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Orlando Carlos Neves Belém
Do Foro Privilegiado à
Prerrogativa de Função
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Teoria do Estado e
Direito Constitucional da PUC-Rio como
requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Direito.
Orientadora: Profª Ana Lúcia de Lyra Tavares
Rio de Janeiro
julho de 2008.
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Orlando Carlos Neves Belém
Do Foro Privilegiado à
Prerrogativa de Função
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Teoria do Estado
e Direito Constitucional da PUC-Rio
como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Direito. Aprovada
pela comissão examinadora abaixo
assinada.
Profª. Ana Lúcia de Lyra Tavares
Orientadora
Departamento de Direito – PUC-RJ
Prof. Francisco Mauro Dias
Departamento de Direito – PUC-RJ
Prof. Humberto Dalla Bernardina de Pinho
Departamento de Direito – UERJ
Prof. Nizar Messari
Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de
Ciências Sociais – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 03 de julho de 2008.
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da Universidade, da autora
e da orientadora.
Orlando Carlos Neves Belém
Graduou-se em Bacharel em Direito no ano de 1987 pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro e ingressou no Ministério
Público do Estado do Rio de Janeiro no ano de 1991, no cargo de
Promotor de Justiça. Procurador de Justiça desde 2007. Foi
Professor de Direito Constitucional na Sociedade de Ensino
Superior Estácio de Sá, na Escola da Magistratura do Estado do Rio
de Janeiro - EMERJ, na Fundação Escola do Ministério Público -
FEMPERJ e no Curso Glioche.
.
Ficha Catalográfica
Belém, Orlando Carlos Neves.
. Do Privilegiado à Prerrogativa de Função / Orlando
Carlos Neves Belém; orientadora: Ana Lúcia de Lyra
Tavares. – Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Direito,
2008.
166 fls. 29cm
Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito.
Inclui referências bibliográficas.
1. Direito – Teses. 2. Privilégio. 3. prerrogativa de
função. 4. Princípio Republicano. 5. auto-organização. 6.
competência originária. I. Tavares, Ana Lúcia de Lyra, II.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Direito. III. Título.
CDD: 340
Agradecimentos
A minha orientadora, Professora Ana Lúcia de Lyra Tavares, o meu testemunho é
representado pela gratidão infinda da ajuda prestada e do saber partilhado. Muito
obrigado!
A todos os Professores integrantes do Programa de Pós-Graduação em Direito da
PUC-Rio, pela troca incessante de informações, o incentivo e a dedicação à frente
deste nobre ofício de divulgar idéias e pensamentos. Um destaque aos
Professores Adrian Sgarbi, Francisco Mauro Dias, Gustavo Senèchal de Goffredo
e José Ribas Vieira, porquanto, cada um, de um modo singular, contribuiu
bastante para esta jornada.
À Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro pelo auxílio indispensável e
efetivo.
Aos queridos e prestimosos Anderson e Carmen, considerando a ajuda prestada
pelos mesmos.
A Juliana de Lima Brandão pela paciência e ajuda diária na digitação deste texto.
Serei sempre grato!
A Maria Amélia Couto Carvalho, Denise Freitas Fabião Guasque e a Lázaro José
Freitas Calvino por trocarem impressões sobre o assunto e pela amizade.
Aos meus Pais, simplesmente, pela Vida que me proporcionaram. E, eternamente,
pelo carinho e amor devotados.
A Eliane (Naninha) por ser tudo para mim. Você me completa e como diz a
canção: “siempre está en mi corazón”.
Resumo
Belém, Orlando Carlos Neves; Tavares, Ana Lúcia de Lyra. Do Foro
Privilegiado à Prerrogativa de Função. Rio de Janeiro, 2008. 166 p.
Dissertação de Mestrado – Departamento de Direito. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
O privilégio desde a Antiguidade, quase sempre, esteve associado à função
judicante e, acima de tudo, legitimado sob o ponto de vista legislativo. Na
verdade, muitos foram os conflitos gerados pelas tentativas de manutenção ou de
extinção dos privilégios conferidos aos membros da Igreja e aos nobres. É
sustentável a afirmação de que o privilégio, por um lado, conheceu uma forte
restrição nos países orientados pela Common Law, um traço marcante desde a
Carta Magna de 1215, diferentemente do contexto em que se formou na Península
Ibérica, onde o mesmo, frequentemente, teve o seu embasamento normativo
autorizado nas Leis das Siete Partidas e nas Ordenações, inclusive, durante o
período da inquisição. A organização política daquela época, a rigor, foi baseada
em um sistema complexo das relações feudais, no caso, desconhecedora da
igualdade entre os membros do mesmo grupo social e que propiciava uma patente
superioridade do nobre e das pessoas associadas às funções mais importantes do
Reino. Evidentemente, em virtude do prolongamento destas situações de
desigualdade, o advento da Declaração de Direitos de Virgínia de 1776
consolidado com a emissão da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
da Revolução Francesa de 1789 exerceu, cada qual, uma forte contribuição para a
eliminação de toda a gama de privilégios existentes na esfera da sociedade, a par
de proclamar a idéia de valorização do ser humano sem retrocessos, Embora o
privilégio não guarde equivalência com a prerrogativa de função, não se pode
chegar ao exame do mesmo, sem antes pesquisar a sua tradição normativa, ou
seja, o sistema do qual fazia parte. Portanto, a paulatina rejeição dos privilégios
nos países influenciados pela Common Law resultou, nos dias atuais, na
inexistência do foro por prerrogativa de função, enquanto a natural leniência dos
países da Península Ibérica com a sua existência e aceitação, ao seu turno, deu
ensejo a um complexo padrão normativo, o qual se notabiliza pelo
estabelecimento do foro por prerrogativa de função em moldes exagerados e
desvirtuadores dos princípios formulados na Revolução Francesa e com o
surgimento das Constituições liberais. Seguimos com a análise e o
desenvolvimento do foro por prerrogativa de função no Brasil, para tanto tomando
como amparo as fontes normativas portuguesas e, ainda, a influência
constitucional americana, principalmente por ocasião da adoção do Princípio
Republicano entre 1889 a 1891, bem como as distorções causadas pela sua
extensão aos cargos públicos de menor importância na República brasileira e a
impossibilidade por demais evidente, de sua ampliação às causas cíveis fornecem
elementos concretos do caráter dinâmico do tema e das alternativas criadas em
cada constitucionalismo para inseri-lo nos respectivos domínios normativos.
Palavras-chave
Privilégio; prerrogativa de função; Princípio Republicano; auto-
organização; competência originária.
Résumé
Belém, Orlando Carlos Neves; Tavares, Ana Lúcia de Lyra. De privilège à
la prérogative attachées à certains fonctions. Rio de Janeiro, 2008. 166 p.
Mémoire de Maîtrise. Département de Droit. Université Pontificale de
Rio de Janeiro.
Dès l’Antiquité, le privilège de juridiction a presque toujours été associé à
la fonction judiciaire et surtout considéré légitime au point de vue législatif. A
vrai dire, les essais ayant en vue soit le maintien soit la supression des privilèges
octroyés aussi bien aux membres de l’Eglise qu’aux nobles ont déclenché de
nombreux conflits. Il est possible d’affirmer que le privilège de juridiction était
conçu de façon restrictive dans le pays issus du système de la Common Law,
notamment à partir de la Charte de 1215, différemment de ce qui se passa dans la
Péninsule Ibérique où les fondements normatifs du privilège étaient fournis par les
Lois des Siete Partidas et par Ordonnances, y compris pendant l`Inquisition.
L`organisation politique de cette époque-la était bâtie à partir d’un système
complexe de rapports féodaux. D’une part, elle méconnaissait l’égalité qui devrait
exister entre les membres du même groupe social et d’autre part elle favorisait une
nette supériorité des nobles ainsi que des personnes associées aux fonctions les
plus hautes du Royaume. Certes, en raison de la durée de ce cadre inégalitaire, la
Déclaration des Droits de Virginie de 1776, la Révolution Française de 1789 et la
Déclaration de Droits de l`Homme et du Citoyen de la même année ont joué um
rôle décisif pour l’abolition de toutes sortes de privilèges existant dans la societé
en proclamant en outre l`idée de la mise en valeur de la personne humaine à être
poursuivie de façon irréversible. Quoique le privilège de juridiction n`équivaut
pas à la prérogative de fonction, on ne peut pas l`étudier sans entreprendre
d’abord l’examen de sa tradition juridique, c`est à dire, du système de droit auquel
il appartenait. On peut donc constater que le rejet graduel des privilèges dans le
pays appartenant au système de la Common Law a fait que de nos jours inexiste
dans ces pays le privilège de juridiction tandis qu’une situation distincte se dégage
dans le pays ibériques. Dans ceux-ci, la tolérance à l`égard des privilèges a créé
un cadre normatif complexe dans lequel le privilège de juridiction est reconnu de
façon exagérée, défigurant la notion même d’égalité proclamée par la Révolution
Française et reprise par les Constitutios de la démocratie liberalé. Après avoir
remonté aux racines générales du sujet, nous avons poursuivi notre étude en
examinant la prérogative de fonction au Brésil à partir des sources normatives
portugaises, en passant par l’influence constitutionnelle du droit américan,
notamment lors de l’adoption du principe républicain, entre 1889 et 1891. Nous
nous penchons également sur les distorsions entraînées par l`octroi de ce
privilège, dans notre République, à certaines fonctions d`importance mineure. De
même, nous examinons l’impossibilité de l’étendre aux affaires civiles. Ces
aspects, entre autres, traduisente la nature dynamique du thème et les voies
distinctes de son traitement au niveau des systèmes constitutionnels.
Mots-clés:
Privilège de juridiction, prérogative de fonciont; príncipe républicain; auto-
organisation; compétence juridictionnelle en premier ressort.
Sumário
1.Introdução 10
1.1 Objetivo da dissertação 10
1.2. Plano de exposição e justificação 12
1.3. Método
17
2. Retrospectiva e considerações sobre o privilégio na história 20
2.1. Grécia: Privilégio no âmbito da justiça e dos cidadãos,
Roma: O privilégio e a sua inclusão na vida política (esfera
pública) e os Hebreus: O privilégio correlacionado aos
intérpretes das Escrituras Sagradas
21
2.2. O Privilégio no Período da Civilização Ocidental Medieval
e Moderna
31
2.2.1. O Período Bizantino e a influência do modelo Romano
quanto ao privilégio
31
2.2.2. Abordagem dos privilégios dos clérigos na Europa e os
embates mantidos entre a Igreja e os monarcas
33
2.2.2.1. Constituições de Clarendon. Conflitos entre a Igreja e
o monarca pela manutenção dos privilégios. Caso Thomas
Becket versus o monarca Inglês Henrique II. A extinção dos
privilégios da Igreja Católica Apostólica Romana na Inglaterra
e outros países da Europa
37
2.2.3. Exame do Privilégio na Espanha, Portugal e no Brasil
Colônia
55
2.2.3.1. Exame dos privilégios na Lei das Siete Partidas e nas
Ordenações
58
2.2.4. Privilégio dos agentes encarregados da Inquisição
(Séculos XV-XIX)
67
2.3. A contestação dos privilégios no constitucionalismo
americano e a herança política de Locke
72
2.4. Privilégios estabelecidos na corte francesa. A Revolução
Francesa, um momento histórico destinado à eliminação dos
privilégios da sociedade de corte francesa
75
3. Análise comparativa do foro por prerrogativa de função 83
3.1. A competência originária dos Tribunais nos Estados
Unidos e na Inglaterra. Países orientados pela Common Law
89
3.2. Foro por prerrogativa de função nos Países Ibéricos e a
estrutura dos Tribunais dotados de competência originária.
Assunto reservado à legislação infraconstitucional
94
3.3. Análise no plano Constitucional do Foro por prerrogativa
de função na Europa Ocidental. França e a criação da Corte
de Justiça da República. Alemanha e a competência da Corte
Constitucional
101
3.4. Natureza jurídica do foro por prerrogativa de função
105
4. A cultura do privilégio no Brasil 108
4.1. Análise dos Privilégios concedidos pela Coroa Portuguesa
aos Ingleses em território Português e no Brasil Colônia.
Atuação da Inglaterra na garantia de benesses aos súditos
ingleses
112
4.2. Constituição do Império de 1824, a instituição do Poder
Moderador, a abolição dos privilégios puramente pessoais e a
instituição dos privilégios de causa ou de foro. A manutenção
dos privilégios aos membros da Igreja no Decreto 609, de
18/08/1851
114
4.3. Instituição da República no Brasil e o foro por prerrogativa
de função
121
4.4. Evolução do foro por prerrogativa de função na
Constituição Federal de 1946 e nas Constituições Estaduais
promulgadas na vigência da mesma Carta Política.
Coronelismo uma forma representativa do exercício de um
privilégio odioso
127
4.5. Foro por prerrogativa de função na vigência da
Constituição de 1967 (EC n. 1 de 17-10-69) e o Ato
Institucional n. 5, de 18 de dezembro de 1968
130
4.6. Foro por prerrogativa de função na Constituição de 1988:
a inadmissibilidade da manutenção do julgamento às
autoridades não mais detentoras de cargo público e a
impossibilidade de extensão do foro por prerrogativa às ações
de improbidade da Lei n. 8.429/92
131
4.6.1. Foro por prerrogativa de função no plano municipal 134
4.6.2. Foro por prerrogativa de função e o exame na esfera da
Justiça Eleitoral
142
4.6.3. A competência originária do Superior Tribunal Militar 145
4.6.4. A autonomia dos Estados Federados e o foro por
prerrogativa de função
146
4.6.5. Crítica ao foro por prerrogativa de função anteriormente
definido em Medidas Provisórias
151
5.Conclusões
155
6.Referências bibliográficas 159
Lista de abreviaturas:
ADC – Ação Declaratória de Constitucionalidade
ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade
ADIn – Ação Direta de Inconstitucionalidade
C. de Cádiz – Constituição de Cádiz de 1812
C. do Imp. – Constituição do Império de 1824
CE – Constituição Espanhola
CERJ – Constituição do Estado do Rio de Janeiro
CF – Constituição Federal
CFr – Constituição Francesa
CClar. – Constituições de Clarendon
CP – Constituição Portuguesa
CPPB – Código de Processo Penal Brasileiro
CPPP – Código de Processo Penal Português
CRFB – Constituição da República Federativa do Brasil
DJ – Diário de Justiça
EC – Emenda Constitucional
HC – Habeas Corpus
INQ. – Inquérito
MC – Medida Cautelar
QO – Questão Originária
STJ – Superior Tribunal de Justiça
STF – Supremo Tribunal Federal
STM – Superior Tribunal Militar
TJRJ – Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
TRE – Tribunal Regional Eleitoral
TRF – Tribunal Regional Federal
TSE – Tribunal Superior Eleitoral
1
Introdução
1.1
Objetivo da Dissertação.
O propósito deste estudo é estabelecer uma abordagem acerca do foro por
prerrogativa de função no âmbito do sistema constitucional brasileiro e dos
principais fundamentos que orientaram a sua difusão. Em observância às
exigências inerentes ao estudo, procuramos enfatizar o debate dos aspectos mais
importantes que estão associados ao tema, para tanto rejeitando os clichês ou os
eventuais preconceitos que pudessem incidir sobre o assunto, notadamente, a
qualificação da prerrogativa como sinônimo de privilégio às autoridades políticas.
Na confecção deste trabalho, assim, recorremos a um exame comparativo de
algumas Constituições, cabendo advertir, no entanto, que a obra em questão não
tem a pretensão de constituir-se num ensaio de direito comparado.
A técnica comparativa de que se lançou mão aqui, na verdade, serve para
demonstrar que o foro por prerrogativa de função no constitucionalismo brasileiro
adquiriu feições próprias, ainda que parecido com os sistemas normativos dos
países Ibéricos, mas, acentuadamente diferente do padrão elaborado pelas famílias
jurídicas que tiveram inspiração na Common Law e, inclusive, com o modelo
constitucional criado na França após a Revolução Francesa.
Evidente, como será alvo de exposição no curso desta dissertação, a
impossibilidade de estabelecimento de qualquer traço comparativo da nossa noção
de foro por prerrogativa de função com as outras Constituições analisadas, em
razão do nosso contexto cultural, o qual rejeitou os padrões normativos
estrangeiros quanto ao assunto.
Consta dos objetivos deste trabalho, obrigatoriamente, a busca de um
embasamento histórico, no sentido de possibilitar um olhar específico de
11
privilégios relacionados às pessoas e às estruturas de poder existentes antes e
depois do advento da clássica tripartição das funções do Estado na formulação
concebida por MONTESQUIEU.
Ademais, procuramos demarcar que a prerrogativa de foro, tal como a
viemos conhecer, teve a sua origem firmada no Iluminismo e sob a égide de uma
República igualitária, tendo em vista a conversão dos privilégios em
prerrogativas, além de seu ingresso nos sistemas constitucionais liberais que se
formaram após a Revolução Francesa e de sua rejeição no sistema de origem
inglesa e no constitucionalismo americano.
Ao iniciar a obra, é importante enfatizar que dentre os propósitos desta
dissertação não se almeja o estabelecimento de questionamentos oriundos do foro
por prerrogativa de função no plano processual, embora se possa recorrer a uma
ou outra citação concernente à matéria para o enriquecimento e melhor
explicitação de alguns itens.
O estudo está submetido, primordialmente, ao exame do contexto
constitucional, animada por uma perspectiva federativa, em que a competência
normativa do assunto está constitucionalmente repartida entre duas entidades da
federação, sobretudo, no intuito de analisar o exercício da autonomia estadual –
capacidade política de auto-organização – materializada pelo surgimento das
Constituições estaduais após a Constituinte de 1988 e a possível intromissão
daquelas sobre o no plano da competência privativa em matéria processual
conferida à União.
Por isso mesmo, o limite constitucional das competências da União e dos
Estados federados em relação ao tema, necessariamente, foi objeto de
balizamento, em virtude do minucioso exame dos diversos acórdãos produzidos
no Supremo Tribunal Federal após a Carta Política de 1988.
O processo de escolha dos detentores do foro por prerrogativa de função e a
possibilidade da sua preservação após o término do mandato ou do exercício da
função pública – perpectuatio juridictionis – são representativos de uma afirmada
12
judicialização da política reservada ao assunto, o que nos impulsionou a proceder
ao exame jurisprudencial das referidas questões e a uma sucinta reflexão sobre as
relações de poder e, sobretudo, para a compreensão dos mecanismos que
estimulam a sociedade brasileira, ainda hoje, a sublinhar o foro por prerrogativa
de função com a noção de privilégio.
O trabalho pretende, deste modo, percorrer o processo histórico que
proporcionou os mecanismos para a transformação do privilégio em prerrogativa
de função e esta, a seu turno, num tema suscetível de críticas, as quais, no
constitucionalismo brasileiro atual, se orientam pela premência da sua revisão, a
extinção em determinadas hipóteses e a manutenção do que é absolutamente
necessário.
Enfim, é imperioso que se faça a distinção entre privilégio e o foro por
prerrogativa de função.
Mais importante, no entanto, é visualizar o momento em que o foro por
prerrogativa se convolou numa forma de proteção pessoal do agente político
envolvido com fatos dotados de relevância penal, deixando de servir ao modelo
Republicano, onde a garantia se presta a preservação do cargo público.
1.2.
Plano de Exposição e Justificação.
Uma vez estabelecidos os propósitos almejados com o estudo, afigura-se-
nos relevante à delimitação das fases históricas que integram a exposição do tema
foro por prerrogativa de função – e a sua efetiva justificativa.
A abordagem do privilégio e o seu desenvolvimento serão efetuados no
Capítulo I, seguindo uma ordem cronológica, no intuito de percorrer os mais
diversos períodos da história e os variados sistemas constitucionais que versaram
sobre o assunto.
13
O começo desta exposição fixará a observância do privilégio na fase grega
(ateniense), a partir da obra de PLATÃO
1
e, ainda, dos aspectos que se acham
presentes na República romana, ou seja, o denominado direito público romano,
particularmente, demarcando seu ingresso na denominada esfera pública, no caso,
já presente nas estruturas políticas existentes à época, verbi gratia, para os
detentores da função de julgar.
Com referência à Idade Média, alguns apontamentos serão efetuados para
que se demonstre a controvérsia existente entre os monarcas e a comunidade
senhorial, no sentido de terem a primazia na nomeação dos julgadores e a
concessão de privilégios aos exercentes das altas funções públicas que viessem a
ser julgados.
Trouxemos à baila, por isso mesmo, o debate e a substanciosa controvérsia
que se estabeleceram nas relações dos monarcas com a Igreja Católica nos séculos
XII e XIII, especialmente, a tentativa de predomínio da jurisdição secular, como
se infere das Constituições de Clarendon de 1164
2
editadas na Inglaterra, baseada
na autoridade real, substancialmente idêntica aos julgamentos efetuados pela
Igreja, isto é, impregnados de casuísmos
3
.
É indispensável, porém, a pesquisa do processo de afirmação da lei e o seu
papel limitador dos privilégios ocorrido na Idade Medieval, em especial na
Inglaterra, em virtude da edição de alguns textos que formam a chamada
Constituição Britânica, à medida que “o princípio da primazia da lei, a afirmação
de que todo poder político tem de ser legalmente limitado, é a maior contribuição
da Idade Média para a história do Constitucionalismo. Contudo, na Idade Média,
1
PLATÃO. As leis, ou da legislação ou Epinomis. Bauru: EDIPRO – Edições Profissionais Ltda.,
1999.
2
Conjunto de normas elaboradas pelo Monarca Inglês Henrique II para desautorizar a jurisdição
canônica sobre os ocupantes de altas funções no Reinado e para submeter os membros da Igreja
à jurisdição secular.
3
Ver sobre o tema GIRARD, René. A violência e o sagrado. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
1998, p. 36 ao salientar que: “Como não representa nenhum grupo particular, e como é apenas
ela mesma, a autoridade judiciária não depende de ninguém em particular, estando portanto a
serviço de todos, e todos se curvam diante de suas decisões. Somente o sistema judiciário não
hesita em golpear frontalmente a violência, pois possui um monopólio absoluto sobre a
vingança.Graças a este monopólio, ele consegue, normalmente, abafar a vingança ao invés de
exasperá-la, ao invés de alastrá-la e de multiplicá-la, o que este tipo de conduta inevitavelmente
provocaria em uma sociedade primitiva.”.
14
ele foi um simples princípio, muitas vezes pouco eficaz, porque faltava um
instituto legítimo que controlasse, baseando-se no direito, o exercício do poder
político e garantisse aos cidadãos o respeito à lei por parte dos órgãos de
governo.
4
.
Pertinente, outrossim, a fixação de pequenas considerações quanto ao
regramento dos privilégios no Estado Português, o que demanda uma análise
detida das Ordenações Portuguesas, a par da sua influência e aplicação na Justiça
do Brasil Colonial.
Concomitante à pesquisa das Ordenações Portuguesas, efetivaremos alguns
apontamentos acerca da aplicação do privilégio na coletânea normativa espanhola
das Siete Partidas, expondo, por conseguinte, as eventuais contradições e
semelhanças entre ambas.
Diante do quadro normativo existente na Península Ibérica e da forte
presença da Santa Inquisição na Idade Média e Moderna, entendemos conveniente
a efetivação de um curto detalhamento quanto às benesses conferidas na sua
vigência, a fim de permitir uma abordagem completa do tema.
No período contemporâneo, por conseguinte, vamos nos debruçar sobre as
Constituições que desempenharam papel restritivo ao poder real e à nobreza, cuja
materialização tomou formas definitivas no século XVIII, durante o ciclo
constitucional americano e francês, a despeito do período constitucionalista inglês
iniciado com a Magna Cartha Libertatum de 1215 e o Habeas Corpus Act de
1679.
A limitação ou a rejeição dos privilégios constituídos em favor de
determinadas ordens ou classes sociais não pode prescindir de uma análise da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, se considerarmos que “a lei
4
CERQUEIRA, Marcello. Cartas Constitucionais: Império, República & Autoritarismo: ensaio
crítica documentação, Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 13.
15
deve ser a mesma para todos, quer proteja, quer castigue
5
e da Constituição
Americana, uma vez que os citados documentos, inspirados pelas proposições
Iluministas, de fato contribuíram para a derrocada dos privilégios.
Faz parte do presente trabalho, ademais, uma visão sobre a assimilação dos
ideais Iluministas, republicanos e do primado da igualdade no direito espanhol e
português com o surgimento das Constituões Liberais Ibéricas de 1812 e 1822,
bem como, a influência desencadeada pelas mesmas na elaboração da nossa
Constituição do Império de 1824, que, em contrapartida, serviu de matriz à
Portuguesa de 1826
6
.
Encerro a construção histórica desta dissertação com o exame descritivo, no
particular, das Constituições brasileiras produzidas após a proclamação da
República, a fim de que seja possível a compreensão de todo o processo que
pontuou o disciplinamento do foro por prerrogativa de função em nosso sistema
político e jurídico.
No Capítulo II, em posse dos elementos anteriormente expostos, objetivo a
análise dos traços comparativos acerca da amplitude ou das limitações quanto à
escolha dos agentes públicos detentores do foro por prerrogativa de função nas
Constituições vigentes e que fazem parte desta pesquisa, no caso realçando o
balizamento de modelos constitucionais pertencentes a sistemas ou famílias
jurídicas diferentes.
A intenção, como se espera demonstrar, é a de acentuar as tendências de
cada uma delas, descrevendo suas incompatibilidades e as similitudes, com o
escopo de viabilizar a apresentação de um conceito e, portanto, a definição da sua
natureza jurídica da prerrogativa de função.
Esta análise comparativa ficará circunscrita ao constitucionalismo inglês,
americano, português, espanhol, francês e alemão, cujas tendências podem ser
5
CRUET, Jean. A Vida do Direito e a Inutilidade das Leis. 2ª ed. São Paulo: EDIJUR, 2003, p.
142.
6
Vide CAETANO, Marcelo. Direito Constitucional. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, volume 1,
1987, pp. 507-508.
16
reputadas como similares no seu âmbito, mas antagônicas com a estrutura
constitucional conferida no Brasil ao foro por prerrogativa de função.
Quanto ao Capítulo III, o mesmo está reservado ao estudo do
desenvolvimento do assunto no plano constitucional brasileiro de 1988, o qual
será efetuado em três seções.
Impõe-se, primeiramente, a investigação do foro por prerrogativa à luz da
competência privativa da União e dos limites traçados aos Estados Federados por
força da sua capacidade política de auto-organização (artigo 125, §1º da
Constituição de 1988).
As restrições e os critérios para o exercício do foro por prerrogativa de
função no plano da autonomia estadual fazem parte dos itens a serem
pesquisados, com a finalidade de que se reconheçam as variáveis propiciadas pela
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal nos últimos anos.
Cabe, portanto, buscar a perfeita distinção entre os limites da competência
privativa da União e da autonomia dos Estados-membros, posicionando, as
tendências jurisprudenciais do Supremo Tribunal Federal, que experimentaram
mudanças significativas acerca do tema, em especial:
a) - desde a concessão de uma total amplitude aos autores da Constituição
Estadual (artigo 11, caput, do ADCT da CF/88), no processo de escolha das
autoridades estaduais que receberiam o foro por prerrogativa de função;
b) – pesquisando o conceito de que a delimitação do foro por prerrogativa
estadual estaria atrelada a um sistema de total parametricidade, mediante a
escolha e a sua concessão aos agentes públicos análogos daqueles indicados na
Carta Política de 1988 – uma reprodução condicionada –; e,
c) a explícita restrição quanto à concessão do foro por prerrogativa de
função para determinados agentes públicos, levando-se em conta a natureza do
ofício ou do munus desempenhado.
17
Procuramos, num segundo momento, discutir a extensão da prerrogativa
em relação aos novos cargos públicos federais, o início e término da Súmula 394
do Supremo Tribunal Federal e a inepta tentativa de retorno da perpetuatio
juridictionis com a Lei n.º: 10.628, de 24/12/2002, cuja inconstitucionalidade foi
reconhecida.
Encerraremos o Capítulo III, mediante o exame das questões de difícil
equacionamento, as quais carecem de disciplinamento pelo legislador brasileiro,
no que diz respeito à extensão do foro por prerrogativa de função às demandas
relativas à improbidade administrativa (Lei n.º: 8.429, de 02/06/1992).
Os tópicos escolhidos no Capítulo III, desta forma, possibilitarão um exame
mais dinâmico do foro por prerrogativa de função, tendo em vista o confronto da
jurisprudência formulada pelo Supremo Tribunal Federal e outros Tribunais,
objetivando traçar uma perspectiva própria ao assunto, considerando os lados
reunidos nos Capítulos anteriores.
E, finalmente, procederemos à elaboração das conclusões referente à
dissertação, por exemplo, chamando a atenção para a tentativa do Poder
Legislativo impor um processo de ampliação da prerrogativa de função às ações
de improbidade, a crítica ao modelo adotado nas Constituições Estaduais e o
perigo de que as mudanças realizadas pelo Legislativo descaracterizem o instituto,
tomando-se como paradigma os padrões republicanos que influenciaram na
formação do modelo atual.
1.3
Método
O tema em apreço reclama uma variedade de procedimentos analíticos.
Esta abordagem diferenciada, portanto, induz a realização de uma pesquisa
composta dos seguintes gêneros: métodos que conduzem a uma incursão
histórica, comparativa, teórica e, ainda, análise jurisprudencial concernente ao
tema no Brasil.
18
A investigação histórica é primordial nesta tese e remonta à Antiguidade –
civilização grego-romana –, na idade média (Inglaterra), o período iluminista e ao
início da vida constitucional americana e européia, como também às primeiras
constituições brasileiras e o comportamento constitucional atual.
A avaliação histórica consistirá numa apreciação crítica do processo
histórico, o que demanda uma pesquisa comparativa, no intuito de confrontar os
diversos sistemas constitucionais, com isso, permitindo a formulação de quadros
de referência e o estudo teórico dos mesmos até o início da vida republicana
brasileira, no intuito de permitir a compreensão do tema quanto às suas origens e
uma mensuração da realidade social.
O confronto das “famílias de direito” – o sistema romano-germânico e a
common law – é de extrema relevância para fornecer um critério didático de apoio
ao estudo histórico e comparativo, principalmente, no intuito de demonstrar os
rumos tomados pelo foro por prerrogativa de função no Constitucionalismo
ibérico e os fundamentos da sua rejeição no Constitucionalismo americano e
inglês.
Empreendeu-se, ainda, uma pesquisa acerca do foro por prerrogativa de
função no constitucionalismo francês e na visão formulada pela Cour de Justice
de la Republiquequanto ao tema (vide nota de rodapé número 217), à medida que
a incorporação privilège de juridiction ao contexto constitucional para a
responsabilização penal dos membros do Governo ocorreu em passado recente,
especificamente, no ano de 1993.
Necessário, assim, a obtenção de dados quanto ao pensamento judicial
francês relativo ao privilège de juridiction na Cour de Cassation francesa, cujo
discurso de criação da Cour de Justice de la Republique em fevereiro de 1994
contribui, realmente, para o conhecimento do foro por prerrogativa na esfera
judicial francesa.
19
O exame da jurisprudência elaborada pelo Supremo Tribunal Federal e nos
Tribunais Estaduais pautou o estudo do foro por prerrogativa de função no
constitucionalismo brasileiro e, com isso, ajudou no conhecimento da
interpretação judicial sobre a instituição da prerrogativa de foro nas ações civis e
da sua ampliação na órbita do constitucional brasileira.
2
Retrospectiva e considerações sobre o privilégio na
história
Qualquer contato ou estudo que se venha estabelecer acerca do privilégio,
de certo, não pode abrir mão de uma retrospectiva que examine a sua criação e o
processo histórico que norteou a sua efetividade, notadamente, com a participação
ativa do Estado e da Igreja.
A investigação dos fatores que motivaram a paulatina modificação e a
diversidade quanto à abordagem do privilégio nos países influenciados pela
Common Law onde a cisão do Estado com a Igreja fomentou uma maior
resistência a sua existência, ao contrário, portanto, do conjunto de normas
elaboradas na Península Ibérica (Leis das Siete Partidas e das Ordenações) que
foram sublinhadas pela influência do Clero e, conseqüentemente, diversas
inserções nos textos normativos em favor do privilégio..
A análise deste contexto histórico, assim, ajuda na compreensão do perfil
adotado pelas primeiras Constituições liberais, as quais sob o signo do
republicanismo acabaram por repudiar o privilégio e fixaram o estabelecimento
das chamadas prerrogativas, permitindo concluir o porquê de o constitucionalismo
americano haver buscado outra vertente e consolidado uma visão normativa
discrepante.
Deste modo, sem a intenção de efetuar uma narrativa densa e
pormenorizada, é imprescindível a indicação dos passos mais importantes que
alicerçaram o surgimento do privilégio a determinados indivíduos até a sua
convolação em prerrogativa de função.
21
2.1
Grécia: Privilégio no âmbito da justiça e dos cidadãos, Roma: O
privilégio e a sua inclusão na vida política (esfera pública) e os
Hebreus: O privilégio correlacionado aos intérpretes das Escrituras
Sagradas.
Qualificar e definir a concessão do privilégio dentro um contexto histórico
para a introdução do tema concernente ao foro por prerrogativa de função, requer,
forçosamente, uma avaliação etimológica do mesmo, no intuito de identificar a
origem e a sua evolução histórica.
O vocábulo privilégio é oriundo do termo latino prïvilëgïum que
representava “lei ou medida tomada em favor de um particular” ou “lei
excepcional”
1
.
Ainda hoje, qualquer ato que corresponda à concessão de um privilégio é
indicativo de que uma vantagem foi dada a alguém em detrimento de outro, uma
permissão especial, ou seja, algo que subverte o direito comum
2
.
Praerogätïva é outro termo com origem na língua latina, o qual será
utilizado com freqüência em nosso estudo, cujo significado é a ação de votar em
primeiro lugar, ensejando o mesmo sentido do privilégio, pois servia para
designar uma prerrogativa que os centuriões
3
tinham para votarem antes de
qualquer classe
4
, tendo assim, a primeira escolha
5
.
Realmente, a associação da idéia de privilégio ou da prerrogativa como
situações exorbitantes do direito comum, de fato, encontrou na esfera pública
1
FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. Rio de Janeiro: FAE – Fundação de
Assistência ao Estudante, 1991, p. 439.
2
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa.
Curitiba: Positivo, 2004, p. 1632.
3
GIORDANI, Mário Curtis. História de Roma. 16ª ed. Petrópolis: Vozes, p. 101: “Quanto ao
funcionamento, as centúrias eqüestres perderam o direito de votar em primeiro lugar (o que lhes
possibilitava uma grande influência moral sobre o voto das seguintes centúrias), passando essa
prerrogativa para uma centúria escolhida por sorteio entre as componentes da primeira classe. A
centúria que votava, assim, em primeiro lugar, chamava-se centúria praerogativa.”
4
FARIA, Ernesto. op. cit., p. 433.
5
CÍCERO, Marco Túlio. Da República. São Paulo: EDIPRO, 1996, Livro 2º, item XXII, p. 55.
22
grega e romana perfeita sintonia, não se podendo negar que estavam relacionadas
à vida política e não ao contexto da esfera privada.
Desde cedo o privilégio ou prerrogativa amoldou-se na estrutura pública, o
que é exposto com clareza pela professora MARILENA CHAUÍ ao citar MOSES
FINLEY
6
para situar que a invenção da política competiu às sociedades grega e
romana, à medida que a palavra política é grega, no caso, representada pelo
vocábulo ta politika que, por sua vez, advém de polis.
Referido contexto foi devidamente explicitado por HABERMAS ao dar a
significação do sentido emprestado para “público” e “esfera pública” partindo da
premissa de que “tratam-se de categorias de origem grega que nos foram
transmitidas em sua versão romana. Na cidade-estado grega desenvolvida, a
esfera da pólis que é comum aos cidadãos livres (koiné) é rigorosamente
separada da esfera da oikos, que é particular a cada indivíduo (idia). A vida
pública, bios politikos, não é, no entanto, restrita a um local: o caráter público
constitui-se na conversação (lexis), que também pode assumir a forma de
conselho e de tribunal, bem como a de práxis comunitária (práxis), seja na
guerra, seja nos jogos guerreiros. (Para legislar, com freqüência são chamados
estrangeiros; legislar não pertence aí propriamente às tarefas públicas) ”.
7
Assim sendo, a criação da política e, obviamente, a inclusão dos privilégios
ou prerrogativas na esfera pública já se achava firmada na Grécia e em Roma
porque “a política nasceu ou foi inventada quando o poder público, por meio da
invenção do direito e da lei (isto é, a instituição dos tribunais) e da criação de
instituições públicas de deliberação e decisão (isto é, as assembléias e os
senados), foi separado das três autoridades tradicionais: a do poder privado ou
econômico do chefe de família, a do chefe militar e a do chefe religioso (figuras
6
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000, Unidade 8, Capítulo 7, p. 479-
480.
7
HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública. 2ª ed., Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2003, p. 15.
23
que, nos impérios antigos, estavam unificadas numa chefia única, a do rei ou
imperador)”.
8
Aliás, bem antes da formação das Cidades-Estados Gregas (Período
Homérico de 1100 a.C – 800 a.C, Arcaico 800 a.C – 500 a.C, Clássico 500 a.C –
338 a.C e Helenístico 338 a.C. – 275 a.C) , já se notavam algumas das benesses
ou vantagens estabelecidas nas sociedades antigas, as quais ficaram atreladas à
estrutura ou ao poder encarregado da função de julgar, como se deduz da
configuração do Estado no período neolítico
9
, na Idade Antiga, durante a dinastia
Amorrita que reunificou a Mesopotâmia, fundando o primeiro império
Babilônico, a par de editar o Código de Hamurabi (2067 – 2025 a.C.) e o Código
de Manu, na região da Índia (1300 – 800 a.C.)
10
, como também a exclusividade
do poder de interpretação da lei
11
a que se refere a Bíblia em prol de Moisés (que
viveu aproximadamente 1250 a.C.-1180 a.C.) e, por derradeiro, os sacerdotes
12
.
É interessante o raciocínio formulado por ESPINOSA quanto às distorções
cometidas pelo intérprete da lei quando o mesmo a realiza em proveito próprio,
obviamente, não produzindo entendimento ou conclusão que lhe seja
desfavorável, o que está descrito como um privilégio
13
, pois todos os que exercem
ou detêm o poder, sempre que cometem algum crime, procuram apresentá-lo
como se fosse um direito e persuadir o povo de que agiram honestamente, coisa
que conseguem com facilidade quando toda a interpretação do direito depende
unicamente deles. É evidente que, quando assim acontece, eles extraem do
8
CHAUÍ, Marilena. O Retorno do Teológico-Político. in CARDOSO, Sérgio (org). Retorno ao
Republicanismo. Belo Horizonte: UFMG, 2004, p. 113.
9
MORAES, Emanuel de. A Origem e as Transformações do Estado, Livro 1: Democracia e
Totalitarismo Originários: Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 144-147.
10
VIEIRA, Jair Lot. (Supervisão Editorial). Código de Hamurabi, Código de Manu excertos
(Livros oitavo e nono) e Lei das XII Tábuas. 2ª ed., São Paulo: EDIPRO, 2002.
11
Neste sentido, ver BARUCH DE ESPINOSA, no Tratado Teológico-Político. São Paulo:
Martins Fontes, 2003, p. 258: Moisés ficou, portanto, sendo o único portador e intérprete das leis
divinas e, consequentemente, também o juiz supremo a quem ninguém podia julgar, o único que
entre os hebreus fazia as vezes de Deus; dito de outro modo, alcançou a majestade suprema,
porquanto só ele tinha o direito de consultar Deus, de dar ao povo as respostas divinas e de o
obrigar a executá-las. O único, repito, pois, se alguém, em vida de Moisés, quisesse pregar
qualquer coisa em nome de Deus, mesmo que fosse um verdadeiro profeta, era réu e usurpador do
direito supremo.
12
Vide Bíblia Sagrada: Deutoronômio, Capítulo 21, Versículo 5: Chegar-se-ão os sacerdotes,
filhos de Levi, porque o SENHOR teu Deus os escolheu para o servirem, para abençoarem em
nome do SENHOR, e, por sua palavra, decidirem toda demanda e todo caso de violência.
13
ESPINOSA, Baruch de. op. cit., p. 266.
24
próprio direito a máxima liberdade para fazerem tudo o que querem e que o
instinto lhes sugere; pelo contrário, se o direito de interpretar as leis pertence a
um outro e se, ao mesmo tempo, a sua verdadeira interpretação for de tal
maneira clara para todos que não deixe nenhuma margem para dúvidas, essa
liberdade estará em boa parte vedada.
Houve, desde a Grécia antiga, uma nítida estratificação dos segmentos
sociais e foram concedidos privilégios aqueles que eram considerados cidadãos
livres
14
, ou seja, os participantes da administração da justiça e do governo que, no
passado, foram homens de guerra e na velhice ocupavam os cargos mais
importantes, na condição de membros do Conselho, onde deliberavam sobre o
interesse público e de juízes para sentenciar sobre os direitos dos pleiteantes
15
.
A concessão de privilégios, deste modo, não prescinde da esfera pública,
mas, pelo contrário, a sua visualização decorre da vida política que se estabeleceu
nas cidades-estados gregas e em Roma, à medida que foram criados os cargos
16
e
órgãos públicos
17
, os quais, naturalmente, se ajustaram à concepção do chamado
direito público.
É de se observar que nesta fase da vida política grega, FUSTEL DE
COULANGES acentua as vedações impostas aos estrangeiros e aos que sofreram
condenação quanto à participação em determinadas atividades da vida pública,
notadamente, as atividades primordiais à sociedade
18
, o que é destacado por
GIORDANI ao enfatizar que os escravos, os periecos
19
, os metecos
20
, as
14
GIORDANI, Mário Curtis. História da Grécia: Antiguidade Clássica I. 7ª ed. Petrópolis: Vozes,
2001, p. 161.
15
Aristóteles. A Política. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 98-99.
16
COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga: Estudos sobre o Culto, o Direito, as Instituições da
Grécia e de Roma. 12ª ed. São Paulo: Hemus, 1975, p. 144.
17
TAVARES, Ana Lúcia de Lyra; CAMARGO, Margarida Maria Lacombi e MAIA, Antônio
Cavalcanti (organizadores). Direito Público Romano e Política. Rio de Janeiro: Editora Renovar,
2005, p. 165.
18
COULANGES, Fustel de, op. cit., p. 155-158.
19
GIORDANI, Mário Curtis. História da Grécia: Antiguidade Clássica I, p. 165: “que habitam ao
redor – antigos habitantes do país submetidos pelos conquistadores e seus descendentes.
Considerados estrangeiros em Esparta.”
20
GIORDANI, Mário Curtis. História da Grécia: Antiguidade Clássica I, p. 170-171: “os que
habitam com – eram os estrangeiros domiciliados em Atenas.
25
mulheres, os artesãos, os mercadores e agricultores não ocupavam cargos mais
importantes na estrutura grega
21
.
A respeito da magistratura grega, GIORDANI acrescenta, ainda, que os
cargos meramente administrativos ou subalternos poderiam ser providos por
metecos e escravos, enquanto que as atividades judicantes ou estritamente
políticas eram facilitadas a todos os cidadãos livres em Atenas
22
.
