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João de Azevedo e Dias Duarte
A estética da ordem
Harmonia e imperfeição na obra filosófica de
Adam Smith
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em História Social da Cultura do
Departamento de História do Centro de Ciências
Sociais da PUC-Rio.
Orientador: Prof. Marcelo Gantus Jasmin
Rio de Janeiro
Junho de 2008
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610404/CA
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João de Azevedo e Dias Duarte
A estética da ordem
Harmonia e imperfeição na obra filosófica de
Adam Smith
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em História Social da Cultura do
Departamento de História do Centro de Ciências Sociais
da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora
abaixo assinada.
Profº Marcelo Gantus Jasmin
Orientador
Departamento de História
PUC-Rio
Profª Berenice de Oliveira Cavalcante
Departamento de História
PUC-Rio
Profº Cesar Augusto Coelho Guimarães
Ciência Política-IUPERJ
Profº Nizar Messari
Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais
PUC-Rio
Rio de Janeiro, 27 de junho de 2008
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610404/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da
autora e do orientador.
João de Azevedo e Dias Duarte
Graduou-se em Economia na Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ) em 2004.
Ficha Catalográfica
Duarte, João de Azevedo e Dias
A estética da ordem: harmonia e imperfeição na
obra filosófica de Adam Smith / João de Azevedo e Dias
Duarte ; orientador: Marcelo Gantus Jasmin. – 2008.
138 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em História)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2008.
Inclui bibliografia
1. História Teses. 2. História social da cultura.
3. Século XVIII. 4. Iluminismo. 5. Filosofia. 6. Smith, Adam,
1723-1790. 7. Hume, David, 1711-1776. 8. Imaginação. 9.
Simpatia I. Jasmin, Marcelo Gantus. II. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de
História. III. Título.
CDD: 900
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Agradecimentos
Muitas pessoas participaram deste trabalho como espectadores parciais e
imparciais. Devo agradecer inicialmente ao meu orientador, Marcelo Jasmin, pela
confiança, interesse, incentivo e apoio. Sou também grato à Faperj, instituição que
financiou esta pesquisa, e ao Departamento de História da PUC-Rio, corpo
docente e secretariado. Agradeço especialmente a Edna Timbó e aos professores:
Ricardo Benzaquen de Araújo, pela acolhida, e pelas conversas e aulas, que me
transmitiram o prazer da imaginação teórica; Luiz Costa Lima, pelas aulas
instigantes e comentários na ocasião da defesa de qualificação; Flávia Eyler, por
ter me introduzido a Aristóteles e pelo incentivo constante. A Maria Gabriela
Carvalho, com quem compartilho o interesse por Adam Smith, devo agradecer os
livros emprestados, as conversas e a participação atenciosa na banca de
qualificação; pelo mesmo motivo, agradeço a Berenice Cavalcante.
Agradeço à família e aos amigos, cujas presenças foram importantes em minha
formação e em diversos momentos desta etapa: à minha mãe, Claudia Duarte, que
acompanha apreensiva meus passos na vida intelectual; à minha a materna,
Maria Lúcia Braga de Azevedo; a André Gerber e à minha família francesa; e ao
restante de minha família brasileira, meus queridos tios e primos. Agradeço a
Suiá, o carinho, a amizade e tudo mais; e a Leonardo Mello, a amizade antiga
sempre renovada. A Benedita-Basanti, agradeço pela yoga que manteve a
harmonia e coerência de meu corpo durante esta empreitada intelectual. Devo
agradecer também aos amigos da PUC: Gustavo Naves; Daniel Ferreira; Bernardo
Buarque; Francisco G. de Sousa (amigo de longa data); a Karina Vasquez e a
Luiza Larangeira. Luiza leu este trabalho durante a sua execução; suas críticas e
sugestões foram decisivas na sua realização. Sou-lhe imensamente grato, não
apenas pela atenção dispensada neste momento, mas sobretudo pela sincera
amizade com que me distingue. Sem sua presença, minha passagem pela PUC
seria muito menos feliz.
Agradeço finalmente àquele cujo discreto exemplo sobrepujou os prudentes
conselhos, meu pai – a ele dedico esta dissertação.
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Resumo
Duarte, João de Azevedo e Dias; Jasmin, Marcelo Gantus. A estética da
ordem: harmonia e imperfeição na obra filosófica de Adam Smith. Rio
de Janeiro, 2008. 138 p. Dissertação de Mestrado Departamento de
História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Esta dissertação discute, a partir de uma leitura dos trabalhos de Adam
Smith em história intelectual e ética, a visão deste filósofo escocês do século
XVIII sobre a natureza da atividade humana. Sugere-se que esta filosofia seja
profundamente marcada por uma consciência aguda da imperfeição e finitude
humanas. Intenta-se, porém, mostrar que o pensamento de Smith é também um
esforço de reconciliação” com esta imperfeição essencial. Toda a reflexão
smithiana está voltada para a tarefa de demonstrar de que maneira é possível ao
homem, a despeito de suas limitações, manter uma existência regular e
harmoniosa e avançar do ponto de vista cognitivo, moral e material. De acordo
com a visão de Smith, o espírito humano é mobilizado por um impulso
espontâneo e desinteressado para a realização de ordem, harmonia e beleza nas
diferentes esferas de sua atividade. No entanto, embora o espírito tenda
naturalmente à regularidade, uma situação absolutamente simétrica nunca se
realiza, em função da própria imperfeição do Homem. E é certo que assim seja,
pois uma tal situação não seria nem mesmo suportável por criaturas humanas. O
primeiro capítulo tem seu foco analítico em um texto de juventude de Smith, The
History of Astronomy, pondo-o em diálogo com o pensamento de David Hume.
Discute-se de que maneira Smith, assumindo a teoria da imaginação de Hume, se
insere também no projeto humeano de uma ciência da natureza humana”. O
segundo capítulo envolve uma discussão da obra de Smith em ética, The Theory of
Moral Sentiments, e de seu conceito central, a “simpatia”.
Palavras-chave
Século XVIII; Iluminismo, Filosofia, Adam Smith, David Hume,
Imaginação, Simpatia.
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Abstract
Duarte, João de Azevedo e Dias; Jasmin, Marcelo Gantus. The Aesthetics
of order: harmony and imperfection on the philosophical work of Adam
Smith. Rio de Janeiro, 2008. 138 p. MSc Dissertation - Departamento de
História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
This dissertation deals with Adam Smith’s view on the nature of human
activity, proposing an interpretation of this eighteenth century Scottish
philosopher’s works on intellectual history and ethics. It is suggested that his
philosophy is marked by a keen awareness of human imperfection and finitude. It
demonstrates that Adam Smith’s thought is also, however, an effort of
“reconciliation” with this essential imperfection. Smith’s reflection is directed to
the task of showing how it would be possible for mankind, notwithstanding its
limitations, to maintain a regular and harmonious existence and to advance from a
cognitive, moral and material point of view. According to Adam Smith’s view,
the human spirit is moved by a spontaneous and disinterested impulse to the
realization of order, harmony and beauty in the different spheres of its activity.
Nonetheless, although the spirit is naturally order-seeking, an absolutely
symmetrical situation is never actualized because of the very imperfection of
mankind. Such a situation wouldn’t even be bearable to human creatures. The first
chapter has its analytical focus on an early text from Adam Smith’s called The
History of Astronomy, and puts it into dialogue with the thought of David Hume.
The subject here is how Smith, adopting Hume’s theory of imagination, partakes
in the Humean project of a “science of human nature”. The second chapter
discusses Adam Smith’s work on ethics, The Theory of the Moral Sentiments, and
its central concept, “sympathy”.
Keywords
Eighteenth century, Enlightenment, philosophy, Adam Smith, David Hume,
imagination, sympathy.
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Sumário
1. Introdução 10
2. Os sentimentos intelectuais e a imaginação teórica 17
2.1. A História da Astronomia 18
2.2. David Hume e o projeto da ciência do Homem 26
2.3. Como se constrói um mundo 39
2.4. Ceticismo, imaginação e a beleza da ordem 57
2.5. Epílogo: razão e prática 65
3. Os sentimentos morais e a imaginação simpática 70
3.1. O que é/deve ser uma teoria dos sentimentos morais 72
3.2. A simpatia 82
3.3. O ponto de vista moral 93
3.4. Imparcialidade e virtude 105
3.5. A verdadeira felicidade e a vida dos imperfeitamente virtuosos 114
4. Conclusão 124
5. Bibliografia 134
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Lista de abreviações:
David Hume:
EHU An Enquiry concerning Human understanding
T Treatise of Human Nature
E Essays Moral, Political, and Literary, incluindo:
E-sc “The Sceptic”
Adam Smith:
Corr. Correspondence
EPS Essays on Philosophical Subjects, incluindo:
Astronomy “The History of Astronomy”
Imitative Arts Of the Nature of that Imitation which takes
place in what are called the Imitative Arts”
Edinburgh Review “Letter to the Edinburgh Review”
LJ (B) Lectures on Jurisprudence: report dated 1766
LRBL Lectures on Rhetoric and Belles Lettres
TMS The Theory of Moral Sentiments
WN An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth
of Nations
Para detalhes das edições, ver a bibliografia no fim do texto. As citações de
Adam Smith seguem o sistema de referência por parágrafo estabelecido na
Glasgow Edition of the Works and Correspondence of Adam Smith. Assim: TMS
I.i.5.5 = The Theory of Moral Sentiments, parte I, seção i, capítulo 5, parágrafo 5.
As citações de Hume incorporam, além da página, outras referências, de modo
que o leitor possa utilizar quaisquer edições. Assim: T 1.3.2, p. 75 = A Treatise of
Human Nature, livro 1, parte 3, seção 2, página 75.
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“I can’t imagine anything / that I would less like to be
/ than a disincarnate Spirit, / unable to chew or sip / or
make contact with surfaces / or breath the scents of summer
/ or comprehend speech and music / or gaze at what lies
beyond. / No, God has placed me exactly / where I’d have
chosen to be: / the sub-lunar world is such fun, / where Man
is male or female / and give Proper Names to all things...”
W. H. Auden, No, Plato, no.
“... and Cicero tells us, that Aristoxenus, the
musician, found the nature of the soul to consist in
harmony”.
Adam Smith, The History of Astronomy.
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1
Introdução
“[A man] must not expose himself to the charge
which Avidius Cassius is said to have brought,
perhaps unjustly, against Marcus Antoninus; that
while he employed himself in philosophical
speculations, and contemplated the prosperity of the
universe, he neglected that of the Roman empire.
The most sublime speculation of the contemplative
philosopher can scarce compensate the neglect of
the smallest active duty” (Adam Smith, TMS
VI.ii.3.6).
Adam Smith (1723-1790) foi, ao lado de David Hume (1711-1776), seu
amigo e mentor, uma figura central no chamadoIluminismo Escocês”
1
, um
importante capítulo da história da modernidade. A ascenncia de Smith, como
pensador e homem de letras, no cenário intelectual europeu, estabeleceu-se desde
cedo, devido ao enorme sucesso de suas duas obras publicadas, The Theory of
Moral Sentiments (1759) e An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of
Nations (1776)
2
. No entanto, Adam Smith tornou-se tamm tima de seu
próprio êxito; ou melhor, do êxito da WN
3
. A fortuna da “Riqueza das Nações”
encobriu, nos duzentos anos que se seguiram a sua morte, o trabalho anterior de
Smith em filosofia moral. Graças à hegemonia de uma certa leitura laudatória da
WN, que a apropria como o marco de fundação da Economia moderna, Smith veio
a ser conhecido pela posteridade como um “economista” (a despeito do fato de
que Smith se interessava por economia política, e não por economia tout court), e
1
Há uma vasta bibliografia a respeito deste notável florescimento intelectual e cultural ocorrido na
Escócia, durante o século XVIII. Para uma visão sinóptica do Iluminismo escocês, recomendo as
seguintes coletâneas: “The origins and nature of the scottish enlightenment”, Ed. R.H. Campbell &
A.S. Skinner (1982); e a mais recente, “The cambridge companion to the scottish enlightenment”,
Ed. A. Broadie (2003).
2
Seis edições da TMS (1759, 1761, 1767, 1774, 1781, 1790) e cinco da WN (1776, 1778, 1784,
1786, 1789) foram publicadas por Smith, indicando a popularidade das obras. Para uma avaliação
do legado intelectual de ambas, recomendo: Haakonseen & Winch (2006). Sobre a fortuna crítica
da TMS, veja-se a introdução dos editores, Raphael & Macfie (1976).
3
Ver a lista no início do texto para as abreviações.
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11
até, caricaturalmente, como um economista de certa tendência ideológica, malgrè
lui, liberal e capitalista. Até bem recentemente, a TMS era vista como uma obra
pouco relevante, subsidiária em relação à WN
4
, e os dois livros eram aproximados
apenas para propósitos biográficos ou polêmicos.
A visão de Smith comopai da Economia” e a apropriação de seu legado na
defesa de certas causas poticas empobreceram sua obra, obscurecendo o
apenas o seu livro em filosofia moral, como também seu trabalho em outras áreas:
psicologia, filosofia da linguagem, jurisprudência, retórica, belas-letras e história
intelectual. Dotado de uma erudição notável, Adam Smith escreveu e lecionou
sobre muitos assuntos, embora tenha publicado apenas dois livros e alguns poucos
textos menores
5
. Temos notícia da extensão do seu interesse intelectual através
dos trabalhos não publicados, compilados na coletânea stuma, Essays on
Philosophical Subjects (1795), e através dos cadernos de notas (descobertos e
publicados no final do século XIX e nos anos 60 do século XX) de estudantes de
suas palestras em jurisprudência (Lectures on Jurisprudence) e em retórica e
belas-letras (Lectures on Rethoric and Belles-lettres) proferidas em Edimburgo e
Glasgow.
Embora Smith ainda seja popularmente conhecido como economista, sabe-
se, entre os especialistas, que a economia política representa apenas uma pequena
parte em um ambicionado sistema filosófico compreensivo centrado na natureza
da atividade humana
6
. Tanto a WN quanto a TMS faziam parte de um imenso,
provavelmente irrealizável, plano enciclopédico iluminista, na concretização do
qual Smith se empenhou durante toda a sua vida. Além destas duas obras
publicadas, e dos EPS, tem-se conhecimento, através de comentários do próprio,
de dois grandes projetos deixados inacabados por Smith: o primeiro era uma
narrativa (account) dos princípios gerais da lei e do governo, e das distintas
revoluções que eles sofreram nas diferentes eras e períodos da sociedade; não
apenas no que diz respeito à justiça, mas também à administração pública (police),
4
É notável, neste sentido, que a TMS o esteja entre os clássicos de seu gênero, e que Adam
Smith raramente seja incluído no panteão da filosofia.
5
Dois artigos na primeira edição do Edinburgh Review (1750); e as Considerations concerning the
first formation of languages (1761).
6
Cf. Haakonssen, 2006; p. 1. Segundo Haakonssen & Winch, a própria economia política era
concebida por Smith como um elemento num esquema de política e moral que tinha a teoria moral
da TMS como seu fundamento (2006, p. 370).
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12
à fazenda (revenue), às armas e a tudo mais que seja assunto do direito”
7
; e o
segundo, umaespécie de história filosófica de todos os diferentes ramos da
literatura, da filosofia, poesia e eloqüência”
8
. É provável que rascunhos destes
trabalhos compusessem a maior parte dos dezesseis volumes manuscritos levados
ao fogo a pedido de Smith após sua morte. O primeiro projeto era provavelmente
um desenvolvimento das palestras em jurisprudência, parcialmente realizado na
WN; e o segundo estaria ligado aos Essays on Philosophical Subjects e às
palestras de Glasgow em retórica e belas letras
9
.
Como a vida foi curta para a realização de seu plano, e Smith foi
escrupuloso (talvez demasiado, do ponto de vista da posteridade) em condenar à
destruição seus manuscritos, não há como saber como seria exatamente o corpus
intencionado em sua totalidade. Não obstante, impelidos pelas indicações de
Smith, os estudiosos m se esforçado para reconstruir a unidade de seu projeto
intelectual e a intenção sistemática por trás dos seus fragmentos
10
. Desde a
descoberta e publicação dos cadernos de notas de estudantes das palestras de
Smith em jurisprudência, retórica e belas-letras, tem-se buscado recuperar a
arquitetura do pensamento smithiano e produzir uma imagem mais complexa
deste filósofo setecentista do que aquela de “pai da Economia”. Neste esforço,
recorre-se, em geral, a análises conjuntas dos trabalhos de Smith, estabelecendo-se
pontes entre a WN, a TMS, os EPS, as LJ e as LRBL. Subsidiariamente, como
auxílio à compreensão do projeto intelectual de Smith, investiga-se também a
relação entre a sua obra e aquela de outros intelectuais escoceses contemporâneos
7
Este trabalho é anunciado no último parágrafo da TMS, da primeira até à última edição (ou seja,
por mais de trinta anos). No prefácio anexado à última edição da TMS (1790), Smith comenta que
a publicação da WN cumpria uma parte deste projeto, aquela que se referia “à administração
pública, à fazenda, e às armas”, deixando por realizar uma “teoria da jurisprudência”, a qual,
Smith reconhecia, dificilmente seria ainda executada a contento, em função de sua idade avançada.
Com efeito, Smith morreria naquele mesmo ano, e os manuscritos desta grande obra inconclusa
seriam destruídos por ordem sua. Contemporaneamente, Haakonssen tem tentado desenvolver
aquilo que seria a teoria da jurisprudência natural de Smith (Cf. 1982 e 1989).
8
Corr. nº.248; p. 287.
9
Haakonssen, 2006; p. 4.
10
A questão a respeito da unidade do pensamento de Smith é um tema controverso de debate
desde, pelo menos, a acusação de inconsistência entre a TMS e a WN que deu origem, no século
XIX, ao famoso problema de Adam Smith” (Cf. introdução à TMS, 1976, p.20-4). Para
perspectivas mais contemporâneas a respeito da unidade da refleo e do corpus projetado, veja-
se: Griswold, 1999, pps. 29-39; Haakonssen, 2006; Haakonssen & Winch, 2006.
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13
seus, tais como Francis Hutcheson, professor de Smith em Glasgow, e David
Hume, seu mais próximo aliado intelectual e pessoal
11
.
A dissertação que ora se apresenta tem a pretensão de, inserindo-se nesta
linha de investigação, esclarecer algo a respeito da coerência sistemática do
pensamento de Adam Smith. Para tanto, empreendo uma leitura conjunta de um
dos textos de Smith em história intelectual, The History of Astronomy, e de sua
obra em ética, The Theory of Moral Sentiments, suplementando a análise com
incursões a textos de David Hume do Treatise of Human Nature (1739-40) e do
Enquiry concerning Human Understanding (1748). Na discussão, que envolve
ainda referências pontuais a outros trabalhos de Smith, busco identificar certos
elementos que considero importantes na orientação geral da reflexão deste
filósofo escocês do século XVIII. Estarei dialogando o tempo todo, durante o
percurso, com o trabalho dos principais comentadores atuais de Smith, David
Daiches Raphael, Charles Griswold, e Knud Haakonssen, entre outros menos
conhecidos, bem como com textos que, embora não diretamente relacionados a
Adam Smith, foram considerados relevantes para o argumento e para a sua
contextualização.
O ponto de partida do argumento é a idéia básica de que o pensamento de
Adam Smith é profundamente marcado por uma concepção bastante negativa a
respeito do homem. Segundo essa visão, a imperfeição e a finitude o atributos
da existência, impondo certas limitões fundamentais à atividade humana.
Pretendo, porém, mostrar que a filosofia de Smith é também (e sobretudo) um
esforço de reconciliação” com a imperfeição. Em outras palavras, toda reflexão
smithiana está voltada para a tarefa de demonstrar de que maneira é possível ao
homem, a despeito de suas limitões, manter uma existência razoavelmente
regular e harmoniosa, e progredir do ponto de vista cognitivo, moral e material.
No centro desta reflexão está uma teoria do espírito (mind), que toma de
empréstimo a Hume sua visão da “imaginaçãocomo uma capacidade sintética e
criativa. De acordo com Adam Smith, a imaginação é continuamente mobilizada
por um impulso espontâneo e desinteressado para a realização de ordem e
11
Haakonssen & Winch, 2006, p. 368. Haakonssen discute as filosofias morais e teorias da
jurisprudência de Hume e Smith conjuntamente em The Science of a Legislator (1989). Griswold
comenta que ainda há muito a se escrever a respeito da relação entre Smith, Hume e outras figuras
do Iluminismo escocês (1999; p.25 n.37).
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14
harmonia nas diferentes esferas da experiência. Em todas as áreas de nossa
atividade, tal como representadas por Smith, intelectual, moral, potica,
econômica, religiosa, vê-se sempre a operação do “mesmo princípio, o mesmo
amor ao sistema, a mesma consideração à beleza da ordem, da arte e do artifício
(contrivance)”
12
. Esta atração espontânea do espírito pela ordem “é com
freqüência o motivo secreto dos mais sérios e importantes empreendimentos
(pursuits) tanto na vida privada quanto na vida pública”
13
. É este impulso
estético”, segundo o chamo, o móbil que nos dispõe a naturalmente perseguir
uma existência regular e harmoniosa e a avançar cognitiva, moral e
materialmente. No entanto, embora o espírito tenda naturalmente à regularidade,
uma situação absolutamente regular e simétrica nunca se realiza, em função da
própria imperfeição do homem. E, de certa forma, é bom que seja assim, pois tal
situação não seria nem mesmo suportável por criaturas humanas. O melhor que
nós, seres imperfeitos, podemos alcançar é um equilíbrio, continuamente
renovado, capaz de reconhecer e incorporar nossas deficiências. É na visualização
e consecução deste “melhor possível” que nos auxilia o filósofo smithiano.
Considerei necessário dividir a investigação em dois capítulos, discutindo
no primeiro a History of Astronomy, e no segundo a Theory of Moral Sentiments.
A razão desta partilha reside no fato de que estes textos tratam de diferentes
esferas da atividade humana, respectivamente: filofica/científica e moral.
Ambas as atividades são, segundo Smith, comandadas pela imaginação e
dependem do mesmo móbil estético. No entanto, na medida em que se dirigem a
objetos distintos, coisas e eventos num caso, e pessoas no outro, também uma
diferença no modo de atuação da imaginação em cada um. Por isso, denominei o
primeiro capítulo, “Os sentimentos intelectuais e a imaginação teórica”, e o
segundo, Os sentimentos morais e a imaginação simpática”.
De acordo com a History of Astronomy, a imaginão teórica (o termo é
meu), impulsionada pelos sentimentos intelectuais (idem), busca ordenar os
fenômenos da natureza em narrativas causais, “teorias”. Este modo de operação da
imaginação é o fundamento da filosofia teórica, que, enquanto ciência empírica,
tem como objetivo ordenar e unificar as aparências do mundo físico de modo a
12
TMS IV.i.11. Todas as traduções no texto são minhas. O leitor, porém, encontrará as citações
destacadas na língua original. Optei por mantê-las assim a fim de preservar certas nuances.
13
TMS IV.i.7.
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15
pacificar o desejo do espírito pela ordem. a imaginação moral, ou a simpatia”,
como a chama Smith, atua na percepção de pessoas, suas ações e sentimentos,
como unidades coerentes, personagens dentro de narrativas morais ou histórias de
vida. O móbil estético se manifesta na esfera moral no desejo desinteressado que,
segundo Smith, experimentamos, na vida social ordinária, em harmonizar nossos
“sentimentos morais”. O modo pelo qual perseguimos este objetivo é buscando
avaliar nossas ações e emoções de um ponto de vista comum,blico, e, portanto,
“imparcial”.
Respeitando esta economia, o primeiro capítulo se dedica a montar um
quadro para a discussão que envolve a relação decisiva entre as reflexões de Smith
e Hume. Focando-se em um exame da History of Astronomy, o capítulo se inicia
com um resumo de seu argumento. O passo seguinte é considerar a hipótese de
que este ensaio de juventude de Smith esteja ligado à nova ciência da natureza
humana proposta por Hume, o que exige uma apreciação do que seja o projeto
humeano. Considerei necessário investir ainda em uma compreensão mais
aprofundada da filosofia de Hume, com o intuito de explorar uma afinidade mais
essencial entre a orientação geral do pensamento de ambos os filósofos e suas
teorias do espírito, especialmente no que diz respeito às suas concepções da
imaginação. O capítulo se conclui com um breve síntese e com a enunciação de
um problema a ser enfrentado no segundo capítulo.
O segundo capítulo se dedica a uma análise da obra de Smith em Ética,
aproveitando-se do quadro montado no capítulo anterior. A primeira seção discute
o que é uma teoria dos sentimentos morais e a visão particular de Smith da ética.
Irei argumentar que o estranho título de seu livro está ligado a esta visão.
Resumidamente: a Ética era entendida por Smith (conforme se depreende de um
exame combinado da forma e do conteúdo da TMS) como uma filosofia prática,
voltada para encontrar na experiência comum, a partir de uma investigação
empírica, uma concepção segundo a qual nós, seres imperfeitos, poderíamos viver
juntos e em harmonia. Procedo, então, na seção seguinte, considerando o conceito
central da teoria de Smith, a “simpatia” ou a imaginação moral, e o seu modo de
operão nos intercâmbios sociais ordinários, orientando nossas percepções e
ajuizamentos morais. Investigo ainda a noção smithiana de “imparcialidade”,
como uma forma de razão prática, e sua concepção de virtude como
conveniência” (propriety). O capítulo termina retornando ao tema da imperfeição
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16
em um exame da proposta smithiana de uma “utopia realista”, i.e., moderada pela
consideração de nossas deficiências.
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2
Os sentimentos intelectuais e a imaginação teórica.
“Philosophers are composed of flesh and blood as
well as all other human creatures, and however
sublimated and refined the theory of these may be, a
little practical frailty is as incident to them as to
other mortals” (Fielding, Tom Jones).
“So inconsistent is human nature with itself!”
(Hume, The History of England)
O leitor o-especialista pode se surpreender com a frase de abertura do
ensaio sobre a história da astronomia de Adam Smith:
“Wonder, surprise and admiration, are words which, though often confounded,
denote, in our language, sentiments that are indeed allied, but that are in some
respects different also, and distinct from one another”
14
.
A menção a sentimentos, “espanto, surpresa e admiração”, em um texto
voltado à discussão da história de uma ciência talvez soe inusitada a ouvidos
desavisados, visto que “ciência” e “sentimentos” indicam coisas tradicionalmente
opostas. Talvez contribua para atenuar o possível desconforto a consideração do
título completo do ensaio: The principles which lead and direct philosophical
enquiries; ilustrated by the history of astronomy. Deve-se saber ainda que a
History of Astronomy é parte de uma trilogia, sem vida o mais importante de
três ensaios
15
unidos pelo propósito comum de ilustrar os “princípios que
conduzem as investigações filosóficas”. Tais informações sugerem que neste
texto um interesse que ultrapassa aquilo que os termos “história” e “astronomia”
imediatamente transmitem.
Com efeito, pretendo mostrar que a história, e também a astronomia, estão,
na History of Astronomy, subordinadas a um problema mais geral: esclarecer a
maneira pela qual certos elementos da “natureza humana”, os três sentimentos
14
Astronomy, intro.1.
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18
mencionados acima, que chamarei de sentimentos intelectuais”, atuando sobre a
imaginação, animam e conduzem a atividade teórica. No mesmo caminho, o passo
seguinte será sugerir que este ensaio de juventude de Adam Smith
16
, combinando
conceitos e análises extraídos da reflexão de seu amigo e interlocutor David
Hume, se insere no programa proposto por este de uma “ciência da natureza
humana”, assumindo os pressupostos e objetivos deste projeto, incluindo-se o
empirismo cético que o orienta. Mais especificamente, pretendo explorar uma
afinidade decisiva entre a teoria do espírito (mind) de Hume e a de Smith,
discutindo o papel da imaginação na filosofia de ambos.
Este capítulo tem como objetivo estabelecer alguns parâmetros para se
pensar a unidade da reflexão smithiana e fixar alguns temas para serem debatidos
no capítulo próximo, junto com a leitura de sua filosofia moral. A argumentação
envolverá análises pontuais de textos de Adam Smith e Hume, a começar pela
History of Astronomy. A razão pela qual estou iniciando a investigação por este
trabalho de juventude reside no fato de que ele torna evidente, segundo creio, um
ponto que pretendo explorar ainda bastante: o papel de uma “estética” na reflexão
de Adam Smith. Constitui parte da tarefa proposta nesta dissertação demonstrar de
que maneira Adam Smith uma motivação espontânea para a beleza
perpassando nossas vidas e orientando nossas disposições, tanto teóricas quanto
práticas, em relação ao mundo, a nossos semelhantes, e a nós mesmos. A sua
History of Astronomy vai nos ajudar a abordar a questão, permitindo situá-la num
contexto mais amplo que envolve a relação entre as obras de Smith e Hume, antes
de passarmos a uma análise da Theory of moral sentiments.
2.1.
A História da Astronomia
uma enorme bibliografia sobre a História da Astronomia
17
, toda ela
voltada, quase que invariavelmente, à discussão da posição “metodológicaque o
texto, supostamente, expressa. É verdade que o ensaio desenvolve uma
15
Os dois outros são: History of ancient physics e History of ancient logics and metaphysics.
16
Especula-se que a Hystory of Astronomy tenha sido escrita ainda no período de estudante de
Smith em Oxford (Cf. Wightman, intro., EPS).
17
Veja-se a introdução de D.D. Raphael e A.S. Skinner nos EPS; dois trabalhos clássicos são o
livro de T.D. Campbell, “Adam Smith’s Science of Morals” (1971), e o artigo de H.F. Thomson,
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19
perspectiva a respeito da práxis teórica, ou, nas palavras do autor, de nossos
esforços para dar coerência às aparências da natureza”; pode-se também dizer
que a observação e o método experimental são, implicitamente, assumidos como
os meios mais adequados para tal. Contudo, nenhuma questão epistemológica
tradicional é discutida no ensaio, e me parece um tanto exagerado afirmar que se
articule nele algo substancial como uma metodologia ou uma filosofia da ciência.
Nada disso parece interessar a seu autor, cuja curiosidade se dirige, ao contrário,
para um determinado aspecto, aparentemente limitado, do problema do
conhecimento: o estímulo dado à empresa científica por certos sentimentos.
Segundo a definição de Smith, aquilo que é novo e singular excita o que
chamamos de espanto; o que é inesperado surpresa; e o que é grande ou belo
admiração
18
. Eis as molas internas que, fazendo girar a imaginação, em em
movimento a busca por ordenar os fenômenos e oferecer explicações para a sua
sucessão na natureza.
O ensaio divide-se em uma introdução e quatro partes. A introdução nos
apresenta os três sentimentos mencionados e termina com a proposta de
considerar a “natureza e as causas” de cada um deles
19
. A primeira seção trata da
“surpresa”, ou Of the effect of the unexpectedness, e expõe algumas considerações
em psicologia empírica a respeito das sensações e do espírito, tendo como ponto
central a enunciação dos efeitos tranilizantes do “hábito e do costume”. a
segunda parte, Of wonder, or of the effects of novelty, contém o núcleo do
argumento psicológico”, a ser discutido nas páginas seguintes, a respeito da
prática filofica/científica
20
. A terceira seção, curiosamente, modifica um pouco
o padrão da discussão, e desenvolve um argumento “sociológico” a propósito da
origem histórica da filosofia. Por fim, apresenta-se uma história da astronomia
propriamente dita: uma descrição de teorias astronômicas que se sucederam, em
ordem cronológica, desde o sistema das esferas concêntricas até a física
“Adam Smith’s philosophy of science(1965). Um trabalho mais recente é o de C.J. Berry, Smith
and Science” (2006).
18
Astronomy, intro.1
19
“...whose influence is of far wider extent than we should be apt upon a careless view to imagine”
(Astronomy, intro.7)
20
Os termos filosofia” e “ciência”, no culo XVIII, tinham um significado mais geral do que
têm hoje, e eram com freqüência utilizados de forma indistinta para se referir à atividade
intelectual compreensiva e sistemática. T.D.Campbell argumenta, todavia, que Smith, embora
usasse os termos indiscriminadamente, tinha consciência da distinção moderna, e que sua Teoria
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20
newtoniana, passando por Ptolomeu, Copérnico, Galileu, Kepler e Descartes,
entre outros.
Subjacente à discussão, encontra-se uma série de alegações a respeito da
dinâmica e dos elementos da natureza humana, que traem uma aceitação da
abordagem empirista de Locke, particularmente em sua vertente humeana.
uma psicologia presente, pois Smith assume que todos os homens são dotados de
certas faculdades e propensões, e que são motivados, através delas, a buscar o
prazer e a evitar a dor. Neste contexto, o prazer está ligado a um certo estado da
imaginação: “o que pode se chamar de estado natural do espírito (...), o estado de
serenidade, tranqüilidade e calma”
21
. Tal disposição depende da regularidade com
que os fenômenos se manifestam à percepção. Mais especificamente, depende da
facilidade que a imaginação encontra em percorrer objetos habituais.
O argumento se inicia com uma afirmação, supostamente indiscutível, a
respeito da psicologia humana:
“It is evident that the mind takes pleasure in observing the resemblances that are
discoverable between different objects. It is by means of such observations that it
endeavors to methodize all its ideas and to reduce them into proper classes and
assortments...”
22
.
O prazer experimentado na observação de semelhanças entre objetos
externos e na sua ordenação mental é, muitas vezes, interrompido pela aparição de
algo singular, que não se encaixa nas categorias de classificação:
“But when something quite new and singular is presented, we feel ourselves
incapable of doing this (...). It stands alone in the imagination and refuses to be
grouped or confounded with any set of objects whatever. The imagination and
memory exert themselves to no purpose and in vain look around all their classes of
ideas in order to find one under which it may be arranged...”
23
.
Neste caso, produz-se no observador uma comoção psicosica:
“It is this fluctuation and vain recollection together with the emotion or movement
of the spirits which constitute the sentiment properly called wonder, and which
occasion that staring, and sometimes that rolling of the eyes, that suspension of the
breath, and that swelling of the heart, which we may all observe both in ourselves
dos Sentimentos Morais “é um esforço consciente de formular uma teoria científica da
moralidade” (Campbell, 1971, p. 29).
21
Imitative Arts, II.20
22
Astronomy, II.1
23
Astronomy, II.3
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21
and others when wondering at some new object, and which are the natural
symptoms of uncertain and undetermined thought
24
.
Da mesma forma que certos objetos excitam nosso espanto quando, por sua
aparência singular, nos deixam confusos em relação a qual espécie de coisas nós
os devemos referir, também uma sucessão incomum de objetos produz o mesmo
efeito, ainda que individualmente já nos sejam familiares:
“When one accustomed object appears after another which it does not usually
follow, it first excites, by its unexpectedness, the sentiment properly called surprise,
and afterwards by the singularity of the succession, or order of its appearance, the
sentiment properly called wonder”
25
.
Ocorre aqui uma pequena inflexão no argumento, e o que passa a ser
considerado é não mais o espanto provocado pelo aparecimento de um objeto
desconhecido, mas sim aquele produzido por uma ordem de sucessão imprevista.
Neste estágio da discussão, o interlocutor não citado do ensaio, Hume, aparece de
maneira mais direta na linguagem utilizada e Smith faz uso de um elemento
importante da epistemologia humeana, sua análise da causalidade
26
. Na versão
smithiana, o ponto se desenvolve da seguinte forma: quando dois objetos são
observados com freqüência se seguindo um ao outro, “eles se tornam tão ligados
na fantasia, que a idéia de um parece, espontaneamente (of its own accord),
convocar e introduzir aquela do outro”
27
. Gras a esta regularidade na sua
manifestação, a imaginação estabelece uma conexão costumeira entre as idéias de
ambos, e adquire o hábito de aguardar o aparecimento de um assim que o outro se
lhe apresenta. Resumindo: a partir da repetição da ordem de sua manifestação,
naturalizamos, pelo costume, uma conexão causal entre dois objetos, e
aguardamos sempre a repetição da mesma seqüência. Enquanto tais objetos se
sucederem na mesma carreira em que as suas idéias se movem na imaginação, de
acordo com o hábito por ela adquirido, tudo estará bem “não há quebra, parada,
espaço ou intervalo” – e o esrito não se sentiobrigado a fazer nenhum esforço
para conceber a transição de um a outro.
24
Astronomy, II.3.
25
Astronomy, II, 6.
26
Hume, Treatise of Human Nature, 1.3.14; p. 155-173; Enquiry Concerning Human
Understanding, VII, p.60-80. De agora em diante, T e EHU, respectivamente.
27
Astronomy, II.7.
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22
Todavia, se esta conexão for interrompida, se um objeto aparecer numa
ordem diferente daquela à qual a imaginação se habituou, o contrário ocorre:
“somos, a princípio, surpreendidos pela manifestação inesperada da nova
aparição, e, quando essa emoção momentânea se esvai, espantamo-nos ainda com
como tenha ocorrido naquela posição”
28
. Vendo-se incapaz de passar de um
evento ao outro com a mesma facilidade, visto que a nova seqüência de sua
manifestação lhe é estranha, o pensamento hesita. Estabelece-se uma distância na
imaginação entre as suas idéias. Sofregamente, o pensamento insiste e tenta, em
o, reuni-los, mas o intervalo reluta em ceder
29
. Rompido o hábito, as coisas
parecem desconfortavelmente desconexas.
Passado o inmodo inicial, a imaginação se e em ação, buscando algum
articio capaz de preencher o espaço vazio que se estabeleceu e conectar os
objetos separados
30
. Hiteses científicas, ou cadeias intermediárias de eventos
invisíveis, são as pontes” utilizadas pela imaginação para percorrer objetos ou
eventos aparentemente desconexos.
“The supposition of a chain of intermediate, though invisible, events, which
succeed each other in a train similar to that in which the imagination has been
accustomed to move, and which link together those two disjointed appearances, is
the only means by which the imagination can fill up this interval, is the only bridge
which, if one may say so, can smooth its passage from the one object to the other”
31
.
Uma vez que esse resultado tenha sido atingido de maneira satisfatória, o
espanto desaparece. Smith oferece para exemplo a teoria cartesiana dos “eflúvios
invisíveis”: tais eflúvios, circulando entre um imã e um pedaço de ferro,
preenchem o espaço que se estabelece entre o movimento de um e o do outro,
desfazendo assim a dificuldade experimentada pela imaginação na passagem.
Como o impulso seguido de movimento é uma ordem de sucessão familiar, o
deslocamento do ferro depois do imã parece, graças à hipótese cartesiana, estar de
acordo com o curso ordinário das coisas
32
.
28
Astronomy, II.8.
29
A longa passagem que descreve a aflição da imaginação é particularmente notável pela sua
dramaticidade. Cf. Astronomy, II.8.
30
“...which, like a bridge may so far at least unite those seemingly distant objects, as to render the
passage of the thought betwixt them smooth, and natural, and easy” (Astronomy, II.8).
31
Astronomy, II.8.
32
“Two objects which are so connected seem no longer to be disjointed, and the imagination flows
smoothly and easily along them” (Astronomy, II.8).
