sua nação, havia sido uma
monarquia constitucional; entretanto, a Alemanha que havia capitulado e que havia firmado humilhante
tratado de paz era uma república nascida de uma revolução (...) A Alemanha era uma nação, porém uma
'nação dividida' e, no fundo, partida. Seu principal problema residia no fato de que o novo ordenamento
político, instaurado com a república democrática, devia renunciar precisamente à sua função mais
importante, a de unir eficazmente uma nação dividida (...) A Alemanha, em comparação, resistiu bem à
derrota militar e, inclusive experimentou imediatamente depois da guerra, uma moderada melhora.
Assim, a crise econômica e política atingiu a República de Weimar a partir de 1920, potencializada
posteriormente pelas dèbacles institucionais de 1931/1932. Este processo econômico teve efeitos óbvios
sobre a legitimidade política e a estabilidade dos Estados”.
3
BERCOVICI, G., Constituição e Estado de exceção permanente: Atualidade de Weimar, p. 25 et. seq..
4
Nesse sentido JACONBSON, A. J.; SCHILINK, B. (orgs). Weimar: A jurisprudence of crisis, 2002.
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70
as medidas necessárias para o restabelecimento da segurança e da ordem pública se
houvesse séria ameaça. Poderia, assim, valer-se das forças armadas e suspender direitos
fundamentais.
A fragmentação ideológica da Constituição de Weimar estava na base da
argumentação de seus críticos. Para Carl Schmitt, àquele tempo principal opositor da
constituição, nela havia numerosos dispositivos que não representavam uma decisão
política e, por conseguinte, prejudicavam a construção de uma comunidade nacional
homogênea.
Sua crítica estava centrada, principalmente, em dois argumentos: (i) na noção de
soberania como poder de decidir no estado de exceção e (ii) na crença de que o
“espírito”, a vontade do povo, somente se revelaria se houvesse
homogeneidade/totalidade. Nessa direção salientam Igor de Abreu e Manuela Martins:
“[a] propósito, o pensamento de Carl Schmitt (1996), nesses anos 20 do século passado,
apela para uma 'democracia homogênea' ou uma forma depurada de Estado de
exceção”.
5
Quanto à soberania, é dizer, inicialmente sem descuidar, com isso, das
dificuldades contemporâneas do conceito moderno, associado à dicotomia interno e
externo e aos Estados caracterizados por territórios delimitados e compostos por
agrupamentos relativamente homogêneos e identificáveis que as noções nela
abarcadas não só facilitam a intelecção da exceção soberana schmittiana como reforçam
a existência da aporia concernente à tensão entre norma e vida. Vejamos.
Existiriam, de acordo com Nicola Matteucci, duas acepções fundamentais de
soberania na perspectiva político-jurídica. Em sentido amplo, “(...) o poder de mando de
última instância, numa sociedade política e, conseqüentemente, a diferença entre esta e
as demais associações humanas em cuja organização não se encontra esse poder
supremo, exclusivo e não derivado”.
6
A soberania, aí, revela-se como racionalização
jurídica capaz de explicar a “transformação da força em poder legítimo, do poder de
fato em poder de direito.”
7
Nessa acepção, a despeito das diferentes formas de
organização histórica, assinala-se um poder último de mando legitimamente aceito e
distinto de associações como a família.
Com o nascimento do Estado ter-se-ia, de acordo com Matteucci, o sentido estrito
5
DUARTE, F.; VIEIRA, J. R., op. cit., p. 191.
6
BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G., Dicionário de política, p. 1179.
7
Idem.
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71
de soberania: “o poder estatal, sujeito único e exclusivo da política”.
8
Na sua acepção ampla, soberania relaciona-se com a paz e a guerra e o soberano,
titular do poder último, pretende ser exclusivo, onicompetente e onicompreensivo;
somente ele pode intervir em todas as questões e não permitir que outros decidam.
Isso é incorporado no sentido estrito da soberania, no Estado, pela distinção entre
interior e exterior. Internamente, o soberano moderno elimina os poderes que lhe são
contrários, “procura a eliminação de conflitos internos, mediante a neutralização e a
despolitização da sociedade, governada de fora, mediante processos administrativos,
antítese de processos políticos”.
9
Externamente, decide, em relativa igualdade com
outros soberanos, a guerra ou a paz. Pela referência ao sentido estrito de soberania
avista-se, além do mais, a problemática de o soberano criador da lei não ser por ela
limitado. Ao poder soberano, à capacidade última de mando que restou identificada com
o Estado são atribuídas características de poder absoluto, perpétuo, indivisível,
inalienável e imprescritível, um poder originário e de conotação voluntarista.
Daí se impor, no conceito moderno de soberania, a necessidade de apreender e
definir a sua constituição, seu momento inicial manifestado na idéia de poder
constituinte seja na sua tipologia de ditadura soberana um mero poder de fato seja
na de soberania popular, síntese de poder e direito, de ser e dever-ser, de ão e
consenso que funda a criação da nova sociedade no iuris consensu.”
10
A tensão entre normatividade e vida, já se vê, perpassa a própria natureza da idéia
de soberania moderna e das limitações que lhe objetivou impor o constitucionalismo.
Haveria na base do pensamento moderno aqueles que, na direção de Bodin,
identificam a soberania com o monopólio do direito, do poder de fazer e revogar leis, do
poder de legislar, e aqueles que, seguindo Hobbes, valorizam a soberania por seu
“momento de execução, isto é, o tipo de poder cogente”.
11
Em outras palavras:
8
Idem.
9
Ibid., p. 1180.
10
MATTEUCCI, N., Dicionário de política, p. 1185. No primeiro caso, “pretende-se retirar a
constituição vigente e impor uma outra, considerada mais justa e mais verdadeira, por parte de uma única
pessoa, de um grupo de pessoas de uma classe social, que se apresentam como intérpretes de uma suposta
racionalidade e atuam como comissários do povo, sem ter recebido dele nenhum mandato específico.” A
soberania do povo, por outro lado, manifesta-se como poder constituinte que define numa Constituição
“os órgãos e os poderes constituídos e instaura o ordenamento, onde estão previstas as regras que
permitem sua transformação e sua aplicação.” Segundo o autor, se a “ditadura soberana constitui um mero
fato, produtor do ordenamento, o poder constituinte do povo é uma síntese de poder e direito, de ser e
dever ser, de ação e consenso, uma vez que funda a criação da nova sociedade no iuris consensu.”
11
Ibid., 1180. É interessante destacar a observação de Matteucci de que Hobbes “encontra a legalização
deste monopólio da coerção física no contrato social; porém, seus sucessores confundiram este monopólio
legal da sanção com a mera capacidade de se fazer obedecer, reduzindo, desta forma, a Soberania à mera
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soberania como a mais alta autoridade do direito ou como poder de fato.
Equilíbrar esses dois extremos é o que se busca século-a-século.
Rousseau, por exemplo, que afirma ser inútil perguntar a quem toca fazer as leis –
pois elas são atos da vontade geral, leis gerais e abstratas não consegue, ainda assim,
deixar de observar a inflexibilidade e a lentidão das leis ao discorrer sobre a ditadura
romana:
A inflexibilidade das leis, que lhe tolhe dobrar-se aos sucessos, pode em certas ocasiões
fazê-las prejudiciais e causadoras da perda do Estado em crise. A ordem e a lentidão das
formas requerem um espaço de tempo que as circunstâncias às vezes negam; sobrevêm
mil acontecimentos a que não deu providências o legislador, e é muito necessária
providência conhecer que não pode tudo antever. Cumpre consolidar as instituições
políticas de sorte que nos privemos da faculdade de suspender os efeitos dela (...) Porém
os maiores perigos se podem contrapesar com o da alteração da ordem pública, e
jamais se deve suspender o sacro poderio das leis, senão quando se trata da salvação da
Pátria, e provê-se a segurança pública por um ato particular, que a incumbe ao mais
benemérito cidadão (...).
12
Não obstante atribuir superioridade ao momento legislativo, Rousseau reconhece,
em determinadas hipóteses, a insuficiência das leis, sua inaptidão para resolver
problemas emergenciais. Admite, destarte, em casos raros, medidas como a nomeação
de um chefe supremo com poder de suspender as leis existentes para evitar o
perecimento do Estado.
Também Locke enfrenta o problema. E, embora afirme ser o legislativo o poder
supremo da sociedade política, ao discorrer sobre a Inglaterra chama seu rei de
‘soberano’, uma vez que além de participar do poder legislativo detém ele, com o poder
executivo, o poder federativo (decidir acerca da guerra e da paz) e a prerrogativa ou
poder arbitrário em casos de exceção.
O Estado ou governo misto
13
e a separação de poderes, conquanto enfrentem a
questão da indivisibilidade da soberania, em períodos de “guerra civil ou de crise
revolucionária (...) acabam sendo superados, possibilitando, desta forma, a afirmação de
um verdadeiro soberano de fato”.
14
Isso é visível no debate norte-americano que será
retratado à frente em que a defesa da constituição de emergência encontra arrimo
argumentativo numa tentativa de harmonização das funções executiva, legislativa e
efetividade, isto é, à força”. (p. 1181) Veja-se, ainda: HOBBES, Thomas, Leviatã: ou matéria, forma e
poder de um Estado eclesiástico e civil, 2004.
12
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social p. 113/114.
13
Ibid., p. 78 e ss.
14
MATTEUCCI, N., op cit., p. 1181.
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73
jurisdicional.
Sobre a limitação da soberania e sua relação com a maneira de equalizar poder de
direito e poder de fato, é ver, com Matteucci, que se pode avistar pelo menos três
posições sobre a temática: (i) os que sustentam a tese da soberania limitada, em que é a
lei uma ordem justa e o supremo poder, na linha defendida por Locke, acha-se
restringido, por uma lado, pelo contrato ou pela constituição, com os direitos naturais
por ela tutelados e, por outro, controlado pelo povo, do qual o Parlamento é simples
representante; (ii) aqueles que são favoráveis à soberania absoluta, quer na vertende de
Hobbes, da não arbitrariedade do poder em razão da racionalidade técnica ou da
adequação ao objeto útil, quer na de Rousseau, em que a soberania exprime uma
racionalidade substancial, uma moralidade que se opõe á vontade do particular,
expressando a vontade geral: aqui, a lei é uma ordem técnica, racional com relação ao
objetivo, ou é uma ordem intrinsecamente universal; (iii) os que advogam a tese da
soberania arbitrária. Nessa corrente inclui Matteucci autores como Jeremy Bentham,
john Austim, Benjamin Constant e Alexis de Tocqueville por sustentarem uma
onipotência do Parlamento que lhe assegura poderes para fazer, de direito, tudo aquilo
que pode fazer de fato, viabilizando, assim, coincidir a extensão de sua soberania com a
sua força: a lei consiste num capricho da subjetividade de alguém, do mais forte.
Tudo considerado, pode-se afirmar que a soberania moderna de matriz européia
erigida sob a filosofia da transcendência que separa o homem da natureza, reduz o
conhecimento à mediação intelectual, neutraliza a esfera sentimental e inibe a potência
constituinte do ser humano objetiva, notadamente, harmonizar a tensão entre norma e
realidade mediante o estabelecimento de um poder de mando centralizado e de um
maquinário de dominação e controle.
Na situação de exceção permanente descrita no capítulo anterior o conceito
moderno de soberania é, pelo menos em parte, modificado. Em tempos de Império, a
soberania é diluída; interior e exterior se fundem.
15
Não se perde, todavia, a necessidade
de centralização e de um poder de controle, tendo em vista que os problemas
enfrentados agora, em meio à mobilidade, à fragmentação e à flexibilização não
demandam uma divisão, mas uma administração das diferenças para assegurar a ordem.
Bem sustentam Hardt e Negri:
15
HARDT, M.; NEGRI, A., Império, p. 206-210.
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74
‘Dividir e conquistarnão é, portanto, a correta formulação da estratégia imperial. Com
mais freqüência o Império não cria divisões mas reconhece as diferenças existentes ou
potenciais, festeja-as e administra-as dentro de uma economia geral de comando. O triplo
imperativo do Império é incorporar, diferenciar e administrar.
16
Nessas circunstâncias, além disso, mantém o poder soberano seu aporte jurídico.
Afinal, com a difusão do constitucionalismo e do estabelecimento de constituições
escritas e supremas não se pôde evitar que no processo histórico do Estado moderno a
linguagem institucionalizada do direito, da constituição, fosse sua expressão
comunicativa preponderante.
Voltemos a Schmitt.
Dirige-se o autor ao soberano, porquanto para se compreender o conceito de
soberania de maneira adequada, em específico no que toca à problemática tensão entre
normatividade jurídica e poder de fato a soberania em si, afirma –, deve-se fugir da
abstração e tratar do soberano, aquele que decide, em concreto, o caso de conflito e em
que consiste o interesse público ou estatal, a segurança, a ordem estatal, a saúde pública,
etc.
Daí a assertiva: soberano é quem decide sobre o estado de exceção.
17
18
Consoante Schmitt:
Não se pode indicar com clareza tipificável quando se apresenta um estado de
necessidade, nem pode ser enumerado, substancialmente, o que pode ocorrer quando se
trata, realmente, de um estado extremo de necessidade e de sua reparação. Os
pressupostos são aqui, como conteúdo da competência, necessariamente ilimitados.
Portanto, no sentido jurídico-estatal, não se apresenta nenhuma competência. No máximo,
a Constituição pode indicar quem deve agir em tal caso. Não se submetendo a ação a
nenhum controle, não há, de nenhuma forma, a divisão, como ocorre na práxis da
Constituição jurídico-estatal, em diversas instâncias que se equilibram e se obstruem
reciprocamente, de modo que fica claro quem é o soberano. Ele decide tanto sobre a
ocorrência do estado de necessidade extremo, bem como o que se deve fazer para saná-lo.
O soberano se coloca fora da ordem jurídica vigente, porém, a ela pertence, pois ele é
competente para a decisão sobre se a Constituição pode ser suspensa in toto.
19
20
16
Ibid., p. 220.
17
SCHMITT, Carl. Teologia Política, 2006, p. 7.
18
Ver ainda: SCHMITT, Carl. La defesa de la constitución: estudio acerca de las diversas especies y
possibilidades de salvaguarda de la constitución, 1983; SCHMITT, Carl. Teoria de la constitución.
Madrid: Alianza Editorial, 1992.
19
Op. Cit., p. 8.
20
Haveria certa ambigüidade, entretanto, observa David Dyzenhaus, na definição schmittina de
soberania, associada à exceção. o restaria claro se soberano é aquele que decidiu, de fato, na exceção
ou se a decisão da soberania é distinta de quem a efetivou: Mas ainda que elaborada com cuidado, a
definição de soberano tem, e talvez deliberadamente, elevado grau de ambigüidade. É ambígua entre a
afirmação de que alguém que friamente decide sobre o estado de exceção é soberano e a assertiva de que
soberano, em virtude de sua posição como soberano, é aquele que tem de decidir sobre o estado de
exceção. Na primeira afirmação, nós nunca podemos saber quem é soberano no avançar do estado de
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75
A soberania, aí, é expressa em dois momentos: na figura do poder constituinte e
do presidente, de molde a viabilizar que se concentre a análise no soberano que decide
sobre o estado de exceção.
Esclareça-se.
Schmitt em sua Teoria da Constituição apresenta quatro acepções de constituição:
absoluta, relativa, positiva e ideal.
21
A constituição ideal refere-se às preferências políticas que, para determinado
grupo segundo Schmitt a burguesia –, são verdadeiras e adequadas aos seus
postulados. Acentuado o contraste entre a realidade e as suas aspirações políticas, a
constituição ideal é aquilo que para o grupo seria, “de fato”, a verdadeira constituição.
A constituição no seu sentido relativo consiste nas leis constitucionais
particulares, na constituição formal que não se preocupa em determinar a vontade e a
unidade do Estado.
Em oposição direta à acepção relativa, a constituição absoluta trata, por sua vez,
de uma totalidade, seja a total unidade e ordenação política no Estado seja uma unidade
normativa, idealizada. Assim, tanto a constituição absoluta pode significar (a) uma
concreta maneira de ser, um status de unidade política, confundindo-se com o Estado,
(b) uma maneira de ordenar a vida social, ou seja, constituição como forma de governo
(c) e uma energia dinâmica de soerguimento da unidade e da integração como (d) um
sistema de normas, de “regulación legal fundamental”, um simples dever-ser que se
identifica com o Estado porque esse também é compreendido como um dever-ser
normativo.
Para fugir dessa polissemia sustenta Schmitt que a constituição só é válida quando
emana de um poder constituinte e estabelecida por sua vontade. Soberania e poder
constituinte, na doutrina do autor, confundem-se.
A constituição de ser positiva, ou seja, decorrente de uma determinação
consciente da concreta forma de conjunto mediante o qual se decide a unidade política.
E mais, a constituição é a decisão política fundamental do titular do poder constituinte
exceção; na segunda, nós sabemos quem é o soberano, somente o conteúdo de sua decisão é
desconhecido. Cf. DYZENHAUS, D., Legality and Legitimacy, p. 43: “But while carefully crafted, the
definition of sovereign is highly, and perhaps deliberately, ambiguous. It is ambiguous between the claim
that the one who has a matter of facts decides on the states of exception is sovereign and the claim that
sovereign, in virtue of his position as sovereign, is the one who gets to decide on the state of exception.
On the first claim, we can never know who is sovereign in advance of a state of exception; on the second,
we do know who the sovereign is, only the content of his decision in unknown.”
21
SCHMITT, C., Teoria de la constitución, p. 29-62.
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76
que, de acordo com Schmitt,
(...) es la voluntad política cuya fuerza o autoridad es capaz de adoptar la concreta
decisión de conjunto sobre o modo y forma de la propria existencia política,
determinando así la existencia de la unidad política como un todo (...)
Una ley constitucional es, por su contenido, la normación que lleva a la práctica la
voluntad constituyente. Se encuentra por completo bajo el supuesto y sobre la base de la
decisión política de conjunto contenida en esa voluntad. (...)
Así como una disposición orgánica no agota el poder organizador que contiene autoridad
y poder de organización, así tampoco puede la emisión de una Constitución agotar,
absorver y consumir el Poder constituyente.”
22
O titular do poder constituinte, o soberano, nos regimes democráticos é o povo,
cuja vontade não se manifestaria, consoante Schmitt, por eleições e semelhantes
procedimentos normativamente regulados. A voz da multidão reunida que compõe o
povo faz-se ouvir, precipuamente, pela aclamação e seria captada nas democracias
modernas, em linha de princípio, por uma assembléia constituinte.
Legítima seria a constituição cuando la fuerza y autoridad del Poder
constituyente en que descansa su decisión es reconecida”.
23
A democracia, para Schmitt, cuida de uma forma de assegurar a identidade do
povo como unidade política e, por conseguinte, do estabelecimento de todos para a
participação popular princípio da identidade.
24
Na modernidade burguesa, pugna o
autor, os regimes democráticos associaram-se à noção de república no sentido de
divisão de poderes e não em oposição à monarquia (forma política). O princípio
monárquico de representação encontraria, assim, espaço nas democracias ao se
organizar o governo (monarquia como forma de governo) e a chefia do Executivo.
Dessa sorte, haveria para Schmitt uma combinação do princípio democrático com
o princípio monárquico no Estado de Direito burguês. E se começa a insinuar uma
certa dualidade da constituição de Weimar.
A Constituição de Weimar, defende Schmitt, teria adotado um parlamentarismo
com nuances de variados sistemas: parlamentarista estrito, de primeiro ministro, de
gabinete e presidencial. A maior preocupação na Assembléia Nacional de Weimar
estava em produzir uma sólida conexão entre o Parlamento e o Governo. Todavia, o
instituto da dissolução do Parlamento pelo presidente do Reich assegurado na
constituição consubstanciava o centro de toda a ordenação político-jurídica.
22
Ibid., p. 94.
23
Ibid., p. 104.
24
Ibid., p. 221.
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77
A Constituição de Weimar conferiu ao presidente, de forma expressa no art. 48, a
sua guarda. Ao presidente cabia equilibrar a pluralidade democrática para se efetivar o
mencionado princípio de identidade. Por seu intermédio superavam-se os vícios dos
métodos eleitorais normativamente regulados para instaurar a sistemática plebiscitária
capaz de captar a vontade constituinte do povo.
25
Enquanto os tribunais evitariam os
riscos da contaminação política, o presidente seria o único capaz de garantir a total
unidade e ordenação política emanada da vontade constituinte, isto é: de guardar a
constituição.
Não expõe Schmitt, entretanto, que ao associar soberania, poder constituinte e
presidência fomenta a própria destruição do poder constituinte, reduzindo-o a poder
constituído e controlado pelo presidente.
As noções de soberania e de soberano em Schmitt, sua lógica e sua identificação
com o poder constituinte, sem embargo, completam-se apenas com a análise da
exceção.
26
Estado de exceção é “conceito geral da teoria do Estado, mas não qualquer ordem
de necessidade ou estado de sítio”.
27
O motivo de empregá-lo na definição de soberania
é, para Shimitt, sistemático e lógico-jurídico.
Decorre, em linha de princípio, da necessidade de se corrigir o raciocínio de que
“uma decisão, em sentido jurídico, deve ser completamente deduzida do conteúdo de
uma norma”
28
, tendo em vista, principalmente, que a “decisão sobre a exceção é, em
sentido eminente, decisão, pois uma norma geral (...) jamais pode compreender uma
exceção absoluta e, por isso, também, não pode fundamentar, de forma completa, a
decisão de um caso real, excepcional”.
29
Na estratégica argumentação schmittiana,
entretanto, não implica a decisão deixar de inscrever o estado de exceção na órbita
jurídica.
A exceção prova que a decisão não pode ser deduzida do mero conteúdo da
norma, fazendo parte, ela própria, do conceito de soberania. E, para Schmitt, essa
particularidade já se encontrava presente em autores como Bodin e Pufendorff, de modo
25
SCHMITT, Carl. La defesa de la constitución: estudio acerca de las diversas especies y possibilidades
de salvaguarda de la constitución, p. 213-251.
26
Segundo Agamben (2005, p. 53 ss) um primeiro momento da teoria da exceção schmittiana se tem no
livro Da ditadura. Poder constituinte e constituído emergem como operadores da inscrição da exceção no
normativo.
27
SCHMITT, C., loc. cit.
28
Idem.
29
Idem.
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78
que lhe afigura correto inferir que a ordem jurídica, como toda ordem, repousa também
“em uma decisão e não em uma norma.”
30
Na exceção resta claro que o sujeito da soberania não está adstrito a um catálogo
de competências, mas à decisão ou tem para si uma presunção de competência ou
poder ilimitado circunstância apenas aferível num caso concreto. Disso resultaria, na
linguagem schmittinana, que o Estado se sobrepõe ao direito, à validade da norma
jurídica. O Estado, na exceção, suspende o direito por fazer jus à autoconservação.
Exceção, todavia, postula Schmitt, não se confunde com caos ou anarquia, na
medida em que “subsiste, em sentido jurídico, uma ordem, mesmo que não uma ordem
jurídica”.
31
A norma, argumenta o autor, não é aniquilada. Continuam a existir na
exceção os dois elementos do conceito de ordem jurídica: norma e decisão. Exceção,
por conseguinte, não consistiria um conceito meramente sociológico. Ao mesmo tempo
em que se exclui da visão geral, revela a exceção “um elemento formal jurídico-
específico, a decisão (...)”, de modo que “o estado de exceção surge (...) somente
quando a situação deva ser criada e quando tem validade nos princípios jurídicos”.
32
Não se tem um poder apenas fático. De acordo com Schmitt,
um poder supremo, ou seja, maior, irresistível (...) não existe na realidade política; o
poder não prova nada ao direito (...) a vinculação do poder fático e jurídico é o problema
principal do conceito de soberania. Aqui, repousam todas as suas dificuldades e trata-se
de encontrar uma definição que compreenda esse conceito fundamental (...)
33
A exceção não representaria, portanto, vácuo algum da lei. Antes, tendo em conta
que a ordem jurídica não decorre da norma, mas da decisão, no estado de exceção é que
se fundaria o ordenamento.
Acrescente-se que, para Schmitt, a normalidade, a ordem, é pressuposto da
existência da norma jurídica, inexistindo “norma que seja aplicável ao caos”. Somente
se for criada uma situação de normalidade a ordem juridica faz algum sentido. Ocorre
que é o soberano quem “decide, definitivamente, (...) se tal situação normal é realmente
dominante. Todo Direito é ‘direito situacional’”
34
.
