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Karen Simões Rosa e Silva
DAS DUAS TRANSFORMAÇÕES
Por uma análise metateórica
(ou metamorfósica) de Kelsen
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
graduação em Direito do Departamento de Direito da
PUC-Rio.
Orientador: Prof. Carlos Alberto Plastino
Co-orientador:Prof. Adrian Sgarbi
Rio de Janeiro
Maio de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510781/CA
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Karen Simões Rosa e Silva
DAS DUAS TRANSFORMAÇÕES
Por uma análise metateórica
(ou metamorfósica) de Kelsen
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
graduação em Direito da PUC-Rio. Aprovada pela
Comissão Examinadora abaixo assinada.
Prof. Carlos Alberto Plastino
Orientador
Departamento de Direito – PUC-Rio
Prof. Adrian Sgarbi
Departamento de Direito – PUC-Rio
Maria Guadalupe Piragibe da Fonseca
Faculdade de Direito de Campos
Prof. João Pontes Nogueira
Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de
Ciências Sociais – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 18 de maio de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510781/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem a autorização do autor, do orientador e
da universidade.
Karen Simões Rosa e Silva
Graduada em Direito pela PUC-RIO em 2004 e pós-graduada
em Direito pela mesma universidade em 2007. Áreas de
interesse são Filosofia do Direito, Filosofia da Linguagem
Psicanálise, Moral e Ética. .
Ficha Catalográfica
CDD: 340
Rosa e Silva, Karen Simões
Das Duas Transformações: Por uma análise metateórica
(ou metamorfósica) de Kelsen / Karen Simões Rosa e Silva ;
orientador: Carlos Alberto Plastino ; co-orientador: Adrian
Sgarbi. – Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Direito,
2007.
109f. ; 30 cm
Dissertação (mestrado) Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito.
Inclui referências bibliográficas.
1. Direito Teses. 2.Kelsen. . 3.Pragmatismo .
4.Psicanálise . I. Plastino, Carlos Alberto II. Sgarbi, Adrian III.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Direito. IV. Título.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510781/CA
Agradecimentos
Ao meu querido orientador Carlos Alberto Plastino, que mais que um professor,
se mostrou um exemplo de vida e um amigo.
Ao meu Co-orientador Adrian Sgarbi e ao Prof. Luis Fernando Schwartz, pela
disponibilidade e generosidade sempre que solicitado.
Ao chefe e amigo Dr. Wilson Kozlowski, pelos ensinamentos diários e pelo apoio
dedicado.
A meus pais, Kátia e Fernando, e a meu amor e agora companheiro na jornada da
vida diária, Luiz Cláudio, pela dedicação e paciência.
Aos meus queridos amigos, fundamentais em todas as horas da minha vida. Em
especial, aos amigos: Lívio, Lívia, Samantha e Adriana. Interlocutores de primeira
ordem, sem os quais essa dissertação, com certeza, muito perderia.
A meus companheiros de mestrado, que levarei para sempre comigo, junto às
alegres lembranças dessa tão gostosa fase da vida. Sem dúvidas, eles foram minha
melhor conquista no mestrado.
Por fim, a todos aqueles que têm a grandeza de ver o mundo com os olhos da
esperança, não desistindo nunca, apesar das dificuldades, de acreditar que o amor
entre todos os homens é possível e deve ser sempre buscado.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510781/CA
Resumo
Rosa e Silva, Karen Simões; Plastino, Carlos Alberto (Orientador). Das
Duas Transformações: Por uma análise metateórica (ou
metamorfósica) de Kelsen. Rio de Janeiro, 2007.109p. Dissertação de
Mestrado – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
O sistema jurídico kelseniano, através de uma releitura heterodoxa, pode
ser resgatado como um modelo eficiente para o paradigma que emerge. Tal
assertiva se baseia na convicção de que as críticas impostas a este autor muitas
vezes são fruto da incompreensão de sua proposta, o que se dá por uma confusão
de pressupostos. A análise metateórica é um método que permite recolocar o
pensamento kelseniano não como algo ultrapassado, mas como um pensamento
de vanguarda, apto a ser utilizado a serviço da Pós-Modernidade. Ainda dentro do
arcabouço paradigmático Moderno, os pressupostos kelsenianos são associados a
um referencial teórico que se afasta da concepção da linguagem como
representação do real, explicitando assim , na Teoria Pura do Direito, uma crítica
parcial à Modernidade. Kelsen, apesar de não ter tido a pretensão de se imiscuir
em determinadas áreas por uma questão epistemológica, deixou em sua teoria
espaços abertos que hoje, à luz de novos olhares trazidos especialmente pelo
desenvolvimento de áreas como a psicanálise, podem ser usados para se fazer
uma crítica ampla e não apenas parcial à Modernidade. A partir de uma análise
metapsicológica das noções de liberdade e igualdade na teoria política de Kelsen e
da atualização de sua concepção de natureza humana, abre-se uma nova
perspectiva, através da qual é possível se fazer uma leitura mais apurada da Teoria
Pura do Direito, onde a ética do sentido se explicita como condição de validade
dos ordenamentos, a tornando um instrumental, não mais obsoleto, e sim
adequado a enfrentar os problemas da contemporaneidade
Palavras-chave
Kelsen, Pragmatismo, Psicanálise, Ética, Complexidade.
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Abstract
Rosa e Silva, Karen Simões; Plastino, Carlos Alberto (Advisor). Of Two
Transformations: For a Metatheoretical Analysis (or
Metamorphosical) of Kelsen. Rio de Janeiro, 2007. 109p. Dissertação de
Mestrado – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
Kelsen´s juridical system, through a heterodox perspective, could be seen
as an efficient model for the emerging paradigm, based upon the belief that the
criticism of this author is due to misunderstanding of his proposals and/or
hypothesis. The metatheoretical analysis is one of the methods that reconduct
Kelsen’s thoughts not as something antique, but as a breaktrough that could be
used at the service of Post-Modernity. Still within the Modern paradigm, Kelsen´s
hypothesis are associated with a theoretical referential that is away of the
language’s conception as a representation of the real, highlighting, in Law´s Pure
Theory, a partial critique to Modernity. Kelsen, even not having the proposal of
asserting at some areas due to epistemic reasons, left blank spaces in his theory
that, using some new insights of areas such as psychoanalysis, could be used as
tools of a complete, not partial, critique to Modernity. Using a metapsychological
analysis of Kelsen’s political theory concepts of liberty and equality and updating
his concept of human nature, there is a new perspective through which is possible
to have a proper reading of Law´s Pure Theory, where sense’s ethics is an explicit
condition to validation of juridical ordering and tool, non obsolete, to deal with
the problems of contemporaniety.
Keywords
Kelsen, Pragmatism, Psychoanalysis, Ethics, Complexity
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Sumário
1.Introdução:Meus pressupostos Erro!
Indicador não definido.
1.1.Introdução Erro!
Indicador não definido.
1.2.Metodologia Erro!
Indicador não definido.
2.Parte I: O Leão diz eu quero! Erro!
Indicador não definido.
2.1.Uma questão de ponto de vista Erro!
Indicador não definido.
2.2 Kelsen no país das maravilhas 40
3.Parte II:Uma Santa Afirmação 58
3.1 Eficácia Global da Norma:o rombo ou a porta? 58
3.2 Pulsões de Liberdade e Igualdade 68
3.3 Freud:o lobo do homem Kelsen 83
3.4.O Bem-Estar na Civilização 92
4.Conclusão: Por uma Ética ancorada na Natureza 99
5.Referências bibliográficas 105
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1
Introdução:Meus pressupostos
1.1
Introdução
Três transformações do espírito vos menciono:como o espírito se
muda em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente em criança.
Há muitas coisas pesadas para o espírito, para o espírito forte e sólido,
respeitável. A força deste espírito está clamando por coisas pesadas, e
das mais pesadas.
Há o quer que seja pesado? – pergunta o espírito sólido. E ajoelha-se
igual camelo e quer que o carreguem bem. Que há mais pesado, heróis
– pergunta o espírito sólido – para eu o ditar sobre mim, para que a
minha força se recreie?
Não será rebaixarmo-nos para o nosso orgulho padecer?
Deixar brilhar a nossa loucura para zombarmos da nossa sabedoria?
Ou será separarmo-nos da nossa causa quando ela festeja a sua vitória?
Escalar altos montes para tentar o que nos tenta?
Ou será sustentarmo-nos com bolotas e erva do conhecimento e sofrer
fome na alma por causa da verdade? Ou será estar enfermo e despedir
a consoladores e travar amizade com surdos que nunca ouvem o que
queremos?
Ou será nos afundar em água suja quando é a água da verdade, e não
afastarmos de nós as frias rãs e os quentes sapos?
Ou será amar os que nos desprezam e estender a mão ao fantasma
quando nos quer assustar?
O Espírito sólido sobrecarrega-se de todas estas coisas pesadíssimas; e
à semelhança do camelo que corre carregado pelo deserto, assim ele
corre pelo seu deserto. No deserto mais solitário, porém, se efetua a
segunda transformação:o espírito torna-se leão;quer conquistar a
liberdade e ser senhor no seu próprio deserto.
Procura então o seu último senhor, quer ser seu inimigo e de seus dias;
quer lutar pela vitória com o grande dragão.
Qual é o grande dragão a que o espírito já não quer chamar Deus, nem
senhor?
“Tu deves”, assim se chama o grande dragão; mas o espírito do leão
diz: “Eu quero”.
O “tu deves” está postado no seu caminho, como animal escamoso de
áureo fulgor; e em cada uma das suas escamas brilha em douradas
letras: “Tu deves! “Valores milenares cintilam nessas escamas, e o
mais poderoso de todos os dragões fala assim:
“Em mim brilha o valor de todas as coisas”
“Todos os valores foram já criados, e eu sou todos os valores criados.
Para o futuro não deve existir o “eu quero!” Assim falou o dragão.
Meus irmãos, que falta faz o leão no espírito? Não será suficiente a
besta de carga que abdica e venera?
Criar valores novos é coisa que o leão ainda não pode; mas criar uma
liberdade para a nova criação, isso pode-o o poder do leão. Para criar a
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liberdade e um santo Não, mesmo perante o dever; para isso, meus
irmãos, é preciso o leão.
Conquistar o direito de criar novos valores é a mais terrível
apropriação aos olhos de um espírito sólido e respeitoso. Para ele isto é
uma verdadeira rapina e próprio de um animal rapace.
Como o mais santo, amou em seu tempo o “tu deves” e agora tem de
ver a ilusão e arbitrariedade até no mais santo, a fim de conquistar a
liberdade à custa do seu amor. É preciso um leão para esse feito...
Dizei-me, porém, irmãos:que poderá a criança fazer que não haja
podido fazer o leão? Para que será preciso que o altivo leão se mude
em criança?
A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um
brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa
afirmação.
Sim: para o jogo da criação, meus irmãos, é necessário uma santa
afirmação:o espírito quer agora a sua vontade, o que perdeu o mundo
quer alcançar o seu mundo. Três transformações do espírito vos
mencionei: como o espírito se transformava em camelo, e o camelo em
leão, e o leão, finalmente, em criança”.
Assim falou Zaratustra. E nesse tempo residia na cidade que se chama
“Vaca Malhada”.
1
Esta dissertação versará sobre as últimas duas transformações do espírito,
com base em um autor central para a Teoria do Direito: Hans Kelsen. O estudo de
sua obra se dará de forma heterodoxa, através de uma análise metateórica que
perpassará dois modelos paradigmáticos diversos de apreensão do real
A metateorização por vezes pode ser usada como prelúdio para o
desenvolvimento de uma teoria ou, ainda, como forma de obtermos uma
compreensão mais profunda sobre uma teorização já construída. Tal se dá uma
vez que esta espécie de análise explicíta e esmiuça as fontes nas quais as teoriaa
sustentam suas perspectivas.
2
A obra de Kelsen, apesar de ter como objeto temas próprios da Teoria
Normativa do Direito, por sua amplitude se presta a uma discussão de âmbito
mais geral, que tem origem na Filosofia da Linguagem e, que por ser
negligenciada, muitas vezes leva seus opositores a incidirem em críticas rasas e
esvaziadas de fundamentos, já que partem de pressupostos opostos aos seus para
lerem a Teoria Pura do Direito.
A Filosofia da Linguagem pode ser dividida em duas vertentes: uma que
tem como paradigma uma visão representacional de mundo e outra, que ao
1
NIETZCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra, p. 36.
2
ROSELLO, Manuel A. Metateoría y Sociologia Contemporánea. Disponível em:
http://www.monografias.com/trabajos11/metateo/metateo.shtml#META
. Acesso em: 18.11.2006
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contrário, vê o mundo de forma não representacional. Evidente que estamos
diante de uma divergência de pressupostos e pressupostos são crenças, portanto,
não passíveis de prova empírica. Todavia, são aptos à análise conceitual e essa se
faz importante, não unicamente no intuito de uma conversão, mas principalmente
para que se tenha uma visão crítica independente da posição que se assuma.
A perspectiva Pragmática ou não-representacional de linguagem nos
permite pensar de forma crítica o estatuto dos conceitos jurídicos, fator central
para clarear a oposição entre Positivistas e Jusnaturalistas. Há muito que esta
disputa cinde os filósofos do Direito e erroneamente confere o monopólio dos
bons sentimentos aos últimos, por comparar ambos os sistemas como se partissem
de pressupostos semelhantes.
E muitas vezes, na prática, partem. Autores de ambas as correntes
permanecem inseridos no dualismo cartesiano que se manifesta através de
dicotomias como o interno/externo, inato/adquirido, biológico/social,
físico/mental. Tal posicionamento teórico acarreta a falaciosa reificação de
conceitos como justiça, sujeito, Estado, povo, o que leva muitos autores
Positivistas, equivocadamente, a incidirem em um essencialismo, que substitui a
metafísica de Deus pela metafísica da Razão.
O debate se dá sempre nestes termos; o que varia é o peso atribuído a um ou
outro lado da polarização. Os resultados desses debates não têm sido satisfatórios
porque o que está em discussão não é uma questão empírica. É ilusório pensar
que mais e mais pesquisas irão, um dia, permitir uma melhor compreensão dos
fenômenos abordados. A questão é conceptual, e o cerne dos problemas está na
visão representacional de linguagem.
3
Daí a importância de se proceder a uma análise metateórica da obra de
Kelsen. As criticas que são feitas a ela, em geral, partem de uma perspectiva que
enxerga as categorias de Estado, sujeito, povo e justiça como categorias
determinadas e determináveis. Sua lógica é a identitária ou conjuntista. Os
Jusnaturalistas, contra quem Kelsen tão amplamente se opôs, buscam a afirmação
de valores absolutos, determinados, como se esses existissem metafisicamente,
3
LAMPREIA, Carolina. As propostas Antimentalistas no Desenvolvimento Cognitivo: Uma
Discussão de seus Limites, p.26.
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como se fossem uma realidade-em-si, de alguma forma representável
racionalmente e identificável por sujeitos racionais.
4
A oposição de Kelsen a tais crenças não é no que tange à possibilidade de
existirem valores absolutos metafisicamente e sim quanto a possibilidade de estes
serem representáveis racionalmente. O que a principio pode parecer um
preciosismo, será de extrema relevância para o desenvolvimento desta dissertação
em sua primeira parte, onde a obra de Kelsen será associada ao arcabouço teórico
pragmático
Não obstante ter tido muitos adeptos e da reconhecida importância de sua
obra para a Teoria Geral do Direito, não faltaram aqueles que cobriram Kelsen de
críticas em relação ao caráter formalista de sua teoria. O chamaram de
reducionista, o acusaram de esquecer as dimensões sociais e valorativas do Direito
e, ainda, de fazer do fenômeno jurídico uma mera forma normativa, despida de
seus caracteres humanos.
Dentro de uma perspectiva objetivista-representacional, a Teoria Pura do
Direito, realmente é uma teoria esvaziada de conteúdo moral. O que em verdade é
uma qualidade, na medida em que uma afirmação universalista substantiva em
relação a valores, nada mais é do que a afirmação de valores pessoais daquele que
os afirma, escamoteada sob um discurso pseudo-objetivo.
Todavia, ao se adotar como pressuposto para a leitura da obra de Kelsen,
uma noção de linguagem não-representacional, ou seja, o fato de que a linguagem
não espelha uma verdade-em-si e que o significado do que é falado só pode ser
dado com seu uso por falantes e ouvintes em contextos específicos, não se pode
ter outra perspectiva em relação ao Direito, que não a de prática social concreta,
onde o significado das leis positivadas e seus valores, só podem ser constituídos
por essa prática.
4
A Escola Jusnaturalista, nas suas mais variadas versões, teve sempre como denominador comum
a sua preocupação de referir o Direito Positivo a um Direito Natural incorpóreo e imaterial, sendo
o primeiro válido somente se conforme a norma de justiça colocada pelo segundo. Essa corrente
busca a essência do Direito em uma justiça transcendente, universal e é fato que até hoje, as
diferentes teorias do Direito Natural só chegaram a resultados contraditórios entre si quanto ao que
seria esta tal justiça e qual seriam os conteúdos dos princípios a serem assegurados pelo
Ordenamento Jurídico. Ou há por elas uma glorificação do Direito posto, por este concordar com
uma ordem natural divina ou racional, portanto, absolutamente justa ou, ao contrário, o Direito
Natural é usado de parâmetro pelas poucas teorias naturais de cunho revolucionário ou reformador,
ao questionarem a validade do Direito Positivo afirmando que ele se encontra em contradição com
a dita ordem absoluta.
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12
Nessa perspectiva, não há como se atrelar a legitimidade do Direito a uma
norma atemporal de Justiça, pois também a Moral não é algo-em-si, previamente
determinado, e sim, um construto histórico-social, que pode ser modificado de
acordo com cada realidade concreta, com cada forma de vida.
(...)a opinião de que o conhecimento humano só tem acesso a verdades relativas,
a valores relativos, e, por conseguinte, qualquer verdade e qualquer valor – assim
como o indivíduo que os descobre – devem estar prontos para se retirar a
qualquer momento e deixar lugar a outros valores e outras verdades, leva à
concepção criticista e positivista do mundo, entendendo-se com isso aquela
direção da filosofia e da ciência que parte do positivismo, ou seja, do dado, do
perceptível, da experiência, que pode sempre mudar e que muda incessantemente
e recusa, portanto, a idéia de um absoluto transcendente a essa experiência
5
.
O que os críticos de Kelsen não percebem é que ele não negava a
importância dos valores para o Direito, apenas achava absurdo afirmar qualquer
coisa a respeito destes, além da dimensão espaço-temporal, por uma questão de
honestidade teórico-epistemológica
6.
Por falar em honestidade teórico-epistemológica, aqui cabe fazer uma
pequena digressão. É na modernidade que a Epistemologia aparece como uma
disciplina filosófica independente. Fruto da revolução científica, a Modernidade
inaugurou uma nova forma de conhecimento do homem, dessa vez em torno da
ciência e não mais da filosofia (Antiguidade) ou da Teologia Racional (Idade
Média).
Evidente que existiram reflexões epistemológicas tanto na Filosofia Antiga
como na Idade Média, mas essas estavam ainda completamente inseridas em
contextos psicológicos e metafísicos, não podendo a Epistemologia vir a ser
considerada como uma disciplina filosófica independente antes da Modernidade.
5
KELSEN, Hans. A Democracia, p.105.
6
Em nenhum momento Kelsen achou que a pureza de sua Teoria poderia ser estendida ao Direito,
ela era apenas em relação à ciência do Direito. O Direito é, por excelência, um campo de disputa
política e afirmação de valores. Tanto sua criação quanto sua aplicação são funções políticas.
(SGARBI, Adrian. Aulas de Teoria Geral do Direito In: Mestrado em Teoria do Estado e Direito
Constitucional - PUC, Rio de Janeiro, 2005) Oswald Porchat Pereira diz que “Entender de outro
modo a doutrina que não como ela se nos apresenta e se nos propõe segundo a intenção de seu
autor, querer aplicar-lhe critérios externos ou julgá-la segundo uma teoria da contradição que lhe é
estranha, na pretensão de assim melhor julgá-la filosóficamente, implica, em verdade, a recusa
prévia e pré-judicial de sua ‘lógica’ própria e, consequentemente, a rejeição antecipada e
irrecorrível de seu universo de discurso. Opta-se desde o início contra ela, em benefício de um
outro discurso em que ela se vai traduzir. (O Conflito das Filosofias, p.10)
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13
A Epistemologia desenvolvida na Modernidade foi fruto da consolidação
de um novo padrão de racionalidade, centrado na matemática, que tem por
características o abandono das causas finais na explicação dos fenômenos da
natureza e a redução destes aos seus elementos mensuráveis. Seu projeto foi
desenvolver uma ciência universal da ordem e da medida, que se estendesse a
todos os domínios do conhecimento: o físico, o moral, o social e o político.
7
Toda construção teórica é embasada, mesmo que implicitamente ou diria
mais até, mesmo que inconscientemente, em concepções ontológicas,
epistemológicas e antropológicas e estas por sua vez são construções histórico-
temporais. O paradigma
8
Moderno foi o ambiente intelectual em que se produziu a
obra de Hans Kelsen, com mais de 400 trabalhos metodologicamente impecáveis
sobre Teoria do Direito, Direito Público, Direito Internacional, Constitucional,
Política, Teoria do Estado, Filosofia e, até mesmo, Sociologia.
9
. Nada mais
razoável, portanto, do que Kelsen, como homem histórico que foi
10
, acompanhar
a epistéme de sua época.
Contudo, é justamente na Modernidade, com o grande avanço no
conhecimento que esse modelo de racionalidade científica provocou, que se pôde
constatar quão frágeis eram os pilares em que o paradigma dominante estava
sustentado, seus limites e suas insuficiências.
11
Boaventura de Sousa Santos, ao
7
HESSEN, Johannes. Teoria do Conhecimento, p.14.
8
Edgar Morin define paradigma como “o conjunto de pressupostos ontológicos, epistemológicos e
antropológicos que organizam e limitam o pensamento em determinado período histórico
(MORIN, Edgard apud PLASTINO, Carlos Alberto. Soberanias, Erotismo e Criatividade, s/n).
9
FAZZIO JÚNIOR, Waldo. K de Kant ou de Kelsen? Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 849, 30
out. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7479>. Acesso em: 04
dez. 2005.
10
Kelsen nasceu em Praga no ano de 1881. Aos 3 anos de idade se mudou com sua família para
Viena, onde teve toda sua formação jurídica construída. Quando ainda era estudante, teve seu
primeiro trabalho publicado (1905). Em 1919 contribuiu para a elaboração da redação do “Projeto
de Constituição Austríaca” aprovada em 1920. Em 1919 e 1930 foi nomeado professor na
Universidade de Viena, dando origem assim a conhecida “Escola de Viena” da qual fizeram parte
outros intelectuais de grande porte como Carnap, Wittgenstein, Schlick. De 1930 até 1933
lecionou na Universidade de Colônia, de onde foi obrigado a sair por imposição do governo
nacional-socialista de Hitler, já que era judeu. Em 1940, se mudou de Praga para os Estados
Unidos, onde lecionou inicialmente em Harvard e depois na Universidade de Berkeley até 1952
quando foi jubilado como professor. Mesmo assim, continuou desenvolvendo intensa atividade
intelectual até sua morte em 1973, aos 92 anos. (SGARBI, Adrian. Aulas de Teoria Geral do
Direito In: Mestrado em teoria do Estado e Direito Constitucional - PUC, Rio de Janeiro, 2005).
11
“A primeira observação, que não é tão trivial quanto parece, é que a identificação dos limites,
das insuficiências estruturais do paradigma científico moderno é o resultado do grande avanço no
conhecimento que ele propiciou. O aprofundamento do conhecimento permitiu ver a fragilidade
dos pilares em que se funda. (...) Einstein constitui o primeiro rombo no paradigma da ciência
moderna, um rombo, aliás, mais importante do que Einstein foi subjectivamente capaz de admitir.
Um dos pensamentos mais profundos de Einstein é o da relatividade da simultaneidade.(...) Não
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14
falar da relação entre a reflexão epistemológica e a crise da ciência, diferencia
dois tipos de crise:
(...)As crises de crescimento e as crises de degenerescência. As crises de
crescimento, para usar uma expressão de Kuhn (1970:182), têm lugar ao nível da
matriz disciplinar de um dado ramo da ciência, isto é, revelam-se na insatisfação
perante métodos ou conceitos básicos até então usados sem qualquer contestação
na disciplina, insatisfação que, aliás, decorre da existência, ainda que por vezes
apenas pressentida, de alternativas viáveis. Nos períodos de crise deste tipo, a
reflexão epistemológica é a consciência teórica da punjança da disciplina em
mutação e, por isso, é enviesada no sentido de afirmar e dramatizar a autonomia
do conhecimento científico em relação às demais formas e práticas do
conhecimento.(...) As crises de degenerescência são crises do paradigma, crises
que atravessam todas as disciplinas, ainda que de modo desigual, e que as
atravessam a um nível mais profundo. Significam o pôr em causa a própria forma
de inteligibilidade do real que um dado paradigma proporciona e não apenas os
instrumentos metodológico e conceptuais que lhe dão acesso. Nestas crises, que
são de ocorrência rara, a reflexão epistemológica é a consciência teórica da
precariedade das construções assentes no paradigma em crise e, por isso, tende a
ser enviesada no sentido de considerar o conhecimento científico como uma
prática de saber entre outras, e não necessariamente a melhor. Nestes termos, a
crítica epistemológica elaborada nos períodos de crise de degenerescência não
pode deixar de ser também uma crítica da epistemologia elaborada nos períodos
de crise de crescimento.
12
Hodiernamente estamos vivendo uma crise de degenerescência. Um
momento onde os pressupostos do imaginário Moderno têm sido postos em
cheque.
13
Nada mais natural (aqui entendido no sentido de freqüente) que, em um
havendo simultaneidade universal, o tempo e o espaço absolutos de Newton deixam de existir.
(...) A idéia de que não conhecemos do real senão o que nele introduzimos, ou seja, que não
conhecemos do real senão a nossa intervenção nele, está bem expressa no princípio da incerteza
de Heisenberg (...) Este princípio, e, portanto, a demonstração da interferência estrutural do
sujeito no objecto observado, tem implicações de vulto. Por um lado, sendo estruturalmente
limitado o rigor do nosso conhecimento, só podemos aspirar a resultados aproximados e por isso
as leis da física são tão-só probabilísticas. Por outro lado, a hipótese do determinismo mecanicista
é inviabilizada uma vez que a totalidade do real não se reduz à soma das partes em que a
dividimos para observar e medir. Por último, a distinção sujeito/objeto é muito mais complexa do
que à primeira vista pode parecer. A distinção perde os seus contornos dicotômicos e assume a
forma de um continuum.(...)” ( SANTOS, Boaventura de Sousa. Um Discurso sobre as Ciências.
pp. 41/46.)
12
SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma Ciência Pós-Moderna, pp. 17/18.
13
Estamos vivendo uma crise do paradigma dominante, não só nas ciências exatas como nas
ciências sociais também. Estas, durante muito tempo, buscaram se desenvolver à luz do modelo
das ciências exatas, com padrões mecanicistas, analíticos, racionalistas e estatísticos de
conhecimento. Foi o próprio aprofundamento da ciência neste modelo, que levou à percepção de
sua insustentabilidade e falácia. Nas ciências exatas a crise veio em maior grau com as descobertas
da física quântica, pois até então os cientistas, desde Newton, acreditavam que os fenômenos
físicos podiam ser reduzidos às propriedades de partículas rígidas e sólidas. No entanto, na década
de 20, com as descobertas da física quântica, foi inevitável ter que aceitar que os objetos sólidos
da física clássica se dissolviam em padrões semelhantes a ondas, e mais ainda, que tais
partículas
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15
momento de transição, se busque essa transformação pela negação dos
pressupostos vigentes e a valorização extrema de seus opostos. Só que apesar de
natural, tal fenômeno de exacerbação dos extremos não é desejável e deve ser
observado de forma crítica.
Sabemos que o conceito de paradigma é inseparável de uma compreensão
histórica do conhecimento. O conhecimento é sempre provisório e parcial, o que
não lhe nega a capacidade de apreender aspectos do real, mas lhe nega a
possibilidade de absolutizar verdades. Sabemos também que a natureza não evolui
em saltos e que o conhecimento se constrói em espiral, não de forma pendular.
Logo, não haveria sentido se negar a Modernidade e seu racionalismo
característico, para descambar no extremo oposto, tão reducionista e prejudicial
quanto.
Rejeitar os pressupostos Modernos, que concebem o conhecimento
científico como única expressão da verdade do ser, não significa que nada
podemos conhecer da natureza do ser, que tudo é relativo e aleatório, que não
existe razão, nem que a natureza nada pede ou impõem. Não é nos subjugando à
tirania do imaginário radical e social-histórico que nos livraremos da tirania da
razão. É sim ponderando todas as experiências que nos tornaremos espíritos
livres.
Esse estado de coisas nos mostra que a superação de um paradigma teórico, ainda
quando este é obviamente inadequado e insuficiente, não pode ser ‘decretada’
mas exige a construção explícita de um paradigma alternativo que explique as
questões centrais do antigo paradigma de forma mais convincente dando conta
das falhas e silêncios do modelo anterior
. 14
O primeiro passo, portanto, se queremos nos preparar para o paradigma
que surge, é conhecer e olhar criticamente, mas também com carinho para o
paradigma que se despede. Não é possível o Leão se transformar em Criança, se
primeiro o Camelo não se transforma em Leão.
O que pretendo ao propor uma análise metateórica da obra de Kelsen, é
demonstrar que este irretocavelmente cumpriu o papel de leão e por isso, foi
muitas vezes julgado negativamente, não só pelos espíritos sólidos, pelos camelos
e dragões, mas também pelas crianças. Esqueceram todos que criar novos valores
subatômicas não tinham significado enquanto entidades isoladas, mas podiam apenas ser
entendidas como interconexões. (CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida, p.13/45)
14
SOUZA, Jessé. A Construção Social da Subcidadania, p. 17.
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16
era algo que o leão ainda não podia fazer. Sua função era criar uma nova liberdade
para a nova criação. Kelsen o fez, conquistou a liberdade à custa de seu amor.
Destarte, não deve ser condenado e sim exaltado como uma ponte necessária para
a terceira transformação do espírito.
É pacífico na doutrina que a obra de Kelsen influenciou notavelmente a
cultura político-jurídica do século XX. Especialmente a Teoria Pura do Direito
que, muito mais que um livro, foi um projeto de vida
15
. Sem dúvidas, foi com ela
que Kelsen deu sua contribuição mais original e relevante para a filosofia do
Direito e em torno de seus núcleos temáticos que se construiu todo seu sucesso e
insucesso concomitantemente.
Contudo, o fato de a Teoria Pura ter sido sua maior contribuição,
definitivamente não a legítima a ser alçada como representante integral de Kelsen
que, além de filósofo do Direito, foi também um estudioso do direito positivo
material, historiador do pensamento político-jurídico, antropólogo-sociólogo,
filósofo político e mais ainda, grande defensor da Democracia.
É lamentável constatar que muitas vezes as teses da Reine Rechtslehre foram
lidas, sobre tudo pelos detratores, como teses de filosofia política, com todas as
instrumentalizações e os equívocos que disso podiam derivar. Uma leitura feita
assim não poderia deixar de qualificar aquela filosofia política (se realmente
fosse filosofia política) no melhor dos casos, como agnóstica e, no pior, como
cínica; analogamente, uma instrumentalização da mesma podia avalizar um
Estado burguês capitalista, um Estado fascista, ou um Estado socialista. O que,
para uma “teoria pura”, é francamente um pouco demasiado.
16
Se os escritos de Kelsen em sociologia-antropologia, história das idéias e
política podem ser lidos em si, sem dúvidas, o Kelsen teórico do Direito não pode
ser lido apartado do Kelsen filósofo político, sob pena de ser erroneamente
interpretado, uma vez que é na leitura conjunta que podemos perceber que os
pressupostos filosóficos do relativismo, sobre os quais Kelsen balizou sua Teoria
Pura do Direito, na esfera da política são os mesmos que fundamentam a
Democracia.
17
15
Teoria Pura do Direito não é só o nome que Kelsen deu à sua obra mais conhecida e que pode
ser considerada uma das obras mais importantes escritas em todo o séc. XX, mas também foi o
nome por ele dado a seu projeto de construir uma Ciência do Direito. (SGARBI, Adrian. Aulas de
Teoria Geral do Direito In: Mestrado em teoria do Estado e Direito Constitucional - PUC, Rio de
Janeiro, 2005).
16
GAVAZZI, Giacomo apud KELSEN, Hans. A Democracia, p.3.
17
GAVAZZI, Giacomo apud KELSEN, Hans. A Democracia, p.2.
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17
Ao relativismo filosófico sobre a verdade e os valores (mais ou menos
corretamente identificados com o criticismo kantiano e com as suas derivações)
corresponde, por outro lado, a atitude democrática em seu aspecto politicamente
mais característico, ou seja, na possibilidade de rever opiniões e,
consequentemente, decisões.
18
Existem duas questões que em geral são confundidas por aqueles que
criticam o formalismo Kelseniano, quais sejam, se a democracia pode servir a um
determinado ideal e se esta pode constituir, em si mesma, um ideal absoluto.
Quem lê a Teoria Pura de forma rasa e descontextualizada, costuma inferir da
resposta negativa que Kelsen dá à segunda questão, necessariamente, uma
resposta negativa também para a primeira, o que é um erro. “Ter em conta a
validade relativa de nossas convicções e, ainda assim, defendê-las inflexivelmente
é o que distingue o homem civilizado do bárbaro.”
19
O ideal de liberdade – como qualquer ideal social – só, do ponto de vista da
ciência política,é um ideal relativo. Contudo, do ponto de vista de uma avaliação
emocional, pode ser o mais alto, o supremo ideal de um individuo, um valor que
o individuo prefere a qualquer outro em conflito com este. Posso lutar e morrer
incondicionalmente pela liberdade que a democracia é capaz de concretizar,
ainda que possa admitir que, do ponto de vista da ciência racional, meu ideal é
apenas relativo.