Platão, anteriormente, já descrevia a existência de um tratamento
diferenciado à figura dos reparadores, ou seja, as pessoas encarregadas da escolha
e exame da gestão dos magistrados ao mencionar que os reparadores “examinarão
a gestão dos diversos magistrados, uns eleitos pelo acaso do sorteio para um ano
de mandato, outros para vários anos e escolhidos a partir de um elenco de
pessoas já seletas. O que poderíamos afirmar com propriedade a respeito deles?
Quem terá competência para atuar como reparador relativamente aos
magistrados em pauta? E se suceder que algum deles atue de maneira tortuosa
ou que, vergando sob o peso de uma responsabilidade que não está a sua altura,
sua autoridade se mostre inferior ao que requer a dignidade de seu cargo [o que
fazer]? Não é de modo algum fácil encontrar um magistrado dos magistrados,
que a todos supere em virtude, mas de qualquer modo é preciso tentar descobrir
alguns reparadores de uma qualidade divina.”
23
.
Temos, sem dúvida nenhuma, a criação de um cargo público, o reparador, o
qual realiza o seu trabalho até a idade de setenta e cinco anos e cujas atividades
estão incorporadas à idéia de uma esfera pública, tal como salientado acima, pois
exercita a fiscalização da atividade do magistrado após o seu término.
Aparentemente, o julgamento dos magistrados por um órgão
hierarquicamente superior aos magistrados é o que se verifica na Antiguidade de
mais semelhante ao modelo do atual foro por prerrogativa de função, logo
21
GIORDANI, Mário Curtis. História da Grécia: Antiguidade Clássica I, p. 161.
22
GIORDANI, Mário Curtis. História da Grécia: Antiguidade Clássica I, p. 174.
23
PLATÃO. op. cit., p. 478-481.
26
deixando evidente que o magistrado não examinava a conduta funcional de outro
na cidade-estado grega.
Os reparadores, em decorrência da função e da sua relevância recebiam
inúmeras regalias e privilégios em vida e até tratamento distinto dos cidadãos
livres por ocasião da morte, na exposição ao público, durante o funeral e
sepultamento, fato suficiente para a demonstração da presença de privilégios à
figura dos reparadores (magistrados dos magistrados)
24
.
Tamanha a importância que o cargo público de reparador desempenhava na
cidade-estado grega, que a eventual descoberta de comportamento nocivo ou
inadequado por parte do mesmo, em suma, justificava o oferecimento de acusação
por cidadão e o seu julgamento perante uma corte especial, no caso composta
pelos guardiões das leis, os demais reparadores e um corpo de juízes selecionados,
sendo que a condenação resulta na destituição do cargo e se o reparador acusado
já estiver morto, as honras funerárias e a sepultura deveriam ser suprimidas, além
dos demais privilégios conferidos em vida
25
.
Na Grécia, portanto, já era possível delimitar a atuação do cidadão no
âmbito da esfera pública e privada, inclusive, com o reconhecimento dos fatores
que impulsionavam a atuação do indivíduo para o atendimento das atividades
inerentes à vida pública na Cidade-Estado.
Por isso mesmo, as funções de preparador e de magistrado se distinguiram
pelos privilégios definidos em favor das mesmas, considerando a importância que
os cargos tinham perante à polis, o que fornece uma idéia inicial de que os
cidadãos gregos já concebiam o privilégio para determinadas classes na esfera da
sociedade.
Em Roma, a perspectiva concernente à vida pública foi reafirmada, uma vez
que a concepção de espaço público foi enfatizada com a criação de inúmeros
24
PLATÃO. op. cit., p. 480.
25
PLATÃO. op. cit., p. 481.
27
locais destinados a abrigar atividades pertinentes às instituições políticas
26
, tais
como: o Senado, o Fórum e os Templos.
A existência de um espaço público pressupunha o exercício de funções
públicas, as quais estiveram presentes nas instituições políticas romanas da
realeza, na fase da República, no Império e na administração das Províncias.
Conseqüentemente, a fixação dos privilégios e das prerrogativas integrou o
cotidiano da vida pública romana, notadamente, entre aqueles que exerciam as
magistraturas e o Senado, durante no período da República e do Império, onde
uma efetiva estrutura pública restou desenvolvida e gradualmente aperfeiçoada.
Na fase republicana, são diversas as atividades e os cargos públicos
existentes, dentre eles, os magistrados cum imperio e sine imperio (cônsules,
pretores, edis, questores, censores e ditadores), os senadores (senatores
consulares, senatores praetorii, senatores aedilisii e quaestorii) e as assembléias
do povo.
Numa sociedade profundamente estratificada e delineada pela constante
ênfase e culto à cidadania, COULANGES argumenta que, de fato, no início se
verificava um déficit quanto à proteção judicial aos plebeus e, também, a
impossibilidade de que os mesmos pudessem participar das magistraturas e do
Senado
27
, o que revelava a existência de diferenças quanto à ocupação dos cargos
públicos
28
, mesmo porque, a eliminação das diferenças entre os habitantes do
Império Romano só veio a acontecer em 212 d. C. com o Édito de Caracala
29
.
26
TAVARES, Ana Lúcia de Lyra; CAMARGO, Margarida Maria Lacombi e MAIA, Antônio
Cavalcanti (organizadores). op. cit., p. 165.
27
Cfr. COULANGES, Fustel de. op. cit., p. 194.
28
SILVA, Gilvan Ventura da e MENDES, Norma Musco (organizadores). Repensando o Império
Romano: Perspectiva Socioeconômica, Política e Cultural. Rio de Janeiro: Mauad; Vitória, ES:
EDUFES, 2006, p. 87: “No início do Império, a distinção entre cidadãos romanos e não-cidadãos
tinha peso considerável, posto que os cidadãos conservavam direitos e privilégios que haviam
sido definidos sob a República. Sendo o Alto Império um regime monárquico, mesmo se sob uma
fachada republicana, o poder que o cidadão da República havia exercido em função de sua
atuação como eleitor e votante nas assembléias se perdeu, porém, progressivamente.”
29
Ver. GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1995, p. 94: ao informar que o Édito de Caracala representou a concessão da
cidadania a todos os habitantes do Império Romano.
28
Os magistrados no período da República, no âmbito civil, estavam sujeitos
às mesmas responsabilidades que os demais cidadãos e no aspecto penal e
administrativo assinala-se que era muito difícil levar um magistrado até os
tribunais no período de exercício do seu cargo, diferente do que acontecia após o
transcurso do mandato
30
.
É de se observar, ademais, que as eventuais imputabilidades de ordem
política ou penal em que pudessem incorrer os magistrados, como já indicado
acima, eram desenvolvidas com o término do período do mandato para o qual foi
eleito, sendo certo que a exigência de tais responsabilidades teve destaque, a partir
de um determinado momento da vida política romana, mais precisamente, diante
do papel assumido pelos Tribunos da plebe que se encarregaram da defesa da
legalidade no tocante à esfera pública
31
.
Tamanha a importância conferida às funções desempenhadas pelos
magistrados em Roma que resultou na elaboração de Tribunais penais públicos
permanentes com a finalidade de impor a pena capital
32
, a condenação de
deportação com a perda da cidadania e a condenação aos trabalhos forçados nas
minas com a supressão da liberdade
33
em relação àqueles que efetivassem algum
tipo de corrupção dirigida aos magistrados e, também, na hipótese de corrupção
de juízes e de abuso de poder por parte dos mesmos
34
.
Houve, desde cedo, uma preocupação em estabelecer um tribunal específico
para o conhecimento de determinados delitos que seriam inerentes às pessoas que
exerciam as funções públicas e, ainda, que pudessem prejudicar o exercício das
30
Cfr. BUJÁN, Antonio Fernández. Derecho Público Romano y Recepción Del Derecho Romano
en Europa. 5ª ed. Madrid: Civitas, 2000, p. 212.
31
Cfr. BUJÁN, Antonio Fernández. op. cit., p. 111.
32
Vide MEIRA, Silvio. Processo Civil Romano. 2ª ed. Belém – Pará: Falangola, 1966, p. 20:
Triúnviros Capitais – Triumviri Capitales. – Para os processos criminais. Possivelmente,
também, para os casos de SACRAMENTUM E MANUS INJECTIO.”.
33
Revela MEIRA, Silvio. op. cit. p. 101 a existência de medidas severas, inclusive no processo
civil romano, pois: “O apelante temerário era castigado severamente. Pagaria as custas em
quádruplo. Em certa fase do Império Constantino o punia com desterro pelo prazo de dois anos e
confisco dos bens. Poderia ainda condenar a trabalhos forçados, se se tratasse de pessoa pobre,
sem bens que pudessem ser confiscados. (Cód. Teod. 1. 5. 3.).
34
Cfr. BUJÁN, Antonio Fernández. op. cit., p. 196-198.
29
tarefas cometidas aos magistrados e outros encarregados da manutenção da coisa
pública.
Os senadores, por sua vez, desfrutavam de privilégios e honras especiais
quanto ao uso de vestimentas, artefatos, melhores lugares nos espetáculos
35
e o
mais importante, não podiam ser julgados fora de Roma
36
.
Registra-se que no governo de Tibério já existia um tribunal senatorial
encarregado do exercício da jurisdição sobre os seus próprios pares e que se
transformou numa Corte de Justiça apesar da existência dos tribunais
permanentes, caracterizando um efetivo privilégio aos senadores
37
num momento
da vida pública romana em que se deu a perda gradual dos poderes do Senado.
A dimensão da esfera pública romana transcendeu, assim, a perspectiva
existente na Grécia e alcançou uma complexidade significativa durante a
República e próprio conceito de vida política, tendo em vista a composição e
funcionamento do Senado Republicano e da magistratura.
Como conseqüência da estrutura política criada na República e no Império
Romano, de fato, houve a designação de privilégios aos responsáveis pelo
exercício das funções públicas em apreço, tal como vislumbrado em relação aos
preparadores e juízes na Cidade-Estado grega.
Entretanto, um aspecto que não pode ser olvidado é a ascensão do
cristianismo em Roma, portanto, no mundo ocidental, o que ficou demarcado na
atuação do primeiro César cristão, a saber, Constantino I (Constantino Magno ou
Constantino, o Grande de 306-337)
38
.
Constantino I é o responsável direto pela tolerância religiosa e a liberdade
de consciência, situação consolidada com o Edito de Milão firmado em 311 e
35
Cfr. BUJÁN, Antonio Fernández. op. cit., p. 95.
36
Cfr. GIORDANI, Mário Curtis. História de Roma. op. cit., p. 97.
37
Cfr. SILVA, Gilvan Ventura da e MENDES, Norma Musco (organizadores). op. cit., p. 31.
38
Cfr. GIORDANI, Mário Curtis. História de Roma. op. cit., p. 80.
30
consubstanciado pela igualdade perante a lei de todos os cultos professados no
mundo romano
39
.
Sem enfrentamentos ou perseguições do que se denominava Poder Público
ou da figura do imperador, a elaboração de um mundo cristão foi posta em prática
e, com ela, temos o surgimento de uma estrutura jurisdicional permeada pela
influência do clero, justamente, a perspectiva mostrada por PETER BROWN ao
observar que o clero cristão de cada cidade transformou-se no grupo que se
expandia mais rapidamente, num momento em que as tensões existentes no
Império tinham paralisado as outras associações cívicas. Ligada por juramento
“seu” bispo, toda uma hierarquia de padres, diáconos e clérigos menores
formavam uma espécie de ordo em miniatura, tão subtilmente graduada como o
conselho de qualquer cidade, e igualmente ciosa dos seus privilégios.
Constantino esperava que o bispo actuasse como juiz e árbitro exclusivo nos
problemas entre cristãos, e até entre estes e não-cristãos. A litigação civil normal
tornara-se proibitivamente cara; em resultado disso, o bispo, já considerado
como o juiz do pecado entre os crentes, transformou-se no Provedor de Justiça da
comunidade local no seu conjunto.
40
.
A criação de uma justiça eclesiástica apegada a efetivar a punição dos
pecados entre os seus seguidores, de alguma forma, levou a Igreja a assumir nas
comunidades locais o papel de provedor de justiça, o que representou uma
oficialização das relações do Estado com a Igreja, propiciando o aparecimento do
clero cristão como um grupo local privilegiado e ambicioso constituía uma
alteração decisiva, na medida em que se verificou numa área que afectava toda a
estrutura do Império Romano
41
.
Ao que tudo indica a omissão ou a ausência de estrutura do Império
Romano no tocante ao exercício da sua atividade jurisdicional deu ensejo ao
apoderamento posto em prática pela Igreja, o que seria objeto de constante
discussão posteriormente.
39
Cfr. GIORDANI, Mário Curtis. História de Roma. op. cit., p. 346.
40
BROWN, Peter. A Ascensão do Cristianismo no Ocidente. Lisboa: Presença, 1999, p. 57.
41
BROWN, Peter. op. cit., p. 57.
31
No entanto, é possível afirmar que o Império Romano é um marco da
ascensão do cristianismo no mundo ocidental, como também, revela a estreita
ligação entre a jurisdição leiga e eclesiástica, o que redundaria numa extensa rede
de disputas no mundo medieval ainda por iniciar.
2.2
O Privilégio no Período da Civilização Ocidental Medieval e Moderna:
O período da Idade Média está delimitado pela derrocada do Império
Romano do Ocidente, a qual teve ensejo no século V, em 476 d.C., e o seu
encerramento fixado pela queda de Constantinopla no século XV, ocorrida em
1453 d.C., acima de tudo, marcado por um relevante debate acerca das
competências eclesiásticas e seculares.
Por outro lado, a Idade Moderna tem o seu marco inicial, como foi dito
acima, em 1453, com a tomada de Constantinopla pelos turcos e estende-se até
1789 com o início da revolução francesa.
É de se ressaltar, no presente momento, que o exame do privilégio no
período que antecedeu ao término do Antigo Regime será objeto de análise com a
época contemporânea.
2.2.1
O Período Bizantino e a influência do modelo Romano quanto ao
privilégio.
A monarquia bizantina foi composta de uma significativa estrutura político-
administrativa, a qual teve como pressuposto a incorporação dos padrões romanos
acerca da distribuição de vários cargos públicos e da elaboração de leis
(compilações Justinianas)
42
, o que é possível extrair-se, igualmente, nos povos
Bárbaros que dominaram o Império Romano Ocidental e numa ótica estritamente
42
GIORDANI, Mário Curtis. História do Império Bizantino. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 49.
32
cultural “não se apresentavam como inimigos, mas como admiradores das
instituições romanas
43
.
No período bizantino, o maior destaque deve ser creditado ao Imperador
Justinianus
44
que compilou verdadeira obra legislativa consistente no Código
Justinianeu
45
ou, ainda, o Corpus Juris Civilis, o qual abrange as Institutas, o
Digesto ou Pandectas (ano 534), o Código (ano 529 – texto perdido) e as
Novelas, sendo possível, a partir da organização normativa contida nas Institutas a
obtenção de uma noção efetiva do privilégio para a regulamentação dos processos
públicos, no Título XVIII – De publicis judiciis, ao menos, no que tange a
aplicação de algumas penas.
Na regulamentação dos processos públicos capitais ou não capitais que
poderiam levar o culpado ao suplício último ou à interdição do uso da água e do
fogo, ou seja, ao exílio, ou à condenação às minas (§2º do Título XVIII das
Institutas), contudo, a aplicação da pena, em determinados tipos penais, tem o
estabelecimento de distinção, levando-se em conta a projeção social do culpado
na sociedade.
Portanto, se o indivíduo era nobre, responderia somente com o confisco da
metade dos seus bens, porém, se qualificado como de baixa extração sofria a pena
corporal com o relego nos crimes em que houvesse cópula, sem violência, com
virgem ou viúva que vive honestamente (Lex Julia de adulteriis)
46
.
No mesmo sentido, encontramos a Lei Cornélia da falsidade (Lex Cornelia
de salvis) que punia com o suplício último os escravos, do mesmo modo que, na
lei dos sicários e envenenadores, contra homens livres a pena era, simplesmente, o
43
Cfr. GOFF, Jacques Le. A Civilização do Ocidente Medieval. Bauru, SP: Edusc, 2005, p. 26.
44
Para melhor detalhamento histórico, vide CRETELLA Jr., J. e CRETELLA, Agnes (tradutores).
in Institutas do Imperador Justiniano. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 5: Flavius
Petrus Sabbatius Justinianus, Imperador bizantino, nasceu em Tauresium, no ano de 482, e
faleceu em Constantinopla (antiga Bizâncio), em 565, aos 83 anos, tendo reinado 39 anos.
45
A influência do Direito Romano no direito português decorreu do Código Justinianeu desde as
leis elaboradas por Afonso II na lei da Cúria de 1211, embora alguns atribuam ao Breviário de
Alarico de 506 d. C. e outros ao conteúdo romanista preservado no Direito Canônico. Vide:
NUNO J. ESPINOSA GOMES DA SILVA. História do Direito Português: Fontes de Direito. 3ª
ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000, p. 225.
46
Vide Título XVIII, §4º das Institutas.
33
exílio, o que autoriza a conclusão da existência de diferenças quanto à aplicação
das penas, no caso, representando um efetivo privilégio.
Os privilégios foram fixados, portanto, em atendimento da estrutura social,
permitindo que o nobre ou detentor de função mais relevante pudesse receber
penalidade mais branda em decorrência da prática de alguns delitos, embora fosse
verdade que o Digesto já tivesse previsto a suspensão de todos os privilégios e
exceções em caso de delitos lesa-majestade (D.48.18.10.1) porque o ato
contrariava o Soberano e, como tal, tornava insubsistente a preservação do
privilégio.
2.2.2
Abordagem dos privilégios dos clérigos na Europa e os embates
mantidos entre a Igreja e os monarcas.
A Igreja Católica teve influência na definição das regras processuais
destinadas à apuração dos crimes que envolvessem determinadas pessoas,
principalmente, no século V, ao final do Império Romano, pois restou
estabelecida a idéia de que os delitos praticados por Senadores, o julgamento
competiria aos seus pares, enquanto, aqueles atribuídos aos membros
eclesiásticos, o seu processamento ficaria submetido às autoridades da Igreja
47
(privilegium fori) que estivessem em grau ou posição hierarquicamente superior
48
.
É sabido que na França, desde o Ano 800 com Carlos Magno
49
passamos a
ter uma referência de domínio real absoluto quanto ao exame de todas as questões
envolvendo a nobreza, daí porque, no tocante a realização de julgamentos,
constata-se o registro da chamada Corte dos Pares que, na metade do século XIII
acabou por se constituir num tribunal especial com a finalidade de proceder ao
julgamento somente dos seus semelhantes, ou seja, uma nítida fixação de
47
GIORDANI, Mário Curtis. História do Mundo Feudal II/2. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1997, p.
250.
48
Cfr. JÚNIOR, João Mendes de Almeida. O Processo Criminal Brasileiro. Rio de Janeiro:
Laemmert & C., 1901, vol.1, livro I, p. 40.
49
Cfr.GOFF, Jacques Le, op. cit., p. 27.
34
privilégios, uma vez que preservaram o julgamento do acusado adstrito às pessoas
do seu grupamento social
50
.
JOHN GILISSEN também faz alusão ao julgamento pelos pares
51
, ou seja,
os chamados Pares Franciae
52
se trata de um Tribunal Feudal destinado ao
conhecimento de litígios variados, inclusive em matéria penal, onde o senhor faz
justiça com assistência dos seus vassalos, uma abordagem própria dos séculos XI
e XII, momento em que a concepção dada à Corte dos Pares não estava tão
identificada com a preservação de privilégios.
É necessário observar, entretanto, que a noção fixada para o julgamento
pelos pares ou a Corte dos Pares na França sofreu uma forte oposição advinda do
poder real no final do século XIII, pois o monarca se intitulava a fonte de toda a
justiça (rex est fons omnismodi justitiae, século XIV), isto é, “toda a Justiça
emana do rei”.
A formação da Curia Regis é o indicativo da concentração absoluta do
poder real, ou seja, “o rei é o único juiz; pode fazer-se assistir por conselheiros;
pode delegar neles o seu poder de julgar (justiça delegada), mas pode também
reter a justiça em si ou permitir um recurso contra qualquer decisão proferida
por uma jurisdição real.”
53
.
Disso resulta que, a partir do século XIII fica evidente que o poder real “em
França, em Inglaterra, em Espanha, os duques e os condes noutras regiões,
conseguem reforçar a sua autoridade; desenvolvem o seu poder de julgar os seus
súbditos e tentam eliminar as jurisdições feudais e senhoriais, ou, pelo menos,
submetê-las às suas próprias jurisdições. Os reis conseguem isso em larga
medida nos séculos XVI e XVII; mas em certas regiões, sobretudo na Alemanha,
50
Cfr. GIORDANI, Mário Curtis. História do Mundo Feudal II/1. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1987,
p. 135 e p. 279-280.
51
Cfr. GILISSEN, John. op. cit., p. 385.
52
Cfr. GIORDANI, Mário Curtis. História do Mundo Feudal II/1. op. cit., p. 279.
53
Cfr. GILISSEN, John. op. cit., p. 386.
35
em Itália, nos Países Baixos; a resistência dos particularismos locais e regionais
manteve-se consideravelmente.”
54
.
A Idade Medieval, aliás, ficou marcada por um efetivo estado de tensão
entre as relações que regulavam a competência eclesiástica e a autoridade
político-jurídica dos reis, fato que suscitou uma constante disputa quanto à
definição e alcance do poder de julgamento de cada um dos mesmos.
O acirrado debate sobre a competência da Igreja e atuação do monarca
propiciou a fixação de regras que procuravam desautorizar a decisão final da
autoridade Papal ou do monarca, porém, sem o alijamento dos eventuais
privilégios dos clérigos, ou seja, pouco importando a jurisdição a ser utilizada,
certamente, não se poderia desconhecer a existência de benesses que deveriam ser
conferidas aos membros da Igreja que fossem acusados de alguma prática
criminosa.
De fato, o controle jurisdicional eclesiástico foi um dos temas tratados com
maior ênfase no Decreto promulgado por Gregório VII (1073-1085) sobre a
investidura leiga, no caso, o chamado Dictatus Papae
55
, cujo conteúdo informa
que ele, o Papa, é a autoridade que pode retirar, transferir, condenar e absolver os
bispos, com atribuição para depor Imperadores, que a sua sentença não pode ser
reformada por ninguém e só ele pode reformar a de todos e a impossibilidade ser
questionada qualquer decisão ou interpretação da Sé Apostólica
56
, a par de se
estabelecer a completa imunidade Papal, uma vez que o mesmo não poderia ser
julgado por ninguém
57
.
54
Cfr. GILISSEN, John. op. cit., p. 383.
55
Ver RUDOLF FISCHER-WOLLPERT, in Os Papas. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 256: “O
papa se acha revestido, portanto, do poder de depor o imperador e de desligar os súditos do dever
de obediência. Tal concepção do papa desempenharia importante papel sobretudo na questão das
investiduras”.
56
Nesses termos, BARUCH DE ESPINOSA. op. cit., p. 262: o Sumo-Pontífice tinha, efetivamente,
o direito de interpretar as leis e transmitir as respostas de Deus. Mas não quando quisesse, como
acontecia com Moisés; só quando lhe fosse solicitado pelo chefe dos exércitos, pelo Conselho
Supremo ou por outras entidades semelhantes. Em contrapartida, o comandante supremo dos
exércitos e os Conselhos podiam consultar Deus quando quisessem, mas só recebiam respostas
através do Sumo-Pontífice.
57
Cfr. GIORDANI, Mário Curtis. História do Mundo Feudal II/2. op. cit., p. 232-233.
36
A atuação da Igreja definida pelo Papa Gregório VII ocorreu num momento
de questionamento acerca do poder direto ou indireto da Igreja sobre o Estado e,
conseqüentemente, toda a discussão quanto aos limites da autoridade Papal, o que
foi acentuado, posteriormente, durante o papado de Inocêncio III (1198-1216),
contudo, afirmadora da supremacia da Igreja quanto ao exame de determinadas
causas, logo do chamado prïvilëgïum fori.
Os aspectos que envolveram os limites da autoridade real e da Igreja quanto
aos julgamentos dos clérigos ou não ajudaram a promover a fixação de privilégios
para determinadas pessoas, à medida que sobrepôs o poder Papal em relação à
efetivada pelo monarca, embora o monarca tenha infirmado à autoridade
julgadora da Igreja em vários momentos.
GIORDANI ao cuidar do tema revela a tendência de uma supremacia da
autoridade Papal em relação à jurisdição leiga, ao chamar a atenção que: “Graças
à atuação de uma série de papas enérgicos, a partir principalmente de Gregório
VII, o pontífice romano firma sua autoridade na Igreja Universal onde exerce a
plenitudo potestatis (plenitude do poder) de episcopus universalis (bispo
universal). Passemos, agora, a um rápido estudo do episcopado do mundo feudal.
A reforma gregoriana não só diminuíra a subordinação dos bispos às
autoridades leigas mas ampliara de modo acentuado a dependência do
episcopado em relação à Sé Apostólica. Assim é que a autoridade dos
metropolitanos (nas cidades importantes, muitas vezes antigas capitais de
províncias romanas, o bispo assumia o título de metropolitanus e estendia sua
jurisdição sobre os demais bispos de sua província eclesiástica chamados
sufragâneos) foi aos poucos decrescendo, aumentando, em contrapartida, o
poder dos bispos sufragâneos.
Em sua diocese o bispo exercia o tríplice poder de ordem (ordenava os
clérigos) de jurisdição (julgava causas relacionadas com os clérigos, que
gozavam do privilegium fori, e outras numerosas causas que lhe estavam afetas
ratione materiae como assuntos concernentes ao matrimônio, a testamentos, a
crimes contra a religião, etc.) e de ensino (pregava, fiscalizava, o ensino de
religião, as práticas religiosas, etc.). Não raro a jurisdição episcopal conflitava
37
com a jurisdição dos juízes leigos, o que provocava reclamações por parte dos
soberanos.
Especialmente na Alemanha, muitos bispos uniam à sua dignidade
espiritual a de senhores temporais como verdadeiros feudais, exercendo assim
jurisdição sobre vastos territórios e prestando vassalagem ao monarca.”
58
.
2.2.2.1
Constituições de Clarendon. Conflitos entre a Igreja e o monarca
pela manutenção dos privilégios. Caso Thomas Becket versus
Henrique II. Extinção dos privilégios da Igreja Católica Apostólica
Romana na Inglaterra e outros países.
O embate quanto ao exercício da jurisdição entre a Igreja de Roma e o
poder do monarca teve o seu ápice no conflito que se estabeleceu na Inglaterra
com a edição das CClar. em 1164, em especial, na disputa entre o arcebispo
Thomas Becket e o monarca Henrique II
59
, cujo debate ateve-se ao gozo de
privilégios pelos membros da Igreja, a par se traduzir num dos primeiros “atos
legislativos a demarcar a transição da monarquia absoluta para a
constitucional”.
60
.
A organização firmada nas CClar., talvez, pela primeira vez, delimitou as
prerrogativas e privilégios atinentes à Igreja e dos mais importantes funcionários
do reino, traduzindo-se, assim, num documento normativo de relevância ímpar, à
medida que confere vantagens ao clero e à nobreza, sob a tutela do monarca.
58
Cfr GIORDANI, Mário Curtis. História do Mundo Feudal II/2, op. cit., p. 249-250.
59
Todo o litígio é descrito por HAROLD J. BERMAN, in Direito e Revolução: A Formação da
Tradição Jurídica Ocidental. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 327: Thomas Becket, arcebispo que
se negou a cumprir as constituições de Clarendon expedidas em 1164 por Henrique II alegando a
independência da Igreja para o julgamento dos clérigos e a submissão ao direito canônico.
Diante do confronto que se estabeleceu, quatro homens do rei assassinaram o arcebispo em sua
catedral em Canterbury, o que levou Henrique II a pagar penitência e em 1172 a submeter-se à
Igreja, para tanto, renunciando publicamente a alguns trechos das Constituições de Clarendon.
Ver ainda: GEORGES SUFFERT, in Tu és Pedro: santos, papas, profetas, mártires, guerreiros,
bandidos. A história dos primeiros 20 séculos da Igreja fundada por Jesus Cristo. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2001, p. 187-195.
60
Vide, ainda, FERREIRA, Pinto. Princípios Gerais do Direito Constitucional Moderno. 3ª ed.
Rio de Janeiro: José Konfino, 1955, Tomo I, p. 103, com embasamento em GEORGES BURTON
ADAMS, The Origin of the English Constitution, New-Haven, London, Oxford, 1931, p. 111.
38
Na prática, as CClar. representaram a edição de regras que afastavam a
aplicação do direito canônico, em especial, o Dictatus do Papa Gregório VII e
passaram a definir que o julgamento dos clérigos competiria ao monarca, o que é
possível vislumbrar do terceiro artigo das CClar., o qual “(...) regulava, de fato,
que qualquer clérigo acusado de delito grave (inclusive homicídio, incêndio
criminoso, roubo, estupro, lesões corporais e determinados outros crimes graves)
deveria ser enviado, pela corte do rei, à corte eclesiástica, a fim de ser julgado, e,
se considerado culpado aqui, deveria ser levado de volta à corte do rei para ser
sentenciado. Isto significava na prática ser executado, ou mutilado, pelo corte de
mãos e pernas. Um oficial do rei deveria presenciar os procedimentos na corte
eclesiástica, “para ver como o caso é julgado”.”
61
.
Como se vê, as CClar. não chegaram a suprimir a atividade judicante da
Igreja no tocante aos clérigos, considerando que o exame do juízo de culpa
pertencia à Igreja, apenas a imposição da condenação e a eventual interposição de
recurso da decisão eclesiástica (artigo oitavo das CClar.) é que ficaram entregues
à autoridade real.
Vale dizer, portanto, que o monarca só poderia emitir a condenação do
clérigo na hipótese do mesmo ser julgado pela corte eclesiástica e afirmado pelos
seus pares como culpado, bem como no caso de interposição de recurso da
decisão clériga (artigo oitavo da CClar.), onde o rei teria a função de exercer o
papel de magistrado último e definitivo das causas envolvendo o direito canônico
na Inglaterra, o que consistiria numa intervenção da justiça local (real) na
eclesiástica, além de consubstanciar-se numa retirada dos privilégios dos
membros da Igreja.
A crítica exposta por Becket quanto ao artigo terceiro das CClar. diz
respeito ao fato de a mesma ensejar a violação do princípio do risco duplo, pois
Deus não pune duas vezes a mesma ofensa” – ne bis in idem – , razão pela qual
sustentou Becket “(...) o privilégio do clero ser punido – por certas ofensas –
exclusivamente no fórum eclesiástico. Porém a imunidade clerical total das
61
Cfr BERMAN, Harold J.. op. cit., p. 328.
39
jurisdições seculares nunca foi reivindicada. É verdade que tanto no Império
Bizantino como no Franco os bispos – embora não aqueles abaixo deles –
deveriam ser julgados e sentenciados somente por clérigos. Naquela época mais
antiga, contudo, não havia uma nítida distinção entre as cortes eclesiástica e
secular; o clero atuava em ambas. Em qualquer acontecimento, na Inglaterra e
em outras partes, era bastante comum, anteriormente ao século XII, que os
clérigos que tivessem sido condenados e depostos ou disciplinados dentro dos
procedimentos eclesiásticos fossem levados as cortes locais, reais ou feudais para
ser julgados e punidos novamente pelo mesmo crime. Somente com o
estabelecimento do novo sistema de jurisdição eclesiástica, no final do século XI
e no século XII, o privilégio do clero tornou-se um assunto crucial.
62
.
É verdade, porém, que não há registro de que algum clérigo deposto ou
rebaixado tenha sido entregue ao poder do monarca, a fim de que fosse
executado
63
ou mutilado na presença de um oficial do rei, o que só realça a
disputa de poder e da preservação dos privilégios entre as “ordens
64
ou
corpos
65
dominantes, no caso, a Igreja versus monarca ou a comunidade
senhorial.
O confronto dos privilégios aplicados aos membros da Igreja na Inglaterra e
na França indica que o alcance de uma jurisdição secular teve maior incidência na
visão jurídica levada a efeito a época na França, o que é possível concluir do
contexto apresentado por BERMAN ao realçar que após a morte de Becket, na
Inglaterra “a jurisdição secular foi excluída para punir, mais ainda para julgar.
Entretanto, a corte do rei finalmente adotou o recurso processual de julgar a
pessoas antes de saber qual era a sua posição clerical, e somente se ela fosse
62
Cfr BERMAN, Harold J.. op. cit., p. 330-331.
63
Cfr BERMAN, Harold J., op. cit., p. 331, apud MAITLAND, Frederich W. Roman Canon Law
In the Church of England, Londres, 1998, p. 56-57.
64
Vide MÁRIO CURTIS GIORDANI. História do Mundo Feudal II/1. op. cit., p. 128, apud
JACQUES ELLUL, Histoire des Institutions, Paris, Tomo II, p. 17 ao salientar que: “(...) a
sociedade feudal foi dividida em “corpos”, em “ordens” mas não em “classes”. “A diferença
entre os dois termos, continua o mesmo autor é a seguinte: a classe é um fenômeno sócio-
econômico (habitat, modo de viver, nível de vida, gênero de trabalho, etc.), a ordem é um
fenômeno funcional e jurídico” (...)”.
65
Fundamental a consulta de MAX WEBER, in Economia e Sociedade: Fundamentos da
Sociologia Compreensiva. 4ª ed. Brasília: Universidade de Brasília e Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo, 2004, volume I, p. 199-203: onde dá ênfase ao emprego do vocábulo classes como
um fenômeno sócio-econômico.
40
condenada, teria o direito de recorrer ao benefício do clero e ser mandada a um
corte eclesiástica. Além disso, a questão de a responsabilidade secular do clero
ser maior para delitos graves do que para crimes menores, e por ofensas civis,
aparentemente não foi abordada por Becket; de qualquer forma, a jurisdição
secular permaneceu acima do clero em tais assuntos, na Inglaterra. Na França,
ao contrário, o clero estava imune do julgamento secular por crimes menores,
mas não pelos mais graves, como homicídio premeditado, mutilação, roubo e
reincidência (“incorrigibilidade”), e “casos reais”, que incluíam a traição e
outros crimes que atingissem a dignidade do príncipe ou de seus oficiais, assim
como crimes de segurança pública, tais como promover assembléias proibidas ou
ensinar a idolatria, o ateísmo e outras doutrinas proibidas. Tais “casos
reais”pertenciam à jurisdição secular, fosse o crime cometido por um leigo ou
por um clérigo.”
66
.
As relações entre a Igreja e o monarca e a constante disputa envolvendo o
exercício do poder sempre estiveram em pauta e a prova mais eloqüente disto, a
propósito, é que após o litígio ocorrido entre o monarca inglês Henrique II e o
arcebispo Thomas Becket no período de 1164 a 1170, novo embate se
materializou com o monarca inglês João Sem-Terra ao outorgar a Magna Carta
Libertatum, em 15 de junho de 1215, ao assinalar que a Igreja da Inglaterra era
livre, transmitindo uma idéia de separatismo com a Igreja de Roma, à medida que
redigiu a primeira prescrição nos seguintes termos:
1 – A Igreja de Inglaterra será livre e serão invioláveis todos os seus
direitos e liberdades; e queremos que assim seja observado em tudo e, por isso,
de novo asseguramos a liberdade de eleição, principal e indispensável liberdade
da Igreja de Inglaterra, a qual já tínhamos reconhecido antes da desavença entre
nós e os nossos barões [...].”
67
.
66
Cfr BERMAN, Harold J.. op. cit., p. 335.
67
Vide JORGE MIRANDA (organização e tradução). Textos Históricos do Direito Constitucional.
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1980, p. 13.
41
Além da controvérsia mantida com a Igreja, a importância de Henrique II
para o direito inglês materializa-se pela formação de uma identidade nacional sob
o ponto de vista jurídico, o que deu ensejo a Common Law
68
.
Posteriormente, quando João Sem-Terra mencionou que a “Igreja de
Inglaterra” ostentava uma liberdade, quis e expressou a sua efetiva afronta ao
poder Papal, especificamente, em relação ao Papa Inocêncio III que pôs toda a
Inglaterra sob interdição e o excomungara em 1208
69
, o que dá a correta
proporção de que a monarquia inglesa, bem antes do início do anglicanismo por
Henrique VIII
70
, não mais pretendia ficar submetida à palavra do Papa o qual
tinha o poder supremo de excomungar o próprio rei, numa clara demonstração da
supremacia do poder da Igreja.
Durante os séculos XII e XIII o poder monárquico, em diversos aspectos
concernentes à vida e à estrutura social, objetivou a limitação dos privilégios da
Igreja, todavia, sem perder a parcela de poder e de controle referente à aplicação
de punição dos seus súditos mais importantes, como é possível constatar das
CClar., que, no seu artigo sétimo já acentuava:
“(...) Proibia a excomunhão de um comandante-em-chefe do rei (que
recebia terras diretamente dele, em contraste com o sub-comandante) ou de um
oficial do governo do rei, sem a permissão do rei (...).
71
.
68
A respeito do tema, ver exposição feita por CHRISTOPHER HILL, in Origens Intelectuais da
Revolução Inglesa. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 304: Common Law. Direito
consuetudinário ou costumeiro. A justiça foi unificada na Inglaterra por Henrique II. Ao
contrário das jurisdições tradicionais, que aplicavam os costumes locais, a competência dos
novos tribunais era válida para todo o reino. Daí o nome comune ley ou common law. Uma série
de tribunais ligados posteriormente por iniciativa real, as prerogative courts, disputaria com os
tribunais da common law a competência para julgar certos casos. No mesmo sentido, RE
DAVID. O direito inglês. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 4.
69
Cfr BERMAN, Harold J.. op. cit., p. 334.
70
QUENTIN SKINNER, in As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996, p. 303, informa: “Na Inglaterra, ao contrário, esta se realizou de
forma gradativa, assumindo, em alguns de seus estágios, as feições de movimento oficial.
Começou com o rompimento de Henrique VIII com Roma, em inícios da década de 1530, e com a
ofensiva do Parlamento contra os poderes da Igreja; tomou direção mais doutrinária, (e mais
calvinista) entre 1547, data da ascensão de Eduardo VI ao trono, e 1553, quando a ele sucedeu
sua irmã Maria; e completou-se, após a morte de Maria, em 1558, com o sucesso demonstrado na
constituição daquele híbrido ímpar, a consolidação ou compromisso (settlement) da Igreja
anglicana”.
71
Cfr BERMAN, Harold J.. op. cit., p. 328.
42
Se o comandante-em-chefe ou o oficial do governo do rei é uma extensão
do poder real, um longa manus, nada mais natural que a aplicação pela Igreja de
eventuais penalidades aos servidores reais mais destacados pudesse ser contestada
pelo monarca, o que dá a medida exata da presença de privilégios nas classes mais
abastadas ou junto aos ocupantes dos cargos reais.
Antes da reforma inglesa do século XVI com Henrique VIII, as CClar.
ficaram sobrestadas, porém, segundo a advertência feita por BERMAN, a
aplicação do artigo sétimo não era totalmente desconhecida ou desprezada, tendo
em vista a consulta ao monarca sobre a excomunhão de seus oficiais
72
.
A extensa controvérsia sobre a discussão dos privilégios ou do chamado
“benefício do clero”, segundo SKINNER
73
envolveu as situações atinentes às
isenções fiscais que várias casas religiosas pretendiam manter e acabaram por ser
contestadas pelos monarcas ingleses (Henrique VII e Henrique VIII), bem como
as questões relacionadas à imunidade processual dos membros da Igreja no caso
de muitos crimes capitais, a qual, por sua vez, sofreu efetiva restrição com a
aprovação em 1533 do Ato de Apelações, cujos termos proibiam as apelações a
Roma e transferiu a jurisdição da Igreja para a Coroa.
Portanto, não se pode negar que os monarcas orientados por um sentido de
concessão de privilégios aos ocupantes de cargos mais relevantes dentro do
reinado procuraram interferir na influência da Igreja e, com isso, puseram em
prática um sistema de proteção processual e de aplicação de pena aos mesmos.
A afirmação da supremacia monárquica em relação à eclesiástica produziu
freqüentes embates em toda a Europa, deste modo, estabelecendo um longo
processo de questionamento da presença e do controle jurisdicional da Igreja em
relação aos leigos e da possibilidade de avocação da competência dos tribunais
comuns para os tribunais eclesiásticos.
72
Cfr. BERMAN, Harold J.. op. cit., p. 335.
73
Cfr SKINNER, Quentin. op. cit., p. 340 e 367.
43
Toda discussão acerca do sistema de imunidade processual do clero quanto
à prática de crimes capitais e outros itens que guarneciam os privilégios do clero e
os poderes papais foram alvos de um crescente e ininterrupto confronto entre as
autoridades seculares e a Igreja, o que redundou no esvaziamento da jurisdição
eclesiástica e, por fim, na predominância dos tribunais comuns, como assinalado
por SKINNER ao revelar que “o outro ponto, ainda mais contencioso, no qual as
autoridades seculares vieram a exercer crescente pressão sobre a Igreja prendia-
se às jurisdições supranacionais tradicionalmente detidas pelo papa. Aumentava
o ressentimento ante o direito do papado a coletar impostos em seu próprio nome
e a controlar a concessão de benefícios no interior de cada Igreja nacional. Um
resultado desse descontentamento foi que em vários países as autoridades
seculares, negociando com a Sé romana, conseguiram extrair delas concessões
nessas duas questões cruciais. Isso permitiu que conservassem relações
relativamente amistosas com a Igreja, ao mesmo tempo que insistiam na condição
de seus reinos como “impérios”, exercendo os respectivos governantes completo
controle jurisdicional no interior de seu território.”
74
.
O desaparecimento das jurisdições pontifícias do dia a dia do reinado, como
foi dito, não esteve só em pauta na Inglaterra, mas em todo o Velho Mundo, cuja
recusa a manutenção do poder jurisdicional eclesiástico se desenvolveu, em
alguns casos, pela atuação da Reforma
75
e da atuação da Igreja Luterana (Europa
do Norte)
76
.
O abrandamento e, por fim, a supressão da competência pontifícia sobre a
secular era impostergável e restou materializada nas diversas concordatas
subscritas pela Igreja com alguns governos, como por exemplo, a França (Sanção
Pragmática de Bourgees de 1438) e a Espanha, o que não foi possível na
Inglaterra, Alemanha (Gravamina ou “agravos da nação germânica”, Dieta de
Frankfurt de 1456 e Dieta de Worms de 1521) e na Escandinávia (Código Civil e
Eclesiástico de Byretten – Dinamarca 1521 – 1522)
77
.
74
Cfr SKINNER, Quentin. op. cit., p. 340.
75
Fundamental a consulta de JACQUES BARZUN, in Da Alvorada à Decadência: A História da
Cultura Ocidental de 1500 aos nossos dias. Rio de Janeiro: Campus, 2002, p. 24/27.
76
Cfr SKINNER, Quentin. op. cit., p. 345.
77
Cfr SKINNER, Quentin. op. cit., p. 340/341.
44
A formação do pensamento político moderno, no caso, livre da influência da
Igreja nos assuntos pertinentes ao Estado e, concomitantemente, forjou a tradição
jurídica ocidental, com isso, deles alijando a participação da Igreja e afirmando a
jurisdição do monarca sobre os seus súditos.