E, nisso residiria a soberania: no monopólio decisório que se evidencia no estado
de exceção e que revela a autoridade estatal.
30
SCHMITT, Carl, op. cit., p. 11.
31
Ibid, p. 13.
32
Idem.
33
Ibid. p. 19.
34
Ibid, pp. 13-14.
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79
O paradoxo é a chave de entendimento na doutrina schmittiana: “a autoridade (...),
para criar direito, (...) não precisa ter razão/direito”.
35
A norma suspende a si mesma.
A relação entre normatividade e realidade, destarte, o trata de uma via de mão
única nem de uma simples implicação recíproca. Na exceção, pressuposições
normativas são reconstruídas por alterações de fato que, por sua vez, dependem de
novas imagens normativas nem sempre jurídicas, mas trazidas à lume, ou mesmo
criadas no imaginário coletivo, por força de uma decisão soberana.
Schmitt desvenda a exceção com o intuito de a incorporar ao discurso jurídico e,
com isso, romper suas amarras em favor de um poder unitário e homogêneo. A
preocupação maior de Schmit, ao que tudo indica, consiste em chamar atenção para o
fato de a decisão ser tema prioritário, politizando a ordem jurídica, ou talvez,
jurisdicizando a vida.
No que toca à crença de que o “espírito”, a vontade do povo, somente se
revelaria se houvesse homogeneidadesegundo argumento por nós destacado para se
compreender a crítica de Schmitt à Constituição de Weimar trata-se de pôr em relevo
o conteúdo da decisão schmittiana.
A decisão soberana (constituinte) que, para Schmitt, delineia o âmbito do
político
36
e institui a constituição, caracteriza-se por distinguir amigos e inimigos com a
finalidade de se alcançar a unidade e a homogeneidade necessárias à implementação de
um governo democrático:
A específica distinção política que é a base para toda a atividade e impulso é a distinção
entre amigo e inimigo. Ela provê alguém com a definição, mas no sentido de um critério
em vez de alguma coisa definitiva ou substantiva (...) A idéia expressa na distinção entre
amigo e inimigo é denotar a intensidade mais elevada possível de uma união ou
separação, de uma associação ou dissociação. Isso pode existir de maneira teórica e
prática sem ao mesmo tempo ter de trazer para o jogo qualquer outra distinção como a
moral, a estética, ou a econômica. O inimigo político não precisa ser moralmente cruel ou
esteticamente feio; ele não tem de manter uma aparência de competidor econômico, e
pode até ser vantajoso fazer negócio com ele. No entanto, ele é o outro, o estranho. Basta
para sua existência que ele apresente algum sentido especialmente intensivo de alguma
coisa existencialmente diferente e estranha, de maneira que no caso extremo de conflitos
com ele não possa se decidir por normas gerais predeterminadas ou pelo pronunciamento
oficial de algum 'desinteressado' e assim 'apartidário' partido.
37
35
Ibid. p. 14.
36
SCHMITT, C., Teologia Política, p. 76.
37
DYZENHAUS, David. op. cit., p. 47: “The specific political distinction that is the basis for all activity
and impulses is the distinction between friend and enemy. It provides one with a definition but in the
sense of a criterion rather than something definitive or substantive (…) The point of the distinction
between friend and enemy is to denote the highest possible intensity of a union or separation, of a
association or dissociation. It can exist theoretically and practically without at same time having to bring
into play any other distinction like the moral, the aesthetic, or the economic. The political enemy need not
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80
Daí sua crítica à Constituição de Weimar que, no seu entender, configurava
apenas compromissos dilatórios, faltando-lhe separar “amigos” e “inimigos”. Une,
assim, à idéia de decisão soberana aquela de homogeneidade nacional de modo que a
soberania – associada ao poder constituinte – acaba por receber um modelo que, por sua
expressão de vontade, há de ser implementado.
Se a Constituição de Weimar carece de decisão política é porque, segundo
Schmitt, não foi elaborada por “amigos” que compartilham valores comuns, mas por
uma pluralidade de “amigos” e “inimigos” que impedem a homogeneidade necessária
ao desenvolvimento pacífico da nação.
Arrimado nessas premissas, por ocasião da depressão econômica ocasionada pela
crise de superprodução em 1929, cujos efeitos se alastraram por todo o ocidente,
aumentando a taxa de desemprego e levando à falência vários bancos e indústrias, a
saída para as democracias ocidentais seria, na visão de Schmitt, estabelecer um Estado
Total, forte e com autoridade bastante para agir de forma rápida e eficiente nas
circunstâncias de crise.
A representação política parlamentar, calcada na pluralidade de interesses e na
tensão política resolvida, unicamente, pelo debate e pela negociação, não conseguiria
expressar a vontade da não colhida nas manifestações da opinião pública e vencer as
dificuldades decorrentes da crise econômica mundial.
O pluralismo parlamentarista e a homogeneidade democrática, assim, não
deveriam ser confundidos. A identidade do povo possibilitaria alcançar a decisão eficaz
em circunstâncias de emergência. Logo, para proteger o regime democrático nada
obstava que se recorresse a fórmulas de poder centralizado que estivessem em harmonia
com a necessidade da nação, afastando-se, tão só, a representação parlamentar.
O Estado Total seria a forma de salvar a democracia alemã. No entanto, haveria
nele um paradoxo. Consoante Bercovici:
[o] paradoxo que Schmitt vai encontrar no Estado total deve-se à confusão dos setores
antes distintos da vida social e da autoridade estatal. A extensão e intensificação do
político causa o Estado total, dotado de um poder inédito, que lhe permite um controle
superior aos controles até então conhecidos. No entanto, este Estado total é, ao mesmo
be morality evil or aesthetically ugly; he doe not have to make an appearance as an economic competitor,
and it can even be advantageous to do business with him. However, he is the other, the stranger. It
suffices for his being that he is some specially intensive sense something existentially different and
strange, so that in the extreme case conflicts with him are possible which cannot be decided by some
predetermined general norm or by the pronouncement of some ‘disinterested’ and thus ‘unpartisan’
party”.
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81
tempo, um Estado invadido por reivindicações e projetos do corpo social, pois, com a
politização de todos os domínios, cresce a pressão sobre o Estado. Multiplicam-se os
interesses em competição e que demandam ação, a política se torna a luta de partidos
organizados desejando prevalecer uns sobre os outros.
38
Contra essa fraqueza do Estado Total de Weimar, meramente quantitativo,
Schmitt propõe um Estado Total Qualitativo:
39
autoritário no domínio político,
garantindo a unidade em detrimento do pluralismo que emperra o funcionamento do
Estado, e fiador da liberdade individual econômica, capaz de evitar a politização da
economia e seu indesejado pluralismo e de intervir na esfera econômica apenas par
neutralizar conflitos. A economia, segundo Bercovici, fica subordinada às instâncias
estatais, mas é preservada como ordenamento social privado, certo que se trata de uma
administração econômica autônoma que separa o Estado de um domínio econômico
público, mas não estatal, distinto da democracia econômica defendida por Heller e o
partido social-democrata.
Nos anos que seguiram a crise de 1929 as idéias de Schmitt ganharam fôlego e
fundamentaram medidas de exceção econômica e militar implementadas pelo Poder
Executivo, bem como a quase absoluta exclusão da atuação do parlamento, dissolvido
diversas vezes no início dos anos 30 até a consolidação de Hitler e do partido nacional
socialista no poder.
Do que se vem de expor, não há dúvida de que Schmitt está apegado a um
excessivo estatismo (e o Estado se confunde com a esfera política), à valorização – nada
democrática – da autoridade personalizada e autoritária e a um inconteste voluntarismo.
Utiliza, além disso de um referencial de homogeneidade e unidade que serviram à
expansão dos regimes totalitários da primeira metade do século XX.
A maneira, entretanto, como o autor, se utilizada da iia de exceção para
construir a relação entre a norma e a decisão na tentativa de mitigar a presença de uma
violência pura um âmbito de ação humana o alcançado pelo registro jurídico, uma
força criativa imanente não guiada por vontade alguma de constituir um projeto abstrato
pelo menos no seu aspecto estrutural prefigura, a nosso ver, ponto de partida para se
pensar o fenômeno político-jurídico nesses primeiros anos do século XXI.
Tudo considerado, num exercício de síntese é possível inferir alguns dos
principais argumentos utilizados para justificar a política alemã de salvação da
38
BERCOVICI, Gilberto, op. cit., p. 98.
39
Ibid., p. 101.
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82
democracia e que, hoje, nos ajudam a caracterizar a atual situação de exceção
permanente que ameaçam os Estados Democráticos de Direito no ocidente: (i)
insuficiência do sistema de representação parlamentar, devendo-se atentar para a
vontade do povo manifestada pela opinião pública; (ii) soberania fundada na decisão em
circunstâncias emergenciais, constituindo-se a ordem jurídica na exceção; (iii) rejeição
do pluralismo, uma vez que conduz à divergência de interesses e ao embaraço das
decisões políticas que levaram à pacificação e à unidade da nação; (iv) autoritarismo
político e neutralização do pluralismo indesejado no âmbito econômico, evitando
demasiada intervenção estatal na economia.
Extrai-se, além disso, que por se apresentar a exceção como uma das grandes
armadilhas teóricas contra a qual se deveria insurgir a teoria constitucional em meados
do século XX e contra a qual se levantou o pressuposto da normatividade autônoma da
constituição, consubstancia ela, a exceção, ainda que necessariamente reconfigurada
para expurgar o viés autoritário, caminho adequado se se busca reestruturar a
normatividade constitucional.
4.2
De 1945 a 2001: uma síntese dos novos rumos
Não nos pareceu importante resgatar, ainda que em breves linhas, esse período da
história do século XX apenas para dele se coletar a contribuição teórica de Schmitt. À
luz do que se argumentou no início do capítulo terceiro, a crise daquele e de outros
tempos jamais veio a ser extirpada em sua totalidade, mantendo-se sob novas bases e
com roupagem diferente. Um breve olhar sobre a história da constituição e do
constitucionalismo moderno nesses últimos sessenta anos, portanto, servirá para
ingressarmos com mais segurança no debate norte-americano pós-11/09, objeto de
análise em separado, bem assim para fortalecer a conclusão de que hoje se tem
configurado um novo contexto sócio-político-econômico, uma situação de exceção
permanente na qual se revigora a tensão entre normatividade e vida. Vejamos.
A filosofia liberal e o constitucionalismo clássico serviram de arrimo à construção
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83
de um novo Estado, o Estado de Direito Constitucional,
40
caracterizado, em síntese, pela
ascensão política da burguesia, pela organização capitalista da produção, pela existência
de uma constituição formal com supremacia no ordenamento político-jurídico, por
condicionar a atividade administrativa e a subordinação dos direitos do cidadão somente
à lei (governo das leis) e pela presença de juízes independentes para as aplicar na
resolução de eventuais litígios. De maior importância se afigura conter o exercício
absoluto do poder.
41
Nessa etapa, em que se consolida a contra-revolução moderna e seu dualismo
transcendente,
42
estabiliza-se a idéia, à primeira vista redundante, de constituição
normativa, cujos elementos são resumidos por Werner Kägi:
43
(i) pretensão de ordenar
e limitar as relações estatais de maneira racional e objetiva, em que a Constituição “es
el sistema de normas jurídicas supremas e inquebrantables para el Estado”,
reconhecendo-se valores “pre y supra estatales”; (ii) garantia de liberdade “frente al
Estado” e “en Estado” – “autonormación”; (iii) perenidade e estabilidade – e, por
conseguinte, segurança e previsibilidade.
Superou-se, é verdade, o regime absolutista, ampliando as liberdades civis e
políticas além de criar ambiente propício ao desenvolvimento científico e econômico.
Nada obstante, ainda havia muito a ser realizado a fim de implementar melhores
condições de vida para a população – e não apenas para grupos e classes privilegiadas –
40
Segundo Ferrajoli, a expressão Estado de Direito está associada a dois sentidos distintos. Na acepção
fraca ou formal designa “cualquier ordenamiento en que los poderes públicos son conferidos por la ley y
ejercitados en las formas y con los procedimentos legalmente establecidos”. O sentido forte ou
substancial, por sua vez, refere-se àqueles ordenamentos em que, além de agir pela lei, os poderes
públicos se encontram submetidos às limitações formais e substanciais fixadas em princípios de estatura
constitucional. Ao primeiro sentido corresponderia, de acordo com o autor, o modelo normativo do
Estado legal paleo-iuspositivista” e, ao segundo, o modelo “neo iuspositivista” de Estado Constitucional
de Direito. Eslarece, ainda, que não se deve confundir Estado de Direito em Sentido Forte e Estado de
Direito Constitucional, o qual se reporta, necessariamente, à existência de uma Constituição Formal.
FERRAJOLI, Luigi. Pasado y futuro del Estado de Derecho. In: CARBONELL, Miguel (Org.).
Neoconstitucionalismo(s), Madrid: Trotta, 2002, p. 13/29.
41
Sobre o constitucionalismo Nicola Matteucci é bastante claro ao asseverar que o principal sentido do
termo além de relacionado às noções históricas de separação de poderes e de garantias de direitos
reside na limitação do governo e do poder. É ver BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G.,
Dicionário de política. op. cit., p. 246/258, v. 1.
42
HARDT, M.; NEGRI, A., Império, p. 87 et. seq.. Segundo os autores, a modernidade nasce como um
movimento humanista e emancipador. se inicia, contudo, em crise, vindo a ser sufocada pela filosofia
da transcendência que separa o homem da natureza, reduz o conhecimento à mediação intelectual,
neutraliza a esfera sentimental e inibe a potência constituinte do ser humano. Nessa direção confira-se
PLASTINO, Carlos. “Soberanias, erotismo e criatividade”. In: ARÁN, M. (Coord.). Soberanias. Rio de
Janeiro: Contra-Capa, 2003.
43
KÄGI, W., La Constitución como ordenamiento jurídico fundamental del estado: Investigaciones
sobre las tendencias desarrolladas en el moderno Derecho Constitucional, p. 79 passim.. O livro de Kägi
compõe o rol de obras que iniciaram a teoria constitucional pós-1945.
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e afastar as mazelas há muito denunciadas.
44
A primeira metade do século XX atestou a insuficiência do constitucionalismo
liberal e de seu modelo de Estado de Direito Constitucional. A crise social e política,
marcada por duas Guerras Mundias e depressões econômicas, estendeu-se pelo globo.
Dela não sairia incólume o pensamento jurídico-político, o qual, bem acentua Kägi, viu
crescer a desmontagem “de la Constitución normativa” manifestada
por un lado, en una declinación de la densidad normativa, es decir, en una marcada
tendencia a reconecer tan sólo a unos cuantos preceptos el rango de normas
constitucionales y, por el outro, en la diminuición de la firmeza y precisión de las normas,
es decir, en la inclinación a debilitar la inviolabilidad de las normas fundamentales y a
cuestionarles su sentido jurídico normativo.
45
A desmontagem da constituição na primeira metade do século XX repercutiu em
temáticas que, de um modo geral, constam dos textos constitucionais. Segundo Kägi, as
normas que cuidam da relação cidadão-Estado são afetadas pelo avanço do Estado
“totalitário”, perdendo os direitos fundamentais seu sentido absoluto em detrimento da
“teoría de la falta de limites al poder de revisión de la Constitución”. Por mutação
constitucional a idéia de separação de poderes é reformulada, concedendo-se ao
Executivo maior importância na resolução dos problemas sócio-político-econômicos. A
lei é “desplazada como centro dominante de la vida constitucional; y en su lugar entran
las formas autoritarias del ‘acto de gobierno’ (Regierungsaktes) y de la Medida-Ley
(Massnahme)”. Também as normas concernentes ao regime democrático representativo
se vêem afetadas pelas tendências autoritárias de homogeneidade e totalidade. O
processo legislativo é abreviado em detrimento da urgência e da necessidade. O
princípio federativo é modificado em prol de uma maior centralização territorial do
poder.
46
Para Kägi, a proliferação do constitucionalismo logo após a Primeira Guerra
Mundial era somente uma conjuntura incapaz de se manter “en la dura realidad”. A
aparente expansão do Estado Constitucional não encobria que o normativo, “la fuerza
determinante del Derecho”, se encontrava em franca decadência. No período entre as
44
Nesse sentido Rousseau, 2002, p. 227: Possuímos sicos, geômetras, químicos, astrônomos, poetas,
músicos, pintores, mas não temos cidadãos; ou então se ainda nos restam, dispersos nos campos
abandonados perecem indigentes e desprezados. Tal é o estado a que estão reduzidos, tais são os
sentimentos, concedidos por nós, aos que nos dão o pão e o leite de nossos filhos”.
45
KÄGI, W., op. cit., p. 137.
46
Ibid., p. 53/54.
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duas Guerras Mundiais “el ‘estado de excepción’ se convertió en munchos países algo
normal (…) La legislación bélica [na Primeira Guerra] aún no se habia normalizado del
todo cuando las crisis monetárias y económicas y las consecuentes tensiones políticas
nuevamente impulsaron a los Etados hacia el estado de excepción, lo que finalmente, de
una manera hasta entonces impensada, hab de extenderse y acentuarse durante la
Segunda Guerra”.
47
Alguns mecanismos de implementação de garantias e direitos sociais foram
concretizados no Estado Social ou Estado de Bem-estar como parte das medidas
destinadas a restaurar a estabilidade política e econômica, atentando-se às
reivindicações de movimentos operários e de partidos de orientação marxiana que se
viam fortalecidos com a crescente bipartição do globo e ao fato de a questão sócio-
econômica haver servido de recurso ideológico para legitimar a ascensão de governos
autoritários. Não foram suficientes, todavia, para reduzir as desigualdades verificadas,
principalmente, nos países de terceiro mundo e impedir o contínuo crescimento da
acumulação de capital nas mãos de parcela diminuta da população.
O Estado de Bem-estar que se apresentou como alternativa ao autoritarismo do
início do século XX não obstou o predomínio livre-cambista,
48
hoje encarnado no
neoliberalismo, tendo em vista que erigido explicita Eros Grau, seguindo lição de
Claus Offe em harmonia com os interesses do capital em face da crise da primeira
metade do século XX:
A busca do desenvolvimento, ademais, impunha a formalização de uma aliança entre o
setor privado – isto é, a burguesia e o setor público, este a serviço daquele. Cumpre que
se enfatize, de toda a sorte, a circunstância de que, embora o capitalismo reclame a
estatização da economia, o faz tendo em vista a sua própria integração e renovação. Essa
estatização não configura passo no sentido de socialização/coletivização. (...) é
justamente a fim de impedir tal substituição – seja pela via do socialismo, seja mediante a
superação do capitalismo e do socialismo – que o Estado é chamado a atuar sobre o plano
econômico.
49
Ainda assim, frente à traumática experiência da guerra e do terror nazista,
mudanças importantes ocorreram na estrutura político-constitucional dos regimes
47
Ibid., p. 52.
48
BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G.. Dicionário de política. op. cit., p. 717, v. 2: “(...)
em sua acepção mais simples e limitada, o livre cambismo é uma doutrina favorável à liberdade
econômica (...) é a visão mais pura e integral do liberalismo (...) O atual credo livre-cambista (...) é, pois,
assim entendido, uma forma de individualismo que não de se confundir, porém, com o anarquismo
individualista (...)”.
49
GRAU, E. R., A Ordem Econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica, p. 24 e 30.
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democráticos. A tônica dos discursos dirigiu-se à dignidade humana e aos direitos
fundamentais que a concretizam, conquanto perdurassem os embates político-
ideológicos entre posições liberais e socializantes. As reivindicações em prol da
efetivação de direitos sociais fundamentais, da igualdade dos gêneros e das escolhas
sexuais, bem como os movimentos contra o racismo nos Estados Unidos e na África do
Sul revelaram a insuficiência das estruturas tradicionais do Estado e do direito em face
das novas demandas. Por influência da doutrina norte-americana e, em especial, da
crescente doutrina alemã da segunda metade do século XX, restabelece-se a noção de
normatividade da constituição contra o decisionismo que havia prevalecido nos anos de
guerra e de exceção. Na lei são inseridas expressões indeterminadas e de conteúdo
semântico aberto para ampliar e tornar mais eficaz a atuação do governo, migrando-se
da legalidade para a constitucionalidade.
As conquistas do Estado Social são acrescidas àquelas do modelo clássico de
Estado de Direito Constitucional. Vê-se emergir, enfim, na tentativa de conciliar
normatividade e decisão política, o Estado Democtico de Direito que, na lição de José
Afonso da Silva, consiste “na criação de um conceito novo, que leva em conta os
conceitos dos elementos componentes, mas os supera na medida em que incorpora um
componente revolucionário de transformação do status quo”.
50
O direito inicia sua
trajetória de superação do positivismo e se reencontra com a moral, concebendo-se a
constituição como centro axiológico-normativo do sistema político-jurídico.
As décadas de 80 e 90 foram palco de alterações marcantes em todo o mundo. O
término da ordem bipolar, a globalização, os efeitos transestatais dos danos ao ambiente
e das crises do mercado financeiro são sinais de uma sociedade que se vê estigmatizada,
insista-se, pela noção de risco.
51
Sem embargo, o Estado Democrático de Direito, não
sem experimentar abalos e alterações, vem se mantendo de . O direito, especialmente
em sede constitucional, caminhou rumo à flexibilização
52
e à procedimentalização
53
a
fim de viabilizar alguma abertura sempre controlada pelos princípios da
proporcionalidade – à decisão político-jurídica.
Ao iniciar o século XXI, contudo, por motivos expostos no capítulo anterior,
acentua-se a tensão paradoxal desse modelo de Estado Democrático que tem na
constituição seu instrumento político-jurídico de superação dos problemas da vida em
50
SILVA, J. A. da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 123.
51
BECK, U., World Risk Society, p. 3-4.
52
Cf. ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil: Ley, derechos, justicia. Madrid: Trotta, 1995.
.
53
HÄBERLE, P., op. cit..
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sociedade.
Ressurgiu o discurso de que a estabilidade apenas é assegurada pela aplicação de
poderes e métodos de exceção, reafirmando-se a lógica da insuficiência do regime
democrático que, no Brasil, em vista da crescente retórica do binário medo/segurança,
54
da hipertrofia do Poder Executivo e da estrutura de acumulação de capital que não se
mostra sequer preocupada em fomentar distribuição de renda, encontra terreno fértil
para sua expansão.
Achamo-nos ante a configuração de um cenário político e econômico global-
nacional gerador de dominação, propagador de violência e contrário à criatividade
constituinte do ser humano, que revela características semelhantes àquelas encontradas
em estados de exceção, emergência ou sítio da primeira metade do século XX, nos quais
os preceitos fixados na ordem jurídica, embora vigentes, não são efetivados. Na
avaliação de Zizek, hoje, a paixão pelo real, o desejo de romper as aparências,
acomodou-se à estética da violência, criando uma falsa imagem da realidade que
esconde o egoísmo individualista e a verdade desnorteante de que “o modelo de
prosperidade capitalista recente não pode ser universalizado”.
55
Sob essa inspiração é que devemos observar o debate norte-americano pós-11/09.
4.3
Revitalização: o debate norte-americano sobre a constituição de
emergência
O 11 de setembro reacendeu o discurso dos poderes de emergência nos Estados
Unidos.
Segundo Bruce Ackerman, os ataques terroristas farão parte do futuro ocidental,
requerendo, urgentemente, novos conceitos constitucionais para assegurar a democracia
e proteger as liberdades civis. No seu entender, “o projeto autoconsciente de um regime
de emergência talvez seja a melhor defesa disponível contra um ciclo de pânico-dirigido
54
É significativo nesse sentido haver se decidido no referendo do dia 23 de outubro pela manutenção do
comércio de armas de fogo no Brasil.
55
ZIZEK, S., Bem-vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas,
p. 172.
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de permanente destruição”.
56
57
Exemplo de mudança no cenário político norte-americano se observa na
administração Bush que, segundo Sanford Levinson, tem inspiração em Carl Schmitt e
em sua “teoria de um Executivo ditador que serve de 'guardião da Constituição'”.
58
Ainda sobre a revitalização de um Poder Executivo forte e centralizado, Cass
Sunstein adverte sobre a composição conservadora da Suprema Corte norte-americana
com o ingresso do juiz Samuel Alito e sintetiza a doutrina do “Executivo unitário”
defendida por apoiadores do novo membro da Corte: “é a idéia de que o presidente pode
supervisionar e dirigir todas as operações do Executivo, mesmo instituições hoje
independentes, como a Comissão Federal de Comércio e a SEC, reguladora dos
mercados”.