20
A Teoria Pura do Direito pretende ser só ciência e não política, por isso
incomoda tanto a direita como a esquerda. Não é a ciência que acusa a Teoria
Pura de formalista e sim a política. Pois, apesar de todos os ataques, esta se nega a
ser usada como instrumento da luta pelo poder. Para Kelsen, justamente por sua
crença no relativismo, não existe mérito em uma ciência que mascara o político,
conferindo ares de objetividade a interesses ideológicos.
21
Neste mesmo sentido, Humberto Mariotti ao discorrer sobre o
entendimento de Maturana, nos diz:
“(...) quando alguém se diz objetivo, na realidade está afirmando que tem acesso
a uma forma privilegiada de ver o mundo, e que esse privilégio lhe confere uma
autoridade que implica a submissão de quem supostamente não é objetivo”.
22
18
GAVAZZI, Giacomo apud KELSEN, Hans. A Democracia., pp.15/16.
19
SCHUMPETER, Joseph A. apud KELSEN, Hans. A Democracia, p.145.
20
KELSEN, Hans. A Democracia, p.144.
21
KELSEN, Hans. ¿Qué es la Teoria Pura del Derecho?, pp.41/42.
22
MARIOTTI, Humberto. As Paixões do Ego: Complexidade, Política e Solidariedade, p.75.
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18
Kelsen com sua Teoria Pura abre espaço para a terceira transformação do
espírito no Direito, pois é a partir da consciência trazida pelo leão de que a
liberdade existe, que se torna possível criar novos valores, que se torna possível
ao espírito se transformar em criança e buscar a sua santa afirmação. “O espírito
quer agora a sua vontade, o que perdeu o mundo quer alcançar o seu mundo
23
”,
pois agora que ele já conhece os valores maternos e a lei que o iguala a todos os
homens, lhe conferindo, assim, a liberdade de fazer escolhas, é chegado o
momento de lutar e morrer pelo direito de alteridade.
1.2
Metodologia
Refletir quer dizer, ao mesmo tempo: a) pesar, repesar, deixar descansar,
imaginar sob diversos aspectos o problema, a idéia; b) olhar o seu próprio olhar
olhando, refletir-se a si mesmo na reflexão. É preciso alimentar o conhecimento
com a reflexão; é preciso alimentar a reflexão com o conhecimento
Edgar Morin
Esta dissertação objetiva analisar a obra de Kelsen por um prisma
metateórico, o que se dará em duas etapas. A primeira se configura como uma
análise no âmbito do discursivo, portanto, do racional. Será uma abordagem
inserida no arcabouço epistemológico Moderno, onde pretendo associar a obra de
Kelsen a uma perspectiva não representacional de linguagem, localizando-o como
o leão que diz “Eu quero!” em oposição ao dragão que diz “Tu deves”. Para tal
empreitada, usarei como referencial teórico a visão pragmática do “segundo”
Wittgenstein em sua obra “Investigações Filosóficas”.
24
23
NIETZCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra, p.36
24
A leitura mais ordinária de Kelsen, associa sua obra à primeira fase do pensamento de
Wittgeinstein, representada pelo Tratactus e não à segunda, como pretendo fazer. Não é pertinente
a interpretação de que a Teoria Pura do Direito seja apenas lógica. Ela é mais que isso, é uma teoria
jurídica que se ocupa dos problemas lógicos apenas no que é necessário para o conhecimento do
Direito, a determinação de seu objeto e definição de seus conceitos fundamentais. Essas definições
não são função de uma lógica e sim de uma Teoria Geral do Direito, para a qual a lógica normativa
é apenas o pressuposto necessário. Por isso é equivocada a tradicional associação feita entre a
Teoria Pura de Kelsen e o Tractatus de Wittgenstein, escrito em sua primeira fase teórica, onde a
lógica predomina. Isso se dá em parte, outrossim, pela inflação à que é submetida a Teoria Pura do
Direito, em detrimento de todo o resto da obra de Kelsen e dos pressupostos que o próprio autor em
muitos textos como “ Absolutismo e relativismo na filosofia e na política”, “ O conceito de Estado
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19
Wittgenstein foi o marco teórico escolhido para o desenvolvimento da
primeira parte deste trabalho, pois além de ser um dos maiores teóricos da
filosofia contemporânea, sua obra reflete o desenvolvimento dos dois principais
eixos da Filosofia da Linguagem, tanto a Filosofia-Analítica, pautada em um
paradigma cartesiano representacional, como da Filo-Linguística, que vê a
linguagem como uma prática social e não como uma representação do real.
Apesar de seu pensamento não se prestar a ser exposto de forma resumida,
por ser de natureza intensa, fragmentária e assistemática, busquei traçar de forma
introdutória as questões centrais de suas principais obras, no que estas se fazem
relevantes para o entendimento tanto da visão metafísico-substancialista quanto da
visão pragmática do Direito.
Já a segunda parte deste trabalho, se mostra como uma aposta no futuro,
uma esperança, pois fala da terceira transformação do espírito, quando o leão se
torna criança. Essa transformação ainda está a caminho, buscamos ainda a nossa
Santa afirmação. Como nos diz Boaventura de Sousa Santos: “A configuração do
paradigma que se anuncia no horizonte só pode obter-se por via especulativa.
Uma especulação fundada nos sinais que a crise do paradigma atual emite, mas
nunca por eles determinada.”
25
Apesar de se prestar ainda a uma análise metateórica da obra de Kelsen, a
segunda parte se dá inserida em um modelo epistemológico complexo, abarcando
outras formas de apreensão do real, experiências de conhecimento não
necessárimente científicas Já temos as linhas centrais que atravessaram a
dissertação com Kelsen e Wittgeinstein. Horizontalmente, fechando assim o
tecido, a dissertação será costurada com intervenções de Castoriadis, Foucault,
Nietzche, autores da Psicologia Profunda
26
e tudo o mais que se fizer necessário,
para tentar tornar o mais claro e simples possível, apesar de complexa, a intuição
inicial que não deve ser perdida de vista e que originou essa dissertação
27
.
e a psicologia social, com especial referência à teoria de grupo de Freud”, “O dualismo
metafísico”,” A filosofia científico-crítica”, entre outros, explicitamente afirma como seus.
25
Um Discurso sobre as Ciências, p. 59.
26
“(...) denominação com a qual Freud se referia à psicanálise, mas que designa igualmente a
psicologia analítica de Jung” ( PLASTINO, Carlos Alberto O Quinto Rombo: a psicanálise, p.3)
27
“(...) Pois é preciso que a complicação da letra não faça perder de vista a simplicidade do
espírito. Ao ater-nos às doutrinas uma vez formuladas, a síntese em que parecem abarcar as
conclusões das filosofias anteriores e o conjunto dos conhecimentos adquiridos, arriscamo-nos a
não mais perceber o que há de essencialmente espontâneo no pensamento filosófico (...) Enfim,
tudo se concentra em um ponto único, do qual sentimos que poderíamos nos aproximar pouco a
pouco, embora nunca possamos atingi-lo. Neste ponto está algo de simples, de infinitamente
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20
Ao se traçar um paralelo entre a construção teórica de Kelsen, e a
Metapsicologia Freudiana, especialmente no que tange ao conceito de Pulsão, é
possível se identificar uma ética do sentido, que subjaz à Teoria Pura e que pode
ser usada para orientar o paradigma emergente na construção de uma vida
decente, parafraseando Boaventura de Sousa Santos.
Morin nos fala que “é preciso reagrupar os saberes para buscar a
compreensão do universo”. É isso que pretendo na segunda parte desta
dissertação, ao reagrupar o Direito, a Filosofia e a Psicologia Profunda, ajudar a
construir o futuro, dando um passo em direção à compreensão de nossa
necessidade de alteridade.
Kelsen foi definitivamente o cientista jurídico do método. Ao longo de sua
vida, se esforçou em concretizar um projeto que foi a elaboração da Teoria Pura
do Direito. Só que a ciência avançou, o método mudou e já sabemos que o saber
racional não é a única forma de apreensão do real.
28
(...)a credibilidade das soluções que são encontradas parece depender das
soluções por encontrar. Do mundo natural nada sei, mas sustento que o caráter
provisório do conhecimento social é necessário, em qualquer etapa da reflexão,
por conta da assimetria que existe entre a natureza fragmentária e finita do
conhecimento atualizado e a extensão insondável do que há de ser conhecido.
29
Freud no mesmo sentido em “Além do Princípio de Prazer” sabiamente
nos diz que:
Temos de ser pacientes e aguardar novos métodos e ocasiões de pesquisa.
Devemos estar prontos, também, para abandonar um caminho que estivemos
seguindo por certo tempo, se parecer que ele não leva a qualquer bom fim.
Somente os crentes, que exigem que a ciência seja um substituto para o
catecismo que abandonaram, culparão um investigador por desenvolver ou
mesmo transformar suas concepções. Podemos confortar-nos, também, pelos
lentos avanços de nosso conhecimento científico, com as palavras do poeta:
Was man nicht erfliegen kann, muβ man erhinken.
simples, de tão extraordinariamente simples que o filósofo não conseguiu jamais exprimi-lo. Esta é
a razão por que falou durante toda a sua vida. Não podia formular o que levava no espírito sem se
sentir obrigado a corrigir sua fórmula, depois a corrigir sua correção:assim, de teoria em teoria,
retificando-se quando acreditava completar-se, ele só fez, através de uma complicação e
desenvolvimentos justapostos a desenvolvimentos, fornecer com aproximação crescente a
simplicidade de sua intuição original. Toda a complexidade de sua doutrina, que se estenderia ao
infinito, é apenas a incomensurabilidade entre sua intuição simples e os meios de que dispunha
para exprimi-la.” ( BERGSON, Henry. A Intuição Filosófica., p.56.)
28
Os artistas sabiam disso a muito tempo. Os Românticos foram os precursores dessa idéia.
29
SANTOS, Wagner Guilherme, Paradoxos do Liberalismo, p. 9.
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21
Die Schrift sagt, es ist Keine Sünde zu hinken.
30
Kelsen não era um crente! Era um cientista, mais que isso, era um leão. O
tempo passou, duas transformações se deram e é possível agora ao leão, no
paradigma que emerge, se tornar uma roda que gira sobre si, um movimento, uma
santa afirmação.
No paradigma emergente, o caráter autobiográfico e auto-referenciável da ciência
é plenamente assumido. A ciência moderna legou-nos um conhecimento
funcional do mundo que alargou extraordinariamente as nossas perspectivas de
sobrevivência. Hoje já não se trata tanto de sobreviver como de saber viver. Para
isso é necessário uma outra forma de conhecimento, um conhecimento
compreensivo e íntimo que não nos separe e antes nos una pessoalmente ao que
estudamos.
31
As ciências e saberes contemporâneos se deparam com uma realidade
complexa, heterogênea, onde a apreensão do real é uma construção, um porvir. O
sentido mais próximo do termo complexo é “o que é tecido junto”
32.
E assim deve
ser construída a teia do conhecimento: tecida junta, sem nada excluir, buscando
tudo abarcar, com o conhecimento em mim, em ti, em nós
Se fizermos uma leitura pragmática da obra de Kelsen, onde não só os
valores, como a sociedade e a própria subjetividade são um constructo, fruto da
instituição imaginária da sociedade, podemos encontrar as sementes para ir além e
ver, à luz do novo paradigma, uma ética do sentido e não do significado
33
, em sua
30
“Ao que não podemos chegar voando, temos de chegar manquejando (...). O Livro diz-nos que
não é pecado claudicar” Trata-se das últimas linhas de “Die beiden Gulden”, versão feita por
Rückert de um dos Maqâmât, de al-Hariri.” ( FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer, pp.
81/82.
31
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um Discurso sobre as Ciências, p. 85
32
MORIN, Edgard apud PLASTINO, Carlos Alberto. Sentido e Complexidade, p.6.
33
Essa diferenciação é fundamental para o desenvolvimento da segunda parte desse trabalho e tem
sua raiz no reconhecimento da existência de um inconsciente originário.“ Na sua última elaboração
teórica, contudo, Freud reconheceu e defendeu a existência de percepção, sentimentos e
pensamentos inconscientes, e ainda do psiquismo corporal (unidade corpor/Id). Trata-se de uma
questão da maior importância, na medida que muda radicalmente a forma de conceber as questões
centrais do sentido e do significado. Com efeito, a ampliação das modalidades de relacionamento
com o que está em vias de ser conhecido/construído ( que não convém chamar de objeto), desatrela
o sentido do significado, permitindo valorizar as ricas experiências intersubjetivas não linguísticas.
No contexto do dualismo, o significado é considerado como uma produção exclusiva da
consciência e da linguagem, sendo o sentido confundido com ele. A critica aos dualismos e às suas
conseqüências, vinculando o sentido às experiências não mediadas pela consciência, permite
diferencia-lo do significado. Reservando esta última expressão para designar o sentido que emerge
pela ação da consciência e da linguagem, atribui ao conceito “sentido” uma abrangência que inclui
tanto o significado, quanto o resultado das experiências de apreensão no embate dos corpos e dos
afetos. A questão é fundamental e não pode ser eludida. Ela é indissociável tanto da ampliação do
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22
teoria. A primeira parte dessa dissertação nos leva ao ponto de partida para novas
investigações, que o paradigma moderno não consegue esgotar e que se darão no
desenvolvimento da segunda parte, onde ao associar a noção de liberdade e
igualdade defendida por Kelsen à teoria pulsional Freudiana, é possível se chegar
a uma ética do sentido, que não é apreensível racionalmente, mas que nem por
isso é menos real e que se mostra muito mais adequada à contemporaneidade.
A afirmação da possibilidade de apreensão de formas de ser do real e da natureza
–incluindo da nossa- todavia, na medida que permite compreender necessidades
fundamentais do nosso ser, fornece orientações éticas para a ação. Assim,
compreender, como o faz o saber psicanalítico, a dinâmica erótica como sendo
constitutiva do ser do homem, não supõe produzir qualquer modelo normativo a-
histórico – por exemplo qualquer modalidade específica de erotismo - mas
afirmar uma necessidade humana derivada da forma de ser do homem. Um
paradigma que se pense como um instrumento de compreensão e intervenção no
real não pode prescindir destas modalidades de saber. A ignorância desta
característica central de nosso ser, exacerbando o narcisismo que caracteriza a
sociedade contemporânea, constitui um erro grave e questiona as correntes de
pensamento que não se dotam dos instrumentos para pensá-la.
34
A busca de estilos de vida diversos e o pluralismo encontrado nas
sociedades atuais nos leva à necessidade de problematizar a elaboração de uma
ética contemporânea que possibilite múltiplas práticas de si ou diversas
subjetivações (pluralismo), sem a predominância de um código moral universal,
que muitas vezes pode levar a conseqüências bem negativas, como o preconceito e
a discriminação.
Com certeza haverá aqueles que ao lerem, acharão isso tudo uma grande
ilusão. Mas ilusões não são erros. E aqui cabe conceituar ilusão recorrendo mais
uma vez a Freud. O que caracteriza as ilusões é justamente o fato de elas
derivarem de desejos humanos. Há quem as considere como delírios, mas o que as
diferencia é que os delírios necessariamente estão em contradição com a
realidade. As ilusões, ao contrário, não precisam ser falsas, irrealizáveis ou estar
em contradição com a realidade. Podemos chamar uma crença em algo de ilusão
escopo da reflexão epistemológica quanto da concepção das relações homem/natureza. A
experiência psicanalítica sustentou a construção de teorias que permitem pensar essas formas de
apreensão e produção de sentido bem como a sua decisiva participação na constituição das
subjetividades. Os sentidos a que se aludem são o de ser , o de não ter realidade, o de possui-la, o
de tê-la conquistado ou perdido, o de ser amado ou rejeitado. Estes sentidos emergem no bojo de
experiências arcaicas, nas quais não é possível postular nenhuma intervenção da consciência,
sendo, portanto, necessário postular outra forma de produção/apreensão.( PLASTINO, Carlos
Alberto. O Quinto Rombo:a psicanálise, p.4)
34
PLASTINO, Carlos Alberto. O Déficit Erótico na contemporaneidade, s/n.
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23
quando uma realização de desejo se torna fator fundamental em sua motivação,
não dando tanto valor a verificação.
35
Sim, essa dissertação é uma ilusão porque ela é fruto de um desejo e de
uma crença. Crença no ser humano e em sua alteridade. Na medida em que se
recria um futuro, até que esse futuro se torne presente, ele é insuscetível de prova.
Ninguém pode ser obrigado a acreditar nele, mas assim como ele não pode ser
provado, também não pode ser refutado. É obrigação de todos aqueles que
caminham juntos nessa estrada que é a vida, tentar dar-lhe a melhor direção
possível, a de horizonte mais belo.
36
E é isso que eu busco com a segunda metade
dessa dissertação, ajudar a sedimentar as bases de um horizonte mais belo.
Entre o sábio e estéril emudecimento e a irresponsabilidade opiniática, opto pelo
primado da ação sobre o cogito e da plausibilidade sobre a certeza do ergo. No
princípio é a ação, o resto são expectativas.
37
35
FREUD, Sigmund. O Futuro de uma Ilusão, p. 49.
36
FREUD, Sigmund. O Futuro de uma Ilusão, p. 51.
37
SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Paradoxos do Liberalismo, p. 9.
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2
Parte I: O Leão diz eu quero!
2.1
Uma questão de ponto de vista
Kelsen ao propor seu método de conhecimento do Direito, o fez em
oposição a uma tradição de conhecimento metafísico/religiosa baseada na
dicotomia “aqui agora” e “além”. Esse dualismo entre experiência e
transcendência é decorrência da crença em que a cognição humana está apta a
captar apenas um reflexo distorcido do que seriam as “coisas-em-si”. Essas por
sua vez, constituintes do mundo verdadeiro e real, seriam inalcançáveis ao
homem. O mundo experimentado por nossos sentidos e nossa razão, não passaria
de aparência, de uma cópia efêmera do mundo transcendente.
O dualismo metafísico é algo bastante arraigado em nosso pensamento
comum, parecendo muitas vezes até auto-evidente. Tal fenômeno duplicativo não
só se manifesta em relação à cognição de realidade, que se ocupa de explicar os
objetos do conhecimento, como também na esfera da cognição de valores,
responsável pela justificação. É como se para que um valor empiricamente
verificado pudesse ser legitimado, ele precisasse emanar de um valor
transcendente. No Direito essa duplicidade se manifesta na Teoria do Direito
Natural, que entende ser o Direito Positivo, não livre criação de um legislador ou
juiz, mas a cópia mal feita do que seria o “Direito-em-si”.
Kelsen entende ser a duplicação metafísica contraditória e
incompreensível, pois a mesma mente que só é capaz de reprodução inadequada, é
a que constrói com seus próprios sentidos e sua razão, todo um mundo
transcendente
.1
Tanto no caso da oposição Direito Natural e Direito Positivo,
quanto na dicotomia imanência e transcendência, o arquétipo é inacessível, o que
leva “a uma contradição insolúvel entre um ideal, de certa forma, aceito e uma
realidade que não se conforma ao ideal(...)”
2.
1
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, pp. 599/663.
2
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 602.
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25
Essa forma dual de pensar tem sua semente no conhecimento primitivo. O
homem primitivo vê o mundo de forma anímica. Por se sentir impotente diante
das poderosas manifestações da natureza, tudo lhe parece como um Deus. Mesmo
as coisas criadas por suas mãos, são por ele reverenciadas como produto de forças
sobrenaturais.
O animismo, em seu sentido mais estrito, é a doutrina de almas e, no mais amplo,
a doutrina de seres espirituais em real. O termo “animismo” também foi usado
para indicar a teoria do caráter vivo daquelas coisas que nos parecem ser objetos
inanimados e as expressões “animalismo” e “hominismo” também são
empregadas em relação a isto. A palavra “animismo”, originalmente utilizada
para descrever um sistema filosófico específico, parece ter recebido de Tylor o
seu atual significado. O que conduziu à introdução desses termos foi uma
compreensão da visão da natureza e do universo altamente notável adotada pelos
povos primitivos de que temos conhecimento, seja na história passada, seja na
época atual. Eles povoam o mundo com inumeráveis seres espirituais,
benevolentes e malignos: e consideram esses espíritos e demônios como as
causas dos fenômenos naturais acreditando que não apenas os animais e os
vegetais, mas todos os objetos inanimados do mundo são animados por eles(...).
3
Essa atitude anímica, entre os primitivos, é adotada não só em relação à
ordem natural como também em relação à ordem positiva que vige socialmente,
seja ela uma emanação do curandeiro, do chefe, do sacerdote, do juiz ou de
qualquer outra autoridade. Essa não é vista como uma emanação de vontade
humana e sim como uma expressão da vontade divina.
Aqui não se chega ainda a ter uma Teoria Jurídica propriamente dualista,
pois os primitivos não experimentavam o Direito Positivo como algo em si
diferente do Direito Natural. Para eles, o Direito Positivo era diretamente divino
ou natural, assim como o “além” divino não estava acima da esfera natural mas,
ao contrário, permeava todas as coisas. Era apenas o germe do dualismo
metafísico que se manifestava. Uma outra variante dessa idéia, é quando o
governante com poder para fazer direito positivo é reverenciado como uma
entidade divina ou como descendente de uma. Tudo isso, para Kelsen, tem um
significado político óbvio
4:
Como uma filosofia natural, ela tem de explicar a natureza, como uma ideologia
do Direito e do Estado, ela tem de justificar a ordem positiva e elevar, tanto
quanto possível, a sua eficiência, criando uma obediência incondicional fundada
3
FREUD, Sigmund. Totem e Tabu, p. 82.
4
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, pp. 603/605.
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26
sobre o medo da divindade misteriosa e onipotente. Originado a partir de um
sentimento de inferioridade, o mito tem a função de reforçá-lo, pelo menos na
esfera social
5
.
Com a evolução humana e uma maior percepção da imanência, o homem
deixou de duplicar cada coisa, como acontecia entre os primitivos e passou a
duplicar a natureza como um todo. Ao perceber a efemeridade do mundo que está
sempre em mudança e ao mesmo tempo, a eterna conexão entre as coisas, o
homem remove a divindade do mundo tangível dos primitivos e a coloca em um
mundo supra-natural afastado dos seus sentidos, dando assim início efetivamente
ao dualismo metafísico, “um dualismo que consiste num além, que abrange a
verdade absoluta, e no mundo empírico que é o único ao alcance do homem que
erra, um dualismo de transcendência e experiência, de idéia e realidade.”
6
Não foi diferente a transformação que se deu em relação à ordem social. O
Direito Positivo ao ser percebido como mutável no tempo e no espaço passou a
ser visto como obra humana, e no lugar da divindade de onde emanava esse
Direito, se colocou o Direito Natural - concepção imutável e permanente de
justiça natural - que reina sobre qualquer ordenamento jurídico positivo.
O dualismo metafísico-religioso, se comparado à filosofia social e mítica
dos primitivos, já foi um passo no desenvolvimento critico do pensamento
humano, que não tinha como conviver com esse contraste irreconciliável entre
mundo sensível e mundo supra-sensível. Quanto mais se desenvolveu o conflito
dualista, mais tentativas existiram de tentar superá-lo. Essencialmente podemos
distinguir três possibilidades de superação: uma com ênfase no além, outra com
ênfase no mundo empírico e uma terceira que busca equilibrar os dois pólos
7.
O dualismo pessimista foi a primeira tentativa de superação e estava mais
voltado para a esfera transcendente. Para essa corrente, é na transcendência que se
5
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 605.
6
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 606.
7
Os tipos filosóficos de dualismo em questão são tipos ideais. “Eles foram elaborados a partir de
um ponto de vista particular, a saber, o da correspondência de uma visão do universo e de uma
filosofia de vida, da filosofia natural e da social. Isso contribui, desde o inicio, para certa
unilateralidade do esquema. Não é de surpreender que nenhum dos sistemas filosóficos concretos
da história intelectual se ajuste completamente ao nosso esquema. Assim como não existe nenhum
homem vivo que seja a personificação de um tipo de personalidade,o importa como elaborado,
nenhum pensador conhecido na história criou um sistema de filosofia natural ou social que
correspondesse, em todos os pontos, aos nossos tipos idéias. Esses sistemas históricos apenas
exibem uma tendência maior ou menor para um tipo ideal (...)” (KELSEN, Hans. Teoria Geral do
Direito e do Estado, p. 631.)
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27
encontra tudo aquilo que é original, verdadeiro, real. O mundo imanente não
passaria de aparência e ilusão experimentada por nossos sentidos. Na antiguidade
clássica essa forma de pensar foi introduzida por Platão
.8
No campo da filosofia política e jurídica, essa forma de dualismo, se
manifestou como um completo desprezo ao Direito Positivo e ao Estado vigente.
Aqui a ordem natural tinha unicamente a função de nulificar a ordem terrena. É
considerado “Direito” apenas a ordem natural que existe no “além”.
O dualismo otimista
9,
por sua vez, foi sintoma do fortalecimento na
confiança do homem em si. O mundo do “além” com seus arquétipos da verdade,
nesse momento, ao invés de negar a experiência humana, passou a explicá-la. A
realidade deixa de ser negada ao mundo da experiência que, ao contrário, passa a
ser o meio através do qual é possível se alcançar a verdade. Na Antiguidade
clássica isso se manifesta com o surgimento de uma orientação epistemológica
chamada Intelectualismo, que teve como seu representante maior Aristóteles
.10
8
Foi em Platão que se desenvolveu a mais antiga forma de racionalismo. Racionalismo é o ponto
de vista epistemológico que coloca no pensamento racional a principal fonte do conhecimento
humano. Para que um conhecimento seja tido como autêntico, ele tem que ser julgado pela razão
como tendo necessidade lógica e validade universal. São juízos que prescindem da experiência. A
interpretação racionalista do conhecimento teve como modelo o conhecimento matemático, que é
predominantemente dedutivo e conceitual. A geometria é um exemplo de como o pensamento
opera com completa independência da experiência. Platão, como primeiro representante do
racionalismo, estava convencido de que todo o saber autêntico, correspondente ao mundo das
idéias, se encaixava nas premissas de universalidade e necessidade lógica. Para ele, a experiência
era efêmera, e estava em constante mudança. Por isso mesmo, ela seria incapaz de nos transmitir o
verdadeiro saber – epistéme. O que os sentidos são capazes de nos dar não iria além de mera
opinião – dóxa. Se para Platão não podemos ter a esperança de alcançar conhecimento no mundo
sensível, esse tem que derivar de um mundo supra-sensível no qual a consciência cognoscente
retira seus conhecimentos. Ele chamava a esse mundo supra-sensível de mundo das idéias. Para
essa concepção o mundo não é apenas uma ordem lógica, mas também uma ordem metafísica e
tanto a experiência quanto a consciência cognoscente se relacionam com o mundo supra-sensível.
Para Platão o conhecimento se daria por rememoração. A alma teria tido acesso a tais entes ideais
de forma pré-terrena e agora, se recordaria deles estimulada pela experiência sensível. O
racionalismo por ele inaugurado na Antiguidade é chamado de Racionalismo Transcendente.
(HESSEN, Johannes. Teoria do Conhecimento, pp. 48/50).
9
O contraste entre otimismo e pessimismo é usado por Kelsen para caracterizar ânimos espirituais
básicos em uma explicação de abordagem psicológica para os dois tipos diferentes de dualismo
metafísico. Não obstante, ele ressalva que: “Ainda assim, este contraste, especialmente caso ele
deva servir a uma qualificação psicológica e de caracteres, não deve ser tomado como absoluto. O
homem nunca pode ser perfeita e inteiramente otimista ou pessimista. Qualquer uma das atitudes
acabaria por levá-lo para além das fronteiras psicológicas dentro das quais os tipos psicológicos
tem qualquer significado; porque, além delas, podemos falar apenas em fenômenos patológicos.
Mesmo os tipos básicos que foram aqui usados apenas demonstram uma preponderância de um
dos elementos contrastantes sobre o outro, e nenhum está inteiramente excluído (...)” (KELSEN,
Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. pp. 608/609 ).
10
Essa corrente se propôs a ser uma mediação entre o Racionalismo e o Empirismo, ao considerar
que tanto a experiência quanto o pensamento tem participação na formação do conhecimento. A
partir de um pressuposto metafísico, Aristóteles procurou dar solução ao conhecimento, dizendo
que na imagem sensível estava contida a idéia ou essência universal das coisas. Foi um
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Na luta pelo saber, o homem não se concebe como uma criança eternamente
cega, tateando no escuro. Este otimismo é particularmente pronunciado na
epistemologia, na medida em que desenvolve a possibilidade, senão de alcançá-
la, então, pelo menos, de chegar perto da verdade com o auxílio da ciência
humana. O dualismo otimista não apenas considera este mundo “real” como
também valioso; inclina-se mesmo a ver nele o melhor, ou, de qualquer modo, o
melhor possível de todos os mundos empíricos.
11
No âmbito filosófico–político e jurídico, esse dualismo otimista trouxe
prestígio ao Direito Positivo. Ao contrário da primeira hipótese, onde a ordem
natural nulificava a ordem positiva, aqui a ordem positiva é considerada como um
sistema de normas de “dever ser” válidas, reconhecidas como um artifício humano
assim como o Estado, cabendo à ordem natural não validar, mas justificar a
existência.
O Direito Positivo passou a ser considerado, senão perfeito, ao menos
como a maior aproximação possível do Direito Natural. Essa perspectiva otimista,
tende a legitimar como justo todo o Direito Positivo, por ser aquilo que é
humanamente possível, e a tornar absoluta sua pretensão de validade,
considerando-o como uma emanação do Direito Divino-Natural. O caráter político
desta filosofia jurídica é claramente conservador e corresponde à mesma
tendência da filosofia da natureza que fundamenta a realidade empírica sobre
idéias transcendentes, de modo a alcançar a confirmação de sua verdadeira
condição de realidade, e não a sua negação
.12
Kelsen diz que não devemos subestimar a motivação política por trás
desse princípio conservador que defende o Direito Positivo e o Estado, pois
mesmo com o progresso das ciências naturais, as idéias transcendentais da
filosofia natural insistem em se manter persistentemente.
Esse princípio conservador, que defende o Direito positivo e o Estado tal como
são, e que até mesmo fortalece a sua validade e eficácia, é compreensível,
portanto, mesmo sem uma motivação política. Não devemos, porém subestimar a
significação dessa motivação, isto é, do interesse enfático dos que, direta ou
indiretamente, governam o Estado, pela existência e pela aceitação mais ampla
possível de tal filosofia jurídica e política. A ligação entre tal filosofia jurídica de
deslocamento do mundo platônico das idéias para a realidade empírica, o que deu novo valor à
experiência. (HESSEN, Johannes. Teoria do Conhecimento, pp. 59/61)
11
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. p. 611.
12
Essa perspectiva corresponde ao que Bobbio chama de Positivismo Jurídico enquanto ideologia
do Direito. Para maior aprofundamento do tema veja: BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico,
p.223/233.
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Direito natural e a filosofia natural idealista, isto é, religioso-metafísica com
tendências otimistas, faz com que compreendamos por que os grupos
governamentais invariavelmente favorecem uma concepção “idealista” do
mundo. É um estranho fato a filosofia natural metafísico-dualista poder se manter
com persistência impressionante a despeito de seu crescente choque com o rápido
progresso das ciências naturais
13.
Este fenômeno só pode ser adequadamente
explicado se forem levados em conta o interesse político característico dos
grupos governantes por uma filosofia “idealista”.
14
O terceiro tipo de dualismo metafísico possível é o que se caracteriza por
tentar ser um meio termo entre o pessimismo e o otimismo. Embora se aproxime
mais do otimismo dualista, esse terceiro tipo tem menos confiança na capacidade
humana de captar a verdade na experiência, sendo impregnado, portanto, de um
certo ceticismo.
15
Para essa corrente, o Direito Positivo e o Estado têm grandes
deficiências, mas é preciso suportá-los, agindo de acordo com os comandos e
normas válidas, mesmo que essas pareçam injustas. Surge a idéia de um Direito
Natural relativo, ajustável às circunstâncias particulares, abaixo do Direito Natural
primário Essa doutrina, ao invés de se preocupar com uma solução inviável para
um problema impossível, procura uma forma decente de evitá-lo
16
A filosofia cientifico-crítica, por sua vez, é o retrato de uma filosofia que
rejeita o dualismo metafísico ou qualquer objeto que se coloque além da
experiência. Ela tem seu paralelo em uma doutrina jurídico-política emancipada
de toda a Teoria do Direito Natural, sendo essa a perspectiva epistemológica
adotada por Kelsen.
13
Esse comentário de Kelsen à respeito do rápido progresso das ciências naturais, como
poderemos ver no trecho que se segue da fala de Boaventura de Sousa Santos, é um comentário
tipicamente Moderno. “O modelo de racionalidade que preside à ciência moderna constitui-se a
partir da revolução científica do século XVI e foi desenvolvido nos séculos seguintes basicamente
no domínio das ciências naturais. Ainda que com alguns prenúncios no século XVIII, é só no
século XIX que este modelo de racionalidade se estende às ciências sociais emergentes. A partir de
então pode falar-se de um modelo global de racionalidade científica que admite variedade interna
mas que se distingue e defende, por via de fronteiras ostensivamente policiadas, de duas formas de
conhecimento não científico (e, portanto, irracional) potencialmente perturbadoras e intrusas: o
senso comum e as chamadas humanidades ou estudos humanísticos (...) Sendo um modelo global,
a nova racionalidade científica é também um modelo totalitário, na medida em que nega o caráter
racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios
epistemológicos e pelas regras metodológicas. É esta a sua característica fundamental e a que
melhor simboliza a ruptura do novo paradigma científico com os que o precedem” (Um Discurso
sobre as Ciências, pp. 20/21)
14
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. p. 613.
15
Essa corrente se aproxima mais do sistema de conhecimento estóico. (KELSEN, Hans. Teoria
Geral do Direito e do Estado, p. 634.)
16
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, pp. 614/619.