Vale dizer, neste passo, que a formação da tradição jurídica ocidental laica,
movida ou não pelas disputas existentes entre monarcas e a Igreja acerca da
cobrança de impostos às ordens religiosas, possibilitou a discussão quanto aos
privilégios conferidos aos eclesiásticos, ou seja, “o benefício do clero”.
Perceptível, nesses termos, que em boa parte da idade medieval, a
construção de um chamado foro privilegiado não era estranha ao domínio jurídico
e sempre esteve presente nos regramentos impostos pela Igreja e decisões papais,
bem como no disciplinamento normativo efetuado pelos monarcas e nas suas
deliberações.
Os dados acima indicam a presença de benesses em favor de determinadas
autoridades ligadas ao clero ou ao monarca, com o intuito de propiciar um sistema
de imunidade processual pautado em privilégios, pois o fundamento da sua
concessão está na importância do cargo ou da pessoa junto à Igreja ou do reinado.
As Constituições de Clarendon de 1164 aparecem, talvez, como o primeiro
documento político a reconhecer que um “comandante-em-chefe do rei” ou um
“oficial do governo do rei” tinham a limitação quanto à deflagração de processos
pela Igreja contra os mesmos, o que identifica uma circunsncia bem parecida
com o foro por prerrogativa de função definido e constante do ordenamento
constitucional moderno.
Por outro lado, longa foi a controvérsia quanto à submissão dos membros
mais importantes da Igreja (arcebispos, bispos e outros clérigos) à justiça comum,
o que foi objeto de acirrado conflito entre a Igreja e os principais monarcas na
Europa, numa demonstração clara de disputa de poder político e de interferência
da Igreja nos assuntos do Estado.
45
De um lado, o monarca quis sobrepor a sua autoridade e a preservação dos
mais altos e destacados servidores ou funcionários do reinado da aplicação do
direito canônico e a Igreja, ao seu turno, não se mostrava disposta a permitir que
os seus membros mais importantes pudessem ser processados e julgados pelo
monarca.
Como já restou demonstrado, a imunidade processual dos membros da
Igreja foi, primeiramente, mitigada e acabou cessando por intermédio das
concordatas anteriormente mencionadas (França e Espanha), sendo certo que na
Inglaterra, Alemanha
78
e países nórdicos a influência religiosa promovida pela
Reforma Protestante deu ensejo à era moderna, a qual questionou o sistema de
privilégios elaborado pela Igreja Católica aos seus membros e a imposição da
Igreja em manter uma competência para processar e julgar os leigos junto aos
tribunais eclesiásticos, fato exposto e criticado com veemência na Declaração de
agravos (Dieta de Worms de 1521), à medida que “os autores da declaração
começam queixando-se do “benefício do clero”, argumentando que tal sistema
“necessariamente anima os clérigos a praticar atos perversos, ainda mais porque
os tribunais eclesiásticos os libertam com facilidade, seja qual for o crime
cometido” (p. 58). Depois, reclamam que o clero está “solapando a autoridade
secular”, já que “arrasta os leigos aos tribunais eclesiásticos” e ao mesmo
tempo “arranca o que quer” da jurisdição dos tribunais comuns (p.62).
79
.
Ao que se depreende do processo histórico instaurado na Inglaterra e por
outros governos, o rompimento com a Igreja Católica fomentou o repúdio à
concessão de privilégios em todos os níveis, o que teve reflexos na formação
jurídica (constitucional) de determinados países, ao contrário do contexto que
acabou por se estabelecer na Península Ibérica, onde toda a rede e complexidade
para a concessão de privilégios sempre estiveram presentes por força da atuação
dos monarcas e dos ordenamentos por eles emitidos e pela exemplificação
emanada da Igreja, cuja presença se manteve extremamente acentuada.
78
Cfr. ALTHUSIUS, Johannes. Política. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003, p. 258, item 17.
79
Cfr SKINNER, Quentin. op. cit., p. 340.
46
Temos, assim, o reconhecimento de um foro privilegiado, onde se pretendeu
firmar um órgão exclusivamente competente para o julgamento daqueles que
exerciam as mais altas funções públicas do reinado, diferentemente do que
aconteceu no Império Romano em que a distinção ou o privilégio era demarcado
pela natureza do crime, a partir do século XII, o mesmo passou a orientar-se pelos
cargos ou funções ocupadas dentro da estrutura real, ou seja, “não sobre natureza
dos fatos, mas sobre a qualidade das pessoas acusadas, estabelecidos em favor
dos nobres, dos juízes, dos oficiais judiciais, abades e priores etc., fidalgos e
pessoas poderosas, casos esses que se confundiam muitas vezes com os casos
reais”
80
.
É de se acrescentar, ademais, que nos séculos subseqüentes “(...) foram
restringindo os casos reais e se ampliando os casos privilegiados, ficando estes
como correlativos opostos aos casos comuns, sujeitos às justiças ordinárias, a tal
ponto que a classificação dos crimes, em relação às jurisdições, foi esta: crimes
privilegiados, crimes eclesiásticos e crimes comuns, distinguindo-se estes dos
outros, principalmente por constituírem, em regra, os casos de devassa a cargo
dos juízes locais, ao passo que os privilegiados estavam a cargo dos
corregedores e dos ouvidores e os eclesiásticos a cargo das oficialidades
eclesiásticas.
81
.
Um retrato da estratificação social e política na Idade Média traz à colação o
pertinente exame da comunidade senhorial e dos vassalos desenvolvida por
JACQUES LE GOFF, ao demonstrar a presença de uma impermeável estrutura de
poder destinada à proteção dos senhores feudais, mediante a interferência no
processo de escolha daqueles que seriam encarregados da realização dos
julgamentos, pois “(...) em diversos níveis, e com mais ou menos prestígio, ambos
pertenciam ao senhorio, ou melhor, ao senhor de que dependiam. Ambos eram
“homens” do senhor, num sentido nobre e outro num sentido humilhante. Os
termos que muitas vezes acompanhavam tal palavra estabeleciam a distância
existente entre suas condições. Para o vassalo, por exemplo, “homem de boca e
de mãos” evoca uma intimidade, uma comunhão, um contrato que o colocava,
80
Cfr. JÚNIOR, João Mendes de Almeida. op. cit., p. 81.
81
Cfr. JÚNIOR, João Mendes de Almeida. op. cit., p. 81.
47
embora em posição inferior, no mesmo patamar que seu senhor. Por outro lado,
o “homem de poder” (homo de potestate), isto é, que dependia, estava entregue
ao poder do senhor. Em troca apenas da proteção e da contrapartida econômica
da dependência – num caso o feudo e noutro a tenência – ambos tinham em
relação ao senhor uma série de deveres: ajudas, serviços, prestações, e ambos
estavam submetidos ao seu poder – que se manifestava mais nitidamente do que
nunca no domínio judiciário.
82
.
O modelo de concessão de privilégios acima indicado, tal como já objeto de
destaque anteriormente, foi combatido pelos governos mais fortes, os quais não
pretendiam se submeterem à ordenação legal firmada pela Igreja que deles
suprimiram a competência para processar e julgar os membros mais importantes
do Clero e, tampouco, admitiam, no plano interno, que a Comunidade Senhorial
pudesse ter um monopólio da justiça quanto aos súditos da Coroa.
A compreensão da esfera pública medieval e o envolvimento da
comunidade senhorial em relação à mesma, em outras palavras, é objeto de
explicação, uma vez que a apropriação pelos senhores feudais da função julgadora
representou a sua intervenção na ordem pública, porque “entre as funções que os
senhores feudais solaparam do poder público, não houve outro mais pesado para
os dependentes do que a função judiciária. Sem dúvida o vassalo era chamado na
maioria das vezes a se sentar no lado bom em vez do lado mal do tribunal – ou
como juiz, ao lado do senhor, ou no lugar dele –, mas também estava submetido
aos vereditos deste tribunal – em caso de delito se o senhor tivesse apenas
direitos de baixa justiça, e em caso de crime se o senhor controlasse a alta
justiça. Neste caso, a prisão, a forca e o pelourinho, prolongamentos sinistros do
tribunal senhorial, eram símbolos mais de opressão do que de justiça. Sem
dúvida que os progressos da justiça real ajudou a emancipar os indivíduos, que
viam seus direitos melhor garantidos na comunidade mais ampla do reino do que
no grupo mais estreito, mais constrangedor e mais opressivo do senhorio. Mas
tais progressos foram lentos.
83
.
82
Cfr. GOFF, Jacques Le, op. cit., p. 288.
83
Cfr. GOFF, Jacques Le, op. cit., p. 288-289.
48
Daí se vê uma evidente preocupação daqueles que exercitaram o poder
dirigido aos súditos ou vassalos em se manterem no domínio da esfera pública
encarregada de dirimir os litígios e da aplicação das punições adequadas às
hipóteses entregues para julgamentos.
Neste momento, o exercício da função política concernente à realização do
ato de julgar, simultaneamente, possibilita a distribuição das vantagens ou dos
privilégios aos membros da Corte, na verdade, os seus apaniguados políticos.
Os senhores feudais e os monarcas perceberam a importância de possuir o
controle da função jurisdicional com a escolha dos julgadores para legitimar a
imposição de possíveis sanções, consolidando o monopólio desta atividade
estatal, a par de infirmar a competência da Igreja quanto aos litígios da órbita
cível e da aplicação de penalidades (matéria penal).
Sendo a atividade jurisdicional uma parcela das mais relevantes do Poder
Público, a rigor, seria inconcebível que os monarcas dotados de forte capacidade
centralização e inegavelmente mais poderosos que a Comunidade Senhorial
deixassem o processamento e a realização da Justiça propriamente dita ao inteiro
alvedrio dos Senhores ou da Nobreza, porquanto o mesmo significaria um real
esvaziamento das suas funções e poderes, o que foi alvo de extensa disputa com a
Igreja.
Embora, circunscrevendo a sua análise ao plano da introdução histórica ao
direito privado, bem como a formação e todo o mecanismo de funcionamento dos
tribunais e do processo na órbita privatística, R. C. VAN CAENEGEM assinala
que os juizes e tribunais foram criados por volta do fim do século XII na baixa
Idade Média, sendo o magistrado, com efeito, um novo tipo de funcionário
episcopal, o que deixou de ser uma realidade na alta Idade Média com a
centralização do sistema judiciário e a sua secularização, ou seja, a jurisdição
central firmada na Inglaterra por Henrique II que, paulatinamente, eliminou a
aplicação da justiça eclesiástica e os tribunais feudais e senhoriais
84
.
84
CAENEGEM, R. C. Van. Uma Introdução Histórica ao Direito Privado. 2ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2000, p. 141-142.
49
R. C. VAN CAENEGEM informa, ainda, que a instituição dos tribunais
seculares na França, em suma, deu ensejo ao Parlamento de Paris que “tornou-se
a suprema corte real por volta da metade do século XIII. Tinha competência em
primeira instância para alguns assuntos e para as pessoas importantes; como
tribunal de apelação, sua jurisdição era geral.”
85
.
É de se concluir que o controle da atividade jurisdicional pelos monarcas
conheceu total predominância na Idade Média tão logo os privilégios conferidos à
Igreja foram suprimidos, o que representou, no plano interno, o término da
jurisdição supranacional Eclesiástica e, por conseguinte, a cessação da sua
interferência.
Esta jurisdição centralizada teve aplicação nas causas cíveis e criminais,
mantendo-se o exercício de privilégios em ambas, contudo, com maior ênfase
para o plano processual e criminal.
A questão concernente à fixação dos privilégios na órbita interna dos
governos passou a ser uma tarefa do monarca ou da Comunidade Senhorial, quase
sempre, na procura de se estabelecer a proteção dos seus membros ou ocupantes
dos cargos de maior relevância, o que dá exata dimensão de que as figuras
centrais da estrutura de governo gozavam da tutela jurisdicional, não só pelo
caráter pessoal dos envolvidos no processo criminal, exemplo a Curia Regis na
França, onde “um corpo de privilegiados só pode ser julgado por seus pares
86
,
diferentemente das Constituições de Clarendon que buscavam a designação do
privilégio em atenção ao cargo (comandante-em-chefe do rei e o oficial do
governo do rei)
87
, atendendo a uma condição objetiva e não circunscrita ao
aspecto pessoal.
O afastamento da jurisdição eclesiástica fez parte de um processo histórico
deflagrado por diversos monarcas que agiram instintivamente para a realização e
85
CAENEGEM, R. C. Van. op. cit., p. 143.
86
Cfr. GIORDANI, Mário Curtis. História do Mundo Feudal II/1. op. cit., p. 280.
87
Cfr BERMAN, Harold J.. op. cit., p. 328.
50
transformação daquilo que à época exigia
88
, ou seja, numa clara alusão a HEGEL,
os seus objetivos pessoais continham a vontade essencial do Espírito do mundo
89
,
mas, o mesmo não representou o afastamento dos privilégios nas jurisdições
seculares criadas com a supressão da autoridade Papal.
Um relato sobre todo o contexto político vivenciado na Inglaterra,
naturalmente, seria ineficaz sem a abordagem do modelo formulado por Hobbes,
o qual deixou assentado em sua obra Leviatã, onde criou os elementos de uma
verdadeira teoria política, a necessidade de que a nobreza desfrute de
privilégios
90
, inclusive destacando, por ocasião do exame dos Ministros Públicos
do poder soberano que os lordes tinham o privilégio de ter outros lordes como
seus juizes em se tratando de litígios públicos, ou seja, causas políticas que
ensejam o reconhecimento de crimes capitais
91
.
A visão Hobbesiana retratou o perfil existente à época, no sentido da
inexistência de privilégios quanto ao foro nas controvérsias civis, ainda que os
lordes, elementos mais destacados da vida social e política inglesa viessem a
participar da lide
92
, contudo, reconhece que eventual litígio entre a parte julgada e
o juiz (o Ministro Público nomeado pelo Soberano) só deveria ser decidida pelo
Soberano ou por juiz indicado pelo mesmo, o que revela uma tendência
protecionista quanto ao julgamento daqueles que ocupam cargos públicos por
indicação do Soberano (quer este seja um monarca ou uma assembléia)
93
.
88
Sobre o processo de transformação da sociedade, é conveniente a leitura de CASTORIADIS,
Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 5ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000, p. 220,
ao mencionar que: “Mais assim como a sociedade não pode ser pensada dentro de nenhum dos
esquemas tradicionais da coexistência, a história não pode ser pensada dentro de nenhum dos
esquemas tradicionais da sucessão. Porque o que se dá em e pela história não é seqüência
determinada do determinado, mas emergência da alteridade radical, criação imanente, novidade
não trivial. É isso que manifestam tanto a existência de uma história in toto, como o aparecimento
de novas sociedades, (de novos tipos de sociedades) e a autotransformação incessante de cada
sociedade.
89
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A Razão na história: Uma introdução geral à filosofia da
história. 2ª ed. São Paulo: Centauro, 2004, p. 79.
90
HOBBES, Thomas. Leviatã (Clássicos Cambridge de Filosofia Política). São Paulo: Martins
Fontes, 2003, p. 77.
91
HOBBES, Thomas. op. cit., p. 207-208.
92
HOBBES, Thomas. op. cit., p. 208.
93
HOBBES, Thomas. op. cit., p. 204 e 207.
51
Podemos sustentar que a reminiscência da prerrogativa de função firmada
na visão republicana com o advento das constituições liberais pós-Revolução
Francesa, de alguma forma, já encontrava na Idade Média os seus indicativos, isto
é, uma continuidade que tomou como ênfase a concessão da prerrogativa não à
pessoa, mas para o cargo público ocupado, circunstância que era expressa na vida
política inglesa, como se pode constatar das CClar. e da visão política descrita no
modelo Hobbesiano.
Não se deve esquecer, ainda, que o processo histórico que determinou a
restrição aos privilégios, numa visão abstratamente considerada, em síntese,
possibilitou que a Inglaterra editasse vários textos normativos (Magna Charta
Libertatum de 1215, Petition of Right de 1628, Lei de Habeas Corpus de 1679,
Bill of Rights de 1689 e Ato de Estabelecimento de 1701) em busca da contenção
dos privilégios reais e de uma imperceptível afirmação dos direitos de uma classe
e, posteriormente, estendidos a toda a sociedade inglesa.
E, a pretexto da listagem apresentada, não se pode desconhecer que o
Habeas Corpus surgiu como o primeiro documento que restringiu diversos
direitos do monarca e, concomitantemente, pôs em prática a preservação de
determinados privilégios dos barões normandos que se achavam em risco, como
se deduz do item 21: “Não serão aplicadas multas aos condes e barões senão
pelos pares e de harmonia com a gravidade do direito.”
94
.
Acerca da Magna Carta, PEDRO CALMON
95
estabeleceu que o “direito
público formal surge na “Magna Carta”, que os barões ingleses impuseram, em
1215, a João Sem Terra, pois, nela se dizia, por exemplo, que todos os súditos
seriam julgados “segundo a lei do país”. Por via da “concórdia” a norma,
abstrata, prevaleceu sobre a plenipotência real. Quando ela se fizesse tradição,
estaria criado o “constitucionalismo” britânico.”.
94
Vide JORGE MIRANDA. op. cit., p. 14.
95
CALMON, Pedro. Curso de Teoria Geral do Estado. 6
a
ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1964,
p. 67.
52
No mesmo sentido revelado acima, GAETANO MOSCA e GASTON
BOUTHOUL
96
endossam o pensamento de que “na verdade, não se pode afirmar
que a Magna Charta, escrita em latim grosseiro misturado com expressões
francesas e inglesas canhestramente latinizadas, e que foi definida como o
fundamentum libertati Angliae, contenha os elementos de uma constituição
moderna. Foi este na realidade um dos numerosos pactos entre barões e rei
bastante comuns durante o regime feudal, e que estava em conformidade com a
natureza mesma deste regime”.
A experiência demonstra que a manutenção de privilégios em prol dos
barões contra a figura do monarca inglês João Sem-Terra que tentava impingir
aumento acentuado de tributos, embora tenha representado, com o passar dos
anos, um manifesto destinado à preservação da liberdade e da justiça, mas, na
verdade, nada mais era do que uma salvaguarda dos privilégios reclamados pelos
barões normandos
97
.
A Magna Carta inaugura, assim, uma série de documentos normativos
(Ciclo Constitucional Inglês) que, de maneira paulatina, promoveram o
assentamento da igualdade na Inglaterra
98
e o estabelecimento de garantias na Lei
de Habeas Corpus de 1679, no Bill of Rights de 1689 e no Ato de Estabelecimento
de 1701, neste último caso, inclusive, impedindo que os juízes pudessem ser
afastados da função por determinação do monarca, mas sim por iniciativa de
ambas as Câmaras do Parlamento
99
, bem como, concretizando a integral
subordinação da Igreja ao poder secular no período (reinado) Tudor
100
.
Em contraste com o Ciclo Constitucional Inglês, o constitucionalismo
francês concentrou as mudanças limitadoras dos privilégios do Antigo Regime na
96
Vide a este respeito: MOSCA, Gaetano e BOUTHOUL, Gaston. História das Doutrinas
Políticas desde a Antigüidade. 6
a
ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987, p. 157-158.
97
BRIGGS, Asa. História Social de Inglaterra. Lisboa: Presença, 1998, p. 70.
98
Vide CHRISTOPHER HILL. op. cit., p. 319: Assim como ocorreu com a Magna Carta, que de
carta de privilégios baronial transformou-se em declaração dos direitos de todos os ingleses
livres, um princípio tipicamente feudal recebeu de Coke um novo significado, quando ele afirmou
que “a casa de um inglês é, para ele, como se fosse o seu castelo”.
99
Vide JORGE MIRANDA. op. cit., p. 27, o artigo 7º do Ato de Estabelecimento de 1701.
100
HILL, Christopher. op. cit., p. 306.
53
sua Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e, posteriormente,
na Constituição de 1791.
Ao findar este tópico, é possível concluir que o sistema de concessão de
privilégios na Inglaterra e na França não foi direcionado, necessariamente, à
proteção dos membros ou daqueles que exerciam a função judicante, mas sim, à
tutela dos interesses da Nobreza. Se efetivarmos um contraponto com o elenco de
privilégios definidos na esfera da Justiça criminal e civil nas legislações
espanholas e portuguesas, observaremos que a condescendência e aceitação dos
povos latinos aos privilégios sempre foi total, não impondo qualquer critério de
resistência.
No direito inglês, é possível afirmar que a dinastia Tudor
101
sacramentou o
afastamento dos privilégios desenvolvidos pela Igreja, com isso, eliminando a sua
influência do direito inglês desde o início do século XVII, como registrado por
CHRISTOPHER HILL ao informar que “antes da reforma, os tribunais
eclesiásticos eram parte de uma organização internacional: agora faziam parte
de um sistema jurídico nacional. Apesar de atuarem em nome do bispo, eram
tribunais do rei, tanto quanto um tribunal, senhorial que dizia atuar em nome de
um senhor feudal. Coke precisava, naturalmente, dizer que os tribunais
eclesiásticos sempre haviam estado subordinados à autoridade real; sua
argumentação, porém, fundamenta-se na consolidação da autoridade nacional
conquistada durante o século Tudor.”
102
.
Portanto, o gradual afastamento da influência do Papa na Inglaterra, bem
como da própria Igreja Anglicana dos assuntos do Estado, uma vez que era
chefiada pelo Rei Inglês, em resumo, possibilitou a construção de um país dotado
de uma identidade própria e livre das incessantes disputas mantidas com a Igreja
acerca do exercício e da preservação de privilégios.
101
Vide ABRAHÃO KOOGAN; ANTÔNIO HOUAISS (Ed.). Enciclopédia e Dicionário
Ilustrado. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1993, p. 1589: Família dinástica inglesa,
originária, com Owen Tudor, do País de Gales. Entre 1485 e 1603, cinco soberanos desse nome
reinaram na Inglaterra: Henrique VII, Henrique VIII, Eduardo VI, Maria I e Isabel I.
102
HILL, Christopher. op. cit., p. 333.
54
Os monarcas ingleses antes de empreenderem uma unificação normativa,
com efeito, puseram em prática à sistemática e os preceitos ditados por
MAQUIAVEL que considerava imprescindível à organização de um Estado,
porquanto um “país só pode ser realmente unido e prosperar quando obedece por
inteiro a um único governo, seja ele monarquia ou república. Assim é a França,
assim é a Espanha. Se o governo na Itália inteira não está assim organizado,
seja em república seja em monarquia, isso devemos apenas à Igreja”, tal como
salientado por LOUIS ALTHUSSER
103
.
Nos exatos termos da França e da Espanha, o reino da Inglaterra eliminou
os privilégios da Igreja, aliás, um dos motes para justificar a dissociação da
mesma dos assuntos do Estado, antecipando à noção de resistência aos privilégios
eclesiásticos e da nobreza efetivada na Revolução Francesa.
Conscientemente ou não, os monarcas ingleses desde a edição das
Constituições de Clarendon em 1164 e do extenso litígio que se estabeleceu com
o Rei João sem-terra em 1208, pretenderam e conseguiram tirar o máximo
proveito de todos os embates mantidos com a Igreja, reforçando a idéia de que os
Príncipes tornam-se grandes quando superam as dificuldades e as oposições
que lhes são feitas
104
, ou seja, conquistaram as suas respectivas reputações com o
embate proporcionado pelos próprios inimigos, vencendo-os “com aquela escada
que os seus inimigos lhe trouxeram
105
e ascendendo ao poder absoluto em seu
país.
É possível afirmar, portanto, que a rejeição aos privilégios da Igreja e da
nobreza constituiu uma das bases do Constitucionalismo inglês
106
, o qual teve
difusão efetiva no mundo moderno
107
e, sobretudo, propiciou a formação de um
Estado laico, em razão da submissão da Igreja Anglicana em relação ao Estado.
103
ALTHUSSER, Louis. Política e história, de Maquiavel a Marx: curso ministrado na École
Normale Supérieure de 1955 a 1972. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 225.
104
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Hedra, 2007, p. 207.
105
Vide MAQUIAVEL, Nicolau. op. cit., p. 207.
106
Neste sentido, FERREIRA, Pinto. op. cit., p. 103-106.
107
Cfr. CAETANO, Marcelo. op. cit., p. 68.
55
2.2.3
Exame do Privilégio na Espanha, Portugal e no Brasil Colônia.
O privilégio no aparelho judiciário também encontrou nas leis processuais
e penais aplicação nas regulamentações elaboradas na Espanha e em Portugal.
A criação de normas na Península Ibérica não suscitou os mesmos
embates observados nos demais reinos europeus, daí porque a disputa de poder
entre monarca, a nobreza feudal eclesiástica e leiga, bem como o próprio Clero,
de certa forma, não chegou a assumir os mesmos contornos presentes na
Inglaterra, levando-se em conta a força demonstrada à época pelos Reis de
Espanha e Portugal.
Impende notar que o período do direito consuetudinário e foraleiro em
Portugal (1140-1248) primou pela expedição das chamadas cartas de privilégio
(forais), prenúncio do direito público português, consistentes na outorga pelo
monarca de poderes a certa pessoa ou a um agrupamento de indivíduos
especificados, objetivando a delimitação de regalias e vantagens, pois o conteúdo
normativo de uma carta foral implicava no estabelecimento de regras
concernentes a impostos, a composição de multas devidas pela prática de crimes e
até previsões quanto aos encargos e privilégios de cavaleiros e peões
108
.
J. IZIDORO MARTINS JÚNIOR ao analisar a estrutura social portuguesa
revela que “não foi só pelas concessões de forais que Afonso III procurou cercear
o poder da nobreza e especialmente dos prelados. Ainda nesse intuito e também
para fazer pesar o poder real sobre as próprias povoações foralizadas,
promulgou um grande número de leis gerais, de natureza penal, e, modificando
as de Afonso II sobre juízes eleitos pelo povo, criou, à semelhança do missi-
dominici das Capitulares, magistrados especiais, encarregados de fazer
inquisições anuais sobre o procedimento daqueles juízes.”
109
.
108
Cfr. SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. op. cit., p. 163-165.
109
JÚNIOR, José Izidoro Martins. História do Direito Nacional. 3ª ed. Brasília: Departamento de
Imprensa Nacional, 1979, p. 64. No mesmo sentido: JÚNIOR, João Mendes de Almeida. op. cit.,
p. 82-89.
56
É inquestionável que a presença de monarcas dotados de imenso poderio,
com capacidade de centralização e sem a presença de uma nobreza (Senhores) que
pudesse criar entraves ao domínio real, naturalmente, motivou um processo de
acomodação com a Igreja, o que ensejou a redução de privilégios conferidos ao
Clero e facilitou o desenvolvimento de legislações próprias, como se dessume das
Leis das Siete Partidas e das Ordenações
110
.
Na Espanha, assim, houve a criação em Castela, no século XIII, de uma
coletânea normativa que veio a ser denominada Lei das Siete Partidas, a qual se
manteve em vigor até o século XIX, cujos fundamentos emanam do direito
comum
111
firmemente difundido na Península Ibérica.
Por isso mesmo, antes de serem editadas as leis gerais no Direito
Português, no caso, as Ordenações, a Coroa Portuguesa, no reinado de D. Diniz
sempre no intuito de favorecer toda propaganda que tendesse ao fortalecimento
do poder da coroa, além de mandar traduzir em português a lei das Sete Partidas
(promulgada na Espanha por Afonso, o Sábio) e de ordenar ou permitir que ela
fosse adotada em Portugal como legislação subsidiária, promoveu e realizou a
fundação da Universidade de Lisboa, determinando que nela fosse ensinado o
Direito Romano. É que a Lei das Sete Partidas era essencial e profundamente
romanista, e que da Universidade haviam de sair, ao influxo do direito
justiniâneo, os jurisconsultos regalistas, os acérrimos defensores da onipotência
monárquica. E isto porque, como observa Cândido Mendes, o novo direito
alargava o poder e prerrogativas da autoridade real. Lá se achava inscrita a
célebre máxima de Ulpiano: - quod principi placuit, legis habet vigorem
112
.”
113
110
Cfr. JÚNIOR, João Mendes de Almeida. op. cit., p. 83.
111
O direito comum foi basicamente um direito romano-canónico, apesar de nele estarem também
inseridos institutos dos direitos tradicionais dos povos europeus. (Cfr. HESPANHA, António
Manuel. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Europeia. 2ª ed. Portugal: Publicações Europa-
América, LDA., 1998, p. 86.
112
Quod principi placuit, legis habet vigorem: O que apraz ao Príncipe, tem força de lei. (Vide
ROBERTO DE SOUZA NEVES, in Dicionário de Expressões Latinas Usuais: 15.000 adágios,
provérbios e máximas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, p. 496.
113
JÚNIOR, José Izidoro Martins. op. cit., p. 65.
57
Em Portugal, foram editadas as Ordenações Afonsinas
114
, Manuelinas
115
e
Filipinas
116
, modelos de uma codificação nos padrões modernos, à medida que
disciplinaram os aspectos relativos ao Estado Português, inclusive, com a
elaboração de normas definidoras de direitos fundamentais em prol de judeus e
mouros (Ordenações Afonsinas)
117
, a par de enumerar os variados privilégios que
deveriam ser observados.
No Brasil Colônia, a aplicação das codificações portuguesas, no caso, as
Ordenações estão presentes desde a Ordenação Afonsina de 1446, contudo, a
maior influência normativa na órbita colonial brasileira foi promovida pelas
Ordenações Filipinas
118
.
Sendo assim, no que diz respeito ao direito brasileiro, empreenderemos
um rápido apanhado acerca da questão do privilégio e da “prerrogativa de função”
no período que envolve a sedimentação do direito e da justiça no Brasil colonial.
A ressalva quanto ao período abrangido pela pesquisa, no que concerne ao
Brasil Colônia, visa prevenir e evitar controvérsias quanto ao lapso temporal
abordado nesta tese, considerando que a aplicação das Ordenações Filipinas em
solo brasileiro, só teve término efetivo com a edição dos primeiros códigos no
século XX
119
.
Deste modo, convém destacar, que o primeiro conjunto de normas
elaborado na Península Ibérica foi a Lei das Siete Partidas e são diversos os
aspectos que evidenciam a presença de uma regulamentação protetiva e
garantidora de privilégios aos membros mais destacados da sociedade ou, então,
aos ocupantes dos mais altos cargos da estrutura de governo na Espanha.
114
Período de vigência de 1446 até 1511. (Cfr., HAROLDO VALLADÃO. História do Direito
Especialmente do Direito Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1980, p. 74).
115
Período de vigência de 1511 até 1603. (Cfr. HAROLDO VALLADÃO. op. cit., p. 74-75).
116
Período de vigência de 1603 até 1786. (Cfr. HAROLDO VALLADÃO. op. cit., p. 75-76).
117
Cfr. CUNHA, Paulo Ferreira da. Para uma História Constitucional do Direito Português.
Coimbra – Portugal: Almedina, 1995, p. 217-221.
118
Para esse alcance, vide JOSÉ IZIDORO MARTINS JÚNIOR. op. cit., p. 70: “Foi Filipe II que,
em janeiro de 1603, decretou a observância, por todo o reino, das Ordenações Filipinas, - o
código destinado a reger por mais de dois séculos a nação portuguesa, e a ser, ainda hoje, em
vésperas do século XX, a pedra angular do direito civil brasileiro!”.
119
CUNHA, Paulo Ferreira da. op. cit., p. 163.
58
2.2.3.1
Exame dos Privilégios na Lei das Siete Partidas e nas Ordenações.
A concessão de privilégios na Lei das Siete Partidas tem espaço, por
exemplo, contra a aplicação de penas e, também, no emprego de torturas para a
obtenção de confissões, como bem analisado em extenso estudo efetivado por
ANA LUCIA SABADELL, ao comentar que “os privilégios, via de regra,
hereditários, são parte integrante da ordem jurídica das Idades Média e Moderna
enquanto expressão (e garantia) da “essência” de uma sociedade organizada em
estamentos. Em geral, os privilégios são estabelecidos em função da nobreza,
mas também podem ser determinados devido ao exercício de cargos militares,
políticos e clericais. Os privilégios impõem um tratamento jurídico diferenciado
aos seus beneficiários. Assim, só excepcionalmente são aplicadas penas graves e
infamantes contra pessoas oriundas de grupos privilegiados. Isso se verifica
também em relação à tortura, observando-se que a maioria dos privilégios já está
prevista nas Partidas. O mesmo vale em relação às exceções (ou imunidades)
sobre a tortura, que afetam grupos que, devido à sua condição momentânea
(física ou psíquica), gozam de um tratamento mais “brando”, como por exemplo
as mulheres grávidas, os idosos, etc.”
120
.
Outras considerações semelhantes podem ser retiradas sobre a questão em
apreço, pois a opinião de diversos autores quanto aos privilégios contidos na Lei
das Siete Partidas revela o caráter irrenunciável de tais vantagens, segundo o
estamento (classe social), e não a determinadas pessoas, o que nos oferece um
indicativo de que o privilégio era difundido indistintamente entre os nobres e
ocupantes dos cargos públicos superiores, a exceção de o nobre vir a ser alijado
de seus privilégios, o que dependeria do cometimento de crime de lesa-
majestade
121
.
120
SABADELL, Ana Lucia. Tormenta juris permissiones. Tortura e Processo Penal na Península
Ibérica (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 198.
121
SABADELL, Ana Lucia. op. cit., p. 199 e 202.
59
Afirma-se, contudo, que a aplicação da tortura e de outros meios menos
questionáveis à preservação da incolumidade física dos indivíduos encontrava
restrições quanto aos representantes do clero, muito embora a Lei das Siete
Partidas tenha estipulação de que os membros da Igreja somente deviam ser
punidos, no caso de delitos graves, com “azotes” (açoitamentos), algo que parece
ser factível aos clérigos de menor importância, sendo inviável que o mesmo
aconteça com os bispos que gozam de absoluta imunidade graças à “excelsa
dignidad” e que viesse a ser efetivada imoderadamente contra os clérigos, sob
pena da excomunhão do responsável pela tortura
122
.
A compilação normativa da Lei das Siete Partidas teve aplicação nos
Reinos de Castela e também na Catalunha, basicamente, apresentando os mesmos
critérios quanto à observância dos privilégios
123
, devendo se destacar que, “de
fato, o direito penal, originado no direito comum não prevê um “tratamento
igual” dos diferentes estamentos e grupos de pessoas, conforme já verificamos
em relação à concessão de privilégios processuais penais dos nobres e dos
milites. Esse princípio geral manifesta-se também no discurso de nossos autores
em relação à tortura. São excluídos do interrogatório sob tortura os seguintes
grupos: os milites, a nobreza, os legum doctores, os detentores de cargo público,
os jovens com menos de 14 anos, os idosos e as mulheres durante a gravidez e o
período de amamentação.”
124
.
No tocante às Ordenações, foram codificações marcadas por uma
acentuada estruturação, cuja indicação dos privilégios fizeram parte de um rol
exaustivo, dentre os quais, os Títulos XLVIII, XLIII, XXVII, XVIII a XX, XXIII,
XXXI, XLIX, XLV e XXVI das Ordenações Afonsinas e os Títulos XLIV, XLV,
XLVII, XLIX, L, LI, LVI, LVII, LVIII, LIX, LX, LXI, LXII, LXIII das
Ordenações Filipinas.
Interessa-nos, particularmente, o exame das Ordenações Filipinas porque,
como já dito alhures, as mesmas vigeram em boa parte no Brasil por todo o
122
Para esse alcance: ANA LUCIA SABADELL. op. cit., notas de rodapé 657 e 662, p. 201-202.
123
SABADELL, Ana Lucia. op. cit., p. 289 e 341-344.
124
SABADELL, Ana Lucia. op. cit., p. 341-342.
60
período do Brasil Reino, além do anterior, a par com legislação local
125
e, com
efeito, durante o primeiro Império, quase todas elas estiveram ainda em vigor
entre nós; no segundo, salvo o livro 5º que se tornou inaplicável com a
promulgação do Código Criminal do Império
126
.
A par da definição dos privilégios, as Ordenações consolidaram todo o
processo de cisão das justiças seculares e eclesiásticas, à medida que o livro 1º
(primeiro), Títulos XI e XII das Ordenações Manuelinas e o primeiro livro das
Ordenações Filipinas, Título XII, números 5 e 6 (do Procurador dos Feitos da
Coroa)
127
estabeleceram possibilidade de questionamento da incidência da justiça
eclesiástica nas hipóteses submetidas aos juízes seculares, mediante a expedição
de Cartas dirigidas aos juízes eclesiásticos, no intuito de declarar a jurisdição da
justiça secular, a afirmação da incompetência da justiça eclesiástica para
processar, prender, censurar ou excomungar
128
.
As Ordenações imprimiram uma redução na supremacia do direito
canônico defendida pela doutrina jurídica de Santo Agostinho (século VII),
afastando a sujeição dos poderes temporais ao poder eclesiástico que permitia ao
Papa o poder de depor os Reis ou de libertar os súditos do dever de lhe
obedecer
129
.
A despeito de o Livro 1º (primeiro), Títulos XI e XII das Ordenações
Manuelinas e do primeiro livro das Ordenações Filipinas, Título XII, números 5 e
6 (do Procurador dos Feitos da Coroa) conterem disciplinamento afirmador da
125
Ver FERNANDO H. MENDES DE ALMEIDA, in Ordenações Filipinas: Ordenações e leis do
Reino de Portugal Recopiladas por mandato d’el Rei Filipi, o Primeiro. São Paulo: Saraiva, 1957,
1º volume, p. 18, nota de rodapé 39, nos seguintes termos: “Cf. Lei de 20 de outubro de 1823.
Entre a legislação local, além das posturas municipais, inclui-se a legislação do tempo de Dom
João VI, colecionada no “Código Brasiliense” (Rio, Imprensa Régia, 1811 a 1820), embora
também não sejam esquecíveis os bandos, ordens, alvarás e mais atos que os delegados do Rei
baixavam, no Brasil.”
126
Nesses termos: FERNANDO H. MENDES DE ALMEIDA, op. cit., 1º vol., p. 18-19.
127
Ver FERNANDO H. MENDES DE ALMEIDA, op. cit., 1º vol., p. 115-117.
128
No Brasil Império, um dos fatores que empreendeu a secularização coube ao Decreto 609, de
18 de agosto de 1851 declarar o Tribunal pelo qual devem ser processados os arcebispos e bispos
do Império nas causas que não forem puramente espirituais. Cfr. JOSÉ ANTONIO PIMENTA
BUENO, Marquês de São Vicente / organização e introdução de Eduardo Kugelmas (Coleção
Formadores do Brasil). São Paulo: 34, 2002, p. 459 e 680.
129
Cfr. HESPANHA, António Manuel. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Européia. op.
cit., p. 88-89.
61
competência da justiça leiga é preciso esclarecer que todo processo de
secularização foi estabelecido de forma gradual e pretendido pelos monarcas
portugueses
130
, não só para criar uma justiça ligada a Coroa, mas, acima de tudo,
objetivando a diminuição da influência da Igreja sob todos os aspectos da vida
política e social.
Toda controvérsia gerada pela disputa de poder entre a Coroa e a Igreja
continuou por vários anos, pelo motivo que há vários indicadores de que a Lei da
Boa Razão, de 18 de agosto de 1769, criada pelo Marquês de Pombal durante o
período de assessoramento a D. José, não quis apenas impor uma restrição ao
direito doutrinal e jurisprudencial que era a espinha dorsal do direito comum
131
,
contudo, principalmente, mitigar a influência do direito canônico e dos privilégios
contidos no mesmo.
Como bem assinalado por PAULO FERREIRA DA CUNHA, a revisão do
problema das fontes pelo Marquês de Pombal com a Lei da Boa Razão de 1769
agiu com o cuidado de discretamente restringir o direito canônico ao seu âmbito
eclesiástico normal, e de pôr requisitos muito exigentes (sobretudo para época)
para o que devesse considerar-se costume, estabeleceu apenas que o legislador das
Ordenações houvera estabelecido a Boa Razão como critério de integração das
lacunas do direito pátrio
132
.
A idéia de que a Lei da Boa Razão teria exercido um papel reformista e
incrementador de um racionalismo jurídico que alcançou o direito canônico
consta expressamente de diversos doutrinadores, à medida que reconhecem na
reforma iluminista o mérito de firmar “o erro manifesto de se supor que no foro
temporal se pode conhecer dois pecados, que só pertencem privativa, e
exclusivamente ao foro interior e à espiritualidade da Igreja; por esse motivo, e
esclarecendo que aos tribunais seculares não toca o conhecimento dos pecados;
mas sim e tão somente o dos delictos, era o direito canónico proscrito do foro
130
Cfr. ALMEIDA, Fernando H. Mendes de. op. cit., 1º vol., p. 117: “Esta ingerência nos
eclesiásticos decorria de Concordatas de D. João I e de D. Sebastião” (V. Cândido Mendes de
Almeida: “Direito Civil Eclesiástico”, págs. 148, 164 e 210).
131
Cfr. HESPANHA, António Manuel. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Européia. op.
cit., p. 166.
132
Cfr. CUNHA, Paulo Ferreira da. op. cit., p. 182.
62
temporal, deixando-se os referidos textos de Direito Canonico para os Ministros,
Consistorios Ecclesiasticos os observarem (nos seus devidos e competentes
termos) nas decisões da sua inspecção.”
133
.
Como se vê, o processo de secularização alcançou o direito português,
mas, por si só, não propiciou o surgimento de uma sociedade sem a presença de
privilégios, tanto que as Ordenações continuaram a enumerar as pessoas e os
cargos que seriam merecedores de tais vantagens.
Neste passo, as Ordenações consagraram um conjunto de normas na esfera
do direito privado e público, mas, principalmente, solidificaram os limites para o
exercício dos privilégios no Direito Português, o que se depreende, por exemplo,
os privilégios conferidos à condição de vizinho (Título LVI), bem como as
isenções dadas ao morador da terra (Título LVII), os privilégios dos fidalgos para
seus lavradores, mordomos, caseiros e criados (Título LVIII), os privilégios dos
Desembargadores (Título LIX), além daqueles fixados aos cavaleiros a serem
confirmados e prestes a terem cavalos e armas (Título LX), os portadores de
lanças (Título LXI), dos moedeiros da cidade de Lisboa (Título LXII) e, por
derradeiro, os privilégios dos herdeiros del Rei (Título LXIII).
Os privilégios existentes no ordenamento português abrangiam regras de
processo e de direito material e, como é possível constatar, as benesses e os
privilégios de ordem pessoal não ficaram estritamente correlacionadas com o
cargo ou função desempenhada perante o monarca.
Um exemplo mais do que efetivo do foro privilegiado na vigência das
Ordenações Manuelinas (Livro 1º, Título V e parágrafos 1º, 3º e 5º) e Filipinas
(Livro 1º, Título VII e parágrafos 1º a 6º) pode ser obtida na definição das
atribuições ou competências dos “Corregedores da Corte dos Feitos-Crimes”, uma
vez que o cortesão tinha o direito de escolher o local onde poderia ser processado
133
Cfr. SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. op. cit., p. 395. No mesmo sentido: ANTÓNIO
MANUEL HESPANHA, in Panorama Histórico da Cultura Jurídica Europeia. op. cit., pp. 166-
167, JÚNIOR, José Izidoro Martins. op. cit., p. 81 e ARNO e MARIA JOSÉ WEHLING, in
Direito e Justiça no Brasil Colonial: O Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808). Rio
de Janeiro: Renovar, 2004, p. 453.