59
Sinalizando, de igual modo, a alteração no cenário político norte-americano, tem-
se o debate referente às garantias penais e à criminalização. Com o USA Patriot Act,
dentre muitas outras medidas, foram concedidos poderes mais amplos de investigação e
detenção às forças policiais, tornando-se o diploma excepcional em regra: “USA
PATRIOT Act está se tornando a nova normalidade e parâmetro para o restante da
legislação com a comunidade da inteligência a utilizar seus poderes e autoridades
instituídos sob o Act como a nova norma, procurando expandi-los ainda mais”.
60
Concentremo-nos, sem embargo, na defesa da constituição de emergência levada
a efeito por Bruce Ackerman.
A argumentação desenvolvida em seu texto The Emergency Constitution pode ser
dividida em duas partes. Na primeira, o autor trata dos pressupostos que indicam a
adoção do estado de emergência como saída mais adequada ao problema inaugurado
com o ataque terrorista em 11 de setembro de 2001. No decorrer de sua dissertação
explicita como concretizar sua teoria no contexto norte-americano. Aqui, nos
56
ACKERMAN, B., The Emergency Constitution, p. 1029: “the self-conscious design of an emergency
regime may well be the best available defense against a panic-driven cycle of permanent destruction.”
57
Cf. SCHEPPELE, Kim Lane. North American emergencies: the use of emergency powers in Canada
and the United States, 2006; ARATO, A., Their creative thinking an ours: Ackerman’s emergency
constitution after Hamdan, 2006. Em favor do modelo dualista de Ackerman confira-se ZUCKERMAN,
Ian, One law for War anda Peace? Judicial Review and emergency powers beween the norm and the
exception, 2006.
58
LEVINSON, S., Preserving Constitutional Norms in Times of Permanent Emergencies, p. 68. No
original: “theory of an Executive dictator who serve as ‘guardian of the Constitution’.”
59
SUNSTEIN, C., Analista vê salto à direita no Supremo, 2006.
60
GROSS, Oren, What ‘EmergencyRegime?, p. 80: “USA Patriot Act is becoming the new normality
and benchmark for further legislation with the intelligence community taking its expanded powers and
authorities under the Act as the new norm and seeking to expand them further”. Cofira-se, tamm: FISS,
Owen. The war against terrorism and the Rule of Law, 2006.
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concentraremos na primeira discussão.
Se para Ackerman novos ataques terroristas irão, inevitavelmente, assolar o futuro
norte-americano, uma nova arquitetura jurídica, por conseguinte, deve ser forjada, tendo
em vista que os instrumentos jurídicos existentes leis de guerra e direito criminal
mostram-se inadequados para enfrentar o terrorismo.
A guerra ocorre entre Estados soberanos e os inimigos são facilmente
identificados. Situações de guerra, além do mais, caminham sempre para um termo e as
restrições aos direitos fundamentais são aceitas com maior facilidade. No terrorismo, ao
contrário, os inimigos não seriam passíveis de fácil identificação nem se espera que
ocorrer algum tipo de armistício.
De igual maneira, insuficiente se afigura o instrumental do direito penal. um
aspecto político nos atos terroristas que os distinguem das ações criminais comuns.
Enquanto a criminalidade ordinária se processa no âmbito das instituições do Estado,
com elas convivendo, nos atos de terrorismo se constataria uma força simbólica de
reação ao sistema político a merecer tratamento diferenciado.
Diante disso, Ackerman defende uma terceira alternativa que, protegendo os
direitos fundamentais de forma mais ampla do que se verifica nas situações de guerra,
contemplaria o caráter político do qual não conta o direito penal. Sob o fundamento
do que denomina reassurance function postula a necessidade de se constituir um estado
de emergência temporário capaz de afastar, nos momentos seguintes a algum ato
terrorista, o estado de medo e de insegurança dos cidadãos. É ler:
Chame isso 'função retranqüilizante' [reassurance function]: Quando um ataque terrorista
coloca em dúvida a efetiva soberania do estado, o governo deve agir de maneira visível e
decisiva para demonstrar aos cidadãos aterrorizados que a brecha aberta foi apenas
temporária e que está tomando ações agressivas para conter a crise e lidar com a
possibilidade de sua repetição. Mais importante, minha proposta por uma constituição de
emergência autoriza o governo a deter suspeitos sem as proteções usuais da lei criminal
da causa provável ou mesmo da suspeita razoável. O governo talvez possa afirmar outros
poderes na realização da 'função retranqüilizante' [reassurance function], mas no
desenvolvimento de meu argumento, eu focalizarei os aceitos poderes extraordinários de
detenção como paradigma. (...) Meu propósito em projetar uma estrutura constitucional
para um estado de emergência temporário que permita o governo descarregar a 'função
retranqüilizante' [reassurance function] sem perpetrar danos de longo prazo aos direitos
individuais.
61
61
Ibid., p. 1034: “Call it the reassurance function: When a terrorist attack places the state’s effective
sovereignty in doubt, government must act visibly and decisively to demonstrate to its terrorized citizens
that the breach was only temporary, and that it is taking aggressive action to contain the crisis and to deal
whit the prospect of its recurrence. Most importantly, my proposal for an emergency constitution
authorizes the government to detain suspects without the criminal law’s usual protections of probable
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Ackerman critica as previsões constitucionais de emergência da França e da
Alemanha, tendo em vista que, demasiadamente genéricas, serviriam de carta branca
para o abuso de poder. Aduz, além disso, que tais normas teriam sido estabelecidas com
base na lógica da existential rationale. Nessa perspectiva, poderes de emergência são
atribuídos ao governo para que sejam implementadas medidas extraordinárias na
tentativa de reagir a uma invasão inimiga ou a uma poderosa conspiração interna.
De acordo com sua proposta, ao contrário, as ações terroristas não devem nos
remeter às tradicionais causas de declaração de estado de exceção, exigindo uma
articulação dos poderes de emergência que melhor se compatibilizem com os princípios
democráticos. Trata-se de adotar o que chama de reassurance rationale:
De acordo com o 'racionalidade do existente' [existential rationale], parece um grande
luxo se preocupar demais sobre a contínua derrocada de liberdades civis e políticas: Se a
ordem constitucional desintegrar isso será para alguém se preocupar num momento
futuro. De acordo com a 'racionalidade retranqüilizante' [reassurance rationale],
entretanto, o regime de agora em diante cambaleará, e o desafio é providenciar isso com
as ferramentas para uma resposta eficaz num futuro breve sem fazer desnecessários danos
por tempo indefinido.
62
Ackerman alega, ainda, haver na história americana precedentes que arrimam a
necessidade de instituir uma previsão de estado de emergência em sede constitucional,
discorrendo, na segunda parte do artigo, sobre a estruturação de seu projeto de
constituição de emergência.
Em This Is Not a War
63
escrito logo após as críticas ao seu The Emergency
Constitution – Ackerman admite que sua proposta anterior não é perfeita. Afinal,
sublinha, seria impossível construir estruturas constitucionais hábeis a impedir de uma
vez por todas a proliferação de forças autoritárias.
cause or even reasonable suspicion. Government may well assert others powers in carrying out the
reassurance function, but in developing my argument, I shall be focusing on the grant extraordinary
powers of detection as the paradigm. (…) My aim to design a constitutional framework for a temporary
state of emergency that enables government to discharge the reassurance function without doing long-
term damage to individuals rights.”
62
Ibid., p. 1036: “According to the existential rationale, it seems a great luxury to worry too much about
the long-run fate of civil and political liberties: If the constitutional order disintegrates, it will be up to
somebody else to worry about the long run. According to the reassurance rationale, however, the regime
is going to stagger onward, and the challenge is to provide it whit the tools for an effective short-run
response without doing unnecessary long-run damage.”
63
ACKERMAN, Bruce. This Is Not a War, 2004. O texto responde ao artigo de L. Tribe e Patrick O.
Gudridge The Anti-Emergency constitution. (2004) e ao artigo de David Cole The Priority of Morality:
The emergency Constitution’s Blind Spot (2004). Nele, Ackerman frisa que sua proposta é destinada a
conferir maior proteção às liberdades numa configuração das relações entre os poderes que não está atada
à centralidade da atuação do Judiciário, mas que se mantém em sintonia com a perspectiva da mudança.
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Por essa razão sem descuidar de sua concepção de mudança constitucional,
preocupado com a excessiva alusão do Chefe do Executivo à guerra contra o terrorismo
e com os resultados deletérios que daí poderiam advir às liberdades individuais na nova
realidade do pós-11 de setembro – assevera que seu pensamento está orientado por uma
postura conseqüencialista,
64
que visa a alcançar um ideal de justiça realizável:
O professor Cole sugere que eu tenho traído os ideais que inspiraram Justiça Social no
Estado Liberal, e que minha proposta poderia ser 'justificada somente na mais simples
seara do utilitarismo'. Mas utilitaristas não estão sozinhos em pensar que as
conseqüências importam. Essa visão alargada é compartilhada por qualquer um que
rejeita a noção de outro mundo de que 'justiça deve ser feita a despeito da queda dos
céus'. Eu estou feliz por me encontrar entre a multidão de homens de estado que rejeitam
o perfeccionismo e resolutamente pretendem conseguir tanta justiça quanto possível
nem mais nem menos (...) O que é justiça? O que é possível? Esses dois problemas
convocam a exercitar mentalidades diferentes. A questão da justiça requer toda a
brilhante filosofia (...) A questão da possibilidade requer julgamento sadio mais do que
filosofia brilhante um sóbrio sentido dos mais cruciais problemas (...) confrontam uma
sociedade particular num tempo particular. Ambas as mentalidades o necessárias para o
florescer de uma sociedade liberal brilhantismo sem julgamento pode ser quixotesco,
julgamento sem brilhantismo pode ser desinteressante (...) Esse foi um trabalho na arte
do possível.
65
Dessa breve exposição é possível extrair alguns dos principais pressupostos que
fundamentam o pensamento de Ackerman: (i) a modificação do contexto histórico,
marcado, neste século, pela inevitabilidade de novos ataques terroristas semelhantes ao
11 de setembro; (ii) necessidade de resposta institucional imediata para evitar o medo e
a sensação de insegurança da população; (iii) inadequação dos instrumentos legais
existentes para lidar com o terrorismo, que não deve ser vinculado às situações de
guerra nem à criminalidade comum; (iv) necessidade de incluir na Constituição um
regime jurídico de emergência que, em caráter temporário e arquitetado com base nos
princípios democráticos e republicanos, assegure o máximo respeito aos direitos
64
Para uma introdução ao conseqüencialismo: BAYÓN, Juan Carlos. Causalidad, consecuencialismo y
deontologismo, 1989.
65
Ibid., p. 1906/1907: “Professor Cole suggests that I have betray the ideals that spired Social Justice in
the Liberal State, and my proposal could be 'justified, if at all, only on the crudest utilitarian grounds'. But
utilitarians aren´t alone in thinking that consequences matter. This broad view is shared by anybody who
rejects the otherworldly notion that 'justice should been done though the heavens fall'. I am happy to place
myself among the multitude of practical states who reject perfectionism and resolutely aim to achieve as
much justice as is possible neither more, nor less (...) What is justice? What is possible? These two
problems call upon exercise of different mentalities. The question of justice requires al the brilliant
philosophy (...) The question of possibility requires sound judgment more than philosophical brilliance
a sober sense of the most crucial problems d prospects confronting a particular society at particular time.
Both of this mentalities are necessary for the flourishing of a liberal society – brilliance without judgment
can be quixotic, judgement without brilliance can be uninspiring (...) This has been a essay in the art of
possible.”
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fundamentais e sirva de resposta política eficaz ao ato terrorista; (v) pensamento
filosófico de cariz conseqüencialista.
No final da Segunda Guerra Mundial, Clinton Rossiter defendia que
circunstâncias excepcionais requerem ações para as quais o instrumental jurídico do
regime democrático não consegue atender de forma eficaz, haja vista ser criado para
funcionar em situações de normalidade. Previa, além do mais, que na Era Atômica na
qual o mundo ingressava em meados do século XX a utilização dos poderes de
emergência se tornaria a regra e não a exceção.
66
Partindo da idéia de que emergências são historicamente inevitáveis, asseverava o
autor que para a democracia se manter de pé deve recorrer a técnicas e a poderes típicos
dos governos autoritários. Daí que, antecipando Ackerman, Rossiter postula haver um
princípio de estabilização do governo democrático, o princípio da ditadura
constitucional: “[o] que o cidadão ordinário não pode vislumbrar é que seu governo
mais potente e menos gentil estava perseguindo de fato e em teoria um bem-
estabelecido princípio de governo constitucional, o princípio da ditadura
constitucional”.
67
Segundo Rossiter, o princípio da ditadura constitucional se arrima em três pontos:
(i) o sistema de governo democrático é constituído para tempos de normalidade,
mostrando-se inadequado em circunstâncias emergenciais guerras, rebeliões civis e
momentos de depressão econômica; (ii) com efeito, o governo constitucional deve ser
temporariamente alterado para, no grau necessário, restabelecer a ordem e as condições
normais de funcionamento do regime democrático, certo que a atribuição de maiores
poderes ao governo significa redução nos direitos civis; (iii) o forte governo instaurado
para solucionar a alegada crise não pode revelar outros propósitos que não os da
preservação da independência do Estado e da manutenção da ordem, objetivando
assegurar as liberdades políticas e sociais.
Acrescenta não serem apenas as situações de guerra que requerem a ditadura
constitucional, mas toda espécie de crise que vier a assolar os governos democráticos.
66
ROSSITER, C., op. cit., p. 297. “In the Atomic Age upon which the world is now entering, the use of
constitutional emergency powers may well become the rule and note the exception.”
67
ROSSITER, C., op. cit., p. 4. No original: “What the ordinary citizen may not realize is that more
potent and less gentle government of his was pursuing in fact and in theory a well-established principle of
constitutional government, the principle of constitutional dictartoship.” Saliente-se que o autor esclarece
no prefácio usar os termos constitutional e democratic praticamente como sinônimos. Igualmente, afirma
que se utiliza da expressão ditadura na definição que lhe dá o dicionário Webster, isto é, como autoridade
absoluta em um governo, especialmente em uma república.
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E, para ele, são três as espécies principais de crise que levam à adoção de instituições e
poderes de matriz autoritária: a guerra, especialmente aquela instaurada para repelir
invasão estrangeira; as rebeliões internas; e as depressões econômicas, a exemplo do
que ocorrera na implementação do New Deal nos Estados Unidos.
Essa última, aliás, não passou despercebida de Giorgio Agamben ao comentar o
governo do presidente Roosevelt:
A partir do momento em que o poder soberano do presidente se fundava essencialmente
na emergência ligada a um estado de guerra, a metáfora bélica tornou-se, no decorrer do
século XX, parte integrante do vocabulário político presidencial sempre que se tratava de
impor decisões consideradas de importância vital. Franklin D. Roosevelt conseguiu,
assim, em 1933, assegurar-se poderes extraordinários para enfrentar a grande depressão
(...).
68
Rossiter alega que ao Poder Executivo compete, de imediato, o papel principal
nos momentos de crise, arrolando algumas técnicas típicas de uma ditadura
constitucional: “o gabinete ditatorial, a presidência ditatorial, a expansão da
administração em tempos de guerra, a agência de planejamento emergencial em tempos
de paz, o gabinete de guerra, o comitê de investigação de congressistas, a dominação
executiva do processo legislativo”.
69
Sustenta, ainda, que na história dos Estados Unidos, ao menos até 1948, as crises
se voltavam contra o governo e não contra a ordem constitucional. Tratava-se de
problemas concernentes muito mais a personalidades do que a instituições, fato que fez
da presidência instrumento fundamental em momentos de emergência.
70
Diferencia-se de Ackerman, em especial, no que concerne às medidas de
concretização e ao contexto histórico para Rossiter o final da II Guerra Mundial e a
anunciada Guerra Fria da segunda metade do século XX; para Ackerman o terrorismo.
Há, todavia, pelo menos dois pressupostos comuns aos autores que merecem destaque: a
noção de incapacidade do governo democrático de se manter em períodos de crise sem
recorrer a métodos de regimes autoritários e a prevalência da idéia de necessidade.
Aos argumentos de Ackerman responderam Laurence Tribe e Patrick O. Gudridge
no texto The Anti-Emergency Constitution.
71
68
AGAMBEN, G., Estado de Exceção, p. 37.
69
ROSSITER, C., op. cit., p. 11: “(...) the cabinet dictatorship, the presidential dictatorship, the wartime
expansion of administration, the peacetime emergency planning agency, the ‘war cabint’, the
congressional investigating committee, the executive dominance of legislative process”
70
Ibid., p. 210.
71
TRIBE, L.; GUDRIDGE, P. O., The Anti-Emergency constitution, 2004.
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Os autores apresentaram três preocupações principais com a tese de Ackerman: (i)
se a adoção de uma constituição de emergência seria, realmente, um caminho plausível
para organizar a ação do governo; (ii) se a proposta de Ackerman estaria corroborando
para abandonar, ainda que temporariamente, um complexo corpo de conceitos,
argumentos e pontos de partida referentes aos debates em torno dos direitos individuais
que não fazem parte apenas de um emaranhado de leis, mas do sistema norte-
americano; (iii) se Ackerman teria desconsiderado os precedentes de tirania que podem
se seguir aos estados de emergência.
Dentre as críticas de Tribe e Gudridge, destacam-se aquelas dirigidas às alegações
de Ackerman no sentido de que o governo precisa responder aos ataques terroristas para
demonstrar sua capacidade de restaurar a confiança da população, abalada pelo medo.
Para eles, o sacrifício de direitos individuais em prol de maior segurança não seria
o único meio, nem sequer o prioritário, para manter o governo. Além do mais, na
eventualidade de ocorrerem novos ataques terroristas não adviria idêntica situação de
temor e pânico experimentada pela população em 2001. O 11 de setembro teria
estigmatizado os Estados Unidos porque pela primeira vez desde o final da Guerra Fria
a fragilidade do país em relação aos ataques externos foi revelada. Futuras ações
terroristas acabariam absorvidas pelo imaginário da população, não se vislumbrando,
então, emergências, mas situações de relativa normalidade.
Em suas conclusões advertem que não se deve deixar de lado toda a experiência
constitucional norte-americana, sua constitutional constellation:
Nós devemos querer reter a habilidade de reconhecer o que nós não suprimimos, estamos
proibidos de suprimir, a partir do que Justice Jackson imaginou nossa conhecida
'constelação constitucional'. A experiência de vulnerabilidade permanente pode ter posto
em dúvida nossa opinião de que são estrelas fixas no céu da noite (...).
72
Verifica-se, portanto, nos Estados Unidos debate relativo aos pressupostos e à
viabilidade da adoção de um estado de emergência que, guardadas as especificidades do
cenário norte-americano, vem se expandindo para a grande maioria dos países do
Ocidente na forma de uma situação e de uma política de exceção permanente
sintetizadas, ao menos em seus aspectos principais, nos mencionados textos de
Ackerman e Rossiter.
72
Ibid., p. 1870: We should want retain the ability to recognize what we have not deleted, must not
deleted, from what Justice Jackon famously imagined as our ‘constitutional constellation’. The experience
of permanent vulnerability may have put in doubt our belief that are fixed stars in the night sky (…)”.
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95
4.4
(Re)construindo a exceção
Aprofunda o exame da exceção Giorgio Agamben.
Segundo o autor, interpretados aqueles escritos de Schmitt destinados,
principalmente, a uma teoria do estado de exceção Da Ditadura e Teologia Política
73
como respostas à tese da violência pura de Walter Benjamin esboçada,
principalmente, em Crítica da Violência: crítica do Poder,
74
chegar-se-á à conclusão de
que Schmitt almeja, na verdade, não sem importantes avanços, inscrever a exceção na
ordem jurídica. E faz isso, ao que tudo indica, por intermédio da decisão soberana:
A doutrina da soberania que Schmitt desenvolve em sua obra Politische Theologie pode
ser lida como uma resposta precisa ao ensaio benjaminiano. Enquanto a estratégia da
‘Crítica da violência’ visava a assegurar a existência de uma violência pura e anômica,
para Schmitt trata-se, ao contrário, de trazer tal violência para um contexto jurídico. O
estado de exceção é o espaço em que ele procura capturar a idéia benjaminiana de uma
violência pura e inscrever a anomia no corpo mesmo do nomos.
75
Esse espaço de exceção, em que a vida é abarcada e inscrita no elemento
normativo, é o que pretende Agamben revelar assentado sobre as bases lançadas por
Walter Benjamin.
Em linhas gerais, a violência, segundo Benjamin, é pressuposto do direito e a
tarefa de uma crítica da violência seria expor a relação entre a violência e as relações
morais consubstanciadas, em específico, no par direito e justiça.
A relação fundamental de todo ordenamento expressar-se-ia, sobretudo, na
73
De acordo com Agamben, no livro Da ditadura o estado de exceção é representado pela figura da
ditadura comissária, que objetiva defender ou restaurar a constituição vigente e tem, como operador da
inscrição da exceção no normativo a distinção entre normas de direito e normas de realização de direito,
e soberana, voltada ao estabelecimento de uma nova constituição e que apresenta os operadores poder
constituinte e poder constituído. Na Teologia Política, o operador da inscrição do estado de exceção na
ordem jurídica é a distinção entre norma e decisão ambos elementos do âmbito jurídico. Cf.
AGAMBEN, Giorgio, Estado de Exceção, p. 53 ss.
74
BENJAMIN, Walter. Para una crítica de la violencia. Disponível em
www.ddooss.org/articulos/textos/walterbenjamin.pdf Acessado em 11 de Janeiro de 2007. Em portugês
tem-se BENJAMIN, Walter. Crítica da violência, crítica do poder. In: Documentos de cultura,
documentos de barbárie. Willi Bolle (org.). São Paulo: Cultrix, 1986. Por violência pura Benjamin
pretende, segundo Agamben, romper com a “dialética entre violência que funda o direito e violência que
o conserva (...)” em prol de uma violência “absolutamente ‘fora (ausserhalb) e ‘além’ (jenseits) do
direito (...)” (p. 84). A decisão, para Benjamin, corresponderia, tão só, a uma experiência de
indecidibilidade.
75
AGAMBEN, G., op. cit., p. 85-86.
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96
dicotomia meios e fins. Num sistema de fins justos a que se reporta a filosófica do
direito natural – o critério a ser utilizado na crítica seria facilmente identificado: saber se
voltada para fins justos ou injustos. Tal critério, no entato, apresentaria falhas. Nele se
trata apenas da aplicação da violência em um caso concreto, nada se expondo para
solucionar a problemática da violência em si mesmo, ainda que voltada para fins justos.
A direção a ser seguida para se encontrar um critério mais acertado, dessa sorte,
há de se restringir ao âmbito exclusivo dos meios. Com efeito, o ponto de partida para a
crítica é o direito positivo, no qual o poder é considerado em sua transformação
histórica e o direito examinado por referência apenas a meios, ou seja, se se trata de
uma violência sancionada ou não-sancionada, legítima ou ilegítima.
Ocorre que as tradições da filosofia do direito natural e positivo manteriam em
comum o dogma fundamental de que “los fines justos pueden ser alcanzados por medios
legítimos, los medios legitimos pueden ser empleados al servicio de fines justos”.
76
O
direito natural destinado a ‘justificar’ os meios legítimos pela referência à justiça dos
fins e o direito positivo a ‘garantir’ a justiça dos fins por intermédio da legitimidade dos
meios.
E, para Benjamin, haveria uma ambigüidade entre ‘meios legítimos’ e ‘fins justos’
a demandar uma nova perspectiva para direcionar a crítica da violência.
O autor, então, após percorrer as formas de classificação ou status da violência na
esfera exclusiva dos meios (legítima e ilegítima, criadora e conservadora) e se estribar
no fato de o direito moderno considerar a violência uma ameaça à sua própria
manutenção, bem assim depois de discorrer sobre a possibilidade de meios não-
violentos de solão dos conflitos humanos – meios puros, mediatizados –, assumindo a
violência como pressuposto do direito estabele um novo critério para a crítica assentado
na manifestação, sem referência alguma à relação de meios e fins: violência mítica e
violência pura ou divina.
