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Catarina Costa d’Amaral
A INVENÇÃO DA TOLERÂNCIA:
Política e Guerras de Religião na França do Século XVI
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação
em
História Social da Cultura do Departamento de
História da PUC-Rio
como parte dos requisitos
parciais para obtenção do título de Doutor em História.
Orientador: Prof. Marcelo Gantus Jasmin
Rio de Janeiro
Abril de 2008
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410549/CA
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Catarina Costa d’Amaral
A INVENÇÃO DA TOLERÂNCIA:
Política e Guerras de Religião na França do Século XVI
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
História Social da Cultura do Departamento de História da
PUC-Rio como parte dos requisitos parciais para obtenção
do título de Doutor em História.
Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Prof. Marcelo Gantus Jasmin
Orientador
Departamento de História - PUC-Rio
Prof. Antonio Edmilson Martins Rodrigues
Departamento de História – PUC-Rio
Prof. Rodrigo Nunes Bentes Monteiro
Departamento de História – UFF
Profª Berenice de Oliveira Cavalcante
Departamento de História – PUC-Rio
Profª Andréa Viana Daher
Departamento de História - UFRJ
Profº Nizar Messari
Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais
PUC-Rio
Rio de Janeiro, 14 de abril de 2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410549/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e do
orientador.
Catarina Costa d’Amaral
Graduou-se em História na PUC-Rio em 2000, elaborando como
monografia de fim de curso o trabalho intitulado “Dualidade e
Inteligibilidade: A obra política de Jean Bodin e a formação do
moderno Estado soberano francês”, sob a orientação do Professor
Doutor Francisco Falcon. Titulou-se Mestre pelo programa de
História Social da Cultura na PUC-Rio em 2003, tendo aprovada a
dissertação de Mestrado , sob orientação do Professor Doutor
Antonio Edmilson Rodrigues. Iniciou o Doutorado no mesmo
programa em 2004, do qual esta tese é a conclusão.
Ficha Catalográfica
CDD: 900
Amaral, Catarina Costa d’
A invenção da tolerância: política e guerras de religião na
França do século XVI / Catarina Costa d’Amaral; orientador:
Marcelo Gantus Jasmin. – 2008.
298 f. ; 30 cm
Tese (Doutorado em História)–Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
Inclui bibliografia
1. História - Teses. 2. História Social da Cultura. 3.
Reforma religiosa. 4. França. 5. Guerras de religião (1562-
1598). 6. Politiques. 7. Tolerância civil. 8. Publicações no
século XVI. I. Jasmin, Marcelo Gantus. II. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de
História. III. Título.
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Agradecimentos
Ao professor Marcelo Jasmin, pela orientação que foi sempre um estímulo às
novas perguntas, desde a graduação.
À CAPES, ao CNPq e à PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, sem os quais este
trabalho não poderia ter sido realizado, assim como pela concessão de uma bolsa
PDEE (CAPES) na França, oportunidade determinante para os destinos da tese.
Ao professor Jean-Frédéric Schaub, da École des Hautes Études en Sciences
Sociales - Paris, pelo acolhimento na sua instituição e as valiosas indicações
bibliográficas.
Aos meus pais.
Ao Felipe.
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Resumo
Amaral, Catarina Costa d’; Jasmin, Marcelo Gantus. A invenção da
tolerância: política e guerras de religião na França do século XVI. Rio
de Janeiro, 2008, 298 p. Tese de Doutorado Departamento de História,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
As guerras de religião francesas foram o resultado da experiência da
Reforma protestante, mas os seus próprios resultados significaram implicações
para as relações entre o Estado e a Igreja que foram além das questões de dogma e
de corrupção clerical que deram início ao movimento. O aprofundamento dos
conflitos entre católicos e protestantes na França – dos quais derivou um estado de
guerra civil mais complexo do que a mera oposição entre catolicismo e
protestantismo propiciou a formação de vários partidos no reino. Um desses
partidos, chamado na época de partido dos politiques, distinguiu-se dos demais
grupos por considerar a situação francesa a partir de uma perspectiva pragmática e
algo secularizada. Os politiques argumentaram, por meio da publicação de
tratados e panfletos, que a melhor forma de pôr fim às guerras civis, e remediar o
caos provocado por elas, era regulamentar a coexistência de católicos e
protestantes, estabelecendo uma distinção entre a autoridade do Estado e a
autoridade da Igreja, e dando ao Estado a primazia sobre a Igreja quanto à lei para
o governo dos homens. Esta proposta é a da tolerância civil, conceito que, na
França da segunda metade do século XVI, significava a aceitação provisória da
dualidade religiosa como forma de solucionar a guerra, atribuindo a um concílio
ou à Providência divina – a tarefa futura de restabelecer a unidade católica, em um
momento em que o reino e o bem comum cuja defesa e manutenção eram
função do Estado não estariam ameaçados. A instituição da tolerância como
instrumento político, as razões por que e a forma como ela foi bem sucedida são
as questões a que esta tese procura responder.
Palavras-chave
Reforma religiosa; França; guerras de religião (1562-1598); politiques;
tolerância civil; publicações no século XVI.
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Resumé
Amaral, Catarina Costa d’; Jasmin, Marcelo Gantus. L’invention de la
tolérance: politique et guerres de religion en France au XVI
e
siècle.
Rio de Janeiro, 2008, 298 p. Thèse de Doctorat Departamento de
História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Les guerres de religions en France ont été le résultat de l’expérience de la
Réforme protestante, mais elles ont donné lieu à des conséquences, concernant le
rapport entre l’État et l’Église, qui ont dépassé les questions de dogme et de
corruption cléricale qui ont déclanché ce mouvement. L’ampleur des conflits entre
catholiques et protestants en France dont s’est produit un état de guerre civile
plus complexe que la seule opposition entre catholicisme et protestantisme a
engendré l’organisation de plusieurs partis dans le royaume. Un de ces partis,
nommé à l’époque parti des politiques, s’est distingué des autres groupes car il
considérait la situation française selon une perspective pragmatique et sécularisée.
Les Politiques ont avancé, par la voie des traités et des pamphlets publiés par eux,
que le meilleur moyen de mettre fin aux guerres civiles, et remédier au chaos
qu’elles entraînaient, serait par le règlement de la coexistence de catholiques et
protestants, en établissant par une différenciation entre l’autorité de l’État et
celle de l’Église, et en donnant à l’État la prééminence sur l’Église quant à la loi
pour le gouvernement des hommes. Ce propos est celui de la tolérance civile,
concept qui, dans la France de la seconde moitié du XVI
e
siècle, impliquait
l’acceptation provisoire de la dualité religieuse comme moyen de donner une
solution à la guerre, en attribuant à un concile ou à la divine Providence– la
charge future de rétablir l’unité catholique, au moment le royaume et le bien
commun dont la défense et le maintien étaient la fonction de l’État ne seraient
pas menacés. L’établissement de la tolérance en tant que cet instrument politique,
les raisons pour lesquelles et la façon par laquelle elle a réussi sont les questions
auxquelles cette thèse veut répondre.
Mots-clés
Réforme religieuse; France; guerres de religion (1562-1598); Politiques;
tolérance civile; écrits publiés au XVI
e
siècle.
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Sumário
INTRODUÇÃO. Do século XXI ao século XVI: Da tolerância civil
e de outras tolerâncias
9
I PARTE. A Reforma protestante e as primeiras guerras de
religião na França
37
1. 1519-1520: A Reforma protestante e a França 38
2. 1561-1574: Um duplo início: as guerras de religião e da
primeira tentativa de elaboração da tolerância civil
70
3. 1574-1584: O acirramento das guerras de religião e a divisão
do partido católico
114
II PARTE. As guerras de religião e os politiques: a elaboração
da tolerância como instrumento
149
1. 1584-1589: Ligueurs x politiques 150
2. 1589-1598: A paz pela tolerância civil: Henrique IV e os
politiques
197
CONCLUSÃO. A invenção da tolerância civil no século XVI:
afirmação de uma novidade
244
BIBLIOGRAFIA 283
1. Fontes primárias 283
2. Bibliografia complementar
291
APÊNDICE: Éditos promulgados na França durante as guerras
de religião (1562-1598)
297
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La tolérance est un sujet piège, à la foi trop facile et
trop difficile.
Julie Saada-Gendron, La tolérance (1999).
Non, ne combatez pas, vivez en amitié,
CHRETIENS, changez votre ire avec la pitié,
Changez à la douceur les rancunes amères,
Et ne trempez vos dards dans le sang de vos frères.
Pierre de Ronsard, Exhortation pour la paix (1558).
Il est temps, sire, que vous fassiez l’amour à la
France.
Carta de Philippe Duplessis-Mornay a Henrique de
Navarra (1584).
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Introdução.
Do século XXI ao século XVI: Da tolerância civil e de outras
tolerâncias
Esta tese de doutoramento foi elaborada, a partir de ampla pesquisa nos
fundos da Biblioteca Nacional francesa, para servir como uma reflexão sobre a
relação entre política e tolerância. A sua hipótese é a de que esta última, a
tolerância, foi, na França do século XVI, desenvolvida e aplicada por aquela
primeira, a política, como um instrumento. Os seus elementos básicos, vale dizer,
as ferramentas para a verificação e a sustentação dessa sua hipótese, são como
contexto fundamental as guerras de religião na França da segunda metade do
século XVI, e, dentro delas, a ação da Coroa, dos grupos opostos de católicos e
protestantes e daqueles que reuniam católicos e protestantes que, quase todos,
organizaram-se em partidos, não na forma dos partidos políticos atuais, mas como
divisões, partes de um todo anteriormente unido
1
, e entre esses partidos, sobretudo
o dos politiques –, suas publicações dos tratados de filosofia política aos
panfletos e libelos difamatórios anônimos e os éditos de pacificação decretados
pela Coroa.
Essa não é a única relação possível de ser construída, nem gera a si mesma e
em si mesma se encerra. Ela se constitui apenas como uma das vias pelas quais se
pode pensar o problema do Estado moderno e da política no século XVI em geral,
e da elaboração do conceito de tolerância em particular. A escolha desse caminho
deve-se a uma singularidade do caso francês: como também na Alemanha, nos
Países Baixos e na Inglaterra, por exemplo, na França as guerras de religião
provocaram, junto com os conflitos armados, debates de idéias (raramente
disciplinados, é verdade, mas a política não era então uma disciplina) e propostas
de solução para a crise em que o reino estava mergulhado. Mas na França, a
combinação das guerras civis com a percepção ao mesmo tempo teórica e
pragmática do que seria necessário para fazê-las cessarem resultou no
1
Segundo Arlette Jouanna, a idéia de partido, na França do século XVI, vinha da divisão,
resultante de uma escolha religiosa ou política, imposta no que antes era uma unidade, um
consenso. A formação de partidos na época das guerras de religião costumava resultar da
apropriação das opiniões de um grupo por um chefe capaz de, no entendimento dos membros
desse grupo, viabilizar a vitória das suas idéias e posições nas instâncias de poder (cf. Jouanna et
al., 1998, p.1185).
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10
desenvolvimento e na aplicação de um princípio que rompia com a tradição
monárquico-religiosa medieval ao definir como seu objetivo o mesmo da política:
a preservação da paz e do bem comum. Esse princípio foi a tolerância civil. Por
meio dele, o governo francês pretendia eliminar o caos gerado pelas guerras
continuadas.
A análise dos elementos pesquisados na tese nos mostra como, ao final das
guerras de religião, em torno de 1598, estava em ação uma nova forma de relação
entre o rei, a Igreja e o reino. Uma em que a autoridade secular não emanava da
Igreja, mas sim da soberania, marca diferenciadora do rei; em que o objetivo do
governo não era a defesa da religião, mas sim a manutenção do bem comum; uma,
enfim e esta é resultado das outras duas –, em que a unidade religiosa é abolida
(provisoriamente) em nome da paz civil. Somadas, essas três condições
integravam uma nova dinâmica do poder secular, que o estava em prática cem
anos antes: o Estado moderno.
Para Reinhart Koselleck, a turbulência das guerras de religião esteve no
cerne do seu desenvolvimento. Segundo o historiador alemão,
Sa situation de départ était la guerre civile de religion. L’Etat moderne était sorti
de ces conflits au prix de luttes épuisantes. C’est en les surmontant qu’il est
parvenu à son plein épanouissement
2
.
Com a ajuda desse trecho de Koselleck, desenha-se em linhas gerais o
pressuposto em que se baseia esta tese, e do qual deriva a sua hipótese: as guerras
de religião foram o contexto dentro do qual o Estado desligou-se da Igreja quanto
aos seus objetivos, sendo que a necessidade de superar o caos gerado pelas
guerras civis que foram a reação francesa à Reforma protestante levou-o,
Estado, a construir um instrumento pelo qual deslocava a religião para fora da sua
esfera de ação. Em outras palavras, ao distinguir-se da estrutura monárquica
medieval, o Estado moderno produziu a tolerância. Essa hipótese implica em
afirmar, finalmente, que foi o rei o agente da tolerância, e que a Coroa optou,
deliberadamente, por instituí-la como o meio de atingir o bem comum, isto é,
optou por fazer dela um seu instrumento.
2
“Sua situação inicial era a guerra civil de religião. O Estado moderno havia saído desses conflitos
ao preço de lutas extenuantes. Foi ao superá-las que ele chegou ao seu pleno desenvolvimento”,
Koselleck, 1979, p.13.
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11
Arlette Jouanna, Quentin Skinner e Friedrich Meinecke entre outros
autores que surgirão ao longo desta tese concordam com a afirmação de
Koselleck. Segundo a sua perspectiva, as guerras de religião na França tornaram-
se o motor do que a nascente filosofia política produzia, e esta foi, por sua vez,
uma espécie de corolário teórico e ao mesmo tempo prático dos confrontos
armados. A política no século XVI tornava-se a base da ação dos homens na sua
relação uns com os outros e com o mundo, e a sua função era a manutenção do
bem comum. Segundo o que o arquidiácono de Toul, François de Rosières, afirma
em 1574, é por meio da política, incorruptível pelo dinheiro, que se segue a
justiça, que se protege o direito, que se observam as leis, que se produz a paz, se
honra a virtude e castiga o vício. É a política que mantém en concorde mutuelle,
conversation amiable, et sûreté tranquille, les assemblées humaines
3
. É ela o
fondement du repos public, l’âme, ordre, conseil, vigueur des Républiques: qui
doit être apprise, pratiquée, honorée en tous lieux, et par toutes personnes
4
.
Durante a Idade Média havia se consolidado na França uma tradição de
governo monárquico-religiosa segundo a qual a função primeira do rei era
salvaguardar a religião e a Igreja católica, seguindo o axioma une foi, une loi, un
roi. O rei francês, ungido na sua coroação com os óleos santos e apelidado de
Très-Chrétien, era escolhido por Deus com essa missão. Como princípio
fundamental, a relação de dependência entre Igreja e monarquia manteve-se
relativamente inabalada até o século XVI. Foram justamente as guerras de religião
que puseram à prova a permanência do axioma como regra para o governo do
reino.
A dissensão religiosa e o crescimento dos conflitos entre católicos e
protestantes dos quais derivou um estado de guerra civil mais complexo do que
a mera oposição catolicismo-protestantismo propiciaram a formação de vários
partidos dentro da França. Houve católicos conservadores, ou radicais os ultra e
os zélés –, católicos moderados mas que o aceitavam o protestantismo e eram
chamados de tiers parti , protestantes, um partido da Coroa e outros ainda que
reuniam católicos e protestantes moderados, como o partido dos malcontents e o
dos politiques. Esses vários grupos lançavam e discutiam, por meio da publicação
3
“em concórdia mútua, conversação amável, e segurança tranqüila as assembléias humanas”,
Rosières, 1574, p.132.
4
“fundamento da tranqüilidade pública, a alma, ordem, conselho, vigor das Repúblicas: que deve
ser aprendida, praticada, honrada em todos os lugares, e por todas as pessoas”, id., ibid., p.132.
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12
de tratados, panfletos, justificativas e admoestações nem sempre assinados –,
idéias como a da servidão voluntária, do tiranicídio, do direito e do dever de
revolta e da aceitação temporária da dualidade religiosa no reino, isto é, a
tolerância civil. Entre outras várias, essa última foi, acreditamos, crucial para o
Estado moderno, que, transformando-a em um instrumento da política, aplicou-a
para o restabelecimento da paz. Como idéia e como instrumento, a tolerância foi
particularmente defendida pelo grupo dos politiques, que considerava que a
permissão provisória do protestantismo era necessária para que se pudesse
restaurar a paz e retomar a ordem no reino. Composto sobretudo de juristas,
filósofos e homens ligados à administração do reino que acreditavam que o
problema da religião o deveria ser subordinado ao governo do rei, nem vice-
versa, o partido politique é habitualmente relacionado pela historiografia ao
chanceler Michel de L’Hospital, por exemplo, ao jurista, filósofo e deputado do
terceiro estado Jean Bodin, e ao filósofo e historiador Étienne Pasquier. Como
chanceler, L’Hospital teve participação direta na elaboração e na defesa do édito
de Janeiro de 1562, que concedia aos protestantes franceses o direito de
realizarem seu culto por todo o reino, a não ser dentro das cidades. Essa
determinação da coexistência de catolicismo e protestantismo no reino tornou-se a
marca dos politiques, que justificavam a sua posição com base na necessidade
maior da república. Os éditos de pacificação das guerras de religião, ao não
proibirem a presença dos protestantes no reino e admoestarem os franceses, todos,
a viverem juntos e como irmãos, constituíam-se progressivamente em éditos de
tolerância civil
5
, ainda que não aparecesse esse binômio. apenas uma exceção,
e a sua ambivalência torna-a por isso mais interessante: tanto a proibição do
protestantismo quanto a palavra tolerância e seus derivados aparecem uma única
vez nos éditos reais, no texto das ordenações de Saint-Maur, de 1568. Durante o
período das guerras de religião, foi apenas aí que uma decisão real ordenou a
eliminação do protestantismo na França, e foi também somente nas ordenações
que a Coroa fez referência nominal à tolerância de duas religiões no reino, não
para decretá-la, mas para suspendê-la. A justificativa das ordenações afirma que a
tolerância instituída pelo édito de Janeiro de 1562, e repetida nas pacificações
5
o se pode no entanto dizer que os politiques tenham se mantido em posição de poder durante
todo o tempo em que se desenrolaram as guerras de religião. Sua presença junto ao governante foi
mais forte enquanto L’Hospital foi chanceler e depois da morte de Henrique III, estabelecendo-se
o grupo como importante fonte de apoio para Henrique IV.
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13
posteriores, havia sido fruto de uma manobra dos protestantes aprovada pela
rainha-mãe, Catarina de Médici, por que esta havia sido convencida de que se
tratava de um mal menor a suportar.
Suspendendo a tolerância do exercício de duas religiões, as ordenações
concluem que foi ela, a tolerância, o fator determinante da continuação das
guerras civis. Ao contrário do que se começava a propor na época, a dualidade
religiosa não seria o caminho para a paz. Ao negar a efetividade da tolerância, o
grupo de católicos responsável em grande parte pela elaboração e promulgação
das ordenações de Saint-Maur integra o debate que se iniciava. De opinião
contrária, o grupo dos politiques argumentava que aceitar a presença do
protestantismo no reino era a única opção para impedir – segundo um cenário algo
catastrófico mas bastante pertinente – a sua destruição. Seguindo-se às ordenações
– publicadas talvez menos de um mês depois de iniciada a terceira guerra civil, em
setembro de 1568 –, a paz de Saint-Germain, assinada ao final dessa terceira
guerra, em agosto de 1570, voltou a permitir, em termos semelhantes aos dos
éditos anteriores, a presença e o culto protestante na França. Diferentemente do
que afirmavam as ordenações, a paz de 1570 creditava à liberdade de consciência,
e portanto à permissão limitada do protestantismo, o poder de impedir os
confrontos. Segundo o texto do édito:
pour ne laisser aucune occasion de troubles et différents entre nos sujets, leur
avons permis et permettons, vivre et demeurer par toutes les villes et lieux de ce
notre Royaume, et pays de notre obéissance, sans être enquis, vexés ni molestés,
n’astreints à faire chose pour le fait de la religion contre leur conscience : ni pour
raison d’icelle être recherchés ès maisons et lieux où ils voudront habiter, pourvu
qu’ils s’y comportent selon qu’il est contenu en ce présent édit
6
.
Entre esses dois pólos, a repressão e a regulamentação do culto protestante,
a França será revolvida durante a segunda metade do século XVI.
Ao darem o nome de tolerância à experiência da liberdade de consciência e
de culto feita contemporaneamente na França, as ordenações de Saint-Maur levam
ainda a outra questão que deve ser previamente esclarecida: o fato de não se
empregar nos demais éditos de pacificação das guerras de religião a palavra
6
“para não deixar nenhuma ocasião de perturbações e diferenças entre nossos ditos, permitimo-
lhes viverem e permanecerem em todas as cidades e lugares deste nosso Reino, e países sob nossa
obediência, sem serem inquiridos, atormentados nem molestados, nem obrigados a fazerem coisa
referente à religião contra a sua consciência: nem por razão dela serem procurados nas casas e
lugares onde quererão morar, desde que eles se comportem segundo o que está contido neste
presente édito”, Stegmann, 1979, p.70, art.4.
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14
tolerância não significa que não se possa, como resultado da necessária análise,
considerar que o conceito de tolerância civil existisse e estivesse sendo posto em
uso naquele momento. A mera referência feita nas ordenações à tolerância é na
verdade referência ao debate em torno a ela. Mas se essa ausência formal, de
termos, pode parecer um problema para uma tese que considera a presença da
tolerância na França do século XVI, a opção feita por grande parte da
historiografia, que critica essa hipótese e segundo a qual não se tratava e portanto
não se poderia falar em tolerância, e sim em concórdia, o é menos incerta. Esta
tese dedica-se a pensar a tolerância no século XVI no seu contexto
7
, e na busca
por compreender a acepção quinhentista desse conceito o recurso ao debate
historiográfico atual será vital. Nele, as conclusões a que o historiador suíço
Mario Turchetti chega ao opor tolerância e concórdia servirão como um ponto de
apoio teórico-metodológico cuja função primordial será pôr à prova nossa
hipótese, que deverá ser defendida frente à argumentação de uma parte importante
da historiografia sobre o tema, cujo entendimento diverge do nosso. No século
XVI, a tolerância caracterizava-se como a legitimação das diferenças presentes em
um dado ambiente. A concórdia, por outro lado, era a transformação das
diversidades em unidade: segundo Turchetti,
En effet, au 16
e
siècle, la concorde religieuse appelle et souligne notamment l’unité
(ununm cor : un seul coeur, avait dit Érasme) à l’exclusion de la diversité ; alors
que la tolérance, elle, prévoit et légitime la diversité
8
.
Para o historiador suíço, a França do século XVI não fez a experiência da
tolerância, e sim a da concórdia. Essa argumentação concentra-se amplamente na
presença repetida da palavra concórdia nos éditos de religião. De fato, apenas os
éditos de Amboise (1563) e Boulogne (1573), as ordenações de Saint-Maur
(1568) e o texto da conferência de Nérac (1579) o fazem referência à concórdia
como sendo seu objetivo principal e maior desejo do rei. Por outro lado, nos
éditos de Janeiro de 1562, Longjumeau (1568), Saint-Germain (1570), Beaulieu
(1576), Poitiers (1577), Fleix (1580) e Nantes (1598), em que se anuncia a
intenção de restabelecer a concórdia, ela vem acompanhada da permissão da
7
Essa não é uma redundância: a importante questão do anacronismo e a necessidade de se
trabalhar sempre pela via da inteligibilidade apregoada por Lucien Febvre (Febvre, 1944, pp.13-
15) são elementos fundamentais deste trabalho.
8
“De fato, no século XVI a concórdia religiosa chama e sublinha especialmente a unidade (unum
cor: um coração, havia dito Erasmo) na exclusão da diversidade; enquanto a tolerância, ela,
prevê e legitima a diversidade”, Turchetti, 1998, p.113.
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15
coexistência de protestantismo e catolicismo. Na paz de Longjumeau, por
exemplo, para pôr fim aos conflitos, remédier aux afflictions qui en procèdent,
remettre, et faire vivre nos sujets en paix, union, repos et concorde, comme
toujours a été notre intention
9
,o rei ordena que
ceux de ladite Religion, retourneront et seront conservés, maintenus et gardés sous
notre protection en tous leurs biens, honneurs, états, charges, offices et dignités, de
quelque qualité qu’ils soient
10
.
O édito de Amboise (assinado por Carlos IX em 19 de março de 1563) deve
ser reinstituído, com a sua determinação de que
tous Gentilshommes qui sont Barons, Châtelains, Hauts-Justiciers, et Seigneurs
tenant plein Fief de Haubert
11
, et chacun d’eux, puissent vivre en leurs maisons
(lesquelles ils habiteront) en liber de leurs consciences, et exercices de la
Religion qu’ils disent réformée, avec leurs familles et sujets
12
,
até que il ait plu à Dieu nous faire la grâce que nos sujets soient réunis en une
même religion
13
.
Coexistência de católicos e protestantes – mesmo que temporária, como
mostraremos não é exclusão da diversidade, pelo contrário: um édito real que
permite duas religiões no reino legitima, ao menos provisoriamente, a dualidade.
Dessa dinâmica será desenvolvida a idéia quinhentista de tolerância.
Para fins de análise historiográfica, seria preciso portanto adjetivar a
concórdia. Segundo Turchetti, os éditos de pacificação, especialmente o de
Nantes, pedem uma “concórdia civil” como meio de alcançarem futuramente um
estado de “concórdia religiosa” – para o quê se torna necessária a tolerância:
Rétablir la concorde civile et remettre à plus tard la concorde religieuse, quitte à
tolérer provisoirement la présence de deux confessions chrétiennes dans le
royaume: tel est le projet auquel Henri IV donne forme dans l’édit de 1598
14
.
9
“remediar as aflições que procedem deles, recolocar e fazer viverem nossos súditos em paz,
união, tranqüilidade e concórdia, como foi sempre a nossa intenção”, Stegmann, op.cit., p.53, grifo
nosso.
10
“aqueles da dita Religião retornarão e serão conservados, mantidos e guardados sob a nossa
proteção em todos os seus bens, honras, estados, cargos, ofícios e dignidades, sejam de que
qualidade forem”, ibid., p.54.
11
O feudo de haubert é aquele em que o vassalo tem a obrigação de lutar ao lado do seu suserano.
12
“todos os Fidalgos que forem Barões, Castelãos, tiverem direito de alta justiça, e Senhores tendo
pleno feudo de Haubert, e cada um deles, possam viver nas suas casas (nas quais morarão) em
liberdade das suas consciências, e exercício da Religião que eles dizem reformada, com suas
famílias e súditos”, ibid., p.34.
13
“aque Deus queira nos fazer a graça de que nossos súditos sejam reunidos em uma mesma
religião”, ibid., p.58, art. 14.
14
“restabelecer a concórdia civil e remeter a mais tarde a concórdia religiosa, disposto a tolerar
provisoriamente a presença de duas confissões cristãs no reino: tal é o projeto ao qual Henrique IV
dá forma no édito de 1598”, Turchetti, 1998, p.93.
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16
Para outros historiadores, como Arlette Jouanna e Joseph Lecler, essa
combinação produzir a convivência entre as duas religiões, com o objetivo de
preservar o reino, para mais adiante, quando o for mais arriscado tratar dela,
eliminá-la – tem o nome de tolerância civil.
Ao aprofundar-se essa discussão, talvez a conclusão mais importante desta
tese sobre o debate historiográfico acerca da tolerância seja justamente a de que a
disputa conceitual travada entre partidários da concórdia e da tolerância deu-se a
posteriori, e sua principal relevância está no debate mesmo com a bibliografia, e
no conseqüente posicionamento do historiador dentro dele. Determinar se na
França do século XVI, na época das guerras de religião, experimentava-se, ou se
pretendia experimentar, especificamente tolerância – coexistência das diferenças –
ou concórdia redução das diferenças em unidade é mais do que uma tarefa
árdua: dificilmente se chegará a uma resposta simples e única, o que se deve em
parte ao fato de que essa discussão de palavras, de conceitos, o era
preponderante na época, e em parte ainda à imprecisão com que o idioma francês
como as demais línguas vernáculas era escrito então, o que torna a distinção
entre os entendimentos de concórdia e tolerância ainda mais complexa. Pretender
essa resposta, na verdade, pode limitar a leitura e as conclusões do historiador,
que se arrisca a anacronismos e teleologias. O reconhecimento desse perigo, aliás,
é parte da resposta a que chegamos sobre o debate entre defensores e opositores
da experiência de uma idéia de tolerância no século XVI.
O retorno ao quinhentos, e a busca por uma conceituação primordial da
tolerância na sua relação com a política, devem-se em larga medida à observação
das relações geo-políticas do século XX e deste início do XXI. Nos últimos 150
anos, a diminuição das distâncias produzida pelas novas tecnologias de
transporte e de comunicação –, os intensos fluxos migratórios e o conseqüente
aumento do contato entre as nações e entre os povos produziram a radicalização
da experiência da diversidade. Grupos de pessoas diferentes relacionam-se em
todos os níveis pessoais, culturais, sociais, políticos, econômicos com outros
grupos tanto ou mais distintos. Yves-Charles Zarka lembra que as democracias
ocidentais, ao mesmo tempo o foco e o centro das transformações,
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17
ont accueilli sur leurs territoires des populations diverses dont la religion, les
coutumes, les moeurs sont très différentes de celles qui prévalaient dans les pays
occidentaux
15
.
A riqueza que nasce dessas relações também se mostra em todos os níveis,
pessoais, culturais, sociais, políticos, econômicos. no entanto um corolário
menos positivo. A ordem mundial vigente o possibilita a experiência da
diversidade: ela obriga as diferenças a conviverem. Nascem dessa obrigação as
grandes dificuldades que enfrentam hoje sobretudo as democracias européias,
avec la montée de l’islamisme, la remise en cause de valeurs politiques reconnues
et établies à l’issue de longues luttes, comme la liberté, l’égalité des droits entre
hommes et femmes, la dignité de la personne, etc. (...) Le monde s’est reconfiguré,
les populations se sont déplacées volontairement ou involontairement, du sud au
nord, d’est en ouest
16
.
Na nova configuração geo-demográfica do mundo, obrigadas a conviverem,
as diferenças nem sempre aceitam umas às outras. E reagem. Duas conseqüências
desse corolário são as tentativas dos Estados de obrigar à tolerância e os
movimentos de intolerância.
Em 15 de março de 2004 a República Francesa publicou a lei n° 2004-228,
“em aplicação do princípio de laicidade”
17
, que determina a interdição de se
usarem símbolos religiosos dentro dos estabelecimentos escolares públicos
franceses. As grandes cruzes cristãs, quipás, e véus muçulmanos por meio dos
quais os alunos manifestam ostensivamente um pertencimento religioso”
18
estão
proibidos, mas pequenas cruzes e estrelas de Davi, expressões discretas da
religiosidade, continuam permitidas. Trata-se de impor a coexistência das
diferenças, um dos entendimentos da tolerância, eliminando do espaço público os
signos da diferença.
Em 11 de setembro de 2001 ficou claro que se vive hoje um processo de
cisão. Uma parte do mundo não aceita a outra. E vice-versa. Diferenças culturais
15
“acolheram em seus territórios populações diversas cuja religião, os hábitos, os costumes são
muito diferentes dos que prevaleciam nos países ocidentais”, Zarka, 2004, p.9.
16
“com a expansão do islamismo, o questionamento de valores políticos reconhecidos e
estabelecidos como resultado de longas lutas, como a liberdade, a igualdade de direitos entre
homens e mulheres, a dignidade da pessoa, etc. (...) O mundo se reconfigurou, as populações
deslocaram-se voluntária ou involuntariamente, de sul a norte, de leste a oeste”, id., ibid., p.9.
17
No texto da lei, en application du principe de laïcité”. Loi encadrant, en application du
principe de laïcité, le port de signes ou de tenues manifestant une appartenance religieuse dans les
écoles, collèges et lycées publics (n° 2004-228 du 15 mars 2004), http://www.assemblee-
nationale.fr/12/dossiers/laicite.asp.
18
par lesquels les élèves manifestent ostensiblement une appartenance religieuse”, id., ibid.
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18
entre povos, cuja coexistência foi regida por decisões baseadas em interesses
econômicos que não levaram em conta o valor das suas singularidades,
provocaram um descordo que aos poucos tornou-se incontornável. Potencializado
pelo envolvimento da religião, tal desacordo parece hoje insolúvel,
transformando-se no problema da impossibilidade da coexistência das diferenças,
ou, conforme o entendimento citado acima, da intolerância.
As discussões sobre o atentado (e possivelmente as suas motivações) e sobre
a nova legislação francesa têm temas comuns. Ambas gravitam em torno à
impossibilidade de coexistência entre as diferenças, à preponderância dos
interesses econômicos sobre os homens e os Estados, à diferença entre espaço
público e privado, à relação entre religião e política.
Esse último debate, sobre a imbricação do religioso com o político e suas
conseqüências, interfere em todos os outros. A religião tem a capacidade de, ao
ser envolvida nas mais diversas questões, transformá-las em causas, bandeiras,
cruzadas. A volta dessa relação ao cenário político mundial representa o retorno a
um paradigma de Estado do qual o Ocidente europeu vem se afastando pelo
menos cinco séculos.
Durante muito tempo, durante os cerca de mil anos pelos quais se estendeu a
Idade Média, considerou-se que a função dos governos era a defesa e a
manutenção da religião cristã. O longo processo de secularização da política
construiu a separação de Igreja e Estado quanto aos seus objetivos. O Estado,
secularizado, deixou de pretender à vida celeste e afastou-se dos assuntos da alma
para se aproximar da produção, da manutenção e da resolução das questões da
vida terrena. O objetivo do Estado moderno está no mundo e no homem; o da
Igreja, no céu e em Deus. No século XVI, a Reforma protestante ampliou esse
processo de separação ao obrigar parte da Europa a decidir como lidar com a
diversidade religiosa. Não era uma questão simples. A religião era apenas uma, e
havia sido, até então, o fundamento das monarquias européias: une foi, une loi, un
roi, dizia o axioma que servia de base à autoridade monárquica francesa. A
existência de uma segunda religião em um reino significava o rompimento com a
tradição que definia o poder secular.
Hoje, quinhentos anos depois, pertencimento religioso e posição política se
confundem novamente para dar forma às relações entre pessoas e nações. A
religião, ao determinar uma identidade constituída de símbolos mistos meio
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19
seculares, meio espirituais obriga a estruturas sócio-religiosas das quais não se
pode fugir sem abandonar tudo o que se é: da família ao governo, do trabalho às
missões, a vida é definida pelo vínculo com Deus. E às vezes pela guerra em
nome de Deus. A partir de 1920, quando o parlamento do Reino Unido
determinou a autonomia do governo da Irlanda do Norte, e sobretudo a partir da
década de 1960, protestantes unionistas e católicos nacionalistas enfrentam-se por
causa da reforma do sistema político irlandês. Desde meados do século XX, as
nações muçulmanas do Oriente Médio – movidas por diferentes questões, como a
força crescente do Estado de Israel e a Guerra Fria transformaram-se, na sua
maioria, em ditaduras teocráticas, como o Irã, onde a Revolução Islâmica, em
1979, depôs o Reza Pahlevi e instituiu o governo teocrático do Aiatolá
Khomeini.
Nesses cinco últimos séculos, não se pode dizer que a religião tenha estado
ausente das questões sócio-políticas, que as igrejas não tenham se envolvido em
assuntos de Estado, nem que os Estados tenham deixado de se fortalecer sobre a
capacidade de atração das igrejas. No último século, a proximidade entre política
e religião foi incontestável. A secularização da política, a instauração e o
reconhecimento da sua diferença com a religião, não foi um evento pontual, não
teve início nem se completou em cem anos. Talvez não se possa afirmar que a
secularização tenha sido um processo: ela pode ainda estar em processo. Entre o
século XXI e o XVI, muitas permanências. Considerando-se apenas a relação
entre política e religião, em cinco séculos as diferenças não anularam as
semelhanças. Mas algo mudou. Como no século XVI algo foi significativamente
diferente do século anterior, e não era igual um século depois. Entre tudo o que
se transformou, aqui se faz referência a algo específico. Algo que voltou a ser
determinante no século XX.
Uma forma de apresentar muito sucintamente o “algo” de que se trata é
chamá-lo de tolerância. Uma palavra que pode entretanto levar a compreensões
enganosas e conclusões apressadas e incorretas. É preciso portanto procurar seus
significados históricos no plural porque o conceito transforma-se com o passar
do tempo e com a mudança dos contextos em que é experimentado.
A volta ao século XVI não é fortuita. Nem a escolha do caso francês. Houve
um momento determinante na discussão acerca da tolerância, pois se reuniram
as condições – que não se repetiram – para que ela fosse um fato e não um desejo,
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20
ou um projeto moral. A generalização do caos provocado pela Reforma religiosa,
em particular na França, foi interrompida por uma lei que decretou, com base em
um acordo feito entre as partes em conflito, a coexistência de católicos e
protestantes no reino. A necessidade levou à construção de uma nova estrutura
para a relação entre o governo e seus súditos, uma cuja unidade não era dada pela
religião, cuja autoridade o era a da Igreja. Talvez nunca como hoje esta
experiência da tolerância tenha sido tão necessária devido à natureza globalizada
da impossibilidade de coabitação entre as diferenças em contato no mundo. E ao
mesmo tempo, talvez nunca tenham estado tão ausentes as condições para ela: a
possibilidade de um acordo ou a autoridade necessária à arbitragem.
As semelhanças entre a situação quinhentista e a atual nos termos da
coexistência de diferenças e opostos – não são poucas. Como para os jovens
Estados do século XVI, um dos problemas centrais para as democracias de hoje é
la coexistence de groupes, de communautés, voire même de peuples dont les modes
d’identification sont irréductiblement divers. Comment empêcher que les
différences ethniques, religieuses, linguistiques, nationales, c’est-à-dire en
définitive culturelles, qui existent dans les sociétés démocratiques aujourd’hui, ne
tournent à l’opposition, à la négation réciproque, et parfois à la lutte à mort ?
19
A resposta dada na França do século XVI foi impedir pela lei. Mas não foi
simples chegar a ela. E só se soube que era a lei a resposta quando, depois de sete
tentativas, o édito de Nantes impôs com sucesso a permissão para a presença de
protestantes e para o culto protestante no reino.
Tolerar as diferenças por necessidade não era então uma idéia nova. Desde o
século V a teologia pensava nestes termos a aceitação de práticas não-cristãs:
suportar um mal para impedir outro maior. Segundo São Tomás de Aquino,
“embora pequem em seus ritos os infiéis, podem ser tolerados, ou por causa de
algum bem deles proveniente, ou por algum mal evitado”
20
. Além dos infiéis,
tolerados pela Igreja, também os governos seculares tinham sua forma específica
de tolerância. Recorrendo a Santo Agostinho, São Tomás afirma que
os chefes do governo humano toleram com razão certos males, para não ficarem
impedidos certos bens, ou ainda, para não caírem em males piores, como diz
19
“a coexistência de grupos, de comunidades, quiçá mesmo de povos cujas formas de
identificação são irredutivelmente diversas. Como impedir que as diferenças étnicas, religiosas,
lingüísticas, nacionais, vale dizer, definitivamente culturais, que existem nas sociedades
democráticas hoje, transformem-se em oposição, em negação recíproca, e às vezes em luta
mortal?”, Zarka, 2004, p.V.
20
Aquino, 1954, 2.2. q.10, a.11, pp.306-307.
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21
Agostinho: Suprime as meretrizes, da sociedade humana, e perturbarás tudo com a
libidinosidade
21
.
Mas foi ao longo do século XVI que se experimentou a necessidade de o
governo secular decidir sobre a tolerância em matéria religiosa. O mesmo
argumento aparece em Erasmo, que o aplica, por sua vez, em relação aos
“hereges” protestantes. Para Erasmo, a hipótese de suportar um mal se justificava
pela eliminação de outro maior:
Si à certaines conditions on tolérait les sectes (sectae sinerentur) (...) ce serait sans
doute un mal et un mal grave, je l’avoue, mais plus léger en tout cas que la guerre,
et quelle guerre !
22
A idéia da sujeição deliberada a um mal feito à Igreja foi progressivamente
adaptada assim ao âmbito da política e, especialmente na segunda metade do
século, na França, foi desenvolvida como uma experiência de coexistência, que
considerava que os problemas concernentes à religião não deveriam ser tratados
pelo Estado, cuja obrigação seria com a paz e o bem comum. Foi na França que
uma observação semelhante à de Erasmo, feita pelo jurista e historiador Étienne
Pasquier, teve o sentido de explicar uma situação de fato, gerada pelo édito de
1562 ao permitir o culto protestante no reino: tratava-se de tolérer ce scandale
pour en éviter un plus grand
23
, afirmava Pasquier.
Desta forma de coexistência das diferenças derivamos o conceito de
tolerância civil, e ela foi uma das maneiras pelas quais se construiu a
secularização da política: Igreja e Estado, não mais unidades amalgamadas,
transformam-se progressivamente em duas esferas de ação separadas, com
princípios, regras e objetivos distintos. Foi na França, na segunda metade do
século XVI, que essa experimentação significou que as questões religiosas
derivadas da Reforma protestante deveriam ser deixadas a cargo de um concílio e
que o problema das guerras civis – provocadas por essas mesmas questões
21
Id., ibid., p.307.
22
“Se, sob certas condições, tolerássemos essas seitas (sectae sinerentur) (...) seria sem dúvida um
mal, e um mal grave, confesso, mas mais leve em todo caso do que a guerra, e que guerra!”,
Erasmo, Opus Episolarum apud Lecler, 1994, pp.137-138.
23
“tolerar esse escândalo para evitar um maior”, Pasquier apud Jouanna, 1998, p.101. Vale
lembrar que o sentido primeiro de escândalo, sentido que prevalecia no francês escrito no século
XVI, designa o erro de quem leva outros a pecarem e esses mesmos que se deixam pecar, isto é,
escândalo é a falta daquele que incita o pecado e dos que o seguem.
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22
deveria ser solucionado pela imposição, por parte do Estado, da coexistência de
católicos e protestantes.
A acepção laica da idéia de tolerância era inédita na Europa. Propor a
coexistência de duas religiões, quando a regra havia sido até então a
predominância de uma verdade, era propor o fim de um monopólio, o
rompimento com a tradição, a destruição de uma hierarquia antiga e complexa que
era a base da monarquia e das relações dos homens entre si, e com as instituições.
Aceitar a existência de uma religião além da católica não era um mal semelhante à
permissão da prostituição. A heterodoxia não estava incluída na categoria “certos
males”. Para os católicos, para a Igreja, era um mal absoluto. Primeiro
impensável, tal proposta foi aos poucos ganhando espaço e constituindo-se como
uma via de ação cujo objetivo, solucionar o caos criado pelas guerras de religião,
impôs-se como imperativo. Em meio às guerras civis, outras soluções, outras vias
se apresentaram. A discussão entre elas, em um ambiente ao mesmo tempo de
confronto armado, religioso e filosófico, foi determinante para a escolha e a
aplicação da solução pela tolerância civil.
Foram os debates, as discussões, as contraposições de argumentos, as
publicações que tornaram possível a tolerância civil, instituída como lei em 1598.
A troca de idéias e o longo convívio com a guerra civil fizeram da noção de
tolerância um instrumento, um meio para produzir a paz. A instauração da
dualidade religiosa na França não era o fim pretendido pelo édito de Nantes: ela
era o meio pelo qual nous parviendrons à l’établissement d’une bonne paix et
tranquille repos
24
, diz o preâmbulo do édito. O desejo subjacente, o anseio da
maioria (que Henrique IV passou, em certos aspectos, a encarnar depois da sua
conversão ao catolicismo, em 1593, e da coroação em Chartres, em 1594), era
restabelecer a unidade religiosa no reino. Para Olivier Christin,
les paix de religion (...) prennent acte, temporairement du moins, du partage
confessionnel qu’elles ne prétendent pas abolir sur-le-champ, mais surmonter ou à
défaut neutraliser par le retour de la paix
25
.
A tolerância civil era um recurso provisório, uma medida de necessidade
elaborada como uma etapa para se alcançar o objetivo final da reestruturação da
24
“nós conseguiremos estabelecer uma boa paz e repouso tranqüilo”, Garrisson, 1997, p.26.
25
“as paix de religion (...) fazem constatar legalmente, ao menos temporariamente, a divisão
confessional que elas não pretendem abolir imediatamente, mas transpor ou, se não for possível,
neutralizar para a volta da paz”, Christin, 1997, p.36.
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23
França: o regresso à unidade católica. Mas esse segundo movimento, o retorno do
reino à ortodoxia, não era de responsabilidade do rei, e sequer estava dentro das
suas possibilidades atingi-lo. No édito, celebram-se a recente pacificação
conquistada, a reunião novamente promovida entre os franceses, mas, quanto à
reunificação religiosa, espera-se ainda a interferência de Deus, pois essa reunião
dos franceses, il ne lui a plu permettre que ce soit pour encore en une même
forme et religion
26
.
Menos de cem anos depois, novos conflitos, novas discussões e novas
publicações levarão mais uma vez à mobilização da noção de tolerância. Mas
dessa vez, não à tolerância civil, e sim à tolerância religiosa. Não à tolerância
como instrumento, como meio, mas à tolerância como pressuposto básico da
humanidade. A tolerância civil, aquela que determinava a interrupção dos
conflitos através da coexistência provisória das diferenças por necessidade,
aquela que funcionava como um instrumento para se alcançar o objetivo da
política, o bem comum, foi substituída pela tolerância religiosa, característica que
deveria fazer parte da essência de todos os homens, regida pela moral, definida
pela ação virtuosa, e exemplificada pela postura – cristã – de ajudar o homem que,
dotado de livre-arbítrio, pode errar e pode também se corrigir. Substituída, mas
não eliminada. A tolerância religiosa se fez sobre o alicerce da tolerância civil.
No seu Commentaire Philosophique, de 1686, Pierre Bayle, filósofo que
liderou a defesa da tolerância após a revogação do édito de Nantes por Luís XIV,
um ano antes, descreveu longamente por que se deviam tolerar outras religiões,
por que, depois de se exporem aos fiéis de outras religiões os preceitos daquela
dominante em um reino, não se deveria convertê-los à força, nem por violência
ferir a sua liberdade de consciência:
on doit bien travailler de toutes ses forces à instruire par de vives et bonnes
raisons ceux qui errent, mais leur laisser la liberté de déclarer qu’ils persévèrent
dans leurs sentiments, et de servir Dieu selon leur conscience, si l’on n’a pas le
bonheur de les détromper, et quant au reste ne proposer aucune tentation de mal
temporel, ou de récompense en argent, ou bonheur comtant à leur conscience
27
.
26
“não quis permitir que fosse ainda em uma mesma forma e religião”, ibid., p.27.
27
“devemos trabalhar com todas as forças para instruir por vivas e boas razões os que erram, mas
devemos deixar-lhes a liberdade de declararem que perseveram nos seus sentimentos, e de
servirem a Deus segundo a sua consciência, se não tivermos a felicidade de emendá-los, e quanto
ao resto não propor nenhuma tentação de mal temporal, ou de recompensa em dinheiro, ou de
felicidade garantida à sua consciência”, Bayle, 1686, p.353.
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24
Essa liberdade se completa pela liberdade de culto – a permission de
s’assembler, et de célébrer l’office divin, et de raisonner modestement en faveur
de sa créance et contre la doctrine opposé selon l’occasion
28
– para constituir um
estado de tolerância. Na França, ela havia sido uma experiência de fato, e o édito
de Nantes havia sido para a Europa uma lição: “La France a donné le plus
considérable exemple de tolérance qu’on eût dans l’Église Romaine
29
, diz Bayle.
Pelo édito, Henrique IV havia garantido aos protestantes liberdade religiosa de
consciência e de culto e promovido a pacificação do reino. Mas para os
protestantes franceses, como para qualquer religião, havia balizas,
minuciosamente expostas nos artigos do édito. Segundo Bayle, de modo geral,
havia um limite imperativo para a liberdade religiosa: ela poderia ser aussi
grande que l’intérêt de l’État le peut permettre
30
. A medida da tolerância, no
século XVII, era a segurança do Estado. Um século antes, a segurança do Estado
havia determinado a necessidade da tolerância.
Em 1598, na batalha que se desenrolara entre os partidários da tolerância
civil e seus oponentes, o édito de Nantes havia consagrado a vitória do primeiro
grupo. Nas duas últimas décadas das guerras civis, a partir dos anos de 1580, o
partido dos politiques havia lutado para estabelecer como o critério decisivo da
ação do rei a necessidade do reino – fórmula que designava aquilo de que o reino
precisava para manter-se –, o que significou especificamente pôr de lado o seu
papel de defensor da religião. Longamente foi debatida essa questão, longamente
questionada a soberania do rei, longamente discutida a possibilidade de duas
religiões coexistirem em um mesmo reino.
Em 1599, o autor anônimo do De la Concorde de l’Estat escrevia para
defender a aplicação do édito de Nantes, buscando despertar, segundo Mario
Turchetti, “la sensibilité civile et politique de la majorité des Français
31
. O libelo
esforça-se para convencer seus leitores de que
le but et la fin du gouvernement [da Igreja] est du tout différente et séparée d’avec
le gouvernement de l’État. L’un considère le bien présent : l’autre celui qui est à
28
“permissão de se reunir, e de celebrar o ofício divino, e de argumentar modestamente em favor
da sua crença, e contra a doutrina oposta segundo a ocasião”, id., ibid., p.354.
29
“A França deu o exemplo mais considerável de tolerância que tivemos na Igreja Romana”, id.,
ibid., p.351.
30
“tão grande quanto o interesse do Estado pode permitir”, ib., ibid., pp.341-342.
31
“a sensibilidade civil e política da maioria dos franceses”, Turchetti, 1998, p.109.
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25
venir. L’un considère la paix, le repos, et la grandeur de ce monde. L’autre
considère celle d’un autre temps, et d’un autre siècle
32
.
Em 1686, Bayle podia dar por encerrada a discussão sobre a diferença entre
os objetivos respectivos de Estado e Igreja, e simplesmente constatar
que les Rois et leurs Conseillers ont toujours pour but principal le bien temporel,
et qu’ils sacrifient à l’utilité, et surtout lors que des gens poussées d’un zèle
indiscret leur viennent promettre gloire temporelle et céleste, toute autre
considération
33
.
O bem temporal de Bayle é a paz, é a tranqüilidade e é a grandeza desse
mundo, segundo as expressões do século anterior. Transformá-las na função do rei
foi um processo longo que teve no século XVI, por causa das guerras de religião,
um momento de intensa atividade, e cujo resultado foi o reconhecimento de uma
via de ação específica do Estado através da qual ele deveria responder às
necessidades do reino, e cumprir assim com a sua utilidade própria. Segundo
Christin, a legislação real durante as guerras de religião relaciona a paz
à l’idée de « bien commun », de « bénéfice » partagé, d’union fondée par et pour
l’État comme garde-fou aux passions religieuses et aux dissensions doctrinales
toujours décrites en termes de particularismes, de singularités, d’intérêts privés
34
.
Nesse sentido, o rei, juntamente com seus aliados politiques, contribuiu para
estabelecer a identificação entre Estado e bem comum, elaborando a idéia de que,
como ao Estado cabia garantir o bem comum, era preciso que ele agisse no
sentido de às suas necessidades e eliminar os obstáculos que, no momento,
impediam os franceses de desfrutarem da paz. Devido ao caos gerado pelas
guerras de religião, a necessidade de paz era premente e deveria obrigar à ação:
Notre Etat est extrêmement malade. Chacun le voit. Par tous les signes, on juge
que la cause du mal est la guerre civile. Maladie presque incurable, de laquelle nul
état n’échappa jamais. (...) Quel remède ? Nul autre que la paix ; la paix, qui
remet l’ordre au coeur de ce Royaume ; qui par l’ordre lui rend sa force naturelle,
qui par l’ordre, chasse les désobéissances et malignes humeurs ; purge les
corrompus, et les rempli de bon sang, de bonnes intentions, bonnes volontés : qui,
32
“o objetivo e o fim do governo [da Igreja] é completamente diferente e separado do governo do
Estado. Um considera o bem presente: o outro, o que está por vir. Um considera a paz, a
tranqüilidade, e a grandeza deste mundo. O outro considera a de um outro tempo, e de um outro
século”, De la Concorde de l'Estat, 1599, pp.33-34.
33
“que os Reis e seus Conselheiros têm sempre como principal objetivo o bem temporal, e que
eles sacrificam à utilidade, e sobretudo quando pessoas impelidas por um zelo indiscreto vêm
prometer-lhes glória temporal e celeste, qualquer outra consideração”, Bayle, op.cit., p.325.
34
“à idéia de “bem comum”, de “benefício” partilhado, de união fundada para e pelo Estado como
anteparo das paixões religiosas e das dissensões doutrinais descritas sempre em termos de
particularismos, de singularidades, de interesses privados”, Christin, op.cit, p.39.
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26
en somme, le fait vivre. C’est la paix : c’est la paix, qu’il faut demander à Dieu,
pour son seul remède, pour sa seule guérison. Qui en cherche d’autre, au lieu de le
guérir, le veut empoisonner
35
.
Essa constatação, revestida de exortação pela paz, foi feita por Henrique de
Navarra, futuro Henrique IV, em carta aos três estados do reino, escrita em seu
nome por Philippe Duplessis-Mornay ou pelo menos com a sua participação –,
em 1589, depois do assassinato do duque de Guise e antes da morte de Henrique
III. Navarra estava em negociações com o rei para juntar-se a ele na guerra contra
a Liga católica, e a afirmação sobre o estado lastimável da França e a conclusão
pela necessidade da paz eram para ele uma forma de tornar públicas as suas
intenções associando-se a Henrique III. Não se fala em dissensão religiosa a paz
não é a reunificação em uma Igreja, é o fim da guerra civil pelo restabelecimento
da ordem, e não pela restauração da religião. A questão por trás das afirmações de
Navarra e Duplessis-Mornay era desfazer a relação entre paz e religião, entre
ordem no Estado e ordem na ou da Igreja, entre unidade do reino e unidade
confessional. A questão era incitar a aceitação de um mal menor para evitar um
maior, era a necessidade da dualidade religiosa provisória para impedir a
destruição da França. Era, portanto, a tolerância civil. O benefício que se esperava
dela era a paz, e da paz se esperava que retornasse a França à sua “força natural”.
A tolerância descrita assim baseava-se na conclusão de que insistir na unificação
confessional era prejudicial para o reino, e que o caminho, conseqüentemente, era
não lidar com os aspectos teológicos que motivavam as guerras civis: não era
propósito da tolerância civil dar solução à crise doutrinária aberta pela Reforma
protestante, mas sim à crise política. Com ela, o que os politiques pretendiam era
deslocar a discussão desses problemas teológicos para a utilidade pública,
descartando temporariamente as diferenças de posição quanto à religião para
se aterem à unidade conferida pelo reino, o rei, o Estado. Para Henrique de
Navarra e Philippe Duplessis-Mornay, catolicismo e protestantismo poderiam
coexistir em um reino, desde que da divisão de crenças não resultasse divisão no
35
“Nosso Estado está extremamente doente. Todos o vêem. Por todos os sinais, julgamos que a
causa do mal é a guerra civil. Doença quase incurável, da qual nenhum estado jamais escapou. (...)
Qual o remédio? Nenhum outro senão a paz; a paz, que reinstaura a ordem no coração desse
Reino; que pela ordem lhe devolve a sua força natural, que pela ordem expulsa as desobediências e
os humores malignos; purga os corrompidos, e os enche de sangue bom, de boas intenções, boas
vontades: que, em suma, o faz viver. É a paz: é a paz que se deve pedir a Deus, como único
remédio, como única cura. Quem busca outro, ao invés de curá-lo, quer envenená-lo”, Henri IV,
1589-b, s/p.
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Estado. Mais do que isso, para dar fim às guerras, católicos e protestantes tinham
que aprender a conviver independentemente da apreciação pessoal que tivessem
quanto à opinião alheia. Em outras palavras, catolicismo e protestantismo
deveriam coexistir na França para que se produzisse novamente unidade na
república.
Sentido semelhante, isto é, semelhante concepção da relação entre tolerância
e Estado, em que limite e necessidade se confundem, parece ter o trecho abaixo,
novamente de Bayle:
ce n’est pas à la fausseté des opinions qu’il faut prendre garde quand on veut
savoir si elles doivent être tolérées dans un État, mais à l’opposition qu’elles ont à
la tranquilité et à la sûreté publique
36
.
Mas a afirmação de Bayle tem um propósito diferente da de Navarra. Em
1589 estava-se construindo a idéia de que o Estado deveria ter como objetivo
garantir o bem comum, e, assim desligada da defesa da religião, sua função
passava progressivamente a ser o restabelecimento da paz acima ou apesar de
qualquer oposição da Igreja. A insistência nas características redentoras da paz era
proporcional a um entendimento corrente segundo o qual o protestantismo que
alguns propunham permitir era uma heresia, e a dualidade religiosa prejudicial
para o reino, porque um perigo para a alma: a tolerância tinha, no século XVI, um
significado eminentemente negativo. Após a revogação do édito de Nantes, Bayle
queria convencer seus leitores de que era preciso voltar à tolerância pelo motivo
de que toda religião era válida, todas as manifestações de crença do espírito se
justificavam se houvesse verdadeira fé, o que significava também que tout ce qui
est fait contre le dictamen de la conscience est un péché
37
. Para Bayle, era
impossível determinar, pelo entendimento, isto é, pela razão, qual a verdadeira
religião, e por isso a medida para ela era a determinação da consciência, a força e
a intenção com que o homem se entregava à sua crença, fosse qual fosse
38
.
36
“não é à falsidade de opiniões que se deve atentar quando queremos saber se elas devem ser
toleradas em um Estado, mas à oposição que elas fazem à tranqüilidade e à segurança pública”,
Bayle, op.cit., p.342.
37
“tudo o que é feito contra o dictamen da consciência é pecado”, id., ibid., p.419.
38
A questão do conhecimento verdadeiro, foi uma das mais discutidas do século XVII. Após a
afirmação feita por Descartes (1596-1650) da existência de Deus como base da capacidade de
conhecimento do homem (Deus é a primeira idéia a existir fora do cogito, deixando assim de ser
mera idéia e existindo independentemente do pensamento humano, o que cria a possibilidade de
outras idéias terem existência real), os filósofos empiristas britânicos, como Locke (1632-1704)
que afirma que o se podem conhecer as coisas na sua essência, e portanto não se pode ter, sobre
o mundo natural, conhecimento verdadeiro e Hume (1711-1776) segundo quem o homem não
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Il est impossible dans l’état nous nous trouvons de connaître certainement que
la vérité qui nous paraît (je parle des vérités particulières de la Religion et non pas
des propriétés des nombres, ou des premiers principes de métaphysique, ou des
démonstrations de ométrie) est la vérité absolue, car tout ce que nous pouvons
faire est d’être pleinement convaincus que nous tenons la vérité absolue, que nous
ne nous trompons point, que ce sont les autres qui se trompent (...) il est donc
certain que nous ne saurions discerner à aucune marque assurée ce qui est
effectivement vérité quand nous le croyons, de ce qui ne l’est pas lors que nous le
croyons. Ce n’est point par l’évidence que nous pouvons faire ce discernement, car
tout le monde dit au contraire que les vérités que Dieu nous révèle dans sa parole
sont des mystères profonds qui demandent que l’on captive son entendement à
l’obéissance de la foi. (...) Rien en un mot ne peut caractériser à un homme la
persuasion de la vérité et la persuasion du mensonge. Ainsi c’est lui demander plus
qu’il ne peut faire, que de vouloir qu’il fasse ce discernement
39
.
Desprovido da capacidade de conhecer a verdade absoluta, o homem podia
apenas procurá-la e, em um dado momento, sentir uma verdade. Sua obrigação era
então tomar esse sentimento, que se tornava uma condição essencial da sua
consciência, segui-lo e respeitá-lo. O fato de Bayle creditar a verdadeira a um
sentimento, resultado da impossibilidade de se chegar a ela por conclusão
racional, tem duas conseqüências: por um lado, nenhuma religião poderia ser
reprimida, pois todas teriam o mesmo valor como sentimento da verdade, o que
significava para Bayle que honrar a Deus não era característica particular de uma
religião, mas sim uma ação moral que deveria se repetir em todas as religiões e
desse modo todas as manifestações religiosas da consciência, onde houvesse
verdadeira fé, deveriam ser toleradas. Por outro lado, tolerar não era mais uma
pode obter um conhecimento definitivo, e seu único critério de certeza é a probabilidade –
chegaram a resposta distinta da de Descartes sobre a pergunta acerca da capacidade de
conhecimento do homem. Pascal (1623-1662) apontou igualmente os limites da razão,
considerando que eles apenas poderiam ser superados pela autêntica. Como para Bayle (1647-
1706), era impossível, para Pascal, afirmar racionalmente a existência de Deus. A solução de
Bayle para esse problema, dada pela valorização da experiência individual da religião, do
sentimento verdadeiro da fé, assemelha-se à de Pascal, que decide pelo argumento da aposta, o
pari de Pascal, segundo o qual, na ausência da certeza, é preferível apostar na existência de Deus,
pois quem acredita nela não tem nada a perder, apenas a ganhar: a salvação. Segundo ambos, a
existência de Deus, se não pode ser provada, pode (e deve) ser experimentada.
39
“é impossível, no estado em que nos encontramos, saber com certeza que a verdade que nos
aparece (falo das verdades particulares da Religião, e não das propriedades dos números, ou dos
primeiros princípios de metafísica, ou das demonstrações de Geometria) é a verdade absoluta, pois
tudo o que podemos fazer é estar inteiramente convencidos de que temos a verdade absoluta, que
não nos enganamos em nada, que são os outros que se enganam (...) é certo portanto que nós não
saberíamos discernir por nenhuma marca segura o que é efetivamente verdade quando assim o
cremos, do que não é, quando é nisto que cremos. Não é em absoluto pela evidência que podemos
fazer esse discernimento, pois todos dizem, ao contrário, que as verdades que Deus nos revela na
sua palavra são mistérios profundos que pedem que submetamos nosso entendimento à obediência
da fé. (...) Nada, em uma palavra, pode precisar para um homem a persuasão da verdade e a
persuasão da mentira. Assim, é pedir-lhe mais do que ele pode fazer, querer que ele faça esse
discernimento”, id., ibid., pp.534-536.
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questão de necessidade do Estado, nem era uma postura propriamente religiosa:
tolerar qualquer uma e todas as religiões era uma virtude moral, já que crer
verdadeiramente em um deus era seguir sua consciência e agir moralmente.
Dans la condition se trouve l’homme Dieu se contente d’exiger de lui qu’il
cherche la vérité le plus soigneusement qu’il pourra, et que croyant l’avoir trouvée
il l’aime et il règle sa vie. Ce qui comme chacun voit, est une preuve que nous
sommes obligés d’avoir les mêmes égards pour la vérité putative que pour la vérité
réelle. (...) Le principal est ensuite d’agir vertueusement, et ainsi chacun doit
employer toutes ses forces à honorer Dieu par une prompte obéissance à la
morale. (...) comme la foi ne nous donne point d’autre marques d’Orthodoxie que
le sentiment intérieur et la conviction de la conscience, marque qui se trouve dans
les hommes les plus Hérétiques, il s’ensuit que la dernière analyse de notre
croyance soit orthodoxe soit hétérodoxe est [ce] que nous sentons et qu’il nous
semble que cela ou cela est vrai. D’où je conclus que Dieu n’exige ni de
l’Orthodoxe ni de l’Hérétique une certitude acquise par un examen et une
discussion scientifique, et par conséquent il se contente et pour les uns et pour les
autres qu’ils aiment ce qui leur paraîtra vrai
40
.