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23
A interrupção dada à carreira da imaginação, a dificuldade que ela
experimenta em transitar por objetos desconexos e a sensação (feeling) de um
intervalo entre eles, produz o espanto. Tal sentimento envolve uma espécie de dor,
um desconforto, e provoca “incerteza”, ansiedade”, “hesitação”, confuo”,
vertigem (giddiness), e até, se muito continuado, desvario e derio(lunacy and
frenzy). Por outro lado, ao incitar uma resposta em termos de uma ordenação
apropriada para os fenômenos, ou de um relato plausível a respeito da conexão
entre eventos aparentemente desconexos, o espanto gera também um efeito
benigno. Este sentimento, em si desagradável, gera seu próprio antídoto ao dar
ensejo a uma reação positiva capaz de aliviar o estado de ansiedade da mente e re-
estabelecer o seu equilíbrio. Ademais, uma narrativa coerente capaz de unificar
um conjunto de fenômenos particulares eleva a nossa apreciação dos mesmos. É
assim que, por exemplo, uma teoria astronômica nos ajuda a admirar os céus,
apresentando o “teatro da natureza” como um mais coerente e portanto um mais
magnífico espetáculo
33
. A “admiração surge, portanto, no final do processo,
coroando um teoria bem-sucedida; e o mesmo prazer que derivamos da
contemplação da “beleza de uma planície” ou da “grandeza de uma montanha” é
evocado ante um sistema bem ordenado de fenômenos.
Teorias científicas ou filosóficas são produtos da imaginação, “ficções”,
com o propósito de agradar o espírito humano ao tornar a natureza um todo
ordenado e coerente, e a filosofia é a arte de conectar os fenômenos naturais:
“Philosophy is the science of the connecting principles of nature. Nature, after the
largest experience that common observation can acquire, seems to abound with
events which appear solitary and incoherent with all that go before them, which
therefore disturb the easy movement of the imagination; (...). Philosophy by
representing the invisible chains which bind together all these disjointed objects,
endeavors to introduce order into this chaos of jarring and discordant
appearances, to allay this tumult of the imagination, and to restore it, when it
surveys the great revolutions of the universe, to that tone of tranquility and
composure, which is both most agreeable in itself, and most suitable to its nature.
Philosophy, therefore, may be regarded as one of those arts which address
themselves to the imagination;...”
34
..
É assim que Smith se propõe examinar os “diferentes sistemas da natureza”,
sucessivamente adotados pelos “sábios e engenhosos”, não em sua “probabilidade
ou caráter absurdo”, nem em sua “concordância ou inconsistência com a verdade e
33
Astronomy, II.12
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24
a realidade”, mas sim de acordo com a medida que cada um deles “era apropriado
para serenar (sooth) a imaginação, e tornar o teatro da natureza um espetáculo
mais coerente, e, portanto, mais magnífico do que ele, de outra forma, teria se
mostrado.
35
Filosofia e Superstição
Na seção III, Of the Origin of Philosophy, Smith modifica o padrão de
investigação e desenvolve um argumento cio-histórico a respeito das condições
externas que permitem a investigação filosófica/científica. Há, diz Smith, um
estágio pré-filofico, “nas primeiras eras da sociedade, antes do estabelecimento
da lei, da ordem e da segurança”, em que o homem, premido pela subsistência
precária e por perigos constantes, não encontra estímulo para se ocupar com a
filosofia, ou com busca do que, quando descoberto, não parece ter outro
propósito senão o de tornar o teatro da natureza um espetáculo mais coeso à sua
imaginação”
36
.
Neste estágio, as pequenas desarmonias no curso dos fenômenos escapam à
atenção do “selvagem”, que não pode, porém, ignorar as irregularidades mais
grandiosas da natureza, tais como: cometas, eclipses, trovões, raios etc. Como
essas aparências geralmente o aterrorizam, o selvagem, atribuindo-lhes uma
causa invisível inteligente”, se dispõe a acreditar que sejam o signo ou o efeito da
vingança ou desagrado de alguma divindade. O mesmo se dá em relação às
irregularidades “belas e agradáveis”, as quais são acompanhadas, na alma
selvagem, pelo sentimento de gratidão dirigido a algum deus benevolente
37
.
Medo e gratidão são, segundo Smith, respectivamente, os sentimentos
naturais” em relação àquilo que nos inflige dor ou prazer
38
. O costume dos
antigos atenienses” de punir o machado que acidentalmente matara alguém e de
erigir altares e oferecer sacrifícios ao arcoris deriva, por exemplo, desse
princípio universal da natureza humana. Porém, enquanto o homem civilizado é
34
Astronomy, II.12.
35
Astronomy, II.12.
36
Astronomy, III.1
37
“...for whatever is the cause of pleasure excites our gratitude” (III.2)
38
Este ponto reaparece na TMS (II.iii.1.1). O sentimento de ressentimento excitado por uma
injúria é a base da teoria da justiça de Smith.
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25
capaz de contra-arrestar reações emocionais de gratidão e ressentimento em
relação a objetos inanimados, pela “simples reflexão” de que esses não são os
objetos adequados desses sentimentos, o selvagem, cujas noções são inteiramente
guiadas pela paixão e natureza selvagem”, atribui aos mesmos uma causa
inteligente invisível que merece reverência e gratidão. Daí a origem do
politeísmo”: “dessa vulgar superstição que atribui todos os eventos irregulares da
natureza ao favor ou desagrado de seres inteligentes, embora invisíveis, a deuses,
demônios, bruxas, nios e fadas”
39
. O selvagem, em sua “superstição vulgar”,
pensa da mesma maneira que uma criança, atribuindo intencionalidade a objetos
inanimados: “uma criança acaricia a fruta que lhe agrada, bem como golpeia a
pedra que lhe fere. As noções do selvagem não o muito diferentes
40
.
O ponto aqui é que o selvagem, esmagado pela necessidade e insegurança,
vive ao sabor das paixões mais imediatas, especialmente do medo, dispondo-se a
produzir e a acreditar em “fantasias” que reforçam esses sentimentos
41
.
A situação se transforma quando a subsistência deixa de ser precária, e a lei
estabelece a ordem e a segurança: a curiosidade da humanidade aumenta em
proporção à diminuição de seus medos. A tranilidade de que os homens
desfrutam então os torna mais atentos às aparências da natureza e às suas
irregularidades, e mais desejosos de conhecer o “fio inteligível” que as conecta.
Também a consciência de sua própria força, que acompanha o estado de
segurança, os torna menos dispostos a empregar, como cadeia conectiva, aqueles
seres invisíveis provenientes da ignorância e do medo de seus rudes
39
Astronomy, II.2
40
Astronomy, II.2. Ao comparar o “selvagem” à “criança”, Adam Smith parece dar sua
contribuição a uma concepção biológico-moral que está na base de grande parte da reflexão
histórica dos séculos XVIII e XIX. Assim como a criança passa, no século XVIII, a ser vista como
um estágio incipiente no desenvolvimento do indivíduo adulto (Ariès, 1978), o selvagem é tomado
como o representante de um estágio primitivo da humanidade em seu progresso histórico. Daí a
presença por toda parte, neste período, da visão do selvagem como uma amostra da “infância da
humanidade”. A comparação reflete o laço entre biologia e história que se desenvolve no
Iluminismo. Ambos, “criança” e “selvagem”, são tomados como pertencentes a um estado
transicional do desenvolvimento cognitivo, estando temporariamente confinados ao mundo das
sensações imediatas, o que explica a sua suposta incapacidade para lidar com idéias abstratas. Mas
não é exatamente esse o argumento aqui. Smith não está dizendo que o selvagem é biologicamente
semelhante a criança, mas sim que, devido a certas condições sociais desfavoráveis, o mecanismo
seqüencial dos sentimentos intelectuais não produz no “selvagem” seu resultado adequado, teorias
filosóficas, mas sim ficções espúrias, “superstição”. Sua imaginação simplesmenteo opera da
maneira adequada em relação aos fenômenos naturais.
41
“...unprotected by the laws of society, exposed, defenseless, he feels his weakness upon all
occasions; his strength and security upon none” (Astronomy, III.1).
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26
antepassados”
42
. A filosofia floresce. As primeiras sociedades suficientemente
ordenadas para praticá-la foram, segundo Smith, a Grécia e suas colônias; e é a
partir daí que a última seção do ensaio, a história ilustrativa da astronomia, traça o
percurso dessa prática até Newton.
2.2.
David Hume e o projeto da ciência do Homem
Ao sumariar o argumento da História da Astronomia, na seção anterior,
mencionei a presença não citada de Hume. Isso não nos deve surpreender, pois,
desde que se conheceram, em Edimburgo, entre 1748-51, David Hume foi uma
presença constante nos escritos e na vida de Adam Smith. Neste período, Smith,
recém terminados seus estudos no Balliol College, em Oxford, residia em
Edimburgo, proferindo palestras públicas a convite de Henry Home, Lord
Kames
43
, enquanto que Hume, retornando de uma missão diplomática nas cortes
de Viena e Turim, na qual servira como secretário, restabelecia-se na propriedade
de sua família numa localidade próxima. Consta que Hume passou os dois anos
seguintes ao seu regresso com visitas periódicas a Edimburgo, freqüentando o
rculo intelectual dos Clubs. É possível que tenha até assistido às palestras de
Adam Smith, durante essas visitas
44
. O fato é que, desde então, os dois se
tornaram grandes amigos e assíduos interlocutores até a morte de Hume, em 1776.
No ano seguinte, à publicação póstuma de seu opúsculo autobiográfico, My Own
Life, foi acrescida uma carta-homenagem de Adam Smith, narrando os últimos
dias da vida do grande filósofo
45
.
Há, no entanto, indícios de que Adam Smith fora apresentado à obra de
Hume muito antes de se conhecerem pessoalmente. Uma anedota sobre seu
período de estudante conta como ele foi flagrado (e “severamente punido”) pelos
diretores de seu College lendo o, então censurado, Tratado Sobre a Natureza
42
Astronomy, III.3.
43
Ross, 1999, p. 139. Dessas palestras, chegaram a nós, graças à descoberta de manuscritos de
seus ouvintes, as Lectures on Rhetoric and Belles Lettres e as Lectures on Jurisprudence.
44
Ibid., p. 166.
45
Corr. nº.178; p. 217. A carta termina com as seguintes palavras: “Upon the whole, I have always
considered him, both in his lifetime and since his death, as approaching as nearly to the idea of a
perfectly wise and virtuous man, as perhaps the nature of human frailty will permit”.
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Humana
46
. O biógrafo de Adam Smith, Ian S. Ross, nos oferece duas indicações
interessantes a respeito da relação intelectual entre os dois filósofos:
“Em alguns aspectos, nossa informação sobre essas séries [as palestras proferidas
em Edimburgo] sugere que Smith estava trabalhando no programa para a ‘ciência
do homem’, que Hume havia anunciado no Tratado
47
.
E ainda:
“Para dirigir assim o seu raciocínio sobre a história da astronomia, Smith
encontraria o modelo intelectual de uma combinação de ceticismo sobre as
‘vinculações ocultas’ por trás das aparências e de uma explicação naturalista
sobre as teorias a respeito dessas ‘vinculações’ no Tratado sobre a Natureza
Humana de Hume, que, diz-se, foi lido por ele em Oxford”.
48
Seguindo as indicações de Ross, minha intenção nesta seção é formar um
entendimento a respeito do que é a Science of Man de Hume a partir de uma
análise de textos do Treatise e do Enquiry concerning human understanding, pois
acredito que por esse caminho será possível estabelecer uma base importante para
a compreensão da obra de Adam Smith, porquanto esse parece acompanhar as
diretrizes principais do projeto. uma congruência notável, não apenas num
nível programático, ou de conteúdos específicos, mas também no plano de uma
compreensão do sentido da tarefa filofica e de sua relação com a vida cotidiana,
entre as reflexões de Smith e Hume. O papel privilegiado que a “imaginação” e os
“sentimentos” desempenham na vida humana, segundo estes dois filósofos, está,
parece-me, profundamente ligado a esta definição. Convém, portanto, considerá-la
com atenção.
A filosofia como ciência da natureza humana.
A introdução ao Tratado começa com um diagnóstico da situação
claudicante da filosofia, imersa em disputas, controvérsias, incapaz de encontrar
um apoio seguro para se sustentar: “a mais trivial das questões não escapa à
controvérsia, e nas mais importantes não somos capazes de oferecer qualquer
46
Ross, 1999, p. 129.
47
Ibid., p. 155.
48
Ibid., p. 157. Há ainda uma outra pista que sugere a ligação entre este trabalho de Smith e a
filosofia de Hume. Em carta ao herdeiro de Adam Smith, John Millar, referindo-se aos
manuscritos não destruídos de Smith, diz: “Of all his writings, I have most curiosity about the
metaphysical work you mention. I should like to see his powers of ilustration employed upon the
true old Humean philosophy” (Millar apud Raphael & Skinner; EPS; intro, p.16 – grifos meus).
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decisão segura”
49
. Até mesmo a “turba”, do lado de fora das portas do salão
filofico, pode julgar, pelo barulho e clamor que escuta, que as coisas não vão
bem do lado de dentro
50
.
Hume assume que à filosofia impõe-se nada menos do que uma reforma
radical, o que envolve uma mudança no foco e na estratégia de suas investigações.
Deve-se abandonar o método “tedioso” e “vacilante” adotado aentão e, ao invés
de visar algum castelo ou cidade na fronteira”, marchar direto para a capital de
todas as ciências: “a própria natureza humana”. Ao pretender explicar os
princípios da natureza humana, “nós [Hume] propomos, na verdade, um sistema
completo das ciências, construído sobre uma fundação inteiramente nova, a única
sobre a qual elas poderiam se erguer com toda a segurança”
51
Da mesma forma que a ciência da natureza humana é a única fundação
sólida para as outras ciências, a única fundação sólida que esta ciência pode
receber deve, segundo Hume, situar-se na “experiência” e na “observação”; do
subtítulo do Tratado: being an attempt to introduce the experimental method of
reasoning into the moral sciences
52
. E Hume se espanta que a aplicação da
filosofia experimental a assuntos morais tenha demorado mais de um século
53
.
49
T intro.xiv
50
T. intro.xiv
51
T. intro. xvi
52
Leia-se: o método de Galileu-Bacon-Newton. A inflncia das ciências naturais e,
particularmente, de Newton na filosofia do século XVIII é um consenso entre os historiadores das
idéias: “Newton is the hero of the Enlightenment... It became a challenge to emulate his work, to
achieve for the moral or social sciences what he have done for the natural science” (Berry, 2006, p.
113). Uma excelente contribuição à compreensão da obra de Adam Smith nesta linha de
investigação é: Carvalho (1995). No entanto, a despeito da inegável e vigorosa influência de
Newton, é recomendável uma certa prudência ao caracterizar pensadores do século XVIII como
adotando o método newtoniano. O sistema de Newton, gradualmente, tornou-se, neste período,
assimilado a um anódino newtonianismo”, que, como tal, não apenas rasurava suas características
próprias e envolvia indiscriminadamente o trabalho de outros cientistas experimentais, como
também servia de suporte para a teologia natural e para a ordem social estabelecida (Berry, 2006,
p. 113). Além disso, mesmo que se reconheça a inspiração de Newton em Smith e Hume, há
razões para se duvidar de suas subscrições à metodologia newtoniana. Griswold, por exemplo,
lembrando o fato de que Smith em nenhum momento afirma estar seguindo o método newtoniano
em suas obras, não acredita que a TMS, e tampouco a WN, sigam o método de Newton, seja no
sentido em que Smith o descreve nas LRBL, seja no sentido em que o próprio lhe dá (1999, p. 72).
Campbell (1971, p. 236) é da mesma opinião. E a conclusão prudente de Berry é: “while there is
no reason to doubt the presence of that inspiration in Smith, it is better understood as a general
orientation rather than a specific agenda” (2006, p. 126). A respeito dessa questão em Hume, veja-
se: Rosenberg, “Hume and the Philosophy of Science”, 1993. David Fate Norton, após realizar um
breve resumo das leituras e da educação intelectual de Hume, atestando a sua impressionante
erudição, afirma: “this breadth of study and reading does not necessarily distinguish Hume from
other philosophers of his time, but it does suggest that, despite his obvious preference for what he
called the ‘experimental method of reasoning’, no single writer or philosophical tradition can be
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29
Ora, talvez isso tenha se dado devido à dificuldade de se reconhecer uma
limitação fundamental, extensível a toda e qualquer ciência. Afinal, se a “essência
do espírito” nos é tão desconhecida quanto a dos corpos externos, é igualmente
impossível “formar alguma noção de seus poderes e qualidades” de outra forma
que não através de “experimentos exatos e cuidadosos” e da observação de seus
efeitos particulares em diferentes circunstâncias e situações. No entanto, mesmo
que a tarefa científica envolva tornar os princípios tão universais quanto possível,
conduzindo os experimentos até o limite, e explicando todos os efeitos pelas
causas mais reduzidas e simples, “ainda assim é certo que não podemos ir além da
experiência; e qualquer hipótese que pretenda descobrir as qualidades últimas e
originais (ultimate original qualities) deve ser rejeitada de saída como presunçosa
e quirica”
54
.
A impossibilidade de desvendar os “princípios últimos” o é um defeito
exclusivo da ciência do homem, nos diz Hume, mas de todas as ciências e artes
nas quais nos empregamos: “nenhuma delas pode ir além da experiência, ou
estabelecer quaisquer princípios que não estejam fundados nessa autoridade”
55
.
Ela o é nem mesmo um defeito, mas antes uma condição de ser de todo o
conhecimento, do qual a experiência deve ser o caminho para e, ao mesmo tempo,
a fronteira.
A filosofia moral possui, contudo, uma única desvantagem em relação à
filosofia natural, que em nada compromete sua certeza: o fato de seu objeto não
permitir as experiências premeditadas e controladas que constituem a prática da
segunda. O que nos obriga, ou aqueles que trabalham com assuntos morais, a:
“...glean up our experiments in this science [moral philosophy] from a cautious
observation of human life, and take them as they appear in the common course of
the world, by men’s behavior in company, in affairs, and in their pleasures. Where
experiments of this kind are judiciously collected and compared we may hope to
establish on them a science, which will not be inferior in certainty, and will be
much superior in utility to any other of human comprehension”
56
.
relied upon to provide a comprehensive key to his thought”. Eu diria o mesmo a propósito de
Adam Smith, sem excetuar a relação que pretendo estabelecer entre a sua reflexão e a de Hume.
53
“Moral” tem um sentido amplo aqui, referindo-se àquilo que diz respeito à natureza humana, em
oposição à natureza física.
54
T intro.xvii – grifos meus.
55
T intro.xviii.
56
T intro. xix.
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30
Eis a nova ciência da natureza humana tal como descrita por seu
proponente. Percebe-se que seu propósito é primordialmente reformista: visa
estabelecer, a partir da investigação dos princípios e operações do espírito
humano, um novo e único alicerce para todos os saberes, sobre o qual seria
possível avançar em conhecimento e certeza. Tal objetivo depende, no entanto, da
aceitação de uma condição e de uma impossibilidade (o todo experimental e a
ciência dos princípios últimos”). Estas definem a orientão empirista do projeto
e circunscrevem o espaço legítimo para as investigações: o campo dos fenômenos
- além deles não há conhecimento seguro.
Ao contrário de seus predecessores, particularmente os cartesianos, que
buscaram fundar a possibilidade do saber a partir de uma refutação do ceticismo
filofico, Hume propunha uma abordagem alternativa ao problema do
conhecimento, incorporando as principais conclusões céticas. É neste sentido que
David Norton caracteriza Hume como o primeiro filósofo “pós-cético” do período
moderno
57
. A impossibilidade de se conceder ao conhecimento um fundamento
tão sólido quanto pretendiam os racionalistas, não significava que ele não pudesse
ter um fundamento. Simplesmente, do ponto de vista de Hume, o fundamento não
poderia se situar onde os racionalistas diziam vê-lo.
Hume conhecia a maneira apriorística pela qual os grandes sistemas
racionalistas do século XVII, como o cartesiano, resolviam o problema da
verdade, situando o “mundo”, como totalidade do criado, e a “razão”, como
sistema de iias claras e distintas, em um mesmo plano primitivo do ser. A
suposição de que a união entre pensamento e realidade se desse em virtude de sua
coincincia primordial fazia com que a certeza do conhecimento tivesse que
passar pela mediação da existência e eficácia de Deus. A ontologia pressupunha
uma ordem teológica. Apenas a razão, marca do divino na criatura, seria capaz de,
através de representações puras, re-estabelecer a união primordial entre sujeito e
objeto embaçada pela mutabilidade fenomênica. O desenvolvimento de
Malebranche da teoria cartesiana das idéias inatas tornava evidente o recurso à
participação metafísica como fundamento da verdade. Enquanto a imaginação e os
sentidos atestariam apenas o contingente, a rao, contraditória presença do
57
Norton, 1993, p. 1.
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31
infinito no finito
58
, seria a única faculdade capaz de iluminar o caminho do
conhecimento seguro.
O desenvolvimento metafísico do racionalismo cartesiano em Malebranche
se chocava com o princípio secularizador que distingue a filosofia do Iluminismo
segundo Cassirer
59
. Hume subscrevia o preceito iluminista: se pode conhecer
aquilo que se experimenta fenomenicamente. A nova ciência de Hume rejeitava a
possibilidade do conhecimento, divinamente mediado, da ordem eterna do ser,
sem, contudo, concluir pela incognoscibilidade do mundo. Seu ceticismo dirigia-
se a qualquer pretendido conhecimento dos princípios últimos e originais”, mas
o à possibilidade de um saber das “apancias”, à maneira de uma ciência
descritiva e explanatória.
Conhecer, de acordo com Hume, significava simplesmente organizar e
unificar os fenômenos em seqüências causais na imaginação. Veremos, na
próxima seção, que a análise de Hume da relação de causa e efeito parte de uma
crítica radical à noção tradicional da causalidade como um princípio diretamente
derivado de Deus, enquanto causa primeira do universo, ou como uma qualidade
inteligível e inerente às coisas. Em sua análise, Hume substitui uma necessidade
intrínseca na conexão entre objetos ou eventos na natureza por uma determinação
interna ao espírito, que decorre apenas de uma conjunção entre a operação de
certos princípios da natureza humana, como o hábito” e a “imaginação”, e uma
regularidade na experiência. É, segundo se viu, exatamente esse entendimento que
Adam Smith reproduz na History of Astronomy.
Em resumo, pode-se dizer que o sistema humeano da “natureza humana”
constita-se fundamentalmente como uma alternativa à metafísica tradicional e
ao racionalismo. A recusa da hipótese do acesso pelo sujeito a uma ordem
racional prévia, teologicamente estabelecida, deixava a Hume duas alternativas:
(a) aceitar o donio da pura continncia; (b) postular a possibilidade de que a
ordem fosse estabelecida a posteriori, que essa fosse, de certa forma, produzida
pelo espírito humano em sua atividade. Evidentemente, (a) jamais deixou de ser
58
“C’est un éclat de la substance lumineuse de notre mâitre commun” (Malebranche apud
Cassirer, 1997; p. 140).
59
“Trata-se de estabelecer a natureza e o conhecimento em seu próprio fundamento, explicar uma
e outro por suas próprias determinações. Convém, tanto para um quanto para o outro, abster-se de
recorrer a todo o ‘além’. (...). O problema deve ser formulado e resolvido no terreno da
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uma mera possibilidade lógica, e a argumentação de Hume, no caminho de (b),
passa pela demonstração, através de um apelo à experiência comum, do absurdo
de concluir (a) partindo-se da recusa inicial. Com efeito, o Tratado e a
Investigação dedicam-se a descrever e a explicar a maneira pela qual o “homem
comum”, sem o recurso à Razão dos filósofos, e a despeito do ceticismo, é capaz
de conduzir uma vida satisfatoriamente regulada, sem jamais ultrapassar os limites
do sensível. A existência pré-filofica tem suas próprias capacidades, e a
filosofia deve se constituir sobre essas capacidades, e não em oposição a elas.
Através da imaginação, operando através de seus princípios mais estáveis,
como o hábito e a relação de causa e efeito, o homem, segundo Hume, é capaz de
naturalmente introduzir uma regularidade na experiência, superando a
contingência dos sentidos. No entanto, veremos que, na construção humeana da
“natureza humana”, a contingência, manifestando-se através de “ilusões da
imaginação”, algumas das quais indispensáveis à própria conduta da vida, nunca é
completamente eliminada.
A afirmação da vida cotidiana
ainda um outro aspecto da ciência da natureza humana que gostaria de
explorar antes de passar a uma discussão mais pontual da filosofia de Hume.
Trata-se de aventar a possibilidade de que a rejeição do caminho da
transcendência para o problema do conhecimento e a disposição em limitar a
filosofia ao método experimental, abandonando toda a metasica tradicional,
estejam ligados à presença de um propósito ético mais difuso perpassando toda a
empresa da nova ciência. Será necessário, então, cotejar uma breve análise da
primeira seção do Enquiry concerning human understanding com uma hipótese
histórica mais ampla que envolve, pontualmente, a Revolução Científica do século
XVII e a crítica baconiana ao ideal da theoria.
Tal hipótese pode ser convenientemente sintetizada no transtorno produzido
na hierarquia clássica das atividades pela brutal afirmação da “vida cotidiana
60
experncia: o menor passo que arriscarmos fora de seu domínio significa uma solução ilusória,
uma explicação do desconhecido por algo ainda mais desconhecido” (Cassirer, 1997; p. 140).
60
Estou me apropriando aqui da definição de Charles Taylor: “’Ordinary life’ is a term of art I
introduce to designate those aspects of human life concerned with production and reproduction,
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que acompanha a emergência do mundo moderno. É como se no panorama
axiológico moderno, em função da própria dinâmica da religiosidade judaico-
cristã, as atividades associadas, na terminologia aristotélica, à mera “vida - os
aspectos da existência humana ligadas à produção e à reprodução, o labor, o
trabalho e a família - tivessem suplantado aquelas atividades mais “nobres” que
constitam a “boa vida” antiga clássica - a contemplação da ordem das coisas e a
participação do cidadão na deliberação do bem comum - em relação às quais as
primeiras seriam meramente infra-estruturais. De acordo com a ordem clássica
dos fins, uma existência dedicada exclusivamente à “vida” não seria
completamente humana, pois compreenderia somente as atividades que nos
aproximam dos animais. Mas na transição à qual estou me referindo são
exatamente estas atividades que se tornam mais relevantes, assumindo uma inédita
importância blica, em detrimento daquelas tradicionalmente tidas como mais
elevadas. Acompanha-a, no plano concreto, de uma maneira resumida, aquilo que
Hannah Arendt, com desdém, como a “ascensão do social”
61
.
Com a afirmação da vida cotidiana, as atividades ligadas à conduta prática
da vida, como o trabalho e o cuidado com a família, não apenas assumem,
sozinhos, uma dignidade inédita, como se tornam o lócus da “boa vida” moderna,
ao mesmo tempo em que aquele conjunto de atividades tidas pelos antigos como
mais eminentes é submetido a uma crítica vigorosa. Tal processo se intensifica
sobretudo a partir da Reforma, quando os ideais da contemplação e da
participação cívica, recuperados nos humanismos erudito e cívico, são atacados
em nome dos mais humildes porém, desde então, também mais elevados, valores
do cotidiano e do homem comum, tornando-se linhas de força secundárias no
panorama da cultura ocidental moderna. Na afirmação da vida cotidiana opera
implícito um princípio democratizante, uma inclinação inerente para o
nivelamento social, pois o centro da boa vida passa, com ela, a residir no
comum”, ao invés de num conjunto de atividades restrito a uns poucos
privilegiados. As atividades outrora nobres teriam que se justificar perante os
novos valores.
that is, labor, the making of things needed for life, and our life as sexual beings, including
marriage and the family” (1989; p. 211).
61
“... o que chamamos de ‘sociedade’ é o conjunto de famílias economicamente organizadas de
modo a constituir o fac-símile de uma única família sobre-humana, e sua forma política de
organização é denominada ‘nação’” (Arendt, 2005; p. 38).
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Durante a Revolução científica, o ideal clássico da theoria, da apreensão da
ordem do cosmo pela contemplação, seria denunciado por Francis Bacon como
o e mal orientado, uma tentativa presunçosa de escapar ao trabalho árduo das
investigações empíricas e experimentais
62
. Bacon insistia que as ciências
tradicionais, movidas pelo orgulho e vaidade, teriam produzido um saber
especioso e inútil. Mesmo aqueles que buscaram o conhecimento por si mesmo, e
o como meio de ostentação, dirigiram suas investigações para a descoberta de
uma ordem compreensiva nas coisas e não para aquilo que seria realmente
importante: a maneira como as coisas funcionam. Os bios clássicos teriam se
proposto o objetivo errado: satisfação (o que os homens chamam de Verdade) e
o a operação
63
. É o critério de verdade que se modifica neste momento,
passando a se situar nos resultados concretos da pesquisa, nos “frutos”: pois os
frutos e os trabalhos são como se fossem os estímulos (sponsors) e as garantias
(sureties) da verdade das filosofias
64
. De todos os “sistemas dos gregos”,
continua ainda Bacon, com perplexidade, “dificilmente se pode (...) aduzir um
único experimento que tenda a aliviar e melhorar a condição do homem”
65
.
“Melhorar a condição do homem”, esse é o objetivo
66
. A ciência deixa de
ser uma atividade elevada à qual a vida cotidiana deveria se submeter. A partir
deste momento, a relação se inverte: é a ciência que deve servir à vida cotidiana
Essa transformação implicou também uma reavaliação das profissões, pondo-se
muitas vezes o trabalho do artesão e do artífice acima daquele realizado pelo
ocioso” filósofo. Num arrebatamento de humildade, Robert Boyle descreveu-se
como um underbuilder, enquanto John Locke, frequentemente, referia-se a si
mesmo como um underlabourer
67
.
Sem dúvida, grande parte do entusiasmo com que a nova ciência da natureza
de Newton foi recebida no século XVIII se deve a esta mudança histórica;
finalmente parecia surgir uma filosofia de utilidade efetiva para a melhoria da
humanidade. E quando Hume, propondo estender o todo experimental ao
estudo da natureza humana, afirma, de maneira um tanto exagerada, que sua
62
Taylor, 1989, p. 213.
63
Bacon apud Taylor, 1989, p. 213.
64
Idem.
65
Idem.
66
“Not to make this goal is not only a moral failing, a lack of charity, but also an inextricable and
epistemological failing” (Taylor, 1989, p. 213).
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ciência se “muito superior em utilidade que qualquer outra dispovel à
compreensão humana”, é o mesmo critério moral que se manifesta: a filosofia
deve favorecer a condição humana.
A filosofia abstrusa e a vida prática
Na primeira seção do Enquiry concerning human understanding, Hume
busca distinguir entre dois modos distintos de tratar a filosofia moral, ou a ciência
da natureza humana, cada qual com seu mérito particular, mas ambos devotados a
contribuir para a “manutenção, instrução e reforma da humanidade”
68
. O primeiro,
que Hume caracteriza como “fácil e evidente” (easy and obvious), considera o
homem como “nascido para a ação” e influenciado em suas medidas pelo “gosto e
sentimento”. Esse método, ou “filosofia”, seguido pelas polite letters, busca
cultivar nossas maneiras, mobilizando diretamente nossa imaginação e afetos
através da representação da virtude, com o auxílio da poesia, da eloqüência e do
emprego de exemplos da vida comum
69
.
o segundo modo, “preciso e abstruso” (accurate and abstruse), se refere
ao homem enquanto um ser racional (reasonable) e busca antes formar o seu
entendimento do que cultivar suas maneiras. Seu modo de operação é o escrutínio
da natureza humana com o objetivo de encontrar os princípios que regulam o
entendimento, excitam nossos sentimentos e nos fazem aprovar e desaprovar
objetos, ações e comportamentos. Ainda que suas especulações sejam abstratas e
mesmo ininteligíveis para os leitores comuns, este último método busca a
aprovação do “sábio e do estudioso”, e se contenta em descobrir coisas que
possam contribuir para a instrução da posteridade.
É, no entanto, a filosofia “fácil e evidente” que tem a preferência da maior
parte da humanidade, recomendando-se não apenas como a mais agradável como
também a mais útil. Sua capacidade de penetrar na vida comum e tocar
diretamente naqueles princípios que nos movem permite moldar os corações e
reformar a conduta dos homens. Em contraste, a filosofia abstrusa é facilmente
67
Taylor, 1989, p. 549 n.11.
68
EHU I.1, p. 5.
69
“They make us feel the difference between vice and virtue; they excite and regulate our
sentiments; so they can but bend our hearts to the love of probity and true honor...” (EHU I.1, p.6)
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subvertida quando o filósofo abandona as sombras e se coloca à luz do dia”, pois
seus princípios e conclusões, bastante remotos e incompreensíveis para o homem
comum, dificilmente são capazes de influenciar a sua conduta e comportamento
70
.
O Homem, segundo Hume, é um ser compósito, “racional”, “social e
ativo”, e, portanto, dado a diferentes atividades: ciências, companhia e
conversação, negócios e ocupações. Por essa razão, a “Natureza” nos recomenda
uma tipo misto de vida, pelo qual seja possível equilibrar o investimento em cada
uma das atividades associadas aos diferentes aspectos do nosso ser, de tal forma
que nenhuma submeta completamente as outras. O “mais perfeito caráter”, diz
Hume, situa-se entre dois extremos: o “puro filósofo(do qual se supõe que em
nada contribua para o prazer ou vantagem da sociedade) e o “completo ignorante”
(cujo desinteresse total por assuntos intelectuais o tornam ainda mais desprezível
que o primeiro), devendo reter uma habilidade e gosto inticos para livros,
companhia e negócios; preservar na conversação delicadeza e discernimento e, ao
mesmo tempo, probidade e exatidão nos negócios. Para difundir e cultivar um
caráter tão “realizado” (accomplished), as composições no estilo fácil e agradável
são o melhor caminho
71
. A própria Natureza o recomenda
72
, enquanto pune”
aqueles que se dedicam à reflexão mais profunda com o humor melancólico, a
incerteza e a fria recepção a que suas descobertas se destinam quando
comunicadas ao grande público
73
.
Talvez por isso a maior parte da humanidade prefira a filosofia fácil àquela
abstrata e profunda, dispensando à segunda censura e desprezo, até mesmo ao
ponto de rejeitar completamente todo tipo de raciocínio profundo, ou o que se
chama comumente de “metasica”
74
. Hume, com um giro sutil, dispõe-se, então, a
70
“The feelings of our heart, the agitation of our passions, the vehemence of our affections,
dissipate all its conclusions, and reduce the profound philosopher to a mere plebeian” (EHU I.3, p.
7).
71
“By means of such compositions, virtue becomes amiable, science agreeable, company
insructive, and retirement entertaining” (EHU I.4, p. 8).
72
“Indulge your passions for science, says she [Nature], but let your science be human, and such
as may have a direct reference to action and society” (EHU I.4, p.8).
73
Há uma alusão autobiográfica aqui, pois Hume, frequentemente acometido por crises
depressivas associadas à sua dedicação à reflexão profunda, “the disease of the learned”, também
não obteve, em vida, reconhecimento público para suas obras, sempre um fracasso de vendas e
crítica. O próprio EHU é um esforço de esclarecer ao público as teses do “incompreendido”
Treatise.
74
Hume utiliza aqui o sentido vulgar do termo: reflexão abstrata e de difícil compreensão.
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defender o método profundo e abstruso dessa acusação, sem contudo contestar o
critério que a orienta: o privilégio da “vida prática”.
Em primeiro lugar, diz Hume, a filosofia abstrata e acurada pode ser útil
àquela cil e humana, fornecendo-lhe um certo grau de exatidão em seus
“sentimentos, preceitos e raciocínios” que a última seria incapaz de atingir por si
só. Como as polite letters o representações da vida humana que buscam inspirar
determinadas reações, um conhecimento preciso das várias operações do esrito
humano pode lhes ser tão valioso quanto o conhecimento da anatomia é ao pintor.
Ademais, pode-se observar que a infusão de um certo “espírito de precisão”,
próprio ao gênio filosófico, é capaz de aproximar todas as artes e profissões de sua
perfeição, tornando-as mais úteis à sociedade. Por fim, mesmo que nenhuma
vantagem imediata possa ser extraída dos estudos profundos, e, a despeito de
exigirem uma aplicação severa, às vezes dolorosa e cansativa, eles são, pelo
menos para aqueles dotados de uma saúde vigorosa e inclinação para tal
aplicação, a fonte de prazeres “seguros e inofensivos”.
Hume admite, porém, que a obscuridade que cerca a filosofia profunda e
abstrata pode torná-la não apenas cansativa e dolorosa, como também a fonte de
incerteza e erro. Sendo uma objeção justa que se faz a uma parte considerável da
metafísica o fato de que esta não é propriamente uma ciência, e que emerge ou
dos esforços estéreis (fruitless) da vaidade humana, que insiste em penetrar em
assuntos absolutamente restritos à sua compreensão, ou dos artifícios da
superstição popular, a qual, incapaz de se defender em terreno aberto, faz crescer
um cerrado cipoal para proteger sua fraqueza
75
. Mas, insiste Hume, essa não deve
ser uma razão suficiente para abandonarmos este método, deixando-o refém do
inimigo. É preciso, ao contrário, libertar a metasica de uma vez por todas da
vaidade e da superstição. E o caminho para fazê-lo é uma investigação séria sobre
a natureza do entendimento humano, capaz de expor os seus limites, através de
uma análise exata de seus poderes e capacidades. O cultivo da “verdadeira
metafísica” é o antídoto contra a “falsa
76
. Talvez o sucesso nessa empresa possa
até mesmo, um dia, nos libertar de toda a metafísica, sugere Hume.
75
“Chased from the open country, these robbers fly into the forest, and lie in wait to break in upon
every unguarded avenue of the mind, and overwhelm it with religious fears and prejudices” (EHU
I.6, p. 11).
76
“We must submit to this fatigue, in order to live at ease ever after: and must cultivate true
metaphysics with some care, in order to destroy the false and adulterate” (EHU I.7, p.12).
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Além da vantagem de se rejeitar, depois de uma investigação cuidadosa, a
parte mais incerta e desagradável do saber, muitas vantagens positivas a se
derivar do escrutínio acurado dos poderes e faculdades da natureza humana.
Dentre as quais, a própria satisfação que se origina da mera discriminação e
classificação das diversas operações do espírito humano, corrigindo a aparente
desordem em que elas se encontram envolvidas
77
. Não deve haver vidas de que
uma tal ciência seja passível de certeza e solidez, pois é certo que o espírito é
dotada de uma série de poderes e faculdades, que estes são distintos entre si e que
podem ser discriminados pela percepção e reflexão. E Hume manifesta a mais
sincera esperança de que a aplicação diligente ao conhecimento da natureza
humana, “no que diz respeito à economia e aos poderes mentais”, possa atingir um
sucesso semelhante ao de Newton em relação aos corpos celestes, determinando
as leis e as forças que atuam nos seus movimentos.