O mito e a violência mítica analisada por Benjamin com o exemplo da lenda de
Níobe
77
é apenas manifestação da vontade, ou melhor, do próprio ser dos deuses. Não
76
BENJAMIN, Walter, Para una crítica de la violencia, 1999, p. 3.
77
Níobe, a irmã de Pélops (ambos filhos de Tântalo), saiu da Ásia para se casar com outro filho de Zeus,
Anfíon, famoso músico que reinava em Tebas. Teve muitos filhos e filhas (a quantidade varia conforme a
fonte), e estava tão orgulhosa e feliz com sua prole que cometeu o erro de declarar-se superior à deusa
Letó, que tivera somente dois filhos, Apolo e Ártemis. A deusa se ofendeu e pediu aos filhos que a
vingassem. Apolo matou então, com suas flechas, todos os rapazes; Ártemis fez o mesmo a todas as
moças. Níobe, cheia de dor, voltou para a Ásia e tanto chorava que os outros deuses se apiedaram dela:
transformaram-na numa rocha perto do Monte Sípilo, de onde uma nascente vertia água constantemente.
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97
é uma violência totalmente sangrenta e destruídora, visto que se deteve diante da vida
de Níobe, deixando-a culpada por causa da morte dos filhos, como um suporte mudo e
eterno da culpa e como um marco do limite entre homens e deuses. Não se trata, aí, de
um castigo decorrente de uma infração estabelecida numa normatividade existente,
mas de uma manifestação originada de se haver desafiado o destino a uma luta na qual
sairá necessariamente vitorioso e, por sua vitória, engendrará um direito.
Essa violência exerceria uma dupla função na criação do direito:
La función de la violencia en la creación jurídica es, en efecto, doble en el sentido de que
la creación jurídica, si ben persigue lo que es instaurado como derecho, como fin, con la
violencia como medio, sin embargo en el ato de fundar como derecho el fin perseguido
no depone en modo alguno la violencia, sino que sólo ahora hace de ella en sentido
estrito, es decir inmediatamente, violencia creadora de derecho, en cuanto instaura como
derecho, con el nombre de poder, no ya un fin inmune e independiente de la violencia,
sino íntima y necesariamente ligado a ésta.
Creación de derecho es creación de poder.
78
A violência mítica se identifica com aquela violência fundadora do direito e,
portanto, do poder. Na violência mítica é o poder objeto de garantia da violência
criadora. Os limites do direito, nesse contexto, impõem-lhes o grupo dominador aos
dominados que, se violam a lei, ainda que não escrita, são culpados e castigados. É uma
violência sangrenta no sentido de que recai sobre a vida nua natural, massacra-a e fere.
Em oposição, tomando por referência o juízo de Deus sobre a tribo de Corá,
79
cuida Benjamin da violência pura ou divina, destrutiva, sem limitões e exculpante,
que não se identifica com o poder. Violência purificante e sem derramamento de
sangue, a incidir sobre toda a vida nua em nome do ser vivente e não, como na violência
mítica, em nome da própria violência, do poder. Destrutiva de coisas como o direito –
nunca do próprio ser vivente. Uma violência que destrói a culpa imposta pelo direito,
transcendendo-o, dirigindo-se para um âmbito além, fora do jurídico.
A violência pura, destaque-se, não se transmuta em uma simples violência total
recíproca. A uma ação v.g. não matar antecede um mandamento, que, no entanto,
não julga a ação, não é “criterio de juicio, sino una norma de acción para la persona o
comunidad actuante que deben saldar sus cuentas con el mandamiento en soledad y
78
Ibid., p. 14-15.
79
Alude o autor à narração bíblica sobre a rebelião de Corá, Datã e Abirão no livro de Números, capítulo
16 da Biblia Sagrada.
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98
asumir en casos extraordinarios la responsabilidad de prescindir de él.”
80
A violência pura é aquela que rompe o ciclo dialético da violência criadora que,
com o passar do tempo, é debilitada pela violência conservadora e, em seguida, com o
aparecimento de novas forças, se opõe à conservação, inaugurando uma segunda ordem
‘destinada’, já no início, à decadência. A violência pura ou divina – insígnia e sinal, mas
nunca meio de execução sagrada seria, assim, violência que, de fato, governa,
soberana.
Norma e realidade, aí, são imanentes e indiscerníveis, devendo-se hoje, numa
nova situação histórica, reconhecer a implosão da normatividade autônoma da
constituição com o objetivo de se estabelecer, de modo contundente, que além de
limites ao discurso constitucional existe um espaço de anomia, de indiscernibilidade,
uma zona não alcançada por um exclusivo elemento jurídico e aberta à ação renovadora
e criadora.
81
Não sem motivo reconhece Nomi Claire Lazar que na exceção um espaço
extrajurídico capaz, inclusive, de servir à manutenção do regime democrático. E,
analisando a ditadura romana, postula que os meios de controle do poder não são apenas
aqueles formal-institucionais do Estado de Direito. Além desses aduz que se deve levar
em conta os meios informais, extra-institucionais, como a consciência e a honra, um
resultado de sucesso nas eleições que transmitiriam certa aprovação do candidato –,
vinculações transnacionais e disponibilidade de capital, que também limitam, conquanto
não no sentido jurídico estrito, o poder, afigurando-se insustentável, portanto, como
pretende Schmitt, inscrever a exceção na ordem jurídico-constitucional.
82
80
BENJAMIN, Walter, op. cit., p. 16.
81
Em sentido contrário argumenta ZUCKERMAN, Ian. One law for War anda Peace? Judicial Review
and emergency powers beween the norm and the exception. In: Constellations, v. 13, n.º 4, 2006, pp. 522-
545. Segundo o autor, que distingue os conceitos de emergência (situação imprevisível que demanda uma
resposta temporária para restabelecer a segurança e a integridade da ordem legal), exceção (a suspensão, a
ruptura ou a transformação de toda ou parte dos fundamentos formais ou informais das leis e da ordem
política e que, com efeito, pressupõe a existência da norma) e poderes de emergência (a constelação de
regras e medidas permitidas a um governo para vencer a emergência numa exceção), bem como três
paradigmas de compreensão das emergências e da relação dos mencionados três conceitos (monista,
Schmittiano e dualista) Agamben estaria equivocado a supor a exceção uma zona vazia “black holes”.
Haveria, em vez disso, segundo Zuckerman arrimado em lição de David Dyzenhaus, uma zona cinza
gray zone na medida em que a exceção seria, como demonstra o exemplo dos prisioneiros de
Guantánamo referido por Agaben, autorizada por uma medida legal: “Thus, what is striking here is not
the absence or total suspension of law, but the proliferation of indeterminate, instrumentalized legal
categories tha have an indisputably legal form” (p. 527). Com base nisso, ratifica Zuckerman os
argumentos de Bruce Ackerman no sentido de ser possível e imprenscindível uma regulação
constitucional normativa do estado de exceção.
82
LAZAR, Nomi Claire. Making emergencies safe for democracy: the romam dictatorship and de rule of
law in the study of crisis government. In: Constellations, v. 13, n.º 4, 2006, pp. 506-521. Esclareça-se que
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99
Esse, ao que tudo indica, o ponto de partida de Giorgio Agamben.
Para o autor, a relação política originária é o bando, que nasce na zona da
exceção. A soberania atua sobre a produção da vida nua. O sujeito que recebe o
impacto do poder e lança luz sobre o entendimento desse momento formativo da
exceção e do bando é representado pelo homo saccer. O campo de concentração
funcionaria como um paradigma da dominação biopolítica que, atualmente, se alastra. O
paradoxo é a chave lógica da soberania, em específico da problemática tensão entre
normatividade jurídica e poder de fato.
A exceção consubstancia o momento político originário, afastando qualquer
pretensão contratualista. Segundo Agamben:
É chegado, portanto, o momento de reler desde o princípio todo o mito de fundação da
cidade moderna, de Hobbes a Rousseau. O estado de natureza é, na verdade, um estado
de exceção, em que a cidade se apresenta por um instante (que é, ao mesmo tempo,
intervalo cronológio e átimo intertemporal) tanquam dissoluta. A fundação não é,
portanto, um evento que se cumpre de uma vez por todas (....) mas é continuamente
operante no estado civil na forma da decisão soberana. Esta, por outro lado, refere-se
imediatamente à vida (e não à livre vontade) dos cidadãos, que surge assim como o
elemento político originário (...) mas esta vida não é simplesmente a vida natural
reprodutiva, a zoé dos gregos, nem o bíos, uma forma de vida qualificada; é, sobretudo, a
vida nua do homo sacer e do wargus (...)
A tese (...) segundo a qual o relacionamento jurídico-político originário é o bando, não é
apenas uma tese sobre a estrutura formal da soberania, mas tem caráter substancial,
porque o que o bando mantém unido são justamente a vida nua e o poder soberano. É
preciso dispensar sem reservas todas as representações do ato político originário como
um contrato (...) Existe aqui, ao invés, uma bem mais complexa zona de
indiscernibilidade entre nómos e phýsis, na qual o liame estatal, tendo a forma de bando,
é também desde sempre não-estatalidade e pseudonatureza, e a natureza apresenta-se
desde sempre como nómos e estado de exceção (...)
É essa estrutura de bando que devemos aprender a reconhecer nas relações políticas e nos
espaços públicos e que ainda vivemos (....) E, se na modernidade, a vida se coloca sempre
mais claramente no centro da política estatal (que se tornou, nos termos de Foucault,
biopolítica) (....) se todos os cidadãos apresentam-se virtualmente como homines sacri,
isto somente é possível porque a relação de bando constituía desde a origem a estrutura
própria do poder soberano.
83
(grifou-se)
Esclareçamos.
a autora objetiva, notadamente, argumentar em favor da manutenção do Estado de Direito. Ao discorrer
sobre os meios informais de controle quer ela destacar que embora não se possa arrimar em argumentos
ético-políticos normativos para se manter o Estado de Direito, assegurando os valores, instituições e
tradições legados no decorrer do processo histórico, razões não-intrínsecas instrumentais contribuem
para sua manutenção, porquanto derivam de um poder também informal. Ver também: ADLOFF, Frank.
Beynd interests and norms: toward a theory of gift-giving and reciprocity in modern societies. In:
Constellations, v. 13, n.º 4, 2006, pp. 407-427.
83
AGAMBEN, G., Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, p. 115-117.
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100
Agamben entende que a categoria fundamental da política ocidental resume-se no
binário vida-nua e existência política ou zoé e bios, exclusão e inclusão. E, inspirado
em Foucault, assume o pressuposto de que o homem moderno não é um simples animal
vivente capaz de uma existência política (animal político), mas um ser para quem a
política é inerente, uma vez que nela está em questão sua própria vivência.
84
Daí a
biopolítica, o reconhecimento de que a vida natural, biológica, é incluída nos
mecanismos e nos cálculos do poder estatal.
O poder não é apenas analisado em suas formas e categorias jurídicas e
institucionais. É visto, também, em concreto, no modo como o Estado e os agentes
políticos em geral atuam sobre a vida natural e na influência que exercem nos processos
de subjetivação, de formação das identidades individuais. Agambem não exclui de sua
análise o poder soberano e a soberania, cujo núcleo originário consiste na implicação da
via nua na esfera política.
É fundamental para o autor desvendar porque a política no ocidente se
consubstancia por intermédio de uma exclusão e analisar, por conta disso, a relação
entre política e vida, que se apresenta como aquilo que deve ser incluído naquela por
uma exclusão.
A estrutura da exceção, segundo o autor, a isso responde e avança ainda mais:
A tese foucaltiana deverá, então, ser corrigida ou, pelo menos, integrada, no sentido de
que aquilo que caracteriza a política moderna não é tanto a inclusão da zoé na pólis, em si
antiqüíssima, nem simplesmente o fato de que a vida como tal venha a ser objeto
eminente dos cálculos e das previsões do poder estatal; decisivo é, sobretudo, o fato de
que, lado a lado com o processo pelo qual a exceção se torna em todos os lugares a regra,
o espaço da vida nua, situado originariamente à margem do ordenamento, vem
progressivamente a coincidir com o espaço político, e exclusão e inclusão, externo e
interno, bíos e zoé, direito e fato entram em uma zona de irredutível indistinção (...) Tudo
ocorre como se, no mesmo passo do processo disciplinar através do qual o poder estatal
faz do homem enquanto vivente o próprio objeto específico, entrasse em movimento um
outro processo, que coincide grosso modo com o nascimento da democracia moderna, no
qual o homem como vivente se apresenta não mais como objeto, mas como sujeito do
poder político.
85
A exceção, portanto, seria categoria mais adequada para explicitar o fenômeno
político-jurídico e suas aporias, pelo menos até que uma política integralmente nova
seja inaugurada. De acordo com Agamben:
84
Em sentido similar: ARENDT, Hannah. A condição Humana. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forenser
Universitária, 2005.
85
AGAMBEN, G., op.cit. p. 16.
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Enquanto soberano, o nómos é necessariamente conexo tanto com o estado de natureza
quanto com o estado de exceção (...) o que surge (no ponto em que se considera a
sociedade tanquam dissoluta) é, na verdade, não o estado de natureza (como estágio
anterior no qual os homens recairiam), mas o estado de exceção. Estado de natureza e
estado de exceção são apenas as duas faces de um único processo topológico no qual (...)
o que era pressuposto como externo (estado de natureza) resurge agora no interior (como
estado de exceção), e o poder soberano é justamente esta impossibilidade de discernir
externo e interno, natureza e exceção, phýsis e nómos. O estado de exceção, logo, não é
tanto uma suspensão espaço-temporal quanto uma figura topológica complexa, em que
não a exceção é a regra, mas até mesmo o estado de natureza e o direito, o fora e o
dentro transitam em pelo outro.
86
O estado de exceção configura “um espaço anômico onde o que está em jogo é
uma força de lei sem lei (...) em que potência e ato estão separados de modo radical
(...)”.
87
A chave lógica da soberania, sob a perspectiva da exceção permanente é o
paradoxo que já havia sido enunciado por Schmitt no sentido de que o soberano está, ao
mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico, de que a lei ou a Constituição
pode ser suspensa por ela mesma. A exceção, sustenta Agambem,
é uma espécie da exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da norma geral. Mas o
que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que é excluído não está, por causa
disto, absolutamente fora da relação com a norma; ao contrário, esta se mantém em
relação com aquela na forma da suspensão. A norma se aplica à exceção desaplicando-se,
retirando-se desta. O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas
a situação que resulta da sua suspensão. Neste sentido, a exceção é verdadeiramente,
segundo o étimo, capturada fora (ex-capere) e não simplesmente excluída.
(...) A exceção que define a estrutura da soberania é, porém, ainda mais complexa. Aquilo
que está fora vem aqui incluído não simplesmente através de uma interdição ou um
internamento, mas suspendendo a validade do ordenamento, deixando, portanto, que ele
se retire da exceção (...) Não é a exceção que se subtrai à regra, mas a regra que,
suspendendo-se, dá lugar à exceção e somente desse modo se constitui como regra,
mantendo-se em relação com aquela.
88
A normatividade do direito, nesse ponto de vista, somente emergeria mediante
sua auto-suspensão, de molde que a exceção não pode ser definida nem como situação
de fato, nem como situação de direito, mas como uma zona paradoxal de indiferença.
Bem esclarece Agamben, “[n]ão é um fato, por que é criado apenas pela suspensão da
norma; mas, pela mesma razão, não é nem ao menos um caso jurídico (...)”.
89
86
Ibid., p. 43.
87
AGAMBEN, G., Estado de exceção, p. 61.
88
Ibid., p. 25-26.
89
Ibid., p. 26.
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Analisando o iustititium romano, Agamben aponta, em resumo, quatro
caraterísiticas da exceção: (i) o estado de exceção é um espaço vazio de direito, em que
se suspende o direito, não se vinculando à doutrina da necessidade como fonte
originária ou da legítima defesa do Estado ou, ainda, à tentativa de increver a exceção
na ordem jurídica mediante a separação entre norma e decisão, norma de direito e de
realização, poder constituinte e poder constituído; (ii) esse vazio é essencial à existência
e compreensão da ordem constitucional; (iii) os atos, sob à perspectiva da exceção, não
são executivos, legislativos ou trangressivos, mas um não-lugar absoluto; (iv)
corresponde a esse não-lugar uma força de lei sem lei.
90
Na exceção, assim, é revelado o equívoco do entendimento da moderna teoria
jurídica de matriz kantiana sobre a aplicação. A aplicação da norma não consubstancia
um simples caso de juízo determinante, em que, segundo Agamben, “o geral (a regra) é
dado e trata-se de se lhe subsumir o caso particular (no juízo reflexivo, em
contrapartida, o particular é dado e trata-se de encontrar a regra geral)”.
91
Por
intermédio de uma analogia com a linguagem esclarece o autor que
na relação entre o geral e o particular (mais ainda no caso a aplicação de uma norma
jurídica) não es em questão apenas uma subsunção lógica, mas antes de tudo a
passagem de uma proposição geral dotada de um referente puramente virtual à referência
concreta a um segmento da realidade (isto é, nada menos que o problema da relação atual
entre linguagem e mundo). Essa passagem da langue à parabole, ou do semiótico ao
semântico, não é de modo algum uma operação lógica, mas implica sempre uma atividade
prática, ou seja, a assunção da langue por parte de um ou de vários sujeitos falantes e a
aplicação do dispositivo complexo que Benveniste definiu como função enunciativa e
que, com freqüência, os lógicos tendem a subestimar. No caso da norma jurídica, a
referência ao caso concreto supõe um ‘processo’ que envolve sempre uma pluralidade de
sujeitos e culmina , em última instância, na emissão de uma sentença, ou seja, de um
enunciado cuja referência operativa à realidade é garantida pelos poderes institucionais.
92
E a validade da norma, de acordo com essa perspectiva, funcionaria como algo
virtual, uma potência. Cuida-se, grosso modo, de uma pressuposição” necessária para
que se possa afirmar o significado geral da norma num caso particular por ela suspenso.
Na regra que ordena, por exemplo, não fazer X, existe, virtualmente, ou nela
“pressuposto”, sua própria transgressão, ou seja, fazer X. O fato não-jurídico consistente
na conduta fazer X se juridiciza exatamente porque a norma o exclui mediante sua
inclusão. Disso resulta que a lei pressupõe o não-jurídico em tal medida que careceria
90
Ibid., p. 78-80.
91
Ibid., p. 61.
92
Ibid., p. 62.
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mesmo de sentido insistir em oposições entre norma e fato. Mais sensato, ao que tudo
indica, seria assumir a zona de indiferença que é revelada pela exceção e concluir que
norma e fato são reciprocamente indissociáveis ou imanentes.
A decisão de Schmitt, então, restaria superada, afastando tanto o seu siginificado
de expressão de vontade de um sujeito superior a qualquer outro como o seu sentido de
providência estratégica para inscrever a exceção na ordem jurídica. À decisão “não
concerne nem uma quaestio iuris nem em uma quaestio facti, mas a própria relação
entre o direito e o fato”,
93
um vazio. O direito, assim, tem caráter normativo, é norma.
Não, contudo, porque prescreve e determina condutas, mas, seguindo Agamben, porque
deve, antes de mais nada, criar o âmbito da própria referência na vida real, normalizá-la.
Por isto enquanto, digamos, estabelece as condições desta referência e,
simultaneamente, a pressupõe a estrutura originária da norma é sempre do tipo: ‘Se
(caso real, p. ex.: si membrum rupsi) , então (conseqüência jurídica, p. ex.: talio esto)’,
onde um fato é incluído na ordem jurídica através de sua exclusão e a transgressão parece
preceder e determinar o caso lícito. Que a lei tenha inicialmente a forma de uma lex
talionis (talio, talvez de talis, quer dizer: a mesma coisa), significa que a ordem jurídica
não se apresenta em sua origem simplesmente como sanção de um fato transgresivo, mas
constitui-se, sobretudo, através do repetir-se do mesmo ato sem sanção alguma, ou seja,
como caso de exceção. Este não é uma punição do primeiro, mas representa a sua
inclusão na ordem jurídica, a violência como fato jurídico primordial (...). Neste sentido,
a exceção é a forma originária do direito. (grifou-se)
A chave desta captura da vida no direito é não a sanção (...), mas a culpa (não no sentido
técnico que este conceito tem no direito penal, mas naquele original, que indica um
estado, um estar-em-débito; in culpa esse), ou seja, precisamente, o ser incluído através
da exclusão.
94
A estrutura da soberania da lei tem a forma da exceção, em que fato e direito são
indistinguíveis e devem, todavia, ser decididos, permitindo a inclusão da vida no âmbito
político-jurídico. Não se cuida, no entanto, apenas de uma vigência de lei sem
significado. A isso se acresce uma consumação da lei que a torna mesmo indiscernível
da vida,
95
permitindo resgatar a violência pura benjaminiana, um espaço além do direito
e da normatividade autônoma da constituição, em que se verifica “uma ação humana
sem relação com o direito (...) diante de uma norma sem relação com a vida.”
96
É possível afirmar, destarte, que a regra vive somente da exceção e que a
soberania, que tem na exceção sua estrutura, não é
93
AGAMBEN, G., Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, p. 33.
94
Ibid., p. 33-34.
95
Ibid., p. 61.
96
AGAMBEN, G., Estado de exceção, p. 131.
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nem um conceito exclusivamente político, nem uma categoria exclusivamente jurídica,
nem uma potência externa ao direito (Schmitt), nem a norma suprema do ordenamento
jurídico (Kelsen): ela é a estrutura originária na qual o direito se refere à vida e a inclui
em si através da própria suspensão.
97
À característica da lei de se manter na privação, de se aplicar desaplicando-se,
chama Agamben, seguindo Jean-Luc Nancy, de bando:
A relação de exceção é uma relação de bando. Aquele que foi banido não é, na verdade,
simplesmente posto fora da lei e indiferente a esta, mas é abandonado por ela (...) É nesse
sentido que o paradoxo da soberania pode assumir a forma: ‘não existe um fora da lei’. A
relação originária da lei com a vida não é a aplicação, mas o Abandono. A potência
originária do nómos, a sua originária ‘força de lei’, é que ele mantém a vida em seu
bando abandonando-a.
98
No bando se ligam os dois pólos da exceção soberana: a vida nua e o poder, o
homo saccer e o soberano. Essa estrutura, ao que tudo indica, transparece nos espaços
públicos em que vivemos, nos quais se vê, com abundância, cidadãos relegados,
abandonados por um poder soberano que os exclui da sociedade incluindo-os, via de
regra, pela ilusão da representatividade da democracia liberal, que, bem acentua
Losurdo, se revela um verdadeiro contra-senso, na medida em que a tradição liberal se
opôs, historicamente, à democracia e, hoje, vem se apresentando como um
bonapartismo soft:
Assim como o século XX se abre com a demonstração da superioridade do modelo
americano no momento da intervenção no primeiro conflito mundial e, depois, no curso
do seu desenvolvimento, ele também se concluiu com uma nova e brilhante vitória do
bonapartismo soft, que tem no centro um líder, fortalecido pela sua investidura popular de
tipo plebiscitário, pelos amplíssimos poderes que exerce e pode estender enormemente
com o estado de exceção, pela auréola sagrada que lhe deriva do fato de ser intérprete de
uma missão sagrada de liberdade, pela possibilidade de dispor de um gigantesco aparelho
propagandístico e de persuasão oculta. (...)
O bonapartismo soft se configura como um regime não só em virtude da sucesão
ordenada e indolor de um líder para outro, mas também pelo fato de que a competição se
desenvolve numa plataforma substancialmente unitária e comum aos diversos candidatos
que concorrem ao cargo de guia e intérprete supremo da nação. (...)
Nos nossos dias, assiste-se a um paradoxo: os que agitam a palavra de ordem da
‘democracia direta’, naturalmente não a que intervém nas fábricas e nos postos de
trabalho mas a que prescinde da mediação dos partidos, são precisamente os adeptos do
bonapartismo soft, segundo os quais quem designa o líder da nação (...) ou o líder de um
determinado colégio eleitoral (...) deve ser diretamente o povo atomizado, privado dos
meios mais modestos de autônoma produção espiritual e política e entregue, inerme, ao
poder totalitário do mass-media monopolizado pela grande burguesia. (...)
97
AGAMBEN, G., Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, p. 35.
98
Ibid., p. 36.
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105
105
O processo de emancipação que, nos últimos dois séculos, conquistou o sufrágio
universal igual (uma cabeça um voto), reivindicou a representação proporcional (...),
contestou o monopólio (...) dos órgão representativos por parte da riqueza, associou
direitos políticos a direitos sociais e econômicos, viu e celebrou a democracia como
emancipação das classes, ‘raças’ e dos povos mantidos em condição subalterna tal
processo parece ter sofrido uma grave interrupção. Neste sentido, estamos diante de uma
fase de des-emancipação (...)