Honrar a Deus por uma pronta obediência à moral, e não por submissão a
dogmas. Ser um homem religioso, um homem de , era agir virtuosamente, era
viver de acordo com a moral. A religião e a fé não garantiam sozinhas ao homem
a sua salvação: era preciso que o homem fosse bom:
Si cette Orthodoxie que j’attribue à l’égard de Dieu à des gens qui se trompent
dans le fond est un moyen de salut, ce n’est pas ici le lieu d’en parler, je dirai
pourtant en passant que ni l’Orthodoxie de ceux-là ni celle de ceux qui sont dans
la vérité absolue n’est pas ce qui sauve ; on a beau croire, si on n’est homme de
bien on ne sera pas sauvé
41
.
É preciso que o homem seja bom, somente assim ele será salvo. O homem
bom tem e age segundo o que a moral lhe determina. E ela lhe diz que, sendo
impossível saber sobre a verdade de uma religião, é preciso respeitar a verdade da
40
“na condição em que se encontra o homem, Deus se contenta de exigir dele que procure a
verdade com o maior cuidado possível, e que, acreditando tê-la encontrado, ela a ame e regre sua
vida por ela. O que, como se vê, é uma prova de que nós somos obrigados a ter os mesmos
cuidados com relação à verdade putativa e à verdade real. (...) O principal é, em seguida, agir
virtuosamente, e assim todos devem empregar todas as suas forças em honrar a Deus por uma
pronta obediência à moral. (...) como a fé não nos dá outras marcas de Ortodoxia além do
sentimento interior e da convicção da consciência, marca que se encontra nos homens mais
Hereges, segue-se que a última análise da nossa crença, seja ortodoxa seja heterodoxa, é que nós
sentimos e que nos parece que isso ou aquilo é verdade. Donde concluo que Deus não exige nem
do Ortodoxo nem de Herético uma certeza adquirida por um exame e uma discussão científica, e
conseqüentemente ele se contenta, tanto para uns quanto para outros, que eles amem o que lhes
parecer verdadeiro”, id., ibid., pp.542-545, grifo nosso.
41
“Se essa Ortodoxia que eu atribuo, com relação a Deus, a pessoas que se enganam quanto ao
fundo é um meio de salvação, não é aqui lugar para discutir, direi no entanto en passant que nem a
Ortodoxia desses, nem a daqueles que estão na verdade absoluta, é o que salva; podemos acreditar
à vontade, se não formos homens de bem não seremos salvos”, id., ibid., p.545.
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fé: la conscience qui est dans l’erreur a les mêmes droits que celle qui n’y est
pas
42
, diz Bayle. A tolerância desenvolvida assim admite todas as formas da
crença todas as religiões onde verdadeira porque ela é pensada como
uma qualidade moral. Segundo Guy Saupin, produzindo uma nova interpretação
do conceito de tolerância Bayle foi l’un des premiers à en donner une
formulation positive
43
. Antes um mal menor, uma determinação compulsória da
necessidade, no século XVII a tolerância se torna um bem em si, talvez mesmo o
bem maior, uma premissa da ação humana, que revela o sentiment d’équité, ou
de respect pour la droite raison
44
, que aproxima o homem de Cristo ao repetir as
suas principais características, “l’humilité, la patience, la débonnaireté
45
.
Quanto à sua relação com o Estado, se a falsidade de opiniões por si não
o prejudica; se a religião que tem o súdito em nada interfere na sua relação de
cidadão, é porque aquele limite, o do interesse do Estado, da tranqüilidade
pública, do bem comum, está para Bayle implícito, e o que é preciso construir a
partir dele é a idéia de que, para o homem na esfera pública, outro bem além
daquele do Estado e do que compete à religião – que está sendo progressivamente
deslocado para a esfera privada. Há o Bem, há a ação determinada pela moral.
A tolerância, como pensada depois do século XVII, dificilmente poderia ser
instituída normativamente; ela poderia apenas, como marca da ação virtuosa, ser
abraçada pelos homens um a um, como uma decisão pessoal. O resultado dessa
mudança de paradigma, que foi se construindo desde então, e ainda hoje, é o
afastamento gradativo da experiência da tolerância, entendida como a
possibilidade da coexistência das diferenças no mundo, por razões mais
complexas do que apenas a condição profundamente individualista da sociedade
capitalista. Toda a legislação anti-racista, em defesa das minorias e dos direitos
civis da segunda metade do século XX é uma tentativa de regulamentar a
tolerância das diferenças. E no entanto, o mundo parece se tornar mais e mais
impermeável a essa experiência. A determinação legal tem no século XXI uma
efetividade relativa, ao contrário daquela que caracterizou o édito de Nantes, e à
semelhança da baixa efetividade dos sete éditos de pacificação anteriores a ele. A
42
“a consciência que está em erro tem os mesmos direitos que aquela que o está”, id., ibid.,
p.417.
43
“um dos primeiros a dar a ela uma formulação positiva”, Saupin, 1998, p.125.
44
“sentimento de equidade, ou de respeita pela reta razão”, Bayle, op.cit., p.351.
45
“a humildade, a paciência, a benignidade”, id., ibid., p.49.
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31
vigência da tolerância-moral torna necessária, para ser possível uma determinação
legal reguladora, a criação de um “cadre extra-moral de la tolérance
46
, que
consiste no établissement de principes et de dispositifs qui ne dépendent pas de
la bonne volonté ou de la vertu des individus
47
. O modelo de tolerância religiosa
do século XVII e aquele mais amplamente cultural do século XX não dão conta da
crise atual, gerada pela incapacidade das diferenças de conviveram pacífica e
produtivamente, pois estão ambos inteiramente compreendidos no campo da
moral.
Hoje, como diz Zarka, les démocraties doivent devenir plus tolérantes
48
,
elas precisam se adaptar às novas características e às novas necessidades dos
Estados, das sociedades e das populações, elles doivent accueillir les
différences
49
que, postas em contato, têm que definir novas regras de convivência
e construir um denominador comum entre as tentativas de obrigação à tolerância e
os movimentos contrários a ela. A questão se coloca portanto da seguinte forma: é
necessária a tolerância, como determinação da coexistência das diferenças, mas,
como característica moral, ela não pode ser arbitrada, pode apenas ser desejada e
então posta em prática pelos homens individualmente. Se é novamente necessária
a aplicação desse entendimento da tolerância, e os homens individualmente não
agem com a virtude que idealmente se espera deles, é preciso estabelecer então
novas formas de se chegar a ele. Para Zarka,
la question qu’il faut résoudre est la suivante : quels sont les cadres institutionnels
susceptibles d’établir la tolérance des individus, des groupes, des communautés
dans les États démocratiques aujourd’hui, sans attendre une improbable, et même,
tout à fait utopique, mutation morale de l’humanité ?
50
No caminho que esta tese levanta, a reposta para o problema da destruição
provocada pela incapacidade de coexistência hoje torna necessário retirar o
entendimento acerca da tolerância do campo da moral e devolvê-lo ao da política,
fazendo assim com que ele não precise esperar ou torcer por uma convergência da
humanidade no sentido da ação pelo Bem segundo uma determinação moral. De
46
“quadro extra-moral da tolerância”, Zarka, op.cit., p.16.
47
“estabelecimento de princípios e dispositivos que não dependem da boa vontade ou da virtude
dos indivíduos”, id., ibid., p.16.
48
“as democracias devem tornar-se mais tolerantes”, id., ibid., p.9.
49
“elas devem acolher as diferenças”, id., ibid., p.9.
50
“a questão que é preciso resolver é a seguinte: quais o os quadros institucionais suscetíveis de
estabelecer a tolerância dos indivíduos, dos grupos, das comunidades nos Estados democráticos
hoje, sem esperar por uma improvável, e mesmo completamente utópica, mutação moral da
humanidade?”, id., ibid., p.16.
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volta à esfera política, é preciso instituir uma entidade capaz de gerá-la como
instrumento. O problema da autoridade é assim igualmente presente. Talvez o
modelo de tolerância quinhentista deva ser recuperado.
Sobre ele, diz Michel Grandjean, na introdução de uma coletânea intitulada
Coexister dans l’intolérance: La tolérance au sens nous l’entendons
aujourd’hui, ni les huguenots ni les catholiques romains n’en voulaient
51
. O que
católicos e protestantes do século XVI não queriam era a decretação da outra
religião como a verdadeira, ou a afirmação de que as diferenças entre elas não
eram importantes. O que eles quiseram, depois de grande disputa, foi a tolerância
civil. Por que ela, e não a tolerância religiosa que, existente no século XVI,
fortalece-se no século XVII, e que, como padrão moral, assemelha-se ao sentido
que hoje lhe damos? Porque ao determinar a obrigação do convívio no espaço
público, a tolerância civil garantiu a liberdade na esfera privada, o que significava
que, no seu foro íntimo, o cidadão podia manter livremente a sua opinião, fosse
ela contrária ou favorável às outras religiões ou à política do Estado. No segundo
brevet adicionado às 56 cláusulas oficiais do édito de Nantes, é dada permissão
aos protestantes que estiverem acompanhando o rei de realizarem seu culto dentro
das suas casas, privadamente:
Accorde aussi sa Majesté que, nonobstant la fense faite de l’exercice de ladite
religion à la Cour et suite d’icelle, les ducs, pairs de France, officiers de la
couronne, marquis, comtes, gouverneurs et lieutenants généraux, maréchaux de
camp et capitaines de gardes de Sadite Majesté qui seront à sa suite ne seront
recherchés de ce qu’ils feront à leur logis, pourvu que ce soit en leur famille
particulière tant seulement à portes closes et sans psalmodier à haute voix, ni rien
faire qui puisse donner à connaître que ce soit exercice public de ladite religion
52
.
In secret free
53
, dirá Hobbes, que constrói o Estado, no Leviatã, pensando
na sua própria experiência durante as guerras de religião francesas, guerre de
religion à laquelle cet Etat doit son existence et sa forme
54
, segundo Reinhart
51
“A tolerância no sentido em que nós a entendemos hoje, nem os huguenotes nem os católicos
romanos queriam-na”, Grandjean, 1998, p.8.
52
“Concede também sua Majestade que, não obstante a proibição feita do exercício da dita religião
na corte e séqüito desta, os duques, pares de França, oficiais da Coroa, marqueses, contes,
governadores e lugares-tenentes gerais, marechais de campo e capitães da guarda da sua dita
Majestade, que a estiverem acompanhando, não serão procurados pelo que fizerem nas suas
moradas, desde que seja com as suas famílias particulares apenas, com portas fechadas e sem
salmodiar em voz alta, nem fazer nada que possa dar a perceber que se trate de exercício público
da dita religião”, Garrisson, 1997, pp.96-97.
53
“Em segredo, livre”, Hobbes, 1651, II, 31.
54
“guerra de religião à qual esse Estado deve sua existência e sua forma”, Koselleck, 1979, pp.32-
33.
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33
Koselleck. Em 1685, ou em 2000, mesmo o julgamento mais íntimo e pessoal
estará submetido aos critérios de aprovação, à premissa moral. Nenhum juízo, por
mais secreto, é livre dos seus olhos, pois eles agem dentro do homem, e da própria
consciência não há como fugir. Talvez, dizíamos, seja o caso de reavaliar a
experiência de tolerância do século XVI.
Em 1598, o édito assinado em Nantes por Henrique IV buscava constituir
regras de convivência para acolher as diferenças que de outro modo
caminhavam para a sua destruição mútua e a do reino – ao determinar:
permettons à ceux de ladite religion ptendue réformée vivre et demeurer par
toutes les villes et lieux de ce notre royaume et pays de notre obéissance, sans être
enquis, vexés, molestés ni astreints à faire chose pour le fait de la religion contre
leur conscience
55
.
Essa ordem significava como as cláusulas seguintes afirmarão
nominalmente – que a maioria católica deveria respeitar a vida, a religião, a
propriedade da minoria protestante. E além dela, população originária do reino,
também o governo estava legalmente obrigado a tratar eqüitativamente e não
discriminar as novas massas protestantes no acesso a cargos, educação e saúde,
como se deduz, por exemplo, dos artigos que regulamentam o funcionamento dos
tribunais de justiça compostos por juízes das duas religiões (as chambres mi-
parties) e do artigo XXII:
Ordonnons qu’il ne sera fait différence ni distinction, pour le fait de ladite religion,
à recevoir les écoliers pour être instruits ès universités, collèges et écoles, et les
malades et pauvres ès hôpitaux, maladreries et aumônes publiques
56
.
Era a mesma posição que, após a revogão do édito, Bayle defendia. No
entanto, a motivação de Bayle para a defesa da tolerância era moral e
epistemológica. É a mesma posição que hoje se demanda das democracias
ocidentais, e grande parte dos atuais partidários da coexistência das diferenças
considera que esta é uma experiência regida pela moral. Diferente quanto à
premissa e quanto ao objetivo, o édito de Nantes era, ele também, uma legislação
da tolerância. Mas a sua era uma idéia de tolerância diferente da atual, daquela
55
“permitimos àqueles da dita religião pretensamente reformada viver e permanecer em todas as
cidades e lugares deste nosso reino e países sob nossa obediência, sem serem inquiridos,
atormentados, molestados nem obrigados a fazerem coisa referente à religião contra a sua
consciência”, Garrisson, 1997, p.31, art.VI.
56
“Ordenamos que não seja feita diferença nem distinção por causa da dita religião para receber os
estudantes para serem instruídos nas universidades, colégios e escolas, e os doentes e pobres nos
hospitais, leprosários e casas de caridade públicas”, id., ibid., p.37
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34
que vem se desenvolvendo desde o século XVII, baseando-se não em uma virtude
moral concebida universalmente mas realizada apenas individualmente e sim
na necessidade de um reino. Apesar disso, ele não tolerava menos. Tolerava
diferentemente. Tolerava por outras razões.
Pelo reino se tolerava às vezes com resignação: tolérer ce scandale pour
éviter un plus grand
57
, admitiu Étienne Pasquier em 1562. Às vezes, com
convicção: la douceur, la paix et le repos (...) ne se peuvent acquérir que par la
tolérance des deux religions
58
, certifica o autor anônimo do De la Concorde de
l’Estat. Às vezes, por mera obrigação legal, como na Remosntrance aux Estats
pour la Paix, de 1576: Faut donc demeurer aux termes de l’Édit (...) c’est à dire,
attendant le remède la maladie tolérer
59
. Havia sempre um motivo que
determinava a necessidade desta tolerância, mas ele não se baseava na compleição
moral
60
.
Hoje, portanto como será a partir do século XVII, e diferentemente do
século XVI tolerar é uma virtude moral, e comumente se considera que a sua
primeira experiência moderna foi a tolerância religiosa do século XVII. Segundo
Yves-Charles Zarka, experimentou-se a partir de então o conceito positivo de
tolerância, aquele que admite a diversidade no mundo, e que se sobrepôs ao
conceito negativo de tolerância, em vigência até o seiscentos, que, por sua vez,
57
“tolerar este escândalo para evitar um maior”, apud Jouanna, op.cit., p.101.
58
“a tranqüilidade, a paz e o sossego (...) só podem ser adquiridos pela tolerância das duas
religiões”, De la Concorde de l'Estat..., op.cit., pp.10-11.
59
“É preciso portanto manter-se segundo os termos o Édito (...) quer dizer, esperando o remédio,
tolerar a doença”, Mornay, 1576, pp.35-36.
60
Houve casos em que, no século XVI, defendeu-se a tolerância do protestantismo por se
considerar que todas as religiões eram válidas. Essa posição era uma das três que, apesar de terem
menos partidários do que as idéias de tolerância civil ou da repressão do protestantismo, deram
forma a uma proposta de tolerância religiosa no século XVI. Houve filósofos que acreditavam que
toda opinião deveria ser respeitada; houve aqueles que baseavam sua aceitação de qualquer
religião na certeza da falibilidade do homem; e houve os que defendiam a livre existência de todas
as religiões como formas distintas de atingir um mesmo fim, e chegar a um mesmo Deus. Desse
grupo pode ter feito parte Bodin, ou pelo menos um tratado seu, publicado por volta de 1593: o
Colloquium Heptaplomeres. Nele, sete sábios de religiões diferentes discutiam suas divergências e
concluiam não haver verdadeira diferença entre suas religiões. Tal idéia lhe valeu críticas e mesmo
uma acusação de ateísmo. Também Étienne Pasquier afirmou, na sua Exhortation aux princes et
seigneurs du Conseil privé du Roy pour obvier aux seditions qui... semblent nous menacer pour le
fait de la Religion (1561), que, apesar de pessoalmente acreditar que havia apenas uma religião
verdadeira, os caminhos protestante e católico levavam a um mesmo Deus: tous aspirons à la
connaissance, service, et adoration d’un seul Dieu” (“todos aspiramos ao conhecimento, serviço, e
adoração de um só Deus”, Pasquier, 1561, p.5). Em geral, a tolerância religiosa teve poucos
aderentes no século XVI, e o foi a partir da sua atividade política nem da sua argumentação
(apesar de, como debate acerca da tolerância, ela ser importante para o estabelecimento do
ambiente de discussão quinhentista) que se optou pela tolerância civil; mas ela ganhará força no
século seguinte.
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limitava-se “à la simple admission de l’existence de ce qu’on ne peut pas détruire,
mais qu’on ne veut pas voir et dont on nie la valeur
61
. O entendimento moderno
da tolerância teria resultado da discussão filosófica desenvolvida na Inglaterra e
na França quando a revogação do édito de Nantes por Luís XIV, em 1685,
reacendeu a questão da coexistência de duas religiões em um mesmo reino do
Ocidente europeu. Para Zarka, la tolérance a le plus souvent été perçue comme
une notion morale, et elle l’est
62
. Mas antes da virtude de tolerar do Grand
Siècle, houve outra experiência de coexistência das diferenças, promovida por
outra razão que não a correção moral, mas que também não tinha o caráter passivo
que Zarka lhe empresta. Outra matriz, portanto, que poderia resultar, hoje, em
outra espécie de tolerância. O que levava católicos e protestantes a tolerarem-se
mutuamente em 1598? Uma necessidade.
Em 1550, Pierre de Ronsard, grande poeta da corte francesa, havia
publicado uma Ode de la paix. Oito anos depois publicará uma Exhortation pour
la paix, e no ano seguinte, 1559, La paix. Au roy. Em 1568, surgem as Memoires
des choses advenues sur le Traicté de la Pacification des Troubles qui sont en
France. Avec l'exhortation à la Paix ; e, em 1570, a Exhortation aux François
pour vivre en concorde et jouir du bien de la paix, de Louis Le Roy. Em 1574,
Philippe Duplessis-Mornay publica a sua Exhortation à la paix aux catholiques
françoise, e, dois anos depois, a Remonstrance aux Estats pour la paix. Ainda em
1576, a Coroa faz imprimir uma Harengue du Roy nostre sire, faicte en
l'assemblée des Estatz, par laquelle sa Majesté claire la bonne affection qu'il a
de faire vivre tous ses subjectz en bonne paix, union, et concorde. 1585 é o ano de
publicação da Apologie de la paix. Representant tant les profficts et commodités
que la paix nous produict, que les malheurs, confusions, & desordres qui naissent
durant la guerre, de Étienne Pasquier. Três anos mais tarde, em 1588, aparece o
anônimo Exhortation pour la paix et re-union des Catholiques François. Em
1592, Guillaume Du Vair publica Exhortation à la paix adressé à ceux de la
Ligue. Em 1599, surge o De la Concorde de l'Estat. Par l'obseruation des Edicts
de Pacification.
61
“à simples admissão da existência do que não podemos destruir, mas que o queremos ver e
cujo valor negamos”, Zarka, 2002, p.IX
62
“A tolerância foi mais comumente percebida como uma noção moral, e ela o é”, Zarka, 2004,
p.15.
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Necessidade de paz. Era dela que os franceses, católicos e protestantes,
precisavam em 1598. Depois de 36 anos de guerras civis, como chegar a ela? Pela
separação entre Estado e Igreja, entre política e religião. Pela imposição da
coexistência religiosa provisória. Pela tolerância civil.
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I.
A Reforma protestante e as primeiras guerras de religião
na França
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1.
1519-1560
A Reforma protestante e a França
Entre junho e julho de 1519, Martinho Lutero, Andréas Bodenstein,
conhecido como Carlstadt, Philippe Melanchton e Johann Eck encontram-se em
Leipzig para um debate. Os três primeiros, liderados por Lutero, sustentam a idéia
de que a salvação do homem não emanava da autoridade do papa, nem da Igreja
de Roma, mas sim da Igreja como congregação de fé, a quem este poder havia
sido outorgado por Deus. Johann Eck, vice-chanceler da Universidade de
Ingolstadt, defende o papa e sua Igreja dos ataques de Lutero, sem no entanto
dissuadi-lo das suas teses. De comum acordo, os dois grupos divergentes decidem
recorrer às faculdades de teologia de Paris e de Ehrfurt, apresentando suas
posições respectivas e esperando um veredicto sobre elas. Em 4 de outubro, o
duque de Saxe, que abrigava o debate, envia à Sorbonne a cópia dos argumentos
apresentados. É a primeira vez que as idéias de Lutero quanto à religião e à
autoridade da Igreja de Roma entram na França.
No Império, elas haviam causado furor. Entre 1516 e 1520, 77 obras de
Lutero foram publicadas, das quais houve, nesse mesmo intervalo, 457 reedições.
Entre elas estavam as 95 teses afixadas na porta da igreja de Wittenberg (1517), o
Sermon von dem Ablass und Gnade (Sermão sobre a indulgência e a graça,
1518), e Von dem Papsttum zu Rom (Sobre o papado de Roma, 1520). Além das
discussões mais, ou menos, eruditas e teológicas que suscita entre os seus leitores,
Denis Crouzet afirma que Lutero teria catalisado primeiro no Império, depois
em outros reinos da Europa onde suas obras foram traduzidas os medos e as
representações do maravilhoso no imaginário popular.
Vite, après 1517, dans l’imaginaire dominant, le merveilleux se déplace et se fixe
sur un autre axe de représentation : désormais, les messages divins sont reçus
comme tous, de plus ou moins près, liés à un fait unique : l’apparition, sur le
devant de la scène religieuse allemande, d’un homme, Martin Luther
63
.
63
“Rápido, depois de 1517, no imaginário dominante, o maravilhoso se desloca e fixa-se em um
outro eixo de representação: d em diante as mensagens divinas são recebidas como estando
todas, de mais ou de menos perto, ligadas a um fato único: o aparecimento, no cenário religioso
alemão, de um homem, Martinho Lutero”, Crouzet, 1996, p.12.
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O imaginário alemão passará a se cobrir, a partir de 1517, de
pressentimentos escatológicos e de ameaças divinas. Monstros nascem por todo o
Império, e um novo dilúvio é anunciado para muito em breve. Em 1480,
prognósticos publicados na Alemanha dão conta, para os anos de 1524-1525, de
un grand déluge aquatique qui répéterait le déluge vétéro-testamentaire et qui
viendrait punir le monde
64
. Segundo Crouzet, o dilúvio iminente é anunciado por
cerca de 56 autores, em 131 impressões, entre 1500 e 1520
65
.
O medo que as idéias de Lutero provoca em alguns homens é acompanhado
pela esperança de renovação da Igreja que outros depositam nele. Um círculo de
alunos e professores da Universidade de Wittenberg, os humanistas de Ehrfurt,
Strasbourg, Freiburg e da Basiléia, além de Erasmo, artistas como Hans Holbein,
Lucas Cranach e Albert Dürer, e autoridades seculares alemãs, em especial o
eleitor da Saxônia e o cavaleiro Ulrich von Hutten, apóiam Lutero sobretudo por
considerarem que ele representa a natio germanica contra os interesses de Roma
66
.
Procurando dar uma resposta às angústias do povo que o trouxesse de volta
à Igreja, e opondo-se às posições favoráveis a Lutero, Roma torna pública, em
novembro de 1520, a bula Exsurge domine, datada de 15 de junho, em que
condena 41 proposições de Lutero e ordena que todas as suas obras sejam
queimadas. Em agosto e novembro de 1519, as faculdades de teologia de Colônia
e de Louvain, respectivamente, haviam condenado várias das propostas de Lutero,
e no ano seguinte, em fevereiro, as duas faculdades decidirão pela censura
daquelas idéias. Em 10 de dezembro de 1520, é Lutero quem queima
publicamente, em Wittenberg, escritos de Johann Eck e a bula papal, publicando,
em seguida, Por que os escritos do Papa e dos seus discípulos foram queimados
pelo doutor Martinho Lutero, Alemão. Menos de um mês depois, em 3 de janeiro
de 1521, Roma excomunga Lutero.
Para evitar que as idéias de Lutero se espalhassem pelo resto da Europa, e
pontualmente na França, Eck, seu opositor em Leipzig, recorre ao inquisidor
dominicano para, segundo Denis Crouzet, mobiliser une opposition à Luther
parmi les dominicains de Paris
67
. Mas a faculdade de teologia de Paris tarda em
64
“um grande dilúvio aquático que repetiria o dilúvio do Antigo Testamento e que viria punir o
mundo”, Crouzet, 1990, I, p.108.
65
id., ibid., I, p.108.
66
cf. Crouzet, 1996, pp.30-31.
67
“mobilizar uma oposição a Lutero entre os dominicanos de Paris”, id., ibid., p.72.
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se pronunciar sobre o debate. São meses de espera que ne furent pas sans avoir
en conséquence favorisé la libre circulation des idées luthériennes
68
, afirma
Crouzet. A partir de 1519 são as publicações de Lutero que começam a entrar na
França. O impressor Jean Froben lhe escreve em 14 de fevereiro de 1519 para
informar que 600 exemplares do seu Opera seu lucubrationes, de 1518, foram
enviados à França e à Espanha. Até na Sorbonne, diz Froben, os livros são lidos.
Em novembro do ano seguinte, 1520, o humanista Henri Loriti diz em carta a
Huldrych Zwingli que um só livreiro de Paris havia vendido 1400 livros de
Lutero. Em 1521, o escrito em que Lutero justificava, em dezembro de 1520, a
sua ruptura com a Igreja é publicado na França com o título Porquoi les livres du
pape et de ses disciples ont été brûlés par le docteur Martin Luther.
Como na Alemanha, Lutero provoca grande comoção entre os franceses.
Também na França se fala do surgimento de monstros e de dilúvios, previstos por
astrólogos para os primeiros dias de fevereiro de 1524. Crouzet transcreve as
previsões de “Maistre Henry de Fines”, que afirma que
selon la commune opinion des Astrologues (...) ledit déluge prendra son origine le
II. jour du mois de Février M. CCCCC. XXIIII. à dix heures XVIII. minutes. (...)
l’eau commencera à tomber du ciel en si grosse abondance qu’il est impossible de
le savoir narrer et seront les gouttes d’eau si grosses et enflées que une seule
pourra abattre et effondrer un gros édifice
69
.
A terra tremerá e a água engolirá cidades como Vienne, enquanto aquelas
situadas no litoral, como Anvers, Bruges, Nápoles, Veneza e Marselha, serão
destruídas. É então também na França, segundo Crouzet, que
Luther est le grand corrupteur de l’Église, celui par qui le mal est venu comme
soudainement, et, comme dans une réécriture obligée de l’histoire proche, les
signes qui jadis avaient été rapportés à la corruption de l’Église, désormais, sont
réinterprétés comme les présages de son apparition maléfique
70
.
Sem esperar as conclusões da Sorbonne, Francisco I, em 18 de março de
1521, decide agir, e ordena ao Parlamento de Paris que faça perquirições entre os
68
“não deixaram conseqüentemente de favorecer a livre circulação das idéias luteranas”, id., ibid.,
p.77.
69
“segundo a opinião comum dos Astrólogos (...) o dito dilúvio terá origem no segundo dia do
mês de fevereiro de 1524 às 10 horas e 18 minutos. (...) a água começará a cair do céu em tamanha
abundância que é impossível saber narrá-lo, e serão as gotas d’água tão grandes e cheias que uma
só poderá derrubar e destruir um grande edifício”, apud Crouzet, 1990, I, pp.110-111.
70
“Lutero é o grande corruptor da Igreja, aquele por via de quem o mal chegou subitamente, e,
como numa reescritura obrigatória da história próxima, os sinais que anteriormente haviam sido
relacionados à corrupção da Igreja passam a ser reinterpretados como o presságio do seu
aparecimento maligno”, Crouzet, 1996, p.12.
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livreiros e impressores da cidade a fim de impedir que publicações sem a prévia
aprovação da faculdade circulassem. Finalmente, em 15 de abril, a Sorbonne
seu veredicto, publicado na Determinatio theologicae Facultatis Parisiensis Super
doctrina Lutheriana. Excomungado pela Santa Sé, Lutero tem poucas chances de
ter suas teses aprovadas pela faculdade de teologia de Paris. Dividida, no entanto,
ela praticamente ignora a consulta que lhe havia sido apresentada em outubro de
1519 e concentra sua sentença sobre as obras de Lutero que, entre 1519 e 1521,
estavam sendo publicadas no Império e lidas na França. São três, em especial, que
provocam a resposta da Sorbonne: An den christlichen Adel deutscher Nation (À
Nobreza Cristã da Nação Alemã), De captivitate babylonica Ecclesiae (Do
cativeiro babilônico da Igreja), e Von der Freiheit eines Christenmenschen (A
liberdade de um cristão). Publicadas em 1520, nessas obras, segundo Pierre
Mesnard, é Lutero lui-même qui va s’affirmer, parlant au peuple sa propre
langue et donnant à l’Allemagne la charte la plus exacte de ses revendications
71
.
O panfleto À Nobreza Cristã da Nação Alemã e o tratado A liberdade de um
cristão são publicados em alemão e têm grande difusão. Neste segundo texto,
deduz-se, a partir da doutrina da justificação pela justificatio sola fide a
liberdade do homem cristão: La foi suffit donc au chrétien”, diz Lutero, il n’a
besoin d’aucune oeuvre pour être pieux. Mais n’ayant besoin d’aucune oeuvre, il
est à coup sûr affranchi des lois et des préceptes. Et affranchi il est libre
72
.
Sobre a idéia de liberdade cristã Lutero baseia sua proposta de sacerdócio
universal, retomada no À Nobreza Cristã da Nação Alemã. Neste texto é ainda
mais nítida a crítica à hierarquia católica: sacerdócio universal significa que todo
fiel pode, no lugar da Igreja de Roma, dar corpo e voz ao ministério espiritual.
apenas uma forma que pode assumir a hierarquia clerical, a da delegação de um
direito que todos possuem, mas apenas um exercerá. O exemplo de Lutero retoma
do direito alemão a noção de Gesamte Hand
73
:
C’est comme si dix frères, fils et héritiers d’un roi, se concertaient pour conférer à
l’un d’entre eux le droit d’administrer l’héritage commun. Bien qu’ils aient remis à
71
“ele mesmo que vai afirmar-se, falando ao povo sua própria ngua e dando à Alemanha a carta
mais exata das suas reivindicações”, Mesnard, 1977, p.191.
72
“A lei é suficiente portanto para o cristão, ele não precisa de nenhuma obra para ser pio. Mas
não precisando de nenhuma obra, ele está com certeza liberto das leis e preceitos. E liberto ele é
livre”, Lutero, De la liberté... apud id., ibid., p.192.
73
Em português, literalmente, mão-comum.
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un seul la direction des affaires, ils n’en sont pas moins tous rois et tous égaux en
dignité
74
.
Único dos três escritos luteranos de 1520 publicado em latim, Do cativeiro
babilônico da Igreja tinha destinatários específicos, segundo Mesnard, os
membros da hierarquia romana, a quem Lutero se dirigia ao considerar que
l’Église est captive à Babylone parce qu’au lieu de recevoir directement la
parole de Dieu, les fidèles se voient imposer une autori illégale et des
sacrements invalides
75
.
As idéias apresentadas por Lutero nessas três obras, que vão da submissão
do papado à autoridade da Escritura, até a discussão acerca da necessidade de uma
disciplina clerical, passando pela reforma dos sacramentos, são consideradas
“subversivas”
76
pela faculdade de teologia de Paris, que não pode senão condená-
las como tal. A Determinatio acusa Lutero de ter retomado nos seus textos antigas
doutrinas heréticas de maniqueístas, cátaros, hussitas, entre outros, que haviam
sido condenadas pela Igreja. Para a Sorbonne, Lutero
est l’homme qui est dit chercher à duire le peuple en ataquant le pouvoir de
l’Église et de la hiérarchie, en créant un schisme, en déformant l’Écriture et en
blasphémant contre le Saint-Esprit
77
.
A quarta parte dos 104 pontos analisados na Determinatio refere-se às
propostas que aparecem no Do cativeiro babilônico da Igreja. Mas, sobre o
questionamento da primazia do papa, a Sorbonne não se pronuncia na
Determinatio, como, ainda no início dos debates sobre a consulta feita por Lutero
e Eck, havia deixado pendente questão semelhante com a seguinte anotação: in
materia de Leuter de qua fuerat articulus, non fuit conclusio pacifica
78
. Denis
Crouzet acredita que o silêncio da faculdade se deva sobretudo à força da Igreja
galicana, que mantinha uma relativa independência com relação à Santa Sé, tendo
por exemplo autoridade para gerir os impostos e dízimos coletados. Orgulhosa da
74
“É como se dez irmãos, filhos e herdeiros de um rei, entrassem em acordo para conferir a um
deles o direito de administrar a herança comum. Mesmo que eles tenham transmitido a um a
direção dos negócios, eles não são menos reis, e todos iguais em dignidade”, Lutero, À la
noblesse... apud id., ibid., p.193.
75
“a Igreja está cativa na Babilônia porque em lugar de receberem diretamente a palavra de Deus,
os fiéis vêem-se impor uma autoridade ilegal e sacramentos inválidos”, Mesnard, op.cit., p.191.
76
Crouzet, 1996, p.77.
77
“é o homem de quem se diz buscar seduzir o povo atacando o poder da Igreja e da hierarquia,
criando um cisma, deformando a Escritura e blasfemando contra o Espírito Santo”, id., ibid.,
pp.77-78.
78
Apud id., ibid., pp.76-77.
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concordata de Bolonha, de 1516, a Igreja francesa não teria conseqüentemente
interesse em reforçar a autoridade de Roma em detrimento da sua própria.
Enquanto a França decidia como lidar com os problemas gerados, para o rei
e para o clero, pela divulgação das idéias de Lutero, na Alemanha começava a
Dieta de Worms, convocada por Carlos V sob as pressões antagônicas do papa, de
Erasmo e do eleitor da Saxônia. Dois dias depois da publicação da Determinatio,
em 17 de abril de 1521, Lutero comparece à Dieta para apresentar suas doutrinas.
Recusando a retratação exigida pelo papa, ele reforça sua posição quanto à
primazia da Escritura sobre a autoridade do papa: Si l’on ne me convainc pas par
le témoignage de l’Écriture ou par des raisons décisives, je ne me puis rétracter :
car je ne crois ni à l’infaillibilité du pape ni à celle des Conciles
79
.
A resistência de Lutero contra Roma invalida os esforços de Erasmo e do
eleitor da Saxônia junto ao imperador para evitar uma condenação. O resultado da
Dieta de Worms, onde houve esperanças de uma reconciliação, é o banimento de
Lutero das terras do Império e a destruição de toda a sua obra. Em 26 de maio de
1521 o édito contendo essas ordens é assinado por Carlos V. Escondido nas terras
do eleitor da Saxônia, Lutero começa a trabalhar febrilmente na primeira tradução
alemã do Novo Testamento, pronta pouco mais de um ano depois, em setembro de
1522. Apesar da ão da Igreja e do Imperador, portanto, Lutero continua
escrevendo, e, talvez mesmo por causa dela, seus livros são cada vez mais lidos.
Na França, depois das buscas e apreensões ordenadas por Francisco I em
março de 1521, e da decisão da Sorbonne pela condenação de Lutero, completada
em maio do mesmo ano por um pedido de erradicação das idéias por ele
defendidas, o Parlamento de Paris, em junho de 1521, promulga a proibição da
impressão e da venda de qualquer escrito sobre a religião, a Igreja ou sobre as
Escrituras que não tenha sido previamente aprovado pelos censores da faculdade
de teologia. Como no Império, tais decisões, ao invés de impedirem a circulação
das idéias de Lutero, resultam no aumento da procura por seus livros, e no
conseqüente aumento da produção. Em julho a Sorbonne constata que traduções
francesas das obras do reformador alemão são comercializadas na capital, e em 3
de agosto de 1521 um édito real anunciado oralmente em Paris – ordena a tous
79
“Se não me convencerem pelo testemunho da Escritura ou por razões decisivas, não me posso
retratar: pois não acredito nem na infalibilidade do papa nem na dos concílios”, apud id., ibid.,
p.35.
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libraires, imprimeurs et autres gens qui avaient aucuns livres de Luther
80
que os
entreguassem às autoridades sob pena de 100 libras de multa e prisão. Novas
traduções, e novas impressões, continuam a ser produzidas. A irmã de Francisco I,
Margarida de Navarra, encomenda pessoalmente em 1524 traduções francesas do
De votis monasticis (1521) e do Sermo de praeparatione mortis (1520)
81
. Alguns
anos mais tarde, em 1533, Margarida fatraduzir também o seu Livro de Horas,
do qual ela havia retirado várias orações à Virgem Maria e aos santos
82
. Os anos
seguintes, e a baixa efetividade das ações da Coroa, do parlamento e da faculdade
de Paris, trazem o endurecimento da repressão às idéias luteranas, a essa altura
oficialmente consideradas heréticas
83
. Não são mais apenas as obras de Lutero que
devem ser destruídas: a publicação pela Sorbonne da Determinatio e a Dieta de
Worms haviam provocado na França o início de um movimento de contestação
das decisões da Coroa, do Parlamento e da Santa Sé. Segundo Crouzet, trata-se de
um combate à distância pela via das publicações, que ele chama de guerra de
libelos”
84
.
Ainda em maio de 1521, mês seguinte à apresentação da Determinatio,
Philippe Melanchton publica uma resposta à Sorbonne, Adversus furiosum
Parisiensium Theologastrorum decretum, traduzida e vendida na França já em
julho do mesmo ano. O próprio Lutero seria o autor de outra refutação da
Determinatio, a Determinatio secunda almae facultatis theologiae parisiensis,
uma sátira em que o autor faz-se passar por um pretenso censor da publicação de
Melanchton. Em 3 de outubro todos os exemplares que se puderam encontrar em
Paris do Adversus furiosum são queimados em praça pública. Em 4 de novembro,
a multa instituída para os livreiros e impressores que tiverem obras de Lutero é
aumentada para 500 libras, e o banimento é instituído como punição em
substituição à prisão. As obras de Lutero e a guerra de libelos” se espalham para
fora de Paris, e com elas as proibições da Coroa e as censuras da Sorbonne: no
início de maio de 1522, o Parlamento de Paris recebe uma demanda da faculdade
de teologia pedindo a expansão do regime de censura para todo o reino: segundo a
requisição, obras composées par un nommé Lutherestariam sendo vendidas em
80
“todos os livreiros, impressores e outras pessoas que tivessem livros de Lutero”, apud id., ibid.,
p.79.
81
Gilmont, 2005, p.19.
82
Crouzet, 1996, p.221.
83
id., ibid., p.79.
84
id., ibid., pp.79-80.
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toda parte, au grand prejudice du salut des âmes, scandale et injure de notre
mêre l’Église, et dont peut advenir schisme au peuple chrétien et irréparable
dommage
85
. Paralelamente, teólogos franceses começam a publicar tratados em
que defendem os dogmas e a Igreja de Roma das acusações e inovações propostas
por Lutero e seus seguidores. Entre 1524 e 1526, Josse Clichtove é o autor mais
ativo, publicando em latim obras contra Lutero e Erasmo. Nesses mesmos anos,
diversas publicações em francês de adversários de Lutero. A região da Lorena
é um centro de repressão extremamente ativo, a partir do qual inúmeros textos
contrários às idéias luteranas são difundidos. Denis Crouzet sustenta que o duque
de Lorena reúne ao seu redor
une véritable machine de guerre contre Luther, qui ne se limite pas à sa traduction
en une action répressive en Lorraine même ou en Alsace, mais dont les retombées
sur le royaume de France sont agencées par le biais d’impressions de textes
86
.
Nessas obras, como naquelas impressas por todo o reino, a oposição às
idéias luteranas soma-se aos ataques contra o humanismo cristão, presente na
França, sobretudo, através de publicações das obras de Erasmo e de Lefèvre
d’Etaples. Ao agirem contra o avanço das idéias de Lutero na França, a faculdade
de teologia de Paris e a Igreja galicana criam um amálgama entre estas e aquelas,
isto é, entre o movimento de reformatio da Igreja proposto por Erasmo e a
renovação que depois de 1521 se torna reforma de Lutero. A Coroa, por outro
lado, fazia uma distinção entre esses movimentos, e, para ela, segundo Crouzet e
Robert Knecht, “l’objectif était avant tout de lutter contre la pénétration des
thèses luthériennes
87
. Comparada à de parte da Igreja francesa, a reação do rei
pode parecer branda, o que não impediu que, em 1523, um eremita fosse
queimado em Paris sob a acusação de heresia protestante, e uma repressão quase
aleatória se abatesse sobre “hereges” e “blasfemadores”
88
. Quando o rei é feito
prisioneiro após a derrota na batalha de Pávia, contra a Espanha, o Parlamento de
Paris e a Sorbonne passam a comandar com vigor – e alguns excessos – a
repressão aos simpatizantes de Lutero na França. O regresso de Francisco I, em
85
“compostas por um chamado Lutero”, “para grande prejuízo da salvação das almas, escândalo e
injúria da nossa mãe a Igreja, e das quais pode resultar cisma para o povo cristão, e irreparável
dano”, apud id., ibid., p.81.
86
“uma verdadeira máquina de guerra contra Lutero, que não se limita à sua tradução em uma ação
repressiva na Lorena mesmo ou na Alsácia, mas cujas repercussões no reino da França são
mediadas pela via da impressão de textos”, id., ibid., pp.85-86.
87
“o objetivo era em primeiro lugar lutar contra a penetração das teses luteranas”, id., ibid., p.86.
88
Lecler, op.cit., p.408.
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1526, ameniza a fúria das autoridades católicas do reino, mas confirma a intenção
da Coroa de manter a unidade religiosa na França. Neste mesmo ano, o
Parlamento proíbe, além da posse, da impressão, tradução e venda de livros de
Lutero, os debates e conversas “sur tous points de doctrine ou de discipline
autrement que suivant la coutume de l’Église
89
. O texto do decreto, transcrito por
Mesnard, estabelece a “défense en un mot d’agir sur l’opinion par discours,
sermons, disputations, conversations publiques ou privées, par livres imprimés ou
manuscrits
90
. Em 1528, os bispos franceses reunidos no concílio provincial de
Paris fazem, na sessão de encerramento, a seguinte recomendação ao rei:
La félicité et la gloire n’ont appartenu qu’aux princes qui, s’attachant
inébralablement à la foi catholique, ont poursuivi et exterminé les hérétiques
comme ennemis capitaux de leur couronne
91
.
O rei deixa o Parlamento e a faculdade de teologia agirem, sobretudo após
as irrupções iconoclastas entre 1528 e 1530. Em dezembro de 1533, ele mesmo
ordena a aplicação de duas bulas papais contra a heresia protestante. Em dois
meses, cerca de trezentas pessoas são presas sob tal acusação
92
. Na mesma época,
é com a aprovação do rei que sua irmã, Margarida de Navarra, empreende
tentativas de conciliação entre a Coroa e os reformadores. Para Mesnard, este é
um momento marcado por “violentas oscilações da política religiosa”
93
francesa.
O que parece emanar das posições – às vezes opostas – mantidas por Francisco I é
um esforço de consolidação da autoridade monárquica francesa, tanto dentro,
quanto fora do reino: o concílio para a reunificação cristã da Europa representaria
assim o “triunfo”
94
da França.
Margarida escreve ela mesma a Melanchton para propor um concílio
universal que restaurasse a unidade religiosa. São então promovidos na França os
primeiros encontros e colóquios com o objetivo de unir novamente católicos e
protestantes em uma mesma igreja. Se o movimento de conciliação não é bem
89
“sobre qualquer ponto de doutrina ou disciplina de outra forma que não segundo o costume da
Igreja”, Mesnard, op.cit., p.272.
90
“proibição, em uma palavra, de agir sobre a opinião por meio de discursos, sermões, discussões,
conversar públicas ou privadas, por meio de livros impressos ou manuscritos”, apud id., ibid.,
p.272.
91
“A felicidade e a glória pertenceram apenas aos príncipes que, ligando-se inabalavelmente à
católica, perseguiram e exterminaram os hereges como inimigos capitais das suas coroas”, apud
Lecler, op.cit., p.409.
92
cf. Mesnard, op.cit., p.273.
93
id., ibid., p.273.
94
id., ibid., p.273.
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sucedido, segundo Joseph Lecler, é porque este parti réformisteliderado pela
rainha da Navarra, pelo cardeal Jean du Bellay e por seu irmão Guillaume du
Bellay tinha contra ele, além de boa parte da Sorbonne e do Parlamento de Paris,
la grande majorité des réformés français. Ceux-ci, remarque Imbart de la Tour,
« ne veulent ni concessions, ni accords. Toutes les mesures conciliatrices de la
couronne les trouvent contre elles »
95
.
À oposição acirrada que ambos os lados fizeram à possibilidade de acordo
entre a doutrina católica romana e a reformada, somou-se ainda a ação de alguns
“extremistas”
96
ou, de toda forma, de um grupo que, para Crouzet, était hostile
à toute tentative de rapprochement des Églises tel que le souhaitaient les
réformistes et les luthériens modérés
97
–, que deu origem ao affaire des placards.
Entre 17 e 18 de outubro de 1534, folhetos protestantes hostis à missa apareceram
em Paris, Orléans, Amboise, Tours, Rouen e Blois, onde foi encontrado um
exemplar preso na porta do quarto do rei
98
. O folheto, com o título de Articles
véritables sur les horribles, grands et insupportables abuz de la Messe papalle,
inventée directement contre la Sainte ne de Nostre Seigneur, seul Médiateur et
Saulveur Jésus Christ, foi provavelmente escrito por Antoine Marcourt, pastor de
Neuchâtel que, depois de ter sido discípulo de Lefèvre d’Étaples, havia passado ao
luteranismo e mais tarde aderira às idéias mais radicais de Carlstadt e Zwingli,
segundo Crouzet, une expérience niant toute possibilité désormais d’une voie
médiane qui permettrait la mise au point d’un compromis avec Rome
99
. A missa
instituída por Roma, como indica o título, é o alvo do placard. Segundo seu autor,
é chegado o tempo de destituí-la, e voltar às formas de reunião e prece da Igreja
primitiva.
Je invocque le ciel et la terre, en tesmoignage de vérité, contre ceste pompeuse et
orgueilleuse messe papale, par laquelle le monde (si Dieu bien tost n’y remedie)
est et sera totallement ruiné, abysmé, perdu et desolé : quand en icelle Nostre
95
“partido reformista tinha contra si os intransigentes da Sorbonne apoiados sobre as massas
populares mas também a grande maioria dos reformados franceses. Estes, nota Imbart de la
Tour, “não querem nem concessões, nem acordos. Todas as medidas conciliadoras da Coroa os
encontram contra si” (Imbart de la Tour, Les origines de la Réformes, III, p.575)”, Lecler, op.cit.,
p.414.
96
Mesnard, op.cit., p.273.
97
“era hostil a qualquer tentative de reaproximação das Igrejas tal como desejavam os reformistas
e os luteranos moderados”, Crouzet, 1996, p.229.
98
Janine Garrisson (Garrisson, 2002, p.153) e Denis Crouzet (Crouzet, 1996, p.224) afirmam que
o quarto do rei em que foram afixados os folhetos era o do castelo de Blois, enquanto Joseph
Lecler fala no de Amboise (Lecler, op.cit., p.402).
99
“uma experiência negando qualquer possibilidade a partir de então de uma via mediana que
permitiria a formulação de um compromisso com Roma”, Crouzet, 1996, p.226.
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48
Seigneur est si oultrageusement blasohémé, et le peuple séduit et aveuglé : ce que
plus on ne doit (...) endurer
100
.
Essa proposição, obviamente repudiada pelas lideranças católicas do reino,
era também, pelo que indica Lecler, contrária à posição de moderação de alguns
grandes protestantes. Mais interessante será perceber que a divergência de
opiniões indica que existia, além do quadro mais geral de oposição entre católicos
e protestante, divisões internas aos protestantes.
Esta dinâmica, que opõe católicos a católicos e protestantes entre si, será
característica das guerras de religião na França. Como em todo grupo formado em
torno a idéias, haverá representantes de posições mais, e menos, intransigentes.
Em 1534, 15 anos após o início da divulgação das propostas de Lutero no reino, é
ainda pouco nítida a divisão entre seus detratores e defensores. Há certamente
uma nobreza católica que, ligada por tradição e parentesco à Igreja, renega as
inovações luteranas. Mas também uma parcela da população formada
sobretudo de nobres e pensadores que, nos anos anteriores, recebiam com
interesse o humanismo cristão de Erasmo que, convertida ou não, é favorável a
alguma mudança dentro da Igreja. Existem os luteranos que abraçam sua nova
religião com a certeza de terem uma missão de reforma a cumprir, e que não
podem, portanto, pactuar nem construir acordo algum com a velha Igreja de
Roma; e ao lado desses, aqueles que acreditam que é possível um diálogo entre as
duas confissões. Mas entre essas posições as distinções o às vezes bastante
tênues, e é difícil determinar as fronteiras entre elas. É possível, no entanto,
afirmar que católicos e protestantes na França e que, de maneira geral, eles se
dividem por serem, respectivamente, desfavoráveis e favoráveis à reforma
luterana, mas que, em alguns casos, o pertencimento religioso não foi
determinante. Pode-se dizer portanto que foi tomando forma, desde então, a
divisão da França em um grupo de católicos intransigentes, outro de protestantes
intransigentes, e outro ainda de católicos e protestantes moderados. A sua relação
com a Coroa é uma questão especialmente complexa, pois a proximidade entre ela
e os partidos católicos e protestantes variou conforme o contexto e o governo
variaram. Em 1534, a Coroa, se a então tinha discordado da violência
100
“Eu invoco o u e a terra, em testemunho de verdade, contra essa pomposa e orgulhosa missa
papal, pela qual o mundo (se Deus o der remédio em breve) está e será totalmente arruinado,
abismado, perdido e desolado, quando nela Nosso Senhor é o ultrajantemente blasfemado, e o
povo seduzido e cego, o que não devemos mais (...) suportar”, apud id., ibid., p.227.
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49
empregada pelo Parlamento e pela faculdade de teologia de Paris, reagirá ao
episódio dos placards assumindo uma atuação crescentemente repressora.
Diante do ataque à instituição religiosa da comunhão contido nos placards,
a faculdade de teologia – dessa vez seguida pela Universidade – e o Parlamento de
Paris lideram uma onda de procissões expiatórias, prisões e execuções na capital.
Nas semanas seguintes, cerca de 200 pessoas são presas, e pelo menos três são
queimadas vivas.
O clero e a nobreza católica lembram ao rei o juramento feito durante a
sagração, o serment du royaume”, em que o rei, a mão sobre os Evangelhos,
jurava à son peuple de lui procurer la paix, la justice et la miséricorde, mais
aussi d’ « exterminer » les hérétiques, c’est-à-dire de les bannir hors du
royaume
101
. Como protetor da religião, exigem que ele aja contra a heresia
protestante. O Parlamento estabelece, por decreto, a assimilação entre os crimes
de heresia e de rebelião. Os luteranos não são apenas inimigos da Igreja, são
inimigos do rei: ils manifestent un refus d’obéissance à sa volonté d’unité
religieuse et (...) ils rompent l’ordre absolu de la police d’un royaume qu’ils
menacent en cette rupture même
102
.
Os projetos de conciliação entre as Igrejas tornam-se inviáveis. Segundo
Lecler,
le résultat fut en effet catastrophique pour les plans des réformistes. L’indignation
du roi et des catholiques fut telle qu’elle déchaîna de nouveau contre le
protestantisme une sanglante répression
103
.
Em dezembro, cerca de dois meses depois do episódio, Francisco I institui
no Parlamento uma comissão especial encarregada de julgar casos de heresia, e
uma subcomissão que deve se dedicar exclusivamente a inquirir sobre os oficiais
da corte soberana última instância da justiça francesa suspeitos de heresia. A
posição do rei quanto ao luteranismo e à repressão reveste-se de uma atuação
contrária ao avanço da reforma proposta por Lutero que o repete, mas não
impede, os métodos usados pelo Parlamento e pela Sorbonne.
101
“ao seu povo de lhe proporcionar a paz, a justiça e a misericórdia, mas também de “exterminar”
os hereges, quer dizer, bani-los do reino”, Jouanna, op.cit., pp.31-32.
102
“eles manifestam uma recusa de obediência à sua vontade de unidade religiosa e (...) rompem a
ordem absoluta do governo de um reino que eles ameaçam por essa ruptura mesma”, Crouzet,
1996, p.399.
103
“o resultado foi, com efeito, catastrófico para os planos dos reformistas. A indignação do rei e
dos católicos foi tal que desencadeou novamente contra o protestantismo uma repressão
sangrenta”, Lecler, op.cit., pp.411-412.
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50
Em 13 de janeiro do ano seguinte, é a vez de um panfleto protestante ser
clandestinamente distribuído pelas ruas de Paris. Retomando pontos
apresentados no folheto de outubro de 1534, este novo impresso concentra-se em
negar a transubstanciação. Durante a eucaristia, diz o autor anônimo, não há
Presença Real, o pão não é o corpo de Cristo, é apenas um sinal da Sua presença
espiritual: a transformação do vinho em sangue, e do pão em carne não deve ser
considerada literalmente, mas apenas no sentido figurado
104
. A reação de
Francisco I a essas propostas é mais rápida e mais violenta. No mesmo dia 13 de
janeiro, um édito real proíbe qualquer impressão de livros na França apenas um
tratado em defesa da eucaristia será publicado sob os auspícios da faculdade de
teologia. Oito dias depois, o rei lidera uma procissão pelas ruas de Paris em honra
do sacramento da eucaristia. À noite, reunido com o Parlamento, o clero, uma
parte da nobreza e os embaixadores estrangeiros, Francisco I denuncia a heresia e
afirma
sa vocation à arracher du corps de son royaume jusqu’au dernier membre qui
serait infecté par le mal. (...) Il encouragea chacun de ses sujets à protéger sa
famille des idées nouvelles. Il engagea chacun d’entre eux à dénoncer les
coupables de l’outrage fait au corps du Christ
105
.
Na mesma noite, seis supostos hereges são queimados, assim como um
carregamento de livros apreendidos. Em 29 de janeiro, outro édito estabelece, para
aqueles que esconderem hereges, a mesma punição, além de instituir uma
recompensa aos delatores no valor de um quarto dos bens de cada denunciado.
Nas semanas e meses seguintes, as fogueiras continuam sendo a punição para os
acusados de heresia, e as prisões ficam cada vez mais cheias. Segundo Pierre
Mesnard, on pend et on brûle (...) sans mesure, le pape lui-même doit ramener le
roi dans le chemin de la modération
106
. Em junho de 1535, Francisco I ordena ao
Parlamento que abandone o rigor das suas punições, e, em 16 de julho, pelo édito
de Coucy, suspende as prisões e permite o retorno dos franceses que haviam
fugido por causa da perseguição religiosa, sob a condição de eles abjurarem
solenemente o luteranismo no prazo máximo de seis meses. A repressão, se
104
Cf. Crouzet, 1996, pp.232-233.
105
“sua vocação para arrancar do corpo do seu reino até o último membro que estivesse infectado
pelo mal. (...) Ele encorajou cada um dos seus súditos a proteger sua família das novas idéias.
Incitou cada um deles a denunciar os culpados do ultraje ao corpo de Cristo”, id., ibid., p.234.
106
“enforca-se e queima-se (...) sem medida, o papa ele mesmo é obrigado a reconduzir o rei ao
caminho da moderação”, Mesnard, op.cit., p.106.
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amenizada, permanece sendo a posição da Coroa em relação à Reforma, e em
maio de 1536 a inquisição é fortalecida na França, com a nomeação do prior do
convento dominicano de Paris como inquisidor-chefe responsável pela defesa da
ortodoxia em todo o reino.
A repressão à Reforma na década de 1530 parece ter sido um dos fatores
que levaram João Calvino a publicar a sua Christianae religionis Institutio, marco
fundamental da Reforma francesa. Antes de Calvino, as inovações em matéria de
religião que vinham do Império centralizadas na reforma da Igreja, dos
sacramentos, na primazia da fé e na redescoberta da Bíblia propostas por Lutero –
eram comumente amalgamadas ao humanismo cristão erasmiano e aos
evangelismos posteriores. Não havia ortodoxia dentro da heterodoxia protestante
francesa. Para Joseph Lecler,
à cette date néanmoins, la Réforme, malgré ses succès, risquait fort de ne pouvoir
s’implanter en France. Sans chefs bien marquants, elle n’était, dans l’opinion
publique, qu’une importation germanique. Elle avait bien des chances d’être
éliminée, tôt ou tard, comme un corps étranger
107
.
Calvino será o principal responsável pela organização de uma Reforma
francesa, distante em vários aspectos da teologia luterana. Começada em 1534 e
publicada em 1536 em latim e em 1541 em francês, a Instituição da Religião
Cristã deveria ser um livro “par lequel ceux qui seraient touchés d’aucune bonne
affection de Dieu, fussent instruits à vraie piété
108
. Segundo Pierre Mesnard, a
violenta repressão iniciada em 1534-1535 na França teria gerado, em Calvino, a
necessidade de ele afirmar a sua própria fé: il s’agira désormais d’une apologie
complète, d’une confession publique, à la face du roi et de l’opinion européenne,
des sentiments qui mènent au bûcher
109
.
Esses sentimentos são os da vida que se coloca sob total aceitação da Lei de
Deus. Mas não daquela instituída pela Igreja. A Lei de Deus também Cristo não a
criou, para Calvino tant seulement il la restituait en son entier
110
. Trata-se do
Decálogo, os Dez Mandamentos que se tornaram os fundamentos da vida cristã.
107
“nessa data contudo, a Reforma, apesar dos seus sucessos, arriscava-se seriamente a não poder
implantar-se na França. Sem chefes realmente marcantes, ela era apenas, para a opinião pública,
uma importação germânica. Ela tinha efetivas chances de ser eliminada, cedo ou tarde, como um
corpo estranho”, Lecler, op.cit., pp.402-403.
108
“pelo qual aqueles que fossem tocados por alguma boa vontade de Deus, fossem instruídos a
verdadeira piedade”, apud Mesnard, op.cit., p.275.
109
“tratar-se-á, daí em diante, de uma apologia completa, de uma confissão pública, frente ao rei e
da opinião européia, dos sentimentos que levam à fogueira”, Mesnard, op.cit., p.275.
110
“ele apenas a restituiu na sua inteireza”, apud id., ibid., p.280.
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52
Como Lutero, Calvino acredita que a verdadeira doutrina cristã está na Bíblia, e
não na Igreja, e que o fiel deve seguí-la em cada passo da sua vida, preferindo à
mediação proposta pelo clero católico o caminho direto pela leitura dos
Evangelhos. Lutero havia recuperado de São Paulo a idéia da origem divina da
autoridade secular a defesa, interpretando literalmente as suas palavras: se
trouve une autorité elle est instituée de Dieu
111
. Para o reformador alemão, não
havia autoridade que não fosse legítima, independentemente de o príncipe ser um
bom governante ou um tirano, e seu objetivo, devido ao fato de ela ser instaurada
por Deus, era perpetuar o amor do próximo. Temente a Deus, o cristão era
obrigado então a servir e a se submeter a essa autoridade, única capaz de guiá-lo
no caminho querido por Deus:
Le chrétien doit vouloir l’État et par conséquent lui obéir avec générosité, parce
que l’État est le milieu normal où s’exerce la charité chrétienne. D’abord c’est à
lui qui se rapportent les services mutuels des citoyens (...). Ensuite et surtout, c’est
en obéissant à ses lois que le chrétien obéit au grand précepte de l’amour. Il
restera donc, tout en se conformant au code séculier, conforme à l’esprit qui
l’anime. Qu’il collabore donc à l’existence de l’État, comme à toute autre oeuvre
de l’amour
112
.
Calvino considera sob uma perspectiva semelhante à de Lutero a autoridade
secular. Na Instituição da Religião Cristã, a mensagem mais contundente é a da
obediência devida à autoridade secular. É ela que implementa e controla a ordem
querida por Deus para o mundo. A sua autoridade tem portanto uma missão
divina, e é, ela mesma, instituída pela Providência. A sua missão é, por outro lado,
o seu limite:
elle n’est autorité que dans la mesure même où elle remplit son rôle qui est
d’organiser la société, d’y faciliter l’ascension vers le Père et la pratique de ses
enseignements. Non seulement tout pouvoir vient de Dieu, mais il n’y a pas de
pouvoir que pour conduire les hommes selon Dieu
113
.
111
“aí onde houve uma autoridade ela é instituída por Deus”, apud id., ibid., p.185.
112
“O cristão deve querer o Estado e, consequentemente, obedecer a ele com generosidade, porque
o Estado é o meio normal onde é exercida a caridade cristã. Em primeiro lugar é a ele que se
reportam os serviços mútuos dos cidadãos (...). Em seguida e sobretudo, é obedecendo às suas leis
que o cristão obedece ao grande preceito do amor. Ele permanecerá portanto, ao mesmo tempo que
se conformando ao código secular, conforme ao espírito que o anima. Que ele colabore então para
a existência do Estado, como a qualquer outra obra do amor”, id., ibid., p.207.
113
“ela é autoridade na medida mesma em que ela exerce seu papel, que é de organisar a
sociedade, de facilitar nela a ascenção para o Pai e a prática dos seus ensinamentos. Não apenas
todo poder vem de Deus, mas só há poder para conduzir homens segundo Deus”, Mesnard, op.cit.,
p.281, grifos no texto.
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53
Instituída por Deus, e portanto parte da Lei de Deus, a autoridade secular
não pode ser questionada pelo súdito-fiel, nem em caso de divergência menor,
nem em caso de tirania. Segundo Simone Goyard-Fabre, Calvino considera a
autoridade secular da seguinte forma: Puisqu’il n’y a d’autorité que par Dieu, le
Pouvoir dans l’Etat est nécessairement investi d’une mission divine : le chrétien,
qui doit servir Dieu, lui doit donc obéissance
114
.
Nas décadas seguintes, uma parte dos protestantes franceses, insatisfeitos
com a conduta da Coroa em relação à permissão ou à repressão do culto
protestante, discordará desse aspecto da doutrina calvinista e pregará o dever de
revolta. Em outros momentos, alguns protestantes usarão esse mesmo argumento
como fundamento para a tomada de armas. A1564, data da sua morte, Calvino
no entanto permanecerá inflexível quanto a esse ponto. Desde a Instituição, a
autoridade do rei, abençoado por Deus, é intransponível, e nenhum movimento de
contestação, direto ou indireto, pacífico ou violento, pode ser feito com relação a
ela.
Se o bom rei é amor, ele inspira o amor dos seus súditos pois, na hierarquia
criada por Calvino, ele é o representante maior do amor de Deus entre os homens.