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30
O dualismo metafísico-religioso de céu e terra, Deus e mundo, é superado
quando o homem, especialmente através do avanço da ciência empírica, encontra
a coragem para rejeitar o domínio do transcendente, que está além da sua
experiência, por ser uma hipótese incognoscível, incontrolável e, portanto,
cientificamente inútil. A confiança no vigor dos seus próprios sentidos e da sua
razão tornou-se agora forte o suficiente para restringir a sua visão científica do
mundo à realidade empírica.
17
Tal perspectiva não ignora a possibilidade de que exista fundamento na
tendência metafísica, apenas não especula sobre essas coisas por considerar essa
uma atitude vã. Não há como se negar o enigma que é o universo, nem como se
achar que isso será solucionável cientificamente. Porém o que diferencia uma
atitude cientifica de uma atitude metafísica é justamente a consciência que a
primeira tem de sua capacidade e de suas limitações.
(...) adepto desta perspectiva filosófica não sabe se as coisas deste mundo e as
suas relações são “realmente” como os seus sentidos e a sua razão os
representam, e, no entanto, ele recusa qualquer especulação sobre as idéias ou
arquétipos dessas coisas, das “coisas em si”, como sendo infrutíferas e vãs. Não
obstante, ele mantém este conceito da “coisa em si” como um símbolo, por assim
dizer, dos limites da experiência. Ele se considera incapaz de perder-se no além,
e portanto, sem o direito de fazê-lo. A “coisa em si” é, para ele, não a expressão
de uma realidade transcendente, mas o impasse no processo infinito da
experiência. (...)
18
O mais importante aqui não é só a constatação da importância da
experiência como única fonte possível de conhecimento, mas a constatação de que
o real apreensível pela cognição racional não é da ordem do absoluto. Isso torna
Kelsen um autor apto a ser lido como um pragmático e não como um positivista
racionalista, inserido dentro do dualismo cartesiano sujeito/objeto.
19
17
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, p.619.
18
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, p.620.
19
Sobre o dualismo sujeito/objeto, Humberto Mariotti nos diz: “Como nos julgamos capazes de ser
objetivos, o mundo é para nós um objeto. Imaginamos que estamos separados dele e o observamos
como críticos e avaliadores. E vamos mais longe: por meio do ego, achamos que somos
observadores afastados até de nós mesmos. Nosso ego nos observa, avalia as nossas outras
dimensões. Nessa ordem de idéias, para que possamos exercer essa suposta objetividade é
necessário que haja uma fronteira, uma divisão entre o ego e o mundo, e também entre o ego e o
restante de nossa totalidade. Tornamo-nos então divididos. E se assim ficarmos, o mesmo
acontecerá ao nosso conhecimento, que por isso resultará limitado. Eis o que conseguimos, com
nossa pretensa objetividade: uma visão de mundo dividida e limitada. É a partir dela que nos
imaginamos autorizados a julgar e condenar a “não-objetividade” e a “intuitividade” de quem não
concorda conosco. A partir de uma visão dividida e limitada, pretendemos chegar à verdade e
mostrá-la aos outros – uma verdade que julgamos ser a mesma para todos.” ( As Paixões do Ego,
p. 75.)
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31
Kelsen rejeita qualquer especulação Jusnaturalista, no sentido de se
encontrar um “Direito-em-si”, seja ele proveniente de alguma divindade ou de
uma hipotética razão pura, pois entende o Direito como um constructo humano,
não havendo necessidade nenhuma de uma ordem transcendente que o justifique
ou lhe reconheça valor absoluto
20.
O que também é diferente de considerar o
Direito como um complexo de fatos empíricos e o Estado como um agregado de
relações concretas de poder. Pois quando se entende que o real é determinado pela
nossa experiência e quando se avança no estudo da cognição, se percebe que não
existem fatos concretos, objetivos ou determinados.
Kelsen não tem nenhuma pretensão de validade absoluta para o Direito,
seja ela racional ou metafísica, só sendo possível para ele se assegurar uma
verdade formal dentro de parâmetros instituídos de forma hipotético-relativa.
O sistema do positivismo jurídico rejeita a tentativa de deduzir, a partir da
natureza ou da razão, normas substanciais que, estando além do Direito positivo,
podem lhe servir de modelo, uma tentativa eternamente bem-sucedida apenas de
modo aparente e que termina em fórmulas que apenas aparentam ter um
conteúdo. Ao contrário, ele examina deliberadamente os pressupostos hipotéticos
de todo o Direito que é positivo e, em substância, infinitamente variável, isto é,
as suas condições meramentes “formais”.
21
Na ciência moderna o homem havia sido consagrado como sujeito
epistêmico, mas assim como Deus, foi expulso por esse mesmo modelo científico,
enquanto sujeito empírico. A construção sujeito/objeto tão cara à epistemologia
moderna foi construída visando a não interferência dos valores humanos e
religiosos no conhecimento, até então tido como objetivo, factual e rigoroso.
22
Contudo, a física quântica ao mostrar que o observador participa
ativamente na constituição do objeto observado, tornou evidente que o
conhecimento não se assenta sobre a pseudo-neutralidade do observador,
garantida até então pelo abismo que se mantinha entre objeto e sujeito do
conhecimento na Modernidade.
20
Norberto Bobbio nos diz que no pensamento clássico “a contraposição entre ‘positivismo’ e
‘natural’ é feita relativamente à natureza não do direito, mas da linguagem: esta traz a si o
problema (que já encontramos nas disputas entre Sócrates e os sofistas) da distinção entre aquilo
que é por natureza (physis) e aquilo que é por convenção ou posto pelos homens (thésis). O
problema que se põe pela linguagem, isto é, se algo é “natural” ou “convencional”, põe-se
analogamente também para o direito. (O Positivismo Jurídico, p. 15)
21
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, p.623.
22
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um Discurso sobre as Ciências, p. 80.
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32
Mas mesmo antes das descobertas da física quântica, Kant já nos falava da
participação subjetiva na construção do conhecimento. E foi com base em Kant
que Kelsen desenvolveu sua Teoria.
23
A própria cognição cria os seus objetos a partir de materiais fornecidos pelos
sentidos de acordo com as suas leis imanentes. É esta conformidade às leis que
garante a validade objetiva dos resultados do processo de cognição. É fato que os
julgamentos ontológicos não se pretendem ser verdade absoluta: porque eles não
mais se sustentam sobre a sua relação com o absoluto transcendente. A verdade
afirmada dentro do sistema nunca é mais que verdade relativa, e ela surge,
portanto, em comparação com a verdade metafísico-absoluta, como uma verdade
meramente formal. Pode parecer que uma cognição que produz os seus próprios
objetos só pode reivindicar validade subjetiva para os seus julgamentos, de fato,
se deixarmos de fundamentar a verdade num domínio transcedente, acima de
toda cognição humana, corremos o risco de cair no poço sem fundo do
subjetivismo, num solipsismo sem limites. O nosso tipo evita este perigo pela
ênfase constante sobre um saber que cria os seus objetos (grifo meu) em
conformidade com leis e que considera a demonstração desta conformidade como
uma das suas principais tarefas. Em lugar de especulação metafísica, temos uma
determinação das leis, isto é, das condições objetivas sob as quais ocorre o
processo de cognição. O homem pode penetrar até este ponto e não mais na sua
luta para além da esfera da ciência empírica material.
24
Se por um lado Kant nos fez cientes dos limites intransponíveis do
conhecimento racional, ao deixar claro que não é possível se acessar a coisa-em-
si, mas apenas o fenômeno, que é subjetivamente produzido. Por outro lado, isso
nos abriu um leque imenso de possibilidades. Pois, as nossas estruturas mentais
que limitam o conhecimento, nos permitindo apenas conhecer os fenômenos,
23
Na primeira fase da produção teórica de Kelsen, a principal fonte filosófica usada foi a Teoria
do Conhecimento de Immanuel Kant, notabilizada pela inversão da centralidade gnosiológica do
objeto para o sujeito cognoscente. Porém, não é todo Kant que interessa a Kelsen. Ele se utiliza
apenas da metodologia da Crítica da Razão Pura. “Trocando a causalidade pela imputabilidade,
como critério metodológico delimitador, define uma Ciência do Direito que repousa sobre uma
categoria lógico-transcendental: a norma fundamental hipotética (...)”. (FAZZIO JÚNIOR, Waldo.
K de Kant ou de Kelsen?). O sistema filosófico de Kant difere do sistema crítico de Kelsen, pois
aquele apesar de ter se insurgido contra a metafísica não o fez até a conclusão. “O papel que a
‘coisa em si’ desempenha no seu sistema revela muito de transcendência metafísica. Por esse
motivo, não encontramos nele uma confissão franca e intransigente de relativismo, a conseqüência
inevitável de qualquer eliminação real da metafísica. Uma emanação completa da metafísica era
provavelmente impossível para uma personalidade ainda profundamente enraizada no cristianismo
como a de Kant. Isso se torna mais evidente na sua filosofia prática. É exatamente aqui, onde
repousa a ênfase da doutrina cristã, que o dualismo metafísico desta invadiu completamente o seu
sistema, o mesmo dualismo que Kant combateu com tanta persistência na sua filosofia teórica.
Neste ponto, Kant abandonou o seu método de lógica transcendental. Esta contradição dentro do
sistema do idealismo crítico já foi observada com freqüência suficiente. Assim acontece que Kant,
cuja filosofia de lógica transcendental estava proeminentemente destinada a fornecer o fundamento
para uma doutrina jurídica e política positivista, permaneceu, como filósofo jurídico, na rotina da
doutrina do Direito Natural.(...)” ( KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado,
pp.635/636.)
24
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 621.
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33
também nos levam ao saber que tantas são as possibilidades de conhecimento
quantos sujeitos existem para conhecer. Por isso não há que se falar em um
conteúdo material imutável para o Direito positivo.
O método racional e científico da Modernidade nos conduziu à percepção
de que uma fundamentação absoluta do conhecimento seria impossível. Isso nos
obriga a colocar de novo o homem-medida na base do saber. Só que agora, não
mais o homem-métron dos gregos, mas sim um homem fragmentado, com seu
narcisismo limitado e temporalmente inserido. A verdade, deixa de ser absoluta,
para se tornar construção do tempo e dos homens.
25
Kelsen teve como grande objetivo propor um método para a Teoria
Jurídica. Isso o inseriu no contexto específico dos debates metodológicos oriundos
do final do séc. XIX e que repercutiram no inicio do séc. XX. Na Modernidade
apenas o apreensível pela razão era conhecimento, por isso os limites do que
podia ser conhecido eram tão estreitos e Kelsen, como um Moderno que era, tinha
na consciência
26
e na razão os seus limites.
25
DOMINGUES, Ivan. O Grau Zero do Conhecimento: O problema da fundamentação das
ciências humanas, p.51.
26
A tese de Kant a respeito da inacessibilidade da “coisa-em-si”, que serviu de referencial a
Kelsen, se restringe à perspectiva da percepção consciente. Na segunda parte da dissertação,
associarei a teoria Kelseniana ao arcabouço psicanalítico e é importante desde já esclarecer, que
Freud não discorda de Kant, apenas se situa além dele, pois considera não apenas a consciência,
mas também o inconsciente, como uma modalidade psíquica de apreensão do real. (PLASTINO,
Carlos Alberto. Sentido e Complexidade, p;23) Sobre o tema, Freud emO Inconsciente” nos diz
que é necessária e legítima a suposição a respeito do inconsciente e que dispomos de várias provas
de sua existência, além de tal hipótese ser como uma extensão do que foi teorizado por Kant a
respeito da cognição.“Ela é necessária porque os dados da consciência apresentam um número
muito grande de lacunas (...) Todos esses atos conscientes permanecerão desligados e
ininteligíveis, se insistirmos em sustentar que todo ato mental que ocorre conosco,
necessariamente deve também ser experimentado por nós através da consciência; por outro lado,
esses atos se enquadrarão numa ligação demonstrável, se interpolarmos entre eles os atos
inconscientes sobre os quais estamos conjeturando. Uma apreeno maior do significado das
coisas constitui motivo perfeitamente justificável para ir além dos limites da experiência direta.
Quando, ademais, disso resultar que a suposição da existência de um inconsciente nos possibilita a
construção de uma norma bem-sucedida, através da qual podemos exercer uma influência efetiva
sobre o curso dos processos conscientes, esse sucesso nos terá fornecido uma prova indiscutível
da existência daquilo que havíamos suposto.(...) a equivalência convencional entre o psíquico e o
consciente é totalmente inadequada. Ela rompe as continuidades psíquicas, mergulha-nos nas
dificuldades insolúveis do paralelismo psicofísico, está sujeita à censura de, sem um motivo óbvio,
superestimar o papel desempenhado pela consciência, forçando-nos prematuramente a abandonar o
campo da pesquisa psicológica sem ser capaz de nos oferecer qualquer compensação de outros
campos.” Freud diz ainda que: “ Na psicanálise, não temos outra opção senão afirmar que os
processos mentais são inconscientes em si mesmos, e assemelhar a percepção deles por meio da
consciência à percepção do mundo externo por meio dos órgãos sensoriais. Podemos mesmo
esperar que novos conhecimentos sejam adquiridos a partir dessa comparação. A suposição
psicanalítica a respeito da atividade mental inconsciente nos aparece, por um lado, como uma nova
expansão do animismo primitivo, que nos fez ver cópias de nossa própria consciência em tudo o
que nos cerca e, por outro, como uma extensão das correções efetuadas por Kant em nossos
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Como já dito, o que diferencia uma atitude científico-crítica de uma
atitude metafísica é a consciência que a primeira tem de seus limites. O
positivismo crítico Kelseniano tem consciência dos seus pressupostos e limitações
e por isso muitas vezes foi criticado. Se sua obra serviu tanto ao nazismo, quanto
ao fascismo, ao franquismo, à social-democracia ou ainda à democracia liberal,
foi por se tratar de uma Teoria aberta e receptiva a qualquer conteúdo suscetível
de ancoragem estatal.
A Teoria Pura do Direito é frequentemente julgada pejorativamente por
buscar a despolitização, mas isso se dá por um erro de compreensão, pois a
despolitização na Teoria Pura do Direito se refere à ciência do Direito e não a seu
objeto como já destacado. Um Direito Puro só poderia ser pensado em termos de
justiça e essa não é objeto da ciência do Direito.
A pureza do seu conhecimento, no sentido de indiferença política, é o seu
objetivo característico. Isso significa que ele aceita a ordem jurídica conhecida
sem avaliá-la como tal, e que se esforça para ser o menos tendencioso na
apresentação e na interpretação do material jurídico. Ele, sobretudo, se recusa a
apoiar quaisquer interesses políticos sobre o pretexto de interpretar o Direito
positivo ou de fornecer a sua necessária correção através de uma norma de
Direito natural, fingindo que tal norma é Direito positivo, quando, na realidade,
ela está em conflito com ele.
27
A ciência do Direito descreve o Direito real, não o valora ou justifica
emocionalmente. Todo direito positivo pode ser tido como justo de um ponto de
vista político e injusto de outro ponto de vista também político. A justiça, se é que
existe enquanto valor absoluto, está além do conhecimento cientifico racional.
A Teoria Pura do Direito se opõe às Teorias do Direito Natural, pois estas
são essencialmente político-ideológicas e não científicas, não buscam conhecer o
direito válido e sim justificá-lo. O problema para Kelsen não está em elas terem
um caráter político, até porque Kelsen também foi um autor político, mas sim em
tais teorias não se assumirem como políticas e buscarem fundamentos científicos
conceitos sobre percepção externa. Assim como Kant nos advertiu para não desprezarmos o fato
de que as nossas percepções estão subjetivamente condicionadas, não devendo ser consideradas
como idênticas ao que, embora incognoscível, é percebido, assim também a psicanálise nos
adverte para não estabelecermos uma equivalência entre as percepções adquiridas por meio da
consciência e os processos mentais inconscientes que constituem seu objeto. Assim como o físico,
o psíquico, na realidade, não é necessariamente o que nos parece ser. Teremos satisfação em saber,
contudo, que a correção da percepção interna não oferecerá dificuldades tão grandes como a
correção da percepção externa – que os objetos internos são menos incognoscíveis do que o mundo
externo. (pp. 172/176).
27
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, p.626.
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35
para suas asserções de cunho ideológico. Para Kelsen, o Direito Natural, com seu
sincretismo metodológico, só pode responder a interesses subjetivos, sejam eles
de grandes ou pequenos grupos, que buscam se disfarçar com a autoridade da
ciência, ou seja, do conhecimento objetivo.
28
A pureza de seu conhecimento, no sentido de indiferença política, nada
mais é do que uma tentativa honesta de produzir epistemologia jurídica e de
investigar analiticamente a juridicidade, independente de suas crenças pessoais. A
Teoria Pura do Direito é um marco científico importantíssimo para a doutrina
jurídica, pois até então esta vinha atrelada a algemas morais, que são importantes
para entender as causas que levam a escolha do conteúdo material das normas e
sua origem, mas fogem do âmbito da cognição jurídica, na sua qualidade de
dever-ser.
29
Além do que, tais algemas morais, que hoje sabemos são uma
construção social, eram encaradas como o grande dragão que diz “Tu deves” e
assim aprisiona o espírito em sua forma de camelo, única capaz de carregar o peso
de todos os valores antes construídos.
O mundo do ser está necessariamente vinculado a uma luta por poder. Se
por vezes a ordem jurídica foi usada como instrumento de dominação, não foi por
uma invalidade jurídica, mas porque por trás de qualquer ordem jurídica com grau
necessário de efetividade para se tornar positiva, existe uma solução política entre
grupos de interesses conflitantes que determina o seu conteúdo social.
30
Kelsen também foi um autor político, e sua teoria política, assim como sua
teoria jurídica, foi muito influenciada por suas crenças epistemológicas. Aqui
justamente é onde reside o ponto central para entendermos como é leviano o
julgamento pejorativo a que muitas vezes é submetida a obra jurídica de Kelsen
por buscar a despolitização. Para o autor em tela, a epistemologia apresenta uma
28
KELSEN, Hans. Qué es la Teoria Pura del Derecho?, pp.32/35.
29
FAZZIO JÚNIOR, Waldo. K de Kant ou de Kelsen? ? Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 849, 30
out. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7479>. Acesso em: 04
dez. 2005.
30
“Esta luta por poder apresenta-se invariavelmente como uma luta por ‘justiça’; todos os grupos
em luta usam a ideologia do ‘Direito Natural’. Eles nunca apresentam os interesses que procuram
concretizar como sendo meros interesses de grupos, mas como sendo o interesse ‘verdadeiro’,
‘comum’, ‘geral’. O resultado dessa luta determina o conteúdo temporário da ordem jurídica. Esta
é, tão pouco quanto as suas partes componentes, a expressão do interesse geral, de um ‘interesse’
superior do ‘Estado’, acima dos interesses de grupo e além dos partidos políticos. Ademais, este
conceito do ‘interesse do estado’ dissimula a idéia de um direito natural como justificativa
absoluta da ordem jurídica positiva personificada como Estado”. (KELSEN, Hans. Teoria Geral
do Direito e do Estado. p. 627).
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perfeita correspondência com a teoria política.
31
A oposição entre Absolutismo e
Relativismo filosófico que se apresenta na primeira, levaria a uma correspondente
oposição entre autocracia e democracia, os representantes respectivamente do
absolutismo e do relativismo no âmbito político.
Quem considera inacessíveis ao conhecimento humano a verdade absoluta e os
valores absolutos não deve considerar possível apenas a própria opinião, mas
também a opinião alheia. Por isso, o relativismo é a concepção do mundo suposta
pela idéia democrática. A democracia julga da mesma maneira a vontade política
de cada um, assim como respeita igualmente cada credo político, cada opinião
política cuja expressão, alias, é a vontade política. Por isso a democracia dá a
cada convicção política a mesma possibilidade de exprimir-se e de buscar
conquistar o animo dos homens através da livre concorrência. (....)
32
Não é difícil perceber esse paralelo estabelecido por Kelsen quando nos
damos conta que o problema central na Teoria do Conhecimento é a relação entre
sujeito e objeto de conhecimento e não muito diferentemente, a discussão política
por sua vez, se desenvolve em torno da relação sujeito e objeto de dominação.
33
Tanto em uma como em outra, a problemática essencial reside em saber qual o
fator determinante nessa relação, se é o primeiro ou o segundo
34
31
“Desde que existe a filosofia, existe também a tentativa de relacioná-la com a política; podemos
dizer que essa tentativa logrou êxito na medida em que, hoje, a ligação entre a teoria política e
aquela parte da filosofia que chamamos ética é reconhecida como um truísmo. Contudo, parece
estranho supor - e este ensaio busca exatamente verificar esta suposição- que haja um paralelismo
externo, e talvez até uma relação interna, entre a política e outros ramos da filosofia, como a
epistemologia, isto é, a teoria do conhecimento, e a teoria dos valores.É justamente no âmbito
dessas duas teorias que reside o antagonismo entre o absolutismo e o relativismo filosófico; e esse
antagonismo parece ser em muitos aspectos análogo a oposição fundamental entre autocracia e a
democracia, que representam respectivamente o absolutismo e o relativismo no domínio da
política”. (KELSEN, Hans. A Democracia, p. 347.)
32
KELSEN, Hans. A Democracia, p. 105.
33
KELSEN, Hans. A Democracia, p.162.
34
São seis as possibilidades que se estabelecem, dependendo de onde se direciona o foco da
atenção: duas pré-metafisicas, duas ontológicas e duas teológicas. A solução pré-metafísica,
quando favorável ao objeto é chamada de Objetivismo e quando favorável ao sujeito,
Subjetivismo. Para o Objetivismo, o objeto, que é algo pronto, em si mesmo determinado, é o que
determina o sujeito cognoscente. Esse de certa forma incorpora as determinações do objeto.
Platão foi o primeiro a representar essa corrente, que posteriormente veio a ser seguida por
Husserl. É importante ressaltar, que as semelhanças entre as doutrinas de Platão e Hurssel se
referem apenas ao seu pensamento fundamental, qual seja, que o reino objetivo das idéias ou
essencialidades é a base sobre a qual se assenta todo o conhecimento. Porém, em seu
desenvolvimento, a doutrina de Hurssel permanece no reino das essencialidades ideais, enquanto
Platão avança no sentido de atribuir-lhes realidades metafísicas. O Subjetivismo, ao contrário,
transfere o conhecimento do objeto para o sujeito, mas não um sujeito qualquer, e sim um sujeito
transcendente. Agostinho foi quem introduziu essa mudança ao transferir o mundo das idéias de
Platão para o espírito divino. As essencialidades existentes por si, passaram a ser conteúdos da
razão divina. É desse ser supremo que a consciência cognoscente recebe seus conteúdos e não
mais dos objetos. Na filosofia moderna, o subjetivismo é resgatado pelos Neokantistas. Se o
caráter ontológico for incluído na questão, a discussão se instala entre Idealistas, que são aqueles
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37
Uma vez que, como aqui apontado, o centro da política e das teorias do
conhecimento e do valor é a relação entre sujeito e objeto, a natureza do sujeito
politizante e filosofante, a disposição original deste deve exercer uma influência
decisiva sobre a formação das concepções a respeito de sua relação com o objeto
de dominação, bem como com o de conhecimento e avaliação.
35
Como já mencionado, a cognição tem papel ativo na perspectiva
kelseniana e é nela que Kelsen acredita estar a raiz comum entre convicção
filosófica e crença política. É através da mentalidade do sujeito, de sua forma de
experimentar a si e ao outro enquanto objeto, que provém tais posições
ideológicas. Kelsen remete em última instância às peculiaridades da mente
humana a resposta para o intransponível abismo criado pelo antagonismo entre
esses dois sistemas políticos e filosóficos.
Somente reconhecendo que a formação dos sistemas políticos e filosóficos é
determinada, em última instância, por peculiaridades da mente humana podemos
explicar por que o antagonismo entre esses sistemas é de tal modo intransponível,
por que a compreensão mútua é tão difícil, quando não impossível, e por que
existem paixões tão inflamadas envolvidas no conflito, mesmo que este se dê
apenas na esfera intelectual, enquanto mera divergência de opiniões, não se
configurando ainda como um confronto na luta pelo poder
36
Ele não está sozinho em sua opinião. Jung, na primeira parte de seu livro
Tipos Psicológicos, despende bastante tempo em tentar mostrar que a maior parte
dos conflitos e controvérsias religiosas, científicas, culturais, epistemológicas e
ontológicas nada mais são que reflexos do antagonismo existente entre os tipos
psicológicos
37
. Entender, portanto, a descrição de certas estruturas e funções da
psique, é básico para poder compreender o homem como indivíduo e como
que admitem que todos os objetos possuem um ser ideal, em forma de pensamento, e os Realistas,
que por sua vez, afirmam existir além dos objetos ideais, os objetos reais, independentes do
pensamento. No Realismo são muitas as variantes possíveis, mas elas todas tem como origem
tanto histórica quanto psicológica o Realismo ingênuo. Esse é anterior a qualquer reflexão
epistemológica, pois não distingue a percepção, que é um conteúdo da consciência, do objeto. Para
os Realistas, as coisas são exatamente como as percebemos. Por fim, existe a possibilidade de se
solucionar teologicamente o problema da relação sujeito-objeto, retrocedendo ao absoluto para
determinar as relações entre ser e pensamento. As perspectivas aqui possíveis são a monista-
panteísta ou a dualista-teísta. (HESSEN, Johannes. Teoria do Conhecimento, pp.3/16)
35
KELSEN, Hans. A Democracia, p. 162.
36
KELSEN, Hans. A Democracia, p. 162.
37
Jung delineia várias oposições (História Antiga e Medieval, Platão e Aristóteles, Nominalismo e
o Realismo, Apolíneo e Dionisíaco, dentre outras ), para demonstrar que esses pontos de vista nada
mais são do que reflexo de uma atitude extrovertida ou introvertida diante da vida. (JUNG, Carl
Gustav. Tipos Psicológicos, p.23).
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38
membro de uma sociedade, já que tais funções têm papel decisivo nas relações
entre homens e entre estes e o mundo
.38
Mas o ideal e o propósito da ciência não consistem numa descrição dos fatos, o
mais exatamente possível – a ciência não pode concorrer com os registros
cinematográficos e fonográficos – e só cumprirá seu fim e seu intento
estabelecendo a lei, que não é outra coisa senão a expressão abreviada de
múltiplos processos apreendidos, não obstante, num certo sentido de unidade.
Esse intuito é alcançado através de uma concepção sobre o pura e simplesmente
experimentável e, não obstante, sua validade universal e comprovada será sempre
um produto do signo psicológico subjetivo do investigador. No estabelecimento
de teorias e conceitos científicos há muito de continuidade pessoal. Há também
uma equação psicológica pessoal, não só uma equação psicofísica.
39
Nada mais razoável, portanto, do que o credo político de um sujeito estar
coordenado com sua visão de mundo, sua forma de se relacionar com o próximo e
a ordem dessas relações, assim como sua relação com o mundo. Contudo, tal
associação evidentemente só se dá na esfera da experiência e não da razão pura, o
que nos leva à conclusão de que não se pode esperar uma subsunção exata entre
visão política e sistema filosófico, pois a mente humana não é completamente
dominada pela razão, não é sempre lógica.
40
Mas, exatamente pelo fato de ser na alma do ser humano empírico e não em uma
esfera de razão pura que se originam a política e a filosofia, não devemos esperar
que uma visão política definida esteja sempre, e em toda a parte, associada ao
sistema filosófico que por lógica lhe corresponde. Ao longo da história das
teorias políticas e filosóficas, a ligação entre ambas pode ser demonstrada por
uma análise das obras dos pensadores mais representativos. Mas seria um grande
erro ignorar a grande eficácia das forças da mente humana, capazes de destruir
essa ligação e impedir que as atitudes políticas se associem às correspondentes
concepções filosóficas e vice-versa. A mente humana não é tão completamente
dominada pela razão e, portanto, nem sempre é lógica. As forças emocionais
podem desviar o pensamento humano de seus rumos originais. É preciso levar
em consideração as circunstâncias externas através das quais – ainda que a
especulação filosófica não possa ser restrita – a liberdade da opinião política é
abolida. Deve-se ainda notar que os juízos políticos, e sobretudo a decisão a
favor da democracia ou da autocracia, em geral não se baseiam nem em uma
investigação cabal dos fatos nem em um consciencioso autoquestionamento, mas
são o resultado de uma situação momentânea ou de uma disposição de ânimo
passageira.(...)
41
38
JUNG, Carl Gustav. Tipos Psicológicos, p.23.
39
JUNG, Carl Gustav. Tipos Psicológicos, p.34.
40
KELSEN, Hans. A Democracia, p.163.
41
KELSEN, Hans. A Democracia, p.163. Kelsen, não só neste trecho como em outros, demonstra
não negar a existência do inconsciente. E mais, percebe a importância deste na formação
ideológica do sujeito. Contudo, não o reconhece o inconsciente como uma forma válida de
apreensão do real, posicionamento característico da Modernidade.
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39
Diante de tais assertivas, fica claro o quão relevante é o desenvolvimento
de áreas como a psicologia para pensarmos a formação do conhecimento neste
momento. Não para desvelar o conhecimento exterior em si, mas para entender
uma realidade interior que é a da organização do nosso conhecimento
42.
Cabe agora perguntar o que diferencia esses sistemas político-filosóficos.
No âmbito da filosofia, o absolutismo é a concepção metafísica da existência de
uma realidade absoluta, isto é, independentemente do conhecimento humano.
Como o conhecimento humano é restrito pela dimensão espaço-temporal, tal
realidade absoluta estaria além dessas dimensões. Haveria juízos objetivos que se
pretenderiam verdadeiros não só para o sujeito judicante, mas para todos, sempre
e em todo lugar. E o que significa assumir a existência de uma verdade absoluta?
Implica em admitir uma fonte perfeita, que só poderia ser uma autoridade
absoluta. Mas não param aqui as conclusões nefastas, pois se a autoridade é
absoluta, tanto a verdade por ela instituída como a noção de justiça são também
absolutas.
O relativismo filosófico, por sua vez, é a crença da doutrina empírica que,
enquanto objeto do conhecimento, entende a realidade como relativa ao sujeito
cognoscitivo, não existindo, portanto, conhecimento da realidade além da esfera
do conhecimento empírico humano
43
. Assumir como pressuposto a existência de
um absoluto, além da experiência humana e, portanto, impossível de ser
conhecido é assumir a possibilidade de uma verdade absoluta e valores absolutos,
o que vai contra o credo relativista que só admite verdades e valores relativos.
Para um relativista, e Kelsen se considerava um, é clara a separação entre
proposições sobre a realidade e juízos de valor, que, em última instância, não são
baseados apenas em um conhecimento racional da realidade, mas especialmente
nos fatores emocionais do sujeito cognoscente, que podem ser tanto conscientes
quanto inconscientes. Como a fonte dos valores e dos juízos de verdade não é uma
autoridade absoluta, mas o próprio sujeito, não há que se falar em valores, nem
verdades absolutas, mas apenas relativos.
44
42
MORIN, Edgar. O Método 3: O conhecimento do conhecimento, p.27.
43
Conhecimento aqui entendido como consciente.
44
Kelsen em sua caracterologia dizia ter a corrente relativista uma franca inclinação ao ceticismo,
ao passo que o absolutismo filosófico revelaria uma irresistível tendência à religião monoteísta,
pois a personificação do absoluto nada mais seria do que a sua representação como o onipotente,
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40
Estamos aqui em torno de uma questão central para a Epistemologia e que
deve ser esmiuçada, pois a todos que fazem uma leitura rasa de Kelsen parece que
sua obra se associa a uma visão representacional de mundo, o que é um equívoco.
Assumir a hipótese do absolutismo filosófico que crê na existência absoluta,
independente do conhecimento humano, é pressupor a função do conhecimento
como simples refletir. Isso sim é adotar como perspectiva uma visão
representacional de mundo, como o fazem os Jusnaturalistas. Ao passo que
quando se busca olhar o mundo por um viés epistêmico relativista, isso se dá
pautado em uma perspectiva não representacional, como é o caso de Kelsen.
Qual a importância desta distinção? É imensa, pois o homem enquanto
sujeito do processo cognitivo é epistemologicamente o criador de seu mundo, um
mundo constituído em e por seu conhecimento, e eu diria mais, em e por sua
vontade. O relativismo filosófico encara o sujeito como um sujeito de alteridade,
pois sabe não haver uma realidade normatizante fora da produção humana.
A hipótese do absolutismo filosófico de que haja uma existência absoluta
independente do conhecimento humano conduz à suposição de que a função do
conhecimento é meramente a de refletir, como um espelho, os objetos existentes
em si mesmos, ao passo que a epistemologia relativista, em sua mais clássica
exposição, por Kant, interpreta o processo cognitivo como o processo de criação
do seu objeto. Esta visão implica que o sujeito humano cognoscente é -
epistemologicamente – o criador de seu próprio mundo, um mundo constituído
exclusivamente no e pelo seu conhecimento.
45
2.2
Kelsen no país das maravilhas
Para entender melhor esta distinção entre uma visão representacional e
uma visão não representacional de mundo, que é basilar para todo e qualquer
desenvolvimento teórico, pois implica em perspectivas absolutamente opostas e
que precisam ser pressupostas, usarei como marco teórico Wittgenstein, pois este
perpassa as duas posições. Sua obra se divide em duas fases bem distintas: a
onisciente e onipresente criador do universo. Entidade absolutamente justa, cuja vontade é a lei da
natureza e do homem e que não pode ser questionada pelos homens. (KELSEN, Hans. A
Democracia, pp.164/165.)
45
KELSEN, Hans. A Democracia, pp. 348/349.
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41
primeira representada pelo Tratactus
46,
concluído em 1918 e publicado em 1921,
tendo sido esse seu único livro publicado em vida; a segunda, por sua vez,
representada pelas Investigações Filosóficas, iniciadas em 1936-37, concluídas
em 1945 e publicadas póstumamente.
47
O Tratactus, ao contrário das Investigações Filosóficas, é um marco no
que se entende por uma visão representacional de conhecimento e linguagem,
logo, deve ser entendido a partir do contexto filosófico que compreende a relação
entre linguagem e realidade pela lógica. O objetivo de Wittgenstein, ao escrever o
Tratactus, foi mostrar que os problemas de filosofia podem ser todos solucionados
quando se chega a uma correta compreensão da linguagem e sua lógica.