A abstração e a dificuldade de compreensão que cercam tais reflexões a
respeito do entendimento humano não podem ser consideradas provas de sua
falsidade. Afinal, aquilo que escapou a tantos sábios e profundos filósofos não
poderia ser muito fácil e evidente, e qualquer contribuição a nosso estoque de
conhecimentos a propósito de assuntos de tal importância deve compensar
quaisquer sofrimentos que estas pesquisas possam acarretar. Felizes seremos,
conclui Hume, se formos capazes de unir as fronteiras entre as duas espécies de
filosofia, reconciliando a investigação profunda com a clareza, e ainda mais
felizes, se por este caminho, pudermos solapar as fundações da superstição e do
erro em metafísica.
A filosofia deve subordinar-se aos propósitos da vida cotidiana, e contribuir
para a “manutenção, instrução e reforma da humanidade”. O pensamento deve
fazer-se pensamento útil. Parece que a descontinuidade moderna em relação aos
ideais antigos não se estende ao princípio platônico de que a razão e o
conhecimento filofico devem guiar à vida sensível. Pom, não é isso que a
leitura da primeira seção do EHU nos dá a entender. Aliás, parece-me que o texto
manifesta uma visão que, se o completamente oposta à platônica, pelo menos a
complexifica enormemente. Logo de início, surge uma perplexidade, pois Hume,
estabelecendo uma distinção na “filosofia moral” entre uma “prática” e uma
77
“And if we can go no father than this mental geography, or delineation of the distinct parts and
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39
teórica”, reconhece a maior eficia da primeira. Enquanto as polite letters tocam
fundo no coração dos homens, agindo diretamente sobre os princípios não
racionais que regem a sua conduta, a teoria não possui nenhuma influência
positiva direta sobre a vida prática, restringindo-se à apreciação de uns poucos
learned and wise. Ao contrário de Platão, Hume não concede ao elemento
racional da “alma a primazia sobre os outros. Não é o tipo “filofico” de vida o
que melhor se recomenda ao homem, mas sim um tipo “misto”, que contemple
também um investimento nas atividades ligadas às dimensões “sociale “ativa”
da psique em sua vero humeana. Porque o homem moderno é um ser comsito,
voltado para o agir e o sentir tanto quanto para o pensar, é um tipo distinto de
phronêsis que se lhe aconselha, e esse será o tema do pximo capítulo, onde se
tratará da filosofia moral de Adam Smith.
2.3.
Como se constrói um mundo
Percepções: as peças do espírito
Os elementos da filosofia de Hume são os componentes do espírito humano,
as “percepções”, as quais se dividem em “impressões” e “idéias”. Dessas, as
impressões tem precedência, e afetam o espírito com mais força e vivacidade
78
.
As iias são as “imagens lidas”, ou “cópias”, das impressões no espírito, a
maneira pela qual essas re-aparecem na memória ou na imaginação depois de
terminado o estímulo original. As idéias podem produzir ainda impressões
secundárias, “bastardas”, chamadas por Hume de “impressões de reflexão” (para
distingui-las das impressões originais dos sentidos), as quais, por sua vez, podem
dar origem a outras iias, e assim sucessivamente.
As impressões dos sentidos surgem “na alma originalmente, de causas
desconhecidas”
79
. Além delas não se pode ir, pois, para Hume, sua origem última
ultrapassa os limites de nossa compreensão. A ciência do Homem suspende o
julgamento sobre a questão a propósito de onde, exatamente, nos chegam as
powers of the mind, it is at least a satisfaction to go so far;...” (EHU I.8, p.13).
78
“...and under this name I comprehend all our sensations, passions and emotions, as they make
their first appearance on the soul” (T 1.1.1, p. 1.).
79
T 1.1.2, p. 7.
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40
impressões captadas por nossos sentidos; de onde quer que nos venham, para os
seus propósitos, basta que nós as tenhamos, pois são suas associações e efeitos no
espírito que importam
80
. De alguma forma misteriosa, recebemos impressões que
dão origem a idéias, e ambas se combinam, como peças, de rias formas
diferentes no “mundo mental”. As iias devem ser referidas às impressões, mas
essas não precisam ser referidas a coisa alguma
81
. A preocupação essencial de
Hume, no livro I do Tratado, é com nossas percepções qua percepções, i.e., como
elementos ou objetos do espírito e não como representações de existências
externas
82
. Toda a nossa experiência é mediada pelas percepções, e é apenas
através delas que podemos conhecer alguma coisa. Desse modo, por mais longe
que levarmos nossas investigações, jamais abandonamos os estreitos limites de
nós mesmos
83
.
Deste ponto de partida, delineia-se um problema: a análise das impressões
dos sentidos demonstra que elas são incapazes de nos transmitir certas noções
estruturais, que nós todavia possuímos, pois delas depende a conduta da vida, tais
como: as idéias de espo, de tempo, de conexão causal, de existência externa e
independente e da unidade de nosso próprio eu.
Dado o princípio de limitar-se à experiência e a recusa da hipótese de que a
razão seja capaz de refletir uma ordem dada a priori, Hume terá de se esforçar
para explicar de que modo nós naturalmente produzimos certas iias que
ultrapassam aquilo que os sentidos nos transmitem, e fornecem à existência uma
estrutura indispensável. Trata-se de examinar, então, de que modo as nossas
percepções se inter-relacionam, produzindo outras percepções, que são então
80
“As to those impressions which arise from the senses, their ultimate cause is, in my opinion,
perfectly inexplicable by human reason, and ‘twill always be impossible to decide with certainty,
whether they arise immediately from the object, or are produc’d by the creative power of the mind,
or are deriv’d from the author of our being. Nor is such a question any way material to our present
purpose. We may draw inferences from the coherence of our perceptions, whether they be true or
false; whether they represent nature justly, or be mere illusions of the senses” (T. 1.3.5; p. 84).
81
Talvez porque não exista alguma realidade mais fundamental a qual elas devam se conectar.
Mesmo que exista uma tal realidade - o que jamais saberemos -, isso pouco importa, pois, para
Hume, esse est percipi: “the idea of existence, then, is the very same with the idea of what we
conceive to be existent. To reflect on any thing simply, and to reflect on it as existent, are nothing
different from each other (...). Whatever we conceive, we conceive to be existent” (T.1.2.6, p.66-
67).
82
Norton, 1993, p. 8.
83
“... it follows, that tis impossible to conceive or form any idea of any thing specifically different
from ideas and impressions. Let us chase our imagination to the heavens, or to the utmost limits of
the universe; we never really advance a step beyond ourselves, nor can conceive any kind of
existence, but those perceptions, which have appear’d in that narrow compass” (T 1.2.7, p 67-68).
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41
projetadas para um mundo supostamente fora da mente
84
. Do limitado número de
impressões que recebemos, é possível construir um verdadeiro edifício de
crenças” que vai muito além das impressões dos sentidos e das idéias da
memória que remontam a elas
85
.
A questão que se coloca, então, é: como é possível a ultrapassagem daquilo
que imediatamente se apresenta ao espírito, de modo a se constituir um sistema de
realidades” que vem a se somar, estruturando, àquele composto simplesmente
pelas impressões dos sentidos e iias da memória? Analisarei como se produzem,
segundo Hume, as idéias “fictícias” de conexão causal e da existência externa e
independente dos corpos, dada a relação direta que o argumento desenvolvido em
relação a essas guarda com aquele da História da Astronomia. Porém, é preciso
antes conhecer a faculdade capaz de transpor os limites dos sentidos: a
“imaginação”.
A Imaginação
Mencionei acima que as idéias são a maneira pela qual as impressões re-
aparecem no espírito. Isso pode se dar de duas formas, de acordo com o grau em
que a vivacidade da impressão é mantida em sua idéia correspondente: ou ela
mantém algo dessa vivacidade original, ou ela a perde completamente, tornando-
se então uma idéia perfeita. “A faculdade através da qual nós repetimos nossas
impressões do primeiro modo é chamada Memória, e a outra é a Imaginação
86
.
As idéias da memória são, portanto, mais vivas e fortes do que aquelas da
imaginação. Quando lembramos de algum evento passado, a sua idéia invade a
mente de uma forma intensa, ao passo que a percepção, na imaginação, é
apagada e lânguida” e não pode, sem dificuldade, ser mantida na mente de
maneira firme e uniforme por um período considerável de tempo.
ainda uma outra diferença entre as duas faculdades: enquanto a memória
é obrigada a manter em suas idéias a mesma ordem, posição e forma de suas
impressões originais, sem nenhum poder de variação, a imaginação tem liberdade
84
Norton, 1993, p. 8.
85
“... the mind must be conceived as essentially active. It is what it does with what it gets that
matters, and it is this that Hume’s science is an attempt to describe” (Biro, 1993, p. 40).
86
T 1.1.3, p. 8 – grifos meus.
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para transpor e modificar as suas idéias, criando, às vezes, associações inusitadas
que modificam a cena original da experiência. É por isso que, nas fábulas que
encontramos em poemas e romances, a natureza é “inteiramente confundida, e
nada se menciona senão cavalos alados, dragões de fogo e gigantes
monstruosos
87
.
Hume não explica porque o espírito trata de maneiras diferentes as suas
percepções na imaginação e na memória. Interessa-lhe explicar estas faculdades,
ou princípios, pela descrição de seus efeitos e não pelo que seriam “em si
88
.
Podemos nos perguntar, porém, como é possível que a imaginação rompa a ordem
do dado e estabeleça novas associações entre as suas idéias. Afinal, o que permite
a sua liberdade? Talvez isso se devido ao fato de que as idéias da imaginação,
por serem menos vivas e fortes que as da memória, são facilmente decompostas
pela mesma, podendo ser recombinadas numa ordem distinta daquela manifesta
por suas impressões correspondentes
89
. A fraqueza ou languidez das idéias na
imaginação, decorrente exatamente do fato de sua relação com as impressões
originais ser mais fraca ou o existir, explica tamm porque essas nem sempre
recebem o assentimento necessário do espírito para se tornarem “crenças”, i.e.,
para serem tomadas como representando existências reais.
Dado, portanto, que nada é mais livre do que essa faculdade”, uma outra
questão que se coloca é: o que explica a preponderância observada de uma certa
regularidade indispensável em suas associações? A variabilidade natural da
imaginação, sua capacidade infinita de dissociar e associar idéias, precisa ser
regulada por certos princípios de modo a se garantir uma uniformidade em suas
operões.
“As all simple ideas may be separated by the imagination, and may be united
again in what form it pleases, nothing wou’d be more unaccountable than the
operations of that faculty, were it not guided by some universal principles, which
render it, in some measure, uniform with itself in all times and places. Were ideas
entirely loose and unconnected, chance alone wou’d join them, and ‘tis impossible
the same simple ideas should fall regularly into complex ones (as they commonly
87
T 1.1.3, p.10.
88
“Na verdade, tais princípios da natureza humana são modos como as próprias idéias se
reproduzem e associam no espírito... As percepções se comportam de maneiras diferentes,
seguindo os princípios da natureza humana. Mas não há princípios, nem há natureza humana,
distintos dessas mesmas percepções” (Danowski, 1991, p. 22). Ou ainda: “Nada se faz pela
imaginação, tudo se faz na imaginação” (Deleuze, 2001, p.13).
89
É Danowski quem sugere essa possibilidade (1991, p.23).
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do) without some bond of union among them, some associating quality, by which
some idea naturally introduces another
90
.
Este laço de união, esta qualidade associativa, não deve ser considerado
como uma “conexão inseparável”, como é aquela que se entre as idéias na
memória, mas sim como uma “força suave”, que “comumente prevalece”, e que
supre, na imaginação, o lugar daquela. Semelhança, contigüidade no tempo e no
espaço e causa e efeito são os três princípios universais de associação, através dos
quais se produz uma associão regular entre as iias na imaginação, fazendo
com que uma naturalmente introduza aquela a si relacionada. Segundo Hume, a
relação de causa e efeito é capaz de produzir a conexão mais forte na imaginação,
e são, principalmente, os raciocínios por causalidade que configuram o que se
chama entendimento”.
Hume pretendia ver em seus princípios de associação um equivalente no
mundo mental da atração gravitacional que Newton propusera para conectar os
fenômenos naturais
91
. É preciso notar, contudo, que os princípios de associação
o são capazes de produzir uma determinação tão forte quanto aquela produzida
pela gravidade no mundo sico. Eles são “forças suaves” que “comumente
prevalecem”, e jamais subjugam completamente a imaginação em sua tendência
em relacionar as iias ao acaso, em sua liberdade essencial
92
. No entanto,
introduzem (junto com outros princípios) uma regularidade e coerência no mundo
mental suficiente para impedir seu colapso na pura contingência. Vejamos agora
de que maneira, a partir experiência e de certos princípios da natureza humana,
tais como a associação e o “hábito”, se produzem a idéia de conexão necessária”
e as “crenças” em eventos futuros e causas ausentes, que fornecem à vida e à ação
uma regularidade indispensável.
Causalidade
90
T 1.1.4, p. 10.
91
“Here is a kind of attraction, which in the mental world will be found to have as extraordinary
effects as in the natural, and to shew itself in as many and as various forms. Its effects are every
where conspicuous; but as to its causes, they are mostly unknown, and must be resolved into
original qualities of human nature, which I pretend not to explain” (T 1.1.4, p.12-13).
92
“É preciso não confundirmos a imaginação quando guiada por princípios universais com o
princípio próprio da imaginação, que é o de ‘confundir’ a natureza, ou seja, estabelecer
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Imaginemos que Adão fosse subitamente animado e colocado no meio do
mundo em pleno usufruto de suas capacidades mentais
93
. Ele seria, muito
provavelmente, incapaz de fazer mesmo a mais simples predição a respeito do
comportamento futuro dos objetos à sua volta. Ele não poderia, por exemplo,
predizer que uma bola de bilhar em movimento ao se chocar com outra faria
também essa se movimentar; não poderia prever que a água de um rio o afogaria;
e tampouco que o sol haveria de nascer no dia seguinte. Ao passo que nós,
dotados das mesmas faculdades, não apenas fazemos essas, e inúmeras outras,
predições, como não poderíamos nos impedir de fazê-las. Qual seria, então, a
diferença entre esse Adão imaginário e nós? A experiência.
Por este caminho, Hume transtorna a noção tradicional de causalidade como
ligação necessária e inteligível - seja enquanto uma qualidade inerente à matéria,
seja enquanto remetendo-se à idéia da Divindade como primeiro motor do
universo (tal como no desenvolvimento cartesiano em Malebranche)
94
. A
causalidade deixa de ser uma relação cognoscível a priori, em que um efeito
sempre pode ser deduzido exclusiva e necessariamente a partir de uma causa, para
se tornar uma relação sintética e inteiramente dependente da experiência
95
. A
rigor, qualquer objeto pode ser causa ou efeito de um outro, e apenas a
experiência pode nos dar alguma determinação a este respeito.
A análise de Hume da causalidade se configura como uma análise a respeito
do que tomamos na vida comum por noções de poder”, “força”, “energia”, ou
coneo necessária” entre objetos, e começa com a re-afirmação do princípio
basilar do empirismo: que todas as nossas idéias não são senão pias de nossas
impressões, ou, em outras palavras, que nos é impossível pensar qualquer coisa
que não tenhamos antes sentido (felt) através de nossos sentidos externos ou
internos”
96
. A partir daí, Hume passa ao exame das experiências de causalidade,
buscando encontrar a impressão que tenha dado origem à iia vulgar de conexão
causal.
dissociações e associações ao acaso ou por capricho, contrariando aquilo que geralmente e
naturalmente prevalece na natureza humana” (Danowski, 1991, p.25).
93
Norton, 1993, p.9.
94
Danowski, 1991, p. 17. A autora toma esta questão como ponto de partida para a sua
investigação a respeito da noção de continncia na filosofia de Hume: “de que modo uma crítica
tão radical à idéia de uma causalidade necessária, inteligível e inerente à essência das coisas pode
conviver com a firme recusa da noção de acaso?
95
Danowsky, 1991, p.28.
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Os primeiros resultados são desanimadores: tudo o que se pode dizer a
propósito de objetos tomados como relacionados por causalidade é que são
contíguos no tempo e no espaço, que a causa antecede o efeito, e que objetos
semelhantes estiveram constantemente associados dessa maneira. A conclusão que
se sugere parece, portanto, ser que: “nós não temos nenhuma idéia de conexão
necessária ou poder, e que essas palavras são absolutamente sem sentido quando
empregadas tanto na vida comum quanto em raciocínios filoficos”
97
. No
entanto, “há ainda um método de evitarmos esta conclusão
98
. Afinal, “há uma
conexão necessária a ser levada em consideração
99
, e nossa crença em sua
existência requer uma explicação.
A despeito de nossa dificuldade em ver ou provar a existência de conexões
causais necessárias, nós continuamos a pensar e a agir na experiência comum
como se tivéssemos conhecimento delas. s agimos, por exemplo, segundo a
crença de que o futuro será necessariamente semelhante ao passado, de tal modo
que alguém seria considerado “ridículose dissesse que, “é apenas provável que o
sol venha a nascer amanhã, ou que todos os homens devem morrer; embora seja
evidente que não temos nenhuma garantia desses fatos além daquela que a
experiência nos proporciona”
100
. Como dar conta, então, desta contradição que
opõe o escrutínio filofico às nossas crenças mais arraigadas e mais
indispensáveis à conduta da vida
101
?
O problema pode ser resumido da seguinte forma: a partir de um objeto
singular é impossível descobrir ou mesmo conjecturar qual evento dele irá
resultar, muito menos qual necessariamente resultaria. Um homem não poderia
dizer apenas pela aparência da água que ela o afogaria
102
. Tampouco a observação
da conjunção singular de um objeto ou evento a outro poderia nos fazer supor que
essa mesma conjunção ocorra no futuro e não uma outra qualquer
103
. Ao vermos,
96
EHU VII.I.49, p.62.
97
EHU VII.II.58, p.74.
98
Idem.
99
T 1.3.2, p.73.
100
T 1.3.11, p.124.
101
“For surely, if there be any relation among objects which it imports to us to know perfectly it is
that of cause and effect” (EHU VII.II.60, p.76).
102
“In reality there is no part of matter that does ever, by its sensible qualities, discover any power
or energy or give us ground to imagine that it could produce anything or be followed by any other
object, which we could denominate its effect” (EHU VII.II.50, p.63).
103
“...it being justly esteemed an unpardonable temerity to judge the whole course of nature from
one single experiment, however accurate or certain” (EHU VII.II.59, p.74).
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uma única vez, uma bola de bilhar se mover após se chocar com outra em
movimento não podemos prever que o mesmo acontecerá a partir de um segundo
choque. Ou seja, a priori não podemos prever qual o efeito que resultará de um
objeto qualquer; e a posteriori, o máximo que temos é um objeto seguindo-se a
outro – a necessidade desta seqüência não é dada em lugar algum
104
.
Hume diz que é apenas a partir da observação de uma conjunção constante,
i.e., da observação repetida de uma sucessão invariável de pares de objetos ou
eventos, que perdemos o escrúpulo em prever a manifestação de um pelo
aparecimento daquele que sempre o antecedeu: “chamamos, então, um objeto
causa, o outro efeito. Supomos que exista uma conexão entre eles, algum poder
em um através do qual ele infalivelmente produz o outro, e opera com a maior
certeza e a mais forte necessidade”
105
. No entanto, se não nada de diferente
entre uma conjunção singular e sua repetição continuada, além da mesma cena em
maior número, de onde derivamos a iia de uma conexão necessária? De lugar
algum se não de nós mesmos:
“...there is nothing in a number of instances different from every single instance
which is supposed to be exactly similar except only that after a repetition of similar
instances the mind is carried by habit upon the appearance of one event to expect
its usual attendant and to believe that it will exist. This connection which we feel in
the mind, this customary transition of the imagination from one object to its usual
attendant is the sentiment or impression from which we form the idea of power or
necessary connection”
106
.
Embora a repetição continuada de uma conjunção específica na experiência
o produza nenhuma modificação nos objetos, ela modifica o espírito que a
observa. Graças a um outro princípio da natureza humana, o hábito, sentimos uma
determinação a passar de um objeto presente àquele que comumente o
acompanha. Esta tendência, expectativa ou inclinação adquirida pela imaginação é
a impressão (de reflexão), o sentimento, da qual é copiada a idéia de conexão
necessária entre dois eventos.
104
Danowski, 1991, p. 28.
105
EHU VII.II.59, p.75.
106
EHU VII.II.59, p.75.
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A necessidade da ligação entre dois objetos ou eventos é algo que se
apenas no espírito
107
, o que não significa, porém, que ela se refira ao observador.
A iia tem sua origem na mente e é então projetada sobre o mundo,
supostamente externo e independente, graças a uma também propensão da
natureza humana em conferir objetividade a algumas de suas idéias. Embora seja
apenas uma determinação no observador, assumimos que a causalidade é um
princípio nos objetos
108
.
Se não está na matéria, nem no princípio divino, a causalidade tampouco é
um a priori do espírito, como dela fará Kant. Ela é antes uma “ficção” da
imaginação que se produz espontaneamente a partir de uma combinação entre a
experiência, os princípios da associação, semelhança e contiidade (sucessão), e
o hábito, sendo, então, projetada para o mundo externo.
A relação de causa e efeito tem a capacidade de ultrapassar aquilo que
nossos sentidos nos fornecem, pois ela é sempre uma inferência, a partir de uma
impressão determinada, da existência necessária de um objeto ausente, como o
efeito ou a causa daquela impressão. Nós acreditamos em efeitos futuros e em
causas ausentes. Essa crea, indispensável à nossa conduta e seu planejamento,
também deve ser explicada.
A crença, para Hume, é uma maneira mais viva e intensa de conceber uma
idéia. Esta intensidade diferencial é o que distingue um objeto em que
depositamos crença e um objeto meramente concebido. Como vimos, a força e
vivacidade de uma idéia derivam da sua relação com uma impressão
correspondente, o que, por um lado, deixa as iias da imaginação em
desvantagem em relação às da memória, e, por outro, lhes concede uma liberdade
associativa indispensável para superar a ordem do dado.
Mas o que, afinal, nos faz acreditar em proposições que dizem respeito a
questões de fato (matters of fact), i.e., a propósito da inferência, a partir de
impressões presentes, da existência de objetos ou eventos ausentes?
107
“Upon the whole, necessity is something that exists in the mind, not in objects...” (T 1.3.14,
p.165).
108
T 1.3.14, p.167. Para sermos fiéis a Hume, é preciso dizer que ele não nega, explicita e
dogmaticamente, a existência de conexões causais reais. O ponto é que,o tendo experncia das
mesmas, devemos ser, pelo menos,ticos em relação à sua existência. Existe, no entanto, uma
idéia de conexão necessária, mas, ainda que acreditemos ordinária e naturalmente que a realidade
corresponda a esta idéia, a análise filosófica adequada demonstra que esta idéia deriva de um
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Nas questões de fato, o hábito adquirido pela imaginação em passar
naturalmente de uma impressão à idéia do objeto com que esteve associada
constantemente na experiência permite também a transferência da força da
impressão presente à iia ausente. Isso torna possível que a disposição do espírito
adquirida pela solidez e vivacidade da impressão se mantenha inalterada ao
conceber a idéia de sua causa ou efeito ausentes, transmitindo-lhe o assentimento
da crença, necessário para distingui-la das outras idéias na imaginação. Graças a
este processo, todo um mundo não diretamente presente aos sentidos e à memória
assume existência no pensamento, permitindo que se planeje ações e se preveja
resultados ainda em potência.
É neste sentido que Hume fala em dois “sistemas de realidades”
sobrepostos: um primeiro, que é simplesmente o conjunto de todas as nossas
impressões de sentidos e iias da memória; e um segundo, composto por idéias
conectadas pelas relações de causa e efeito, ou, se quisermos, pelo hábito, na
imaginação:
“’Tis this latter principle which peoples the world, and bring us acquainted with
such existences, as by their removal in time and place, lie beyond the reach of the
senses and memory. By means of it I paint the universe in my imagination, and fix
my attention on any part of it I please. (...) All this, and every thing else, which I
believe, are nothing but ideas; tho’ by their force and settled order, arising from
custom and the relation of cause and effect, they distinguish themselves from the
other ideas, which are merely the offspring of the imagination”
109
.
A análise de Hume a respeito de nossa crença na existência externa de
objetos e na unidade de nosso próprio eu segue o mesmo padrão. Estas são
também crenças em “ficções”, ou em entidades inteiramente além da experiência.
Existência externa e independente
Incapaz de defender sua razão pela razão, o tico, ainda assim, continua a
raciocinar e a acreditar. Segundo Hume, o mesmo princípio regula o problema da
existência externa dos corpos
110
. Questionar se existem ou o corpos (whether
sentimento, o que abre a possibilidade permanente de que nossa crença esteja simplesmente errada
(Norton, 1993, p.10).
109
T 1.3.9, p.108.
110
“...tho’ he [o cético] cannot pretend by any arguments of philosophy to maintain its veracity(T
1.4.2, p.187).
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there be body or not) é um esforço vão
111
, pois é certo que acreditamos na
existência externa dos objetos. Podemos (e devemos) nos perguntar, porém, pelas
causas que nos induzem à tal crença. E essa pergunta se divide em duas outras:
porque atribuímos uma existência continuada aos objetos, mesmo quando estes
não estão presentes aos nossos sentidos; e porque supomos que tenham uma
existência distinta da mente e da percepção.
É certo que os sentidos, sozinhos, não podem responder a essas perguntas.
Em primeiro lugar, porque eles têm acesso a impressões interrompidas, não
podendo, portanto, nos fornecer nenhuma noção de objetos continuando além da
presença dessas impressões o que seria uma contradição em termos. Tampouco
podem nos fornecer a idéia de existência distinta, independente ou externa, pois
isso exigiria que os sentidos distinguissem entre nossas percepções e nós mesmos.
Nem mesmo a razão pode nos ajudar, pois suas conclusões se opõem exatamente
àquilo que cumpre explicar: a crença vulgar, comum às crianças, aos camponeses
e à “maior parte da humanidade”, que confunde objetos e percepções, tomando
por existências distintas e contínuas aquilo mesmo que vêem ou sentem. Tal
opinião, portanto, “sendo completamente insensata (unreasonable)”, deve
proceder de uma outra faculdade: a imaginação.
Como todas as nossas impressões são existências internas e fugazes, a noção
de sua existência distinta e continuada pode surgir da concorrência entre
qualidades da imaginação e qualidades peculiares a certas impressões.
Com efeito, todos os objetos aos quais atribmos uma existência distinta e
contínua possuem uma constância peculiar, e mantém uma certa coerência em
suas transformações. Hume sugere, em primeira pessoa, algumas situações
comuns para exemplo
112
: as montanhas, as casas e as árvores que vejo através da
janela apresentaram-se sempre a mim numa mesma ordem, e, se fecho meus olhos
por um instante, elas retornam sem a menor alteração; devo supor que continuam
sua existência, independente de minha percepção. Ao retornar à sala, percebo que
o fogo da lareira não se encontra na mesma situação em que o deixei, no entanto,
estou acostumado a vê-lo se transformar de maneira semelhante num mesmo
intervalo de tempo, quer eu esteja presente ou ausente. Ouço uma porta se abrindo
atrás de mim, embora não a veja nesse momento, devo supor que a mesma porta
111
“That is a point which we must take for granted in all our reasonings (T 1.4.2, p.187).
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50
que guardo em minha memória tenha continuado a existir; e também a escada,
sem a qual o porteiro, que me entrega uma carta vinda do outro lado do oceano,
o teria conseguido chegar a mim. Preciso ainda assumir a existência do próprio
oceano, assim como a do correio e a do navio que ma trouxeram.
Enfim, todos estes fenômenos, dos quais não recebo impressões diretas,
seriam contradições incompreensíveis se eu não supusesse suas existências
contínuas e independentes.
“There is scarce a moment of my life, wherein there is not a similar instance
presented to me, and I have not occasion to suppose the continu’d existence of
objects, in order to connect their past and present appearances, and give them
such an union with each other, as I have found by experience to be suitable to their
particular natures and circumstances. Here then I am naturally led to regard the
world, as something real and durable, and as preserving its existence, even when it
is no longer present to my perception”
113
.
A qualidade da imaginação que concorre para gerar este efeito é uma certa
“inércia” que lhe é característica. Uma vez posta em movimento, numa carreira de
pensamento, a imaginação tende a continuá-la, mesmo quando o seu objeto
falha
114
. É esse o princípio que origem à idéia da existência contínua dos
corpos, uma “ficção da imaginação”. Os objetos já se apresentam aos sentidos
com uma certa coerência, mas essa se muito maior e mais uniforme se
supusermos que tenham uma existência contínua. Como a imaginação se
encontra no movimento de perceber uma uniformidade entre os objetos, ela
naturalmente continua mesmo que para isso tenha que produzir a idéia de
existência contínua -, até tornar esta uniformidade a mais completa possível.
No entanto, tal princípio não é, sozinho, suficiente para sustentar um
edicio tão vasto” quanto a existência contínua dos corpos. É preciso considerar
ainda a qualidade da constância dos objetos, que está na base do princípio de
identidade. O problema, agora, passa a ser como resolver o fato de que tomamos
uma série de impressões interrompidas por uma existência discreta, intica a si
mesma.
Estamos acostumados a ver o sol ou o oceano retornarem exatamente da
mesma maneira que se apresentaram a nós da primeira vez em que os vimos;
112
T 1.4.2, p.196.
113
T 1.4.2, p.197
114
“...and like a galley put in motion by the oars, carries on its course without any new impulse”
(T 1.4.2, p.198).
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graças à semelhança de suas aparições, não as tomamos como interrompidas, mas,
ao contrário, as consideramos como se fossem uma mesma. s dissimulamos
(disguise) o máximo possível, ou afastamos completamente, a interrupção,
supondo que as diferentes percepções estão conectadas por uma existência real, da
qual somos insensíveis. É essa ficção que cumpre explicar.
O próprio princípio da identidade é, em si mesmo, uma ficção, um meio
termo impossível entre a unidade e o número. Ora, se um objeto singular nos
transmite apenas a idéia de unidade, pelo mesmo princípio, uma multiplicidade de
objetos, por mais semelhantes que sejam, pode nos transmitir a idéia de
número, ou de existências distintas. Em nenhum dos dois casos temos uma
identidade. Segundo Hume, a única saída é recorrermos a um artifício, aplicando a
idéia de tempo a um objeto imutável, de modo a fazer com que ele participe das
modificações de objetos coexistentes
115
. Dizer que um objeto é idêntico a si
mesmo significa apenas dizer que um objeto existente num determinado momento
é o mesmo existindo em outro momento.
“Thus the principle of individuation is nothing but the invariableness and
uninterruptedness of any object, thro’ a suppos’d variation of time, by which the
mind can trace it in the different periods of its existence, without any break of the
view, and without being oblig’d to form the idea of multiplicity or number”
116
.
A invariabilidade no tempo não explica porém porque atribuímos uma
identidade e uniformidade perfeita a objetos que apresentam longas interrupções
ou intervalos em suas manifestações. Hume nos adverte que estamos aqui tratando
das opiniões do vulgo que confunde suas impressões com os próprios objetos,
tomando suas sensações pelos corpos reais. Trata-se, portanto, de encontrar a
fonte do erroe do “engano” (deception) que nos faz, quando nos misturamos à
parte não pensante (unthinking) e não filosófica (unphilosophical) da
humanidade”, atribuir uma identidade a percepções semelhantes, a despeito de sua
interrupção.
A resposta encontra-se na relação produzida na imaginação pelo princípio
da semelhança. A relação de semelhança, que associa as percepções
interrompidas, faz com que a imaginação transite com tal facilidade entre estas
115
“This fiction of the imagination almost universally takes place; and ‘tis by means of it, that a
single object, plac’d before us, and survey’d for any time without our discovering in it any
interruption or variation, is able to give us a notion of identity” (T 1.4.2, p.200).
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que chega a confundi-las, tomando-as por uma única e atribuindo uma identidade
a percepções distintas. A passagem entre as idéias relacionadas é tão suave
(smooth) e fácil que não produz nenhuma alteração na disposição da mente, que
parece continuar a perceber o mesmo objeto e não uma série de impressões
distintas e interrompidas.
Estabelece-se, então, uma contradição: a passagem suave da imaginação
entre as idéias semelhantes nos faz atribuir a essas uma identidade perfeita, ao
mesmo tempo em que a maneira interrompida de sua aparência faz considerarmos
que são seres semelhantes, porém, ainda assim, distintos, que se manifestam em
intervalos. A perplexidade que deriva dessa contradição causa um sensível mal-
estar (sensible uneasiness) no espírito e naturalmente o incita a buscar uma
solução capaz de aliviar o desconforto
117
. Um dos dois princípios precisa ser
sacrificado. Como é mais difícil abandonarmos o princípio de identidade, que
ele se sustenta sobre a transição suave da mente, devemos, portanto, voltarmo-
nos para o outro lado, e supor que nossas percepções não estão mais
interrompidas, e que preservam uma contínua bem como invariável existência”
118
.
Assim se produz a iia da existência contínua, que nos permite conciliar a
identidade com a interrupção através de uma fingida (feigned) existência “real”
capaz de preencher os espaços que se estabelecem entre suas aparições
119
. Como
tal ficção se origina a partir de impressões e idéias da memória – cuja relação por
semelhança permite que a imaginação transite facilmente entre elas -, ela acaba
por receber dessas a força necessária para se tornar um objeto de crença. A idéia
da existência independente segue, “sem muito estudo ou reflexão”, como
conseqüência necessária do princípio da existência contínua, “toda vez em que o
espírito segue sua tendência primeira e mais natural
120
.
Este é o percurso pelo qual o “senso comum é levado, naturalmente, da
confusão entre percepções e objetos à idéia fictícia da existência contínua e
116
T 1.4.2, p.201.
117
“Nothing is more certain from experience, than that any contradiction either to the sentiments
or passions gives a sensible uneasiness (...). On the contrary, whatever strikes in the natural
propensities, and either externally forwards their satisfaction, or internally concurs with their
movements, is sure to give a sensible pleasure” (T 1.4.2, p.205-6).
118
T 1.4.2, p.206
119
“When the exact resemblance of our perceptions makes us ascribe to them an identity, we may
remove the seeming interruption by feigning a continu’d being, which may fill those intervals, and
preserve a perfect and entire identity to our perceptions (T 1.4.2, p.208).
120
T 1.4.2, p.210.
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53
independente dos corpos. No entanto, uma simples reflexão da razão,
demonstrando a impossibilidade de que nossas percepções tenham uma existência
independente e contínua, é capaz de desestabilizar todo o sistema vulgar. Filosofia
e senso comum, razão e imaginação, entram em choque. Quem ganha? Seria de se
esperar que a opinião vulgar, fundada numa “ilusão da imaginação” fosse
rejeitada. The case, however, is otherwise. A Natureza se decide pelo vulgo.
Embora falso do ponto de vista da razão, o princípio da existência contínua e
independente se nos ime por uma espécie de “instinto ou impulso natural”, de
acordo com a sua conveniência e conformidade ao espírito. Mas a razão reluta,
produzindo uma divisão no próprio sujeito: “enquanto nossa atenção estiver
voltada para o assunto, o princípio filofico (...) pode prevalecer; mas, no
momento em relaxarmos nossos pensamentos, a natureza irá se mostrar, e nos
conduzir de volta à nossa opinião anterior
121
.
O embate é acirrado
122
, e como nenhum dos lados admite render-se, somos
obrigados a formular uma nova ficção, capaz de compreender ambos os
princípios: a hipótese filosófica da dupla existência de nossas percepções e
objetos. Tal hipótese agrada tanto à razão, admitindo que nossas percepções são
interrompidas e diferentes, quanto à imaginação, permitindo uma existência
continuada a um outro algo, a que chamamos “objetos”. O sistema filosófico que
dela resulta é o “rebento monstruoso” de dois princípios contrários, abraçados
pelo espírito ao mesmo tempo, e incapazes de destruírem um ao outro.
As Ilusões da imaginação
Embora a imaginação tenda a operar sob a égide de seus princípios mais
constantes, ela também produz, com a mesma naturalidade, enganos e absurdos,
dos quais alguns são perniciosos e devem ser combatidos, enquanto outros são
necessários para a conduta regular da vida e não podem ser desfeitos sem
conseqüências desastrosas. Entre os enganos que devem ser combatidos, figuram
a “superstição”, especialmente se conducente à credulidade e ao fanatismo, e as
121
T 1.4.2, p.214.
122
“Nature is obstinate, and will not quit the field, however strongly attack’d by reason; and at the
same time reason is so clear in the point, that there is no possibility of disguising her” (T 1.4.2, p.
215).
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54
“ficções metafísicas”, produzidas pela “filosofia antiga” (aristotélica), analisadas
por Hume numa seção do Tratado imediatamente posterior àquela onde examina a
nossa crença na existência externa e independente dos corpos, ela mesma uma das
ficções necesrias.
Na seção do Tratado intitulada, Of the ancient philosophy, Hume, logo após
afirmar que a disposição de nosso temperamento influencia a imaginação com a
mais “ilimitada liberdade”, se dispõe a criticar certas “ficções da filosofia antiga”,
as quais, embora insensatas e caprichosas, têm uma conexão muito íntima com
os princípios da natureza humana”
123
. Certas noções da metafísica aristotélica, tais
como as de substância”, “formas substanciais”, “acidentes” e qualidades
ocultas” são examinadas e sumariamente condenadas como ininteligíveis e
oriundas das mais triviais propensões da imaginação”. A conclusão de Hume é,
no entanto, ambígua: todo o sistema, portanto, é inteiramente incompreensível,
entretanto, deriva de princípios tão naturais quanto qualquer um daqueles que
foram explicados acima”
124
.
Outras noções, também correntes na linguagem dos peripatéticos, como
“simpatiase antipatias” e o “horror ao vácuo”, são atribuídas por Hume a uma
“muito notável inclinação da natureza humana em atribuir a objetos externos as
emoções que observa em si. Essa inclinação, diz ainda Hume, facilmente
controlada por uma “simples reflexão”, revela-se apenas nos espíritos fracos”:
em crianças (em seu desejo de bater nas pedras que as ferem), em poetas (em sua
prontidão em personificar as coisas) e nos filósofos antigos (na produção de
ficções metasicas). Devemos perdoar as crianças por sua idade; os poetas porque
professam seguir implicitamente as sugestões da fantasia; “mas que desculpa
devemos encontrar para justificar nossos filósofos em uma tão patente
fraqueza”
125
?
Ora, se é a mesma imaginação operando, o que diferencia tais ficções de,
por exemplo, a noção de causa e efeito, também ela uma ficção que se origina, de
certa forma, da mesma inclinação de projetarmos nossos sentimentos sobre as
coisas?
123
T 1.4.3, p. 219.
124
T 1.4.3, p.222.
125
T.1.4.3, p.225.