E por outro lado o mau rei, o tirano, é ira, a ira de Deus : “un mauvais Roy est une
ire de Dieu sur la terre
115
, diz a Instituição da Religião Cristã. A constituição da
autoridade secular, e a sua função, é portanto semelhante em Lutero e Calvino. A
diferença marcante entre os dois reformadores, neste ponto, é a definição de quem
tem a primazia da defesa da obra de Deus. Para Lutero, é a autoridade secular a
responsável pela manutenção da religião: a espada secular trabalha para produzir o
amor do próximo, tout ce qui sera nécessaire à la puissance pour appliquer son
glaive sera aussi au service de Dieu
116
. Para Calvino, é a religião que determina
como age a autoridade secular, é ela que rege as decisões do Estado, da guerra aos
hábitos sociais. Em Genebra, experiência de aplicação da doutrina calvinista, é o
114
“Dado que só há autoridade através de Deus, o Poder no Estado está necessariamente investido
de um missão divina: o cristão, que deve servir a Deus, deve a ele obediência portanto”, Goyard-
Fabre, op.cit., pp.107-108.
115
“um mal Rei é uma ira de Deus sobre a terra”, apud Mesnard, op.cit., p.293, nota 1.
116
“tudo o que for necessário ao poder para aplicar sua espada, o será também a serviço de Deus”,
apud id., ibid., p.209.
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54
próprio Calvino, no Consistório, que controla la pure de cet ordre en
subordonnant le pouvoir temporel aux normes posées par la Bible
117
.
O prefácio da versão latina da Instituição da Religião Cristã (depois
retomado na tradução francesa) é dedicado a Francisco I, segundo Crouzet e
Mesnard como forma de responder à manobra do rei, que vinha justificando a
repressão do protestantismo na França aos príncipes luteranos alemães como ação
legítima do governo contra rebeldes e sediciosos. Mas não no prefácio tom de
repreensão; trata-se, antes, de uma espécie de instrução na qual um fiel súdito, que
considera que o rei não é o responsável pelo mal que fazem em seu nome, precisa
informar e aconselhar seu príncipe. É como se Calvino respeitasse inteiramente a
autoridade do rei nos assuntos do governo secular, mas em matéria de religião, é
ele, Calvino, quem tem a autoridade do verdadeiro conhecimento para transmitir
ao rei. Para Mesnard, o prefácio mostra ao mesmo tempo déférence et juste
soumission envers le prince légitime, mais dignité et indépendance absolue dans
le domaine religieux
118
. Quanto à acusação de sedição, Calvino retoma a Bíblia e
compara os reformadores a Jesus e aos apóstolos: Christ était estimé séditieux
des juifs. On accusait les Apôtres comme s’ils eussent émus le populaire à
sédition
119
. Seus predecessores, como os reformadores do culo XVI, haviam,
em um primeiro momento, sido relegados à ordem dos rebeldes contra o governo
estabelecido, quando a sua missão era restaurar a ordem de Deus e santificar o seu
nome
120
. Ele mesmo considerado um instigador de sedição, Calvino havia deixado
a França em 1534, depois do affaire des placards, e se refugiado na Basiléia, onde
começou a trabalhar na composição da Instituição.
A importância rapidamente conquistada por Calvino não significou, no
entanto, mudança no curso da política de repressão do protestantismo a
paulatina consolidação de uma reforma religiosa francesa pode ter gerado – se não
no rei, em parte do clero e da nobreza católica francesa a certeza da necessidade
de uma atuação mais veemente contra as inovações em matéria de religião. Em
1538 e 1539 novos éditos reais concretizam, segundo Denis Crouzet, “une volonté
117
“a pureza dessa orgem subordinando o poder temporal às normas dadas pela Bíblia”, Mesnard,
op.cit., p.664.
118
“deferência e justa submissão em relação ao príncipe legítimo, mas dignidade e independência
absoluta no domínio religioso”, id., ibid., p.277.
119
“Cristo era tido por sedicioso pelos judeus. Os Apóstolos eram acusados como se tivessem
inspirado o povo à sedição”, apud id., ibid., p.278.
120
cf. id., ibid., p.279.
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55
monarchique d’assumer un système de répression de l’hétérodoxie
121
. O édito de
24 de junho de 1539, três anos depois da publicação da primeira versão da
Instituição, proíbe o protestantismo na França, com o objetivo de purgar o reino
des fausses et diaboliques erreurs
122
de Lutero. É a primeira vez que a nova
confissão é declarada fora da lei pelo rei. Considerado como uma heresia, o
protestantismo torna-se uma rebelião contra a vontade do rei – a defesa da religião
jurada no momento da sagração e merece portanto o mesmo tratamento
dispensado a qualquer caso de sedição. Como rebelde contra o rei, o protestante
deve ser julgado não pelos tribunais episcopais, mas por cortes seculares. Em
1540, o édito de Fontainebleau estabelece a assimilação entre heresia e rebelião,
demandada pelo Parlamento de Paris desde 1534, e especifica que os casos de
heresia serão julgados pelas cortes soberanas. Em 1542, começam a ser
distribuídas as listas de livros proibidos pela faculdade de teologia de Paris, com a
aprovação do rei, e é renovada a interdição de se possuírem exemplares de obras
de Lutero e de seus seguidores e, pela primeira vez, de obras de Calvino, além de
quaisquer escritos que contrariassem os dogmas católicos. Em março de 1543, 63
títulos são repertoriados pela Sorbonne, entre os quais livros de Lutero, Calvino e
Melanchton. No ano seguinte, esses e mais 41 títulos integram o Catalogue des
livres censurés
123
impresso pela faculdade.
No mesmo mês de março de 1543, a Sorbonne, a pedido do rei, publica 25
artigos em que estabelece ce qui est à croire et à prêcher des points qui sont
aujourd’hui tombés en controverse en ce qui concerne notre sainte foi et
religion
124
. O texto define, ao mesmo tempo, o que é a ortodoxia e o que é
heresia tudo o que, em matéria de religião, está fora das normas expostas nele.
São reafirmados os sacramentos outrora atacados por Lutero e Calvino; as boas
obras são reconduzidas como via de salvação, ao lado da fé; a transubstanciação e
os santos são extensamente defendidos; a Igreja é una, universal, infalível, todo
cristão lhe deve obediência, e apenas ela pode interpretar as Escrituras
125
. Como
resposta a essas precisões, que são ataques à reforma protestante, Calvino publica
121
“uma vontade monárquica de assumir um sistema de repressão da heterodoxia”, Crouzet, 1996,
p.399.
122
“dos falsos e diabólicos erros”, Lecler, op.cit., p.416.
123
Crouzet, 1996, p.402.
124
“aquilo que é para crer e pregar entre os pontos que caíram hoje em controvérsia no que se
refere à nossa santa fé e religião”, apud id., ibid., p.404.
125
cf. id., ibid., pp.404-405.
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56
um Petit traité montrant que c’est que doit faire un homme fidèle connaissant la
vérité de l’Évangile quand il est entre les papistes. A mesma vontade de afirmar a
nova fé, expressa na Instituição da Religião Cristã, reaparece neste opúsculo.
Nele, Calvino diz que Deus pede uma dupla homenagem, le service spirituel du
coeur et l’adoration extérieure
126
, o que significa que a fé não pode ser escondida
nem corrompida, e entende-se que isso quer dizer: se for exigido do fiel que
esconda sua para não ser condenado por causa dela, ele não deve ceder. Tout
doit être sacrifié à Dieu
127
, diz Crouzet. Se ainda é difícil estabelecer as
fronteiras entre luteranos e calvinistas, o envolvimento de Calvino no debate
francês e suas freqüentes publicações que, mesmo originárias de Genebra
(Calvino se instala definitivamente nesta cidade em 1541) e mesmo com as
repetidas proibições impostas à produção e circulação de livros sobre religião,
chegam à França, fazem dele progressivamente a autoridade maior da igreja
reformada francesa. Para Crouzet, até a morte de Francisco I, em 31 de março de
1547, o cenário de repressão permanece o mesmo. Mas a crescente presença das
obras e idéias de Calvino entre os protestantes franceses, e o fato de que, apesar
das perseguições, prisões, condenações e execuções de supostos hereges, seu
número continua aumentando, revelam o relativo fracasso da política de
repressão: a reforma não é eliminada do reino. Os primeiros anos do reinado de
Henrique II manterão a mesma dinâmica, e será uma linha um pouco mais
enérgica que tomará a repressão ao protestantismo sob o seu governo.
Em outubro de 1547, o novo rei, Henrique II, constitui uma nova instância
para o julgamento dos crimes de heresia. É a origem da Chambre ardente, que
dará, entre 1547 e janeiro de 1550, uma média de 25 veredictos por s,
totalizando cerca de 500 sentenças contra supostos hereges
128
. No decreto de
criação do tribunal, Henrique II declara que
Avons, en notre cour de Parlement de Paris, créé et établie (...) de notre certaine
science, plaine puissance et autorité royale, (...) une nouvelle Chambre, pour en
icelle, voir, juger et définir les procès infinis et qui se feront ci-après contre lesdits
hérétiques. (...) Voulons, en outre et nous plaît, que en la dite Chambre seulement
et non ailleurs soient vus et jugés tous et chacun les procès d’hérésie et erreurs
contre notre saint foi catholique et que la dite Chambre soit continuée tant et si
longuement que les dits erreurs dureront en notre dis royaume
129
.
126
“o serviço espiritual do coração e a adoração exterior”, apud id., ibid., p.406.
127
“Tudo deve ser sacrificado a Deus”, id., ibid., p.406.
128
cf. Lecler, op.cit., p.419 e Crouzet, 1996, p.413.
129
“Criamos e estabelecemos, na nossa corte de Parlamento de Paris (...), segundo nosso
conhecimento seguro, pleno poder e autoridade real, (...) uma nova Câmara, para nela ver, julgar e
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57
Com semelhante determinação, em 4 de julho de 1549 é organizada uma
procissão pelas ruas e igrejas de Paris, da qual participam o rei, a rainha, Catarina
de Médici, os grandes personagens da cidade, do clero e da nobreza, os doutores
da Universidade e membros das cortes de justiça. É dirigindo-se a esses grupos
que Henrique II, no discurso feito à noite, ainda durante a procissão, renova seu
desejo e a necessidade de todo o reino se empenhar na “déstruction des hérétiques
« luthériens »
130
. Quatro, ou mesmo sete, condenados por heresia são queimados
na presença do cortejo, nas paradas feitas em frente à catedral de Notre-Dame, no
cemitério de Saint-Jean-en-Grève, na igreja de Sainte-Catherine du Val-des-
écoliers e na praça Maubert
131
.
Apesar de, em novembro de 1549, um novo édito revogar o de
Fontainebleau, devolvendo à Igreja a autoridade para julgar os casos de heresia, o
extenso édito de Chateaubriant, de junho de 1551, reitera o papel do rei, e das
cortes de justiça seculares, na defesa da católica. Além das novas
regulamentações para os julgamentos e punições dos casos de heresia, o édito
contém uma série de artigos sobre os livros impressos. Ficam proibidas
importações daqueles produzidos em lieux séparés de l’union de l’Église
132
, e
especialmente em Genebra. São reiteradas as determinações anteriores que
obrigavam à impressão do nome do autor, do nome e da marca do impressor em
todos as publicações, e às visitas bianuais de representantes da faculdade de
teologia aos livreiros; e também as que proibiam a impressão de qualquer obra
incluída do catálogo da faculdade, e a impressão e a venda de traduções da bíblia
ou de obras da patrística não aprovadas previamente pela Sorbonne. Como
conseqüência desses artigos, inúmeros livreiros e impressores trocaram a França
por Genebra. Entre 1540 e 1549, haviam sido repertoriadas na França 196
publicações relacionadas às novas idéias confessionais
133
. Genebra, por outro lado,
decidir os processos infinitos e que se farão daqui para frente contra os ditos heréticos. (...)
Queremos, além disso, e nos agrada que na dita Câmara apenas e não em outro lugar sejam vistos
e vulgados todos e cada um dos processos de heresia e erros contra nossa santa católica, e que a
dita Câmara permaneça funcionando o longamente quanto os ditos erros durarão em nosso dito
reino”, apud id., ibid., p.412-413
130
“destruição dos hereges “luteranos””, id., ibid., p.417.
131
id., ibid., p.417.
132
“lugares separados da união da Igreja”, id., ibid., p.420.
133
id., ibid., p.348.
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58
tinha apenas, segundo Francis Higman, um impressor ativo entre 1545 e 1550
134
.
Depois do édito de Chateaubriant, entre os anos de 1551 e 1559, instalaram-se
nela 72 livreiros e 62 impressores. O crescimento da atividade foi tamanho que os
produtores de papel da região não eram suficientes para suprir a demanda, e foi
preciso importar papel. Conforme reporta Crouzet, se em 1544 foram publicados
17 títulos e, em 1551, 22, dez anos depois, em 1561, serão 48 títulos impressos,
cada um com tiragem média de mil exemplares
135
.
Em um outro eixo de ação, o édito de 1551 instituiu um sistema para
controlar a ortodoxia das autoridades judiciárias, dos membros dos parlamentos,
da nobreza e do clero: a cada três meses, eles deveriam proceder internamente a
verificações que comprovariam a sua permanência na doutrina católica, e os casos
de suspeita de heresia deveriam ser encaminhados às cortes para julgamento.
Além disso, o édito de Chateaubriant também determinava que não deveriam ser
recebidos novos integrantes em cargos e ofícios de justiça e magistratura
municipal sem que antes se confirmasse o seu pertencimento à religião católica.
Artigos como esses eram uma tentativa de impedir que os corpos responsáveis
jurídica, legislativa, religiosa e administrativamente pelo reino fossem
conquistados pela Reforma, o que significa, por outro lado, que se tinha
conhecimento de diversas conversões entre os membros das mais altas hierarquias
francesas. Segundo Denis Crouzet, tout officier qui sera suspecté d’hérésie
encourt un châtiment exemplaire
136
. Em uma das reuniões que periodicamente
deveriam confirmar a ortodoxia do Parlamento, em junho de 1559, o conselheiro
Anne du Bourg será preso, assim como seis dos seus colegas, por defender a
reforma da Igreja católica e condenar as torturas impostas aos acusados de heresia,
e em dezembro será executado, ele, por heresia.
Seguem-se outros decretos e decisões reais que manterão o propósito de
impedir a consolidação e o crescimento da Reforma protestante na França por
meio de uma “repressão enérgica”
137
. No início do ano de 1557, Henrique II pede
ao papa que reforce a inquisição na França, e o pontífice nomeia em abril os três
cardeais que fazem parte do conselho real de Bourbon, Lorena e Châtillon
como grandes inquisidores. No mesmo ano, em julho, o édito de Compiègne
134
apud id., ibid., p.348.
135
id., ibid., pp.348-349.
136
“todo oficial que for suspeito de heresia incorre em um castigo exemplar”, id., ibid., p.470.
137
Jouanna, op.cit., p.51.
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decreta a pena de morte para todos os envolvidos com a nova religião, desde
pessoas que tivessem participado de reuniões e cultos, às que houvessem feito
viagens a Genebra ou possuíssem livros proibidos.
A reiteração das proibições e das perseguições demonstrava, além da
vontade da Coroa de manter a unidade religiosa do reino, a ineficácia da sua ação.
Os anos seguintes a 1557 revelarão a amplitude tomada pela Reforma na França, e
a decisão, por parte da alta nobreza do reino, convertida, de deixar a
clandestinidade em que os cultos eram habitualmente mantidos. O dia 4 de
setembro de 1557 é um exemplo da nova atitude adotada pelos calvinistas
franceses. Nesta noite, foi descoberta em Paris, em uma casa da rua Saint-Jacques,
uma reunião de protestantes para a celebração da eucaristia. É a primeira vez que
um culto com a participação de um número tão grande de calvinistas é reportado:
são entre 300 e 400 participantes, com uma presença significativa de membros da
alta aristocracia. Denunciada por vizinhos, a reunião é interrompida pela guarda
da capital, que consegue prender 130 dos presentes, entre os quais cerca de 30
membros da nobreza francesa, alguns deles senhoras da grande nobreza. Segundo
Arlette Jouanna, “beaucoup de Parisiens découvrent avec effarement le nombre et
la qualité de ceux qu’on appelle encore « luthériens » ou « mal sentants de la
foi »
138
.
No ano seguinte, a saída da clandestinidade é patente: entre três e sete mil
protestantes reúnem-se no campo do Pré-aux-clercs, nos muros da capital, no dia
13 de maio de 1558. Até o dia 19, as procissões em que se cantam os salmos
repetem-se, sempre com a mesma audiência expressiva
139
que inclui o primeiro
príncipe de sangue, Antoine de Bourbon –, e à noite, quando os participantes
entram de volta na cidade, eles carregam tochas e entoam seus hinos aas portas
de suas casas.
Ainda em 1558, outro exemplo, talvez ainda mais significativo, porque
revelador das tensões dentro da nobreza e próximas ao rei: o coronel-geral da
infantaria francesa, François d’Andelot, havia se convertido em 1556, e, em 1558,
assumiu publicamente sua ligação com o calvinismo. A posição de Andelot era
um tanto delicada porque seu irmão, o cardeal de Châtillon, era um dos grandes
138
“muitos parisienses descobrem com espanto o número e a qualidade dos que ainda eram
chamados de “luteranos” ou “desviantes da fé””, id., ibid., p.41.
139
id., ibid., p.41 e Crouzet, 1996, pp.461-463.
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inquisidores da França nomeados no início de 1557 pelo papa. Em viagem à
Bretanha, o coronel-geral levou consigo um pastor parisiense que fez diversas
celebrações, entre elas a da Páscoa, todas de portas abertas e sem intenção de os
participantes manterem-se em segredo. De volta a Paris, chamado pelo rei,
Andelot é preso, e seu cargo é transferido a Blaise de Monluc, célebre defensor do
catolicismo. Com a prisão de Andelot, e a nomeação de Monluc, é uma parcela
intransigente da nobreza católica, liderada pela família de Guise, que começa a
tornar-se hegemônica em torno ao rei. Protegidos pela duquesa de Poitiers, amante
de Henrique II, o cardeal de Lorena e seu irmão, o duque de Guise, lugar-tenente
geral do reino a partir de 1558, cercam-se progressivamente de uma clientela
católica descontente com a presença dos protestantes na França.
Em 1559, em Paris, os calvinistas franceses fazem seu primeiro sínodo
nacional. A estrutura da nova igreja calvinista, que estava sendo organizada e
experimentada pelos líderes da Reforma na França, baseava-se em um sistema
piramidal de assembléias. Na base estavam as igrejas locais; acima delas, os
sínodos provinciais, que reuniam as igrejas de cada província duas vezes por ano.
No topo da pirâmide estava o sínodo nacional, composto de representantes de todo
o reino, que deveria ser convocado apenas havendo necessidade especial. O
primeiro sínodo nacional, de onde saem uma confissão de de 40 artigos e uma
Disciplina de inspiração genebrina, acontece na capital, entre 26 e 29 de maio de
1559, reunindo uma maioria de grandes senhores convertidos que estariam,
segundo Denis Crouzet,
soucieux de disposer d’une déclaration de foi française qu’ils pourraient présenter
au roi, afin de justifier leur conversion et, également, de pouvoir installer sur leurs
terres un culte de fief
140
.
As demonstrações públicas que indicam a organização dos convertidos em
uma nova igreja e seu desejo de institucionalizarem-se provocam na Coroa um
movimento de concentração das suas forças para lidar com a Reforma. A
assinatura do tratado de Cateau-Cambrésis, terminando a guerra italiana contra a
Espanha, em 2 e 3 de abril de 1559, extinguia a guerra contra os inimigos externos
da França e permitia que a Coroa francesa se concentrasse nos seus inimigos
internos, os protestantes. Com o tratado, le but de la politique royale est (...)
140
“preocupados em dispor de uma declaração de francesa que eles pudessem apresentar ao rei,
a fim de justificar sua conversão e, igualmente, de poder instalar nas suas terras um culto de
feudo”, id., ibid., p.464.
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d’ouvrir un front unique face à la dissidence religieuse
141
. O édito de Écouen,
anunciado em 2 de junho do mesmo ano, isto é, uma semana após o início do
sínodo nacional das igrejas protestantes francesas, determina as duas opções aos
convertidos que não abjurarem o protestantismo: a morte ou o exílio. No mesmo
mês de junho a prisão, e mais tarde a condenação, de Anne du Bourg parece
confirmar o novo empenho da Coroa contra o protestantismo. “Tout laisse à
penser que le roi de France Henri II (...) va se consacrer à éliminer les
protestants
142
, diz Jouanna.
Mas no s seguinte, em 10 de julho de 1559, Henrique II morre
acidentalmente, em conseqüência de um ferimento recebido no olho durante um
torneio, dez dias antes. Francisco II, seu filho mais velho, assume o trono aos 15
anos de idade. Os dezoito meses desse curto reinado, entre julho de 1559 e
dezembro de 1560, mantiveram a posição de Henrique II quanto ao
protestantismo, mas o novo rei teve que lidar com os descontentamentos que se
fortaleciam gradualmente desde a década de 1550, e que se desenvolveram em
reações armadas.
Mas não imediatamente contra a Coroa. Em 1560, a situação na França não
era a mesma de 30 nem de 10 anos antes. A Coroa, que em 1551 alinhara-se com
a Igreja e com a nobreza católica francesa para se opor ao protestantismo, em
1560 aproxima-se de uma facção específica da nobreza, dominada pela família de
Guise. Casado com Mary Stuart, sobrinha do cardeal de Lorena e do duque de
Guise, o rei, que segundo Arlette Jouanna, ne se sent pas capable encore de
gouverner
143
, deixa a Lorena e Guise as responsabilidades financeiras e militares,
respectivamente. Logo depois de coroado, Francisco II retira do duque de
Montmorency, que havia sido o favorito de seu pai, o cargo de Grand maître e o
oferece ao duque de Guise. Reunindo uma considerável clientela e favores reais
que faziam deles personagens mais importantes do que membros da velha nobreza
de sangue francesa, os Guise tornavam-se os governantes efetivos do reino.
Originária da Lorena, a família de Guise tornou-se francesa por iniciativa do
duque René II de Lorena, que adquiriu documentos de naturalização para seu filho
141
“o objetivo da política real é (...) de abrir uma frente única face à dissidência religiosa”, id.,
ibid., p.463.
142
“Tudo leva a crer que o rei da França Henrique II (...) vai se dedicar a eliminar os protestantes”,
Jouanna, op.cit., p.7.
143
“não se sente capaz ainda para governar”, id., ibid., p.52.
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62
Claude de Lorena em 1506
144
. Os sucessos militares dos duques de Guise no
exército francês levaram-nos, em meados do século, a serem uma das famílias
mais importantes do reino. No final da década de 1550 e no início da seguinte, a
coroação de Francisco II e a elevação dos Guise aos altos cargos da administração
real fomentam, entre a nobreza preterida pelo novo rei, descontentamentos em
relação ao governo do duque e do cardeal. Contra os Guise, somam-se duas
espécies de críticas em especial: à sua naturalização recente e à política
econômica do cardeal. Quanto à presença da família na França – de pouco mais de
meio século –, seus opositores passam a usar repetidamente contra os Guise o
argumento de que uma família estrangeira não poderia governar o reino idéia
nessa época comum nos tratados políticos. A mesma temática aparecerá contra
Catarina de Médici e os membros italianos do Conselho real de Carlos IX e
Henrique III, e, durante toda a segunda metade do século XVI, a presença de
estrangeiros interferindo nos assuntos do reino transformar-se-á em um dos
argumentos preferidos dos protestantes, e depois dos politiques, contra os Guise.
Responsável pelas finanças do reino, e logo pela administração de uma
dívida pública enorme
145
, o cardeal de Lorena foi obrigado a impor medidas
econômicas pouco populares, como a revogação das alienações do domínio real, a
diminuição dos juros sobre as dívidas do Estado, e o não pagamento de pensões e
do soldo dos soldados licenciados recentemente pelo fim da guerra com a
Espanha. Mas os sacrifícios exigidos pelas finanças eram repartidos de maneira
desigual: os Guise despossuíam os Montmorency, e outros membros da nobreza
de sangue, e licenciavam soldados ao mesmo tempo em que favoreciam os seus
próprios clientes.
Contra a repressão da Coroa à nova religião vinha-se formando, desde o
início da década de 1550, um grupo de protestantes dentro da nobreza francesa e
agora, contra a influência dos Guise, reuniam-se insatisfações entre os nobres
católicos. De acordo J.H. Mariéjol, os descontentamentos com o favorecimento
dos Guise deram aos protestantes novos aliados contra o governo: novos
convertidos, ou católicos companheiros com um objetivo pontual em comum
somavam-se aos calvinistas como a um partido de oposição. A Reforma na França
144
Jouanna et al, op.cit., pp.955-956.
145
Em 1560 a dívida chegava a 43 milhões e meio de libras, sendo a receita anual francesa de
cerca de 12 milhões de libras (cf. Jouanna, op.cit., p.24).
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63
teria assim deixado de ser uma decisão meramente religiosa e passado a ser parte
de uma tomada de posição entre clãs adversários. Segundo Mariéjol,
Le gouvernement des Guise, le souvenir de leur origine étrangère, leurs mesures
financières, la disgrâce où ils tenaient les princes du sang et les grands officiers de
la couronne lui amenaient un nombre prodigieux de recrues. Qu’elle le voulût ou
non, elle servait de ralliement à tous les mécontents. Elle cessait d’être uniquement
une Église, elle devenait un parti
146
.
Partido contra o governo, e não contra a Coroa. O grupo formado pelos
primeiros protestantes e esses novos convertidos aproximava-se aos poucos de um
conjunto de católicos centrado na oposição ao duque de Guise e ao cardeal de
Lorena. Jouanna e Crouzet indicam que o que os unia não era uma posição
comum frente à questão religiosa, e sim a inimizade que ambos os grupos nutriam
pelos Guise. O favorecimento de uma família considerada estrangeira, e as
decisões partidaristas que esta tomara uma vez no poder constituíam-se, para os
protestantes franceses como para os católicos, em uma afronta às leis do reino. De
acordo com Arlette Jouanna, a preeminência dos Guise deu aos calvinistas uma
“causa política” que lhes permitiu sair do dilema em que se encontravam:
comment sister à la persécution sans que les fidèles soient accusés d’être de
dangereux agitateurs?
147
. Com títulos de nobiliarquia inferiores aos dos seus
oponentes preteridos depois da morte de Henrique II e de naturalização recente,
portanto ainda considerados estrangeiros, os Guise contrariavam a hierarquia e as
instituições tradicionais da monarquia francesa, e o seu governo passou a ser
considerado uma usurpação ilegal da autoridade da Coroa. Jouanna reporta a
opinião de Margarida de Parma, regente dos Países Baixos espanhóis, a respeito
das razões da reunião de católicos e protestantes contra o duque e o cardeal:
Il n’est question de la religion seulement, mais plus du mécontentement universel
que tous états de France ont du gouvernement de messieurs de Guise (...) ils sont
tenus par tous comme étrangers, et se ressentent tous ceux du sang et les grands
qu’ils aient empris le gouvernement si absolu sans adjonction quelconque de nul
autre
148
.
146
“O governo dos Guise, a lembrança da origem estrangeiras destes, suas medidas financeiras, a
desgraça em que eles mantinham os príncipes de sangue e os grandes oficiais da Coroa levavam a
ela um número prodigioso de recrutas. Quisesse ela ou não, ela servia de ligação a todos os
descontentes. Ela deixava de ser unicamente uma Igreja, ela se tornava um partido”, Mariéjol,
1983, p.23.
147
“como resistir à perseguição sem que os fiéis sejam acusados de serem agitadores perigosos?”,
Jouanna, op.cit., p.56.
148
“Não é questão apenas da religião, porém mais do descontentamento universal que todos os
estados da França sentem em relação ao governo dos senhores de Guise (...) eles são tidos por
todos como estrangeiros, e se ressentem todos os de sangue e os grandes que eles tenham tomado o
governo tão absolutamente sem adição alguma de mais ninguém”, apud id., ibid., p.56.
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64
O objetivo dos opositores dos Guise seria, assim, salvar a Coroa da sua
dominação. Em março de 1560, um grupo de protestantes realizou uma tentativa
de libertação do rei. A Conjuração de Amboise justificou-se como uma decisão
pela defesa do rei e do reino, contra a tirania de uma facção cujos crimes haviam
sido investigados, e que deveria ser propriamente julgada:
il se trouva par le témoignage de gens notables et qualifiés iceux être chargés de
plusieurs crimes de lèze majesté, ensemble d’une infinité de pilleries, larcins et
concussions, non seulement des deniers du roi, mais de ses particuliers sujets
149
.
Tais acusações legitimavam, para os chefes protestantes, a ação contra os
favoritos do rei. O que, para os envolvidos na Conjuração de Amboise, distinguia
a sua decisão de uma revolta contra o rei era a certeza de que este desconhecia a
verdadeira intenção e mesmo os atos dos Guise, o que significava que o duque e o
cardeal agiam à revelia de Francisco II, e portanto não representavam a sua
autoridade. As informações reunidas contra os Guise foram assim discutidas no
conselho do príncipe de Condé, príncipe de sangue convertido e irmão de Antoine
de Bourbon, já que le roi pour son jeune âge ne pouvait connaître le tort à lui
fait et à toute la France et encore moins y donner ordre, étant enveloppé de ses
ennemis
150
. A conclusão do conselho de Condé é pela ação imediata:
il ne fut question que d’aviser les moyens de se saisir de la personne de François,
duc de Guise, et de Charles, cardinal de Lorraine, son frère, pour puis après leur
faire procès par les états
151
.
Os motivos da conjuração, reprimida pelo duque de Guise, foram expostos
em textos como a Histoire du Tumulte d’Amboise, publicada no mesmo ano. O
argumento central do opúsculo anônimo era a menoridade de Francisco II:
segundo as leis do reino, antes de atingir a maioridade, o monarca apenas poderia
governar por intermédio de um conselho que, segundo suas regras, deveria ser
escolhido pelos estados reunidos, comandado pelos príncipes de sangue e formado
apenas por franceses, isto é, os estrangeiros como os Guise estavam dele
149
“por meio do julgamento de pessoas notáveis e qualificadas concluiu-se que estes eram
culpados de vários crimes de lesa-majestade, assim como de uma infinidade de pilhagens,
latrocínios e concussões, o apenas do dinheiro do rei, mas dos seus súditos particulares”, apud
Mariéjol, op.cit., p.24.
150
“o rei por sua pouca idade não podia saber o prejuízo feito a ele e a toda a França, e ainda
menos ordená-lo, estando envolvido pelos seus inimigos”, apud id., ibid., p.24.
151
“tratou-se apenas de decidir os meios de apoderar-se da pessoa de François, duque de Guise, e
Charles, cardeal de Lorena, seu irmão, para depois processá-los pelos estados”, apud id., ibid.,
p.24.
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previamente excluídos. uma lei na França, diz a Histoire du Tumulte
d’Amboise,
établie tant par l’ancienne coutume, que par le commun accord et détermination
des trois États assemblés en la Ville de Tours l’an 1484, que si la Couronne de
France échoit par succession à celui qui serait en bas âge : alors les susdits trois
États, à savoir, des Nobles, des Ecclésiastiques et du peuple soient assemblés, et
par eux le Roi soit pourvue d’un Conseil, pour le gouvernement et administration
de son Royaume pendant son bas âge. (...) En l’élection de ce Conseil, deux choses
ont toujours été observées : l’une, est que les Princes du Sang y aient le premier
lieu ; l’autre, que les Étrangers n’y soient aucunement admis
152
.
A ão contra os Guise não pretendia portanto ser ação contra o rei. Pelo
contrário, a posição dos chefes protestantes era a da defesa do rei, e pretendia
estar legitimada pelas leis do reino. Tratava-se de um dever de resistência –
derivado da idéia calvinista do direito de resistência dos magistrados
153
contra
um governo, e não contra a Coroa: se a tirania dos Guise aprisionava o rei, era
dever da nobreza, constituída de bons franceses, libertá-lo dela
154
.
Ainda durante a preparação da Conjuração, os Guises foram avisados por
diversas fontes do que se preparava. Segundo Mariéjol, todas as denúncias
falavam de um movimento dirigido contra os Guise, e não contra o rei
155
. Alguns
dias antes da data combinada para o ataque, 16 de março de 1560, uma nova leva
de informações dava precisões sobre a estratégia de ação protestante, e levou o
duque de Guise a reforçar a segurança em Amboise, onde estava a corte, e enviar
guarnições aos pontos de encontro dos conjurados. Quando descobertos pelos
exércitos reais, estes se entregavam ou fugiam, mas, de todo modo, parecem não
ter apresentado resistência, e da mesma forma pacífica foram libertados pelo rei,
ouvindo dele apenas uma reprimenda
156
. Em 17 de março, um grupo de cerca de
152
“estabelecida tanto pelos costumes antigos, quanto pelo comum acordo e determinação dos três
Estados reunidos na cidade de Tours no ano de 1484, que se a Coroa da França advier por sucessão
a quem tiver pouca idade, então os acima citados três Estados, a saber, dos Nobres, dos
Eclesiásticos e do povo sejam reunidos, e por eles o Rei seja provido de um Conselho, para o
governo e administração de seu Reino durante sua pouca idade. (...) Na eleição desse Conselho,
duas coisas foram sempre observadas: uma é que os Príncipes de Sangue tenham nele o primeiro
lugar; a outra, que os estrangeiros não sejam de maneira alguma admitidos”, apud Jouanna, op.cit.,
p.57.
153
Jouanna et al., op.cit., p.1243. Para Calvino, os magistrados reunidos nos estados gerais e
apenas nessa condição tinham a obrigação de defender o povo contra um rei tirano. É a única
situação em que o reformador francês afirma a possibilidade de uma resistência contra a
autoridade secular, limitada, entretanto, à ação dos estados gerais, isto é, não extensiva à
população em geral (cf. Mesnard, op.cit., p.294).
154
Skinner, 1999, p.573.
155
Mariéjol, op.cit., pp.25-26.
156
Jouanna, op.cit., p.64.
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200 protestantes, que o haviam sido encontrados pelas rondas organizadas por
Guise, ataca a cidade durante algumas horas. Ao contrário dos primeiros
conspiradores, estes são severamente punidos: alguns são amarrados e jogados no
rio Loire, outros o estrangulados e seus cadáveres são expostos em frente aos
muros do castelo
157
por ordem do duque de Guise, nomeado neste mesmo dia
lugar-tenente geral do reino.
Francisco II, que se mantinha, pálido rei, em seu papel de defensor da
religião, beneficia os Guise e a repressão ao complô ao mesmo tempo em que,
levado pela rainha-mãe, Catarina de Médici, elabora um novo édito sobre a
Reforma, motivado pelo reconhecimento de que les hérétiques sont devenus si
nombreux que la violence contre eux provoquerait un bain de sang
158
.
Decidido em 8 de março em uma reunião do Conselho real, da qual estava
ausente o duque de Guise, e publicado pelo Parlamento três dias depois, o édito de
Amboise apresenta o que alguns autores, como Arlette Jouanna
159
, consideram um
primeiro esboço de liberdade de consciência no reino, ao determinar que
personne ne sera inquiété pour la Foi
160
. Nele, Francisco II anistia os presos por
causa de crimes de heresia, obrigando-os no entanto a viverem como bons
católicos, e determina que os protestantes que não provocarem “escândalos”
161
entre a população não poderão ser incomodados eis aí, dizem alguns, um fiapo
de liberdade de consciência instituído na relação entre o rei e seus súditos
protestantes.
Quanto ao culto, ele será proibido pelo édito de Romorantin. Dois meses
depois da decisão de 8 de março, em maio de 1560, o novo édito veda aos
protestantes a pregação e as assembléias, públicas ou privadas, assim como
qualquer tipo de impressão ou circulação de livros ou folhetos referentes à sua
confissão. O decreto restabelece a distinção de jurisdição entre heresia, que volta a
estar a cargo exclusivamente dos tribunais episcopais, e sedição, que deve ser
julgada pela justiça real distinção que havia sido anulada pelos éditos de
Fontainebleau e Chateaubriant. Fica determinado que apenas a Igreja poderá
conduzir processos por questões religiosas, e que os tribunais reais envolver-se-ão
157
id., ibid., pp.64-67, e Mariéjol, op.cit., pp.27-28.
158
“os hereges tornaram-se tão numerosos que a violência contra eles provocaria um banho de
sangue”, Jouanna, op.cit., p.68.
159
id., ibid., p.874.
160
“ninguém será importunado por causa da Fé”, Stegmann, op.cit., p.243.
161
Jouanna, op.cit., p.874.
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67
somente em casos de infração da ordem pública. Como o édito torna ilegais as
celebrações protestantes, o culto, ou outro caso de desobediência às normas de
Romorantin, seria considerado – independentemente de ser tido por heresia –
desrespeito à ordem pública, e poderia ser julgado pelos tribunais reais, tendo em
vista que o édito real era a lei do reino.
A discussão em torno do édito de Amboise de 8 de março e da Conjuração
levou à convocação de uma assembléia de notáveis em Fontainebleau, entre 21 e
26 de agosto de 1560. Os Guise, inseguros quanto à sua preeminência depois da
publicação do édito de Amboise, buscam reforçar sua posição e, frente ao
crescimento da presença e da influência protestante no reino, voltam-se para
aqueles que discordam da interrupção do projeto de repressão adotado
anteriormente pela Coroa. De acordo com Jouanna, o duque pretende conquistar
os catholiques déçus
162
e assegurá-los de que, nele, eles terão, le moment venu,
un chef et un protecteur à la cour
163
. Com a liderança de François de Guise, é o
partido católico que está se formando.
Do lado oposto, um partido protestante começa também a tomar corpo. A
reação à violenta repressão à Conjuração de Amboise liderada pelos Guise
mostrava já o início de uma organização dos senhores protestantes. Na sua Epistre
Envoyée au Tigre de la France, publicada no mesmo ano de 1560, François
Hotman, jurista e importante libelista protestante
164
, ataca o cardeal de Lorena
como Cícero havia atacado Catilina, conspirador contra a República romana:
Tigre enragé, Vipère venimeuse, Sépulcre d’abomination, spectacle de malheur:
jusqu’à quand sera ce que tu abuseras de la jeunesse de notre Roi ? Ne mettras-tu
jamais fon à ton ambition démesurée, à tes impostures, à tes larcins ? (...) Tu t’es
emparé du gouvernement de la France, et as dérobé cet honneur aux Princes du
sang, pour mettre la couronne de France en ta maison
165
.
162
“católicos decepcionados”, id., ibid., p.71.
163
“chegado o momento, um chefe e um protetor na corte”, id., ibid., p.71.
164
François Hotman é também o autor do De Furoribus Gallicis (1573), sobre o massacre de São
Bartolomeu, e da Francogália (1573), tratado sobre a história da construção da França-Gália, cuja
maior contribuição, segundo Skinner, foi “mostrar como um estudo humanista da antiga
constituição francesa poderia ser transformado numa ideologia revolucionária a serviço da causa
huguenote” (Skinner, op.cit., p.580).
165
“Tigre raivoso, Cobra venenosa, Sepulcro de abominação, espetáculo de infelicidade: até
quando abusarás da juventude do nosso Rei? o colocarás jamais fundo à tua ambição
desmedida, às tuas imposturas, aos teus latrocínios? (...) Tomaste o governo da França, e subtraíste
essa honra dos Príncipes de sangue, para colocar a coroa da França na tua casa”, Hotman, 1560,
s/p.
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68
Em outubro, o príncipe de Condé é preso em Orléans, onde a corte se
prepara para a reunião dos estados gerais, acusado pela orquestração da
Conjuração de Amboise e de outros movimentos contra a autoridade real.
Segundo Jouanna, é a doutrina política” dos envolvidos na Conjuração que está
em julgamento junto com o príncipe, doutrina que, ao mesmo tempo em que ataca
a tirania dos Guise, institui um grupo de oposição a ela. Na assembléia de
Fontainebleau, esse partido será apresentado e defendido pelo almirante Gaspard
de Coligny. As reivindicações dos protestantes da Normandia apresentadas pelo
almirante significam a manifestação pública do seu engajamento junto aos
calvinistas franceses. Coligny e Guise criticam-se mutuamente durante a
assembléia, e levam o Étienne Pasquier a afirmar:
Ceci nous est un certain pronostique que l’un et l’autre (l’un grand prince, l’autre
grand seigneur) seront quelque jour conducteur de deux contraires partis, qui ne
sont encores formés
166
.
Os contornos de um partido da Coroa distinguem-se progressivamente dos
dois anteriores. A nomeação, em maio de 1560, do jurista Michel de L’Hospital
como o novo chanceler do reino reforçará, nos anos seguintes, a opção pela
permissão do protestantismo no reino, e começará a desenvolver o caminho da
tolerância civil. Ligado ao cardeal de Lorena, L’Hospital havia feito carreira como
conselheiro no parlamento de Paris (onde havia ingressado em 1544), presidente
da câmara de contas do reino, e membro do Grande Conselho, tribunal reservado
ao julgamento dos casos e processos de maior importância. Nos poucos meses em
que exerceu sua função de chanceler ao lado dos Guise, sua característica mais
marcante foi a severidade demonstrada nos julgamentos que presidiu. A morte de
Francisco II, em 5 de dezembro, e a designação de Catarina de Médici como
regente durante a menoridade de Carlos IX dão início a uma nova fase na relação
entre a Coroa e a Reforma, na qual o chanceler terá papel determinante. Segundo
Arlette Jouanna, Sous sa direction, la politique royale va peu à peu s’engager
dans une voie nouvelle, surprenante pour tous les esprits qui ont approuvé la
répression impitoyable de Henri II
167
.
166
“Isso nos faz certo prognóstico de que um e outro (um grande príncipe, o outro grande senhor)
serão qualquer dia condutores de dois partidos contrários, que o se formaram ainda”, apud
Jouanna, op.cit., p.71.
167
“Sob a sua direção, a política real vai pouco a pouco se empenhar em uma via nova,
surpreendente para todos os espíritos que aprovaram a repressão impiedosa de Henrique II”, id.,
ibid., p.69.
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69
A Conjuração de Amboise e os acontecimentos em torno a ela deram forma
e tornaram explícita a divisão de forças que se estabelecia acerca do conflito
religioso: os Guise que não se caracterizavam até então por um catolicismo
fervoroso e que apenas gradativamente passavam a se identificar com os católicos
que o queriam o protestantismo no reino –, os protestantes que, saindo da
clandestinidade, eram representados pela alta nobreza convertida e ainda uma
nobreza católica que, descontente com a hegemonia guisarda, ensaiava uma
reunião com os protestantes. A Coroa, entre essas três vertentes distintas, buscará
produzir um equilíbrio de poder em que a sua própria autoridade não esteja
ameaçada, construindo uma tensão entre católicos e protestantes em especial
entre os membros da nobreza que levará ao mesmo tempo ao início das guerras
de religião na França e à primeira experiência da tolerância civil.
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2.
1561-1574
Um duplo início: das guerras de religião e da primeira
tentativa de elaboração da tolerância civil
Ao assumir a chancelaria na França, em maio de 1560, o humanista Michel
de L’Hospital mantinha a convicção, consagrada pela experiência monárquico-
religiosa medieval, de que não se poderia permitir, sem grave prejuízo para o
reino, a existência nele de uma segunda religião, além da católica. Na abertura dos
Estados Gerais de Orléans, em dezembro de 1560, o chanceler responde à questão
sobre a possibilidade da coabitação de duas religiões lembrando o axioma que
guiava tradicionalmente o governo temporal na França, une foi, une loi, un roi. A
sua opção era pela manutenção da unidade religiosa e da relação habitual entre a
religião e a monarquia. Segundo L’Hospital, a diversidade de religiões em um
reino era perniciosa, e seria mesmo
Folie d’espérer paix, repos et amitié entre les personnes qui sont de diverses
religions. Et n’y a opinion, qui tant profonde dedans le coeur des hommes, que
l’opinion de religion, ni tant les sépare les uns des autres (...) Nous
l’expérimentons aujourd’hui et voyons que deux Français et Anglais qui sont d’une
même religion, ont plus d’amitié entre eux que les citoyens d’une même ville, sujets
à un même seigneur, qui seraient de diverses religions. Tellement que la
conjonction de religion passe celle qui est à cause du pays ; par contraire, la
division de religion est plus grande et lointaine que mille autre. C’est ce qui sépare
le père du fils, le frère du frère, le mari de la femme. (...) C’est ce qui éloigne le
sujet de porter obéissance à son roi, et qui engendre les rebellions. (...) Si donc la
diversité de religion sépare et déjoint les personnes qui sont liées de si prochains
liens et degrés, que peut-elle faire entre ceux qui ne se touchent de si près ? La
division des langues ne fait la séparation des royaumes, mais celle de la religion et
des lois, qui d’un royaume en fait deux. De sort le vieil proverbe, Une foi, une
loi, un roi. Et est difficile que les hommes étant en telle diversité et contrarié
d’opinions, se puissent contenir de venir aux armes : car la guerre, comme dit le
poète, suit de près, et accompagne discorde et débat
168
.
168
“loucura esperar paz, tranqüilidade e amizade entre as pessoas que o de religiões diversas. E
não há opinião, tão profunda no coração dos homens, quanto a opinião da religião, me que tanto os
separe uns dos outros (...) Nós o experimentamos hoje e vemos que dois franceses e ingleses que
são de uma mesma religião, têm mais amizade entre eles que os cidadãos de uma mesma cidade,
sujeitos a um mesmo senhor, que sejam de religiões diversas. Tanto que a união pela religião
ultrapassa aquela que deriva do país; ao inverso, a divisão por causa da religião é maior e mais
extensa que mil outras. É o que separa o pai do filho, o irmão do irmão, o marido da mulher. (...) É
o que distancia o súdito da obediência do seu rei, e que engendra as rebeliões. (...) Se, portanto, a
diversidade de religião separa e desune as pessoas que são ligadas por laços e graus tão próximos,
o que ela poderá fazer entre aqueles que não se tocam de tão perto? A divisão das línguas não faz a
separação dos reinos, mas a da religião e das leis, que de um reino faz dois. Daí sai o velho
provérbio, Uma fé, uma lei, um rei. E é difícil que os homens, estando em tal diversidade e
contrariedade de opiniões, possam conter-se de vir às armas: pois a guerra, como diz o poeta,
segue de perto, e acompanha, discórdia e debate”, L’Hospital, 2001, pp.38-39.
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71
Três avisos estão presentes na fala de L’Hospital nesse discurso aos estados
reunidos: não havia coexistência possível entre católicos e protestantes; a religião
era mais relevante como garantia da unidade de um reino do que a consciência do
pertencimento ao pays; e soma dos dois primeiros a França, em que a
convivência de duas confissões havia se feito à despeito da repressão à Reforma,
dificilmente escaparia da guerra. A partir da leitura desse trecho, não resta, como
via de ação a seguir, outro caminho senão o da volta à unidade religiosa. Mas a
década de 1560 será um período de mudanças na relação entre a Coroa e a
religião.
Uma dessas modificações aparece em outro discurso feito pelo chanceler,
este diante da assembléia reunida em Saint-Germain em janeiro de 1562. Menos
de dois anos após a fala na abertura dos estados gerais, L’Hospital expôs uma
nova idéia que pretendia, em conjunto com a regente, a rainha-mãe Catarina de
Médici, transformar na posição oficial da Coroa frente à Reforma protestante e à
resistência católica: o desligamento da administração real das prerrogativas e
necessidades da Igreja. Nos termos da diferença entre a religião e a república, e da
conseqüente distinção que deveria ser feita entre seus membros os fiéis
(cristãos) e os cidadãos –, o chanceler apresentou aos deputados a sua percepção
da situação francesa:
Il n’est pas ici question de constituenda religione, sed de constituenda republica; et
plusieurs peuvent être cives, qui non erunt Christiani: même l’excommunié ne
laisse pas d’être citoyen
169
.
Ao sugerir publicamente que a constituição da república diferia da
constituição da religião, e que ser cidadão não obrigava a ser cristão, L’Hospital
adotava outra perspectiva para considerar a relação entre o rei e a Igreja.
Afirmando que o francês excomungado permanecia cidadão, como o mais católico
dentre eles, o chanceler traçava uma linha divisória entre os problemas religiosos
suscitados pela Reforma e todos os demais, isto é, entre as questões espirituais e
as seculares, tratando exclusivamente das seculares, e especificamente se
referindo às situações conflituosas que a Coroa vinha tendo que enfrentar havia
algum tempo. Em 1561, ainda não haviam eclodido as guerras de religião, mas o
169
“Não se trata aqui da constituição da religião, mas da constituição da coisa pública; e muitos
podem ser cidadãos, que não serão cristãos; mesmo o excomungado não deixa de ser cidadão”,
id., ibid., p.61, grifos no texto.
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72
cenário de oposição entre católicos e protestantes era claro e perturbava a ordem e
o governo da coisa pública. Para o chanceler, a situação estava além do embate de
idéias e da salvação das almas: para ele era necessário enfrentar a dissensão
religiosa no que ela produzia como entrave para a manutenção da paz e do bem
comum no reino, isto é, os confrontos entre um grupo católico e outro protestante
e agir. Seu discurso de Saint-Germain introduz oficialmente a possibilidade do
desligamento entre fé e rei como via de solução para os problemas políticos
provocados pela presença de duas religiões no reino, e pela oposição crescente
entre os fiéis de cada uma delas. A coexistência passava a ser possível, e talvez a
única forma de evitar a guerra. Para Skinner, em Saint-Germain, L’Hospital indica
que abandonar a unidade religiosa não tinha necessariamente efeitos
catastróficos, pois, na verdade, a uniformidade religiosa não é essencial para o
bem-estar da França”
170
.
A nova percepção do chanceler com relação à distinção entre a função da
autoridade secular e a da eclesiástica era o reflexo da nova postura que a Coroa
francesa que, depois da sagração de Carlos IX, tinha a rainha-mãe como regente
pretendia seguir quanto à dissensão religiosa. Lentamente, durante a década de
1560, os éditos reais começam a aumentar a margem de sobrevivência legal do
protestantismo, regulamentando a presença, o exercício do culto e os direitos e
deveres dos protestantes no reino. O empenho de L’Hospital dará velocidade e
autoridade a esse movimento, mas antes mesmo da sua nomeação e antes de os
Guise se tornarem os chefes do partido católico – a Coroa havia publicado os dois
importantes éditos de Amboise de 8 de março de 1560 e de Romorantin o
primeiro garantindo uma espécie de liberdade de consciência aos protestantes,
enquanto o segundo estabelecia as distintas instâncias de competência da
autoridade secular e da eclesiástica no julgamento de casos de sedição e heresia.
A morte de Francisco II, em dezembro de 1560, havia afastado do governo
os Guise e fortalecido a posição moderada de Catarina de Médici e do chanceler
L’Hospital. Mas a notoriedade conquistada pelo duque de Guise, junto aos
católicos franceses, com a repressão à Conjuração de Amboise e a sua
participação na assembléia de Fontainebleau, fizeram dele um líder natural na
defesa da religião. Com o condestável de Montmorency e o marechal de Saint-
170
Skinner, op.cit., p.524.
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73
André, Guise formou um triunvirato com a missão auto-conferida de opor-se à
nova política da Coroa e restaurar a unidade religiosa no reino. O édito de julho de
1561, que retoma o de Romorantin proibindo as assembléias e o culto protestante,
será devido, em larga medida, à sua ação, bem sucedida em angariar apoio entre
as camadas mais intransigentes do catolicismo francês.
A constituição, pelo triunvirato, de uma liga católica de oposição à Coroa
ajudou a tornar mais clara a nova disposição de forças na França. Em 1550, a
repressão ao protestantismo havia sido instituída como lei e era seguida pela
Coroa, pela Igreja e pela maioria dos franceses católicos contrários à existência de
uma segunda religião no reino. Na década seguinte, a posição da Coroa é a da
permissão legal da coexistência de católicos e protestantes sem que isso
significasse que as duas religiões e seus aderentes passariam a ter o mesmo status
no reino. Ao lado da Coroa, formam-se um partido protestante, que exige
liberdade de consciência e de culto, e um católico que, sem o antigo apoio da
monarquia, reforça sua postura contrária à Reforma. Entre esses dois partidos, a
Coroa manterá uma atuação por vezes dúbia, aproximando-se alternadamente de
um ou do outro, quando um, ou o outro, estiver se tornando demasiadamente
hegemônico e representar uma ameaça à autoridade do rei.
Por trás da repartição dicotômica que divide na França católicos e
protestantes como membros de dois partidos opostos, a falta de um
posicionamento claro por parte da Coroa não era como por algum tempo a
historiografia considerou que fosse mero oportunismo, nem indecisão ou
inconstância. Durante o período da regência e mesmo depois da maioridade de
Carlos IX, a participação de Catarina dedici no governo foi guiada, em
primeiro lugar, pelo reconhecimento da necessidade de preservação da monarquia,
e, em seguida, pela crença para Crouzet influenciada por uma utopia
neoplatônica”
171
de que era possível atingir um ponto de concórdia entre
católicos e protestantes, unificando o reino em uma nova Igreja, católica mas
expurgada dos seus erros. Longamente se considerou que a posição da rainha-mãe
devia-se à pouca importância que teria, para ela, a religião. Italiana como
Maquiavel lembrarão seus detratores –, em vida e após a sua morte Catarina de
Médici foi apresentada, por contemporâneos e por historiadores ulteriores, como
171
Crouzet, 1996, p.569.
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74
uma espécie de monstro ávido de poder, originando-se em torno dela uma lenda
negra que abusou da opinião de que estrangeiros e mulheres não deveriam
aproximar-se do governo. algumas décadas, a historiografia vem se dedicando
a rever a biografia da rainha-mãe, e das novas pesquisas surgiu uma personagem
cuja religiosidade profunda foi influenciada por Erasmo e pelo neoplatonismo
italiano
172
, e cujo grande propósito, como regente e depois como conselheira de
Carlos IX e Henrique III, foi o de restaurar a autoridade monárquica, qui se
confond pour elle avec celle de ses fils
173
. A unidade religiosa era um princípio a
ser mantido, e derivaria, para a rainha-mãe, de uma reforma dentro da Igreja
católica, que a aproximaria do cristianismo primitivo e ao mesmo tempo das
propostas protestantes, posição que, para Janine Garrisson, é le moignage de
l’humanisme chrétien de cette reine, aboutissement logique de sa philosophie
néoplatonicienne
174
. Mas a repressão da Reforma e a violência não pareciam para
Catarina ser o caminho para a concórdia. Segundo Arlette Jouanna, elle souhaite
ardemment retrouver la concorde perdue, mais estime que la violence utilisée
jusque-là a été inefficace
175
.
Foi por iniciativa de Catarina de Médici que se realizou, em 1560, logo após
a publicação do édito de Amboise de 8 de março, a assembléia de Fontainebleau.
O intuito da rainha-mãe era compor uma base comum constituída de ambos
católicos e protestantes dentro da qual a discussão acerca da concórdia pudesse
ser desenvolvida.
Duas decisões em especial resultaram da assembléia: a convocação dos
estados gerais, e o anúncio de uma reunião de bispos para remédier à la
déchirure religieuse
176
.
Já a caminho de Orléans para a reunião dos estados, os deputados são
surpreendidos pelo anúncio da morte de Francisco II. Apesar da ausência
imprevista do rei, e tendo que fazer face à turbulenta disputa em torno à regência
– ambicionada pela rainha-mãe e por Antoine de Bourbon – os estados são abertos
em 13 de dezembro de 1560 e neles se debatem os temas apresentados nos
172
Yates, 1989, p.227.
173
“que se confunde para ela com a dos seus filhos”, Jouanna, op.cit., p.76.
174
“o testemunho do humanismo cristão dessa rainha, resultado lógico da sua filosofia
neoplatônica”, Garrisson, 2002, p.98.
175
“ela deseja ardentemente reencontrar a concórdia perdida, mas julga que a violência utilizada
até então era ineficaz”, Jouanna, op.cit., p.84.
176
“remediar a fratura religiosa”, id., ibid., p.82.
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75
cadernos reunidos por cada ordem. O problema da enorme dívida do tesouro
francês, avaliada por Michel de L’Hospital em 43 milhões e meio de libras
177
, é
um dos assuntos mais urgentes. Incitados pelo chanceler, os deputados laicos
dos segundo e terceiro estados pedem uma alienação severa dos bens da Igreja,
cujo valor final, aprovado pelos representantes do clero, chega a 15 milhões de
libras. Igualmente importante é a questão da dissensão religiosa; mas sobre ela é
mais difícil o estabelecimento de um acordo entre os presentes. Segundo Jouanna,
le clergé veut une répression ferme, alors qu’un grand nombre de députés du
tiers et de la noblesse souhaite que l’on donne des temples aux réformés
178
. Entre
as duas demandas, as ordenações resultantes dos estados gerais de Orléans
apoiaram a nova posição da Coroa quanto à Reforma, decidindo pela interrupção
das perseguições aos protestantes
179
.
Como a posição dos deputados quanto ao problema religioso, feita de
divergências e indecisões, também a da Coroa varia. Em 28 de janeiro de 1561,
poucos dias antes do encerramento dos estados gerais, o governo renova a anistia
dada em março do ano anterior a todos os acusados de heresia, estendendo-a aos
pastores protestantes. Em abril, um novo édito é assinado com o intuito de conter
os movimentos iconoclastas que se espalhavam pela França, proibindo a
destruição de imagens e igrejas, e ao mesmo tempo tornando ilegal o uso de
epítetos como papiste e huguenot
180
, com os quais protestantes e católicos,
respectivamente, agrediam uns aos outros. Três meses depois, o culto protestante
é novamente proibido pelo édito de julho de 1561, mas esse retorno à repressão da
Reforma influenciado pelo triunvirato de Guise, Montmorency e Saint-André
não impede o movimento iniciado por Catarina de Médici e Michel de L’Hospital
de construir um entendimento pacífico entre as duas religiões. É com essa
intenção que a regente e o chanceler organizam, entre 9 de setembro e 14 de
outubro do mesmo ano, o colóquio de Poissy, transformando a reunião de bispos
em uma conferência entre teólogos e religiosos católicos e protestantes.
Concebido como uma tentativa de reunificar as igrejas através da discussão dos
pontos de discórdia entre o dogma católico e a evangelização protestante, o
177
id., ibid., p.79 nota 2.
178
“o clero quer uma repressão firme, enquanto um grande número de deputados do terceiro e da
nobreza deseja que sejam dados templos aos reformados”, id.. ibid., p.81.
179
Mariéjol, op.cit., p.53.
180
Jouanna et al., op.cit., p.875.
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76
colóquio revela a importância que um quarto grupo havia adquirido no cenário
político francês: o dos moyenneurs. Católicos moderados, eles acreditavam ser
possível estabelecer uma forma de concórdia religiosa entre protestantes e
católicos. Após a Conjuração de Amboise, a crença na reunião pacífica das duas
religiões por meio de um concílio novo e livre isto é, independente das
discussões mantidas pelo concílio de Trento e não submetido às decisões deste
havia ganhado adeptos entre os círculos próximos ao poder. O cardeal de Lorena –
em divergência com o irmão e Antoine de Bourbon, rei da Navarra, estariam,
segundo Arlette Jouanna, entre os moyenneurs
181
. Quanto aos membros da Coroa,
Catarina de Médici, idealizadora do colóquio de Poissy, e Michel de L’Hospital
consideravam que a construção de um acordo entre católicos e protestantes, em
termos de dogma, era factível, e y voient la possibilité d’un retour à la
tranquillité publique
182
. Em carta ao papa Pio IV, datada de 4 de agosto de 1561,
a rainha-mãe
expose les points du rite catholique qui, selon elle, pourraient être modifiés et ainsi
satisfaire les protestants qui, dès lors, feraient retour à l’Église romaine. Elle
invite le pape à autoriser la communion sous les deux espèces, à supprimer une
partie des prières lors du sacrement du baptême, à permettre la « psalmodie » en
langue vulgaire... Ce sont là des retours au rituel de l’Église primitive que les
réformés pratiquent en leurs cultes
183
.
As sugestões de Catarina de Médici ao papa fazem parte dos temas a serem
debatidos em Poissy. Mesmo sem se constituírem formalmente em um partido, o
colóquio foi o resultado do empenho desse grupo de moderados.
Logo na abertura dos debates, católicos e protestantes esbarram no entanto
em um impasse: o problema da transubstanciação. Os protestantes, liderados por
Théodore de Bèze, recusam-se a reconhecer na eucaristia a Presença Real de
Cristo, postura que escandaliza os prelados católicos, entre eles o cardeal de
Lorena. Sem acordo possível entre as partes sobre esse ponto, o colóquio encerra-
se em 14 de outubro sem que se tenham construído as condições para a concórdia.
181
id., ibid., p.1135.
182
“vêem aí a possibilidade de um retorno à tranqüilidade pública”, id., ibid., p.1135.
183
“expõe os pontos do rito católico que, segundo ela, poderiam ser modificados e assim satisfazer
os protestantes que, a partir daí, retornariam à Igreja romana. Ela convida o papa a autorizar a
comunhão em duas espécies, a suprimir uma parte das orações no momento do sacramento do
batismo, a permitir a “salmodia” em língua vulgar... Esses são retornos ao ritual da Igreja primitiva
que os reformados praticam em seus cultos”, Garrisson, 2002, p.98.
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77
Apesar do fracasso experimentado em Poissy, L’Hospital e Catarina de
Médici, sobretudo, mantêm-se fiéis à idéia da concórdia, uma reunião de todos os
franceses na mesma fé católica. Segundo Mario Turchetti, “après son échec,
l’idéal de concorde n’est pas abandonné, mais seulement différé et toujours
présent. Il est une constante de la politique royale
184
. Mas foi o colóquio, por
outro lado, que os levou a considerar se não seria o caso de a construção de uma
coexistência nima entre protestantes e católicos excluir a questão da religião. A
concórdia desejada pela rainha-mãe e pelo chanceler mostrava-se improvável a
curto prazo, o que poderia significar que, a curto prazo, era preciso conciliar
protestantes e católicos apesar das suas desavenças confessionais. A concórdia,
que permanecia sendo o objetivo final, deveria ser antecedida por uma coabitação
que por vezes se chamou de tolerância e de onde deriva o conceito de tolerância
civil –, mas que habitualmente mantinha o nome de concórdia.
Em 1562, ano seguinte ao édito de julho e ao colóquio de Poissy, é
instituído o édito de Janeiro (ou de Saint-Germain). Anulando o anterior e
permitindo mais uma vez o culto protestante (sob severas regras), o novo decreto
funda-se na conclusão de que as tentativas de proibição forçada do protestantismo
haviam gerado mais males do que trazido benefícios ao reino. Como se no
preâmbulo do édito de Janeiro, Carlos IX, com o apoio dos seus conselheiros e da
família real, havia anteriormente decidido pelo
Edit du mois de juillet dernier : par lequel nous aurions entre autre chose défendu,
sur peine de confiscation de corps et de biens, tous Conventicules et Assemblées
publiques avec armes, ou sans armes : ensemble les privées se feraient Prêches
et administration des Sacrements en autre forme que selon l’usage observé en
l’Eglise catholique, s et depuis la Foi chrétienne reçue par les rois de France
nos prédécesseurs, et par les Evêques et prélats, curés, leurs Vicaires et députés :
ayant lors estimé que la prohibition desdites Assemblées, était le principal moyen,
en attendant la détermination d’un Concile général, pour rompre le cours à la
diversité desdites Opinions ; et en contenant par ce moyen nos sujets en union et
concorde, faire cesser tous troubles et séditions ;
Lesquelles au contraire, par la sobéissance, dureté et mauvaise intention des
peuples, et pour s’être trouvée l’exécution dudit Edit, difficile et périlleuse, se sont
beaucoup plus accrues, et cruellement exécutées à notre très grand regret et
déplaisir, qu’elles n’avaient fait auparavant
185
.
184
“depois do seu fracasso, o ideal de concórdia não é abandonado, mas apenas adiado e sempre
presente. Ele é uma constante da política real”, Turchetti, 1985, p.342.