Para o Tratactus a linguagem tem uma estrutura lógica subjacente, cujo
entendimento mostra os limites do que pode se dizer clara e significativamente.
Isso é sustentado dentro de uma perspectiva onde o que pode ser dito é o mesmo
que pode ser pensado e o que pode ser pensado é espelho de uma realidade-em-
si.
48
Partindo desse pressuposto, Wittgenstein busca então examinar como se dá
a relação entre o discurso e o real, através da determinação de categorias (lógicas)
gerais da linguagem e seu correspondente em categorias (ontológicas) gerais do
real, visto que, identificar os limites da linguagem é o mesmo que identificar os
limites do pensamento.
46
“O único livro de filosofia que publicou em vida, o Tractatus lógico-philosophicus (edição
alemã, 1921; edição inglesa, 1922 é uma das obras mais originais no campo da filosofia analítica,
consistindo em uma discussão de problemas filosóficos centrais de ontologia, teoria do
conhecimento, teoria do significado, através da análise lógica da natureza das proposições da
linguagem”. (MARCONDES, Danilo. Textos Básicos de Filosofia: Dos Pré-Socráticos a
Wittgenstein , p. 165)
47
A divisão do pensamento de Wittgenstein em duas fases distintas é uma divisão tradicional feita
por seus principais críticos e intérpretes. Entre o Tractatus e as Investigações Filosóficas,
existiram textos escritos nos primeiros anos da década de 30, que retomavam algumas idéias do
Tractatus, as re-elaborando em outra direção, que foram caracterizados como uma fase de
transição. Esta, porém, não é uma questão pacífica, há aqueles que entendem ter havido uma
ruptura radical entre a filosofia do Tractatus e a das Investigações filosóficas e há quem considere
a existência de importantes pontos em comum nas duas obras, o que denotaria uma certa
continuidade em seu desenvolvimento. (MARCONDES, Danilo. Wittgeinstein: Linguagem e
Realidade, p. 5.)
48
Esse entendimento de que existe uma realidade-em-si, independente de nós sujeitos, a qual
precisamos representar objetivamente, por meio de uma linguagem ideal surge com Descartes.
Descartes acreditava que pelo pensamento seria possível dar conta do conhecimento objetivo.
Porém, o pensamento não pode ser compartilhado, mas a linguagem sim, daí a necessidade de se
criar uma linguagem ideal (lógica formal), livre das distorções advindas da linguagem cotidiana,
que pudesse levar ao conhecimento objetivo. Wittgenstein em sua primeira fase buscou
desenvolver essa linguagem ideal, de caráter universal, ahistórico e descontextualizado que
descrevesse a “realidade”.
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42
O Tratactus teve grande influencia das obras de Frege e Russel e uma de
suas idéias principais, também encontrada nestes autores, é a de que a forma
gramatical e a forma lógica da linguagem não coincidem, o que levaria a muitos
dos problemas metafísicos tradicionais. A filosofia para Wittgenstein seria uma
atividade e não uma doutrina, que diante dessa confusão entre linguagem
cotidiana e linguagem lógica, teria como objetivo, a elucidação lógica dos
pensamentos. Pensamentos que na linguagem cotidiana seriam nebulosos e
indivisos, pelo emprego da filosofia, se tornariam claros e precisos.
Como dito, essa concepção do Tratactus de filosofia como aquilo que
elucida os pensamentos através da análise da linguagem, pressupõe, uma
concepção isomórfica entre a linguagem e o real, ou seja, de que a forma lógica da
linguagem é a forma lógica do mundo.
Para Wittgenstein, em sua primeira fase, tanto a linguagem quanto o
mundo teriam uma estrutura, que seria a grosso modo a seguinte:combinações de
nomes formariam as proposições elementares, que por sua vez, constituiriam as
proposições, que então formariam a linguagem. Os nomes seriam os constituintes
últimos da linguagem. O mundo, por sua vez, teria seu constituinte último nos
objetos, que organizados formariam “estados de coisas”, que por sua vez,
formariam fatos. O mundo seria uma totalidade de fatos. Cada nível de estrutura
na linguagem corresponderia a um nível de estrutura no mundo e a noção de
verdadeiro ou falso adviria justamente dessa relação de correspondência.
Wittgenstein, no próprio Tratactus, já reconhece algumas das dificuldades
dessa posição, pois se o que dá significado às proposições são os fatos, não há
sentido em se buscar uma metalinguagem, já que as proposições da
metalinguagem não seriam imagens de fatos, mas pretenderiam falar da própria
linguagem.
49
Outro problema que torna inadequada essa solução é o caráter
epistemológico e ontológico da questão. Como já dito, nada mais natural do que a
elaboração de um conceito acompanhar a Epistéme de sua época. A Filosofia-
Analítica, corrente da Filosofia da Linguagem, da qual o Tractatus foi
representante, se insere nesta perspectiva, no arcabouço do paradigma Moderno.
49
MARCONDES, Danilo. Wittgeinstein: Linguagem e Realidade, pp. 1/10.
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43
A modernidade européia do séc. XIII emergiu da desintegração da ordem
medieval. Com o deslocamento do plano transcendente do imaginário medieval,
para o imanente, se criaram novas formas de pensar o que é o ser (ontologia), o
conhecimento (epistemologia) e o homem (antropologia). A Modernidade foi
justamente o produto de uma revolução no bojo da qual foram questionados todos
esses padrões
Mundo novo, homem novo, ciência nova, os tempos modernos são o ponto de
não-retorno do problema do homem e da reflexão antropológica. O objeto não é
mais o mesmo:fala-se da alma, mas esta como que se dilata, após a cisão
cartesiana, para abarcar o corpo e as pulsões da carne (as paixões, os instintos, os
apetites etc.) que passam a prevalecer sobre sua parte puramente racional, até
então tida como diretora (sem a roda das paixões, não haveria progresso, sequer
refinamento do gosto, dizia Voltaire). E também não é a mesma forma de
reflexão: no lugar das antropologias do homem interior e do homem pecaminoso,
as antropologias do homem-máquina e do homem histórico – e para sua
constituição bastam a observação empírica e a análise lógica, à diferença dos
antigos e dos medievais.
50
O modelo de racionalidade que preside a Modernidade constituiu-se a
partir da revolução científica do séc. XVI, se estendendo não só às ciências
naturais, mas também às sociais. Por se achar que o conhecimento era
homogêneo, a racionalidade cientifica se tornou um modelo totalitário,
impregnando todas as ciências a época. Para um Moderno, todo o ser é
determinado, o homem é um ser racional, todo o real é organizado de forma
racional e existe uma dicotomia profunda entre cultura e natureza.
51
Sobre essa
dicotomia, nos fala Boaventura de Sousa Santos:
(...) é total a separação entre a natureza e o ser humano. A natureza é tão-só
extensão e movimento; é passiva, eterna e reversível, mecanismo cujos elementos
se podem desmontar e depois relacionar sob a forma direitos e leis; não tem
qualquer outra qualidade ou dignidade que nos impeça de desvendar os seus
mistérios, desvendamento que não é contemplativo, mas antes activo, já que visa
conhecer a natureza para dominar e controlar. Como diz Bacon, a ciência fará da
pessoa humana “o senhor e o possuidor da natureza”
52
50
DOMINGUES, Ivan. O Grau Zero do Conhecimento, p. 32.
51
PLASTINO, Carlos Alberto, Sentido e Complexidade, pp 1/6.
52
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as Ciências, p. 25.
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44
A Modernidade tem uma visão determinista de um universo pronto e
racionalmente constituído. A natureza é vista como um mecanismo sem alma,
separado do homem e desprovido de qualquer finalidade. O objetivo do método
imposto por esse novo padrão de racionalidade é justamente descobrir as leis que
regem o mundo, para assim poder dominá-lo. A ciência passa, neste momento, a
ser instrumento de dominação da natureza pelo homem.
Nesse novo modelo de concepção de mundo, o homem deixou de ser o
centro do universo. De um mundo fechado, passamos para um universo infinito
pronto a ser desvendado pelo poder sem limites do intelecto humano. Por fim,
houve a derradeira separação entre ciência e moral e a eliminação da ordem das
essências, tão cara à Metafísica, sendo essa substituída pelo puro fenômeno. As
ciências passaram a ser empíricas por excelência.
53
Sem dúvidas, o problema da fundamentação do conhecimento é tão antigo
como a humanidade. Porém, foi na Modernidade, herdeira da Antiguidade
clássica, mas também lugar de ruptura e ponto de inflexão, que este problema
adquiriu nova formulação. Não só a pergunta não foi mais a mesma, pois deixou
de referir-se à fundamentação do conhecimento, para se dirigir a uma
fundamentação absoluta, como a resposta também não foi mais a mesma.
A preocupação aqui passou a ser quanto à certeza do conhecimento e seu
método de justificação, o que não ocorria, por exemplo, entre os gregos, já que
estes não eram dados à busca de um conhecimento absoluto. Para eles, o
conhecimento absoluto (que é fundado na intuição) seria próprio dos Deuses, não
dos homens, que só tinham acesso ao conhecimento das coisas justas e úteis, ou
seja, a um conhecimento por aproximação, onde o próprio homem era a medida.
O seu métron era a alma. Já os Modernos, por sua vez, buscaram seu fundamento
absoluto através da razão.
Como nada nos assegura, quando resolvemos conhecer algo, que não
estamos nos enganando e sim efetivamente conhecendo o ser verdadeiro, os
Modernos buscaram fundamentar o conhecimento. Para isso procuraram entre as
idéias através das quais conhecemos as coisas, as que são mais firmes e sólidas a
ponto de serem tomadas como verdadeiras. E então nelas, fundaram seu ponto de
53
DOMINGUES, Ivan. O Grau Zero do Conhecimento: O problema da fundamentação das
ciências humanas, pp. 32/39.
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45
partida, para dali poder deduzir todo o resto. Fundamentar confere certeza ao
conhecimento.
Para tanto eles recorreram essencialmente a três estratégias discursivas:
uma que toma a verdade como essência a ser desvelada; uma que toma a verdade
como fatos a descrever e por fim, uma terceira de cunho historicista, que faz do
conhecimento práxis e da verdade um devir, fruto do tempo e das ações humanas.
Quanto à terceira, mais contemporânea, além de abolir os modelos de
cientificidade tanto do Essencialismo, quanto do Fenomenismo, levou a ruína a
tentativa de fundamentação do conhecimento
54
.
Sem um ponto de apoio firme a remontar, o espírito assiste perplexo ao
surgimento de uma empresa cada vez mais dependente do sujeito, sujeito que,
não obstante, não se revela mais capaz de nos dar o ponto arquimediano do
conhecimento, qualquer que seja ele. De um lado a determinação da coisa nunca
é completa: os radicais e as regras de derivação não são as mesmas no grupo das
línguas indo-européias e das línguas americanas; os elementos últimos dos
modos de produção capitalista e asiático não são os mesmos: este, assentado num
elemento natural: a terra; aquele, num elemento historicamente constituído: o
capital – então, o fundamento não é unívoco, do mesmo modo que não é fixa a
determinação. De outro, a formalização do conhecimento nunca é plena ou
exaustiva: “Paralela” pode dar nascimento às geometrias não euclidianas,
“massa” pode tornar-se o equivalente de “energia” (Einstein); “tempo” pode
designar a eternidade do inconsciente (Freud), a “ausência” da história nas
sociedades primitivas (Lévi-Strauss) e o movimento de rotação do capital nas
sociedades históricas do capitalismo (Marx) – portanto, dependendo sempre de
um sistema exterior de referência, é impossível o círculo axiomático formalizar
sua própria formalização.
55
O avanço da física foi o golpe final para detonar a crise do paradigma
Moderno, levando a uma transformação profunda na concepção do ato de
conhecer. Não há mais, diante dos avanços científicos, como se sustentar
epistemológicamente a neutralidade do sujeito, nem ontológicamente a
determinidade do ser, o que coloca em maus lençóis uma visão representacional
de mundo, tendo em vista que é sobre esses dois pilares que tal perspectiva se
sustenta e também o Jusnaturalismo.
56
54
DOMINGUES, Ivan. O Grau Zero do Conhecimento: O problema da fundamentação das
ciências humanas, pp 44/51.
55
DOMINGUES, Ivan. O Grau Zero do Conhecimento: O problema da fundamentação das
ciências humanas, p. 51.
56
“A diferenciação entre o sujeito e o objeto de conhecimento – tributária da perspectiva
cartesiana – é elevada neste modelo, a forma exclusiva de conhecimento, alijando desse modo as
múltiplas experiências de apreensão direta do real. A crítica desse pressuposto racionalista e da
teoria representacional da linguagem que dela deriva, constitui sem dúvida um importante
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46
Nossa ciência avançou de tal maneira, que aproximou-nos de
desconhecidos que desafiam nossos conceitos, e nos coloca diante da
inacessibilidade do conhecimento. A razão, que até então parecia ser a forma mais
segura de conhecimento, descobriu em si uma sombra cega.
Estamos vivendo uma mudança paradigmática, onde no paradigma que
emerge é preciso associar a busca de novas estratégias e o processo de criação do
futuro, com o processo de pensar e perceber esse grande contexto em que a vida
acontece que é o mundo em que vivemos.
A busca da verdade agora necessariamente tem que estar ligada à
investigação sobre a possibilidade da verdade. A noção de conhecimento se
amplia quando percebemos que ele comporta legitimamente essa diversidade e
multiplicidade. Talvez a verdade não seja uma, mas sejam várias.
Se no paradigma da complexidade as ciências e saberes contemporâneos
se deparam com uma realidade complexa e heterogênea, não é nos dado mais a
possibilidade de atrelar o conhecimento a uma só teoria, uma única noção ou
percepção. Ele deve, sim, ser concebido com vários modos ou níveis, ao qual
corresponde cada uma dessas perspectivas.
O ato de conhecimento, ao mesmo tempo biológico, cerebral, espiritual, lógico,
lingüístico, cultural, social, histórico, faz com que o conhecimento não possa ser
dissociado da vida humana e da relação social. Os fenômenos cognitivos
dependem de processos infracognitivos e exercem efeitos e influências
metacognitivos. Também o espírito deve tomar consciência das condições não
espirituais da sua atividade. Vemos com dificuldade a possibilidade de isolar o
campo do conhecimento se temos necessidade de conceber as condições bio-
antropo-sócio-culturais de formação e de emergência do conhecimento assim
como os domínios de intervenção e de influência do conhecimento. Finalmente, é
toda a relação entre o homem, a sociedade, a vida, o mundo que se acha atingida
e problematizada de novo e através do conhecimento do conhecimento
57
É dentro dessa nova perspectiva paradigmática contemporânea que
podemos situar a obra Investigações Filosóficas de Wittgenstein, que melhor
representa a fase final de seu pensamento. Wittgenstein desenvolveu de modo
movimento teórico em direção à ultrapassagem do paradigma moderno e de seus impasses.
Continua, contudo, prisioneira dos limites desse paradigma, na medida em que continua
sustentando o monopólio da consciência, ignorando, assim não apenas outras ricas e antigas
experiências de conhecimento, mas também as descobertas da psicanálise sobre a participação do
inconsciente na apreensão do real. (PLASTINO, Carlos Alberto. O Quinto Rombo: a psicanálise,
p18)
57
MORIN, Edgar. O Método 3: O conhecimento do conhecimento, p.26.
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47
particularmente original, ao escrever as Investigações Filosóficas, uma nova
dimensão para o uso dos signos, em oposição a uma concepção tradicional dos
sinais.
58
Essa nova dimensão de uso dos signos em um contexto de interação, de
comunicação, de natureza social, pressupõe uma re-definição dos processos de
significação, que rompe com a concepção apresentada em sua obra anterior, do
signo como um representante da realidade externa, por meio de sua vinculação a
um elemento interno (conceito, idéia, signo mental), ou seja, rompe com uma
visão representacional de mundo, no sentido de “espelho da mente”. Kelsen com a
Teoria Pura do Direito fez o mesmo, ao se opor às idéias Jusnaturalistas, que
defendiam a existência de um Direito Natural como espelho da Justiça.
A alternativa que Wittgenstein propõe a esta concepção representacional
de significados são os “jogos de linguagem”. Com a noção de “jogos de
linguagem” Wittgenstein se esquiva do solipsismo Moderno ao estabelecer uma
visão não representacional de conhecimento, uma visão construtivista.
Wittgenstein passa a se preocupar aqui, não mais com a análise lógica das
proposições, e sim com seu uso por falantes e ouvintes em contextos específicos.
A linguagem adquire um caráter de prática social concreta, sendo o significado
dos signos, dado por essa prática.
59
A dicotomia entre linguagem e realidade, em que o signo representa um
determinado objeto do real, leva à necessidade lógica de ter que explicar como
essa relação se dá. O solipsismo Moderno consiste justamente em não se ter como
garantir que esta relação privada ou subjetiva entre a mente do sujeito e o objeto
real estabeleça de fato uma subsunção exata da natureza do objeto externo. E
mais, também não há garantias de que a nossa forma de utilizar os signos
58
Santo Agostinho em seu texto “Sobre a Doutrina Cristã” representa bem o que seria uma
concepção tradicional dos sinais. “Entre os signos (de signis), alguns são naturais e outros
convencionais. Os naturais são os que, sem intenção nem desejo de significação, dão a conhecer,
por si próprios alguma outra coisa além do que são em si. Assim, a fumaça é signo do fogo (...)
Sinais convencionais (data signa) são os que todos os seres vivos mutuamente se trocam para
manifestar – na medida do possível – os movimentos de sua alma, tais sejam as sensações e os
pensamentos. Não há outra razão para significar, isto é, para imitir um signo, a não ser expor e
comunicar ao espírito dos outros o que se tinha em si próprio ao emitir o signo. (Santo Agostinho
apud MARCONDES, Danilo. Da fronteira entre o Semântico e o Simbólico: Por uma concepção
performativa de linguagem, p.2 )
59
MARCONDES, Danilo, Textos Básicos de Filosofia: Dos Pré-Socráticos a Wittgenstein, p. 167.
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48
lingüísticos para expressar tal relação seja idêntica a dos outros falantes da mesma
língua
60
Danilo Marcondes define “jogos de linguagem” como: “uma ‘totalidade’
consistindo da linguagem, isto é, das palavras ou signos lingüísticos e das ações
com que estão entrelaçadas.”
61
(...) Ele ainda nos diz mais, informa que os jogos
de linguagem são “múltiplos, multifacetados e irredutíveis uns aos outros
.”62
Quando se pensa em “jogos de linguagem”, o significado não é mais dado
pela forma da sentença, pelo sentido de seus componentes ou por uma referência
externa, mas sim, pelo uso que é feito desses signos nos diferentes contextos em
que são empregados. A referência pode até ter um papel na determinação do
significado, mas não é ela que o determina. Uma mesma expressão lingüística
pode ter significados diversos, dependendo dos efeitos e conseqüências que gera
em seus usos específicos, o que quer dizer que o significado é assim
indeterminado, só podendo ser entendido dentro do “jogo de linguagem” em que é
usado.
63
O que pode haver, quando há ‘representação’, é um número, em certo sentido,
ilimitado de representações possíveis com relação à realidade. Nada obriga,
nenhuma necessidade natural nos obriga a fazer as representações que fazemos;
quando fazemos. Quem determina nossas representações não é nenhum aspecto
da natureza – nem a nossa natureza biológica, nem a natureza do ‘mundo
externo’-mas as regras normativas de nossa linguagem que são arbitrárias com
relação à realidade. Nossa natureza biológica e o ‘mundo externo’ podem ser
pré-requisitos para nossos conceitos mas não são determinantes. ( grifo meu
) O que determina o significado de nossos conceitos é o uso que fazemos deles,
e pode haver mais de um uso para uma expressão verbal ou uma palavra. Logo,
pode haver mais de um significado. O uso se dá dentro de um contexto, de um
60
MARCONDES, Danilo. Da Fronteira entre o Semântico e o Simbólico: Por uma concepção
performativa de linguagem, p.7.
61
MARCONDES, Danilo. Da Fronteira entre o Semântico e o Simbólico: Por uma concepção
performativa de linguagem, p.8.
62
MARCONDES, Danilo, Wittgeinstein: Linguagem e Realidade, p.11.
63
Humberto Mariotti, com base em Maturana, nos traz uma explicação neurológica para o
fenômeno acima descrito: “Nossa linguagem falada e escrita consiste em abstrações e símbolos. É
preciso entender essa condição em relação à estrutura do sistema nervoso. Segundo Maturana, esse
sistema ao funcionar não faz diferença entre classes de estímulos, isto é, não distingue de onde
vêm as suas mudanças de estado. Ele não opera por meio de símbolos, e sim mediante relações
concretas de atividade. Os símbolos são criações do observador. O que um observador percebe
como equivalências simbólicas na verdade constitui um modo seu de explicação. O sistema
nervoso produz comportamentos que fazem sentido em contextos de relações. Estas, por sua vez,
são expressas pelo observador como equivalências simbólicas. (...) O psiquiatra Ronald Laing
observa que é pela experiência (isto é, a interação) que surgimos no mundo uns para os outros, e
não por meio da linguagem falada ou escrita. ( As Paixões do Ego, p.78 )
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49
contexto lingüístico e não apenas material, embora o material possa fazer parte
do contexto lingüístico.
64
No mesmo sentido, Kelsen nos diz:
Com respecto a la interpretación de normas concretas por la ciência del derecho,
la teoria pura del derecho destaca la casi siempre existente y más o menos
amplia, pluralidad de significaciones del material a interpretarse. Ella reconoce
como única tarea de la interpretación científica el señalar las posibles
significaciones y el confiar a las consideraciones políticas, la elección definitiva
entre las igualmente posibles interpretaciones científico-jurídicas de la autoridad
que aplica el derecho. Desde el punto de vista de la ciência del derecho no puede
afirmarse que solo una de estas interpretaciones se ala “correcta”.
65
O que Wittgenstein pretende enfatizar com o termo “jogos de linguagem”
é justamente o fato de que falar a linguagem é parte de uma atividade, de uma
forma de vida.
66
Os jogos se constituem a partir de regras de uso, convencionadas
socialmente, que dão o contexto a partir do qual os significados vão ser
extraídos.
67
As crianças aprendem diversos “jogos de linguagem” cujo significado
é dado por sua forma de vida. Não é diferente com o Direito positivo, que tem um
caráter de prática social e que assim como as nossas representações, não é
determinado por um aspecto da natureza – mas por regras normativas que são
arbitrárias com relação à realidade.
Aristóteles ao distinguir o Direito Natural do Direito Positivo já o fazia
dizendo:
a) o direito natural é aquele que tem em toda a parte (pantacho) a mesma eficácia
(o filósofo emprega o exemplo do fogo que queima em qualquer parte), enquanto
o direito positivo tem eficácia apenas nas comunidades políticas singulares em
que é posto; b) o direito natural prescreve ações cujo valor não depende do juízo
que sobre elas tenha o sujeito, mas existe independentemente do fato de
parecerem boas a alguns ou más a outros. Prescreve, pois, ações cuja bondade é
objetiva (ações que são boas em si mesmas, diriam os escolásticos medievais). O
direito positivo, ao contrário, é aquele que estabelece ações que, antes de serem
reguladas, podem ser cumpridas indiferentemente de um modo ou de outro mas,
uma vez reguladas pela lei, importa (isto é: é correto e necessário) que sejam
desempenhadas do modo prescrito pela lei.
68
64
Lampreia, C. As Propostas Antimentalistas no desenvolvimento Cognitivo: Uma Discussão de
seus Limites. Tese de Doutorado. Depto de Psicologia, Puc-Rio.
65
KELSEN, Hans. ¿ Qué es la Teoria Pura del Derecho? pp. 27/28.
66
MARCONDES, Danilo Wittgeinstein: Linguagem e Realidade, p.13.
67
MARCONDES, Danilo Wittgeinstein: Linguagem e Realidade, pp. 11/15.
68
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico, p. 17
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50
O uso dos signos não se presta mais a descrever a realidade ou se referir a
ela, ao contrário, é utilizado para fazer algo, para interferir no real, para criar o
real. Em uma visão não representacional de mundo, o uso da linguagem e a
realização de atos são inseparáveis. Nem a linguagem se define mais por sua
relação com o real, nem a verdade é mais compreendida como a correspondência
entre ambas.
69.
Wittgenstein retira a palavra de seu uso metafísico, abstrato, fora
de contexto e o traz para o uso cotidiano, onde a palavra é analisada em seu
contexto de uso.
70
Onde é o social que convenciona o que é aceitável ou não, o que
é correto ou não.
Em Kelsen também encontramos o social como agente convencionante do
certo e do errado, através da noção de imputação Para a Teoria Pura do Direito a
sanção não é derivada do delito, como as conseqüências naturais o são de suas
causas, mas sim é imputada a este.
71
A distinção essencial entre a imputação normativa e a causalidade está em
que nesta, a vinculação dos elementos se dá independente de qualquer vontade
humana ou sobre-humana (mundo do ser), já naquela a vinculação é criada por um
ato de vontade cujo sentido é a norma (mundo do dever ser).
72
69
MARCONDES, Danilo. Da Fronteira entre o Semântico e o Simbólico: Por uma concepção
performativa de linguagem, p.8.
70
MARCONDES, Danilo. Da Fronteira entre o Semântico e o Simbólico: Por uma concepção
performativa de linguagem, p.8.
71
Luiz Fernando Schuartz em seu livro Norma, Contingência e Racionalidade, com o objetivo de
construir uma teoria pragmática da norma jurídica, se propõe também a resgatar certos
pressupostos e afirmações da obra de Kelsen, especialmente no que diz respeito à
existência/validade da norma jurídica. Sua hipótese central, que inclusive dá nome a um capítulo
do livro, é a existência de uma práxis recalcada na Teoria da Norma de Kelsen. O autor entende a
“intencionalidade como aspecto ontologicamente distintivo da região na qual Kelsen localiza o
objeto específico (Gegenstand) do conheciemnto do direito, qual seja, as normas jurídicas (...)” (
pp. 2/3) Sua fonte de inspiração para essa releitura filosófica de Kelsen foi o livro “Making it
Explicit. Reasoning, representing and Discursive Commitment” de Robert Brandom.
72
“É usual distinguir ciências naturais e sociais como ciências que tratam de dois objetos
diferentes: natureza e sociedade. Mas natureza e sociedade são realmente dois objetos diferentes?
A natureza, segundo uma dentre muitas definições, é uma ordem particular de coisas, ou um
sistema de elementos ligados um ao outro como causa e efeito, isto é, segundo o princípio
específico denominado “causalidade”. As chamadas leis da natureza, pelas quais a ciência da
natureza descreve seu objeto (por exemplo, a afirmação: um corpo metálico expande-se quando
aquecido), são aplicações desse princípio. A ligação entre calor e expansão em nosso exemplo é a
de causa e efeito. Se existe uma ciência social diferente da ciência natural, ela deve descrever seu
objeto segundo um princípio diferente do princípio da causalidade. A sociedade é uma ordem da
conduta humana. Mas não há razão suficiente para considerar a conduta humana como um
elemento da natureza, isto é, como determinada pela lei da causalidade; e, na medida em que a
conduta humana é concebida como determinada por leis causais, uma ciência que lida com a
conduta mútua dos homens e que, por esse motivo, é classificada como um ciência social, não
difere essencialmente da física ou da biologia. Contudo, se analisarmos nossas proposições quanto
à conduta humana, descobriremos que ligamos atos de seres humanos entre si e com outros fatos
não apenas única e exclusivamente segundo o princípio da causalidade, isto é, como causa e efeito,
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51
Esse tipo de distinção não ocorre dentro de um paradigma metafísico-
religioso, pois nele as leis naturais são interpretadas como normas que procedem
de uma vontade divina, como para a corrente metafísica do Direito. Sobre esse
sofisma, que crê poder deduzir de um ser um dever ser, está fundada a Teoria do
Direito Natural, que a Teoria Pura do Direito, enquanto ciência racional do
Direito, rechaça como metafísica, irracional e não submetida a Lógica.
Essa nova perspectiva introduzida por Wittgenstein é revolucionária, pois
explode a lógica e a ontologia herdadas, ao nos fazer reconhecer os limites
estreitos da validade das categorias tradicionais. Ela muda radicalmente, talvez a
mais fundamental de todas as categorias, o “ser” que passa a ser visto como
“sendo”.
Outro conceito importante trazido por Wittgenstein em sua segunda fase
são as “semelhanças de família”. Aqui os signos não têm uma essência definidora,
então o que une todos os entes que são categorizados por um determinado signo
são alguns traços em comum, mais fortes entre tipos mais próximos, mais fracos
entre os mais distantes.
73
Não há um único traço sequer que seja comum a todas as
manifestações e, portanto, essencial à significação, mas todas são aparentadas
entre si de maneiras diferentes. Uma família é formada por uma rede complexa de
semelhanças que se sobrepõem e entrecruzam
.74
Kelsen em seu texto
¿
Qué es la Teoria Pura del Derecho ?
75
nos explica
que o Direito, enquanto objeto de conhecimento, pode ser abordado pelos mais
diversos enfoques e que o enfoque escolhido por ele para empreender tal tarefa é
aquele que, apoiado na comparação de todos os fenômenos qualificados como
“Direito”, busca extrair o método específico e os conceitos fundamentais com os
quais é possível descrever qualquer tipo de Direito. Ou seja, Kelsen buscou
encontrar aquilo que Wittgenstein classificou como semelhança de família, dentro
dos fenômenos chamados de Direito e isso é uma opção de recorte, assim como a
mas segundo outro princípio, inteiramente diverso da causalidade, um princípio para o qual a
ciência ainda não estabeleceu um termo geralmente reconhecido. Apenas se for possível provar a
existência desse princípio em nosso pensamento e sua aplicação nas ciências que lidam com a
conduta humana, estaremos autorizados a considerar a sociedade como uma ordem ou um sistema
diferente do da natureza, e as ciências que se ocupam da sociedade como diferentes das ciências
naturais.” (KELSEN, Hans. O que é a Justiça?, pp. 323/324)
73
MARCONDES, Danilo. Wittgeinstein: Linguagem e Realidade pp.11/15.
74
MARCONDES, Danilo. Textos Básicos de Filosofia: Dos Pré-Socráticos a Wittgenstein, p.169.
75
Trata-se de uma pequena, mas muito elucidativa, obra de Hans Kelsen escrita em 1953, com o
fim de explicitar e fundamentar o recorte metodológico feito pelo autor em seu projeto teórico para
o Direito
.
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52
sociologia em um paralelo busca entender os “jogos de linguagem” jogados em
determinados contextos.
El derecho puede ser objeto del conocimiento de muy diversas maneras. Se
puede considerar sistemáticamente un determinado orden jurídico por ejemplo, el
derecho de Francia o el derecho internacional; o un determinado grupo de normas
de un orden jurídico tales como el derecho penal de Suécia o el derecho de
obligaciones de Suiza; o una disposición jurídica singular, como la regularización
de los intereses moratórios según el Código Civil Austríaco. Se puede luego
pretender aclarar la norma o normas de que se trate, dilucidar su sentido tal como
surge inmediatamente de la auténtica formulación que há recebido el derecho en
tanto ley, disposición, contrato, etc. En este caso, el estúdio del derecho positivo
se vincula con su interpretación. Pero también se puede investigar como se há
originado históricamente el contenido de un determinado orden jurídico, o cuales
son las causas económicas y políticas que han determinado este contenido. Se
puede también comparar el contenido de um orden jurídico con el de outro a los
fines de obtener ciertos tipos jurídicos. Y por último, apoyándose en la
comparación de todos los fenômenos calificados como “derecho”, se puede
investigar la esencia
76d
el derecho, su estructura típica, independientemente del
contenido variante que há tenido en las diferentes épocas y países. Esta es la tarea
de uns teoria general del derecho, es decir, de una teoria que no se limita a un
determinado orden jurídico o a determinadas normas jurídicas. Esta teoria tiene
que precisar el método específico y los conceptos fundamentales con los cuales
es posible describir y concebir cualquier tipo de derecho; de esta manera,
proporciona la fundamentación teorética de toda consideración que tenga por
objeto un derecho o instituición jurídica especial. La teoria pura del derecho
quiere ser una teoria general del derecho de este tipo.
77
O sistema elaborado por Wittgenstein, em sua segunda fase, se mostra
totalmente adequado ao novo paradigma, enquanto perspectiva construtivista e
pragmática de sujeito e de mundo. Em uma visão não-representacional de
conhecimento e linguagem, o homem passa a ser entendido muito mais dentro de
uma concepção social do que biológica.
Aqui estamos diante do homem dialógico, socialmente constituído,
integrado com o todo e não mais do indivíduo atomisado da Modernidade. A
criança assim que nasce já está imersa em uma rede de significações de sua
cultura, que envolve crenças, mitologia, formas de vida e não há como se escapar
dessa rede, sem se cair em outra rede de significações. E mais, quando partimos
de uma perspectiva não-representacional de linguagem, percebemos que o real
76
Essência aqui não deve ser entendida como algo metafísico, imutável e sim como traços
recorrentes encontrados nos fenômenos até então classificados como Direito. Se, futuramente, o
que hoje entendemos como Direito vier a se modificar, passando a ter outras características,
diversas das atuais, a essência do que será classificado como Direito serão outras “semelhanças de
família” que não as atuais.
77
KELSEN, Hans. ¿ Qué es la Teoria Pura del Derecho?, pp.7/9.
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53
também é constituído pelo social. A realidade compartilhada, assim como este
homem dialógico, são produtos da linguagem.
(...) Só existe plena e puramente identidade como instituída, na e pela instituição
social-histórica da identidade e do idêntico. A enigmaticidade da identidade
natural dos homens, por exemplo, só é, e só é enigmaticidade, mediante a
identidade indubitável da palavra “homem” qualquer que seja quem a enuncia ou
o momento em que é enunciada. A identidade é instituída como esquema nuclear
do legein social. Se dissessem que aqui também ela não é jamais “efetiva” ou
“real”, isso só faria confirmar o que eu digo: a identidade é instituída como regra
e norma de identidade, como primeira norma e forma sem o que nada pode ser da
sociedade, na sociedade, para a sociedade. A instituição é sempre instituição,
também da norma. (...) só posso falar-pensar estabelecendo esta condição (...)