99
O sujeito dessa relação é representado pela figura do homo sacer, insacrificável,
mas matável,
100
o qual é figura originária da vida no bando soberano e conserva a
memória da exclusão por intermédio da qual se constitui a dimensão política:
O espaço político da soberania ter-se-ia constituído, portanto, através de uma dupla
exceção, como excrecência do profano no religioso e do religioso no profano, que
configura uma zona de indiferença entre sacrifício e homicídio. Soberana é a esfera na
qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é
matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera.
101
O campo de concentração, enfim, é mencionado por Agamben como um modelo
da dominação biopolítica que, atualmente, se alastra, o nómos do espaço político em
que ainda vivemos. O campo “é um pedaço de território (...) colocado fora do
ordenamento jurídico normal, mas não é, por causa disso, simplesmente um espaço
externo”.
102
O campo, explica Agamben, nasce do estado de exceção, da lei marcial. É o que
deixa entrever observação, ainda que superficial, do regime nacional-socialista alemão.
A Schutzhaft (custodia preventiva) servia de base jurídica da internação nos
campos de concentração,
um estatuto jurídico de derivação prussiana que os juristas nazistas classificavam às vezes
como medida de polícia preventiva, na medida em que permitia ‘tomar sob custódia’
certos indivíduos independentemente de qualquer conduta penalmente relevante,
unicamente com o fim de evitar um perigo para a segurança do estado.
103
Para se decretar a Shutzhaft proclamava-se o estado de exceção, suspendendo-se,
99
LOSURDO, D., Democracia ou Bonapartismo, p. 51, 56, 300, 303, 329 e 333.
100
AGAMBEN, G., Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, p. 90.
101
Ibid., p. 91.
102
Ibid., p. 177.
103
Ibid., p. 174. Destaque-se a advertência de Agamben de que a internação em campos com base na
Shultzhaft nasceram dos governos sociais-democráticos que, em 1923, “após a proclamação de um estado
de exceção, não apenas internaram com base na Shultzhaft, mas criaram também em Cottbus-Sielow um
Konzentrationslanger für Ausländer que hospedava sobretudo refugiados hebreus orientais e que pode,
portanto, ser considerado o primeiro campo para os hebreus do nosso século XX (...)”.
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106
106
com arrimo no art. 48 da Constituição, os dispositivos que nela asseguravam as
liberdades pessoais.
No campo, portanto, tudo era/é possível. Nele a exceção é a norma, revelando-se
o espaço indiscernível entre interno e externo, entre fato e direito. A vida humana para
arrastada com base na Shutzhaft é dominada na sua totalidade, inscrevendo-se na
ordem político-jurídica pela sua própria exclusão e degradação.
O campo serve de modelo exatamente porque, sob exceção permanente, é “o
espaço [da] absoluta impossibilidade de se decidir entre norma e aplicação, entre
exceção e regra, que entretanto decide incessantemente sobre eles”.
104
A norma no
campo é ao mesmo tempo normatização e aplicação, confundindo-se a produção do
direito com a sua concretização.
O campo, assim, é o espaço político desse período de transição do século XX para
o XXI, em que a organização planetária marca uma localização sem ordenamento que
não está restrita ao âmbito internacional, mas se mostra de maneira clara no interior dos
próprios Estados, a exemplo da situação dos excluídos, moradoras das favelas do Brasil.
Mais do que ler de maneira adequada o funcionamento da lógica soberana,
atentando à exclusão que ela promove ao expandir o campo como imagem do espaço
político, a categoria da exceção adjetiva pela permanência porque presente em
contínuo na composição do fenômeno jurídico-constitucional permite destacar uma
zona de anomia, não subjugada pelo direito, em que se tanto uma vigência pura sem
aplicação como uma aplicação sem vigência, um espaço aberto à construção não
mediatizada por um direito instrumentalizado pelas forças dominantes na vida social ou
por perspectivas teleológicas; um direito que, na linha de Agamben, é manifestação de
um âmbito político redefinido.
Esse espaço vazio de anomia se revela, incisivamente, na articulação do elemento
jurídico potestas com o elemento anômico autoritas revelando-se a exceção
permanente, portanto, ainda mais imprescindível como categoria para se compreender,
hoje, o fenômeno político-jurídico:
O sistema jurídico do Ocidente apresenta-se como uma estrutura dupla, formada por dois
elementos heterogêneos e, no entanto, coordenados: um elemento normativo e jurídico
em sentido estrito que podemos inscrever aqui, por comodidade, sob a rubrica potestas
e um elemento anômico e metajurídico que poderíamos designar pelo nome
auctoritas. O elemento normativo necessita do elemento anômico para poder ser aplicado,
104
Ibid., p. 180.
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107
107
mas, por outro lado, a auctoritas pode se afirmar numa relação de validação ou de
suspensão da potestas (....) O estado de exceção é o dispositivo que deve, em última
instância, articular e manter juntos os dois aspectos da máquina jurídico-política,
instituindo um limiar de indeterminação entre anomia e nomos, entre vida e direito, entre
auctoritas e postestas. Ele se baseia na ficção essencial pela qual a anomia – sob a forma
de auctoritas, da lei viva ou da força de lei ainda está em relação com a ordem jurídica
e o poder de suspender a norma está em contato com a vida. Enquanto os dois elementos
permanecem ligados, mas conceitualmente, temporalmente e subjetivamente distintos
como na roma republicana (...) –, sua dialética embora fundada sob uma ficção pode,
entretanto, funcionar de algum modo. Mas, quando tendem a coincidir (...) quando o
estado de exceção em que eles se ligam e indeterminam torna-se a regra, então o sistema
jurídico-político transforma-se em uma máquina letal (...) O estado de exceção, hoje,
atingiu seu máximo desdodramento planetário. O aspecto normativo do direito pode ser,
assim, impunemente eliminado e contestado por uma violência governamental que, ao
ignorar no âmbito externo o direito internacional e produzir no âmbito interno um estado
de exceção permanente, pretende, no entanto, ainda aplicar o direito.
105
(grifou-se)
A categoria da exceção permanente, dessa sorte, além das características
condensadas nos subtítulos 4.1 e 4.3 (i) paradoxos referentes à perspectiva normativa
construída nas sociedades capitalistas do Ocidente associados a uma maior influência da
decisão política, (ii) contexto globalizado, em que se vêem reestruturadas as relações de
poder em escala mundial, (iii) exploração, numa sociedade de risco, da sensação de
insegurança e de medo para viabilizar a (iv) instituição de um governo forte e
centralizado, expandindo-se a atuação do Executivo sob o alegado objetivo de garantir a
continuidade – ou “salvar” – as democracias constitucionais, (v) alterão e até a
suspensão de direitos e liberdades a fim de assegurar a manutenção do regime
democrático, (vi) déficit de representação e participação popular na formação da
vontade política dos Estados traz consigo uma nova maneira de apreciar o fenômeno
político-jurídico que, acreditamos, é mais adequada para compreender a situação
contemporânea. Nela arrimado, não se de duvidar da necessidade de se repensar
tópicos estruturais da teoria constitucional. A constituição, os direitos fundamentais, a
hermenêutica constitucional e os tribunais constitucionais requerem nova luz, certo da
insuficiência da teoria pós-1945 que, atada à normatividade autônoma da constituição,
deixa de abrir maior espaço à realidade e ao poder.
Trata-se, sem dúvida, de um novo registro num período de esgotamento do
construto sócio-político-econômico erigido sobre os pilares do paradigma da
modernidade.
106 107
105
AGAMBEN, G., Estado de Exceção, p. 130-131.
106
Paradigma, segundo Edgar Morin, trata de um certo tipo de relação lógica extremamente forte entre
noções mestras, noções-chaves, princípios-chaves. Refere-se à “pedra angular” de todo um sistema de
pensamento cuja afetação alcança, ao mesmo tempo, a “ontologia, a metodologia, a epistemologia, a
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108
108
Segundo Morin, a ontologia moderna ocidental arrima-se em entidades fechadas,
como substância, identidade, causalidade (linear), sujeito e objeto, as quais não se
comunicam entre si, firmando oposições que levam à “repulsão ou à anulação de um
conceito pelo outro”.
108
O real, afirma o autor, é apreendido em sua simplicidade e
homogeneidade, conhecido na sua essência por um indivíduo racional capaz de pensar a
natureza por “extensão e movimento” (dualismo), “passivamente submetida a
mecanismos cujos elementos é possível desmontar e relacionar sob a forma de leis”.
109
As influências modernas na organização sócio-política são bem visíveis, por
exemplo, na obra de Thomas Hobbes, e se mantém ainda hoje. No entender de Simone
Goyard-Fabre, Hobbes expõe as linhas mestras, os princípios fundamentais da teoria do
Estado Moderno: “as capacidades de comando e de regulação do Poder procedem, no
âmago do humanismo jurídico, de uma concepção individualista e igualitarista da
existência pública, embasada num racionalismo estrito.”
110
Capacidades de comando e de regulação do poder se referem, em síntese, à
problemática abarcada pelo conceito moderno de soberania disso cuidaremos mais à
frente.
Por humanismo se quer dizer que o poder se edifica pelo homem. O homem
moderno está no centro. Todavia, aparece na modernidade cartesiana como um “novo
deus” transcendente.
111
Conduz esse pressuposto antropológico – ou se produz em
conjunto com ele – a uma concepação individualista, igualitária e racionalista.
O Estado é pensado a partir dos átomos, dos indivíduos que o compõem,
passando-se da multidão de átomos individuais associais e apolíticos para a unidade do
ordenamento mediante a efetivação de um contrato social.
112
Não seria possível
lógica e por conseqüência a prática, a sociedade e a política.” Cf. MORIN, E., Introdução ao Pensamento
Complexo, p. 54.
107
PLASTINO, C. A., Sentido e Complexidade, Corpo, Afeto, Linguagem: a questão do sentido hoje,
2001, p. 44: “dentre os conceitos-chave que organizam a concepção ontológica e epistemológica da
modernidade, é preciso destacar dois: o que pressupõe no real uma essência redutível à razão lógica e
apreensível pela razão humana e, indissociável dele, o que representa o real como cindido em dualismos
tais como natureza-cultura e corpo-psique (...)”. Também: SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso
sobre as ciências, 2003; SANTOS, Boaventura de Sousa. La transición postmoderna: derecho y política,
1989.
108
Ibid., p. 54
109
Ibid., p. 47.
110
GOYARD-FABRE, S., Os Princípios Filosóficos do Direito Político Moderno, p. 75.
111
HARDT, M.; NEGRI, A., Império, p. 109: “Há uma rigorosa continuidade entre o pensamento
religioso que concede a Deus um poder acima da natureza e o moderno pensamento ‘secular’ que concede
ao Homem esse mesmo poder acima da natureza. A transcendência de Deus é simplesmente transferida
ao Homem.(...)”.
112
Ibid., p. 79.
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109
109
sustentar essa individualização se não concebidos os homens como formalmente iguais
em específico, iguais na capacidade de matar e de agir com prudência. Completa a
tríade a redução racionalista do homem, que se mostraria capaz de conhecer e controlar
a natureza mediante operação metódica de cálculo que permite a construção de
conceitos indispensáveis à compreensão funcional da sociedade.
A simplicidade moderna, sem embargo, vê sua derrocada surgir do próprio avanço
do conhecimento por ela fomentado, que a cada dia de modo mais intenso na atual
situação de exceção permanente – descobre novas sendas de incerteza e dúvida. A
simplicidade, destarte, lugar à complexidade do real e à inevitável conseqüência de
que o saber produzido deve ser atualizado e, se for o caso, reafirmado sob renovada
fundamentação.
Não escapa à mudança a organização sócio-política, inserindo-se nesse impulso
de transmutação do paradigma da modernidade a categoria da exceção permanente. O
humano não é nela invocado como um absoluto transcendente nem como um ser cuja
razão é capaz de tudo controlar e subjugar. Reconhece-se pela categoria da exceção, em
vez disso, que a pessoa humana é preponderantemente caracterizada por sentimentos,
fragilidades, destrutividade e, ao mesmo tempo, capacidade de criar e inovar a
construção do mundo – produto de sua atuação, como esclarece Hanna Arendt.
113
O indivíduo, o sujeito, não é substituído por uma perspectiva organicista, um ser
coletivo, mas preservado de maneira que não se estabeleça exclusivamente sobre ele a
construção da vida comum. Orienta-se a categoria da exceção permanente pela
problemática da subjetividade e das ingerências sobre sua formação, ampliando-se a
visão da igualdade de molde a abarcar exigências de distribuição econômica e de
composições identitárias. A capacidade de regulação do poder é redimensionada sob a
categoria da exceção permanente com a finalidade de resgatar, de forma especial, um
âmbito de ação não limitado ao discurso jurídico.
se quão amplo é o campo de reflexão aberto à categoria da exceção
permanente. Centrados, no entanto, na reestruturação do pressuposto da normatividade
da constituição, discorrer-se-á na seqüência, em caráter exemplificativo, sobre uma
possível aplicação da categoria exceção permanente na compreensão de alguns dos
tópicos centrais da teoria constitucional: constituição, direitos fundamentais,
hermenêutica/interpretação, tribunais constitucionais.
113
ARENDT, H., op cit., p. 15 passim. A autora diferencia a terra dimensão natural de mundo,
espaço criado, construido pelo homen.
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5
Exceção pemanente: algumas implicações
Sumário do capítulo: 5.1. Pensando o Brasil; 5.2. Constituição,
direitos fundamentais, hermenêutica/interpretação, tribunais
constitucionais.
Acreditamos haver sido possível, nos dois últimos capítulos, traçar o contexto ao
qual se refere a categoria exceção permanente, bem assim caracterizá-la mediante breve
análise da experiência alemã dos anos 20 e 30 do século XX, das críticas dirigidas por
Schmitt à Constituição de Weimar, do debate norte-americano pós-11/09 e da
contribuição teórica de Giorgio Agamben. Sedimentou-se, dessa sorte, a conclusão no
sentido de que a categoria da exceção permanente viabiliza a reconstrução da
normatividade constitucional.
Neste capítulo apontaremos, por duas vias, as impressões resultantes da referência
à exceção permanente como categoria útil ao desenvolvimento da teoria constitucional
no século XXI: num primeiro momento, tentar-se-á refletir sobre o cenário brasileiro à
luz do renovado marco da exceção permanente, hábil a viabilizar que se alargue a
estreita visão da teoria e da dogmática jurídico-constitucional brasileira e a fomentar o
estudo multidisciplinar do direito; em seguida, trataremos da possível aplicação da
categoria na difícil tarefa de compreender tópicos centrais da teoria constitucional:
constituição, direitos fundamentais, hermenêutica/interpretação e, em específico,
tribunais constitucionais.
5.1
Pensando o Brasil
Ingressamos no século XXI repita-se com tendências à concretização de uma
nova ordem social, que aponta para a instituição de um sistema financeiro e produtivo
globalizado. Vê-se surgir um novo Império, reestruturação da soberania que busca na
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111
111
forma de um Estado de exceção permanente, militarizado e economicista, assegurar sua
legitimidade.
Segundo Klaus Günther, na atual sociedade de mercado existe um “lado escuro”
da expansão da liberdade de consumo, consubstanciado em maior restrição às
liberdades tradicionais por intermédio do avanço da criminalização e de um estado de
segurança de caráter transnacional:
Ademais, liberdade consumista, como qualquer aumento de liberdade, tem seu ameaçador
lado escuro: individualização crescente, a dissolução dos laços sociais e das tradições, o
risco de falhar na competição econômica e assim se tornar um dos perdedores da
modernização e da globalização. Está provavelmente fora da experiência desses riscos
que ali desenvolva um medo maciço do crime, que amarre junto os medos da sociedade
de multi-opção. O outro, com seu altamente individualizado conjunto múltiplo de opções,
torna-se um risco da segurança. Aqui está onde o estado de segurança se insere. As
reformas econômicas nos Estados Unidos sob Ronald Reagan e na Grã-Bretanha sob
Margaret Thatcher foram acompanhadas por um aperto maciço do direito criminal e
penal. A liberação da economia do estado descansou numa simultânea restrição dos
direitos civis tradicionais que, nada obstante, foram afirmados como 'liberdade pelo
estado' a saber, como proteção da liberdade dos consumidores das ameaças dos
terceiros envolvidos. Esses terceiros envolvidos são situados fora do espaço interno
desregulamentado, e, portanto, excluídos em todo caso, ou excluídos na base de sua falta
de sucesso em divulgar o poder de trabalho deles (...).
1
(grifou-se)
Nessa ordem globalizada em que se utilizam instrumentos autoritários típicos dos
estados de exceção para manter a segurança e a ordem, o Estado Democrático de Direito
enfrenta forte tensão ao ver mitigada sua capacidade de assegurar direitos fundamentais,
de viabilizar eficaz participação popular na formação da vontade política e de
propulsionar justiça social.
Tem-se, portanto, uma nova configuração da ordem sócio-político-econômica
que, acreditamos, é passível de ser melhor compreendida pela referência à categoria da
exceção permanente e a algumas de suas principais características extraídas das
experiências da República de Weimar e do atual debate norte-americano: (i) paradoxos
1
GÜNTHER, K., World Citizens between Freedom and Security, p. 389: “In addition, consumerist
freedom, like any increase o freedom, has its threatening dark side: increasing individualization, the
dissolution of social ties and traditions, the risk of failing in economic competition and thus becoming
one of modernizations and globalization’s losers. It is probably out of the experience of theses risks that
there develops a massive fear of crime, which bundles together the fears of multi-option society. The
other, with his highly individualized multiplicity of options, becomes a security risk. Here is where the
security state comes in. The economic reforms in the United States under Ronald Reagan and in Britain
under Margaret Thatcher were accompanied by a massive tightening of criminal and penal law. The
liberation of economy from the state rested on a simultaneous restriction of traditional civil rights, which
was nevertheless asserted as ‘freedom through the state’ namely as protection of consumerists freedom
from threats from third parties. These third parties are situated outside the deregulated internal space, and
thus exclude in any case, or exclude on the basis of their lack of success in marketing their labor power
(…).”
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referentes à perspectiva normativa construída nas sociedades capitalistas do Ocidente
associados a uma maior influência da decisão política; (ii) contexto globalizado, em que
se vêem reestruturadas as relações de poder em escala mundial; (iii) exploração, numa
sociedade de risco, da sensação de insegurança e de medo para viabilizar a (iv)
instituição de um governo forte e centralizado, expandindo-se a atuação do Executivo
sob o alegado objetivo de garantir a segurança e a continuidade ou salvar” as
democracias constitucionais; (v) alteração e até a suspensão de direitos e liberdades a
fim de assegurar a manutenção do regime democrático; (vi) déficit de representação e
participação popular na formação da vontade política dos Estados com ampliação dos
poderes governamentais, em específico do Executivo.
Como a exceção permanente se apresenta no contexto brasileiro de molde a
contribuir para um adequado entendimento de nossos problemas específicos?
Principal particularidade a ser levada em conta ao se refletir sobre exceção
permanente e Brasil e que aqui, por razões de espaço e por necessidade de pesquisa
mais detida, não desenvolveremos se refere ao processo histórico de construção do
Estado brasileiro.
Se adotarmos, apenas como hipótese referencial, abordagem semelhante àquela de
Charles Tilly sobre a criação e desenvolvimento dos Estados nacionais na Europa, a
importância de nossas particularidades é revelada de imediato. De acordo com Tilly,
2
são variáveis do desenvolvimento histórico do Estado nacional europeu a concentração
de coerção e de capital, a preparação para a guerra e a posição dentro do sistema
internacional. Ainda que se possa em nossa realidade contestar a variável preparação
para guerra e, portanto, a maneira como ocorreu aqui a concentração de coerção, a
formação do Estado brasileiro, sem dúvida, perpassa a problemática tensão entre
coerção, capital e influência externa.
No Brasil, ao que tudo indica, algumas das identificadas características da
exceção permanente o que fortalece o sentido de permanência mostram-se muito
na própria história do país. Para citar um exemplo, fiquemos com a ampliação de
poderes do Executivo. Bem destaca Marcos Antônio Striquer Soares ao examinar o
presidencialismo brasileiro que, no país,
[o] problema maior (...) não é exatamente o desequilíbrio exagerado entre os órgãos
fundamentais do Estado, entre os Poderes do Estado, que existe e deve ser corrigido, mas
2
CHARLES, Tilly. Coerção, capital e estados europeus, 1996.
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113
uma conseqüência desse fato, a ausência de mecanismos de controle do chefe do Poder
Executivo. No Brasil, ele tem controle sobre a produção legislativa, não sofre uma
fiscalização adequada do Legislativo e, ainda, dificilmente será responsabilizado por seus
atos, pois o mecanismo adotado por nós (crime de responsabilidade política), próprio do
presidencialismo, depende de grande movimentação política da sociedade e das
Instituições públicas, o que é dificultado pela excessiva hegemonia mantida pelo
presidente. O presidencialismo brasileiro é bastante influenciado pelo sistema
parlamentarista. Percebe-se que o chefe do nosso Executivo tem uma liberdade de
atuação muito ampla, própria do parlamentarismo, mas somente pode ser afastado pelo
mecanismo adotado no presidencialismo, de difícil sucesso. (...) O presidencialismo, no
Brasil, ainda depende muito da pessoa que exerce o cargo de presidente, pois a ele são
autorizados inúmeros poderes (competências). Isso porque nossas Instituições políticas
ainda são muito frágeis, havendo hegemonia excessiva do Executivo, em detrimento dos
demais Poderes, sem mecanismos apropriados de controle dos atos do presidente. (...) Em
razão de excessivos poderes (competências) autorizados ao presidente, acabou-se
atribuindo a ele a maioria das decisões sobre os caminhos de nosso país, o que caracteriza
uma atuação sobranceira em relação aos demais Poderes.
3
(grifou-se)
Razões para tanto são encontradas na peculiar forma como aqui se relacionaram a
concentração de capital e de coerção com a forte influência internacional.
Isso se verifica, de modo semelhante, no que toca à tensão paradoxal que,
acentuamos, aflige as sociedades capitalistas e seu atual regime de organização, o
Estado Democrático de Direito. Seguindo Honneth e Hartmann, conquistas
emancipatórias promovem, hoje, por vezes, seu próprio esvaziamento. De acordo com
os autores, por exemplo, a compreensão do “individualismo” como busca de
autenticidade e de individualização na segunda metade do século XX, serviu às
conquistas de reconhecimento e de identidade de minorias. Exigências de autenticidade,
todavia, fizeram com que trabalhadores compreendessem suas obrigações como forma
de auto-realização, “informalizando” as relações econômicas de trabalho. Vê-se que
uma demanda ilimitada por capacidades subjetivas de ação conduz à indefinição das
fronteiras entre as esferas privada e profissional e, por conseguinte, num movimento
contraditório, à instrumentalização das relações intersubjetivas.
4
No Brasil, entretanto, muitas das conquistas emancipatórias que, paradoxalmente,
legitimam a configuração das democracias capitalistas contemporâneas, sequer foram
implementadas. O paradoxo, por vezes, não se realizou nem se realiza. Discursos e
políticas de emancipação social foram e ainda são implementados de modo obtuso,
escamoteados pela retórica da classe política.
É ver, nesse sentido, com Francisco de Oliveira, as peculiaridades da configuração
3
SOARES, M. A. S., Características do Presidencialismo no Brasil e Fragilidade Democrática:
dificuldades de controle do Presidente da República no Brasil, 2003.
4
HARTMANN, M.; HONNETH, A., Paradoxes of Capitalism, p. 49/50.
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114
114
do capitalismo pátrio. Para o autor, o capitalismo industrial no país, construído sem
revolução burguesa, foi forjado de maneira que a acumulação capitalista depende,
necessariamente, da reprodução do subdesenvolvimento. Daí afirmar:
Ao rejeitar o dualismo cepalino, acentuava-se que o específico da revolução produtiva
sem revolução burguesa era o caráter 'produtivo' do atraso como condômino da expansão
capitalista. O subdesenvolvimento viria a ser, portanto, a forma de exceção permanente
do sistema capitalista na sua periferia.