185
“Édito do mês de julho último: pelo qual teríamos entre outras coisas proibido, sob pena de
confisco de corpos e bens, todos os Conventículos e Assembléias públicas com armas, ou sem
armes: e também as privadas onde seriam feitos Cultos e administração dos Sacramentos sob outra
forma que não o uso observado na Igreja católica, desde e depois de a cristã recebida pelos reis
da França nossos predecessores, e pelos Bispos e prelados, curas, seus Vicários e deputados: tendo
então julgado que a proibição das ditas Assembléias era o principal meio, esperando a
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78
A primeira cláusula do édito proíbe os protestantes de se reunirem dentro
das cidades, mas autoriza o culto em subúrbios por todo o reino durante o dia,
suspendendo
les défenses et peines apposées tant audit Edit de Juillet qu’autres précédents, pour
le regard des Assemblées qui se feront de jour hors desdites villes, pour faire leurs
Prêches, Prières et autres exercices de leur Religion
186
.
a apresentação do texto dava mostras da nova preocupação que guiava as
decisões da Coroa. Nela, que antecede o preâmbulo, resume-se o édito da seguinte
forma: Edit du Roi Charles neuvième de ce nom, (...) sur les moyens les plus
propres d’apaiser les troubles et séditions survenus pour le fait de la Religion
187
.
Pacificar os conflitos dependia de regulamentar o culto protestante, não
mais de eliminá-lo do reino, nem de constranger as consciências. Firmemente
defendido por L’Hospital, o édito de Janeiro marca, para Joseph Lecler, a
passagem definitiva do chanceler “de la position des humanistes à celle des
« Politiques »
188
, com a formulação de uma lei que normatizava na França a
coexistência de católicos e protestantes como meio de pacificar os conflitos,
apaiser les troubles”. Progressivamente, após o discurso na abertura dos estados
de Orléans, em 1560, no qual havia pregado a manutenção da unidade religiosa na
França, por meio da afirmação da máxima une foi, une loi, un roi, L’Hospital
havia mudado sua opinião quanto à forma de lidar com a dissensão no reino.
Segundo Jacqueline Boucher, o fracasso do colóquio de Poissy levara o chanceler
vers une déconfessionnalisation de l’autorité
189
, que assume – a autoridade
monárquica uma função de manutenção da paz e do bem comum, afastando-se
da defesa da religião, e portanto da máxima citada. De acordo com Lecler,
originalmente uma paz sem unificação confessional não era ao que aspirava o
determinação de um Concílio geral, para interromper o curso da diversidade das ditas Opiniões; e
contendo por esse meio nossos súditos em união e concórdia, fazer cessarem todas as perturbações
e sedições; As quais, pelo contrário, pela desobediência, dureza e má intenção dos povos, e por ter
sido a execução do dito Édito difícil e perigosa, aumentaram ainda mais, e agiram mais
cruelmente, para nosso grande pesar e desagrado, do que haviam feito anteriormente”, Stegmann,
op.cit., pp.9-10.
186
“as proibições e penas impostas tanto pelo dito Édito de Julho quanto outros precedentes, no
que se refere às Assembléias que serão feitar de dia fora das ditas cidades, para fazerem seus
Cultos, Orações e outros exercícios da sua Religião”, ibid., p.10.
187
“Édito do Rei Carlos nono desse nome, (...) sobre os meios mais próprios de pacificar as
perturbações e sedições sobrevindas por causa da Religião”, ibid., p.8.
188
“da posição dos humanistas à dos “Politiques”.”, Lecler, op.cit., p.539.
189
“na direção de uma desconfessionalização da autoridade”, Jouanna et al., 1998, p.1039.
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chanceler, que por isso acreditava fortemente na necessidade de um concílio
interno à Igreja, que a depuraria e eliminaria dessa forma o desejo de alguns de se
separarem dela. Dado o insucesso do colóquio, e enquanto o concílio não
acontecesse, L’Hospital acreditava que a sua obrigação era a de evitar os
confrontos e a guerra civil, e por isso pregava a cada francês que reformasse os
seus próprios costumes e usasse, com relação aos mal sentants”, as armes de la
douceur et de la charité
190
. No édito de Janeiro, o chanceler assumia com o rei a
posição de que a instauração da concórdia talvez não significasse imediatamente a
reunião em uma mesma religião.
O vocabulário gerado pela prática das guerras de religião faz da concórdia
um conceito de conteúdo variável, que poderá significar, nos éditos e publicações
contemporâneos, tanto unidade na religião, quanto unidade apesar da diferença de
religião interpretação que se confunde com a de tolerância. No édito de Janeiro,
é essa segunda perspectiva que está por trás da afirmação pelo rei de que sua
intenção é
entretenir nos sujets en paix et concorde, en attendant que Dieu nous fasse la
grâce de les pouvoir réunir et remettre en une même Bergerie, qui est tout notre
désir et principale intention
191
.
Como nos éditos seguintes de Longjumeau (1568), Saint-Germain (1570),
Beaulieu (1576), Bergerac (1577), Fleix (1580) e Nantes (1598), no de Janeiro de
1562 o objetivo explícito de produzir a concórdia entre os franceses convive com
a permissão do culto protestante no reino, isto é, com a dualidade religiosa. Por
outro lado, na França destes meados de século XVI, a concórdia designava
comumente a unidade religiosa restaurada, isto é, o retorno a uma ordem unitária
anterior à dissensão provocada pela Reforma. Segundo Arlette Jouanna, en
France, les catholiques modérés utilisent ce mot pour évoquer la réunion de tous
les croyants au sein de l’Église romaine
192
. Nesse sentido, ela se opõe à
tolerância, guarda-chuva sob o qual a diversidade de religião seria mantida. A
insistência dos éditos das guerras de religião em fazer coexistirem união e divisão
religiosa pode indicar que a concórdia é o objetivo (e é também a obrigação) do
190
“as armas da suavidade e da tranqüilidade”, Lecler, op.cit., pp.434-435.
191
“manter nossos ditos em paz e concórdia, esperando que Deus nos faça a graça de poder
reuni-los e recolocá-los em um mesmo aprisco, o que é todo o nosso desejo e principal intenção”,
Stegmann, op.cit., p.10
192
“Na França, os católicos moderados usam essa palavra para evocar a reunião de todos os
crentes no seio da Igreja romana”, Jouanna, op.cit., p.814.
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rei, mas que a tolerância do protestantismo é temporariamente necessária. É
precisamente neste sentido que se pode falar na experiência da tolerância feita
pela França no século XVI
193
.
A considerável variação da posição da Coroa francesa quanto à dissensão
religiosa em 1559 Henrique II empenhava-se em reprimir o protestantismo no
reino e três anos depois Carlos IX permitia o culto por quase todo o reino – gerava
insegurança de parte a parte. Ambos, protestantes que além de temerem uma
possível reviravolta na sua relação com a Coroa, pretendiam constituir-se em
religião de força semelhante à católica, antes de substituí-la inteiramente –, e
católicos para os quais o édito de Janeiro criava uma abertura insuportável à
heresia –, desconfiavam da nova política apresentada por L’Hospital. Para o
chanceler, a idéia de que a função do governo era garantir a paz e o bem comum
estava se tornando imperativa, e a sua forma de realizá-la levava em consideração
a situação específica do momento francês. O que se percebia na França no início
da década de 1560 era o aprofundamento das tensões envolvendo católicos e
protestantes. Desde 1520 a Coroa havia optado por lidar com a Reforma
reprimindo-a. Quarenta anos depois, o número de protestantes no reino continuava
a aumentar, e uma parte importante da nobreza havia se convertido. A observação
dessa situação levou L’Hospital à conclusão que inicia o édito de Janeiro: as
iniciativas reais para coibir o culto reformado, as perseguições, não resultaram na
reunião dos franceses, pelo contrário, tornaram mais grave a divisão no reino. A
alternativa à proibição foi a permissão regrada, a abertura à liberdade de
consciência. É neste sentido que a rainha-mãe justifica o édito de Janeiro,
escrevendo ao bispo de Rennes, embaixador francês junto ao imperador alemão,
para lhe explicar que foi a nécessité de nos affaires que obrigou à permissão do
protestantismo, e para assegurar-lhe de que n’y a autre passion qui me meuve
que le seul désir que j’ai à l’union de l’église et au repos de ce dit royaume
194
. O
que o chanceler e Catarina de Médici buscavam por esse caminho, a necessidade a
que tinham que responder, era evitar os confrontos, e restaurar a paz entre
franceses das duas religiões.
193
Neste caso, que é o nosso, parte-se para uma análise que defende a presença da tolerância civil
na França do século XVI, apesar das interpretações em contrário de parte da historiografia atual.
194
“necessidade dos nossos negócios”, “não há outra paixão que me mova que não o desejo que eu
tenho pela união da igreja e pela tranqüilidade deste reino”, apud id., ibid., p.102.
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81
A nova política da Coroa tinha em quem se apoiar. O discurso feito por
L’Hospital em 1561 e a defesa da paz acima das divergências religiosas o eram
idéias das quais ele era o único partidário. Por três vezes, o poeta Pierre de
Ronsard havia louvado os benefícios da paz e conclamado os franceses a
abraçarem-na, primeiro descontente com as guerras italianas e depois
entusiasmado com a assinatura do tratado de paz de Cateau-Cambrésis (1559): em
1550, ele havia publicado uma Ode de la paix, e em 1558 a Exhortation pour la
paix, onde fazia uma distinção entre a guerra entre cristãos e aquela contra os
inimigos de Cristo. Aos franceses, entre si e dentro do reino, Ronsard
recomendava:
Non, ne combattez pas, vivez en amitié,
CHRETIENS, changez votre ire avec la pitié,
Changez à la douceur les rancunes amères,
Et ne trempez vos dards dans le sang de vos frères
195
.
Os costumes e virtudes guerreiras em voga na primeira metade do século
XVI fizeram no entanto Ronsard admitir que as guerras, parte do éthos da
nobreza, poderiam ser necessárias e desejadas como exercício, como profissão,
como conquista de um lugar na hierarquia do reino, e, para esses casos, ele
recomendava a luta contra os infiéis, que eram os turcos, nos limites da própria
Europa, e os sarracenos, na Terra Santa.
Ou bien si vous avez les armes échauffées
Du désir de louange, et du lot des trophées,
Et si en vos maisons le repos vous déplaît,
Revêtez le harnais : Encore le Turc n’est
Si éloigné de vous, qu’avec plus de gloire
(Qu’à vous tuer ainsi) vous n’ayez la victoire
De sur tel ennemi, qui usurpe à grand tort
Le lieu ou JÉSUS CHRIST pour vous reçu la mort.
C’est là, soldats, c’est là, c’est où il faut combattre,
Et de notre SAUVEUR l’héritage débattre
196
.
Na guerra contra os sarracenos, além da glória, a riqueza era a recompensa
do soldado:
195
“Não, não combatam, vivam em amizade,/ CRISTÃOS, trocam sua ira pela piedade,/ Troquem
pela doçura os rancores amargos,/ E não embebam seus dardos no sangue dos seus irmãos”,
Ronsard, 1558, s/p.
196
“Ou então se tendes as armas inflamadas/ Do desejo de louvores, e da dose de troféus,/ E se em
vossas casas o descanso vos desagrada,/ Vesti de novo a armadura: Ainda o Turco o está/ Tão
distante de vós, que com mais glória/ (Do que a vos matar assim) não tenhais a vitória/ Sobre tal
inimigo, que usurpa injustamente/ O lugar onde JESUS CRISTO para vós recebeu a morte./ É aí,
soldados, é aí, é onde é preciso combater,/ E do nosso SALVADOR a herança reaver”, id., ibid.,
s/p.
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82
Si vous voulez gagner plus d’honneur et de bien,
Laissez-moi vos combats qui ne servent de rien,
Et pour vous enrichir par les faits de la guerre,
Chassez les Sarrasins hors de la sainte Terre,
Où la moindre cité que d’assaut on prendra,
D’un butin abondant très riche vous rendra
197
.
Mas, entre cristãos, a guerra era um flagelo, que destruía e matava, sem
resultar em butim algum. A paz, ao contrário, Fille de Dieu
198
, fertilizava os
campos, os homens e os animais, e produzia no mundo o que havia de bom nele.
Em 1560, Ronsard publica um terceiro texto: La paix. Au roy. Em 1561, é a
vez de Éienne Pasquier publicar uma Exhortation aux princes et seigneurs du
Conseil privé du Roy pour obvier aux seditions qui occultement semblent nous
menacer pour le fait de la Religion. Se nos poemas de Ronsard a paz era tratada
como um estado de tranqüilidade e bonança que se seguia à guerra entre reinos,
apenas com a indicação de que também, e sobretudo, entre cristãos ela era
preferível à guerra, a obra de Pasquier refere-se direta e especificamente à guerra,
aos conflitos, entre os franceses católicos e protestantes. Para evitar os prejuízos
em que resultam para o reino, o jurista e historiador propõe solucionar as
divergências que ameaçavam tornar-se guerra civil estabelecendo uma paz que
produzisse le repos du Public, l’entretenement de notre Roi en sa grandeur, et la
conservation de vous tous en vos états et honneurs
199
. Para tanto, era preciso
deixar de lado a discussão sobre a religião, pois, diz Pasquier,
d’entrer ici sur le mérite des Religions, comme je vois avoir été pratiqué par
quelques-uns, il me semble que tant s’en faut que ce soit apporter remède à la
maladie qui s’offre, que, au contraire, c’est un r’engregement de plaie. La
comparaison des Religions du Romain et Protestant (car je trouve meilleur de
choisir ces deux termes pour le présent, que d’user d’autres noms de pernicieuse
conséquence) n’apporte autre commodité sinon une pique taisible, dont naissent
les séditions, auxquelles nous voulons obvier
200
.
197
“Se quereis ganhar mais honras e bens,/ Deixai vossos combates que não servem de nada,/ E
para enriquecer-vos pelos feitos da guerra,/ Expulsai os Sarracenos da santa Terra,/ Onde a menor
cidade que de assalto se tomar,/ Por um butim abundante muito ricos de vos deixar”, id., ibid.,
s/p.
198
“Filha de Deus”, id., ibid., s/p.
199
“o sossego do Público, a preservação do Rei na sua grandeza, e a conservação de vós todos em
vossos estados e honras”, Pasquier, op.cit., p.42.
200
“entrar aqui no mérito das Religiões, como vejo ter sido praticado por alguns, parece-me que,
se é muito necessário trazer remédio para a doença que se oferece, é ao contrário um agravamento
da ferida, A comparação das Religiões do Romano e do Católico (pois eu acho melhor escolher
esses dois termos para o presente caso, do que usar outros nomes de perniciosa conseqüência) o
traz outra comodidade senão um desentendimento tácito, donde nascem as sedições, as quais
queremos evitar”, id., ibid., p.4.
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83
Deslocando o foco de atenção da resolução das questões religiosas para
aquela relativa aos problemas criados para o repos Public”, e já que, como
Pasquier relata ao longo da sua exortação, as perseguições e condenações não
haviam sido bem-sucedidas em evitar os conflitos, o autor conclui que il n’y a
point de moyen plus prompt et expédient, que de permettre en votre République
deux Églises: l’une des Romains, et l’autre des Protestants
201
. uma sensível
proximidade entre a obra de Pasquier e o édito de 1562.
No entanto, a primeira tentativa de instituir a tolerância civil como solução
para o problema instaurado pela divisão religiosa na França fracassa ao ser
rejeitada por uma ampla maioria de católicos (e mesmo de protestantes) entre a
população francesa e seus magistrados. Mais do que uma resposta de teor
religioso, a recusa da dualidade confessional e do protestantismo representa a
intenção de manter, em um nível geral e bastante amplo, as estruturas
estabelecidas pela tradição, desde o sistema de valores até a hierarquia social. O
receio de mudanças cristalizou-se, no século XVI, na rejeição da diversidade
religiosa. A Reforma protestante havia dado mostras suficientes, na Alemanha, do
mal que a introdução de uma nova religião em um reino poderia causar. Manter a
ordem, na primeira metade do século, havia significado manter a unidade de
religião.
Como Pasquier e Ronsard, que publicavam apologias à paz, os adversários
de uma pacificação por meio da instauração da dualidade religiosa também
produzem suas exortações. Étienne de La Boétie, autor do De la servitude
volontaire e grande amigo de Montaigne, compõe, no mesmo ano do édito, um
Mémoire sur l’édit de Janvier 1562
202
em que exprime claramente a sua opinião
sobre a perda da unidade religiosa:
Nulle dissension n’est si grande ni si dangereuse que celle qui vient pour la
religion : elle sépare les citoyens, les voisins, les amis, les parents, les frères, le
père et les enfants, le mari et la femme ; elle rompt les alliances, les parentés, les
mariages, les droits inviolables de la nature, et pénètre jusqu’au fond des coeurs
pour extirper les amitiés et enraciner les haines inconciliables
203
.
201
“não há meio mais imediato e expediente do que permitir em vossa República duas Igrejas: uma
dos Romanos, e a outra dos Protestantes”, id., ibid., pp.10-11.
202
O Mémoire permaneceu inédito até a década de 1570 (cf. Bonnefon, 1922, pp.26-29.
203
“Nenhuma dissensão é tão grande nem tão perigosa quanto aquela que acontece por causa da
religião: ela separa os cidadãos, os vizinhos, os amigos, os pais, os irmãos, e pai e os filhos, e
marido e a mulher; ela rompe as alianças, as parentelas, os casamentos, os direitos invioláveis da
natureza, e penetra até o fundo dos corações para extirpar as amizades e enraizar os ódios
inconciliáveis”, La Boétie, 1922, p.120.
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Dadas as terríveis conseqüências da dissensão religiosa, o Mémoire critica a
experiência da tolerância defendida pela Coroa e questiona os resultados que ela
ainda poderia produzir:
Quel fruit avons-nous reconnu de cette tolérance ? Toujours les choses sont allées
en empirant et le désordre a augmenté à vue d’oeil, et depuis ce temps, si on y
prend garde, toujours le jour d’après a été pire et plus malheureux que le jour de
devant
204
.
La Boétie não condena a liberdade de consciência, mas acredita que a
divisão dos franceses em duas igrejas, enfraquecendo as defesas do reino,
beneficia os estrangeiros interessados em atacar a França: la ville divisée est à
moitié prise
205
, diz ele. Por outro lado, o Mémoire desaconselha a recondução dos
protestantes ao catolicismo pela força. La Boétie tem portanto uma espécie de
posição intermediária entre os que são contra a liberdade de consciência e repelem
a existência do protestantismo, e aqueles que consideram que a liberdade de
consciência é positiva, e que os protestantes devem ser admitidos na França em
prol mesmo do reino – até que se pudesse retornar à unidade religiosa. O primeiro
grupo defendia que o protestantismo fosse destruído pela conversão ou morte de
todos os seus fiéis, enquanto o segundo era favorável à reunião dos franceses em
uma mesma religião apenas após a decisão de um concílio, e não pelo uso da
força, sendo expressamente contra o seu emprego em questões religiosas.
Segundo Lecler, pode-se compreender melhor a posição de La Boétie se for
levada em consideração a sua comunhão com os humanistas cristãos, favoráveis a
uma reforma da Igreja católica, inclusive em termos de dogma, que aproximaria o
catolicismo do protestantismo. É essa a lição que se depreende da leitura de La
Boétie sobre o édito de janeiro de 1562. Enquanto a Igreja não for reformada, no
entanto, o pensador aconselha que se convertam todos os franceses, por decreto
real, a uma mesma religião:
J’ai cette opinion que si on ne voulait avoir égard qu’à l’utilité de ce royaume et à
la conservation de cet État, il vaudrait mieux changer entièrement la religion et
tout d’un coup que d’accorder l’intérim
206
.
204
“Que fruto recolhemos dessa tolerância? Sempre as coisas foram piorando e a desordem
aumentou a olhos vistos, e desde então, se prestarmos atenção, sempre o dia seguinte foi pior e
mais infeliz do que o dia anterior”, id., ibid., pp.123-124.
205
“a cidade dividida está conquistada pela metade”, id., ibid., p.121.
206
Eu tenho esta opinião de que, se só se quisesse considerar a utilidade deste reino e a
conservação deste Estado, seria melhor mudar inteiramente a religião, e de uma vez só, que
conceder o provisório”, id., ibid., p.121. La Boétie toma emprestado o título do Intérim
d’Augsburg, concedido em 1548 pelo Imperador aos protestantes alemães até que um concílio
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Neste ponto, como em outros ao longo do Mémoire, não é claro qual das
duas seria a religião escolhida. É possível que essa indeterminação (assim como a
declaração feita na primeira parte do trecho citado acima, e que se refere a
considerar apenas o que é útil ao Estado) signifique que a questão religiosa era
menos importante para La Boétie do que o problema do Estado, e que o esforço
primeiro do rei deveria ser o de conservá-lo, e não a uma das religiões. Uma
conversão em massa garantiria a unidade do reino, e evitaria que a dissensão
religiosa acarretasse a fragilidade da França frente aos vizinhos. Para esse autor
parece, em meados de 1562, que qualquer das duas religiões, protestantismo ou
catolicismo, seria melhor do que a divisão resultante do édito de Janeiro.
Como previra Étienne de La Boétie, a permissão do culto protestante tem,
nessa primeira experiência da tolerância civil, o mesmo resultado das proibições
anteriores e do édito de Julho de 1561: o aumento das tensões entre católicos e
protestantes. A nova política da Coroa, mal recebida pela maioria dos franceses
sobretudo os católicos intransigentes –, e os apelos pela paz, movimentos e
decisões no sentido de impedir que os desentendimentos se tornassem confrontos
armados, fracassam. O resultado imediato da autorização dada aos protestantes no
édito de Janeiro de 1562 de, ainda que com rias restrições, celebrarem seus
cultos, foi o início das guerras de religião. Com raras exceções, os éditos e
contratos de paz que se seguirão aos conflitos armados serão menos favoráveis
aos protestantes do que o de Janeiro.
No dia de março de 1562, o duque de Guise, já não mais lugar-tenente
geral do reino, e seus homens atacam uma assembléia protestante em Wassy,
matam entre 25 e 50 pessoas, e deixam cerca de 150 feridos. É o início da
primeira guerra de religião. Nela, os exércitos reais são comandados pelo rei da
Navarra, Antoine de Bourbon, novo lugar-tenente geral, que após a relativa
legalização do protestantismo e a instauração também relativa da dualidade
religiosa na França havia trocado a moderação pelo partido católico dando a ele
a legitimidade do apoio de um príncipe de sangue. A ele se opõem as forças
protestantes reunidas pelo príncipe de Condé, seu irmão. É uma guerra de poucas
geral decidisse sobre a dissensão religiosa na Alemanha. O provisório garantia aos convertidos
alguma (pouca) liberdade quanto ao culto, significando assim a coexistência entre catolicismo e
protestantismo nas terras do Império. Para La Boétie, essa decisão e a do édito francês de janeiro
de 1562 eram semelhantes.
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batalhas – Dreux e Vergt – e muitos cercos Orange, Sisteron, Montpellier,
Rouen, Orléans, Poitiers, Bourges, Blois, Beaugency, e Le Havre. Nas cidades e
nos campos do reino, os embates entre católicos e protestantes foram violentos.
As populações citadinas, na sua maioria fiéis à Igreja de Roma, foram
responsáveis por inúmeros massacres semelhantes ao de Wassy.
A guerra é decidida pela morte dos principais líderes do campo católico.
Antoine de Bourbon é morto durante o cerco de Rouen, entre setembro e outubro
de 1562; o marechal de Saint-André, um dos triúnviros, morre na batalha de
Dreux, em dezembro; em fevereiro do ano seguinte, o duque de Guise é
assassinado enquanto prepara o assalto final a Orléans. No s seguinte é
assinado o édito de pacificação de Amboise.
Retomando as decisões do édito de Janeiro, o de Amboise institui
oficialmente a liberdade de consciência (reservada apenas a alguns protestantes).
É a primeira vez que a expressão aparece em um documento oficial da Coroa:
dorénavant tous Gentilshommes qui sont Barons, Châtelains, Hauts-Justiciers, et
Seigneurs tenant plein Fief de Hauber, et chacun d’eux, puissent vivre en leurs
maisons (lesquelles ils habiteront) en liberté de leurs consciences, et exercices de
la Religion qu’ils disent réformée, avec leurs familles et sujets
207
.
Quanto ao culto, o édito restringe-o aos subúrbios de apenas uma cidade por
bailia ou senescalia, repetindo a esperança de que um futuro concílio, bon, saint,
libre et général ou national
208
, possibilitasse a reunião dos franceses em uma
religião. A coexistência é apenas temporária, e limitada pelo seu objetivo de
prover à normalização da vida na França e do funcionamento do governo, mas
deixa o protestantismo em um equilíbrio tênue entre heresia e religião revelada.
As decisões do édito de Amboise o agradarão inteiramente a nenhum dos
dois lados, provocando reações tão vigorosas quanto o fizera o édito de 1562:
protestantes (sobretudo Théodore de Bèze e Calvino) e católicos rejeitaram o novo
édito, e os parlamentos negaram-se a registrá-lo
209
. A confirmação da liberdade de
207
“todos os Fidalgos que forem Barões, Castelãos, tiverem direito de alta justiça, e Senhores
tendo pleno feudo de Haubert, e cada um deles, possam viver nas suas casas (nas quais morarão)
em liberdade das suas consciências, e exercício da Religião que eles dizem reformada, com suas
famílias e súditos”, Stegmann, op.cit., p.34.
208
“bom, santo, livre e geral ou nacional”, ibid., p.33.
209
Um édito apenas se tornava plenamente reconhecido como lei depois de ter sido ratificado,
registrado nos autos dos parlamentos do reino – vérifié, dizia-se no século XVI. O primeiro
parlamento, em importância, era o de Paris, que se pronunciava antes dos demais sobre a aplicação
de um édito, e cuja posição tinha valor determinante. Os outros sete parlamentos eram os de
Grenoble, Dijon, Toulouse, Bordeaux, Aix, Rennes e Rouen. Um édito que não tivesse sido
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consciência não serve aos católicos que após comandarem os exércitos reais
contavam com a retomada da política de repressão à dissensão religiosa –,
enquanto a redução do direito de culto e reunião decepciona os protestantes que
esperavam, depois de mostrarem sua força nos campos de batalha (e depois da
morte de três dos principais chefes católicos), ver sua participação no reino
aumentada. Sobretudo, uma mesma reivindicação será apresentada por católicos e
protestantes: o estabelecimento definitivo de uma única religião do reino.
As críticas que haviam sido feitas antes da guerra ao caminho escolhido pelo
chanceler Michel de L’Hospital, e as apreensões que ele gerou, repetem-se após a
assinatura do édito de Amboise. O vigário de Provins, Claude Haton, declara que
a paz é um édit de liberté huguenotique
210
, e que a existência de duas religiões
sob o mesmo rei fere a sua majestade, pois la Religion que tient le Prince, soit
bonne ou mauvaise, induit les sujets à la prendre
211
. Argumento semelhante
serve de base às Remonstrances faictes au roy de France, par les deputez des trois
Estats du Duché de Bourgoigne, sur l'Edict de la pacification des troubles du
Royaume de France, compostas por Jean Bégat por encomenda do marechal de
Saulx-Tavannes. Bégat argumenta que d’autant que le Prince est maître de la
Loi, faire ne se peut ni doit que le Prince Chrétien ait des sujets d’autre religion
que la sienne
212
, pois ele seria obrigado então a tratá-los diferentemente sob a lei,
e, em vista dessa diferença, estabelecer leis distintas, ou de peso desigual, para
católicos e protestantes.
A religião do rei deve ser a religião de todos os seus súditos, essa é a
mensagem da intransigência católica ao rei Carlos IX e em especial a Catarina de
Médici e ao chanceler Michel de L’Hospital, principais formuladores dos termos
do édito de 1563. É a eles que Bégat se refere ao perguntar: Qui sont donc ceux
qui veulent dire qu’un Monarque Chrétien peut tolérer deux diverses sectes en
son royaume, sans la ruine d’icelui?
213
. É possível a co-existência de duas
registrado por um parlamento poderia ser aplicado depois de confirmado por outro, mas
permanecia necessário que os parlamentos todos o ratificassem. A importância atribuída ao
registro dos éditos era tanta que, por vezes, a data da verificação destes era considerada mais
importante do que a da sua promulgação pelo rei (cf. Cottret, op.cit., pp.202-203)
210
“édito de liberdade huguenótica”, Mémoires de Claude Haton..., apud Christin, op.cit., p.56.
211
“a religião que segue o príncipe, seja boa ou má, conduz os sujeitos a seguirem-na”, moires
de Claude Haton..., apud id., ibid., pp.58-59.
212
“O príncipe é mestre da lei, não se pode nem deve fazer com que o príncipe cristão tenha
súditos de outra religião que não a sua”, Bégat, 1564, p.6.
213
“Quem são portanto esses que querem dizer que um Monarca Cristão pode tolerar duas seitas
diversas em seu reino, sem a ruína deste?”, id., ibid., p.19.
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religiões? Aos deputados, que se ocupavam em garantir a observância das leis
fundamentais do reino, cabia perguntar acerca das conseqüências das decisões do
édito de Amboise para o governo da França; em outras palavras, cabia questionar
a validade de tal decisão sob a perspectiva da lei e da administração da república.
Também a reação protestante não tarda a se expressar, em argumentações
semelhantes às manifestações de Bégat e Haton. Um embaixador espanhol na
corte francesa descreve a pressão que alguns protestantes próximos ao rei, como o
príncipe de Porcien, infligem contra a paz de Amboise. Porcien, conta o
embaixador em carta publicada com as memórias de Condé, “ose dire à la Reine à
chaque pas, que le Roi son fils n`y elle ne sont point obéi (...) et qu’il faut qu’elle
choisisse une des deux religion et qu’elle la fait suivre de tous
214
.
Foco dos descontentamentos de ambos os grupos, a autoridade real é a
maior prejudicada pela permanência das tensões. É preciso justificar, tanto aos
católicos quanto aos protestantes, o fato de não se ordenar imediatamente o
estabelecimento de uma só religião na França. É preciso defender o édito de
Amboise e o movimento político que ele representa.
É o que fazem Catarina de Médici e Michel de L’Hospital. A Coroa
responde a Bégat e aos estados da Borgonha pela Apologie de l’édit du roy sur la
pacification de son royaume, contre la remonstrance des États de Bourgogne
(1564), cujos argumentos, segundo Jouanna, inspiram-se nas idéias do
chanceler
215
. A apologia reforça a autoridade do monarca ao afirmar a
subordinação da administração pública a ele, car c’est le chef de toute la patrie,
sous le soin et bon conseil duquel consiste la protection et entretenement du repos
public
216
. E adverte: C’est à lui de vous commander, et à vous d’obéir
promptement
217
.
Essa primeira consideração é, segundo o panfletista a serviço da Coroa,
suficiente para justificar o édito de Amboise, pois ela se funda no reconhecimento
da obediência inequívoca devida ao rei. Para tornar no entanto inteiramente nulas
214
ousa dizer à rainha a cada passo que o rei, seu filho, e ela não são em absoluto obedecidos (...)
e que é necessário que ela escolha uma das duas religiões e que ela a faça seguir por todos”. Carta
do embaixador espanhol publicada com as Memoires de Condé, citada em Christin, op.cit., p.230,
nota 57.
215
Jouanna, op.cit., p.146.
216
“pois é o chefe de toda a pátria, sob o cuidado e bom conselho do qual inside a proteção e
conservação da tranqüilidade pública”, Apologie de l'edit du Roy sur la pacification de son
royaume, contre la remonstrance des estats de Bourgongne, 1564, p.4.
217
“Cabe a ele vos comandar, e a vós obedecer prontamente”, id., ibid., p.56.
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as críticas de Bégat quanto às cláusulas da pacificação, o autor anônimo toma o
argumento usado nas Remonstrances segundo o qual la couleur de tolérer les
sectes à l’imitation des précédents Empereurs Chrétiens se trouvera fausse, et de
dangereux conseil, et pernicieux exemple
218
, e conclui que o seu trabalho é
simplesmente o de contradizer um dos elementos da afirmação, pois o outro será
assim automaticamente invalidado:
Si donc je vous puis prouver que les bons Empereurs et sages Princes, ont permis
et toléré religion contraire à celle qu’ils tenaient, vous reviendrez, comme je pense,
à reconnaissance de votre faute
219
.
Para a rainha-mãe e para o chanceler, a suspensão da unidade religiosa não
era motivo para a ruína do reino, enquanto o inverso, a obrigação a ela, era a causa
da guerra. O tempo, no entanto, poria fim à necessidade de recorrer a expedientes
como a liberdade de consciência e a relativa liberdade de culto, e a reunião sob
uma Igreja seria então novamente possível. Mas somente após o
restabelecimento da paz e da ordem dentro do reino. Ao bispo de Rennes, Catarina
justifica o édito explicando que através dele não se pretende intervir na ordem
religiosa alterando-a, e sim possibilitar, na França, a sua restauração:
l’intention du Roi mon fils et la mienne n’est pas de laisser établir, par le moyen de
ladite pacification une nouvelle forme et exercice de religion en ce royaume, mais
bien pour parvenir avec moins de contradiction et difficulté à la réunion de tous
nos peuples en une même sainte et catholique religion
220
.
Ao tomarem a decisão de que esses objetivos seriam atingíveis apenas
através da aceitação, temporária, da coexistência, o chanceler e a regente
reafirmam a novidade da sua posição, considerando a possibilidade de lidar com o
problema da Reforma religiosa sob uma perspectiva secularizada, distinguindo as
necessidades da república das necessidades da Igreja. Para Olivier Christin,c’est
parce qu’elle met entre parenthèses les questions théologiques que la paix est
218
“o pretexto de tolerar as seitas como imitação dos Imperadores Cristãos anteriores será
considerado falso, e de perigoso conselho e pernicioso exemplo ”, id., ibid., p.6.
219
“Se portanto eu puder provar que os bons Imperadores e sábios Príncipes permitiram e
toleraram religião contrária à que eles tinham, vós retornareis, como penso, ao reconhecimento do
vosso erro”, id., ibid., p.7.
220
“a intenção do Rei meu filho e a minha não é de deixar estabelecer-se, através da dita
pacificação, uma nova forma e exercício de religião neste reino, mas sim para realizar com menos
contradição e dificuldade a reunião de todos os nossos povos em uma mesma santa e católica
religião”, apud Jouanna, op.cit., p.146.
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90
pleine de promesses pour l’avenir
221
. Ao silenciar sobre a perspectiva teológica
da primeira guerra de religião, o édito de Amboise torna-se um tratado de
tolerância civil. A máxima que havia longamente regido a monarquia francesa, un
roi, une loi, une foi, é rompida pela Coroa, mesmo que ela insista sobre o caráter
apenas provisório dessa ruptura, e portanto sobre o retorno futuro à unidade
religiosa. Nesse momento específico, no entanto, o rei precisava manter-se, com o
instrumento da lei, apesar de serem duas as religiões no seu reino.
Frente à ação da Coroa, e ao seu relativo distanciamento com relação à
tradição monárquico-religiosa, os grupos opostos de protestantes e católicos
constroem suas reivindicações sobre a idéia de que um reino, e um rei, significam
uma religião. Não é possível haver duas pois todos os súditos têm que estar
igualmente submetidos ao rei e à lei (real): o cimento social e político do reino,
declaram, é a religião
222
. Esses são os termos da recusa ao édito de Amboise, à
coexistência de católicos e protestantes no reino, à tentativa da Coroa de impor a
tolerância civil como solução para os conflitos gerados pela dissensão religiosa.
Para amenizar as reações adversas, o chanceler desenvolverá, nos meses que
se seguem ao édito, duas das suas idéias centrais, que haviam sido apresentadas
no discurso de Saint-Germain, em 1562: todo súdito, independentemente da sua
religião, responde de forma semelhante à autoridade do rei, todo súdito portanto é
um cidadão, e sua confissão não interfere na sua relação com o Estado; a segunda
idéia, decorrente dessa primeira, é a de que a unidade religiosa, quando imposta,
pode ser prejudicial ao reino. No núcleo desses dois argumentos es a
necessidade de separar as questões do Estado das questões da Igreja, necessidade
que formará a base teórica da tolerância civil e que faz parte do movimento de
secularização e de desenvolvimento do Estado moderno. Para L’Hospital, não é a
religião que forma ao reino, e sim a autoridade monárquica. É ela que deve ser
o motor e o objetivo da reunificação dos franceses; a unidade da França é ela que
cria. Optar pela imposição da reunificação religiosa pode prejudicar o reino
porque se a lei determina que o catolicismo é a única religião na França, ter outra
confissão torna-se sedição. O protestante não seentão apenas herege, ele será
um rebelde frente à autoridade da lei, que é a autoridade do rei, e como tal deverá
221
“é porque ela coloca entre parênteses as questões teológicas que a paz é repleta de promessas
para o futuro”, Christin, op.cit., p.221 nota 48.
222
Cf. id., ibid., p.59.
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ser punido pela lei. Se ela, por outro lado, não determinar nem pretender impor
uma religião para o reino, é cada homem que faz a sua opção, que não interfere no
funcionamento do Estado. Contrariando o que ensinava a tradição monárquico-
religiosa francesa, L’Hospital propunha assim que a liberdade de consciência não
não prejudicava o reino, como poderia mesmo salvá-lo. Trata-se de uma
solução essencialmente política, no sentido de que ela se baseia nas relações entre
os homens, como se dão no espaço público, e tem como objetivo a condução
dessas relações e desses homens no sentido do bem comum. Essa definição de
política era a que aparecia na França no mesmo momento das guerras de religião.
Porque ela era uma inovação que significava romper com o status quo, nem todos
os franceses acompanhavam o chanceler na sua decisão de operar através dela. Foi
sobretudo por isso, por não reconhecerem a separação mesmo que temporária,
mesmo que limitada entre Igreja e Estado como uma via de ação benéfica,
possível, ou autorizável, que os esforços empreendidos pelo chanceler para
justificar o édito de Amboise o convenceram a maioria dos católicos e
protestantes do reino.
A tarefa não era simples. Segundo Jouanna,
La partie (...) se joue à trois (sans compter les puissances extérieures et leurs
pressions) : les réformés engagés dans leur combat pour l’Evangile, les
catholiques intransigeants qui ne se résignent pas à la perte de l’unité religieuse,
et ceux qui tâtonnent, avec des motivations diverses, en quête de solutions
nouvelles rendant possible la coexistence
223
.
Este último grupo, o do chanceler e da rainha-mãe, havia se empenhado em
converter os outros dois ou pelo menos um número suficiente de indivíduos
entre eles para formar uma base de apoio sólida – empartisans (...) de la
tolérance
224
. O seu insucesso deve-se sobretudo à pressão do partido católico,
que consegue da Coroa a publicação de um novo édito, em 1564, estabelecendo a
proibição de qualquer reunião de protestantes em sínodos. A declaração de
Roussillon, no entanto, tem o resultado de intensificar o descontentamento
protestante. Um Advertissement publicado em 1565, precedido de uma carta do
223
“A partida (...) se joga a três (sem contar as potências estrangeiras e suas pressões): os
protestantes empenhados no seu combate pelo Evangelho, os católicos intransigentes que não se
resignam à perda da unidade católica, e aqueles que tateiam, com motivações diversas, em busca
de soluções novas que tornem possível a coexistência”, Jouanna, op.cit., pp.143-44.
224
“partidários (...) da tolerância”, id., ibid., p.144.
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príncipe de Condé à rainha-mãe, soma às críticas feitas ao édito de Amboise o
assombro frente às mudanças estabelecidas nele pelo novo édito, anunciando que
les restrictions y contenues, sont si aigres et mordantes que l’on n’en peut espérer
sinon des conjurations et monopoles ou bien les chutes du tout en athéisme, par un
abandon et mépris de religion
225
.
A alguns protestantes parece, então, que a transigência religiosa que
permitia a sua existência e que eles mesmos preferiam anular, em favor da
conversão completa do reino ao protestantismo – estava sendo suprimida, mas em
favor dos seus adversários católicos.
Quatro anos após a assinatura do primeiro édito de pacificação, as tensões –
muitas delas provocadas pela própria paz de Amboise levam novamente ao
confronto armado. O endurecimento de ambos os lados, a intransigência católica e
o descontentamento protestante quanto às limitações decididas pelos éditos de
Amboise e Roussillon, levaram este último grupo à decisão de que tinham mais a
ganhar com um coup-de-force do que a perder. O movimento inicial que resultou
na segunda guerra de religião partiu, portanto, dos protestantes. À semelhança da
Conjuração de Amboise e da primeira guerra a sua justificativa baseava-se, no
entanto, no dever de resistência que os impelia a defenderem o jovem rei,
libertando-o do governo tirânico dos Guise. Em 26 de setembro de 1567, após
formar uma cavalaria de cerca de 500 homens, o príncipe de Condé avança sobre
Meaux, onde está reunida a corte. Assustado, Carlos IX pede aos soldados suíços
que o escoltem em segurança até Paris. A aproximação dos protestantes parece à
corte um ataque, apesar das repetidas tentativas feitas para legitimar a ação de
Condé, e é determinante para que se repita em 1567 o que havia acontecido em
1562: o exército real é comandado pelos grandes senhores católicos, e dentro dele
a motivação é eliminar a heresia do reino.
A segunda guerra de religião é igualmente marcada pela violência dos
massacres nas cidades e nos campos, como em Nîmes onde os protestantes
atacam os católicos – e em Paris, onde o inverso acontece. São dois os momentos
decisivos da guerra: a batalha de Saint-Denis, em que morre o condestável de
Montmorency, e o cerco de Chartres. O fim do cerco, em meados de março de
225
as restrições aí contidas são tão ásperas e desabridas que não se podem esperar senão
conjurações e monopólios ou a queda de todos no ateísmo, pelo abandono e desprezo da religião”.
Lettres de Monseigneur le Prince de Condé à la Roine mère du Roy avec advertissement... (1565),
apud Christin, op.cit., p.56.
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1568, resulta no fim da guerra. No dia 23 do mesmo mês, é assinada a paz de
Longjumeau. Como o édito de Amboise, este reitera as decisões expressas no de
Janeiro de 1562, chegando a ampliar o direito de culto nas terras dos senhores
protestantes. Como nos éditos anteriores, jusqu’à ce qu’il ait plu à Dieu nous
faire la grâce que nos sujets soient réunis en une même religion
226
.
Desde o início da guerra, a Coroa e os protestantes haviam tentado negociar
os termos de uma nova pacificação. Publicadas em 1568 nas Memoires des choses
advenues sur le Traicté de la Pacification des Troubles qui sont en France, as
condições e os incidentes que marcaram os debates revelam as desconfianças
mútuas acerca das intenções de um e outro lado e do seu comprometimento com a
paz. As Memoires descrevem, do ponto de vista de Condé e seus aliados, as
tentativas de estabelecerem-se com Carlos IX os termos de uma pacificação. Na
sua primeira carta, transmitida pelo senhor de Combault, o rei afirma a sua
intenção de restaurar as cláusulas confirmadas pelos estados gerais de Orléans,
baseadas no édito de Amboise de 1560. Em troca, Condé e os seus m que
abandonar as armas, voltar para as suas terras e casas, devolver as cidades
conquistadas ao rei e dispensar as forças estrangeiras chamadas para participarem
da guerra. Entusiasmados com as propostas de Carlos IX, os protestantes
acreditam não apenas em uma pacificação, mas na sua reintegração junto ao rei,
que parece ter se libertado da influência dos Guise.
Par ces Articles, Monsieur le Prince et ceux de sa compagnie entrèrent en grande
espérance de Paix. Et pour être plus certains de l’intention du Roi, voulurent ouïr
Combault sur le fait de sa charge : Qui leur dît que le plus grand désir de sa
Majesté était de mettre fin aux troubles, réunir ses sujets, ôter pour l’avenir toute
occasion de querelle, et établir un perdurable repos. Que pour montrer la bonne
affection qu’il porte à son peuple, spécialement à la Noblesse, il voulait permettre
aux Gentilshommes indifféremment, et sans aucune restriction, l’exercice de la
Religion
227
.
Disposto então a se empenhar no estabelecimento de um novo acordo de
paz, o partido protestante elege como representantes o cardeal Odet de Châtillon –
226
“até que tenha agradado a Deus fazer-nos a graça de que nossos súditos sejam reunidos em uma
mesma religião”, Stegmann, op.cit., p.58, art.14.
227
“Por esses Artigos, o Senhor Príncipe e os da sua companhia entraram em grande esperança de
Paz. E para estarem mais assegurados da intenção do Rei, quiseram ouvir Combault sobre o
conteúdo da sua comissão: Que lhes disse que o mais desejo da sua Majestade era colocar fim às
perturbações, reunir seus súditos, subtrair para o futuro qualquer ocasião de querela, e estabelecer
uma durável tranqüilidade. Que para mostrar a boa afeição que ele tem pelo seu povo,
especialmente pela Nobreza, queria permitir aos Fidalgos indiferentemente, e sem nenhuma
restrição, o exercício da Religião”, Memoires des choses advenues sur le Traicté de la Pacification
des Troubles qui sont en France. Avec l'exhortation à la Paix, 1568, s/p.
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que havia sido um dos grandes inquisidores nomeados pelo papa em 1557, e, em
1561, havia se convertido ao protestantismo –, e os condes de la Rochefoucault et
de Bouchavanes, que serão enviados à corte com a função de esclarecer todos os
pontos que, nas propostas apresentadas pelo rei, eram pouco evidentes, e
poderiam provocar novas divergências. Para informar o rei dessa decisão, o
senhor de Téligny é enviado a Paris,
avec charge de le remercier très humblement du bien qu’il faisait à ses sujets, le
supplier de croire qu’autre chose ne les avait mût à prendre les armes, que la juste
crainte qu’ils avaient eue, que l’on voulût attenter contre la liberté de leur
Religion, et contre leurs personnes. Ce qu’ils voyaient ne pouvoir être exécuté,
qu’avec la ruine du Royaume, à la conservation duquel ils avaient eu plus d’égard
qu’à leurs propres vies
228
.
Ainda no caminho até a capital, o enviado protestante é no entanto
surpreendido por notícias que o fazem temer pela viabilidade de uma pacificação.
De um jovem conde de Lansac, Téligny ouve que as informações que chegavam
ao eleitor-palatino Frederico III que havia decidido enviar seu filho, o conde
Jean Casimir, para apoiar Condé atribuíam ao movimento protestante iniciado
em Meaux a intenção de destituir o rei e tomar o governo. Segundo Lansac, ele
mesmo havia sido imbuído de relatar ao eleitor-palatino que
les armes n’avaient été prises pour la Religion formée (laquelle le Roi avait
permise à ses sujets en pareille liberté, que la Catholique Romaine) mais pour
l’État du Royaume, duquel Monsieur le Prince de Condé se voulait emparer, se
faisant déjà nommer Louis treizième, et forger monnaie de son coin. Semblable
accusation était contenue par lettres surprises, que l’on écrivait en Allemagne : et
en outre portaient icelles lettres, que ceux de l’armée de Monsieur le Prince de
Condé montraient bien qu’ils ne faisaient la guerre pour la Religion, d’autant
qu’ils ne touchaient à Prêtres ni à temples
229
.
Outro enviado protestante à corte, o senhor de Saint-Simon, representante
do almirante de Coligny, toma conhecimento das movimentações do novo duque
de Guise filho do precedente, assassinado em uma emboscada em 1563 que
228
“com comissão de agradecer-lhe muito humildemente pelo bem que ele fazia aos seus súditos,
suplicar-lhe que acreditasse que outra coisa não os havia impelido a tomar em armas senão o justo
temor que tinham tido que se quisesse atentar contra a liberdade da sua Religião, e contra as suas
pessoas. O que eles entendiam não poder ser executado a não ser com a ruína do Reino, cuja
conservação era mais importante para eles do que as suas próprias vidas”,ibid., s/p.
229
as armas não tinham sido desembainhadas pela a Religião reformada (que o Rei havia
permitido aos seus ditos com a mesma liberdade da Católica Romana) mas pelo Estado do
Reino, do qual o Senhor Príncipe de Condé queria apoderar-se, se fazendo chamar Ls XIII, e
forjando moeda do seu cunho. Semelhante acusação era contida em carta apreendidas, que se
escreviam na Alemanha: e além disso diziam essas cartas que os do exército do Senhor Príncipe de
Condé mostravam bem que o faziam a guerra pela Religião, dado que o tocavam em Padres
nem tempos”, ibid., s/p.
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angariava forças na Lorena, e do duque de Nevers, que reunia tropas italianas e
suíças
230
, e reporta ao almirante sua opinião de que as negociações seriam na
verdade uma manobra, elaborada pelo rei e pelos grandes senhores católicos com
a intenção de surpreender os protestantes e assim poder melhor destruí-los.
Apesar das incertezas, as negociações prosseguem, e o cardeal de Châtillon
parte ao encontro do rei. Também ele recolhe, no caminho a a corte,
informações que sugerem que o verdadeiro interesse da Coroa não era o de
restabelecer a paz. A demora em ser recebido pela rainha-mãe, os muitos
intermediários que vêm ao seu encontro em lugar de Carlos IX somam-se às
suspeitas crescentes do cardeal. Apesar das boas intenções expressas por Catarina
de Médici, chegam a Odet de Châtillon repetidas advertências de que
l’intention de quelques-uns, que l’on dit être s’emparés, non seulement du
maniement et conduite des affaires de ce Royaume, mais aussi veulent disposer à
leur plaisir des opinions et volontés du Roi et de la Reine, était délibérée
d’empêcher la Paix
231
.
Quando finalmente a resposta do rei quanto aos pontos levantados pelos
protestantes é anunciada, ela parece confirmar os temores de que não era a paz, e
sim a guerra com os protestantes que a Coroa desejava. Os senhores de
Morvilliers e Lansac são os responsáveis por transmitir ao cardeal as três
observações feitas por Carlos IX, assinadas e datadas de 20 de janeiro de 1568. Na
primeira delas, segundo as Memoires, o rei afirma que, para impedir uma nova
revolta protestante, a promessa feita por Condé, cuja palavra, diz o texto, havia
sido quebrada uma vez, não era suficiente. Igualmente insatisfeito está Carlos IX
com o fato de os mercenários contratos pelo príncipe não terem sido dispensados,
como lhe havia sido ordenado. O último ponto conta de que sa Majesté
demeurait toujours en scrupule de ce qui était advenu entre Paris et Meaux, ne
pouvant croire autrement, que ce ne fut une entreprise faite contre sa
personne
232
.
230
ibid., s/p.
231
“a intenção de alguns, que se dizia terem se apoderado, não somente do manejo e condução dos
assuntos deste Reino, mas também quererem dispor ao seu bel prazer das opiniões e vontades do
Rei e da Rainha, era deliberada para impedir a Paz”, ibid., s/p.
232
“sua Majestade permanecia ainda reticente do que tinha acontecido entre Paris e Meaux, não
podendo acreditar que não tenha sido uma ação contra a sua pessoa, ibid., s/p.
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Desconfiança do rei em relação aos protestantes; desconfiança dos
protestantes em relação ao rei. O cardeal declara em resposta que os artigos do
édito de Orléans quanto a conservar os súditos protestantes
en la liberté de leur Religion, et de les maintenir en sûreté de leurs vies, biens et
honneurs, ne leur avait été aucunement gardée ni tenue. Combien d’injures,
violences, meurtres et massacres publics et privés ont-ils souffert
233
,
apesar de proibidas as perseguições motivadas pela diferença de religião? Se o rei
se recusa a recebê-lo pessoalmente, atrasando o sucesso das negociações pelos
entraves criados pelos intermediários enviados; se o evento de Meaux é
relembrado apesar de as justificativas apresentadas por Condé na época terem sido
consideradas pelo rei satisfatórias; se a palavra do príncipe é colocada em dúvida,
a verdade é que, diz Châtillon, ce sont tous moyens recherchés pour se départir
de ce que le Roi avait accordé, et que ceux qui sont autour de sa personne, n’ont
leur but dressé à la paix
234
.
Em falta de paz, volta-se à guerra. Os protestantes tomam Tours e Blois, e
cercam a cidade de Chartres. O exército reunido por Carlos IX, enorme, chega
talvez a contar cem mil homens
235
. Mas apesar do vigor aparente, as dificuldades
financeiras e logísticas fragilizam as forças reais. Também para o lado protestante
os custos da manutenção da guerra tornam-se um problema. Em fevereiro, o
cardeal de Châtillon volta a participar das negociações de paz, dessa vez frente ao
marechal François de Montmorency.
A elaboração do édito de Longjumeau, tão favorável aos protestantes,
depois dos desentendimentos descritos nas Memoires sur le Traicté de la
Pacification des Troubles qui sont en France, deve-se ao trabalho do chanceler
Michel de L’Hospital. Insistindo na aproximação de católicos e protestantes
quando é de questões referentes ao governo do reino que se trata, o chanceler
retoma a defesa dos princípios da tolerância civil. No novo tratado, as cláusulas de
Amboise são retomadas e o direito de culto nas terras dos senhores convertidos é
estendido. Para André Stegmann, a paz satisfait toutes les exigences
233
“na liberdade da sua Religião, e de mantê-los seguros quanto às suas vidas, bens e honras, não
haviam sido respeitados nem realizados. Quantas injúrias, violências, assassinatos e massacres
públicos e privados sofreram eles”, ibid., s/p.
234
“são todos meios buscados para desviar-se do que o Rei tinha acordado, e que aqueles que estão
em torno à sua pessoa não visam a paz”, ibid., s/p.
235
Jouanna, op.cit., p.170.
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protestantes
236
, entre elas a anistia total para os envolvidos na guerra incluindo
Condé e seus companheiros na Surpresa de Meaux e o pagamento dos
mercenários contratados, que é assumido pelo Tesouro real.
A repetição dos confrontos armados e a insistência da Coroa nas
determinações que permitem a presença e o culto protestante na França têm no
entanto duas conseqüências amargas para os partidários da tolerância civil: em
fins de junho de 1568 o chanceler Michel de L’Hospital é afastado do conselho e,
em agosto, inicia-se a terceira guerra de religião.
As tensões que haviam levado à Surpresa de Meaux, as desconfianças
múltiplas, de católicos, protestantes e da Coroa desconfianças que são
claramente expressas nas negociações entre os protestantes e o rei durante a
segunda guerra civil não são apaziguadas pelo édito de Longjumeau. Pelo
contrário, a crueldade da guerra aprofundou os ódios e a paz não conseguiu
produzir conciliação.
As propostas de coexistência de L’Hospital, expressas nos éditos de Janeiro
de 1562, de Amboise e de Longjumeau, aplicavam-se a todos os campos de ação
do Estado. No conselho, as conseqüências da liberdade concedida aos protestantes
geravam desentendimentos freqüentes entre o chanceler e o cardeal de Lorena. O
mais grave enfrentamento resultou no afastamento do chanceler do conselho. Os
gastos gerados pelas guerras civis obrigavam a Coroa a recorrer a expedientes
emergenciais para suprir o Tesouro, sendo o mais comum deles a alienação dos
bens da Igreja. Em 1568, o papa havia permitido uma segunda alienação, impondo
como condição o comprometimento do rei na eliminação do protestantismo na
França. Ao recusar-se a receber a bula papal, L’Hospital, desgastado pelas críticas
e pelas guerras, é vencido pelos católicos intransigentes do conselho do rei que,
além de afastá-lo em junho, retiraram dele, em setembro, o cargo de chanceler.
Em L’Hospital o partido católico reconhecia um oponente de um tipo específico:
para o chanceler, um politique, a unidade do reino precisava ser fortalecida não
com base na identidade religiosa, mas na autoridade do rei e na sua função de
promover o bem comum. Em 1568, segundo Jouanna, les catholiques
intransigeants commencent à dénoncer les « Politiques » comme des adversaires
236
“satisfaz todas as exigências protestantes”, Stegmann, op.cit., p.52.
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plus dangereux que les hérétiques
237
, pois eles abordavam o problema religioso
por um ângulo secularizado.
A terceira guerra de religião, mais longa do que as duas anteriores, durando
de agosto de 1568 a agosto de 1570, distinguiu-se também delas por três fatores: a
internacionalização do conflito, o surgimento de uma nova liderança católica, e a
decretação de dois éditos radicalmente opostos.
Para compensar o apoio interno que o afastamento de L’Hospital da
chancelaria parecia lhes retirar, os protestantes buscaram na Inglaterra, na
Alemanha e nos Países Baixos apoio externo para a sua causa. Por seu lado, a
Coroa, conhecendo os acordos entre os protestantes e Elizabeth I, precisava
assegurar-se de que, em caso de ameaça inglesa, teria como garantir uma vitória
sobre um inimigo que tinha aliados dentro da França. Ao aproximar-se dos
católicos intransigentes e da Espanha, a Coroa parecia, aos olhos dos protestantes,
confirmar a existência de uma grande aliança cujo objetivo, supostamente traçado
em uma entrevista realizada em 1565 em Bayonne entre Catarina de Médici e o
duque de Alba, representante de Felipe II, seria eliminar o protestantismo de toda
a Europa.
As batalhas de Jarnac onde morre o príncipe de Condé e Moncontour
revelaram em Henrique de Anjou, irmão de Carlos IX, um novo campeão das
guerras de religião. Membro da família real, herdeiro do trono, lugar-tenente geral
do reino após a morte do condestável de Montmorency, Anjou era uma adição
importante à causa católica, pois ao mesmo tempo em que dava legitimidade à sua
posição, enfraquecia o argumento protestante segundo o qual era preciso libertar o
rei da presença ilegal dos Guise no governo. Carlos IX não havia tomado parte em
nenhuma batalha nas duas guerras anteriores
238
, e Anjou, lutando ao lado do novo
duque de Guise, manifestava a concordância da Coroa com a luta católica.
Apesar de a presença de Anjou na guerra poder ser uma declaração da união
entre a Coroa e o partido católico, o édito de Saint-Germain, à primeira vista, não
se distinguia muito das duas primeiras tentativas de pacificação, cujas bases
haviam sido dispostas no édito de janeiro de 1562. No entanto, a situação do édito
237
os católicos intransigentes começam a denunciar os Politiques” como adversários mais
perigosos que os hereges”, Jouanna et al., op.cit., p.1388.
238
Após a derrota dos exércitos franceses em via, em 1525, e a captura de Francisco I pelos
espanhóis, havia se tornado hábito na França afastar o rei da liderança dos exércitos reais em
combate.
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de Saint-Germain, assinado em agosto de 1570, é particular. Em setembro de
1568, cerca de um mês após o início da terceira guerra de religião, Carlos IX
havia instituído as ordonnances de Saint-Maur, anulando os éditos de Janeiro, de
Amboise e de Longjumeau e proibindo o culto protestante na França.
As ordenações rompem brutalmente a política de coexistência seguida pela
Coroa havia alguns anos, e são o resultado do crescimento, no conselho real, da
intransigência católica. Por trás das suas cláusulas, está o desejo mantido por este
grupo desde o édito de Amboise de março de 1560 de retomar a repressão à
Reforma nos moldes de Francisco I e Henrique II. Contrários a qualquer tipo de
moderação com relação aos protestantes, os intransigentes impõem um pesado
revés ao grupo que a poucos meses era liderado por Michel de L’Hospital
239
quando as ordenações de Saint-Maur abrem-se sobre a afirmação de que é preciso
voltar ao tempo em que
les feus Rois de très louable mémoire, nos père et aïeul (que Dieu absolve) se
montrant très-Chrétiens et protecteurs de la Sainte Eglise, se sont évertués par
Edits et voie de justice, en conserver l’union, et primer la division de Religion,
de leurs temps entrée en ce royaume, par prêches faits et assemblées cachées, et
distribution de livres réprouvés
240
.
A ruptura provocada pelo édito de Janeiro de 1562, que significava o fim da
repressão ao protestantismo, havia gerado pesadas críticas, dentro e fora da Igreja,
ao governo francês. De acordo com as ordenações, os protestantes seriam os
verdadeiros responsáveis pelo édito, tendo a rainha-mãe, então regente, sido
convencida de que a permissão da nova religião, nos termos em que era colocada,
parecia o menor mal que se poderia fazer então. Para comporem o texto de 1562,
os protestantes teriam convocado eles mesmos uma assembléia, e nela
mirent plus grand nombre de ladite nouvelle opinion que de Catholiques, pour
parvenir à leur fin, comme ils firent de la tolérance de l’exercice de deux religions
par notre Edit provisionnel, fait le 17 Janvier audit an, 1561
241
. Lequel notredite
très honorée Dame et mère pour lors n’étant la plus forte, contre son opinion,
laquelle a toujours été très-chrétienne, fut contrainte de laisser passer : comme
239
As ordenações o promulgadas no mesmo mês em que L’Hospital é destituído do posto de
chanceler (e 3 meses depois de ele ser afastado do conselho).
240
“os falecidos Reis, de mui louvável memória, nossos pais e antepassados (que Deus absolva),
mostrando-se mui Cristãos e protetores da Santa Igreja, esforçaram-se por Éditos e via de justiça
em conservar a união, e reprimir a divisão de Religião, ingressada neste reino no seu tempo, por
cultos feitos e assembléias escondidas, e distribuição de livros reprovados”, Stegmann, op.cit.,
p.59.
241
Trata-se do édito de Janeiro de 1562, ou édito de Saint-Germain. A versão das Ordonnances de
Saint-Maur publicada por André Stegmann traz os anos do édito de Janeiro e do de Amboise
errados: o édito de Janeiro é de 1562 e o de Amboise de 1563 (Stegmann, op.cit., pp.62-63). o
nos foi possível consultar os documentos originais.
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aussi furent notre très-cher et très-aimé cousin le cardinal de Bourbon, et
semblablement nos très-chers et bien aimés cousins les cardinaux de Tournon, duc
de Montmorency, connétable et Maréchal de S.André, qui étaient des principaux et
plus anciens conseillers et officiers de notre couronne, que les feus Rois nosdits
sieurs père et frère, nous avaient laissé : Qui entre autres occasions qui les murent
à tolérer ce que dessus, remontrèrent à notredite très-honorée Dame et mère, que
c’était le moins de mal qu’on pouvait faire alors, vu que l’exercice de ladite
nouvelle opinion demeurait entièrement hors des villes
242
.
Segundo o texto das ordenações, a ruptura criada pela Reforma foi usada
por um grupo para provocar a cisão do reino e assim proceder à sua conquista. A
manobra para tornar legal o protestantismo seria uma forma de constituir, dentro
de uma França dividida, um novo poder. O radicalismo católico francês procurava
demonstrar que não havia nos protestantes franceses real interesse pela religião,
apenas pela dominação do reino, interesse
d’établir et constituer en ce Royaume une autre principauté souveraine pour
défaire la notre ordonnée de Dieu, et diviser par tels artifices nos bons sujets de
nous-mêmes, par le moyen de la permission dudit exercice de leur religion, et des
assemblées qu’ils font sous couleur de leurs prêches et Cènes
243
.
Se se acreditasse que os protestantes franceses eram indiferentes quanto à
sua fé, isto é, se a religião não fosse o motor da sua ação e se a sua liberdade de
consciência não estivesse em questão, eles poderiam ser combatidos pelo rei como
simples rebeldes e criminosos de lesa-majestade. Nesses termos, a repressão ao
protestantismo poderia ser retomada sem conciliações nem subterfúgios, e sem
que a liberdade de consciência dos protestantes fosse cerceada.