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55
Hume parece perceber a dificuldade, pois na seção seguinte, Of the modern
philosophy, refere-se à objeção que se lhe poderia fazer de como, sendo a
imaginação, de acordo com a sua própria doutrina, o juiz último de todos os
sistemas filosóficos, seria possível condenar os filósofos antigos em fazer uso
dessa mesma faculdade, deixando-se guiar por ela em seus raciocínios. Para se
justificar, Hume fará uma distinção na imaginação entre princípios permanentes,
irresistíveis e universais”, como a transição costumeira entre causas e efeitos, e
princípios “mutáveis, fracos e irregulares”. Enquanto os primeiros, que constituem
aquilo que Hume chama de “entendimento”, o o fundamento de todos os nossos
pensamentos e ações, de tal forma que, se forem removidos, a natureza humana
imediatamente perece e se arruína”; os últimos “não são nem inevitáveis aos
homens, nem necessários, ou sequer úteis à conduta da vida”
126
.
O erro dos fisofos antigos, sua fraqueza, não estaria em se deixar levar
pela fantasia ao invés de seguir os ditames da razão, como diriam os racionalistas,
mas sim em se deixar levar pelos princípios “fracos” da primeira, os quais, por sua
fragilidade, seriam facilmente subvertidos pelos robustos raciocínios do
entendimento. Embora ambos sejam naturais, Hume parece considerar
“saudáveis” os últimos:
“One who conclude something to be near him, when he hears an articulate voice in
the dark, reasons justly and naturally (...). But one, who is tormented he knows not
why, with the apprehension of specters in the dark, may, perhaps, be said to
reason, and to reason naturally too: but then it must be in the same sense, that a
malady is said to be natural; as arising from natural causes, tho’ it be contrary to
health, the most agreeable and most natural situation of man”
127
.
As opiniões dos filósofos antigos são, para Hume, como os “espectros no
escuro”, produzidas por princípios que, conquanto comuns, não são nem
universais nem inevitáveis na natureza humana. a “filosofia moderna” (aquela
de Hume) pretende basear seus juízos apenas nos princípios “sólidos, permanentes
e consistentes” da imaginação.
Adam Smith, distinguindo entre superstição” e “filosofia”, contribui
“sociologicamente” para o problema. Como vimos, é o estabelecimento de
determinadas condições socioinstitucionais, garantindo segurança material e um
certo ócio, o que impede a operação do mesmo mecanismo psicológico em
126
T 1.4.4, p.225.
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produzir superstição e politeísmo, dando origem, ao invés, à filosofia, cuja fina
flor só se abre em terreno seguro. O selvagem de Smith, premido pela subsistência
precária e exposto a perigos constantes, vive sob o império do medo. A
consternação de seu espírito é tamanha que não poderia deixar de se impor à sua
imaginação, produzindo imagens que reforçam sua infausta situação
128
. Ao
observar as irregularidades da natureza, a imaginação selvagem, refém do terror,
ao invés de operar pelos raciocínios de causa e efeito, se deixa levar pelos seus
princípios fracos”, produzindo explicações que reproduzem e reforçam seu
medo.
A conclusão sugerida até o momento parece ser a de que não podemos
simplesmente seguir nossos sentimentos e nossa imaginação. Ou seja, a natureza,
se deixada por ela mesma, irrefletida, pode nos conduzir a perceber espectros no
escuro e deuses nas coisas. Mas será que podemos confiar apenas na razão? Se for
este o caso, o que dizer, então, de nossa crença na existência externa e
independente dos corpos? Afinal, como vimos, a crença de que os objetos
continuam existindo além de sua manifestação aos sentidos não deriva do hábito e
da relação de causa e efeito, mas sim da relação de semelhança, que nos faz inferir
uma regularidade maior do que aquela que a experiência nos transmite e confundir
percepções distintas em uma única existência. Trata-se de uma ilusão da
imaginação”, sustentada pela “natureza” e resistida pela “razão”. Mas quem
poderia considerar-se “saudávele, acompanhando a razão, afirmar que toda a vez
em que fechamos os olhos os objetos à nossa volta deixam de existir? A opinião
da existência externa e independente, embora falsa do ponto de vista da razão, é
indispensável à conduta da vida e não pode simplesmente ser abandonada. A
hipótese filofica da existência dupla, “fruto monstruoso dos princípios
contrários da “natureza” e da “razão”, ou diríamos, dos princípios “fracos” e
“fortes da imaginação, surge como um frágil termo de compromisso para
conciliar os dois.
Pode-se dizer, então, que a natureza humana, embora se constitua pelo
predomínio de seus princípios fortes e universais (caso contrário seríamos um
mero aglomerado caótico de impressões e idéias misturadas ao acaso), nem
127
T 1.4.4, p. 225-6
128
“But our passions, as Father Malebranche observes, all justify themselves; that is suggest to us
opinions which justify them” (Astronomy, III.1)
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57
sempre pode prescindir de seus outros princípios, mais irregulares e
caprichosos
129
. A imaginação é inconstante e falaciosa, mas o entendimento,
quando age sozinho, é não menos perigoso. Algumas das ilusões da imaginação
o podem ser desfeitas sem comprometer toda a estrutura de nossa existência,
pois desapareceriam, sem elas, nada menos do que o mundo externo, como um
todo unificado, e nossa própria identidade.
“Nothing is more dangerous to reason than the flights of the imagination, and
nothing has been the occasion of more mistakes among philosophers. (...). But on
the other hand, if the consideration of these instances makes us take a resolution to
reject all the trivial suggestions of the fancy, and adhere to the understanding, that
is, to the general and more establish’d properties of the imagination; even this
resolution, if steadily executed wou’d be dangerous, and attended with the most
fatal consequences. For I have already shewn, that the understanding, when it acts
alone, and according to its most general principles, entirely subverts itself, and
leaves not the lowest degree of evidence in any proposition, either in philosophy or
common life”
130
.
Ao fim do dia, somos deixados com o dilema de Hume: “até que ponto
devemos ceder a estas ilusões”?
2.4.
Ceticismo, imaginação e a beleza da ordem.
Depois desta breve incursão à filosofia de Hume, retorno a Adam Smith e à
sua história da astronomia. Reúnem-se agora os elementos necessários para
retomar a proposta inicial de considerar uma continuidade entre a reflexão de
Smith e a de Hume, estabelecendo, por , alguns parâmetros importantes para a
leitura da Teoria dos Sentimentos Morais no capítulo próximo. Articulando a
discussão da History of Astronomy com a discussão dos textos do Treatise e do
Enquiry, sugere-se, nesta seção, a adoção por Smith de uma posição cética
semelhante à de Hume. Tal consideração será importante para se compreender o
quadro geral da reflexão de Adam Smith e a sua concepção do espírito humano.
Como conseqüência da adoção do ceticismo, Smith acompanha também a
visão da imaginação de Hume, entendendo-a igualmente como uma capacidade ou
poder do espírito para unificar e organizar a experiência. A operação dessa
faculdade é considerada indispensável em nossas vidas, tanto teórica quanto
129
Danowski, 1991, p. 61.
130
T 1.4.7, p. 267
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58
prática, e é possível se dizer que sua tendência é, em geral, regularizadora. Uma
das modalidades da ordem, em direção à qual nos conduz a imaginação é a beleza
da harmonia. A beleza é um meta-princípio importante na construção smithiana
do espírito humano.
Veremos, porém, no próximo capítulo, que, embora a beleza seja um móbil
fundamental da atividade humana, ela, assim como a imaginação que a busca,
também é insidiosa e pode nos enganar, desviando-nos dos caminhos da virtude.
Verifica-se também em Adam Smith uma certa ambivalência na apreciação da
imaginação: enquanto algumas de suas produções são consideradas legítimas e
necessárias, outras são condenadas como enganosas e absurdas. No entanto, como
mostrou o exame de Hume, nem sempre é possível rejeitar as ficções espúrias. O
dilema humeano resume o problema: até que ponto devemos ceder às ilusões da
imaginação?
Ceticismo e imaginação poiética
Em momento algum em seus escritos Smith discute explicitamente o
ceticismo, muito menos se define como um cético
131
. No entanto, indicações da
inflncia do ceticismo não são diceis de encontrar em sua filosofia, sobretudo
no que diz respeito ao papel limitado que a razão” desempenha em nossas vidas.
Não dogmático e moderado, o ceticismo de Smith acompanha o de Hume: embora
invista contra o racionalismo filofico e suspenda o juízo a respeito das questões
tradicionais da metafísica, o ceticismo smithiano é perfeitamente compatível com
a possibilidade de se oferecer narrativas positivas a respeito dos fenômenos
132
. É
possível (e necessário) ajuizar sobre as coisas, desde que se mantenha na esfera
131
Há uma única porém decisiva menção ao ceticismo no ensaio sobre a história da astronomia.
Charles Griswold constrói, de maneira convincente, para Smith, uma posição cética moderada, não
dogmática, de inspiração pirrônica e humeana (1999, p.160).
132
O que é bastante coerente com um tipo de ceticismo não dogmático. Smith, em momento
algum, busca provar que a realidade objetiva ou a essência das coisas é incognoscível. Nenhum
argumento deste tipo se encontra em sua obra. Seus ensaios em história da ciência e filosofia,
assim como sua filosofia moral, economia política, rerica e jurisprudência são tentativas de
oferecer explicações positivas e plausíveis da atividade humana e de sua constituição que
simplesmente desconsideram questões metafísicas e teológicas clássicas (Griswold, 1999, p.164).
A suspensão de juízo a respeito dessas questões deixa em aberto, não obstante, a possibilidade de
que um cético possa inquirir a respeito das aparências, cosendo explicações em termos que são
familiares e que satisfazem a imaginação (exatamente como descrito na History of Astronomy).
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dos fenômenos, no limite das capacidades humanas
133
. Neste sentido, a História
da Astronomia é uma contribuição para a compreensão dos mecanismos sociais e
mentais que promovem a práxis teórica. Da mesma maneira que Hume, Adam
Smith também julgava que o ceticismo filofico não era capaz de atrapalhar a
vida prática, nem mesmo a prática teórica: não podemos, e, de fato, não vivemos,
como céticos
134
. A despeito do ceticismo, somos, na prática, “realistas”.
Os trabalhos de Smith em história da filosofia atestam essa visão cética
ampla. Mencionei no começo deste capítulo o estranhamento que a menção a
“sentimentos” em um texto sobre uma ciência natural é capaz de produzir em um
leitor não especializado. De fato, é significativo que os ensaios de Smith em temas
tradicionalmente ligados à razão (ciências) tenham a forma de histórias,
destinadas a “ilustrar” os princípios que conduzem as investigações teóricas. Ao
invés de propor uma metafísica, ou uma ontologia, ou mesmo uma epistemologia,
Smith descreve como a operação de certos sentimentos, sob determinadas
condições socioinstitucionais, e em movimento a teorização, definida como a
produção de narrativas capazes de unificar certos fenômenos e agradar a
imaginação. Como vimos, Smith se propunha a examinar os diferentes sistemas
de astronomia de acordo com a medida que cada um deles “era apropriado para
serenar a imaginação”, definindo a filosofia como “uma dessas artes que se
remetem (adresses themselves to) à imaginação”.
Isso aponta para o papel central que a imaginação desempenha na filosofia
de Adam Smith. Embora estejamos limitados às aparências, o que importa,
fundamentalmente, é o que fazemos com elas, i.e., como as combinamos
mentalmente. Sob a discussão teórica, assim como prática, de Smith está uma
visão da imaginação como “poiética”, i.e., criativa, unificadora, modeladora
135
. A
visão de que a imaginação de certa forma molda os fenômenos acompanha o
ceticismo. Segundo a History of Astronomy, teorias o são descobertas de
133
“As long as we confine our speculations to the appearances of objects to our senses, without
entering into disquisitions concerning their real nature and opperations, we are safe from all
difficulties, and can never be embarrass’d by any question... If we carry our enquiry beyond the
appearances of objects to the senses, I am afraid, that most of our conclusions will be full of
scepticism and uncertainty (T appendix, p. 638-9).
134
“Philosophy wou’d render us entirely pyrrhonian, were not nature too strong for it” (Hume
apud Norton; 1993, p. 12). Veja-se também: T 1.4.1; p. 183.
135
Griswold, 1999, p.15, p.339. Griswold aponta para a idéia de “construção”, i.e., da mente como
essencialmente um poder de produzir, moldar, criar, como um dos temas controladores da
modernidade.
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60
harmonias preexistentes, subjacentes aos fenômenos, mas esforços criativos de
tornar coerente aquilo que a experiência nos apresenta. A “natureza”, segundo
Adam Smith, “parece abundar em eventos que parecem solitários e incoerentes”; e
a “filosofia”, representando as cadeias invisíveis que os conectam, “intenta
introduzir ordem nesse caos de aparências dissonantes (jarring) e discordantes”.
Através da imaginação buscamos tornar (render) o teatro da natureza um
espetáculo mais coerente, e, portanto, mais magnífico”.
Minha exposição do argumento da História da Astronomia mostra como
Smith combina elementos da análise de Hume a respeito da noção de causalidade
– o papel da imaginação e de certos princípios da natureza humana, como o
hábito, na determinação de conexões entre os fenômenos, extrapolando os dados
dos sentidos e dando às nossas percepções uma coerência e uma previsibilidade
necessárias - e da noção de existência externa e independente - a produção
espontânea de “ficções pela imaginação buscando afastar um mal-estar
produzido no espírito pela incoerência e inconstância de suas percepções. Mais do
que isso, Smith se apropria da e desenvolve a concepção de Hume da imaginação
como uma capacidade criativa e sintética do espírito humano
136
. Tanto para Hume
quanto para Smith, a imaginação é a faculdade através da qual criamos uma esfera
humana dentro do mundo natural, estabelecendo conexões entre os elementos
percebidos
137
. A atividade da imaginação, segundo Smith, é uma busca
espontânea por ordem, coerência, harmonia e concordância no mundo. Há,
contudo, uma diferenciação na atuação da imaginação: quando se dirige a pessoas,
a imaginação opera de um modo distinto da maneira pela qual atua em relação a
objetos e eventos. Podemos chamar o primeiro modo de atuação de “imaginação
moral”, ou “imaginação prática”, ou simplesmente “simpatia”, como Smith se
refere a ele, e o outro “imaginação teórica”. A simpatia é a noção central da
filosofia moral smithiana, com a qual lidarei no próximo capítulo. A atuação
teórica da imaginação é o tema do ensaio sobre a história da astronomia. É a
imaginação teórica que, introduzindo ordem e sistema nos objetos e eventos que
nos cercam, funda as artes e ciências.
136
“... Smith is building on Hume’s remark about the imagination and is arguing that the world as
unified or coherent, as intelligible and sense possessing, as part of a connected narrative or account
within which it has meaning or value, is formed by the imagination – but not formed out of thin
air” (Griswold, 1999, p.340).
137
Cf. Haakonseen, introdução à TMS, 2007, p.xii.
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61
De acordo com Hume, a maneira crucial através da qual a imaginação
unifica e dá sentido ao mundo é pelo estabelecimento de relações de causa e efeito
entre seus objetos e eventos. Aquilo que se chama “entendimentoconfigura-se
principalmente pela atuação da imaginação sob a direção dos princípios fortes de
associação, do hábito e da relação de causa e efeito
138
. São, principalmente, as
crenças” estabelecidas por essas relações que constituem o “sistema de
realidades que estrutura a experiência. Como vimos, a imaginação teórica de
Smith age também através do estabelecimento de conexões causais. Pode-se,
portanto, dizer que é o “entendimento” que comanda os nossos esforços de
conhecer” a natureza, mobilizando a produção espontânea de narrativas teóricas.
Não se pode, porém, inferir que o mundo seja uma invenção completa
porque tornado unificado pela imaginação: se esta faculdade é criativa e pode
ultrapassar o mero dado, ela, todavia, trabalha sempre sobre o dado - ela unifica e
sentido, mas o cria ex nihilo. Tampouco se pode dizer que o mundo seja
“irrealou “subjetivo”, no sentido de relativo ou não verdadeiro. Isso por duas
razões: em primeiro lugar, os princípios do espírito e a imaginação (cuja liberdade
essencial é, comumente, dirigida pelos princípios fortes da associação) operam
com uma regularidade suficiente para constituir uma natureza humana,
razoavelmente constante e universal
139
. Se é verdade que não podemos ser
objetivos” sem sermos “subjetivos”, o subjetivo se refere a uma forma, a qual,
embora dependa de conteúdos específicos variáveis, tende a uma uniformidade e a
uma regularidade em suas operações. Em segundo lugar, a impossibilidade de
acedermos a uma realidade mind-independent não significa que aquela em que
vivemos seja menos “real”
140
. Conforme se viu durante a discussão da filosofia de
Hume, certas produções da imaginação são completamente reais no sentido de que
acreditamos nelas e orientamos nossas vidas por elas. Tendemos a conferir
138
Hume usa os termos “pensamento”, “reflexão”, “razão” e “entendimento” como sinônimos,
mas não deixa claro, no entanto, se o “entendimento inclui os raciocínios demonstrativos que
independem da experncia. Ver Danowski, 1991, p. 57 n. 15.
139
“It is universally acknowledge that there is a great uniformity among the actions of men in all
nations and ages and that human nature remains still the same in its principles and operations”
(EHU VIII.I.65, p.83).
140
“Though colors were allowed to lie only in the eye, would dyers or painters ever be less
regarded and esteemed? There is a sufficient uniformity in the senses and feelings of mankind to
make all this qualities the objects of art and reasoning, and to have the greatest influence on life
and manners” (Hume, E-sc, p. 166, n.3).
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objetividade, através das crenças, a certos conteúdos mentais, de forma a tornar o
mundo algo mais coerente do que se apresenta.
Em uma passagem notável, no fim do ensaio sobre a história da astronomia,
Smith, discutindo o sistema newtoniano, menciona, talvez não por coincidência, o
ceticismo, e sugere que quanto mais coerente internamente um sistema filosófico
for, e portanto, mais atraente aos sentimentos intelectuais e à imaginação, mais é
provável que o tomemos como descrevendo como as coisas são “objetivamente”,
independente da mente humana:
“His principles [de Newton], it must be acknowledge, have a degree of firmness
and solidity that we should in vain look for in any other system. The most sceptical
cannot avoid feeling this. (...) And even we, while we have been endeavoring to
represent all philosophical systems as mere inventions of the imagination, to
connect together the otherwise disjointed and discordant phaenomena of nature,
have insensibly been drawn in, to make use of language expressing the connecting
principles of this one, as if they were the real chains which Nature makes use of to
bind together her several operations”
141
.
Ainda que teorias sejam “meras invenções da imaginão” nos referimos a
elas e as julgamos como se representassem as conexões “reais” usadas pela
natureza para ligar os seus fenômenos. Poder-se-ia dizer que seu êxito em se
recomendar aos sentimentos intelectuais e à imaginão, facilitando a transição de
certas idéias, permite que teorias recebam o assentimento necessário para se
tornarem objeto de crença, sendo projetadas sobre o mundo. De uma posição
meta-teórica, sabemos, contudo, que teorias não são descobertas de verdades
escondidas nas coisas, mas narrativas que unificam determinados conjuntos de
fenômenos aparentemente desconexos em termos familiares que satisfazem a
imaginação.
A Beleza da ordem
Há um princípio quase-lógico, estético, operando no mecanismo psicológico
de produção e seleção de teorias científicas/filosóficas. Segundo a History of
Astronomy, não teorizamos com vistas a extrair qualquer tipo de benefício além da
própria dissipação do mal-estar produzido pela visão da desordem e do prazer que
141
Astronomy, IV.76 grifos meus. Haakonssen se refere a esta passagem como um “very
Humean piece of teasing, double-edge scepticism” (1989, p.81).
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a observação de um todo ordenado proporciona
142
. É uma espécie de “prazer
desinteressado que nos mobiliza à teorização, um prazer que emerge da
contemplação da ordem traçada pelo espírito no mundo. Este mesmo móbil se
manifesta também em outras esferas da atividade humana tal como construídas
por Smith: na moral, na economia e na potica observamos sempre a operação de
o mesmo princípio, o mesmo amor ao sistema, a mesma consideração à beleza da
ordem, da arte e do artifício (contrivance)
143
. Não é à toa que as categorias
“beleza” e “harmonia”, e noções relacionadas como “ordem”, “sistema”,
equibrio”, “proporção”,simetria”, consonância”, “tranqüilidade” entre outras,
permeiam sua obra de ponta à ponta, assim como as suas prediletas metáforas
musicais. A vida humana, para Smith, é infundida por um amor espontâneo pela
beleza da ordem.
Nós buscamos o prazer derivado da contemplação da ordem nos objetos -
também em nós e nos outros, como se verá na discussão da Ética de Smith
espontaneamente, de uma maneira independente da consideração da utilidade da
mesma. Segundo Smith, o que nos atrai em certos objetos belos é menos a
consideração do fim para o qual se designam, a sua utilidade, do que o seu ajuste
interno, sua finalidade sem fim. No livro quarto da Teoria dos Sentimentos
Morais, Smith, discutindo os efeitos da utilidade sobre o sentimento de aprovação
estética e moral, diz: o fato de que o ajustamento (fitness) de qualquer “máquina
ou sistemaem produzir o fim para o qual foram designadas lhes concede uma
certa “propriedade e beleza” e torna a sua contemplação e reflexão agradável é
algo tão “óbvio” que jamais passou desapercebido por ninguém.
“But that this fitness, this happy contrivance of any production of art, should often
be more valued, than the very end for which it was intended (...) has not, so far as I
know, been yet taken notice by any body. That this however is very frequently the
case, may be observed in a thousand instances, both in the most frivolous and in
the most important concerns of human life”
144
.
Esta atração espontânea, estética, do espírito humano, pela ordem qua
ordem “é com freqüência o motivo secreto dos mais sérios e importantes
142
“Wonder, therefore, and not any expectation of advantage from its discoveries is the first
principle which prompts mankind to the study of Philosophy...; and they pursue this study for its
own sake, as an original pleasure or good in itself, without regarding its tendency to procure them
the means of many other pleasures” (Astronomy, III.3).
143
TMS, IV.i.11.
144
TMS, IV, 1, 3
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empreendimentos (pursuits) tanto na vida privada quanto na vida blica”
145
.A
imagem da “máquina”, dileta de Smith, captura com precisão a inclinação natural
da imaginação em direção à ordem por ela introduzida no mundo, visto que
quinas são produtos do articio humano. Sistemas filoficos assemelham-se a
quinas
146
, segundo Smith, e a nossa imaginação teórica se sente atraída pela
sua beleza, independente de seu propósito. Se teorias filoficas são como
quinas, além de sua precisão e coerência, a familiaridade e a simplicidade de
sua linguagem também agradam à imaginação. Ao tratar, em suas palestras em
Retórica, do estilo dos discursos didáticos”, Smith distingue entre dois métodos,
o aristotélico e o newtoniano, e comenta que o último, “vastamente mais
engenhoso”, é também mais atraente (engaging) do que o primeiro, pois: “agrada-
nos ver os fenômenos que tínhamos por mais difíceis de explicar (unaccountable)
todos deduzidos a partir de um único princípio (comumente, um bem conhecido) e
todos unidos em uma única cadeia”
147
.
A capacidade de através de alguns poucos princípios, de preferência
conhecidos, dar conta de um conjunto amplo de fenômenos, é um critério
particularmente importante na seleção de hipóteses científicas, segundo a
narrativa histórica de Smith na última seção da História da Astronomia
148
. O
cerne do argumento é o seguinte: cada sistema astronômico, no momento de sua
elaboração, satisfaz as necessidades da imaginação. No entanto, o surgimento de
novos problemas, a partir da observação mais minuciosa do céu, faz com que
esses sistemas sejam continuamente modificados, tornando-se mais complexos até
o ponto em que deixam de ser aceitáveis pela imaginão, o que abre o caminho
para explicações alternativas; essas, como melhores máquinas, devem ser capazes
de dar conta dos mesmos fenômenos de um modo mais eficiente
149
.
Pode-se dizer que é a definição clássica da beleza como variedade na
unidade que comanda nossa imaginação teórica na filosofia de Adam Smith. Essa
145
TMS IV.i.7.
146
“Systems in many respects resemble machines... A system is an imaginary machine invented to
connect together in the fancy those different movements which are in reality already performed”
(Astronomy, IV.19).
147
LRBL, ed. Lothian, p. 140.
148
“...and this will be the clew that is most capable of conducting us through all the labyrinths of
philosophical history” (Astronomy, II.12).
149
“The machines which are first invented to perform any particular movement are always the
most complex, and succeeding artists generally discover that, with fewer wheels, with fewer
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65
definição lhe permite comparar o prazer derivado da audição de um “bem
composto concerto de música instrumental com aquele extraído da contemplação
de um grande sistema filosófico:
“In the contemplation of that immense variety of agreeable and melodious sounds,
arranged and digested, both in their coincidence and in their succession, into so
complete and regular a system, the mind in reality enjoys not only a very great
sensual, but a very high intellectual, pleasure not unlike that which it derives from
the contemplation of a great system in any other science
150
.
2.5.
Epílogo: razão e prática
Todo este primeiro capítulo esteve centrado no esforço de estabelecer uma
base para se pensar a obra de Adam Smith, situando-a no contexto de sua relação
decisiva com a filosofia de David Hume, antes de passar a uma discussão de sua
Ética. Foi conveniente para esse propósito começar com uma análise da History of
Astronomy, e seguir com a consideração de sua inserção no programa humeano da
ciência da natureza humana, o que exigiu também uma breve incursão analítica a
textos de Hume. Argumentei que o projeto de Hume oferecia uma alternativa à
solução racionalista ao problema do conhecimento, e que essa alternativa estaria
ligada a uma intenção ética mais ampla, coerente com a hipótese histórica
simplificada de uma transformação axiológica no mundo moderno: tratava-se de
aproximar a filosofia da vida cotidiana, tornando-a mais útil àquela. Pretendo
agora retomar esse ponto, e pensar a relação entre a solução ao problema
epistemológico e o propósito ético à luz do que foi dito nas últimas seções a
respeito do ceticismo, da imaginação e da tensão que se estabelece entre o
entendimento e os princípios mais instáveis da imaginão em Hume, concluindo
a reflexão com a indicação de um problema a ser enfrentado na análise da
filosofia moral de Adam Smith no capítulo seguinte.
O tipo particular de ceticismo desenvolvido por Hume e seguido por Smith
fornece um ponto de partida para essas considerações. Em primeiro lugar, pode-se
dizer que esse ceticismo investe contra uma concepção substantiva de razão,
ligada a uma ordem onto-cosmológica. Há um princípio profundamente anti-
principles of motion, than had originally been employed, the same effect may be more easily
produced” (Astronomy IV.19).
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66
platônico subjacente a toda a reflexão de Hume e Smith: se é verdade que a
filosofia deve servir à vida, é não menos verdade que ela o pode simplesmente
dirigi-la pela percepção da ordem eterna do ser. Mesmo que uma tal ordem exista
(o que o se pode saber), nossa condição humana, limitada, torna impossível
qualquer tentativa de alcançá-la. Com o empirismo cético de Hume, o caminho da
transcendência é radicalmente vetado, e nos vemos restritos a um mundo de
aparências fugazes e em movimento constante, sem a certeza apriorística de um
fundamento seguro. Surpreendentemente, segundo Hume, o domínio da pura
contingência não é a nossa fortuna. É preciso voltarmo-nos para as “aparências” e,
através dos instrumentos disponíveis por nossa natureza, impor-lhes unidade e
coerência, de modo a impedir que o mundo soçobre em caos e indiferença. Neste
cenário, a ordem deve ser construída e não descoberta. E isso, segundo Hume, é
algo que fazemos espontanea ou naturalmente. A “razão”, perdendo muito de sua
antiga força pelo rompimento da ligação direta que mantinha com o divino,
apresenta-se agora como entendimento”; o qual não é mais do que a atividade da
imaginação sob a direção dos princípios fortes da associação, com destaque para a
relação costumeira de causa e efeito.
Ao invés de “irracionalismo”, temos, então, uma transição para uma
concepção de razão internalizada e “humanizada”, i.e., mais adequada ao padrão
implícito de auto-pressuposição. Refiro-me às menções ao homem enquanto
criatura imperfeita” que abundam na obra de Smith e Hume
151
. Acompanhando a
recusa do caminho da transcendência espreita uma consciência profunda de nossa
própria imperfeição e do mundo ao qual estamos inevitavelmente atados, uma
inarticulada “ontologia da imperfeição
152
. Toda a tarefa da ciência da natureza
humana será a de mostrar como é possível não apenas vivermos, mas também
progredirmos cognitiva e moralmente a despeito desta imperfeição essencial e do
ceticismo que é seu obverso intelectual.
Convém lembrar que a proposta de estender o método experimental aos
assuntos morais lugar no Tratado a uma investigação minuciosa da maneira
como a experiência cotidiana se estrutura apesar de suas limitões e sem o
150
Imitative Arts, II.30
151
Veja-se, por exemplo: TMS I.i.5.8; p.25; II.i.5.9; p.77; III.5.10; p.168-169.
152
Marshall Sahlins (2004; p.563-606) discute as origens e as conseqüências negativas, no que diz
respeito à compreensão de outras culturas, desta maneira “pessimista” de se perceber a si mesmo e
o mundo, própria a esta vertente da cultura ocidental que estou tratando.
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67
recurso a qualquer tipo de saber filosófico sistemático. É, ao contrário, esse que se
obrigado a recorrer àquela. A experiência”, como método científico a
posteriori, é, segundo a análise de Hume, o mais do que um refinamento e um
alargamento das inferências causais que são realizadas cotidianamente; e a
ciência, enquanto saber sistemático, fundamenta-se nas reles matters-of-fact,
compartilhando seus recursos com o “homem comum”: os “sentimentos”, a
“imaginação”, o “hábito” e as crenças”. No entanto, como a leitura da primeira
seção do Enquiry demonstrou, Hume admitia uma fratura entre o interesse teórico
e o interesse prático.
Sob a pressão da inversão moderna, o próprio sentido da filosofia se altera.
A clássica pergunta socrática do que é, do ser das coisas, torna-se uma pergunta a
respeito de como funcionam as coisas em relação a um sujeito que as concebe e,
sobretudo, as manipula
153
. Daí a desconfiança em relação aos sistemas teológicos
e metafísicos e o enorme entusiasmo com as ciências naturais. Os esforços
filoficos devem se dirigir a assuntos que são de interesse concreto e a propósito
dos quais é realmente possível “avançar”
154
. Porque aquilo que importa,
fundamentalmente, é aliviar e melhor a condição dos homens.
De maneira coerente com esta nova concepção instrumental de
racionalidade teórica, as teorias filosóficas/científicas são definidas, por Hume e
Smith, como produtos da atividade sintética e demiúrgica da imaginação. Teorias
são sistemas descritivos e explanatórios, narrativas compreensivas de como as
coisas, tomadas de uma perspectiva sinóptica, funcionam. A imagem da
“máquina”, produto mais eloqüente do artifício humano, captura com precisão
esse novo sentido concedido à antiga atividade contemplativa. É por isso
surpreendente se perceber a presença de parte do significado tradicional da
theoria, sua dimensão estética, no uso que Adam Smith faz do termo. Conforme
foi dito, o trabalho da imaginação é descrito, por Smith, nos termos do belo, do
proporcional e do harmônico. No entanto, a visão de mundo estética” do filósofo
153
Lembremos a admoestação de Bacon: o que importa é a “operação”, e não a “verdade” (Cf. p.
34).
154
Adam Smith, narrando uma breve história da educação filosófica na Europa, manifesta um
profundo desgosto pelo fato de que nas universidades católicas o ensino da filosofia tenha, durante
tanto tempo, se subordinado à teologia e às disciplinas associadas da metafísica, pneumatologia e
ontologia, enquanto que a física, “o assunto apropriado da experncia e da observação, um
assunto no qual uma aplicação cuidadosa é capaz de produzir tantas descobertas úteis, foi quase
inteiramente negligenciada” (WN V.I.III.ii, p. 725-726).
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escocês setecentista rompe com a visão clássica em um ponto fundamental: a
ordem que encanta o espírito é agora produzida pelo próprio, e não refletida do
cosmo.
É certo que a ordem passa a depender de uma relação entre a experiência e a
operão dos princípios da natureza humana, cuja estabilidade é suficiente para
que se possa dizer que sua tendência geral é regularizadora. No entanto, a
contingência espreita no desvão da ordem. A breve incursão ao pensamento de
Hume deve ter sido suficiente para se perceber o perigo que decorre de nossa
depenncia de uma tão inconstante faculdade como a imaginação. Sua insídia se
manifesta no seu potencial contraditório em nos conduzir, com a mesma
“naturalidade”, tanto em direção a harmonias quanto a erros e ilusões, como a
superstição e a “falsa” metafísica, males a serem combatidos. Paradoxalmente, a
própria harmonia pode ser uma ilusão, pois, nos adverte Hume, o entendimento,
quando age sozinho, subverte inteiramente a si mesmo, à vida comum e à
filosofia.
Embora o espírito tenda para uma regularização total através da operação do
entendimento, ele não pode prescindir da atuação de seus princípios mais fracos.
O “sistema de realidades” que estrutura a vida cotidiana constitui-se o apenas
de “ficções” e “crenças” produzidas pelas relações fortes de causa e efeito, mas
também por algumas que derivam dos princípios mais irregulares da imaginação,
tais como a crença na identidade de nosso próprio eu e na existência contínua e
independente dos corpos. O incômodo é que, do ponto de vista do entendimento,
essas últimas são tão absurdas quanto a superstição e a falsa metafísica, no
entanto, sem elas não haveria nem mundo nem sujeito.
Enfim, a razão e a filosofia podem afetar a vida cotidiana, arriscando a frágil
unidade e coerência de sua constituição; e, ao mesmo tempo, são chamadas a
desempenhar um papel importante no seu esclarecimento, combatendo o “erro da
superstição”
155
. O dilema de Hume a respeito da medida que devemos ceder às
“ilusões da imaginação”, recoloca, parece-me, em pleno Iluminismo, à luz da
inversão moderna dos valores, o velho problema da relação entre filosofia e vida
cotidiana. Até que ponto a razão”, mesmo em sua forma mitigada, pode orientar
155
“Very refin’d reflexions have little or no influence upon us; and yet we do not, and cannot
establish it for a rule, that they ought not to have any influence; which implies a manifest
contradiction” (T 1.4.7, p.268).
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a vida? Essa questão perpassa a reflexão social e ética de Adam Smith, e incita
sua proposta de umaracionalidade prática” baseada na imaginação moral, a
“simpatia”. A filosofia abstrusa, ou a imaginação teórica, e a vida prática, de fato,
o se harmonizam bem
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3
Os sentimento morais e a imaginação simpática
“The minds of men are mirrors to one another, not
only because they reflect each other’s emotions, but
also because those rays of passions, sentiments and
opinions may be often reverberated...” (Hume, T
II.ii.5; p.365).
"'I'm not bent on a life of misery', said Isabel. 'I've
always been intensely determined to be happy, and
I've often believed I should be. I've told people that;
you can ask them. But it comes over me every now
and then that I can never be happy in any
extraordinary way; not by turning away, by
separating myself'
'By separating yourself from what?'
'From life. From the usual chances and dangers,
from what most people know and suffer'" (Henry
James, The portrait of a Lady).
Este capítulo se dedica a uma análise da obra de Adam Smith em ética,
The Theory of Moral Sentiments. Embora haja uma mudança em termos de
conteúdo em relação ao primeiro capítulo, o quadro montado ali, a partir da
History of Astronomy e de textos do Treatise e do Enquiry, aproximando as
reflexões de Smith e David Hume, será fundamental para a presente discussão. Os
temas debatidos anteriormente reaparecerão de diferentes maneiras. Mostrar-se-á
de que maneira as principais diretrizes do empirismo cético compartilhadas por
Hume e Smith, segundo se sugeriu mantém-se na filosofia moral smithiana: o
veto à transcendência da reflexão e a sua orientação para o mundo sensível são
rigorosamente respeitados. Nenhuma metafísica da moral é articulada na TMS. De
acordo com a orientação da nova ciência da natureza humana, Smith via a tarefa
explanatória como a principal tarefa de uma obra em ética, embora uma teoria
normativa da virtude esteja também presente em seu livro. O privilégio da “vida
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71
prática” sobre a “vida contemplativa”, manifesto na inversão baconiana dos
valores epistemológicos, é igualmente mantido na TMS. O problema fundamental
enfrentado é ainda aquele de mostrar como o Homem, limitando-se aos sentidos e
à imaginação, é capaz de produzir uma ordem sistemática em sua experiência em
substituição à ordem metafísica tradicional recusada. O tema condutor da análise
será, como antes, a tensão que se estabelece entre o impulso regularizador do
espírito e um fundo inextinguível de contingência, ligado à própria imperfeição da
natureza humana.
A razão pela qual julguei adequado tratar a filosofia moral de Adam Smith
em um capítulo distinto é menos o fato de seu maior tamanho e relevância
filosófica do que a própria compreensão smithiana da particularidade da moral,
i.e., da diferença existente entre a experiência teórica, discutida na History of
Astronomy, e a experiência moral. Segundo foi dito, na History of Astronomy,
Adam Smith descreve como, através de narrativas teóricas, ordenamos os
fenômenos naturais, pacificando o desejo estético do espírito de perceber
harmonias na cena do “teatro da natureza”. Em sua obra em ética, Smith lida com
o problema da possibilidade de uma ordem social moral. Mais uma vez, a resposta
passa pela capacidade sintética e criativa da imaginação. No entanto,
provavelmente influenciado pelos comentários ticos de Hume a respeito da
compatibilidade entre a atuação pura do entendimento e a vida prática, “social” e
“ativa”, Smith estabelece uma diferenciação na operação da imaginação: enquanto
que em seu modo teórico, a imaginação, dirigindo-se a objetos e eventos, é o
fundamento de todas as artes e ciências, em seu modo moral, ou prático, a
imaginação se dirige a pessoas. O (re)conhecimento, produzido pela imaginação
moral, de indivíduos como entes dotados de sensibilidade e intencionalidade é a
capacidade humana que deve ser mobilizada na intenção de se introduzir uma
ordem sistemática no mundo sócio-moral. A imaginação moral, ou a simpatia”,
segundo seu nome smithiano, busca compreender outras pessoas, e o próprio eu,
como unidades coerentes, interpretando e avaliando a racionalidade de suas ações
e sentimentos, i.e., suas respostas ao mundo externo. Essas narrativas produzidas
pela simpatia são a base de nossa experiência moral comum.
Buscando avaliar estas “narrativas morais” de um ponto de vista objetivo,
compartilhado e não privativo, público (a perspectiva do “espectador imparcial”),
conduzimo-nos à realização de uma correspondência, uma harmonia, entre nossas
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72
personalidades no mundo social. Segundo Adam Smith, a busca por um ponto de
vista comum sobre nossas ações e sentimentos é, ao mesmo tempo, algo que
fazemos espontaneamente na vida moral cotidiana, e algo que devemos fazer.
Aprender a perceber e a avaliar os outros, e nós mesmos, segundo a razão prática
do espectador imparcial é fundamental na visão de Smith: fazendo-o, modelamo-
nos para a virtude e damos origem a uma comunidade moral virtuosa.