63
pela prática de qualquer malefício (ação de fazer mal, abrangendo a idéia de
crime)
134
, ou seja, permanecer com o juiz local ante a concordância do cortesão
ou exigir que a questão fosse remetida ao Corregedor da Corte, embora tal
desaforamento pudesse ocorrer por avocação do Corregedor e ex officio, isto é,
por deliberação do juiz que indevidamente estivesse no exame da causa.
Narra ARNO WEHLING e MARIA JOSÉ WEHLING que os privilégios
do Estado interferiam nos processos judiciais e tinham fundamentação legal nas
Ordenações e na legislação extravagante para tanto. Isenções, foro privilegiado,
prazos diferenciados constituíam práticas comuns na vida de uma ação judicial
que envolvesse um nobre, um clérigo, um membro graduado da administração
pública ou o titular de uma ordem de cavalaria. Desta forma, a prisão de um
bacharel acarretava dificuldades específicas, como experimentou o próprio
governador Gomes Freire de Andrade. A mesma autoridade queixou-se da
dificuldade de processar um titular da Ordem de Cristo, que invocava esta
condição para proteger-se. Quase meio século depois, o vice-rei Fernando José
de Portugal e Castro repetia a reclamação, referindo-se a uma ação que corria
no tribunal, de que, ao fim de contas, era o regedor ou governador. A mulher
possuía também uma situação diferenciada, para não se dizer, paradoxalmente,
privilegiada no foro, em situações previstas amplamente na legislação. Como já
mencionado, numa obra de 1577, reeditada no século XVIII, de autoria do
licenciado Rui Gonçalves, professor da Universidade de Coimbra, foram
relacionadas 106 prerrogativas, entre normas de direito material e de direito
processual, que beneficiavam as mulheres
135
.
Quando se examinam as Ordenações Filipinas no Livro 1º, Título 7º,
parágrafo 33 constata-se que cabe aos Corregedores da Corte “tomar querelas das
mulheres solteiras no lugar, onde estiver a Corte, e na cidade de Lisboa” ou
determinar a prisão das mesmas
136
, o que identifica a existência de privilégio e
prerrogativas deferidos às mulheres nas Ordenações do Reino.
134
Vide FERNANDO H. MENDES DE ALMEIDA. op. cit., 1º volume, p. 84-95.
135
WEHLING, Arno e Maria José. op. cit., p. 573.
136
Vide FERNANDO H. MENDES DE ALMEIDA. op. cit., 1º volume, p. 94.
64
Os privilégios ou as prerrogativas entregues aos membros do judiciário e
outras autoridades tiveram acolhimento e total desenvolvimento no padrão
normativo português, o que, de certo, alicerçou a consciência sócio-cultural do
Brasil Colônia e até hoje influencia na maneira de o povo visualizar a concessão
de prerrogativas como uma suposta e desmedida outorga de privilégios
137
.
Houve, por conseguinte, a consolidação de inúmeros privilégios entre os
Desembargadores desde as Ordenações Manuelinas
138
, o que só demonstra a
dinâmica vivenciada pelo sistema normativo português quanto à concessão de
privilégios junto aos responsáveis pela função jurisdicional, circunstância
absolutamente diferente da apresentada no direito inglês e francês, na qual os
membros do Judiciário eram desprovidos de regras que viessem a isentá-los de
controles estatais mais rígidos acerca da sua atuação.
Notabilizou-se o Direito Português pela inusitada circunstância de que a
Coroa não conseguiu imprimir um controle das decisões efetivadas pelos juízes,
com isso, infirmando eventual controle por parte do soberano, daí porque “as
relações coloniais – v.g., as de Goa, Baía e Rio de Janeiro – tinham
prerrogativas aos tribunais supremos do reino (Casa da Suplicação, Casa do
Cível). A doutrina jurídica considerava-os como tribunais soberanos,
“colaterais”, “camarais”, cujo presidente natural era o rei. As suas decisões têm
a mesma dignidade das decisões reais, não podendo, no entanto, ser revogadas
ou restringidas por atos régios. Daí que a administração da justiça quer pelos
ouvidores, quer pelas Relações, constituísse uma área bastante autônoma e auto-
regulada, não apenas porque os governadores não podiam controlar o conteúdo
das decisões judiciais, mas ainda porque os seus poderes disciplinares sobre os
juízes eram débeis e efêmeros.”
139
.
137
FERNANDO H. MENDES DE ALMEIDA. op. cit., 2º volume, p. 203: Os privilégios, de que
faz referência o parágrafo, foram abolidos pelo 16º parágrafo, do artigo 179, da Constituição do
Império.
138
Vide FERNANDO H. MENDES DE ALMEIDA, op. cit., 2º volume, p. 202.
139
HESPANHA, António Manuel. História de Portugal, in TENGARRINHA, José (Org.). As
Estruturas Políticas em Portugal na Época Moderna. 2ª ed. Bauru – São Paulo: EDUSC; São
Paulo, SP: UNESP; Portugal, PT: Camões, 2001, p. 136.
65
Realmente, o Tribunal da Relação no Brasil ex vi do Decreto de 13 de
agosto de 1615 recebeu todos os privilégios já estabelecidos para os Tribunais
Supremos do Reino (Casa da Suplicação e a Casa do Cível), numa confirmação
mais do que efetiva do poder alcançado pelas autoridades judiciais e de outras
classes
140
, o que só enfatiza a nossa tradição de conferir uma proteção jurídica e
processual aos detentores dos cargos públicos mais importantes.
Na esfera jurídica, inclusive, não se desconhece o poder dos “letrados”, ou
seja, daqueles que exerciam funções de importância perante a Coroa Portuguesa,
porquanto “com o passar dos anos, desembargadores, juízes, ouvidores,
escrivães, meirinhos, cobradores de impostos, vedores, almoxarifes,
administradores e burocratas em geral – os chamados “letrados”- encontraram-
se em posição sólida o bastante para instituir uma espécie de poder paralelo, um
“quase Estado”que, de certo modo, conseguiria arrebatar das mãos do rei as
funções administrativas. Esse funcionalismo tratou de articular também fórmulas
legais e informais para se transformar em um grupo autoperpetuador, na medida
em que os cargos eram passados de pai para filho, ou então para parentes e
amigos próximos.”
141
.
Os aspectos que determinaram a criação dos privilégios no âmbito do
direito português, como se vê, favoreciam aos “letrados”, fidalgos, cavaleiros e
nobres, dando ensejo a uma sociedade marcada pela desigualdade, mesmo porque
os crimes eram punidos de acordo com a “qualidade” do infrator, fosse ele um
“peão”ou um “fidalgo”. Conforme as Ordenações Manuelinas, “peões” (ou
“homens a pé”, que não podiam servir ao rei a cavalo, como os “cavaleiros”)
eram de pessoas de “baixa condição”. A “pena vil” (pena de morte) e os açoites
(em geral executados em público, nos pelourinhos) estavam reservados quase que
exclusivamente a eles. Acima dos peões, escalonavam-se as pessoas de “maior
condição”: escudeiros, cavaleiros, vereadores, magistrados, escrivães – vários
deles “fidalgos” (“filhos de algo”), tidos como “gente limpa e honrada” e,
portanto, livres de açoites e da condenação à morte (a não ser em casos
140
Vide FERNANDO H. MENDES DE ALMEIDA, op. cit., 2º volume, p. 202, apud ALMEIDA,
Cândido Mendes de: Código Filipino, p. 492, 1ª Col., nota 1.
141
BUENO, Eduardo. A Coroa, a Cruz e a Espada: Lei, Ordem e Corrupção no Brasil Colônia.
Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2006, p. 34.
66
excepcionais). A ascensão social não propiciava, portanto, apenas melhores
condições de vida: representava também a obtenção de uma série de privilégios
jurídicos, além, é claro, da isenção de impostos.”
142
.
É de se acrescentar que o rol de diferenças entre nobres e plebeus permitia
que os cativos de origem nobre tivessem reservada a prerrogativa de serem
acorrentados unicamente pelos pés, o que revela a importância dada aos nobres e
“letrados”, isto é, mesmo no cumprimento da pena ou de condenação ao degredo,
predominava a sociedade desigual e profundamente hierarquizada fomentada pela
conjuntura social da época, porquanto nas demais penas, de açoites, baraço e
pregão e degredo, seguia-se o determinado nas Ordenações, observando-se o
privilégio daqueles aos quais não poderia ser aplicada a pena vil
143
.
Neste caso, pode-se reconhecer que as prerrogativas definidas nas
Ordenações e pela Coroa Portuguesa diziam respeito a privilégios, os quais
estiveram presentes na história portuguesa até o advento da Constituição Liberal
Portuguesa de 1822 e no Brasil, em relação ao Clero, os mesmos perduraram até a
edição do Decreto n.: 609, de 18 de agosto de 1851.
O processo histórico relativo à concessão de privilégios, levado a efeito
em Portugal e no Brasil Colônia, na verdade, deixa evidente a criação de um
padrão normativo que, antes de tudo, se esmerou pela proteção dos nobres,
ocupantes de cargos mais importantes na Coroa e até dos seus empregados
144
,
realçando as diferenças entre os jurisdicionados quanto à prática dos crimes e à
aplicação das penas
145
.
Por isso mesmo, numa sociedade pautada por uma eficiente estratificação
e composta pela presença de vice-reis, governadores, donatários, governadores,
juízes, oficiais, servidores e outras atividades atuantes na chamada esfera pública,
nada mais natural, que o grau de influência exercido sobre todos os atos emanados
142
BUENO, Eduardo. op. cit., p. 59.
143
WEHLING, Arno e Maria José. op. cit., p. 567.
144
Vide FERNANDO H. MENDES DE ALMEIDA, op. cit., 2º volume, p. 200-201: Título LVIII –
Dos privilégios concedidos aos fidalgos para seus lavradores, mordomos, caseiros e criados.
145
É de se concluir que o período colonial Português pouco foi alterado, no que concerne à
sistemática existente em Roma, conforme salientado na nota de rodapé número 39.
67
da função jurisdicional indicasse um comprometimento das decisões por ele
emitidas, se não concluirmos que as mesmas eram desprovidas da mais tênue
isenção.
A perspectiva histórica e cultural abordada no parágrafo precedente,
malgrado o surgimento das Constituições Liberais Espanhola e Portuguesa no
século XIX e a sedimentação do republicanismo no Brasil no período de 1889 a
1891, de algum modo, contribuíram para a permanência de um padrão quase que
inconsciente de perpetuação das vantagens e privilégios que marcaram todo o
período concernente às Ordenações.
2.2.4
Privilégio dos agentes encarregados da inquisição (séculos XV-XIX).
A Inquisição foi instituída no final do século XII, a partir do Sínodo de
Verona, realizado no ano de 1184
146
, quando se estabeleceu que os bispos
devessem visitar duas vezes por ano as paróquias suspeitas de heresia.
O Sínodo de Verona foi convocado pelo Papa Lúcio III com o objetivo de
tornar severas medidas contra os heréticos, para tanto, se houvesse a necessidade,
com a imposição da decretação das penas de banimento, confisco, demolição de
casas, declaração de infâmia e perda de direitos civis, o que marcou o início das
atividades da Inquisição
147
.
Segue-se que, em 1231, o Papa Gregório IX criou um tribunal especial para
investigar a vida dos suspeitos e obrigar os hereges a mudar suas convicções e,
146
Ver RUDOLF FISCHER-WOLLPERT. op. cit., p. 290-291: “O papa Lúcio III determinou, num
sínodo realizado em Verona, em 1184, que essa ameaça de excomunhão fosse anunciada em todas
as festas eclesiásticas de todas as paróquias. Como tais determinações não fossem cumpridas em
toda a parte, repetiu-as o quarto concílio ecumênico de Latrão, de 1215, e as inculcou com maior
severidade. Mas somente ao término das guerras contra os albigienses foi instalada a inquisição
num concílio realizado em Tolosa, em 1229. O papa Gregório IX incumbiu, em 1233, a ordem dos
dominicanos da execução da inquisição. Tal encargo recebeu nova confirmação com Inocêncio
IV, em 1243. Na bula “Ad extirpanda” estabeleceu esse papa, em 1252, regras especiais
pertinentes à efetivação das medidas inquisitórias. Nelas é prevista a tortura como meio
processual.”.
147
Cfr GIORDANI, Mário Curtis. História do Mundo Feudal II/2, op. cit., p. 310.
68
posteriormente, em 1542, a Congregação do Santo Ofício passou a controlar a
Inquisição
148
.
Acerca do tema, observa-se que Portugal e Espanha ficaram vinculadas no
propósito de empreender a captura de hereges durante a inquisição, contudo, o
mesmo não representa dizer que a inquisição tenha ficado restrita à Península
Ibérica, porquanto, acabou por ser disseminada por toda a Europa
149
.
A inquisição levada a efeito na Espanha teve, como se sabe, um tratamento
diferenciado, uma vez que o Rei Fernando solicitou ao Papa Sisto IV a permissão
para instituir uma inquisição própria, o que restou estabelecido em bula subscrita
em 1º de novembro de 1478
150
, o que serviu para conferir uma identidade própria
à inquisição espanhola.
Com a Inquisição, houve a investidura de novos funcionários, encarregados
e participantes diretos e indiretos da concretização dos tribunais da fé (cargos
superiores, inquisidores e funcionários e familiares)
151
, portanto, agentes
inquisitoriais que formaram uma nova estrutura social no local em que a
Inquisição estivesse em atuação
152
.
Assim, a criação e preservação dos privilégios em prol dos agentes da fé, no
caso, os encarregados da Inquisição é uma realidade a ser destacada, inclusive,
148
Ver JOHN GILISSEN, op. cit., p. 384 assinalando que: na luta contra a heresia albigiense, o
Papa Gregório IX criou em 1232 um tribunal de excepção, o Santo Ofício, confiado aos
Dominicanos. Chamado em geral – injustamente – a Inquisição, este tribunal desempenhou um
papel importante – nefasto – durante vários séculos.
149
Ver JACQUES BARZUN, op. cit., p. 135 : Mas a inquisição com i minúsculo estava ativa por
toda a Europa. Na Escócia e em Genebra protestantes, era chamada de Disciplina, e também se
apoiava no braço secular para punir delinqüentes como Servetus (<54). A Inglaterra teve um
considerável número de supliciados na fogueira por turnos ora de protestantes, ora de católicos,
durante três reinados, todos legalizados por um estatuto: De haeretico comburerendo (“Do dever
de queimar os hereges”).
150
FISCHER-WOLLPERT, Rudolf. op. cit., p. 291.
151
DANIELA BUONO CALAINHO, in Agentes da Fé: Familiares da Inquisição portuguesa no
Brasil Colonial. Bauru – SP: Edusc, 2006, p. 40, esclarece que: O cargo de Familiar pertencia à
categoria de oficiais legais do aparelho burocrático inquisitorial, junto com os Promotores,
Procuradores das Partes, Médicos, Cirurgiões, Meirinhos, Alcaides, Porteiros e Solicitadores, ao
passo que os postos para os quais se exigia o estado eclesiástico eram os de Inquisidor,
Deputado, Comissário, Qualificador e Notário.
152
BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – Séculos
XV-XIX. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2000, p. 108.
69
alcançando os familiares dos inquisidores, o que foi alvo de severas críticas nas
inquisições desenvolvidas na Espanha e em Portugal, considerando o critério de
desigualdade dela resultante, sem falar que a concessão de privilégios foi
responsável pela criação de um novo estamento social, o qual usurpou o conceito
de “nobreza” e, com isso, pôs em prática a preterição do vínculo sanguíneo
153
, ou
seja, uma nova forma de privilégio que se estabeleceu em razão da Inquisição.
O advento da Inquisição, desta forma, reafirmou boa parte dos poderes
conferidos à Igreja que se encontrava em fase de questionamento, muito embora a
interligação do Santo Ofício com a jurisdição secular sempre estivesse presente,
mormente, nas situações e nos casos de extrema gravidade, onde a Igreja pedia a
ajuda do braço secular (monarca) para o cumprimento de suas sentenças e
execução das penas, nos casos em que não bastasse a interdição ou a
excomunhão
154
.
Por isso mesmo, na vigência da inquisição, também é possível constatar a
presença de privilégios, em virtude do cargo e da responsabilidade do inquisidor,
a qual, como foi dito anteriormente, poderia ser extensível à família do mesmo.
FRANCISCO BETHENCOURT analisando o tema, chama a atenção para a
circunstância de que “os privilégios reais concedidos na Espanha e em Portugal,
ao longo do século XVI, aos oficiais e familiares da Inquisição tornavam seus
cargos e títulos ainda mais interessantes. Em geral, esses privilégios
caracterizavam-se pela isenção de impostos, obrigações comunitárias, serviço
militar ou alojamento de tropas, pela autorização de usar vestuário de seda
mesmo sem ser cavaleiro, pela licença de porte de armas defensivas e ofensivas,
pelo reconhecimento de jurisdição privada na maior parte dos crimes e disputas
153
Na visão fornecida por FRANCISCO BETHENCOURT. op. cit., p. 139 ao salientar que: Esses
privilégios foram muito discutidos pelos poderes constituídos na Espanha, que viam na criação de
uma nova estrutura, dando acesso a um estatuto de “nobreza”(já não baseado na “linhagem”
mas na pureza de sangue), uma ameaça aos equilíbrios frágeis estabelecidos ao longo dos séculos
no que diz respeito à reprodução da ordem social e, sobretudo, à conservação dos direitos
exclusivos reconhecidos às ordens superiores. Aliás, o próprio rei e as oligarquias urbanas
temiam que essa nova estrutura fosse utilizada pelos nobres para reforçar ainda mais os seus
privilégios e, sobretudo, para escapar aos novos instrumentos de controle postos em prática pelo
Estado absolutista em construção.
154
Cfr. JÚNIOR, João Mendes de Almeida. op. cit., p. 76.
70
judiciárias em que se pudesse estar envolvido. No caso da Inquisição espanhola,
o organismo central sustentou a conservação dos cargos públicos pelos
familiares, sobretudo no governo das cidades, pois as autoridades locais queriam
proibir a sua participação devido ao privilégio de jurisdição privativa.
Evidentemente, o rei acabou por anular o privilégio de jurisdição no caso dos
delitos cometidos no exercício de suas funções civis. Na Itália a situação era
muito desigual nesse domínio, pois existiam Estados, como a República de
Veneza, que não reconheciam aos inquisidores o direito de nomear crocesignati,
enquanto os Estados pontifícios constituíam privilégios e isenções semelhantes
aos da Espanha e de Portugal (por vezes com referências explícitas ao modelo
hispânico, com especial na adoção de “cotas” de familiares segundo a dimensão
dos agregados populacionais).
155
.
A perspectiva existente na Inquisição portuguesa foi objeto de aplicação no
Brasil Colônia, onde a presença do Santo Ofício se fez presente desde a primeira
visitação no nordeste entre 1591 e 1595
156
, destacando-se os mesmos conflitos
registrados na Inquisição portuguesa quanto ao uso e abuso de privilégios, pois,
no Brasil, o relatório de 1632 escrito pelo vigário da Sé de Salvador, Manuel
Temudo, denunciou alguns Familiares, entre outros oficiais da Inquisição que,
por ambições de prestígio e poder, envolveram-se em querelas pessoais e
utilizaram-se da autoridade que o cargo lhes facultava para satisfazer seus
próprios interesses
157
.
Aliás, a tendência portuguesa de estimulação ao protecionismo e a prática
do privilégio, nem mesmo, durante a Inquisição restou alijada, como se dessume
do relato feito por DANIELA BUONO CALAINHO, ao observar que em 1682,
diante dos problemas enfrentados na Inquisição pelas autoridades civis quanto aos
privilégios concedidos aos familiares que impediam o livre desenvolvimento do
155
BETHENCOURT, Francisco. op. cit., p. 139.
156
Ver DANIELA BUONO CALAINHO. op. cit., p. 71-72: “Consideradas como verdadeiras
“sondagens de consciências” no tocante à pureza da fé e dos bons costumes, e reveladoras do
“universo mental e social do homem colonial”, as Visitações do Santos Ofício ao Brasil
representaram a formalização efetiva dos tentáculos da Inquisição portuguesa na Colônia. A
Primeira Visitação, realizada no nordeste entre 1591 e 1595, inseriu-se num contexto de viragem
na orientação das Visitas na década de 1590, que passaram a se dirigir às Ilhas e aos territórios
ultramarinos: além do Licenciado Heitor Furtado de Mendonça, que visitou a Bahia, (...).”.
157
CALAINHO, Daniela Buono. op. cit., p. 151.
71
processo no Brasil Colônia, daí porque, houve a necessidade de intervenção do
Príncipe Regente D. Pedro
158
, o qual respondeu a consulta formulada pelo
Conselho Geral do Santo Ofício e definiu que o número de familiares alcançados
pelos privilégios teria que ser limitado a apenas dois familiares em cada uma das
cidades e cabeças de comarca
159
.
Como se vê, a incorporação do privilégio na cultura portuguesa no Brasil
Colônia, de alguma forma, tisnou o regular cumprimento da Inquisição, malgrado
os esforços e as tentativas das autoridades civis para o seu enfrentamento,
contudo, sem a manifestação do monarca, a mesma teria experimentado uma
sensível mitigação quanto aos seus propósitos.
Advirta-se, com efeito, que não é de se estranhar que a Inquisição
permitisse estabelecimento de diferenças entre as pessoas processadas, porquanto,
na época, em condições normais, sempre se verificaram as diferenças quanto à
aplicação da lei em relação aos indivíduos, afinal de contas, seria inadmissível
cogitar que o monarca que praticasse o mesmo pecado que o plebeu, em suma,
viesse a receber a mesma penitência ou punição.
A Igreja de Roma, portanto, sempre buscou benesses para os seus
componentes na Justiça Secular, desde a mitigação até a supressão desta
competência, o que transforma em algo banal, sem dúvida nenhuma, o tratamento
diferenciado conferido aos processados durante a Inquisição.
Diante da relevância da Inquisição na história da Península Ibérica, onde
adquiriu feição normativa própria, inclusive, atuando no Brasil Colônia, cujo
exame será realizado em capítulo próprio, é importante trazer ao exame deste
estudo os aspectos que são merecedores de destaque, no sentido de atestar a
integração do privilégio ao referido momento histórico.
158
Vide ABRAHÃO KOOGAN; ANTÔNIO HOUAISS (Ed.). op. cit., p. 11439:Pedro II, o
Pacífico, vigésimo terceiro rei de Portugal (Lisboa 1648 – id., 1706). Filho de D. João IV e da
rainha D. Luísa de Gusmão. Reinou de 1683 a 1706, após a deposição de Dom Afonso VI, seu
irmão, tramada por ele e a cunhada, Maria Francisca Isabel de Sabóia, com quem mantinha
relações ilícitas.
159
CALAINHO, Daniela Buono. op. cit., p. 150.
72
2.3
A contestação aos privilégios no constitucionalismo americano e a
herança política de Locke.
A Declaração de Independência Americana precedeu a Revolução
Francesa, no tocante a rejeição dos privilégios, considerando que no Bill of Rights
da Virgínia, já estava definido que “todos os homens são por natureza igualmente
livres e independentes e têm certos direitos inerentes, dos quais ao entrarem em
sociedade não podem, por qualquer forma, privar ou desinvestir a sua
posteridade”.
160
.
Esta foi uma tônica observada com rigor na órbita constitucional
americana, uma vez que os privilégios tolerados seriam aqueles extensíveis a
todos do Povo, verbi gratia o direito a ser julgado no Júri
161
.
Nessas circunstâncias, a Declaração de Direitos de Virgínia, de 16 de
junho de 1776, afirma a idéia da Soberania Popular e da isonomia quanto ao
exercício dos direitos, não só na Seção I citada no parágrafo precedente, como
também, nas seções dos II, IV da mesma, notadamente, chamando a atenção para
a circunstância de que “nenhum homem ou grupo de homens pode exigir da
comunidade proventos ou privilégios que não resultem de serviços prestados; e
estes proventos ou privilégios não se transmitem aos seus descendentes; nem os
cargos de magistrados, legislador, ou juiz podem ser hereditários.”
162
.
Está evidente, portanto, que foi permitido o gozo de algum tipo de
privilégio, apenas em atendimento aos serviços prestados à nação, desta forma,
em consideração aos serviços feitos ao público, como enfatizado na seção IV do
160
Cfr. JORGE MIRANDA, op. cit., p. 31.
161
MEE JR., Charles L..A história da Constituição americana: o gênio do povo. Rio de Janeiro:
Expressão e Cultura, 1993, p. 19-20:E uma declaração de direitos especificou que “todo poder é
investido...no povo; que magistrados são seus depositários e servidores, e a todo tempo
responsáveis perante ele”; que todos os homens tinham direito a julgamento pelo júri (...)”.
162
Cfr. JORGE MIRANDA, op. cit., p. 32.
73
Bill of Rights transcrito acima, bem como nas diversas constituições estaduais
elaboradas, dentre elas, a Constituição do Estado da Carolina do Norte.
163
.
É verdade, no entanto, que alguns autores afirmam com freqüência “que a
Revolução Americana não foi uma revolução social: ela não pretendia substituir
a classe dominante por algum outro grupo, ou simplesmente por privilégios mais
amplos, mais democráticos.”
164
, o que não impediu a concretização de uma
revolução sem paralelo, pois estabeleceu um governo livre em formação,
submetido à lei, inscrito sob o Princípio da Separação dos Poderes, pautado no
fenômeno federalista, responsável por uma Carta de Direitos e instituidor de um
sistema jurisdicional pautado na revisão judicial.
165
.
Mas, acima de tudo, não se pode perder a natureza antropológica do
homem americano, como bem salientado por RAY RAPHAEL, segundo a qual
os americanos, desde o princípio, foram ao mesmo tempo democratas e rufiões
violentos. Apesar da hesitação das elites, a maior parte dos patriotas da época do
nascimento da nossa nação acreditava que a gente comum tinha o direito e era
inteiramente capaz de governar a si mesma. Também acreditava que tinha o
direito e até a obrigação de impor sua vontade a quem considerava inferior.
Essas duas crenças básicas são fundamentais para entender a história e o caráter
americanos, e fazemos uma injustiça a nós mesmos e à nossa nação quando
fingimos ser outra coisa.”
166
.
Restou difundido, por conseguinte, no âmago da sociedade americana, o
sentimento de igualdade, o qual foi incorporado à Declaração de Independência
dos Estados Unidos, de 04 de julho de 1776, com a finalidade de dar “esperança
ao mundo todo (...) de que no devido tempo o peso seria retirado de todos os
homens e que todos teriam oportunidades iguais. Como a escravidão estava
estabelecida com demasiada firmeza para permitir na prática uma oposição na
163
Cfr. ALBUQUERQUE, Martim de. Da Igualdade. Introdução à Jurisprudência. Coimbra:
Almedina, 1993, p. 46.
164
MEE JR., Charles L., op. cit., p. 19.
165
Vide M. JUDD HARMON, HENRY J. ABRAHAM, DAVID FELLMAN et al., in Ensaios
sobre a Constituição dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Forense – Universitária, 1978.
166
RAPHAEL, Ray. Mitos sobre a fundação dos Estados Unidos: a verdadeira história da
independência norte-americana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 268.
74
época, Jefferson não pôde fazer nada além desse pronunciamento abrangente a
favor da igualdade – “a mãe de todos os princípios morais”, como Lincoln a
chamou – para uso das gerações futuras.”
167
.
De fato, a única deficiência observada na Declaração de Direitos e na
formação do constitucionalismo americano foi a manutenção do sistema
escravocrata, porquanto, no que diz respeito à formulação de uma teoria
constitucional pautada no exercício e efetiva observância da igualdade, de
imediato, a visão americana preponderou e foi extremamente pragmática ao
repudiar os privilégios, os títulos de nobreza e outras manifestações que pudessem
afetar o Princípio Republicano, como se extrai do texto elaborado por
ALEXANDER HAMILTON ao comentar que “Nada precisa ser dito para
ilustrar a importância da proibição de títulos de nobreza. Ela pode ser
verdadeiramente chamada de a pedra angular do governo republicano, pois,
enquanto tais títulos estiverem excluídos jamais poderá haver sério perigo de que
o governo venha a ser outra coisa senão o governo do povo.
168
.
Contudo, não há dúvida de que a herança política e os princípios gerais
fixados no constitucionalismo americano foram positivos e serviram de amparo à
construção de uma nova dinâmica constitucional, passando a representar um ciclo
próprio, com inspiração efetiva nos parâmetros delineados por JOHN LOCKE,
sendo confirmado por ALPHEUS T. MASON quando salienta que “Jefferson
colheu idéias e fraseologia Two Treatises of Government (Dois Tratados de
Governo), de John Locke. Locke proclamara: “Se o Executivo ou o Legislativo,
quando detém poder nas mãos, pretende ou está em vias de escravizá-lo ou
destruí-lo, o povo não dispõe de outro recurso senão esse, como em todos os
outros casos em que não tem qualquer juiz na Terra e não pode senão apelar
para o Céu” - evidentemente, um eufemismo para revolução.”
169
.
167
Vide RAPHAEL, Ray. op. cit., p. 137.
168
HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. Os artigos federalistas, 1787 - 1788.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 521. No mesmo sentido, COOLEY, Thomas M., in
Princípios gerais do direito constitucional nos Estados Unidos da América. Campinas: Russell,
2002, p. 198.
169
MASON, Alpheus T. A Herança Política dos Estados Unidos: Revolução e Governo Livre –
Um Tributo Bicentenário. in HARMON, M. JUDD; ABRAHAM, HENRY J.; FELLMAN,
DAVID et al., op. cit., p. 25
75
As orientações firmadas na Revolução Americana e no constitucionalismo
americano proclamaram o exercício e consolidação de um direito de resistência
170
salvaguardado pelo modelo Lockiano
171
e, simultaneamente, o afastamento dos
privilégios, mediante a busca pela igualdade, a qual se traduziu num aspecto
primordial na Constituição Americana, tal como se infere do Artigo III, Seção
II.
172
, além de servir de inspiração ao constitucionalismo moderno, inclusive,
embasando a primeira Constituição da República Brasileira de 1891.
2.4
Privilégios estabelecidos na corte francesa. A Revolução Francesa,
um momento histórico destinado à eliminação dos privilégios da
sociedade de corte francesa.
Um dos aspectos preponderantes do Antigo Regime estava no exercício de
privilégios e regalias na França, os quais se achavam devidamente estruturados e
participantes de um sistema hierarquizado de privilégios, cuja análise foi realizada
com acentuado detalhamento por NORBERT ELIAS ao retratar a sociedade de
corte às vésperas da Revolução Francesa, nos seguintes termos:
170
MEE JR., Charles L., op. cit., p. 17-18:Em 1787, a virtude dessas leis havia sido posta à
prova pela experiência de muitas gerações, vivendo em meio a muitos distúrbios e sob condições
as mais diversas, e foram aceitas como comprovadas. Elas chegaram à América com os viajantes
do Mayflower, que, antes de desembarcar, conceberam um acordo entre si pelo qual se
comprometeram a submeter-se a “leis justas e iguais”que fossem elaboradas pelo governo que
organizassem. Assim, com o movimento de uma caneta, os Peregrinos converteram o acordo
comercial que fizeram para estabelecer um tratado de terra no alicerce do autogoverno. (Quando
mais tarde o filósofo político inglês John Locke disse que todas as sociedades baseiam-se em um
contrato, que o homem originalmente vivia em um “estado de natureza”e ingressava na
sociedade ao aceitar esse contrato, muitos americanos do tempo de Madison entenderam suas
palavras não tanto como teoria política, mas como experiência histórica).”. No mesmo sentido,
ver JOSÉ CARLOS BUZANELLO, in Direito de Resistência Constitucional. 2ª. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 59-62.
171
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo Civil e outros escritos – Ensaio sobre a
origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil. Petrópolis: Vozes, 1994, item 137, p.
165: “137. O poder absoluto arbitrário, ou governo sem leis estabelecidas e permanentes, é
absolutamente incompatível com as finalidades da sociedade e do governo, aos quais os homens
não se submeteriam à custa da liberdade do estado de natureza, senão para preservar suas vidas,
liberdades e bens; e graças a regras que definissem expressamente o direito e a propriedade. Não
se pode supor que eles pretendessem, caso tivessem um poder para isso, conceder a uma ou mais
pessoas um poder arbitrário absoluto sobre suas pessoas e bens, ou colocar as forças nas mãos
do magistrado para que ele arbitrariamente fizesse valer sua vontade sobre eles. Isto significaria
colocarem-se em uma situação pior que no estado de natureza, onde tinham a liberdade de
defender seus direitos contra as injustiças dos outros e se encontravam em igualdade de forças
para mantê-los contra as tentativas de indivíduos isolados ou de grupos numerosos.”.
172
Vide COOLEY, Thomas M., op. cit., p. 189.
76
Uma vez que a hierarquia dos privilégios foi criada segundo os
parâmetros da etiqueta, esta passou a ser mantida apenas pela competição dos
indivíduos envolvidos em tal dinâmica, privilegiados por ela e
compreensivelmente preocupados em preservar cada um dos seus pequenos
privilégios e o poder que eles conferiam. Era algo que se reproduzia como um
espectro sem conteúdo, autônomo, assim como se reproduziria uma economia
completamente desprovida do propósito de fornecer meios de subsistência.
173
.
A Revolução Francesa imprimiu um forte combate aos chamados
privilégios reais, da aristocracia e do clero, razão pela qual mesmo antes da
eclosão da Revolução Francesa, a idéia de superação dos privilégios já se achava
dotada de efetividade
174
e a concretização se deu com a aprovação do Projeto de
Declarações dos Direitos e Privilégios.
175
.
É oportuno trazer à colação, no entanto, que o estabelecimento de
privilégio foi flagrantemente combatido
176
na Revolução Francesa porque a
173
ELIAS, Norbert. A sociedade de corte : investigação sobre a sociologia da realeza e da
aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 103.
174
ELIAS, Norbert. op. cit., 213: “A consciência da necessidade de uma reforma tornava-se mais
urgente quanto mais forte era a pressão de grupos não- privilegiados contra as elites
privilegiadas. Assim, para compreender a situação corretamente, não podemos esquecer o quanto
era grande, em uma figuração como a do Ancien Régime, a distância social entre os grupos de
elite privilegiados e aqueles que eles mesmos designavam como “povo”, a massa dos não-
privilegiados, apesar da proximidade física que existia entre os senhores e criados, por exemplo.
A grande maioria dos privilegiados ainda vivia em um mundo relativamente exclusivo – tanto
mais hermético quanto mais elevado o seu nível. A noção do que seria possível desenvolver o país
e elevar os padrões de vida do povo era estranha à maior parte desses homens. Ela não
correspondia seus valores. A conservação de sua própria existência social privilegiada
continuava sendo um valor auto-suficiente.”.
175
MANFRED, Alfred. A Grande Revolução Francesa. São Paulo: Fulgor, 1966, p. 90-91: “A
antiga divisão por ordens já havia sido abolida pela Assembléia Constituinte. Mas, para despojar
a nobreza das suas últimas prerrogativas jurídicas e assegurar a igualdade formal de todos os
cidadãos, era preciso abolir a nobreza hereditária e todos os títulos a elas relacionados.
Proclamou, então, a Assembléia, em 19 de junho de 1790, um decreto nesse sentido: os títulos
nobiliárquicos e uso de brazões foram proibidos. Os cidadãos não podiam mais tomar outro nome
que não o do chefe da família.”. No mesmo sentido, ver GEORGES LEFEBVRE, in 1789. O
Surgimento da Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989 e 164-165.
176
Importante o esclarecimento de EDMUND BURKE, in Reflexões sobre a Revolução em
França, Brasília: Universidade de Brasília, 1982, p. 132, ao advertir que: É provável que haja
pessoas que, não tendo conhecimento da situação francesa e ouvindo falar que a Nobreza e o
Clero tinham privilégios fiscais, fossem levadas a acreditar que antes da Revolução essas Ordens
em nada contribuíam para as despesas do Estado, algo que é totalmente incorreto. É certo que
não contribuíam em partes iguais entre si, nem em relação ao Terceiro Estado. Ambas,
entretanto, muito contribuíam. Nem a Nobreza, nem o Clero estavam isentos dos impostos de
consumo, dos impostos alfandegários, nem de nenhum dos impostos indiretos que na França
como na Inglaterra compunham a maior parte da receita pública.”.
77
mesma, como enfatiza LYNN HUNT era, antes de tudo, essencialmente uma
revolução política com conseqüências sociais e não uma revolução social com
conseqüências políticas
177
, revelando, assim, o firme propósito de ruptura com o
Antigo Regime.
O que se alvitrava com a Revolução Francesa, deste modo, foi ultimar
uma situação definida como anormal e inacessível a maior parte do povo, isto é, a
todos que não participassem da nobreza, pois “o caráter hereditário de um
estatuto privilegiado foi, com efeito, o apanágio da nobreza, que a isolava do
resto da sociedade e conferia unidade a um corpo que, aliás, se distinguia pela
riqueza, função ou cultura. A posse de privilégios ia muito além da nobreza, pois
vários plebeus – administradores, magistrados e mesmo sapateiros – também
gozavam dela. Mas tais privilégios eram apenas provisórios e pessoais, ligados
às funções exercidas, aos direitos ou monopólios comprados, ou simplesmente a
um lugar de residência. Diferentemente dos privilégios dos nobres, os privilégios
plebeus podiam sempre ser revogados pelo rei (desde que ele lhes reembolsasse
os preços) e, até certo ponto, independiam da pessoa. Constituíam-se em
propriedade disponível que podia ser passada a outrem ou perdida, se o
beneficiário mudasse de lugar. Para os nobres, em compensação, a essência da
nobreza era interna e permanente, transmissível apenas pelos filhos e sem a
menor dificuldade, sem passar diante de notário.”.
178
.
Os fatores que compeliram uma mudança do status quo existente na
França Aristocrática foram bem definidos acima e alcançaram o patamar de
insuportabilidade à época, não só pela existência de privilégios embasados no
caráter hereditário, mas também movido por uma contínua crise social às vésperas
das eleições livres, o que só enfatiza a conclusão de que a Revolução Francesa foi,
antes de tudo, premida por fatores políticos.
177
HUNT, Lynn. Política, Cultura e Classe na Revolução Francesa. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007, p. 31, apud GEORGE V. TAYLOR, in Non-capitalist wealth and the origins of the
French Revolution, p. 491.
178
FURET, François e OZOUF, Mona. Dicionário crítico da Revolução Francesa. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1989, p. 633.
78
Esta condição política impulsionadora da Revolução Francesa, diante de
um quadro social e econômico caótico foi objeto de destaque por MARCELLO
CERQUEIRA quando assinala que “durante quatro meses o debate político vai
tomar conta da França. A campanha eleitoral e a redação dos cahiers forçam os
eleitores a debater questões políticas, sociais, econômicas e religiosas, a refletir
sobre os problemas da vida e da sociedade. E a propor soluções. Durante a
campanha eleitoral, surgem inúmeros livros, panfletos e jornais. Aparece o mais
famoso deles: Qu’est-ce que le Tiers État?, do abade Sieyès, com 30.000
exemplares vendidos em alguns dias. A má colheita de 1788 e um inverno
extremamente rigoroso tornaram aguda a crise. Na primavera de 1789, com a
aproximação da entressafra, há pilhagem do trigo. Teme-se a ação altista dos
açambarcadores favorecendo grupos privilegiados e objetivando deixar o povo
faminto para reduzir sua resistência política. Cresce a campanha eleitoral entre o
Terceiro e os outros estamentos. O governo reprime duramente os tumultos
populares (20).”
179
.
O contexto que moveu a Revolução Francesa foi social e político e não
correspondia apenas ao desejo do povo que constituía o chamado Terceiro Estado
empreender a derrocada do Antigo Regime, embora o fio condutor desta
Revolução estivesse entregue aos inúmeros personagens e artífices desta mudança
significativa, a qual serviu de paradigma para o mundo moderno, no que diz
respeito à preservação da liberdade política e civil, bem como ao resguardo da
igualdade e a concretização de um modelo republicano.
Os movimentos revolucionários do século XVIII não prescindiram de um
fundamento político e de um ideário filosófico para tomar como embasamento,
pois as idéias de LOCKE cumpriram tal propósito na elaboração do Bill of Rights
de 1689 na Inglaterra e acabaram por forjar os fundamentos da Revolução
Americana e a edição da Declaração de Direitos da Virgínia de 12 de junho de
1776
180
.
179
CERQUEIRA, Marcello. A Constituição na história: origem e reforma. Rio de Janeiro: Revan,
1993, p. 63.
180
JACQUES, Paulino. Da Igualdade perante a Lei (Fundamento, conceito e conteúdo). 2ª. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 1957, p. 91.
79
A Revolução Francesa, consequentemente, incorporou todo o conjunto de
idéias passadas pelo Iluminismo, razão pela qual o pensamento de ROUSSEAU
alcançou plena aceitação entre os revolucionários, tendo em vista que o mesmo
defendia ser o preceito relativo à igualdade inerente à administração do ser
humano, porque “sendo todos os cidadãos iguais pelo contrato social, todos
podem prescrever o que todos devem fazer, enquanto nenhum tem o direito de
exigir que outro faça o que ele mesmo não faz. Ora, é exatamente esse direito,
indispensável para fazer viver e mover o corpo político, que o soberano concede
ao príncipe quando institui o governo. Muitos pretenderam que o ato desse
estabelecimento era um contrato entre o povo e os chefes que ele nomeia,
contrato pelo qual se estipulavam entre as duas partes as condições sob as quais
uma se obrigava a mandar e a outra a obedecer. Há de se convir, estou certo, que
esta é uma estranha maneira de contratar! Mas vejamos se essa opinião é
sustentável. Em primeiro lugar, a autoridade suprema não pode modificar-se
tanto quanto não pode alienar-se; limitá-la equivale a destruí-la. É absurdo e
contraditório que o soberano nomeie um superior: obrigar-se a obedecer a um
senhor é capitular em plena liberdade.
181
.
De um lado, o fundamento revolucionário salientado por ROUSSEAU foi
de que a vontade geral é indestrutível e que a Instituição do Governo não
representa um contrato fixado em bases imutáveis e inquestionáveis, motivo pelo
qual a Revolução Francesa, no que revela o seu lado político, usou os privilégios
mantidos pela nobreza como pilar à refutação do Antigo Regime.
Outro exemplo do que foi abordado é demonstrado por MONA OZOUF
quando informa que a Revolução Francesa “Em primeiro lugar, ele rompeu com o
sentimento de que, em matéria de igualdade, a Revolução foi inaugural: a
igualdade triunfou na opinião bem antes que o acontecimento revolucionário a
comunicasse aos costumes. Ele rejeita formalmente a idéia de que teria ocorrido
na Revolução Francesa um momento particular para a igualdade. Desde a
origem, toda a Revolução pertenceu à igualdade; traço distintivo, que contrasta a
Inglaterra com a França. A primeira desenvolveu o amor pela “liberdade por
181
ROUSSEAU, Jean Jacques. O contrato social: Princípios Gerais do Direito Político. 4ª. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 115.
80
privilégio.” A segunda, “nação cuja elite estava profundamente ferida”,
transformou a igualdade numa paixão exclusiva, capaz de justificar os atentados
feitos à liberdade.”
182
.