Mas a influência do partido católico intransigente no conselho real, mais do
que sobre o rei ele mesmo, e a transformação, que resulta das ordenações de
Saint-Maur, dos protestantes em sediciosos é de curta duração e o édito de Saint-
242
“puseram um maior número da dita nova opinião que de católicos, para realizarem o seu
objetivo, como fizeram da tolerância do exercício de duas religiões por nosso Édito provisional,
feito em 17 de janeiro de 1561. O qual nossa dita mui-honrada Senhora e mãe, não sendo então a
mais forte, contra sua opinião, que foi sempre mui-cristã, foi obrigada a deixar passar. Como
também foram nosso mui-caro e mui-amado primo, o cardeal de Bourbon, e igualmente nossos
mui-caros e bem amados primos, os cardeais de Tournon, duque de Montmorency, condestável e
Marechal de S.André, que eram dos principais e mais antigos conselheiros e oficiais da nossa
coroa, que os falecidos reis nossos referidos pai e irmão deixaram-nos: que entre outras ocasiões
que os levaram a tolerar o que foi dito acima, demonstraram à nossa dita mui-honrada Senhora e
mãe, que era o menor mal que se podia fazer então, visto que o exercício da dita nova opinião
permanecia inteiramente fora das cidades”, ibid, p.61, grifos nossos.
243
“de estabelecer e constituir neste Reino um outro principado soberano para desfazer o nosso
ordenado por Deus, e separar por tais artifícios nossos bons súditos de nós mesmos, através da
permissão do dito exercício da sua religião, e das assembléias que eles fazem sob a aparência dos
seus cultos e Ceias”, ibid., p.63.
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101
Germain, que encerra a terceira guerra de religião, anula as ordenações. A
instabilidade da legislação real acerca do protestantismo demonstra duas das
conseqüências das guerras de religião para a França: o questionamento da
autoridade do rei e o enfraquecimento da autoridade da lei. A dificuldade do poder
real em impor o respeito às determinações dos éditos de pacificação era de certa
forma o resultado das mudanças que L’Hospital e Catarina de Médici haviam
introduzido no universo monárquico-religioso francês. A autoridade do rei,
tradicionalmente, emanava da sua relação privilegiada com Deus, cuja
representação estava na obrigação do monarca de manter a religião e defender a
Igreja contra a heresia. Ao proporem uma estratégia que rompia com o axioma
une foi, une loi, un roi o chanceler e a regente afastavam o rei daquilo que havia
sido a fonte da sua identidade por séculos, e arriscavam-se a perder com ela
também a sua autoridade. L’Hospital havia trabalhado no sentido de deslocar a
autoridade dada pela na direção daquela dada pela lei, cuja representação, à
diferença da primeira relação citada acima, entre o rei e Deus, era o poder
soberano do monarca quanto à criação da lei, fruto de um conhecimento exclusivo
e superior que ele tinha da situação do reino. Único capaz de dar a lei ao reino, o
rei e suas decisões permaneceriam incontestáveis. O que se observou como
decorrência do deslocamento pretendido por L’Hospital, no entanto, foi o
questionamento de ambas as autoridades, a do monarca e a da lei. Os católicos
intransigentes, que mantinham sua fidelidade ao rei sob a condição da fidelidade
deste a Deus, viam no abandono da tradição as razões para o caos que
progressivamente se instalava na França, na forma da permissão à liberdade de
consciência e de culto dada aos protestantes, e concluíam que somente a
restauração da tradição poderia dar solução ao caos, considerando-se portadores
da autoridade providencial que deveriam reinstituir no reino. De seu lado, os
protestantes também acreditavam que a sua era uma missão divina, e que a lei, em
conflito com Deus, era de nenhuma importância. A intenção de L’Hospital,
portanto, de fortalecer a autoridade real pela lei, levou ao inverso, ao
enfraquecimento tanto do rei quanto da lei. Na França da segunda metade do
século XVI, católicos e protestantes consideravam-se livres para e em certos
casos, obrigados a questionar e subverter os éditos reais, buscando por outros
caminhos, os da guerra civil, reverter situações e decisões contrárias aos seus
propósitos.
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102
O édito de Saint-Germain é, nesse contexto, uma nova tentativa da Coroa de
controlar as forças em conflito na França pela imposição da lei. Anulando as
ordenações de Saint-Maur, o novo édito retoma os anteriores e amplia a
legitimação da presença protestante no reino, em artigos que asseguram, por
exemplo, igual direito de católicos e protestantes no acesso à saúde e à educação:
Ne sera faite différence ni distinction pour raison de religion, à recevoir tant ès
universités, écoles, pitaux, maladreries, qu’aumônes publiques, les écoliers,
malades, et pauvres
244
.
Após ter proibido o protestantismo na França pelas ordenações de Saint-
Maur, a Coroa impunha uma nova lei ordenando expressamente que os
protestantes tivessem reconhecidos os mesmos direitos que os católicos. Parte da
explicação para essa nova mudança de posição é a entrada em cena de Carlos IX
que, após o afastamento de L’Hospital, pretende retomar a política de equilíbrio
tentada pelo chanceler e pela rainha-mãe, que, ela, par souci de mettre fin aux
dissensions civiles et de rétablir la grandeur royale
245
, envolve-se na elaboração
do édito e apóia o rei na sua decisão de abolir as ordenações de Saint-Maur,bien
qu’elle reste toujours attachée à l’idéal de l’unité religieuse
246
. No édito de
Saint-Germain, o rei aplica a idéia desenvolvida por L’Hospital em 1561, segundo
a qual o pertencimento religioso não deveria interferir na relação entre o súdito e o
rei. Cidadão, não importava que um francês fosse católico ou protestante, ele por
um lado devia obediência ao rei e à lei, e por outro tinha que ter seus direitos
respeitados. A coexistência buscada por Carlos IX baseava-se nesse mesmo
princípio, mas poucos compartilhavam-no com o rei.
Dois anos depois da paz de Saint-Germain, o rculo vicioso em que a
Coroa era pressionada por católicos e protestantes, levando-a do favorecimento
dos protestantes à insatisfação dos católicos, e desta ao descontentamento dos
protestantes, resultou mais uma vez no acirramento das tensões e em nova guerra
civil. Como a primeira delas, em 1562, esta se iniciou com um massacre de
protestantes. Mas as diferenças entre Wassy e a Noite de São Bartolomeu são
profundas, sobretudo no que diz respeito ao envolvimento da Coroa.
244
“Não será feita diferença nem distinção em razão da religião para receber, tanto nas
universidades, colégios, escolas, hospitais, leprosários quanto nas casas de caridade públicas, os
estudantes doentes e pobres”, ibid., p.72, art.15.
245
“por preocupação em pôr fim às dissensões civis e restabelecer a grandeza real”, Jouanna,
op.cit., p.186.
246
“mesmo que ela permanece ainda ligada ao ideal da unidade religiosa”, id., ibid., p.186.
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103
No dia 17 de agosto de 1572 aconteceu em Paris o casamento de Margarida
de Valois, irmã de Carlos IX, com o novo rei da Navarra, o protestante Henrique
de Bourbon
247
. O casamento, longamente planejado por Catarina de Médici e pela
rainha da Navarra, Jeanne d’Albret, mãe de Henrique, era para a Coroa um
elemento decisivo na tentativa de reconciliar os franceses divididos. uma série
de explicações para as razões que levaram do casamento real ao massacre de
protestantes, uma semana depois. O que resta como fato relativamente verificável
é que, na madrugada de 23 para 24 de agosto, dia seguinte a um atentado contra a
vida do almirante Gaspar de Coligny, chefe protestante maior na corte francesa, os
protestantes de Paris foram perseguidos nas ruas e nas suas casas e mortos. O
almirante foi a primeira vítima, e os relatos indicam que seu algoz foi o próprio
duque de Guise, que realizava assim uma espécie de vendetta pessoal, pois se
acreditava que Coligny havia sido o mandante na morte do duque de Guise pai. As
perseguições e assassinatos na capital seguiram-se até o dia 29, e reproduziram-se
em outras cidades do reino. Já a partir do dia 25 de agosto acontecem massacres
de protestantes em Meaux; no dia seguinte, são reportadas perseguições em
Orléans e Bourges. No dia 28, em Angers e Saumur. Em 31 de agosto, é a vez de
os protestantes de Lyon serem atacados. Em 4 de setembro, Troyes, e no dia 17,
Rouen. Em outubro, ainda notícias de novos massacres acontecendo em
Bordeaux, Toulouse, Gaillac e Albi.
Muito ainda se discute acerca da Noite de São Bartolomeu. Não havendo
evidências suficientes que reconstituam plausivelmente a preparação dos
massacres, a historiografia atual tende a considerar que o que depois se tornou
uma carnificina generalizada foi primeiramente concebido pela Coroa como uma
manobra de defesa contra uma possível retaliação protestante ao atentado a
Coligny. Para Arlette Jouanna, com os membros do seu conselho o rei teria
tomado a decisão de eliminar os principais chefes protestantes, os “huguenotes de
guerra”
248
, depois da violenta reação ao ataque contra o almirante.
La fureur des compagnon de Coligny, leurs conciliabules, la décision un temps
envisagée par quelques-uns d’entre eux de fuir Paris, ce qui équivaudrait à une
rupture, lui font craindre le retour de la guerre civile. L’obsession de la subversion
huguenote, attisée par le souvenir de la surprise de Meaux et des textes justifiant
les prises d’armes de Louis de Condé en 1567-1568, resurgit ; l’idée d’un complot
247
Jeanne d’Albret havia morrido em 9 de junho de 1572, poucos dias antes da chegada do filho a
Paris, fazendo dele rei da Navarra.
248
cf. id., ibid., p.199 e Garrisson, 2002, p.154.
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antimonarchique, qui a déjà alimenté la propagande catholique au cours des
guerres précédentes et qui servira après coup à justifier le massacre, fait sans
doute renaître les appréhensions de Charles IX à ce moment-là
249
.
Como Jouanna, Denis Crouzet e Janine Garrisson consideram aceitável a
tese da participação determinante do rei na decisão de suprimir os líderes
protestantes. Segundo Crouzet, Carlos IX teria optado por um “crime de Amor”
250
para defender seu projeto de implantação da tolerância civil, objetivo maior por
trás de todas as suas decisões. Para Janine Garrisson, o rei e a rainha-mãe
suspeitavam das intenções de Coligny e do partido protestante, e sua ação seria
então um massacre político, um crime de Estado
251
contra aqueles que colocavam
em risco o seu governo e a monarquia.
O que emerge das discussões em torno à Noite de São Bartolomeu é a
percepção de que houve uma primeira decisão tomada pela Coroa de matar todos
os chefes protestantes que estavam em Paris para o casamento de Navarra e
Margarida de Valois. O que aconteceu depois, o envolvimento da população
parisiense, a generalização do massacre para além da capital, foi possivelmente o
resultado da incapacidade da Coroa de impor sua autoridade e controlar um
contingente de católicos que algum tempo se perguntava acerca da
obediência devida a um rei que o respeitava seu compromisso com a Igreja.
Como o episódio de 4 de setembro de 1557 em que uma centena de calvinistas
havia sido agredida e ameaçada por uma multidão parisiense enquanto era levada
da casa em que havia se reunido para a prisão a Noite de São Bartolomeu era a
expressão de uma nova forma de violência, a
violence collective d’hommes et de femmes qui se pensent possédés par l’Esprit de
Dieu pour purifier le royaume de la présence de « luthériens » qui sont pour eux
des bêtes sataniques
252
.
249
“O furor dos companheiros de Coligny, seus conciliábulos, a decisão por um tempo aventada
por alguns deles de fugir de Paris, o que equivaleria a uma ruptura, fazem-no temer o retorno da
guerra civil. A obsessão da subversão huguenote, atiçada pela lembrança da surpresa de Meaux e
dos textos justificando a tomada de armas de Louis de Condé em 1567-1568, ressurge; a idéia de
um complô antimonárquico, que já havia alimentado a propaganda católica durante as guerras
precedentes e que servirá depois para justificar o massacre, faz sem dúvida renascerem as
apreensões de Carlos IX nesse momento”, Jouanna, op.cit., p.197.
250
cf. Crouzet, 1994, p.462.
251
Garrisson, 2002, pp.152-158.
252
“violência coletiva de homens e mulheres que se julgam possuídos pelo Espírito de Deus para
purificar o reino da presença de “luteranos” que são para eles bestas satânicas”, Crouzet, 1994,
p.461.
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105
É igualmente difícil estabelecer o número total de mortos. Em toda a França,
é possível que se tenha chegado a cem mil vítimas, entre duas e dez mil delas
mortas em Paris
253
. Tentativas para conter os massacres e evitar um número tão
grande de mortos foram feitas por Carlos IX na tarde do dia 24 de agosto,
quando o rei exige que a situação em Paris seja controlada e os excessos
reprimidos. Carlos IX informa os governadores das províncias do que acontecia
na capital e ordena que eles impeçam – pela proibição do porte de armas, a
interdição de qualquer tipo de reunião e a reiteração das decisões dos éditos de
paz – o mesmo desregramento de se repetir em outras cidades do reino.
As ordens do rei foram sem conseqüência. Independentemente de elas terem
sido ou não acatadas pelas autoridades parisienses e pelos governadores das
províncias francesas, os massacres prosseguiram e se espalharam pelo reino. E
foram seguidos pela reação protestante. Se a intenção primeira da Coroa ao
decidir pela eliminação dos chefes reformados era a de proteger-se de um possível
ataque em resposta ao atentado contra Coligny, o desregramento e a exacerbação
das perseguições e dos assassinatos resultaram na imediata tomada de armas
protestante. Ao tentar defender-se, a Coroa provocou a ruptura da liderança
calvinista francesa com o modelo de direito à resistência que ela vinha
desenvolvendo desde o final da década de 1550, segundo o qual se estabelecia
uma relação ideal entre os protestantes e a Coroa, e toda tomada de armas
justificava-se na intenção de proteger o rei. Em 1560 os testemunhos calvinistas
ouvidos sobre a Conjuração de Amboise haviam declarado que ela tinha o
propósito de libertar o rei da prisão em que era mantido pelos Guise; em 1567, o
príncipe de Condé havia dito que a marcha sobre Meaux era também uma
tentativa de reconduzir o rei ao governo do reino. Em 1572, torna-se impossível
aos protestantes repetir a mesma justificativa: a quarta guerra de religião é uma
luta pela vida contra os católicos e contra o rei. Segundo Quentin Skinner, todas
as tentativas de conciliar a resistência ativa com a defesa da monarquia finalmente
se viram postas de lado depois do massacre generalizado de protestantes”
254
.
253
cf. Erlanger, 1981, sobretudo pp.193-95 e Skinner, op.cit., p.516.
254
id., ibid., p.575.
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O sonho renascentista
255
de Carlos IX, as tentativas de Catarina de Médici
de resguardar a Coroa operando um equilíbrio de forças entre católicos e
protestantes, a proposta de Michel de L’Hospital de assentar a autoridade do rei
sobre uma relativa secularização da sua função de promover a paz e o bem
comum: três motivões para a política de coexistência seguida pela Coroa
francesa a partir da década de 1560 destruídas pelos massacres de São
Bartolomeu.
A quarta guerra de religião encerra o idílio protestante que acreditava no
apoio do rei apesar da presença de um conselho e de um governo desfavoráveis
e que pretendia assim instalar-se com segurança na França, política que Skinner
chama de ficção
256
. As Memoires des choses advenues sur le Traicté de la
Pacification des Troubles qui sont en France, de 1568, davam já conta dos
eventos que levaram os protestantes a atribuir ao rei a intenção de eliminá-los,
deslocando dessa forma a inimizade antes concentrada sobre os Guise. O autor das
Memoires afirma que, enquanto em Vincennes o cardeal Odet de Châtillon
negociava com os enviados de Carlos IX os termos do fim da segunda guerra
civil, l’on faisait à Paris actes tous contraires à la Paix
257
: as cortes
promulgavam decretos proibindo o exercício da religião protestante, e o Conseil
du Roi les autorisait, et déclarait ne vouloir souffrir autre Religion que la
Catholique
258
. Para todas as partes do reino partiam cartas nas quais se dizia “que
le Roi n’avait intention de faire la paix
259
.
Com a maioria dos seus chefes mortos ou convertidos, o partido protestante
reorganiza-se a partir das províncias em que permaneceram concentrações
consideráveis de calvinistas. No Dauphiné, no Languedoc e em Rouergue,
assembléias protestantes decidem, em outubro de 1572, pela guerra. O primeiro
confronto entre as duas forças é em La Rochelle, fortaleza protestante próxima a
Bordeaux. Do lado de dentro, os protestantes; do lado de fora, a partir de fevereiro
de 1573, o exército real com mais de 28 mil homens, entre eles os irmãos de
255
Denis Crouzet fala em “rêve de la Renaissance” para descrever o projeto, de influência
neoplatônica, que Carlos IX, com Catarina de Médici e o chanceler Michel de L’Hospital, havia
elaborado para restabelecer a concórdia na França (cf. Crouzet, 1994, pp.9-13).
256
cf. Skinner, op.cit., p.574.
257
“faziam-se em Paris atos totalmente contrários à Paz”, Memoires des choses advenues sur le
Traicté de la Pacification..., op.cit., s/p.
258
“Conselho do Rei os autorizava, e declarava o querer sofrer outra religião além da Católica”,
ibid., s/p.
259
“que o Rei não tinha intenção de fazer a paz”, ibid., s/p.
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107
Carlos IX os duques de Anjou e de Alençon –, o duque de Guise e os recém-
convertidos Henrique de Navarra e Henrique de Condé, filho e herdeiro do
príncipe de Condé, morto em 1567 durante a batalha de Jarnac.
Foi possivelmente o convívio nas trincheiras de La Rochelle que provocou a
aproximação de Alençon, Navarra e Condé, e deu assim início a um partido de
moderados cujo denominador comum era o descontentamento em relação à Coroa.
Segundo Jouanna,
Les modérés se rassemblent autour du duc d’Alençon ; il est le seul de la famille
royale à être exempt de tout soupçon de connivence dans les massacres du 24 août
1572. Le jeune duc, mécontent d’être tenu à l’écart des décisions militaires, laisse
venir à lui les nobles désireux d’un changement de politique
260
.
No centro do novo partido, uma mistura de idéias anteriormente defendidas
pelo lado católico ou pelo protestante resultava na formação de uma corrente
contrária ao governo, que acreditava que este seria agora dominado por Catarina
de Médici e seus ministros italianos. Os Malcontents julgavam reconhecer nas
decisões do conselho dos últimos anos a presença de uma força cuja intenção era
destruir a grande nobreza francesa e instalar-se no seu lugar. O massacre de São
Bartolomeu teria sido uma decisão pela eliminação da nobreza que se opunha à
autoridade do conselho, e não unicamente dos protestantes. Em uma publicação de
1576, dirigida a Henrique III, sucessor de Carlos IX, o grupo de católicos e
protestantes reunidos atribuirá a sua primeira ação conjunta ao massacre, que teria
obrigado por um lado estes últimos a lutarem pela sua sobrevivência, e por outro
aqueles primeiros, católicos moderados isto é, contrários à eliminação do
protestantismo e dos protestantes –, a defenderem uma monarquia que julgavam
ameaçada pelos promotores dos massacres:
au mois d’Août 1572 (...), leurs dits ennemis et adversaires firent ce cruel
massacre et meurtres en votre ville de Paris, non seulement d’aucuns Officiers de
votre Couronne, Seigneurs, Chevaliers de votre ordre, Capitaines, gentilshommes
et soldats, qui avaient porté les armes durant les troubles : mais par une haine
invétérée et plus que barbare, n’épargnèrent ni sexe ni âge, de ceux de la
Religion : et sans faire distinction de personnes, tuèrent ou noyèrent
indifféremment tous ceux que bon leur sembla, pillèrent et saccagèrent leurs
maisons.
Et non content de ce, firent tant que cet exemple fut suivi par toutes les autres villes
de votre Royaume, du moins en la plupart d’icelui, de sorte que lesdits de la
260
“Os moderados se reúnem em torno ao duque de Alençon; ele é o único da família real isento
de qualquer suspeita de conivência nos massacres de 24 de agosto de 1572. O jovem duque,
descontente em ser mantido afastado das decisões militares, deixa virem a ele os nobres desejosos
de uma mudança de política”, Jouanna, op.cit., p.212.
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Religion voyant cette fureur et rage effrénée ne prendre point de cesse, quelque
commandement qu’en fît le feu Roi votre frère, ne purent ceux qui étaient
échappés, autre chose faire que se tenir ensemble unis le plus qu’ils purent, et par
tous les moyens repousser telles violences et cruautés.
La même occasion qui non seulement faisait injustice aux particuliers ainsi
éloignés, mais en conséquence nécessaire troublait tout l’état de votre Royaume, a
été cause que les Princes de votre sang, officiers de votre Couronne, sieurs
gentilshommes et autres Catholiques, pour la manutention et soutien de votre état
et Couronne, comme vos très humbles et très obéissants sujets et serviteurs, ont été
contraint aussi prendre les armes, pour réprimer telles et si grandes entreprises
contre votre dit État : joint que les auteurs desdits troubles prévoyant
l’empêchement que lesdits Princes, officiers et gentilshommes devaient, par le
devoir de leurs charges, donner à leurs mauvais desseins, ont fait plusieurs et
diverses entreprises, contre les principaux d’entre’eux, tant pour les faire
assassiner, tuer, qu’emprisonner
261
.
O massacre teria assim servido aos protestantes e católicos moderados como
uma demonstração de que as suas causas respectivas poderiam ser reunidas em
uma só e ampla defesa do reino. O cerco de La Rochelle, por sua vez, foi a
ocasião em que a proximidade das intenções começou a se tornar associação de
forças. O cerco seria outra oportunidade, criada pelos conselheiros italianos, para
dizimar a “melhor nobreza da França”
262
, reunida nas trincheiras sob a fortaleza
protestante. O sentido dessa eliminação seria afastar do rei aqueles que tinham a
mission sacrée de défendre les anciennes lois du royaume
263
, e assim subvertê-
261
“no mês de agosto de 1572 (...), seus ditos inimigos e adversários fizeram esse cruel massacre e
assassinatos em vossa cidade de Paris, o apenas de alguns Oficiais da vossa Coroa, Senhores,
Cavaleiros da vossa Ordem, Capitães, fidalgos e soldados, que tinham portado armas durante os
distúrbios, mas por um ódio inveterado e mais do que bárbaro, não pouparam nem sexo nem idade
dos da Religião, e sem fazerem distinção de pessoas, mataram ou afogaram indiscriminadamente
todos os que lhes apeteceu, pilharam e saquearam as suas casas. E não contentes com isso, tanto
fizeram que esse exemplo foi seguido por todas as outras cidades do vosso Reino, ao menos na
maior parte deste, de modo que os ditos da Religião, vendo esse furor e raiva desenfreada o
cessarem, mesmo com ordem dada pelo falecido Rei vosso irmão, não puderam os que haviam
escapado fazer outra coisa senão manter-se unidos juntos o mais que puderam, e por todos os
meios rechaçar tais violências e crueldades. A mesma ocasião que não apenas fazia injustiça aos
particulares assim afastados, mas como conseqüência obrigatória perturbava todo o estado do
vosso Reino, foi causa por que os Príncipes do vosso sangue, oficiais da vossa Coroa, senhores
fidalgos e outros Católicos, para a manutenção e apoio do vosso estado e Coroa, como vossos
muito humildes e muito obedientes súditos e servidores, foram obrigados também a armarem-se
para reprimir tais e o grandes empresas contra vosso dito Estado; e como os autores das ditas
perturbações previam o impedimento que os ditos Príncipes, oficiais e fidalgos deviam, pelo dever
dos seus cargos, dar aos seus maus desígnios, fizeram várias e numerosas empresas contra os
principais dentre eles, tanto para assassina-los, mata-los, quanto para prendê-los”, Negotiation de
la Paix, es mois d'Auril et May 1575. Contenant la requeste et articles presentez au Roy par M. le
Prince de Condé, Seigneurs et gentils-hommes de la Religion : M. le Mareschal de Danville,
Seigneurs et gentils-hommes Catholiques associez. L'ample pourparler des deputez desdits S.
Prince, Mareschal, Seigneurs et gentilshommes, en presence du Roy, auec la Royne sa mere, et
quelques conseillers. Auec la responce du Roy ausdits articles, 1576, pp.7-8.
262
Jouanna, op.cit., p.212.
263
“missão sagrada de defender as antigas leis do reino”, Jouanna et al., op.cit. p.1068.
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las, colocando em seu lugar outras, baseadas no direito romano o que
demonstrava a influência italiana –, e dominar o reino.
A reunião de católicos (alguns deles protestantes convertidos pela Noite de
São Bartolomeu) em torno ao duque de Alençon incitada pelo massacre de São
Bartolomeu e iniciada durante o cerco de La Rochelle aumentará em número e em
importância depois da guerra. Os irmãos de Montmorency François de
Montmorency, Henri de Damville, governador do Languedoc, Guillaume de
Thoré e Charles de Méru –, seu sobrinho o visconde Henri de Turenne , e seu
primo Artus de Cossé, marechal da França, juntam-se a Alençon, Navarra e
Condé, e tornam-se também chefes malcontents. Suas clientelas engrossam as
fileiras do novo partido, que em 1575 tornará público o seu rompimento com a
Coroa.
Em fins de maio de 1573, Henrique de Anjou é eleito rei da Polônia. Os
embaixadores enviados pela corte francesa trabalharam arduamente para
convencer a forte minoria protestante polonesa de que o duque não havia tido
participação nos massacres de São Bartolomeu. A diplomacia francesa
compreendeu que o cerco a uma cidade protestante, do qual Anjou, como lugar-
tenente geral, era o comandante, não poderia continuar: “il doit absolument passer
pour un prince tolérant
264
, sublinha Jouanna. Menos de um s depois de
receber a notícia da sua eleição para o trono polonês, Anjou entra em acordo com
os sitiados de La Rochelle, e em 6 de julho o cerco é suspenso. Poucos dias
depois, em 11 de julho, antes mesmo do fim do cerco de Sancerre, que permanecia
sitiada pelos exércitos reais, Carlos IX assina o édito de pacificação de Boulogne.
São poucas as diferenças entre este e os anteriores. A liberdade de
consciência é garantida aos protestantes de todo o reino em um artigo que se
refere, indiretamente, às conversões derivadas da Noite de São Bartolomeu:
quant à tous autres de ladite religion prétendue réformée, qui sont demeurés en
icelle religion jusques à présent, leur permettons se retirer en leurs maisons, où ils
pourront être et demeurer, et par tous les autres endroits de notre Royaume aller,
venir, et vivre en toute liberté de conscience
265
.
264
“ele deve absolutamente passar por príncipe tolerante”, Jouanna, op.cit., pp.212-213.
265
“quanto a qualquer outro da dita religião pretensamente reformada, que tiverem permanecido
nessa religião até o presente, permitimo-lhes retirarem-se em suas casas, onde poderão estar e
permanecer, e em todos os outros lugares de nosso Reino irem, virem e viverem em toda liberdade
de consciência”, Stegmann, op.cit., p.88.
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110
Já quanto à liberdade de culto, o édito de Boulogne é muito menos favorável
aos protestantes do que os anteriores. No artigo do édito, que trata desse tema,
o rei designa apenas três cidades do reino onde poderá haver culto, e apenas
privadamente, La Rochelle, Montauban e Nîmes:
pour donner occasion à nos sujets, manants et habitants de nosdites villes de La
Rochelle, Montauban et Nîmes, de vivre et demeurer en repos, leur avons permis et
permettons l’exercice libre de la Religion prétendue réformée dans lesdites villes,
pour icelui faire faire en leurs maisons et lieux à eux appartenant, hors toutefois
des places et lieux publiques, pour eux, leurs familles, et autres qui s’y voudront
trouver
266
.
O descontentamento com esse artigo em particular, e com o édito em geral,
é grande. Parte das forças protestantes recusa-se a baixar as armas. No seu papel
de “príncipe tolerante”, o duque de Anjou, antes de partir para a Polônia, concede
aos habitantes de Nîmes e de Montauban o direito de proporem outros artigos, que
considerem mais apropriados. O resultado é um documento, significativamente
datado de 24 de agosto de 1573 – um ano exatamente após a Noite de São
Bartolomeu –, em que os protestantes pedem, entre outros pontos, liberdade total
de culto no reino.
As cláusulas não são aceitas pelo rei, e, segundo Jouanna, “ces articles
provoquent la fureur de la reine mère
267
. Em 1574, cerca de um ano após o fim
da quarta guerra de religião, a situação na França permanecia tensa: os
protestantes reuniam-se em assembléias com freqüência crescente, e nos debates
mantidos ali, fortalecia-se a tendência a considerar tirânico e ilegítimo o reinado
de Carlos IX. No início do ano, a fratura do campo católico anunciada pela
aproximação, durante o cerco de La Rochelle, de alguns católicos descontentes
(com relação às decisões da Coroa), do duque de Alençon, do rei da Navarra e do
príncipe de Condé alarga-se. Alençon e Henrique de Navarra são impedidos de
deixar a corte devido ao temor generalizado entre os católicos intransigentes de
que eles tomassem a frente dos exércitos protestantes e liderassem uma revolta
contra a autoridade do conselho.
266
“para dar condição aos nossos súditos, aldeãos e habitantes das nossas ditas cidades de La
Rochelle, Montauban e Nîmes, de viverem e permanecerem em tranqüilidade, permitimo-lhes o
exercício livre da Religião pretensamente reformada nas ditas cidades, para fazê-los fazer em suas
casas e lugares pertencendo a eles, à exceção todavia das praças e lugares públicos, para eles, suas
famílias, e outros que quiserem participar”, ibid., pp.87-88.
267
“esses artigos provocam a fúria da rainha-mãe”, Jouanna, op.cit., p.214.
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111
Em fevereiro, começa a quinta guerra de religião. Será uma guerra pouco
movimentada, decidida por acontecimentos externos aos campos de batalha. O
primeiro deles: em 30 de maio de 1574, morre o rei. Henrique de Anjou, agora rei
da Polônia, pretende assumir o trono, mas a distância e o novo cargo afastam-no
da França.
A principal preocupação do reinado de Carlos IX e da regência de Catarina
de dici havia sido a preservação da autoridade real enfraquecida pelas disputas
entre clãs, entre católicos e protestantes, entre a Igreja de Roma e a da França, e
entre os parlamentos e os representantes da monarquia. Com o passar dos anos e o
acirramento brutal dos conflitos entre católicos e protestantes que conduziram à
Noite de São Bartolomeu e à formação de um partido de nobres descontentes
apoiados por um membro da família real e dois príncipes de sangue , a Coroa
reconheceu a necessidade de empenhar-se mais e mais no desenvolvimento de
novas formas e novas práticas de poder, com o objetivo de fortalecer sua posição
de superioridade e comando. Frutos dessa progressão são as mudanças inseridas
no édito de Boulogne, que surgem com mais clareza quando ele é comparado com
os tratados de paz anteriores. Além das distinções no que se refere à permissão do
culto protestante no reino, o édito distancia-se dos anteriores quanto ao tom – essa
é talvez a mudança mais importante. No discurso pacificador que tradicionalmente
abre os éditos reais, o prmbulo que informa as razões que levaram a eles e que
os justificam, é relembrada a subordinação que liga à Coroa todos os seus súditos.
Nas aberturas dos éditos de Amboise, Longjumeau e Saint-Germain a necessidade
de pacificação era explicada pelos troublesque levavam o reino à guerra, sem
que se fizesse menção ao dever de obediência que caracterizava a relação dos
súditos com o rei. O édito de Janeiro de 1562, anterior à primeira guerra de
religião, fazia a análise que aparecerá nos preâmbulos dos tratados de paz a
partir do ano seguinte, segundo a qual os conflitos eram resultado das divisões
nomeadamente, na religião – que se instalaram no reino:
On sait assez quels troubles et séditions se sont depuis ça et de jour en jour
suscitées, accrues et augmentées en ce Royaume, par la malice du temps, et de la
diversité des opinions qui règnent en la religion
268
.
268
“Sabemos suficientemente quais perturbações e sedições foram desde então e dia-a-dia
suscitadas, aumentadas e alargadas nesse Reino, pela malícia do tempo, e da diversidade das
opiniões que reinam na religião”, Stegmann., p.8.
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112
O édito de Amboise, que em 1563 encerra a primeira guerra de religião, tem
sentido semelhantes ao anterior:
Chacun a vu et connu comme il a plu à notre Seigneur, depuis quelques années en
çà, permettre que ce notre Royaume ait été affligé et travaillé de beaucoup de
troubles, séditions et tumultes, entre nos sujets élevés et suscités de la diversité des
opinions pour le fait de la Religion, et scrupules de leurs consciences
269
.
O prmbulo do édito seguinte, de Longjumeau (1568), considera já os
males produzidos pela reincidência da guerra: Considérant les grands maux et
calamités advenues par les troubles et les guerres, desquels notre Royaume a é
depuis quelque temps, et est encore de présent affligé
270
.
Ele será repetido pela Paz de Saint-Germain (1570), com apenas uma
pequena alteração quanto à duração das guerras, que afligiam o reino algum
tempo no édito de Longjumeau ou que já o afligiam longamente:
Considérant les grands maux et calamités advenus par les troubles et guerres
desquelles notre Royaume a été longuement et est encore de présent affligé
271
.
O preâmbulo do édito de Boulogne tem outro tom. A religião, sua divisão
no reino e a divisão que provoca nele, os conflitos, sedições e males que geram a
guerra e dela resultam não são mencionados. No lugar que essa temática havia
ocupado nos tratados anteriores, o de Boulogne traz simultaneamente a
determinação da relação específica que une o rei e seus súditos em que um tem
o dever de mandar e os outros de obedecer – e a afirmação da intenção daquele de
ver sua autoridade respeitada, isto é, de receber dos súditos a obediência que lhe
devem:
Notre intention a toujours été, et est, à l’exemple de nos prédécesseurs, de régir et
gouverner notre Royaume, et recevoir de nos sujets l’obéissance qui nous est due,
plutôt par douceur et voie amiable que par force
272
.
269
“Cada um viu e percebeu como Deus quis, desde alguns anos, permitir que esse nosso Reino
fosse afligido e atingido por muitas perturbações, sedições e tumultos, entre nossos súditos
levantados e suscitados pela diversidade de opiniões pela causa da Religião, e escrúpulos das suas
consciências”, ibid., p.32.
270
“Considerando os grandes males e calamidades advindos por causa das perturbações e das
guerras, das quais nosso Reino é, desde algum tempo, e continua sendo presentemente atingido”,
ibid., p.53, grifo nosso.
271
“Considerando os grandes males e calamidades advindos por causa das perturbações e das
guerras das quais nosso Reino foi longamente e continua sendo presentemente atingido”,ibid.,
p.69, grifo nosso.
272
“Nossa intenção sempre foi, e é, segundo o exemplo dos nossos predecessores, de reger e
governar nosso Reino, e receber dos nossos súditos a obediência que nos é devida, antes por
doçura e via amável do que por força”, ibid., p.86.
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113
A resistência dos membros dos parlamentos em registrar as ordens reais, a
desobediências a elas, o crescimento das forças contrárias à Coroa, em suma, o
enfraquecimento da autoridade real diagnosticado por Michel de L’Hospital e
Catarina de Médici, levam-na a insistir em um processo de fortalecimento que é
duplamente estrutural, intervindo tanto no que se refere à legislação e à
administração do reino, quanto na afirmação da diferença que existe entre o rei e
os demais membros e súditos do reino, diferença que, progressivamente, será
associada a uma marca específica do rei, a soberania.
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3.
1574-1584
O acirramento das guerras de religião e a divisão do
partido católico
A reincidência das guerras, a constante revogação de tratados e éditos
recentes e a criação de novas leis, a instabilidade entre aceitação e proibição da
prática da religião reformada haviam inspirado em membros da alta nobreza
católica o sentimento da incapacidade da Coroa em lidar com os problemas
gerados pelos conflitos religiosos. Descontentamentos semelhantes levaram à
aproximação do grupo de nobres católicos Malcontents com os protestantes
moderados: a uns Carlos IX parecia manipulado, outros julgavam-no infiel à
própria palavra
273
. Mas, sobretudo, ambos acreditavam que o governo ou o rei,
dominado por Catarina de Médici e seus conselheiros italianos, pretendia evitar a
qualquer custo uma real pacificação do reino. Em fevereiro de 1574, frente ao
endurecimento do governo, os protestantes, que haviam se recusado a baixar as
armas em 1573, e os senhores Malcontents, humilhados com a prisão de Alençon
e Navarra, consideram a idéia de transformar em ação armada a sua associação e
dão início à quinta guerra de religião.
A morte de Carlos IX, em maio, deixa o trono vago. Apesar de ter tido os
seus direitos à sucessão francesa oficialmente confirmados, o novo rei da Polônia
enfrenta dificuldades para se desligar dos compromissos assumidos com a sua
eleição, e a Coroa parece por um tempo ao alcance de Alençon. Líder malcontent,
o duque acredita na possibilidade de, com o apoio dos seus novos aliados, tornar-
se rei. Antes da morte de Carlos IX, duas conjurações cujo objetivo era libertá-lo e
a Henrique de Navarra, em fevereiro e abril de 1574, haviam sido frustradas,
mas o duque mantém-se como a grande força por trás dos exércitos de católicos e
protestantes unidos, que repetem as tentativas de libertação. No entanto, a
continuação da guerra iniciada em fevereiro e o medo que as conjurações
provocam na corte levam o governo, exercido interinamente pela rainha-mãe, a
aproximar-se dos Guise para se proteger dos exércitos protestantes. As pretensões
de Alençon sofrem um novo golpe quando o duque de Anjou entra finalmente na
273
Jouanna, op,cit., p.231.
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115
França, como rei, no início de setembro de 1574 (a sagração em Reims acontecerá
em 13 de fevereiro do ano seguinte).
Pouco antes, no verão desse mesmo ano de 1574, havia sido concluída a
aliança entre católicos moderados e protestantes, oficializada em janeiro de 1575,
quando os Malcontents assinam com as Provinces de l’Union expressão que os
protestantes usavam para denominar seu sistema de reunião em assembléias um
Traité d’association. Nele, declaram sua intenção de viverem juntos, em plena
liberdade de consciência, sem se repreenderem, mutuamente, por causa da
diferença de religião:
Nous catholiques, et nous de la religion réformée, tous deux François naturels (...)
nous avons contracet juré, contractons et jurons sainte et loyale association de
corps, coeurs et bien commun. [...Qu’il] soit promptement avisé de la manière de
vivre les uns avec les autres, pour rendre paisible la conscience d’un chacun (...)
chacun à cet égard demeurera en son entière liberté de conscience, sans que l’un
empêche l’autre en l’exercice accoutumé de sa religion, ni qu’à raison de cette
diversité s’élève noise ni dissensions aucunes par paroles ni contentions ;
n’entendant cependant qu’il ne soit loisible aux ministres de l’une et de l’autre
religion d’exercer leur charge et même aux particuliers de conférer de leur
religion, pourvu que le tout se fasse paisiblement et en mutuelle charité, sans
outrages ni paroles piquantes (...) attendant que Dieu par sa grâce nous ait unis en
religion, comme il lui a plu nous rejoindre en courage et volonté
274
.
Por trás dessa afirmação está a aceitação, por ambas as partes, da
coexistência provisória das duas religiões na França, até que Deus produzisse a
reunião em uma mesma religião. Se ainda não é tempo para esta união, outra
acontece, a de coragem e vontade partilhadas entre Malcontents e protestantes
moderados. A vontade é a de impedir que a diversidade de religião leve à
dissensão; a coragem é a de afirmar que apenas a experiência pacífica da liberdade
de consciência e de culto pode resultar no fim das guerras e divisões no reino.
Coragem que, para a association, faltava ao governo. Segundo esses grupos
moderados de católicos e protestantes, o problema francês depois de 1572 não era
274
Nós católicos, e nós da religião reformada, ambos naturais Franceses (...) contraímos e
juramos santa e leal associação de corpos, corações e bem comum. [... Que] seja prontamente
decidido da maneira de viver um com o outro, para tornar pacífica a consciência de cada um (...)
cada um nesse sentido permanecerá na sua inteira liberdade de consciência, sem que um impeça o
outro quanto ao exercício acostumado da sua religião, nem que por razão dessa diversidade criem-
se altercação nem quaisquer dissensões por palavras nem contenções; não entendendo porém que
não seja lícito para os ministros de uma e de outra religião exercer seus cargos, e mesmo para os
particulares conversar sobre a sua religião, desde que tudo seja feito pacificamente e em caridade
mútua, sem ultrajes nem palavras maliciosas (...) aguardando que Deus pela sua graça nos tenha
unido na religião, como ele quis nos reunir em coragem e vontade”, Traicte d'Association passée
entre les Catholiques et ceux de la religion reformée pourchassans le restablissement du Royaume
de France, contre les mauuais et pernicieux conseillers de sa Maiesté. 1575, s/p.
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a dualidade religiosa, mas a tirania do governo, que, ao se negar a aceitar a
coexistência, conduzia arbitrariamente o reino na direção da sua destruição.
Interessante reviravolta na percepção construída acerca de um governo que, entre
1560 e 1572, havia baseado na tolerância civil a sua conduta. Depois da Noite de
São Bartolomeu e da quarta guerra de religião, no entanto, a posição da Coroa
mudara, seus discursos haviam assumiram um tom de cobrança e repreensão, e as
restrições impostas aos protestantes pelo édito de Boulogne mostravam o avanço
da influência da intransigência católica sobre o rei, o conselho real e as suas
decisões. Malcontents e protestantes reconhecem-na quando, mesmo após a morte
do cardeal de Lorena, em dezembro de 1574, o partido católico mantém o controle
do conselho, e quando, em fevereiro de 1575, Henrique III se casa com Louise de
Vaudémont, parente dos Guise.
A declaração de união de Malcontents e protestantes moderados centra-se na
idéia de que é preciso instituir uma convivência pacífica entre católicos e
protestantes franceses, sugerindo que a unificação religiosa, se impossível no
momento, poderia ser futuramente restabelecida por Deus. O conceito de
tolerância, expresso em termos semelhantes pelos politiques, e entre eles por
Michel de L’Hospital, é dessa forma retomado pela association. Apesar do
afastamento do chanceler, Carlos IX, apoiado por Catarina de Médici, havia
mantido a crença de que a única maneira de evitar a perpetuação da guerra civil
era permitir o protestantismo no reino. Sem a presença de L’Hospital – cuja
atuação como legislador havia sido especialmente importante –, a pressão
exercida sobre a Coroa pela intransigência católica havia progressivamente, no
entanto, conseguido afastá-la do seu ideal de pacificação. A noção de tolerância
civil passou assim a ser desenvolvida pelos politiques próximos aos senhores
Malcontents e aos protestantes moderados. Caso singular é o de Philippe
Duplessis-Mornay. Protestante, Mornay estivera na Inglaterra, nos Países Baixos,
em Genebra, na Hungria, na Alemanha e na Itália, e no seu retorno à França
aproximara-se do almirante Coligny. Em 1574, após sobreviver à Noite de São
Bartolomeu fugindo de Paris com a ajuda de amigos católicos, Mornay publica
anonimamente uma Exhortation à la paix aux catholiques François
275
.
Apresentando-se apenas como um francês católico, o autor usa um recurso em
275
A atribuição do texto a Philippe Duplessis-Mornay é feita por Henri Hauser em Les sources de
l’histoire de la France (Hauser, 1912, pp.20-21).
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voga nessa época, buscando a identificação da maioria católica do reino, que,
muito provavelmente, rechaçaria de imediato um escrito que suspeitasse ser obra
de um “herege”. Ao inscrever a Exhortation sob a tutela do vrai Français et
catholique que je suis
276
, Mornay pretende atingir os católicos não-moderados,
que poderão aproximar-se das idéias contidas nela sem temerem estar sendo
manipulados por um protestante, ou mesmo um politique, cuja intenção,
acreditavam eles, o era promover uma paz benéfica aos franceses, mas apenas
aquela prejudicial à Igreja e à religião.
A publicação de exortações pela paz, com a repetição das guerras civis,
tornava-se mais e mais freqüente em ambos os lados, católico e protestante. A
idéia era descrever os males trazidos pela guerra e assim produzir no leitor o
sentimento de que a paz era imperativa. O que era esta, no entanto, variava de
acordo com a filiação do autor.
Para o protestante moderado Philippe Duplessis-Mornay, a guerra era
movida pela defesa da religião, e os seus efeitos maléficos podiam ser vistos nos
bens, nas vidas, nos espíritos, no abandono da lei e da religião. Segundo Mornay,
s’il est question des biens le peuple est ruiné de tailles et d’impôts mis pour cause
ou sous prétexte de la guerre, la Noblesse de frais extraordinaires, le Clergé de
dégâts, décimes et ventes de son temporel. Si de la vie, tantôt n’y aura-t-il plus de
vieux soldats et Capitaines, de noblesse, de grands seigneurs. Il y en est trop plus
mort qu’aux guerres étrangères de cinquante années, bref il n’y a Palais ni
cabane, grande maison ni petite, noble ni ignoble, qui ne face deuil de son mort. Si
de la conscience, j’ai grand peur qu’en combattant pour notre Religion comme
nous disons nous ne l’ayons perdue pour la plupart. Parmi les armes la Loi est
muette, et entre les tabourins la voix de Jésus Christ ne s’entend point. Et aussi
voyons nous que pendant que nous nous entretuons, sous ombre de Religion,
l’affection envers Dieu s’évanouit et la faction nous demeure toute seule imprimée
au coeur. On ne parle que d’infidélité et d’athéisme. De piété et de justice moins
que jamais. De là sortent les incestes et sodomies, naguères encore inconnus à
notre nation, et infinis autres péchés si énormes que je m’ébahie comme la terre
nous peut porter. Et tout ceci par la guerre laquelle ne se peut faire sans meurtre
et ruine, et vient toujours s’accompagner d’une licence et impunité à tout mal
faire
277
.
276
“verdadeiro francês e católico que sou”, Mornay, 1574, p.5.
277
“se é questão dos bens, o povo está arruinado de talhas e de impostos colocados por causa ou
sob o pretexto da guerra, a Nobreza de taxas extraordinárias, o Clero de danos, dízimos e vendas
dos seus bens temporais. Se da vida, logo não haverá mais velhos soldados e Capitães, nobreza,
grandes senhores. muito mais mortos do que nas guerras estrangeiras de cinqüenta anos, em
resumo, não há Palácio nem cabana, casa grande ou pequena, nobre nem ignóbil que não porte luto
pelo seu morto. Se da consciência, tenho grande medo que combatendo pela nossa Religião, como
dizemos, nós não a tenhamos perdido na maioria. Entre as armas, a Lei é muda, e entre os
tambores a voz de Jesus Cristo não é mais ouvida. E também vejamos que enquanto nós nos entre-
matamos, sob sombra da Religião, a afeição com relação a Deus desfalece e a facção fica sozinha
impressa no coração. Só falamos de infidelidade e ateísmo. De piedade e de justiça menos do que
nunca. Daí saem os incestos e sodomias, anteriormente ainda desconhecidos na nossa nação, e
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Todo esse mal, admite Mornay, era derivado da vontade de fazer um bem.
Mas a boa gente francesa que havia sido levada à guerra para conservar a religião
era enganada por homens que, na verdade, não se interessavam pela religião, mas
apenas pelos seus próprios interesses:
Il serait à désirer que tous fussions bien d’accord au fait de la Religion en ce
Royaume, et c’est sous prétexte de la réunir qu’on nous fait entretuer depuis
quelques années. Telle était l’intention de la plupart de nous : mais nous ne nous
avisions pas que ceux qui nous acharnaient les uns sur les autres abusaient de
notre zèle de Religion pour parvenir à une intention toute autre que la notre. En un
mot, je crains fort que nous ne fussions menés d’un le sans science et crois qu’il
sera bien aisé à connaître que ceux qui nous incitaient, étaient pour la plupart ou
conduits ou aveuglés d’une pure passion sans aucun mouvement de conscience
278
.
Os que aconselhavam ao rei a guerra contra os protestantes; os que, nas
homilias e prédicas, asseguravam os fiéis da necessidade de eliminar a dualidade
religiosa, eliminando os praticantes do culto reformado, eram levados por um zelo
que nada tinha a ver com a religião. Tamanho mal não poderia ter sua origem em
Deus. Por isso, a guerra tinha para Mornay uma causa precisa: a luta contra a
coexistência decidida pelo édito de Amboise, de 1560, e confirmada pelos estados
gerais de Orléans no início do ano seguinte. Segundo o autor,
en l’assemblée des états tenus sous notre Roi dernier décédé fut trouvé bon de
donner liberté aux huguenots pour maintenir la paix publique, pour laquelle leur
ôter il y a douze ans que nous sommes en guerre
279
.
O que Mornay afirmava assim era que desobedecer ao édito real, impedindo
os protestantes de terem acesso às liberdades garantidas nele, era agir contra a paz,
e em favor de interesses particulares e não dos da religião. Também nas
Remonstrances aux Estats pour la Paix, publicada dois anos mais tarde, Mornay
recorreu a esse argumento: os estados de Orléans, ao chegarem à conclusão de que
as duas religiões deveriam ser permitidas na França, non pour mettre division en
infinitos outros pecados tão enormes que eu me admiro como a terra nos pode carregar. E tudo isso
pela guerra, que não se pode fazer sem assassinato e ruína, e vem sempre acompanhada de uma
licença e impunidade a todo fazer mal”, id., ibid., pp.3-5.
278
“Era de desejar que estivéssemos bem de acordo quanto à Religião nesse Reino, e é sob o
pretexto de reuni-la que nos fazem entrematarmo-nos há alguns anos. Tal era a intenção da maioria
de nós, mas nós não percebíamos que aqueles que nos incitavam uns contra os outros abusavam do
nosso zelo pela Religião para realizarem uma intenção totalmente diferente da nossa. Em uma
palavra, temo fortemente que nós tenhamos sido levados por um zelo sem conhecimento e creio
que será bom saber que aqueles que nos incitavam eram na maioria ou conduzidos ou cegados por
uma pura paixão sem nenhum movimento de consciência”, id., ibid., pp.5-6.
279
“na assembléia dos estados reunidos sob nosso Rei último morto foi considerado bom dar
liberdade aos huguenotes para manter a paz pública, para a qual retirar-lhes há 12 anos que
estamos em guerra”, id., ibid., pp.6-7.
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l’Église, mais pour prévenir la ruine et division, autrement prochaine de
l’État
280
, confirmavam o édito real que decretava a liberdade de consciência e de
culto. Foi quando, par un zèle imprudent
281
, alguns franceses quiseram impedir
os protestantes de usufruírem os seus direitos que a tensão entre estes e os
católicos ressurgiu, e então “nous n’avons vu que guerres, que malheurs, que
ruines
282
. Nesses termos, o autor expressava a opinião partilhada por Malcontents
e protestantes, segundo a qual a paz somente poderia ser produzida pela
coexistência das duas religiões no reino.
Ao lado das publicações parte de um trabalho cuja intenção era convencer
os franceses a integrarem o campo moderado –, a association pretendia atuar
também como uma força militar contra aqueles que considerava inimigos da paz
o partido católico e seu líder, o duque de Guise, que acusavam os protestantes e
católicos reunidos de visarem apenas os seus próprios interesses, e pretenderem
tomar o lugar do rei (acusação feita por Mornay contra os católicos
intransigentes). Depois de se negarem a aceitar as cláusulas do édito de Boulogne,
em 1573, e de darem início à quinta guerra de religião, em fevereiro de 1574,
Malcontents e protestantes associados concentram-se nas negociações com o rei
para uma nova pacificação iniciadas em março de 1575 e nas tentativas de
evasão do duque de Alençon e do rei da Navarra.
Logo após a sua coroação e o seu casamento com Louise de Vaudémont,
respectivamente nos dias 13 e 15 de fevereiro de 1575, Henrique III recebe dos
deputados que representam o príncipe de Condé e o duque de Montmorency-
Damville os artigos que estes propunham para uma nova paz. As negociações
foram publicadas pelo partido protestante no ano seguinte, com o título de
Negotiation de la Paix, es mois d'Auril et May 1575. A introdução do texto, em
que Condé e Montmorency-Damville são apresentados como os chefes de dois
grupos distintos e reunidos Le Prince de Condé, Seigneurs, Gentilshommes et
autres, de la Religion réformée de votre Royaume; le Maréchal de Damville,
Seigneurs, Gentilshommes et autres Catholiques à eux unis et associés
283
–,
280
“não para pôr divisão na Igreja, mas para prevenir a ruína e divisão, de outro modo próxima, do
Estado”, Mornay, 1576, p.15.
281
“por um zelo imprudente”, id., ibid., p.15.
282
“só vimos guerras, tristezas, ruínas”, id., ibid., p.15.
283
“O Príncipe de Condé, Senhores, Fidalgos e outros, da Religião reformada do vosso Reino; o
Marechal de Damville, Senhores, Fidalgos e outros Católicos unidos e associados a eles”,
Negotiation de la Paix, es mois d'Auril et May 1575..., op.cit., p.3.
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120
informa ao rei que o objetivo de protestantes e Malcontents com esses artigos é
parvenir à une entière sûre et perdurable pacification des troubles
284
.
São 87 artigos. O primeiro pede que seja instituído o libre, général, public
et entier exercice de la Religion réformée
285
, conforme estipulavam os éditos
promulgados por Carlos IX, avec toute liberté de conscience
286
. A liberdade
concedida aos protestantes deveria ser total, sendo permitidos os enterros, a
inscrição nas escolas, os sínodos, a construção de templos, a impression et vente
libre de tous livres appartenant à ladite Religion
287
, com o resultado de que as
suas vidas e os seus direitos fossem respeitados como os dos demais súditos do
rei, sem que se obrigasse os huguenotes a nada que fosse contrário à sua religião,
como, por exemplo, ao pagamento de dízimo à igreja católica.
A maioria dos artigos propostos assemelha-se às cláusulas dos éditos de
pacificação contemporâneos, o que parece justificar a tomada de armas
protestante, pois na introdução da publicação de 1576 e na Exhortation de
Mornay, de 1574, havia sido dito que a razão que os teria levado à guerra, ou,
no caso de Mornay, a origem da guerra, estava no fato de que os direitos
garantidos aos protestantes pelos decretos reais haviam sido freqüentemente
desrespeitados. Citando especificamente o artigo, retomado em primeiro lugar nas
negociações, que no édito de Janeiro de 1562 concedia aos protestantes libre,
général et public exercice de leur Religion”, o autor das Negociations explica que
por causa da intervenção de “alguns particulares”, seus adversários”, não houve
momento de verdadeira tranqüilidade nas vidas dos huguenotes franceses:
quant à ceux de la Religion réformée, votre Majesté sait, (...) fut fait un édit au
mois de Janvier 1562 par lequel fut ordonné qu’ils auraient libre, général et public
exercice de leur Religion, dont toutefois ils ne peuvent jouir, par la violence
d’aucuns particuliers, lesquels par armes et à force ouverte, non seulement
empêchèrent l’exécution libre dudit édit, mais poursuivant avec toute aigreur ceux
qui faisaient profession de ladite Religion, les contraignirent d’avoir recours aux
armes pour leur juste défense et tuition.
Et combien que depuis la même liberté aurait é accordée par le feu Roi votre
frère, par plusieurs et divers édits, après lesquels et sur la faveur et assurance
d’iceux, ils ont incontinent posé les armes, toutefois il ne leur a jamais été permis
repos du moins qui ait été de durée par les susdits adversaires, lesquels à toutes
occasions violant l’autorité du feu Roi et la foi publique, tant par force particulière
284
“chegar a uma inteira, segura e doradoura pacificação das perturbações”, ibid., p.3.
285
“livre, geral, público e inteiro exercício da Religião reformada”, ibid., p.8.
286
“com toda liberdade de consciência”, ibid., p.9.
287
“impressão e venda livre de qualquer livro pertencente à dita Religião”, ibid., p.9.
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121
que par armes découvertes, n’ont jamais pu permettre que lesdits de la Religion
vécussent en quelque tranquillité
288
.
Além dos artigos baseados nos éditos de pacificação, em outros surgem
propostas até então inéditas. Duas delas são particularmente interessantes, uma
pelo que ela significa implicitamente, a outra por ter sido adaptada e adotada já no
próximo édito, o de Beaulieu, que encerra esta quinta guerra civil em maio de
1576.
A primeira é apresentada nos seguintes termos:
Qu’il ne sera permis mais très expressément défendu, sur peine de la vie à tous
regnicoles et autres habitants en ce Royaume, de faire profession ou maintenir en
public ni en privé, autre Religion que la Catholique pour les Catholiques, et la
réformée pour ceux de ladite Religion : étant toutes deux entretenues sous votre
autorité : et ordonné, pour cette cause, que tous Athées et libertins manifestes
seront punis exemplairement, sans support ni dissimulation quelconque
289
.
Isto é, a association propõe que não haja nenhuma outra religião na França
além da católica e da protestante. Qual o sentido desse artigo? No juramento que
faz no momento da sua coroação, o rei francês compromete-se a preservar a
religião católica no reino (promessa que estava na base das disputas durante as
guerras de religião). A proposta protestante é uma forma de reedição do juramento
real, incluindo, ao lado do catolicismo, o protestantismo como única religião
permitida por lei. Elas passariam a ter assim o mesmo status: seriam duas religiões
do reino, e não só no reino, sendo ambas igualmente conservadas, mantidas,
guardadas, alimentadas, fomentadas, preservadas pela autoridade real. A aceitação
desse artigo pela Coroa significaria não apenas que não poderiam mais ser
negadas aos protestantes as suas liberdades de consciência e culto, mas também
288
“quanto aos da Religião reformada, vossa Majestade sabe, (...) foi feito um édito no mês de
Janeiro de 1562 pelo qual foi ordenado que eles teriam livre, geral e público exercício da sua
Religião, de que eles todavia o podem gozar, pela violência de alguns particulares, os quais por
armas e à força descoberta, não apenas impediram a execução livre do dito édito, mas perseguindo
com toda acrimônia aqueles que faziam profissão da dita Religião, obrigaram-nos a recorrerem às
armas para a sua justa defesa e proteção. E mesmo que depois a mesma liberdade tenha sido
concedida pelo falecido Rei vosso irmão, por inúmeros e diversos éditos, depois dos quais, e sob
seu favor e segurança, eles baixaram armas incontinente, todavia nunca lhes foi permitida
tranqüilidade pelos ditos adversários, ao menos uma que tivesse sido duradoura, os quais a toda
ocasião violando a autoridade do falecido Rei e a ordem blica, tanto por força particular quanto
por armas ao descoberto, nunca puderam permitir que os ditos da Religião vivessem em alguma
tranqüilidade”, ibid., p.4.
289
“Que não será permitido, mas muito expressamente proibido, sob pena de morte a qualquer
súdito e outros habitantes nesse Reino, fazer profissão ou manter em público nem privadamente,
outra Religião que não a Católica para os Católicos, e a reformada para os da dita Religião; sendo
ambos conservados sob a vossa autoridade; e ordenado, por essa causa, que todos os Ateus e
libertinos manifestos serão punidos exemplarmente, sem apoio nem dissimulação alguma”, ibid.,
pp.15-16.
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que o rei passaria a ter a obrigação de defender protestantes e protestantismo,
como era, pela sua sagração, obrigado a defender o catolicismo. Mas, apesar do
esforço que fazia pela coexistência, a Coroa não cogitava em conceder à religião
reformada estatuto no reino semelhante ao da católica a despeito da opinião do
partido intransigente, que acusava o rei de querer instituir o protestantismo como
religião do reino, em substituição ao catolicismo.
Esse artigo não vingará, mas uma outra proposta terá sucesso entre os
conselheiros do rei, e se transformada em uma das cláusulas do édito de
Beaulieu, retomada sucessivamente ao édito de Nantes. Trata-se de um grande
conselho de juízes composto por igual número de protestantes e católicos que
seria o órgão encarregado da aplicação dos artigos do édito que se fizer a partir
dos pontos apresentados por protestantes e católicos unidos. É a primeira aparição
da idéia das chambres mi-parties, tribunais especiais constituídos para o
julgamento de casos envolvendo protestantes como litigantes, nos quais deveria
haver um mesmo número de juízes católicos e protestantes, para que não houvesse
deturpação da lei por razões de pertencimento religioso. O édito de Beaulieu
determinará, por exemplo, que, no parlamento de Paris, uma chambre mi-partie
seja instituída, contando com dois presidentes e dezesseis conselheiros, moitié
catholiques, et moitié de ladite religion
290
.
A primeira reação do rei ao receber os deputados de Condé e Montmorency-
Damville antes de ler os artigos por eles apresentados é de satisfação. As
declarações do príncipe de Condé, em que afirmava a sua felicidade ao saber da
intenção de Henrique III de encontrar-se com a association para proceder à
pacification des troubles de ce Royaume
291
, expressam, diz o rei, o mesmo
sentimento que o move nas negociações. Voltando da Polônia “les bras tendus, en
très bonne intention d’embrasser tous ses sujets sans différence aucune de
Religion
292
, o rei garantia, segundo o autor das Negociation, que
à présent que nous étions venus, si nous montrions par effet la bonne affection que
nous disions avoir envers lui, il nous donnerait la paix, et nous traiterait comme
ses bons sujets
293
.
290
“metade católicos, metade da dita religião”, Stegmann, op.cit., p.102.
291
“pacificação das perturbações desse Reino”, Negotiation de la Paix, es mois d'Auril et May
1575..., op.cit., p. 62.
292
“os braços abertos, em muito boa intenção de abraçar todos os seus súditos sem diferença
alguma de Religião”, ibid., p.74.
293
“agora que estávamos aqui, se mostrássemos por efeito a boa afeição que dizíamos ter em
relação a ele, nos daria a paz, e nos trataria como seus bons súditos”, ibid., p.74.
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123
Após um início tão promissor, é com surpresa que os deputados ouvem do
rei o seu descontentamento com os artigos propostos. As Negociations contam
como Henrique III, depois de ter lido com seus conselheiros o documento
entregue pelos representantes de Condé e Montmorency-Damville, chama-os
novamente à sua antecâmara,
et nous dit qu’il avait fait lire les articles que lui avions baillés, lesquels il trouvait
fort étranges, et s’ébahissait comment nous les avions osé présenter (...) qui lui
faisait croire que nous n’aimions ni ne cherchions pas tant la paix de son
Royaume, comme nous le lui avions fait entendre
294
.
o primeiro artigo, em que se requeria o libre, général, public et entier
exercice de la Religion réformée
295
, havia desagradado ao rei. A generalização da
liberdade de culto parecia, a Henrique III, aos seus conselheiros e à rainha-mãe,
impossível de decretar nem era vontade do rei dar ao protestantismo direitos
semelhantes aos da sua própria religião, e da maioria dos franceses. Henrique III
diz aos deputados que
Nous devions penser qu’étant de la Religion Catholique, il la devait plus favoriser
et avantager que l’autre. Que M. le Prince et les autres peuvent bien entendre que
comme ils aiment et désirent avancer la leur, aussi lui déciderait de sa part
l’avancement de la sienne
296
.
Nesses termos, a liberdade de consciência poderia ser acordada aos
protestantes, mas não o direito de realizarem suas pregações a toda hora e por todo
o reino, mantendo-se dessa forma a distinção entre a religião do rei e a religião de
alguns dentro do reino. O que Henrique III pedia era que o primeiro artigo fosse
modéré
297
, isto é, que ele fosse adaptado a certos limites, justamente os do édito
de Janeiro de 1562, confirmado pelos estados gerais de Orléans. “Il était besoin de
borner et modérer nos demandesdiz o autor das Negociations, et (...) le Roi
nous donnerait anmoins la liberté de consciences par tout, dont nous devions
294
“e nos diz que ele tinha feito ler os artigos que lhe tínhamos entregado, os quais ele achava
bastante estranhos, e se espantava como havíamos ousado apresentá-los (...) que lhe fazer crer que
nós não amemos nem busquemos tanto a paz do seu Reino, como lhe nhamos feito a entender”,
ibid., pp.75-76.
295
“livre, geral, público e inteiro exercício da Religião reformada”, ibid., p.8.
296
“Nós devíamos pensar que, sendo da Religião Católica, ele devia favorecê-la e beneficiá-la
mais do que a outra. Que o Sr. Príncipe e os outros bem podem entender que, como eles amam e
desejam avançar a deles, também ele decidiria por seu lado o avanço da sua”, ibid., p.209.