Obviamente, como um bom tico, Smith não julgava que isso fosse uma tarefa
fácil. Nosso conhecimento limitado e as ilusões da imaginação, produzidas pela
vaidade e o amor-de-si, testemunham a fragilidade humana, dificultando a
concretização do projeto. O principal obstáculo à realização da ordem ideal do
espectador imparcial é a nossa própria imperfeição. No entanto, como se verá,
Smith tem uma solução alternativa “realista”, i.e., moderada pela consideração da
common weakness of human nature, para o problema de como realizar uma ordem
social harmônica.
Eis o resumo do percurso: na primeira seção, discute-se a compreensão
smithiana do que significa uma teoria dos sentimentos morais, i.e., o que significa
uma teoria ética, e a sua relação com a orientação geral do empirismo cético. A
segunda seção trata da atuação da imaginação simpática: o ajuizamento moral e o
impulso estético simetrizante que a mobiliza. A terceira discorre sobre o modo de
subjetivação, as paixões, e a natureza pública da perspectiva moral recomendada
por Smith. Na quarta, discute-se o que significa a “imparcialidade”, ou a
racionalidade moral, como ela se diferencia de uma razão filosófica abstrata e
universal, e a teoria da virtude smithiana. Finalmente, a última seção investiga a
utopia realista smithiana para os imperfeitamente virtuosos, estabelecendo uma
ponte entre a TMS e a obra mais conhecida de Adam Smith, The Wealth of
Nations.
3.1.
O que é/deve ser uma teoria dos sentimentos morais?
The Theory of Moral Sentiments é uma contribuição à teoria ética. Neste
sentido, seu estranho título se refere ao seu tema. Porque, porém, “sentimentos
morais” e não, por exemplo, “filosofia moral”? Segundo creio, essa escolha inicial
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73
revela algo da posição de Smith, sua compreensão e abordagem particulares do
tema. Adam Smith julgava que a teorização em ética deveria estar imersa na
prática moral cotidiana. A forma e o conteúdo de seu livro refletem essa
compreensão. Esta seção tem por objetivo oferecer uma visão geral da TMS,
esclarecendo um pouco aquilo que Smith estava fazendo em seu livro, antes de
passarmos à discussão mais pontual de conteúdos.
Ao fazer do “sentimento” o elemento básico de sua filosofia moral, Smith
se colocava no debate intelectual ao lado de Francis Hutcheson e Hume contra
racionalistas como Samuel Clarke e William Wollaston
156
. O uso do substantivo
no plural no título acompanha o argumento do livro em o conceder a priori a
nenhum sentimento específico (como, p.ex., a benevolência) o qualificativo
“moral”. A rigor, todos os sentimentos podem se tornar morais ou imorais.
Segundo a análise de Smith, o que importa eticamente é sempre a medida de sua
expressão em relação ao seu contexto. Talvez o qualificativo sirva ainda para
distinguir os sentimentos tratados aqui daqueles que chamamos de “sentimentos
intelectuais”, os quais, na History of Astronomy, mobilizam a práxis teórica.
A principal tarefa de uma filosofia moral é explanatória: oferecer uma
explicação para aquelas práticas que comumente chamamos de “morais”. Smith
não se pergunta se fenômenos como “virtude” ou “vício” existem ou o, mas
assume que acreditamos na existência dos mesmos, e busca fornecer uma
narrativa capaz de dar conta das razões pelas quais tais distinções são feitas na
vida comum. Assim, a questão central investigada na TMS é a propósito da
natureza do julgamento moral: quais princípios seguimos ao julgar a conduta e o
caráter
157
. Acompanhando as diretrizes da nova ciência da natureza humana,
Adam Smith monta sua explicação empregando uma psicologia e uma sociologia.
Resumidamente, ele nos diz que a aprovação moral está relacionada aos
sentimentos simpáticos de espectadores. A simpatia”, como veremos, é a peça
chave de toda a teoria, e a simpatia é um ato da imaginação. Através da
156
Hume e Smith acompanham Hutcheson na crítica à visão racionalista de que os julgamentos e
os motivos da ação moral são funções da razão, descobertas de verdades necesrias análogas ao
raciocínio matetico, e declaram que ambos são afetivos, baseando-se numa sensação (feeling)
(Raphael, 2007, p. 6). Veja-se, p.ex., a bateria de argumentos que Hume mobiliza no começo do
livro III do Tratado para mostrar que as ‘moral distinctions’ não são ‘deriv’d from reason’.
157
Cf. o subtítulo anexado à quarta edição (1774): “The Theory of Moral Sentiments, or An Essay
towards an Analysis of the principles by which Men naturally judge concerning the Conduct and
Character, first of their Neighbors, and afterwards of themselves” (Raphael, 2007, p. 7).
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74
imaginação, que opera de uma maneira peculiar na experiência moral,
reconhecemos outras pessoas como “seres morais”, atribuindo-lhes uma
identidade coerente que envolve suas ações e as circunstâncias às quais
respondem. Esse (re)conhecimento é a base para as avaliações morais.
Sentimentos e imaginação, e não, por exemplo, a Lei Divina ou a Razão,
são, para Smith, os elementos constitutivos básicos de uma teoria ética. Nenhuma
metafísica da moral é articulada na TMS, e Smith jamais se pergunta a respeito de
seu fundamento último. A diretiva ao mesmo tempo epistemológica e ética do
empirismo cético de conter o impulso da teorização à transcendência manifesta-se
também na TMS: a teoria ética deve se situar na auto-compreensão moral
cotidiana, sobre as capacidades pré-filosóficas do “homem comum”.
Para tornar mais claro aquilo que Smith compreendia ser a ética, devemos
recorrer à sétima e última seção do livro (Of systems of moral philosophy). Ali, na
introdução a uma história da filosofia moral, onde Smith discute sistemas éticos
anteriores ao seu, é feito o seguinte comentário programático:
“In treating of the principles of morals there are two questions to be considered.
First, wherein does virtue consist? Or what is the tone of temper, and tenor of
conduct, which constitutes the excellent and praiseworthy character, the character
which is the natural object of esteem, honor and approbation? And, secondly, by
what power or faculty in the mind is it, that this character, whatever it be, is
recommended to us? Or in other words, how and by what means does it come to
pass, that the mind prefers one as the object of approbation, honor, and reward,
and the other of blame, censure, and punishment?”
158
Smith assume que toda teoria ética, inclusive a sua, deve responder a estas
duas questões. A segunda questão é a que mencionei acima, ela diz respeito à
natureza do ajuizamento moral, e se resolve na psicologia da simpatia e na teoria
do espectador. A primeira concerne à natureza da virtude. Na Teoria dos
Sentimentos Morais, ambas estão profundamente relacionadas.
Recebendo um tratamento especial na parte VI (Of the character of virtue),
acrescida à última edição da TMS (1789), a virtude está presente em todo o
argumento do livro. A virtude, para Smith, consiste na “conveniência” (propriety),
i.e., na adequação da conduta e dos sentimentos ao seu contexto (objeto e
circunstâncias); e a medida da conveniência encontra-se nos juízos
simpaticamente informados de um espectador imparcial”. Ênfases significativas
158
TMS VII.i.2
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75
são conferidas ao “tom” correto das emoções, à necessidade de cultivá-las, e à
excelência moral na TMS, sugerindo que, para Smith, a moralidade deve ser
entendida também nos termos de uma ética do caráter ao modo clássico. Adam
Smith tem ainda uma versão própria das virtudes cardinais: prudência,
benevolência, justiça e autodomínio. Especial atenção é dada à última, espécie de
meta-virtude, marcando a influência do estoicismo na TMS. Pode-se dizer que
Smith escreveu uma ética da virtude de inspiração clássica com um fundamento
humeano. Como também um papel para regras morais e para a consciência, eu
acrescentaria “com um toque kantiano” à definição acima, lembrando, porém, que
Adam Smith não conheceu Kant.
Ainda na parte VII do livro, Smith comenta, à moda humeana, que, embora
a determinação do mecanismo interno, ou da psicologia do ajuizamento moral,
não possua nenhum efeito prático, sendo assunto de mera “curiosidade filosófica”,
discussões a respeito da natureza da virtude podem afetar nossas noções de certo e
errado em casos particulares
159
. Infere-se daí que a TMS, ocupando-se tanto de
psicologia moral quanto de virtude, não é meramente descritiva, possuindo
também uma intenção normativa explícita. A Teoria dos Sentimentos Morais é
uma teoria ética moralizante
160
. Não somente a teoria deve basear-se na prática
ética como, enquanto pedagógica, é também uma forma de prática ética.
O estilo discursivo da TMS parece corroborar tais conclusões. De fato, o
livro o se apresenta como um trabalho acadêmico voltado exclusivamente para
um público especializado. Nele, análises filosóficas estão entremeadas com longas
e elaboradas narrativas, exemplos morais e descrições de caráteres que apelam
constantemente à experiência cotidiana. O leitor é, com freqüência, chamado a
visualizar determinadas situações e as reações de seus protagonistas, sentir o seu
drama, e refletir sobre a sua qualidade moral. Não é, portanto, surpreendente que a
159
TMS VII.iii.intro.3
160
Charles Griswold argumenta que o estilo retórico da TMS é pedagógico, ou “protréptico”. Entre
outros indícios, Griswold aponta para o uso freqüente da primeira pessoa do plural na TMS.
Remetendo-se a um modo da retórica clássica, Griswold argumenta que o “nós” smithiano seria
“protréptico”: “tanto um espelhamento da comunidade ética quanto um veículo para persuasão
normativa” (1999, p. 49). Criando um sentido de proximidade, o uso do pronome buscaria
persuadir o leitor a ver as coisas de uma certa maneira, refinar as maneiras pelas quais sente e julga
e, talvez, encorajá-lo a agir de um certo modo. Para visões discordantes, veja-se Campbell (1971) e
Raphael (2007). Convém lembrar ainda que Smith foi também um professor de Retórica, e suas
palestras, reproduzidas pelas notas de seus estudantes, bem como obra publicada, manifestam uma
consciência notável do papel da persuasão na vida humana.
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literatura tenha um lugar destacado no texto
161
. Romances, poemas e peças,
especialmente tragédias, são citados constantemente; em conseqüência, excluíndo-
se a parte VII, dramaturgos, poetas, beletristas e historiadores são mencionados
com uma freqüência muito maior do que filósofos. A própria clareza conceitual é,
às vezes, prejudicada pelo estilo relativamente “literário” do livro, e uma certa
imprecisão terminológica marca a exposição de Smith
162
.
É como se Adam Smith combinasse os dois modos de fazer filosofia moral
especificados por Hume na primeira seção do Enquiry, aliando às reflexões
“abstrusas” o tom e os recursos das polite letters
163
. As perspectivas do anatomista
e do pintor harmonizam-se na letra da TMS. Smith busca não apenas extrair a
concordância do leitor pela força de deduções e argumentos, mas, também, fazê-lo
“ver” as coisas de uma certa maneira, mobilizando, através dos exemplos e das
histórias, sua imaginação e os seus sentimentos. A maneira de escrever de Smith
acompanha o argumento do livro, transmitindo a idéia de que a mobilização dos
sentimentos e da imaginação para a percepção de situações concretas é decisivo
para a compreensão adequada de seus elementos e, ipso facto, para a justificação
ética.
O esforço de Smith em evitar a criação de um vocabulário técnico,
empregando termos do cotidiano, é também indicativo do esforço de manter a
teorização dentro dos limites da experiência comum. Haakonseen, discutindo as
filosofias morais de Smith e Hume, comenta o estranhamento que se produz no
leitor que passa do Tratado à TMS. Por um lado, nota-se uma semelhança na
161
Martha Nussbaum aponta para a analogia estrutural entre a experiência da leitura e a da
observação moral no argumento smithiano. É como se a leitura de histórias nos colocasse na
posição eticamente adequada para a avaliação moral na vida real, aquela do espectador imparcial.
O espectador/leitor é alguém que, não diretamente envolvido, representa-se a cena e os
personagens. Nussbaum acredita que, para Smith, a experiência da leitura de obras literárias seja
uma atividade moral em si mesma, uma forma de cultivar a imaginação para a atividade moral e
um teste para a acurácia de julgamentos e respostas morais na vida real (Nussbaum ,1990, p.339).
162
Haakonssen distingue, p.ex., quatro conteúdos distintos englobados pelo termo “simpatia”, nada
menos do que o conceito central da obra (1989, p. 51).
163
Numa carta a Smith (10 Set., 1759), Burke diz: “I own I am particularly pleased with those easy
and happy illustrations from common Life and manners in which your work abounds more than
any other that I know by far. They are indeed the fittest to explain those natural movements of the
mind with which every Science relating to our Nature ought to begin. (...). Besides so much
powerful reasoning as your Book contains, there is so much elegant Painting of the manners and
passions, that is highly valuable even on that account (Corr. nº.38; p.46)”. Ainda Burke,
resenhando o livro para o Annual Register (1759), comenta: “The illustrations are numerous and
happy, and show the author to be a man of uncommon observation. His language is easy and
spirited, and puts things before you in the fullest light; it is rather painting than writing” (apud
Raphael & Macfie, introdução à TMS, 1976, p.28).
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problemática, nos alinhamentos e nos caminhos teóricos, por outro, percebe-se
uma mudança significativa no tom e no estilo dos discursos:
“While one could say that Hume is constructing an abstract theory with it’s own
language, and trying to accommodate common experiences and their linguistic
expressions within it, Smith is trying to accommodate an abstract theory within the
conceptual framework of ordinary life or at least with a minimal stretching of
it”
164
.
O uso da palavra “simpatia” é o exemplo mais evidente do esforço de Adam
Smith em se apropriar de termos do cotidiano ao invés de criar um vocabulário
técnico. Enquanto Smith critica a teoria do “senso moral” de Hutcheson por
atribuir o princípio de aprovação moral a algo “tão pouco notado a ponto de
sequer receber um nome em língua alguma”, ele se jacta de que sua teoria da
“simpatia” não tenha demandado a invenção de nenhuma nova palavra ou
faculdade, referindo-se a “um poder que sempre foi notado”
165
.
A divergência entre as filosofias de Hume e Smith não se resume a
linguagem e ao estilo. Na parte IV (Of the effect of utility upon the sentiment of
approbation) da TMS, Hume, aludido como um autor “engenhoso e agradável”, é
censurado por incidir no típico “erro do filósofo”, ecoando uma crítica recorrente
no livro. Na interpretação de Smith, a teoria moral humeana, ao situar o
fundamento da aprovação/desaprovação moral numa consideração das
conseqüências que certas ações e caráteres tendem a produzir, em sua utilidade
potencial, adota uma perspectiva demasiado abstrata sobre a ética, e não faz
justiça aos fenômenos morais. Em outras palavras, a idéia de que julgamos as
ações por sua tendência a ser útil é, segundo Smith, uma construção filosófica
especulativa e o uma explicação adequada de como os homens julgam
moralmente na vida comum
166
.
“When a philosopher goes to examine why humanity is approved of, or cruelty
condemned, he does not always form to himself, in a very clear and distinct
manner, the conception of any one particular action either of cruelty or of
164
Haakonseen, 1989, p. 45.
165
Respectivamente: TMS VII.iii.3.15; VII.iii.3.3. O esforço de Smith não é porém completamente
bem sucedido, visto que ele dá à simpatia um sentido técnico que extrapola o seu significado
familiar: “Sympathy, though its meaning was, perhaps originally the same [as pity and
compassion], may now, however, without much impropriety be made use of to denote our fellow-
feeling with any passion whatever” (TMS I.i.1.5).
166
A crítica de Smith a Hume é bastante surpreendente se levarmos em consideração a
sensibilidade de Hume, discutida no capítulo 1, ao problema da relação entre filosofia e senso
comum.
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humanity, but is commonly contented with the vague and indeterminate idea which
the general names of this qualities suggest to him. But it is in particular instances
only that the propriety or impropriety, the merit or demerit of actions is very
obvious and discernible. It is only when particular examples are given that we
perceive distinctly either the concord or disagreement between our own affections
and those of the agent, or feel a social gratitude arise towards him in the one case,
or a sympathetic resentment in the other. When we consider virtue and vice in an
abstract and general manner, the qualities by which they excite these several
sentiments seem in a great measure to disappear, and the sentiments themselves
become less obvious and discernible”
167
.
A perspectiva comumente adotada pelos filósofos, excessivamente abstrata
e geral, é uma perspectiva inadequada para se teorizar em ética, pois negligencia
as situações particulares em que operamos na vida moral ordinária. Smith opõe à
doutrina utilitarista sua própria visão contextualista do ajuizamento moral, que faz
do engajamento simpático em situações específicas o seu elemento básico. As
qualidades morais podem ser percebidas “de perto”, quando nos colocamos, de
certa forma, dentro do quadro. Mais do que epistemológica, a questão é,
sobretudo, ética. A objeção de Smith à adoção de um ponto de vista demasiado
abstrato para a teorização em ética não é simplesmente que dele se falha em
refletir corretamente a experiência moral ordinária, mas também que é perigoso
“ver” esta experiência de muito longe. Quando lidamos com pessoas, não
podemos simplesmente conectar sua vivência através de alguma ficção
filosófica”, mas devemos levar em consideração aquilo mesmo que elas
experimentam. Em ética, o risco de perder a relevância empírica é o risco de
perder a noção daquilo que realmente” importa. De um ponto de vista abstrato,
“virtude” e “vício” perdem substância e se confundem, porque nada significam.
As distinções morais surgem apenas no engajamento prático dos sentimentos e da
imaginação dos agentes no mundo. Os valores não estão na imaginação (teórica)
dos filósofos, e sim costurados na experiência prática, no jogo social especular
entre atores e espectadores.
O debate pode ser melhor compreendido se considerarmos a discussão de
Smith de seus predecessores na história dos sistemas morais na sétima e última
parte do livro. O mesmo padrão da crítica a Hume se repete ali. Smith nos diz que
os filósofos frequentemente distorcem os fenômenos para fazê-los caber em seus
sistemas. Epicuro, por exemplo, ao resumir todas as diferentes virtudes em
167
TMS IV.ii.2
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prudência, teria se deixado levar por uma propensão, natural a todo homem, mas à
qual os fisofos “mostram-se aptos a cultivar com uma inclinação peculiar, como
a maneira mais patente de demonstrar o seu engenho, a propensão de explicar
todas as aparências pelo menor número possível de princípios”
168
. Também
Hutcheson, com a benevolência, e Hobbes e Mandeville, por outro lado, com o
amor-de-si (self-love), incorreram no mesmo erro, reduzindo todas as emoções
morais a um único princípio
169
. Estas “distorções” são produzidas pelo impulso
estético que mobiliza a imaginação teórica, discutido no capítulo anterior. A
exigência de elegância conceitual e simplicidade leva os sistemas morais a serem,
com freqüência, reducionistas.
Outro erro comum, ao qual são levados os filósofos pela “beleza da ordem”,
diz respeito à visão consequencialista e utilitarista que Smith atribui a Hume e,
curiosamente, também a Hobbes. Fascinados pela beleza derivada da percepção
de uma ordem compreensiva no mundo social, tais filósofos foram levados a
atribuir as razões da atividade moral aos motivos errados, ao seu papel ou função
dentro desse todo: à utilidade pessoal e social. Tais explicações podem parecer
plausíveis ao espectador que adota um ponto de vista abstrato e impessoal, pois:
“a sociedade humana, quando a contemplamos sob uma luz filosófica e abstrata,
mostra-se como uma grande, uma imensa, máquina, cujos movimentos regulares e
harmônicos produzem mil efeitos agradáveis”
170
. No entanto, não é em função da
consideração da utilidade relativa que nós, enquanto agentes morais ordinários,
aprovamos a virtude e condenamos o vício
171
. Quando aplaudimos a “virtude de
Catão” e detestamos a “vilania de Catilina”, nossos sentimentos não são
influenciados pela noção de qualquer tipo de benefício que receberíamos de um
ou do malefício que sofreríamos pelo outro; tampouco o são pela consideração de
sua tendência à prosperidade ou à subversão da sociedade
172
. O julgamento moral
é um julgamento particular, a consideração geral de tendências e efeitos é uma
racionalização (after-thought) que surge a posteriori e pode vir a ter alguma
168
TMS VII.ii.2.14
169
Respectivamente: TMS VII.ii.3.16; VII.iii.1.4.
170
TMS VII.iii.1.2.
171
“It is to be observed that so far as the sentiment of approbation arises from the perception of
this beauty of utility, it has no reference of any kind to the sentiments of others” (TMS IV.2.12).
172
TMS VII.iii.1.3.
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influência sobre o julgamento situacional, mas o último é e deve ser o elemento
básico
173
.
Finalmente, a crítica ao estoicismo
174
. De todas as escolas filosóficas, o
estoicismo é aquela que mais recebe atenção na TMS, sendo extensamente
discutida na parte VII e em diversas passagens dispersas pelo livro. Smith
demonstra um conhecimento e um apreço profundos pela escola de Zenão, cuja
influência em seu pensamento é patente. A origem estóica da famosa metáfora da
“mão invisível” é conhecida
175
. A ênfase no valor do autodomínio, na importância
de se adotar uma perspectiva relativamente distanciada sobre si como forma de
conter a parcialidade excessiva a si mesmo, e a noção estóica de que a verdadeira
felicidade consiste em “tranqüilidade”
176
são, certamente, temas caros a Adam
Smith. No entanto, Smith critica a ética estóica repetidamente no texto,
condenando severamente a apátheia. Qual é exatamente a sua objeção ao
estoicismo?
Adam Smith entende que a apatia estóica é conseqüência de sua
metafísica: “os antigos estóicos eram de opinião que, sendo o mundo governado
pela providência onipotente (all-ruling) de um Deus sábio, poderoso e bom, cada
evento singular deveria ser visto como parte necessária do plano do universo,
tendendo a promover a ordem e a felicidade geral do todo”
177
. Mesmo os “vícios e
a insensatez” dos homens seriam partes isonômicas neste grande plano benévolo.
Portanto, visto que cada evento singular, incluindo-se a virtude e o vício, servem
igualmente para promover a ordem e a felicidade do todo, “para o sábio estóico,
todos os eventos da vida humana devem ser em larga medida indiferentes”, e sua
felicidade deve residir, em primeiro lugar, “na contemplação da felicidade e
perfeição do grande sistema do universo”
178
.
A famosa recomendação estóica de que devemos “viver de acordo com a
natureza” significa que devemos viver de acordo com a razão do universo.
Acontece que a razão do universo é indiferente ao particular. O sábio estóico
173
TMS VII.i.4.4.
174
Para discussões mais extensas da complexa relação de Adam Smith com a doutrina estóica
remeto o leitor a Griswold, 1999, pps. 317-324 e a Vivienne Brown, 1994, pps. 76-99. Brown,
porém, não percebe a crítica decisiva que Smith dirige ao estoicismo.
175
Cf. Raphael & Macfie, introdução à TMS, 1976; p. 7.
176
TMS III.3.30.
177
TMS I.ii.3.4.
178
TMS VII.ii.1.21.
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empenhava-se em “participar da visão do grande Superintendente do universo, e
de ver as coisas à mesma luz em que esse Ser divino as contemplaria”; sendo que,
“para o grande Superintendente do universo”, todos os diferentes eventos, a
“explosão de uma bolhae “aquela de um mundo”, são perfeitamente iguais. Na
teleologia estóica, o problema ético está resolvido de antemão. Quando
observamos o mundo da perspectiva de Deus, do universo, ou do todo, as
distinções morais desaparecem, simplesmente porque deixam de importar. No
entanto, diz Smith, “nenhuma especulação desse tipo, por mais profunda que
esteja enraizada em nosso espírito, pode diminuir nosso horror natural ao vício
179
e, infere-se, nosso apreço pela virtude. O problema é que o ponto de vista do
universo é uma perspectiva apropriada a um Deus, não a um homem:
“The administration of the great system of the universe, however, the care of the
universal happiness of all rational and sensible beings, is the business of God and
not of man. To man is allotted a much more humble department, but one more
suitable to the weakness of his powers, and to the narrowness of his
comprehension; the care of his own happiness, of that of his family, his friends, his
country: that he is occupied in contemplating the more sublime, can never be an
excuse for his neglecting the more humble department;...”
180
O logos que subjaz ao cosmo é algo além de nossa estreita compreensão.
Tentar viver de acordo com ele é um erro, um erro perigoso, pois implica a
indiferença e a negligência daquele “pequeno departamento” que cabe ao nosso
cuidado. Enquanto seres finitos, não somos capazes de ver o todo, apenas as
partes. E, segundo Smith, é bom que seja assim.
Smith contrapõe à recomendação estóica de adotarmos a perspectiva do
universo a sua recomendação do ponto de vista do “espectador imparcial”.
Devemos viver de acordo com o espectador imparcial, e nós o fazemos quando,
guiados pelas paixões que a natureza nos fornece inclusive o auto-interesse
avaliamos judiciosamente nossa situação local.
“The emotions, as well as our detached perspective on them, focus on the
requirements of the specific situation. The impartial spectator does not consider
‘propriety’ with an eye to our place in the whole or the absolute standard of
benevolence appropriate to God but with an eye to how we are placed in this part
of the whole”, here and now. For it is to that place that our emotions are chiefly
179
TMS I.ii.3.4.
180
TMS VI.ii.3.6
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82
tied, and from the emotions functioning in specific situations that ethical
distinctions arise
181
.
A “fenomenologia” da vida moral de Smith é marcada por uma dicotomia
agente/espectador, e o ponto de vista moral ideal é aquele do espectador imparcial
e bem informado. “Espectadores” somos todos quando nos situamos na platéia do
grande teatro do mundo e exercitamos nossa imaginação prática, observando
simpaticamente o comportamento de nossos semelhantes. “Imparcial” é algo que
podemos, e devemos, aprender a nos tornar quando avaliamos as cenas que se nos
representam. Para nos tornarmos espectadores imparciais, e avaliarmos a cena
humana de maneira adequada, precisamos ter nossos instrumentos, imaginação e
sentimentos, corretamente dispostos, nossa natureza disciplinada. A intenção
positiva e a intenção normativa da TMS se encontram na figura do espectador
imparcial. Adam Smith julgava que essa perspectiva ideal, que representa o anseio
estético humano por uma unidade social harmoniosa, estava disponível na vida
moral cotidiana e deveria ser buscada através de um uso e um cultivo apropriado
de nossos sentimentos e de nossa imaginação simpática.
3.2
A simpatia
O primeiro capítulo do livro trata da simpatia, indicando a sua importância
para a teoria. Pode-se dizer que os sentimentos morais fundam-se nela. Mas o que
é a simpatia? A primeira definição é um tanto obscura: a simpatia é um dos
“princípios”, ou paixões originais”, da natureza humana que atestam o nosso
“interesse desinteressado” pela fortuna de nossos próximos
182
. Embora o seu
significado original fosse idêntico ao de “piedade” e “compaixão”, a emoção que
sentimos pela desgraça alheia”, Smith expande os seus limites semânticos,
fazendo com que signifique uma “com-paixão” (fellow-feeling) para com toda e
qualquer paixão, sentimento ou emoção
183
. Em sua primeira definição, a simpatia
181
Griswold, 1999, p. 322.
182
“How selfish soever man may be supposed, there are evidently some principles in his nature,
which interest him in the fortune of others, and render their happiness necessary to him, though he
derives nothing from it except the pleasure of seeing it” (TMS I.i.1.1).
183
TMS I.i.1.5. Smith usa os termos “sentimento”, “paixão” e “emoção” de maneira
intercambiável. Seguirei sua prática, excetuando-se onde fazê-lo possa entrar em conflito com o
uso moderno destes termos. Nesses casos, selecionarei o termo que melhor transmite o significado
exigido pelo contexto.
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83
é, portanto, uma paixão. Ela é aquilo que sentimos com e por outras pessoas,
representando uma abertura essencial no sujeito para outrem
184
.
Como se manifesta a simpatia? Conquanto se mencione casos em que o
sentimento simpático parece emergir espontaneamente em um espectador,
simplesmente pela visão da emoção original em outra pessoa
185
, não é isso o que
acontece em geral. Segundo Smith, é menos a visão da paixão do que a concepção
da situação que a excita que faz surgir o sentimento simpático
186
. Sozinhos, os
sentidos não têm acesso às sensações alheias
187
. É apenas através da imaginação
que percebemos experiências e sentimentos que não são originalmente nossos.
Trocando de lugar imaginativamente, tornamo-nos, de certa forma, o outro, e,
vivenciando sua experiência, concebemos suas emoções, e asentimos algo que
“embora mais fraco, não é totalmente diferente delas”
188
: o sentimento simpático.
A análise da simpatia de Smith parte do fato bruto de nossa separação
corporal, a qual bloqueia a possibilidade de, literalmente, sentirmos as sensações
de outros
189
. A simpatia, ou a “com-paixão”, exige um ato da imaginação. A
complicação é que Smith também se refere a esse ato da imaginação como
“simpatia”
190
.
184
Pode-se dizer que Smith está, através da simpatia, marcando sua posição em um longo debate,
que, remontando às teorias do Direito Natural do culo XVII, estende-se pela filosofia moral do
Iluminismo escocês (Cf. Haakonseen, 1985, 1996). Trata-se da questão a respeito do lugar dos
motivos auto-interessados no comportamento humano. Opondo-se à “psicologia egoísta” que faz
do “amor de si” o único móbile da ação humana, atribuída a Hobbes e a Mandeville, Smith assume
uma posição original no debate. Ele não afirma que a natureza humana é altruísta e benevolente.
Os seres humanos são, de fato, vãos, e suas paixões, frequentemente, viciosas, “a simpatia, no
entanto, de maneira alguma pode ser considerada um princípio egoísta” (TMS VII.iii.1.4). O ponto
de Smith é que nós assumimos, continua e espontaneamente, um interesse por outras pessoas, por
compreendê-las, e por estar em acordo com elas; e a simpatia atesta essa característica da natureza
humana.
185
TMS I.i.1.6. Veja-se também os exemplos em TMS I.i.1.3.
186
TMS I.i.1.10. Esta é a principal diferença entre Hume e Smith em relação ao conceito de
simpatia: enquanto para o primeiro o sentimento simpático emerge apenas a partir da influência da
expressão do sentimento original, de acordo com Smith, ele surge quando o espectador se expõe
imaginativamente à influência das circunstâncias que desencadearam o sentimento original. Cf.
Haakonseen, 1989, pps. 45-49.
187
“Though our brother is upon the rack, as long as we ourselves are at our easy, our senses will
never inform us of what he suffers. They never did, and never can, carry us beyond our own
person, and it is by the imagination only that we can form any conception of what are his
sensations” (TMS I.i.1.2).
188
TMS I.i.1.2.
189
“As we have no immediate experience of what other men feel, we can form no idea of the
manner in which they are affected, but by conceiving what we ourselves should feel in the like
situation” (TMS I.i.1.2).
190
Smith fala em “simpatizar” com outras pessoas, referindo-se à troca imaginária de posições.
Cf., p.ex., I.i.1.13.
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84
A imaginação, na experiência moral, opera de uma maneira particular, ela é
empática, ou simpática (para usar o termo smithiano). Através do seu trabalho
criativo e sintético torna-se possível construir uma “ponte” entre as experiências
de indivíduos fisicamente separados. A imaginação moral não nos torna capazes
de sentir as sensações dos outros, mas nos conecta ao seu “mundo”, i.e., às
circunstâncias às quais estes estão respondendo. Representando o drama alheio, os
espectadores são capazes de, imaginativamente, desempenhar o papel dos agentes.
Essa simulação, segundo Smith, é fundamental para nossa compreensão mútua e,
em conseqüência, para a avaliação moral. A imaginação moral propicia um o
conhecimento distinto do conhecimento filosófico/científico: ela não ordena
eventos ou objetos em séries causais, mas se empenha em entender pessoas,
incluindo-se o eu, como unidades coerentes, buscando perceber a racionalidade de
suas ações em relação a circunstâncias variáveis.
Percebe-se, portanto, que a simpatia tem um sentido ético e um epistêmico.
Por um lado, em sua acepção mais estreita, ela é uma emoção análoga à piedade e
à compaixão, vinculando-se aquilo que na tradição cristã é tomado como uma
virtude, o amor ao próximo; por outro, em seu sentido técnico, smithiano, ela é
também uma noção em psicologia moral com conseqüências epistêmicas
importantes
191
. A simpatia, uma emoção, converte-se também no modo pelo qual
emoções são transmitidas e compreendidas.
Neste seu segundo sentido, a simpatia articula uma sociabilidade essencial.
Reconhecemos os outros como seres semelhantes, com experiências semelhantes,
e assumimos um interesse espontâneo na comunicação e compreensão das
mesmas. A possibilidade da simpatia em sua acepção estreita (comiseração)
depende da simpatia em seu sentido ampliado, i.e., depende dessa capacidade,
exercitada continuamente, de modo quase compulsório, de participar de universos
alheios.
A ética de Smith não é, portanto, simplesmente uma ética do amor ou da
compaixão, e a simpatia tampouco pode ser confundida com benevolência
192
. É
perfeitamente possível simpatizarmos (no segundo sentido) com paixões egoístas,
191
Griswold, 1999, p.79.
192
Tal confusão é a fonte do desacreditado “problema de Adam Smith” que aventa uma
incompatibilidade entre a TMS, supostamente fundada na benevolência, e a WN, que faz do auto-
interesse um móbile fundamental na vida humana. Cf. Raphael & Macfie, introdução à TMS,
1976, p.20.
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e até “anti-sociais” (como o ressentimento). A simpatia também pode ser
pervertida e perversiva
193
; embora natural aos seres humanos, ela deve ser
cultivada e refinada. Daí o papel fundamental que a educação moral desempenha
no esquema smithiano: devemos aprender a “bemsimpatizar, exercitando nossa
imaginação na representação e na compreensão adequadas de situações morais. O
próprio exercício de se colocar no lugar de outros, e perceber o que é importante
em diferentes contextos, ajuda a atingir o objetivo ético: aproximar-se da posição
do espectador imparcial.
O ajuizamento moral
O ajuizamento moral, na perspectiva smithiana, é primordialmente uma
questão de adequação entre uma situação dada e a reação a ela. A conveniência da
conduta e dos sentimentos depende da proporção que esses guardam com sua
causa, i.e., com o objeto e as circunstâncias aos quais respondem. Tal medida, por
sua vez, é dada pelos juízos simpáticos de um espectador, baseados em uma
imagem concebida da situação original. É a concordância ou dissonância da
reação da pessoa diretamente envolvida com aquela que o espectador concebe em
sua imaginação que determina a sua conveniência ou inconveniência.
As percepções do espectador dependem da simpatia. A simpatia não é uma
forma de intuição ou de apreensão imediata, mas um processo complexo de
percepção moral. Para que se compreenda a avaliação moral, dois aspectos
importantes da atuação da imaginação moral devem ser salientados: em primeiro
lugar, a separação entre os sujeitos não é obliterada durante a troca imaginária de
posições. A consciência de que a mudança de lugar é meramente imaginária faz
com que aquilo que o espectador experimenta seja sempre menos intenso do que a
emoção original
194
. Aliás, o sentimento simpático pode mesmo ser diferente do
sentimento original
195
. Em segundo lugar, é importante representar-se o contexto
193
Veremos que as ilusões do amor-de-si e da vaidade são o principal vetor da corrupção dos
sentimentos morais.
194
TMS I.i.4.7
195
“We sometimes feel for another, a passion of which he himself seems to be altogether
incapable; because, when we put ourselves in his case, that passion arises in our breast from the
imagination, though it does not in his from the reality. We blush for the impudence and rudeness
of another, though he himself appears to have no sense of the impropriety of his own behavior;...”
(TMS I.i.1.10).
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no qual as emoções se inserem, a “história” daquele com quem se simpatiza deve
ser apreendida. Esses dois aspectos têm conseqüências importantes para os
julgamentos morais.
A exigência de participar da situação, e não apenas das emoções, permite
estabelecer uma distinção entre o objeto da simpatia, a paixão de um outro
homem, e sua causa, o conjunto de circunstâncias que deram origem a ela. Isso
permite que um espectador possa dizer qual deveria ter sido a reação original, de
acordo com a sua visão da situação
196
. Trata-se de uma medida de objetividade.
Um certo distanciamento é necessário para o julgamento, e o fato de que se deve
perceber a situação explica porque é possível simpatizar e não aprovar. Contribui
para essa objetividade a incapacidade do espectador se identificar completamente
com a pessoa simpatizada. Tal identificação, impossível, tampouco seria
desejável, pois se o ponto de vista do agente fosse o único disponível, nenhuma
avaliação independente poderia ocorrer. O espectador deve reter a consciência de
si mesmo enquanto aquele que simpatiza. Essa é a condição para que o
mecanismo da simpatia seja a base para o julgamento, cujo cerne reside
exatamente numa comparação entre a reação do espectador, imaginativamente
induzida, e a reação original.
Esquematicamente, pode-se dividir a teoria smithiana da avaliação moral em
quatro etapas
197
. (a) a troca imaginária de posições, pela qual o espectador
busca tanto quanto possível expor-se às influências causais que produziram a
paixão original, o que exige uma representação acurada da sua situação
198
. (b) A
partir daí, produz-se uma resposta no espectador. (c) Essa é, então, comparada
com a reação original. (d) Dessa comparação, emerge ainda uma emoção no
espectador, que será prazerosa, chamando-se aprovação, caso as reações original e
simpática concordem, e dolorosa (desaprovação) caso contrário
199
.
196
Haakonseen, 1989, p. 46.
197
Smith esclarece o processo em uma nota adicionada à segunda edição da TMS (1761), na qual,
respondendo a uma objeção de Hume, distingue o sentimento simpático do sentimento de
aprovação (TMS I.iii.1.9, nota). Haakonseen, porém, chama atenção para o hábito, nada
esclarecedor, de Smith de se referir a todas as etapas usando o termo simpatia (1989; p.51).
198
“He (the spectator) must adopt the whole case of his companion with all its minute incidents;
and strive to render as perfect as possible, that imaginary change of situation upon which his
sympathy is founded” (TMS I.i.4.6).
199
Mesmo que uma situação tenha falhado em fazer surgir o sentimento simpático, devido a
circunstâncias externas ao processo, como, p.ex., uma indisposição do espectador, ainda assim é
possível julgar-se a conduta do agente. Nesses casos, denominados de “simpatia condicional”
(TMS I.i.3.4), recorre-se a “regras gerais”, inferências produzidas pelo entendimento a partir de
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Poder-se-ia objetar a Smith que todo o processo de avaliação moral é
“subjetivo”. E, de fato, ele o é, mas não no sentido de relativo ou arbitrário.
Embora atribuamos os predicados “moral”, “conveniente ou “apropriado” a
ações e sentimentos caso eles coincidam com nossas respostas enquanto
espectadores que aspiram à imparcialidade
200
, nós os consideramos como
adequados aos seus objetos, às suas situações específicas, e não aos nossos
sentimentos. Da mesma maneira que fazemos em relação aos juízos causais, ou
científicos, tendemos a conferir “objetividade” aos juízos morais, embora não
possamos garantir essa objetividade de modo independente de nossas percepções.