Como conseqüência lógica de todo o arcabouço filosófico que nutriu a
Revolução Francesa, deu-se o desenvolvimento da igualdade meritocrática, que
segundo MONA OZOUF serviu como uma “crítica devastadora do privilégio, a
desqualificação sem apelo da transmissão hereditária, um “monstro” segundo
Mirabeau, e da rigidez que acarreta. A igualdade devida aos méritos e aos
talentos varre as prerrogativas do nascimento.”
183
.
Com a sedimentação dos ideais revolucionários e da mensagem constante
do panfleto de SIEYÈS, consolidou-se o expurgo do Antigo Regime e dos
privilégios a ele atados, abrindo-se um novo cenário que permitiu a elaboração da
Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 26/08/1789.
Esta Declaração de Direitos, cunhada sob a influência de MIRABEAU
184
,
impôs um passo decisivo no reconhecimento da igualdade em termos totais e sem
precedentes, considerando a redação dada ao artigo 1º. da mesma:
Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As discrições sociais
só podem fundar-se na utilidade comum.”
185
.
Em relação ao mundo contemporâneo, o gradual repúdio à tirania e aos
privilégios que teve início com os sucessivos Pactos firmados na Inglaterra
(Magna Carta de 1215, Bill of Rights de 1689 e Ato de Estabelecimento de 1701),
passando pela Declaração de Direitos de Virgínia de 1776 consolidaram-se com a
emissão da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, desta
forma, confirmando a idéia de valorização do ser humano sem retrocessos.
A evolução normativa quanto à proteção dos direitos individuais é um
produto decorrente da necessidade direta da vida em Sociedade, uma vez que a
182
FURET, François e OZOUF, Mona. op. cit., p. 739.
183
FURET, François e OZOUF, Mona. op. cit., p. 741.
184
Vide JACQUES, Paulino. op. cit., p. 91 e FURET, François e OZOUF, Mona. op. cit., p. 683.
185
Vide JORGE MIRANDA. op. cit., p. 57.
81
desigualdade quanto ao tratamento se revela um precedente odioso e contraditório
aos ideais democráticos e republicanos.
Precisa, neste sentido, a advertência lançada por MARILENA CHAUI ao
asseverar que “os homens, reza a democracia liberal, são iguais por Natureza
(todos nascem com o direito à propriedade do corpo) e desiguais também por
Natureza (nascem com talentos e capacidades desiguais). A vida social tende a
fortalecer a desigualdade natural, de sorte que uma outra ou uma segunda
igualdade precisa ser produzida: Aquela trazida pela lei. Assim, a desigualdade
é um fenômeno natural reproduzido pela sociedade, enquanto a igualdade é um
fenômeno natural reconquistado pela política
186
.
Por isso mesmo, todo o sistema destinado à proteção dos direitos e a
afirmação das garantias, ainda que qualificados por JÉRÉMIE BENTHAM como
sofismas-anarquicos
187
não buscou e, de fato, jamais pretendeu suprimir o
caráter meritocrático
188
do contexto da igualdade, mas sim, teve a finalidade de
guarnecer a isonomia diante das benesses e privilégios eventualmente concedidos
a uma classe privilegiada.
Realmente, a idéia de isonomia deflagrada pelos Pactos e Declarações de
Direitos faz parte de um intenso processo de reconquista política, cuja perspectiva
permanece atual nos dias atuais.
Não se pode, assim, imaginar que não se fizessem necessárias as mudanças
para o perfeito ajustamento do foro por prerrogativa de função, sobretudo,
objetivando a criação de barreiras ou os parâmetros inibidores à ação política e
normativa que, simultaneamente, viesse a promover a sua ampliação desmedida
na esfera da legislação processual penal ou no âmbito das Constituições estaduais.
186
CHAUI, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 12ª ed., São
Paulo: Cortez, 2007, p. 211
187
BENTHAM, Jérémie. Sophismes anarchiques. in Oeuvres, trad. de Et. Dumont, Bruxelles,
1840, tomo I, p. 534.
188
Vide FURET, François e OZOUF, Mona. op. cit., p. 741.
82
Nesses termos, somente a reconquista política tem o poder de refrear as
situações ou os temas que indicam a assimilação de privilégios em detrimento da
isonomia.
3
Análise comparativa do foro por prerrogativa de função.
O foro por prerrogativa de função se encontra em uma série de
Constituições, contudo, em nenhuma delas com a dimensão e a complexidade
observada no texto constitucional brasileiro, o que corresponde a uma avaliação
extremamente reducionista da questão, tendo em vista o desdobramento da
matéria no plano dos Estados Federados, ou seja, as unidades federativas
definidas nos artigos 1º, caput, 18, caput, 25, caput da CRFB e 11 do ADCT da
CRFB.
Se considerarmos a dimensão propiciada pelo Estado Federal, em virtude da
distribuição da autonomia entre a União e os Estados-Membros, obviamente, a
sistemática adotada no Estado unitário francês e português e até mesmo o Estado
regional ou autonômico espanhol e italiano
1
não oferecerão a oportunidade de
conduzir a um critério de comparação, onde possamos destacar as eventuais
semelhanças quanto ao foro por prerrogativa de função.
É certo que o foro por prerrogativa de função no constitucionalismo
brasileiro teve início com a reprodução da concepção contida na Constituição
Portuguesa de 1822 e por ocasião da adoção da República tomou emprestado
diversos elementos que se encontravam presentes no constitucionalismo
americano, o que foi devidamente assinalado pela doutrina brasileira, como se
deduz da lição fornecida por RAUL MACHADO HORTA, nos seguintes termos:
“O rompimento com o nosso passado constitucional alterou, também, as fontes
inspiradoras das instituições republicanas. Abandonou-se o modelo monárquico
europeu. Os autores do Anteprojeto da Constituição, notadamente Rui Barbosa, o
notável artífice do Projeto do Governo Provisório, e os membros do Congresso
Constituinte voltaram-se para o modelo norte-americano e de lá importaram, como
havia feito a argentina, em 1853, a República, o Federalismo, o Presidencialismo e
as técnicas inerentes às novas instituições, como a intervenção federal, o primado
do Supremo Tribunal Federal, o controle da constitucionalidade das leis, o
bicameralismo federal, convertendo o Senado na Câmara eletiva dos Estados, a
repartição de competências através dos poderes enumerados à União e dos poderes
1
Vide SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Profissional Positivo. 24ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2005, p. 99.
84
reservados aos Estados autônomos, o hábeas corpus, para defender o indivíduo
contra a violência ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder (Constituição de
1891, art. 72, § 22), a concepção da autonomia dos municípios em função de seu
peculiar interesse.
O liberalismo constitucional impregnou a Declaração de Direitos da Constituição
de 1891, como já havia influenciado a Constituição do Império, para assegurar “a
brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos
concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade” (art. 72), dentre
esses direitos a igualdade perante a lei (§1º)...”
2
.
As bases federativas que foram lançadas no constitucionalismo brasileiro
fizeram com que o mesmo construísse uma identidade própria a respeito do foro
por prerrogativa de função, mesmo porque, a despeito da influência do
constitucionalismo americano na Carta Brasileira de 1891, a concepção existente
na Constituição americana não restou incorporada integralmente no direito
constitucional brasileiro.
Quando se examina a Constituição americana, observa-se que o artigo I, na
seção 3, parte final e artigo II, seção 4 somente estabeleceram o julgamento do
Presidente, Vice-Presidente e todos os funcionários civis dos Estados Unidos para
as questões que envolvessem a destituição de função e a proibição de exercício de
atividade pública, honorífica ou remunerada, daí porque, sem prejuízo de eventual
e posterior demanda no âmbito do direito comum, ou seja, na Justiça Criminal,
cujo julgamento será efetivado perante o Júri (art. III, seção 2, parte final)
3
.
A nossa herança normativa portuguesa, no que diz respeito ao tema,
praticamente ficou dissociada com o surgimento da Constituição da República de
1891, embora os fatores que propiciem o aumento inconcebível na concessão do
foro por prerrogativa de função tenham as suas raízes em todo o processo
histórico e antropológico vivenciado pelo homem brasileiro, como será objeto de
avaliação posteriormente.
É possível, deste modo, assinalar, que recebemos a concepção federalista
americana, mas quanto ao julgamento do Presidente da República não
2
HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p.
57.
3
Vide Constituições Estrangeiras. Tradutor José Luiz Tuffani de Carvalho, Espaço Jurídico, 2003,
p. 5-14.
85
endossamos integralmente a tese contida no Direito Constitucional Americano, o
que é possível constatar da leitura dos artigos 53, caput e 59, inciso I, alínea “a”
(redação conferida pela EC de 5 de setembro de 1926)
4
.
Compreensível, portanto, que não seja possível empreendermos um trabalho
efetivamente comparativo com o foro por prerrogativa de função definido na
Constituição Brasileira com o procedimento que se estabeleceu no
constitucionalismo americano.
O que se demonstra pertinente, a princípio, é a observância de que o
impeachment
5
foi inserido no nosso constitucionalismo por influência americana,
o que foi bem detalhado por ROSAH RUSSOMANO DE MENDONÇA LIMA
ao esclarecer que:
“A Constituição de 1891, absorvendo os ensinamentos norte-americanos, de um
modo geral, imprimiu ao “impeachment” sensíveis aperfeiçoamentos.
Entregou ao Congresso Nacional, dividido em seus ramos clássicos, a competência
para acusar e julgar o Presidente da República nos crimes de responsabilidade,
bem como, nos mesmos crimes, os ocupantes de relevantes posições.
O art. 29 de nossa primeira Constituição republicana, assim, outorgou à Câmara
dos Deputados a competência para declarar a procedência ou improcedência da
acusação contra o Presidente da República, nos têrmos do art. 53, e contra os
Ministros de Estado, nos crimes conexos com os do Presidente.
E o art. 33, a seu turno, incluiu na competência privativa do Senado Federal o
julgamento do Presidente da República e demais funcionários designados pela
Constituição, nos têrmos e pela forma por ela prescritos. Estes funcionários
federais, designados pela Constituição, seriam os Ministros de Estado (art. 52) e os
membros do Supremo Tribunal Federal (art. 57, § 2.º).
O Presidente da República, pois, seria acusado pela Câmara e julgado pelo
Senado, nos crimes de responsabilidade. Submeter-se-ia ao julgamento pelo
Supremo Tribunal Federal, nos crimes comuns (art. 53).”
6
.
4
CAMPANHOLE, Adriano e CAMPANHOLE, Hilton Lobo. Constituições do Brasil. 10ª ed. São
Paulo: Atlas, 1992, p. 700.
5
Importante a observância do esclarecimento constante do prefácio do livro de ROSAH
RUSSOMANO DE MENDONÇA LIMA, in O Poder Legislativo na República. Rio de Janeiro –
São Paulo: Freitas Bastos, 1960, XV: “impeachment, palavra inglesa derivada do latim, do
impedicare, ora traduzido para o vernáculo com o nome de impedimento ou de julgamento
político, mas quase sempre se utilizando no vocabulário político o têrmo inglês. Surgido na
Inglaterra no século XIV, em 1376, a princípio com certa importância, no século XVIII ainda se
apontaram 12 casos de impeachment, no século XIX apenas 2 casos, um dos quais, contra LORD
PALMERSTON em 1846, não teve êxito. Hoje é instituto obsoleto na Inglaterra, o seu desuso
provocado pela substituição através do voto de confiança, como observou ESMEIN. O
impeachement consiste na acusação do agente executivo e sua conseqüente perda de cargo,
acusação feita pela câmara baixa e julgamento pela câmara alta. Foi transplantado com êste
estilo para o Estados Unidos e posteriormente para o regime presidencial latino-americano.”.
6
MENDONÇA LIMA, Rosah Russomano de. op. cit., p. 242.
86
Não houve, desta forma, uma perfeita identidade entre o foro por
prerrogativa de função estipulado na Constituição brasileira de 1891 com a
sistemática criada na Carta Americana de 1787 e emendas posteriores, a qual, na
verdade, não contemplou o foro por prerrogativa de função.
Em verdade, a concepção do foro por prerrogativa de função consolidada no
Brasil guarda uma maior proximidade com o disciplinamento fornecido na Carta
espanhola de 1812 e na Constituição portuguesa de 1822 (artigo 191, inciso I),
especialmente o texto levado a efeito na Carta Constitucional Portuguesa de 1826
e o seu Ato Adicional de 1832 (artigo 131, § 2º)
7
.
O estudo contido na obra de JOSÉ JOAQUIM LOPES PRAÇA que está
reproduzido na nota de rodapé transcrita anteriormente e que dá a perfeita
7
Sobre o tema, ver LOPES PRAÇA, José Joaquim. Direito Constitucional Portuguez. Coimbra:
Coimbra, 1997, vol. II, p. 347: “Nos termos do §.º 2 do art. 131 da Carta é tambem da attribuição
do Supremo Tribunal de Justiça conhecer dos delictos e erros d’offício que commeterem os seus
ministros, o das Relações, e os empregados do corpo diplomatico. Esta disposição importa uma
excepção aos principios geraes de competencia e aos §§ 10º e 12º do artigo 145 da Carta; mas
defendem-na como derivação do § 15º do mesmo artigo por duas razões. Em primeiro não
parecia acceitavel que réos tão qualificados deixassem de ser julgados por um tribunal collectivo
em condições de maior ilustração e imparcialidade; em segundo logar um procedimento diverso
seria contrario à ordem jerarchica dos tribunaes. A Carta não mencionou n’este paragrapho os
secretarios e os conselheiros d’estado, nem os regentes do reino como o fizera o no I do art. 191
da Constituição de 1822. A omissão explica-se porque tendo a Constituição de 1822 repudiado
uma segunda camara, ou camara alta, não podia, como fez a Carta Constitucional, commetter à
camara dos pares o conhecimento dos delictos individuaes praticados pelos membros da familia
real, ministros de estado, conselheiros d’estado, etc. (C. C., art. 41, §1º). O art. 99 da Carta
estabeleceu tambem a irresponsabilidade da regencia e do regente. E não só apenas os ministros
do Supremo Tribunal de Justiça e os das Relações que estão sujeitos, excepcionalmente, a uma
competencia especial nos termos dos capitulos V e VI do Titulo XIX da Nova Reforma Judiciária e
leis applicaveis. Os proprios juizes de direito e agentes do ministério público tem um processo
especial em relação aos crimes por elles commettidos, quer no exercicio quer fóra do exercício de
suas funcções, e aos erros d’officio, como se regulou nos capítulos V e VI do Titulo XVIII da Nova
Reforma Judiciaria, e leis respectivas. Foi na nota ao §763.º da Nova Reforma Judiciária que
Castro Netto escreveu: “O processo especial estabelecido n’este capitulo e no seguinte, bem
como no capitulo V do tit. XIX e nos capitulos XVIII e XIX do tit. XXI deveria tambem
coprehender os crimes commettidos contra os magistrados a quem os mesmos capitulos se
referem, porque as razões que persuadem a necessidade de haver um juizo especial, e um
processo especial, para os crimes dos juizes e magistrados do M.P. militam com maior força de
razão para os crimes de que estes funccionarios forem victimas; de maneira que (à excepção dos
militares) todas as pessoas, que segundo a Carta Constitucional e conforme o art.º 126 Nova
Reforma Judiciária tem o privilegio de fôro nos crimes que commettem, deviam gosar do mesmo
privilegio nos crimes que contra ellas se commettessem; privilegio que além d’isso, deveria
tambem pertencer a muitos outros funccionarios, como sejam os bispos e arcebispos, ainda que
não fossem pares do reino, os vigarios capitulares, geraes e da vara, os parochos, os conselheiros
do thesouro, e conselho fiscal de contas, os governadores civis, os administradores do concelho, e
outros empregados públicos que não devem ser julgados por um jury composto de pessoas de
quem por força de seus empregos podem ter contrahido a animadversão.”
87
dimensão da tendência lusitana em proceder à ampliação dos agentes detentores
do foro por prerrogativa de função, considerando que o texto efetivado antes da
denominada Nova Reforma Judiciária era bem mais restrito quanto aos agentes
públicos indicados para o gozo da citada prerrogativa.
A adoção do federalismo e da república modificou a nossa concepção de
Estado e eliminou toda e qualquer forma de privilégio, levando-se em conta o
padrão definido no constitucionalismo americano, contudo, ainda mantivemos boa
parte da influência legada pelo ordenamento jurídico português, circunstância
inevitável e efetivamente presente em nosso dia a dia, mesmo na vigência da
Constituição atual.
Impende notar, ainda, que o tema concernente ao foro por prerrogativa de
função também pode ser detectado na Constituição Federal Austríaca de 1º. de
outubro de 1920, considerando que HANS KELSEN, ao examinar a jurisdição
constitucional e administrativa a serviço do citado Estado, em síntese, identifica a
sua presença, quando sustenta o seguinte: “Por fim, a Corte Constitucional atual
como corte suprema central – ou, se se quiser – comum a União e estados. Nessa
qualidade, julga a acusação mediante a qual se caracteriza a responsabilidade
dos órgãos supremos federais e estaduais por violações culposas do direito, no
exercício das respectivas funções. A acusação pode ser levantada: a) contra o
presidente federal por violação da Constituição federal, mediante resolução da
Assembléia Federal (é necessária maioria de dois terços); b) contra membros do
governo federal e órgãos que lhes sejam equiparados (atualmente o presidente do
Tribunal de Contas) por violação da lei e mediante resolução do Conselho
Nacional (basta maioria simples); c) contra membros de um governo estadual e
órgãos que lhes sejam equiparados pelas Constituições estaduais quanto à
responsabilidade por violação da lei, e mediante resolução do Parlamento
estadual competente. A decisão condenatória da Corte Constitucional deve
determinar a perda do cargo, e, em casos particularmente graves, também a
perda temporária dos direitos políticos. A acusação pode também ser formulada
em virtude de atos de natureza criminal, relacionados ao exercício das funções
do acusado. Nesse caso a competência para julgar é exclusiva da Corte
Constitucional, devendo-lhe ser remetido o inquérito que porventura já estiver
88
pendente nos tribunais criminais ordinários. Além das penas específicas de perda
de mandato e dos direitos políticos, a Corte Constitucional também pode impor,
em tais casos, as penas previstas no código penal.”
8
.
A lição fornecida por KELSEN reproduz uma idéia própria do foro por
prerrogativa de função, uma vez que a Constituição Austríaca permitia cogitar a
responsabilidade dos órgãos supremos federais e, portanto, dos respectivos
agentes públicos, em virtude da prática de fato dotado de relevância penal
9
.
A norma inserida na Carta Austríaca, se confrontada com o texto
constitucional brasileiro vigente à época, realmente, apresenta uma sensível
identidade, fato que possibilita a demonstração de que o foro por prerrogativa de
função teve espaço na Constituição Austríaca de 1920, revelando-se um texto
efetivamente inovador quanto à perspectiva da responsabilização política e tutela
dos interesses da Administração Pública.
Acentue-se, que o texto constitucional austríaco foi alvo de contínuas
alterações a partir de 1934, por ocasião da anexação da Áustria pela Alemanha,
sendo que, em 13 de março de 1938, houve a supressão de dois temas que se
achavam inseridos na aludida Carta, a saber, a jurisdição constitucional e o foro
por prerrogativa de função
10
.
Posteriormente, com o término da Segunda Grande Guerra houve a
restauração da Constituição Austríaca de 1920, ex vi da Lei Constitucional de 12
de outubro de 1945, sendo que, apesar das reformas sofridas pela Carta em
apreço, ainda assim, o artigo 142 da mesma permanece vigente quanto ao foro por
prerrogativa de função.
Em conclusão, a idéia do foro por prerrogativa de função está conciliada
com todo o processo constitucional em que se pretenda a responsabilização dos
8
KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 35-36.
9
Vide JORGE MIRANDA. op. cit., p. 340.
10
FAVOREU. L; LUCHAIRE. F; SCHLAICH. K et al. Tribunales Constitucionales Europeos y
Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1984, por ERMACORA,
Félix, p. 270. No mesmo sentido: MORAES, Alexandre de. Jurisdição Constitucional e Tribunais
Constitucionais: Garantia Suprema da Constituição. São Paulo: Atlas, 2000, p. 132.
89
agentes públicos, daí porque, independentemente da natureza jurídica do Estado,
surge sempre a possibilidade da Constituição firmar a incidência desta
prerrogativa, como restou demonstrado nas Constituições Portuguesas de 1822 e
1826, na Carta Brasileira de 1891, ou na Carta Austríaca de 1º. de outubro de
1920.
3.1
A competência originária dos Tribunais na Inglaterra e nos Estados
Unidos. Países orientados pela Common Law.
Quando se examina o direito constitucional e as regras processuais
criminais inglesas não se verifica qualquer referência ou previsão normativa
acerca da existência do foro por prerrogativa de função.
Nesses termos, a organização judiciária inglesa composta pela Supreme
Court of Judicature que compreende a High Court of Justice, a Crown Court e a
Court of Appeal, as quais não exercitam a competência originaria similar ao foro
por prerrogativa de função, aliás, ROLAND SÈROUSSI informa que o alcance da
responsabilidade penal na Inglaterra quanto às pessoas de direito público
implicaria numa imunidade penal total da Coroa (Soberano e Ministérios) e,
ainda, em relação aos Chefes de Estado estrangeiros e aos diplomatas.
11
.
RENÉ DAVID empreende uma extensa abordagem quanto à sistemática das
Cortes Superiores Inglesas, no caso, indicando apenas a existência de uma
atividade puramente recursal quanto à atividade das mesmas e adverte que em
matéria de responsabilidade delitual, o Crown Proceedings Act de 1947 não
trouxe sensíveis modificações quanto aos aspectos criminais e processuais,
permanecendo, de fato, a imunidade de jurisdição conferida ao soberano
12
.
11
SÈROUSSI, Roland. Introdução ao direito inglês e norte-americano. São Paulo: Landy, 2001, p.
73.
12
DAVID, René. O direito inglês. op. cit., p. 89: “Ressaltamos, enfim, que próprio soberano
desfruta de uma imunidade de jurisdição: pode-se mover uma ação contra o Attorney General
como representante da Coroa, mas não se pode fazê-lo para comprometer a responsabilidade
pessoal de Sua Majestade a Rainha. A Coroa, sob diversos aspectos, foi colocada numa situação
privilegiada em relação aos cidadãos. A obrigação de exibir em justiça documentos apresenta, no
que a concerne, particularidades: não há prescrição em relação a ela como há em relação aos
particulares. A matéria das formas de execução, sobretudo, encontra-se inteiramente modificada
90
A análise de todas as situações concernentes ao direito inglês revela a
inexistência do foro por prerrogativa de função ou de uma competência originária
relativa à matéria criminal
13
junto a Crown Court ou na chamada Court of Appeal
(Criminal Division) com a presença do Lord Chief Justices
14
.
Na Constituição Americana, de imediato, o privilégio que restou
resguardado foi o julgamento pelo júri, como se deduz do Artigo III, seção 2 e da
leitura da Emenda VI, in verbis:
“Em qualquer processo criminal, o acusado terá direito de ser julgado rapidamente
e publicamente, por um júri imparcial do Estado e do distrito em que o crime tenha
sido cometido, devendo o dito distrito ser previamente determinado por lei, ser
informado da natureza e dos motivos das denúncias que pesam sobre ele, direito de
ser acareado com as testemunhas de acusação, direito de citas testemunhas de
defesa; direito de se beneficiar da assistência de um advogado para sua defesa.”
15
.
Realmente, a visão firmada pelo Constituinte americano é de que o
julgamento pelo júri corresponde a uma garantia conferida ao cidadão americano,
razão pela qual desde a criação da Constituição Americana até a presente data,
dificilmente se tem notícia do indivíduo renunciando ao direito de ser julgado
pelo Júri.
ALEXANDER HAMILTON, ao interpretar a Constituição Americana,
acentua sobre o júri que “O poder para constituir tribunais envolve o poder de
estipular o modo de julgamento; conseqüentemente, se nada fosse dito na
Constituição a respeito de júris, o legislativo estaria livre para adotar essa
instituição ou deixá-la de lado. No tocante às causas criminais, essa liberdade é
reduzida pela imposição expressa do julgamento por júri em todas elas; mas
resta, claramente, uma larga margem de liberdade em relação às causas civis, já
que há total silêncio a este respeito.”
16
.
aqui: não se pode obter contra a Coroa nenhuma ordem judiciária, nenhuma ordem de execução
forçada, não se pode impetrar contra a Coroa nenhum mandado de segurança, nenhuma
execução forçada, nenhuma penhora.”
13
DAVID, René. O direito inglês. op. cit., p. 61.
14
SÈROUSSI, Roland. op. cit., p. 33.
15
Vide Constituições Estrangeiras. Tradutor José Luiz Tuffani de Carvalho. op. cit., p. 20.
16
HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. op. cit., p. 506-507.
91
É importante observar que a Constituição Americana e a interpretação que
foi realizada a respeito da mesma, de fato, reconheceu a impossibilidade de que a
competência originária da Suprema Corte viesse a ser ampliada, o que foi objeto
de análise no leading case Cohens contra o Estado da Virgínia, na Sessão de
fevereiro de 1821 (6, repertório de Wheaton, 264 e 447), julgado por
MARSHALL, in verbis:
“Depois de fazer cuidadoso estudo do assumpto, o Tribunal sente escapar-lhe
qualquer razão deduzida da qualidade das partes para admittir uma excepção que a
Constituição não fez; e somos de parecer que o Poder Judiciario, conforme foi
originariamente outorgado, se estende a todas as causas derivadas da Constituição
ou de alguma lei dos Estados Unidos, quaesquer que sejam as partes.
Tambem se objectou que esta jurisdicção, si deferida, é originaria e não póde
exercer-se por via de apellação.
A Constituição assim se exprime: Em todas as causas concernentes a
embaixadores, outros ministros publicos e consules e naquellas em que fôr parte
um Estado, o Supremo Tribunal terá jurisdicção originaria. Em todas as outras
causas acima mencionadas terá o Supremo Tribunal jurisdicção em grão de
recurso.
Este distincção entre jurisdicção de unica ou primeira instancia e jurisdicção de
segunda instancia exclue, disse-se, em todas as causas o exercício de uma quando
é dada a outra.
A Constituição dá ao Supremo Tribunal jurisdicção originaria em certas e
enumeradas causas, e dá-lhe em todas as outras jurisdicção em gráo de recurso.
Entre as causas em que a jurisdicção deve exercer-se em segunda instancia estão
as derivadas da Constituição e leis dos Estados Unidos. Essas disposições das
Constituições são egualmente obrigatorias e devem ser respeitadas.”.
17
.
E conclui:
“Em taes causas, portanto, o Supremo Tribunal não póde exercer jurisdicção
originaria. Em qualquer outra causa, isto é, em toda causa a que se estende o poder
judicial, e em que a jurisdicção originaria não é dada expressamente, o poder
judicial será exercido tão somente por via de recurso. A jurisdicção originaria
deste Tribunal não póde dilatar-se, mas a sua jurisdicção gráo de recurso póde
exercer-se em toda a causa susceptivel de ser submettida, nos termos do art. 3º, ao
conhecimento dos tribunaes federaes, e em que a jurisdicção originaria não tem
cabimento; (...)”.
18
.
MARSHALL, no voto acima elaborado, de maneira textual, recrimina
qualquer possibilidade de que se venha a proceder à ampliação da Constituição
17
MARSHALL, John. Decisões Constitucionaes. Traduzida por Américo Lobo. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1903, p. 178-179.
18
MARSHALL, John. op. cit., p. 183-184.
92
para estabelecer ou trazer outras situações ao exame da competência originária da
Suprema Corte Americana.
O pensamento de MARSHALL, ao que tudo indica, esmoreceu a
possibilidade de que surgisse um processo de interpretação da Constituição
americana com a finalidade de se criar um foro por prerrogativa de função na
esfera da Suprema Corte e, muito embora o voto não tenha tratado diretamente do
tema, o mesmo é bastante elucidativo quanto à inadmissibilidade da elaboração de
um mecanismo que se destine a fomentar a usurpação da vontade do Constituinte
Originário.
Este contexto está definitivamente consolidado no Direito Constitucional
Americano e foi objeto de exame minucioso por DANIEL JOHN MEADOR
19
,
que dissecou as estruturas dos Tribunais Estaduais e Federais nos Estados Unidos
e, efetivamente, em nenhum momento fez a menor alusão à existência de uma
denominada competência originária para o julgamento de causas criminais, mas,
ao contrário, exaure o tema quanto ao julgamento da matéria criminal, em
decorrência da atividade recursal.
Aduza-se, nesta oportunidade, que a matéria processual na sistemática
constitucional americana está reservada à competência dos Estados Membros, o
que é enfatizado por GUIDO FERNANDO SILVA SOARES ao salientar que:
Deve ser notado que as matérias da Criminal Law e do Criminal Procedure são,
na sua esmagadora maioria, de pertinência do direito dos Estados-membros, e
que por isso mesmo refogem a qualquer uniformidade nos EUA. Já nos referimos
ao fato de que a legislação de processo criminal da Corte Suprema, portanto
válida para as justiças federais, o Code of Criminal Procedure de 1946, pouca
influência teve nas legislações estaduais. Por outro lado, dada a diversidade
entre os próprios Estados-membros, no que se refere à política penitenciária, as
características locais dos regimes de aplicação e gradação das penas fazem com
que a diversidade dos Direitos de Processo Penal seja muito grande e de tal
19
MEADOR, Daniel John. Os Tribunais nos Estados Unidos. Tradução de Ellen G. Northfleet.
Brasília: Serviço de Divulgação e Relações Culturais dos Estados Unidos da América, 1996.
93
maneira locais, que são muito ferrenhamente conservados na sua tipicidade, em
função das individualidades dos Estados federados.”
20
.
É de se concluir, portanto, que a Constituição Americana não estabeleceu
competência para os Estados definirem a prerrogativa de função concernente à
Suprema Corte, pois a admissão de tal circunstância resultaria numa total inversão
de valores e alargamento do sentido que se emprestou a Emenda X (dez).
21
.
Em abono à tese acima, é de se levar em conta à sistemática presente na
Common Law americana, segundo a qual GUIDO FERNANDO SILVA SOARES
informa que a competência legislativa quanto à matéria processual é, realmente,
dos Estados-Membros, porém, o que se deve “considerar no desenvolvimento das
normas do processo penal nos EUA é a sua constante atualização pela Corte
Suprema dos EUA, US Supreme Court, que tanto pode resultar em um sistema
mais ou menos liberal ou em direção a conservadorismos, (...)
22
.
A investigação de todos os aspectos trazidos à colação indica, sem qualquer
margem de dúvida, que os idealizadores da Declaração de Direitos de Virgínia e
da Constituição Americana de 1787 com as Emendas Constitucionais inseridas
em 1791, em nenhum momento, pretenderam criar um mecanismo que tivesse por
finalidade resguardar o julgamento das causas criminais a determinados agentes
públicos junto aos Tribunais Federais ou Estaduais, bem como junto à Suprema
Corte.
O que se pretendeu estabelecer no texto constitucional americano e restou
incorporado ao sistema constitucional brasileiro, de fato, foi o impeachment do
Presidente da República – no Direito Constitucional Americano, bem mais amplo,
porque atinge a qualquer servidor público, inclusive os juízes, embora tal
circunstância não seja utilizada com freqüência contra os mesmos nos Estados
20
SOARES, Guido Fernando Silva. Common Law: Introdução ao Direito dos EUA. 2ª. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 126.
21
Vide CORWIN, Edward S. A Constituição Norte Americana e seu significado atual. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1986, p. 258.
22
SOARES, Guido Fernando Silva. op. cit., p. 127.
94
Unidos –
23
, porquanto não há qualquer alusão ao foro por prerrogativa de função,
sendo certo que o mero balizamento da Constituição Americana com as Cartas
Brasileiras elaboradas a partir de 1891, nos leva a deduzir que a inclusão da
prerrogativa de foro no nosso texto constitucional está fortemente ligada à
vertente constitucional portuguesa.
Assim, a única exceção aberta na Constituição Americana quanto à
competência originária, ou seja, o foro por prerrogativa de função, em suma,
corresponde aos litígios envolvendo embaixadores, outros ministros e cônsules, os
quais são julgados perante a Suprema Corte (vide Artigo III, Seção 2, da Carta
Americana), no restante, a competência da referida Corte de Justiça é apenas
recursal.
O privilégio no constitucionalismo americano, portanto, é o direito de todo
o Cidadão, pouco importando o cargo ou função pública desempenhada ser
julgado no Júri pelos seus semelhantes (vide Artigo III, Seção 2 da Constituição
Americana).
3.2
Foro por prerrogativa de função nos Países Ibéricos e a estrutura
dos Tribunais dotados de competência originária.
A prerrogativa de função integra o constitucionalismo Ibérico desde as
suas primeiras Constituições liberais, como é possível concluir da leitura dos
artigos 239 e 253 da Constituição Espanhola de 1812 e dos mencionados artigos
191, inciso I da Constituição do Porto de 1822 e 131, § 2º da Carta Portuguesa de
1826.
A estrutura constitucional atual dos Países Ibéricos manteve o foro por
prerrogativa de função, por exemplo, no artigo 130 da Constituição Portuguesa de
1974 e no artigo 102 da Carta Espanhola de 1978, demonstrando que o tema não
23
BAUM, Lawrence. A Suprema Corte Americana: uma análise da mais notória e respeitada
instituição judiciária do mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Forense – Universitária, 1987, p.
104-105.
95
sofreu qualquer espécie de rejeição popular, considerando que a promulgação das
citadas constituições obedeceu a um rígido processo legitimador quanto às
respectivas Constituintes.
Não se deve esquecer que a Constituição da Espanha foi aprovada pelas
Cortes Gerais (Poder Legislativo na Espanha) nas sessões plenárias do Congresso
(Deputados e Senadores) celebrada em 31 de outubro de 1978 e ratificada pelo
povo espanhol em referendo efetivado em 06 de dezembro de 1978, seguindo-se a
sanção do Rei de Espanha perante as Cortes Gerais em 27 de dezembro do mesmo
ano (Diário Oficial do Estado número 311, de 29 de dezembro de 1978)
24
.
Por outro lado, como se observa do seu Preâmbulo da Constituição
Portuguesa, a mesma decorreu de um movimento destinado a proceder ao
restabelecimento dos direitos e liberdades do povo português oprimido pela
ditadura imposta por Salazar e que gerou a Revolução dos Cravos de 1974 com o
apoio das Forças Armadas, mas, sobretudo, com o respaldo de pessoas humildes e
camponeses
25
.
Estamos, assim, diante de Constituições formadas com extenso apoio
popular e que preservaram o foro por prerrogativa de função, a par de permitirem
a ampliação do seu contexto nas suas respectivas legislações infraconstitucionais.
Passando, primeiramente, ao exame do foro por prerrogativa de função no
sistema constitucional Português, em suma, observamos que a responsabilidade
criminal do Presidente da República foi definida no artigo 130º, nos seguintes
termos:
“Artigo 130.º (Responsabilidade criminal)
1. Por crimes praticados no exercício das suas funções, o Presidente da República
responde perante o Supremo Tribunal de Justiça.
2. A iniciativa do processo cabe à Assembléia da República, mediante proposta
de um quinto e deliberação aprovada por maioria de dois terços dos Deputados em
efetividade de funções.
3. A condenação implica a destituição de cargo e a impossibilidade de reeleição.
24
GUERRA, Luis López. Constitución española. 10ª. ed. Madrid: Tecnos, 2001, p. 25.
25
CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada.
3ª ed. Coimbra: Coimbra, 1993, p. 11.-12.
96
4. Por crimes estranhos ao exercício das suas funções o Presidente da República
responde depois de findo o mandato perante os tribunais comuns.”.
O foro por prerrogativa de função no Direito Português, contudo, não se
limita ao artigo acima citado, embora o texto constitucional português não tenha
disciplinado, em outro momento, o tema com a mesma ênfase do artigo 130 da
CP, é possível vislumbrar situações correlatas com a prerrogativa de função no
artigo 196º 1. e 2. da referida Carta (responsabilidade criminal dos membros do
Governo).
Coube ao Código de Processo Penal e subsidiariamente às Leis de
Organização Judiciária o estabelecimento da competência originária dos Tribunais
e, portanto, a delimitação do foro por prerrogativa de função no âmbito do
Supremo Tribunal de Justiça e no Tribunal das Relações, in verbis:
CAPÍTULO II
Da Competência
SECÇÃO I
Competência material e funcional
Artigo 10.º (Disposições aplicáveis)
A competência material e funcional dos tribunais em matéria penal é regulada
pelas disposições deste Código e, subsidiariamente, pelas leis de organização
judiciária.
Artigo 11.º (Competência do Supremo Tribunal de Justiça)
1 — Em matéria penal, o plenário do Supremo Tribunal de Justiça tem a
competência que lhe é atribuída por lei.
2 — Compete ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, em matéria penal:
a) Conhecer dos conflitos de competência entre secções;
b) Autorizar a intercepção, a gravação e a transcrição de conversações ou
comunicações em que intervenham o Presidente da República, o Presidente da
Assembleia da República ou o Primeiro-Ministro e determinar a respectiva
destruição, nos termos dos artigos 187.º a 190.º;
c) Exercer as demais atribuições conferidas por lei.
3 — Compete ao pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça,
em matéria penal:
a) Julgar o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República e
o Primeiro-Ministro pelos crimes praticados no exercício das suas funções;
4 — Compete às secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, em
matéria penal:
a) Julgar processos por crimes cometidos por juízes do Supremo Tribunal de
Justiça e das relações e magistrados do Ministério Público que exerçam funções
junto destes tribunais, ou equiparados;
Artigo 12.º (Competência das relações)
1 — Em matéria penal, o plenário das relações tem a competência que lhe é
atribuída por lei.
2 — Compete aos presidentes das relações, em matéria penal:
a) Conhecer dos conflitos de competência entre secções;
97
b) Exercer as demais atribuições conferidas por lei.
3 — Compete às secções criminais das relações, em matéria penal:
a) Julgar processos por crimes cometidos por juízes de direito, procuradores da
República e procuradores-adjuntos;
Além do Código de Processo Penal, a Lei n.°: 28, de 15 de novembro de
1982, – Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional –, disciplinou a extensão do foro por prerrogativa de função aos
membros do Tribunal Constitucional, para tanto, estabelecendo o seguinte:
Artigo 26º (Responsabilidade civil e criminal)
1. São aplicáveis aos juízes do Tribunal Constitucional, com as necessárias
adaptações, as normas que regulam a efectivação da responsabilidade civil e
criminal dos juízes do Supremo Tribunal de Justiça, bem como as normas
relativas à respectiva prisão preventiva.
2. Movido procedimento criminal contra juiz do Tribunal Constitucional e
acusado este por crime praticado no exercício das suas funções, o seguimento do
processo depende de deliberação da Assembleia da República.
3. Quando, na situação prevista no número anterior, for autorizado o seguimento
do processo, o Tribunal suspenderá o juiz do exercício das suas funções.
4. Deduzida acusação contra juiz do Tribunal Constitucional por crime estranho
ao exercício das suas funções, o Tribunal decidirá se o juiz deve ou não ser
suspenso de funções para o efeito de seguimento do processo, sendo obrigatória a
decisão de suspensão quando se trate de crime doloso a que corresponda pena de
prisão cujo limite máximo seja superior a três anos.
Perceptível, assim, que a Constituição Portuguesa diferentemente da
Constituição Brasileira não se ocupou da enumeração das situações designativas
do foro por prerrogativa de função, mas sim, reservou ao Código de Processo
Penal e as Leis de Organização do Judiciário a especificação referente ao tema, no
que diz respeito ao Supremo Tribunal de Justiça e ao Tribunal das Relações.
A legislação portuguesa, portanto, encarregou-se de definir o foro por
prerrogativa de função, contudo, não o fez em doses amplas, ou seja, alcançando a
todos os segmentos políticos portugueses, uma vez que os próprios membros da
Assembléia da República, os membros do Poder Legislativo português, à exceção
do seu Presidente, não fazem jus à competência originária para o julgamento das
ações penais eventualmente ajuizadas, conforme se infere do artigo 11, número 3,
aliena “a” do CPPP e, ainda, do Estatuto dos Deputados (Lei n.º 7, de 1 de Março
93 com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 24, de 18 de Agosto 95, n.º 55 de
18 de Agosto 98, n.º 8 de 10 de Fevereiro 99, n.º 45 de 16 de Junho 99, n.º 3 de
98
23 de Fevereiro 2001, Lei n.º 24, de 4 de Julho 2003, n.º 52-A, de 10 de Outubro
2005 e Lei n.º 43, de 24 de Agosto 2007).
Podemos concluir, assim, que as proposições relativas ao foro por
prerrogativa de função no sistema normativo português não foram exageradas e, a
bem da verdade, foram conferidas às Autoridades que desempenham funções
vitais à República Portuguesa, não se verificando o risco da prerrogativa se
converter numa forma de privilégio.
A Constituição Espanhola, por sua vez, concebeu disciplinamento acerca do
foro especial por prerrogativa de função da seguinte forma:
Artículo 102.
1. La responsabilidad criminal del Presidente y los demás miembros del
Gobierno será exigible, en su caso, ante la Sala de lo Penal del Tribunal
Supremo.
2. Si la acusación fuere por traición o por cualquier delito contra la seguridad
del Estado en el ejercicio de sus funciones, sólo podrá ser planteada por
iniciativa de la cuarta parte de los miembros del Congreso, y con la aprobación
de la mayoría absoluta del mismo.
3. La prerrogativa real de gracia no será aplicable a ninguno de los supuestos
del presente artículo.
Depreende-se, assim, que a Constituição Espanhola, igualmente, foi
lacônica ao tratar do tema, pois o artigo 122, números 1 a 3 remete à Lei de
Orgânica do Poder Judiciário, no caso, a Lei n.º: 6, de 1º de Julho de 1985.
Realmente, na Lei n.º: 6, de 1º de Julho de 1985, vamos encontrar a
definição do foro especial distribuído entre os órgãos jurisdicionais superiores
(Tribunal Supremo e do Tribunal Superior de Justicia) encarregados d exame
da matéria criminal decorrente das ações penais deflagradas – competência
originária.
O disciplinamento contido na legislação espanhola divide o exercício do
foro por prerrogativa de função entre o Tribunal Supremo e os Tribunais
Superiores de Justiça da seguinte maneira, in verbis:
99
Artículo 55.
El Tribunal Supremo estará integrado por las siguientes Salas:
- Primera: De lo Civil.
- Segunda: De lo Penal.
- Tercera: De lo Contencioso-administrativo.
- Cuarta: De lo Social.
- Quinta: De lo Militar, que se regirá por su legislación específica y
supletoriamente por la presente Ley y por el ordenamiento común a las demás
Salas del Tribunal Supremo.
Artículo 57.
1. La Sala de lo Penal del Tribunal Supremo conocerá:
1.º De los recursos de casación, revisión y otros extraordinarios en materia penal
que establezca la ley.
2.º De la instrucción y enjuiciamiento de las causas contra el Presidente del
Gobierno, Presidentes del Congreso y del Senado, Presidente del Tribunal
Supremo y del Consejo General del Poder Judicial, Presidente del Tribunal
Constitucional, miembros del Gobierno, Diputados y Senadores, Vocales del
Consejo General del Poder Judicial, Magistrados del Tribunal Constitucional y
del Tribunal Supremo, Presidente de la Audiencia Nacional y de cualquiera de
sus Salas y de los Tribunales Superiores de Justicia, Fiscal General del Estado,
Fiscales de Sala del Tribunal Supremo, Presidente y Consejeros del Tribunal de
Cuentas, Presidente y Consejeros del Consejo de Estado y Defensor del Pueblo,
así como de las causas que, en su caso, determinen los Estatutos de Autonomía.