297
“moderado”, ibid., p.80.
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124
nous contenter
298
. Mas o édito de 1562 era interpretado de forma diferente pelos
representantes da association e pela Coroa. Para os primeiros,
au commencement du gne du feu Roi son frère, les États assemblés pour donner
quelque police et règlement à tous ces différents de la Religion, sans avoir égard à
ces prescriptions qu’aujourd’hui l’on veut mettre en avant, requirent que l’une et
l’autre Religion fût tolérée, et eût son cours libre jusqu’à la détermination d’un
bon et libre Concile. (...) que c’est cela même dont aujourd’hui nous supplions et
requérons sa Majesté
299
.
Para o rei, a permissão total se referia apenas à liberdade de consciência;
quanto à de culto, ela estava restringida a algumas áreas delimitadas e Henrique
III considerava estar seguindo as demandas dos deputados ao acordar l’exercice
de ladite Religion à tous ceux qui la voudraient avoir: mais qu’il ne pût être qu’en
certains lieux que sa Majesté ordonnerait
300
.
A discussão sobre o artigo é longa. As negociações durarão de 22 de março
de 1575 até pelo menos a segunda semana de maio. De seu lado, os representantes
de Condé e Montmorency-Damville diziam-se impossibilitados de aceitar
qualquer proposta do rei, pois a sua deputação limitava-se a apresentar à Sa
Majesté” o documento composto pela association, e logo, diz o senhor de
Darennes, ne pouvons autre chose que rapporter sa volonà ceux qui nous ont
envoyés
301
. Ao mesmo tempo, o expédiantproposto pelo marechal de Retz em
nome do rei que determinava a reintegração do édito de Janeiro de 1562 o
era considerado suficiente para eliminar a causa das guerras. Pelo contrário, diz o
senhor de Clausonne, on craignait que cette grande restriction d’exercice
n’engendrât de nouveaux troubles
302
.
A Coroa, por sua vez, indicando que jamais concederia a liberdade irrestrita
de culto que era pedida, aumentava gradativamente a área onde ele seria
permitido. Depois de vários dias de debates, Henrique III anuncia uma nova
298
“Era preciso limitar e moderar nossas demandas”, e (...) o Rei nos daria, não obstante, a
liberdade de consciências em todo lugar, de que nós nos devíamos contentar”, ibid., p.80.
299
“no início do Reino do falecido Rei seu irmão, os Estados reunidos para dar algum governo e
regulamento a todas essas divergências da Religião, sem atentar para essas prescrições que hoje
querem aplicar, requereram que uma e a outra Religião fossem toleradas, e tivessem livre curso até
a determinação de um bom e livre Concílio. (...) que é isso mesmo que hoje suplicamos e
requeremos de sua Majestade”, ibid., pp.86-87.
300
o exercício da dita Religião a todos os que a quiserem ter; mas que poderia ser nos lugares
precisos que sua Majestade ordenaria”, ibid., p.100.
301
“podemos apenas transmitir a sua vontade aos que nos enviaram”, ibid., p.205.
302
“temíamos que essa grande restrição de exercício gerasse novas perturbações”, ibid., p.210.
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125
proposta para substituir o artigo trazido pelos deputados, e avisa: “que nous
fissions état que c’était sa dernière résolution
303
.
Le Roi accordait la liberté de conscience par tout son Royaume, sans que personne
pût être recherché en sa maison, pourvu qu’il ne fît rien contre l’édit. Que
l’exercice se pourrait faire en toutes les villes que nous tenions, fors qu’à
Montpellier, Castres, Aiguemortes et Beaucaire
304
.
As quatro cidades citadas serão, ao longo das discussões que prosseguem,
incluídas entre aquelas onde o culto seria permitido, o rei pretendendo dessa
forma demonstrar a sua boa vontade com relação aos protestantes, e o seu desejo
de pacificar o reino.
Apesar das concessões feitas pela Coroa
305
, os representantes da association
não são demovidos da sua intransigência. O rei e seus conselheiros começam a ser
tomados de impaciência, e recorrem à autoridade da monarquia como fator
decisório. Depois de propor as condições citadas acima, Henrique III, irritado com
a obstinação dos deputados, pergunta-lhes qui avait plus d’occasion d’obéir, ou
lui à nous, ou nous à lui
306
. A resposta mantém o impasse:
Le Sieur Darennes dit (...) que nous sirons tous lui obéir: mais que nous le
supplions très humblement de considérer que toutes les restrictions qu’il lui avait
plu mettre en sesdites ponses étaient contraires à la même fin et dessein qu’il a
au bien de la paix pour tous ses sujets
307
.
Pouco depois, frente ao argumento, apresentado pelo senhor de Morvilliers,
de que um édito que decretasse a completa liberdade de culto dificilmente poderia
ser executado, o senhor de Clausonne retruca, Il ne faut douter (...) que le Roi ne
soit obéit. Obéissez donc, dit le Roi. On répondit, qu’après Dieu nous le
ferions
308
. A obediência ao rei, à qual os deputados repetem inúmeras vezes
submeterem-se, aparece assim condicionada à obediência a Deus. A recusa em
303
“que nós percebêssemos que era sua última resolução”, ibid., p.209.
304
“O Rei concedia a liberdade de consciência por todo o seu Reino, sem que ninguém pudesse ser
procurado na sua casa, desde que não fizesse nada contra o édito. Que o exercício poderia ser feito
em todas as cidades que possuíssemos, exceto em Montpellier, Castres, Aiguemortes e Beaucaire”,
ibid., pp.209-210.
305
Ou justamente por causa delas, que os deputados poderiam considerar que a sua insistência
em recusar o acordo era a causa das aberturas feitas pelo rei, e que insistir nelas poderia provocar
novas concessões, e talvez mesmo a permissão do culto protestante por todo o reino.
306
“Quem tinha motivo para obedecer, ou ele a nós, ou nós a ele”, ibid., p.228.
307
“O Senhor Darennes diz (...) que nós todos desejamos obedecer-lhe; mas que lhe suplicamos
muito humildemente considerar que todas as restrições que ele havia querido pôr nas suas ditas
respostas eram contrárias ao fim mesmo e intenção que ele tem para o bem da paz para todos os
seus súditos”, ibid., p.228.
308
“Não se deve duvidar (...) que o Rei seja obedecido. Obedeçam então, diz o Rei. Respondemos,
que depois de obedecer a Deus o faríamos”, ibid., p.236.
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126
aceitar a proposta do rei fundava-se sobre essa ambigüidade. Em 1575, Henrique
III estava disposto a garantir liberdade de consciência aos protestantes, mas não
liberdade de culto pelo menos não nos termos em que ela lhe era requerida (e
que, como estava especificado logo no primeiro artigo, implicava na permissão
para a construção de templos e escolas de vocação reformada, por exemplo), posto
que a aceitação do artigo significaria admitir duas religiões com o mesmo status
na França. Mas a liberdade de culto concedida pelo rei, restrita a algumas cidades
e sobretudo proibida em locais públicos, era contrária à doutrina de Calvino, que,
ferrenho opositor da religião mantida em segredo, experimentada privadamente,
chamava de nicodemitas os fiéis que não ousavam proclamar abertamente a sua
309
, pois a religião envolvia a alma e também o corpo: nous savons que le
Seigneur nous fait cette honneur, d’appeler non seulement nos âmes ses temples,
mais aussi nos corps
310
. A escolha do caminho reformado deveria ser vivida de
forma pública e ativa, deveria ser constantemente um trabalho de catequese, pois
os protestantes tinham a obrigação de “manifestar a Palavra divina, cuja luz
abalará e persuadirá imediatamente os adversários”
311
, dizia o reformador francês.
O problema posto frente aos protestantes resumia-se então nos seguintes termos:
como aceitar o que o rei lhes concedia e pedia, e afastar-se dos preceitos da
religião, e por outro lado, como segui-los e desobedecer ao rei? Os deputados, que
tinham o triplo dever de obedecer à Reforma, à association e ao rei, escolhem seu
caminho: perguntados por Henrique III sobre a sua opinião quanto à última
proposta feita pelo rei, é o senhor de Beauvoir que responde:
il suppliait très humblement sa Majesté de lui pardonner, s’il disait que cela était
un beau rien entre deux plats: et que de sa part il ne pouvait penser, selon la
grosseur de son entendement, que ces réponses, quant à la Religion, fussent
suffisantes pour contenter ceux de la Religion, ni apaiser les troubles, ni mettre
une bonne paix en son Royaume
312
.
309
Segundo o Evangelho de João, Nicodemos era um importante fariseu que havia procurado
Cristo à noite para discutir a Salvação. Calvino se referia aos convertidos que não se mostravam
publicamente como nicodemitas porque considerava que eles, como Nicodemos, temiam ser
identificados com a nova religião, e preferiam mantê-la secretamente.
310
“nós sabemos que o Senhor nos essa honra, de chamar não apenas nossas almas seus
templos, mas também nossos corpos”, Calvino, Excuse de Jean Calvin à Messieurs les
Nicodémites, sur la complainte qu’ils font de as trop grande rigueur apud Cottret, op.cit, p.37.
311
Jouanna, op.cit., p.90.
312
“ele suplicava muito humildemente sua Majestade que o perdoasse, se ele dizia que isso era um
belo nada, e que de seu lado ele não podia acreditar, segundo a grosseria do seu entendimento, que
essas respostas, quanto à Religião, fossem suficientes para contentar os da Religião, nem pacificar
as perturbações, nem colocar uma boa paz no seu Reino”, Negotiation de la Paix, es mois d'Auril
et May 1575..., op.cit., p.272.
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127
O massacre de São Bartolomeu, as restrições do édito de Boulogne, o
casamento de Henrique III com uma parenta dos Guise, as desconfianças surgidas
e discutidas durante o cerco de La Rochelle, enfim, haviam criado um fosso entre
o rei e seus súditos da association. Apesar do desejo, muito provavelmente
genuíno, de submeterem-se à decisão e à vontade do rei, os deputados e seus
mandatários, Condé, Montmorency-Damville e os demais chefes malcontents e
protestantes eram incapazes de separar-se dos itens que, além de garantirem a
sua segurança no reino, constituíam o que eles acreditavam ser uma parte da sua
missão, a instituição do protestantismo na França com o mesmo estatuto da
religião de Roma sua missão completa sendo a conversão do reino. Além disso,
os deputados não podiam abrir mão do artigo que decretava a total liberdade do
protestantismo na França, ou, em outras palavras, a sua completa legalização, pois
não tinham suficiente confiança no rei, no seu conselho, nos seus funcionários,
nas cortes de justiça, nos parlamentos para acreditar que a liberdade de
consciência e a restrita liberdade de culto seriam impostas por todo o reino.
Também a Coroa, que via sempre com receio os movimentos armados
protestantes, julgava ter razões para acreditar que as restrições à proposta trazida
pelos deputados não seriam respeitadas. Henrique III resume o sentimento do
descrédito que emanava de lado a lado ao sentenciar aos deputados : Vous ne
nous croyez pas de tout ce que nous disons, et nous ne voulons pas croire tout ce
que vous dites
313
.
Após um mês e meio de negociações, o rei e os representantes dos
protestantes e Malcontents separam-se sem um acordo, e a guerra, meio morta,
avançando de pequenos cercos em batalhas sem relevância, ganha novo fôlego.
Depois de duas tentativas frustradas de libertar o duque de Alençon e o rei da
Navarra, uma nova conjuração, em Dreux, é bem-sucedida e, em 15 de setembro
de 1575, Alençon foge da corte (em fevereiro do ano seguinte, será a vez de
Navarra escapar à prisão real). Reunido ao seu grupo de malcontents, o duque
declara ser o protecteur de la liberté et du bien public en France
314
. Sua fuga
muda a situação dos Malcontents e protestantes unidos, que, depois da chegada de
Henrique de Navarra, formam juntos – Alençon, Navarra, Condé e Montmorency-
313
“Vós o acreditais em nada do que dizemos, e nós não queremos acreditar em tudo o que vós
dizeis”, Ibid., p.216.
314
“protetor da liberdade e do bem público na França”, Jouanna, op.cit., p.240.
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128
Damville (que havia sido eleito em julho de 1574, pelas assembléias protestantes,
governador e lugar-tenente geral do rei no Languedoc
315
) –, um exército de cerca
de cinqüenta mil homens. Um contingente mais de duas vezes maior do que o de
Henrique III.
Pressionado pela falta de recursos para manter a guerra, o rei primeiro
decreta uma trégua de sete meses, em novembro de 1575, e depois, a trégua
tornada inútil pelo crescimento das forças Malcontents e protestantes, aceita
discutir novamente os termos de uma paz, desta vez com o irmão. Em 6 de maio
de 1576, é assinada em Étigny a paix de Monsieur, apelido que reflete a
importância do papel de Alençon nas negociações
316
. Henrique III aproxima-se do
irmão (que ganha o ducado de Anjou), de Navarra, Condé e Montmorency-
Damville, e, como previsto nos termos da pacificação, convoca uma reunião dos
estados gerais para dali a seis meses.
Com o édito de Beaulieu, que confirma a paz de Étigny, a Coroa renova os
termos da permissão, suspensa pelo édito de Boulogne, do culto calvinista. Em
todo o reino, nas propriedades rurais como nas cidades, a não ser na capital e onde
estiver residindo a corte, os protestantes poderão realizar suas reuniões religiosas
– é a liberdade de culto mais extensa acordada pelos reis franceses aos huguenotes
até então, pois ela se estende dos campos às cidades.
Nous inclinant à la requête qui nous a été faite, tant de la part des
catholiques associés, que de ceux de ladite religion prétendue réformée
317
, o rei
constitui os tribunais compostos por juízes católicos e protestantes em igual
número, que apareciam entre os artigos apresentados pelos deputados de Condé e
Montmorency-Damville, em 1575. Ao anunciar as chambres mi-parties, na
cláusula 18 do édito, o Henrique III justifica-as afirmando que l’administration
de la justice est un des principaux moyens pour contenir nos sujets en paix et
concorde
318
.
Embora o tenham conquistado a liberdade de culto que haviam proposto
nas negociações de março-maio de 1575, a satisfação dos católicos moderados e
315
Negotiation de la Paix, es mois d'Auril et May 1575...., op.cit., p.238.
316
Tradicionalmente, na monarquia francesa, chamava-se Monsieur o mais velho entre os irmãos
do rei.
317
“Nos inclinando sobre a demanda que nos foi feita, tanto pelos católicos associados, quanto
pelos da dita religião pretensamente reformada”, Stegmann, op.cit., p.102.
318
“a administração da justiça é um dos principais meios para manter nossos súditos em paz e
concórdia”, ibid., p.102.
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dos protestantes é grande, e diretamente proporcional ao descontentamento dos
católicos intransigentes. Os parlamentos, largamente dominados pelo catolicismo
menos afeito a mudanças, recusam-se a registrar o édito de Beaulieu, obrigando o
rei a participar pessoalmente de uma sessão do parlamento de Paris para forçar a
publicação dos seus artigos. O parlamento deve se inclinar, mas, assim como parte
da população católica do reino, não deixa de expressar publicamente o seu
desacordo em relação à aproximação entre o novo rei e os protestantes. As
desconfianças que haviam prevalecido entre Henrique III e a association, e
impedido a realização de um acordo nas negociações de 1575, deslocavam-se
agora para a relação entre o rei e os católicos intransigentes.
Em defesa do édito de Beaulieu e da política de coexistência que ele
representava, neste mesmo ano de 1576 Philippe Duplessis-Mornay publica as
suas Remonstrances aux Estats pour la Paix. Com a intenção de preparar, no
espírito dos deputados que se reunirão nos estados gerais de Blois, a aceitação do
édito e a confirmação da paz, o autor explica longamente as razões por que esta,
tão necessária, apenas poderia ser atingida pela via da permissão do
protestantismo. Usando mais uma vez o disfarce do fidalgo católico bem-
intencionado, Mornay admite que também era seu desejo que se pudesse ter na
França uma única religião. Identificando-se assim com aqueles que afirmavam
que duas confissões não poderiam conviver pacificamente em um reino, o autor
acreditava poder ser mais bem recebido por eles, e escreve então para os críticos
da dualidade confessional, eles que
ne peuvent (disent-ils) endurer ni approuver, qu’on laisse vivre deux Religion
ensemble en France : Je désirerais avec eux qu’il n’y eût qu’une, selon laquelle
Dieu fut servi en tout et partout comme il appartient. Mais puisque souhaits n’ont
point lieu, il faut vouloir ce qu’on peut, si on ne peut tout ce qu’on veut
319
.
Depois de confessar sua pretensa preferência, Mornay revela qual será seu
principal argumento na tarefa de fazer aqueles com os quais em princípio
concorda passarem a concordar com ele: a situação específica em que se encontra
a França, e a necessidade que ela produz. Narrando o desenvolvimento dos
conflitos provocados pela Reforma, o autor conta como a guerra feita contra os
protestantes estava prestes a destruir a Alemanha quando Carlos V concedeu-lhes
319
“não podem (dizem eles) suportar nem aprovar que se deixe viverem duas Religiões juntas na
França: Eu gostaria com eles que só houvesse uma, segundo a qual Deus fosse servido em tudo
e por toda parte como cabe. Mas posto que desejos não acontecem, é preciso querer o que se pode,
se não podemos tudo o que queremos”, Mornay, 1576, p.6.
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liberdade de consciência e de culto, e a paz foi novamente possível. A partir da
Alemanha, a Reforma havia tomado a Europa, chegando finalmente à França.
Nela, como nas terras governadas pelo imperador, a primeira reação à novidade
havia sido a repressão, às vezes brutal. Mas desde o início, a sua conseqüência
fora o aumento do número de protestantes no reino.
Au commencement nous les avons brûlés, tous vifs, à petit feu, sans distinction de
sexe ni de qualité. Tant s’en faut que nous les ayons consumés par là, qu’ils ont
éteint nos feux de leur sang et se sont nourris et multipliés au milieu des flammes.
Depuis nous les avons noyés et semble qu’ils aient frayé dedans les eaux. Comme
le nombre s’est accru nous les avons combattus et battus en diverses batailles,
nous les avons défait quelquefois à plate couture, si ne les avons nous jamais peut
abattre. Nous les avons enivrés de vin aux Noces, nous leur avons coupé les têtes
en dormant : et à peu de jours de là les avons vu de nos yeux ressusciter aussi forts
qu’auparavant et avec têtes plus dures et plus fortes que jamais
320
.
Como na Alemanha, portanto, diz Mornay, se pela repressão se havia
chegado à guerra, seria preciso recorrer à permissão do protestantismo, à liberdade
de consciência e de culto, para chegar à paz.
Reste donc, puisque nous ne les avons pu faire mourir, que nous les laissions vivre,
puisque par force nous n’avons rien profité, que par amour nous essayons, puisque
la Guerre n’a de rien servi, en laquelle toutefois nous n’avons épargné, ni nos
biens, ni nos vies, ni notre honneur même, que maintenant nous les laissions au
milieu de nous en Paix
321
.
Mas a tarefa de conquistar adeptos para a coexistência é tanto mais difícil
quanto maior é a resistência ao artigo do édito de Beaulieu. De fato, essa
cláusula em particular concentrava as críticas de católicos intransigentes. Dizia
ela:
Et pour ne laisser aucune occasion de troubles et différends entre nos sujets, avons
permis et permettons l’exercice libre, public, et général de la religion prétendue
réformée par toutes les villes et lieux de notre Royaume, et pays de notre
obéissance et protection, sans restriction de temps et personnes, ni pareillement de
lieux et places, pourvu qu’iceux lieux et places leurs appartiennent, ou que ce soit
320
“No início nós os queimamos, vivos, a fogo brando, sem distinção de sexo nem de qualidade.
Longe de os termos consumido assim, eles apagaram nossos fogos com seu sangue e se
alimentaram e multiplicaram no meio das chamas. Desde então nós os afogamos e parece que eles
desbravaram as águas. Como o número aumentou, nós os combatemos e vencemos em diversas
batalhas, derrotamo-los às vezes completamente, se o pudemos nunca abatê-los. Nós os
embebedamos de vinho nas Núpcias, cortamos suas cabeças no sono: e poucos dias depois os
vimos com nossos olhos ressuscitarem tão fortes quanto antes e com cabeças mais duras e mais
fortes do que nunca”, id., ibid, pp.7-8.
321
“Resta então, posto que não pudemos matá-los, que os deixemos viver, posto que pela força não
resultou nada, que tentemos pelo amor, posto que a Guerra não serviu de nada, na qual todavia
nada poupamos, nem nossos bens, nem nossas vidas, nem mesmo nossa honra, então que agora
nós os deixemos no meio de nós em Paz”, id., ibid, p.8.
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du gré et consentement des autres propriétaires, auxquels ils pourraient
appartenir
322
.
Em outras palavras, além das propriedades rurais dos senhores protestantes,
e das três cidades onde o culto era permitido
323
, o novo édito autorizava tais
reuniões também nas cidades do reino que fossem em terras de senhores
protestantes, ou de quem, simplesmente, não se opusesse à sua realização. E,
sobretudo, permitia que o culto fosse público, ao não especificar que a permissão
excluía os espaços públicos – no édito de Boulogne, o “exercice libre de la
Religion prétendue réformée
324
era permitido hors toutefois des places et lieux
publiques
325
. Para os oponentes da tolerância civil, esse artigo era mais um passo
dado pela Coroa na direção da destruição da religião católica, pois através dele os
católicos intransigentes julgavam perceber de que forma a pregação reformada
que poderia entrar nas cidades e, ao sair das casas protestantes para ganhar as
praças, atingir um número maior de franceses recebia progressivamente, em
termos legais, marcas de legitimidade semelhantes às do catolicismo.
Essa cláusula transforma a tarefa de Mornay. o se tratava unicamente
de convencer os católicos de não impedirem os protestantes de viverem na sua fé
reformada: tratava-se de convencê-los da necessidade de esses cultos acontecerem
dentro das cidades e publicamente. O argumento de Mornay permanece o mesmo:
é a necessidade – pública, isto é, da República que obriga a aceitar o que
estipula o édito de Beaulieu.
Comme nous avons déjà dit que la Paix est juste entant que nécessaire, que cet
Article aussi de l’Édit de Paix est juste, entant que cette nécessaire Paix ne pouvait
être ni durer sans cet Article
326
.
Se o édito introduz uma novidade com relação aos anteriores, é ela mesma a
causa da sua efetividade, isto é, o artigo 4º é o que determina que o acordo
322
“E para o deixar nenhuma ocasião de perturbações e diferenças entre nossos súditos,
permitimos o exercício livre, público, e geral da religião pretensamente reformada por todas as
cidades e lugares do nosso Reino, e países sob a nossa obediência e proteção, sem restrição de
tempo e pessoas, nem igualmente de lugares e praças, desde que esses lugares e praças lhes
pertençam, ou que seja da conveniência e consentimento dos outros proprietários, aos quais eles
puderem pertencer”, Stegmann, op.cit., p.98, art.4.
323
O artigo do édito anterior, de Boulogne (1573), havia determinado que em La Rochelle,
Montauban e Nîmes poderiam ser realizados cultos privados.
324
“exercício livre da Religião pretensamente reformada”, Stegmann, op.cit., p.88.
325
“exceto todavia nas praças e lugares públicos”, ibid., p.88.
326
“Como dissemos que a Paz é justa posto que necessária, então que esse Artigo também do
Édito de Paz é justo, posto que essa necessária Paz não podia ser nem durar sem esse Artigo”,
Mornay, 1576, p.16.
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assinado em Beaulieu terá sucesso em assegurar a paz para o reino. Para que fique
clara, aos deputados e outros leitores das suas Remonstrances, a necessidade de se
observar esse artigo, Mornay explica que a paz durará se ele for respeitado,
puisque sans cet Article, nous avons tant de fois éprouvé que ne la pouvons
avoir
327
, e adverte:
le dénierons-nous, nous dis-je, (...) à ces pauvres Chrétiens, à nos Frères et
Concitoyens pour notre repos, pour la cessité publique, pour racheter ce pauvre
Royaume de ruine et de confusion ? Ne faisons point de difficulté sur nos villes :
Ce qui est tolérable aux champs est tolérable aux bourgs, ce qui l’est aux bourgs
l’est aux places et aux marchés des villes
328
.
Ao criticar os adversários da cláusula do édito de Beaulieu, Mornay visa
desacreditar o grupo de católicos intransigentes franceses que se recusava a aceitar
qualquer forma de convívio com os protestantes. Como estes e os Malcontents,
também aquele partido, o católico intransigente, organizava-se para tornar
públicas as suas posições. As acusações de Mornay eram respondidas em
publicações de autores ligados ao partido, numa troca que se constituía como uma
das formas sob as quais se desenrolavam as guerras de religião na França. Um
panfleto anônimo de 1574 mostra que havia dois tipos de enfrentamento através
dos quais os diversos campos combatiam: o das disputas de idéias, por meio de
escritos e discussões públicas, e o das armas. Este último era sempre, segundo o
autor católico radical do Advertissement, ou Epistre a Messieurs de Paris, et
autres Catholiques de France, provocado pelos protestantes, quese sont efforcés
de planter en France par armes leur abominable secte
329
.
Os confrontos eram acompanhados pelas publicações, em que os
protestantes justificavam a sua tomada de armas ou acusavam os católicos de
serem os causadores da guerra. Mas aqueles não conseguiam
résister aux Catholiques, lesquels et par écrits réfutaient tellement leurs erreurs,
qu’ils ne savaient que répondre : et en disputes privées et publiques, les
327
“dado que sem este Artigo tantas vezes provamos que não a podemos ter”, id., ibid., p.41.
328
“o negaríamos, nos digo, (...) a esses pobres Cristãos, aos nossos Irmãos e Concidadãos para
nossa tranqüilidade, para a necessidade pública, para redimir esse pobre Reino de ruína e de
confusão? Não façamos dificuldade quanto às nossas cidades: O que é tolerável nos campos é
tolerável nos burgos, o que o é nos burgos, o é nas praças e mercados das cidades”, id., ibid.,
pp.19-20.
329
“se esforçaram em plantar na França pelas armas sua abominável seita”, Advertissement, ou
Epistre a Messieurs de Paris, et autres Catholiques de France, sur les nouueaux desseings
d'aucuns rebelles, et seditieux, nagueres descouuers, lesquels soubs couleur et pretexte qu'ils
disent en vouloir aux Ecclesiastiques, et vouloir reformer le Royaume, conspirent contre le Roy, et
son Estat, 1574, p.9.
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repoussaient en telle sorte, que tous les subterfuges qu’ils cherchaient, ne leur
servaient de rien
330
.
Os protestantes, por sua vez, apresentavam de modo semelhante a reação
dos católicos quando eram obrigados a responder às suas publicações, e também
os argumentos para desqualificar as justificativas de um e outro partido eram os
mesmos. Mornay afirma, na Exhortation à la paix de 1574, que, quanto aos
católicos contrários à dualidade religiosa,
si nous voulons voir combien ils sont mus de Religion, nous trouverons que ce sont
pour la plupart gens sans Dieu, contempteurs de Foi et de toutes lois Divines et
humaines, qui n’aiment qu’eux-mêmes, et pour bâtir accroître et entretenir leurs
maisons ne font point de conscience de ruiner tout un public
331
;
e o autor anônimo do Advertissement, publicado no mesmo ano, resume de seu
lado, sobre os protestantes:
Voilà donc le but et le dessein ils tendent et la cause finale pour laquelle ils ont
entrepris cette guerre, c’est à savoir pour chasser le Roi de son Royaume et de tuer
tous les prêtres
332
.
A acusação de que a verdadeira intenção por trás da ação dos protestantes
era dominar o reino foi freqüentemente repetida pelos seus oponentes católicos
(que foram também alvo dessa insinuação). As publicações nesse sentido, como o
Advertissement, eram numerosas, e responder a elas logo se tornou imperativo
para impedir os franceses, em geral, e o rei, em especial, de considerarem
protestantes e católicos moderados como simples sediciosos. Houve duas formas
de fazê-lo, ambas pela via das publicações: ou se invertia a acusação, atribuindo
aos intransigentes a vontade de subverter a monarquia, como fez por exemplo
Duplessis-Mornay na Exhortation à la paix de 1574; ou se negavam as acusações
diretamente, o que dava aos protestantes a chance de anunciarem quais eram,
segundo eles, as suas verdadeiras intenções. Na introdução da descrição das
330
“resistir aos Católicos, que, tanto por escritos refutavam tanto seus erros, que eles não sabiam o
que responder; quanto por disputas privadas e públicas rechaçavam-nos de tal forma que todos os
subterfúgios que eles buscavam não lhes serviam de nada”, ibid., p.8.
331
“se quisermos ver o quanto eles são movidos pela Religião, concluiremos que são na maior
parte pessoas sem Deus, desprezadores da Fé e de todas as leis Divinas e humanas, que amam
apenas a si mesmos, e para construir, aumentar e conservar suas casas o fazem consciência de
arruinar todo um público”, Mornay, 1574, p.12.
332
“Eis então o objetivo e intenção a que eles visam, e a causa final pela qual eles
empreenderam essa guerra, a saber, para expulsar o rei do seu Reino e matar todos os padres”,
Advertissement, ou Epistre a Messieurs de Paris, et autres Catholiques de France, sur les
nouueaux desseings d'aucuns rebelles, et seditieux, nagueres descouuers, lesquels soubs couleur et
pretexte qu'ils disent en vouloir aux Ecclesiastiques, et vouloir reformer le Royaume, conspirent
contre le Roy, et son Estat, 1574, p.29.
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negociações de um acordo de paz em 1575 entre o rei e a association, quando o
primeiro deputado a falar apresenta Condé, Montmorency-Damville e seus
companheiros, sua principal preocupação é assegurar o rei da fidelidade desses
grandes senhores:
Le Prince de Condé, Seigneurs, Gentilshommes et autres, de la Religion formée
de votre Royaume: le Maréchal de Damville, Seigneurs, Gentilshommes et autres
Catholiques à eux unis et associés, vos très humbles, et obéissants sujets et
serviteurs (...) déclarent et protestent devant votre Majesté, qu’il n’est jamais entré
en leur coeur, se soustraire de la très humble, très obéissante et fidèle subjection
qu’ils doivent à votredite Majesté : mais d’un vrai amour et ferme loyauté de
sujets, ont toujours reconnu et reconnaissent que telle est votre vocation et
condition naturelle ordonnée de Dieu
333
.
Foi, continua o deputado, com esse amor que Condé e Montmorency-
Damville armaram-se para a guerra, pois, ao contrário do que se dizia contra eles,
o seu objetivo era apenas o de se defenderem, e de defenderem o rei dos inimigos
da sua autoridade. A conservação da majestade real era um dever que a
association prezava sobre todos os outros – vê-la ameaçada obrigava-os a agir:
Et à ce que votredite Majesté ne prenne en mauvaise part, ou condamne la prise
des armes qu’ils ont continuée depuis votre avènement à la couronne, vous
supplient très humblement, mettre en votre sage considération, qu’elles n’ont été
prises par eux que d’une extrême nécessité, pour la juste défense de leurs
honneurs, vies et biens, contre ceux qui leur étant capitaux ennemis, et ayant abusé
de l’autorité du feu Roi votre frère, s’essayant d’en faire autant de la votre, les ont
réduits à ce dernier point
334
.
O aparecimento desse discurso de justificação nos textos protestantes mostra
a relevância da batalha de publicações durante as guerras de religião. Eram
panfletos, folhetos, libelos difamatórios, advertências, cartas, exortações,
apologias e declarações, ao lado de sermões que tinham a vantagem de atingir
os não letrados e tratados de filosofia política cujo público era reduzido, mas
influente no governo do reino. Quanto a essa última categoria, pode-se dizer que
333
“O Príncipe de Condé, Senhores, Fidalgos e outros, da Religião reformada do vosso Reino; o
Marechal de Damville, Senhores, Fidalgos e outros Católicos unidos e associados a eles, vossos
muito humildes, e obedientes súditos e servidores (...) declaram e protestam diante de vossa
Majestade, que nunca esteve em seus corações subtraírem-se da muito humilde, muito obediente e
fiel sujeição que devem à vossa dita Majestade: mas de um verdadeiro amor e firme lealdade de
súditos, reconheceram sempre e reconhecem que tal é a vossa vocação e condição natural ordenada
por Deus”, Negotiation de la Paix, es mois d'Auril et May 1575..., op.cit., p.3.
334
“E para que vossa dita Majestade não entenda mal, ou condene, a tomada de armas que eles
seguiram depois do seu advento à Coroa, vos suplicam muito humildemente pôr sob vossa bia
consideração, que elas foram tomadas por eles apenas por extrema necessidade, para a justa defesa
das suas honras, vidas e bens, contra os que, sendo seus inimigos capitais, e tendo abusado da
autoridade do falecido Rei vosso irmão, tentando fazer o mesmo com a vossa, os obrigaram a esse
ponto”, ibid., p.3.
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se tratava de uma espécie de propaganda subliminar, pois a filiação política ou
religiosa do autor era discreta, e aparecia apenas nas entrelinhas do texto. A sua
importância derivava, inclusive, daí, pois a preocupação partidária parecia ser e
de fato muitas vezes era – inferior à pretensão teórica e ao rigor intelectual. Houve
casos em que um dos partidos apropriou-se de determinada obra que parecia servir
aos seus propósitos, sem que o autor a tivesse composto para esse uso; houve
outros casos em que um partido de opinião contrária à da obra publicada
imputava-a ao partido oposto, sem que o autor fizesse parte dele.
Dentre aquelas que se pode atribuir a um ou outro lado, estão os Six livres
des politiques, publicados em 1574 pelo arquidiácono de Toul, François de
Rosières. Dentre as obras partidarizadas à revelia do autor, estão os Six livres de
la République, que Jean Bodin publica, pela primeira vez, em 1576.
Não sendo, na sua formulação, uma declaração de intenções do partido
intransigente, as idéias expressadas na obra, e a proximidade com o cardeal de
Lorena (a quem é dedicada) fazem dos Six livres des politiques um compêndio da
opinião conservadora sobre a religião e seu lugar na base e no governo do Estado,
sobre a política, a monarquia, a função do rei, e outros temas. Na forma de um
tratado de filosofia política, Rosières analisa a política e o Estado, identificando,
neste, sujeito, objeto e finalidade. Enquanto os católicos moderados, sobretudo da
linha politique, remetiam a função do Estado à manutenção do bem comum, e
desligavam-na da defesa da religião, os intransigentes reafirmavam a obrigação do
rei de preservar a Igreja, e subordinavam o bem comum à conservação da religião.
Quanto ao Estado, diz Rosières,
Voilà le sujet d’icelui, qui est l’homme prudent, et bien modéré ; son objet, qui est
la patrie, ou chose publique ; et sa fin, de faire adorer un seul Dieu par le peuple
et communauté, et conséquemment de les faire bien et heureusement vivre
335
.
A unidade de religião, abalada desde que o édito de Janeiro de 1562 havia
permitido o culto protestante na França, era a principal preocupação dos católicos
intransigentes franceses. A pacificação do reino, que um número crescente de
nobres e pensadores franceses condicionava ao abandono da centralidade
tradicionalmente dada à religião nos assuntos do reino, para o partido católico era
dependente da religião. Com efeito, uma República não poderia existir sem ela:
335
“Eis o assunto deste, que é o homem prudente, e bem moderado; seu objeto, que é a tria, ou
coisa pública; e seu fim, fazer um só Deus ser adorado por todo o povo e comunidade, e
conseqüentemente fazê-los viverem bem e com felicidade”, Rosières, op.cit., s/p.
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La Religion est le nerf le plus principal, et solide fondement de la sûreté, et
établissement d’une République, comme Platon, et Aristote l’ont témoigné en leurs
livres de République, et Politiques. Car tout ainsi comme toutes choses procèdent
de Dieu, sans lequel rien ne peut longuement être, aussi l’état civil ne peut durer,
si ce n’est par la Religion, par le moyen de laquelle il est apaisé de plusieurs maux
que nous commettons
336
.
A posição expressa nesses termos por Rosières era o inverso daquela
desenvolvida pelos teóricos da tolerância civil: a religião não era prejudicial ao
Estado, o processo de pacificação do reino não precisava excluí-la das suas
negociações; era ela a fonte da sua salvação, e era sem ela que a paz se tornava
impossível. Se no início do século esse havia sido o padrão pelo qual se guiavam
as monarquias católicas européias, na década de 1570 ele precisava ser sustentado
e justificado em meio a novas concepções de Estado que, ao considerarem a
política, pensavam-na como uma esfera de atuação distinta, senão oposta à
religião. Uma dessas concepções foi apresentada por Jean Bodin nos seus Six
livres de la République, publicados em 1576.
Propondo-se a estudar a soberania, puissance absolue et perpétuelle d’une
République
337
, Bodin descreve-a como a autoridade superior de um príncipe, que,
na relação com os súditos, é inquestionável e inviolável, sendo por outro lado
limitada pelas leis de Deus e da natureza. Segundo Bodin,
la souveraineté donné à un Prince sous charges et conditions, n’est pas
proprement souveraineté, ni puissance absolue, si ce n’est que les conditions
apposées en la création du Prince, soient de la Loi de Dieu ou de nature
338
.
Bodin não considera que a relação com Deus esteja excluída da política,
mas o fato de definir como um dos únicos limites da soberania a Lei de Deus o
significa que o autor restrinja a ação do príncipe ao que a religião determina. A
República, enunciada pelo autor como sendo une société d’hommes assemblés,
pour bien et heureusement vivre
339
, deve ser organizada na forma de um droit
gouvernement de plusieurs ménages, et de ce qui leur est commun
340
. Esse
336
“A Religião é o principal nervo, e sólido fundamento da segurança, e estabelecimento de uma
República, como Platão, e Aristóteles testemunharam em seus livros da República, e Política. Pois
assim como todas as coisas procedem de Deus, sem o qual nada pode ser duravelmente, também o
estado civil não pode durar, se não for pela Religião, por meio da qual ele é pacificado de
inúmeros males que nós cometemos”, id., ibid., s/p.
337
“poder absoluto e perpétuo de uma República”, Bodin, 1993, I, VIII, p.111.
338
“a soberania dada a um Príncipe sob comissões e condições não é propriamente soberania, nem
poder absoluto, a não ser que as condições postas na criação do Príncipe sejam a Lei de Deus ou
da natureza”, id., ibid., I, VIII, p.119.
339
“uma sociedade de homens reunidos, para viver bem e de maneira feliz”, id., ibid., I, I, p.60.
340
“direito governo de várias casas, e do que lhes é comum”, id., ibid., I,I, p.57.
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governo da coisa pública é o Estado, conduzido por um soberano cuja função é
réaliser le bien commun et la justice
341
. Em princípio, portanto, Bodin discorda
de Rosières quanto à relação de subordinação que liga o rei à religião. O objetivo
do monarca bodiniano não seria manter a filiação religiosa dos seus súditos, o que,
segundo Rosières, teria como conseqüência o bem comum; e no entanto, para
produzir a felicidade no reino, Bodin afirma que a religião é o seu principal apoio.
Como o arquidiácono de Toul, Bodin concede à religião o lugar central entre os
fundamentos da República:
Et d’autant que les Athéistes mêmes sont d’accord, qu’il n’y a chose qui plus
maintienne les états et Républiques que la Religion, et que c´est le principal
fondement de la puissance des Monarques
342
.
Se, para Rosières, a religião é o fundamento e o propósito para o qual existe
Estado, para Bodin, sem ser o seu objetivo, a religião é o fundamento do Estado.
Como tal, ela é uma certeza, e o pode sofrer abalos, não pode ser anulada, não
pode ser debatida. A um dos itens tratados em seu livro, Bodin dará o seguinte
título: Il est pernicieux de disputer de ce qu’on doit tenir pour résolu
343
. Nele, o
autor afirma:
Mais la Religion étant reçue d’un commun consentement, il ne faut pas souffrir
qu’elle soit mise en dispute : car toutes choses mises en dispute, sont aussi
révoquées en doute ; or, c’est impiété bien grande, révoquer en doute la chose dont
un chacun doit être résolu et assuré
344
.
Por que não se deveriam permitir as discussões acerca da religião? Porque
Il n’y a chose si claire et si véritable qu’on n’obscurcisse, et qu’on n’ébranle par
dispute, [de même] de ce qui ne gît en monstration, ni en raison, [mais] en la
seule créance
345
Abalada a religião, abalo semelhante sofrerá a República.
A semelhança aparente entre as concepções políticas de Rosières e Bodin
tem entretanto uma diferença sutil: o primeiro, ao falar em religião, refere-se à
341
“realizar o bem comum e a justiça”, Goyard-Fabre, 1999, p.9.
342
“E dado que mesmo os Ateus estão de acordo, que não há coisa que mantenha mais os estados e
Repúblicas senão a Religião, e que é o principal fundamento do poder dos Monarcas”, Bodin,
1993, IV, VII, p.400.
343
“É prejudicial discutir sobre aquilo que se deve ter por decidido”, id., ibid., IV, VII, p.399.
344
“Mas a religo sendo recebida de um mesmo consentimento, não se deve sofrer que ela seja
posta em discussão: pois todas as coisas postas em discussão, são também colocadas em dúvida;
ora, é impiedade bastante grande colocar em dúvida aquilo de que cada um deve estar decidido e
seguro”, id., ibid., IV, VII, p.399.
345
“não coisa tão clara e tão verdadeira que não se obscureça, e que não estremeça pela
discussão, [assim como] o que o jaz em demonstração, nem em razão, [mas] unicamente na
crença”, id., ibid., IV, VII, p.399.
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católica e o sentido mesmo do tratado do arquidiácono é mostrar a precedência
do catolicismo frente às seitas” que pululavam no século XVI e o seu lugar
primordial entre as obrigações do rei –; Bodin, quando diz que a religião é o
principal fundamento do poder soberano, não está considerando nenhuma religião
em particular: Je ne parle point ici laquelle des Religions est la meilleure
346
.
Não era uma religião o fundamento do reino, mas a religião, como uma espécie de
instrução moral, de condição comum aos homens que produz uma ligação entre
eles dificilmente transponível e que os orienta no sentido do bem e da ação
virtuosa. D’autant que les Athéistes mêmes sont d’accord
347
, isto é, dado que
mesmo aqueles que não acreditam em Deus são capazes de reconhecer a
importância da religião como forma de unir os homens, então é preciso admitir
que ela é indutora “de l’exécution des lois, de l’obéissance des sujets, de la
révérence des Magistrats, de la crainte de mal faire, et de l’amitié mutuelle envers
un chacun
348
. Não se trata de defender uma religião específica, de impedir que
ela seja abalada ou questionada; trata-se de manter a religião, de evitar que a
ligação fundamental entre os homens seja eliminada em um reino. Segundo
Jacqueline Boucher, uma igreja lui semblait nécessaire pour éviter des
perturbations sociales
349
, e para Joseph Lecler, une religion positive lui
paraissait nécessaire pour assurer le bon équilibre de l’État
350
.
A distinção entre o status que Rosières e Bodin conferem à religião fica
mais clara quando se observa a descrição que este último faz dos cargos e
funcionários ligados à administração da República. As questões relativas à
religião têm o seu lugar específico, que não é o mesmo âmbito de ação do Estado;
têm os seus agentes, os responsáveis pelos seus assuntos e por prover às suas
necessidades, que não são os mesmos do Estado; têm os seus quadros, o clero, os
ministros, magistrados que não são funcionários da República, nem são nomeados
por ela ou por ela mantidos:
Toutes personnes publiques ne sont pas pourtant officiers ou commissaires, comme
les Pontifes, Evêques, Ministres, sont personnes publiques et bénéficiers plutôt
qu’officiers, [choses] qu’il ne faut pas mêler ensemble, attendu que les uns sont
346
“Eu não digo em absoluto aqui qual das Religiões é a melhor”, id., ibid., IV, VII, p.400.
347
“Dado que mesmo os Ateus estão de acordo”, id., ibid., IV, VII, p.400.
348
“da execução das leis, da obediência dos súditos, da reverência dos Magistrados, do temor fazer
errado, e da amizade mútuo entre cada um”, id., ibid., IV, VII, p.400.
349
“parecia-lhe necessária para evitar as perturbações sociais”, Jouanna, et al., op.cit., p.729.
350
“uma religião positiva parecia-lhe necessária para assegurar o bom equilíbrio do Estado”,
Lecler, op.cit., p.548.
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établis pour les choses divines, les autres pour les choses humaines, qui ne se
doivent point confondre. [De plus], l’établissement de ceux qui sont employés aux
choses divines, ne dépend pas des édits, ni des lois politiques, comme sont les
officiers
351
.
Uma observação feita entre parênteses nos Six livres de la République
reforça o papel particular que a religião desempenha na filosofia política
bodiniana: após indicar que, ao afirmar o lugar da religião na República, ele não
está definindo como fundamento do poder real uma confissão específica, Bodin
expõe o seu sentimento quanto à religião: il n’y a qu’une Religion, une vérité,
une loi divine publiée par la bouche de Dieu
352
. Em outras palavras, sim, na
opinião de Bodin, uma religião verdadeira, mas ela tem seu espaço próprio, que é
pessoal. No que concerne ao Estado, a Providência não é o fator decisivo da sua
ação, e a distinção entre dogmas não deveria ser determinante quando se tratasse
da união do reino. Bodin mesmo a entender que, em uma República, a unidade
confessional não é imperativa, e que garantir liberdade de consciência às
diferentes religiões que podem existir nela é a melhor forma de evitar les
émotions, troubles, et guerres civiles
353
, e manter assim a ordem, a justiça e o
bem comum, “car plus la volonté des hommes est forcée, plus elle est revêche
354
.
Apesar da defesa da importância e da necessidade da religião para o reino, o
desenvolvimento filosófico do pensamento de Bodin caminha para a construção
de um Estado separado da Igreja. Os Six livres de la République contrapõem-se
portanto à filosofia política católica intransigente, apresentada por exemplo por
François de Rosières. A distinção entre as funções do magistrado civil e as do
religioso era indício suficiente para fazer de Bodin, aos olhos do partido
católico, um autor politique
355
. Como tal, era preciso combatê-lo. Três anos depois
351
“Todas as pessoas públicas não o no entanto oficiais ou comissários, como os Pontífices,
Bispos, Ministros são pessoas públicas e beneficiários antes de oficiais, [coisas] que não devem
misturadas, visto que uns são instituídos para as coisas divinas, e os outros para as coisas humanas,
que não devem absolutamente ser confundidas. [Além disso], o estabelecimento dos que são
encarregados das coisas divinas o depende de éditos, nem de leis políticas, como é com os
oficiais”, Bodin, 1993, III, II, pp.264-265.
352
“há apenas uma Religião, uma verdade, uma lei divina publicada pela boca de Deus”, id., ibid.,
IV, VII, p.400.
353
“as emoções, perturbações, e guerras civis”, id., ibid., IV, VII, p.401.
354
“pois quanto mais a vontade dos homens é forçada, mais ela é rude”, id., ibid., IV, VII, pp.400-
401.
355
Bodin, nascido em 1529, ingressou muito jovem ainda no convento das carmelitas, sobrinho de
um antigo prior da ordem. Entre 1545 e 1547, foi denunciado como herege, isto é, protestante, e
teve de comparecer a uma sessão das chambres ardentes instituídas por Henrique II. Depois de
uma breve estadia em Genebra, em 1552, Bodin retorna à França, onde será novamente acusado de
heresia e perseguido em pelo menos três outras ocasiões: em 1569, 1577 e 1589. Restam dúvidas
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140
de publicada a primeira versão dos Six livres de la République, surge uma
Remonstrãce au Roy, par le sieur de La Serre, sur les pernicieux discours
contenus au livre de la Republique de Bodin (1579). O texto, de cerca de 30
páginas, cita algumas passagens dos Six livres, que o senhor de La Serre analisa
com a intenção de mostrar o perigo contido nas idéias aí apresentadas. Na epístola
dedicatória ao rei, o autor declara:
J’ai bien voulu par cette présente Annotation secourir la chose publique, de la
découverture de son atrocité, aux fins qu’un chacun s’en puisse garder :
Mêmement vous, SIRE, qui êtes l’âme, le Roi, et le père de ce Royaume
356
.
A obra de Bodin, diz La Serre, esrepleta de impropriedades históricas, de
imprecisões e dissimulações que têm o único sentido de introduzir, entre os
franceses e sobretudo pelo intermédio dos “esprits curieux des affaires d’État
357
,
as idéias que os protestantes e seus aliados haviam desenvolvido para impor sua
religião e tomar o reino. Assim é que, após um trecho em que Bodin estaria
indicando que o homem banido deveria ser perdoado, La Serre diz que o autor fala
apenas craignant le malheur de plusieurs des siens
358
. Mais adiante, repetindo a
passagem em que Bodin afirma que os venezianos, ao vencerem o duque de
Mântua, haviam agido corretamente não o punindo e fazendo dele seu capitão, La
Serre acusa: Il veut par persuader qu’on face de même de ceux qui font la
guerre au Roi, pour mettre le Royaume en leurs mains
359
.
Quanto à discussão, amplamente presente nessa época, sobre o dever de
revolta que obriga o súdito a agir quando a autoridade não faz o seu papel, La
Serre reporta o que considera ser a opinião de Bodin:
sobre a sua filiação religiosa é possível que ele tenha abandonado inteiramente o cristianismo ao
deixar o hábito, por volta de 1550 (segundo Gerard Mairet, uma hipótese, não verificada, de
que sua mãe fosse judia, expulsa da Espanha pela Inquisição [Mairet, 1993, p.585]). Quanto ao seu
pertencimento político, a incerteza é pouco menor. Em 1590 Bodin publica uma defesa da Liga
católica, mas os ligueurs consideravam-no, na mesma época, un politique et dangereux
catholique” (Jouanna, et al., op.cit., p.730). Antes de morrer de peste, em 1596, Bodin aproxima-se
de Henrique IV, juntando-se ao seu exército após o fim do cerco de Laon, onde vivia, em 1594.
356
“Eu bem quis, por essa presente Anotação, socorrer a coisa pública do descobrimento da sua
atrocidade, com o fim de que cada um possa evitá-la: Mesmo vós, SIRE, que sois a alma, o Rei, e
o pai desse Reino”, Remonstrãce au Roy, par le sieur de La Serre, sur les pernicieux discours
contenus au livre de la Republique de Bodin. A Paris. Par Federic Morel Imprimeur ordinaire du
Roy, 1579, pp.3-4.
357
“espíritos curiosos dos assuntos de Estado”, id., ibid., p.3.
358
“temendo o prejuízo de muitos dos seus”, id., ibid., p.9.
359
“Ele quer por nos persuadir para que façamos como os que fazem guerra ao Rei, para colocar
o Reino as suas mãos”, id., ibid., pp.20-21.
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41
ils est très beau et convenable à qui que ce soit, défendre par voie de fait les biens,
l’honneur et la vie de ceux qui sont injustement affligés, quand la porte de Justice
est close
360
.
E completa, nos termos do seu próprio ponto de vista: C’est le principal
argument de ses compagnons, quand ils ont emmené les Étrangers en ce
Royaume
361
. Sobre o risco de eliminar dissidentes quando estes formam grupos
dentro do reino, debate que havia estado presente na elaboração do édito de
Amboise de 1560, diz Bodin:
Il se peut faire aussi, que les Collèges des sectes sont si puissants, qu’il serait
impossible, ou bien difficile, de les ruiner, sinon au péril et danger de l’État. En ce
cas les plus avisés Princes ont accoutumés de faire comme les sages pilotes, qui se
laissent aller à la tempête
362
.
La Serre repete um argumento usado em 1560 contra o édito: “Il veut par là,
qu’on laisse empiéter ce Royaume à ses partisans sans s’y opposer, pour faire
goûter généralement à un chacun le doux fruit qu’ils y ont apporté
363
.
A religião que segue Bodin fica evidente para o autor da Remonstrãce
quando aquele tece uma lista de homens doutos: je mettrais Aristote, Cicéron,
Chrysippe, Bocace, S. Bernard, Erasme, Luther et Mélanchton
364
. Para La Serre,
depuis qu’il mêle ces trois hérétiques derniers avec saint Bernard, les appelant
doctes, on peut assez comprendre de quelle marque il est
365
.
Além dessas observações, uma, em especial, onde fica claro o
descontentamento católico com a política de coexistência seguida pela Coroa
desde 1562. Em itálico, a crítica de La Serre, quase um desabafo, segue-se
imediatamente à citação de Bodin:
Mais il est certain, que le Prince portant faveur à une secte, et méprisant l’autre,
l’anéantira sans force ni contrainte, ni violence quelconque, si Dieu ne la maintient.
Depuis que justement le Roi a tâché à ce fait, et n’y ayant pu parvenir, à cause des
mauvais offices, et mauvais conseils, desquels on l’a servi : joint aussi qu’on n’a
360
“é muito belo e convém, a quem quer que seja, defender por vias de fato os bens, a honra e a
vida dos que são injustamente atingidos, quando a porta da Justiça está fechada”, id., ibid., p.17.
361
“Era o principal argumento dos seus companheiros, quando eles trouxeram os Estrangeiros para
esse Reino”, id., ibid., p.17.
362
“Pode ser também que os Colégios das seitas sejam o poderosos que seria impossível, ou
bastante difícil, arruiná-los, senão ameaça e perigo para esse Estado. Nesse caso os mais avisados
Príncipes costumaram fazer como os sábios pilotos, que se deixam ir à tempestade”, id., ibid.,
pp.19-20.
363
“Ele quer por que deixemos os seus partidários usurparem esse Reino sem fazermos
oposição, para dar a provar a cada um o doce fruto que eles trouxeram”, id., ibid., p. 20.
364
“eu colocaria Aristóteles, Cícero, Crisipo, Boccacio, S. Bernardo, Erasmo, Lutero e
Melanchton”, id., ibid., p. 21.
365
“dado que ele mistura esses três últimos hereges com são Bernardo, chamando-os doutos,
podemos compreender suficientemente de que marca ele é”, id., ibid., p. 21.
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jamais su embrasser le fil d’une vraie guerre : non seulement il veut réitérer le
dormitoire ci-dessus, mais encore il veut inférer couvertement, que la cause des
protestants est maintenue de Dieu
366
.
A Remonstrãce au Roy é obra de um grupo formado dentro do partido
católico intransigente quando estes, além de expressarem sua opinião em escritos
como o de Rosières, criaram outro recurso para enfrentarem protestantes,
Malcontents e politiques, e defenderem a sua proposta de pacificação do reino: a
organização, nas cidades e nos campos, das ligas. Apesar de existirem desde a
década de 1560, foi a partir de 1575, como forma de resistência ao édito de
Beaulieu, que elas começaram a aparecer por todo o reino: em Paris, em Poitiers,
Fontenay, Rouen, Abbeville, Saint-Quentin, Beauvais e Péronne, nobres e
burgueses encontram-se para compartilhar seu desgosto por mais uma mudança de
posição da Coroa. Durante os estados gerais, que começam a se reunir em Blois
em novembro de 1576, um primeiro manifesto ligueur circula entre os deputados
desde a sua chegada. Esse texto será a base do que o rei enviará aos deputados,
com algumas modificações, para que eles assinem sua integração à liga real que
Henrique III pretendia comandar. Como Carlos IX antes dele, o rei tenta controlar
as manifestações católicas para que elas não se tornem movimentos contra a sua
autoridade. A declaração inicial do primeiro texto que circula entre os deputados
traz a submissão às decisões dos estados gerais: Promettons et jurons d’employer
nos biens et nos vies pour l’entière exécution de la résolution prise par lesdits
États
367
. A Coroa reescreve o parágrafo:
Promettons et jurons d’employer nosdits biens et vies pour l’entière exécution de
ce qui sera commandé et ordonné par Sa Majesté, après avoir ouï les
remontrances des États assemblés
368
.
Mudança suficiente para que os deputados se recusem a ingressar na liga de
Henrique III. A proposta que se articulava inicialmente em Blois afirmava a
366
“Mas é verdade, que o Príncipe favorecendo uma seita, e desprezando a outra, a eliminará sem
força nem coação, nem violência alguma, se Deus não a mantiver. Desde que justamente o Rei
esforçou-se nesse sentido, e não podendo chegar a ele, por causa dos maus ofícios, e maus
conselhos, daqueles com os quais serviram-no: como também nunca soubemos abraçar o fio de
uma verdadeira guerra; não apenas ele quer reiterar o esmaecimento acima, mas ainda quer
inferir, furtivamente, que a causa dos protestantes é mantida por Deus”, id., ibid., p.20.
367
“Prometemos e juramos empregar nossos bens e nossas vidas para a inteira execução da
resolução tomada pelos referidos estados, no que toca à manutenção a nossa referida Religião
Católica Apostólica e Romana, conservação e autoridade do nosso referido rei, bem e pacificação
da sua pátria”, apud id., ibid., p.244.
368
“Prometemos e juramos empregar nossos referidos bens e vidas para a inteira execução do que
será comandado e ordenado por Sua Majestade, após ter ouvido as admoestações dos estados
reunidos”, apud id., ibid., p.245.
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soberania dos estados gerais e o desejo de respeitar e fazer respeitar as disposições
que emanariam deles, sem a interferência do rei. A versão apresentada por
Henrique III impunha aos signatários a sua vontade. Para a Coroa, é preciso
reconduzir os ligueurs ao reconhecimento da sua autoridade e à obediência que
lhe devem. Repetindo o gesto que Carlos IX havia sido obrigado a fazer, o rei
lembra aos estados tal reconhecimento e a obrigação que os súditos têm em
relação ao monarca:
Je crois aussi, qu’il n’y a celui qui ne soit venu bien instruit et préparé pour
satisfaire à tout ce que j’ai mandé par mes commissions publiées en chacune
province, et m’assure davantage qu’il n’y a homme en cette compagnie qui n’ait
apporté le zèle et affection, qu’un bon et loyal sujet doit avoir envers son Roi et le
salut de sa patrie
369
.
A presença e a atuação de Malcontents e ligueurs nos estados reflete as
forças em confronto na França. Ambos acreditavam no recurso aos estados gerais
como forma de realizar, à revelia do rei se necessário, suas propostas de solução
para o problema das guerras de religião. Para a Coroa, a reunião havia revelado a
nova direção que os dois lados em conflito começavam a seguir: Malcontents e
ligueurs buscavam, para melhor se defenderem e atacarem mutuamente, outro
apoio que o o do rei, buscavam a autoridade dos estados gerais mesmo contra o
rei. Ameaçado pelos dois lados, Henrique III planeja aproximar-se de um deles
para poder resistir ao outro.
O avanço das ligas por toda a França havia produzido uma grande maioria
de deputados católicos eleitos para os estados. Aproveitando a concentração de
intransigentes em Blois cuja confiança no rei havia sido severamente abalada
pelo édito de Beaulieu –, Henrique III afasta-se novamente dos protestantes
moderados e dos Malcontents e faz-se líder ligueur. Sua escolha torna as decisões
do édito de Beaulieu inócuas, a reintegração dos senhores católicos malcontents
infrutífera e a liberdade acordada aos protestantes inviável. A convocação dos
estados, que para os Malcontents e seus aliados protestantes deveria servir à causa
da tolerância civil, tem o efeito contrário. Em dezembro, pouco mais de seis
meses depois de assinada a paix de Monsieur, a retomada dos confrontos no
369
“Creio também que o quem não tenha vindo bem instruído e preparado para satisfazer a
tudo que informei por minhas comissões publicadas em cada província, e me asseguro além disso
que não homem nesta companhia que o tenha trazido o zelo e a afeição que um bom e leal
súdito deve ter com relação ao seu Rei e à salvação da sua pátria”, Henri III, 1576, p.3.
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144
Poitou e na Guiana leva ao início da sexta guerra de religião. Ao lado das disputas
por meio de publicações e debates públicos, o segundo tipo de enfrentamento ao
qual faz referência o autor do Advertissement, ou Epistre a Messieurs de Paris, et
autres Catholiques de France surge mais uma vez: são os confrontos armados, a
guerra civil.
Esta, a de dezembro de 1576, serve a Henrique III. Além de controlar os
movimentos ligueurs e de reafirmar a sua autoridade, a Coroa precisava, nos
estados gerais de Blois, reabastecer seus cofres, esvaziados depois dos últimos
conflitos. A retomada dos confrontos apresenta ao rei a oportunidade de
solucionar essas três questões: em 22 de dezembro, Henrique III declara no seu
conselho que, seguindo o juramento da coroação, aceitará apenas uma religião no
reino. A maioria católica dos estados exulta.
A decisão do rei não é impensada: no dia 3 de dezembro, Pierre le
Tourneur, deputado por Paris conhecido como Versoris, havia lido aos seus
demais colegas o artigo no qual o terceiro estado da capital pedia ao rei “unir tous
ses sujets en une Religion Catholique Romaine
370
. Deputado eleito pelo terceiro
estado do Vermandois, Bodin participou dos debates, e, no seu relato sobre a
reunião de 1576, conta como então ele mesmo,
devant que opiner, lu tout haut le premier et XIIe article du cahier général de
Vermandois, qui portait qu’il plût au Roi maintenir ses sujets en bonne paix, et
dedans deux ans tenir un Concile général ou national, pour régler le fait de la
Religion
371
.
A certeza dos males que o retorno da guerra civil traria leva Bodin a insistir
em uma via pacífica para a unificação do reino. As discussões prosseguem e,
poucos dias depois do anúncio de Henrique III, os deputados decidem finalmente
por um retorno imediato à unidade religiosa. Mas a sua declaração é
surpreendente, e revela a força que a moderação ainda tinha entre eles: o
catolicismo deve ser reinstituído como única religião do reino par les plus
douces et saintes voies que sa Majesté aviserait
372
, isto é, idealmente, sem
guerra.
370
“unir todos os seus súditos em uma Religião Católica Romana”, Bodin, 1577, p.9.
371
“ao invés de opinar, leu alto o primeiro e 12º artigo do caderno geral do Vermandois, que pedia
que quisesse o Rei manter seus súditos em boa paz, e dentro de dois anos organizar um Concílio
geral ou nacional, para resolver a questão da Religião”, ibid., p.9.
372
“pelas mais doces e santas vias que sua Majestade decidiria”, ibid., p.16.
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145
No entanto, a guerra era um fato. A paz não interessava aos intransigentes
nem a Henrique III. Ela não lhe daria o dinheiro de que ele precisava para
reestruturar as finanças do reino. Apenas a guerra que era já uma realidade
traria a liberação de subsídios pelos estados, a criação de novos impostos e talvez
mesmo a permissão para a alienação de uma parte dos bens da Igreja e da Coroa.
Apesar dos protestos dos católicos radicais e do rei que argumentava que a
guerra instalada pedia medidas que não seriam atendidas com uma pacificação
imediata, e que esta portanto prejudicaria o reino –, os estados gerais de Blois se
desfazem sem alterar sua decisão pela paz. Para Henrique III, será preciso
subvencionar os exércitos em campanha com poucos recursos e alguma oposição
por parte dos deputados, que consideram sua determinação desrespeitada.
Do lado protestante, Navarra e Condé buscam de volta a aliança Malcontent.
Alençon-Anjou e Montmorency-Damville haviam no entanto sido reabilitados
pelo édito de Beaulieu e tinham se reaproximado do rei, que lhes oferece o
comando das forças reais. Eles lutarão juntamente com os duques de Guise,
Nevers e Mayenne, católicos contrários à dualidade confessional estabelecida pelo
édito de Beaulieu e favoráveis a um retorno pela força à unidade religiosa.
Destituídos dos parceiros feitos poucos anos antes, os protestantes voltam-se
então para a sua antiga organização militar. Como o rei, eles têm dificuldades
financeiras para manter seus exércitos, e, após os cercos de Issoire e La Charité e
a batalha de Brouage (vencida pelo duque de Mayenne), ambos os lados aceitam
de bom grado iniciar as negociações de paz.