Não é apenas pelo fato de que só a instituição social-histórica possa
“enunciar”,”formular”, “explicitar” a idéia, o esquema , a efetividade da
identidade: somente a instituição social-histórica faz ser , e isso pela primeira vez
na história do mundo, a identidade como tal fazendo ser o idêntico como
rigorosamente idêntico. Nesse sentido a identidade “plena” é, e só é, como
instituída. A identidade que faz ser a sociedade é outra que não a “identidade”
que podemos ( devemos ) postular na natureza: a sociedade faz ser a identidade
com um modo de ser impossível e inconcebível em outro lugar. Não é somente –
isso é secundário – que a identidade seja “estabelecida” pela instituição como um
decreto sustentando que deve haver o idêntico. É que a própria instituição só
pode ser como norma de identidade, de identidade da instituição consigo mesma,
ela só pode ser sendo ela própria o que ela decreta como devendo ser: identidade
da norma a si mesma estabelecida pela norma para que possa haver norma de
identidade a si mesmo. Assim também, “existem leis” é lei pressuposta por todo
o conjunto de leis, e que só pode ser lei se, e somente se, existem leis. Ou ainda:
“é preciso obedecer à lei” – é a primeira lei sem o que não há lei – e que não é
lei, porque ela é vazia se não existem leis.
78
Kelsen ao desenvolver sua Teoria Pura tinha a exata noção de o fazer
dentro de um leigen
79
social, onde a norma fundamental é a hipótese que cumpre o
papel dessa primeira lei. A norma fundamental de Kelsen é o que no positivismo
jurídico corresponde ao princípio lógico transcendental da cognição Kantiana. Ela
que é o pressuposto final e a base hipotética de qualquer ordem jurídica. A norma
fundamental não é uma norma positiva, mas sim pressuposto de condição de todas
78
CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. pp. 242 / 243.
79
“Legein: distinguir-escolher-estabelecer-juntar-contar-dizer: condição e ao mesmo tempo
criação da sociedade, condição criada por aquilo que ela mesma condiciona. Para que a sociedade
possa existir, para que uma linguagem possa ser instaurada e funcionar, para que uma prática
refletida possa desenvolver-se, para que os homens possam relacionar-se uns com os outros de
outra maneira que não no fantasma, é preciso que de uma forma ou de outra, em determinado
nível, em determinada camada ou estrato do fazer e do representar social, tudo possa tornar-se
congruente com o que a definição de Cantor implica. Para vê-lo basta considerar o que está em
jogo nesta definição, sua consusbstancialidade com a lógica identitária, como também com o que
está sempre estabelecido na e pela linguagem. (CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição
Imaginária da Sociedade. p. 262.)
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as normas jurídicas positivas. As normas positivas não derivam da norma
fundamental, mas podem ser compreendidas apenas por meio dela, assim como o
mundo empírico não deriva dos pressupostos lógicos transcendentais, mas são
esses condições necessárias de toda experiência.
A norma fundamental além de servir como fonte de reconhecimento do
que é o Direito material e historicamente estabelecido, serve como postulado de
uma ordem significativa
80,
isto é, não contraditória. Essa necessária coerência é um
requisito que não é possível de ser assegurado unicamente pelo princípio
dinâmico de delegação, o que faz com que a ciência jurídica acabe indo além do
positivismo puro, pois se não o fizesse, estaria sendo decretado o auto-abandono
da própria ciência jurídica.
A norma fundamental foi aqui descrita como a pressuposição essencial de
qualquer cognição jurídica positivista. Caso se deseje considerá-la como
elemento de uma doutrina de Direito natural, a despeito de sua renúncia a
qualquer elemento de justiça material, pouca objeção se pode fazer; na verdade,
tão pouca objeção quanto se pode opor caso se queira chamar metafísicas as
categorias da filosofia transcendental de Kant por não serem elas dados da
experiência, mas condições da experiência. O que está envolvido, simplesmente,
é, lá, um mínimo de metafísica, e aqui, de Direito Natural, sem as quais não seria
possível nem uma cognição da natureza, nem do Direito. A norma fundamental
hipotética responde à questão: como é possível o Direito positivo como objeto de
cognição; como é possível o Direito positivo como objeto de ciência jurídica; e,
conseqüentemente, como é possível uma ciência jurídica? A teoria da norma
fundamental pode ser considerada uma doutrina de Direito natural, em
conformidade com a lógica transcendental de Kant
.81
Como dito anteriormente, o que diferencia para Kelsen uma atitude
científico-crítica de uma atitude metafísica é a consciência que a primeira tem de
seus limites. Eu diria que é a consciência de estar inserida em um legein e essa
não é tida por qualquer ciência, mas apenas por aquelas que partem de uma
perspectiva não-representacional de mundo.
O direito positivo kelseniano tem a consciência de seus limites, atrelados a
uma forma de vida específica, a uma ordem significativa ou um contexto de
80
Significativa quer dizer que para ser positiva, qualquer ordem jurídica tem que coincidir até
certo ponto com as condutas humanas. Evidente que sempre existirão atos que violam a ordem
jurídica, senão a ordem jurídica seria inclusive destituída de sentido, pois não há senso em se
prescrever apenas o que já acontece espontaneamente. Mas as condutas também não podem
contradizer completamente a ordem jurídica que a elas regula. As normas postas, portanto, tem que
ser de maneira geral cumpridas, de forma que haja uma eficácia global da norma. (KELSEN,
Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 624 )
81
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, p 625.
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55
linguagem como diria Wittgenstein. Kelsen percebe que o valor justiça deve ser
buscado, mas isso não faz com que ele deixe de ser uma configuração voluntária
da ordem social. Já a doutrina de Direito natural, por sua vez, se pretende justa
independente do contexto.
Por isso que, ao analisar a interpretação das normas positivas, Kelsen
discrimina duas formas de interpretação:a da autoridade judiciária e da ciência
jurídica, sendo que o que as distingue é a efetividade jurídica.
A Teoria Pura reconhece como única tarefa da interpretação científica o
assinalar das possíveis significações do material a ser interpretado (e são sempre
plurais as possibilidades de significação), ficando, porém, a cargo da política a
eleição definitiva de uma das igualmente possíveis interpretações científico-
jurídicas da autoridade judiciária.
Nesse sentido, o que determina o conteúdo semântico associado à expressão de
um dado estado intencional é a práxis social e comunicativa na qual os termos
por meio dos quais se dá essa expressão são usados.
82
Do ponto de vista jurídico não é possível se afirmar que apenas uma
interpretação seja a correta, o que também não invalida que os juristas
recomendem uma determinada interpretação como a melhor, mas neste caso estão
exercendo uma função política e não ciência jurídica.
A interpretação cientifica é conhecimento puro, pois parte explicitamente
de convenções instituídas para poder avaliar em termos de veracidade ou
falsidade.
83
Mas não veracidade absoluta e sim veracidade em relação ao que foi
instituído socialmente como norma.
84
A interpretação da autoridade judiciária, por
82
SCHUARTZ, Luiz Fernando. Norma, Contingência e Racionalidade, p.10.
83
“Em outras palavras e em última instância, sistemas intencionais, bem como os correspondentes
estados intencionais, surgem originariamente como produtos de uma práxis social cujos
participantes se tratam reciprocamente como sistemas intencionais, isto é, interpretam
reciprocamente seus comportamentos como governados por regras em face das quais é coerente a
avaliação destes comportamentos como corretos ou incorretos. O status de sistema intencional
conferido a um sistema é assim instituído pela atitude de outros, que consiste no tratamento desse
sistema como um sistema intencional e na atribuição ao mesmo de estados intencionais.”
(SCHUARTZ, Luiz Fernando. Norma, Contingência e Racionalidade, p.9.)
84
“A qualificação de algo como norma jurídica é um processo que incide sobre uma base
semanticamente pré-estruturada, ou seja, uma performance ou um estado de coisas aos quais
reputa-se adequada a atribuição, pelos participantes de uma práxis social de interpretação, de
sentido. Assim sendo, o observador externo que identifica, no tempo e no espaço, um estado de
coisas como empiricamente perceptível, está identificando a expressão de um estado qualificado
como intencional por ser tratado como intencional pelos participantes de um Sprachspiel, i.e. de
uma práxis social e discursiva governada por regras referentes ao uso de expressões lingüísticas e
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sua vez, é sempre autêntica, ou seja, é obrigatória juridicamente e, portanto, não
pode ser avaliada em termos de verdadeiro ou falso, mas apenas de validade ou
invalidade, em relação a um paradigma que também foi instituído, e que Kelsen
chama de norma fundamental.
A Teoria Pura, apesar de buscar cientificidade, tem a exata noção de que a
objetividade científica não é absoluta, e que o objeto científico, antes de mais
nada, é determinado por seu método de observação. Sendo assim, a ciência do
Direito à qual Kelsen tanto se esforçou por criar, não pretende descrever entidades
como elas são em si, o que seria inviável quando se parte de pressupostos
relativistas, mas sim determinar um objeto a partir do método que o autor elegeu
para si e ao longo de toda sua obra se esforçou por deixar claro. O elemento
central da ciência para Kelsen é o método e não o objeto, por isso sua busca por
uma teoria formal e não substancial.
Além da rejeição dos juízos de valor, a concepção geral que Hans Kelsen tem da
ciência e a sua delimitação da ciência jurídica são responsáveis pela idéia de que
cada ciência deve constituir um todo metodologicamente unitário e, portanto -
segundo sua terminologia neokantiana -, de que o objeto da ciência é
determinado antes de mais nada por seu método, ou seja, por seu modo de
observar e compreender as coisas. Esta asserção é entendida no sentido de que a
ciência não descreve entidades como elas são por si, mas de que o objeto do
sistema científico é constituído pelo ângulo de visão, que por sua vez, é definido
pelo modo como o problema é formulado e tratado. A ciência, portanto, é um
todo ordenado, um sistema de cognição correspondente à formulação do
problema.
85
Como já explicado, esta dissertação se divide em duas etapas, sendo que a
primeira teve como meta desenvolver uma construção teórica inserida no que
Castoriadis chama de legein. O significado, qualquer que seja, é sempre uma
performances de atos simbolicamente estruturados. Da perspectiva deste observador externo, o que
ele de fato observa é algo cuja constituição depende essencialmente de um conjunto de práticas
sociais em que participantes capazes de falar e de agir tratam-se reciprocamente como
responsáveis pelo que dizem e fazem ( tendo em vista os conteúdos semânticos que articulam os
seus juízos e as suas ações, vale dizer , as normas conceituais que governam essas práticas
sociais)”. (SCHUARTZ, Luiz Fernando. Norma, Contingência e Racionalidade, p.17). “Seria a
meu ver um característico exemplo de reducionismo pensar genericamente no “cientista do
direito” que conhece normas como o sujeito exclusivo dos “juízos jurídicos” cuja análise Kelsen
nos conclama nesta passagem a reconstituir. É importante ter presente, ao contrário, que,
metodologicamente falando, o cientista kelseniano somente pode entrar em cena após a
contribuição do “terceiro” responvel pela interpretação do ato como um ato instituidor de norma
(“die Deutung der Akte als Rechtsakte”), uma vez que essa aparece como um fator de instituição
da norma que o primeiro se ocupa de conhecer. (SCHUARTZ, Luiz Fernando. Norma,
Contingência e Racionalidade, pp.38/39).
85
LOSANO, Mário G. apud. KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. p. XIII
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57
construção social, é sempre fruto da linguagem. O legein, portanto, enquanto
organização de significado é sempre instituído. Não há como se falar em uma
realidade-em-si lógico-identitária, pois como Wittgeinstein sabiamente percebeu a
linguagem não espelha uma referência.
Tentei demonstrar que Kelsen não imiscui qualquer referência a valores
determinados na Teoria Pura do Direito, por entender que o significado de
qualquer valor é sempre uma criação da linguagem, um construto social, o que em
nada desmere-se sua função política, mas impede sua defesa enquanto verdade
absoluta.
Contudo, Kelsen e Wittgeinstein só chegaram em seu desenvolvimento
teórico ao legein. Já Castoriadis vai além e quando digo que o real também é
constituído pelo social, é porque entendo, com base em Castoriadis, que ele não é
unicamente constituído pela linguagem.
A ordem do real não esgota o real. Se o significado é sempre criação, o
sentido por sua vez é potência e é ele que impulsiona a produção de significado,
por isso que, agora, após o leão cumprir sua tarefa de nos libertar da moral do
significado, falarei sobre a possibilidade de pensarmos para a contemporaneidade
uma ética do sentido, uma Santa Afirmação.
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3
Parte II:Uma Santa Afirmação
3.1
Eficácia Global da Norma:o rombo ou a porta?
As críticas transcendentes à teoria de Kelsen, no fundo se resumem a duas
posições jurídicas que, embora adversárias, acabam se unindo na crítica ao
kelseanismo. São elas: as teorias sociológicas do direito e as teorias
jusnaturalistas. As primeiras sustentam que o direito é um fenômeno social e por
conta disso, reprovam o formalismo abstrato de Kelsen. Os Jusnaturalistas, por
sua vez, defendem um ideal de justiça questionável e objetam que a Teoria Pura
aceita como direito qualquer ordem, das mais democráticas às mais vis, contanto
que certas características formais sejam preenchidas.
No capítulo anterior me preocupei em demonstrar que tais teorias criticam
o kelseanismo a partir de seus pressupostos, que em nenhum momento, foram os
mesmos de Kelsen e por este motivo, chegam a conclusões tão diversas. Kelsen
em sua obra repetidamente buscou esclarecer que escrevia uma Teoria Pura do
Direito Positivo e não uma Teoria do Direito Puro, desligado da realidade e isento
de valores.
Em momento algum o autor negou a pertinência e a validade de estudos
sociológicos do direito, apenas não se propôs a escrever sobre isso na Teoria Pura.
Justamente por se tratarem de abordagens distintas (a sociológica, a estrutural e a
valorativa), que estes temas podem ser objeto de pesquisas científicas diferentes,
não se excluindo reciprocamente
.1
Quanto à teoria de Kelsen ser aberta a qualquer ancoragem estatal, isso se
dá, como amplamente discorrido no capítulo precedente, por uma questão de
honestidade epistemológica. Não há como se afirmar dentro de uma lógica
conjuntista-identitária como a do leigen, que é a esfera onde se processa o Direito,
valores absolutos e imutáveis.
1
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça, p.XVII.
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59
Além disso, o Direito enquanto fenômeno social não se produz unicamente
a partir da delimitação de seus conceitos. Ao contrário, no caso de Kelsen, este
procurou formular sua Teoria Geral do Direito através do estudo das
“semelhanças de família” encontradas em todos os fenômenos classificados na
prática social como Direito. Se, dentro deste contexto de práticas, ordenamentos
de caráter reprovável para a moral vigente eram classificados como ordens
jurídicas e se estes possuíam semelhanças de família com outras ordens
moralmente mais “legítimas”, não cabia a Kelsen dentro de seu propósito
questionar.
Todavia, partirmos de uma perspectiva construtivista neste trabalho, onde
o fenômeno jurídico aqui é entendido como um constructo social e por tal prisma
a conceituação efetuada por Kelsen, não obstante partir de dados concretos e
buscar apenas descrevê-los, assim como inúmeros outros elementos
evidentemente também influencia na perspectiva dos operadores do Direito de
forma a construir esse fenômeno que hoje classificamos como Direito.
Pelo aqui descrito, acredito ter demonstrado que a influência do
kelseanismo, a par de todas as críticas recebidas, foi e é ainda uma influência
muito positiva, na medida em que cria a liberdade necessária para a terceira
transformação do espírito, ou seja, para o desenvolvimento da alteridade.
Há ainda aqueles que buscam fazer uma crítica imanente à Teoria de
Kelsen. Partindo de seus pressupostos, buscam encontrar incoerências em sua
teoria. Por esses críticos, normalmente dois pontos são destacados como
nevrálgicos na Teoria Pura: a exigência da eficácia para a validade de uma norma
jurídica e o fato de a norma fundamental não ser uma norma em sentido
kelseniano.
A respeito de a norma fundamental, remeto os leitores ao capítulo anterior,
onde foi explicitado que esta não é uma norma jurídica como definida pela Teoria
Pura. Não é uma ordem posta e sim pressuposta, é um expediente gnoseológico
para encerrar em um sistema unitário os vários níveis normativos. Mais que isso, é
a pressuposição da própria instituição do leigen, fora do qual não é possível se
pensar em nenhuma teoria jurídica.
Kelsen para aqueles que, apesar do esclarecido, insistem em querer
enxergar a norma fundamental como um artifício através do qual se escamoteia
uma avaliação de justiça ou de oportunidade, responde:
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60
O problema do direito natural é o eterno problema daquilo que está por trás do
direito positivo. E quem procura uma resposta encontrará – temo – não a verdade
absoluta de uma metafísica nem a justiça absoluta de um direito natural. Quem
levanta esse véu sem fechar os olhos vê-se fixado pelo olhar esbugalhado da
Górgona do poder.
2
Quanto à exigência da eficácia para a validade de uma norma jurídica
3,
pretendo me estender mais sobre tema, pois entendo ser aqui a ponte para a
construção de uma ética do sentido subjacente à Teoria Pura do Direito. Do ponto
de vista metodológico, não se deve atribuir conteúdos a uma teoria que não os
quer ter, mas estamos em um momento de emergência de um novo paradigma,
onde a liberdade trazida pelo Leão não é mais suficiente, onde é necessário se
chegar a uma Santa Afirmação.
O que para os críticos pode ser um ponto nevrálgico da Teoria Pura por
fazer concessão à realidade, ao contrário, me parece ser o elemento de sua própria
evolução futura e não de sua destruição. É através da exigência da eficácia para a
validade da norma jurídica que a Teoria Pura transformará o Leão em criança, em
uma roda que gira sobre si.
Há quem diga que nos momentos em que precisou escolher entre o
respeito à realidade e a coerência da construção, Kelsen renunciou a coerência por
respeito à realidade. A contrário sensu, não vejo incoerência teórica em apontar a
eficácia como condição para a validade da norma jurídica
4.
Haveria, sim,
2
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça, p. XX.
3
“A afirmação de que uma norma é válida e a afirmação de que é eficaz são, é verdade, duas
afirmações diferentes. (...) Uma norma é considerada válida apenas com a condição de pertencer a
um sistema de normas, a uma ordem que, no todo, é eficaz. Assim, a eficácia é uma condição de
validade; uma condição, não a razão da validade. Uma norma não é válida porque é eficaz; ela é
válida se a ordem à qual pertence é como um todo, eficaz.” (KELSEN, Hans. Teoria Geral do
Direito e do Estado, p.58).
4
Luiz Fernando Schuartz a respeito nos diz: “Kelsen tem razão na sua insistência na
impossibilidade de redução do problema da validade da norma jurídica a uma questão psicológica
ou sociológica. Validade, com efeito, é um termo que indica um determinado status normativo
que, como tal, não se deixa reduzir às atitudes – ainda que socialmente generalizadas – daqueles
que o atribuem (embora delas não possa separar-se de um ponto de vista “genético’). Nesse
sentido, validade não é o mesmo que “crença” na legitimidade, na autoridade ou na competência
da instância produtora de direito, na medida em que inclui, essencialmente, a referência a uma
perspectiva normativa a partir da qual pode ser conservada a diferenciação entre a atitude de
tratamento de algo como autorizado, de um lado, e o atributo consistente em estar autorizado de
outro.”( Norma, Contingência e Racionalidade, pp.57/58).“ Validade , assim, é o termo usado para
batizar a atitude justificada ou fundamentada do “terceiro desinteressado” na sua atribuição do
significado pragmático de dever-ser “objetivo” ao ato de vontade intencionalmente orientado ao
comportamento de outros. (Norma, Contingência e Racionalidade, p.35)
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61
incoerência na teoria Kelseniana, se validade e eficácia da norma fossem
identificadas, mas isso não é o que acontece. Kelsen é claro em afirmar que:“(…)
a eficácia é uma condição de validade; uma condição, não a razão da validade.
Uma norma não é válida porque é eficaz; ela é válida se a ordem à qual pertence
é como um todo eficaz.”
5
Kelsen, ao delimitar seu método e objeto de estudo no texto
¿
Qué es la
Teoria Pura do Derecho?
6
,foi claro em aduzir que a Teoria Pura se apóia na
comparação de todos os fenômenos qualificados como “Direito”, para investigar
sua estrutura típica, independente do conteúdo variante que possa ter tido nas
diferentes épocas e países. Ora, se a base para o desenvolvimento da Teoria Pura é
a comparação dos fenômenos qualificados como Direito, fica evidente que a
eficácia - e aqui é importante ressaltar que quando Kelsen fala de eficácia como
condição de validade, ele não se refere à eficácia da norma e sim à eficácia global
do ordenamento jurídico - há de ser condição para qualquer desenvolvimento
teórico kelseniano, posto que não há fenômeno qualificado como Direito a ser
estudado e comparado se não há um mínimo de eficácia global do ordenamento.
O ‘mundo externo’ ou a realidade, como preferem chamar os críticos de
Kelsen, pode ser um pré-requisito para nossos conceitos e assim o é, não só na
Teoria Pura, mas em qualquer teoria. O que diferencia a Teoria Pura das demais e
permite sua inserção dentro de uma perspectiva pragmática, como já reiterado
neste trabalho, é a consciência de que esses fatores ‘externos’ apesar de serem
condições da própria cognição, não são fatores determinantes na criação de seus
significados.
A clareza epistemológica de Kelsen era tamanha que o permitiu ser capaz
de explicitar as fronteiras de sua teoria. Delimitar até onde, com base em seus
pressupostos, dentro daquilo a que se propunha, sua construção teórica poderia
chegar. O que os críticos de Kelsen entendem como pontos sensíveis ou buracos
na Teoria Pura, seria mais pertinente entendermos como limites Não à-toa, os dois
pontos controversos, encontram-se especificamente nos pontos inicial e final de
sua construção.
5
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 58.
6
KELSEN, Hans.
¿
Qué es la Teoria Pura del Derecho?, pp.7/9.
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62
O ponto inicial, relativo à norma fundamental, afirmei considerar
intransponível dentro de uma perspectiva lógico-identitária. É o limite da
cognição racional.
7
Lembrando novamente Castoriadis: “É que a própria
instituição só pode ser como norma de identidade, de identidade da instituição
consigo mesma, ela só pode ser sendo ela própria o que ela decreta como
devendo ser: identidade da norma a si mesma estabelecida pela norma para que
possa haver norma de identidade a si mesmo”
8.
Tentar ir além, no âmbito do
legein seria impossível e sair desse estrato não era o objetivo de Kelsen, que nele
tinha seu recorte metodológico para entender o Direito
Só que, sem dúvidas, o céu é muito maior e muito mais amplo que o
horizonte alcançado por nossos olhos e por nossa razão Hoje já é possível se
enriquecer a perspectiva construtivista, ao ampliarmos a crítica epistemológica,
mudando de paradigma O Leão já matou o dragão e agora quer se tornar criança.
A Modernidade, contexto em que Kelsen escreveu sua obra, pelo avanço
de seu próprio método nos permitiu chegar a crítica do essencialismo e da teoria
representacional de linguagem. Mas isso não é mais o suficiente. Não devemos
ficar presos aos limites da “virada lingüística”, é hora de reivindicarmos
experiências de conhecimento diferentes da científica que se legitimam não pelos
seus fundamentos, mas por sua pertinência. É hora de se validar outras formas de
relacionamento com o real que não unicamente a razão.
9
A Teoria Pura do Direito pode e deve ser considerada a mais refinada
análise positivista da estrutura da ordenação jurídica, o que já foi uma grande
aquisição para a “ciência” jurídica. Mas não se esgotam aí os benefícios teóricos e
práticos que podemos adquirir dessa fonte abundante. Se ampliarmos a crítica
epistemológica de forma a levá-la para além dos limites da consciência em que
normalmente fica confinada, o modelo kelseniano pode se mostrar como uma
grande aquisição para a contemporaneidade, na medida em permite se pensar as
7
“Pois toda ordem lógica linear ou aberta (tal como por exemplo uma ordem hipotética-dedutiva)
deixa em aberto a questão da justificação, ou da necessidade, de seu ponto de partida, ela implica
portanto que este é externo a todo discurso, ela deve ser retomada e justificada no e pelo discurso;
e, em última instância, a justificação da primeira tese encontra-se na totalidade de suas
conseqüências, que assim fundamentam o que as fundamenta”. (CASTORIADIS, Cornelius. A
Instituição Imaginária da Sociedade, p.260.) Podemos dizer que no caso da Teoria Pura do
Direito, partindo do que disse Castoriadis, a eficácia global do ordenamento como totalidade de
suas conseqüências, é o que justifica a norma fundamental.
8
A Instituição Imaginária da Sociedade, pp. 242 / 243.
9
PLASTINO, Carlos Alberto. O Quinto Rombo: a psicanálise, pp.1/2.
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formas de produção e apreensão de sentido, que constituem as raízes mais
profundas da construção da subjetividade” como um mecanismo de avaliação e
autoregulação dos ordenamentos positivados
O ponto final (a eficácia global da norma) estabelecido por Kelsen em sua
teoria, ao contrário do inicial (a norma fundamental), é possível de ser
aprofundado de forma a atualizar a Teoria Pura, tornando-a um instrumental
adequado na construção de um futuro decente. Contudo, para tanto é necessário
que se abarque outras modalidades de apreensão do real que não apenas a
científico racional
Kelsen, como um homem moderno que era, entendia ser o conhecimento
científico racional o único válido. Isso o levou a relegar ao âmbito político
questões que também dizem respeito ao âmbito jurídico, na medida em que são
condições prévias e, portanto, limites a instituição social normativa, mas que não
se esgotam na razão.
Existe um primeiro estrato natural que sustenta a dimensão conjuntizável
onde são produzidas as normas. Castoriadis para explicar a sustentação da
dimensão conjuntizável no primeiro estrato natural, nos dá o seguinte exemplo:
“Homens e mulheres vivem em uma sociedade; podem ser reconhecidos sem
ambigüidade (biologicamente) como machos e femeas. Engendram meninos e
meninas que são, sempre e em todos os lugares, incapazes de sobreviver a não ser
que sejam cuidados por adultos durante um tempobastante longo. Tudo isso não
procede nem da legislação da consciência transcedental, nem da instituição da
sociedade. Os conjuntos de homens e mulheres, ou de crianças que não atingiram
um determinado grau de maturação biológica, são considerados estritamente
como tais, dados naturalmente; assim como são dados naturalmente os atributos
certos ou extremamente prováveis que os afetam. A instituição da sociedade é
sempre obrigada a levar em consideração esta repartição da coletividade
(considerada como um conjunto de cabeças) num subconjunto masculino e num
subconjunto feminino; mas este levar em consideração ocorre em e por uma
transformação do fato natural de ser-masculino ou de ser-feminino em
significação imaginária social de ser-homem ou de ser-mulher, o que se liga ao
magma de todas as significações imaginárias da sociedade considerada. Nem esta
transformação como tal, nem o teor cada vez específico da significação em
questão podem ser deduzidos, produzidos, derivados a partir do fato natural,
sempre e em toda parte o mesmo. Este fato faz com que existam marcos ou
limites para a instituição da sociedade(...)
10
No mesmo sentido:
10
A Instituição Imaginária da Sociedade, pp.267/268.
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Da mesma maneira pode-se dizer: está excluído que uma sociedade obriga os
homens e as mulheres de maneira que sejam, uns para os outros, o absolutamente
não-desejável. Mas dizer que um desejo heterossexual mínimo deve ser tolerado
pela instituição da sociedade, sob pena de extinção rápida da coletividade
considerada, não diz ainda nada sobre a interminável alquimia do desejo que
observamos na história (...) Da mesma maneira, o fato natural pode fornecer um
ponto de apoio ou uma incitação para tal ou qual instituição da significação; mas
um abismo separa o apoio ou a incitação da condição necessária e suficiente (...)
11
Esse primeiro estrato, que não é somente conjuntizável mas já
conjuntizado por si, apesar de atuar como um parâmetro ineliminável de
organização do legein, se mostra ainda insuficiente e fragmentário, para não dizer
quase nulo, no que se refere ao teor das significações imaginárias instituídas
socialmente. Isso ocorre, pois mesmo o primeiro estrato natural é sempre, de uma
forma ou de outra, captado ou percebido pela sociedade que o investe de
significação alterando-o ontoló
“Seria até falso dizer que a organização conjuntista do primeiro estrato natural,
tal como é dada “naturalmente”, é incompleta, deficiente ou lacunar. Se
adotamos o ponto de vista do homem-animal, ela não é nem completa nem
incompleta, ela é o que é, e, tal como é, é necessária e suficiente (depois) para a
existência do homem natural – ela é homóloga e consubstancial a esta existência.
Mas se adotamos, como a sociedade desde seu início, o ponto de vista da
significação, a organização conjuntista natural como tal é muito pouca coisa; se
damos à significação o sentido (abusivo) de coerência ou de regularidade, a
organização natural não é nem sequer lacunar, é mais do que fragmentária; sua
parte que aparece como irregular ou incoerente não é nem menos extensa, nem
menos importante do que a que aparece como regular e coerente (...)”
13
Quando falamos de ordenamento jurídico estamos muito longe do ponto
de vista do homem animal. Ao contrário, quando pensamos os fenômenos
qualificados como Direito o fazemos com base em um mar de significações
instituidas socialmente, para o qual o primeiro estrato natural se mostra uma
forma de organização fragmentária, lacunar e incompleta do real.
Já sabemos que o que é percebido não pode ser entendido como “(...)um
conjunto de objetos definidos e determinados num mundo perfeitamente
11
CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade, p. 268.
12
“É alterado em seu modo de ser – na medida em que é e só é por seu investimento pela
significação. É também alterado em seu modo de organização e não pode deixar de sê-lo. Porque
não somente o modo de organização do mundo de significações não é o modo de organização
conjuntista do primeiro estrato natural; mas também, a partir do momento em que tudo deve
significar, esta organização conjuntista não responde, como tal, à questão da significação, e deixa
até de ser uma organização, mesmo conjuntista.”(CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição
Imaginária da Sociedade, pp. 274/275 )
13
CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade, p.275.
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organizado em si mesmo.
14
. Contudo, isso não implica em afirmar que o real seja
um caos desordenado ao qual a consciência teórica impõe sozinha um aordem
que traduz apenas seu próprio arbítrio (...)”
15
Essas lacunas, que encontramos na organização das significações
instituídas quando a pensamos a partir do primeiro estrato natural, só são
verdadeiras lacunas do ponto de vista da organização racional, que enxerga a
organização conjuntista identitária como única organização verdadeira
Para o essencialismo moderno, essas lacunas são temporárias. Só existem
na medida em que ainda não foram sanadas pelo desenvolvimento científico, o
que é um grande equívoco
16
. A visão Pragmática, por sua vez, tem o mérito de
perceber as lacunas como obstáculos inelimináveis do ponto de vista racional. É
da natureza da sociedade significar, o que transubstancia inclusive o primeiro
estrato natural. Daí podermos dizer que o Pragmatismo, que neste trabalho
busquei associar ao pensamento kelseniano, apesar de ser um discurso inserido no
arcabouço Moderno, se configura já como uma crítica parcial a este.
Mas para além do primeiro estrato encontramos o que Castoriadis
denomina magma e que segundo o autor, se dá antes da imposição da lógica
identitária. É algo, portanto, fora do âmbito da consciência e que nos possibilita
apreender o modo de ser do real..
17
Não podemos pensar o social, enquanto coexistência, através da lógica herdada, e
isso significa: não podemos pensa-lo como unidade de uma pluralidade no
sentido habitual desses termos, não podemos pensa-lo como um conjunto
determinável de elementos bem distintos e bem definidos. Temos que pensa-lo
como um magma, e até como um magma de magmas – pelo que compreendo não
o caos, mas o modo de organização de uma diversidade não conjuntizável,
exemplificado pelo social, pelo imaginário ou pelo inconsciente. Para dele falar,
e que só podemos fazer na linguagem social existente, apelamos inevitavelmente
para os termos dolegein conjuntista, tais como um e vários, parte e todo,
14
PLASTINO, Carlos Alberto. Sentido e Complexidade, p.14.
15
PLASTINO, Carlos Alberto. Sentido e Complexidade, p.14.
16
(...) o cientista ocidental, dominado por estas duas fantasias, a de que existe uma organização
racional do mundo (que ele desconhece), e a de que sua ciência está prestes a descobri-la
integralmente (ela produz mais enigmas do que resolve), transporta-as dez mil anos trás ou dez mil
quilômetros mais longe, e interpreta as representações dos selvagens como tentativa de tampar os
buracos que eles deveriam ter descoberto na organização de seu mundo, se eles tivessem sido
dominados por essas mesmas fantasias suas.(CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária
da Sociedade, p.276).
17
“A idéia de “magma” se refere a um real que não pode ser considerado como um puro caos
mesmo quando ele é pensado à margem da organização que lhe impomos com a linguagem. Esta
idéia de magma, como se verá, requer a consideração do inconsciente como instância psíquica de
apreensão /produção do real. (PLASTINO, Carlos Alberto. Sentido e Complexidade, p.13.)
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composição e inclusão. Mas esses termos só funcionam aqui como termos de
referência, não como verdadeiras categorias. Porque não existem categorias
transregionais: a regra de ligação que traz a categoria é vazia se não considera
aquilo com que deve haver ligação. O que ainda é apenas uma outra maneira de
dizer que o ser só é sempre ser dos entes, e que cada região dos entes desvenda
uma outra face do sentido de ser.
18
Magma é a dimensão do real que impõe limites a nossa criatividade, ao
mesmo tempo em que nos permite criar e nos mover pelo discurso, sem termos de
ficar presos a significados fixos e unívocos das palavras que empregamos. Tudo o
que é significado pela lógica identitária-conjuntista, só o é segundo o modo de ser
do magma, que por sua natureza é dinâmico, fluido, virtual, mas não aleatório,
pois tem uma direção que precisa ser respeitada.