Comentando a respeito do louvor que conferimos às virtudes intelectuais, Smith
diz que nós aprovamos o julgamento de um outro homem como “certo, acurado,
conforme à (agreeable to) verdade e à realidade: e é evidente que nós atribuímos
essas qualidades a ele por nenhuma outra razão senão porque consideramos
(find) que ele concorda com o nosso próprio
201
. O mesmo se em relação às
virtudes morais: “quando julgamos desta maneira qualquer afeto, como
proporcional ou desproporcional à causa que o excita, é pouco provável que
utilizemos qualquer regra ou cânon que o seja o afeto correspondente em nós
mesmos”
202
.
Isso significa que não um padrão fixo e externo, apriorístico, para as
avaliações morais. O elemento decisivo no exercício do julgamento é o contexto
no qual as ações se dão. Não se trata jamais de maldade ou bondade em si, mas da
conveniência das condutas e dos sentimentos em relação às suas situações, sempre
cambiantes, tal como percebidas por um espectador relativamente distanciado que
atua como juiz ou crítico das mesmas. A teoria de Smith da moralidade em termos
das emoções pode ser considerada “subjetivista” apenas no sentido em que o
“certo” e o “errado” são determinados pelas percepções e juízos de um espectador
imparcial, e não por um padrão externo. Nós julgamos bem quando nos tornamos
espectadores imparciais. As respostas deste juiz ideal são constitutivas do valor
experiências semelhantes ocorridas no passado. Substituindo a sensibilidade apropriada ausente, as
regras gerais nos sugerem qual deveria ser a reação apropriada àquela situação específica.
Subordinando-se sempre à avaliação situacional, as regras gerais nos auxiliam ainda no processo
deliberativo complexo que é o ajuizamento moral.
200
A imparcialidade sediscutida adiante. Cf. p.99.
201
TMS I.i.4.4 – grifos meus.
202
TMS I.i.3.9.
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moral, e o um reflexo de alguma Forma filosófica situada fora do plano dos
fenômenos.
A vida dos mortos e a simpatia com os vivos
A simpatia, no entanto, nem sempre conduz a avaliações morais.
Compadecemos o sofrimento da loucura sem julgar a conveniência dos atos
daquele que perdeu a razão, o qual, completamente insensível à sua própria
miséria, “canta” e “ri”. Simpatizamos também com crianças pequenas, embora
elas não tenham consciência de sua própria situação. Simpatizamos até mesmo
com os mortos, algo a que Smith se refere como uma “ilusão da imaginação”
203
.
Nesse último caso, colocamo-nos no lugar da pessoa morta, imaginando
como seria terrível estar destinado ao esquecimento de todos, privado para sempre
da luz do sol e da conversação humana, “estirado numa tumba fria, presa da
corrupção e dos répteis da terra”
204
. A idéia de que a morte é uma situação terrível
deriva de nos colocarmos na situação de cadáveres, de “alojarmos, se me é
permitido falar assim, nossas próprias almas viventes nos seus corpos inanimados,
concebendo, então, quais seriam nossas emoções nesse caso”
205
. Trata-se de uma
ilusão da imaginação, porque, obviamente, as circunstâncias mencionadas não
afetam o morto; em sua atual condição, nada mais é capaz de o comover. A “vida
do morto” é, portanto, uma ficção completa da imaginação.
Desse “engano”, porém, origina-se “um dos mais importantes princípios da
natureza humana”: o “medo da morte”. Numa passagem notável por suas
ressonâncias hobbesianas, Smith se refere ao medo da morte como um princípio
que “guarda e protege a sociedade”, sendo um “grande freio da injustiça da
humanidade”
206
. No entanto, na mesma passagem, Smith afirma que o medo da
morte é também um veneno poderoso à felicidade individual, “que aflige e
mortifica o indivíduo”. A ambivalência deste princípio, conseqüência imprevista
de uma ilusão da imaginação” (a simpatia com os mortos), traz à tona o dilema
de Hume: até que ponto ceder a ela?
203
TMS I.i.1.11-13.
204
TMS I.i.1.13.
205
Idem.
206
Idem.
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Simpatizar com os vivos é, contudo, um processo bastante diferente de
simpatizarmos com os mortos
207
. certas desanalogias entre a “ilusão da
imaginação” que representa nossa simpatia com os últimos e o modo pelo qual
imaginamos simpaticamente a situação de pessoas vivas. Em primeiro lugar, as
diferenças entre o espectador e o agente devem ser levadas em consideração
quando simpatizamos com os vivos. A avaliação moral consiste, como vimos, em
uma comparação entre a reação original e aquela do espectador, o que exige que o
objeto da simpatia (o agente) seja capaz de sentir e agir, e que o espectador
conceba o que este outro específico experimenta. Sem se identificar
completamente com o outro, o espectador precisa compreender o que ele
experimenta, e não simplesmente projetar numa figura vazia suas próprias
emoções. Se a simpatia não fosse mais do que uma mera projeção do sujeito, a
avaliação moral seria completamente arbitrária. O objeto da simpatia deve ser
aquele outro específico, com seu caráter e vivência distintos: é a sua história que
se deve imaginar, e não aquela do próprio espectador. É isso o que distingue
reconstrução arbitrária e interpretação verdadeira
208
.
Evidentemente, a incapacidade do espectador de, literalmente, sentir as
emoções do agente, dado que a identificação nunca é total, implica a permanência
inevitável da indagação a respeito de se o primeiro realmente foi capaz de
compreender as experiências do segundo. Talvez porque o problema seja
207
A simpatia com os mortos parece residir numa ilusão semelhante àquela em que se baseia o
animismo, infantil e selvagem, discutido no primeiro capítulo: trata-se, em ambos os casos, de
simpatizar com objetos inanimados, sem considerar que são desprovidos de intencionalidade. O
resultado deste tipo de simpatia é que ela se reduz a uma simples projeção das emoções do
espectador nestes corpos. Especulo que o erro do selvagem, para Smith, consistia em lidar
simpaticamente com fenômenos que deveriam ser tratados na imaginação em seu modo teórico;
afinal, o trovão e o arco-íris não são pessoas.
208
Griswold discute em que medida a simpatia poderia ser considerada um princípio meramente
projetivo, e, portanto, “egoísta” (selfish) num sentido epistêmico. Ele conclui, no entanto, que
Adam Smith, consciente da dificuldade, é capaz de defender seu argumento de que a simpatia não
é um princípio egoísta, nem mesmo em um sentido epistêmico. A evidência textual apresentada
por Griswold em sua argumentação é uma passagem da última seção do livro, onde Smith diz:
“Sympathy, however, cannot, in any sense be regarded as a selfish principle.When I sympathize
with your sorrow or your indignation, it may be pretended, indeed, that my emotion is founded in
self-love, because it arises from bringing your case home to myself, from putting myself in your
situation, and thence conceiving what I should feel in the like circumstances. But though sympathy
is very properly said to arise from an imaginary change of situation with the person principally
concerned, yet this imaginary change is not supposed to happen in my own person and character,
but in that of the person with whom I sympathize. When I condole you for the lost of your only
son, in order to enter into your grief I do not consider what I, a person of such a character and
profession, should suffer, if I had a son, and if that son was unfortunately to die: but I consider
what I should suffer if I was really you, and I not only change circumstances with you, but I
change persons and characters” (TMS VII.iii.i.4).
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insolúvel, Smith trate a simpatia entre pessoas como um processo mútuo e
contínuo de ajustamento, mobilizado pelo prazer derivado da reciprocidade das
emoções.
O prazer tranqüilo da simpatia
Logo na abertura do segundo capítulo, que se intitula “Do prazer da
simpatia mútua”, Smith diz: qualquer que seja a causa da simpatia, “nada nos
mais prazer do que observar em outros homens uma compaixão com todas as
emoções de nosso próprio peito, e nada nos choca mais do que a aparência do
contrário”
209
. Tal prazer, continua ele, não pode ser explicado pela referência a
considerações egoístas, pois não decorre da busca por qualquer tipo de vantagem
pessoal, mas emerge, espontaneamente, a partir da percepção de uma
correspondência, corrente nos intercâmbios sociais cotidianos, entre nossas
opiniões e sentimentos e aquelas dos outros. Tampouco esse prazer é derivado da
reflexão sobre a utilidade dessa concordância para a realização de qualquer
esquema racional compreensivo. Segundo Smith, todos nós buscamos comunicar
nossos sentimentos e opiniões, e esperamos que eles sejam compreendidos e
retribuídos; dessa troca, produz-se uma agradável harmonia, semelhante àquela
que se dá entre os instrumentos em uma sinfonia musical
210
.
O tema da “beleza da ordem” retorna aqui. O prazer desinteressado,
“estético”, que deriva da percepção da concordância, harmonia, simetria e paz
entre o eu e o outro, sugere que também a imaginação moral é atraída por seus
encantos. Na primeira frase do livro, é dito que naturalmente assumimos um
interesse desinteressado pela situação dos nossos próximos. Logo em seguida, no
segundo capítulo, aprendemos que esse interesse está ligado ao prazer da
correspondência de sentimentos. A centralidade da noção de conveniência”
(propriety), entendida como uma proporção” adequada entre comportamentos e
suas situações, julgados pela “concordância” ou “dissonância” em relação às
209
TMS I.i.2.1.
210
“The great pleasure of conversation and society (...) arises from a certain correspondence of
sentiments and opinions, from a certain harmony of minds, which like so many musical
instruments, coincide and keep time with one another. But this most delightful harmony cannot be
obtained unless there is a free communication of sentiments and opinions. We all desire upon that
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percepções e aos juízos de um espectador, aponta igualmente para o papel central
que a beleza desempenha na filosofia moral smithiana. A beleza em moral
também está ligada à tranqüilidade da imaginação, e o prazer da simpatia mútua
“alivia a dor”. A própria estrutura do intercâmbio emocional, articulado pela
simpatia e mobilizado pela busca da correspondência de sentimentos, conduz a
uma pacificação, de modo que a sociedade e a conversação são os mais
poderosos remédios para restituir ao espírito a sua tranqüilidade, caso ele a tenha
perdido”
211
. Vejamos como o efeito pacificador da simpatia mútua se dá.
O diálogo civilizador
Segundo Adam Smith, a concordância em assuntos de ciência e gosto” se
com relativa facilidade: podemos concordar ou divergir em nossas opiniões a
respeito de um quadro”, um “poema” ou um sistema de filosofia”, mas, em
geral, visto que estes não nos afetam de modo diferencial, os vemos de um mesmo
ponto de vista, sem que haja necessidade da simpatia
212
. No entanto, quando o
objeto é tal que afeta uma pessoa de maneira particular (p.ex., um infortúnio que
tenha sucedido a esse alguém, ou uma injúria que lhe tenha sido dirigida) torna-se
necessário, para que se compreenda e se possa avaliar a sua resposta, um ato
simpático. Em situações morais, a diferença relativa nas posições, exige que um
espectador se exponha imaginativamente ao objeto e à situação para conceber
como a pessoa diretamente atingida é afetada.
No entanto, por melhor que se interprete a história do outro, o sentimento
simpático experimentado pelo espectador nunca atinge a mesma intensidade da
paixão original, visto que a mudança de situação é apenas imaginária. Smith diz
que a pessoa diretamente atingida percebe isso, e, ao mesmo tempo, “deseja
ardentemente” uma simpatia mais completa: ela anseia pelo prazer da
correspondência de sentimentos, por ver as emoções do espectador “pulsarem no
mesmo ritmo” (beat time) que as suas
213
. Para obter essa consonância, a pessoa
diretamente atingida deve aprender autodomínio e abrandar (flatten) a agudeza
account, to feel how each other is affected, to penetrate into each other’s bosoms, and to observe
the sentiments and affections which really subsist there” (TMS VII.iv.28).
211
TMS I.i.4.10.
212
TMS I.i.4.1.
213
TMS I.i.4.7.
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natural de sua paixão até um “tom” (pitch) em que aqueles que a observam sejam
capazes de acompanhá-la.
A maneira pela qual o agente aprende a moderar o seu comportamento é
simpatizando com os espectadores de sua própria situação. A “paixão refletida”
que deriva dessa simpatia reversa reduz a violência daquilo que ele sentia antes de
ver a sua situação sob a “luz franca e imparcial” através da qual a vêem os
espectadores, facilitando a concordância de sentimentos
214
. Esta simpatia reversa,
mobilizada pelo agente, é também uma capacidade natural humana: assim como a
natureza ensina os espectadores a assumirem as circunstâncias do observado,
também ensina o último a assumir aquelas do espectador, e a conceber “uma certa
medida daquela frieza a respeito de sua própria fortuna”
215
. Embora as emoções
não cheguem a ser uníssonas, em função da separação física entre os sujeitos,
Smith acredita que elas possam manter uma correspondência suficiente para a
“harmonia da sociedade”.
Percebe-se que uma assimetria no processo da simpatia mútua: são as
paixões do agente que se modificam sob o olhar do espectador, e não as deste sob
o olhar daquele. O olhar do espectador é luz franca e imparcial”. Simpatizando
com o agente, o espectador não muda a visão de si mesmo. O agente, porém,
simpatizando com a posição de seus observadores, aprende autodomínio, e tem
sua emoção original reduzida a uma “paixão refletida” – ele se civiliza.
O que está em jogo no processo da simpatia mútua é uma busca espontânea
por uma medida comum para os comportamentos, mobilizada pelo prazer da
correspondência de sentimentos. O ajustamento das condutas e dos sentimentos
particulares segundo esta medida produz naturalmente a “harmonia social”. Uma
medida comum exige um ponto de vista comum, e é a posição do espectador que,
por seu distanciamento lógico, provê a perspectiva adequada. A intenção
normativa da TMS se revela no privilégio concedido à posição do espectador
216
. A
Teoria dos Sentimentos Morais é uma teoria do julgamento das emoções pelo
214
“The mind, therefore, is rarely so disturbed, but that the company of a friend will restore it to
some degree of tranquility and sedateness. The breast is, in some measure, calmed and composed
the moment we come into his presence. We are immediately put in mind of the light in which he
will view our situation, and we begin to view it ourselves in the same light;...” (TMS I.i.4.9 –
grifos meus).
215
TMS I.i.4.8.
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espectador. É o ponto de vista do espectador que, relativamente afastado das
demandas pessoais dos agentes, constitui “imparcialidade” quando
adequadamente informado através da simpatia. Sendo imparcial, ou
desinteressado, no sentido de não enviesado pela expectativa de alguma vantagem
pessoal, todas as condutas e sentimentos particulares serão vistas pelo espectador
da mesma forma. A assimetria no processo da simpatia mútua decorre do fato de
que é a posição do espectador que constitui o ponto de vista moral.
3.3.
O ponto de vista moral
Eu, platéia de mim
Até aqui estivemos considerando o mecanismo básico da simpatia, como ele
opera na formação dos juízos de conveniência a respeito dos sentimentos e da
conduta de outras pessoas. Essa dimensão da teoria é discutida na primeira seção
do livro. A segunda seção trata da formação dos juízos de mérito e demérito, uma
derivação dos julgamentos de conveniência
217
. Finalmente, a terceira discute o
modo pelo qual julgamos nossos próprios sentimentos e conduta, e a formação da
consciência. Trata-se da maneira pela qual o eu se torna um sujeito moral.
Adam Smith diz que o princípio através do qual aprovamos ou
desaprovamos nossa própria conduta é exatamente o mesmo através do qual
exercemos estes juízos em relação a outras pessoas: a simpatia. Simpatizar
consigo mesmo, e, portanto, conhecer-se, é uma extensão da lógica da
compreensão simpática de outras pessoas. Segundo Smith, a única maneira
possível de examinarmos e julgarmos nosso comportamento e seus motivos é nos
afastando de nossa “posição natural”, buscando vê-los a uma certa distância de
nós, i.e., vê-los como outras pessoas, espectadores, os veriam. A aquisição desta
perspectiva externa sobre o nosso eu é algo que aprendemos na convivência com
outros seres semelhantes. Nós sempre nos vemos através dos olhos dos outros e
216
“Smith’s privileging of the spectator is not simply a result of a ‘theory’, (...), but also a result of
a moral and even political conviction on Smith’s part that human life will be better if we accept his
construal of the spectator-actor relation” (Griswold, 1999, p.104).
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somos “espelhos” (a metáfora é de Smith) uns dos outros. Sem essa mediação
especular não somos sujeitos morais. A moralidade emerge da própria
sociabilidade, na concepção de Smith.
Smith nos convida a imaginar o que aconteceria “se fosse possível a uma
criatura humana crescer até se tornar adulta em algum lugar solitário, isolado de
toda comunicação com sua própria espécie”
218
. Essa “criatura”, diz ele, jamais
iria refletir sobre seu próprio caráter, sobre a conveniência ou demérito de seus
sentimentos e conduta; a beleza ou deformidade de seu espírito bem como a
beleza ou deformidade de seu próprio rosto lhe seriam completamente
indiferentes. Tragam-no para a sociedade, e ele será imediatamente provido do
espelho de que antes carecia”
219
. O espelho situa-se no semblante e
comportamento daqueles com quem vivemos, refletindo os nossos. Graças a essa
mediação, as paixões - que, numa hipotética situação a-social, não despertam a
atenção da “criatura humana” - são, em sociedade, objetos de constante
observação e cuidado
220
. Observamos como os outros se comportam e percebemos
que esses também nos observam e julgam. Criticando outros, e cientes da crítica
alheia, tornamo-nos ansiosos para saber até que ponto nossa aparência desperta a
censura ou o aplauso destes. Essa consciência é a origem do cuidado de si. A
partir dela, passamos a nos auto-examinar, simulando como pareceamos aos
olhos de espectadores imaginários
221
. Adquirimos, dessa maneira, uma
consciência moral
222
.
O processo pode se estender até o ponto em que o agente que se vê refletido
nos olhos de um espectador imaginário torna-se moralmente auto-dirigido de tal
forma que pode até entrar em desacordo com a representação que espectadores
217
Os juízos de mérito e demérito são importantes para a compreensão da teoria da justiça de
Smith, com a qual não irei lidar diretamente. Cf. Haakonsseen, 1989.
218
TMS III.i.3.
219
Idem.
220
“To a man who from his birth was a stranger to society, the objects of his passions, the external
bodies which either pleased or hurt him, would occupy his whole attention. The passions
themselves (...) could scarce ever be the objects of his thoughts. (...). Bring him into society, and
all his passions will immediately become the causes of new passions. He will observe that
mankind approve of some of them, and are disgusted by others. He will be elevated in one case,
and cast down in the other...” (TMS III.i.3).
221
“We begin, upon this account, to examine our own passions and conduct, and to consider how
these must appear to them, by considering how they would appear to us if in their situation” (TMS
III.i.5).
222
Voltarei a discutir a questão da consciência adiante, em conexão com a imparcialidade e a
virtude (Cf. p. 105).
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reais fazem dele. Embora nossas idéias de beleza e deformidade morais sejam
adquiridas pela observação da conduta e da crítica alheia, a partir do momento em
que passamos a refletir sobre nossa própria conduta do ponto de vista de um
espectador ideal, aprendemos também a nos livrar dos erros cometidos por
espectadores mal informados e/ou parciais
223
. A perspectiva externa e reflexiva
sobre nós mesmos que interiorizamos aspira a uma independência relativa da
moralidade social, pois buscamos nos tornar espectadores imparciais de nossa
conduta, sermos dignos de aprovação e não apenas sermos aprovados.
Não obstante, todo o processo é socialmente condicionado. O outro-
espectador imaginado é uma derivação do outro-espectador real. Não temos
nenhum acesso estimativo às nossas emoções que dispense a intermediação do
outro
224
. Não temos nem mesmo um eu moral fora da comunidade humana. s
existimos apenas nas relações, diretas ou indiretas, que estabelecemos com os
outros. O estado a-social descrito o é um “estado natural”, pré-social, e Smith
não tem nenhuma intenção de oferecer uma teoria genética da sociedade como
uma escolha racional de seres prístinos. A história da “criatura” é apenas um
recurso didático para o realce da tese de que a moralidade é coextensiva à
sociedade. Smith assume que nósestamos em sociedade, e que a capacidade de
simpatizarmos e avaliarmos os sentimentos de nossos próximos é um traço
observável nessa, provavelmente única, situação. Embora surjam
espontaneamente, ou naturalmente, caracterizações ou avaliações de paixões são
artefatos sociais. O homem é formado para a sociedade, de acordo com Smith
225
.
O estado natural humano, como se dizia, é social, e o artifício é natural.
223
“We can be more indifferent about the applause, and, in some measure, despise the censure of
the world; secure that, however misunderstood or misrepresented, we are the natural and proper
objects of approbation” (TMS III.i.5).
224
“whatever judgment we can form concerning them [our own sentiments and motives],
accordingly, must always bear some secret reference to what are, or to what, upon a certain
condition, would be, or to what, we imagine, ought to be the judgment of others” (TMS III.i.2).
225
Veja-se, p.ex., TMS III.2.6. Em carta ao Edinburgh Review, Smith recomenda aos editores do
periódico a publicação de resenhas de livros de autores do continente, entre os quais o “Discourse
upon the origin and foundation of the inequality amongst mankind”, do “Mr. Rousseau of
Geneva”. O comentário a respeito do livro é, porém, bastante ambíguo. Smith elogia o estilo de
Rousseau, mas compara o seu sistema ao de Mandeville, com os sinais trocados. Enquanto o
segundo representa o “estado primitivo da humanidade” como o mais miserável que se pode
imaginar, o primeiro o representa como o mais feliz e o mais adequado a natureza do homem.
“Both of them however suppose, that there is in man no powerful instinct which necessarily
determines him to seek society for its own sake;... (Edinburgh Review, 11).
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Estar em sociedade significa, para Smith, imaginar-se visto através dos
olhos dos outros. A observação é a condição para a possibilidade de agência
moral, o que ajuda a explicar porque a perspectiva do espectador é
normativamente preeminente
226
. Adotar uma perspectiva crítica sobre si mesmo
implica olhar-se de um ponto de vista externo, distanciado. A relação espectador-
agente, bem como o privilégio concedido ao “olhar” sobre o “fazer”, são mantidos
na formação da consciência, sendo interiorizados pelo sujeito moral. Tornar-se
moralmente consciente requer que o eu se divida em dois, espectador e ator de si
mesmo: o primeiro é o juiz; o segundo a pessoa julgada”
227
. Esse juiz
internalizado e ideal é um espectador. Ele é o representante do outro, do público,
pois nós nos tornamos nosso próprio público.
Digressão: sinceridade e autenticidade
O modo de subjetivação descrito por Smith estabelece uma analogia notável
com aquilo que Lionel Trilling chamou de “sinceridade”, um modo ou qualidade
da personalidade que surge na literatura e no panorama moral europeu no final do
século XVI, sendo concomitante à emergência do conceito moderno de
“sociedade”, como um aglomerado mais ou menos indistinto de indivíduos,
acompanhando um longo e complexo processo de transformação psico-
histórica
228
.
226
“The privileged position of the spectator in this account is ultimately grounded in Smith’s
depiction of the natural sociability of human beings and so of our natural dependence of others for
our self-conception. In sum, we are aware of ourselves through being aware that others are aware
of us; the dependence on the spectator is built in (or “natural”, as Smith says). We evaluate
ourselves as we imagine that others evaluate us” (Griswold, 1999, p. 107).
227
“When I endeavor to examine my own conduct, when I endeavor to pass sentence upon it, and
either to approve or condemn it, it is evident that in all such cases, I divide myself, as it were into
two persons; (...). The first is the spectator, whose sentiments with regard to my own conduct I
endeavor to enter into, by placing myself into his situation, and by considering how it would
appear to me, when seen from that particular point of view. The second is the agent, the person
whom I properly call myself, and of whose conduct, under the character of the spectator, I was
endeavoring to form some opinion” (TMS III.i.6).
228
“... The intense concern with sincerity that came to characterize certain European national
cultures at the beginning of the modern epoch would seem to have developed in connection with a
great public event, the extreme revision of traditional modes of communal organization which
gave rise to the entity that figures in men’s minds under the name of society” (Trilling, 1980,
p.26). Uma característica notável dessa nova entidade moderna, a “sociedade”, sobretudo a partir
do século XVIII, com a intensificação do processo de urbanização e a formação das grandes
metróles mercantis, é “...the ever more powerful existence of the public, that human entity which
is defined by its urban habitat, its multitudinousness, and its ready acessibility to opinion” (idem,
p.59).
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A sinceridade, segundo Trilling, envolve o imperativo moral de se ser
verdadeiro a si mesmo. O que a distingue de uma outra concepção relacionada do
eu, de ascendência mais contemporânea, a “autenticidade”, é, sobretudo, a sua
referência obrigatória à sociedade, aos outros, ao público, i.e., a um elemento
externo ao eu. Dizer a verdade sobre si, sob o paradigma da sinceridade, implica
também dizer a verdade aos outros: “o fim moral em vista implica um fim público
em vista, com tudo o que isso sugere em termos de estima e justa reputação que se
seguem ao cumprimento de um papel público”
229
.
A autenticidade envolve uma concepção distinta daquela mobilizada pela
sinceridade a respeito do que significa ser verdadeiro em relação a si mesmo.
Menos indulgente em relação às circunstâncias da vida social, a autenticidade
substitui o vínculo positivo com a sociedade por uma tensão imanente com a
mesma. Enquanto a sinceridade atrela a existência do sujeito à ordem social,
estabelecendo uma congruência entre a realização de ambos, em termos de uma
norma expressa por meio de certas categorias estético-morais tais como “ordem”,
“paz”, “honra” e “beleza”
230
, a autenticidade institui uma rejeição radical da
participação de elementos ligados à ordem social na realização da personalidade.
Em acordo com a inversão valorativa que discuti no capítulo anterior, a
conduta prática da vida, entendida como a busca de objetivos materiais e de
reconhecimento social, bem como a própria sociabilidade, marcada por regras de
cortesia, polidez, enfim civilidade, dominava o ethos que ditava o ritmo da vida
espiritual das classes ascendentes nos séculos XVIII e XIX. É neste cenário que se
encaixa a descrição de Hume do homem moderno como voltado para “companhia,
conversação e negócios”. A regulação moral do indivíduo nesse mundo era dada
pela “sinceridade”, pelo vínculo que ela estabelecia entre sua realização e a
probidade e o bom êxito na conduta prática da vida. Uma vida sincera era uma
229
Trilling, 1980, p.11.
230
Trilling chama esse ideal de “visão nobre da vida”, algo que recebe sua expressão máxima nas
últimas peças de Shakespeare: “...the norm of life which they propose is one of order, peace,
honor, and beauty, these qualities being realized in, and dependent upon, certain material
conditions” (Trilling, 1980; p.38). Essa visão está ligada àquilo que chamei, seguindo Charles
Taylor, de “afirmação da vida cotidiana”, referindo-me à inversão moderna que torna as atividades
ligadas à reprodução material e biológica do homem constituintes da “boa vida”. “Shakespeare
unabashedly uses material and social establishment and what is presumed to assure in the way of
order, peace, honor, and beauty as emblems of the spiritual life, as criteria by which the
sufficiency of the inner condition may be assessed. He conceives the self in terms of states and
activities which imply achievement and reward, (...), ‘a clear life ensuing’, and even (...)
happiness” (Ibid., p.40).
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vida votada ao cumprimento de objetivos mundanos, materiais e sociais, e o seu
prosaico ápice era chamado de “felicidade”
231
.
Segundo Trilling, ainda no final do XVIII, o mesmo imperativo de se ser
verdadeiro a si mesmo passa a incitar um questionamento a propósito de se a
sociedade não seria capaz de corromper a sinceridade de seus cidadãos. A resposta
afirmativa, recorrente na literatura e no pensamento nos séculos XIX e XX, é o
que Trilling chama de autenticidade. A verdade sobre si se emancipava, neste
momento, da referência ao outro-eu-social, enquanto que o filistinismo associado
à conduta prática da vida passava a ser denunciado como o corruptor por
excelência da autenticidade individual. O homem social seria o homem alienado
de si mesmo, de sua auto-realização, a qual deixava de ser expressa em termos
que se remetessem à ordem social, voltando-se para um significado mais
profundo, metafísico. Em suas formas mais radicais, a autenticidade propunha ao
sujeito a possibilidade de transcendência absoluta das categorias morais e do
julgamento por elas ditado. No limite, a própria sociedade, e tudo o que ela
representa em termos de compromissos e obrigações para com outros,
falsificações, sob o prisma da autenticidade, tornava-se o grande impedimento à
realização do verdadeiro destino metafísico do indivíduo
232
. A alienação era vista
como o resultado do afastamento que os condicionamentos sociais impunham ao
sujeito em relação a si mesmo, frustrando o solilóquio ascético que o eu deveria
estabelecer com uma verdade imediata inscrita em seu íntimo.
Não pretendo estender a discussão das duas concepções de sujeito
assinaladas por Trilling em sua sociologia da literatura moderna européia. Este
grosseiro resumo tem por objetivo simplesmente marcar o distanciamento de
Smith em relação a uma visão “romântica” do eu, que concebe a sua realização
como antagônica à existência social. Acredito que Smith veria a “autenticidade”
como uma forma sofisticada de self-love, um refinamento da vaidade e do orgulho
humanos. Suposto que o seu ceticismo lhe impedisse a visualização de fontes
transcendentes para realização de algum tipo de eu “superior”, o próprio esforço
231
“This condition [happiness] was to be achieved by attaing certain worldly objectives which
were identical with the elements of the good life prescribed in Shakespeare romances, including
marriage...” (Trilling, 1980, p.39).
232
“At the behest of the criterion of authenticity, much that was once thought to make up the very
fabric of culture has come to seem of little account, mere fantasy or ritual, or downright
falsification” (Ibid, p.12).
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de buscá-las lhe pareceria inútil e eticamente condenável. O paradigma da
sinceridade, com o nexo necessário que estabelece entre a realização do sujeito e a
referência a outrem, bem como a orientação para a vida prática e para a
integridade moral, seria mais compreensível e agradável a Smith
233
. O eu isolado
não é o summum bonum para Adam Smith; sem os condicionamentos que a vida
social concreta, incluindo-se a moralidade, lhe impõe, o indivíduo não é mais que
uma “criatura”. Isso não significa dizer que não exista espaço na sua filosofia
moral para o criticismo moral e para uma forma de auto-determinação, mas sim
que a relação do sujeito com a verdade ética não é, e não deve ser, imediata.
O ponto de vista moral, as paixões e o amor
Nós criticamos condutas e sentimentos adotando a perspectiva de um
espectador, e nos tornamos moralmente auto-esclarecidos quando aprendemos a
nos identificar com a posição do espectador imparcial. Sentimentos e condutas
nos quais um espectador, enquanto espectador, o seja capaz de “entrar”, i.e.,
compreender simpaticamente, não são morais. Somente aquilo que se faz visível e
compreensível a observadores desinteressados - devendo ser, portanto, expresso
publicamente - pode ser considerado “conveniente”. O ponto de vista moral é
fundamentalmente público
234
.
que a conveniência dos sentimentos depende da capacidade do(s)
espectador(es) participar(em) de sua expressão, nada mais natural do que o fato de
Smith classificá-los segundo a disposição da humanidade em simpatizar com
eles
235
. Como indica o título da segunda seção da primeira parte do livro, Dos
graus das diferentes paixões que são consistentes com a conveniência”, todas as
paixões tem uma “mediania” (mediocrity), i.e., um ponto de conveniência que
233
“Sinceridade”, “franqueza” e “honestidade” são termos utilizados com freqüência na TMS,
referindo-se a qualidades louváveis da personalidade, aprovadas pelo espectador imparcial (Cf.
TMS I.iii.3.5; VI.i.8; VII.iv.28). A sinceridade é ainda uma das principais qualidades do caráter
prudente (Cf. p.120).
234
Estou assumindo o mesmo significado que, segundo Richard Sennett, se atribuía ao termo no
século XVIII: “‘Público’, significava aberto à observação de qualquer pessoa, enquantoprivado’
significava uma região protegida da vida, definida pela família e pelos amigos” (Sennett, 1988,
p.30).
235
“...If we consider all the different passions of human nature, we shall find that they are regarded
as decent, or indecent, just in proportion as mankind are more or less disposed to sympathize with
them” (I.ii.intro.2).
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facilita a participação do observador
236
. Mantendo este critério, Adam Smith
divide as paixões entre aquelas que se originam “do corpo” e aquelas que se
originam “da imaginação”, subdividindo essas últimas entre as que se originam
“de um hábito particular da imaginação”, as insociáveis”, as sociáveis” e as
“egoístas”. Em princípio, as paixões do corpo o menos simpatizáveis do que as
da imaginação. Vejamos por quê.
É considerado indecente expressar com intensidade qualquer uma das
paixões que m sua origem em algum estado corporal, fome, sede, dor física,
desejo sexual etc, porque o espectador, não compartilhando o estado físico com o
agente, tem dificuldade em simpatizar com elas. Smith comenta que alguns
“filósofos antigos” atribuíam a razão de nossa aversão à expressão dos apetites
corporais ao fato de que esses, sendo compartilhados com os animais, estariam
abaixo da dignidade humana. Porém, continua Smith, não é isso o que se dá, pois
nós compartilhamos muitas outras paixões com os animais, tais como
ressentimento, afeição, “e até gratidão”; e a verdadeira causa da repulsa
peculiar que concebemos pelos apetites corporais quando os vemos em outros
homens é não podermos participar deles (enter into them)
237
.
Um exemplo literário é empregado para esclarecer o ponto. Quando lemos
uma história sobre pessoas famintas (podem ser, diz Smith, os diários de um
local sitiado, ou de uma viagem marítima”), imaginamo-nos naquela situação e
simpatizamos com a “aflição”, a “dor”, o “medo” e a “consternação” que a fome
excessiva produz. Porém, o que não podemos simpatizar, como leitores, é a
própria fome, dado que ela se baseia em uma condição física que não
compartilhamos. O mesmo se dá em relação à “paixão pela qual a Natureza une os
dois sexos”, eufemismo para o desejo sexual, a mais impetuosa de todas as
paixões”
238
.
Enfim, as paixões corporais têm um ponto de conveniência extremamente
baixo. Sua limitada capacidade de comover o espectador, quando este se
representa as situações que as produzem, obriga o agente a expressá-las com
236
“If the passion is too high or if it is too low, he [the spectator] cannot enter into it. (...). This
mediocrity, however, in which the point of propriety consists, is different in different passions”
(TMS I.ii.intro).
237
TMS I.ii.1.3 – grifos meus.
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economia para que sejam consideradas morais. A pouca simpatia que tais afetos
despertam no espectador é o fundamento de nossa temperança em manifestá-las.
O caso é outro em relação às paixões que se originam na imaginação, pois a
imaginação é mais “maleável” do que a nossa estrutura corporal, facilitando, em
princípio, a simpatia. Há, porém, entre estas, uma exceção importante: as paixões
que derivam de um “pendor ou hábito particular que a imaginação tenha
adquirido”
239
, das quais o amor romântico é a melhor expressão
240
. Tais paixões
são sempre problemáticas do ponto de vista moral:
“The imaginations of mankind, not having acquired that particular turn, cannot
enter into them; and such passions, though they may be allowed to be almost
unavoidable in some part of life, are always, in some measure ridiculous. This is
the case with that strong attachment which naturally grows up between two
persons of different sexes, who have long fixed their thoughts upon one another.
Our imagination not having run in the same channel with that of the lover, we
cannot enter into the eagerness of his emotion. (...). The passion appears to every
body, but the man who feels it, entirely disproportioned to the value of the object;
and love, though it is pardoned in a certain age because we know it is natural, is
always laughed at, because we cannot enter into it. All strong expressions of it
appear ridiculous to a third person; and though a lover may be good company to
his mistress, he is so to nobody else”
241
.
Prontamente partilhamos, continua Smith, das esperanças de felicidade, ou
das aflições da decepção, que experimentam os amantes. O seu amor, porém, é
incapaz de comover o espectador
242
. Aquele que não contraiu o mesmo hábito
assumido pela imaginação dos amantes, e que observa a sua manifestação nestes,
por melhor que se represente a situação dos mesmos, não é capaz de sentir com e
por eles algo semelhante. O observador o é capaz de compreender por que
aquilo se dá; em sua percepção, o objeto amado e a situação não coincidem com a
violência da resposta, a qual se lhe afigura, em sua desproporção, “ridícula”.
Retornando aos exemplos literários, Smith diz que aquilo que interessa o leitor,
tanto em poesias pastorais quanto em tragédias e romances modernos”, não é o
238
“...all strong expressions of it are upon every occasion indecent, even between persons in whom
its most complete indulgence is acknowledged by all laws, both human and divine, to be perfectly
innocent” (TMS I.ii.1.2).
239
“..., tough they may be acknowledge to be perfectly natural, are, however, but little
sympathized with” (TMS I.ii.2.1).
240
Análises sobre o amor na TMS encontram-se em: Griswold, 1999, cap.4, pps. 148-155;
Griswold & Uyl, Review of Metaphysics, v.49, p.609-37, (March 1996); e Nussbaum, 1990,
cap.14, pps. 335-364.
241
TMS I.ii.2.1.
242
É possível que presença do desejo sexual, que é, “talvez, o fundamento do amor” (TMS
I.ii.2.3), dificulte ainda mais a simpatia do espectador.
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amor como paixão, mas sim como situação que dá origem a outras paixões.
Nossas imaginações literárias são cativadas pela expectativa de felicidade e pelo
medo de frustração dos amantes, mas não pelo seu amor
243
.
O amor romântico é praticamente impenetrável ao espectador porque é
inerentemente privado, baseia-se em um “hábito particular”, e envolve uma
intensidade que parece aos outros inteiramente desproporcional ao seu objeto.
algo de misterioso, de oculto e de arbitrário nele, e, por isso, ele é potencialmente
perigoso do ponto de vista moral. Embora “perfeitamente natural”, esse tipo de
amor escapa, a não ser como objeto de derrisão, à visão moral do mundo, porque é
incapaz de se justificar perante o tribunal do espectador judicioso.
Griswold comenta que o amor romântico, embora seja uma relação, é
profundamente “a-social”
244
. Na descrição smithiana da relação amorosa, ambos
os participantes o agentes, nenhum deles é espectador. Os amantes estão de tal
forma envolvidos um no outro, que seus mundos se tornam um único, fechado aos
demais. Fundindo-se, eles perdem perspectiva, e a simpatia é substituída por
aprovação imediata
245
. Esta relação é distinta do diálogo civilizador que
discutimos acima. Não estando em uma relação de simpatia com espectadores, os
amantes não experimentam a necessidade de moderar sua paixão.
Conforme vimos, a simpatia, em seu sentido restrito, também é uma forma
de amor, mas um amor que envolve a capacidade da imaginação de enxergar as
situações de outras pessoas sem nos confundirmos com elas. A condição para que
a simpatia seja o fundamento das avaliações morais é a manutenção desta
distância. A aprovação, bem como a auto-aprovação, não pode se descolar da
observação. O amor romântico é uma forma de cegueira moral
246
, e é também
uma forma de transcendência em dois sentidos relacionados: uma transcendência
no outro, que na fusão amorosa, se torna o mesmo, um outro eu; e uma
transcendência em relação à necessidade de aprovação moral por observadores
243
“It is not so much the love of Castalio and Monimia which attaches us in the Orphan, as the
distress which that love occasions. The author who should introduce two lovers, in a scene of
perfect security, expressing their mutual fondness for one another, would excite laughter and not
sympathy” (TMS I.ii.2.3).