O édito de Poitiers, concluído em 17 de setembro de 1577, retoma a
regulamentação da liberdade de culto estabelecida pelo de Amboise nos
subúrbios de uma cidade por bailia –, somando a ela a permissão do culto nos
locais ocupados pelos protestantes na data da assinatura do édito. Apesar de ser
bastante menos favorável aos protestantes do que o édito anterior, sem no entanto
satisfazer aos intransigentes, o de Poitiers agrada aos moderados, e parece
possível a sua aceitação pela população. Há, entre católicos e protestantes,
descontentamentos semelhantes aos que se seguiram aos éditos anteriores, mas se
experimenta uma relativa pacificação na França, que beneficia todos os
envolvidos na guerra.
Henrique III dedica-se a reabilitar as finanças francesas, enquanto as
determinações dos estados gerais de Blois (que não discutiram apenas a guerra
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146
contra os protestantes, mas também a fiscalidade do reino e a sua administração
financeira) são regulamentadas em ordenações e publicadas pelos parlamentos.
Para garantir e aprimorar a aplicação das cláusulas do édito de Poitiers, a rainha-
mãe faz, com Margarida de Valois, uma viagem pelo sul do reino. Dos encontros
com Henrique de Navarra resulta o tratado de Nérac, segundo o qual, entre outras
definições, são estendidos os privilégios da nobreza calvinista (como o direito de
culto nas propriedades dos grandes senhores), e o número de cidades sob controle
protestante, as places de sûreté, passa de oito para 22. Apesar das críticas
localizadas e da decepção católica cuja expectativa era a de ver Henrique III,
vencedor das batalhas de Jarnac e Montcontour, durante a terceira guerra civil, em
1569, eliminar o protestantismo, e que reconhecia nele depois de Poitiers um
monarca mais comprometido com a tolerância civil do que com a reunificação
religiosa do reino – não há oposição intransponível ao édito nem à paz.
A retomada dos confrontos será, de certa forma, inesperada. Partem de
Henrique de Condé os primeiro movimentos de retorno à guerra. A Picardia,
região cujo governo havia sido restituído ao príncipe pelo édito de Poitiers,
recusa-se a recebê-lo como governador. Condé e outros protestantes, em ruptura
com o grupo moderado, decidem atacar La Fère (na província picarda) e tomam a
cidade em 29 de novembro de 1579. As forças reais movimentam-se então para
bloquear o avanço protestante. É o início da sétima guerra de religião. A princípio,
nem Henrique de Navarra nem outros senhores protestantes participam com
Condé dos conflitos, preferindo manter uma posição de neutralidade. Apenas em
março do ano seguinte Navarra declarará abertamente apoio ao primo e entrará,
com seus homens, na guerra. Regiões tradicionalmente engajadas na causa
reformada, como a cidade de La Rochelle e a província do Languedoc (com as
exceções de Aigues-Mortes, Lunel e Sommière, sob o comando do filho do
almirante Gaspar de Coligny), recusam-se a tomar parte e abastecer de homens os
exércitos protestantes.
Pouco numerosos e divididos internamente, os protestantes m apenas uma
vitória importante na guerra: entre final de maio e início de junho de 1580,
Navarra cerca e toma Cahors, cidade que fazia parte do dote de Margarida de
Valois, e à qual Navarra considerava ter direito. Pouco depois, Catarina de Médici
pede ao duque de Alençon-Anjou que intervenha para acelerar as negociações
para o fim dos confrontos. Duas conferências entre o duque e Navarra, em Fleix e
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147
Coutras, decidem as cláusulas da pacificação. O tratado de Fleix é assinado por
Alençon-Anjou em 26 de novembro, as resoluções de Coutras em 16 de dezembro
e a paz (que tem o nome oficial de paix de Fleix) é confirmada pelo rei em 26 de
dezembro de 1580. Os artigos acordados nas conferências mantêm as decisões do
édito de Poitiers.
Após a sétima guerra de religião, a pacificação produz um ambiente de
tranqüilidade e retorno à normalidade semelhante àquele estabelecido depois da
sexta guerra. A continuidade dada por Henrique III aos trabalhos de reestruturação
das finanças, assim como as regulamentações que se seguem aos estados gerais de
Blois, incluindo reformas fiscais e das instituições de ensino, por exemplo, e os
anos de paz até que se inicie a oitava guerra de religião, em 1585, o frutos, e o
esforço de recuperação do reino provoca a retomada da agricultura, da indústria,
do comércio. Sobretudo, há na França um clima de tranqüilidade e a esperança de
que as guerras civis provocadas pelo cisma religioso não se repetirão mais. Em
1585, Étienne Pasquier publica uma Apologie de la paix, na qual, entre os
benefícios da paz e os males trazidos pela guerra, exalta a solidez da paz
estabelecida a partir de 1580: Voilà la Paix maintenant assurée, on a fondé ses
fondements, ils sont bons, sûrs, et ne sont prêts à être écroulés
373
.
Paradoxalmente, será a ausência de grandes confrontos internos que levará à
oitava guerra de religião. Desde a sua reintegração à corte, em 1576, o duque de
Alençon-Anjou, sem receber do rei nenhuma função de destaque além das
negociações de Fleix e Coutras, almeja um casamento com a rainha da Inglaterra,
Elizabeth I, ou o comando das províncias que, nos Países Baixos, seguem em
revolta contra a dominação espanhola. Se as negociações matrimoniais se
arrastam, em janeiro de 1579 as províncias protestantes formam a União de
Utrecht, em oposição à de Arras, estabelecida no início desse mesmo mês entre as
províncias católicas e fiéis a Felipe II. Os estados gerais da União propõem ao
duque que se torne seu príncipe e senhor”
374
. Proposta aceita, as duas partes
assinam, em 19 de setembro de 1580, um tratado estipulando os deveres e os
direitos de Alençon-Anjou, que recebe também os títulos de conde de Flandres e
duque de Brabant.
373
“Eis a Paz agora assegurada, fundamos seus fundamentos, eles o bons, seguros, e não estão
pertos de desabarem”, Pasquier, 1585, p.73
374
Jouanna, op.cit., p.292.
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148
Um texto anônimo publicado em 1582, com o tulo de Dialogue ou
pourparler de deux personnages, desquels l'un est le bien veuillant public, &
l'autre le très puissant Prince, Monsieur, le Duc d'Anjou, nostre très redouté
seigneur, explica ao duque que o dever de um bon Prince é “défendre ses sujets
de toute injure, outrage et violence, et les aimer comme le père aime ses enfants,
et le berger ses brebis, qui met sa vie en hazard pour les défendre
375
. No caso das
províncias da União, Alençon-Anjou foi escolhido porque estas acreditavam que
ele poderia protegê-las de um inimigo que rondava havia muitos anos, o rei da
Espanha e a sua imposição do catolicismo. Em 26 de julho de 1581, ao declararem
a sua independência, o que as províncias, que no panfleto anônimo eram
representadas pelo “bem público”, pediam ao duque era nous défendre, et (...)
nous délivrer de la tyrannie dont nous sommes menacés par nos ennemis
376
.
No papel de protetor da União, o duque deve fazer frente ao governador
espanhol dos Países Baixos, Alexandre Farnèse, duque de Parma. Mas sua derrota
é retumbante: mais de mil fidalgos franceses morrem em janeiro de 1583, em
Anvers, quando Alençon-Anjou tenta ocupar a cidade. Desacreditado, o duque
volta à França e busca em Henrique III os meios para retomar seu comando
holandês. O rei continua enviando fundos periodicamente ao irmão, que, depois
da derrota em Anvers, emprega-os para manter sua última conquista, Cambrai.
Pouco depois da entrevista entre os dois, o duque se retira da corte, doente.
Tuberculoso, Alençon-Anjou morre no dia 10 de junho de 1584. Com ele, termina
a dinastia Valois. O herdeiro do trono, que Henrique III não tem filhos, é o
protestante Henrique de Navarra.
375
“bon Príncipe”, “defender seus súditos de qualquer injúria, ultraje e violência, e amá-los como
o pai ama seus filhos, e o pastor suas ovelhas, que põe sua vida em risco para defendê-los”,
Dialogue ou pourparler de deux personnages, desquels l'un est le bien veuillant public, & l'autre
le très puissant Prince, Monsieur, le Duc d'Anjou, nostre très redouté seigneur, 1582, s/p.
376
“defender-nos, e (...) libertar-nos da tirania de que somos ameaçados pelos nossos inimigos”,
ibid., s/p.
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II.
As guerras de religião e os politiques: a elaboração da
tolerância como instrumento
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150
1.
1584-1589
Ligueurs x politiques
Aos 33 anos, casado nove anos com Louise de Lorraine, de 31, Henrique
III tinha ainda tempo para ter filhos. A chance remota de um rei protestante
assumir o trono, no entanto, leva as lideranças católicas intransigentes a ignorarem
essa possibilidade, e lidarem com a esterilidade do casal real como um fato.
Considerava-se que um aborto sofrido pela rainha em 1575 seria a causa da sua
infertilidade. Antes mesmo da morte de Alençon-Anjou, a sucessão real havia se
tornado um problema, pois o duque recusava qualquer casamento que lhe era
proposto, diminuindo assim gradativamente as chances de um herdeiro Valois e
de uma transmissão tranqüila da Coroa. Por volta de 1583, as ligas começam a
sugerir o nome do duque de Guise como herdeiro do trono após a morte de
Henrique III. Diversas genealogias da família lorena são publicadas, como a de
François de Rosières, autor dos Six livres des politiques, que escreve um
Stemmatum Lotharingiae ac Barri ducum (1583) no qual remete a origem dos
Guise ao Cavalo de Tróia e afirma que o trono real foi-lhes usurpado por Clodion
e Meroveu, em 429. Entre as publicações com o mesmo tema, era mais comum
fazer descender o clã de Carlos Magno, sugerindo que a sucessão de reis franceses
desde então era ilegítima. Philippe Duplessis-Mornay respondeu a Rosières, no
mesmo ano em que este publicou seu Stemmatum Lotharingiae, por um Discours
sur le droit pretendu par ceux de Guise sur la Couronne de France (1583). Nele,
o conselheiro de Henrique de Navarra conta do plano ligueur Est bien la
voix commune que ceux de Lorraine prétendent la Couronne comme héritiers de
Charles-Magne
377
–, e explica que um livre écrit en latin par un François de
Rosiers de Barleduc, Archidiacre de Thoul, et dédié à Monsieur de Lorraine
378
vai ainda mais longe e deslegitima a dinastia merovíngia. No relato de Mornay,
Rosières afirmava que a sucessão,
377
“É voz corrente que os de Lorena ambicionam a Coroa como herdeiros de Carlos Magno”,
Mornay, 1583, s/p.
378
“livro escrito em latim por um François de Rosiers de Barleduc, Arquidiácono de Thoul, e
dedicado ao Senhor de Lorena”, id., ibid., s/p.
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151
leur a été ôtée par Mérovée et ses descendants, avant toutes trois lignées
379
,
tellement que par la loi (...) tous nos Rois auraient é usurpateurs depuis le
premier jusqu’à maintenant, et aurait été le vrai héritier de la couronne Française
en la maison des Ducs de Mosellane, dont se disent issus ceux de Lorraine
380
.
A ascensão ao trono não seria portanto mais do que a justa reparação de um
crime cometido havia mais de 1150 anos. Segundo Mornay, a pretensão sobre a
Coroa, expressa pela publicação de Rosières, não era recente entre os Guise.
Desde o reinado de Henrique II, a família lorena estaria se aproximando do poder,
ocupando o governo do reino, e maquinando a sua volta ao trono. Mornay explica
que
c’est une chose commune en ce Royaume, que la maison de Lorraine s’attribue la
couronne de France, et se pourraient aisément encore recouvrer les Chroniques et
Généalogies qu’ils falsifient du temps du feu Roi Henri, les consultations qu’ils
firent tenir de leur droit sous François deuxième, et les mémoires qui furent semées
entre le peuple sous Charles neuvième, et depuis encore : iceux acheminant
toujours leurs desseins et bâtiments, selon que la ruine de ce pauvre état se
semblait avancer par les guerres civiles par le moyen desquelles le respect du
Prince légitime étant diminué, les nerfs affaiblis, et le chemin préparé à nouveauté,
ils se sont promis de s’asseoir en leur siège prétendu en déchassant ceux qu’ils en
tiennent pour usurpateurs
381
.
Os católicos intransigentes tinham portanto no duque de Guise o seu
pretendente ao trono. Henrique III, de seu lado, queria outra sucessão.
Sem um herdeiro, o rei buscou em Henrique de Navarra um príncipe
consciente do destino que aparentemente seria o seu. Certo da reação católica a
um rei protestante, Henrique III tentou por várias vezes levar Navarra de volta à
Igreja romana. Segundo Hugues Daussy,
Henri III est bien conscient que la voix des catholiques intransigeants ne va pas
manquer de s’élever. Son intention est, de ce fait, de ramener son beau-frère dans
le giron de l’Église catholique et il ne va pas attendre, on le verra, le décès de son
379
Era costume afirmar que a França tinha tido 3 “raças” de reis: os merovíngios, descendentes de
Clodion e Meroveu, os Carolíngios, descendentes de Carlos Magno, e os capetíngios, descendentes
de Hugo Capeto.
380
“foi-lhes usurpada por Meroveu e seus descendentes, antes de todas as três linhagens, tanto que
pela lei (...) todos os nossos Reis teriam sido usurpadores desde o primeiro até agora, e teria sido o
verdadeiro herdeiro da Coroa francesa da casa dos Duques de Mosellane, de que se dizem saídos
os de Lorena”, id., ibid., s/p.
381
“é coisa comum nesse Reino, que a casa de Lorena se atribua a Coroa da França, e se poderiam
ainda facilmente recuperar as Crônicas e Genealogias que eles falsificam do tempo do falecido Rei
Henrique, as consultas que eles fizeram sobre os seus direitos sob Francisco II, e as memórias que
foram disseminadas entre o povo sob Carlos IX, e depois ainda; conduzindo sempre seus
propósitos e construções, a ruína desse pobre estado parecia avançar pelas guerras civis por meio
das quais, o respeito ao Príncipe legítimo estando diminuído, os nervos enfraquecidos, e o caminho
semeado para novidade, eles se prometeram sentarem-se em seu pretenso assento expulsando os
que eles consideram usurpadores”, id., ibid., s/p.
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152
frère pour entreprendre une démarche dans ce sens. Pour convaincre le Béarnais,
le roi est d’ailleurs prêt à donner des gages de sa bonne volonté, à son égard et à
celui des huguenots
382
.
Em maio de 1584, antes da morte de Alençon-Anjou, o rei envia o duque de
Épernon, um dos seus favoris, em uma pretensa viagem de cura ao sul. O objetivo
da viagem, na verdade, é apresentar a Henrique de Navarra a posição do rei e seu
pedido de conversão. Quando acontece o primeiro encontro entre Épernon e
Navarra, no dia 13 de junho, Alençon-Anjou estava morto havia três dias. Talvez
nessa primeira conversa a notícia do desaparecimento do duque ainda não tivesse
chegado à Navarra, mas nas seguintes, e sobretudo na entrevista de 25 de junho, a
mais importante delas, o fato já era conhecido.
A morte de Alençon-Anjou torna a tarefa de Épernon mais urgente: se, pelas
determinações da lei sálica, o herdeiro do trono era Henrique de Navarra, pelo
juramento feito na coroação o novo rei deveria prometer preservar a Igreja
católica e extirpar a heresia do reino. O calvinista Henrique de Navarra não se
encaixava no papel de protetor do catolicismo contra a “heresia” que na época
afligia o reino, o protestantismo.
Uma publicação anônima de 1585 traz a descrição da reunião, fictícia, que
teria se seguido ao encontro de Épernon e Navarra. Na presença deste rei, três
conselheiros seus, o ministro da igreja reformada Mermet (chamado no texto
Marmet), o católico Antoine de Roquelaure
383
e Arnaud du Ferrier
384
, discutem a
proposta feita por Henrique III. No texto, cada conselheiro tem uma posição
bastante definida quanto à questão político-religiosa que a sucessão de Henrique
III levantava, representando, caricaturalmente, as correntes que, na França,
discutiam o problema específico do herdeiro do trono, e o problema geral das
guerras de religião. Antoine de Roquelaure apresenta uma versão sem sutilezas
das propostas do grupo dos politiques: Navarra deve se converter em aparência,
isto é, sem mudar de confissão no seu íntimo, porque a sua função de rei obriga-o
382
“Henrique III tem bastante consciência de que a voz dos católicos intransigentes não vai deixar
de elevar-se. Sua intenção é, por isso, trazer de volta seu cunhado ao seio da Igreja católica, e ele
não vai esperar, como veremos, a morte do seu irmão para empreender uma ação nesse sentido.
Para convencer o Bernês, o rei está inclusive disposto a dar garantias da sua boa vontade, no que
se referia a ele e aos huguenotes ”, Daussy, 2002, p.261
383
Oficial da Coroa da Navarra.
384
Discípulo de Michel de L’Hospital, Du Ferrier havia sido embaixador da França nos Estados
italianos, sobretudo em Veneza, no Vaticano, e no Concílio de Trento. Levado por Philippe
Duplessis-Mornay ao serviço do rei da Navarra em 1582, aos 76 anos, é nomeado garde des
sceaux da Navarra.
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153
a reconstruir a paz mas não a defender a religião. Mermet, pastor protestante,
condena a conversão de fato tanto quanto em aparência. Du Ferrier, último dos
três a falar, defende uma posição intermediária: o bernês, em princípio, não
deveria se converter, mas poderia estudar, pelas Escrituras, a religião. Sobretudo,
deveria evitar ao máximo um afastamento entre o rei e ele.
Sendo o primeiro a falar, Roquelaure faz um resumo da situação em que a
visita de Épernon deixa Navarra :
C’est un choix que le Roi notre maître doit faire. Car d’un côté, on lui propose la
grace et amitié du Roi son frère, et la faveur de toute la France, de l’autre le
courroux de sa Majesté, avec la haine de tout le Royaume : d’un côté, la puissance
de réduire ses ennemis à tel point qu’il lui plaira, de l’autre, la nécessité d’être
réduit sous leur miséricorde : d’un côté la Couronne de France, de l’autre, une
pair de Psaumes. Lequel doit-il choisir à votre avis ?
385
Roquelaure leva o leitor a acreditar que apenas uma resposta razoável
para o dilema frente a Navarra. A Mermet ele afirma que, na sua visita, Épernon
apenas aconselhava o rei
de s’accommoder à la religion de tous ses prédécesseurs, et à quitter celle que lui
avez apprise, qui l’empêchera de jouir jamais paisiblement de l’heur que Dieu lui
présente
386
.
A sua opinião é a de que Navarra deveria aceitar a sugestão do emissário de
Henrique III e converter-se, pois assim a sua volta à corte estaria assegurada, seus
inimigos seriam destruídos e seus amigos beneficiados. O afastamento dos dois
primos, diz Roquelaure, já durava muitos anos, e precisava ser remediado. A
razão para ele estava nas desconfianças múltiplas que, desde a Noite de São
Bartolomeu, caracterizavam as relações entre os protestantes e a Coroa: la
défiance a été cause de l’absence. Et tant que l’absence continuera, vous ne me
persuaderez jamais que la défiance ne continue aussi
387
.
385
“É uma escolha que o Rei nosso senhor deve fazer. Pois de um lado, propõem a ele a graça e a
amizade o Rei seu irmão, e o favor de toda a França, de outro a irritação de sua Majestade, com o
ódio de todo o Reino; de um lado, o poder de reduzir seus inimigos quanto lhe apetecer, do outro,
a necessidade de ser reduzido sob a sua misericórdia; de um lado a Coroa da França, do outro, um
par de Salmos. Qual ele deve escolher, na vossa opinião ?”, Double d'une lettre envoiée à un
certain personnage, contenante le discours de ce qui se passa au cabinet du roy de Navarre et en
sa présence, lorsque le duc d'Espernon fut vers luy en l'an 1584. 1585, p.3.
386
“acomodar-se na religião de todos os seus predecessores, e deixar a que vós lhe ensinastes, que
o impedirá de gozar pacificamente o acaso que Deus lhe apresenta”, ibid., p.4.
387
“a desconfiança foi causa da ausência. E enquanto a ausência continuar, não me persuadireis
nunca de que a desconfiança não continue também”, ibid., p.8.
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154
Reaproximados, o atual e o futuro rei seriam imbatíveis. Os Guise,
principais opositores de Navarra cuja popularidade e a influência entre os
católicos conservadores do reino eram uma ameaça à autoridade de Henrique III,
seriam os primeiros a perecer: a volta de Navarra à corte isto é, ao favor real
seria a ocasião pela qual esperava o rei para
renverser les desseins de ceux, qui tant pour la recherche de leur généalogie
divulguée et imprimée publiquement, que par je ne sais quelle populace, piaffe et
tous autres moyens pratiquent des serviteurs, ou plutôt des armées, pour
parachever les entreprises que leur Père et Oncle leur ont laissé par testament
388
.
Para atingir a vitória, Henrique de Navarra precisaria apenas se converter.
Católico, ele assumiria um lugar de destaque no reino que, segundo seus
conselheiros, por direito era seu – e, depois da morte de Henrique III, seria
incontestavelmente o novo rei. Para Roquelaure, a eminência dos ganhos
justificava uma conversão rápida, e mesmo não-sincera: il est cessaire qu’il
s’accommode à faire profession publique, de l’ancienne religion de tous ses
prédécesseurs
389
, afirma ele, e encore que le Roi notre maître ne fut Catholique
au coeur, il le doit être à la bouche et à l’extérieur
390
. Navarra deveria seguir os
exemplos que mostravam “que les grands Princes ont toujours préféré leur État à
l’exercice public de leur religion
391
.
Frente à certeza de Roquelaure, caberá aos seus dois interlocutores
contradizê-lo e apresentar outras soluções possíveis para a oferta feita por
Henrique III.
O segundo a falar é Mermet. Escandalizado com as sugestões que ouviu do
colega católico, o pastor concentra a sua argumentação na proposta de uma
conversão por interesse. “S’accommoder au fait de la religion”, diz Mermet,
c’est proprement renoncer à Jésus Christ
392
. Manter uma religião apenas
exteriormente o que significava manter outra privadamente, fazendo desta uma
388
“derrubar os propósitos dos que, tanto pela investigação da sua genealogia divulgada e impressa
publicamente, quanto por não sei que populacho, confusão e outros meios freqüenta servidores, ou
antes exércitos, para realizar so empreendimentos que seu Pai e Tio deixaram-lhes por
testamento”, ibid., p.7.
389
“é preciso que ele se acomode em fazer profissão pública da antiga religião de todos os seus
predecessores”, ibid., pp.21-22.
390
“mesmo que o Rei nosso senhor não seja Católico no coração, ele o deve ser na boca e no
exterior”, ibid., pp.22-23.
391
“que os grandes Príncipes sempre preferiram seu Estado ao exercício público da sua religião”,
ibid., pp.27-28.
392
“Acomodar-se em questão de religião”, “é propriamente renunciar a Jesus Cristo”, ibid., p.46.
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155
experiência secreta, vivida apenas au coeurera retirar dela a sua importância,
era considerar que fazer profissão de não tinha valor algum, que a palavra
estava descolada do sentimento e da vivência religiosa. A sugestão de Roquelaure,
além do mais, tornava desnecessária a reforma da Igreja, e sem sentido a luta pela
verdadeira fé, ridicularizando as conversões protestantes:
Cuidez-vous que tant d’excellents personnages eussent pris plaisir à se faire brûler
pour peu de choses ? Que tant d’autres qui ont abandonnés leurs biens, leurs états,
femmes et enfans pour suivre la religion, s’ils n’étaient bien résolus qu’il n’y va
rien moins que du salut de leur âmes?
393
A fala de Mermet é mais propriamente uma defesa da religião, da expressão
e da experiência pública da fé, do que do protestantismo. A exposição de
Roquelaure obriga-o a isso, pois, fundamentalmente, o primeiro conselheiro a
falar havia sugerido ao rei adotar uma postura não-religiosa com relação à
religião. Antes de defender a sua igreja, Mermet precisa portanto reafirmar a
importância da igreja, o seu lugar na vida pública. O terceiro conselheiro presente
à reunião, o embaixador Du Ferrier, ao ser inquirido por Navarra sobre a sua
posição no debate, resume as falas ouvidas como sendo fruto de duas mentes
distintas: Mermet recorreu às Escrituras, que são a essência da defesa da religião;
Roquelaure o que fez foi traiter de la religion autrement que par l’autorité de
l’écriture
394
. Aquele primeiro, Mermet, falou como teólogo, o segundo, como
homme d’état
395
. Pelos argumentos apresentados, Du Ferrier reconhece em
Roquelaure um politique:
il y a une autre espèce de Catholique, qui s’appelle politiques, du nombres
desquels je tiens monsieur de Roquelaure : qui ne désirent point tant que changiez
de religion pour le qu’ils aient à la leur, que pour les maux et misères qu’ils
craignent et prévoient devoir advenir, si vous ne le faites. Et ceux-ci sont d’autant
plus digne de réponse, que leur crainte procède d’une piété qu’ils ont à leur patrie,
et d’une sincère affection qu’ils vous portent Sire
396
.
393
“Vós achais que tantos excelentes personagens teriam tido prazer em serem queimados por
pouca coisa? Como tantos outros que abandonaram seus bens, seus estados, mulheres e filhos para
seguir a religião, se eles não estiverem inteiramente seguros que não se trata de nada menos do que
a salvação das suas almas?”, ibid., p.44.
394
“tratar da religião sem ser pela autoridade da Escritura”, ibid., p.66.
395
“homem de estado”, ibid., p.65.
396
“há uma outra espécie de Católico, que se chama politiques, entre os quais insiro o senhor de
Roquelaure; que não desejam tanto que mudeis de religião por zelo que eles têm à deles, quanto
por causa dos males e misérias que eles temem e prevêem deverem acontecer, se vós não o
fizerdes. E esses são tanto mais dignos de resposta pois seu temor procede de uma piedade que
eles têm pela sua pátria, e de uma sincera afeição que eles têm por vós, Senhor”, ibid., p.73
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156
Mermet se cala. Roquelaure regozija-se do apoio recebido. A sua intenção,
diz ele, o era colocar em dúvida a importância da religião na vida e na salvação
dos homens, mas apenas deslocar a discussão para o espaço que acreditava ser
próprio ao rei, e sob cuja perspectiva ela deveria ser tratada, evitando a questão
religiosa porque intransponível, pois “il appartient à Dieu seul à toucher les
coeurs
397
.
Ce que j’ai avancé, non que je ne fusse trop plus aise de le voir bon Catholique
tout à fait. Mais pour ce que si j’eusse entrepris cela, vous m’eussiez quant et
quant enclos dans la dispute de la religion, qui est un labyrinthe d’où on ne sort
jamais
398
.
O seu intuito era dar ao rei o conselho que lhe permitiria trazer de volta a
paz ao reino, pois, diz Roquelaure, “je ne cherche que la paix et bien publique
399
.
Quando à religião, “Je laisse (...) à part la dispute de la religion, jusqu’à ce qu’on
y puisse remédier par un Concile bien et légitimement assemblé
400
.
A posição de Du Ferrier, semelhante à de Roquelaure quanto à necessidade
primeira do rei de restabelecer a paz, difere dela no entanto no que tange à
conversão. Se ela fosse imediata, feita às pressas, Henrique III suspeitaria de um
gesto de puro interesse, e as desconfianças permaneceriam entre os dois. Il faut
donc chercher d’autres moyens
401
. Mantendo-se protestante apesar mesmo das
ofertas de favorecimento, Navarra provaria ao rei a sua sinceridade, e por ela
poderia aproximar-se dele. O caminho indicado era portanto
faire paraître à sa Majesté par tous vos déportements, que vous aimez ce qu’il
aime, et êtes ennemis de ses ennemis. Que vous êtes plus désireux de sa santé, de
son repos, de son contentement que du votre propre, et fuir soigneusement toutes
les occasions de soupçon, jalousie ou défiance. Cela étant, ne doutez point qu’il ne
vous aime plus que si vous étiez le plus grand Catholique de France
402
.
397
“compete apenas a Deus tocar os corações”, ibid., p.23.
398
“O que apresentei, não que eu não preferisse vê-lo bom Católico inteiramente, mas porque se eu
tivesse proposto isso, vós me teríeis ao mesmo tempo prendido na discussão sobre a religião, que é
um labirinto do qual não se sai nunca”, ibid., p.23.
399
“eu busco apenas a paz e o bem público”, ibid., p.21.
400
“eu deixo (...) de lado a discussão sobre a religião, aque se possa remediá-la por um Concílio
bem e legitimamente reunido”, ibid., pp.21-22.
401
“É preciso então buscar outros meios”, ibid., p.68.
402
“fazer parecer à sua Majestade por todos os seus gestos, que vós amais o que eles ama, e sois
inimigo dos seus inimigos. Que desejais mais a sua saúde, a sua tranqüilidade, o seu
contentamento do que o vosso próprio, e fugir cuidadosamente todas as ocasiões de suspeita,
ciúme ou desconfiança. Isso posto, não duvidai que ele o vos ame mais do que se fosses o mais
Católico da França”, ibid., p.68.
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157
Uma religião e outra ne concernent que le salut de vos âmes
403
, e decidir
entre elas não interferiria na forma como os súditos amariam e obedeceriam ao rei
justo e virtuoso.
Ainsi sera-t-il de vous, Sire, si vous êtes bon Prince que le Catholique et le
Huguenot ait occasion de se contenter de vous, l’un et l’autre vous aimera, et vous
obéira fidèlement. Si au contraire vous faites, croyez qu’il n’y a religion au monde
qui puisse persuader un peuple que le Prince soit aimé de Dieu, ni homme de bien
duquel il est mal traité
404
.
O debate entre Roquelaure, Mermet e Du Ferrier vai destarte da conversão
por interesse, e de aparência, à afirmação de que o pertencimento religioso era
determinante, passando por uma não-conversão que, no entanto, evitava indispor-
se com o rei e acreditava mesmo que a solução para Navarra (que o era outra
senão a solução para a França) era a coexistência de católicos e protestantes.
Ainda que Du Ferrier credite a opinião de Roquelaure ao partido dos politiques, é
a sua própria posição a que mais se aproxima daquela desenvolvida por este grupo
desde a chancelaria de Michel de L’Hospital. A morte de Alençon-Anjou e as
discussões sobre a sucessão real representaram uma mudança significativa no
cenário de crise aberto na França pela Reforma, introduzindo uma transformação
na dinâmica do conflito: aos três partidos básicos o católico intransigente, o
protestante e o real –, que vinham recebendo adesões pontuais, como a dos
Malcontents, soma-se um quarto partido, o dos politiques.
Apesar de participarem das discussões acerca da crise aberta pela Reforma
desde 1560, os politiques tornaram-se um grupo, e depois um partido
incontornável no debate, apenas na década de 1580. Antes dela, a sua presença era
sentida na defesa de idéias como a da tolerância civil. Sem serem o partido
dominante, os politiques haviam feito parte do governo de L’Hospital em 1589
o autor de La Vie et condition des politiques et athéistes de ce temps perguntará:
quel Chancelier aviez vous ? n’était-ce pas un politique allait-il pas à la Messe
et ne l’aimait pas, et trahissait Jésus Christ?
405
–, e estiveram envolvidos nas
decisões de Catarina de Médici e Carlos IX após o afastamento do chanceler,
403
“concernem apenas a salvação das nossas almas”, ibid., p.68.
404
“Assim será convosco, Senhor, se fordes bom Príncipe, se o Católico e o Huguenote tiverem
ocasião de se contentarem convosco, um e outro vos amará, e vos obedecerá fielmente. Si fizerdes
o contrário, crede que não religião no mundo que possa persuadir um povo de que o Príncipe
seja amado por Deus, nem que seja homem de bem quando maltrata”, ibid., p.83.
405
“que Chanceler tínheis? não era ele um politique, não ia à missa sem amá-la, e traía Jesus
Cristo?”, Dieudonné, 1589, p.19.
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defendendo, nas discussões contemporâneas, a necessidade da paz frente ao caos
produzido pelas guerras, e do fortalecimento da autoridade do rei. São essas duas
propostas somadas que levam os politiques a desenvolverem a idéia de que a
ampliação dos conflitos, a partir da década de 1550, e o início e a repetição das
guerras civis depois de 1562 – apesar das várias tentativas de pacificação –
deviam-se à inadequação da perspectiva segundo a qual o problema era
apreendido.
A sua filosofia passará então a conceber uma outra via de ação. Onde a
ordem tinha sido a da reunião dos franceses em uma Igreja, extinguindo o
protestantismo no reino, os politiques irão propor uma reunião cuja base era o
pertencimento ao reino, que significava sujeição ao rei, e o adiamento
provisório da questão religiosa em favor de uma solução pontual para a guerra
civil. Henri Hauser explica que
c’est de l’horreur même et de l’inutilité de la guerre civile que, dans la France
meurtrie, et menacée de destruction, sort le parti des « Politiques », de ceux qui
mettent la polis au-dessus de tout. Puisqu’il est impossible de réaliser l’unité
religieuse de l’État, il faut se résigner à ce pis aller, laisser cœxister, au moins
provisoirement, deux religions en un État
406
.
Aliados a Henrique de Navarra, os politiques estarão profundamente
envolvidos nos debates e nos confrontos da oitava guerra de religião, formando
progressivamente um clima favorável à tolerância civil, resumida e aplicada pelo
édito de Nantes, de 1598.
Apresentada publicamente por Michel de L’Hospital em 1561, a idéia da
tolerância será inicialmente mal vista pela maioria das lideranças civis e religiosas
e da população francesa. Seus pressupostos eram a argumentação favorável à
liberdade de culto e de consciência. Essa não era uma posição banal. Custou-lhes,
em primeiro lugar, o nome: o epíteto politiques foi-lhes dado pelos seus
adversários, que consideravam o termo sob uma perspectiva negativa. O político
estava relacionado ao que o era da religião e não concebia o mundo nem sua
ordem como emanando dela. Quando se acredita que pode haver uma religião,
e que esse é o bem supremo a proteger, admitir que há outro maior, o bem
comum, é por si só heresia. Antes, portanto, de se poder mesmo defender a
406
“é do horror mesmo e da inutilidade da guerra civil que, na França ferida, e ameaçada de
destruição, sai o partido dos Politiques”, dos que colocam a polis acima de tudo. Posto que é
impossível realizar a unidade religiosa do Estado, é preciso resignar-se a esse mal menor, deixar
coexistirem, ao menos provisoriamente, duas religiões em um Estado”, Hauser, 1963, p.48.
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existência de uma segunda religião, conceber outra instância acima da religião era
já pecado suficiente.
Quando explodem as primeiras guerras civis, o adjetivo politique ganha um
sentido eminentemente pejorativo; ele se refere a homens que, aparentemente,
mantêm-se indiferentes ante à crise religiosa aberta pela Reforma protestante, e
que são, às vezes, tidos por ateus. Em 1573, o primeiro presidente do parlamento
de Rouen declara, aos estados da Normandia, que on a nouvellement introduit et
interprété ce mot politique quasi: n’étant d’aucune religion
407
. Em 1564, o
cardeal de Granvelle dizia do almirante Gaspar de Coligny:
Bien suis-je pour moi en opinion que spécialement l’Amiral se soit plus servi de la
religion pour prétexte, et pour faire ses affaires et parvenir à ses desseins (...) et le
tiens pour plus politique, comme ils appellent en France, que pour dévot
408
.
E ainda, em 1569, Gabriel de Saconay, cônego da catedral de Saint-Jean, no
seu Discours des premiers troubles advenus à Lyon, explica que
ainsi conduisaient leurs menées ces politiques mondains, c’est-à-dire, en bon
français, qu’ils n’ont cure de Dieu ni de religion aucune, mais seulement de
poursuivre leurs desseins selon leurs ambitieuses fantaisies
409
.
Vinte anos mais tarde, em 1589, a divergência entre católicos intransigentes
e politiques havia se tornado central nas guerras de religião. Nesse ano, Henrique
de Navarra declara: Aujourd’hui c’est résie, que d’être Politique
410
. Entre as
inúmeras publicações em que aqueles primeiros descreviam essa nova espécie de
heresia está La Vie et condition des politiques et athéistes de ce temps, de
Dieudonné, que descreve minuciosa e longamente o significado da palavra, os
inícios do partido e seus propósitos:
Il faut parler de nos Athéistes Politiques. Mais parce que ce nom comme beaucoup
d’autres qui étaient en rang d’honneur par la nécessité des injures en a été dejecté
et est entré en mépris, que je vois beaucoup de nos Requatholiqués Royaux faire
les Ignorants : Avant que passer plus outre je leur en ferai une petite et sucinte
description, cela ne nuira aucunement à ce que je prétend vous dire. Le Politique
de notre temps donc est un traître qui sous couleur de sainteté commet toutes les
ordures et les méchancetés du monde, est habillé de la peau de l’Agneau, et
407
“recentemente se introduziu e interpretou essa palavra politique assim: não sendo de nenhuma
religião”, apud Jouanna, op.cit., p.256.
408
“Sou da opinião de que o Almirante especialmente se serviu da religião como pretexto, e para
concluir seus negócios e realizar seus objetvos (...) e o tenho mais por politique, como eles
chamam na França, que por devoto”, apud Jouanna, op.cit., p.256.
409
“Assim conduziam suas tramas esses politiques mundanos, quer dizer, em bom francês, que
eles não se importam com Deus nem com nenhuma religião, mas somente em perseguir seus
objetivos segundo suas ambiciosas fantasias”, Saconay, 1569, s/p.
410
“Hoje é heresia ser Politique, Henri IV, 1589-a, s/p.
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néanmoins est loup enragé sous l’accoutrement qui a appris de longtemps sous ces
trahisons de cour à piper tout le monde : Au lieu de favoriser les gens de vertu :
qui les détruit, s’il en voit l’occasion : qui établit toutes personnes près de lui et
aux charges publiques qu’il connaît être sans consciences et sans religion, qui
sauront porter et dorer une fausse accusation, un faux témoignage, donner une
fausse sentence aux dépends de l’innocent, que monsieur le Politique aura à contre
coeur (...) Qui va à la Messe, ne parle extérieurement que de Dieu, que de rétablir
les temples, qui déteste les hérétiques qui n’aime toutefois Dieu ne va à la Messe
que pour se truffer et pour nous ôter le jugement de sa méchanceté, que ne délibère
en son conseil que d’établir en France l’hérétique (...). Qui se protestait
Catholique et néanmoins faisait venir une fourmilières de cette vermine de Reîtres
athéistes pour nous égorger. (...) Voilà en bref que c’est qu’un politique cette
maladie cachée, intérieure, et très rilleuse qui nous gâte. (...) Venons à nos
jours : fussent point les Politiques qui gardèrent que cette seconde Genève la
Rochelle ne fut réduite, qui doute qu’elle n’eut éenlevée ? (...) Tu en as eu tyran
et ta vermine de Machiaveliste les trésors et notre bon Prince le Duc Daumalle y
reçu son chapeau de martyre ne fut-ce pas là que fut résolue la mort par
empoisonnement, de feu, Charles neuvième ? Parce qu’il avait tant en horreur
cette vermine et commençait à avoir l’âge et le discours de discrétion qui lui faisait
reconnaître qui étaient les traîtres de Politiques et ne s’en voulait finir ? (...)
Qu’ont fait depuis ce temps les Politiques ? qui a ruiné le peuple sous cause fausse
par tant d’horribles et tyranniques inventions ? (...) Qui a chassé nos Princes,
bourrelé les gens de bien, causé la paix avec l’hérétique élevé, et enflé le huguenot,
fait venir les reîtres en France, que l’on tenait pour ruinée ? ont-ce pas é les
politiques ? Je serais trop long à représenter les maux qui nous sont venus de cette
vermine de politiques : je dirai toutefois encore qu’aux pervers et détestables
conseils de ces Politiques, il était résolu que la ville de Paris serait incendiée et les
Princes Catholiques et bons bourgeois zélés cruellement mis à mort, et de tous
les gens de la campagne et des autres villes. (...) Les Politiques (...) ils parlent bas,
ils voudraient bien que l’on cru qu’ils sont des nôtres
411
.
411
“É preciso falar dos nossos Ateus Politiques. Mas porque esse nome, como muitos outros que
estavam em categoria honrosa, pela necessidade das injúrias foi enjeitado e entrou em desprezo,
pois vejo muitos dos nossos Recatolicizados Reais fingirem-se de Ignorantes. Antes de passar para
outra coisa, eu farei deles uma pequena e sucinta descrição, o que não atrapalhará em nada o que
pretendo lhes dizer. O Politique do nosso tempo, portanto, é um traidor que sob figura de santidade
comete todas as baixezas e maldades do mundo, veste-se com a pele do Cordeiro, e no entanto é
lobo raivoso sob o atavio que aprendeu muito tempo sob essas traições de corte a marcar todo
mundo. Em lugar de favorecer as pessoas virtuosas: que as destrói, se encontra ocasição: que
estabelece todas as pessoas perto dele e nos cargos públicos que ele sabe serem sem consciência e
sem religião, que saberão manter e dourar uma falsa acusação, um falso testemunho, dar uma falsa
sentença às custas do inocente, que o senhor Politique tiver a contragosto (...) Que vai à Missa,
fala externamente apenas de Deus, de reconstruir os templos, que detesta os hereges, que ama
entretanto Deus e vai à Missa apenas para se pavonear e para nos suprimir o julgamento da sua
malvadeza, que delibera no seu conselho sobre estabelecer o herege na França (...) Que se
protestava Católico e no entanto fazia vir um formigueiro desses vermes de Mercenários ateus para
nos degolar. (...) Eis brevemente o que é um Politique, essa doença escondida, interior, e muito
perigosa que nos estraga. (...) Venhamos aos nossos dias: não foram os Politiques que impediram
que essa segunda Genebra La Rochelle fosse reduzida, que dúvida que ela teria sido tomada? (...)
Tiveste, tirano, e teu verme de Maquiavelista, tesouros e nosso bom Príncipe o Duque d’Aumale
recebeu o seu chapéu de mártir, o foi que foi decidida a morte por envenenamento do
falecido Carlos IX? Porque ele tinha tanto horror desse verme e começava a ter a idade e o
discurso de discrição que o fazia reconhecer quem eram esses traidores Politiques, e não queria
desfazer-se deles? (...) O que fizeram depois disso os Politiques? quem arruinou o povo sob falsa
causa, por tantas horríveis e tirânicas invenções? (...) Quem expulsou nossos Príncipes, atormentou
as pessoas de bem, negociou a paz com o herege rebelado, e inflamou o huguenote, vez virem os
mercenários à França, que nhamos por arruinada? não foram os politiques? Eu me alongaria
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Por outro lado, politique ele mesmo, Étienne Pasquier dava uma
interpretação diferente para o novo uso da palavra. Em 1560, o jurista e
historiador havia publicado, ao fim do primeiro livro das suas Recherches de la
France, o opúsculo Pourparler du Prince, em que quatro personagens discutiam
qual seria a natureza do poder. No debate imaginado por Pasquier, era o Politic
que apresentava e defendia a opinião de que a função do rei era dedicar-se a suprir
as necessidades dos seus súditos, empenhando-se no que fosse útil ao reino, e o
aos seus próprios interesses. Opondo-se às opiniões do Philosophe, do Escolier e
do Courtizan (por vezes chamado de Curial), o Politic resumia seu argumento
acerca do papel do príncipe com os seguintes termos:
Cette conclusion est bonne, et qui être engravée en la tête des Princes, que
toutes choses sont mauvaises en un Roi, qui n’avise pas le bien public (...) car tout
le but, dessein, projet, et Philosophie d’un bon Roi, ne doit être que l’utilité de son
peuple
412
.
O politique aparece então no Pourparler du Prince como um conhecedor
privilegiado da arte de governar, analisando os mecanismos do poder como um
técnico, e servindo-se do seu conhecimento para atingir o que considerava ser o
objetivo dos governos humanos: garantir a paz e o bem comum. Este politique é
uma derivação da police segundo o entendimento que também se tinha dela ainda
em 1567, quando um tratado assinado por um certo Guillaume de la Perriere,
intitulado Le Miroir politique, descreve assim a origem da palavra e o seu
significado:
Police est une diction dérivée de politeia diction Grecque, que nous pouvons
interpréter en notre langue Civilité. Et ce que les Grecs appellent Gouvernement
Politique, les latins l’appellent Gouvernement de République ou Civile société.
Toutes cités & civiles sociétés sont constituées à cause & pour grâce de parvenir à
quelque bien. Car tous ceux qui entr’eux font alliance & confédération de société,
ils font le tout pour l’amour de parvenir à ce qui leur semble bon, utile, joyeux ou
honnête. Faut donc nécessairement conclure que toutes cités & civiles sociétés sont
demais para representar os males que nos vieram desse verme politique: diria no entanto ainda que
pelos perversos e detestáveis conselhos desses Politiques, estava decidido que a cidade de Paris
seria incendiada e os Príncipes Católicos e bons burgueses zelosos cruelmente mortos, e depois
toda a gente do campo e das outras cidades. (...) Os Politiques (...) falam baixo, eles queriam
mesmo que achássemos que eles eram dos nossos”, Dieudonné, op.cit., pp.17-22.
412
Essa conclusão é boa, e deveria ser gravada na cabeça dos Príncipes, que todas as coisas são
más em um Rei, que não visa o bem público (...) pois todo objetivo, intenção, projeto e Filosofia
de um bom Rei, deve ser apenas a utilidade do seu povo”, Pasquier, 1560, p.233.
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pour aucun bien constituées, & pensent toutes que pour leur assemblement elles
puissent parvenir à quelque bien
413
.
Segundo o Miroir politique, política e seus derivados remetiam
originalmente aos assuntos da República, da sociedade civil. E o seu sentido, a sua
função, a sua razão de ser era relacionado ao bom funcionamento da cidade. No
século XVI, o que caracterizava a abordagem política era o fato de ela ser
essencialmente humana e pragmática, significado que será, do decorrer das
guerras de religião, experimentado na forma do desligamento entre as
necessidades do Estado e as da Igreja. Progressivamente, duas interpretações
distintas e opostas da política serão construídas nesse período: por um lado, os
católicos conservadores desenvolverão um entendimento negativo do termo, em
que a atitude política é aquela que desconsidera as questões que dizem respeito à
religião. Por outro, os politiques julgarão positiva a interpretação segundo a qual o
problema da religião não cabia aos homens solucionar, e, ao contrário, o da
sociedade civil era da sua inteira responsabilidade, pois, para eles, tornava-se
imperativo o restabelecimento da ordem no reino, mesmo que a isso
correspondesse admitir dentro dele uma segunda confissão. Segundo Arlette
Jouanna, por volta de 1580,
l’adjectif politique, rarement substantivé, désigne l’attitude intellectuelle qui
consiste à considérer les sociétés d’un point de vue purement humain,
« technique » en quelque sorte, en mettant entre parenthèses (mais sans les nier)
leurs finalités spirituelles
414
.
Em 1584, quando morre o duque de Alençon-Anjou, um grupo específico de
católicos
415
, que nas últimas décadas havia se aproximado dos protestantes
413
Police é uma dicção derivada de politeia dicção grega, que podemos interpretar na nossa
língua como Civilidade. E o que os gregos chamam Governo Político, os latinos chamam Governo
da República ou sociedade Civil. Todas as cidades e sociedades civis são constituída por causa e
objetivo de realizar algum bem. Pois todos aqueles que fazem entre si aliança e confederação de
sociedade fazem-no por amor de realizarem o que lhes parece bom, útil, feliz ou honesto. É preciso
portanto concluir necessariamente que todas as cidades e sociedades civis o constituídas para
algum bem, e pensam todas que pela sua reunião elas podem realizar algum bem”, Perriere, 1567,
s/p.
414
“o adjetivo politique, raramente substantivado, designa a atitude intelectual que consiste em
considerar as sociedades de um ponto de vista puramente humano, “técnico” de certa forma,
colocando entre parênteses (mas sem negá-las) as suas finalidades espirituais”, Jouanna, op.cit.,
pp.254-256.
415
Na sua imensa maioria, os politiques eram católicos, mas havia protestantes que,
compartilhando as suas idéias (e sobretudo a lógica da necessidade urgente da paz que estavam
elaborando), haviam se juntado a eles na defesa da noção de tolerância civil. O melhor exemplo
desses protestantes, fiéis companheiros de Henrique de Navarra, é Philippe Duplessis-Mornay,
que, para Joseph Lecler, “parle et écrit souvent comme un Politique (Lecler, op.cit., p.510).
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moderados e de Henrique de Navarra e que acreditava na distinção em termos de
função e portanto na separação necessária entre Igreja e Estado, é designado com
repulsa pelo partido católico como politique. Para se oporem à possibilidade de
um príncipe protestante suceder a Henrique III, os católicos intransigentes
apóiam-se nas ligas nobiliárquicas e plebéias, voltando suas críticas especialmente
contra esse partido. Segundo Bernard Cottret, “la mort de François d’Anjou-
Alençon, en 1584, avait constitué un tournant important, en entraînant une
radicalisation sans pareille du mouvement ligueur
416
, que identifica nos
politiques o inimigo a combater primordialmente.
Para as ligas, considerar uma situação sob uma perspectiva política
significava considerá-la por um ângulo o-religioso, mais: era ter sobre ela um
entendimento que era anti-religioso. A idéia de que ao príncipe cabia ocupar-se do
Estado, e não da religião, estava certamente de acordo com a perspectiva
politique, mas a Liga esforçava-se em divulgar a imagem sugerida por afirmações
como a que o autor do Double d’une lettre pôs na boca de Roquelaure, a quem
chamou de politique: ao dizer cruamente que les grands Princes ont toujours
préféré leur État à l’exercice public de leur religion
417
, Roquelaure, católico
aliado a Henrique de Navarra, encarnava o personagem ateizante que os católicos
intransigentes pretendiam enfrentar.
Os politiques eram assim o pior inimigo a combater segundo um panfleto
citado por Arlette Jouanna, encore pires et plus dangereux que les hérétiques
418
.
Eram católicos que se recusavam a lutar pela sua religião, preferindo submetê-la à
ameaça protestante a defendê-la, por considerarem mais importantes as
necessidades do Estado afirmação em que os católicos intransigentes não
acreditavam, alegando em relação aos politiques o que haviam dito sobre os
protestantes e os Malcontens, isto é, que eles lutavam apenas pelos seus próprios
interesses. As ligas, ao contrário, agiam pelo bem comum que para elas era o bem
da religião: sem Igreja, não havia francês a salvo da heresia e do inferno. Para os
politiques, o bem comum era outro, era o desenvolvimento do reino na direção da
Depois da conversão de Navarra ao catolicismo, o partido dos politiques e o partido de Navarra
confundir-se-ão.
416
“a morte de François d’Anjou-Alençon, em 1584, havia constituído uma viragem importante,
levando a uma radicalização sem igual do movimento ligueur”, Cottret, op.cit., p.141.
417
“os grandes Príncipes preferiram sempre seus Estados ao exercício público da sua religião”,
Double d'une lettre..., op.cit., pp.27-28.
418
“ainda piores e mais perigosos do que os hereges”, Mémoire du 23 août 1568 apud Jouanna,
op.cit., p.175.
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manutenção da segurança, da paz e da estabilidade civil, era a afirmação do
interesse maior da república, da função do rei de agir “pour le bien de cet État”
419
,
e da relação particular que ligava o Estado aos cidadãos, relação cujo fundamento
não era a religião e cujo sentido não era defendê-la, mas defender a eles, cidadãos
franceses, nas suas necessidades seculares, e ao reino.
Para atacar os politiques, para desacreditá-los, o partido católico recorre à
publicação de panfletos, libelos, tratados, epístolas e diálogos em que o grupo é
retratado ao mesmo tempo como inimigo da religião e do reino o seu objetivo,
terreno, é o oposto do objetivo sagrado que os católicos conservadores defendiam
para o rei. Serão dessa forma as ligas as responsáveis pela reunião dos politiques
em um partido, além de dar-lhes o apelido, pois para responder aos seus ataques,
também os politiques publicarão panfletos, libelos, tratados, epístolas e diálogos
contra a intransigência católica, definindo assim suas linhas de ação e uma
filosofia política particular.
Desde antes da morte de Alençon-Anjou, o partido católico preparava-se,
como também se preparavam Henrique III e os politiques, para enfrentar a
eventualidade de um herdeiro protestante para o trono francês. Em 31 de
dezembro de 1584 os Guise assinavam com os enviados de Felipe II o tratado de
Joinville, no qual ficava definido que o herdeiro do trono a ser apoiado pela Liga
seria o cardeal de Bourbon, e que a Espanha enviaria mensalmente 50 mil escudos
para a manutenção da Liga
420
. A partir de então as publicações contra Henrique
III, Navarra e os politiques tornam-se mais freqüentes. As genealogias, que
haviam começado a circular em 1583, multiplicam-se. Duplessis-Mornay escreve
outra resposta às publicações que defendiam o direito dos Guise à Coroa, fazendo
menção novamente ao texto de Rosière, “ce livre (...) publié à Paris et par toute la
France
421
,
il y a quatre ou cinq ans composé par un des Rozieres Archediacre de Toul, auquel
par passages faux et supposés et tirés outre et contre leur sens, Ledit des Rozieres
tâche d’éprouver que ceux de cette maison sont descendus de Pharamond et de
ligne en ligne continués jusqu’à eux, c’est à dire, que cette Couronne leur
appartenait devant que Capet, Charles, et Mérovée et leurs races fussent jamais
appelés à la Couronne
422
.
419
“para o bem deste Estado”, Double d'une lettre..., op.cit,. pp.22.
420
Mariéjol, op.cit., p.267.
421
“esse livro (...) publicado em Paris e por toda a França”, Mornay, 1585, p.5.
422
“há quatro ou cinco anos composto por um des Rozieres Arquidiácomo de Toul, no qual por
passagens falsas e supostas e excluídas e contra os seu sentido, o dito des Rozieres trata de provar
que os dessa casa são descendentes de Faramundo, e de linha em linha contínua até eles, quer
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Os Guise ainda tinham, diz essa Responce aux declarations & protestatios
de Messieurs de Guise, faictes sous le nom de Monseigneur le cardinal de
Bourbon, pour justifier leur injuste prise des armes
423
, de Mornay, o mesmo
propósito que os guiava desde o reinado de Henrique II: tomar a Coroa. Com esse
intuito haviam criado a Liga, cette Ligue (qu’ils appellent Sainte)”, e que fazia,
de uma feinte dévotion, une vraie conjuration contre l’État
424
. Publicações
como a de Rosières somavam-se ao discurso ligueur para construir os vains
prétextes
425
que os católicos intransigentes apresentavam para justificar a sua
ação. A todo momento ils prient le Roi de ne point mal penser d’eux
426
, e
asseguram-no que c’est pour son bien, qu’ils n’ont tous juré que son service
427
.
Mas a quantidade deprotestations
428
apresentada pelos Guise a cada movimento
armado era transformada por Mornay em uma prova da desonestidade do partido
católico. Segundo ele, as justificativas oferecidas variavam de acordo com o
público que se queria atingir:
Aux unes ils jurent l’extirpation de la Religion contraire, aux autres n’en sonnent
mot (...) Aux unes ils veulent que le Roi nomme un successeur en son État, aux
autres ils laissent cet article en arrière
429
.
Tal inconstância na verdade seria apenas fruto da necessidade de conquistar
adesões a uma causa que o estava exposta em nenhum desses discursos
(acusação que também a Liga fará contra os politiques). Por mais que o partido
católico intransigente repetisse a sua motivação, e quantos fossem os argumentos
empregados para embasá-la, os franceses não deveriam se deixar enganar, pedia
Mornay, pois
la vraie cause c’est l’ambition de gouverner et de régner, c’est la dissipation de
notre État pour en emporter une pièce, et y introduire l’Étranger, c’est une
dizer, que essa Coroa lhes pertence antes que Capeto, Carlos e Meroveu e suas raças fossem
chamadas à Coroa”, id., ibid., p.5.
423
A Responce teve pelo menos oito edições em 1585, sete delas com o título de Advertissement
sur l'intention et but de Messieurs de Guise en la prise des armes. A Responce é mais longa do que
as demais edições, trazendo ao final uma exortação em favor da Coroa e contra os Guise intitulada
Ce sont les premiers Espagnols Français.
424
“devoção fingida, uma verdadeira conjuração contra o Estado”, id., ibid., p.67.
425
“vãos pretextos”, id., ibid., p.62.
426
“eles rogam ao Rei que não pense mal deles”, id., ibid., p.64.
427
“que é pelo seu bem, que eles juraram todos apenas o seu serviço”, id., ibid., p.64.
428
“protestações”, id., ibid., p.19.
429
“Em umas eles juram a extirpação da Religião contrária, nas outras o dizem palavra (...) Em
umas eles querem que o Rei nomeie um sucessor no seu Estado, nas outras deixam esse artigo para
trás”, id., ibid., pp.19-20.
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continuation du dessein qu’ils ont eu de longtemps, et duquel les mémoires furent
découverts dès l’an cinq cent soixante seize
430
, et lequel se manifeste aujourd’hui
plus clairement selon qu’il s’approche plus de l’exécution, et nous du danger
431
.
Os estrangeiros a que Mornay faz alusão são os espanhóis, que desde a
entrevista de Bayonne, em 1565, e sobretudo depois da assinatura do tratado de
Joinville, em 1584, eram suspeitos pelos huguenotes de planejarem a eliminação
de todos os protestantes da Europa, a começar pela França e pelos Países Baixos.
Incentivado por Felipe II, o partido católico intransigente usava a religião como
uma desculpa para fazer, de uma guerra movida por interesses pessoais, uma
cruzada contra a heresia.
La Religion leur servait de sujets à entretenir ces misères civiles, et ne
s’appercevait-on du premier coup qu’ils abusaient sous ce beau titre de la dévotion
de nos Princes et du zèle de notre nation à leurs desseins
432
.
A verdadeira intenção dos Guise e de seus partidários vinha se tornando
progressivamente mais clara, segundo Mornay, depois da morte de Alençon-
Anjou. A iminência da crise em que a falta de um herdeiro direto deixava o reino
tornava mais violentas as afirmações da Liga sobre Henrique de Navarra e sobre a
sucessão de Henrique III, or Dieu ayant retiré de ce monde Monseigneur frère
du Roi, ils pensèrent que la saison était venue qu’ils devaient penser à l’effet de
leurs anciens desseins
433
. Quanto a Navarra, o partido católico insistia no fato de
ele ser um “herege”, e concluía que, sob o seu comando, a religião seria destruída.
A quem afirmava que Navarra era o herdeiro legal do trono, segundo a lei sálica,
os ligueurs propunham em seu lugar o cardeal de Bourbon, que, tio de Navarra,
tinha um grau de parentesco mais próximo de Henrique III
434
. Depois do tratado
430
Mornay faz referência aqui ao manifesto feito pela Liga durante os estados gerais de Blois, em
1576.
431
“a verdadeira causa é a ambição de governar e reinar, é a dissipação do nosso Estado para levar
um pedaço, e introduzir o Estrangeiro, é uma continuação da intenção que eles têm muito
tempo, e cujas memórias foram descobertas desde o ano de 1576, e que se manifesta hoje mais
claramente dado que mais ele se aproxima a execução, e nós do perigo”, id., ibid., pp.62-63.
432
“A Religião servia de motivo para realizarem essas misérias civis, e nãos nos apercebíamos de
início que eles abusavam sob esse belo tulo da devoção dos nossos Príncipes e do zelo da nossa
nação pelos seus propósitos”, id., ibid., pp.7-8.
433
“ora Deus tendo levado desse mundo Monseigneur irmão do Rei, eles pensaram que a estação
tinha chegado, que eles deveriam pensar no efeito dos seus antigos propósitos”, id., ibid., p.19.
434
Navarra e Henrique III eram parentes em 21º grau. O cardeal de Bourbon, por ser da geração
anterior na casa dos Bourbon, tinha um grau a menos o separando do rei (o ascendente comum de
Navarra, do cardeal e de Henrique III era Luís IX). Ao indicar o cardeal como sucessor de
Henrique III, o partido católico intransigente desenvolve a teoria da sucessão por proximidade,
preterindo, em prol dessa, a regra da primogenitura. De acordo com a lei sálica, o herdeiro do
trono era o parente, homem, mais próximo do rei morto pela linha direta dos primogênitos
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de Joinville assinado com Felipe II, a Liga pretendia conseguir do rei a nomeação
do cardeal como seu herdeiro legítimo desde logo. Para Mornay parecia estranho
que, sendo o rei tão jovem e saudável, se quisesse definir a sua sucessão; e
sobretudo sendo o suposto herdeiro 28 anos mais velho do que Henrique III em
1585, o cardeal tinha 62 anos, e o rei, 34. Segundo o autor, havia apenas uma
forma de explicar a proposta dos Guise, a mesma, aliás, que poderia ser aplicada a
qualquer iniciativa sua:
s’armer dès cette heure pour une chose naturellement si lointaine, (...) qui peut-
être de vingt ou trente ans ne nous peut arriver, et sous ce prétexte mettre cet état
en feu, (...) c’est une trahison à cet état, c’est une conjuration contre le Roi
435
.
A resposta da Liga às acusações de Mornay é rápida. No mesmo ano de
1585 Pierre d’Épinac, arcebispo de Lyon, publica uma Response de par Messieurs
de Guyse à un advertissement. Sua primeira preocupação era reafirmar a lealdade
dos Guise ao rei, e concluir daí que aqueles que os difamavam eram, eles, os
verdadeiros inimigos do reino e da religião. Segundo Épinac, mesmo que, desde
Francisco I até o presente Henrique III, a Coroa, os parlamentos e o povo tenham
sempre perseguido e derrotado os da prétendue religion
436
, estes continuavam
afirmando que eram os Guise os responsáveis pela repetição dos conflitos, e
queriam desacreditá-los, e a todos os bons franceses que haviam lutado ao seu
lado contra os protestantes, acusando-os de serem criminosos de lesa-majestade.
A intenção dos Guise, très humbles sujets et serviteurs qu’ils sont du Roi
ses proches parents ses plus fidèles Conseillers
437
, havia sido sempre e
unicamente a de defender ao mesmo tempo a religião e o rei. Era verdade, diz
Épinac, que alguns mal-intencionados alegavam que a família lorena usava a
questão religiosa como um pretexto para atingir supostos interesses particulares.
homens. Eram 20 gerações entre o cardeal de Bourbon e o rei, e 21 entre ele e Navarra. Mas o
cardeal não era o primogênito entre os seus irmãos o mais velho era Antoine de Bourbon, pai de
Henrique de Navarra, e o seguinte era o príncipe de Condé, pai do companheiro de luta e primo de
Navarra. Apesar de ter um laço de parentesco mais próximo do que este último, portanto, o cardeal
não era, pela lei sálica, herdeiro do trono, dado que o direito de primogenitura apontava como
primeiro príncipe de sangue Antoine de Bourbon, e, estando este morto, seu filho, Henrique de
Navarra.
435
“armar-se desde agora para uma coisa naturalmente tão distante, (...) que pode ser que em vinte
ou trinta anos não nos aconteça, e sob esse pretexto colocar este estado em fogo, (...) é uma traição
a este estado, é uma conjuração contra o Rei”, id., ibid., pp.44-45.
436
“pretensa religião”, Épinac, 1585, p.3.
437
“muito humildes súditos e servidores são eles do Rei, seus próximos parentes, seus mais fiéis
Conselheiros”, id., ibid., p.18.