Diferente do essencialismo moderno que se insere no que Castoriadis
chamou de primeiro estrato natural e tem embutido em si uma determinidade
ontológica, o magma são “linhas de força” virtuais cuja atualização histórica (sua
produção como parte de um mundo identitário) é sempre criação e pode ocorrer
ou não, dependendo do ambiente que encontram
Tudo o que pode ser dado – representação, natureza, significação – é segundo o
modo de ser do magma. São as operações da lógica identitária que instituem
nesse magma elementos distintos e definidos, organizando o manter-se junto, o
ser-em, o ser-perto em relações determinadas, diferenciando o que assim
distinguem em entidades e propriedades, utilizando esta diferenciação para
constituir conjuntos. A relação entre o legein e o magma, finalmente, não é
pensável dentro do referencial identitário e conjuntista, assim como também não
o são as relações entre legein e natureza e entre consciente e inconsciente.
19
O que pretendo aprofundar daqui em diante são justamente os limites que
a dimensão social criativa.encontra no modo de ser do magma de significações e
que no âmbito do Direito se reflete como aquilo que não pode ser ignorado de
forma universal na construção legislativa do direito positivo, sob pena de não se
ter um ordenamento válido.
O que faz uma ordem ser globalmente eficaz ou não, não é da ordem do
racional ou da significação, mas também não é algo que fique à mercê da vontade
e que não possa ser estudado e apreendido de alguma outra forma, pois tem em si
18
CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade, pp. 217/218.
19
PLASTINO, Carlo Alberto, Sentido e Complexidade, p14
.
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um sentido
20
. Tal se dá, pois qualquer que seja a significação instituída
socialmente, esta acontece em um processo secundário de elaboração que tem sua
raiz ancorada em um processo primário afetivo
O modo de ser magmático, que se manifesta nos afetos originários dos
indivíduos, se traduz como uma condição da validade dos ordenamentos jurídicos,
na medida em que é ele que assegura a organização das significações socialmente
instituídas e, ao mesmo tempo, permite a manifestação criativa dos indivíduos no
discurso.
21
Essa organização não está necessariamente vinculada a preservação de
nenhum valor específico, posto que valores são sempre contingenciais. Mas está
intimamente atrelada a natureza humana, no que essa tem de mais primordial e
menos discursivo - seus afetos originários -, que devem servir como parâmetro
ético a todo o direito posto
22
Leonardo Boff ao diferenciar a moral da ética, informa que a primeira, ou
melhor, as primeiras, pois como o próprio autor diz, são várias as morais, por mais
distintas que sejam, sempre têm seu substrato comum na ética e são reflexo dos
costumes e valores de uma determinada cultura A moral se constitui no e pelo
legein, portanto, se insere em um vasto, mas não infinito, leque de possibilidades
de significação.
Já a ética, teria sua origem no termo grego ethos, que quer dizer morada, o
abrigo permanente dos homens. A ética, ao contrário da moral, é sempre singular,
pois pertence à natureza humana, presente em cada pessoa.”
23
Diz mais, o autor:
“(...) o ethos não é algo acabado, mas algo aberto a ser sempre feito, refeito e
20
Castoriadis atribui à Psicanálise o estudo desse modo de ser do magma, que tem alcance
universal e pode ser encarnado e exemplificado pelo inconsciente.
21
Kelsen em seu livro O Que é a Justiça? já destacava a insuficiência da razão e o papel das
emoções no que diz respeito à justiça: “(...) Aqueles que não conseguem aceitar uma tal solução
metafísica para o problema da justiça, porém, sustentam a idéia de valores absolutos, na esperança
de poder determiná-los de modo racional-científico, iludindo-se com a quimera de ser possível
encontrar na razão humana princípios básicos que constituam aqueles valores absolutos – os quais
são na realidade constituídos por elementos emocionais(...)”( p.11)
22
O fato de esta forma de saber não mediada pela consciência e pela linguagem ser compartilhada
pelo homem, em alguma medida, com outras espécies, em nada invalida sua importância na
constituição das subjetividades. Não sendo modalidades de apreensão exclusivamente humanas
são, no entanto, radicalmente humanas, posto que delas derivam sentimentos tão fundamentias
como os de existir , ser , etc.... O fato de compartilharmos essa forma de apreensão, em alguma
medida, com outras espécies, não deve assim levar-nos a ignorá-las, mas deve pelo contrário
incentivar-nos a repensar o corte que estabelecemos entre nós e a natureza, isto é a repensar nossa
inserção nesta. ( PLASTINO, Carlos Alberto. O Quinto Rombo: a psicanálise, p.4).
23
BOFF, Leonardo. Ethos Mundial, p.34.
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cuidado como só acontece com a moradia humana.
24
A ética é magma. Ser ético
não é preservar significados contingentes, é respeitar a forma de ser do real que se
estende a tudo e a todos, daí poder se defender a sua universalidade e
inexorabilidade como condição ontológica de validação das significações
25
A ética que entendo haver implicita na Teria Pura do Direito, através do
mecanismo de autoregulação do ordenamento que é a eficácia global como
condição de validade, é uma ética do sentido. É magma, ou seja, não informa o
que deve ser o conteúdo material do direito, não informa quais devem ser as
significações criadas, mas informa o que o Direito não pode ser em absoluto sob
pena de invalidez do ordenamento.
3.2
Pulsões de Liberdade e Igualdade
Pela análise metateórica da obra de Kelsen, concluímos que seus
pressupostos metodológicos o atrelam diretamente a sua opção política. E em sua
obra política, aquilo que ficou parcamente delineado na Teoria Pura do Direito,
aparece com mais punjança como as condições inalienáveis para o exercício
democrático do direito. Por isso, daqui em diante me remeterei mais à construção
política de Kelsen do que a Teoria Pura.
Kelsen entende a liberdade e a igualdade como dois postulados
absolutamente necessário à concepção de democracia. Ele os classifica como dois
instintos primordiais do ser social que exigem satisfação. Vemos então que, para
Kelsen, liberdade e igualdade não são valores, ou seja, não são normatizações, são
afetos originários.
Entendo que ao definir liberdade e igualdade como instintos primordiais,
portanto, dados prévios à qualquer construção social, Kelsen, sem perceber,
chegou a uma unificação não primariamente intensionada
26
entre os conceitos de
24
BOFF, Leonardo. Ethos Mundial, p.35.
25
O sentido se vincula às emoções, não tem, portanto, forma noramativa, é pré-linguístico. O
significado, por sua vez, é a construção social histórica e contingente desse sentido. É sempre
plural e provisório.
26
Ulises Schmill ao cunhar a expressão “unificación no primariamente intensionada” lhe deu a
seguinte definição: “cuando se está en ‘el camino seguro de una ciencia’, para emplear la
expresión kantiana, la postulación de una hipóteses que tiene por objeto la explicación de un
conjunto específico de fenômenos, a menudo conduce a explicar outro conjunto de fenômenos no
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liberdade e igualdade e um conceito central para a Teoria Psicanalítica que é a
noção de Pulsão. É a partir da teorização pulsional e de sua evolução que pretendo
chegar aos parâmetros éticos inalienáveis na vida em sociedade.
Ao contrário de teorias que já nascem prontas e armadas como Minerva, a
teoria das pulsões foi sendo gradativamente construída, revista, pensada,
saboreada, digerida, o que a torna um conceito não muito fácil. Porém, o fato de
não ser um conceito pacífico e palatável a priori, de ter tido avanços, recuos e até
descaminhos em sua elaboração, não diminui seu valor, ao contrário, torna o seu
estudo imprescindível para que se chegue cada dia mais a uma percepção apurada
de seu sentido e nos permite ao acompanhar sua evolução, usá-la para atualizar a
teoria kelseniana, tornando esta um pouco mais eficiente para o paradigma
emergente
.
.
27
Mas afinal o que seriam as pulsões? Freud atribuiu ao conceito de pulsão
três características essenciais: ser básico, obscuro e convencional. O que só vem a
reafirmar o processo teórico freudiano como uma construção. Nenhuma ciência –
nem mesmo as mais “exatas”- começa sua elaboração a partir de conceitos claros
e bem definidos. Freud, apesar de empirista, tinha a exata noção de que não é
possível abrir mão do uso de idéias abstratas que, inicialmente, apresentam um
certo grau de indeterminação e que não são auferidas da experiência prática, por
serem justamente condições para a observação desta.
28
Não é diferente com os
conceitos de igualdade e liberdade na teoria política de Kelsen, que são os pilares
para o desenvolvimento de sua Teoria Política Democrática.
29
comprendidos originariamente dentro del objeto de explicación o a resolver outro conjunto de
problemas distintos; en otras ocasiones, se encuentran analogias o simetrias, no sospechadas em
um principio, entre diversas disciplinas científicas y, por último, también suele acontecer que la
nueva hipótesis permite estabelecer relaciones conceptuales com otras ciências, relaciones que
anteriormente no eran posibles.”( Ensayos sobre Jurisprudência y Teología, p.7) Apesar de ter
sido grande o interesse de Kelsen pelas obras de Freud e de muitas vezes se perceber menções
explícitas em seus livros, especialmente em relação à Toten e Tabu, quando Kelsen se propõe a
falar de democracia não encontramos nenhuma referência expressa à Teoria Pulsional.
Encontramos sim, menção explícita à Teoria Pulsional no livro O Problema da Justiça onde
Kelsen critica a tentativa de se fundar o Direito Natural na natureza humana.
27
Freud vinte anos após ter proposto o conceito de pulsão declarou ser a doutrina da pulsão a peça
mais importante, mas também a mais inconclusa da Teoria Psicanalítica. (GARCIA-ROZA,
Introdução à Metapsicologia Freudiana, vol 3. p.81)
28
PLASTINO, Carlos Alberto. Como pensar o conceito de pulsão hoje?
29“Na idéia de democracia – e é dessa idéia que queremos tratar primeiro, e não da realidade
política mais ou menos próxima dela – encontram-se dois postulados da nossa razão prática,
exigem satisfação dois instintos primordiais (grifo meu) do ser social. Em primeiro lugar, a
reação contra a coerção resultante do estado de sociedade, o protesto contra a vontade alheia diante
da qual é preciso inclinar-se, o protesto contra o tormento da heteronomia. É a própria natureza
(grifo meu) que, exigindo liberdade, se rebela contra a sociedade. O peso da vontade alheia,
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Inicialmente tais idéias são convenções que, evidentemente, devem sempre
ser submetidas a revisão, a partir de novas experiências, refinando assim cada vez
mais o quadro teórico. O conceito de pulsão é uma convenção, ou ficção teórica,
como são os conceitos fundamentais de qualquer ciência. Através dele, Freud não
procura descrever o real e sim explicá-lo, constituindo uma nova forma de
inteligibilidade que se dá pela capacidade de apreensão inconsciente. Se os
metaconceitos são constitutivos, ao revê-los, podemos repensar a Teoria Pura do
Direito.
Sem dúvidas, o conceito de pulsão é o mais original dentre os conceitos
elaborados por Freud. Esse teve seu primeiro aparecimento nos textos freudianos,
no ano de 1890
30
. Nessa época, porém, seu uso se dava mais no nível
terminológico do que efetivamente de forma conceitual, portanto, com contornos
mal definidos e extensão pouco clara.
Não foram raras as ocasiões em que o termo pulsão (Trieb) foi
indistintamente substituído pelos termos: excitação pulsional (Triebregung),
moção de desejo (Wunschregung), estímulo pulsional (Triebreiz), excitação
(Erregung), entre outros. Porém, apesar da dificuldade que a imprecisão
terminológica trouxe para o rastreamento do conceito, é importante destacar que
em nenhum momento Freud empregou como sinônimos os termos pulsão (Trieb)
e instinto (Instinkt).
Pulsão passou a ser tratada de forma mais conceitual na obra de Freud
apartir dos Três Ensaios de Teoria Sexual (1905). Aqui ainda especificamente
como pulsão sexual (Sexual-trieb)
).31
Posteriormente, o conceito foi expandido,
passando a ser entendido como energia de Eros. Não se trata de uma evolução da
imposto pela vida em sociedade, parece tanto mais opressivo quanto mais diretamente se exprime
no homem o sentimento primitivo (grifo meu) do próprio valor, quanto mais elementar frente ao
mandante, ao que comanda, é o tipo de vida de quem é obrigado a obedecer: ‘Ele é homem como
eu,somos iguais, então que direito tem ele de mandar em mim?’ Assim, a idéia absolutamente
negativa e com profundas raízes anti-heróicas de igualdade trabalha em favor de uma
exigência
igualmente negatva de liberdade. Da idéia de que somos – idealmente – iguais, pode-se deduzir
que ninguém deve mandar em ninguém. Mas a experiência ensina que, se quisermos ser realmente
todos iguais, deveremos deixar-nos comandar. Por isso a ideologia política não renunciar a unir
liberdade com igualdade. A síntese desses dois princípios é justamente a característica da
democracia (...)” ( KELSEN, Hans. A Democracia, p.27.)
30
Em 1889 o termo Trieb ( pulsão ), corrente na língua alemã, foi utilizado em uma resenha de um
livro de Forel feita por Freud, vindo depois a reaparecer na correspondência que esse manteve
com Fliess no Projeto 1895 e ainda nos Estudos sobre a histeria ( 1893-1895). Em 1898 voltou a
ser utilizado em um parágrafo do artigo A sexualidade na etiologia das neuroses e no cap. 6 de A
interpretação do sonho. (GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Introdução à Metapsicologia Freudiana,
vol., p.79.)
31
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Introdução à Metapsicologia Freudiana, vol. 3, pp.79 / 82.
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teoria pulsional e sim da construção de duas teorias diferentes, com objetos
conceituais diferentes. O que não significa que elas não tenham relação nenhuma
entre si. Não tendo, inclusive, a segunda vindo a substituir totalmente a primeira,
na medida em que ambas foram alicerçadas em experiências distintas e elaboradas
sobre pressupostos paradigmáticos também diferentes.
O conceito de pulsão delineia o discurso psicanalítico, marcando ao
mesmo tempo o seu limite, não por ser de uma profundidade incognoscível, mas
por ser um limite produzido pela própria teoria. Ele implica uma justificação e
uma derivação crítica a partir da própria teoria e sua incompletude e
desenvolvimento gradual, ao longo da obra de Freud, só demonstram o paciente e
cuidadoso trabalho de produção teórico do qual é fruto.
32
Em Três Enaios de Teoria Sxual (1905), quando pela primeira vez surge o
conceito de pulsão, ainda há uma certa indefinição quanto a sua natureza ser
psíquica ou não-psíquica. Em algumas passagens é posto como se tratasse de um
estímulo constante proveniente do corpo. Em outras, é posto como representante
psíquico desses estímulos, sendo ainda declarado por Freud como um conceito
fronteiriço entre o anímico e o corporal. Porém, quanto a sua fonte não restam
dúvidas, são os órgãos do corpo e sua meta imediata consiste em cancelar esse
estímulo de órgão.
No Projeto 1895 e em Para introduzir o narcisismo, Freud afirma o
aparato psíquico como um aparato de captura, transformação e ordenação das
excitações (intensidades externas ao aparato psíquico
33
), dentre as quais as de
maior intensidade são as intensidades pulsionais. Infere-se disso, então, que as
pulsões são externas ao psíquico, não podendo, portanto, ser entendidas como um
estímulo psíquico e sim como um estímulo ao psíquico. Elas impõem exigências
de trabalho ao psíquico e só passam a ser regidas pelos princípios que regulam o
funcionamento desse aparato, quando capturadas por ele.
32
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. O Mal Radical em Freud, pp. 10/12.
33
Essas excitações tanto podem ser exógenas ao corpo, não atingindo assim diretamente o sistema,
já que antes passam pelos órgãos do sentido e esses funcionam como barreiras protetoras contra os
danos decorrentes de Qs (Quantität) muito intensas. Como podem ainda ser endógenas, caso em
que o sistema está em conexão direta com as excitações, não havendo nem tela protetora, nem
fuga, para as Qs provenientes do próprio corpo. É possível se esquivar dos estímulos externos, mas
é impossível fazer o mesmo com os estímulos internos, residindo nisso a mola pulsional do
mecanismo psíquico. (GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Introdução à Metapsicologia Freudiana,
vol. 3, pp.83/84.)
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Da mesma forma, a liberdade e a igualdade, como estímulos primordiais,
são externas ao social, prévias ao legein, só passando a ser regidas pelo aparato
social quando incorporadas por ele. Kelsen se detém longamente em seu livro A
Democracia para explicar como se dá essa passagem da liberdade-instinto
inalienável do ser, para o conceito de liberdade democrática.
Se a idéia de liberdade pode tornar-se um princípio dessa organização social – de
que antes era negação – e finalmente um princípio de organização estatal, isso só
é possível através de uma mudança de significado. A negação absoluta de
qualquer vínculo social em geral, e portanto do Estado em particular, leva ao
reconhecimento de uma forma especial desse vínculo, a democracia, que , com
seu contrário dialético, a autocracia, representa todas as possíveis formas do
Estado, aliás, da sociedade em geral.
34
Podemos, assim, distinguir dois momentos: um quando lidamos com a
pulsão em si, estímulo corporal endógeno externo ao psíquico e outro em que ela
se presentifica no aparato psíquico através de uma representação. Tal distinção
corresponde à afirmação da existência de duas regiões no campo psicanalítico: a
do aparato psíquico - regida pelo princípio de prazer e da realidade - onde impera
a ordem das representações, ordem dos significantes e uma região externa a
regência do princípio - para além do princípio de prazer - que diz respeito à pulsão
propriamente dita.
Fica claro que uma coisa é a pulsão, outra são as formas pelas quais ela é
representada na vida anímica. A pulsão está além do espaço representacional.
Entendo que o que Kelsen chamou de “instintos primordiais de liberdade e
igualdade” é também algo além da representação, além dos significados
socialmente instituidos, daí em sua elaboração teórica jurídica Kelsen não
defender nenhuma representação normativa específica para garantia desses
impulsos Por isso ser possível, mesmo partindo de referenciais relativistas, se
pensar em garantias para liberdade e igualdade, na medida em que estas são
entendidas não como valores instituidos, mas como afetos originários que
condicionam a construção de significado, como o magma de significações
possíveis
Com relação à sua fonte, na primeira tópica não é ainda possível se
distinguir qualitativamente entre as pulsões. Se há alguma diferença entre as
34
KELSEN, Hans. A Democracia, p. 28.
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pulsões é devido a magnitude da excitação.
Para Freud, nesse momento de sua
obra, o aparato psíquico capta apenas quantidades (Q) e não qualidades. Tal
assertiva demonstra o peso do instrumental fisicalista na elaboração freudiana da
época, o que posteriormente veio a se desdobrar em impasses no desenvolvimento
da sua obra, constatados pelo próprio autor. Não obstante, as sucessivas
transformações sofridas pelo conceito de pulsão não mudaram o aspecto básico da
concepção antropológica freudiana, que concebe a pulsão como designação de
“fatores endógenos”.
35
Entre os estímulos endógenos, para a teoria psicanalítica, se faz necessário
distinguir os estímulos fisiológicos e os pulsionais. Freud acreditava que os órgãos
do corpo forneciam excitações de ambas as espécies e o que as diferenciava era a
sua natureza química. Uma delas, designada como especificamente sexual, tinha
como órgão afetado a zona erógena. Freud não conseguiu chegar a qualquer
indicação satisfatória quanto à natureza química da pulsão sexual e sua distinção
em relação à não-sexual. Essa tarefa, posteriormente, se tornou ainda mais difícil,
quando em seu texto sobre o narcisismo, ele estendeu a erogeneidade ao corpo
como um todo.
Outra característica essencial das pulsões é sua emergência como força
constante. O que diferencia fundamentalmente as excitações de fonte endógena
das exógenas é o fato das primeiras serem forças constantes e as segundas forças
momentâneas, pois ao contrário daquelas, podem ser removidas através de uma
ação adequada.
36
.
Essa consideração, por sua vez, nos remete ao problema do alvo
da pulsão.
A pulsão tem como alvo a sua satisfação e essa só seria possível pelo
cancelamento do estado de estimulação na fonte da pulsão. Digo seria e não é,
pois se o que diferencia uma excitação de fonte endógena de uma de fonte
exógena é exatamente o fato de não se ter como fugir dela, ou dizendo de outra
forma, cancelá-la, podemos concluir, então, que só é possível alcançar satisfação
parcial em relação à pulsão. Do contrário, ela não seria uma força constante
(konstante Kraft) e sim uma força momentânea (momentane Stosskraft). A não
satisfação plena faz parte da própria natureza da pulsão e também dos impulsos de
liberdade e igualdade.
35
PLASTINO, Carlos Alberto. Como pensar o conceito de pulsão hoje?,pp.18/19
36
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Introdução à Metapsicologia Freudiana, vol. 3, pp.83/86.
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74
(...) a existência da sociedade ou do Estado pressupõe que possa haver
discordância entre a ordem social e a vontade daqueles que se lhe submetem. Se
entre dever e ser existisse sempre coincidência, ou seja, se fosse infinito o valor
da liberdade, já não se poderia falar de submissos. A democracia, em favor da
elaboração de uma ordem social ulterior, renuncia à unanimidade que,
hipoteticamente, poderia ser aplicada à sua fundação por contrato e contenta-se
com as decisões tomadas pela maioria, limitando-se a aproximar-se de seu ideal
original
37
O alvo é o mesmo para todas as pulsões: a sua satisfação, mesmo que
parcial. Os caminhos, por sua vez, que conduzem a ela, podem ser os mais
diversos. Tanto quanto os atos sexuais, também a sublimação, o recalque e os
demais destinos das pulsões podem ser considerados formas de satisfação parcial.
Disso podemos depreender que o problema não reside na impossibilidade de
satisfação da pulsão e sim nas formas com que a satisfação parcial acontece.
Outrossim, nunca se chegará à satisfação plena dos impulsos de liberdade
e igualdade, pois essa insatisfação é própria de sua natureza. Todavia, a resposta
estatal aos anseios de liberdade e igualdade dos cidadãos pode ser diversa e
dependendo da forma como essa satisfação é tida, pode ou não se produzir um
sentimento de justiça ou de legitimidade naqueles que a recepcionam. O fato de os
atos sexuais, a sublimação, o recalque, entre outros, serem formas parciais de
satisfação das pulsões, não os torna iguais, nem igualmente desejáveis. Não é
diferente com as respostas normativas que possam vir a ser objeto das pulsões de
liberdade e igualdade aqui tratadas.
Freud vai além e afirma que essa satisfação já foi obtida um dia em nossa
pré-história individual. A incessante busca de satisfação trazida pelas pulsões não
seria outra, que não a busca do objeto perdido. Busca que se repete infinitamente,
já que a coisa está irremediavelmente perdida, pois nunca foi tida.
38
37
KELSEN, Hans. A Democracia, p.30.
38
A idéia trazida por Freud sobre o objeto perdido não é nova, tendo sua origem no surgimento da
Metafísica. É da essência desta, postular a existência de um objeto absoluto, inacessível ao
conhecimento, mas real em si-mesmo, cingindo assim o mundo dos objetos em uma parte regida
pelos fenômenos, pela nossa experiência e outra regida pela verdadeira realidade. Kant se deparou
com o problema central dessa perspectiva, qual seja, como é possível se conhecer a coisa-em-si.
Heidegger, Lacan e Freud também escreveram sobre o conceito de Ding (coisa). O das Ding
freudiano se aproxima bastante do Kantiano. Ele não se refere à busca da coisa um dia possuída e
depois perdida e sim a um objeto perdido, embora nunca o tenhamos tido, e que deve ser
reencontrado.Nessa procura, formam-se as representações e esse processo é governado pelo
princípio de prazer, que através da energia (Q) se transfere de representação para representação.
No momento em que a pulsão constitui seu primeiro representante, instaura-se uma proximidade e
ao mesmo tempo uma distância de das Ding, pois a partir desse momento, independente de qual
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A satisfação parcialmente obtida, por meio dos objetos apropriados pela
pulsão, se dá no campo do principio de prazer. Estes objetos, pretendentes a
absolutos, são na verdade da ordem da representação e o que neles evidencia a
impossibilidade da satisfação é a dimensão do real.
O objeto da pulsão é o que há de mais variável nela, o que em momento
algum diminui sua importância, pois somente por meio do objeto que a satisfação
parcial pode ser obtida. A pulsão necessita de um objeto, só não precisa ser um
objeto específico. O que também de forma alguma quer dizer que lhe seja apto
qualquer objeto. Ligam-se a ela apenas aqueles que por sua particularidade podem
satisfazer parcialmente a pulsão. Particularidades não inerentes à coisa em si, nem
relacionadas a uma possível adequação às fontes pulsionais e sim vinculadas à
história do sujeito, ao seu desejo e fantasias.
De fato não existe um objeto específico, ou seja, um direito em si, que ao
ser tutelado vá satisfazer plenamente as pulsões de igualdade e liberdade dos
cidadãos, mas isso não quer dizer que qualquer objeto sirva. E o que torna um
objeto apto a satisfazer parcialmente uma pulsão, como bem explicado por Freud,
não são características intrínsecas do objeto, mas sua vinculação à história dos
sujeitos, sua forma de vida, seu contexto. É a sua construção de significado dentro
de uma determinada prática social. Daí a importância de se pensar o Direito,
através de um referencial pragmático, como o aqui proposto.
Para Freud só se pode falar em objeto com a relação que se estabelece pela
palavra que dá unidade e significado às imagens sensoriais dispersas.
Transformam-se, por meio dessa relação, as associações de objeto em
representação-objeto (Objektvorstellung). A pulsão, portanto, não investe em
objetos externos e sim em representações-objeto. Entre o objeto, no sentido de
coisa-do-mundo e as pulsões, moram o desejo e a fantasia.
39
Por fim, uma última característica importante de ser mencionada nas
pulsões é a pressão (Drang). Essa força não se refere apenas a um fator gerador de
seja o representante, o objeto está perdido. (GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. O Mal Radical em
Freud, pp 74/84. )
39
É importante diferenciar aqui representação do objeto de representação-objeto. A primeira seria
uma cópia cujo modelo é um objeto externo. Este não é o conceito freudiano, que se refere a
representações-objeto. Para Freud, o objeto é constituído pela incidência da palavra sobre as
sensações provenientes dos estímulos externos. É a própria representação que é tomada como
objeto. (GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Introdução à Metapsicologia Freudiana, vol 3, p. 95 )
Representação do objeto estaria inserido dentro de uma perspectiva representacional de linguagem,
ao passo que representação-objeto se atrela a uma perspectiva não-representacional de linguagem .
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76
movimento, pois diferente dos estímulos externos ou mesmo dos estímulos
internos associados a necessidades (fome, sede, etc...) que atuam como força de
choque momentânea, a pulsão do ponto de vista energético se assemelha muito
mais a uma energia potencial do que a uma energia cinética. Ela impõe um
verdadeiro processo de transformação complexo da energia acumulada que
implica, ainda, em uma codificação desse material.
“Há, sem dúvida, um caráter motor implicado nesse processo. A Qn armazenada
no sistema ψ tende à descarga através de caminhos motores. Esta é, inclusive, a
característica principal do Drang apontado por Freud. O objetivo da descarga
motora é o alívio da tensão em ψ . No entanto, tal alívio ocorrerá apenas se for
eliminado o estímulo na fonte corporal, o que é impossível com a simples
descarga. Para que o estímulo seja eliminado, é necessária uma ação específica, o
que por sua vez implica um complexo trabalho de discriminação não redutível a
um processo puramente mecânico.”
40
A pressão é uma propriedade também presente no instinto, o que não pode
nos levar a confundir instinto e pulsão. No caso da pulsão, o que está em jogo não
é a totalidade do organismo, nem sua função adaptativa ao ambiente e sim um
aparelho cuja regulação se dá pelo princípio de prazer e da realidade, e que resulta
em uma ação que nada tem necessariamente de adaptativa. Essa regulação ocorre
no nível das representações, que tem seu suporte material no sistema nervoso, não
no organismo em sua totalidade. A própria constância da pressão já é indicativa de
que a pulsão não está a serviço de nenhuma das funções biológicas que costumam
ser caracterizadas por ritmo, alternância e possibilidade de satisfação através da
eliminação do estado de excitação na fonte.
41
É relevante aprofundar a análise no sentido de diferenciar instinto e
pulsão, pois é natural do mundo da cultura, por medo do que é novo, tentar
enquadrar os conceitos inovadores em padrões de saber já constituídos e não foi
diferente com os conceitos freudianos.
42
O conceito de pulsão (Trieb) quando não
lhe teve negado qualquer valor explicativo, teve recusada sua originalidade, sendo
enquadrado como instinto.
40
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Introdução à Metapsicologia Freudiana, vol 3, p.89.
41
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Introdução à Metapsicologia Freudiana, vol 3I, pp. 79/99.
42
Por vezes, me refiro ao longo do texto aos instintos de igualdade e liberdade, mas o faço em
deferência ao termo usado originalmente por Kelsen, que em momento algum aventou a
possibilidade de fazer essa distinção entre instinto e pulsão. Gostaria de esclarecer, portanto, que
quando me refiro aos instintos de igualdade e liberdade, na verdade, o que pretendo é me referir ao
termo pulsão de liberdade e igualdade, que considero mais técnico e adequado à proposta da
dissertação.
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77
Outrossim, a interpretação biologizante da teoria freudiana foi reforçada
por uma tradução feita por James Strachey do alemão Trieb para o inglês Instinct,
o que contribuiu muito para aumentar a confusão entre os conceitos. Além disso,
ambos se referem à relação corpo e objetos do mundo e tem por alvo a satisfação.
Não bastando, Freud ainda alimentou a celeuma ao introduzir a hipótese de
“apoio”.
O autor em Três ensaios sobre a sexualidade diz que as pulsões se apóiam
inicialmente nos instintos, assim como as pulsões sexuais se apóiam nas pulsões
de auto-conservação. Essa hipótese foi retomada, posteriormente, em Pulsões e
destinos de pulsão, gozando de enorme prestígio entre os comentadores de Freud.
Tal hipótese, se verdadeira, nos conduziria a uma gênese da pulsão a partir do
instinto
43,
o que segundo Garcia-Roza seria algo difícil de sustentar.
44
Para ele o
conceito de apoio (Anlehnung) só se justifica, como “fruto de um compromisso
empirista de Freud com a ciência da época e como um resquício do naturalismo
nos primórdios de sua construção teórica”.
45
Freud em momento algum usa a palavra instinto para se referir à pulsão,
mas são constantes as aproximações entre ambos os conceitos, tanto no que diz
respeito à origem, quanto em relação à natureza de ambos. Um aspecto relevante,
mas pouco abordado, é o fato de a etiologia ter causado uma grande
transformação na noção de instinto vigente à época em que Freud formulou pela
primeira vez o conceito de pulsão.
Mas afinal, o que seria um instinto? Algo que diz respeito apenas aos
animais ou também aos homens? A noção mais vulgar de instinto nos leva a
pensar em um comportamento mecânico, inato, imutável, hereditário e comum em
cada espécie animal, mas tal concepção já foi desqualificada pelo
desenvolvimento dos estudos do comportamento animal. O instinto não só admite
variações, como por vezes abarca ações inadaptadas. São inúmeras as
possibilidades que a noção de instinto encerra, variando de um campo para outro,
em um mesmo campo, de um autor para outro, em um mesmo autor.
43
O auto-erotismo marcaria o ponto de disjunção do pulsional em relação ao instintivo. GARCIA-
ROZA, Luiz Alfredo. Introdução à Metapsicologia Freudiana, vol 3, p. 108.
44
Apesar de seu sucesso especialmente entre os comentadores franceses, a noção de apoio em
Freud nunca foi uma noção central. Mesmo Lacan, ao reler Freud, não concedeu destaque a esta
noção, chegando inclusive a desprezá-la em suas análises. GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo.
Introdução à Metapsicologia Freudiana, vol 3, p.108.
45
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. O Mal Radical em Freud, pp 13/14.
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78
Quando se opõe pulsão e instinto, normalmente se faz referência a uma
noção geral de instinto que não corresponde a nenhum segmento teórico
específico, nem a nenhum autor em especial, mas isso não significa que a
distinção não deve ser mantida, pois independente da concepção de instinto
adotada, qualquer uma delas sempre implica um padrão estável de comportamento
que tem por finalidade a adaptação ao meio ambiente e se dá por meio de
esquemas inatos, características tais que não existem no conceito freudiano de
pulsão. Além de que, os instintos se satisfazem com objetos determinados, já a
pulsão busca satisfação, mesmo que parcial, nas mais diversas vicissitudes
.46
Devidamente esclarecido esse ponto, gostaria de retomar o fato de a
elaboração do conceito pulsional ter dado ensejo a duas teorias distintas. A
primeira, assim como a própria Teoria Psicanalítica e a Teoria Pura de Kelsen, foi
produzida no bojo do paradigma Moderno. Logo, tinha como pressuposto uma
excessiva confiança na racionalidade instrumental-formal, se apoiava firmemente
na pretensão de aplicação mecânica de concepções abstratas à realidade, além de
ser conservadora, reducionista e determinista. Tais características limitaram a
elaboração Metapsicológica das descobertas clínicas, provocando sucessivos
impasses e contradições na teoria.
A primeira Teoria Pulsional foi elaborada dentro dos limites da primeira
tópica, onde Freud apesar de sustentar o psiquismo inconsciente como
constituindo o psiquismo genuíno, o teorizava a partir da degradação das
representações conscientes pela intermediação dos mecanismos defensivos. A
pulsão, dentro da lógica mecanicista vigente à época, foi teorizada como pura
quantidade e como indissociável da representação.
47
Foi criado um modelo onde o
mais ínfimo acontecimento podia ser remetido a séries causais plenamente
determinadas. Neste momento, “Freud desenvolve uma teoria que procura fazer
do determinismo psíquico a justificativa do próprio método psicanalítico.”