244
Griswold, 1999, p. 151. Martha Nussbaum sustenta uma posição semelhante à de Griswold em
relação ao amor romântico em Smith (1990; p. 344).
245
“Perhaps we might simply say that the lovers have extended ‘sympathy’ so far as to transcend
it. Sympathy has become synonymous in this instance with absolute approval and affirmation”
(Griswold, 1999, p.150).
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situados fora do círculo íntimo. O mundo dos amantes é um mundo fechado,
exclusivo, que envolve formas de perceber e valorar que são idiossincráticas e não
comunicáveis publicamente. O amor funda-se em crenças particulares a respeito
do valor do objeto amado e se manifesta em condutas que extrapolam a
possibilidade de justificação racional que os amantes possam articular para os
outros.
Porque ele pode se fechar à observão social, abstraindo da necessidade de
aprovação por aqueles situados fora de seu próprio rculo, o amor romântico se
aproxima de outras formas de amor potencialmente perigosas, tais como o “amor
ao sistema” (love of system) e o amor a Deus. Esses últimos podem se corromper,
convertendo-se em fanatismo, à medida que a ligação amorosa cancela o
distanciamento crítico. Comentando a respeito das maneiras pelas quais um firme
senso de dever pode, devido à “fraqueza da natureza humana”, degenerar em
“consciência errônea”, Smith recorda uma tragédia de Voltaire, Maomé. Nela, um
casal de jovens virtuosos e pios são levados a assassinar uma pessoa que muito
estimavam (e que, no fim, se revela ser seu pai), acreditando que a execução havia
sido ordenada por Deus. Nesse caso, um cego amor ao dever e a Deus se sobrepôs
a amores mais prudentes, à “compaixão”, à gratidão”, à “reverência” e ao “amor
à humanidade e à virtude” da pessoa assassinada
247
. De forma análoga, Smith
discute como o amor ao sistema pode degenerar em fanatismo político, quando o
estadista, “apaixonado pela beleza imaginária de seu próprio plano ideal de
governo”, age para realizá-lo sem considerar os interesses dos cidadãos
248
. Aqui,
246
“Lovers, then, neither see nor are seen with the judicious eye of sympathetic moral concern
(Nussbaum, 1990, p. 344).
247
TMS III.6.12.
248
“He seems to imagine that he can arrange the different members of a great society with as much
easy as the hand arranges the different pieces upon a chess-board. He does not consider that the
pieces upon the chess-board have no other principle of motion besides that which the hand
impresses upon them; but that, in the great chess-board of human society, every single piece has a
principle of motion of its own, altogether different from that which the legislature might chuse to
impress upon it” (TMS VI.ii.2.17). O amor à beleza também é perigoso. Convém lembrar, nesta
conexão, da discussão empreendida no início do capítulo a respeito de como o interesse estético
envolvido no amor ao sistema é capaz de fazer com que os filósofos distorçam os fenômenos
morais. Veja-se ainda o comentário de Griswold a propósito de como a visão smithiana do amor se
afasta do Eros platônico, na medida em que rejeita a forma mais elevada de amor, a Theoria, a
completa absorção da alma na contemplação apaixonada das Formas (1999, p.154-155).
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são a “humanidade” e a “benevolência” que se sacrificam à beleza da idéia amada,
com conseqüência sociais desastrosas
249
.
Enfim, à maneira do amor romântico, toda uma gama de amores ética e
politicamente perigosos, capazes de velar condutas à observação e à avaliação de
outros, cancelando o vínculo necessário entre a aprovação e a referência social
externa. Por razões éticas, Smith contém o impulso para transcendência que se
manifesta no amor, mantendo-o dentro da dialética de espelhos da simpatia. O
amor moral é aquele que incorpora a observação. O amor que escapa à visão do
espectador tende a ser egoísta e a ameaçar o equilíbrio social, diferindo, portanto,
da atenção simpática aos outros que constitui o fundamento e o paradigma das
virtudes sociais. A simpatia, segundo Smith, nos une em uma rede de mútuo
interesse, uma virtuosa conversação social, que envolve a troca aberta e constante
de justificativas e razões a respeito do que fazemos. A moralidade exige que,
permitindo que nossas ões e sentimentos sejam vistos, nos tomemos como não
mais do que um entre iguais.
A discussão a respeito do ponto de conveniência das paixões nos ajuda a
compreender de que maneira a posição do espectador define a perspectiva moral,
preparando-nos para a questão da imparcialidade. Concentrei a discussão em torno
da paixão amorosa devido à sua presença ubíqua, em várias formas diferentes, no
texto, e à sua importância capital, enquanto simpatia, para o argumento. Falar
sobre o amor ajuda a esclarecer esse argumento. Para que seja moral, o amor deve
estar sempre conectado à observação. A mesma condição estende-se a todas as
paixões. Dizer que possuam uma mediania, ou um ponto de conveniência,
significa dizer que não são boas ou más em si, mas sim segundo se fazem visíveis,
i.e., compreensíveis aos outros-espectadores. É o próprio fato de que o espectador
não consiga participar da paixão o que a torna inconveniente, aquilo que de
excessivo, ou deficiente
250
, nela.
249
Sólon parece encarnar o ideal smithiano do estadista: When he [the man whose public spirit is
prompted by humanity and benevolence] cannot establish the right, he will not disdain to
ameliorate the wrong; but like Solon, when he cannot establish the best system of laws, he will
endeavour to establish the best that people can bear” (TMS VI.ii.2.16).
250
Não apenas o excesso, mas também a carência de uma emoção pode, dificultando a simpatia,
determinar o seu vício. Discutindo as paixões insociáveis, as quais, embora pouco simpatizáveis,
são “elementos necessários do caráter da natureza humana”, Smith diz: “A person becomes
contemptible who tamely sits still, and submits to insults, whitout attempting either to repel or to
revenge them. We cannot enter into his indifference and insensibility: we call his behaviour mean-
spiritedness, and are as really provoked by it as by the insolence of his adversary(TMS I.ii.3.3).
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Não há, para Smith, paixões boas ou s em si, porque o que importa
moralmente é a medida de sua expressão; e é sempre a sua expressão que,
enquanto espectadores, julgamos. Mesmo as paixões insociáveis e egoístas podem
ser expressas sem, necessariamente, incorrer em falta moral. O que é talvez difícil
de se entender é o fato de que, para Smith, os sentimentos não são simplesmente
privados, mas são também, fundamentalmente, públicos
251
. É claro que os
sentimentos de alguém são sempre os sentimentos dessa pessoa específica, mas
nós não somos mônadas fechadas, inacessíveis aos outros. A simpatia atesta esse
fato fundamental, mobilizando, através da imaginação, uma representação ativa e
concreta das circunstâncias e sentimentos de outras pessoas.
As paixões são e devem ser abertas à observação e ao julgamento alheio. É
exatamente essa abertura, essa liberdade de comunicação, o que permite moderá-
las. Moderar não significa extirpar, a apátheia estóica não é possível nem mesmo
desejável. As paixões são um elemento constituinte da natureza humana e são
guias indispensáveis em nossa conduta neste mundo. Sem as emoções seríamos
simplesmente indiferentes, incapazes de perceber e responder eticamente ao
mundo
252
. Smith claramente acredita que seja possível e necessário cultivar as
emoções, o que implica moderá-las segundo uma perspectiva distanciada e
ponderada; e o seu argumento é que nós temos um incentivo forte para fazê-lo. A
natureza humana, pelo menos no que diz respeito às suas paixões, comporta uma
certa maleabilidade.
3.4.
imparcialidade e virtude
Imparcialidade
251
Poder-se-ia dizer, especulativamente, que Smith ainda não teria feito a transição do modo de
“apresentação das emoções” para o modelo de “representação das emoções”, que Sennett deplora
como um dos elementos do “declínio do homem público”, em sua descrição pessimista do mundo
contemporâneo (1988, p.138-140). O primeiro modo, que teria vigorado durante o Antigo Regime,
concede às emoções uma existência social, pública, relativamente independente da personalidade,
exigindo que aquilo que o eu experimenta seja modelado, trabalhado expressivamente, de modo a
se tornar compreensível aos outros. Cancelando a existência social das emoções, o segundo modo
torna a personalidade “expressiva” em si mesma, sem qualquer referência a um sentido comum
dos sentimentos. Sob o paradigma da representação das emoções, a “autenticidade” da experiência
residiria exatamente em sua incomunicabilidade.
252
“A stupid insensibility to the events of human life necessarily extinguishes all that keen and
earnest attention to the propriety of our own conduct, which constitutes the real essence of virtue”
(TMS VI.iii.18).
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Observação e imparcialidade andam juntas, para Smith, por isso se fala em
espectador imparcial e não em ator imparcial. Conforme se viu, o espectador é um
personificação do público, i.e., de um ponto de vista externo, que difere de uma
maneira eticamente relevante daquele do agente: ele é um “by-stander”, alguém
que e julga uma cena, sem participar diretamente dela. Esse distanciamento
incorpora uma certa “imparcialidade”, pois o espectador, em princípio, não tem o
mesmo investimento emocional na situação que o agente, estando em uma posição
que permite um afastamento crítico. A distância, porém, não pode ser excessiva,
pois a cena deve ser vista, e “ver” aqui significa engajar-se simpaticamente na
compreensão da situação moral apresentada. A imaginação e os sentimentos do
espectador devem estar comprometidos na apreensão do drama e de seus
personagens.
Aproveitando a mefora, pode-se dizer que o espectador é alguém que está
dentro do teatro, observando o espetáculo da platéia. Com efeito, Smith o compara
a um crítico e a um juiz
253
. Um crítico não é um filósofo, no sentido em que não
delibera a partir do Bem universal, nem especula sobre a utilidade de certas ações
para a realização de algum esquema racional compreensivo. O espectador-crítico é
um observador experiente, alguém cujo olhar sensível e perceptivo julga situações
particulares com base em padrões flexíveis (extrapolados da prática) a respeito de
como se espera que os indivíduos respondam a essa ou aquela situação.
Não se pode porém dizer que observação e imparcialidade sejam sinônimos,
pelo simples fato de que existem espectadores parciais. A parcialidade está, com
freqüência, ligada a um conhecimento inadequado da situação, resultante da
incapacidade do espectador de apreender, através da simpatia, corretamente a
cena. No entanto, as ilusões da vaidade e do amor-de-si são, para Smith, a fonte
mais conspícua de parcialidade. Uma absorção excessiva em si mesmo e uma
atenção deficiente ao outro distorcem a avaliação moral. Em uma passagem do
livro III, Smith, remetendo-se à New Theory of Vision, de Berkeley, compara a
maneira pela qual aprendemos a julgar moralmente de forma equilibrada ao modo
como aprendemos a corrigir nossos julgamentos visuais. Os defeitos de percepção
do “olho do corpo” e do olho do espírito” são corrigidos da mesma maneira:
253
Cf., p.ex.: TMS I.i.5.10.
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adquirimos perspectiva não através da filosofia e da razão, mas sim pelo “hábito”
e pela “experiência”
254
. Assim como comparamos duas grandezas físicas
diferencialmente situadas em relação a nós nos colocando imaginativamente em
um ponto eqüidistante de ambas, também aprendemos as reais dimensões de
nossas paixões em relação as de uma outra pessoa quando as vemos “da posição e
com os olhos de uma terceira pessoa, que o tenha nenhuma conexão particular
com algum de nós, e que nos julgue com imparcialidade”
255
.
Isso não significa que imparcialidade seja “indiferença”. Alguém indiferente
não seria imparcial, mas desinformado. “Sentir” é um elemento importante na
cognição moral. As emoções transmitem informações a respeito das situações
morais, apontando para aquilo que é relevante perceber em contextos distintos. O
ponto de vista moral ideal, aquele do espectador imparcial, é uma perspectiva
rich in feeling”, segundo a expressão de Martha Nussbaum
256
. Como resultado
de sua imaginação das circunstâncias, objetivos e sentimentos de outras pessoas, o
espectador, literalmente, se emociona. Isso implica que imparcialidade, embora
seja um elemento racional, visto que envolve deliberação e reflexão de um ponto
de vista distanciado sobre informações selecionadas e apreendidas de um
contexto, não é uma “razão desapaixonada”.
Porque sentir é importante para a apreensão moral, sentir “corretamenteé
indispensável para um julgamento e uma conduta adequados. Sentir corretamente
significa saber fixar a intensidade passional apropriada ao seu objeto e à sua
situação. Trata-se sempre de uma questão de proporção, de medida. E a medida
apropriada do amor-de-si é, em relação aos julgamentos morais, uma tal que o
interfira nos mesmos de maneira a distorcê-los. O espectador deve ser capaz de
julgar uma situação específica sem deixar que os seus interesses privados
corrompam a sua avaliação dessa situação. Pelo mesmo princípio, o agente deve
agir de modo que um espectador imparcial seja capaz de participar dos princípios
de sua conduta. O ponto é que o amor-de-si, bem como todas as outras paixões,
deve se justificar quando submetido a uma avaliação independente. Ele não é
condenável em si, o que se condena é o seu excesso. O amor-de-si torna-se
254
TMS III.3.3.
255
TMS III.3.3. “...and the natural misrepresentations of self-love can be corrected only by the eye
of this impartial spectator” (idem).
256
Nussbaum, 1990, p.338.
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excessivo quando, por exemplo, move alguém a prejudicar outras pessoas,
demonstrando que tal indivíduo não foi capaz de apreender corretamente as suas
próprias medidas
257
.
Todavia, o espectador imparcial admite que sejamos naturalmente “parciais”
em relação a nós mesmos e àqueles de nosso círculo mais próximo, família e
amigos. Parece paradoxal, mas não é. Convém lembrar que se trata sempre de
moderação, equilíbrio. Smith acredita que a convivência produz laços afetivos
fortes, o que chama de “simpatia habitual”
258
. Esses laços habituais nos tornam
naturalmente inclinados para o cuidado daquelas pessoas que estão mais próximas
de nós, incluindo-se nossa própria pessoa. Essa é uma parcialidade que o
espectador imparcial aprova, desde que se mantenha em seu limite justo, i.e.,
desde que não nos leve a prejudicar outras pessoas. Natureza e hábito se
confundem no âmbito da experiência moral ordinária. Esse hábito natural da
imaginação, preocupar-se primeiro com aqueles que nos são mais próximos, é um
elemento da experiência comum que a razão e a filosofia não devem buscar
reformar
259
.
A ética smithiana o requer que assumamos uma postura completamente
universal e impessoal, estóica. Nossa “boa-vontade (good-will) pode se estender à
imensidão do universo”, porém, uma “benevolência universal” não é algo que um
espectador imparcial poderia exigir de nós
260
. Uma teoria moral, como a estóica,
que requer a adoção de uma postura impessoal, abstraindo completamente de
nosso contexto particular e de nossas ligões afetivas com aqueles que nos são
mais próximos, inclusive com nossa própria pessoa, está assumido uma postura
eticamente equivocada. Uma perspectiva absolutamente universal é aquela de um
257
Smith diz ser natural que a morte de alguém com quem não temos nenhuma conexão particular
nos incomode menos do que algum desastre insignificante que ocorra com nossa pessoa, como,
p.ex., a perda de um dedonimo. “But though the ruin of our neighbor may affect us much less
than a very small misfortune of our own, we must not ruin him to prevent that small misfortune,
nor even to prevent our own ruin” (TMS II.ii.2.2). É o espectador imparcial internalizado, a
consciência, aquele que, “sempre que estamos na iminência de agir de modo a afetar a felicidade
alheia, protesta, com uma voz capaz de intimidar a mais presunçosa de nossas paixões, que somos
apenas um na multidão, em nada melhores do que qualquer outro” (TMS III.3.35).
258
TMS VI.ii.1.7.
259
Cf. a crítica aos moralistas “lamuriantes (whining) e melancólicos” que consideram a nossa
felicidade injustificável enquanto houver miséria no mundo. Pascal é citado na passagem. Tais
filósofos buscam nos incutir uma “comiseração artificial” pelos infortúnios de pessoas que não
conhecemos nem podemos ajudar (TMS III.3.9). Veja-se também a crítica de Smith à apatia
estóica (III.3.14). Propondo uma “educação artificial”, ambas as escolas de filósofos, “levaram
suas doutrinas muito além do padrão justo de natureza e conveniência” (III.3.8).
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Deus. Focalizar a atenção na realização do Bem universal requer um
conhecimento desse objeto sublime, algo que a nós, enquanto seres finitos, é
vedado. Na dialética smithiana, essa limitação natural tem, contudo, um lado
positivo, pois impede que ignoremos as obrigações morais que incidem sobre
nosso “humilde departamento”, ao cuidado do qual estamos melhor capacitados.
O espectador imparcial corrige as ilusões do amor-de-si, mas uma atenção
diferenciada para a felicidade própria e daqueles que nos são caros o é em si
uma ilusão, mas sim uma saudável” proclividade natural da imaginação,
observável na vida moral cotidiana
261
.
A aprovação da simpatia habitual pelo espectador imparcial de Smith atesta
que imparcialidade e racionalidade filosófica, teórica, não se confundem. A
imparcialidade exige, e não se descola de, um engajamento prático e “emocional”
no mundo. O espectador deve estar dentro do teatro, i.e., dentro do Theatrum
mundi. A doutrina da imparcialidade decorre da própria psicologia moral e
fenomenologia da simpatia articuladas por Smith. O espectador imparcial
representa a compreensão simpática em sua melhor forma. Nele, a intenção
positiva e normativa da TMS convergem, pois Smith claramente via a
imparcialidade como um valor já presente na vida moral cotidiana, e, ao mesmo
tempo, como algo que precisava ser exercitado para que a sociedade moderna se
tornasse uma comunidade moral.
Martha Nussbaum distingue duas versões do “juiz ideal” encontradas em
teorias éticas, uma heurística” e outra “constitutiva”: a primeira faz do judicante
um mero recurso para a explicitação de normas cuja existência precede e
independe de seus juízos específicos; enquanto que a segunda torna as suas
respostas constitutivas da norma moral
262
. Discutindo a psicologia moral da TMS,
vimos que é a própria capacidade do espectador de participar de sentimentos e
condutas o que define a sua conveniência. Podemos agora dizer que o espectador
260
Cf. citação da TMS na p.81.
261
“Our natural sentiments and mutual dependencies are not features of our moral lives that a well-
informed, candid, and ideal spectator would seek to reform radically. That is, an impartial judge
will approve of our partiality toward those who properly fall within our narrow circles of
sympathy. In defending the standpoint of ordinary life, Smith rejects moral theory that imposes
demands we cannot meet and requires guilty we ought not to bear” (Griswold, 1999, p.142).
262
Nussbaum, 1990, p. 344-345.
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define a medida apropriada, porque ele, enquanto imparcial é a medida
263
. Os
juízos do espectador não são as imagens de algum original moral. Não é a uma
Lei que se deve referir a conduta, mas à opinião informada e imparcial deste outro
ideal, que, por definição, exercita suas faculdades morais da maneira adequada
264
.
Nós julgamos bem ou corretamente quando nos tornamos espectadores imparciais.
Isso significa que, para Smith, nenhuma teoria filosófica abstrata a respeito
da natureza essencial do bem e do mal é capaz de nos esclarecer a propósito de
como conduzir nossas vidas. A moralidade é o resultado de nossas respostas ao
mundo, e os valores são artefatos que criamos a partir desse engajamento prático,
via emoções e imaginação, sem o recurso a entidades filosóficas abstratas, fixadas
além da trama fenomênica de que se constitui o mundo. Em função dos limites
estreitos de nossa razão, estas nos seriam incompreensíveis. Smith está sugerindo
que a alternativa a esse conhecimento quimérico é a compreensão e a reflexão
como recursos da vida humana pré-filosófica. É isso o que representa o espectador
imparcial, ele é um ideal, mas um “ideal humano”, ao qual podemos e devemos
aspirar.
O amor à virtude e a argila tosca
A virtude para Smith é “conveniência”, é a capacidade de harmonizar
conduta e sentimentos com o contexto. O homem virtuoso é aquele cujas paixões
e ações, à vista de todos, são sempre proporcionais aos seus objetos e
circunstâncias. Sabendo fixar a mediania precisa em que reside a conveniência em
cada situação, o homem virtuoso se move graciosamente no mundo. Trata-se de
um ideal estético. Conveniência é melhor entendida como “elegância” do que
como “obediência”. Na narrativa de Smith, psicologia moral e teoria da virtude
convergem: a conveniência é determinada pelos juízos e sentimentos de um
espectador judicioso e bem informado, e nós somos virtuosos quando aprovados
por ele. Adam Smith acredita que temos um incentivo psicológico forte para a
prática da virtude: a necessidade que experimentamos de sermos aprovados pelo
263
“That precise and distinct measure [of virtue] can be found nowhere but in the sympathetic
feelings of the impartial and well-informed spectator” (TMS VII.ii.1.49).
264
“The very words, right, wrong, fit, improper, graceful and unbecoming, mean only what pleases
or displeases those [moral] faculties” (TMS III.5.6).
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espectador imparcial. Essa é uma tendência a ser realizada através de uma
educação moral. O processo pelo qual nos educamos para a virtude é o mesmo
através do qual adquirimos uma consciência, aprendendo a nos julgar da
perspectiva de um outro ideal, espectador imparcial de nós mesmos. À medida
que nos identificamos com essa figura ideal, assumindo sua razão prática,
modelamos nosso caráter, sentimentos e conduta para a virtude. A questão é: até
que ponto este trabalho demiúrgico de auto-modelagem pode chegar; até que
ponto podemos nos tornar o ideal estético do homem virtuoso?
O argumento decorre da psicologia da simpatia. Movidos pelo prazer
estético (desinteressado) da concordância entre os sentimentos, ou da simpatia
mútua, aprendemos a simpatizar com a posição do espectador, buscando sua
aprovação. A aprovação social é prazerosa, e, por isso, nós amamos o louvor e
detestamos a censura alheias. Porém, o “sábio”, o indivíduo moralmente
esclarecido, busca mais do que a mera aprovação, ele busca ser digno dela. Mais
do que o mero louvor, ele ama ser digno de louvor, mais do que ser condenado,
ele teme ser merecedor de censura. A observação e a experiência ensinaram o
sábio a distinguir virtude e vício. Ele sabe a diferença entre o louvor e a censura
concedidos e aqueles que deveriam ter sido concedidos, entre julgamento
equivocado e julgamento judicioso, i.e., entre a visão de um espectador parcial
e/ou mal informado e a visão de um espectador imparcial e bem informado. A sua
admiração pela excelência moral em outras pessoas faz com que, por emulação,
também deseje ser admirável, mas, “para obter essa satisfação”, ele deve se tornar
o espectador imparcial de sua própria conduta e sentimentos
265
. Observando os
ditames de sua consciência, o sábio se esforça para assumir aquelas qualidades
que ele considera meritórias em outros homens e evitar aquelas condenáveis. A
consciência é o “homem dentro do peito”, o representante do espectador imparcial
dentro de cada um
266
; não se trata de um fato da razão, nem de um senso moral
inato, mas sim de uma ficção da imaginação, i.e., de um espectador ideal criado
por mim mesmo para me avaliar
267
.
265
TMS III.2.3.
266
TMS III.2.32.
267
“The ‘supposed impartial spectator’, as Smith often called him, is not the actual bystander who
may express approval or disapproval of my conduct. He is a creation of my imagination” (Raphael,
1975, p.90).
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Porém, tornar-se o espectador imparcial de si mesmo não é algo fácil, pois
as ilusões da vaidade e do amor-de-si são um risco constante, distorcendo a auto-
avaliação e nos desviando da virtude: tão parciais são as representações dos
homens a respeito da conveniência de sua própria conduta”, que “esse auto-
engano, essa fraqueza fatal da humanidade, é a fonte de metade das desordens da
vida humana”
268
. O homem vaidoso, contentando-se com o mero aplauso, deixa o
desejo da aprovação social se sobrepor ao prazer mais sólido de ser o objeto
apropriado da aprovação, ou de ser aquilo que ele mesmo aprova em outras
pessoas. A vaidade acompanha-se, às vezes, de uma ilusão grosseira” da
imaginação: o homem vaidoso é capaz de experimentar prazer em ser aplaudido
por ações que não desempenhou, ou por motivos que não influenciaram sua
conduta. Trata-se de uma ilusão porque, nesses casos, não é realmente a ele que
aplaudem
269
.
“Em todo o espírito bem constituído (well-formed)”, diz Smith, o desejo de
ser aprovado é mais fraco do que o desejo de ser digno de aprovação
270
. A auto-
aprovação justificada oferece ao sábio o maior de todos os prazeres, a
“tranqüilidade”
271
, e a consciência de que é merecedor de censura, mesmo que não
seja condenado na realidade, origem às dores terríveis da “culpa” e do
“remorso”
272
.
O amor-de-si pode cegar, mas o auto-conhecimento adquirido através da
mediação do espectador imparcial representado na imaginação é iluminador.
Neste processo de auto-esclarecimento moral, confrontamo-nos, porém, com uma
dificuldade mais fundamental do que a parcialidade do amor-de-si. Vejamos qual.
Embora o sábio, ou aquele que se guia mais pelo desejo de ser louvável do
que pelo desejo de louvor, obtenha uma autonomia relativa em relação à opinião
de espectadores reais, ele não é jamais completamente indiferente a ela,
268
TMS III.4.5-7.
269
TMS III.2.4.
270
“The love of it, is the love of virtue” (TMS III.2.8). “The first desire could only have made him
[man] wish to appear to be fit for society. The second was necessary in order to make him anxious
to be really fit. The first could only have prompted him to the affectation of virtue, and to the
concealment of vice. The second was necessary in order to inspire him with the real love of virtue,
and with the real abhorrence of vice” (III.2.7).
271
TMS III.3.30; III.3.32.
272
“These natural pangs of an affrighted conscience [remorse and guilty] are the daemons, the
avenging furies, which, in this life, haunt the guilty, which allow them neither quiet nor repose,
which often drive them to despair and distraction, from which no assurance of secrecy can protect
them...” (TMS III.2.9).
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equivocada ou não
273
. Adam Smith acredita que isso seja positivo, pois ignorar
completamente os sentimentos e os juízos de nossos próximos pode ser perigoso.
Em princípio, o sábio sabe melhor que ninguém aquilo que faz, porquanto está
numa posição privilegiada para se observar: “ele sabe perfeitamente o que fez;
porém, talvez quase ninguém possa saber perfeitamente o que é capaz de
fazer
274
. O perigo reside no fato de que até mesmo a consciência, o “espectador
imparcial e bem informado” internalizado, o “grande juiz e árbitro de nossa
conduta”, pode se enganar. Assim como os “semideuses dos poetas”, o “homem
dentro do peito” é parcialmente de extração imortal, porém, também,
parcialmente mortal
275
, sujeitando-se, portanto, à confusão.
Evidentemente, o espectador imparcial, enquanto ideal, o comete erros,
seus juízos são definitivos. Aprendendo a se identificar com o espectador
imparcial internalizado, seríamos, em princípio, capazes de adequar com precisão
nossos sentimentos e comportamento à menor diferença de situação, e de agir em
todas as ocasiões com a mais delicada e acurada conveniência. Seríamos
perfeitamente virtuosos. Contudo, não é isso que se dá: a argila tosca da qual a
maior parte dos homens é formada não pode ser moldada com tal perfeição
276
.
Há, afinal, uma diferença entre mera conveniência e a virtude perfeita: a
primeira recebe apenas a aprovação do espectador imparcial, a segunda desperta
também a sua “admiração”
277
. A virtude exata é excelência, “é algo
excepcionalmente grande e belo, que se eleva muito acima do que é vulgar e
ordinário”
278
. A realização perfeita da virtude, ou a conveniência absoluta, é,
273
“Very few men can be satisfied with their own private consciousness that they have attained
those qualities, or performed those actions, which they admire and think praise-worthy in other
people; unless it is, at the same time, generally acknowledge that they possess the one, or have
performed the other; or, in other words, unless they have actually obtained that praise which they
think due both to the one and to the other. (...). No man can be completely, or even tolerably
satisfied, with having avoided every thing blame-worthy in his conduct, unless he has likewise
avoided the blame or the reproach” (TMS III.28-29).
274
TMS III.2.15 – grifos meus.
275
TMS III.2.32 – grifos meus.
276
TMS III.5.2 grifos meus. Neste capítulo, Smith discute como um respeito por regras gerais de
moralidade, um “senso do dever”, incutido atras de disciplina, educação e exemplo, é capaz de
compensar na maior parte da humanidade a ausência da verdadeira virtude, a qual consiste na
perfeita conveniência em todas as situações. As “regras gerais” (Cf. p.17 n.39) substituem nos
imperfeitamente virtuosos a ausência da sensibilidade apropriada a certas situações (aquela que um
espectador ideal manifestaria). Pode-se dizer que as regras gerais são um histórico de nossos
esforços em nos tornarmos espectadores imparciais.
277
TMS I.i.4.4; I.i.5.5.
278
TMS I.i.5.6.
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talvez, impossível. Podemos aspirar à ela, podemos nos modelar de acordo com
ela, mas o material de que somos feitos dificilmente suporta um molde tão ditoso.
É por isso que Smith fala em dois padrões de acordo com os quais o
espectador imparcial pode julgar o caráter e a conduta: o primeiro “é a idéia de
exata conveniência e perfeição, à medida que cada um de nós é capaz de
compreender essa idéia”; “o outro é aquele grau de aproximação a essa idéia que é
comumente obtido no mundo”
279
. O homem virtuoso e sábio busca dirigir sua
atenção para o primeiro padrão, modelando-se por ele:
“He endeavors as well as he can, to assimilate his own character to this archetype
of perfection. But he imitates the work of a divine artist, which can never be
equaled. He feels the imperfect success of all his best endeavors, and sees, with
grief and affliction, in how many different features the mortal copy falls short of
the immortal original. He remembers, with concern and humiliation, how often,
from want of attention, from want of judgment, from want of temper, he has, both
in words and actions, both in conduct and conversation, violated the exact rules of
perfect propriety; and has so far departed from that model, according to which he
wished to fashion his own character and conduct”
280
.
O ponto não é que a imparcialidade e a conveniência sejam impossíveis em
certas ocasiões, mas sim que a common weakness of human nature
281
impede o
controle pleno das situações e de si próprio que seriam necessários para a
conveniência absoluta. A conveniência em todas as situações, a virtude perfeita,
exigiria nada menos do que um ser perfeito. Na realização do ideal estético do
homem perfeitamente virtuoso, a atividade demiúrgica da imaginação esbarra
sempre na qualidade de seu próprio material.
3.5.
A verdadeira felicidade e a vida dos imperfeitamente virtuosos
A ética smithiana é uma ética da felicidade. “Felicidade” (happiness) é um
termo utilizado com freqüência na TMS. Adam Smith diz que a “felicidade da
humanidade” “parece ter sido o propósito original do Autor da natureza” quando
criou os homens; e que, junto com a “ordem do mundo” e a “perfeição da natureza
humana”, ela é o grande fim de todas as leis da natureza e dos homens
282
. Smith
concorda também com a definição estóica segundo a qual a felicidade “consiste
279
TMS VI.iii.23; Cf. I.i.5.9.
280
TMS VI.iii.25.
281
TMS I.ii.1.12
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em tranqüilidade e gozo”
283
. Admite ainda que os estóicos estavam “muito
próximos da verdade” quando diziam que “entre uma situação permanente e outra,
não há, em relação à verdadeira tranqüilidade, nenhuma diferença essencial”; e
que “a grande fonte da miséria e das desordens da vida humana parece residir em
se sobreestimar a diferença entre uma situação permanente e outra”
284
.
Contudo, como vimos, Adam Smith discordava profundamente do meio
recomendado pelos estóicos para se atingir e manter a felicidade: a apatia, ou a
indiferença à fortuna. A crítica de Smith ao estoicismo, orientada por um
reconhecimento de que estamos inevitavelmente atados ao mundo sensível, é
congruente com a sua teoria dos sentimentos morais, e também com a sua
discussão da práxis teórica na History of Astronomy. O problema reside em como
conciliar a concepção estóica da felicidade como tranqüilidade e o
reconhecimento de que a existência humana, especialmente sob condições
modernas, caracteriza-se pelo movimento incessante, sem recorrer à indiferença
estóica. Como conciliar “movimento” (nossa condição) com a estabilidade” que
a tranqüilidade pretendida implica? De fato, este mundo é um caos de aparências
discordantes e nós somos vãs criaturas das paixões. No entanto, sugere Smith, a
resposta epistemologica e eticamente correta a ele não é a sua recusa, mas um
engajamento apropriado de nossos sentimentos e de nossa imaginação, através do
qual nos esforçamos, à medida de nossas limitadas capacidades, para realizar nele
“harmonias”.
se discutiu, no primeiro capítulo, a resposta de Smith ao problema do
conhecimento: submetendo-os a narrativas causais, ordenamos os fenômenos da
natureza e pacificamos a imaginação teórica. Desde então, estive considerando a
ética smithiana, sua visão contextualista do ajuizamento moral, a operação da
imaginação simpática, o ideal do espectador imparcial e a teoria da virtude como
“conveniência”. Smith julgava que a estabilidade em movimento da conveniência
seria possível através de um ordenamento adequado da imaginação e das emoções
282
TMS III.5.7-9.
283
A passagem continua assim: “without tranquility there can be no enjoyment; and where there is
perfect tranquility there is scarce anything which is not capable of amusing” (TMS III.3.30).
Convém ainda lembrar que: “...the repose and tranquility of the imagination is the ultimate end of
philosophy...” (Astronomy, IV.13).
284
Continua: “Avarice over-rates the difference between poverty and riches; ambition, that
between a private and a public station; vain-glory, that between obscurity and extensive
reputation” (TMS III.3.30-31).
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morais. O ideal ao qual aspirar seria aquele do homem perfeitamente virtuoso que
se move graciosamente no mundo. Toda a perturbação e movimento da existência
não são capazes de afetar a tranqüilidade desta figura ideal, pois o seu fino ajuste
interno e percepção apurada para as situações morais lhe fornecem sempre as
respostas adequadas, despertando admiração ao espectador imparcial. O homem
virtuoso o resiste à correnteza fundeando-se com a âncora da Lei, nem lhe
escapa mirando as esferas celestes, ele simplesmente flutua sobre a superfície da
existência.
No entanto, Smith reconhece que o ideal do homem virtuoso, ou da
conveniência absoluta, é praticamente impossível, pelo menos, para a bulk of
mankind. A grande maioria de nós é demasiado influenciada pela parcialidade do
amor-de-si e por uma perceão inadequada das situações morais. Temos
dificuldade em sentir e ver as coisas como o espectador imparcial em todas as
situações, pois nos falta um controle absoluto de nossas próprias emoções e
imaginação. Porém, o estamos completamente perdidos. Uma educação moral
que envolva uma disciplina para o respeito a regras morais (as quais substituem
em certos casos a ausência da sensibilidade apropriada), combinada com
instituições sociais adequadas, pode nos conduzir a uma ordem social
razoavelmente ordenada e harmônica, receptiva e encorajadora de formas menos
“elevadas” de virtude e de felicidade. Para compreender a utopia “realista” de
Smith para os imperfeitamente virtuosos, devemos considerar o quadro da vida
social moderna que se esboça na TMS e se complementa na The Wealth of
Nations. Esse quadro envolve uma vindicação de objetivos mundanos como o
acúmulo de bens externos
285
.
A existência moderna, segundo Smith, é particularmente marcada pelo
insaciável “desejo de melhorar a própria condição”. Entre o nascimento e a morte,
diz ele na WN, ninguém está “tão perfeita e completamente satisfeito com a sua
própria situação, de modo a não possuir algum desejo de alterá-la ou melhorá-
la”
286
. Adam Smith vê as pessoas como continuamente insatisfeitas com suas
285
A clássica análise histórica da vindicação das atividades associadas ao ganho material no
pensamento ocidental moderno é a de Albert Hirschman (1979). Hirschman se concentra nos
argumentos políticos mobilizados nos séculos XVII e XVIII a favor do comércio.
286
Continua: “An augmentation of fortune is the means by which the greater part of men propose
and wish to better their condition. It is the means the most vulgar and the most obvious” (WN
II.iii.28).
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posições sociais, sempre desejosas de modificá-las através do acúmulo de bens da
fortuna: bens externos, riqueza, reputação e poder. Este é um tema comum à WN
e à TMS. Na TMS, Smith o discute dentro da estrutura geral da simpatia,
manifestando uma visão ambivalente a respeito das qualidades morais de uma
vida dedicada à prosperidade. Se, de acordo com o ponto de vista estóico, o
nenhuma diferença essencial entre uma situação e outra em relação à verdadeira
felicidade, o desejo de melhorar a própria condição é marcado por uma
“irracionalidade” fundamental. Com efeito, na busca pela riqueza, poder e
preeminência submetemo-nos a diversas mortificações, sacrificamos liberdade,
segurança e tranqüilidade imediatas e nos condenamos a uma existência de
trabalho extenuante (toil) e ansiedade
287
. Porque, então, fazemos isso? A resposta
é simples: por amor à distinção, por vaidade. O desejo de melhorar nossa condição
origina-se da vaidade
288
.
Toda “faina e o torvelinho (bustle) deste mundo”, associados à ambição e à
cobiça, não resultam da obrigação de se suprir as “necessidades da natureza”, mas
sim do desejo de se ser o objeto da “atenção do mundo”
289
. E o mundo observa
com complacência os ricos e os poderosos. Tudo isso é o resultado de uma grande
ilusão da imaginação. A admiração com que a humanidade observa os ricos e os
poderosos deriva de uma proclividade natural da imaginação para simpatizar com
a alegria. O engano reside em associarmos à situação dos grandes uma idéia de
felicidade e tranqüilidade irrestritas
290
. Trata-se, segundo Smith, de um erro que
cometemos habitualmente na vida cotidiana. A despeito de tudo o que a “razão” e
a “experiência” podem nos dizer em contrário, os “preconceitos da imaginação”
associam a esse estado uma felicidade superior a qualquer outra”
291
, e por isso
tendemos a admirar os ricos e os poderosos e a simpatizar com todas as suas
paixões.
287
TMS I.iii.2.1; Cf. também a trágica história do “jovem pobre e ambicioso” (TMS IV.i.8).
288
“To be observed, to be attended to, to be taken notice of with sympathy, complacency, and
approbation, are all the advantages we can propose to derive from it [that great purpose of human
life which we call bettering our condition]. It is the vanity, not the ease, or the pleasure, which
interest us” (TMS I.iii.2.1).
289
TMS I.iii.2.1
290
“When we consider the condition of the great, in those delusive colors, in which the
imagination is apt to paint it, it seems to be almost the abstract idea of a perfect and happy state.
(...). We feel, therefore, a peculiar sympathy with the satisfaction of those who are in it” (TMS
I.iii.2.2).
291
TMS I.iii.2.2.