5
6
(grifou-se)
Também assim quanto aos direitos fundamentais. No Brasil o conjunto de direitos
civis, políticos e sociais inerentes à concepção contemporânea de cidadania não
percorreu uma seqüência lógica nem se desenvolveu por completo. Em vez de começar
com os direitos civis para, em seguida, assegurar direitos políticos e sociais sem ver
nisso caminho seguro e único para o desenvolvimento dos direitos da cidadania –
assevera José Maria Gómez que no Brasil se iniciou “muitas vezes com o
reconhecimento tardio e seletivo de direitos sociais (...) introduzindo ao mesmo tempo
fortes restrições aos direitos civis e graves distorções quando não a supressão direta
ao exercício dos direitos políticos”.
7
E continua Gómez:
(...) não surpreende que, após as brutais experiências de ditadura militar dos sessenta e
setenta, com a volta da democracia liberal, universalizaram-se rapidamente os direitos
políticos para todos os adultos, mas os direitos civis e sociais, embora consagrados pelos
textos constitucionais, não não os acompanharam como, vários deles, não pararam de
regredir. Os direitos sociais, em função da crise terminal do modelo desenvolvimentista e
da ofensiva das políticas neoliberais – que desmontaram os precários e incompletos
mecanismos de Estado de Bem-Estar Social –, onde existiram. E os direitos civis,
porque o Estado de Direito – o império da lei – jamais logrou se universalizar, nem social
nem territorialmente. Por outro lado (...) esses direitos e os mais elementares direitos
humanos à vida e à integridade física sofreram violações sistemáticas, por motivos
políticos, nas últimas ditaduras (....).
8
Diversos elementos que utilizamos para definir a situação de exceção permanente
que se expande pelo globo, dessa sorte, integram nossa história, contribuindo seu estudo
para o melhor entendimento da tensão vivenciada pelo Estado Democrático de Direito
5
OLIVEIRA, F., Crítica à razão dualista e o ornitorrinco, p. 131.
6
Útil a uma abordagem inicial e de forte teor histório sobre o tema: TAVARES, José Antônio
Giusti. De uma transição constitucional a outra. In: Instituições políticas comparadas dos países do
Mercosul. TAVARES, José Antônio Giusti; ROJO, Raúl Enrique (orgs.). Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1998, p. 203-228.
7
GÓMEZ, J. M., Direitos Humanos, Desenvolvimento e Democracia na América Latina, p. 92.
8
Ibid., 94.
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115
115
no Brasil do início do século XXI.
Assinalada tal peculiaridade, em pelo menos duas áreas a problemática da exceção
permanente de ser destacada ao se pensar o quadro hodierno do país: na seara penal
assiste-se ao apelo à segurança e ao endurecimento das medidas estatais contra o
aumento da criminalidade; no âmbito político-econômico, sob o pálio da necessidade e
da urgência, tem-se a ampliação das atividades legislativas do Poder Executivo, bem
como a manutenção de uma estrutura econômica de acumulação de capital que não se
mostra sequer preocupada em fomentar distribuição de renda.
O recrudescimento de medidas policiais e do combate ao crime organizado e
‘desorganizado’ no Brasil é de todos conhecido, bem como a crescente proliferação dos
discursos de lei e ordem, de aumento de penas e de defesa do ‘direito à arma’. Opera
aqui, conforme aponta Thiago Bottino, a ‘cultura do medo’. Superdimensiona-se o
sentimento de pânico para legitimar a restrição de liberdades tradicionais e a maior
intervenção do Estado:
O termo “cultura do medo” representa o superdimensionamento do medo mediante a
alteração da percepção da população no que tange à violência. Essa “cultura do medo” se
transforma num discurso legitimador do aumento dos poderes do Estado, justificando
ações e comportamento claramente antidemocráticos e nitidamente direcionados para um
maior e mais estrito controle social. Com efeito, o pânico social provoca nos indivíduos
seus instintos mais primitivos”, razão pela qual proliferam discursos pleiteando que o
criminoso seja despido de sua condição de ser humano e tratado de modo selvagem,
mediante aplicação de medidas como tortura, esterilização forçada, diminuição da
responsabilidade penal e até o assassinato de criminosos, numa reação igualmente
violenta em retaliação ao crime (....) O uso político do medo para controle social é
processo relativamente simples de ser entendido. Identifica-se um “inimigo” e cultiva-se
o medo de que esse inimigo possa destruir o Estado e corromper a sociedade. O discurso
envolve sempre expressões fortes como “guerra contra as drogas”, “combate aos
bandidos”, “erradicação do crime” etc, bem como a demonização da figura do criminoso,
num processo de negação da “normalidade social” do delito e de idealização de uma
sociedade sem conflitos ou sem violência. Esse discurso esconde que violência e
insegurança são problemas sociais distintos, com causas independentes (....) A
conseqüência mais visível desse processo é a associação, feita por uma larga parcela da
população de que sua segurança coletiva depende de punições mais severas para os
delitos praticados. Contudo, o discurso da falência social, da impotência do cidadão
frente ao crime tem por resultado concreto apenas o fortalecimento do poder estatal e o
endurecimento dos meios de controle social.
9
Os recentes ataques a delegacias, a batalhões de polícia militar e de bombeiros, a
repartições e meios de transporte públicos promovidos em São Paulo e no Rio de
9
BOTTINO, Thiago, Direito de Segurança: segurança do Estado versus segurança do Cidadão, In
VIEIRA, J. R. (org.), Perspectivas da teoria constitucional contemporânea, p. 116.
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Janeiro são indicativos de que a problemática tem, no país, espaço aberto para difusão.
Mais grave, no entanto, é que a fortificação do Estado policial ocorre em conjunto com
o crescimento da sociedade de mercado neoliberal. Sistemas administrativo e
econômico avançam lado a lado na colonização – paradoxal, como defendem Hartman e
Honneth – do mundo da vida. O controle ideológico derivado do “uso político do medo”
cristaliza o status quo e engessa a ação política de indivíduos e de coletividades.
No âmbito político-econômico, é ver que no Brasil o Legislativo não legisla, ou
melhor, legisla pouco. Otavio Amorin Neto e Fabiano Santos,
10
citando Figueiredo e
Limongi, destacam que entre 1989 e 1998 apenas 14% das leis aprovadas foram de
autoria de deputados e senadores ou de comissões parlamentares.
Desse diminuto percentual, as pesquisas de Amorin Neto e Santos revelam que a
maior participação do Legislativo é verificada na área social de âmbito nacional
códigos, direitos de minorias, salário-mínimo, educação e segurança. Além disso, tais
leis não afetariam “o status econômico e social do país, sendo mais propriamente
intervenções tópicas em questões pertinentes ao cotidiano do cidadão comum”.
11
Nos decretos legislativos e resoluções do Senado Federal no período de 1985 a
1999 predominaram os assuntos econômicos. Todavia, também aqui é pouca a
influência no indigitado status econômico e social. Os decretos legislativos mostram
algum paroquialismo, configurando, na sua maioria, distribuição de direitos de
exploração de serviços de rádio e televisão. Quase todas as resoluções do Senado, por
sua vez, estão afetadas ao setor econômico 98,3% abrangendo questões locais e
regionais. Dconcluírem Amorin Neto e Santos que as resoluções do Senado servem
para tratar quase exclusivamente de questões econômicas da União, Estados e
Municípios. Mais especificamente, de problemas relativos ao endividamento dessas
entidades da Federação Brasileira.
Charles Pessanha
12
salienta que de 1988 a 2001 foram submetidas 6.110 medidas
provisórias ao Legislativo, sendo 619 originais, 5.036 reedições e, ao final, 469
aprovadas. Acrescenta, ainda, que a legislação extraordinária e emergencial constitui
opção preferencial do Poder Executivo desde 1967. Para ele “não seria exagero afirmar
que, nos últimos 70 anos, a maioria das normas reguladoras da vida social e política
10
AMORIM NETO, Otavio; SANTOS, Fabiano, A produção legislativa do Congresso: entre a
paróquia e a nação, p. 91/139.
11
Ibid., p. 134.
12
PESSANHA, Charles. O Poder Executivo e o processo legislativo nas constituições brasileiras, p.
141/195.
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brasileira é oriunda de legislação emergencial dos dois tipos analisados [decretos-lei e
medidas provisórias], configurando quadro de produção legal cuja característica
principal é a ausência de participação do Poder Legislativo.”
13
Evidente aqui a transmutação da noção clássica de legalidade obediência à lei
formal exarada pelo Legislativo para albergar toda a produção normativa do governo,
inclusive os atos com “força de lei sem lei”.
Exemplo caricatural da complacência com a supremacia da função legislativa do
Poder Executivo constata-se na interpretação que o Supremo Tribunal Federal
14
cujos
ministros são nomeados pelo Presidente faz dos conceitos de relevância e de urncia
que servem de pressupostos às medidas provisórias. Seguindo-se o entendimento do
Tribunal, os conceitos de relevância e de urgência estão submetidos ao quase
“intocável” poder discricionário do Presidente da República.
A Emenda Constitucional n.º 32 introduziu alterações no art. 62 da Constituição
Federal a fim de restringir a proliferação das medidas provisórias. Todavia, sua redação
vacilante deixa brechas suficientes para que, principalmente em matéria econômica, o
Executivo assuma papel central no exercício da função legislativa.
A supremacia legislativa do Executivo, notadamente nas questões econômicas,
associada à retórica emergencial do medo, causa preocupação. Não arrefece o problema
a crescente judicialização da vida social e política.
15
O Brasil, submetido à contumaz
ineficácia da legislação protetora dos direitos fundamentais, à sucessão de planos
milagrosos para salvar a economia, a ocupar a periferia do capitalismo e à acumulação
do capital estruturada na exploração do subdesenvolvimento, vê-se governado pela
13
Ibid., p. 180.
14
Já em dezembro de 1989, nos autos da medida cautelar na ADI 162, Rel. Min. Moreira Alves, o Pleno
do Supremo Tribunal Federal decidia: “Ação Direta de Inconstitucionalidade. Medida Provisória nº
111/89. Prisão Temporária. Pedido de liminar. - Os conceitos de relevância e de urgência a que se refere o
artigo 62 da Constituição, como pressupostos para a edição de Medidas Provisórias, decorrem, em
princípio, do Juízo discricionário de oportunidade e de valor do Presidente da República, mas admitem o
controle judiciário quando ao excesso do poder de legislar, o que, no caso, não se evidencia de pronto. - A
prisão temporária prevista no artigo da referida Medida Provisória não é medida compulsória a ser
obrigatoriamente decretada pelo juiz, que o despacho que a deferir deve ser devidamente
fundamentado, conforme o exige o parágrafo do mesmo dispositivo. - Nessa oportunidade processual,
não se evidencia manifesta incompatibilidade entre o parágrafo do artigo 3º da Medida Provisória
111 e o disposto no inciso LXIII do artigo da Constituição, em face do que se contém no parágrafo 2º
do artigo 3º daquela, quanto à comunicação do preso com o seu advogado. (...) Pedido de liminar
indeferido”. O Supremo tem mantido a orientação, decidindo, topicamente, quando o alegado excesso
do poder de legislar. Nesse sentido confira a ADI 2213 MC.
15
Sobre o tema ler CITTADINO, Gisele. Judicialização da política, constitucionalismo democrático e
separação de poderes, 2003. Consoante a autora, a promulgação da Constituição cidadã, cujo sistema de
direitos fundamentais como vimos, informa todo o ordenamento jurídico, é certamente a expressão
definitiva daquilo que Pierre Bouretz designa como movimento de retorno ao direito no país”.
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lógica de exceção permanente. É o que assinala Bercovici ao comentar a ditadura
constitucional de Rossiter:
Rossiter destaca que, além das leis de emergência promulgadas pelo Poder Executivo e da
lei marcial (ou estado de sítio), uma nova característica dos poderes de emergência seria a
interferência governamental nas liberdades políticas e econômicas, particularmente o
direito à propriedade. Antes, limitavam-se aos direitos individuais tendo em vista o bem-
estar coletivo. Hoje, dá-se o contrário: a utilização atual dos poderes de emergência
caracteriza-se por limitar os direitos da população em geral para garantir a propriedade
privada e a acumulação capitalista.
16
(grifou-se)
Ainda na seara que denominamos político-econômica, a exceção permanente que
aqui e nos demais países periféricos se imbrica com a urgência econômica e com a
exploração do subdesenvolvimento, é agravada pela supremacia da “capacidade norte-
americana de enquadramento econômico-financeiro e político-ideológico (...), impondo
a visão neoliberal dominante como única possível”.
17
Em entrevista ao jornal O Globo do dia cinco de junho de2005 Leda Paulani,
autora do livro Modernidade e discurso Econômico, esclarece-nos o aspecto ideológico
do neoliberalismo, que nasce “como doutrina, e não como teoria econômica” e difunde
rapidamente “a crença de que a sociedade organizada pelo mercado é a melhor que o
homem foi capaz de construir (...)”, sendo aceito com facilidade porque, continua
Paulani:
A doutrina neoliberal fala muito ao senso comum. Afirmações como ‘ninguém pode
gastar mais do que ganha’ etc. podem ser verdadeiras no plano doméstico, mas são
falaciosas no plano macroeconômico. Elas passam a ser vistas como verdade porque de
fácil compreensão.
18
Não é outro o motivo pelo qual o texto constitucional de acentuada influência
comunitária sucumbiu nos seus primeiros anos de vida ao neoliberalismo
implementado nos governos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso.
19
Basta
comparar as metas do Consenso de Washington
20
com as emendas constitucionais de n.º
5 a n.º 15, n.º 19 e n.º 20 para comprovar a assertiva.
Combinados, (i) a acumulação capitalista estrutural – originada da força do capital
16
BERCOVICI, G. op. cit., p. 173.
17
Ibid., p. 174.
18
PAULANI, L., O neoliberalismo não era o único caminho, 2005. Entrevista.
19
Cf. OLIVEIRA, F. Balanço do neoliberalismo, 1995.
20
Para uma crítica sobre a adoção do plano econômico traçado no consenso de Washington ver FIORI,
José Luís. Os moedeiros falsos. 5ª ed.. Petrópolis, Editora Vozes,1998, p. 11 a 21.
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globalizado e do próprio desenvolvimento do capitalismo nacional – , (ii) o desrespeito
a direitos fundamentais, notadamente civis e sociais, (iii) o uso político-ideológico do
sentimento de medo e (iv) a centralização da função legislativa no Poder Executivo
sintetizam a situação de exceção permanente no Brasil, sendo esse o “terrorismo” que
nos assola.
Não se saída desse “embróglio” pela via estreita do discurso constitucional.
Alternativas deverão ser procuradas, sustentamos, se se quer abrir espaço para
mudanças emancipatórias, a partir da reestrutução da normatividade constitucional
levada a efeito pela categoria da exceção permanente.
5.2
Constituição, direitos fundamentais, hermenêutica/interpretação,
tribunais constitucionais
Não nos aprofundaremos no exame específico das conseqüências da categoria da
exceção permanente em cada um dos temas da teoria constitucional destacados na
introdução: constituição, direitos fundamentais, hermenêutica constitucional e tribunais
constitucionais. Não falta tempo hábil para elaborar tal empreitada no breve período
do mestrado, mas, deve-se admitir, conhecimento suficiente de alguém ainda iniciado
na pesquisa jurídica e no pensamento teorético-filosófico.
É possível, no entanto, consignar algumas noções princípais da categoria exceção
permanente que auxiliam, pelo menos, a indicar, num esforço de síntese, a contribuição
que a categoria traz para refletirmos sobre esses temas, em específico, sobre os tribunais
constitucionais.
A normatividade constitucional, à luz da categoria da exceção permanente, trata
da criação/inscrição do âmbito de sua própria referência na vida real, de molde que,
repita-se, a própria distinção entre normatividade e realidade, de tal maneira estão
jungidos ao se pensar no fenômeno político-jurídico, perde sua razão de ser. A
constituição, assim, serve de expressão regulatória da vida social em meio aos conflitos
de poder, não se afigurando adequado engessá-la num texto escrito ou em práticas e
tradições consolidadas no tempo. Ainda que escrita e que nela se encontrem positivados
valores e princípios históricos, de vocação universal ou particular, a constituição
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mostra-se como um processo sócio-político-jurídico. Sua força depende do permanente
mover de lutas e embates que acabam por lhe conferir sim certo sentido
normativo e definidor de condutas.
A constituição jurídica e a constituição real se promiscuem e se indiscernem. Não
precisa ser configurada de modo sintético como defendido por Konrad Hesse nem
incorporar, mediante ponderação, estruturas que lhe são mesmo contrárias. Seu
pressuposto não é a simples estabilidade, mas servir de expressão regulatória da vida
social. Consolida valores, princípios e interesses de um grupo, num momento histórico
determinado e poderá se ater a princípios morais e de justiça, a valores universais ou
comunitários na medida em que se modelarem os embates sócio-político-econômicos.
A constituição, na perspectiva da exceção permantente, é constantemente
construída e defendida. Tem de ser mantida acesa se se quiser sustentar alguma vontade
de constituição. Sua eficácia não decorre de uma pretensão abstrata de concretizar
disposições escritas, mas do permanente mover de lutas e embates que acabam por lhe
conferir – aí sim – certo sentido normativo e definidor de condutas.
21
Por intermédio da categoria exceção permanente, portanto, não se restringe o
fenômeno político-constitucional à normatividade e à formalidade da constituição.
Também não se cuida, simplesmente, de vislumbrar, em meio às transformações do
mundo no início do século XXI, a desformalização da constituição e a recomposição
dos valores liberdade e segurança, com um suposto predomínio daquele em detrimento
dos recentes avanços deste. Antes, por intermédio da exceção permanente se objetiva
captar o fluir do momento histórico e ver que para nos opormos às tendências
antidemocráticas, conservadoras e desemancipatórias crescentes neste milênio se faz
imprescindível adentrar na própria situação contemporânea de exceção e, dela, extrair as
linhas características do direito no sentido de uma constituição e de um
constitucionalismo voltados às bases materiais das composições de poder, da “inclusão
exclusiva” da vida no mundo jurídico-político, e, em especial, à necessidade de se
assumir o fato de que a constituição é conquista diária, não alcançada pela mera
estabilização e rigidez da forma escrita ou do costume.
Os direitos fundamentais, por sua vez, consubstanciam conquistas axiológicas e
21
Não é de se estranhar, portanto, que na decada de 90 do século passado autores norte-americanos
como Griffin e Ackerman sustentassem a mutabilidade da Constituição como característica a ser objeto
de estudos teóricos mais amplos, promovendo novas maneiras de compreender o fenômeno político-
constitucional, e, no Brasil, se venha desenvolvendo pesquisa nessa direção. É ler: DUARTE, Fernanda;
RIBAS VIEIRA, José. Teoria da mudança constitucional: sua trajetória nos Estados Unidos e na
Europa. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
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deontológicas inscritas nas constituições ou nos costumes constitucionais de
determinado grupo. Rejeita-se qualquer espécie de imposição de direitos fundamentais
que, em verdade, sirvam de arrimo às intervenções militares e à dominação do cenário
econômico planetário. Pela exceção se vê que avanços qualitativos no âmbito dos
direitos humanos, notadamente os sociais, não dependerão de atuações de ordem
exclusivamente jurídicas. Antes, de ações fora do direito que dele se utilizem
instrumentalmente.
A tendência universalizante defendida nas perspectivas liberais e deliberativas é,
na exceção permanente, fruto da própria configuração do espo e do tempo no
momento atual, bem como de uma nova percepção da ontologia que dissemos romper
com o dualismo natureza-cultura.
Em resumo, tem-se que o universo do ‘ser’ apresenta aspectos naturais e culturais
imbricados. Nós vivemos num mundo híbrido que, ao mesmo tempo, é objeto de
percepções culturais, julgamentos de moral, política e tecnologia, e expressão da
natureza. Um mundo complexo e ambivalente. O ‘ser’, o ontológico, se expressa na
exceção permanente como um vir-a-ser. Há determinações e limites naturais, diretivas
fixas que, nesse único sentido, são universais; a realização, a concretizão dessas
linhas de força determinadas, contudo, está aberta, passível de construção, destruição
e/ou reconstrução no âmbito da cultura. A realização dessas linhas de força ou
virtualidades é mediada pela potência criativa do ser humano na política, na economia,
no direito, etc. E a consciência disso faz, na perspectiva da exceção, se revalorizar a
responsabilidade, a decisão e, por sua vez, o espaço extrajurídico de ação.
A hermenêutica constitucional, reduzida a importância do elemento normativo
autônomo, deverá se abrir à complexidade da vida, principalmente às disputas de poder
sem considerar isso, na linha do positivismo jurídico, elemento ou circunstância externa
ao direito. Por intermédio de cnicas argumentativas e de uma orientação do aplicador
de acordo com cenário político dever-se-á levar em conta as pressões de poder
envolvidas nas disputas perante os tribunais e as divergentes orientações político-
ideológicas que consolidam a técnica jurídica, tratando-as como partes integrantes da
estrutura normativa; não como recursos de retórica ou de simples esclarecimento, mas
parte da própria norma, que, já vimos, está em constante processo de criação, destruição
e recriação.
No que tange aos tribunais constitucionais, vejamos, com maior atenção, algumas
implicações da categoria da exceção permanente.
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Viu-se na introdução que os tribunais constitucionais têm atuação distinta em cada
uma das concepções político-constitucionais que o informam. Dentre aquelas que foram
destacadas, pode-se dizer, em linhas gerais, que, na perspectiva comunitária, aos
tribunais incumbe a proteção de opções valorativas inscritas na constituição. Na visão
liberal, os tribunais, no papel de instituição exemplar, protegem minorias de restrições
excessivas da vontade majoritária em questões essenciais à estrutura social. De acordo
com a posição procedimental-deliberativa, aos tribunais cumpre tutelar o processo de
criação democrática do direito.
Cada perspectiva, à sua maneira, busca compatibilizar o controle da
constitucionalidade e todo o avanço dos tribunais sobre o espaço político com o
princípio democrático de molde a harmonizar as funções (ou poderes) do Estado,
notadamente, o Judiciário e o Legislativo. Tenta-se solucionar, bem destaca Karina
Ansolabehere, um paradoxo, a saber, o fato de a consolidação dos regimes democráticos
na segunda metade do século XX, revalorizando o direito e os tribunais constitucionais,
estar despolitizando a democracia.
22
As posições sobre o tema, no que tange, em específico, à atuação dos tribunais
constitucionais, variam, num espectro amplo, entre aqueles que defendem um poder
máximo desses entes, tendo em vista que a racionalidade do direito modela a paixão e a
política e, dessa forma, garante os direitos de grupos minoritários, e aqueles que
advogam a tese de um poder mínimo, não admitindo o fato de funcionários não eleitos
decidirem os problemas do governo democrático.
Roberto Gargarella, em breve exposição, atento à discussão no cenário norte-
americano, oferece-nos um resumo dos principais argumentos apresentados em defesa
da legitimidade da atuação dos tribunais constitucionais.
23
Inicialmente aponta o argumento no sentido de que o controle ou a revisão pelos
tribunais não estabelece uma superioridade dos juízes em relação aos legisladores
eleitos, mas reafirma a vontade popular soberana contida nas constituições, a
superioridade da própria constituição. Em seguida, a tese de que o controle de
22
CF. ANSOLABEHERE, K., Jueces, política y derecho: particularidades y alcances de la politización
de la justicia, p. 42: La paradoja es el adveniemiento y la conslidación de la democracia nos conducen a
la despolitización de la democracia. En los gobiernos democráticos, el poder judicial controla e revisa las
acciones del poder político, de manera tal que se constituye en un actor clave del juego político.”
23
GARGARELLA, R. Crítica de la constitución: sus zonas oscuras, 2004. Também: MOREIRA, Vital.
Princípio da maioria e princípio da constitucionalidade: legitimidade e limites da Justiça Constitucional.
Disponível no endereço eletrônico <www.tribunalconstitucional.pt/tc/textos030212.html > Acesso em
07/11/2006.
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constitucionalidade não atenta contra a democracia se esta for entendida não pela regra
da maioria, mas como autogoverno de todas as pessoas atuando como partes de um
empreendimento cooperativo, no qual participam em de igualdade, uma democracia
constitucional. De acordo com essa maneira de compreender, os tribunais mesmos
serviriam para consolidar, ainda que de modo anômolo, a democracia. Terceiro
argumento: a via jurisdicional serviria para suprir a crise dos órgãos de representação
legislativos e executivos, minorando o déficit democrático. Quarto: no controle exercido
pelos tribunais se viabiliza a proteção dos direitos das minoriais (caráter
contramajoritário), preservando o regime democrático. Quinto: o procedimento dos
tribunais revela elevada racionalidade e, com isso, viabiliza decisões imparciais em
situações de conflito, contribuindo, também, para a manutenção do regime democrático.
