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discussão kantiana do caráter numenal da liberdade. Criticando, como vimos, o
princípio conseqüencialista em que se baseia o utilitarismo, Smith mostra-se
também avesso a esta linha.
Enfim, a TMS não é nem uma teoria a respeito dos princípios de uma vida
conforme à sabedoria filosófica
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nem uma ética deontológica. O leitor que
percorrer suas páginas não irá encontrar em lugar algum um conjunto de normas e
valores prescritivos, uma lei moral de validade universal. Ao contrário, o que se
encontra na TMS é uma recusa radical da idéia de que a norma da conduta moral
possa ser sistematizada e determinada a priori. A razão fundamental desta recusa
reside no reconhecimento da limitação do conhecimento humano e da incerteza
em que nossas vidas estão envolvidas. Porque o saber humano é sempre parcial,
não somos capazes de conceber o Bem universal, e, em conseqüência, muito
menos de orientarmos nossas condutas por ele
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. Isso não significa que a
moralidade deva ser completamente improvisada e arbitrária, guiada por mero
capricho, mas sim que o certo e o errado não podem ser decididos a priori, de
maneira independente de um conhecimento particular, continuamente renovado de
situações e ações concretas. O filósofo que teoriza em ética não pode perder de
vista a maneira como as pessoas, no intercâmbio social ordinário, de fato,
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O brilhante comentário de Pierre Aubenque (2003) demonstra que a teoria ética da prudência
não se dissocia das doutrinas metafísicas de Aristóteles. Há, porém, semelhanças estruturais
notáveis entre a ética de Smith e a aristotélica (Cf. Griswold, 1999).
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É principalmente neste ponto que a ética smithiana e aristotélica se aproximam. Sabe-se que o
conceito aristotélico de prudência (phronêsis), central à sua ética, se distingue do platônico na
medida em que se afasta decisivamente da noção próxima de sabedoria (sophia) (Cf. Aubenque,
2003; pps. 21-55). Platão, desenvolvendo a teoria socrática da virtude-ciência, aproximou
phronêsis e sophia, fazendo da ciência da Idéia a norma e o motor da ação reta. Ao dissociar os
dois conceitos, Aristóteles não estaria criticando o privilégio platônico (e grego clássico, em geral)
da contemplação, do saber filosófico, mas sim a sua instrumentalidade prática. Baseando-se em
uma ontologia e uma cosmologia da contingência, i.e., em sua visão da mutabilidade do mundo
sub-lunar e da imperfeição do homem, Aristóteles estabelecia uma distinção entre um saber divino
(sophia), voltado para as coisas imutáveis e necessárias, e um saber humano (phronêsis), dirigido
para assuntos relativos à conduta num mundo que se move incessantemente. O conhecimento do
Bem eterno e imutável, embora excelso, seria perfeitamente inútil para a conduta prática.
Enquanto seres imperfeitos, infinitamente distantes de Deus, presos a um mundo sempre mutável,
deveríamos agir visando um bem também variável, um bem que precisaria ser localizado a cada
momento. É na visualização e consecução deste bem humano que nos auxilia o saber prudencial,
constituindo-se como um saber para a prática. A ética de Smith é uma ética voltada para prática, e
envolve também um crítica à instrumentalidade do saber filosófico. Esta crítica, por sua vez, está
igualmente ligada a uma concepção da imperfeição humana, embora Smith, ao contrário de
Aristóteles, não a tenha sistematizado em um tratado metafísico.
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“Because of the individuality and, not least the uncertainty of man’s life, it is impossible to
formulate a universal idea of the highest good or, more generally, the good life” (Haakonssen,
2007; p.ix).
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