48
Na primeira tópica, a preocupação maior era analisar as pulsões já
capturadas pelo aparato psíquico e não as pulsões em si mesmas. Desde 1895,
Freud já fazia referência às pulsões como algo externo ao aparelho psíquico, mas
aqui ainda sua verdadeira natureza não havia sido plenamente determinada. Ele
46
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Introdução à Metapsicologia Freudiana, vol 3, pp. 103/ 118.
47
PLASTINO, Carlos Alberto. Como pensar o conceito de pulsão hoje?
48
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Introdução à Metapsicologia Freudiana, vol 3, p. 156.
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79
hesitava em pensá-las separadamente das representações, o que se refletiu na
distinção entre pulsão sexual e pulsão de auto-conservação, associadas à idéia de
apoio.
49
Tanto na primeira quanto na segunda teoria, pulsão designa um impulso
interno que visa à satisfação de necessidades essenciais à vida, só que na primeira
o foco está nas necessidades sexuais, tendo como centro do quadro teórico, o
conceito de “princípio de prazer” e seu mecanismo de descarga.
50
Na Teoria da psicanálise não hesitamos em supor que o curso tomado pelos
eventos mentais está automaticamente regulado pelo principio do prazer, ou seja,
acreditamos que o curso desses eventos é invariavelmente colocado em
movimento por uma tensão desagradável e que tomam uma direção tal, que seu
resultado final coincide com uma redução dessa tensão, isto é, com uma evitação
de desprazer ou uma produção de prazer.
51
Em oposição à noção de pulsão sexual, Freud trabalhou com as pulsões de
auto-conservação ou pulsões do ego e em oposição ao princípio de prazer, ele
usou o princípio de realidade. Dentro do contexto paradigmático Moderno, o
conflito entre o indivíduo com suas necessidades de “descarga
”52e
o ego com sua
necessidade de preservação face à ameaça de sanção social, nada mais é do que o
reflexo da dicotomia natureza/cultura, onde a última deve sempre prevalecer sobre
a primeira.
53
Sob a influência dos instintos de autopreservação do ego, o principio de prazer é
substituído pelo principio de realidade. Este último princípio não abandona a
intenção de fundamentalmente obter prazer; não obstante, exige e efetua o
adiamento da satisfação, o abandono de uma série de possibilidades de obtê-la, e
49
Desde o principio de sua elaboração, a Teoria Pulsional se manteve como dualista. No inicio
Freud trabalhou com o par pulsão sexual/pulsão de auto-conservação. Posteriormente, ao estender
o erotismo para todo o corpo humano, Freud introduziu um novo par, qual seja, pulsão de
Eros/Tanatos. Um dos motivos que levou ao antagonismo entre Freud e Jung, foi este ter
considerado a libido, não mais como um conceito designando especificamente a energia sexual,
mas como um conceito designativo da energia em geral. Freud se referia a teoria monista de Jung,
como uma lamentável descaracterização imposta por este à vida pulsional. (GARCIA-ROZA, Luiz
Alfredo. Introdução à Metapsicologia Freudiana, vol 3, pp. 13/14.)
50
Nas funções psíquicas, haveria um quantum de excitação suscetível de aumento, diminuição,
deslocamento e descarga. O prazer, dentro desse contexto, era caracterizado pela descarga dessa
excitação ou estímulo, enquanto o desprazer era atribuído ao seu aumento.(PLASTINO, Carlos
Alberto. Como pensar o conceito de pulsão hoje?)
51
FREUD, Zigmund. Além do princípio de Prazer, p. 9.
52
Influência mecanicista do paradigma Moderno, que leva o homem a ser visto como uma
máquina, cujas necessidades são entendidas como processos de descarga .
53
PLASTINO, Carlos Alberto. Como pensar o conceito de pulsão hoje? p.8
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80
a tolerância temporária do desprazer como uma etapa no longo e indireto
caminho para o prazer .
54
Outro limite trazido à Teoria das Pulsões pelos pressupostos
epistemológicos da época, foi a impossibilidade de compreender a emergência de
valores qualitativos a partir de fatores quantitativos. Apesar de na experiência
clínica Freud lidar com emoções qualitativamente distintas, na sua elaboração
Metapsicológica o instrumental teórico fisicalista disponível só lhe permitia
pensar pulsão analogamente a estímulo, ou seja, em termos de força e
quantidade
.55
Portanto, mesmo fazendo a diferença entre dois grupos primordiais de
pulsão - as de auto-conservação e as sexuais - Freud entendia não haver diferenças
qualitativas entre as pulsões. O que as distinguia, no nível psíquico, era que as
primeiras visavam a autoconservação do indivíduo e as outras visavam o prazer de
um órgão específico do corpo.
Freud afirmava ainda que apenas as pulsões sexuais teriam por energia a
libido, sendo as pulsões auto-conservadoras não libidinais. Só que, a partir de
1914, ao escrever Introdução ao narcisismo e conceituar narcisismo, ficou
complicado para o autor manter a distinção, uma vez que ele descobre ser o eu
também investido libidinalmente. Importante ressaltar que, essa não era a única
ameaça ao dualismo freudiano na primeira tópica, pois se as pulsões do ego
tinham por fim a conservação do indivíduo, elas corriam o risco de serem
identificadas aos instintos.
No que constituía, a principio, minha completa perplexidade, tomei como ponto
de partida uma expressão do poeta-filósofo Schiller: ‘São a fome e o amor que
movem o mundo’. A fome podia ser vista como representando os instintos que
visam a preservar o individuo, ao passo que o amor se esforça na busca de
objetos, e sua principal função, favorecida de todos os modos pela natureza, é a
preservação da espécie. Assim, de inicio, os instintos do ego e os instintos
objetais se confrontavam mutuamente. Foi para denotar a energia destes últimos,
e somente deles, que introduzi o termo ‘libido’. Assim, a antítese se verificou
entre os instintos do ego e os instintos ‘libidinais’ do amor (em seu sentido mais
amplo), que eram dirigidos a um objeto.(...) Não obstante, alterações nela se
tornaram essenciais, à medida que nossas investigações progrediam das forças
reprimidas para as repressoras, dos instintos objetais para o ego. O decisivo passo
à frente consistiu na introdução do conceito de narcisismo, isto é, a descoberta de
que o próprio ego se acha catexizado pela libido(...) como os instintos do ego
54
FREUD, Zigmund. Além do princípio de Prazer. p.12
55
PLASTINO, Carlos Alberto. Como pensar o conceito de pulsão hoje? p.8
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também são libidinais, pareceu, por certo tempo, inevitável que tivéssemos de
fazer a libido coincidir com a energia instintiva em geral, como C. G. Jung, já
advogara anteriormente. Não obstante, ainda permanecia em mim uma espécie de
convicção, para a qual ainda não me considerava capaz de encontrar razões, de
que os instintos não podiam ser todos da mesma espécie.(...)”
56
Finalmente em 1920, esta distinção cai por terra, quando em Além do
Princípio de Prazer, Freud apresenta um novo dualismo: tanto as pulsões sexuais
quanto as pulsões de auto-conservação são unificadas, sob a noção de pulsão de
Eros, passando a ter como contraposição a pulsão de Tanatos.
57
(...) Meu passo seguinte foi dado em Além do princípio de Prazer (1920),
quando, pela primeira vez, a compulsão para repetir e o caráter conservador da
vida instintiva atraíram minha atenção. Partindo de especulações sobre o começo
da vida e de paralelos biológicos, conclui que, ao lado do instinto para preservar
a substância viva e para reuni-la em unidades cada vez maiores, deveria haver
outro instinto, contrário àquele, buscando dissolver essas unidades e conduzi-las
de volta a seu estado primevo e inorgânico. Isso equivalia a dizer que, assim
como Eros, existia também um instinto de morte. Os fenômenos da vida podiam
ser explicados pela ação concorrente, ou mutuamente oposta, desses dois
instintos(...)
58
Essa mudança conceitual se insere em um conjunto mais amplo de
transformações na concepção freudiana. O saber psicanalítico na segunda tópica,
ao contrário da primeira, foi além do instrumental teórico Moderno, rompendo
parcialmente com os pressupostos do paradigma vigente e se insurgindo de forma
crítica contra este.
59
O conceito de inconsciente foi afirmado como originário e a
pulsão passou a ser pensada como algo independente da representação e imbuída
56
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização, pp. 75/77.
57
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. O Mal Radical em Freud, pp. 139/140.
58
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização, p. 77.
59
“A psicanálise contribuiu de maneira decisiva nessa profunda e multifacetada crítica dos
pressupostos do paradigma moderno. Suas descobertas fundamentais, com efeito, colidem
frontalmente com concepção centrais desse paradigma. Assim, a homogeneidade racional do real,
suposta por este, não resiste à descoberta da forma de ser própria da realidade do inconsciente –o
processo primário- assim como seu racionalismo sucumbe face à descoberta de ser a psiquismo
inconsciente o psiquismo genuíno. Da mesma maneira a afirmação do primado da afetividade na
organização da subjetividade e sua participação nos processos de apreensão colide com o
concepção antropológica da modernidade, centrada na concepção do homem como ser racional.
No terreno epistemológico, finalmente, a primazia outorgada à prática clínica – isto é a uma
relação intersubjetiva centralmente caracterizada por processos afetivos - fornece a experiência de
um saber diferente ao que surge da relação de exterioridade entre um sujeito e um objeto de
conhecimento, modalidade esta última que o paradigma moderno considera exclusiva. Assim, a
psicanálise participa do amplo processo de critica à concepção de um real homogêneo e
potencialmente transparente na simplicidade de sua racionalidade constitutiva. A esta simplicidade
do ser e do conhecer, a critica contemporânea opõe uma perspectiva complexa do real e do
conhecimento.”( PLASTINO, Carlos Alberto. Como pensar o conceito de pulsão hoje?p.14 )
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de qualidade. O primado da afetividade se estabeleceu na segunda Teoria
Pulsional quando a elaboração teórica passou a ser centrada no conceito
fundamental de “ambivalência afetiva originária”.
Isso tem implicações epistemológicas sérias e é fundamental em nossa
busca de uma ética do sentido, pois afirmar a existência de uma pulsão de Eros
afirmar a existência de uma necessidade emocional do ser humano. Compreensão
que é indissociável de uma concepção antropológica que reconhece o homem
como um ser constitutivamente social.
60
E não é só, com a virada epistemológica feita por Freud, a Teoria das
Pulsões passou a ter um objeto conceitual diferente. Os conceitos antes usados
para definir pulsão na primeira tópica – força, meta, objeto e fonte – já não se
aplicam mais na segunda teoria. Muda não só a concepção sobre quais são as duas
funções, mas também a própria concepção do que seja uma pulsão.
61
Sabemos que a pulsão de Eros é constituída pela energia libidinal, mas e
quanto a Tanatos?
62
Até então o máximo que Freud conseguia esclarecer em
relação a isso, era que nem Eros, nem Tanatos, se apresentavam em seu estado
puro. Ambas apareceriam sempre misturadas, sendo para Freud as manifestações
de Eros numerosas e ruidosas e a de Tanatos, invisível e silenciosa.
63
Não era fácil, contudo, demonstrar as atividades desse suposto instinto de morte.
As manifestações de Eros eram visíveis e bastante ruidosas. Poder-se-ia presumir
que o instinto de morte operava silenciosamente dentro do organismo, no sentido
de sua destruição, mas isso, naturalmente, não constituía uma prova. Uma idéia
mais fecunda era a de que uma parte do instinto é desviada no sentido do mundo
externo e vem à luz como um instinto de agressividade e destrutividade. Dessa
maneira, o próprio instinto podia ser compelido para o serviço de Eros, no caso
de o organismo destruir alguma outra coisa, inanimada ou animada, em vez de
destruir o seu próprio eu. Inversamente, qualquer restrição dessa agressividade
dirigida para fora estaria fadada a aumentar a autodestruição, a qual, em todo e
qualquer caso, prossegue. Ao mesmo tempo, pode-se suspeitar, a partir desse
exemplo, que os dois tipos de instinto raramente - talvez nunca - aparecem
isolados um do outro, mas que estão mutuamente mesclados em proporções
60
PLASTINO, Carlos Alberto. Como pensar o conceito de pulsão hoje, p.16.
61
PLASTINO, Carlos Alberto. Como pensar o conceito de pulsão hoje? p.6.
62
Não há, porém, que se confundir libido com pulsão. Libido é um conceito energético e pulsão
um conceito dinâmico. (GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. O Mal Radical em Freud, p. 128 )
63
Freud costumava exemplificar pulsão de morte, remetendo a casos de sadismo e masoquismo
(destrutividade ou agressão associado à sexualidade) ou ainda à noção de compulsão à repetição, o
que seria um engano, pois no primeiro caso trata-se mais de pulsão sexual do que de pulsão de
morte e no segundo exemplo, a referencia se dá a pulsões já apropriadas pela representação e não a
pulsões em si. (GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. O Mal Radical em Freud, p. 142 )
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variadas e muito diferentes, tornando-se assim irreconhecíveis para nosso
julgamento.
64
O nome ‘libido’ pode mais uma vez ser utilizado para denotar as manifestações
do poder de Eros, a fim de distingui-las da energia do instinto de morte. Deve-se
confessar que temos uma dificuldade muito maior em apreender esse instinto:
podemos apenas suspeita-lo, por assim dizer, como algo situado em segundo
plano, pro trás de Eros, fugindo à detecção, a menos que sua presença seja traída
pelo fato de estar ligado a Eros.”
65
Kelsen apesar de também entender os instintos de liberdade e igualdade
como atrelados, ao contrário de Freud, dá maior destaque à liberdade, trazendo a
igualdade como um suporte à primeira. Contudo, entendo que a unificação
primariamente não intensionada se dá entre o instinto de liberdade e a pulsão de
Tanatos e o instinto de igualdade e a pulsão de Eros, respectivamente.
3.3
Freud:o lobo do homem Kelsen
Freud, com tendência nitidamente Hobbesiana, vê o Homo homini lupus
ao pensar a pulsão de morte como destruição. Para ele, Tanatos percorre todos os
campos do comportamento humano e se expressa através das mais diversas
condutas, como explorar o trabalho de alguém, explorar o outro sexualmente,
martirizar e matar. Todas as violências possíveis, da mais extrema a mais benigna,
fazem parte dessa mesma pulsão. Tanatos, como potencia destrutiva, buscaria a
disjunção, seria a produtora de todas as diferenças.
Eros, por sua vez, tenderia à unificação, à indiferenciação e teria a cultura
a seu serviço na busca de unir indivíduos, famílias, nações, objetivando assim a
criação de uma grande unidade que seria a humanidade. É a perfeita reprodução,
nos modos pulsionais, da concepção dicotômica Moderna que separa
natureza/cultura, propondo a dominação desta última sobre a primeira. Caberia,
neste paralelo, à civilização/cultura/Eros impor limites à violência e estabelecer
como fundamento o amor ao próximo, proibindo assim a manifestação da
agressividade latente no coração humano.
64
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização, pp. 77 / 78.
65
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização, p 80.
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Apesar de Freud ter conseguido romper de alguma forma com o
paradigma Moderno ao elaborar a segunda tópica, ele continuou sendo um homem
de seu tempo e como a Modernidade, teve seu momento de esperança na evolução
do mundo pela razão, de acreditar no império das luzes e seu momento de
descrença com o progresso e de contaminação pelo pessimismo do pós-guerra. Se
até O Futuro de uma Ilusão era possível ver a esperança pela reconciliação do
homem com seu semelhante através da intermediação da reflexão cientifica, em O
Mal–Estar na Civilização o tom muda, não havendo mais conciliação possível.
Sofrendo com o passado da cultura – Quem percebe de modo claro o problema
da cultura, sofre de um sentimento semelhante ao de quem herdou uma riqueza
adquirida ilegalmente, ou ao do príncipe que governa graças às violências de seus
antepassados. Pensa com tristeza em sua origem, e com freqüência tem vergonha
e fica irritado. Todo o montante de energia, vontade de viver e alegria que dedica
ao que possui é muitas vezes contrabalançado por uma enorme fadiga: ele não
consegue esquecer sua origem. Olha o futuro com melancolia; os seus
descendentes, ele já sabe, sofrerão do passado assim como ele.
66
Freud de forma determinista, portanto, coadunando com o paradigma
vigente, ao pensar a pulsão de Eros como aquela que promove a união, e a pulsão
de Tanatos como aquela que promove a destruição, reconhece nas pulsões um
sentido, mas o faz em um esquema identitário, associando-o à culpa como
resultado inexorável dessa dinâmica ambivalente. Para ele, além das pulsões,
existiria apenas o mal-estar. Freud chega inclusive a visualizar o fim da espécie
humana pelo próprio processo civilizador.
67
‘O que chamamos de nossa civilização é em grande parte responsável por nossa
desgraça’. Ao exigir tanta renúncia à satisfação de nossas necessidades vitais, ela
se transforma na causa da proliferação das neuroses. Esta civilização favoreceu
ainda o desenvolvimento de ciências e técnicas que permitiram à humanidade
garantir seu domínio sobre a natureza e transformaram os homens em novos
deuses. Mas esta dominação é causa de uma outra desilusão:os homens não se
tornaram mais felizes com o progresso.(...)”
68
(...)Além disso, nenhuma civilização acreditou ser possível suprimir pura e
simplesmente a agressividade. Pelo contrário, ela utiliza a agressão para reforçar
a coesão do grupo(...) Assim se revela a essência de toda a civilização:a guerra
generalizada. Contudo, um grupo (ou Estado) não pode viver constantemente em
guerra aberta. Ele precisa de momentos de repouso; mas, paradoxalmente, é
nesses períodos que o grupo estabelece as restrições à sexualidade e à
66
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano: Um livro para Espíritos Livres, p 171.
67
ENRIQUEZ, Eugène. Da Horda ao Estado: Psicanálise do Vinculo Social. pp 108/113.
68
ENRIQUEZ, Eugène. Da Horda ao Estado: Psicanálise do Vinculo Social, pp 100/101.
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agressividade, que afetarão seus membros de maneira particularmente aguda.
Decorre daí o mal-estar do indivíduo e sua dificuldade de encontrar a felicidade.
69
Como dito anteriormente, para Freud dificilmente a pulsão de morte se
apresenta isolada da pulsão de vida. Ambas costumam vir mescladas e é essa
ligação que tem a culpa como produto. A culpa seria um mecanismo civilizatório
de inibição da tendência agressiva inata
70
e se daria de duas formas: 1) O medo de
não ser amado. A criança ao realizar um mal ou apenas desejá-lo teme ser
castigada pela pessoa que ela investe de onipotência. Tal castigo se dará pela
privação do amor, motivo pelo qual ela obedece seus pais e respeita suas
proibições; 2 ) A angústia diante do superego que passa a ser o herdeiro da
agressividade e que vai retorná-la contra o ego de forma severa e cruel, pois
conhece não só o mal, mas também o desejo do mal.
Não bastando a inexorabilidade da culpa, ainda há um agravante a este
mal-estar. Eros, por ser conjuntivo, alimenta a pulsão de morte. A cada nova
manifestação de Eros, unidades cada vez maiores se constroem e,
conseqüentemente, mais objetos Tanatos encontra para destruir. Para evitar uma
violência generalizada, deve haver um reforço cada vez maior do sentimento de
culpa, mas tal movimento gera um risco enorme de criar uma tensão tão forte que
o individuo possa vir a não suportá-la
71.
(...) Não apenas os homens podem se destruir mutuamente, não apenas as pulsões
agressivas e autodestruidoras não diminuíram (ao contrário), como ainda as
civilizações tornaram-se neuróticas, isto é, incapazes de resolver o conflito criado
pelas exigências do superego coletivo e os desejos de felicidade do indivíduo. As
civilizações aumentam a infelicidade de cada ser humano, ao mesmo tempo em
que não se mostram em condições de fazer prevalecer suas éticas, das quais os
homens se desviam. A civilização está minada pelo interior. Quanto mais ela se
afirma, mais ela desaba. O movimento de glória das civilizações é o início de
suas decadências.(...)”
72
Kelsen ao tratar do tema natureza humana em seus escritos recebeu uma
forte influência de Freud e assim como o autor, também parte de uma perspectiva
69
.ENRIQUEZ, Eugène. Da Horda ao Estado: Psicanálise do Vinculo Social 109/110.
70
Freud introduz essa idéia pela primeira vez em Totem e Tabu, ao falar do grupo de filhos que
nutriam pelo pai primevo um sentimento de ambivalência (amor e ódio) e após seu assassinato,
imbuídos pelo sentimento de culpa, instituíram os dois tabus fundamentais do totemismo.(FREUD,
Sigmundo. Totem e tabu, pp 106/164.)
71
ENRIQUEZ, Eugène. Da Horda ao Estado: Psicanálise do Vinculo Social,pp 113/117.
72
ENRIQUEZ, Eugène. Da Horda ao Estado: Psicanálise do Vinculo Social, p.118.
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86
hobbesiana de homem natural, o que o leva a entender o Estado como técnica
social de controle dos comportamentos humanos, essencial para evitar uma guerra
de todos contra todos na busca da realização de seus desejos egoísticos e de seus
instintos agressivos.
73
Sobre o tema, cito Adrian Sgarbi:
A narrativa de Kelsen é clara e o dilema também: Há uma oposição fundamental
entre a ordem social coativa institucionalizada e o desejo anárquico de retorno a
um estado de natureza perdido numa projeção utópica de um passado de bondade
e de felicidade: uma Idade de Ouro. (...) Mas, em definitivo, para KELSEN, tal
sociedade não existe porque o homem não é bom por natureza. (...) Portanto, sem
uma forma coercitiva para inculcar comportamentos não há controle para a
maquinação do homem. Nessa ausência, cada indivíduo se torna justiceiro de
suas razões antagonizadas, e os instintos egoístas e agressivos dos homens os
impulsionam a ir à busca da realização dos desejos de um “Eu” em prejuízo dos
demais.(...) Percebe-se que Kelsen é leitor de HOBBES. E que o “De Cive” e o
“Leviatã”, respectivamente, são-lhe muito caros, pois não apenas aceita a
determinação de que “No estado de natureza, todos têm desejo e vontade de
ferir...” mas também teme “(...) uma guerra que é de todos contra todos”.
74
Pretendo demonstrar que essa perspectiva kelseniana, tem sua base na
concepção pulsional de Freud, ou melhor, em uma leitura um pouco confusa que
Kelsen faz de Freud, por não ter muito claro os conceitos pulsionais. E que assim
como a teoria Freudiana veio a ser atualizada por autores da psicanálise pós-
freudiana, podemos com eles, e aqui me remeto especialmente a Winnicott,
ampliar nossos horizontes teóricos, de forma a entender o Estado
75
ainda como
uma técnica social de controle dos comportamentos, mas não com fins de
controlar as pulsões de morte e sim como meio de garantir o mais pleno
desenvolvimento daquilo que é constitutivo nos indivíduos, seus impulsos de
Erotismo e Motilidade.
Em seu livro O Problema da Justiça, Kelsen trata expressamente das
pulsões ao falar da tentativa de se fundar o direito natural na natureza humana,
como podemos perceber no trecho abaixo destacado:
Que a doutrina do direito natural pressupõe, na verdade, as normas da conduta
reta (justa) pretensamente deduzidas da natureza e as projeta sobre essa mesma
73
Adrian Sgarbi em seu artigo Entorno da Natureza Humana em Kelsen:A Liberdade e a Ordem
trata de forma bem extensa sobre o tema, sendo recomendada a leitura para aqueles que quiserem
se aprofundar no assunto.
74
SGARBI, Adrian. Entorno da Natureza Humana em Kelsen: A Liberdade e a Ordem, pp. 8/9
75
Kelsen identifica a noção de Estado com ordenamento jurídico. Quando me remeto a Estado,
tenho como pressuposto essa identificação.
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87
natureza, mostram-no claramente as tentativas de fundamentar o direito natural
na natureza do homem, sendo essa “natureza” do homem procurada nas
tendências deste, nas suas inclinações e instintos, ou seja nas suas pulsões (grifo
meu), na sua razão ou nos seus sentimentos. Esta natureza do homem é, no
essencial, a sua natureza psíquica, não a sua natureza física: é a sua constituição
‘interna’
76
Ele começa sua argumentação trazendo como principal objeção a tal
hipótese o fato de não se poder derivar do ser nenhuma norma de dever ser, pois
se da natureza do homem se concluem as normas as quais ele deve seguir, em
verdade, não se pode concluir que ele deva se comportar de nenhuma outra
maneira que não a que se comporta. E segue no argumento, dizendo:
Se se admite que as pulsões observadas no homem são a ‘natureza’ do
homem e são, portanto, naturais (grifo meu,) se se conclui da existência de
uma pulsão uma norma por força da qual os homens devem se conduzir da
maneira como se conduzem determinados por essa pulsão, uma tal norma começa
logo por ser supérflua. Com efeito, os homens conduzem–se de fato da
maneira como são determinados pelas suas pulsões (grifo meu); e é um
contra-senso prescrever aos homens que se conduzam tal como eles efetivamente
se conduzem sem nenhum comando nesse sentido.
77
Aqui já começam os primeiros enganos. Kelsen inicia levantando como
hipótese a possibilidade de se admitir que as pulsões observadas no homem são a
natureza do homem e são portanto naturais. Bem, o que ele chama de as pulsões
‘observadas’ nos homens, não são as pulsões em si e sim o investimento das
pulsões em representações-objeto, o que não deixa de ter um apoio no modo de
ser do magma, mas já está imbuído de significado pelo social.
Depois, Kelsen aduz que partindo da hipótese aventada como premissa, a
conclusão lógica da existência de uma pulsão seria a existência de uma norma
desnecessária, posto que esta instituiría como dever ser o que já é. Pois bem,
novamente um erro conceitual. O autor se esqueceu que ao contrário dos instintos,
as pulsões não têm um objeto determinado e são infinitas as possibilidades de
satisfação parcial das pulsões.
A forma de satisfação não depende apenas do sujeito, mas também do
ambiente em que ele se encontra inserido e o fato de uma determinada vicissitude
ser o objeto em que contingencialmente recaia a pulsão, não o torna
76
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça, pp.76/77.
77
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça, p.78.
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necessariamente o melhor objeto de satisfação. Logo, não há como se determinar
uma norma ideal de conduta mesmo que se admita, e admitimos todos, Kelsen,
Freud e eu, que a natureza humana seja pulsional. O que é diferente de se afirmar
que qualquer objeto sirva às pulsões e mais, que as pulsões, ainda que virtuais,
não tenham um sentido.
A argumentação de Kelsen não se esgota aí. Ele segue dizendo o seguinte:
É importante observar também que as pulsões dos homens estão em conflito
umas com as outras, tanto dentro do próprio homem singular, cuja conduta é
muito freqüentemente o resultado de pulsões que mutuamente se contradizem,
quer dizer, o resultado da mais forte das duas pulsões em conflito, como ainda
nas relações entre os diferentes indivíduos, na medida em que a satisfação da
pulsão de um indivíduo é inconciliável com a satisfação da pulsão de outro
indivíduo.
78
Kelsen ía bem na análise dos textos de Freud até a metade do parágrafo,
pois é inegável que este também enxerga um conflito entre as pulsões dentro do
próprio indivíduo, a ponto de em seu livro O Mal-Estar na Civilização ter
condenado a sociedade de forma determinista ao mal-estar e a culpa. Mas entre
haver um conflito entre as pulsões, que é a tese defendida por Freud
79
e haver um
conflito nas relações entre os indivíduos, por serem inconciliáveis suas pulsões, há
uma longa distância. Reiterando o parágrafo anterior, as pulsões não têm objetos
determinados, não havendo, a principio, incompatibilidade nenhuma na satisfação
dos diversos indivíduos.
Além do que, como veremos mais adiante, se buscamos entender as
pulsões como parte do que Castoriadis chamou de magma e não como entes que
compõem o primeiro estrato natural, mesmo o conflito entre as pulsões no interior
do próprio indivíduo não existe.
Kelsen para exemplificar o conflito produzidos pelas pulsões, fala do
impulso de autoconservação, que segundo o autor, tem um papel importante na
78
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça, p.78. Em seu livro O que é a Justiça? Kelsen incide no
mesmo engodo: “A Ilusão de que é possível ‘voltar à natureza’ baseia-se na crença de que o
homem é bom ‘por natureza’. Ignora o fato de que a felicidade de um homem é muitas vezes
incompatível com a felicidade de um outro e de que, portanto, uma ordem natural justa, que
garanta a felicidade de todos e, por conseguinte, não tenha de reagir a perturbações com medidas
de coerção, não é compatível com a ‘natureza’ dos homens, a julgar pelo que conhecemos sobre
ela.” (SGARBI, Adrian. Entorno da Natureza Humana em Kelsen: A Liberdade e a Ordem, p.7)
79
Este entendimento não é pacífico no campo da psicanálise. Winnicott, por exemplo, não
enxerga um papel antagônico entre as pulsões e muito menos adere ao caráter inevitável do mal –
estar na cultura. (PLASTINO, Carlos Alberto. Winnicott: A Fidelidade da Heterodoxia )
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doutrina do direito natural que procura fundamentar sua legitimação na natureza
humana e que muitas vezes é contraditado por um impulso do indivíduo de por
fim a sua vida.
O impulso do homem para conservar a sua vida apenas pode ser considerado
como “natural” porque e na medida em que de fato existe. Por isso, devemos
considerar igualmente como “natural” o impulso do homem, que em certas
circunstâncias também de fato existe, para pôr termo à própria vida. Se, do fato
de o homem ter o impulso para, em certas circunstâncias, conservar a sua vida,
concluímos que o homem deve, nessas circunstâncias, conservar a sua vida, não
poderemos nos negar a concluir, do fato inegável de que o homem em dadas
circunstâncias tem o impulso de pôr termo à vida, a norma segundo a qual o
homem em certas circunstâncias deve pôr termo à vida. O que significa que do
impulso “natural” para a autoconservação – e por causa do impulso igualmente
existente e também “natural” para a autodestruição – não podemos fazer derivar
nenhuma norma de direito natural unívoca relativa à conduta do homem perante a
sua própria vida.
80
Nesse ponto de seu discurso encontramos mais uma confusão teórica.
Kelsen opõe pulsão de autoconservação, conceito trazido na primeira tópica, à
pulsão de morte, que só veio a ser teoriazada nos textos da virada. A pulsão de
autoconservação se opõe a pulsão sexual, classificação reelaborada por Freud na
segunda síntese ao conceituar pulsão de Eros e Tanatos.
Diz ainda:
O impulso de autoconservação do homem dirige-se, porém, à conservação e
promoção da própria vida de cada homem e muito freqüentemente apenas pode
ser satisfeito à custa da vida e da promoção da vida de outros. Quer isto dizer que
a satisfação do impulso de autoconservação de um pode estar - e em muitos casos
está – em conflito com a satisfação do impulso de autoconservação dos outros. O
problema da justiça é:como resolver esse conflito?
81
O impulso de autoconservação, ao contrário do exposto por Kelsen, não
pode ser satisfeito a custa da vida dos outros, na medida em que é o que
impulsiona o ego através de sua necessidade de preservação face a ameaça de
sanção social. Ele, portanto, dirige-se a conservação da própria vida sim, mas isso
se dá através de sua adaptação ao meio social. De qualquer sorte, tal conceito já
não nos importa, pois como explicado, foi reconstruído na segunda síntese.
80
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça, p. 79.
81
KELSEN, Hans. O Problema da Justiça, p. 79.
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90
Afirmar a existência de uma pulsão de Eros é afirmar a necessidade emocional do
ser humano, é reconhecê-lo como um ser constitutivamente social, o que enquanto
premissa, enviabiliza a conclusão supra.
82
Kelsen encerra a discussão aduzindo que nenhuma teoria do direito natural
na busca do direito justo poderá ver na ‘natureza’ do homem todos os impulsos
existentes de fato, mas apenas aqueles que são tidos como bons e que devem ser
seguidos. E que esse maniqueísmo que divide os impulsos entre bons e maus não
é próprio deles, mas pressuposto por uma norma que prescreve quais são os
impulsos que devem e os que não devem ser seguidos.
Entre erros e acertos, o que podemos tirar da análise das incursões teóricas
de Kelsen sobre a teoria pulsional de Freud é:
1-
Que as normas que preceituam condutas tidas como corretas,
pretensamente deduzidas da natureza, pressupostas pela doutrina do
direito natural, em verdade, são projeções maniqueístas sobre essa
mesma natureza, deduzidas de alguma outra norma de valor
veladamente pressuposta.
2-
Que dos fatos, ou seja, da satisfação parcial das pulsões através de
objetos-representações, não podemos pressupor normas de conduta
ideal.
3-
Que a bem da verdade, não podemos pressupor de forma absoluta
normas de conduta ideal em nenhuma circunstância, pois só o fato
de serem normas e, portanto, instituídas e compartilhaveis, já as
torna relativas à interpretação daquele que está jogando o jogo de
linguagem.
83
4-
Que os homens são de fato influenciados e não determinados em seu
comportamento por suas pulsões.
82
“(...) Freud postula, na primeira elaboração metapsicológica, a derivação da instância
inconsciente a partir da consciência, mediante o processo de recalque. As novas evidências
clínicas, bem como os impasses teóricos provocados por essa perspectiva, determinaram as
sucessivas e profundas transformações nas concepções metapsicológicas, abrindo espaço para a
postulação, nos textos da virada, do Id como inconsciente originário enraizado no corpo. Processo
similar aconteceu com a questão dos afetos, inicialmente considerados insuscetíveis de existência
inconsciente e tributários das significações veiculadas por representações conscientes, para serem
posteriormente reconhecidos como o cerne da constituição do psiquismo”. (PLASTINO, Carlos
Alberto. Winnicott: A Fidelidade da Heterodoxia, p.2)
83
Essa conclusão é uma versão mais ampla do item 2, com base não só na incursão teórica de
Kelsen sobre as pulsões, mas com base no todo exposto até o presente momento.
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91
5-
Que existem objetos melhores que outros para as pulsões.
6-
Que partindo de uma perspectiva maniqueísta e, portanto,
reducionista, os homens têm pulsões ‘boas’ e ‘ruins’, não podendo
os impulsos de morte, associados por Freud à agressividade e
destruição, serem descartados da natureza humana como pretendem
os Jusnaturalistas.