O autor expõe, de igual modo, as críticas comumente dirigidas a cada um desses
argumentos. Contra a supremacia da constituição decorrente de se ver nela a
manifestação da soberania popular, objeta-se haver certa ficção, tendo em vista ser
difícil que na constituição se encontre o produto da “vontade geral” quando
“reconecemos las exclusiones sociales a partir de las cuales muchas de ellas fueron
generadas”.
24
Além disso, ainda que a constituição fosse considerada a voz do povo”,
ainda assim, não se pode olvidar a complexidade de sua interpretação e a dificuldade
resultante em definir quando se estaria ou não respeitando essa voz.
Contrário à tese de que os tribunais atuam em favor da democracia constitucional
alega-se que em “países en donde ese control no existe países como Nueva Zeland,
Gran Bretaña, Irlanda e Holanda – los derechos ciudadanos, al menos, no parecen
menos resguardados”.
25
Ademais, nem sempre os tribunais constitucionais atuam num
sentido protetor e promotor de direitos. Faltaria, destarte, uma evidencia empírica a
sustentar a tese do controle numa democracia constitucional. Não escapam os tribunais,
além disso, cujos membros, via de regra, sequer são eleitos, mas nomeados e se
encontram tão distantes do povo quanto os integrantes do Legislativo, da crise dos
órgãos de representação democrática.
O caráter contramajoritário da atuação dos tribunais é atacado, em linha de
princípio, porque não representam os juízes, necessariamente, os interesses das minorias
e, também, porque não garantias institucionais de que em favor dessas agirão. E
mais, do respeito à constituição e à vontade popular nela inscrita não é correto inferir
24
Ibid., p. 72.
25
Ibid., p. 75.
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que os membros dos tribunais constitucionais sempre atuao em favor dos direitos
minoritários assegurados no texto constitucional. Como já se expôs, existe certo grau de
incerteza na interpretação que obsta afirmar que determinada maneira de ler a
constituição é, sem dúvida, aquela que melhor salvaguarda os direitos das minorias.
A racionalidade do procedimento dos tribunais também não escapa à crítica. A
falta de abertura nos processos, isto é, da participação de todos os afetados pela norma e
pela sua invalidação o que muitas vezes se mostrará, de fato, materialmente
irrealizável – é inegável e afeta a crença na imparcilaidade dos tribunais constitucionais.
Não se têm, com facilidade, diálogo razoável dos tribunais com a sociedade, na maior
parte das vezes ouvida, tão só, pela distorcida voz dos meios de comunicação de massa
e de seus controladores.
Stephen Griffin também nos auxilia a traçar um mapasuscinto, não se nega – do
debate concernentes ao tribunais constitucionais e ao controle por eles exercido.
26
Para o autor existem argumentos legais assentados no texto da constituição, nos
precedentes e no intuito do legislador constituinte –, prudenciais, que vêem o controle
judicial em meio aos valores, crenças e circunstâncias políticas contemporâneas, e
morais ou abstratos, que tratam da revisão ou do controle realizado pelos tribunais a
partir de idéias e princípios fundamentais.
27
Os dois últimos, segundo Griffin, são os
mais utilizados.
A dificuldade contramajoritária exposta por Alexander Bickel
28
seria o mais
consistente e conhecido argumento prudencial/moral na tradição norte-americana.
Griffin sustenta, no entanto, que esse argumento se arrima na pressuposição de que o
governo americano é caracterizado pelo princípio majoritário, enquanto, no seu
entender, a história indicaria que a democracia no seu país é mais bem entendida em
termos de um complexo de princípios normativos. O debate tenderia, assim, em direção
aos argumentos morais.
No nível moral/abstrato menciona Griffin as ponderações de Samuel Freeman e
Riley. Freeman, inspirado na teoria da justiça de Rawls, postula que pessoas livres e
iguais direcionam seus interesses para a proteção do senso de justiça e de suas
concepções de bem, reforçando, por conta disso, um rol de direitos iguais básicos e de
liberdades, em especial o direito de igual participação política. Supondo, com Rawls,
26
GRIFFIN, S. American constitutionalism: from theory to politics, 1998.
27
Ibid., pp. 106-107.
28
O autor se refere ao livro de Bickel The last dangerous brach, publicado na década de 1970.
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uma posição original, alega que pessoas livres e iguais estabeleceriam direitos civis
especialmente direitos de propriedade e garantias de devido processo legal
protegendo-os mediante sua inscrição numa constituição. E, na medida em que se
entenda que o regime democrático exige a tutela desses direitos e liberdades básicas, o
controle que deles fizerem os tribunais constitucionais será legítimo.
Riley, a partir da tradição política norte-americana, aduz que o controle ou a
revisão judidical se legitima porque consubstancia uma das maneiras de se promover o
sistema de freios e contra-pesos, preotegendo os direitos fundamentais da regra da
maioria.
Para Griffin, no entanto, a história constitucional revelaria que os tribunais
falharam e falham como guardiões dos direitos e liberdades básicas, devendo-se
buscar numa visão institucionalista e alinhada à teoria da mudança constitucional novos
caminhos para o debate concernente à revisão levada a efeito pelos tribunais
constitucionais. No seu entender de se promover uma nova crítica democrática do
controle judicial de modo a responder, especificamente, à pergunta sobre qual esfera
(Poder) do governo melhor atua na criação e protão dos direitos, certo que, no curso
da hitória, nem sempre os tribunais se mostraram mais capazes de resguardar os direitos
e as liberdades básicas.
29
Exemplifique-se, em linhas gerais, algumas das obervações apontadas por
Gargarella e Griffin.
Dispõe o art. 37, VII da Constituição de 1988, em sua redação original que: “o
direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei complementar”.
De acordo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Mandado de Injunção n.º
20, o preceito que
(...) reconhecer o direito de greve ao servidor público civil constitui norma de eficácia
meramente limitada, desprovida, em conseqüência, de auto-aplicabilidade, razão pela
qual, para atuar plenamente, depende da edição da lei complementar exigida pelo próprio
texto da Constituição. A mera outorga constitucional do direito de greve ao servidor
público civil não basta ante a ausência de auto-aplicabilidade da norma constante do
art. 37, VII, da Constituição para justificar o seu imediato exercício. O exercício do
direito público subjetivo de greve outorgado aos servidores civis se revelará possível
depois da edição da lei complementar reclamada pela Carta Política. A lei complementar
referida que vai definir os termos e os limites do exercício do direito de greve no
serviço público — constitui requisito de aplicabilidade e de operatividade da norma
inscrita no art. 37, VII, do texto constitucional. Essa situação de lacuna técnica,
29
GRIFFIN, S., Has the hour of democracy come round at last? The new critique of judicial review,
2005. E ainda: GRIFFIN, S., Constitutional theory transformed, 1999.
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precisamente por inviabilizar o exercício do direito de greve, justifica a utilização e o
deferimento do mandado de injunção. A inércia estatal configura-se, objetivamente,
quando o excessivo e irrazoável retardamento na efetivação da prestação legislativa
não obstante a ausência, na Constituição, de prazo pré-fixado para a edição da necessária
norma regulamentadora — vem a comprometer e a nulificar a situação subjetiva de
vantagem criada pelo texto constitucional em favor dos seus beneficiários (...).
30
E decidiu, por maioria,
(...) reconhecer a mora do congresso nacional em regulamentar o art. 37, VII da
Constituição Federal e comunicar-lhe a decisão, a fim de que tome as providências
necessárias à edição de lei complementar indispensável ao exercício do direito de greve
pelos servidores públicos civis.
31
A emenda constitucional n.º 19/98 substituiu a exigência de lei complementar por
“lei específica”.
32
Em nada alterou, contudo, a orientação da Corte.
Sem se ater ao desmonte do mandado de injunção promovido pelo Supremo
Tribunal
33
, quer haja lei complementar ou específica quer não as greves dos servidores
públicos, de fato, ocorrem, projetam-se na realidade e, por conta disso, levam o
Judiciário a se pronunciar. O Supremo, então, a despeito de haver decidido que “mera
outorga constitucional do direito de greve ao servidor público civil não basta ante a
ausência de auto-aplicabilidade da norma constante do art. 37, VII, da Constituição
para justificar o seu imediato exercício”, vê-se a julgar, por exemplo, a
constitucionalidade de decreto de Governador que, partindo da premissa da ilicitude da
greve promovida por servidores, disciplina suas conseqüências administrativas
34
e,
ainda hoje, diverge sobre a aplicação supletiva da lei n.º 7.783/89 que trata do direito
de greve dos trabalhadores da iniciativa privada para sanar a omissão legislativa em
regulamentar o disposto no art. 37, VI da Constituição da República.
35
30
MI 20, STF, Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 19/05/1994 e publicado no DJ no dia
20/11/1996. O inteiro teor do julgado está disponível no endereço eletrônico
http://www.stf.gov.br/Jurisprudencia/It/frame.asp?classe=MI&processo=20&origem=IT&cod_classe=37
3. Acesso em 29 de julho de 2006.
31
Idem.
32
Art. 37 (...) VII – o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica;
33
Um breve esboço do problema pode ser encontrado em BARROSO, Luís Roberto. O controle de
Constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004, pp. 104-112.
34
Cf. ADI 1696, STF, Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 16/05/2002 e publicado no DJ
em 14/06/2002: “Greve de servidor público: não ofende a competência privativa da União para
disciplinar-lhe, por lei complementar, os termos e limites - e o que o STF reputa indispensável à licitude
do exercício do direito (MI 20 e MI 438; ressalva do relator) - o decreto do Governador que - a partir da
premissa de ilegalidade da paralisação, à falta da lei complementar federal - discipline suas conseqüências
administrativas, disciplinares ou não (precedente: ADInMC 1306, 30.6.95).
35
Síntese da retomada do debate encontra-se no informativo n.º 430 do Supremo Tribunal Federal.
Disponível no endereço eletrônico <http://www.stf.gov.br/noticias/informativos/anteriores/info430.asp.>
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Evidente, portanto, na direção defendida por Grffin, não bastar o exame estático
da constituição, de sua efetividade e interpretação. O fenômeno político-constitucional é
dinâmico e para dele se ter compreensão adequada é preciso observar, também, a
atuação dos tribunais constitucionais.
Ao alargar o universo de análise incluindo as cortes aprofunda-se o próprio
entendimento acerca dos problemas referentes à efetividade da constituição. É o que de
concreto se pode inferir do caso da greve dos servidores. De um lado, o Supremo
Tribunal reconhece que o exercício de direito inserto na Constituição de 1988 carece de
regulamentação do Legislativo. De outro, tem de enfrentar o fato da greve e de suas
conseqüências. Norma e realidade revelam a imbricação que perpassa todo o espectro
jurídico.
Considere-se a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)
n.º 45, sobre veto do Presidente da República à dispositivo que estabelecia diretrizes
para a lei orçamentária de 2004.
36
O Supremo Tribunal Federal, tendo em conta que o dispositivo objeto de veto
veio a ser restaurado em Projeto de Lei do Presidente,
37
julgou prejudicada a argüição.
No entanto, o Relator, Min. Celso de Mello, fez constar dos fundamentos do decisum
ser viável o controle de políticas públicas quando houvesse “abusividade
governamental”.
38
Difícil é definir quando há abuso do governo. Volta-se, nesse ponto, à tensão entre
36
Trata-se do § do art. 55 posteriormente alterado para art. 59 de Projeto convertido na lei
10.707/03: “§ 2° Para efeito do inciso II do caput, consideram-se como ações e serviços públicos de saúde
a totalidade das dotações do Ministério da Saúde, deduzidos os encargos previdenciários da União, os
serviços da dívida e a parcela das despesas do Ministério financiada com recursos do Fundo de Combate e
Erradicação da Pobreza." O Presidente vetou o parágrafo porque a "exclusão das dotações orçamentárias
do Ministério da Saúde financiadas com recursos do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza do
montante de recursos a serem aplicados em ações e serviços públicos de saúde cria dificuldades para o
alcance do equilíbrio orçamentário, em face da escassez dos recursos disponíveis, o que contraria o
interesse público, motivo pelo qual se propõe oposição de veto a esse dispositivo." Disponível no
endereço eletrônico <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/Mensagem_Veto/2003/Mv357-03.htm>
37
O Projeto foi convertido na lei n.º 10777/03, cujo art. 1º dispôs: “Art. 1º O art. 59 da lei n.º 10.707, de
30 de julho de 2003, passa a vigorar acrescido dos seguintes parágrafos: 'Art.59 (...). § Para os efeitos
do inciso II do caput deste artigo, consideram-se ações e serviços públicos de saúde a totalidade das
dotações do Ministério da Saúde, deduzidos os encargos previdenciários da União, os serviços da dívida e
a parcela das despesas do Ministério financiada com recursos do Fundo de Combate à Erradicação da
Pobreza. § A demonstração da observância do limite mínimo previsto no § deste artigo dar-se-á no
encerramento do exercício financeiro de 2004.' (NR)."
38
É ler a ementa do julgado: “Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. A questão da
legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário em tema de implementação
de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da
Jurisdição Constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal. Inoponibilidade do núcleo
consubstanciador do ‘mínimo existencial’. Viabilidade instrumental da argüição de descumprimento no
processo de concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração)”.
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norma e realidade.
Arrimado no julgamento da ADPF n.º 45 há decisões no Supremo reconhecendo o
dever de o Poder Público, notadamente dos Municípios, garantir acesso e atendimento
às crianças de até seis anos em creches e unidades de pré-escola.
39
Da ementa do
acórdão proferido no julgamento do RE-AgR 410715 extrai-se:
(...) Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa
de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder
Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas
hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas
implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em
descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter
mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e
culturais impregnados de estatura constitucional. (grifou-se)
Também a corte assegurou a portador do vírus HIV medicamento gratuito do
Estado.
40
Por que não levar a efeito o direito à moradia ou à prestação de serviço hospitalar
de qualidade? Não se encontram, de igual modo, definidos na Constituição? Não
consubstanciam núcleo do mínimo existencial? E o que dizer do entendimento da Corte
no sentido de que o “o artigo 7º, IV (...) da Constituição se refere à remuneração total
recebida pelo servidor em atividade e não apenas ao vencimento-base”,
41
permitindo
que Estados e Municípios, por conveniências financeiras, paguem a seus agentes
remuneração-base menor que um salário mínimo?
Concorde-se ou não com a orientação do Supremo Tribunal Federal em cada um
39
RE-AGR 410715, STF, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 03/02/2006.
40
Confira o seguinte excerto da ementa do RE-AgR 271286, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma,
DJ 24/11/2000: “(...) O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível
assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem
jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder
Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a
garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à
assistência farmacêutica e médico-hospitalar. (...) O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da
Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a
organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional
inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela
coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto
irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. (...)
O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a
pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, efetividade a preceitos
fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu
alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas
que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial
dignidade. Precedentes do STF”.
41
RE-ED 455137 / RN, STF, Segunda Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 16/06/2006.
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desses julgados, impossível é enjeitar a realidade da disputa de preferências neles
instaurada ou afiançar que o Judiciário, especialmente o Supremo, sempre se
manifestará na direção dos anseios emancipatórios da comunidade. Ao menos nesse
ponto, com efeito, têm razão Griffin e aqueles que, de acordo com as ponderações
críticas indicadas por Gargarella, sustentam que nem sempre os tribunais constitucionais
atuam num sentido protetor e promotor de direitos.
Ilustrativa, a propósito, a experiência norte-americana da legislação do trabalho
infantil, na primeira metade do século XX.
42
Em 1916 o Presidente Woodrow Wilson promulgou lei que proibia fossem
empregadas crianças na fabricação de produtos destinados ao comércio. Fundamentou-
se no dispositivo da Constituição que trata do poder de comércio inter-estadual.
Segundo Griffin, o diploma havia sido bem recebido na sociedade, encontrando apoio
dos partidos democrata e republicano na House of Representatives e no Senado.
Algumas indústrias do Sul dos Estados Unidos, que se utilizavam da mão de obra
infantil, levaram o caso à Suprema Corte que, em Hammer v. Dagenhart, declarou, por
cinco votos a quatro, a inconstitucionalidade da legislação. De acordo com o Tribunal,
ultrapassou a legislação a fronteira do poder de comércio inter-estadual.
A decisão veio a ser objeto de difundida crítica na imprensa. Sem questionar, no
entanto, que à Corte incumbia a última palavra em matéria de interpretação
constitucional, os defensores da lei contra o trabalho infantil mudaram de estratégia.
Voltaram-se, para obstar a exploração de crianças, ao âmbito tributário. Em 1919, com
efeito, o Congresso aprovou lei que impunha carga tributária mais elevada aos produtos
originados do trabalho infantil. A Suprema Corte, movida mais uma vez pelos
industriais dos Estados do Sul, tendo em vista que a Emenda n.º 10 obstaria a utilização
pelo Congresso do poder de tributar para implementar medidas que não poderiam ser
efetivadas em regulação direta da atividade econômica, julgou, em Bailey v. Drexel
Furnitue Co., por oito votos a um, inconstitucional o tributo.
Nos anos que se seguiram os defensores do diploma tentaram aprovar emenda
42
Segue-se adiante a narração do caso que se encontra em GRIFFIN, Stephen M. American
Constitucionalism: from theory to politics. Princeton: Princeton University Press, 1996, pp. 88-89. No
contexto atual de exceção são bastante interessantes os julgados concernentes à suspensão do habeas
corpus e à prisão em Guantánamo. Sobre o tema confira-se FISS, Owen. The war against terrorism and
the Rule of Law. In Oxford Journal of Legal Studies, v. 26, n.º 02, 2006, pp. 235-256. No cenário alemão,
vale referir o caso da legislação de segurança aérea, que permitia o abate de aviões em situações de
emergência e do “data screeningo of Muslim Sleepers”. Cf. KETT-STRAUB, Gabriele. Data screnning
of muslim sleepers unconstitutional. German Law Journal, n.º 11, nov. 2006. Disponível em <www.
germanlawjournal.com./article.php?id=770>. Acesso em: 08 dezembro 2006.
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constitucional que conferisse ao Congresso poderes para regular o trabalho de crianças.
Não obtiveram, contudo, o quorum de Estados que exige a rígida disciplina do poder de
revisão na Constituição norte-americana.
Somente em 1938, após as “ameaças” do Presidente Roosevelt de alterar a
composição da Suprema Corte, é que se veio a julgar constitucional, em United States v.
Darby Lumber Co., a proibição do trabalho infantil inserida no Fair Labor Standards
Act, editado no mesmo ano.
Bastante interessante e bem mais recente o reconhecimento, pelo Supremo
Tribunal da Argentina, da constitucionalidade da medida que restringiu, por causa da
crise econômico-financeira que assolou o país no início do século, o saque dos
depósitos bancários e estabeleceu a conversão, em pesos, dos depósitos efetuados em
moeda estrangeira (o corralito).
O tribunal, não sem desconsiderar os vícios de constitucionalidade indicados no
voto da Ministra Carmen M. Argay (não observância do procedimento legislativo de
urgência da constituição; violação do art. 17 da constituição, tendo em vista que atinge a
substância da garantia fundamental nele disposta; desnecessidade, ante as
peculiaridades do caso, de se afastar o processo legislativo comum; inaceitabilidade da
ratificação do Congresso três anos após expedição do decreto), manifestou-se no sentido
da constitucionalidade dos diplomas regulamentadores do corralito, notadamente o
decreto 214/02. Prevaleceu, na hipótese, argumentos pragmáticos que destacaram a
necessidade de se evitar uma eventual agravação da crise que, agora, já se mostrava
controlada e em via de superação.
Segundo o Ministro Carlos Fayt, a corte, afastando divergências individuais,
chegou a “una decisión consensuada entre los minisros” e, embora haja reconhecido o
direito de o autor ver devolvido o seu depósito em moeda estrangeira “convertido en
pesos a la relación de $ 1,40 por cada dólar estadunidense, ajustado por el CER hasta el
momento de su pago, más la aplicación sobre el monto así obtenido de interesses a la
tasa de 4% anual no capitalizable (...)”, deliberou sobre a constitucionalidade da
legislação de urgência, tendo em conta, de modo especial, a necessidade de se “ponderar
las consecuencias que derivan de las decisiones judiciales”.
Prevaleceu, aqui, a preservação da norma, com alguns ajustes, considerando-se a
dimensão da situação de emergência vivenciada na Argentina no início do século XXI e
o fato de as medidas tomadas estarem se mostrando eficazes. O tribunal constitucional
apenas chancelou, com temperos, a solução formulado pelo Executivo sem obedecer, ao
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que tudo indica, às formalidades e limitações impostas pelo texto constitucional.
Nada disso obstante, ainda que os exemplos deixem claro o haver garantia de
que os tribunais constitucionais atuem num sentido emancipatório, o discurso jurídico
das últimas décadas, sob a teoria constitucional pós-45, quer na perspectiva liberal quer
na comunitária ou deliberativa, direciona-se no sentido de que se deve buscar nos
tribunais, com arrimo na normatividade autônoma da constituição, promover as
demandas sociais não atendidas pelas vias da representação política no Legislativo e no
Executivo.
43
Resta ver, embora em seus traços mais amplos, como a categoria da exceção
permanente ingressaria no debate.
Ao traçar o marco da exceção permanente enfatizou-se como a normatividade do
direito e, por conseguinte, na forma de uma metonímia, da constituição, se apresenta. A
exceção aponta no sentido de uma zona de indiscernibilidade entre fato e norma, de
modo que se concluiu não haver, no sentido formulado pela teoria pós-45, uma força
normativa ou força ativa autônoma.
Se, na linha da abordagem da teoria pós-1945, pode-se sustentar posição
semelhante àquela de Canotilho em texto apresentado por ocasião do XX aniversário do
Tribunal Constitucional de Portugal no sentido de que uma das principais razões para a
atuação política dos tribunais deriva do avanço da normatizão/jurisdização de
conteúdos políticos
44
, sob as lentes da categoria da exceção permanente, reestruturada a
normatividade, encontrar-se-ia à primeira vista mitigada a intervenção dos tribunais.
Não é essa, entretanto, a melhor leitura. Sob a categoria da exceção permanente tem-se
conseqüência distinta, talvez mais complexa: reduzida a normatividade autônoma, tende
43
Nesse sentido o seguinte excerto extraído de MELLO, Cláudio Ar, 2004, p. 190-192: “Mark Van
Hoeck sustenta, ao meu ver com toda razão, que a legitimidade democrática da jurisdição constitucional
está fundada na comunicação deliberativa que se forma entre os demais poderes do Estado, o próprio
poder Judiciário e a sociedade em geral (...) O processo judicial, pela sua própria natureza forma ‘círculos
comunicativos’ (communicative circles) em escala crescente de deliberação pública, desde o círculo que
envolve apenas as partes e o juiz do caso concreto, passando pelo círculo que incorpora no diálogo os
tribunais superiores (...) e depois, eventualmente, a doutrina, até círculos comunicativos que atraem o
interesse da mídia e são discutidos pela opinião pública, e que podem envolver os poderes legislativo e
executivo e até a sociedade como um todo. (...) Por fim, as decisões do poder Judiciário respondem a um
requisito fundamental de legitimidade democrática, que consiste na racionalidade das discussões e
decisões públicas.” Ver também BELLO, Enzo. Neoconstitucionalismo, democracia deliberativa e a
atuação do STF. In Ribas Vieira, José (Org.). Perspectivas da Teoria Constitucional Contemporânea. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, no prelo; SOUZA JÚNIOR, A. U. de. O Supremo Tribunal Federal e as
questões políticas, 2004.
44
CANOTILHO, J. J. Gomes. Tribunal Constitucional, jurisprudências e políticas públicas. XX
Aniversário do Tribunal Constitucional, 28 de novembro de 2003. Disponível no endereço eletrônico
<www.tribunalconstitucional.pt/tc/textos030102.html>.
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a aumentar a atuação política dos tribunais.
Na medida em que se passar a reconhecer a fragilidade da força normativa
autônoma das constituições e se assumir sua plena conexão com a moral e,
notadamente, com a política, retirar-se-á o véu que obsta seja o discurso jurídico-
constitucional entendido como manifestação de interesses e valores numa lógica de
constante luta de e por poder atual e em potência, permitindo ver a ação dos tribunais
constitucionais na sua complexidade social, econômica, política e jurídica.