3.º De la instrucción y enjuiciamiento de las causas contra Magistrados de la
Audiencia Nacional o de un Tribunal Superior de Justicia.
2. En las causas a que se refieren los números segundo y tercero del párrafo
anterior se designará de entre los miembros de la Sala, conforme a un turno
preestablecido, un instructor, que no formará parte de la misma para enjuiciarlas.
CAPÍTULO III
DE LOS TRIBUNALES SUPERIORES DE JUSTICIA
Artículo 70.
El Tribunal Superior de Justicia de la Comunidad Autónoma culminará la
organización judicial en el ámbito territorial de aquélla, sin perjuicio de la
jurisdicción que corresponde al Tribunal Supremo.
Artículo 71.
El Tribunal Superior de Justicia tomará el nombre de la Comunidad Autónoma y
extenderá su jurisdicción al ámbito territorial de ésta.
Artículo 72.
1. El Tribunal Superior de Justicia estará integrado por las siguientes Salas: de lo
Civil y Penal, de lo Contencioso-administrativo y de lo Social.
2. Se compondrá de un Presidente, que lo será también de su Sala de lo Civil y
Penal, y tendrá la consideración de Magistrado del Tribunal Supremo mientras
desempeñe el cargo; de los Presidentes de Sala y de los Magistrados que
determine la ley para cada una de las Salas y, en su caso, de las Secciones que
puedan dentro de ellas crearse.
Artículo 73.
1. ...omissis...
2. ...omissis...
100
3. Como Sala de lo Penal, corresponde a esta Sala:
a) El conocimiento de las causas penales que los Estatutos de Autonomía reservan
al conocimiento de los Tribunales Superiores de Justicia.
b) La instrucción y el fallo de las causas penales contra Jueces, Magistrados y
miembros del Ministerio Fiscal por delitos o faltas cometidos en el ejercicio de
su cargo en la Comunidad Autónoma, siempre que esta atribución no
corresponda al Tribunal Supremo.
Constata-se, deste modo, que o tratamento do assunto na legislação
espanhola já revela parâmetros aproximados com o fixado na Constituição
brasileira e nas nossas leis, levando-se em conta que a Espanha é um Estado
regional ou autonômico onde as Comunidades Autônomas Estado são portadoras
de uma autonomia parecida com aquela exercida pelos Estados-membros na
Federação.
A circunstância de o Estado autonômico espanhol comportar uma
concomitância quanto ao exercício de competências entre o Poder Central situado
em Madri e as Comunidades Autônomas portadoras de Estatutos (v.g. Estatuto de
Autonomía de Cataluña, Estatuto de la Comunidad Valenciana, Estatuto Galicia e
Estatuto País Vasco), equivalente às Constituições Estaduais nos países animados
pelo preceito Federativo, não induz a existência de uma Justiça Federal e
Estadual, como bem abordado por ENRIQUE ÁLVAREZ CONDE ao sustentar
que “La possibilidad de los Tribunales Superiores de Justicia em las
Comunidades Autónomas. Sin perjuicio de que más adelante volvamos sobre esta
cuestión, hay que señalar que estos Tribunales Superiores no son judiciales
propios de las Comunidades Autónomas, sino órganos de la Administración de
Justicia radicados en el territorio de éstas. Es decir, el principio de la unidad
jurisdiccional no sufre quebranto alguno por la existencia de estos
Tribunales.”
26
.
O foro especial no ordenamento jurídico espanhol, portanto, ficou reservado
à legislação infraconstitucional e detém algumas complexidades, a par de uma
nomeação alentada de autoridades, muito parecida com o estilo incorporado ao
26
CONDE, Enrique Álvarez Conde, Curso de Derecho Constitucional. Volume II: Los Órganos
Constitucionales el Estado Autonómico. Madrid: Tecnos, 1993, p. 252.
101
direito brasileiro, embora não se vislumbre qualquer influência das normas
espanholas precedentes na estrutura constitucional brasileira.
3.3
Análise no plano Constitucional do Foro por prerrogativa de função
na Europa Ocidental (França e Alemanha).
A própria Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão já enfatiza o
seu repúdio à corrupção dos governos e, naturalmente, adotou um comportamento
radical quanto a qualquer circunstância que pudesse ensejar a concessão de
privilégios.
O Constitucionalismo francês, de imediato, fez questão de indicar a
responsabilidade dos Ministros e agentes públicos no Título III da Constituição
Francesa de 1791.
No entanto, as constituições subseqüentes continuaram a estabelecer
referida responsabilidade dos Ministros, verbi gratia art. 152 da Const. de 1795,
arts. 13, 55 e 56 da Const. de 1814, arts. 12, 47 e 69 da Const. de 1830, arts. 68,
91 a 93 e 98 da Const. de 1848, art. 13 da Const. de 1852, arts. 48, 56 a 58 da
Const. de 1946 e arts. 20, 49, 68-1 à 68-2 da Const. de 1958.
É fácil identificar a preocupação com a qual os textos constitucionais
franceses fixaram a responsabilização dos agentes públicos (Ministros), o que não
se verificou no foro por prerrogativa de função, diante da idéia de
restabelecimento de um privilégio.
Apesar da previsão constitucional de responsabilidade dos Ministros, os
Constituintes franceses notaram que a responsabilidade sob o aspecto penal, em
suma, permanecia inviabilizada, daí o motivo da criação da Cour de Justice de la
Republique na Loi Organique de 23 de novembro de 1993, no intuito de efetivar a
persecução penal dos Ministros, uma vez que o artigo 68, caput, da Carta
Francesa reserva a Haute Cour de Justice para o julgamento do Presidente da
República apenas nos casos de alta traição.
102
O Conselheiro da Cour de Cassation, Monsieur LOUIS GONDRE em
discurso proferido na cerimônia de instalação da Corte de Justiça da República,
em 10 de fevereiro de 1994, acentuou que o ato de criação da referida Corte de
Justiça tinha o intuito de propiciar o pleno funcionamento da atividade
democrática com os princípios que regem a necessária responsabilização dos
agentes públicos, uma vez que não pode haver autoridade legitimamente exercida
sem a devida responsabilização dos seus atos, in verbis:
En créant la Cour de justice de la République le Pouvoir constituant a tenu à
confirmer que le fonctionnement de la démocratie ne saurait s'accompagner d'une
irresponsabilité pénale de fait des membres du Gouvernement. Il n'y a pas
d'autorité sans responsabilité.
Déjà, la Déclaration des droits de l'Homme du 26 août 1789 mentionnait que la
société a le droit de demander compte de son administration à tout agent public.
Aujourd'hui encore la société française, toujours éprise d'égalité et de progrès,
aspire à plus de justice et de transparence dans la vie publique
27
.
A sustentação trazida por LOUIS GONDRE demonstra que a criação da
Corte de Justiça da República parece ter sido a solução encontrada para reativar
uma maior fiscalização quanto aos atos praticados pelos membros do Governo, no
exercício das suas atribuições, o que revela uma fragilidade do sistema
constitucional revogado e de uma possível deficiência na atuação dos
responsáveis pela investigação de tais denúncias.
A Corte de Justiça da República, portanto, julga todas as questões
criminais da qual está encarregada de emitir pronunciamento, nos estritos termos
e limites da sua competência descrita no artigo 68-1 :
“Os membros do Governo são penalmente responsáveis pelos atos praticados no
exercício de suas funções por crimes qualificados ou delitos, no momento em que
foram cometidos.”
27
Hautes juridictions et commissions juridictionnelles. Discours prononcé pour l'installation de la
Cour de justice de la République 10 février 1994. Ceremonie d'installation de la Cour de Justice de
la Republique, Jeudi 10 février 1994, Allocution du Président Monsieur LOUIS GONDRE
Conseiller à la Cour de Cassation. Disponível em http://www.courdecassation.fr/.
103
Com a criação e a instalação da Corte de Justiça da República, o
constitucionalismo francês autorizou a formação do foro por prerrogativa de
função, a fim de que o citado órgão jurisdicional, na hipótese de verificação que o
ato cometido por membro do Governo (Ministro), a rigor, constitui crime ou
delito cometido no exercício das suas funções e que tem correlação direta com os
trabalhos do Estado e as relevantes atribuições à frente da atividade ministerial
venha a ser alvo de responsabilização penal
28
.
É plenamente viável, assim, a afirmação de que o foro por prerrogativa de
função – privilège de juridiction – pode ser identificado no constitucionalismo
francês no artigo 68-1 nos processos destinados à responsabilização penal dos
membros do Governo.
No que se relaciona à responsabilidade penal dos magistrados, a diretriz
que se firmou no constitucionalismo francês, com efeito, é o da negação do foro
privilegiado, o que é analisado com precisão por M. GUY CANIVET, Premier
Président de la Cour de Cassation, em conferência ministrada na Universidade de
Cambridge, em 19 de novembro de 2002, sobre a “Questão da responsabilidade
do Juiz na França”, ao tecer um rápido apanhado histórico do assunto, nos
seguintes termos:
“5 - À la responsabilité disciplinaire, s'ajoutent les responsabilités pénale et
civile. Dès l'Ancien Régime, en effet, les sanctions disciplinaires prises contre les
juges n'empêchaient pas la répression pénale. Un juge coupable de concussion,
corruption ou autres méfaits, pouvait être exclu, sans préjudice d'une peine que
l'époque voulait exemplaire et publique : la mort, les galères, le pilori... Le code
pénal de 1810 aménagea la responsabilité pénale des juges afin de punir les actes
de forfaiture, concussion, corruption, abus d'autorité et déni de justice. Cette
responsabilité pénale existe encore aujourd'hui, sous une forme rénovée et moins
violente... Ne bénéficiant plus, depuis la loi du 4 janvier 1993, d'aucun privilège
de juridiction, le juge est soumis à la loi commune, soit en sa qualité de citoyen,
soit en sa qualité d'agent public. L'égalité de tous devant la loi pénale est ainsi
assurée et, en raison de leurs fonctions propres, les juges sont même spécialement
visés par des dispositions du Code pénal qui leur sont spécifiques, par exemple la
corruption, le déni de justice ou l'abus d'autorité.”
29
.
28
ARDANT, Philippe. Institutions Politiques & Droit Constitutionnel. 6ª ed. Paris : Librarie
Générale de Droit et de Jurisprudence, 1994, p. 508-509.
29
CANIVET, GUY. La question de la responsabilité du juge en France. Net., Paris, nov. 2002.
Colloques et activités de formation . Colloques passés. 2002. Cour de Cassation. Disponível em
http://www.courdecassation.fr/.
104
A afirmação acima contida fornece um indicativo do tratamento conferido
pelo Constituinte francês quanto à definição da responsabilidade do magistrado, à
medida que informa expressamente que o privilégio de jurisdição, ou seja, o foro
por prerrogativa de função não lhe é viabilizado e a sua responsabilidade é
medida sem qualquer tipo de distinção, esteja o juiz na condição de cidadão ou de
agente público.
O sistema estabelecido no Direito Constitucional francês para o exercício
da persecução criminal em juízo não guarda correlação com o existente no Brasil,
porquanto o privilégio de jurisdição na Carta Francesa está reservado para
situações restritíssimas, como se infere dos artigos 67 a 68-3.
A Constituição Alemã, no seu artigo 61, prescreve situação típica do
chamado impeachment, não assumindo, assim, qualquer identidade com a
prerrogativa de função.
NUNO ROGEIRO, comentando o artigo 61 da Carta Alemã, assinala que
Trata-se do mecanismo típico de ïmpeachment”, herdado da jurisprudência
constitucional americana. O processo de acusação (Anklage) é, no entanto, ao
contrário da norma dos EUA, dividido em duas vertentes: a política – revelando-
se ainda aqui o princípio da participação dos “Länder”ao lado do parlamento
federal – e a jurídica. Os órgãos políticos podem decidir sobre o desencadear do
processo, agindo aqui como um acusador público (Staatsanwalt), mas o
julgamento, com os implícitos direitos gerais de defesa e princípio do
contraditório (art. 103.”), será efectuado pelo Tribunal Constitucional.
30
.
A Lei Fundamental de Bonn, entretanto, no artigo 98.2-5, que deve ser
interpretado em conjunto com os artigos 93.5 e 61, deixa assinalado que a decisão
sobre a acusação a um juiz compete à Corte Constitucional Federal, o que
demonstra a efetivação de uma responsabilização penal do magistrado perante um
órgão jurisdicional, portanto, situação que contém aspectos do evidente exercício
da prerrogativa de função.
30
ROGEIRO, Nuno. A Lei Fundamental da República Federal da Alemanha. Coimbra: Coimbra
1996, p.179.
105
3.4
Natureza jurídica do Foro por Prerrogativa de Função.
A natureza jurídica do foro por prerrogativa de função no Direito
Brasileiro obedece a uma circunstância ratione personae, ou seja, a sua concessão
se estabelece em prol das pessoas (agentes públicos), que dada a importância da
atividade acabam recebendo a prerrogativa de serem processados e julgados junto
a órgão constitucional não pertencente à estrutura da primeira instância ou do juiz
singular, bem como do Tribunal do Júri, nas hipóteses definidas no artigo 5º.,
inciso XXXVIII, alínea d, da CRFB.
Trata-se da competência funcional originária, que é exclusiva da matéria
criminal, pois, como bem declarado por PIMENTA BUENO, não abrange os
feitos cíveis
31
, sendo certo que tem o mérito de proteger as autoridades públicas
contra possíveis perseguições ou julgamentos que viessem a ser efetivados pelos
juízes singulares, no caso, eventualmente suscetíveis às influências políticas que o
julgamento realizado junto aos Tribunais não propicia.
32
.
A natureza jurídica do foro por prerrogativa de função está associada a
idéia de uma garantia fundamental, na hipótese justificada pela circunstância de
que a delimitação de um órgão jurisdicional competente na Constituição ou na Lei
representa a definição do juiz natural, porquanto, como explica ROGÉRIO
LAURIA TUCCI ao se valer da lição de CALAMANDREI, segundo a qual o Juiz
Natural é a determinação de irretroatividade da lei, a qual se apresenta como
garantia e na qual “se consubstancia o inseparável sistema da legalidade
33
, razão
pela qual a sua previsão no texto constitucional não representa um juízo de
exceção, mas sim, uma garantia constitucional.
31
PIMENTA BUENO, José Antônio. Apontamentos sobre as formalidades do processo civil. 3ª
ed., Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1911, p. 45.
32
Vide PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. São
Paulo: Revista dos Tribunais, Tomo V, 1968, p. 248-249 ao expor que o foro por prerrogativa
tinha por finalidade: “evitar se exponha o Presidente da República aos azares dos julgamentos de
juízes singulares, talvez em momentos de lutas políticas e de ódios vivos”.
33
TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro. São
Paulo: Saraiva, 1993, p. 121-122.
106
Nesses termos, o que fica patente é que a prerrogativa de foro não se
contrapõe ao Princípio do Juiz Natural, porém, ao contrário, se coaduna com as
projeções possibilitadas do citado Princípio, no sentido de proteger o homem
público, livrando-o de eventuais perseguições, daí porque, como bem ressaltado
por VICTOR NUNES LEAL no voto proferido na Reclamação 473-GB,
publicada DJ de 8-6-1962, a “jurisdição especial, como prerrogativa de certas
funções públicas, é, realmente, instituída não no interesse da pessoa do ocupante
do cargo, mas no interesse público do seu bom exercício, isto é, do seu exercício
com o alto grau de independência que resulta da certeza de que seus atos venham
a ser julgados com plenas garantias e completa imparcialidade”.
Inquestionável, portanto, que o foro por prerrogativa de função, de
maneira imediata, não serve à proteção dos interesses da coletividade e, tampouco
determina uma maior eficiência da atividade Democrática e do preceito
Republicano concernente à responsabilização dos agentes públicos, mas sim, em
tese, permitiria ao indivíduo o direito de ser julgado com celeridade e perante o
órgão jurisdicional fixado na lei ou na Constituição desde o dia em que o mesmo
assumiu o cargo público.
A validade do foro por prerrogativa de função é indiscutível e, a respeito
do assunto, JOSÉ FREDERICO MARQUES concluiu que a vedação incide sobre
o “foro estabelecido em atenção à pessoa em si (como nos casos dos foros
pessoais, - rectius, profissionais). Aquêles instaurados em razão da relevância da
função se acham perfeitamente legitimados, mesmo porque evitam certa
subversão hierárquica, como, por exemplo, o julgamento de um magistrado de
grau superior, perante um juiz inferior.”
34
.
O que é necessário fixar é que a delimitação da competência tem reflexos
na prática dos atos pelo magistrado, daí porque, não estando o mesmo investido
da jurisdição para processar e julgar pessoa detentora de foro por prerrogativa de
função, a garantia do juiz natural estaria sendo rompida, o que qualifica como
34
MARQUES, José Frederico. Da Competência em Matéria Penal. São Paulo: Saraiva, 1953, p.
65.
107
inteiramente pertinente à conclusão firmada por JOSÉ FREDERICO MARQUES
de que “a jurisdição penal conhece também de causas criminais, submetidas à
sua apreciação, não pelos titulares da perseguição penal, mas por aquêles que
pretendem fazer valer o direito de liberdade que a norma penal regula e tutela de
forma indireta. Sendo assim, não só a pretensão punitiva, mas também o direito
de liberdade pode ser conteúdo do pedido com que se provoca o exercício da
função jurisdicional penal.
35
.
A conclusão é que a Constituição é dotada de uma série de garantias que
foram elaboradas para que ninguém seja privado do seu direito de liberdade e de
maneira mediata do direito de ser processado perante o órgão jurisdicional
competente, nos termos da Constituição ou da Lei, a fim de que o status libertatis
não seja afetado pela atuação de uma autoridade desprovida de competência (art.
5º., LIII, da CRFB).
Por isso mesmo, é válida a lembrança de que ninguém pode ser
sentenciado senão by the law of the land, ou by due process of law, porque o
Princípio do Juiz Natural antecede a todos os aspectos que conduzem o processo
judicial criminal.
Assim sendo, a natureza jurídica do foro por prerrogativa é representativa
de uma das garantias constitucionais, à medida que resguarda o direito de
liberdade e o direito à segurança pessoal do indivíduo.
35
MARQUES, José Frederico. op.cit., p. 18.
4
A cultura do privilégio no Brasil
A origem do nosso Direito corresponde à família romano-germânica
1
e o
nosso padrão cultural está diretamente submetido às características gerais que a
colonização portuguesa imprimiu no Brasil, obviamente, com a interação do
elemento indígena e do escravo negro.
Este padrão cultural legado por Portugal não foi composto apenas do
português conhecido pela figura do degredado ou do condenado, verdadeiros
párias aos olhos da sociedade portuguesa, os quais chegavam ao Brasil Colônia ao
invés de serem submetidos à pena capital.
Por isso mesmo, a idéia geral que se tem do português responsável pela
disseminação da sua cultura no Brasil, na verdade, não pode ficar adstrita ao
conceito do português degredado e condenado, mas de uma pessoa portadora de
contornos próprios, a qual GILBERTO FREYRE visualizava como uma figura
vaga, falta-lhe o contorno ou a cor que a individualize entre os imperialistas
modernos. Assemelha-se em alguns pontos à do inglês; em outros à do espanhol.
Um espanhol sem a flama guerreira nem a ortodoxia dramática do conquistador
do México e do Peru; um inglês sem as duras linhas puritanas. O tipo do
contemporizador. Nem ideais absolutos, nem preconceitos inflexíveis
2
.
O homem português no Brasil Colônia, decorrente ou não da
miscigenação, acabou formando a nossa cultura, a qual serviu de embasamento
para a criação do Direito, apesar de personificar, como GILBERTO FREYRE
denominou “um tipo contemporizador” e “sem ideais absolutos ou preconceitos
inflexíveis”, não escapou à realidade de uma sociedade devidamente estratificada,
1
DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
1996, p. 61.
2
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. 50ª ed. São Paulo: Global, 2005, p. 265.
109
mas não impermeável, porquanto não havia uma aristocracia fechada na
sociedade portuguesa
3
.
Assim, presente a separação das classes sociais sem que isso fosse o
impedimento à contínua miscigenação e, ainda, a incidência constante dos
privilégios na vida portuguesa e brasileira, o que é sintetizado por SÉRGIO
BUARQUE DE HOLANDA ao mencionar que, no fundo, o próprio princípio de
hierarquia nunca chegou a importar de modo cabal entre nós. Toda hierarquia
funda-se necessariamente em privilégios. E a verdade é que, bem antes de
triunfarem no mundo as chamadas idéias revolucionárias, portugueses e
espanhóis parecem ter sentido vivamente a irracionalidade específica, a injustiça
social de certos privilégios, sobretudo dos privilégios hereditários. O prestígio
pessoal, independente do nome herdado, manteve-se continuamente nas épocas
mais gloriosas da história das nações ibéricas
4
.
Não espanta, assim, que o privilégio estivesse arraigado à cultura brasileira
e houvesse criado numa parcela significativa da sociedade uma passividade ética
e moral que facilitou a sua aceitação, mesmo porque, historicamente, as classes
trabalhadoras almejavam as mesmas benesses que os nobres ou os seus patrões, o
que dificultou o estabelecimento de um processo coletivo de rejeição. Factível a
conclusão de que não se põe em questionamento o que um dia pode-se vir a ter.
Tão nítido o inter-relacionamento entre nobres e empregados em Portugal
e no Brasil Colônia que as Ordenações estabeleceram regras privilegiando os
empregados dos nobres ou fidalgos (vide capítulo I, item 1.2.3.1), situação
diagnosticada por SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA ao buscar e citar os
ensinamentos de ALBERTO SAMPAIO enfatizando que “como a lei consignada
nas Ordenações confessa que havia homens da linhagem dos filhos d’algo em
todas as profissões, desde os oficiais industriais, até os arrendatários de bens
rústicos; unicamente lhes são negadas as honras enquanto viverem de trabalhos
mecânicos. A comida do povo – declara ainda – não se distinguia muito da dos
3
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil: Edição comemorativa 70 anos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006, p. 25.
4
HOLANDA, Sérgio Buarque de. op. cit., p. 24.
110
cavalheiros nobres, por isso que uns e outros estavam em contínuas relações de
intimidade; não só os nobres comiam com os populares, mas ainda lhes
entregavam a criação dos filhos. Prova está na instituição do amádigo pela qual
os nobres davam a educar seus filhos aos vilãos, que desfrutavam, neste caso, de
alguns privilégios e isenções.”
5
Em face do inter-relacionamento inerente à cultura portuguesa, a aceitação
do privilégio restou admissível entre nós, diferentemente de outros países da
Europa, onde a separação das classes sociais fomentou um maior repúdio ao
estabelecimento de privilégios, uma vez que os nobres do restante da Europa não
mantinham uma convivência mais direta com os seus empregados e,
conseqüentemente, os casamentos só ocorriam entre aqueles de classe
semelhante
6
, justamente o que foi confirmado acima, por ocasião do exame das
classes privilegiadas na França (vide nota de rodapé 174)
7
.
O privilégio, ademais, sempre fez parte do cotidiano do Brasil Colônia,
segundo o que nos revela MARIA FERNANDA BICALHO
8
ao analisar todo o
processo de desenvolvimento da Cidade do Rio de Janeiro desde o século XVII e
demonstrar que a idéia do privilégio alcançou tamanha difusão e naturalidade,
chegando ao ponto de ser parte integrante da estrutura da Cidade.
Acentua MARIA FERNANDA BICALHO que “em 1642, os cidadãos da
cidade de São Sebastião recebiam os mesmos privilégios, honras e liberdades
conferidas por carta régia de 1º de junho de 1490 aos cidadãos do Porto” e
“estendidos em meados do século XII aos colonos do Rio de Janeiro, esses
privilégios atribuíam-lhes certas prerrogativas de fidalguia, e à cidade, o título de
“Leal”. Uma primeira observação a se fazer acerca desses privilégios é o fato de
serem concedidos aos cidadãos e não a todos os habitantes das cidades
5
HOLANDA, Sérgio Buarque de. op. cit., p. 25.
6
HOLANDA, Sérgio Buarque de. op. cit., p. 24, citando GIL VICENTE, in Obras Completas.
Reimpressão fac-similada da edição de 1562, Lisboa, 1928, fol. CCXXXI.
7
Estabelecendo uma visão mais ampla e complementar do tema após a Revolução Francesa,
verifica-se o pensamento de MICHELLE PERROT, in História da Vida Privada, 4: Da Revolução
à Primeira Guerra. Organização de Michelle Perrot, 8ª reimpressão, São Paulo: Companhia das
Letras, 2001, p.105-114.
8
BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 322.
111
contempladas. Por cidadãos entendiam-se aqueles que por eleição
desempenhavam ou tinham desempenhado cargos administrativos nas câmaras
municipais – vereadores, procuradores, juizes locais, almotacés etc. –, bem como
seus descendentes. Entre as prerrogativas a que tinham direitos estavam as
distinções de serem metidos a tormentos
9
por quaisquer malefícios que tivessem
cometido
10
, salvo nos modos em que eram os fidalgos do reino; de não poderem
ser presos por nenhum crime, somente como eram e deviam ser os mesmos
fidalgos, e de lhes ser permitido portar quaisquer tipos de armas.”
11
Foram diversos os privilégios concedidos aos cidadãos na Cidade do Rio
de Janeiro e aos seus empregados
12
, o que fornece a evidência precisa da
participação do privilégio no nosso cotidiano e de como o mesmo inspirou a
formação cultural de uma sociedade desde o século XVII, à medida que todos
procuravam a obtenção de uma projeção social para alcançar o gozo dos referidos
privilégios.
Não é de se estranhar, por conseguinte, que o privilégio tenha tido uma
configuração própria e que a sua aplicação tenha continuado mesmo após o
advento da Revolução Francesa e a proposta de igualitarismo nela contida.
9
JOSÉ ANTÔNIO PIMENTA BUENO, o Marquês de São Vicente, ao versar sobre o art. 179, §19
da Constituição do Império, na sua obra Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do
Império. Ministério da Justiça e Negócios Interiores, 1958, p. 407-408 informa que: “Nossa antiga
legislação criminal, datada de três séculos anteriores, quando os conhecimentos jurídicos e
sociais estavam ainda muito acanhados, reconhecia as penas degradantes ou bárbaras de
açoutes, tortura, marca de ferro e outras semelhantes. O homem por ser delinqüente não deixa de
pertencer à humanidade; é de mister que seja punido, mas por modo consentâneo, com a razão,
próprio de leis e do govêrno de uma sociedade civilizada.”
10
Ressalte-se que o término das práticas de tortura no Brasil ocorreu com o art. 179, §19 da
Constituição do Império de 1824, nos seguintes termos: desde já ficam abolidos os açoites, a
tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis.
11
BICALHO, Maria Fernanda. op cit., p. 322-323.
12
BICALHO, Maria Fernanda. op cit., p. 323.
112
4.1
Análise dos Privilégios Concedidos pela Coroa Portuguesa aos
Ingleses em Território Português e no Brasil Colônia. Atuação da
Inglaterra na garantia de benesses aos súditos ingleses.
Se atentarmos para a substanciosa rede de privilégios criados nas
legislações portuguesas, com efeito, podemos adicionar a ocorrência de uma
evidente submissão da soberania portuguesa à Coroa Inglesa em terras brasileiras,
pois Dom João VI às vésperas da partida de Portugal (Lisboa) para o Brasil (Rio
de Janeiro) permitiu aos seus encarregados e/ou ministros que celebrassem um
acordo em Londres - "A Convenção Secreta" – com o representante inglês em
Portugal - Lord Strangford -, que determinava a transferência temporária da sede
da Monarquia lusitana para o Brasil e, acima de tudo, o reconhecimento, por parte
do governo britânico da dinastia de Bragança como legitima detentora do poder
político, o compromisso de Portugal (monarca) de não permitir a instalação do
Tribunal da Inquisição, uma vez que os ingleses eram anglicanos, além de
autorizar a instalação de um Tribunal constituído por juizes ingleses para julgar os
crimes que os súditos da Coroa Britânica viessem a cometer no Brasil
13
.
A possibilidade dos súditos ingleses em solo português (Brasil Colônia)
responderem pela prática de eventuais delitos com a aplicação da lei penal inglesa
revela uma evidente proteção e, obviamente, um dos privilégios mais acentuados
e somente explicável pela relação de subserviência que se instalou entre Portugal,
então ameaçada pelas tropas napoleônicas, e a Inglaterra que manteve o
reconhecimento de Portugal como nação.
Aliás, os privilégios concedidos aos ingleses em solo brasileiro foram
profundamente criticados e considerados impopulares, ao que se depreende do
comportamento dos brasileiros à época, os quais taxaram de verdadeiramente
13
GOMES, Laurentino. 1808: Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta
enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil. São Paulo: Planeta do Brasil,
2007, p. 208-209.
113
usurpadores os termos dos acordos e tratados elaborados pela Coroa Portuguesa
com a Inglaterra
14
.
As normas editadas em Portugal guardaram um forte protecionismo às
pessoas mais abastadas, em alguns casos, incluindo até os seus empregados, daí
porque os privilégios permitidos aos ingleses pela Coroa Portuguesa, por mais
estranhos que possam parecer, não se evidenciam anormais.
Em verdade, o cotejo das normas produzidas na Península Ibérica revela
uma evidente interiorização do privilégio na cultural diária, desmistificando e
impedindo a criação de qualquer resistência à sua manutenção.
É possível reconhecer, desta maneira, que a cultura do privilégio não
causava espanto, diante da tamanha interiorização do tema, razão pela quais todas
as situações expostas nos ordenamentos legais nunca foram repudiadas, ao
contrário do sentimento desenvolvido na vertente inglesa (Common Law), cuja
atuação primou, principalmente, pela limitação dos privilégios do clero, hipótese
nunca cogitada no Direito Português, onde a influência da Igreja foi
extremamente significativa, inclusive, transplantando-se para o Direito Brasileiro
e mantendo-se presente até no período imperial brasileiro por força do Decreto n.
609, de 18 de agosto de 1851.
Vale dizer, que mesmo após o advento da Revolução Francesa, das
Constituições Liberais de Cádiz de 1812 e do Porto de 1822 e, bem como, da
Constituição Brasileira de 1824, a idéia de se conferir proteção aos membros do
clero não foi infirmada, o que revela um traço cultural importante, suscetível até
de um profundo estudo antropológico, considerando os componentes sócio-
culturais que atuam em relação ao tema privilégio.
Tais fatores servem para explicar o comportamento e o motivo de o povo
brasileiro, mesmo nos dias atuais – século XXI –, associar a prerrogativa de
função elaborada pelo modelo republicano e direcionada à preservação dos cargos
14
WILCKEN, Patrick. Império à deriva: A corte portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2005, p. 151 e 159.
114
públicos, como um mecanismo destinado à concessão de benesses aos políticos
eleitos pelo voto popular, apesar de uma constante extrapolação quanto à escolha
das autoridades que fazem jus a tal prerrogativa, o que leva, aparentemente, a
distorção popular de qualificar prerrogativa como privilégio.
4.2
Constituição do Império de 1824, a instituição do Poder Moderador, a
abolição dos privilégios puramente pessoais e a instituição dos
privilégios de causa ou de foro. A manutenção dos privilégios aos
membros da Igreja no Decreto 609, de 18/08/1851.
Independentemente da influência exercida na nossa Constituição do
Império de 1823 pela Revolução Francesa, as Constituição Francesas de 1791 e a
de 4 de junho de 1814, a Constituição Espanhola (Cádiz) de 19 de março de 1812
e a Constituição Portuguesa (Porto) de 23 de setembro de 1822, não se deve
perder a perspectiva de que a nossa primeira Constituição, sem dúvida nenhuma,
mais do que um produto decorrente da inspiração do constitucionalismo liberal
oriundo da Europa, de fato, representou, no cenário brasileiro a concretização dos
fatores reais de poder
15
porque, como bem assinala MARCELLO
CERQUEIRA, “a Carta Imperial foi um pacto entre a coroa e a escravidão.
Desfeito conduziu à República.”
16
.
Como é possível identificar, o idealismo que presidiu a Constituinte de
1823 teve a sua fundação no liberalismo, o qual “pretendia ao mesmo passo
remover do plano institucional os abusos do passado, os vícios de poder, os erros
da tradição, os prestígios injustos dos privilégios, enfim, suprimir séculos de
autoridade pessoal absoluta, de que era expressão concreta e histórica as
chamadas monarquias do direito divino.”
17
.
15
Neste sentido, FERDINAND LASSALLE. Que é uma Constituição? Guanabara – Rio de
Janeiro: Laemmert, 1969, Cap. II, p. 27: “Sim, existem sem dúvida, e esta incógnita que estamos
investigando apoia-se, simplesmente, nos fatôres reais do poder que regem uma determinada
sociedade. Os fatôres reais do poder que regulam no seio de cada sociedade são essa força ativa
e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas da sociedade em apreço, determinando
que não possam ser, em substância, a não ser tal como ela são.
16
CERQUEIRA, Marcello. A Constituição na história: origem e reforma. op.cit., p. 287.
17
BONAVIDES, Paulo e ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 92.
115
Nada obstante a pujança contida no liberalismo, PAULO BONAVIDES E
PAES DE ANDRADE detectam que “o idealismo e a pureza desses postulados
não se concretizou na realidade institucional senão durante breve período, e de
modo consideravelmente incompleto
18
, uma clara demonstração de que o
pragmatismo, ou seja, a utilidade e o próprio êxito ou satisfação da sociedade
brasileira inserida numa estrutura política monárquica moderadora – Chefe
Supremo da Nação e seu primeiro representante –
19
e num modelo de vida social
permeada pelo componente senhorial, agrícola e escravocrata.
A estrutura constitucional surgida com a Carta Outorgada de 1824
introduziu, entre nós, a figura do Poder Moderador, embora a Constituinte de
1823 nada tivesse falado acerca deste privilégio que foi conferido ao Imperador
20
de possuir um controle direto sobre os demais poderes
21
.
Assim, o poder moderador estabelecido no artigo 99 da C. do Imp. afirma
que “A pessoa do imperador é inviolável e Sagrada: ele não está sujeito a
responsabilidade alguma
22
, uma nítida fixação de um privilégio em favor do
monarca.
Firmaram-se as prerrogativas reais, em especial, aquela que determinava a
irresponsabilidade integral do monarca “The King can do no wrong
23
, o que foi
interpretado por BENJAMIN CONSTANT como algo natural porque “um
monarca hereditário pode e deve ser irresponsável. É um ser à parte no topo do
edifício; sua atribuição, que lhe é particular e que é permanente, não apenas
nele, mas em toda a sua estirpe, dos seus ancestrais aos seus descendentes,
separa-o de todos os indivíduos do seu império. Não é nada extraordinário
18
BONAVIDES, Paulo e ANDRADE, Paes de. op. cit., p. 93.
19
HORTA, Raul Machado. op. cit., p. 56.
20
SOBRINHO, Barbosa Lima; MELLO, F. I. M. Homem de; ALENCAR, José de; et al. A
Constituinte de 1823: Obra comemorativa do sesquicentenário da Instituição Parlamentar.
Brasília: Senado Federal, 1973, p. 100.
21
Vide CAETANO, Marcelo. op. cit., pp. 504-506.
22
Vide JORGE MIRANDA. op. cit., p. 211.
23
Nesse sentido, RENÉ DAVID in O direito inglês. op. cit., p. 85: “Durante séculos, até 1947,
proclamou-se na Inglaterra o princípio de que “o rei não pode agir mal”, The King can do no
wrong. Não é possível, juridicamente, que o soberano tenha agido contrariamente ao direito e que
se possa argüir, por conseguinte, a responsabilidade contratual ou delitual da Coroa”.
116
declarar um homem inviolável quando uma família é investida do direito de
governar um grande povo, com exclusão das outras famílias e expondo-se ao
risco de todos os azares da sucessão.”
24
.
Sem dúvida, o Poder Moderador
25
nada mais foi que a inclusão de um
privilégio, ou seja, uma faceta para que o Imperador exercesse o controle absoluto
sobre os demais poderes de Estado instituídos pela Constituição, ou seja, uma
monarquia que RAUL MACHADO HORTA assinala como estatamental e feudal,
na hipótese, conhecedora de inúmeros privilégios, antes que a República e o
próprio governo monárquico contemporâneo abolissem os privilégios, visando à
conservação das prerrogativas
26
.
Entretanto, a nossa primeira Constituição buscou a eliminação dos
processos causadores de desigualdade entre as pessoas, uma iniciativa que
correspondeu à formulação de uma idéia protetiva que PIMENTA BUENO
afirmava imprescindível, porque argumentava que “embora porém exista essa
desigualdade importante e incontestável, por outro lado é fora de dúvida que
todos os homens têm a mesma origem e destino, ou fim idêntico. Todos têm o
mesmo direito de exigir que os outros respeitem os seus direitos, de alegar que
uns não nasceram para escravos, nem outros para senhores, que a natureza não
criou privilégios, favores e isenções para uns, penas, trabalhos e proibições para
outros; enfim que não tirou uns da cabeça de Brama, e outros do pó da terra.
Consequentemente, qualquer que seja a desigualdade natural ou casual
dos indivíduos a todos os outros respeitos, há uma igualdade que jamais deve ser
violada, e é a da lei, quer ela proteja, quer ela castigue, é a da justiça, que deve
24
CONSTANT, Benjamin. Escritos de Política. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 2005, p. 222, apud Réflexions sur les constitutions et les garanties.
25
Acerca do assunto, ver J. J. GOMES CANOTILHO, in Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. 2ª ed. Coimbra: Almedina, 1998, p. 137, apud BENJAMIN CONSTANT,
Principes de Politique”, in De La Liberté chez lês Modernes, org. de M. Gauchet, Paris, 1980, p.
280 : A ideia do poder moderador é um “produto teórico” trabalhado sobretudo por Benjamin
Constant. Designando-o por “pouvoir royal”, este autor justificava a sua existência pela
necessidade de o “poder real” ser um “poder neutro”, a fim de evitar o vício de quase todas as
constituições”: “ ne pás avoir créé um pouvoir neutre, mais d’avior placé la somme totale
d’autorité don til doit être investi dans l’un des pouvoirs actifs”.
26
HORTA, Raul Machado. op. cit., p. 595.
117
ser sempre uma, a mesma, e única para todos sem preferência, ou parcialidade
alguma.”
27
.
A extinção ou a abolição dos privilégios puramente pessoais foi a tônica
imprimida na C. do Imp., no art. 179, §§16 e 17 seguindo a mesma esteira da
Carta Francesa de 1791 e das Constituições Liberais do século XIX de Cádiz de
1812 e do Porto de 1822, nos seguintes termos:
“Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e políticos dos Cidadãos
Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade,
é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte
§16. Ficam abolidos todos os Privilegios, que não forem essencial, e inteiramente
legados aos Cargos, por utilidade publica.
§17. A’excepção das Causas, que por sua natureza pertencem a Juízos particulares,
na conformidade das Leis, não haverá Foro privilegiado, nem Commissões
especiaes nas Causas civeis, ou crimes.”
28
Por ocasião da supressão dos privilégios estritamente pessoais na C. do
Imp., PIMENTA BUENO, com muito acerto, enalteceu a nova vertente
constitucional, para tanto, justificando que “a abolição dos privilégios, salva a
única exceção dos que forem essencial e inteiramente exigidos por utilidade ou
serviços públicos, é uma outra conseqüência necessária do justo e útil princípio
da igualdade perante a lei
29
.
A conclusão fornecida por PIMENTA BUENO para justificar a eliminação
dos privilégios pessoais se insere no reconhecimento de que os mesmos são
absolutamente odiosos, razão pela qual, a melhor diretriz é aquela que está
correlacionada à observância rigorosa de que os “privilégios”, se existentes,
devem recair sobre os cargos e empregos, com abono nos seguintes critérios:
“A lei deve ser uma e a mesma para todos, qualquer especialidade ou prerrogativa,
que não fôr fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público,
será uma injustiça e poderá ser uma tirania.
27
PIMENTA BUENO, José Antônio. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do
Império. op. cit., p. 412.
28
MIRANDA, Jorge. op. cit., p. 225.
29
PIMENTA BUENO, José Antônio. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do
Império. op. cit., p. 414.
118
Os privilégios que como dissemos podem versar sôbre diversos objetos ou
concessões quaisquer, e ser mais ou menos extensos, mais ou menos importantes,
costumam ser divididos ou distinguidos em pessoais e reais.
582. Chamam-se pessoais os que são concedidos à pessoa em razão de si mesma,
por amor dela, ou seja por graça, ou a título de remuneração de serviços. Êste
privilégio é odioso, é um péssimo meio de remunerar serviços, ainda mesmo
quando sejam verdadeiros; há mil outros meios de fazê-lo sem ferir a lei comum.
Felizmente nossa sábia Constituição aboliu êste abuso para sempre.
583. Denominam-se reais os que são concedidos, não às pessoas, embora
redundem também em proveito delas, e sim às coisas que estão relacionadas com
tais pessoas, como os cargos, empregos, dignidade, invenções, descobertas, etc.
Êstes nada têm de odiosos desde que o interêsse público os demanda e que não
provêm de abuso, tal é o privilégio que tem o deputado, ou senador de não ser
prêso senão nos únicos têrmos excepcionais da Constituição. O privilégio do fôro,
ou juízo privativo do senado, de que trataremos no parágrafo seguinte, é um outro
que está no mesmo caso.
Salvas pois as bem fundadas exceções reais, nossa lei fundamental não consente
favores parciais, ou injustas arbitrariedades.”
30
.
A C. do Imp. inspirada nas Cartas Liberais Francesas editadas de 1791 a
1814
31
, na C. de Cádiz de 1812 e na Constituição do Porto de 1822 reconheceu
que o privilégio de causa ou de foro teria fundamento nas pessoas ou poderia ser
geral, o que revela a preocupação de se estabelecer um óbice aos privilégios
postos em prática antes do surgimento da C. do Imp. e, por outro lado, a
afirmação de que os “privilégios reais” residiriam, com exclusividade, para as
causas criminais, excluindo toda a matéria atinente às causas cíveis.
Disso resulta que PIMENTA BUENO indica com total clareza que “o foro
privilegiado em benefício das pessoas felizmente já não existe mais entre nós, era
uma desigualdade, que o § 16 do art. 179 da const., aboliu, não deixando
subsistir privilegio algum que não fosse essencial e inteiramente ligado aos
cargos por utilidade publica. Não tendo pois actualmente tal privilegio civil, não
nos demoraremos sobre esta parte da divisão desta competência.”
32
.
Nesses termos, a C. do Imp. de 1824, chama a atenção, por haver difundido
no constitucionalismo brasileiro à idéia do foro privilegiado (privilégios reais) ou
30
PIMENTA BUENO, José Antônio. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do
Império. op. cit., p. 414-415.
31
VideDEBBASCH, Charles. e PONTIER, Jean-Marie. Les Constitutions de La France. 3a. ed.,
Paris: Dalloz, 1996, p. 113-131.
32
PIMENTA BUENO, José Antônio. Apontamentos sobre as formalidades do processo civil. op.
cit., p. 45.