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Este fenômeno é estético. A reverência que os espectadores concedem aos
ricos e poderosos é “desinteressada”
292
. A imaginação sente-se atraída pela beleza
que associa à vida dos grandes, por todos os “enfeites inúteis” (trinkets of
frivolous utility) que os cercam (de relógios e roupas até palácios, carruagens e
jardins), os quais, acredita-se, contribuem para a felicidade e tranqüilidade de seus
possessores
293
. Empenhamo-nos em também possuir esses belos e inúteis objetos,
porque ansiamos pela harmonia da concordância entre nossos sentimentos e os da
humanidade; desejamos menos o conforto por eles proporcionado do que o olhar
admirado dos espectadores. Adam Smith insiste que tudo isso não passa de um
engano, uma associação falaciosa entre riqueza, poder, e felicidade, no entanto, é
um engano comum, que a própria vida em sociedade nos impõe: “para aquele que
vivesse em uma ilha deserta”, talvez fosse matéria de dúvida se um palácio, ou
uma coleção de pequenas conveniências, pudessem contribuir mais para sua
felicidade e gozo; porém, se se vive em sociedade, é difícil o fazer uma tal
associação, pois, nessa situação, diz Smith, “sempre levamos mais em conta os
sentimentos do espectador do que os da pessoa diretamente envolvida”
294
, e os
espectadores são naturalmente parciais à riqueza e ao poder.
O argumento é intricado porém simples: enquanto espectadores, admiramos
os ricos e os poderosos, pois associamos (erroneamente) à sua condição uma idéia
de beleza e felicidade ilimitada; enquanto agentes, dedicamo-nos à dura e incerta
vida de bettering our condition, pois ansiamos pelo prazer da simpatia mútua, da
concordância com os sentimentos do espectador. Tudo isso se funda em uma
ilusão, contrária à razão e à filosofia, embora não à natureza: e é certo que a
natureza nos iluda (imposes upon us) desta forma. É este engano que origem e
põe em movimento contínuo a indústria da humanidade”
295
. Essa inversão no
292
“The great mob of mankind are the admirers and worshippers, and, what may seem more
extraordinary, most frequently the disinterested admirers and worshippers, of wealth and greatness
(TMS I.iii.3.2).
293
“If we consider the real satisfaction which all these things are capable of affording, by itself and
separated from the beauty of that arrangement which is fitted to promote it, it will always appear in
the highest degree contemptible and trifling. But we rarely view it in this abstract and
philosophical light. We naturally confound it in our imagination with the order, the regular and
harmonious movement of the system, the machine or oeconomy by means of which it is produced.
The pleasures of wealth and greatness, when considered in this complex view, strike the
imagination as something grand and beautiful and noble, of which the attainment is well worth all
the toil and anxiety which we are so apt to bestow upon it” (TMS IV.i.8-9 – grifos meus).
294
TMS IV.i.8.
295
“It is this which first prompted them to cultivate the ground, to build houses, to found cities and
commonwealths, and to invent and improve all the sciences and arts, which ennoble and embellish
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argumento, tipicamente smithiana, não deve ser entendida como um esforço para
justificar um comportamento que se poderia entender como vicioso pelos seus
benefícios socioeconômicos remotos, visto que isso seria contraditório com a
visão contextualista da ética, discutida no início do capítulo. Observando as coisas
de um ponto de vista abstrato, Adam Smith não comete o “erro do filósofo” de
confundir utilidade com virtude, nem elimina a distinção entre virtude e vício.
Smith não busca justificar eticamente, como Mandeville, “vícios privados” pela
consideração econômica abstrata de que são “benefícios públicos”
296
. O ponto é
que um engano não é um vício. Uma vida dedicada a melhorar a própria condição,
embora marcada por uma confusão a respeito dos verdadeiros fins, não
necessariamente é uma vida viciosa, e, por acréscimo, gera benefícios globais.
Trata-se, mais uma vez, de uma questão de moderação.
Adam Smith reconhece que a admiração dispensada à riqueza e ao poder
pode conduzir à “corrupção dos sentimentos morais”, e essa “tem sido a queixa de
moralistas de todas as épocas”
297
. Com freqüência, a virtude e a sabedoria são
abandonadas na busca por bens da fortuna. Isso acontece sobretudo nas camadas
sociais elevadas (superior stations of life). No entanto, Smith responde aos
“moralistas de todas as épocas” que o desejo de melhorarmos nossa condição não
é necessariamente contrário à virtude. Os caminhos da virtude e da fortuna podem
ser paralelos, especialmente nas middling and inferior stations of life: nessas
situações, a honestidade é a melhor política”, e “habilidades profissionais
sólidas”, associadas a uma conduta “prudente, justa, firme e moderada, raramente
falham em conduzir ao sucesso”. Nas camadas sociais médias e baixas, “pode-se,
em geral, esperar um grau considerável de virtude” entre os candidatos à
fortuna
298
.
Adam Smith vindica as paixões associadas à busca por bens da fortuna
contra a condenação clássica e cristã de que elas necessariamente destroem a
moderação. Não é errado preferir uma situação à outra, diz Smith, dialogando com
o estoicismo, “mas nenhuma delas merece ser buscada com o ardor apaixonado
human life; which have entirely changed the whole face of the globe, have turned the rude forests
of nature into fertile plains, and the trackless and barren ocean a new fund of subsistence, and the
great high road of communication to the different nations of the earth” (TMS IV.i.10). É na
continuação desta passagem que é feita a única menção àmão invivel” na TMS.
296
Cf. a crítica de Smith a Mandeville, TMS VII.ii.4.6-12.
297
TMS I.iii.3.1.
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que nos leva a violar as regras da prudência e da justiça”
299
. também uma
mediania para o desejo de melhorar a própria condição: a prudência. A prudência
é a principal virtude das paixões egoístas (selfish), e consiste no “tom” apropriado,
aprovado pelo espectador imparcial, em manifestá-las.
A prudência é discutida logo no primeiro capítulo da sexta parte da TMS,
dedicada a descrever o caráter das virtudes. A virtude comumente chamada
prudência diz respeito ao cuidado da saúde, da fortuna e da posição e reputação do
indivíduo, “objetos dos quais, supõe-se, dependem principalmente a sua felicidade
e o seu conforto nesta vida
300
. Segue-se, então, uma longa descrição do caráter
do “homem prudente”
301
: o homem prudente preza sobretudo a segurança, e não
se expõe a métodos arriscados para aumentar sua fortuna, fiando-se antes no
conhecimento e na habilidade em sua profissão, na assiduidade, indústria,
frugalidade e parcimônia com as quais a exerce. O homem prudente é, acima de
tudo, “sincero”; embora discreto e reservado, ele diz sempre a verdade, e sua
conversação, raramente brilhante ou animada, é simples e modesta. Sua
sensibilidade não se destaca pela delicadeza, mas ele é sempre capaz de manter
amizades, calmas, firmes e leais, com alguns poucos, bem escolhidos,
companheiros. O homem prudente irá cumprir seu dever público quando
convocado, mas, em geral, ocupa-se de seus próprios negócios e procura não se
intrometer em assuntos públicos, preferindo que outros os conduzam por ele;
tampouco se interessa pelo esplendor da glória. Ele vive dentro de seus meios e
está sempre disposto a sacrificar conforto e gozo presentes pela expectativa de
gozo e conforto ainda maiores no futuro. O homem prudente, enfim, “está
naturalmente contente com a sua situação, a qual, por acréscimos pequenos porém
contínuos, melhora diariamente”
302
.
Por todas estas modestas qualidades, “o homem prudente é sempre
amparado e recompensado com a inteira aprovação do espectador imparcial”
303
.
Esta aprovação é, porém, igualmente modesta. Embora a prudência, quando
dirigida “meramente para o cuidado da saúde, da fortuna, e da posição e reputação
298
TMS I.iii.3.5
299
TMS III.3.30.
300
TMS VI.i.5 – grifos meus.
301
Até o final do parágrafo: TMS VI.i.7-13.
302
TMS VI.i.12.
303
TMS VI i.11.
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do indivíduo”, seja sempre vista como uma qualidade respeitável, “e até, em certo
grau, agradável e amável”, ela jamais é considerada como uma das mais
“adoráveis” (endearing) e mais ilustres” (ennobling) virtudes: “ela merece
(commands) uma certa fria estima, mas não parece ter direito a (entitled to) um
amor ou a uma admiração ardentes”
304
. O contraste aqui é com uma forma mais
“elevada” de prudência, dirigida para propósitos mais grandiosos e nobres do que
o mero acúmulo de bens da fortuna. Fala-se, neste sentido, da prudência do
“grande general”, do grande estadista” e do grande legislador”, situações nas
quais a prudência vem acompanhada por outras virtudes mais esplêndidas.
“This superior prudence, when carried to the highest degree of perfection,
necessarily supposes the art, the talent, and the habit or disposition of acting with
the most perfect propriety in every possible circumstance and situation. It
necessarily supposes the utmost perfection of all the intellectual and of the moral
virtues. It is the best head joined to the best heart. It is the most perfect wisdom
combined with the most perfect virtue. It constitutes very nearly the character of
the Academical or Peripatetic sage, as the inferior prudence does that of the
Epicurian”
305
.
Esta prudência superior não é, certamente, para a bulk of mankind. Muito
distante do “sábio acadêmico ou peripatético”, a maior parte de nós, ocupada que
está com objetivos mundanos, pode, pelo menos, aspirar a se tornar o “sábio
epicurista”. O desejo de melhorar a própria condição através do acúmulo de bens
externos não é em si um vício, adequadamente moderado, pode até mesmo se
tornar uma virtude. Jamais será uma das virtudes mais admiráveis, certo, mas será
uma virtude ainda assim, e merecerá a total aprovação do espectador imparcial,
embora na forma de uma “fria estima”. É possível se ter virtude moral mesmo sem
se atingir a auto-perfeição. O espectador imparcial é sensível a nossas
imperfeições, e, provavelmente, julga a prudência vulgar de acordo com o padrão
da conveniência que comumente é obtida no mundo, e não segundo o padrão de
“exata conveniência e perfeição”
306
.
A vida do homem prudente, no sentido vulgar, será uma vida de trabalho
extenuante e ansiedade, marcada por um engano fundamental a respeito dos
verdadeiros fins, porém, o despida de valor (o “engano” da imaginação não
necessariamente conduz à “corrupçãodos sentimentos morais). Uma existência
304
TMS VI.i.14 – grifos meus.
305
TMS VI.i.15.
306
Cf. p. 114.
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122
prudente é uma existência “sincera” (no sentido de Trilling), voltada para conduta
prática da vida e para a realização de objetivos mundanos, materiais e sociais, dos
quais a sua felicidade depende. Esta é “boa vida moderna, de acordo com a
inversão ideológica discutida no primeiro capítulo: a vida decente e produtiva do
não-filósofo. Ela jamais irá alcançar o rígido padrão estóico de felicidade, mas,
reconsiderando-o, talvez esse padrão exija um preço alto demais para a frágil
natureza humana; afinal, nossa felicidade neste mundo, provavelmente o único,
depende também de bens da fortuna. No meio da “faina e torvelinho” do mundo, o
homem prudente serenamente persevera, tranqüilo e satisfeito com a melhora
gradual de sua condição social. Ele está em movimento, mas em paz.
O homem prudente é um tipo humano adequado a uma sociedade liberal e
comercial. O argumento da WN em favor de uma sociedade comercial livre (não-
mercantilista) se esclarece quando visto à luz das teses da TMS. Na WN, Adam
Smith, assumindo o ponto de vista abstrato e filosófico, discute quais instituições
seriam necessárias para garantir uma produção e uma distribuição sociais efetivas
e justas da riqueza, dentre as quais se encontra o comércio regulado pela justiça
comutativa. A ilusão da imaginação não precisa ser corrigida pela razão filosófica;
dentro de um quadro institucional adequado, as pessoas podem perseguir seus
objetivos mundanos, conduzidas pelo desejo, prudencialmente moderado, de
melhorarem suas condições, com resultados sociais razoavelmente satisfatórios.
Uma sociedade de pessoas dedicadas à melhoria de suas condições será uma
sociedade voltada para o progresso material e tecnológico. Porém, assim como a
prudência vulgar merece apenas a “fria estima” do espectador imparcial, esta
sociedade merece apenas o modesto louvor do filósofo smithiano. Como um bom
cético, Smith é sempre cuidadoso e ponderado em suas análises, preocupando-se
todo o tempo em considerar os aspectos contraditórios dos fenômenos e os
resultados imprevistos das ações humanas. A ambivalência de Smith em relação
ao progresso material e aos efeitos da difusão do “espírito comercial” é bem
conhecida e se manifesta com veemência na WN e nas suas Lectures in
Jurisprudence
307
. Pode-se dizer que o system of natural liberty da WN é uma
307
A WN começa com uma descrição encomiástica dos efeitos da divisão do trabalho na
promoção da riqueza global (livro I), e termina com uma consideração, tipicamente cética, dos
efeitos políticos, sociais e morais negativos da mesma (Livro V). Smith diz, p.ex., que o
“trabalhador pobre”, condenado a realizar operação repetitivas, “generally becomes as stupid and
ignorant as it is possible for a human creature to become. The torpor of his mind renders him, not
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utopia realista para os imperfeitamente virtuosos
308
. Parafraseando a glosa
smithiana de Sólon: não é o melhor cenário, mas é, talvez, “o melhor que as
pessoas podem suportar”
309
.
only incapable of relishing or bearing a part in any racional conversation, but of conceiving any
generous, noble and tender sentiment, and consequently of forming any just judgment concerning
many even of the ordinary duties of private life. (...). His dexterity at his own particular trade
seems, in this manner, to be acquired at the expense of his intellectual, social and martial virtues.
But in every improved and civilized society this is the state into which the labouring poor, that is,
the great body of people, must necessarily fall, unless government takes some pains to prevent it”
(WN V.i.f.50). Passagens semelhantes encontram-se também nas LJ: “These are the disadvantages
of a commercial spirit. The minds of men are contracted and rendered incapable of elevation,
education is despised or at least neglected, and heroic spirit is almost utterly extinguished. To
remedy these defects would be an object worthy of serious attention” (LJ(B) 333). Um dos
possíveis remédios discutidos no livro V da WN é a obrigação pelo soberano ou pela república de
que a “common people” receba uma educação básica em leitura, escrita e aritmética, parcialmente
sob custeio público (WN V.i.f.52-54).
308
“What institution of government could tend so much to promote the happiness of mankind as
the general prevalence of wisdom and virtue? All government is but an imperfect remedy for the
deficiency of these” (TMS IV.2.1).
309
TMS VI.ii.2.16. Estive lidando aqui com a filosofia moral de Adam Smith, uma discussão mais
aprofundada da sua visão política está fora do escopo desta dissertação. Remeto o leitor
interessado a Haakonseen (1989); Griswold (1999); e ao excelente Winch (1978).
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4
Conclusão
“Mas estabeleçamos de antemão como ponto de
consenso que toda a teoria da conduta se limitará a
um delineamento e não a um sistema preciso, (...).
Não nada de estável ou invariável em torno de
matérias relativas à conduta e à conveniência, não
mais do que em torno de matérias de saúde. E se
isso for verdadeiro no que tange à teoria geral da
ética, ainda menos possível será a precisão rigorosa
ao se tratar casos particulares de conduta, visto que
estes não se enquadram em nenhum conjunto de
preceitos de ciência ou [mesmo] de uma tradição
profissional, tendo os próprios agentes que julgar o
que se ajusta às circunstâncias de cada
oportunidade, tal como é o caso da arte da medicina
ou da navegação”. (Aristóteles, Ética a Nicômaco).
À guisa de conclusão gostaria de retomar o argumento inicial e rememorar o
percurso. Foi dito na introdução que esta dissertação tinha por objetivo contribuir
para a compreensão da unidade sistemática da reflexão de Adam Smith, ajudando
assim a produzir uma imagem mais complexa deste filósofo escocês do século
XVIII do que aquela que se tornou hegemônica nos mais de duzentos anos que se
seguiram à sua morte, a de “pai da Economia”. Para este propósito, considerei
necessário investir em uma análise conjunta do texto o publicado de Smith em
história intelectual, The History of Astronomy, e de sua obra em ética, The Theory
of Moral Sentiments. Como auxílio à investigação, investi também na
compreensão da relação entre o pensamento de Smith e de David Hume,
incorporando textos do Treatise of Human Nature e do Enquiry concerning
Human Understanding à discussão.
A idéia básica deste trabalho é a de que o pensamento de Adam Smith se
constitui como uma dialética entre o reconhecimento da imperfeição humana e
uma teoria do espírito que torna a atividade do homem uma busca incessante e
espontânea pela harmonia, pela ordem e pela beleza. Este impulso “estético”,
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125
segundo o chamei, é o que, atuando sobre a imaginação, nos mobiliza a
naturalmente perseguir uma existência regular e harmônica e a progredir do ponto
de vista cognitivo, moral e material. No entanto, embora o espírito tenda
naturalmente à regularidade, uma situação absolutamente regular nunca se realiza,
em função da própria imperfeição do homem. E, segundo Smith, é bom que as
coisas sejam assim, pois uma situação absolutamente simétrica - como a vida
conforme ao logos cósmico do sábio estóico ou o domínio puro do entendimento -
seria insuportável e inadequada a criaturas humanas. O “ideal” o é o ideal. É na
visualização e consecução de um equilíbrio capaz de reconhecer e incorporar
nossas deficiências, o “melhor possível”, que nos auxilia o filósofo smithiano.
Uma das limitações essenciais que enfrentamos é aquela do conhecimento.
Seres imperfeitos só podem aspirar a um saber parcial. O preceito básico do
empirismo (só se pode conhecer aquilo que se experimenta fenomenicamente)
decorre, em Hume e Smith, do reconhecimento cético das limitações da razão
humana. Como coloca Hume, na introdução ao Treatise (condenando, por , toda
a metasica e teologia tradicionais), não pode haver conhecimento a respeito das
qualidades últimas e originais” (ultimate original qualities), i.e., além das
aparências” não há saber possível.
A nova ciência da natureza humana de Hume partia de uma crítica radical à
metafísica tradicional e à epistemologia racionalista. No entanto, vimos que,
embora rejeitasse, valendo-se de argumentos céticos, o princípio apriorístico da
epistemologia racionalista de que o conhecimento se faz pelo acesso a uma
realidade além dos sentidos, Hume não concluía pela incognoscibilidade do
mundo. Sabe-se, pelo menos desde o trabalho clássico de Norman Kemp Smith
(1941), que a filosofia de Hume não se resume ao ceticismo, constituindo-se antes
como uma alternativa filofica construtiva à metafísica tradicional. A alternativa
humeana, sua ciência empírica da natureza humana, é, antes de tudo, positiva.
Hume estava essencialmente interessado em mostrar como o Homem, a despeito
do ceticismo, e sem o recurso à Razão dos filósofos, era capaz de conduzir uma
existência razoavelmente ordenada e produtiva, sendo inclusive capaz de
conhecer, embora este conhecimento jamais pudesse ultrapassar o limite dos
fenômenos.
No plano da filosofia do conhecimento, a alternativa de Hume seguia a
démarche baconiana, a qual, invertendo os valores epistemológicos, fizera do
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126
“saber da experiência” o meio para a superação relativa de nossas limitações. O
elogio de Francis Bacon das ciências empíricas e experimentais acompanhava-se
de uma crítica mordaz ao ideal clássico da theoria, da apreensão da ordem do
cosmo pela contemplação, visto como produto da vaidade e do orgulho humanos.
Segundo Bacon, deveríamos abandonar o quimérico, presunçoso e inútil saber
metafísico, e dirigir nossos esforços para o conhecimento indutivo da experiência,
esse sim adequado às nossas capacidades. Rendendo “frutos” concretos, o saber
da experiência seria ainda capaz de atingir o único objetivo relevante à atividade
humana, aquele que toda ciência deveria se propor: aliviar e melhorar a condição
dos homens”
310
.
Ao propor, na introdução ao Treatise, reformar a filosofia pela extensão do
todo experimental aos assuntos “morais(relativos à natureza humana), Hume,
argumentei, seguira o mesmo critério que Bacon empregara em sua crítica ao ideal
contemplativo clássico: a filosofia deveria se afastar das queses tradicionais da
metafísica, a respeito das quais não se pode avançar com segurança, e, fazendo-se
ciência empírica, contribuir para aliviar e melhorar a condição dos homens.
Conhecer os princípios da natureza humana em sua manifestação fenomênica
seria, segundo Hume, o caminho mais adequado para aprendermos a melhor
maneira de lidar com nossas insuficiências, e, maximizando nossos escassos
recursos, contribuir para a melhoria da infausta condição humana. Discuti ainda o
reconhecimento manifesto por Hume de que o interesse filofico/científico e o
interesse prático, ligado à conduta ordinária da vida, nem sempre coincidem: ao
invés de ajudar, a filosofia e o entendimento podem, muitas vezes, prejudicar a
conduta da vida.
Estes temas estão presentes no primeiro capítulo, o qual se dedicou a um
exame da relação entre as filosofias de Hume e Smith. Sugeri que Smith estaria
em seu texto de juventude, The History of Astronomy, trabalhando dentro das
linhas do projeto humeano da ciência da natureza humana, assumindo suas
diretrizes centrais e sua concepção da tarefa filosófica. Em acordo com esta
concepção, a History of Astronomy de Smith seria um esforço de oferecer uma
explicação empírica, em termos de uma psicologia e uma sociologia, para a práxis
teórica. Considerei necessário, ainda no primeiro capítulo, investir numa
310
Bacon apud Taylor, 1989, p. 213.
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compreensão mais aprofundada da filosofia de Hume, discutindo pontualmente o
seu argumento a respeito da noção de causalidade e de nossa crença num mundo
externo e independente. Tal passo foi importante não apenas em função do
paralelismo evidente entre ambos os argumentos e aquele da History of
Astronomy, mas também, e sobretudo, para que se pudesse explorar a afinidade
fundamental entre a teoria do espírito (mind) de Hume e a de Smith.
Ao criticar a noção tradicional de causalidade como um princípio
substantivo, inerente às coisas, ou como o resultado de uma intervenção divina
direta no mundo, Hume faz da causalidade uma mera determinação que
experimentamos na imaginação a partir da conjunção entre uma regularidade na
experiência e a atuação de certos princípios da natureza humana, com destaque
para o “hábito”. Causa e efeito entre objetos são, para Hume, relações que nós, de
certa forma, produzimos na imaginação, i.e., são ficções em que acreditamos. A
imaginação é também fundamental para a nossa crença na existência de um
mundo externo, objetivo, e em nossa identidade pessoal. Graças à imaginação, à
sua capacidade de unificar os fenômenos através de certas ficções necessárias, é
possível ao homem superar a contingência dos sentidos e introduzir uma
sistematicidade na experiência, um “sistema de realidades”. Na concepção de
Hume, a imaginação é uma capacidade criativa e sintética do espírito humano, que
permite produzir ordem e sistematicidade na experiência. Adam Smith se apropria
da teoria da imaginação de Hume, desenvolvendo-a. Na History of Astronomy, a
imaginação é continuamente mobilizada por uma busca espontânea por ordem,
coerência e concordância no mundo. A satisfação dessa busca, na forma de teorias
científicas/filosóficas capazes de explicar o movimento dos fenômenos na
natureza, gera uma espécie de prazer desinteressado no espírito, chamado
tranilidade”, enquanto que a sua frustração carrega consigo “espanto” e
“surpresa”, e até, se muito prolongada, pode provocar desvario e delírio”.
Porém, a atuação da imaginação nem sempre é positiva, afinal de contas, a
sua característica essencial é a “inconstância”, i.e., a sua capacidade de associar e
dissociar as percepções ao acaso. Considerei, também no primeiro capítulo, uma
ambivalência na apreciação da imaginação por Hume. Por um lado, a imaginação
é a faculdade através da qual somos capazes de superar a contingência dos
sentidos, submetendo os fenômenos ao regime do entendimento, i.e., às relação
estáveis de causa e efeito; por outro, a volubilidade essencial da imaginação se
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deixa manifestar na produção espontânea de certas ficções espúrias, “ilusões”, ou
enganos”. Algumas dessas ilusões, tais como a superstição” e as “ficções da
metafísica”, são perniciosas, e devem ser combatidas pela razão e pela filosofia.
No entanto, outras ilusões da imaginação, como a crença num mundo externo e na
identidade pessoal, são indispensáveis à conduta regular na vida cotidiana, e não
podem ser “esclarecidas” pela razão. Sem a crença num mundo externo e na
identidade própria (“enganos”, do ponto de vista da razão), não haveria nem
mundo nem sujeito. A frágil trama da vida come-se também de ilusões. O
reconhecimento da imprescindibilidade de muitas delas leva ao dilema de Hume:
até que ponto ceder-lhes.
Embora recusada, e continuamente combatida, a contingência sempre
retorna, na forma de ilusões, em função da própria inconstância de nossas
faculdades. A regularização a que tende o espírito não pode suprimi-la por
completo, sugerindo que ela talvez seja um elemento coextensivo à existência. O
homem é um ser contingente. Informada por nossas próprias limitações, a filosofia
cética de Hume é, fundamentalmente, uma lição de moderação: o filósofo cético,
cônscio dos perigos do julgamento apressado e dogmático, enfatiza a importância
da “dúvida e da suspensão do julgamento (...) de confinar as investigações do
entendimento a limites muito estreitos, e de renunciar a toda especulação que não
se restrinja aos limites da vida comum e da prática”
311
. A filosofia de Adam Smith
orienta-se pelo mesmo principio: moderão. Devemos apreender a conviver com
nossas imperfeões.
O segundo capítulo dedicou-se ao exame da obra de Smith em Ética, The
Theory of Moral Sentiments. O argumento desta dissertação sugeriu-se a partir de
sua leitura. A TMS é um livro extremamente difícil de se lidar, mas não pela
dificuldade de suas deduções e raciocínios, nem pela obscuridade de sua
linguagem. Muito pelo contrário, Adam Smith, tendo sido professor de retórica e
belas-letras, era bastante atento a questões estilísticas. Evitando o uso de
tecnicismos, todos os seus escritos denotam a mesma preocupação constante com
a clareza discursiva. A dificuldade do texto reside antes em se visualizar o seu
argumento, uma vez que a TMS se baseia em uma concepção bastante original da
Ética.
311
EHU V.1, p. 41.
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Tradicionalmente, as filosofias morais ocidentais constituem-se como
doutrinas normativas universais, teorias do que é certo ou errado fazer
universalmente; e, em geral, são sustentadas por sistemas metasicos. Com efeito,
as três principais escolas da Antiidade subordinavam suas doutrinas éticas a
sistemas metafísicos
312
. A ética de Platão, tal como exposta na República, está
diretamente ligada à teoria das Formas; enquanto que o estoicismo antigo
fundava-se em uma teologia e em uma cosmologia unitárias que, identificando
Deus e o universo, autorizavam a perfeita racionalidade do último. Segundo estas
duas escolas, a vida correta seria aquela que se conduz de acordo com a sabedoria
filofica, i.e., de acordo com a percepção da ordem eterna do ser e do cosmo.
Mesmo a ética aristotélica, que, criticando a instrumentalidade prática do saber
filofico, se apresenta como um desafio à ética platônica e estóica, é também
metafisicamente fundada, esclarecendo-se à luz das doutrinas expostas no tratado
da Metafísica
313
. as éticas modernas, pelo menos em suas duas vertentes
dominantes, utilitarista e kantiana, são deontológicas, i.e., são éticas do dever.
Embora mais céticas em relação a teorias metafísicas, e bastante distintas entre si,
as éticas modernas têm como preocupação comum estabelecer o critério último e
fundamental da ação moral.
Indiferente a questões metafísicas e avessa à deontologia moderna, a visão
de Adam Smith da filosofia moral era bastante distinta. Nenhuma metafísica da
moral é discutida na TMS, nem ela se subordina a um sistema metafísico
previamente articulado. Tampouco a investigação se inicia com a questão
kantiana, o que devo fazer?”, respondendo-a com uma Lei moral, derivada da
razão. Embora tenha lugar para “regras morais” e para a “consciência”, a ética de
Smith não é, como a kantiana, uma ética do dever, que estabelece como critério
último da ação moral um imperativo categórico, necessário, objetivo e
universalmente válido. Especulo que Smith também não se interessaria muito pela
312
Adam Smith discute as três escolas em sua história das sistemas de filosofia moral, na sétima e
última seção da TMS. É notável, no entanto, que a discussão das doutrinas éticas omita as
doutrinas metafísicas. Smith procede no debate de seus predecessores como se a ética tivesse sido
uma disciplina isolada da metafísica. Em geral, os comentários de Smith a respeito de assuntos
metafísicos são negativos (Cf. WN V.I.III.ii, p. 725-726). Veja-se também a crítica de Smith à
teoria platônica das Idéias na History of Ancient Logics (EPS; p.125). A respeito da relação de
Smith com a tradição clássica recomendo o recente trabalho de Gloria Vivenza, “Adam Smith and
the Classics” (2001).
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discussão kantiana do caráter numenal da liberdade. Criticando, como vimos, o
princípio conseqüencialista em que se baseia o utilitarismo, Smith mostra-se
também avesso a esta linha.
Enfim, a TMS não é nem uma teoria a respeito dos princípios de uma vida
conforme à sabedoria filosófica
314
nem uma ética deontológica. O leitor que
percorrer suas páginas não i encontrar em lugar algum um conjunto de normas e
valores prescritivos, uma lei moral de validade universal. Ao contrário, o que se
encontra na TMS é uma recusa radical da idéia de que a norma da conduta moral
possa ser sistematizada e determinada a priori. A razão fundamental desta recusa
reside no reconhecimento da limitação do conhecimento humano e da incerteza
em que nossas vidas estão envolvidas. Porque o saber humano é sempre parcial,
o somos capazes de conceber o Bem universal, e, em conseqüência, muito
menos de orientarmos nossas condutas por ele
315
. Isso não significa que a
moralidade deva ser completamente improvisada e arbitrária, guiada por mero
capricho, mas sim que o certo e o errado não podem ser decididos a priori, de
maneira independente de um conhecimento particular, continuamente renovado de
situações e ações concretas. O filósofo que teoriza em ética não pode perder de
vista a maneira como as pessoas, no intercâmbio social ordinário, de fato,
313
O brilhante comentário de Pierre Aubenque (2003) demonstra que a teoria ética da prudência
não se dissocia das doutrinas metafísicas de Aristóteles. Há, porém, semelhanças estruturais
notáveis entre a ética de Smith e a aristotélica (Cf. Griswold, 1999).
314
É principalmente neste ponto que a ética smithiana e aristotélica se aproximam. Sabe-se que o
conceito aristotélico de prudência (phronêsis), central à sua ética, se distingue do platônico na
medida em que se afasta decisivamente da noção próxima de sabedoria (sophia) (Cf. Aubenque,
2003; pps. 21-55). Platão, desenvolvendo a teoria socrática da virtude-ciência, aproximou
phronêsis e sophia, fazendo da ciência da Idéia a norma e o motor da ação reta. Ao dissociar os
dois conceitos, Aristóteles não estaria criticando o privilégio platônico (e grego clássico, em geral)
da contemplação, do saber filosófico, mas sim a sua instrumentalidade prática. Baseando-se em
uma ontologia e uma cosmologia da continncia, i.e., em sua visão da mutabilidade do mundo
sub-lunar e da imperfeição do homem, Aristóteles estabelecia uma distinção entre um saber divino
(sophia), voltado para as coisas imutáveis e necessárias, e um saber humano (phronêsis), dirigido
para assuntos relativos à conduta num mundo que se move incessantemente. O conhecimento do
Bem eterno e imutável, embora excelso, seria perfeitamente inútil para a conduta prática.
Enquanto seres imperfeitos, infinitamente distantes de Deus, presos a um mundo sempre mutável,
deveríamos agir visando um bem também variável, um bem que precisaria ser localizado a cada
momento. É na visualização e consecução deste bem humano que nos auxilia o saber prudencial,
constituindo-se como um saber para a prática. A ética de Smith é uma ética voltada para prática, e
envolve também um crítica à instrumentalidade do saber filosófico. Esta crítica, por sua vez, está
igualmente ligada a uma concepção da imperfeição humana, embora Smith, ao contrário de
Aristóteles, não a tenha sistematizado em um tratado metafísico.
315
“Because of the individuality and, not least the uncertainty of man’s life, it is impossible to
formulate a universal idea of the highest good or, more generally, the good life” (Haakonssen,
2007; p.ix).
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percebem e julgam moralmente
316
. A visão de Smith é que a filosofia moral deve
estar situada na compreensão moral ordinária. Segundo Smith, nós estamos, na
convincia social cotidiana, continua e espontaneamente observando uns aos
outros e julgando nossos comportamentos. Ao vermos uma ação específica, um
certo sentimento, ou um caráter determinado, dizemos que foram, naquela
situação percebida, “virtuosos” ou “viciosos”, “morais” ou “imorais”, certos ou
errados”. É em cima desta experiência prática, e dos valores que são aí
articulados, que o filósofo deve teorizar, buscando formar uma concepção a
respeito de como as pessoas podem viver juntas e em harmonia.
Mas o que é, então, a TMS? Em uma frase: é uma ética empiricista da
virtude, de inspiração clássica, fundada em uma teoria humeana da imaginação. A
primeira seção do segundo capítulo se dedicou a responder esta pergunta de
maneira menos concisa, discutindo a relação entre a forma e o conteúdo do livro.
Convém lembrar algumas das conclusões. Seguindo a orientão da nova ciência
da natureza humana, Smith julgava que a tarefa explanatória era a principal tarefa
de uma filosofia moral. Isso significa que uma teoria ética deve ser capaz de
oferecer uma explicação empírica para aquelas práticas que cotidianamente
chamamos “morais”. A TMS apresenta-se então como uma investigação a respeito
dos princípios segundo os quais os homens julgam as ações e os sentimentos na
vida comum. Para este propósito, a teoria de Adam Smith emprega uma
psicologia e uma sociologia: resumidamente, ela nos diz que os ajuizamentos
morais dependem das percepções simpáticas de espectadores. A “simpatia”,
conceito central da teoria, é, segundo Smith, um ato da imaginação. Através da
imaginação somos capazes de perceber as outras pessoas, e nós mesmos, como
unidades coerentes, conectando suas respostas ao mundo externo, suas ações e
sentimentos, em uma narrativa, uma “história”. Então, enquanto espectadores
críticos dessas narrativas, julgamos a sua racionalidade, atribuindo aos feitos e
sentimentos das personagens os predicativos “moral”, “imoral”, “virtuoso,
“vicioso”. Essa percepção e essa avaliação são, segundo Smith, coisas que
fazemos o tempo todo na vida social.
316
“Let it be considered (...), that the present inquiry is not concerning a matter of right, if I may
say so, but concerning a matter of fact. We are not at present examining upon what principles a
perfect being would approve of the punishment of bad actions; but upon what principles so weak
and imperfect a creature as man actually and in fact approves it” (TMS II.i.5.10).
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Embora a descrição empírica seja a tarefa central da filosofia moral, o livro
de Adam Smith manifesta também uma intenção normativa. A normatividade da
TMS é, porém, bastante, indireta e de difícil visualização, mesmo porque não se
constitui como um código explícito. A TMS advoga, segundo a distinção
estabelecida por Foucault em sua história da moralidade no Ocidente, uma moral
orientada para a ética” (para a prática ética) e não uma moral “orientada para o
código
317
. Com efeito, uma enorme ênfase é colocada no cultivo apropriado da
imaginação e dos sentimentos nas e para as relões. Sentir, perceber, julgar e se
conduzir da maneira correta no exercício da sociabilidade e na formação da
subjetividade, i.e., na relação que se estabelece com os outros e consigo mesmo, é
o próprio cerne da TMS. Como, porém, saber o que é “correto”? Tornando-nos
espectadores imparciais”, diz Smith. A normatividade da TMS se revela na
recomendação da razão prática” do espectador imparcial. Na verdade, a
normatividade se manifesta ainda antes, estando embutida nos próprios
parâmetros da fenomenologia” da vida moral mobilizada por Smith: na
dicotomia agente-espectador. Como disse acima, Smith nos via como
continuamente observando uns aos outros na vida cotidiana. Neste jogo social
especular nós nos percebemos como personagens dentro de narrativas. É, porém,
enquanto espectadores e não enquanto personagens destas narrativas que, de
acordo com Smith, avaliamos e julgamos as ações e os sentimentos uns dos outros
- e é assim que deve ser. O espectador imparcial representa, na teoria smithiana,
uma posição de observação ideal para o ajuizamento moral; “ideal” simplesmente
porque eqüidistante de todas as demandas particulares. Trata-se de uma posição
pública, transparente, e portanto neutra. O espectador imparcial encarna uma certa
atitude” em relação a si mesmo e aos outros. Uma atitude ao mesmo tempo
simpaticamente engajada, no sentido de emocional e imaginativamente
mobilizada na percepção das distintas “narrativas morais”, e suficientemente
317
“...On peut bien concevoir des morales dans lequelles l’élément fort et dynamique est à
chercher du côté des formes de subjectivation et des pratiques de soi. Dans ce cas, le systéme des
codes et des règles de comportement peut être assez rudimentaire. Son observation exacte peut être
relativement inessentielle, si on le compare du moins à ce qui est exigé de l’individu pour que,
dans le rapport qu’il a à lui-même, dans ces difrentes actions, pensées, ou sentiments, il se
constitue comme sujet moral; l’accent est mis alors sur les formes des rapports à soi, sur les
procédés et les techniques par lesquels on les élabore, sur les exercices par lesquels on se donne à
soi-même comme object à connâitre, et sur les pratiques qui permettent de transformer son propre
mode d’être. Ces morales ‘orientées vers l’étique(et qui ne coïncident pas forcément avec les
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distanciada delas para poder avaliá-las imparcialmente. Buscando nos tornar
espectadores imparciais nós nos modelamos para a virtude, aprendendo a sentir e
a agir de acordo com a “conveniência” (propriety). Este é o caminho que,
segundo Smith, devemos seguir para a realização de uma comunidade moral
harmoniosa e virtuosa.
Porém, ser o espectador imparcial não é uma tarefa fácil. Embora possamos
julgar de maneira imparcial e agir segundo a conveniência em muitas situações,
certas “ilusões da imaginação” produzidas pela vaidade e pelo amor-de-si estão
constantemente nos afastando da imparcialidade e da virtude perfeitas, atestando a
common weakness of human nature. O tema da imperfeição retorna. Adam Smith
possui, no entanto, uma alternativa, moderada pela consideração de nossas
limitações, para o problema de como nós, imperfeitamente virtuosos, podemos
viver em harmonia e, porque não?, em prosperidade.
Finalizando, gostaria de expressar a esperança, talvez ingênua, embora
sincera, de que este trabalho possa contribuir para produzir alguma tranqüilidade
no espírito daqueles que lidam com Adam Smith. Porém, o muita, pois a
manutenção do espanto é condição para que o trabalho continue.
morales de ce qu’on appelle le renoncement ascétique) ont été très importantes dans le
christinanisme à côté des morales ‘orientées vers le code’” (Foucault, 1984, p.36).
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