Sob o marco da exceção permanente a constituição é concebida como instrumento
político-jurídico objeto de constante construção e defesa por parte daqueles que com ela
interagem, decorrendo sua eficácia do permanente mover de lutas e embates que lhe
conferem certo sentido normativo e definidor de condutas. Os tribunais constitucionais,
dessa sorte, refletirão os embates que definem, constantemente, o próprio sentido da
constituição, podendo ou não se apresentar como órgão de emancipação, promotor e
guardião de direitos. A proteção de minorias ou de direitos e liberdades básicas não lhe
é intrínseca – varia, por exemplo, com composição do tribunbal, com a ideologia
seguida por seus membros, com o grau de autonomia que lhe é conferido no
ordenamento jurídico, etc. Estará o tribunal, por vezes, longe de se idenficar com
alguma espécie de vontade popular soberana contida na constituição.
Não suprem os tribunais, além disso, déficits de outros órgãos de representação
democrática, apresentando, eles mesmos, deficiências. E mais, a maneira de julgar e os
seus procedimentos ainda que assegurem relativa racionalidade técnica, não promovem,
necessariamente, entendimentos comunicativos e bases de integração social solidárias.
Esses são resultados que, acaso obtidos, afiguram-se meramente contingentes.
Na maior parte das vezes, sob a categoria exceção permanente, restará
evidenciado, em crítica, que os tribunais têm assumido, neste início de milênio, postura
pragmático-conseqüencialista em seus julgamentos.
45
Por postura pragmático-conseqüencialista entenda-se a primazia, nos fundamentos
da decisão, de argumentos e critérios de eficiência, utilidade, segurança, conveniência,
oportunidade ou governabilidade. Trata-se, em ntese, segundo Posner, de focalizar os
resultados práticos das decisões.
46
Esclarece Oscar Vilhena Vieira, arrimado na
distinção weberiana entre ética de princípios e ética de resultados, que a decisão
45
Nesse sentido: VIEIRA, J. R. (Org.) ; DUARTE, Fernanda (Org.) ; CAMARGO, Margarida Maria
Lacombe (Org.) ; GOMES, Maria Paulina (Org.) . Os direitos à honra e à imagem pelo Supremo Tribunal
Federal - laboratório de análise jurisprudencial . Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
46
POSNER, R. A., A Political Court, 2005.
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133
conseqüencialista é aquela que confere maior peso aos referidos critérios de “eficiência,
utilidade, conveniência, oportunidade, segurança ou governabilidade, do que à própria
normatividade (...)”.
47
Canotilho, em texto citado,
48
destaca a existência de quatro espécies de
jurisprudência quatro jurisprudências (pragmatismo, principialismo, contextualismo e
precedentalismo) – sustentando que a postura pragmática, algumas vezes preponderante
no Tribunal Constitucional português, reduz a complexidade do político e da política de
duas formas: (i) pela rejeição ou prudência quanto à utilização das grandes teorias; (ii)
pela parcimônia na abordagem dos problemas metodológicos de
interpretação/concretização das normas constitucionais.
Acrescenta Canotilho, seguindo Richard Posner, que o pragmatismo leva à duas
maneiras de autocontenção: (i) coloca “entre parênteses os fundamentos ou concepções
teóricas eventualmente antagônicas sempre que isso perturbe a sua autonomia de juízo;
(ii) busca uma solução prática, “operacional, aceitável e creditável para o problema
constitucional concreto – e apenas para este.
Na exceção permanente destruída, senão reconfigurada, a normatividade
constitucional autônoma a tendência a decisões pramáticas não de revelar adesão
ao pragmatismo. Trata, antes, de uma postura crítica, acentuando o fato de a perspectiva
pragmática deixar transparecer, por vezes, as motivações políticas que subjazem em
questões que alguns acreditam meramente jurídicas.
Inspirados no marco da exceção permanente é possível arriscar, ainda, conclusão
no sentido de que nem mesmo aquelas decisões voltadas a um suposto principialismo, a
uma ética de princípios, escapam à politização e à necessidade de se redimensionar, no
âmbito jurídico-constitucional, o poder. Os argumentos principiológicos, atados à força
normativa autônoma da constituição, não fazem senão, na perspectiva da exceção
permanente, escamotear, com algumas limitações postas pela linguagem do direito, o
mover das lutas e embates que caracterizam a constituição.
Quanto à compatibilidade do controle realizado pelos tribunais constitucionais
com o regime democrático, embora não se tenha aqui buscado desenvolver espécie
alguma de teoria democrática sob a categoria exceção permanente, é possível asseverar
que a exceção permanente aponta no sentido da valorização de um regime que: (i)
47
VIEIRA, O. V., Supremo Tribunal Federal: jurisprudência política, 2002.
48
CANOTILHO, J. J. Gomes. Tribunal Constitucional, jurisprudências e políticas públicas. XX
Aniversário do Tribunal Constitucional, 28 de novembro de 2003. Disponível no endereço eletrônico
<www.tribunalconstitucional.pt/tc/textos030102.html>
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ponha o homem como sujeito criador do aparelho de autoridade coletivo e que precisa
agir no mundo para fazer valer interesses seus e do grupo ao qual pertença; (ii) viabilize
maneiras de se abrir, constantemente, oportunidades reais de igualdade e de participação
daqueles que se vêem excluídos ou derrotados nas articulações de poder que
determinam as inclusões da vida no direito; (iii) não se restrinja à regra da maioria,
porquanto reconhece posições de domínio exercidas, na maior parte das vezes, por
falsas maiorias, em minoriais de classe e de feição elitista e (iv) proteja direitos
fundamentais civis, políticos, sócio-econômicos e ambientais como única maneira de
assegurar o exercício livre da potência humana criativa e sua ação.
Em linha de princípio, portanto, os tribunais constitucionais serviriam como uma
das possíveis arenas de luta para a determinação da constituição, nenhuma garantia
havendo de que eventual ativismo venha a ser ou não emancipatório. Cumpririam a
função, num sistema democrático com as características acima indicadas, de mais um
instrumento institucional na complexa realidade político-jurídica de implementação dos
direitos fundamentais necessários à garantia da potência criativa da ação humana sem,
contudo, apresentarem-se como seus únicos defensores e mecanismos de atuação.
Essa visão dinâmica da atuação dos tribunais constitucionais consubstancia
contribuição importante do marco da exceção permanente, lançando luz às crescentes
análises de tendências jurisprudenciais.
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6
Conclusão
Ao longo da dissertação sustentamos ser a exceção permanente categoria
adequada à compreensão e ao desenvolvimento da teoria constitucional do início do
século XXI.
Atentou-se, no capítulo segundo, para a articulação dinâmica de alguns temas da
teoria constitucional (constituição, direitos fundamentais, hermenêutica/interpretação,
tribunais constitucionais) e para a análise de textos de autores que, no âmbito da
tradição romano-germânica, destacaram-se na construção da teoria pós-1945 e serviram
de referência à sua internalização no Brasil, a fim de deixar claro que a perspectiva
teórica pós-1945 tem por pressuposto, na linha do constitucionalismo clássico, a crença
em uma específica ou autônoma normatividade da constituição.
Realidade e norma, aí, encontram-se em relação de reciprocidade: contextualiza-
se a constituição e se assenta o dado normativo sobre uma base fática. Pode-se dizer, em
linhas gerais, que a normatividade autônoma apenas caminha ao lado da realidade e
com ela mantém constante troca.
Novos tempos, todavia, sinalizam a crise desse pressuposto. Num cenário político
e econômico global-nacional gerador de dominação, propagador de violência e contrário
à criatividade constituinte do ser humano, que revela características semelhantes àquelas
encontradas em estados de exceção, emergência ou sítio da primeira metade do século
XX, nos quais os preceitos fixados na ordem jurídica, embora vigentes, não são
efetivados e em que se reafirma a lógica da insuficiência do regime democrático, a
capacidade de a constituição regular a vida é, sem dúvida, ameaçada.
Vivemos, hoje, uma situação de exceção permanente que, conforme desenvolvido
no capítulo terceiro, pode ser sintetizada pelas noções de globalização, risco, estado de
guerra, Império e neoliberalismo: um contexto planetário, dominado pela lógica da
incerteza e da insegurança, bem como pela difusão de políticas conservadoras e
contrárias à capacidade criativa humana. Unidos os conceitos, tem-se um contexto que
desafia a capacidade reguladora da constituição na sua atual configuração normativa
autônoma, indicando ser necessária sua reestruturação para abrir maior espaço a uma
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dimensão não-juridicializada e à política ou, pelo menos, a uma perspectiva que não
atribua ao jurídico-constitucional a potência emancipatória que lhe tem conferido a
teoria pós-1945.
Nada melhor, então, do que buscar na idéia mesma de exceção adjetivada, nos
últimos tempos, pela permanência categoria capaz de contribuir para o entendimento
do fenômeno jurídico-político, em especial, do direito constitucional.
Características quer da situação quer da categoria exceção permanente
transparecem se observadas, ainda que de maneira bastante resumida, à experiência de
crise na República de Weimar e o ressurgir do discurso emergencial (ou de exceção)
nos Estados Unidos da América pós-09/11. É o que se fez no capítulo quarto,
indicando-se, a título exemplificativo, as seguintes: (i) paradoxos referentes à
perspectiva normativa construída nas sociedades capitalistas do Ocidente associados a
uma maior influência da decisão política, (ii) contexto globalizado, em que se vêem
reestruturadas as relações de poder em escala mundial, (iii) exploração, numa sociedade
de risco, da sensação de insegurança e de medo para viabilizar a (iv) instituição de um
governo forte e centralizado, expandindo-se a atuação do Executivo sob o alegado
objetivo de garantir a continuidade ou “salvar” as democracias constitucionais, (v)
alteração e até a suspensão de direitos e liberdades a fim de assegurar a manutenção do
regime democrático, (vi) déficit de representação e participação popular na formação da
vontade política dos Estados.
Acrescente-se o fato de o freqüente apelo da teoria constitucional pós-1945 à ação
jurídica se harmonizar com uma aparente preferência do neoliberalismo de levar os
debates políticos, em especial aqueles de relevância econômica, ao Judiciário e ao
Executivo, esquivando-se dos mecanismos e processos de deliberação democrática
exigidos no momento de se criarem as normas. Uma revalorização normativa de caráter
bastante inteligente e aceitável, ainda que expresse feições emancipatórias em questões
identitárias, para, em regimes democráticos, administrar-se, com alguma
previsibilidade, a dominação.
Ainda no capítulo quarto se desenvolveu, alinhado a um discurso de ruptura de
registro paradigmático, a categoria da exceção permanente.
O elemento antropológico, o humano, não é nela invocado como um absoluto
transcendente nem como um ser cuja razão é capaz de tudo controlar e subjugar
também o elemento epistemológico. Reconhece-se pela categoria da exceção, em vez
disso, que a pessoa humana é caracterizada por fragilidades, por destrutividade e, ao
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mesmo tempo, pela capacidade de criar e inovar a construção do mundo. O indivíduo, o
sujeito, não é substituído por uma perspectiva organicista, um ser coletivo, mas
preservado de maneira que não se estabeleça exclusivamente sobre ele a construção da
vida comum. Orienta-se a categoria da exceção permanente pela problemática da
subjetividade e das ingerências sobre sua formação, ampliando-se a visão da igualdade
de molde a abarcar exigências de distribuição econômica e de composições identitárias.
O universo do ‘ser’ a ontologia revela, na exceção permanente, encontrarem-
se imbricados aspectos naturais e culturais. Compartilhamos um mundo híbrido que, ao
mesmo tempo, é objeto de percepções culturais, julgamentos de moral, política e
tecnologia, e expressão da natureza. Um mundo complexo e ambivalente. O ‘ser’ se
expressa como um vir-a-ser. determinações e limites naturais, diretivas fixas que,
nesse único sentido, são universais; a realização, a concretização dessas linhas de força
determinadas, contudo, está aberta, passível de construção, destruição e/ou reconstrução
no âmbito da cultura. A realização dessas linhas de força ou virtualidades é mediada
pela potência criativa do ser humano na política, na economia, no direito, etc. E a
consciência disso faz, na perspectiva da exceção, revalorizar a responsabilidade, a
decisão e, por sua vez, a política.
A exceção permanente como categoria encontra ponto de partida na doutrina da
exceção sustentada por Carl Schmtti e é consolidada na formulação de Giorgio
Agamben, que, em apertada sintese, inspirado em Walter Benjamin, postula ser a
exceção, o momento político originário, um espaço vazio. Seguindo Agamben,
conforme se explicitou no capítulo quarto, o bando seria a relação política originária,
que nasce na zona da exceção. A soberania atua sobre a produção da vida nua. Ao
sujeito que recebe o impacto do poder e lança luz sobre o entendimento desse momento
formativo da exceção e do bando é representado pelo homo saccer. O campo de
concentração funcionaria como um paradigma da dominação biopolítica que,
atualmente, se alastra. O paradoxo é a chave lógica da soberania.
A relação entre norma e vida não é de simples reciprocidade, mas de imanência
ou de “imanência-recíproca”: o dado normativo não é autônomo, estando, como numa
linha paralela, em mera correspondência com a realidade. Em vez disso, a realidade é,
além de sua parte integrante, por ele também integrada, de modo que compõe um
espaço de indiscernibilidade a exigir o exercício de uma violência pura, criadora, capaz
de se viabilizar por meios não-jurídicos de entendimento.
A normatividade constitucional à luz da categoria da exceção permanente trata da
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criação/inscrição do âmbito de sua própria referência na vida real, de modo que a
própria distinção entre normatividade e realidade, de tal maneira estão jungidos norma e
vida, perde sua razão de ser, emergindo espaços de solução de conflito não
juridicizados, únicos em que se poderia alcançar, realmente, uma não violência.
A normatividade autônoma pós-1945, portanto, revelaria hoje, na sua estrutura, a
característica que Zizek, acompanhando Alain Badiou, atribui ao século XX: a paixão
pelo real. Pretende manter contato pleno com a realidade, mas, ao enfrentá-la, manifesta
certa repugnância pelo que está diante de si e se isola na mera reciprocidade. Almeja
emancipação, conquistas pela sua capacidade regente, mas, confrontado com o real,
transmuta-se em imobilidade.
A normatividade, nessa versão, como força ativa autônoma, outra coisa não é
senão a construção de um período histórico cada vez mais chocado pela realidade que
nele mesmo se produz. À maneira de um paradoxo, trata de uma ficção real: (i) o
núcleo duro do real consiste em saber que a constituição (metonímia contemporânea do
próprio direito), por si só, em nada afeta ou dirige a vida (e esse parece haver sido o
grande trauma da primeira metade do século XX e que ainda perdura); (ii) afigurando-se
insuportável a “descoberta”, transmuta-se, transfuncionaliza-se, esse dado real de modo
que a incapacidade regulatória da constituição é vista como ficção. Para simplificar o
percurso cria-se a idéia de força normativa da constituição ou, como preferimos, de
normatividade específica ou autônoma.
Algumas implicações da categoria da exceção pemanente foram apresentadas no
quinto capítulo.
De molde a alargar a estreita visão da teoria e da dogmática jurídico-
constitucional brasileira e a fomentar o estudo multidisciplinar do direito discorreu-se
sobre o cenário brasileiro à luz do renovado marco da exceção permanente, constatando
que (i) a acumulação capitalista estrutural originada da força do capital globalizado e
do próprio desenvolvimento do capitalismo nacional – (ii) o desrespeito a direitos
fundamentais, notadamente civis e sociais, (iii) o uso político-ideológico do sentimento
de medo e (iv) a centralização da função legislativa no Poder Executivo sintetizam, em
conjunto, a situação de exceção permanente no país.
Temas estruturais da teoria constitucional, além disso, foram objeto de atenção.
Sob a categoria da exceção permanente, a constituição se mostra como um
processo sócio-político-jurídico. Sua força depende do permanente mover de lutas e
embates que acabam por lhe conferir, então, certo sentido normativo e definidor de
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condutas.
Os direitos fundamentais, por sua vez, são manifestação de conquistas axiológicas
e deontológicas inscritas nas constituições ou nos costumes constitucionais de
determinado grupo. A tendência universalizante defendida nas perspectivas liberais e
deliberativas é, na exceção permanente, fruto da própria configuração do espaço e do
tempo no momento histórico atual, bem como de uma nova percepção da ontologia que
dissemos romper, ao analisarmos a noção de risco, com o dualismo natureza-cultura.
Pela exceção se mostra que avanços qualitativos no âmbito dos direitos humanos,
notadamente os sociais, não dependerão de atuações de ordem exclusivamente jurídicas.
Antes, de ações fora do direito que dele se utilizem instrumentalmente.
A hermenêutica constitucional, reduzida a importância do elemento normativo
autônomo, deverá, sem deixá-lo de lado, abrir maior espaço às disputas de poder e aos
elementos da realidade. Não os considerar, na linha do positivismo jurídico, como
elementos ou circunstâncias externas ao direito, mas, sob a categoria da exceção
permanente, por intermédio de técnicas argumentativas e de uma orientação do
aplicador de acordo com cenário político, às pressões de poder envolvidas na disputa
levada ao tribunal e suas convicções tratá-los como partes integrantes da estrutura
normativa mesmo: não como recursos de retórica ou de simples esclarecimento, mas
parte da prórpia norma que, vimos, está em constante processo de criação, destruição
e recriação.
A despeito de arrefecida a força ativa da constituição, sob a categoria da exceção
permanente os tribunais constitucionais, objeto de análise mais detida, tendem a
aumentar sua atuação política. Por intermédio da exceção permanente o discurso
jurídico-constitucional é assumido, em nível teórico, como manifestação de interesses e
valores numa lógica de constante luta de e por poder social atual e em potência. A ação
dos tribunais constitucionais passa a ser analisada no seu sentido eminentemente
político.
Refletirão os embates que definem, constantemente, o próprio sentido da
constituição, podendo ou não se apresentar como órgão de emancipação, promotor e
guardião de direitos. A proteção de minorias ou de direitos e liberdades básicas não lhe
é intrínseca – varia, por exemplo, com composição do tribunbal, com a ideologia
seguida por seus membros, com o grau de autonomia que lhe é conferido no
ordenamento jurídico, etc. Estará o tribunal, por vezes, longe de se idenficar com
alguma espécie de vontade popular soberana contida na constituição.
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Na maior parte das vezes, sob a categoria exceção permanente, restará
evidenciado que os tribunais assumem postura pragmático-conseqüencialista em seus
julgamentos. Por postura pragmático-conseqüencialista entenda-se a primazia, nos
fundamentos da decisão, de argumentos e critérios de eficiência, utilidade, segurança,
conveniência, oportunidade ou governabilidade, bem como a atitude de rejeição ou
prudência quanto à vinculação às grandes teorias jurídicas e a parcimônia na abordagem
dos problemas metodológicos de interpretação/concretização das normas
constitucionais.
Isso não de significar, contudo, que à luz da exceção permanente se adere ao
pragmatismo. O interesse em semelhante modo de decidir decorre do fato de nele se
tentar escamotear sem sucesso as motivações políticas que subjazem em questões
que alguns acreditam meramente jurídicas e econômicas.
Inspirados no marco da exceção permanente é possível inferir que nem mesmo
aquelas decisões voltadas a um suposto principialismo, a uma ética de princípios,
escapam à politização e à necessidade de se redimensionar, no âmbito jurídico-
constitucional, o poder. Sob a categoria da exceção permanente os argumentos
principiológicos, atados à força normativa, outra coisa não revelam senão formas que,
com algumas limitações postas pela linguagem do direito, objetivam forjar, mediante
constante construção e defesa por parte daqueles que com ela interagem, pelo
permanente mover de lutas e embates, uma constituição.
Concluiu-se, além do mais, não haver incompatibilidade entre o controle realizado
pelos tribunais constitucionais com o regime democrático. A exceção permanente
aponta no sentido da valorização de um regime que (i) ponha o homem como sujeito
criador do aparelho de autoridade coletivo e que precisa agir no mundo para fazer valer
interesses seus e do grupo em que se insere; (ii) viabilize maneiras de, constantemente,
abrir oportunidades reais de igualdade e de participação àqueles que se vêem excluídos
ou derrotados nas articulações de poder que determinam, principalmente pela função
legislativa, formas de inclusão da vida no direito; (iii) não se restrinja à regra da
maioria, porquanto reconhece posições de domínio exercidas, na maior parte das vezes,
por falsas maiorias, minorias de classe e de feição elitista e (iv) proteja direitos
fundamentais civis, políticos, sócio-econômicos e ambientais como única maneira de
assegurar o exercício livre da potência humana criativa e sua ação. Coaduna-se, dessa
sorte, não sem relevar suas peculiaridades, com o regime democrático.
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Os tribunais constitucionais consubstanciam arenas de luta para a determinação da
constituição, nenhuma garantia havendo de que eventual ativismo venha a ser
emancipatório ou desemancipatório. Cumpririam a função, num sistema democrático
com as características acima indicadas, de mais um instrumento institucional na
complexa realidade político-jurídica de implementação dos direitos fundamentais
necessários à criatividade e à ação humana sem, contudo, se apresentarem como seus
únicos defensores e mecanismos de atuação.
Sintetizado assim, em linhas amplas, o percurso seguido ao longo da pesquisa e
algumas de suas implicações mais imediatas no que toca aos quatro temas da teoria
constitucional aqui selecionados, resta pôr em destaque a contribuição da categoria da
exceção permanente para a elaboração e o desenvolvimento da teoria constitucional, a
contribuição, por assim dizer, “cognoscitiva” da categoria.
A exceção permanente, nesse aspecto, indica pelo menos três diretivas para a
teoria constitucional do século XXI, ainda que de modo introdutório: (i) reestruturação
da relação entre norma e realidade objeto principal, aqui, de nossos esforços; (ii)
valorização do processo histórica na compreensão do fenômeno político constitucional;
(iii) ampliação do espaço destinado ao agir político.
Quanto à relação entre norma e realidade, é ler as páginas e capítulos
antecedentes. Essa problemática foi objeto da dissertação em razão de ser ela, em nosso
modo de ver, que arrima e conduz as outras.
A valorização do processo histórico encontra na teoria pós-1945 seu ponto de
partida, como vimos no capítulo primeiro, notadamente em Zagrebelsky. Todavia, na
medida em que redimensionada a própria compreensão da tensão entre normatividade e
vida não se poderá ler, de igual maneira, a influência do dado histórico. Bem adverte
José Ribas Vieira:
Em razão mesmo da grandeza desse denso fluir histórico, ao qual a constituição de forma
constate defronta, não podemos, provavelmente, reduzir as fronteiras do atual
constitucionalismo somente a um esgotamento, por exemplo, do paradigma constitucional
pós-45, a uma única variável explicativa seja a de caráter valorativo ou de matriz
política.
1
Na óbvia referência pós-1945 o processo histórico é luz externa para a
compreensão do direito. Sob a categoria da exceção, em vez disso, por ele se sinaliza a
1
VIEIRA, J. R. (Org.), Perspectivas da teoria constitucional contemporânea, p. 199.
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insuficiência mesma das análises que se pretendem exclusivamente jurídicas no âmbito
da teoria constitucional.
A ampliação do espaço destinado ao agir político decorre de se reconhecer uma
zona de indiscernibilidade entre norma e realidade, em que não se afigura possível
inscrever no registro jurídico a totalidade do fenômeno político-constitucional. Trata-se,
grosso modo, de assumir que a emancipação perpassa, muito mais do que o âmbito de
um discurso único de direito, em específico de direito constitucional, nosso agir
político.
A atribuição de direitos, de uma cidadania jurídica, por mais desejável que possa
ser não é suficiente para viabilizar, qualitativamente, a emancipação e a conquista de
“novos” direitos, a exemplo dos intermináveis debates concernentes aos direitos
humanos sociais. É preciso explorar a violência pura benjaminiana, a potência
destrutiva e constituinte da multidão que se espalha pelo globo para alcançar ou manter,
em um nível que transcende a própria jurisdicidade, objetivos e conquistas que, em
determinado momento histórico, no discurso constitucional estrito, não se mostra
acessível.
É esperar, agora, que a tentativa de inserir uma nova categoria compreensiva da
situação exceção permanente deste início de milênio, ainda que não acolhidas as
ponderações aqui expostas, frutifique, mantendo acesos o pensamento crítico e o
sentimento de não conformação com os problemas e mazelas que afligem o Brasil e
mundo.
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