119
do denominado foro por prerrogativa de função, o que se observa da demarcação
efetivada por PIMENTA BUENO, in verbis:
“588. 1.º) Os privilégios reais dos deputados e senadores, que constam dos arts.
26, 27, 28 e 47 da Constituição.
2.º) Os dos ministros e conselheiros de estado, na conformidade dos arts. 38, 47,
133 e 148 da Constituição.
3.º) Os dos conselheiros do supremo tribunal de justiça, desembargadores,
presidentes de províncias, membros do corpo diplomático e bispos, na forma do
art. 164 §2.º da constituição, e lei de 18 de agosto de 1851.
4.º) Os dos juízes de direito e comandantes militares, nos têrmos dos arts. 154 e
155 da Constituição, e do cód. do procrim., art. 155 § 2.º.
Êstes privilégios, à exceção do que respeita aos comandantes militares, prevalecem
tanto nos crimes responsabilidade, como individuais; vigoram porém sòmente no
crime e não no cível.
Assim é que não valem mais os tít. 5.º e 12 da ord. do liv. 3.º, que autorizavam a
certos privilégios em matérias cíveis, ainda quando eram autores, a chamar à côrte
seus concidadãos, embora residentes nos confins do império, para aí virem perder
seus direitos, sem meios de prova, onerados de incômodos e despesas, em suma,
sem esperanças de justiça! Não valem mais tantas outras leis extravagantes em
todos os sentidos, senão para monumentos da injustiça, e por isso mesmo de novos
estímulos de amor à sábia constituição, que nos rege e que em cada uma de suas
disposições oferece aos brasileiros belas e preciosas garantias.
O parágrafo constitucional que analisamos confirma enfim mais uma vez a
proscrição de tôdas as comissões especiais, quer em causas cíveis, como em causas
criminais, abuso sem dúvida injustificável e de que já nos ocupamos.”
33
.
A estrutura do foro por prerrogativa de função ou, então, como era
conhecido à época “os privilégios reais”, na C. do Imp., foram esquematizados
com o julgamento dos delitos eventualmente cometidos por autoridades junto ao
poder legislativo e judiciário.
Cumpre verificar que o art. 47, §1º da C. do Imp. estabelecia o julgamento
pelo Senado dos membros da Família Imperial, Ministros de Estado, Conselheiros
de Estado, Senadores a qualquer tempo e Deputados, durante o período da
legislatura, cuja autorização deveria ser concedida pela Câmara dos Deputados,
nos termos do art. 38 da C. do Imp., no tocante à acusação contra os Ministros de
Estado e Conselheiros de Estado.
Por outro lado, o art. 164, §2º da C. do Imp. atribuiu ao Supremo Tribunal
de Justiça o julgamento pela prática dos “erros de ofício” e dos “delitos”
33
PIMENTA BUENO, José Antônio. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do
Império. op. cit., p. 417/418.
120
cometidos pelos seus Ministros, os Magistrados dos Tribunais das relações, os
empregados no Corpo Diplomático e os Presidentes das Províncias.
A estrutura concernente ao foro por prerrogativa de função na C. do Imp. foi
distribuída entre o Poder Judiciário (Supremo Tribunal de Justiça) e o Poder
Legislativo (Senado), tendo, assim, uma configuração diferente da Carta
Portuguesa de 1822, a qual só estabeleceu o conhecimento dos “erros de ofício” –
não menciona a expressão delito –, condicionando o julgamento dos Secretários
de Estado a prévia deliberação das Cortes (Poder Legislativo).
Houve, obviamente, uma plena identidade do art. 154 da C. do Imp. com a
Carta Portuguesa de 1822 quanto ao exame das questões envolvendo abusos de
poder e erros de ofício praticados pelos magistrados e as queixas contra eles
dirigidas que permaneciam sob a tutela e aferição do Imperador no Brasil, sendo
certo que, na sistemática firmada nos artigos 196 e 197 da Carta Portuguesa de
1822, da mesma forma, a competência para a análise da matéria era exclusiva do
monarca.
Quanto ao assunto destacado no parágrafo precedente, de modo diferente, a
C. de Cádiz (artigos 239 e 253) fez expressa alusão de que as eventuais queixas
contra os magistrados ficariam ao encargo do Supremo Tribunal de Justiça e o
Conselho de Estado com a responsabilidade pela efetivação da suspensão dos
mesmos.
Ao que se depreende da nossa primeira Constituição, de fato, o exercício do
foro por prerrogativa de função restou dividido entre os Poderes Judiciário e
Legislativo, resultando numa configuração própria ao tema, caso seja efetivado
um balizamento com a estrutura decorrente do constitucionalismo liberal Francês
de 1791 e aquelas provenientes do século XIX (Cartas Espanhola de 1812 e a
Portuguesa de 1822).
Nota-se, acima de tudo, que a extinção dos privilégios no corpo da
Declaração de Direitos e das Constituições liberais não foi capaz de impedir que a
121
Igreja continuasse a gozar de influência ímpar, levando-se em conta o
mencionado Decreto n. 609, de 18 de agosto de 1851, in verbis:
“Art. 1 Os arcebispos e bispos do Império do Brasil, nas causas que não forem
puramente espirituais, serão processados e julgados pelo Supremo Tribunal de
Justiça.”
34
.
Vê-se, por conseguinte, que a eliminação total dos privilégios não foi
alcançada na vigência da nossa C. do Imp. de 1824, o que é explicável,
considerando a simbiose existente entre a Igreja e o Estado.
Com o surgimento da República ex vi do Decreto n.º: 1, de 15 de novembro
de 1889 e, por fim, com o que foi disciplinado no Decreto n.º: 119 A, de 7 de
janeiro de 1890 ficou consolidada a dissociação da Igreja e do Estado, partindo-se
para o Estado brasileiro laico, um dos Princípios mais importantes da forma de
governo republicana, uma vez impede a intromissão dos aspectos puramente
dogmáticos, inquestionáveis e concernentes à fé nos assuntos do Estado, a par de
suprimir os privilégios conferidos aos membros da Igreja Católica, a partir
daquela data, não mais a religião oficial do País.
Firma-se, neste diapasão, entre nós, a instalação da República e, com ela,
sem mais delongas, a criação do foro por prerrogativa de função ou dos chamados
privilégios reais”, que impulsionava, no caso, a concessão da citada prerrogativa
às autoridades, em decorrência do cargo e da importância mesmos na vida política
e republicana do País.
4.3
Instituição da República no Brasil e o foro por prerrogativa de
função.
A Constituição da República de 1891 seguindo o mesmo roteiro da Carta
do Império, em síntese, fez expressa alusão ao foro por prerrogativa de função,
34
PIMENTA BUENO, José Antônio. José Antonio Pimenta Bueno, marquês de São Vicente /
organização e introdução de Eduardo Kugelmas (Coleção Formadores do Brasil), op. cit., p. 680.
122
salientando que proibia o exercício do foro privilegiado e dos tribunais de
exceção.
Assim, a Carta Republicana de 1891, quis atrair a atenção para a efetiva
proibição de instituição do foro privilegiado, inclusive, alojando tal proibição no
capítulo pertinente aos Direitos e Garantias Individuais.
Realmente, a adoção do preceito Republicano impossibilita a manutenção
de qualquer item no texto constitucional que venha a endossar a falta de
alternância no poder e restrição quanto à sucessividade dos governantes
35
e, ainda,
elementos que venham a mitigar o compromisso de apuração da responsabilidade
dos agentes públicos, pois, como exposto por GERALDO ATALIBA “a simples
menção ao termo república já evoca um universo de conceitos intimamente
relacionados entre si, sugerindo a noção do princípio jurídico que a expressão
quer designar. Dentre tais conceitos, o de responsabilidade é essencial. Regime
republicano é regime de responsabilidade. Os agentes públicos respondem pelos
seus atos. Todos são, assim, responsáveis. Michel Temer afirma: “Aquele que
exerce função política responde pelos seus atos. É responsável perante o povo,
porque o agente público está cuidando da res publica. A responsabilidade é
corolário do regime republicano” (Elementos de Direito Constitucional, p. 163).
João Barbalho, de seu lado, já asseverava: “É da essência do regime republicano
que quem quer que exerça uma parcela do poder público tenha a
responsabilidade desse exercício; ninguém desempenha funções políticas por
direito próprio; nele, não pode haver invioláveis e irresponsáveis, entre os que
exercitam poderes delegados pela soberania nacional” (Constituição Federal
Brasileira Comentada, Rio, 1924, p. 61). A responsabilidade é a contrapartida
dos poderes em que, em razão da representação da soberania popular, são
investidos os mandatários. É lógico corolário da situação de administradores,
lato sensu, ou seja, gestores de coisa alheia. Dalmo Dallari assevera: “Todos os
que agirem, em qualquer área ou nível, como integrantes de algum órgão público
ou exercendo uma função pública devem ser juridicamente responsáveis por seus
atos e omissões. Para efetivação dessa responsabilidade é preciso admitir que o
35
Vide MELLO FILHO, José Celso. Constituição Federal Anotada. São Paulo: Saraiva, 1984, p.
11.
123
agente do poder público ou o exercente de função pública possam ser chamados
a dar explicações, por qualquer pessoa do povo, por um grupo social definido ou
por um órgão público previsto na Constituição como agente fiscalizador”
(Constituição ..., p. 30). Se a coisa pública pertence ao povo, perante este todos
os seus gestores devem responder. Diversos matizes tem a responsabilidade dos
mandatários executivos, no regime republicano: político, penal, civil. Quer dizer:
nos termos da Constituição e das leis, respondem eles (presidente, governadores
e [...] prefeitos) perante o povo, ou o Legislativo ou o Judiciário, por seus atos e
deliberações. Nisso opõe-se a república às demais formas de governo,
principalmente a monarquia, regime no qual o chefe de Estado é irresponsável
(the king can do no wrong) e, por isso, investido vitaliciamente.
36
.
A condição imposta ao Estado Republicano e Federativo desde a edição da
nossa “pré-Constituição” – o Decreto n.°: 1, de 15 de novembro de 1889 –, já
exigia dos nossos Constituintes de 1890 à busca de dados para respaldar a
elaboração do novo texto constitucional, o que resultou numa integração da Carta
Política americana, embora CARLOS MAXIMILIANO tenha acentuado as
diferenças propositadamente estabelecidas porque a nossa Constituição
Desviando-se, em parte, do modelo norte-americano, o estatuto brasileiro não
sujeitou a impeachment os crimes communs do Presidente e seus Ministros:
preferiu o julgamento pelos tribunaes ordinarios. Rodeou apenas aqueles altos
servidores do Estado de algumas garantias compativeis com a sua posição
alvejada pela calumnia e pela inveja. O processo não tem andamento sem que a
Camara dos Deputados declare procedente a accusação; aos mais altos juizes,
collocados, na propria hierarchia, em nivel igual ao dos réus poderesos e
illustres, na ordem administrativa, compete colher e apreciar a prova e
condemnal-os ou absolvel-os afinal. As denuncias tendenciosas, que visam
apenas magoar o homem publico, humilhal-o, desvial-o, provisoriamente ao
menos, do desempenho de altos deveres, caem logo, no plenario da Camara. Se
por alli transitam em triumpho, esboroam-se adeante, ante a serenidade olympica
e a rectidão esclarecida do Supremo Tribunal. Dispõe o estatuto norte-
americano: “Em todos os casos concernentes aos embaixadores, outros ministros
36
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 65-66.
124
públicos e consules, e naquelles em que um Estado for parte, a Côrte Suprema
terá jurisdicção originaria”(art. 3º, secção 2ª, n. 2). Refere-se o texto a
diplomatas estrangeiros; e deu margem a duvidas sobre se abrangia os
secretarios e demais auxiliares de legação, inclusive os creados. Acha-se o
codigo brasileiro em mais perfeito accôrdo com o Direito Internacional.”
37
.
A necessidade de materializar o princípio republicano concernente à
responsabilidade dos agentes públicos fez com que a Constituinte de 1890
reproduzisse da Carta Americana o impeachment e, concomitantemente, pusesse
em prática a competência originária do Supremo Tribunal Federal para julgar
Presidente da República e os Ministros de Estados, hipótese não prevista na Carta
Americana, porém com exemplificação e parâmetros na Constituição Portuguesa.
A explicação da sistemática que veio a prevalecer na Constituição de 1891
foi dada com substanciosa fundamentação por PEDRO LESSA ao concluir que as
modificações entre o modelo constitucional americano e aquele que aqui restou
efetivado foram de ordem significativa a começar pelo “artigo 59 da nossa
Constituição por se afastar nesse ponto (o que fez o legislador em tantos outros)
do seu modelo, que é a Constituição norte-americana. A passo que nos Estado-
Unidos da América do Norte o único julgamento excepcional, estatuído para o
Presidente da República, é o impeachment, em que funciona o Senado como
Côrte de justiça, entre nós alêm do impeachment temos para os próprios crimes
communs do Presidente da Republica uma competencia excepcional, a originaria
e privativa do Supremo Tribunal Federal, com a prévia declaração pela Camara
dos Deputados da procedencia da accusação (artigo 53 da Constituição
Federal). Tem esta ultima providencia por fim manifesto obstar a que prosigam
denuncias aleivosas, processos infundados, acções que innoportuna ou
inconvenientemente poderiam arredar do seu posto o chefe da nação, em graves
conjuncturas da politica nacional, ou da politica internacional. Tanto nos
crimes communs, como nos de responsabilidade, são os ministros de Estado
processados e julgados pelo Supremo Tribunal Federal. Dispõe o artigo 52 da
Constituição que esses funccionarios públicos não são responsaveis perante o
37
MAXIMILIANO, Carlos. Comentários Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro
dos Santos, 1918, p. 588-589.
125
Congresso, ou perante os tribunaes, pelos conselhos dados ao Presidente da
Republica; respondem, porêm, quanto aos seus actos pelos crimes qualificados
em lei, sendo processados e julgados pelo Supremo Tribunal Federal nos crimes
communs e de responsabilidade, e nos connexos com os do Presidente da
Republica pela autoridade competente para o julgamento deste.
38
.
E prossegue, tecendo considerações acerca das diferenças vislumbradas
entre as Cartas Constitucionais Americana e Brasileira, no sentido de concluir que
ao Supremo Tribunal Federal tambem compete processar e julgar, originaria e
privativamente, “os ministros diplomaticos, nos crimes communs e nos de
responsabilidade”. O que primeiro que tudo desperta a attenção de quem lê esta
parte do artigo 59, é a differença de redacção entre o nosso preceito
constitucional e o correlativo na Constituição norte-americana e na argentina. A
norte-americana declara, numa expressão ampla, que ao poder judiciario (isto é,
á Suprema Côrte Federal, como se explica na seguinte alinea) compete julgar
todos os litigios que interessam a embaixadores, ministros publicos e consules
(all cases affecting ambassadors, other public ministers, and consuls). A
argentina usa destes termos: “Corresponde à la Corte Suprema... el
conocimiento y decision… de las causas concernientes à embajadores, ministros
publicos e consules extranjeros.”Quasi reproduz a disposição norte-americana,
acrecentando á enumeração dos funccionarios sujeitos á jurisdicção da Côrte
Suprema o qualificativo – estrangeiros. Diante da redacção do legislador norte-
americano estudam os commentadores da Constituição daquelle paiz a questão
de saber em que casos, em se tratando de que litigios, estão os embaixadores e
agentes diplomaticos das nações estrangeiras, acreditados junto do governo
norte-americano, sujeitos á jurisdicção da Suprema Côrte Federal. Marshall em
um processo celebre investidou se a competencia originaria e privativa da
Suprema Côrte se estende aos secretarios e famulos de uma embaixada de nação
estrangeira nos Estados-Unidos. Na exegese do artigo corresponde da
Constituição argentina inquirem os seus interpretes igualmente quaes as
hypotheses em que os agentes diplomaticos estrangeiros pódem ser partes, tanto
no civel como no crime, perante a Suprema Côrte Federal. Aguntin de Vedia
38
LESSA, Pedro. Do Poder Judiciário. 2º milheiro. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1915, p. 45-
46.
126
noticia alguns julgados desse alto tribunal argentino, relativos á sua competencia
para conhecer de questões civeis e criminaes, em que são interessados
embaixadores e outros agentes diplomaticos de nações estrangeiras. A
competencia de que cogitou o nosso legislador constituinte neste preceito do
artigo 59, é muito diversa da que constitue o objecto das disposições referidas na
Constituição norte-americana e da argentina. Aqui ficou o Supremo Tribunal
Federal investido pelo artigo 59 de competencia originaria e privativa para
processar e julgar os ministros diplomaticos brasileiros, nos crimes communs e
de responsabilidade.”
39
.
A Constituinte de 1890, como se vê, teve um mérito de desenvolver uma
identidade própria ao nosso direito, porque a Constituinte de 1823 foi
inteiramente mal sucedida e acabou por ser suplantada com a Carta Outorgada de
1824.
Sendo assim, a Constituição Brasileira de 1891 adaptou o impeachment,
definiu foro por prerrogativa de função especificamente para a matéria criminal,
em termos absolutamente corretos, enquanto a Carta Americana limitou o
julgamento do Presidente da República ao julgamento com fundamento na
responsabilidade política.
O significado deste ato pela Constituição de 1891 foi que a delimitação do
foro por prerrogativa de função apenas para as autoridades públicas essenciais à
vida republicana do país, portanto, a lição mais importante que se extrai do
assunto debatido.
39
LESSA, Pedro. op. cit., p. 48-49.
127
4.4
A evolução do foro por prerrogativa de função na Constituição
Federal de 1946 e nas Constituições Estaduais promulgadas na
vigência da mesma Carta Política. Coronelismo uma forma
representativa do exercício de um privilégio odioso.
A Carta de 1946 representou a consumação de um período conturbado da
vida política e constitucional do país, a qual foi antecedida pelas Cartas Políticas
de 1934 e 1937, todas elas efetivadas no Período Vargas, o que representou uma
retomada no processo democrático brasileiro que seria interrompido com o golpe
militar de 1964.
A respeito da Constituição de 1946 é importante o registro feito por PAES
DE ANDRADE e PAULO BONAVIDES ao comentar o término do Período
Vargas acentuando que “A Constituição de 1946 nos traz a certeza de que toda
ditadura, por mais longa e sombria, está determinada a ter um fim. E, no caso da
ditadura de Vargas, pode-se dizer que a luz que se seguiu às trevas foi de especial
intensidade: o liberalismo do texto de 46 deve ser motivo de orgulho para todos
os brasileiros. Foi parâmetro importante para nossa recente experiência
constituinte e há de ser lembrada com atenção e respeito”.
40
.
PAES DE ANDRADE e PAULO BONAVIDES enfatizam, ainda, que a
Carta de 1946 “buscava devolver ao Legislativo e ao Judiciário a dignidade e as
prerrogativas características de um regime efetivamente democrático
41
, o que é
até explicável, considerando os vários anos da Ditadura Vargas, a qual concentrou
as estruturas de poder do Estado, desfigurando, assim, as Instituições Políticas.
Por isso mesmo, não se desconhece que o advento da Constituição de 1946
está marcado por um momento de profunda instabilidade política e democrática,
uma vez que se operou durante a transição dos quinze anos ininterruptos de
Getúlio Vargas como Presidente do País.
40
BONAVIDES, Paulo e ANDRADE, Paes de. op. cit., p. 409.
41
BONAVIDES, Paulo e ANDRADE, Paes de. op. cit., p. 409.
128
Tal instabilidade política percorreu o Estado brasileiro nas décadas de 40 e
50 e foi exasperada com o retorno de Vargas à Presidência da República até a
divulgação da sua morte em 24 de agosto de 1954 e da sua Carta Testamento, em
virtude de inaudita perseguição política desencadeada por detratores, a despeito
de a sua eleição ter ocorrido sob o plano da legitimidade democrática.
O Estado social configurado na Constituição de 1946 quis inserir um
compromisso democrático, no entanto, o mesmo teve que conviver com a visão
populista disseminada na sociedade brasileira e, ainda, com a presença do
coronelismo no nordeste e nas zonas rurais.
A agregação do populismo e do coronelismo fornece a base conceitual da
persistência do privilégio e, por conseguinte, da hierarquização, da demarcada
estratificação social e do autoritarismo no seio das instituições brasileiras, como
precisamente indicado por GILBERTO FREYRE ao enunciar que “a nossa
tradição revolucionária, liberal, demagógica, é antes aparente e limitada a focos
de fácil profilaxia política: no íntimo, o que grosso modo se pode chamar “povo
brasileiro” ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e
corajosamente autocrático.
42
.
A compreensão do populismo está associada à idéia do privilégio e,
sobretudo, explica a formação da consciência autoritária a que fazem referência
PAES DE ANDRADE e PAULO BONAVIDES, no intuito de demonstrar o
déficit democrático instalado no país na vigência da Carta Política de 1946, tendo
em vista a franca aceitação do populismo e de todas as suas formas de
manifestação (clientelismo, caudilhismo, coronelismo e o autoritarismo)
43
.
O privilégio está ínsito ao populismo e a todas as demais formas perniciosas
ou comprometedoras da liberdade de expressão, dentre elas, o aliciamento político
efetivado no clientelismo e também no coronelismo, o qual se manteve vivo no
Brasil mesmo na vigência da Constituição de 1946 e que foi devidamente
estudado por VICTOR NUNES LEAL, ao salientar que “a rarefação do Poder
42
FREYRE, Gilberto. op. cit., p. 114.
43
Vide BONAVIDES, Paulo e ANDRADE, Paes de. op. cit., p. 410/411.
129
Público em nosso país contribuiu muito para a ascendência dos “coronéis”, já
que, por esse motivo, estão em condições de exercer, extra-oficialmente, grande
número de funções do Estado em relação aos seus dependentes. Mas essa
ausência do poder público, que tem como conseqüência necessária a efetiva
atuação do poder privado, (...)
44
.
A atuação do coronel no Brasil na década de 50 representa uma forma nítida
de exercício do privilégio no âmbito da sociedade, uma espécie de preponderância
autoritária, inquestionável e que foi analisada por MARCOS VINÍCIUS VILAÇA
e ROBERTO CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE como o exercício da função
de “árbitro social, que decorre do seu poder e do medo de sua vingança, também
se explica por seu papel de definidor e de intérprete indiscutido e até
prazerosamente acatado da sociedade que domina. É ele, com efeito, juiz entre
questões e disputas humanas na jurisdição de seus domínios, função que quase
sempre exerce de maneira deveras impressionante. Resolve questões de terra,
disputas de dinheiro, casos de família; acata criminosos e malfeitores, que
protege exaltando-lhes a bravura e convertendo-os em instrumentos de sua força.
Esses poderes pessoais de polícia e de juiz, é claro que se atenuam com a
penetração do Estado como autoridade em seus domínios. No entanto, na maior
parte dos casos, continua o coronel-político a exercê-los, se bem que
despersonalizados, através de delegados e de juízes que indica aos governos – e
que remove, quando lhe desagradam.”
45
.
A atuação dos Coronéis no processo de indicação dos Prefeitos no período
do Estado Novo, bem como a interferência na escolha de Delegados, Juízes e
Promotores tornavam o mesmo imune à aplicação lei em relação aos mesmos e
aos seus apaniguados
46
.
A condição de estar e permanecer acima da lei, em síntese, representava um
privilégio dos mais odiosos, cuja influência perde espaço, não só com o
44
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo Enxada e Voto: O Município e o Regime Representativo no
Brasil. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 62-63.
45
VILAÇA, Marcos Vinicios e ALBUQUERQUE, Roberto Cavalcanti. Coronel, Coronéis
Apogeu e declínio do coronelismo no Nordeste. 4ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p.
57-58.
46
LEAL, Victor Nunes. op. cit., p.146 e 242.
130
aperfeiçoamento do modelo eleitoral
47
, contudo, também, em decorrência do
maior assistencialismo público e da imposição do concurso público para a
admissão dos delegados, juízes e promotores de justiça, os quais passaram a gozar
de autonomia e não ficavam mais a mercê do chefe político que o indicou para o
cargo.
O coronelismo, durante um largo período, representou uma forma de
superação aos ditames da lei, albergando um sentido extremamente amplo e que
impedia a concretização da Justiça, daí o porquê de registrarmos a sua atuação
deletéria nas decisões tomadas pela esfera pública.
A despeito da conjuntura social acima relatada, é imprescindível mencionar
que, na vigência da Carta de 1946, é oportuno salientar que a competência por
prerrogativa de função se achava definida no artigo 101, I, alíneas a, b e c, perante
o Supremo Tribunal Federal, sendo que, a qualidade e a quantidade dos agentes
públicos detentores do foro por prerrogativa de função, de fato, representava o
exercício da prerrogativa de função instituída pelo modelo republicano e não um
“inchaço” na competência originária do Supremo Tribunal Federal.
As Cartas Estaduais estavam autorizadas, ex vi do artigo 124 a
estabelecerem as suas competências originárias, o que ocorreu com a parcimônia
recomendada e dentro dos limites da competência de auto-organização dos
Estados-Membros.
4.5
Foro por prerrogativa de função na vigência da Constituição de 1967
(EC n. 1 de 17-10-69) e o Ato Institucional n. 5, de 18 de dezembro de
1968.
O período de vigência da Constituição de 1967 foi alcançado pela
decretação do AI-5, que no artigo 5º., inciso I, determinou a cessação de
47
LEAL, Victor Nunes. op. cit., p. 282.
131
privilégios de foro por prerrogativa de função, cuja aplicação, ao menos, se fez
bem efetiva até a promulgação da Constituição Federal de 1969.
A referida determinação – AI-5 –, levada a efeito em dezembro de 1968,
foi incorporada ao preâmbulo da Emenda Constitucional n. 1/69, contudo, não
teve o condão de suprimir o exercício do foro por prerrogativa a partir de 17 de
outubro de 1969, daí porque a competência originária do STF fixada no artigo
119, inciso I, alíneas “a” e “b” teve plena efetividade, bem como restabeleceu-se a
elaboração do foro especial no plano da Justiça Comum Estadual nos termos do
artigo 144, §3º. da EC n. 1/69.
A existência do AI – 5 na vida constitucional brasileira é um incidente
lamentável da nossa vida constitucional que já era portadora de outras máculas e
de necessária referência, não só para recordar o momento histórico pelo qual
passamos, mas, acima de tudo, servindo de advertência às gerações futuras do
perigo de se ceder aos falsos argumentos e promessas de restauração da ordem
publica em detrimento do Estado de Democrático de Direito.
4.6
Foro por prerrogativa de função na Constituição de 1988: a
inadmissibilidade da manutenção do julgamento às autoridades não
mais detentoras de cargo público e a impossibilidade de extensão
do foro por prerrogativa às ações de improbidade da Lei n. 8.429/92.
É inquestionável que a Constituição brasileira delimitou, de maneira
específica, a concessão do foro por prerrogativa de função às autoridades públicas
pertencentes à estrutura da União e do Município, além de haver permitido que os
Estados-Membros pudessem efetivar a escolha dos agentes políticos que fariam
jus ao mesmo (artigo 125, §1º da CF).
O texto constitucional brasileiro, no que concerne à prerrogativa de função
estabelecida no plano federal e municipal, ao contrário dos Estados-Membros, não
admitiu a complementação legislativa para a escolha das autoridades detentores
da prerrogativa de função.
132
“Tratando-se de crime de competência da Justiça Federal, é curial que esta não
perde a sua competência constitucional, quando o acusado é deputado estadual.
Considerando-se que a Constituição e as leis estaduais não podem alterar as regras
de competência da Constituição federal, parece fora de dúvida que os deputados
estaduais respondem perante os Juízos e Tribunais da União, quer na instância
comum, quer nas especializadas – Justiça Federal, Justiça Eleitoral, Justiça Militar
– cujas competências privativas não podem ser deslocadas para a dos Tribunais de
Justiça dos Estados.”
48
.
Aliado ao contexto da competência privativa da União para legislar sobre
matéria processual, é importante lembrar que o Supremo Tribunal Federal no
julgamento do inquérito 687, na seção de 25/08/1999 cancelou a Súmula 394 com
a eficácia ex nunc e fez cessar a manutenção do processo, isto é, a prerrogativa de
função depois de terminada a investidura funcional, neste momento, o STF
sinalizou pela inadmissibilidade da perpectuatio juridictionis.
No passado, foram inúmeras as discussões quanto à possibilidade do
indivíduo não mais no exercício de função pública perpetuar o julgamento perante
o órgão jurisdicional que tinha o gozo do foro especial sob argumento de que o
foro por prerrogativa se protrairia no tempo.
Todas as considerações que levaram ao surgimento da Súmula 394 apenas
servem para exemplificar as distorções que podem ter incidência sobre o assunto
até que se alcance a completa descaracterização da prerrogativa de função e a sua
conversão em verdadeiro privilégio, fugindo, por completo, à essência do
fundamento Republicano, o qual amparado no princípio da responsabilização dos
agentes públicos quis possibilitar o julgamento perante os Órgãos Jurisdicionais
Superiores daquelas autoridades mais importantes da República.
Além disso, é de ser lembrada a inconstitucionalidade dos §§ 1º e 2º que
foram acrescidos ao art. 84 do Código de Processo Penal pela Lei nº 10.628, de
24/12/2002 reconheceu a inconstitucionalidade da norma amparada na
circunstância de que promovia o restabelecimento da Súmula 394, afrontando,
48
TRIGUEIRO, Oswaldo. Direito Constitucional Estadual. Rio de Janeiro, Forense, 1980, p. 161.
133
assim, o princípio republicano, pois o foro por prerrogativa de função só poder ser
concedido enquanto no exercício da função.
“Art. 84. (...)§ 1º A competência especial por prerrogativa de função, relativa a
atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial
sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.
§ 2º A ação de improbidade, de que trata a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992,
será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente
o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do
exercício de função pública, observado o disposto no § 1º.”
O STF deixou evidenciado no julgamento da ADIn 2.797 (15.9.2005), o
STF declarou a inconstitucionalidade da Lei 10.628/2002, que acresceu, ao art. 84
do CPP, os respectivos §§ 1º e 2º, é bem esclarecido em despacho do Min.
CELSO DE MELLO:
“Cumpre enfatizar, neste ponto, que o Supremo Tribunal Federal, no referido
julgamento plenário da ADI 2.797/DF, ao declarar a inconstitucionalidade da Lei
n. 10.628/2002, na parte em que esta introduziu o § 2º no art. 84 do CPP,
explicitou que, tratando-se de ação civil pública por improbidade administrativa
(Lei n. 8.429/92), mostra-se irrelevante, para efeito de definição da competência
originária dos Tribunais, que se cuide de ocupante de cargo público ou de titular
de mandato eletivo ainda no exercício das respectivas funções, pois, em processo
dessa natureza, a ação civil deverá ser ajuizada perante magistrado de primeiro
grau.
Cabe assinalar, por outro lado, que esta Suprema Corte, em tal julgamento,
reconheceu a inconstitucionalidade da Lei n. 10.628/2002 também no ponto em
que esse diploma legislativo atribuía prerrogativa de foro a ex-ocupantes de cargos
públicos e a ex-titulares de mandatos eletivos, sendo indiferente, para esse efeito,
que, contra eles, houvesse sido instaurado ou estivesse em curso, quer processo
penal de índole condenatória, quer processo resultante do ajuizamento de ação
civil pública por improbidade administrativa (Lei n. 8.429/92) (Recl. 2.997, DJ
30.9.2005).”.
A decisão do STF fixou a impossibilidade da ampliação dos agentes
públicos detentores do foro por prerrogativa de função na esfera da competência
originária dos Tribunais, bem como definiu que a concessão da prerrogativa em
apreço não pode ser dada para as ações cíveis, mesmo porque, somente é
apropriado correlacionar o foro por prerrogativa para as ações ou demandas que
venham a ensejar condenação na órbita criminal.
134
Disso resulta, que a extensão do foro por prerrogativa às ações de
improbidade da Lei n. 8.429/92 causaram efetiva mácula ao preceito
constitucional que determina a competência dos Estados membros para tratarem
dos assuntos relativos à sua justiça (artigo 125, § 1º da CF).
Verdadeiramente, o que se pretendeu com a inclusão dos §§ 1º e 2º que
foram acrescidos ao art. 84 do Código de Processo Penal pela Lei nº 10.628, de
24/12/2002, de modo imediato e ostensivo, foi a reativação da Súmula 394
cancelada e a invasão de competência reservada ao Estado para legislar sobre
organização judiciária.
4.6.1
Foro por prerrogativa de função no plano municipal.
Na esfera municipal, o tema foi exaurido no artigo 29, inciso X, da
Constituição Federal ao dispor o seguinte:
Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o
interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara
Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta
Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos:
I a IX - ...omissis...;
X - julgamento do Prefeito perante o Tribunal de Justiça; (Renumerado do inciso
VIII, pela Emenda Constitucional nº 1, de 1992).
Como se vê, a Constituição Federal não ofereceu chance aos responsáveis
pela elaboração da Constituição Estadual quanto ao tema, ou seja, impediu a
ampliação das autoridades que seriam portadoras do foro por prerrogativa no
plano municipal, daí porque, esta diretriz constitucional decorrente de uma
preordenação, a rigor, só poderia ser observada na maioria dos textos estaduais
49
.
49
Constituições estaduais compatíveis com o artigo 29, inciso X, da CF/88: Acre (art. 95, I, “a” e
“b”), Alagoas (art. 133, IX, “b”), Amapá (art. 133, II, “a”), Amazonas (art. 72, I, “a”), Bahia (art.
123, I, “a”), Ceará (art. 108, VII, “a”), Espírito Santo (art. 109, I, “a”), Goiás (art. 46, VIII, “f”),
Maranhão (art. 81, IV), Mato Grosso (sem norma correspondente, o que enseja a reprodução
obrigatória do texto da Constituição Federal), Mato Grosso do Sul (art. 114, II, “a”), Minas Gerais
(art. 106, I, “b”), Pará (art. 161, I, “a”), Paraíba (art. 104, XIII, “b”), Paraná (art. 101, VII, “a”),
Pernambuco (art. 61, I, “a”), Rio Grande do Norte (art. 71, I, “d”), Rio Grande do Sul (art. 95, XI),
Rondônia (art. 87, IV, “a”), Roraima (art. 77, X, “a”), Santa Catarina (art. 83, XI, “b”), São Paulo
(art. 74, I), Sergipe (art. 106, I, “a”) e Tocantins (art. 48, §1º, VI).
135
Ainda assim, no aspecto realçado, pelo menos duas Constituições estaduais
ousaram desobedecer à clareza do texto da Constituição Federal, como se infere,
por exemplo, da redação firmada na CERJ - Constituição do Estado do Rio de
Janeiro, a qual, no artigo 161, inciso IV, alínea “d”, número 3, estendeu
indevidamente o foro por prerrogativa aos Vice-Prefeitos e Vereadores
50
.
A ampliação do foro por prerrogativa em prol dos Vice-Prefeitos e
Vereadores praticada pela Constituição Fluminense foi alvo de impugnação na
ADIN 558-8, cujo julgamento final ainda se acha pendente.
Desde logo, é de se ressaltar a inconstitucionalidade da previsão
constitucional de foro por prerrogativa de função por parte de alguns agentes
públicos relacionados na Carta Estadual.
O dispositivo da Constituição Estadual que venha a ser invocado,
possivelmente, albergará inconfessável descompasso em face à Constituição da
República Federativa do Brasil, uma vez que somente os Juízes e membros do
Ministério Público Estaduais foram abrangidos por esta prerrogativa, à luz do que
dispõe o artigo 96, III, da Constituição Federal, em conjugação com o artigo 161,
IV, alínea “d”, número 2, da Constituição Estadual e, da mesma forma, os
Prefeitos municipais ex vi do artigo 29, X, da Lei Maior combinado com o artigo
161, IV, alínea “d”, número 3, da CERJ.
No que tange à prerrogativa de foro junto ao Eg. TJRJ - Tribunal de Justiça
do Estado do Rio de Janeiro e que foi conferida aos Vereadores na Constituição
Estadual do Rio de Janeiro pelo art. 161, inciso IV, alínea “d”, nº 3, obviamente, o
preceito se acha eivado de manifesta inconstitucionalidade, vis a vis o sistema
adotado pela Constituição Federal de 1988, isto é, o poder constituinte derivado
decorrente exercido pelos Estados federados (art. 25 da C.F.).
É impossível qualquer situação que venha ampliar o foro por prerrogativa
de função na órbita municipal, sob pena de provocar efetiva inconstitucionalidade
50
No mesmo sentido, apenas a Constituição do Estado do Piauí (art. 123, III, alínea “d”, número
4).
136
pela invasão da competência privativa da União quanto a legislar sobre o
processo.
A questão em apreço está submetida aos aspectos teóricos que fundam o
chamado Poder Constituinte Derivado Decorrente, o qual se encontra subordinado
aos Princípios Constitucionais estabelecidos pela Carta Magna, precisamente,
quando no artigo 11 caput do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
determina que à Assembléia Legislativa dotada de poderes constituintes elaborará
sua Constituição Estadual obedecidos os Princípios constantes da Carta Política.
No mesmo sentido, verifica-se o artigo 25 da Carta Magna ao estabelecer
que a capacidade política de auto-organização será efetivada pela constituição
Estadual, porém, observados os Princípios Constitucionais Estabelecidos na
própria Carta Política Federal.
Nada obstante tal fato, o artigo 125 da CRFB - Constituição da República
Federativa do Brasil, em tom reverencial, novamente adverte que a capacidade
política de auto-organização do Estado federado está limitada e submetida ao
influxo dos princípios estabelecidos nesta Constituição.
É incontroverso, assim, que é vedado ao Poder Instituído Decorrente supor
que não se acha subordinado a incidência dos preceitos da Carta Magna, pois, da
mesma forma, que o Poder constituinte derivado reformador está submetido aos
limites materiais enumerados no artigo 60§4
o
, incisos I a IV, ou seja, às cláusulas
pétreas e, ainda, a eventuais limites implícitos, o Poder constituinte derivado
decorrente deve e tem que se amoldar aos limites impostos pelos princípios
constitucionais que atuam em relação à chamada capacidade política de auto-
organização, a saber, o poder de que o Estado federado possui para criar e
elaborar a sua Carta estadual.
As limitações aplicadas à Federação são de duas espécies, a saber,
inicialmente os chamados Princípios Constitucionais Sensíveis, definidos no
artigo 34, inciso VII, alíneas “a” a “e”, da Carta Magna cujo descumprimento
propicia a incidência do mecanismo da representação interventiva que resulta na
137
supressão temporária da autonomia estadual e, por outro lado, os Princípios
constitucionais estabelecidos, onde a inobservância do dispositivo da Carta
Política acarretaria a inconstitucionalidade do preceito estadual, mediante o
exercício do controle repressivo da constitucionalidade difuso ou concentrado.
A subordinação aplicada pelo Poder constituinte originário em relação à
Constituição estadual que é expressão do Poder constituinte derivado decorrente é
uma exigência lógica da organização federal, razão pela qual o constituinte
estadual reproduz uma idéia constitucional, traçando, assim, caminho de extrema
dependência, ao revés do que acontece com o Constituinte federal que prima pela
originalidade, mormente, em virtude do seu caráter soberano e de inicialidade.
A verdade é que ter autonomia, nem sempre significa ter liberdade criadora,
porquanto a mesma só poderá ser experimentada pelo constituinte estadual nos
assuntos onde a sua capacidade política de auto-organização não esteja
restringida, caso contrário, o desiderato a ser percorrido consistirá na observância
rígida das chamadas normas centrais (Princípios constitucionais estabelecidos,
normas de preordenação do Estado-membro, normas de reprodução obrigatória)
que condicionam a auto-organização do Estado Federado e, via de conseqüência,
o Poder constituinte derivado decorrente.
A propósito do tema analisado, revela-se enriquecedora a lição ministrada
por RAUL MACHADO HORTA
51
, ao definir que “As normas centrais da
Constituição Federal, tenham elas a natureza de princípios constitucionais, de
princípios estabelecidos e de normas de preordenação, afetam a liberdade
criadora do Poder Constituinte Estadual e acentuam o caráter derivado desse
poder. Como conseqüência da subordinação à Constituição Federal, que é a
matriz do ordenamento jurídico parcial dos Estados-membros, a atividade do
constituinte estadual se exaure, em grande parte, na elaboração de normas de
reprodução, mediante as quais faz o transporte da Constituição Federal para a
Constituição do Estado das normas centrais, especialmente as situadas no campo
da preordenação.
51
HORTA, Raul Machado. op. cit., p. 77.
138
Redação diferente, por menor que seja, que venha a ser implementada ou
realizada ao talante do Constituinte estadual resultará apenas na cominação de
inconstitucionalidade da Carta Estadual no aspecto salientado.
Assim ocorreu e, por tais motivos, as Constituições Estaduais do Rio de
Janeiro e do Piauí se puseram em inconciliável contraste com a Carta Magna
Federal, ofendendo os aludidos preceitos contidos nos artigos 25 e 125 desta
última, sem falar no artigo 11 do ADCT da CF/88, a par de preterir, de roldão, a
regra de competência privativa da União para legislar sobre direito processual
(art. 22, inc. I da C.F.), na medida em que criou hipótese de foro especial por
prerrogativa de função não correspondente a qualquer permissivo da Constituição
Federal.
A hipótese versada, aliás, guardada a devida proporção, já tinha merecido
exame de JOSÉ ANTONIO PIMENTA BUENO
52
que salientou, com absoluta
pertinência, que “Aquelles privilegios, embora sejam estabelecidos, não por amor
dos individuos, sim do caracter, cargos ou funções que elles exercem, embora
n’esse sentido se possam chamar reaes ou estabelecidos ratione materiae,
todavia tornam-se necessariamente pessoaes no sentido de que se extendem a
todos os actos, quer publicos quer privados, que a pessoa pratica: é por isso que
os collocamos sob esta rubrica.
Com referência às autoridades municipais - Vice-Prefeito e Vereadores –
tratadas anteriormente, revela-se oportuno acentuar que a própria Constituição
Federal acentua a limitação existente em âmbito municipal, em virtude do seu
artigo 29, X haver direcionado a concessão do foro por prerrogativa de função ao
Prefeito Municipal, sendo certo que a Lei Maior reafirma tal limitação quando
atribuiu ao Vereador apenas o gozo da imunidade material ou absoluta em razão
dos pronunciamentos emitidos na sua circunscrição territorial e vedando-lhe o
exercício da imunidade formal ou processual.
52
PIMENTA BUENO, José Antonio. Apontamentos sobre o Processo Criminal Brasileiro. op. cit.,
p. 86.
139
O porquê dessa restrição imposta pela Constituição Federal, na realidade,
serviu para conferir o tom a ser impresso pelo constituinte estadual quando da
elaboração da Constituição estadual.