7-
Que esse impulso de morte, que eu chamaria não de ruim, mas de
individualizante, não pode se sobrepor a pulsão de Eros, de forma, a
tornar o homem um lobo de seu semelhante, despido de qualquer
necessidade afetiva para sua constituição.
8-
Que Kelsen atirou no que viu e acertou no que não viu. Se o autor
quando se propôs a falar de pulsões para negar uma teoria da Justiça
fundada na natureza humana se atrapalhou um pouco e misturou as
tópicas, além de fazer uma leitura equivocada de alguns conceitos
como a pulsão de autoconservação, por outro lado, ao falar de
liberdade e igualdade, como instintos primordiais e fundantes da
democracia, conseguiu abrir caminho para se pensar uma ética do
sentido, não ancorada em valores construídos socialmente, mas em
fatores constitutivos e pré-sociais, em afetos originários que devem
servir de parâmetro para qualquer construção normativa.
9-
Que não existe um significado determinado, mas existe um sentido
nas pulsões.
10-
Que o problema da justiça não é resolver o conflito entre o indivíduo
e a sociedade, entre seus impulsos de Tanatos e Eros, ao contrário, é
permitir que a dualidade pulsional seja experiênciada da forma mais
plena, dando espaço para que os homens vivam a sua alteridade, que
assim como as pulsões, é algo que já vem inscrito potencialmente
em si, é pré-linguístico, é constitutivo, é magma.
O social-histórico emerge no que não é o social-histórico – no pré-social, ou no
natural. A emergência da alteridade já está inscrita na temporalidade pré-social,
ou natural. Esse termo visa um ser-assim em si, ao mesmo tempo incontornável e
indescritível, do primeiro estrato “físico”, e “biológico”, que toda sociedade não
somente pressupõe mas da qual ela não pode jamais ser separada-distinguida-
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92
abstraída absolutamente pelo qual, em certo sentido, ela é totalmente penetrada,
que ela “recebe” obrigatoriamente, mas que ela “retoma” diferentemente, e
arbitrariamente, em e por sua instituição(...).
84
3.4
O Bem-Estar na Civilização
São muitos os méritos de Freud ao intuir o conceito de pulsão e perceber a
importância para o movimento que é a vida, do poder de destruição. Muitos foram
os méritos dele em tentar cientificar, conceituar, estabelecer limites, conhecer as
bases, sistematizar, o que há muito tempo já era também intuído por outros, mas
que talvez ainda não tivesse sido tão claramente traduzido em discurso.
(...)o ritmo vibrante que inspira toda a vida, a dança espiral dupla, o redemoinho
para dentro e para fora do ser. Eles não exprimiam essa intuição intelectualmente,
mas por imagens (...) A vida e a morte eram um fluxo continuo; os mortos eram
enterrados como se estivessem adormecidos em um útero, cercados por suas
ferramentas e ornamentos a fim de que pudessem despertar para uma nova vida
(...) A dança espiral também era vista do céu: na lua, que mensalmente morre e
renasce; no sol, cuja luz traz o calor do verão e, quando esta se vai, o frio do
inverno (...)
85
As pulsões foram inicialmente intuídas. Não à toa, são parte essencial da
bruxa metapsicologia, são um conhecimento apreendido e não descoberto ou
entendido. Destarte, sua teorização, sua aplicação no concreto, sua tradução para o
mundo das representações, que é o único possível de ser compartilhado, tem
muito de construção. E construção é sempre fundada na singularidade da
experiência de quem a constrói.
A teoria das pulsões e a conclusão do mal-estar são fundadas na
experiência de Freud. Como não poderia deixar de ser, Freud foi um homem de
sua época e conseqüentemente sofreu as limitações decorrentes disso: ser marcado
pela dicotomia natureza/cultura; pelo maniqueísmo, onde o imaginário é
84
CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade, p 242.
85
STARHAWK. A Dança Cósmica das Feiticeiras, pp. 33/36. (Starhawk é ativista pacífica e líder
do movimento feminista espiritual nos Estados Unidos e na Europa. Leciona em alguns colégios
na baía de San Francisco e é autora também de A Quintessência Sagrada, Dreaming to Dark e
Truth or Dare.)
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93
permeado pela crença em um bem e um mal e pelo determinismo, que se
manifesta na idéia de uma evolução rumo a um destino certo.
86
O tempo passou e seguindo os passos de Freud na busca das pulsões,
outros chegaram a conclusões distintas, também baseadas em suas experiências
fundantes. O próprio Freud já dizia que, ao contrário das categorias metafísicas,
que se situam fora do campo da experiência, a metapsicologia tem uma relação
muito frutífera com a experiência psicanalítica. Sobre a metapsicologia e esta
relação com a experiência clínica, Plastino nos fala:
Ela (a metapsicologia) organiza certamente a reflexão e a experiência, mas sofre
também o impacto desta, sendo assim permanentemente suscetível de profundas
transformações. Freud considerava suas categorias metapsicológicas como uma
superestrutura especulativa, acrescentando que ‘todas e cada uma de suas peças
deveriam ser sacrificadas e trocadas sem lamentações quando se verificasse sua
insuficiência’ (Freud, 1986c, 31). Assim, a relação da metapsicologia com a
experiência psicanalítica é de mão dupla ou de circularidade. Em um primeiro
movimento, as categorias metapsicológicas (elaboradas no contexto da vigência
de pressupostos paradigmáticos) organizam a experiência psicanalítica,
posteriormente os resultados desta impulsionam a transformação - por vezes
radical-da metapsicologia. (...)
87
Winnicott é um autor que se propõe a pensar as pulsões de forma um tanto
heterodoxa à trilhada por Freud, mas muito mais adequada às intenções desta
dissertação, motivo pelo qual me estenderei um pouco mais em seu legado. O
fator diferencial de sua teorização é o vitalismo a partir do qual ele constrói sua
perspectiva sobre o desenvolvimento emocional. Ou seja, ele “afirma assim a
existência de uma tendência inata ao crescimento, incluindo nessa tendência um
processo evolutivo no desenvolvimento emociona
88
Winnicott teve uma forte
experiência como pediatra, o que contribuiu muito para sua forma de ver o
indivíduo como um ser autocriativo e com tendência a compaixão.
Os fatores históricos podem não ser determinantes na formação dos
sistemas e na cognição, mas são fontes de influência. Winnicott, seguindo essa
orientação, não obstante nos informar sobre a existência dessa tendência inata ao
86
“Com a segunda teoria pulsional, Freud procurou dotar-se de um instrumental teórico que lhe
permitisse pensar o primado dos fatores afetivos nos processos psíquicos, primado que ele sustenta
enfaticamente nos seus textos da virada. Esta nova perspectiva, contudo, foi articulada apenas de
maneira parcial com o restante do corpo teórico, fazendo com que, mesmo nos textos tardios, a
segunda teoria pulsional convivesse com categorias teóricas inspiradas pela antiga perspectiva
fisicalista.”(PLASTINO, Carlos Alberto. Winnicott: A Fidelidade da Heterodoxia, p.4)
87
PLASTINO, Carlos Alberto. Winnicott: A Fidelidade da Heterodoxia, pp. 2/3.
88
PLASTINO, Carlos Alberto. Winnicott: A Fidelidade da Heterodoxia, p.3
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94
crescimento e à autopoiesis, esclarece que sua atualização requer, contudo, um
ambiente favorável, que não existindo, pode levar a sua frustração.
Freud pensou o “vitalismo” da segunda teoria pulsional dentro da
perspectiva determinista hegemônica da modernidade, o que o fez defender que o
resultado da dinâmica das pulsões elementares, independe dos fatores históricos
que pudessem vir a interferir em seu processo de atualização, seria sempre a culpa
e o mal-estar. Já Winnicott, ao abrir espaço para a influência do ambiente, permite
que como produto da dinâmica das pulsões elementares, nos deparemos com um
sentimento ético natural, ao invés de sermos condenados ao sentimento de culpa
89
.
A perspectiva Winnicottiana é absolutamente adequada aos pressupostos
do paradigma emergente, pois entende a relação cultura/natureza nem de forma
disjuntiva, nem de forma reducionista, dando assim uma enorme contribuição para
pensarmos o que é essencial a uma vida descente.
90
A partir de sua observação clínica, Winnicott chegou à concepção de uma
tendência inata ao desenvolvimento dos indivíduos. Na presença de um ambiente
favorável, esta potência de desenvolvimento, por via das pulsões de motilidade e
erotismo,
91,
se atualizaria de forma a propiciar a integração egóica. Ao contrário,
havendo um ambiente desfavorável que se imponha ao indivíduo, a conseqüência
será a produção de um falso “self” ou de um self adaptativo.
92
Em um processo saudável de desenvolvimento emocional os impulsos de
erotismo e motilidade tendem a se fundir, potencializando o impulso criador do
89
Na concepção winnicottiana, a questão do sentimento de culpa não deve ser considerada
separada da questão da emergência do sentimento moral. Na sua perspectiva, não é necessário que
o sentimento moral seja inculcado, pois este emerge espontaneamente quando existe um ambiente
favorável (Winnicott, 1958, 1983ª, 19) (...) A emergência espontânea do sentimento moral a que se
refere Winnicott não caracteriza um processo intelectual mas afetivo, decorrente do movimento
erótico de que o bebê se torna capaz quando conquista a integração egóica. A emergência do
sentimento moral inato é indissociável da constatação de um impulso natural à reparação.
(Winnicott, 1958, 1983ª, 26)” (PLASTINO, Carlos Alberto. Winnicott: A Fidelidade da
Heterodoxia, p.15.)
90
PLASTINO, Carlos Alberto. Winnicott: A Fidelidade da Heterodoxia, p.4.
91
Winnicott não trabalha com o par pulsional Eros e Tanatos e sim com impulsos eróticos e
impulsos de movimento. Para o autor “tanto ele (impulso de motilidade) quanto o erotismo são
mais ou menos equivalentes em todos os bebês. O que difere em cada indivíduo é a dotação de
agressividade, dependendo esta das vicissitudes do relacionamento do bebê com o ambiente.”
(PLASTINO, Carlos Alberto. Winnicott: A Fidelidade da Heterodoxia, p.4.)
92
“Convém insistir que na perspectiva winnicottiana o ‘verdadeiro self’ não pode ser pensado
como uma essência que precede à existência do indivíduo. Pelo contrário, ele é expressão da auto-
criação operada pelo indivíduo no espaço tornado possível por uma provisão ambiental favorável.
Ele caracteriza a atualização – que é criação – em indivíduos singulares da espécie humana, das
linhas de força que, como virtualidade, caracterizam o que Winnicott denomina “natureza
humana” (PLASTINO, Carlos Alberto. Winnicott: A Fidelidade da Heterodoxia, p.11.)
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95
indivíduo. Já em presença de um ambiente intrusivo, essa fusão não se dá no grau
necessário, o que leva a um enfraquecimento do erotismo e a transformação do
impulso de motilidade em agressividade.
Esse é o ponto central para entendermos a diferença entre as concepções
Freudiana e Winnicottiana. Freud entende a pulsão de Tanatos como
agressividade essencial. Winnicott, por sua vez, percebe que o dado é apenas o
impulso de movimento, que só se torna agressivo, na medida em que é interditado
por um ambiente não favorável.
93
Os dados trazidos acima são um passo importante para entendermos de
forma mais clara o que chamei de pulsão de liberdade, que em verdade, nada mais
é do que o impulso à motilidade inerente aos seres humanos e que diante de um
ambiente (leia-se organização político-social) favorável, funde-se à pulsão de
igualdade (Eros) de forma a propiciar a emergência da singularidade de seus
cidadãos, em um constante exercício de auteridade e autopoiese.
Ao passo que em um ambiente que interrompe o desenvolvimento
emocional, por se impor ao indivíduo de forma a sufocar esse processo, a
motilidade transforma-se em agressividade, expressão natural do que em Direito
conhecemos como direito de resistência. Direito de resistência, nada mais é, do
que uma reação natural dos indivíduos à interrupção arbitrária de seu processo de
desenvolvimento emocional, ocasionada por um ambiente intrusivo e sufocador,
com vistas ao estabelecimento de novas formas de acoplamento entre o meio e o
sistema.
94
Da singularidade individual à totalidade da humanidade teríamos uma crescente
indiferenciação. Se entendermos o desejo como pura diferença, o projeto de Eros,
seria o da eliminação das diferenças e, portanto, do desejo, numa indiferenciação
final que é a humanidade. A pulsão de morte enquanto potência destrutiva (ou
princípio disjuntivo) é o que impede a repetição do ‘mesmo’, isto é, a
permanência das totalidades constituídas, provocando a emergência de novas
formas. Neste sentido, contrariamente à idéia da pulsão de morte concebida como
retorno às formas anteriores, temos a pulsão de morte concebida como potência
93
PLASTINO, Carlos Alberto. Winnicott: A Fidelidade da Heterodoxia, pp.4/5.
94
“O ambiente favorável – cuja primeira expressão é a mãe suficientemente boa - ao outorgar
confiabilidade, torna possível o movimento de maturação, que passando pela fusão da motilidade e
do erotismo, dinamiza o viver criativo do sujeito. Em contraste, o falso self é produzido pelo
sujeito como resultado no qual a preservação do existir exige o sacrifício do viver criativo.
Caracteriza um estado de submissão que configura uma base doentia para a vida (Winnicott, 1975,
95). O meio ambiente possui, na perspectiva winnicottiana, a função decisiva de favorecer (ou
sufocar) um processo de maturação que é natural como expressão do impulso vital. ” (PLASTINO,
Carlos Alberto. Winnicott: A Fidelidade da Heterodoxia, p.11.)
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96
criadora, posto que impõe novos começos ao invés de reproduzir o mesmo. A
função conservadora estaria do lado de Eros, enquanto que a pulsão de morte
seria a produtora de novos começos, verdadeira potência criadora.
95
A agressividade, portanto, se manifesta, em relacionamentos de submissão
-onde o viver criativo não é experienciado - que provocam no indivíduo um
sentimento de inutilidade e de ausência de significado em se viver. Para esses
indivíduos, não existe adesão espontânea a norma e nem coação que os faça
aderir, pois não há nada a se perder com a sanção. Para eles, já se perdeu o mais
importante, se perdeu o significado da vida.
96
Estados de Direito onde o
relacionamento com seus cidadãos de forma geral é de submissão e aniquilamento
do viver criativo, são Estados não válidos e, portanto, não existentes na
perspectiva Kelseniana, posto que não têm sua validade ancorada na eficácia
global do ordenamento, dando assim ensejo ao surgimento de uma nova ordem.
O tempo nos mostrou que o determinismo de Freud em relação às pulsões
mais tinha de pessimismo do que de realismo. Não por estar errado em relação ao
mal-estar, mas por ter se enganado quanto à inexorabilidade da culpa enquanto
produto da ambivalência das pulsões. Ao contrário, é justamente a ambivalência
pulsional que mantém a saúde psíquica dos indivíduos.
Na realidade contemporânea, como nos mostram os sintomas das novas
patologias, ao contrário do que previu Freud, o sofrimento está muito mais
atrelado a um sentimento de indiferença do que de culpa. A tendência erótica,
intrínseca ao homem, não se realiza em um contexto em que ela não é dinamizada
pela vida intersubjetiva, o que pode levar o indivíduo a adoecer quando esta se vê
95
Garcia-Roza, assim como Winnicott, também nos traz uma interpretação da teoria pulsional de
Freud onde o determinismo e o pessimismo não têm vez, sendo esses substituídos pela capacidade
criativa. (GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Introdução à Metapsicologia Freudiana, vol. 3, p. 163.)
96
Exemplo claro disso é o crescimento alarmante da violência urbana que temos presenciado. Não
há adesão as normas por uma grande parcela de meninos, meninas, homens e mulheres que
tiveram seu viver criativo e, portanto, seu desenvolvimento emocional aniquilado, por um Estado
que não lhes provê um ambiente favorável ao desenvolvimento. Como solução ao problema, a
opinião pública clama por cada vez mais repressão, sem se dar conta de que essa submissão não
soluciona a questão, ao contrário, descompassa cada vez mais o erotismo e motilidade dentro
desses que talvez não possam nem ser chamados de indivíduos, já que foram tão primariamente
privados em seu desenvolvimento. Não há como se buscar a eficácia por meio da adesão e muito
menos da coação, pois se perdeu o significado de existência. Ser preso ou ser morto, não faz
diferença para aqueles que já não vivem. Para eles, o Estado Democrático de Direito Brasileiro
atual não é válido, não existe e a agressividade que se torna cada vez mais latente é o direito de
resistência desses meninos, meninas, homens e mulheres, que clamam por uma nova ordem. Vai
chegar um momento em que os aniquilados do viver criativo serão maioria e aí, algo terá de
acontecer, uma nova ordem haverá de surgir, nem que seja o dito “Estado Paralelo”, que tomará
conta de uma vez por toda, do que sobrou de nós, uma sociedade de semihumanos, de falsos selfs.
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97
frustrada, pois como já demonstrou a Psicanálise, o social tem caráter constitutivo
na subjetividade humana, através dos processos de identificação. O indivíduo,
enquanto ser social que é, movido por Eros em expansão, tem na sua ausência um
reforço da ação de destruição e do narcisismo.
97
Da mesma maneira, assim como Eros, Tanatos também tem que ser
vivenciada, a fim de se evitar doenças e sofrimentos. Esta deve se manifestar na
forma saudável da agressividade, a raiva como purificadora, aquela que tem o
poder de limitar e destruir quando necessário for, para que da destruição possa
surgir a nova vida.
Cada pulsão contém a outra: a vida gera a morte, alimentando-se da morte;
a morte sustenta a vida, tornando possível a evolução através de novas criações.
São as pulsões, como forças em si necessariamente atreladas a uma representação,
que nos permitem pensar a criatividade humana. É a força pulsional, através de
sua ambivalência, que gera novas representações, constituintes de novas
realidades.
O único destino a que estamos fadados pela vivência das pulsões é o
destino do imaginário radical. Estamos condenados a criar, a viver, a sonhar e ao
sonhar, realizar. Os afetos originários não são nada mais que Ananke. São a
necessidade da vida se expressar em diversidade. Ananke dissolve a separação e,
no entanto, cria a individualidade. É uma mesma força fluindo em direções
opostas, mas não contrárias. Ambas as direções fazendo parte de um mesmo ciclo,
uma dependendo da outra. A energia criada pelo antagonismo é o que flui dentro
de nós e nos movimenta.
Pulsão nada mais é que um nome científico para o que há milhões e
milhões de anos os homens percebem como sendo o paradoxo primordial. Está no
rol dos mistérios do absoluto que nunca poderão ser explicados, somente sentidos
ou intuídos e como tal, só podem ser transmitidos através da experiência pessoal,
que em cada um produz insights diferentes.
Ao contrário de Freud, que por uma dedução lógica chegou a conclusão de
que as pulsões levavam ao mal-estar, pela experiência de quem busca estar em
contato com essas duas forças que são a criação e a desintegração, o crescimento e
a limitação, o erotismo e a motilidades, é possível afirmar que Ananke leva o
97
PLASTINO, Carlos Alberto. Como pensar o conceito de pulsão hoje?
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98
homem a ter como destino a plenitude e não o sofrimento. Mas experiência não se
divide, intuição não se compartilha e como para falar de mistérios, melhor do que
a lógica, são as poesias, termino com Clarisse Lispector essa explanação sobre a
necessidade de ser pleno.
Para além da orelha existe um som, à extremidade do olhar um aspecto, às pontas
dos dedos um objeto – é para lá que eu vou. À ponta do lápis o traço. Onde
expira um pensamento está uma idéia, ao derradeiro hálito de alegria uma outra
alegria, à ponta da espada a magia – é para lá que eu vou. Na ponta dos pés o
salto. Parece a história de alguém que foi e não voltou –é para lá que eu vou. Ou
não vou? Vou, sim. E volto para ver como estão as coisas. Se continuam
mágicas. Realidade? Eu vos espero. É para lá que eu vou.
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4
Conclusão: Por uma Ética ancorada na Natureza
“Não acrediteis em nada, ó monges, simplesmente porque vos foi dito, ou porque
é tradição, ou porque vós mesmos o imaginastes. Não acrediteis no que vosso
mestre vos diz, simplesmente por respeito ao mestre. Se, entretanto, após exame
e análise cuidadosos, verificardes que é condizente com o bem, o benefício e o
bem-estar de todos os seres – em tal doutrina acreditai e apegai-vos a ela,
usando-a como vosso guia.”
Buda
( 563-483 ª C )
The Dhammapada
Busquei nessa dissertação destacar três grandes problemas: o da verdade, o
do poder e o do desenvolvimento individual. Estes três problemas constituem
grandes domínios da experiência humana que só podem ser entendidos uns em
relação aos outros. Independente da perspectiva utilizada, o problema em questão
é sempre o mesmo, isto é, as relações entre o sujeito, a verdade e a constituição da
experiência.
1
Os dois primeiros domínios foram abordados na primeira parte desse
trabalho, por uma análise das relações que mantemos com a verdade através do
saber científico, ou seja, busquei perceber quais são as relações do Direito com
esses jogos de verdade tão caros a nossa civilização, nos quais somos tanto
sujeitos como objetos. Para tanto recorri a Kelsen e a Wittgeinstein.
Kelsen foi escolhido, pois são muito claros os fundamentos
epistemológicos que balizam sua obra e a análise epistemológica está diretamente
apoiada no conceito de verdade. Kelsen parte da seguinte hipótese que perpassa
tanto sua obra política, quanto a jurídica: o conhecimento da verdade absoluta
e/ou a compreensão dos valores absolutos refletem uma concepção absolutista-
metafísica à qual, em política, corresponde a uma atitude autocrática, pois dela
deriva a pretensão de impor, custe o que custar, a verdade e o valor absolutos, a
todos.
A democracia, por sua vez, advém justamente da crença na
inacessibilidade da verdade absoluta e dos valores absolutos ao conhecimento
1
FOUCAULT, Michel. Ética, Sexualidade, Política, p. 289.
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100
humano, o que torna necessário que se considere não apenas a própria opinião.
Kelsen era tributário do relativismo filosófico, portanto, um democrata. Mas não
um democrata qualquer, que entende que a democracia seja um ideal em si
mesmo, mas sim alguém que acreditava ser a democracia um meio ideal para a
realização de um bem maior, a conciliação de dois instintos primordiais do ser
humano, a liberdade e a igualdade.
Fica claro na proposta de Kelsen que o seu grande objetivo ao buscar tão
contundentemente a pureza na Teoria do Direito era não permitir que o objeto da
ciência do Direito fosse manipulado pelo poder que existe por trás do discurso de
verdade. Kelsen, como um Leão, enfrenta o mais virtuoso dos Dragões, aquele
que diz Tu deves ser bom, ser isso, ser aquilo, porque eu sou o portador da
verdade. Kelsen, com sua luta, abriu espaço para a liberdade de cada um conhecer
sua verdade, verdade essa que não é desvelada, mas construída e não de forma
individual, mas nas relações interpessoais.
Não há que se buscar fundamento de legitimidade para o direito posto em
normas de ‘verdade’, pois essas não existem metafisicamente. São apenas
instrumentos de poder, para aqueles que querem impor as suas verdades pessoais.
Ao contrário, como nos mostra a filosofia da linguagem em sua corrente não
representacional, o que existe são verdades socialmente construídas, são
semelhanças de família que se formam através dos jogos de linguagem e que só
fazem sentido dentro de uma determinada comunidade lingüística.
Wittgeinstein foi escolhido como o outro teórico para essa primeira parte,
por ter sido o grande marco na filosofia da linguagem, tendo a primeira parte de
sua obra se prestado a ícone da visão representacional de linguagem e a segunda
parte, como referencial do que concerne a uma visão pragmática de linguagem e
de mundo.
Na elaboração da Teoria Pura, muito do conteúdo implícito não podia ser
explicitado, por amarras do modelo paradigmático em que foi escrito. Kelsen foi
um Moderno, logo, tinha como referencial de ciência um saber pautado nas
ciências naturais, especializado, racional. Isso fez com que o autor deixasse de
enfocar diretamente a importância da conduta em sua obra jurídica, deixando tudo
o que dizia respeito a vontade e aos indivíduos em sua singularidade, para o
campo da política.
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101
Na segunda parte da dissertação, busquei introduzir o problema do sujeito,
que até então havia sido abordado apenas indiretamente, mas não como a história
do sujeito enquanto um acontecimento determinado no tempo, do qual seria
necessário relatar a gênese e o resultado e, sim, como o conjunto dos processos
pelos quais o sujeito existe, através de formas que estão longe de estarem
concluídas.
2
Se é possível fazer uma crítica à Kelsen, e a meu ver só o é possível fazer
olhando de hoje para o passado, é em relação a sua concepção de natureza
humana. Não por que ele estivesse equivocado em relação a tal conceito ou não
tivesse se esmerado em entendê-lo, mas por que o estado da arte em relação ao
tema, à época de seus escritos era monopolizado pela Teoria Freudiana, que por
sua vez era marcadamente influenciada por Hobbes e pelo determinismo
Moderno.
Com o passar dos anos e o avanço na construção do conhecimento, o
manancial teórico de Freud foi atualizado por seus seguidores, dentre os quais
Winnicott merece especial destaque. Ao atualizarmos a Teoria Pulsional
Freudiana, atualizamos também a Teoria Pura de Kelsen, fazendo nela emergir
uma ética do sentido, capaz de nos ajudar a pensar o pluralismo na
contemporaneidade.
Ao pensarmos a Teoria Pura como uma construção de Kelsen que tinha
como subjacente uma visão de natureza humana pautada em Freud, que por sua
vez foi influenciado Hobbes, o que encontramos é uma visão do Direito como
específica técnica social de controle dos comportamentos humanos, com vistas a
tornar possível a co-existência humana, mediante a contenção de seus instintos de
agressão.
Contudo, ao atualizarmos a concepção de natureza humana de Kelsen via
perspectiva vitalista de Winnicott, podemos passar a ver o Direito como
mecanismo de preservação das condições favoráveis à atualização das
virtualidades - pensadas como linhas de força - essenciais a autocriação do
indivíduo em sua singularidade.
A agressividade, ao invés de ser algo a ser combatido, se torna o
mecanismo de autoregulação do funcionamento do ordenamento, que ao frustrar o
2
FOUCAULT, Michel. Ética, Sexualidade, Política, pp. 252/253.
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bom desenvolvimento emocional do indivíduo, descompassando a sua pulsão de
motilidade/liberdade de sua pulsão de igualdade/ erotismo, gera a agressividade.
A agressividade é uma forma inconsciente de limitação do ambiente
intruso, uma forma de resistência à ordem vigente. Para Kelsen, a eficácia global
da norma foi o modo pelo qual a liberdade/motilidade e o erotismo/igualdade
foram pensados como condição ética da validade dos ordenamentos. Quando um
ordenamento deixa de ser globalmente eficaz a um indivíduo
3,
é sinal de que este
como meio está sendo desfavorável ao seu desenvolvimento.
Outro ponto importante a se ressaltar é que Winnicott recusa qualquer
teoria a priori do sujeito. O sujeito para ele não é uma substância determinada, é
uma forma e essa forma é fluida, é dinâmica, é um construir-se. Não se trata aqui
de fornecer um programa para o futuro
4,
nem de conceber um modelo de
subjetivação. Muito do que é tomado por verdadeiro não são mais que temas
fabricados contingencialmente, em um dado momento da história, e que podem
perfeitamente ser criticados e destruídos.
O recurso à teoria de Kelsen, na primeira parte da dissertação, é
justamente porque esta se contrapõem a idéia criada através de diferentes práticas
da existência de um modelo universal de humanidade.
5
Ao explicitar o caráter
relativo das significações, Kelsen nos possibilita tomar consciência dos espaços
de liberdade que ainda dispomos, das mudanças que ainda podem ser efetuadas. É
isso que evoca a teoria Pura do Direito.
6
3
Kelsen quando propõe a eficácia global da norma pensa em um ordenamento eficaz para a
população de forma global Nesse parágrafo, especificamente quando me refiro a um ordenamento
globalmente eficaz, penso o global como característica do ordenamento e não da eficácia, para
diferenciar da ineficácia de uma única ou de algumas normas diante de uma determinada pessoa.
4
“Sabemos muito bem que mesmo quando inspirados pelas melhores intenções, esses programas
sempre se tornam uma ferramenta, um instrumento de opressão. A revolução francesa se serviu de
Rousseau que tanto amava a liberdade, para elaborar um modelo de opressão social. O estalinismo
e o leninismo horrorizariam Marx.” ( FOUCAULT, Michel. Ética, Sexualidade, Política, p.295).
5
“(...) essa idéia do homem tornou-se atualmente normativa, evidente, e é tomada como universal.
Ora, é possível que o humanismo não seja universal, mas correlativo a uma situação particular. O
que chamamos de humanismo foi utilizado pelos marxistas, pelos liberais, pelos nazistas e pelos
católicos. Isso não significa que devamos rejeitar o que chamamos de “direitos do homem” e de
“liberdade”, mas implica a possibilidade de dizer que a liberdade ou os direitos do homem devem
estar circunscritos dentro de certas fronteiras. Se, por exemplo, o senhor tivesse perguntado há 80
anos se a virtude feminina fazia parte do humanismo universal, todo mundo teria respondido que
sim. O que me assusta no humanismo é que ele apresenta uma certa forma de nossa ética como um
modelo universal válido para qualquer tipo de liberdade. Penso que nosso futuro comporta mais
segredos, liberdades possíveis e invenções do que o humanismo nos permite imaginar, na
representação dogmática que fazem dele os diferentes componentes do espectro político: a
esquerda, o centro, a direita.” (FOUCAULT, Michel. Ética, Sexualidade, Política, pp.299/300.)
6
FOUCAULT, Michel. Ética, Sexualidade, Política , pp. 294/300.
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Quando me proponho a pensar, com base na Psicanálise, como devemos
formular uma ética para a contemporaneidade, não o faço de forma a fundamentar
a moral moderna em algum conceito definido de sujeito, o que seria um contra-
senso. A Psicanálise se esforça para definir as condições nas quais ocorreria uma
experiência que não é a do sujeito, mas a do individuo, enquanto senhor de si.
Uma experiência moral essencialmente centrada em um sujeito universal não é
mais satisfatória para a contemporaneidade.
O caráter ético que encontramos nas pulsões de liberdade e igualdade não
está em se sugerir as pessoas o que elas devem ser, como devem agir, no que
devem crer ou pensar. Ao contrário, está em evidenciar de que modo, a partir dos
mecanismos sociais de repressão e imposição arbitrariamente instituídos,
podemos preservar a tendência inata a autocriação, conservando o ambiente
favorável a erupção de seus impulsos mais essenciais, a motilidade/liberdade e o
erotismo/igualdade, que com sua fusão natural possibilitam aos indivíduos a
autodeterminação, a escolha de sua própria forma de existência.
7
Não existe sociedade sem legein, da mesma forma, não existe
ordenamento jurídico, direitos e nem valores, se não for pela instituição da lógica
– conjuntista, se não for dentro de um discurso. O discurso não é necessariamente
mal se for entendido como um jogo estratégico, ao qual devemos impor regras de
direito, técnicas racionais de gestão, ethos, práticas de si e de liberdade que
permitirão que esses jogos sejam jogados com o mínimo possível de dominação
8
.
Quanto maiores forem os espaços de debate democrático, mais nos
aproximaremos do consenso do que seria um ideal de justiça. Da justa medida do
Self de todos os indivíduos. Esse é efetivamente o ponto em que se articulam a
preocupação ética que permite instituir a liberdade individual e a luta política pelo
respeito à tendência inata de desenvolvimento emocional do indivíduo.
Não avancei muito na questão de como a problematização das pulsões de
liberdade e igualdade poderia se tornar o cerne de um novo pensamento político,
na busca por soluções para os problemas contemporâneos, diferente daquela
7
FOUCAULT, Michel. Ética, Sexualidade, Política , p.290.
8
Nos estados de dominação, as relações de poder, em vez de serem móveis e permitirem aos
diferentes parceiros uma estratégia que os modifique, se encontram bloqueadas e cristalizadas por
um grupo social ou um individuo, que utilizando-se de instrumentos econômicos, políticos ou
militares, consegue impedir qualquer reversibilidade do movimento. Evidentemente que, em
estados de dominação, as práticas de liberdade não existem, ou existem apenas de forma unilateral
ou ínfima. (FOUCAULT, Michel. Ética, Sexualidade e Política, pp. 266/267)
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104
política que vemos atualmente, onde o sujeito político foi pensado essencialmente
como um sujeito de direito e não como um sujeito pulsional. Mas a intenção de
trazer a luz esta problematização é justamente possibilitar que essas questões
sejam pensadas de uma nova forma daqui para a frente.
Uma perspectiva diferente da do sujeito de direito se abre. Esta é uma
concepção jurídica de sujeito, que não dá o espaço necessário para a vivência da
auteridade. Pensar nas pulsões nos permite ultrapassar a dimensão meramente
jurídica do sujeito, trazendo à tona a dimensão ética da subjetivação. Nos faz
perceber que a frustração da tendência inata dos seres à autocriação leva à
invalidação dos ordenamentos jurídicos, por ausência de sua condição ontológica,
qual seja, a eficácia global do ordenamento.
Alfim, queria esclarecer que de forma alguma pretendi fazer das Pulsões
de Liberdade e Igualdade uma panacéia. Não se trata de resgatar algum valor que
seria preciso redescobrir para se solucionar os impasses atuais. Todas essas
formas de analise, em si não são muito interessantes se forem tomadas como uma
retomada de valor. O universal das pulsões é justamente se apresentarem numa
particularidade.
O que busquei dialogando com a Psicanálise foi resgatar a importância da
preservação desses impulsos constitutivos, que em um ambiente favorável de
desenvolvimento, propiciam a todos a possibilidade de se tornarem senhores de si
e assim participarem ativa e criativamente da construção política de um futuro
ético para todos nós no paradigma que emerge.
9
9
FOUCAULT, Michel. Ética, Sexualidade e Política pp.264/287.
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