Embora o Supremo Tribunal Federal no exame da liminar na ADIN 558-8,
neste particular, não tenha suspendido a eficácia e nem declarado
inconstitucionalidade do art. 158, IV, "d", n. 3, da Constituição do Estado (atual
artigo 161, inciso IV, alínea “d”, número 3 da Constituição do Estado do Rio de
Janeiro), a hipótese foi declarada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça local
em inúmeros julgamentos
53
, dentre eles, o emitido na Ação Penal Originária n.º:
1990.068.00001 - Ação Penal Pública (Originária), Relator, o Sr. Des. CLAUDIO
LIMA - Julgamento: 31/05/1990 – Órgão Especial, com a seguinte redação:
“VEREADOR
FORO PRIVILEGIADO POR PRERROGATIVA DE FUNCAO
COMPETÊNCIA
ART. 158, INC. IV, AL. D,N. 3, da CONSTITUICAO ESTADUAL DE 1989
INCONSTITUCIONALIDADE
Ação penal. Incompetência. Acusado Vereador. Inconstitucionalidade do art. 158,
IV, "d", n. 3, da Constituição do Estado. Necessária observância, pelos Estados,
dos princípios da Constituição Federal. Compete privativamente a União legislar
sobre Direito Processual. Não é da competência do Tribunal de Justiça o processo
e o julgamento de ação penal em que é acusado Vereador. Determinação de
retorno dos autos ao douto Juízo de origem. (RC). Ementário: 31/1990 - N. 39 -
13/09/1990 REV. DIREITO DO T.J.E.R.J., vol 11, pág. 278”.
Importante destacar e refutar, neste passo, que o tratamento aplicado ao
assunto pelo Superior Tribunal de Justiça - STJ, onde o exame da matéria
atinente à Constituição Estadual, ultimamente, consubstanciou-se pela
insistência em determinar que o artigo 161, inciso IV, alínea “d”, número 3
53
No mesmo sentido, os arestos proferidos nos seguintes julgamentos: Apelação Criminal n.º:
1993.050.00126, Des. Paulo Gomes da Silva Filho - Julgamento: 15/03/1994 - Primeira Câmara
Criminal, Habeas Corpus n.º: 1999.059.01204, Des. João Antonio - Julgamento: 24/06/1999 -
Oitava Câmara Criminal, Peças de Informação n.º: 1999.062.00003, Des. Manoel Alberto -
Julgamento: 15/04/1999 - Quinta Câmara Criminal, Habeas Corpus n.º: 2000.059.02382, Des.
Fátima Clemente - Julgamento: 19/09/2000 - Quarta Câmara Criminal, Recurso em Sentido Estrito
n.º: 2002.051.00530, Des. J. C. Murta Ribeiro - Julgamento: 26/11/2002 - Segunda Câmara
Criminal, Habeas Corpus n.º: 2003.059.00732, Des. Carmine A. Savino Filho - Julgamento:
03/06/2003 - Sétima Câmara Criminal, Habeas Corpus n.º: 2004.059.05944, Des. Maria Raimunda
T. Azevedo - Julgamento: 25/11/2004 - Oitava Câmara Criminal, Apelação Criminal n.º:
2005.050.06296, Des. Marly Macedônio França - Julgamento: 11/04/2006 - Quarta Câmara
Criminal, Argüição de Inconstitucionalidade n.º: 2006.150.00001, Des. Gamaliel Q. de Souza -
Julgamento: 13/11/2006 - Órgão Especial e Habeas Corpus n.º: 2007.059.05104 - Des. Antonio
Carlos Amado - Julgamento: 04/10/2007 - Sexta Câmara Criminal.
140
da Constituição do Estado do Rio de Janeiro seria constitucional
54
, como se
vislumbra das decisões proferidas desde 2005, nos seguintes termos:
“PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. VEREADOR. COMPETÊNCIA
POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. FORO PRIVILEGIADO
ESTABELECIDO PELA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. POSSIBILIDADE
DIANTE DA SIMETRIA ENTRE CARGOS NAS ESFERAS MUNICIPAL,
ESTADUAL E FEDERAL. ORDEM CONCEDIDA.
1. A redação da Súmula 721/STF, no sentido de que "A competência
constitucional do tribunal do júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função
estabelecido exclusivamente pela Constituição estadual", indica, claramente, a
possibilidade de atribuição de foro privilegiado por prerrogativa de função
estabelecido – exclusivamente – por Constituição estadual.
2. Com efeito, prescreve o art. 125 da Carta da República, que "Os Estados
organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta
Constituição", acrescentando, ainda, no § 1º, que "A competência dos tribunais
será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de
iniciativa do Tribunal de Justiça".
3. A análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – visto que se trata de
matéria constitucional – aponta para a declaração de inconstitucionalidade ou para
a suspensão, em sede de liminares, da eficácia de dispositivos de Constituições
estaduais que outorgam competência penal originária a seus tribunais para
processar e julgar ações instauradas contra seus agentes públicos, cujos símiles, no
âmbito federal, não detenham prerrogativas de foro conferidas pela Carta da
República (ADINs 2.587-2/GO, DJ de 6/9/2002; 882-0/MT, DJ de 23/6/2004 e
2.553-8/MA, DJ de 22/10/2004).
4. Assim sendo, por opção de natureza política – que comporta juízo discricionário
do constituinte – matéria infensa a exame pelo Judiciário, a Constituição estadual
pode atribuir competência ao respectivo tribunal de justiça para processar e julgar,
originariamente, vereador, por ser agente político, ocupante de cargo eletivo,
integrante do Legislativo municipal, o qual encontra simetria com os cargos de
deputados estaduais, federais e senadores, sendo que estes, por força do disposto
na própria Constituição Federal (art. 102, inc. I, letra b), têm foro por prerrogativa
de função perante o Supremo Tribunal Federal, e aqueles perante os respectivos
tribunais de justiça, conforme Cartas estaduais, tendo em vista, inclusive, a regra
que se contém no art. 25, parte final, da Carta da República.
5. No caso, o paciente, que exerce o cargo de vereador, foi condenado por Juízo de
1º grau, não obstante a competência originária do respectivo Tribunal de Justiça
prevista na Constituição estadual, o que enseja a nulidade absoluta da sentença.
6. Ordem concedida.
(HC 40.388/RJ, Rel. Ministro GILSON DIPP, Rel. p/ Acórdão Ministro
ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 13.09.2005, DJ
10.10.2005 p. 401)”.
O fundamento constante dos arestos emitidos pelo STJ tomou assento na
perspectiva isolada de que a Constituição Estadual poderia ampliar o foro por
54
No mesmo sentido, os arestos proferidos nos seguintes julgamentos: HC 57.340/RJ, Rel.
Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 27.03.2007, DJ 14.05.2007 p. 339 HC 57.341/RJ,
Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado em 04.10.2007, DJ 05.11.2007 p.
299.
141
prerrogativa do artigo 29, X da CF porque a concessão do mesmo ao Vereador e
Vice-Prefeito seria compatível com a Constituição Federal.
A ilação retirada pelo STJ é a de que o Vereador e o Vice-Prefeito têm
direito ao foro por prerrogativa de função conferida pelas Constituições estaduais
do Rio de Janeiro e do Piauí porque a Constituição Federal concedeu tal
prerrogativa para agentes públicos idênticos (Deputados Federais e Estaduais,
Senadores e Vice-Presidente), o que corresponderia à aplicação de uma simetria
constitucional.
Entretanto, não pode haver a incidência da simetria constitucional nas
situações em que o constituinte originário manifestou o total exaurimento da
matéria, porquanto o artigo 29, inciso X, da CF só faz alusão ao agente
político Prefeito, traduzindo-se, na verdade, num silêncio eloqüente, o qual
excluiu as demais figuras políticas do Município, donde se permite concluir
que o artigo em comento não permite a visualização de qualquer tipo de lacuna
constitucional.
O artigo 29, inciso X, da CF, portanto, é insuscetível de complementação
(ampliação) nas Constituições Estaduais, nas leis em sentido formal ou de
apropriação pelo mundo dos atos normativos, cuja incidência deve ser
veementemente rejeitada neste caso.
Cabe salientar, nesta oportunidade, que a Súmula 702 do STF prescreve
que “a competência do Tribunal de Justiça para julgar prefeitos restringe-se
aos crimes de competência da justiça comum estadual; nos demais casos, a
competência originária caberá ao respectivo tribunal de segundo grau”, ou
seja, ao TRE (os crimes pertinentes à matéria da Justiça Eleitoral) e ao TRF (os
delitos concernentes à matéria da Justiça Comum Federal).
Anote-se que os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas
municipais são julgados perante o Superior Tribunal de Justiça nos termos do
artigo 105, inciso I, alínea “a” da CF/88.
142
4.6.2
Foro por prerrogativa de função e o exame na esfera da Justiça
Eleitoral.
Na órbita do Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça
e dos Tribunais Regionais Federais, o foro por prerrogativa das autoridades
foi estabelecido nos seguintes artigos:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da
Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente:
a) - ...omissis...;
b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os
membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da
República;
c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de
Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o
disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de
Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente;
(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 23, de 1999).
Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
I - processar e julgar, originariamente:
a) nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e,
nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos
Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e
do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais
Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos
Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais;
Art. 108. Compete aos Tribunais Regionais Federais:
I - processar e julgar, originariamente:
a) os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da
Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros do
Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral;
Como se vê, a competência processual para o julgamento das autoridades ou
dos agentes políticos federais é o que predomina junto ao STF, STJ e ao TRF,
embora seja possível a observância de autoridades públicas estaduais e municipais
submetidas ao foro por prerrogativa junto ao Superior Tribunal de Justiça.
A Constituição não delimitou a competência pelo foro por prerrogativa de
função no âmbito da Justiça Trabalhista (arts. 111 a 116 da CF com a redação
dada pelas Emendas Constitucionais 24/1999 e 45/2004).
143
Entretanto, os artigos 121, caput e 124, parágrafo único, da CF
possibilitaram ao legislador infraconstitucional a eventual fixação do foro por
prerrogativa de função das autoridades pertencentes as suas respectivas estruturas,
ou seja, a Justiça Eleitoral e a Justiça Militar, in verbis:
Art. 121. Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos
tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais.
Art. 124. À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares
definidos em lei.
Parágrafo único. A lei disporá sobre a organização, o funcionamento e a
competência da Justiça Militar.
A Constituição Federal de 1988 quanto à Justiça Eleitoral, houve por
bem estabelecer que o disciplinamento, a organização e a competência dos
tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais ficassem a cargo de uma lei
complementar.
Ao que se depreende da Constituição atual, a mesma recepcionou o Código
Eleitoral (Lei n.º: 4.737/65), obviamente, naqueles pontos em que a competência
ratione personae não se encontrasse em confronto com o texto constitucional.
Deste modo, a competência por prerrogativa de função existente para o
Tribunal Superior Eleitoral no artigo 22, inciso I, alínea “d” do Código Eleitoral
em relação “aos crimes eleitorais e os comuns que lhes forem conexos cometidos
pelos seus próprios juízes e pelos juízes dos Tribunais Regionais” não foi
recepcionada, porquanto o art. 102, I, “c” da CF define que o julgamento dos
magistrados com assento no Tribunal Superior Eleitoral será efetivado no STF e o
art. 105, I, “a” e incluiu na competência ratione personae do STJ, o julgamento
dos membros dos Tribunais Regionais Eleitorais.
Cabe trazer à discussão, ademais, a existência de posicionamento
minoritário sobre a permanência do foro por prerrogativa no TSE, o qual assinala
que os crimes eleitorais não estariam subsumidos na categoria de crimes comuns
utilizada no texto constitucional, fato que determinaria a qualificação dos crimes
144
eleitorais dentro de uma classificação diferenciada, nos mesmos moldes dos
crimes militares, ou seja, crimes especiais.
Com efeito, o que se pretendeu estabelecer, em suma, foi uma chamada
competência ratione materiae, onde o TSE ficaria responsável pelo julgamento
dos crimes eleitorais praticados pelo Presidente e Vice-Presidente, o TRE
encarregado do julgamento de Senadores, Suplentes, Deputados, Governador,
Vice-Governador e Prefeitos e os Juízes Eleitorais o exame dos delitos eleitorais
eventualmente praticados por Vice-Prefeito e Vereadores, uma vez que JOEL
JOSÉ CÂNDIDO sustenta que não há justificativa plausível para que a Corte
Eleitoral (TSE) não tenha a competência originária para o julgamento dos delitos
praticados por determinadas autoridades, no caso o Presidente e o Vice-Presidente
55
.
A tese acima, no entanto, foi amplamente rejeitada pelos Tribunais
56
, o que
permite assegurar que o TSE não exerce a competência por prerrogativa de função
atualmente, pois os termos dos artigos 102, I, “c” e do art. 105, I, “a”, ambos da
CF, na verdade, só estabeleceram diferenças entre os crimes comuns e os de
responsabilidade, não permitindo a criação de uma competência ratione materiae,
isto é, que o exame e julgamento dos processos que envolvam crimes eleitorais
estejam adstritos aos órgãos da Justiça Eleitoral
57
.
Possível concluir, assim, que não há competência ratione personae no
Tribunal Superior Eleitoral, tendo em vista a ausência de recepção do artigo 22,
inciso I, alínea “d” do Código Eleitoral
58
, sendo certo que a competência ratione
personae subsiste no Tribunal Regional Eleitoral ex vi da redação contida nos
55
CÂNDIDO, Joel José. Direito Eleitoral Brasileiro: São Paulo, 11ª ed., 3ª tiragem, EDIPRO,
2005, p. 341-342.
56
REspe nº 14.962-AC, Relator: Min. Eduardo Alckmin, julgamento em 30-6-98, DJ de 7-8-98, p.
139, Resoluções 17.537 e 17.914 do TSE e RE 398.042, Rel. Min. Sepúlveda Pertence,
julgamento em 2-12-03, DJ de 6-2-04.
57
NETO, Armando Antonio Sobreiro. Direito Eleitoral – Teoria e Prática: Curitiba, 3ª ed., 2ª
tiragem, Juruá, 2005, p. 49-50.
58
Neste sentido: TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, 2º volume: São Paulo,
11ª ed., Saraiva, 1989, p. 117, GOMES, Suzana de Camargo. A Justiça Eleitoral e sua
Competência: São Paulo, 1ª ed., Revista dos Tribunais, 1998, p. 217, PINTO, Djalma. Direito
Eleitoral. Improbidade Administrativa e Responsabilidade Fiscal – Noções Gerais: São Paulo, 2ª
ed., Atlas, 2005, p. 268-269.
145
artigos 96, inciso III e 108, inciso I, alínea “a” da CF para o processo e
julgamento dos membros do Ministério Público e Juízes com atuação em primeira
instância e do Prefeito Municipal (Súmula 702 do STF) “A competência do
Tribunal de Justiça para julgar prefeitos restringe-se aos crimes de competência
da justiça comum estadual; nos demais casos, a competência originária caberá ao
respectivo tribunal de segundo grau.”.
4.6.3
A competência originária do Superior Tribunal Militar.
Quanto à competência por prerrogativa de função nos crimes militares,
especificamente, no que diz respeito ao Superior Tribunal Militar - STM, a
Constituição é silente acerca do tema, todavia exige a edição de norma
disciplinadora da questão, o que deu azo a elaboração da Lei n.º: 8.457/92 com a
redação efetivada pela Lei 8.719/93 estabelecendo que:
Art. 6° Compete ao Superior Tribunal Militar:
I - processar e julgar originariamente:
a) os oficiais generais das Forças Armadas, nos crimes militares definidos em lei;
(Redação dada pela Lei nº 8.719, de 19.10.93).
Indiscutível que o exame do foro por prerrogativa no plano das autoridades
públicas federais demanda complementação legislativa, no que diz respeito à
Justiça Eleitoral e Militar, as quais foram realizadas com o aproveitamento das
normas existentes (recepção constitucional) ou pela criação de outras que
versaram sobre o assunto.
Não há a possibilidade de qualquer complementação normativa com o
emprego de atos normativos, uma vez que o tema em apreço está essencialmente
relacionado com a lei em sentido formal, sendo certo que, em alguns casos, chega
a estar submetida à reserva da lei complementar.
146
4.6.4
A autonomia dos Estados Federados e o foro por prerrogativa de
função.
Impõe-se, ainda, a análise do foro por prerrogativa no plano estadual,
especificamente, com o estudo da técnica utilizada para a sua atribuição às
autoridades públicas estaduais.
O tema já incorporou, automaticamente, a concessão do foro por
prerrogativa à figura política do prefeito municipal (artigo 29, X da CF) e,
também, aos membros da magistratura e do Ministério Público Estadual (96, III
da CF), ambos já mencionados no curso deste trabalho.
As citadas regras preordenaram a delimitação do foro por prerrogativa de
função, o que importa numa pequena restrição quanto à concessão do foro para os
agentes políticos que atuam na órbita dos Estados-Membros e dos Municípios
acima indicados.
A autonomia estadual não ficou restringida, contudo, ficou obrigada a
reproduzir uma parcela da Carta Política de 1988, sem que isso tenha causado
menoscabo à escolha das demais autoridades estaduais detentoras do foro por
prerrogativa nos termos do que reza o artigo 125, § 1º da CF:
Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios
estabelecidos nesta Constituição.
§ 1º - A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo
a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça.
Como se vê, a Constituição Estadual recebeu uma permissão do
Constituinte para definir a competência dos tribunais, neste caso, partindo da
observância e enumeração de determinados agentes políticos, os quais fariam jus
à prerrogativa de função.
O assunto não é suscetível ao disciplinamento por ato normativo,
pertencendo ao estrito domínio da lei em sentido formal.
147
A escolha dos detentores do foro por prerrogativa, ainda hoje, faz parte de
uma extensa controvérsia quanto aos limites de sua concessão, o que restou
consolidado em diversos julgamentos acerca do foro por prerrogativa de função
no plano estadual, razão pela qual, são freqüentes as dúvidas sobre a atribuição da
mesma a determinados agentes públicos.
Inicialmente, a norma que trata da prerrogativa de foro (§ 1º do artigo 125
da CF), valendo-se da autonomia estadual, ou seja, da sua capacidade política de
auto-organização, em síntese, autorizou a Constituição Estadual a deliberar com
total liberdade acerca dos agentes detentores da referida prerrogativa, contudo,
assuma total relevância a advertência pronunciada por FRANCISCO CAMPOS
porque “As assembléias democráticas têm uma tendência muito pronunciada a
exagerar o sentimento da sua própria importância, o que as conduz, muitas vêzes,
a estender, além do limite razoável, as prerrogativas e privilégios que elas julgam
essenciais à garantia e defesa da sua independência. Tanto quanto, porém,
matéria tão plástica e difusa, própria a ser afeiçoada ao capricho das
oportunidades e ao sabor dos sentimentos e emoções, a que se acham tão
expostas as assembléias legislativas, comporta regras e princípios, o princípio
que deve presidir à interpretação ou construção dos privilégios parlamentares é
o de que devem ser entendidos nos seus termos estritos, como tôda exceção às
regras gerais de imputabilidade e de responsabilidade, particularmente em
regimes democráticos, em que o postulado da igualdade perante a lei só deve
declinar em casos absolutamente excepcionais e por motivos de rigorosa
necessidade ou utilidade pública.
59
.
É razoável concluir que o tema está sujeito a algumas limitações,
considerando que a autonomia estadual para a definição da prerrogativa de foro na
Constituição Estadual foi tomada com parâmetros na Constituição Federal, o que,
por si só, inibe a pretensão de que a Constituição Estadual poderia dispor com
liberdade sobre a prerrogativa de foro.
59
CAMPOS, Francisco. Direito Constitucional. Rio de Janeiro – São Paulo: Freitas Bastos, 1956,
2º vol., p. 107.
148
A propósito, revela-se oportuno o ensinamento firmado por OSWALDO
TRIGUEIRO que complementa a visão doutrinária exposta no parágrafo
precedente, uma vez que “desde que não podem legislar sobre matéria penal, ou
mesmo processual – reservadas à competência privativa da União – os Estados
devem limitar-se a reproduzir o direito federal, com as adaptações necessárias e
indispensáveis. Daí encontrar-se, em todas as Constituições estaduais, o mesmo
sistema de garantia do mandato legislativo.
60
.
Obviamente, os limites aplicados à autonomia estadual fazem parte de uma
discussão que tem se mostrado acentuada no STF e suscetível a mudanças quanto
aos critérios para a escolha dos agentes públicos detentores do foro por
prerrogativa.
Nesses termos, a Constituição brasileira ao relacionar os agentes públicos
agraciados por foro por prerrogativa de função nos artigos 29, X e 96 III da CF,
na verdade, não quis exaurir o rol dos detentores do foro por prerrogativa, caso
contrário, estaria interferindo na autonomia estadual.
Depreende-se, assim, que o foro por prerrogativa estadual (Tribunal de
Justiça) não está exaurido na preordenação constante dos artigos 29, X e 96, III da
CF, o que permitiu a inclusão de outros agentes públicos na relação dos detentores
desta prerrogativa, v.g. Defensores Públicos, Procuradores do Estado e Vice-
Governador.
O que se discute, no entanto, são as justificativas firmadas para a definição
deste processo de escolha, o qual gravitaria entre a total liberdade quanto à
indicação dos detentores do foro por prerrogativa até uma sensível restrição, no
que diz respeito à enumeração dos mesmos.
Deste modo, o STF reconheceu que o foro por prerrogativa, num primeiro
momento poderia ser concedido na Constituição Estadual com total liberdade
61
,
como é possível visualizar da decisão ora transcrita:
60
TRIGUEIRO, Oswaldo. op. cit., p. 160-161.
61
HC 70.474, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 17-8-93, DJ de 24-9-93.
149
“A Constituição — ao outorgar, sem reserva, ao Estado-Membro, o poder de
definir a competência dos seus tribunais (art. 125, § 1º) — situou positivamente no
âmbito da organização judiciária estadual a outorga do foro especial por
prerrogativa de função, com as únicas limitações que decorram explícita ou
implicitamente da própria Constituição Federal. Desse modo, a matéria ficou
subtraída do campo normativo da legislação processual ordinária: já não incide,
portanto, na área da jurisdição dos Estados-Membros, o art. 87 C. Proc. Penal.”
(HC 70.474, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 17-8-93, DJ de 24-9-
93).
Posteriormente, o STF veio a estabelecer a aplicação de um modelo federal
à concessão do foro por prerrogativa, ou seja, o processo de escolha das
autoridades estaduais teria que necessariamente estabelecer uma simetria com a
Constituição Federal, donde se infere que uma eventual discrepância, de fato,
implicaria em inconstitucionalidade das constituições estaduais
62
:
“(...) o art. 125 da Lei Magna defere aos Estados a competência de organizar a sua
própria Justiça, mas não é menos certo que esse mesmo art. 125, caput, junge essa
organização aos princípios "estabelecidos" por ela, Carta Maior, neles incluídos os
constantes do art. 37, cabeça.” (ADC 12-MC
, Rel. Min. Carlos Britto, julgamento
em 16-2-06, DJ de 1º-9-06).”
“O Tribunal concluiu julgamento de ação direta ajuizada pelo Partido dos
Trabalhadores - PT contra a alínea e do inciso VIII do art. 46 da Constituição do
Estado de Goiás, na redação dada pela EC 29/2001, que, ampliando as hipóteses
de foro especial por prerrogativa de função, outorgou ao Tribunal de Justiça
estadual competência para processar e julgar, originariamente, "os Delegados de
Polícia, os Procuradores do Estado e da Assembléia Legislativa e os Defensores
Públicos, ressalvadas as competências da Justiça Eleitoral e do Tribunal do Júri" -
v. Informativos 340 e 370. Por maioria, acompanhando a divergência iniciada pelo
Min. Carlos Britto, julgou-se procedente, em parte, o pedido, e declarou-se a
inconstitucionalidade da expressão "e os Delegados de Polícia", contida no
dispositivo impugnado. Entendeu-se que somente em relação aos Delegados de
Polícia haveria incompatibilidade entre a prerrogativa de foro conferida e a
efetividade de outras regras constitucionais, tendo em conta, principalmente, a que
trata do controle externo da atividade policial exercido pelo Ministério Público.
Considerou-se, também, nos termos dos fundamentos do voto do Min. Gilmar
Mendes, a necessidade de se garantir a determinadas categorias de agentes
públicos, como a dos advogados públicos, maior independência e capacidade para
resistir a eventuais pressões políticas, e, ainda, o disposto no §1º do art. 125 da CF,
que reservou às constituições estaduais a definição da competência dos respectivos
tribunais. Vencidos, em parte, os Ministros Maurício Corrêa, relator, Joaquim
Barbosa, Cezar Peluso e Carlos Velloso que julgavam o pedido integralmente
procedente, e Marco Aurélio e Celso de Mello que o julgavam integralmente
62
ADC 12-MC, Rel. Min. Carlos Britto, julgamento em 16-2-06, DJ de 1º-9-06 e ADI 2587/GO,
rel. orig. Min. Maurício Corrêa, rel. p/ acórdão Min. Carlos Britto, 1º.12.2004.
150
improcedente. ADI 2587/GO, rel. orig. Min. Maurício Corrêa, rel. p/ acórdão Min.
Carlos Britto, 1º.12.2004. (ADI-2587).”
A abordagem ora efetivada quis, primordialmente, visualizar o nosso
sistema constitucional relativo à prerrogativa de função, além de demonstrar que
todo o plano de complementação legislativa concernente ao mesmo, na verdade,
não se coaduna com o emprego de atos normativos (decretos, medidas
provisórias, ou leis delegadas), uma vez que a complementação exigida deve ser
estabelecida na lei em sentido formal, verbi gratia, a definição da competência da
Justiça Eleitoral e Militar e junto às Constituições estaduais.
De qualquer sorte, o STF registrou algumas circunstâncias onde o emprego
de ato normativo restou franqueado ao tema, como se infere da decisão que
reconheceu a constitucionalidade do regimento interno dos tribunais para o
disciplinamento do órgão jurisdicional da estrutura do Tribunal de Justiça que
seria competente para o julgamento do Prefeito e, sem dúvida nenhuma, de
qualquer outra autoridade que tenha recebido a prerrogativa de foro
63
, tal como é
possível concluir da decisão abaixo citada:
“HC 73232 / GO – GOIÁS
Habeas Corpus
Relator(a): Min. Maurício Corrêa
Julgamento: 12/03/1996 - Órgão Julgador: Segunda Turma
Publicação: DJ 03-05-1996 PP-13902 EMENT VOL-01826-02 PP-00379
Parte(s)
PACIENTE: DELCIDES PACHECO PIRES
IMPETRANTES: ROBINSON PEREIRA GUEDES E OUTRO
COATOR: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIAS
EMENTA: "HABEAS-CORPUS". CRIME PRATICADO POR PREFEITO
MUNICIPAL (ART. 1., I E IX, DO DECRETO-LEI N. 201/67). REGIMENTO
INTERNO E RESOLUÇÃO N. 15/91 DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO
ESTADO DE GOIAS: COMPETÊNCIA ORIGINARIA PARA PROCESSAR E
JULGAR PREFEITO ATRIBUIDA AS CÂMARAS CRIMINAIS ISOLADAS
(CF, ART. 29, VIII, DA REDAÇÃO ORIGINAL, OU ART. 29, X, COM A
REDAÇÃO DADA PELA E.C. N. 1/92). 1. Cabe, exclusivamente, ao Regimento
Interno do Tribunal de Justiça atribuir competência ao Pleno, ou ao Órgão
Especial, ou a órgão fracionário, para processar e julgar Prefeitos Municipais (CF,
art. 29, X, e art. 96, I, "a"). 2. A Resolução n. 15, de 12.06.91, do Plenário do
Tribunal de Justiça goiano, que vigora como Emenda Regimental, atribui
63
No mesmo sentido: HC 72.476, rel. Min. Maurício Corrêa, sessão de 8.8.95 (precedente
noticiado no Boletim Interno nº 308/95) e HC 71702 / RS -Relator(a): Min. Sydney Sanches,
Julgamento: 02/04/1996, Órgão Julgador: Primeira Turma e Publicação DJ 13-12-1996 PP-50160.
151
competência originaria as Câmaras Criminais Isoladas para o julgamento de
Prefeitos Municipais, ressalvados os crimes dolosos contra a vida, cuja
competência e do Pleno. 3. Improcedência da alegação de incompetência da
Primeira Câmara Criminal, para julgar Prefeito Municipal. 4. "Habeas-corpus"
conhecido, mas indeferido.”
Com efeito, o artigo 29, inciso X, da CF apenas prescreve que o julgamento
do Prefeito ocorra no Tribunal de Justiça e não impõe, neste diapasão, como
restou demarcado acima, qual o órgão jurisdicional incumbido de fazê-lo, ou seja,
se a câmara criminal, a câmara especializada, a seção criminal, o grupo de
câmaras, o pleno ou órgão especial.
O que importa, assim, para a manutenção da constitucionalidade do
regimento interno, da resolução ou de qualquer ato normativo que seja editado
pelo colegiado do Tribunal de Justiça é que a deliberação acerca do processo e
julgamento de Prefeitos, membros do Ministério Público e Juízes preservem a
competência constitucionalmente fixada pela Constituição.
4.6.5
Crítica ao foro por prerrogativa de função anteriormente definido em
Medidas Provisórias.
Impende notar, por último, que o STF demonstrou enorme flexibilidade ao
aceitar que a concessão do foro por prerrogativa de função pudesse ser realizada
por intermédio de medida provisória, não restringindo que a normalização do
assunto ficasse estritamente reservada à lei em sentido formal.
O STF em duas situações, todavia, permitiu que o tema pudesse ser alvo de
disciplinamento por medida provisória, como se deduz das decisões que
reconheceram a atribuição do foro por prerrogativa de função ao Advogado-Geral
da União e ao Presidente do Banco Central
64
, in verbis:
64 O STF, no entanto, não reconheceu a competência para o processamento e julgamento do
Secretário Especial de Agricultura e Pesca encaminhada por Medida Provisória e, na
oportunidade: “declarou a sua incompetência para processar e julgar o feito, ao entendimento de
que o Secretário Especial de Aqüicultura e Pesca, por não ser Ministro de Estado, não possui a
prerrogativa de foro estabelecida no parágrafo único do artigo 25 da Lei nº 10.683/2003, com a
redação dada pela Lei nº 10.869/04. Além disso, esta egrégia Corte decidiu que a extensão de
prerrogativas, garantias, vantagens e direitos equivalentes aos Ministros de Estado a que alude o
152
INFORMATIVO Nº 201
Competência para julgar Advogado-Geral da União
PROCESSO
INQ - 1660
ARTIGO
O Tribunal, por maioria, reconheceu a sua competência para conhecer e julgar
queixa-crime contra o Advogado-Geral da União, tendo em vista a edição da
Medida Provisória 2.049-22, de 28.8.2000, que transforma o mencionado cargo de
natureza especial em cargo de ministro de Estado, atraindo, portanto, a incidência
do art. 102, I, c, da CF ("Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal,
precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar,
originariamente: ... c) nas infrações penais comuns e nos crimes de
responsabilidade, os Ministros de Estado, ..."). Vencidos os Ministros Marco
Aurélio e Celso de Mello que, considerando a decisão na Petição 2.084-DF,
proferida em 8.8.2000, no sentido de que o Advogado-Geral da União, por não ser
ministro de Estado, não dispunha de prerrogativa de foro penal perante o STF,
entendiam casuística a nova edição da MP 2.049-22 e declaravam a
inconstitucionalidade formal da mesma na parte em que incluiu o Advogado-Geral
da União como ministro de Estado pela falta de urgência necessária à edição da
Medida Provisória (expressão "e o Advogado-Geral da União", contida no
parágrafo único do art. 13 e do art. 24-B da Lei nº 9.649/98). Prosseguindo no
julgamento, o Tribunal, por maioria, vencido o Min. Marco Aurélio, concedeu
habeas corpus de ofício ao querelado para o fim de rejeitar a queixa-crime, uma
vez que a Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal - ADPF, autora
da ação, não tem legitimidade ativa ad causam para promover, em sede penal,
interpelação judicial em defesa da honra de seus filiados, dado o caráter
personalíssimo do bem jurídico penalmente tutelado. Inquérito (QO) 1.660-DF,
rel. Min. Sepúlveda Pertence, 6.9.2000.(INQ-1660)
ADI 3289 / DF - DISTRITO FEDERAL
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
Relator(a): Min. GILMAR MENDES
Julgamento: 05/05/2005 Órgão Julgador: Tribunal Pleno
Publicação
DJ 03-02-2006 PP-00011
EMENT VOL-02219-02 PP-00304
REPUBLICAÇÃO DJ 24-02-2006 PP-00007
Parte(s)
REQTE.(S) : PARTIDO DA FRENTE LIBERAL - PFL
ADV.(A/S) : ADMAR GONZAGA NETO
REQDO.(A/S) : PRESIDENTE DA REPÚBLICA
ADV.(A/S) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade contra a Medida Provisória nº
207, de 13 de agosto de 2004 (convertida na Lei nº 11.036/2004), que alterou
disposições das Leis nº 10.683/03 e Lei nº 9.650/98, para equiparar o cargo de
natureza especial de Presidente do Banco Central ao cargo de Ministro de Estado.
2. Prerrogativa de foro para o Presidente do Banco Central. 3. Ofensa aos arts. 2º,
52, III, "d", 62, §1º, I, "b", §9º, 69 e 192, todos da Constituição Federal. 4.
§ 1º do art. 38 do referido diploma legislativo repercute somente nas esferas administrativa,
financeira e protocolar, mas não na estritamente constitucional (Informativo nº 374 do STF)”.
153
Natureza política da função de Presidente do Banco Central que autoriza a
transferência de competência. 5. Sistemas republicanos comparados possuem
regulamentação equivalente para preservar garantias de independência e
imparcialidade. 6. Inexistência, no texto constitucional de 1988, de argumento
normativo contrário à regulamentação infraconstitucional impugnada. 7. Não
caracterização de modelo linear ou simétrico de competências por prerrogativa de
foro e ausência de proibição de sua extensão a Presidente e ex-Presidentes de
Banco Central. 8. Sistemas singulares criados com o objetivo de garantir
independência para cargos importantes da República: Advogado-Geral da União;
Comandantes das Forças Armadas; Chefes de Missões Diplomáticas. 9. Não-
violação do princípio da separação de poderes, inclusive por causa da participação
do Senado Federal na aprovação dos indicados ao cargo de Presidente e Diretores
do Banco Central (art. 52, III, "d", da CF/88). 10. Prerrogativa de foro como
reforço à independência das funções de poder na República adotada por razões de
política constitucional. 11. Situação em que se justifica a diferenciação de
tratamento entre agentes políticos em virtude do interesse público evidente. 12.
Garantia da prerrogativa de foro que se coaduna com a sociedade hipercomplexa e
pluralista, a qual não admite um código unitarizante dos vários sistemas sociais.
13. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.
As decisões proferidas pelo STF abrangem períodos diferentes quanto à
medida provisória, pois, quando o STF reconheceu a constitucionalidade do foro
por prerrogativa ao Advogado-Geral da União, a mesma ocorreu antes das
medidas provisórias serem alcançadas pelos limites temáticos impostos pela
Emenda Constitucional n.º: 32/2001, o que torna admissível, mas não aceitável
que o assunto se prestasse a este tipo de regulamentação, mesmo porque,
substanciosa corrente doutrinária à época, já defendia que a matéria processual
não poderia ser disciplinada por medidas provisórias, inclusive o próprio STF em
algumas decisões
65
.
A mesma justificativa, no entanto, não se aplica à concessão do foro por
prerrogativa em prol do Presidente do Banco Central, pois o assunto foi efetivado
na vigência da E.C. n.º: 32/2001, ou seja, sob o pálio da expressa vedação contida
no artigo 62, §1º, inciso I, alínea “b” da CF, de que a medida provisória verse
sobre matéria processual.
Nada obstante a restrição temática da Constituição, o julgamento da ADI
3289 no Supremo Tribunal Federal, relator Min. GILMAR MENDES, chancelou
e deu total evidência a designação do foro por prerrogativa de função ao
Presidente do Banco Central.
65 ADInMC 2.332-DF, rel. Min. Moreira Alves, 5.9.2001. Informativo 240.
154
Com efeito, o STF enfrentou o tema e a decisão do Sr. Min. GILMAR
MENDES impressiona pela sua argumentação, mormente, ao definir que a
prerrogativa de foro, no caso, (a) seria um reforço à independência das funções
de poder na República ex vi de razões de ordem política-constitucional, (b)
justificada pela diferenciação de tratamento entre agentes políticos em virtude do
interesse público evidente e (c) que referida garantia se coaduna com a sociedade
hipercomplexa e pluralista, a qual não admite um código unitarizante dos vários
sistemas sociais.
Ainda assim, é de se concluir que a concessão do foro por prerrogativa de
função ao Presidente do Banco Central com o emprego de medida provisória,
norma em sentido material, integralmente a mercê de um ato discricionário do
Chefe do Executivo, sem qualquer dúvida, se revela um ato inconstitucional e o
fundamento desta imperfeição está na leitura da Constituição, a qual poderia ser
restringida pelo responsável direto e final da sua interpretação, o Supremo
Tribunal Federal.
5
Conclusão
1. A associação da idéia de privilégio ou da prerrogativa como situações
exorbitantes do direito comum, de fato, encontrou na esfera pública grega e
romana perfeita sintonia, não se podendo negar que estavam relacionadas à vida
política e não ao contexto da esfera privada, bem como a atribuição a pessoas que
desempenhavam funções judicantes – na Grécia, os reparadores (magistrados dos
magistrados) – ou, então, importantes ao poder político – em Roma, os Senadores
–.
2. Nos países que constituem, no presente momento, a maior parte da
civilização ocidental européia, a organização política e social foi pautada num
complexo sistema, onde as relações feudais repudiavam a idéia de igualdade entre
os membros do mesmo grupamento social.
3. Enquanto inexistente o preceito concernente à igualdade, todas as
relações sociais tiveram perspectiva em hipóteses que preservaram a
superioridade e que possibilitaram a formação de privilégios na órbita penal e
processual – foros especiais –, como se deduz dos julgamentos efetivados pela
Curia Regis e a Corte dos Pares.
4. É positiva a constatação de foros especiais nas Constituições de
Clarendon de 1164, materializando-se no primeiro documento político a
reconhecer que um “comandante-em-chefe do rei” ou um “oficial do governo do
rei” tinham a limitação quanto à deflagração de processos pela Igreja contra os
mesmos, o que identifica uma circunstância bem semelhante à estrutura do foro
por prerrogativa nos moldes propostos pelo ordenamento constitucional moderno.
5. Todo o processo histórico que determinou a restrição aos privilégios,
numa visão abstratamente considerada, em síntese, possibilitou que a Inglaterra
editasse vários textos normativos (Magna Charta Libertatum de 1215, Petition of
Right de 1628, Lei de Habeas Corpus de 1679, Bill of Rights de 1689 e Ato de
156
Estabelecimento de 1701) em busca da contenção dos privilégios reais e de uma
imperceptível afirmação dos direitos de uma classe e, posteriormente, de toda a
sociedade inglesa.
6. Em relação ao mundo contemporâneo, o gradual repúdio à tirania e aos
privilégios que teve início com os sucessivos Pactos firmados na Inglaterra
(Magna Carta de 1215, Bill of Rights de 1689 e Ato de Estabelecimento de 1701),
passando pela Declaração de Direitos de Virgínia de 1776 consolidaram-se com a
emissão da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, desta
forma, confirmando a idéia de valorização do ser humano sem retrocessos.
7. Os privilégios ou as prerrogativas entregues aos membros do Judiciário e
outras autoridades tiveram acolhimento e total desenvolvimento no padrão
normativo português (Ordenações) e espanhol (Lei das Siete Partidas).
8. A visão normativa Portuguesa, sem dúvida, alicerçou a consciência sócio-
cultural do Brasil Colônia e até hoje influencia na maneira de o povo visualizar a
concessão de prerrogativas como uma suposta e desmedida outorga de privilégios.
9. O processo histórico relativo à concessão de privilégios, levado a efeito
em Portugal e no Brasil Colônia, na verdade, deixa evidente a criação de um
padrão normativo que, antes de tudo, se esmerou pela proteção dos nobres,
ocupantes de cargos mais importantes na Coroa e até dos seus empregados,
realçando as diferenças entre os jurisdicionados quanto à prática dos crimes e à
aplicação das penas.
10. A vertente observada com o máximo rigor na órbita constitucional
americana consistiu na rejeição de todos os privilégios, no caso, somente
autorizando os privilégios que fossem extensíveis a todos do Povo, por exemplo,
o direito a ser julgado no Júri.
11. As orientações firmadas na Revolução Americana e no
constitucionalismo americano proclamaram o exercício e consolidação de um
direito de resistência salvaguardado pelo modelo Lockiano e, simultaneamente, o
157
afastamento dos privilégios, mediante a busca pela igualdade, a qual se traduziu
num aspecto primordial na Constituição Americana, tal como se infere do Artigo
III, Seção II, além de servir de inspiração ao constitucionalismo moderno,
inclusive, embasando a primeira Constituição da República Brasileira de 1891.
12. A Constituição Americana apesar de conter uma descentralização
legislativa em matéria processual não estabeleceu competência para os Estados
definirem a prerrogativa de função nos Tribunais Estaduais, sendo certo que a
Suprema Corte já emitiu pronunciamento de que a sua atuação está restrita ao
disposto no artigo III, seção 2.
13. A nossa herança normativa portuguesa, no que diz respeito aos
privilégios restou definitivamente afastada com o surgimento da Constituição da
República de 1891, embora os fatores que propiciem o aumento inconcebível na
concessão do foro por prerrogativa de função tenham as suas raízes em todo o
processo histórico e antropológico vivenciado pelo homem brasileiro.
14. A necessidade de materializar o princípio republicano concernente à
responsabilidade política dos agentes públicos fez com que a Constituinte de 1890
reproduzisse o impeachment da Carta Americana e, concomitantemente, pusesse
em prática a competência originária do Supremo Tribunal Federal para processar
e julgar Presidente da República e os Ministros de Estados, hipótese não prevista
na Carta Americana, mas, cujos parâmetros foram pinçados na Constituição
Portuguesa.
15. Os motivos que determinaram a exclusão do foro por prerrogativa de
função em prol das autoridades públicas nos Estados-Unidos e na Inglaterra estão
relacionados ao processo histórico que emanou da admissão da Common Law
entre os mesmos.
16. Por outro lado, a exclusão do privilège de juridiction – o foro por
prerrogativa – do constitucionalismo francês teve fundamento no processo
revolucionário, contudo, situações de ordem práticas impulsionaram o
158
estabelecimento do processo de responsabilização dos membros do Gabinete a
partir de 1993.
17. A prerrogativa de função existente na Constituição Austríaca se
assemelha ao modelo inserido na atual Constituição brasileira, uma vez que a
Carta Austríaca de 1º. de outubro de 1920 já estabelecia a presença de diversas
autoridades detentoras da referida prerrogativa.
18. É possível constatar que a idéia de privilégio esteve associada às
Ordenações e aplicada no direito do Brasil Colônia. Entretanto, a concepção
reservada para o privilégio não se confunde com a prerrogativa de função.
19. Houve, entre nós, uma cumplicidade em prol do antigo privilégio de
caráter pessoal e da prerrogativa de função de cunho objetivo, traduzindo-se numa
sensação histórica de amordaçamento e comodismo, ou seja, o privilégio foi
admitido enquanto o indivíduo vislumbrasse a possibilidade de um dia gozar da
mesma benesse.
20. A concessão em demasia do foro por prerrogativa de função por
intermédio de lei ou da Carta Estadual leva a sua descaracterização, o que torna o
tema susceptível às críticas e, principalmente, reflexões sobre a sua extinção.
21. Contudo, é urgente que se defina o foro por prerrogativa de função
como uma garantia constitucional reservada às autoridades mais importantes da
República (Presidente da República, Governadores, Senadores e Deputados
Federais, membros do Supremo Tribunal Federal e o Procurador-Geral da
República).
6
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