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168
Os Guise eram acusados de, sous le manteau de la Religion
438
, pretenderem na
verdade s’adresser à l’état et à la personne du Roi
439
. A injúrias como essa, diz
Épinac,
les Princes Catholiques qui sont à présent armés (...) clarent ouvertement (...)
qu’avec la cause de DIEU, et la vérité de sa parole n’y veulent rien mêler de leur
particulier, qu’au contraire ils n’ont autre chose devant les yeux (...) et ne se sont
disposés d’employer leur vie et leurs moyens et ceux de leurs sujets que pour la
seule querelle de Dieu et de son Église
440
.
A discussão entre Mornay e Épinac seguia-se à deflagração da oitava guerra
de religião. Com o apoio da Espanha, em março de 1585 os Guise haviam pegado
em armas e reiniciado os confrontos contra os protestantes. Sem dinheiro,
pressionado pelas ligas, pela Espanha e pelos exércitos comandados pelos
partidários dos Guise, Henrique III que, logo após a morte de Alençon-Anjou,
havia indicado Navarra como o herdeiro do trono é obrigado a tratar com os
católicos intransigentes. Em 7 de julho é assinado o tratado de Nemours,
negociado por Catarina de Médici. Como as ordenações de Saint-Maur, de 1568,
este novo decreto anulava a liberdade de consciência e a (sempre relativa)
liberdade de culto instituídas pelos éditos reais desde 1562. O rei comprometia-se
a retomar a repressão, e a guerra, contra os protestantes. Reticentes quanto a novas
reviravoltas na posição da Coroa – que consideravam não ser digna de confiança
os Guise exigem numerosas concessões do rei: Soissons passa para o controle do
cardeal de Bourbon; Rue é entregue ao duque de Aumale; Beaune e o castelo de
Dijon a Mayenne; Dinan e le Conquet a Mercoeur; Verdun, Toul, Saint-Dizier e
Châlons ao duque de Guise
441
. Reaproximados da Coroa, os católicos
intransigentes asseguravam ao rei que, tendo ele finalmente resgatado o seu lugar
sagrado,
Dieu verra le coeur de ses sujets renversera ses ennemis assurera les trophées qui
par ci-devant il a élevés de dépouilles des hérétiques, et que sa majesté viendra à
bout de ce qu’elle a par tant de fois demandé à Dieu qui est l’extermination
d’hérésie, rétablira son état régnera en paix assurée, et non incertaine, et Dieu
enfin lui donnera des enfants ayant épeut être différé cette bénédiction jusqu’à
ce que suivant la grâce de ses prédécesseurs, et que par ci devant il a si
438
“sob o manto da Religião”, id., ibid., p.17.
439
“dirigir-se ao estado e à pessoa do Rei”, id., ibid., p.17.
440
“os Príncipes Católicos que estão presentemente armados (...) declaram abertamente (...) que
com a causa de DEUS, e a verdade da sua palavra não querem misturar nada do seu particular, que
ao contrário eles não têm outra coisa diante dos olhos (...) e se dispuseram a empregar suas vidas e
seus meios e os dos seus súditos apenas pela querela de Deus e da sua Igreja”, id., ibid., p.17.
441
Mariéjol, op.cit., p.274.
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heureusement fait que la dextre de sa majesté soit armée pour la tuition et défense
des affaire de Dieu et de son Église
442
.
Pela comunhão católica restabelecida entre o rei e seus súditos por meio do
tratado de Nemours, todos os males do reino, e do rei, que poderia enfim ter
filhos, seriam superados e concluídos por uma paz segura, e não incerta. Na
publicação contra as pretensões dinásticas dos Guise, a Responce aux declarations
& protestatios de Messieurs de Guise, Mornay fazia referência ao tratado assinado
entre Henrique III e Henrique de Guise. Segundo ele, os lorenos estavam
invertendo os papéis tradicionais que monarca e súditos desempenhavam em
questões de guerra e paz. Cabia ao rei decidir sobre os confrontos em que o reino
seria ou não envolvido. Mas pelas cláusulas de Nemours o partido católico
intransigente forçava o rei a retomar a guerra, decidindo, conforme os seus
critérios particulares, o que deveria ser determinado pelo rei de acordo com a
necessidade do reino. O decreto traria apenas ruína e desolação, mas era essa, no
fundo, a intenção dos Guise:
il veulent obliger ici le Roi par serment à une guerre immortelle, c’est à dire, ce
pauvre état, et ce pauvre peuple qui pâtit depuis tant d’années à une ruine finale, à
une misère perpétuelle, certes c’est une Loi trop insupportable du sujet sur le
Prince, certes c’est un indice manifeste qu’ils ont grande dévotion à notre ruine de
nous y vouloir astreindre par dévotion. Disons plus, certes un argument tout
certain que ces gens veulent être armés, qu’ils veulent enterrer le Roi ou entre
leurs armes, ou s’ils peuvent par leurs armes. Et misérables nous qui aurions à
survivre si leurs desseins avaient lieu, notre Prince, et le sang de notre Prince,
notre désolée patrie, et les Lois de notre État
443
.
A essa afirmação, Épinac replica diretamente na sua Response de par
Messieurs de Guyse à un advertissement. Segundo ele, os Guise o haviam
nunca estado em conflito contra nenhum rei da França, e, pelo contrário, tinham
442
“Deus vera o coração dos seus ditos, abaterá seus inimigos, assegurará os troféus, que daqui
em diante ele elevou, de restos de hereges, e que sua majestade acabará com o que por tantas vezes
ela pediu a Deus, que é a exterminação da heresia, restabelecerá seu estado, reinará em paz
assegurada, e não incerta, e Deus enfim lhe dará filhos, tendo sido talvez adiada essa benção até
que, seguindo a graça dos seus predecessores, e que daqui em diante ele fez de forma tão feliz que
a direita de sua majestade esteja armada para a ptoteção e defesa dos assuntos de Deus e da sua
Igreja”, Épinac, op.cit., p.24.
443
“Eles querem aqui obrigar o Rei por juramento a uma guerra imortal, quer dizer, este pobre
estado, e este pobre povo que padece tantos anos, a uma ruína final, a uma miséria perpétua, é
verdadeiramente uma Lei insuportável demais dos súditos sobre o Príncipe, é verdadeiramente um
indício manifesto que eles têm grande devoção à nossa ruína, de querer nos obrigar por devoção.
Digamos mais, verdadeiramente um argumento certo de que essas pessoas querem estar armadas,
que eles querem enterrar o Rei ou entre as suas armas, ou, se puderem, pelas suas armas. E
miseráveis nós que sobreviveríamos se seus propósitos se realizassem, nosso Príncipe, e o sangue
do nosso Príncipe, nossa pátria desolada, e as Leis do nosso Estado”, Mornay, 1585, p.24.
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sempre lutado e permanecido ao seu lado: Francisco I apesar de os huguenotes
sugerirem que não gostava dos Guise –, Henrique II, Francisco II que tinha
especial admiração pelo cardeal de Lorena –, e Carlos IX haviam recebido o apoio
dos duques em todas as ocasiões em que ele havia sido necessário. Quanto a
Henrique III, a sua disposição era unicamente a de protegê-lo, e de, com ele,
defender a Igreja. Era pelo rei que os Guise estavam
armés et non contre lui, pour la vie duquel ils veulent mourir, et non attenter à sa
personne, mais la seule cause de l’Église Catholique, de laquelle ils s’assurent que
le Roi ne se dévoiera jamais, les a unis, leur a fait ceindre les armes et jurer qu’ils
mourons plutôt mille fois si faire se pouvait, que voir l’Église appauvrit par ses
ennemis
444
.
Contra a tomada de armas católica, protestantes e politiques buscam de volta
a antiga aliança malcontent, e reúnem-se perto de Castres, na região dos Pirineus,
de onde justificam as suas ações pela Déclaration et protestacion du roy de
Navarre, de M. le prince de Condé et M. le duc de Montmorency sur la paix faicte
avec ceux de la maison de Lorraine, chef et principaux autheurs de la Ligue au
préjudice de la maison de France (1585). O título da publicação, provavelmente
escrita por Duplessis-Mornay, deixa clara a posição de Navarra, Condé e
Montmorency-Damville quanto ao tratado de Nemours: trata-se de uma paz feita
com os lorenos, e apenas com eles, que tem por resultados a retomada da guerra e
o prejuízo do reino.
Segundo a Déclaration et protestacion, desde a pacificação de 1580, isto é,
desde o fim da sétima guerra de religião, o reino havia voltado a prosperar, e os
franceses esforçavam-se para apagar os efeitos produzidos por tão longos
conflitos.
La paix par la grâce de Dieu jetait ses racines aux profonds des coeurs, et en
arrachait les animosités et défiances. La Justice sous son ombre reprenait vigueur
par l’exercice des lois, la Religion tant de part que d’autre regagnait l’autorité
qu’elle avait perdu par la licence des armes sur les consciences, la Noblesse se
rapprivoisait ensemble, et se dépouillait des partialités, le peuple après tant de
maux jouissait de son laveur, et par le bon ordre que le Roi y avait mis était délivré
de la mangerie et insolence du soldat, les maux de la guerre en somme s’en
allaient ensevelis et oubliés dans peu de temps sous le bénéfice de la paix cultivée
444
“armados, e não contra ele, pela vida de quem eles querem morrer, e não atentar à sua pessoa,
mas a única causa da Igreja Católica, da qual eles têm certeza de que o Rei não se desviará jamais,
os uniu, os fez cingirem armas e jurarem que eles morrerão antes mil vezes, se puderem, do que
verem a Igreja empobrecida pelos seus inimigos”, Épinac, op.cit., pp.17-18.
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assidûment par la prudence du Roi, qui n’avait rien plus à coeur que de
l’entretenir
445
.
Mas, ceux de la maison de Lorraine sous le nom de ligue sainte
446
,
julgando contrária aos seus propósitos a tranqüilidade em que o reino vivia,
haviam decidido voltar aos tempos da guerra civil. Aliando-se à Espanha,
introduzindo no reino estrangeiros que não tinham qualquer intenção de preservá-
lo, os Guise haviam tomado cidades e atacado os protestantes, levando a novos
tumultos e nova guerra. Apesar de o rei saber
que le soulèvement de ceux de cette maison, quelque prétexte qu’ils prisent était un
effet de leurs premiers desseins, c’est à dire de la conjuration qu’ils ont de ruiner
la maison de France
447
,
ele ainda assim havia assinado um tratado formulado unicamente a partir das
demandas dos católicos intransigentes. Tout à coup”, diz a Déclaration et
protestacion, aurait éconclu une paix avec ceux de ladite maison et ligue
448
.
Pelo édito resultante desse acordo, o anterior, de Fleix, “fait si mûrement et juré si
solennellement par leurs majestés
449
, seria anulado, l’exercice de la religion
défendue sur peine de la vie, ceux qui en feraient profession, dans le terme de six
mois, condamnés à sortir du Royaume
450
, e as places de sûreté, cidades
concedidas provisoriamente aos protestantes como praças-fortes, retomadas pelo
rei. Os protestantes eram apenas as primeiras vítimas do tratado de Nemours, e
toda a França sofreria ainda com ele, a não ser os Guise, seus instigadores, que
começavam já a se beneficiar, fazendo
partager la France à tous ceux de leur maison, selon le dessein qu’ils ont de s’en
saisir un jour, leur faisant accorder par la paix le gouvernement de plusieurs
445
“A paz pela graça de Deus jogava suas raízes na profundeza dos corações, e arrancava deles as
animosidades e desconfianças. A Justiça sob sua sombra retomava vigor pelo exercício das leis, a
Religião tanto que um lado quanto do outro reganhava a autoridade que havia perdido pela licença
das armas sobre as consciências, a Nobreza se reunia, e se desfazia das parcialidades, o povo
depois de tantos males gozava do seu trabalho, e pela boa ordem que o Rei havia colocado aí
estava livre da comilança e insolência do soldado, os males da guerra em suma iam-se enterrados e
esquecidos em pouco tempo pelo benefício da paz cultivada assiduamente pela prudência do Rei,
que não queria nada mais do que conservá-la”, Henri IV, 1585, s/p.
446
“esses da casa de Lorena sob o nome de liga santa”, id., ibid., s/p.
447
“que a sublevação dos dessa casa, qual fosse o pretexto por eles tomado, era um efeito dos seus
propósitos primeiros, quer dizer, da conjuração que eles têm de arruinar a casa a França”, id., ibid.,
s/p.
448
“De repente”, “teria sido concluída uma paz aqueles da dita casa e liga”, id., ibid., s/p.
449
“feito tão maduramente e jurado tão solenemente pelas suas majestades”, id., ibid., s/p.
450
“o exercício da religião proibido sob pena de morte, os que fizessem profissão dela, no prazo de
seus meses, condenados a deixarem o Reino”, id., ibid., s/p.
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villes, d’importance, et de quelques Provinces, tant sur les frontières, que dedans
le coeurs de ce Royaume
451
.
Era portanto para impedir que se concretizasse a meta dos Guise que
Navarra, Condé e Montmorency-Damville eram obrigados a combatê-los. A sua
própria tomada de armas justificava-se pela necessidade de defender a França e o
rei. A nova guerra o era, contrariamente à afirmação da Liga, uma luta contra a
heresia, pela religião e pelo reino: ela era um conflito produzido por interesses
particulares, por grandes senhores, de origem estrangeira, que planejavam
eliminar a nobreza fiel ao rei, estabelecer-se no seu lugar, revogar as melhorias
implementadas na administração pública e na justiça desde os estados gerais de
1576, en somme éteindre la maison de France, et se loger en sa place
452
. Para
realizarem mais comodamente suas intenções, porém, os ligueurs alegavam todo o
contrário.
As palavras usadas por Navarra, Condé e Montmorency-Damville poderiam
ser repetidas e de fato eram pelos Guise. Cada partido empenhava-se em
convencer o rei e os franceses da torpeza dos objetivos dos seus inimigos,
reforçando ao mesmo tempo a sua própria lealdade
453
. Na Déclaration et
protestacion, o partido de Navarra assegurava, quanto aos seus próprios
partidários, que
leur but n’est et n’a oncques été que de voir le Roi bien servi et obéit de tous et (...)
d’en donner l’exemple à chacun (...) qu’ils ne désirent aussi que de voir l’état de ce
Royaume paisible et tranquille, comme il en était en train avant ces remuements, et
à cette fin s’emploieront de tout leur coeur contre ceux qui veulent troubler la
prospérité du Roi et de l’état, et y déploieront très volontiers, ce qu’ils ont de vie et
de moyens
454
.
451
“partilhar a França entre todos os da sua casa, segundo o propósito que eles têm de se
apossarem um dia dela, concedendo-lhes pela paz o governo de inúmeras cidades, de importância,
e de algumas Províncias, tanto nas fronteiras, quanto dentro do coração deste Reino”, id., ibid., s/p.
452
“em suma de extinguir a casa de França, e se mudar para o seu lugar”, id., ibid., s/p.
453
Os partidos católico e protestante acusavam-se mutuamente de deslealdade em relação ao rei e
a Deus da mesma forma como, em termos teológicos, consideravam um ao outro responsável pela
corrupção da verdadeira Igreja.
454
“seu objetivo é e sempre foi ver o Rei bem servido e obedecido por todos e (...) dar o exemplo a
cada um (...) que eles também desejam ver o estado deste Reino pacífico e tranqüilo, como era
antes dessas agitações, e para esse fim empenhar-se-ão de todo coração contra os que querem
perturbar a prosperidade do Rei e do estado, e aplicarão voluntariamente o que tiverem de vida e
de meios”, id., ibid., s/p.
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As publicações em que católicos intransigentes e politiques se entre-atacam
vão se tornando mais comuns à medida que avança a década de 1580. Segundo
Reinhart Koselleck,
haute trahison et lutte pour le salut publique étaient devenus, selon les camps
changeants et selon les gents qui changeaient de camp, des notions
interchangeables
455
.
As genealogias eram um recurso quase exclusivamente ligueur, enquanto os
discursos em louvor da paz eram mais freqüentes entre os politiques. Descrevendo
as melhorias, a estabilidade e a tranqüilidade, que, em todas as áreas, favoreciam a
França desde 1580, este partido e seus aliados protestantes atribuíam-nas à paz
que, desde o édito de Fleix, havia eliminado a guerra e permitido a volta da ordem
e da prosperidade ao reino. O argumento usado na claration et protestacion du
roy de Navarre, de M. le prince de Condé et M. le duc de Montmorency seguia
esse método, acusando os Guise e a Liga, impatients de la paix et tranquillité de
ce Royaume”, de terem decidido romper a paz, qu’ils entendent contraire à leurs
desseins”, e provocado nova guerra, que traria instabilidade e insegurança,
lançando mais uma vez a França no caos que os ajudaria a viabilizar seus
objetivos, auxquels aussi ils savent très bien ne pouvoir parvenir par la
prospérité, mais par la confusion, ruine et dissipation de cet État
456
.
Para Étienne Pasquier, que em 1585 publica a citada Apologie de la paix.
Representant tant les profficts et commodités que la Paix nous produict, que les
malheurs, confusions, & desordres qui naissent durant la Guerre, a paz é o bem
maior que faz uma república perdurar e prosperar. Ela é d’autant plus
recommandable que c’est le ciment et le mortier, qui lie et joint par-ensemble les
pierres de l’Édifice Politic
457
. Bem fundada nos piliers da paz, a república
beneficia-se do respeito às leis, da segurança nos campos – que permite ao
camponês cultivar a terra –, nas estradas – que permite o comércio –, e do
equilíbrio nos impostos. Em tempo de guerra, todo o reino é prejudicado, os
camponeses, o príncipe, a nobreza, o clero, o burguês e o comerciante, mas é o
455
“alta traição e luta pela salvação pública tinham se tornado, conforme a mudança dos campos e
conforme as pessoas que mudavam de campo, noções permutáveis”, Koselleck, 1979, p.14.
456
“impacientes com a paz e tranqüilidade nesse Reino”, “que eles crêem contrária aos seus
propósitos”, “os quais também eles sabem muito bem não poderem realizar pela prosperidade, mas
pela consusão, ruína e dissipação deste Estado”, Henri IV, 1585, s/p.
457
“tanto mais recomendável quanto é o cimento e a argamassa que liga e une juntas as pedras do
Edifício Político”, Pasquier, 1585, pp.22-23.
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homem comum, o bon-homme”, quem mais perde com o fim da tranqüilidade,
com o abandono da ordem e da prosperidade, pois sem ter a quem recorrer ele é
atacado por bandos armados, tem sua colheita destruída pela passagem dos
exércitos, e paga impostos extorsivos que servem para dar continuidade à guerra.
Quando há paz,
l’esprit est tranquille et accommodé à tout honnête repos, dont prennent leur
avancement les arts et sciences, les Lois sont en vigueur, la justice fleurit, la vertu
montre mieux ses effets, le vice languit, le zèle de piété s’augmente, la discipline de
l’Église est autorisée : tant le gentilhomme que le peuple conserve et augmente sa
richesse, le commerce et trafic demeure libre, bref, tout bien et commodité en
réussi à un chacun, voire que sans la Paix le corps civile n’aurait force, beauté ni
ornement
458
.
Ao contrário, a guerra não é nada mais do que la destruction des états,
auxquels elle est glissée, la ruine d’autrui, qu’un brigandage
459
. Ce n’est que
désordre, que confusion, que dissipation. On ne peut ce qu’on veut, et maintes fois
on fait ce qu’on ne peut ni ne veut
460
.
La Guerre c’est le boucher qui égorge les boeufs, brebis et agneaux, pour dresser
un banquet. La Paix c’est le banquet, auquel nous faisons chère et nous
réjouissons. (...) La guerre est la lessive, ou bien la buandière, qui ne sert que pour
blanchir le linge. La Paix est le linge blanc et net. La guerre est le fléau, qui bat la
paille et en fait sortir le grain. La Paix c’est le grain
461
.
Frente às vantagens tamanhas da paz, por que recorrer à guerra, que traz
tanta desolação? Para Pasquier, apenas uma razão que justifica começar uma
guerra: produzir a paz. Pour cette seule raison on doit commencer la guerre (...)
que nous puissions vivre en paix
462
. Toda guerra feita por outros motivos é uma
corrupção do estado ideal em que deveria viver uma república. Ceux qui ont la
vue bonne”, diz Pasquier, reconnaissent bien cela, mais le monde soutient une
458
“o espírito está tranqüilo e acomodado em todo repouso honesto, de que tiram seu avanço as
artes e ciências, as Leis estão vigorosas, a justiça floresce, a virtude mostra melhor seus efeitos, o
vício enfraquece, o zelo da piedade aumenta, a disciplina da Igreja é autorizada; tanto o fidalgo
quanto o povo conserva e aumenta sua riqueza, o comércio e tráfico permanece livre, em suma,
todo bem e comodidade favorece a todos, e quiçá sem a Paz o corpo civil não teria força, beleza
nem ornamento”, id., ibid., pp.46-47.
459
“a destruição dos estados, nos quais ela se embrenhou, a ruína de outrem, do que banditismo”,
id., ibid., p.47.
460
“É apenas desordem, confusão, dissipação. o podemos o que queremos, e muitas vezes
fazemos o que não podemos nem queremos”, id., ibid., p.18.
461
“A Guerra é o açougueiro que degola os bois, ovelhas e cordeiros, para preparar um banquete.
A Paz é o banquete, onde nos deleitamos e regozijamos. (…) A Guerra é a roupa suja, ou então a
lavadeira, que serve apenas para limpar a roupa. A Paz é a roupa branca e limpa. A guerra é o
malho, que bate a palha e faz sair o grão. A Paz é o grão”, id., ibid., pp.79-80.
462
“Por esta única razão devemos começar a guerra (...) que nós possamos viver em paz”, id.,
ibid., p.49.
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trop grande troupe d’âmes, qui n’ont rien tant à contrecoeur que la Paix
463
. É a
ambição desses adversários da paz que leva à guerra. Eles querem mais do que
têm e do que são, e para possuírem o que não lhes pertence semeiam a guerra
onde lhes convém. Et qui est-ce qui nous réveille à la guerre?”, pergunta
Pasquier,
rien autre, sinon que le villageois tient qu’il est digne d’être marchand, le
Gentilhomme Prince, et plus s’il pouvait. Nous dédaignons notre condition, nous
encions celle d’autrui, et pourtant de bec ou d’ongles voulons en avoir pied ou
aille
464
.
Para defenderem a guerra, os que esperam prosperar com ela afirmam que
ela é necessária, e discorrem sobre os seus benefícios. Segundo Pasquier, dois
argumentos que tentam provar as vantagens da guerra, le premier, que la guerre
au dedans des entrailles des citoyens et entre les sujets est nécessaire au public:
l’autre, qu’elle nous est nécessaire contre l’étranger
465
.
Ambos estão errados. A forma mais simples de mostrá-lo é pensar na
semelhança entre a République bien ordonnée
466
e o corpo humano. A guerra
entre os súditos de um mesmo reino é a guerra entre os membros de um mesmo
corpo. É como, diz Pasquier, se eles fossem tomados de ódio uns pelos outros, e
se acontecesse
que le pied droit supplantât le gauche, que les doigts crevassent les yeux, et chacun
membre empêchât son voisin, il est bien certain que le corps enfin demeurerait
tronqué, mutilé, imparfait et contrefait, voire qu’il manquerait en toutes ses
actions
467
.
Fica provado portanto que a guerra civil “est très-incivile
468
, pois sobretudo
à dire la vérité, il n’y a chose qui dissipe plutôt un État, que les querelles et
dissensions des particuliers
469
. Quanto à guerra contra um estrangeiro, ela pode
463
“Os que têm a vista boa”, “reconhecem bem isso, mas o mundo carrega uma quantidade muito
grande de almas, que não têm nada mais a contragosto do que a Paz”, id., ibid., p.6.
464
“E o que nos leva à guerra?”, “nada senão que o aldeão acha que é digno de ser mercador, o
Fidalgo Príncipe, e mais se pudesse. Nós desdenhamos nossa condição, desejamos a de outro, e no
entanto de bico ou de unha queremos ter pé ou asa” id., ibid., p.24.
465
“o primeiro, que a guerra dentro das entranhas dos cidadãos e entre os súditos é necessária ao
público; o outro que ela nos é necessária contra o estrangeiro”, id., ibid., p.83.
466
“República bem ordenada”, id., ibid., p.83.
467
“que o direito suplantasse o esquerdo, que os dedos furassem os olhos, e cada membro
impedisse o seu vizinho, certamente o corpo ficaria enfim truncado, mutilado, imperfeito e
disforme, quiçá faltaria em todas as suas ações”, id., ibid., pp.83-84.
468
“é mui-incivil”, id., ibid., p.86.
469
“para dizer a verdade, não há coisa que dissipe mais um Estado, do que as querelas e dissensões
dos particulares”, id., ibid., p.87.
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de fato ser necessária, porém o se deve nunca provocá-la, apenas é correto
recorrer às armas quando se for atacado, quand il nous vient assaillir, qu’il veut
nous faire effort, qu’il tâche à nous ravir ce qui nous appartient, bref quand il
nous tient tort
470
.
Pasquier conclui assim que a guerra feita pela defesa do reino contra
inimigos estrangeiros ou domésticos, moyennant qu’on le prenne comme il faut,
avec une sage, mûre et discrète distinction
471
é válida quando se trata de repelir
ataques sofridos, mas dar início a ela é perigoso e reprovável.
Os politiques tinham a intenção de, enumerando os benefícios unicamente
produzidos pela paz, e reprovando a opção armada a não ser em uma única e
específica circunstância, que de certa forma legitimava a sua própria reação
armada contra as ligas –, produzir no seu público a certeza de que era preciso dar
fim à guerra. Em uma república, o melhor estado, enfim, é a paz:
Les commodités, que nous cause la Paix ne sont petites, attendu qu’elle nous tient
en union, concorde, et fraternité les uns avec les autres : Par elle, nous ne sommes
qu’un coeur et une âme, et symbolisons tous ensemble, avec une telle harmonie,
que les membres de notre corps ne s’entrentendent pas mieux unaniment que la
Paix nous fait entretenir. Par ce moyen on peut conclure que la Paix est la liaison,
le coeur et la vie des États, qui feraient le soubresaut à toutes heures s’ils n’étaient
retenus des nerfs d’amitié, qui nous entrejoignent, nourrissent et allient la société
humaine. C’est la Paix qui fait fleurir la Justice et la Piété : Les Lois sont mortes,
muettes et sans vigueurs durant la guerre, attendu que, suivant le proverbe ancien,
entre les armes et parmi les bruits des trompettes la voix des bonnes Lois ne peut
pas bien être entendue. (...) Bref, c’est la Paix, qui, paisible, nous fait paisiblement
passer le cours de cette vie
472
.
Como resistir a esse chamado? Era essa a pergunta que os autores das
exortações e elogios da paz queriam suscitar nos leitores e ouvintes das suas
publicações. Ela significaria reconhecer a necessidade da paz, e poderia então ser
transformada em outra pergunta: como admitir algo que era aparentemente
470
“quando ele vem nos assaltar, que ele quer nos forçar, que ele se aplica em nos tomar o que nos
pertence, em suma, quando ele nos faz mal”, id., ibid., p.93.
471
“sob condição que consideremos como se deve, com uma sábia, madura e discreta distinção”,
id., ibid., p.93.
472
“As comodidades que nos causa a Paz não são pequenas, visto que ela nos mantém em união,
concórdia, e fraternidade uns com os outros: Por ela, nós somos apenas um coração e uma alma, e
simbolizados todos juntos, com uma tal harmonia, que os membros do nosso corpo não se
entendem melhor conjuntamente do que a Paz nos faz conservar. Desse modo podemos concluir
que a Paz é a ligação, o coração e a vida dos Estados, que seriam sobressaltados a todo momento
se eles não estivessem contidos pelos nervos da amizade, que nos reúnem, alimentam e aliam a
sociedade humana. É a Paz que paz florescer a Justiça e a Piedade: As Leis eso mortes, mudas e
sem vigor durante a guerra, visto que, segundo o provérbio antigo, entre as armas e no meio do
barulho das trombetas a voz das boas Leis não pode ser bem ouvida. (...) Em suma, é a Paz, que,
pacífica, nos faz passar pacificamente o curso dessa vida”, id., ibid., pp.10-11.
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contrário à vontade divina, e que implicava na subversão de toda a tradição
monárquica francesa? Por que sofrer a dualidade religiosa no reino?
Tautologicamente, a resposta era: por causa da necessidade de paz, urgente
necessidade do Estado.
Afirmar a necessidade do reino era um recurso a que se recorria para
justificar uma medida, uma situação ou uma atitude impopular, contrária à opinião
da maioria, ou à tradição. Em 1570, o filósofo Louis Le Roy, em uma Exhoration
aux François pour vivre en concorde et jouir du bien de la paix, analisou a
situação francesa de divisões e conflitos internos e concluiu que as mudanças
pelas quais o reino estava passando poderiam resultar em uma transformação mais
ampla, fruto da desobediência às leis. E advertia: em uma república, on
n’immuerait ou innoverait jamais rien sans urgente nécessité, et très évidente
utilité à cause des grands troubles qui en viennent en public et en privé
473
. No
seu relato sobre os estados gerais de 1576, Jean Bodin conta que o maior interesse
de Henrique III era ver os impostos e as novas alienações de território, da Coroa e
da Igreja, aprovados pelos deputados. Convocados em maio de 1576, conforme
determinação de uma das cláusulas do édito de Beaulieu, os estados reuniram-se
em dezembro, mesmo mês em que se iniciou nova guerra civil, a sexta delas. Sem
ter pago as dívidas contraídas durante a quinta guerra, o rei precisava contrair
novos empréstimos. A necessidade do reino obrigava-o assim a recorrer aos
estados para conseguir o dinheiro de que carecia: aos deputados era demandado,
segundo Bodin, que proviessem à la nécessité des affaires du Roi, mêmement
pour la guerre qui se présentait
474
. Um texto anônimo publicado em 1588 refere-
se a esse mesmo aumento de impostos ao afirmar que Henrique III havia sido
obrigado, pela situação urgente em que se encontrava o reino, a recorrer aos
estados: as guerras constantes, diz o autor, l’ont conduit à la nécessité de telles
levées extraordinaires
475
. O autor, um católico contrário à idéia da coexistência
confessional e favorável à eliminação do protestantismo do reino, creditava a
descontinuação dos movimentos de extirpation de l’hérésie promovidos pela
473
“não mudaríamos ou inovaríamos nunca sem urgente necessidade, e muito evidente utilidade
por causa das grandes perturbações que decorrem em público e privadamente”, Le Roy, 1570,
p.12.
474
“à necessidade dos assuntos do Rei, assim como para a guerra que se apresentava”, Bodin,
1577, p.47.
475
“levaram-no à necessidade de tais cobranças extraordinárias”, Exhortation pour la paix et re-
union des Catholiques François, 1588, pp.14-15.
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Coroa (como a Noite de São Bartolomeu) a alguma necessidade do Estado: ç’a
été ou par les nécessités publiques, ou pour laisser respirer les peuples déjà
atténués de guerres
476
.
Na Harengue faite par le Roy estant en son conseil le saizième de juin à la
publication de 26 édicts, publicada em 1586, Henrique III usou a idéia da
necessidade urgente do reino para novamente pedir dinheiro aos parlamentos.
Com o Tesouro vazio, e as fontes habituais de renda do Estado depauperadas pela
oitava guerra, iniciada em 1585, o rei pedia permissão para nova captação de
impostos, certo de que o reconhecimento da urgente necessidade em que se
encontrava convenceria os membros do parlamento de Paris:
je me suis persuadé que chacun en jugeant avec vérité y reconnaître à l’oeil une si
grande et si urgente et trop vraie cessité qu’il apportera autant de faveur et
d’allégresse à me secourir au soutènement d’une si sainte guerre
477
.
Em apoio ao rei, o chanceler Philippe Hurault, conde de Cheverny, diz em
seu discurso que la chose parle de soi-même et la nécessité se fait sentir de
tous
478
, e garante que
Dieu ayant poussé le Roi à cette guerre il a comme un bon Prince employé tout ce
qu’il pouvait dire sien auparavant que employer un secours extraordinaire de ses
sujets
479
.
O primeiro presidente do parlamento parisiense Achille de Harlay expressou
em resposta a indignação dos membros das cortes de justiça contra os 26 éditos de
Henrique III, que previam, entre outros, a incidência de novos impostos sobre as
atividades dos procuradores dos parlamentos, e a conversão de todos os ofícios
que não fossem ligados à função judicante em hereditários. Em um discurso em
que expunha as diferenças entre as leis do rei, efêmeras, e as do reino, imutáveis,
Harlay afirmava que não havia necessidade que permitisse ao rei algumas coisas,
476
“extirpação da heresia”, “foi pelas necessidades públicas, ou para deixar respirarem os povos já
extenuados de guerras”, ibid., p.11.
477
“eu me persuadi de que, cada um julgando com verdade reconhecer facilmente uma o grande
e tão urgente e muito verdadeira necessidade, terá tanto favor quanto entusiasmo em me socorrer
no sustento de uma tão santa guerra”, Harengue faite par le Roy estant en son conseil le saizième
de juin à la publication de 26 édicts. En ce compris celle de M. le chancelier, celle de M. le
premier président et celle de M. Du Plessis, 1586, p.4.
478
“a coisa fala por si mesma e a necessidade se faz sentir por todos”, ibid., p.7.
479
“Deus tento impelido o Rei a essa guerra, ele empregou como um bom Príncipe tudo o que
podia chamar de seu antes de tomar um socorro extraordinário dos seus súditos”, ibid., p.7.
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pois, Il y a (Sire) choses si contraires à la raison que nécessité ne les peut
excuser
480
.
Em defesa do rei, o último discurso foi o de Philippe Duplessis-Mornay. Ele
admitiu que Henrique III, nos seus 26 éditos, legislava contrariamente a algumas
antigas leis do reino –
Vous êtes contraint certainement de vous servir de moyens qui sont fort
extraordinaires et qui contiennent beaucoup de choses contraires aux anciennes
lois de votre état
481
reconhecendo, apesar disso, que o império da urgente necessidade justificava
plenamente os seus atos:
Mais nous qui sommes témoins de votre nécessité, qui savons ce que vous avez fait
avant que d’en venir là, pouvons sans beaucoup d’éloquence vous en excuser
envers tout le monde
482
.
Na sua Apologie de la paix, Pasquier avança opinião semelhante à de
Mornay: Nécessité (dit-on) n’a point de loi: maintes fois elle nous fait faire ce
qui nous est fort à contrecoeur
483
.
A afirmação de que a necessidade do reino obrigava a decisões e situações
contrárias à tradição ou à opinião corrente, isto é, de que, por necessidade, dever-
se-ia aceitar uma mudança ou uma transformação dos hábitos de outra forma
inadmissíveis, era um dos argumentos a que recorriam os politiques no seu
propósito de instituir a tolerância civil. A noção conhecida da necessidade era
aplicada ao caos francês provocado pelas guerras de religião, e resultava na
conclusão de que a paz era urgentemente necessária, o que significava que uma
solução para a guerra precisaria ser aceita independentemente de ser contrária à
tradição ou à opinião comum. Admitir a urgente necessidade era uma forma
paliativa de convencer os católicos contrários à dualidade religiosa a aceitarem-na,
ao menos provisoriamente, em benefício da França. Para os politiques, era um
meio de conquistar o apoio mesmo dos adversários do protestantismo, alegando
que o motivo que os levava a insistirem na tolerância civil era unicamente a
defesa do reino.
480
“Há (Senhor) coisas tão contrárias à razão que necessidade não as pode desculpar”, ibid., p.13.
481
“Sois certamente obrigado e vos servir de meios que são bastante extraordinários e que contêm
muitas coisas contrárias às antigas leis do vosso estado”, ibid., p.18.
482
“Mas nós que somos testemunhas da vossa necessidade, que sabemos o que fizestes antes de
chegar a isso, podemos sem muita eloqüência vos desculpar com relação a todos”, ibid., p.18.
483
Necessidade (dizem) não tem lei: muitas vezes ela nos faz fazer o que temos muito a
contragosto”, Pasquier, 1585, p.159.
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Para a Liga, os politiques eram assim inimigos mais perigosos do que os
protestantes, pois utilizando argumentos externos à religião para tratar da
dissensão religiosa, sugeriam que havia, acima da religião, um outro fim para o
qual deveriam tender os esforços dos bons franceses. Nas suas publicações, para
contrapor-se à lógica politique, o partido católico intransigente voltava-se para a
mesma tática de que o partido oposto se servia: acusar os inimigos de mentirem
duplamente, quanto ao seu próprio objetivo, e quanto ao objetivo dos adversários.
Para contestar as afirmações expressadas por Philippe Duplessis-Mornay e
Étienne Pasquier e suas implicações, o advogado do parlamento de Paris Louis
Dorléans, célebre entre os contemporâneos pelo seu catolicismo radical
484
, publica
em 1586 uma Apologie ou Defence des catholiques unis les uns avec les autres,
contre les impostures des catholiques associez à ceux de la pretendüe Religion. A
defesa da Liga implicava na recriminação dos protestantes e dos católicos a eles
associados: usar a religião como pretexto para tomar o reino, querer uma guerra
contra o rei, e não contra a heresia, introduzir um sem número de estrangeiros na
França todas acusações feitas pelos politiques e pelos protestantes aos Guise e à
Liga, e devolvidas por Dorléans como sendo, de fato, características do partido
protestante e de seus associados.
A guerra feita pelos protestantes, diz Dorléans, era, desde o início, havia 24
anos, contra o rei, e não contra os católicos do reino:
Toutefois on voit que depuis vingt-quatre ans en ça les Hérétiques n’ont point tant
fait la guerre aux Catholiques qu’ils l’ont faite au Roi, sur lequel ils ont surpris et
retenu plusieurs bonnes villes et places en ce Royaume dont ils jouissent encore à
présent, comme s’ils les avaient conquises sur leur ennemi
485
.
Apesar de pretenderem a ruína do reino, e a instauração do calvinismo como
única religião nele, os protestantes e seus aliados católicos afirmavam que a sua
ação visava apenas a defesa do rei. Ora, pergunta Dorléans, o rei, católico como
poucos monarcas antes dele foram na França, admitiria juntar-se a homens que
acreditavam que o papa era o anticristo, que a missa era heresia, a devoção aos
santos, idolatria, e a Igreja de Roma, a perversão da Palavra de Deus? Deixaria o
484
cf. Jouanna et al., op.cit., p.850.
485
“Todavia vemos que 24 anos os Hereges o fizeram tanto guerra contra os Católicos,
quanto a fizeram contra o Rei, do qual eles tomaram e mantiveram várias boas cidades e lugares
neste reino de que eles gozam ainda hoje, como se os tivessem conquistado de um inimigo”,
Dorléans, 1586, p.4.
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rei assim de honrar seu juramento, que o obrigava a defender a religião católica
como a única verdadeira? Não, pois o fato é que
le Roi est trop instruit en la Foi, pour ne croire point qu’il n’est pas constitué Roi
que pour maintenir l’honneur de Dieu, que c’est son devoir d’avoir soin du salut
de son peuple
486
.
O rei não poderia, portanto, aceitar uma associação com os huguenotes que
ele tinha o dever de combater. Nem aceitar que eles permanecessem no reino.
Henrique III podia apenas, no cenário de divisão que caracterizava a França nesse
momento, ser le chef des Catholiques
487
, e destruir as pretensões protestantes. A
coexistência de duas confissões no reino é impossível, e traz apenas guerra, diz
Dorléans.
Il n’y a rien qui tant entretienne en paix soit une famille particulière une Cité ou un
Royaume, que la conformité de Religion nos res en ont vu l’expérience, car
quand on ne savait en France autre Religion que celle que saint Denis y avait
prêchée, jamais nation ne se trouva plus unie en volonté et plus obéissante à son
Prince. Mais depuis l’an mil cinq cent soixante et trois, que l’on donna permission
de prêcher la religion Calviniste en ce Royaume, onques puis n’avons nous eu que
troubles et guerres civiles
488
.
Se, de seu lado, protestantes e politiques afirmavam que havia sido a
desobediência dos católicos ao édito de Amboise de 1563 que permitia o
protestantismo no reino – que havia provocado a guerra civil, Dorléans sustentava
que havia sido o édito na liberdade dada aos protestantes o causador dos
confrontos. E inversamente, a desobediência dos protestantes ao édito de Nemours
havia causado a retomada da guerra, apesar da insinuação feita por estes de que
de sont procédées les guerres, qui ont eu cours depuis cet Édit publié. Pour
répondre à cette objection nous dirons que la guerre est procédée de l’opiniâtreté
et obstination de ceux qui ont voulu demeurer en l’Hérésie, et ne l’abjurer comme
ont fait aucuns de leurs confrères qui sont revenus à notre Église
489
.
Nas duas situações, como em todas as que se apresentassem à
argumentação, os culpados pelo caos, culpados pelas guerras e pela degradação do
reino, eram, segundo Dorléans, os protestantes e seus aliados católicos. O
486
“o Rei é instruído demais na Fé, para achar que não é constituído Rei apenas para conservar a
honra de Deus, que é seu dever cuidar da salvação do seu povo”, id., ibid., pp.10-11.
487
“o chefe dos Católicos”, id., ibid., p.25.
488
id., ibid., pp.4-5.
489
“daí procederam as guerras, que aconteceram depois desse Édito publicado. Para responder a
essa objeção diremos que a guerra procede da teimosia e obstinação dos que quiseram permanecer
na Heresia, e não abjurar como fizeram alguns de seus confrades, que voltaram para a nossa
Igreja”, id., ibid., p.12.
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protestantismo era portanto uma dupla ameaça para a França, desviando os
homens do caminho da salvação, e levando-os à ruína e à morte. Comprovado o
perigo da presença protestante, a única intenção da Liga era defender o reino. Sem
rodeios, o autor havia declarado, logo na primeira frase da sua Apologie, que
la Ligue n’est faite que pour les exterminer
490
. Nesse sentido, os dois expedientes
principais desta organização eram restabelecer o catolicismo como única religião
no reino, e impedir qualquer pretendente não católico de se tornar rei da França.
Pela abolição da dualidade confessional, a Liga restauraria a paz, pois apenas pelo
retorno à unidade religiosa ela seria possível. O bem gerado pela eliminação do
protestantismo era portanto, para Dorléans e seus companheiros ligueurs,
inquestionável. Tanto maior será, conseqüentemente, a desaprovação quanto à
atitude dos católicos que escolheram associar-se aos protestantes.
S’il n’y avait que ceux de la prétendue religion qui se formalisassent de la Ligue
des Catholiques, je le porterais patiemment, vu que la Ligue n’est faite que pour
les exterminer. Mais je perds patience quand je vois que quelques Catholiques, au
moins qui se disent être de la Religion Catholique, Apostolique et Romaine se
passionnent ainsi, se bandent, et contreliguent contre ceux qui ne prétendent que
maintenir la Religion ancienne de France, et dont eux-mêmes font profession
491
.
Para Dorléans, era incompreensível que alguns católicos tivessem decidido
apoiar os protestantes que, por determinação da sua religião, eram obrigados a, em
todas as ocasiões possíveis, eliminar o catolicismo, e substituí-lo pelo calvinismo.
A justificativa apresentada pelos católicos associados aos protestantes era a de que
a sua intenção era defender o reino, e evitar a discussão que terminava por
determinar o uso da força contra a religião. Com esse argumento, diz Dorléans,
eles não deveriam se opor apenas à Liga como sendo, ela, prejudicial à França,
antes deveriam criticar qualquer liga, qualquer associação que provocasse divisão
dentro do reino. Mas apenas a Liga católica era atacada pelos católicos
associados; a protestante, que segundo Dorléans tanto mal havia feito à França,
era considerada justa, e mesmo santa:
Encore si quand ils blâment la Ligue comme chose contraire à l’état et au repos
public, ils n’épargnassent point nos ennemis les Hérétiques qui se sont ligués, ont
fait des bources communes, et baillé des pensions aux chefs de part, tant en ce
490
“que a Liga é feita apenas para exterminá-los” id., ibid., p.3.
491
“Se houvesse apenas os da pretensa religião que se ofendessem com a Liga dos Católicos, eu
suportaria pacientemente, visto que a Liga é feita apenas para exterminá-los. Mas perco a
paciência quando vejo que alguns Católicos, ou ao menos que se dizem da Religião Católica,
Apostólica e Romana se envolvam assim, se retesem, e contra-liguem contra aqueles que querem
apenas manter a Religião antiga da França, e da qual eles mesmos fazem profissão”, id.,ibid., p.3.
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Royaume, que hors d’icelui : je dirais que s’ils médisent de la Ligue, il leur est à
pardonner ne voulant traiter les différents de la Foi par armes : Mais en lieu de
condamner tant l’une que l’autre Ligue, ils persécutent les Catholiques par
convisses et calomnies, comme gens scélérats, mutins, turbulents, et excusent les
hérétiques, les défendent, et soutiennent leur cause comme juste, sainte, et
favorable
492
.
A única explicação, segundo o autor da Apologie, estaria na intenção secreta
que reunia católicos e protestantes: tomar o reino. Para atingirem seu objetivo,
Dorléans conta que o que protestantes e católicos associados propunham era a paz.
Mas, atenção, paz muito diferente daquela desejada pela Liga. Paz que implicava
na perpetuação da dissensão religiosa, divisão verdadeira do reino. Dividida, a
França seria conquistada. A coexistência, que Dorléans já havia provado ser
prejudicial, tornava a paz impossível, e a pacificação assim proposta não era paz.
Je ne puis comprendre que ce soit une paix entre nous quand un prêcheur d’une
part soutient la religion de nos ancêtres, d’autre part on dit tant en la prêche
publique qu’aux assemblés particulières que le Pape est l’Antéchrist, que l’Église
des Catholiques est un bourdeau spirituel, que le Sacrement de l’Autel est une
abomination, que nous sommes idolâtres, gens reprouvés mystificateurs perdus et
damnés. De telles contentions on en vient aux armes
493
.
A dualidade religiosa não produzia portanto paz, ela resultava, sim, no
retorno permanente da guerra. A o ser que a religião, motivo da dissensão, não
fosse razão para contenda, ou pelo menos razão suficiente que justificasse abalar a
tranqüilidade do reino para introduzir nele desordem. Era precisamente essa, diz
Dorléans, a proposta que protestantes e católicos associados faziam para
convencerem de que a sua paz era viável:
il y en a qui disent qu’il ne se faut point tant formaliser pour la religion, et que
c’est folie de prendre les choses tant à coeur, que l’on en veuille perdre l’aise et le
repos d’une bonne paix
494
.
492
“Ainda que quando eles censurassem a Liga como coisa contrária ao estado e à tranqüilidade
pública, eles não poupassem nossos inimigos os Hereges que se ligaram, dividiram os gastos, e
deram pensões aos chefes de parte, tanto nesse Reino quanto fora dele: eu diria que se eles
maldizem a Liga, é perdoável por não quererem tratar das diferenças da Fé por armas: Mas em vez
de condenarem tanto uma quanto a outra Liga, eles perseguem os Católicos por alegações e
calúnias, como gente perversa, rebelde, turbulenta, e desculpam os hereges, defendem-nos, e
apóiam a sua causa como justa, santa e favorável”, id., ibid., pp.3-4.
493
“Não posso compreender que seja uma paz entre nós quando um pregador de um lado mantém
a religião dos nossos ancestrais, e do outro lado se diz tanto no culto público quanto nas
assembéias particulares que o Papa é o Antecristo, que a Igreja dos Católicos é uma enorme
enganação espiritual, que o Sacramento do Altar é uma abominação, que nós somos idólatras,
gente reprovada mistificadores perdidos e condenados. De tais discussões, chegamos às armas”,
id., ibid., p.5.
494
“há os que dizem que não se deve ofender tanto por causa da religião, e que é loucura tomar as
coisas tão a sério, que se queria perder a comodidade e tranqüilidade de uma boa paz”, id., ibid.,
p.6.
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A resposta de Dorléans a essa alegação revela a discussão entre ligueurs e
politiques sobre a função do rei, e sobre a distinção entre os objetivos do Estado e
os da Igreja. Alguns afirmavam, diz o autor, qu’il y a grande différence entre les
préceptes d’État et ceux de la Religion
495
. Eram os que propunham que a
pacificação apenas poderia ser feita se fosse dada liberdade, de consciência e
culto, aos protestantes. E que sustentavam também que a paz no reino, sendo
necessária, era mais premente do que a defesa da religião. E ainda, que as duas
confissões, catolicismo e protestantismo, poderiam de forma semelhante levar a
Deus
496
. C’est une belle proposition pourvu que Dieu en fût content”, diz
Dorléans,
mais si nous lisons en l’Évangile, il n’entend pas que nous en fassions si peu de cas
de notre salut ou de celui de notre prochain (...). Or je n’entends point disputer
contre les gens indifférents qui ont maintenu par écrit que l’on peut être sauvé
chacun en sa Foi, car je crois qu’il n’y a qu’une Foi, non plus qu’il n’y a qu’un
Dieu, et que hors de la Foi il n’y a salut aucun
497
.
E a salvação, que deveria ser a maior preocupação dos homens, e
especialmente do rei, vinha de uma única religião. Uma paz proposta fora desta
poderia servir apenas a quem acreditasse que o estado de guerra, de caos, em que
estava a França era o pior que poderia acontecer aos homens, e que por isso a paz,
urgentemente necessária, precisava imediatamente, a qualquer preço, ser
restabelecida. Essa pacificação não era no entanto a paz de Deus, aquela que Ele
queria para os homens; era apenas uma experiência humana, e portanto efêmera,
de tranqüilidade, de equilíbrio do Estado, em que o preço a pagar era, justamente,
a salvação da alma. Era na verdade, segundo Dorléans, uma paz para os
protestantes, pois era a eles que ela permitia viver, enquanto aos católicos ela
impunha um sofrimento.
Je crois bien que si tous étions Huguenots, la paix y serait quant au Monde: mais
quant à Dieu, je ne croirais jamais cela. Quand Dieu recommande la paix, il dit je
495
“que há grande diferença entre os preceitos do Estado e os da Religião”, id., ibid., p.6.
496
Essa posição foi mais rara no século XVI, sendo característica não dos partidários da tolerância
que chamamos de civil, mas sim dos da tolerância religiosa.
497
“É uma bela proposta, desde que Deus estivesse contente dela”, mas si nós lermos o
Evangelho, ele não pretende que nós façamos o pouco caso da nossa salvação ou da do nosso
próximo (...). Ora eu não pretendo de forma alguma discutir com as pessoas indiferentes que
sustentaram por escrito que podemos ser salvos cada um na sua Fé, pois eu temo que haja apenas
uma Fé, tanto como há apenas um Deus, e que fora da Fé não há salvação alguma”, id., ibid., pp.6-
7.
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vous laisse la paix non pas comme le Monde l’a donnée : tellement qu’il y a bien
différence entre la paix de Dieu et celle des hommes
498
.
A paz dos homens, nos termos em que Dorléans a apresenta, era aquela feita
à revelia da religião, motivada pela preocupação com o reino e com o Estado. Para
a Liga, ao contrário, era preciso reconhecer a importância de Deus e saber que
uma paz feita sem Ele era o mesmo que uma condenação eterna. À Sua paz
chegava-se matando e morrendo por Ele. Quando os protestantes e católicos
associados afirmavam que a Liga e os Guise, ao agirem contra a dualidade
religiosa, agiam contra as leis do reino, cabia a estes últimos afirmar, como os
primeiros cristãos, que a lei dos homens e as suas regras nada eram frente à Lei de
Deus. Mas Dorléans sabia que a mera afirmação da Sua vontade, da verdadeira
necessidade que deveria guiar os homens a de obedecer primeiro a Deus e não
ao rei não despertava mais nos seus contemporâneos a mesma disposição que
cem anos antes o serviço de Deus provocava.
Je sais bien que ces propos seront reçus de plusieurs de ce temps corrompu avec
risées, pour ce que nous sommes tombés en un siècle la religion est tenue pour
chose de peu de conséquence, et pour laquelle on ne doit perdre le dormir
499
.
Felizmente, no entanto,car il y va du salut de nos âmes et de l’honneur de
Dieu
500
, ce conseil n’a pas été approuvé par plusieurs
501
. Entre esses vários, a
Liga, que se opunha à pacificação proposta pelos protestantes e católicos
associados para o reino por reconhecer o lugar principal que Deus deveria ter no
Estado. Para se livrarem desses adversários, diz Dorléans, e evitarem que se
descobrisse a sua real intenção, os protestantes acusavam os Guise de quererem,
eles, tomar o reino, e usarem a Liga como seu exército. São, essas,
calomnies que l’on propose contre la Ligue, (...) qu’elle n’est point conduite par un
zèle de Religion, mais pour assouvir l’ambition de la Maison de Guise, qui prétend
498
“Creio que se nós fôssemos Huguenotes, a paz estaria quanto ao Mundo; mas quanto a Deus,
eu não acreditaria nunca. Quando Deus recomenda a paz, ele diz, eu vos deixo a paz, não segundo
o mundo a deu; tanto que realmente diferença entre a paz de Deus e a dos homens”, id., ibid.,
p.8.
499
“Bem sei que essas propostas serão recebidas por vários desse tempo corrompido com risadas,
pelo motivo que nós caímos em um século onde a religião é tida como coisa de pouca
conseqüência, e pela qual não se deve perder a noite de sono”, id., ibid., pp.25-26.
500
“pois se trata da salvação das nossas almas e da honra de Deus”, id., ibid., p.6.
501
“esse conselho não foi aprovado por inúmeros”, id., ibid., p.6.
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la Couronne. Cette imputation n’est pas nouvelle dès les troubles d’Amboise on en
disait autant
502
,
e desde então, desde 1560, os Guise haviam se mostrado fiéis aos reis franceses,
ils ont travaillé non pour eux, mais pour leur Prince
503
, afirma finalmente o
autor.
No ano seguinte ao da Apologie, em 1587, surge uma nova carta endereçada
por Navarra e Condé a Henrique III, na qual se repete o argumento de que os
Guise, por meio da Liga, queriam destruir a França, destituir o rei, e tomar o reino
para si. Segundo o Advertissement fait au roy, de la part du roy de Navarre et de
Monsieur le prince de Condé, touchant la dernière déclaration de la guerre, tal
era o objetivo da família lorena, e a reação de Henrique III deveria ser enérgica:
Ils se veulent faire Rois, il vous veulent jeter dehors, voilà leur intention : voilà
leur but ; voilà la somme de leur entreprises. C’est qu’ils attachent leur
espérance, ils aspirent à la domination universelle de tout le Royaume. Chassez
donc ces pestes, et vous repousserez du col de votre peuple le couteau, et de vos
belles villes les alarmes et les désolations que cette malheureuse race nous
apporte. C’est maintenant le besoin, si jamais besoin fut. (...) Si vous ne vous
éveillez de ce sommeil, il vous sera mortel
504
.
Discurso semelhante aparece no Le Restaurateur de l’Estat François. A sua
data de publicação não é certa, mas é possível afirmar que o texto foi escrito entre
1585 e 1589, pois referências à morte do duque de Alençon-Anjou, à
possibilidade de Navarra ser o herdeiro do trono, e ao crescimento da Liga sob a
liderança do duque de Guise. O Restaurateur é composto de forma a parecer uma
exortação feita pela França aos franceses: “Tout ce discours est fait sous le nom de
la France
505
, diz o autor anônimo no subtítulo da obra. Era assim a França que
considerava os Guise e a Liga os responsáveis pelas guerras, e era ela que sabia a
verdade sobre o seu interesse no caos que os conflitos provocavam: não o de
502
“calúnias que são propostas contra a Liga, (...) que ela não é nada conduzida por um zelo de
Religião, mas para saciar a ambição da Casa de Guise, que deseja a Coroa. Essa imputação não é
nova, desde as perturbações de Amboise se dizia o mesmo”, id., ibid., p.20.
503
“eles trabalharam, não para eles, mas para seu Príncipe”, id., ibid., p.21.
504
“Eles querem se fazer Reis, eles querem vos expulsar, eis a sua intenção, eis o seu objetivo, eis
o resultado das suas empresas. É que eles fixam a sua esperança, eles aspiram à dominação
universal de todo o Reino. Expulsai então essas pestes, e rechaçarás do colo do vosso povo a faca,
e das vossas belas cidades os espantos e desolações que essa raça infeliz nos traz. É agora a
necessidade, se jamais houve necessidade. (...) Se vós não despertardes desse sonho, ele será
mortal”, Condé, 1587, s/p.
505
“Todo esse discurso é feito sob o nome da França”, Le Restaurateur de l’Estat François. Où
sont traitees plusieurs notables questions, sus les Polices, la Justice & la Religion : le sommaire
desquelles on pourra voir en la page suivante, s/d., p.3.
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restaurar a tranqüilidade do reino apesar de ser essa a sua justificativa , mas o
de realizarem a sua própria prosperidade:
Ce sont les Seigneurs de Lorraine le Duc de Guise & ses frères qui vous apprêtent
et apostent toutes ces misères, ils en sont les entretemetteurs : & toutefois vous
dites qu’ils sont fort affectionnés envers moi & envers vous, qu’ils sont honnêtes &
vertueux. Croyez-moi ils vous aiment comme étrangers qu’ils sont, c’est pour le
profit & avancement qu’ils en espèrent. Ce sont leurs inimitiés, avarice & ambition
qu’ils poursuivent & non point votre cause, votre repos, votre contentement &
profit. C’est la vérité de leurs commodités qu’ils cherchent sous le nom, sous le
masque & mensonge des vôtre. Ce sont images & fantômes que leurs propositions.
S’ils ont été affectionnés & honnêtes envers vous, ils ne le sont plus : leur affection
envers vous, leur honnêteté finit pour le moins au commencement de cette
entreprise de la Ligue
506
.
De acordo com o Restaurateur, a Liga recorria ao problema da sucessão real
para continuar o confronto contra os protestantes. Admitir um rei protestante, diz
a França, o era falta grave como as diatribes e publicações do partido católico
intransigente queriam fazer crer. O protestante que poderia, eventualmente,
ocupar o trono manteria o catolicismo, o perseguiria nem os fiéis, nem o clero,
pois, ao contrário do que alegavam os seus adversários, a sua religião o impedia
de agir com violência nas questões da fé. A França avisa então aos franceses:
Ne craignez pour tant pas, que les Princes apportent le feu, le fer & la corde, pour
l’avancement du règne de Dieu, pour faire valoir & étendre leur religion : ils
offenseraient leur religion, ils pêcheraient contre Dieu et sa parole, selon laquelle
uniquement ils règlent leur zèle. Elle leur défend comme nous avons amplement
discouru ci-devant d’user de violence sur les consciences
507
.
O Restaurateur, sob o nome da França, participa assim do debate entre
ligueurs e politiques, apresentando os argumentos, repetidamente empregados nos
discursos e panfletos, da verdadeira intenção escondida por trás da máscara da
defesa do reino e da religião.
A publicação do Restaurateur, da Apologie ou Defense des catholiques unis
les uns avec les autres, contre les impostures des Catholiques associez à ceux de
la pretenduë Religion, e do Advertissement fait au roy acontece em um momento
em que a Liga criada pela família lorena para defender a religião contra a Reforma
transformava-se na Santa União, reunião de todas as ligas nobiliárquicas e
506
Ibid., p.287-288.
507
“Não temam no entanto que os Príncipes tragam o fogo, o ferro e a corda para o avanço do
reino de Deus, para fazer valer e espalhar a sua religião; eles ofenderiam a sua religião, eles
pecariam contra Deus e a sua palavra, segundo a qual unicamente eles pautam seu zelo. Ela os
proíbe como discorremos amplamente acima de usar de violência sobre as consciências”, ibid.,
p.276.
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plebéias e de toda a oposição conservadora ao rei e à Reforma. Como o advogado
do Parlamento parisiense havia explicado, era preciso estender a reação católica a
todos, protestantes e católicos, que não se dedicassem prioritariamente à causa da
Igreja. E era preciso preparar-se especialmente para o combate contra os católicos
que haviam tomado partido contra ela.
Respondendo ao chamado pela restauração do catolicismo como única
religião do reino, um grande número de franceses católicos alista-se na Santa
União, que usa comumente o nome de Liga. Sua influência baseava-se em larga
medida no carisma e na autoridade pessoal do duque de Guise, que, em
contrapartida, apoiava-se nas massas reunidas pelos pregadores católicos para
fortalecer sua posição.
A popularidade de Guise era diretamente proporcional à impopularidade de
Henrique III, o que ficou evidente em maio de 1588. No início do mês, uma
reunião da liga parisiense divide a cidade em cinco áreas, cada uma controlada por
um “coronel” ligueur
508
. A população é armada e a função principal dos coronéis é
mobilizá-la em caso de necessidade. Tudo se passa sem que o rei seja consultado
ou informado. Temendo uma nova tentativa de golpe contra o seu governo ou
mesmo contra a sua pessoa nos últimos anos, outras haviam sido organizadas
pelas ligas, pela União ou diretamente pelos Guise –, Henrique III proíbe o duque
de entrar em Paris. Chamado pela Liga, Guise viola a decisão real e adentra a
capital em 9 de maio. A população, insuflada durante semanas pelos oradores
ligueurs, recebe o duque como a um novo messias: ele lhes parece le seul chef
capable de mener une croisade contre l’hérésie
509
. Na madrugada de 12 de maio,
o rei ordena à sua companhia de suíços, à guarda francesa e à parte da milícia que
lhe permanecia fiel que controlem pontos estratégicos da cidade. A reação
parisiense é imediata, e as ruas da cidade são fechadas com barricas para impedir
o avanço das tropas reais. Cerca de 60 suíços são mortos. Temendo uma repetição
dos massacres de São Bartolomeu e sem dúvida temendo também pela própria
vida, e pela segurança da família real – Henrique III ordena então aos seus
soldados que se retirem, mas a exaltação de uma população que o rei não controla,
e que não respeita a sua autoridade, obriga-o a recorrer a Guise. Humilhado, e
508
Jouanna, op.cit., p.336.
509
“o único chefe capaz de comandar uma cruzada contra a heresia”, id., ibid., p.336.
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inseguro, Henrique III deixa a capital e se refugia em Chartres. Henrique de Guise
torna-se o novo rei de Paris.
Segundo Jouanna, a vitória de Guise sobre o rei nesse mês de maio de 1588
foi o resultado da crise de autoridade em que afundava Henrique III. Seus
oponentes esforçavam-se para transformar as decisões e mesmo as atitudes
cotidianas do rei em provocações à religião e em atos de tirania. O Dia das
Barricadas seria assim
la violente réaction de rejet d’un monarque dont toutes les initiatives passent pour
être la manifestation de la double volonté de détruire les libertés et d’anéantir la
vraie foi
510
.
Em Chartres, pressionado pelo prestígio incontestável do duque de Guise,
Henrique III é obrigado a negociar com a Liga. Em julho são publicados os
Articles de la saincte union des Catholiques François, que explicam, como o
tratado de Nemours antes deles, a luta em que o rei e a Liga deveriam se unir, para
expulsar a heresia do reino e restabelecer o seu antigo esplendor. Segundo o autor
dos Articles, a unidade era a regra que, desde os primeiros filósofos, desde
Sócrates e Platão, havia sido considerada como la fontaine ou plutôt comme (...)
l’Océan de tout bien
511
. E a unidade era Deus. Todo o esforço do rei deveria ser
no sentido de defender a unidade, a religião, Deus. Essa era a função do príncipe,
e a União adverte o rei:
Souvenez-vous (Sire) que Dieu vous a colloqué en souverain degré pour être
instrument de sa gloire et dispensateur de ses grâces, sur le nombre infini de vos
sujets pour les maintenir aux anciennes lois, coutumes et Religion des Français
512
.
Para ajudar o rei, a União e os Guise seus líderes estavam igualmente
empenhados em preservar a religião católica, expulsando do reino a heresia
protestante. Seus maiores inimigos, além dos hereges protestantes, eram, como
Louis Dorléans afirmara, os católicos que se haviam aliado a eles, sobretudo os
politiques. No entanto, segundo os Articles, les hérétiques ni les Politiques ne
510
“a violenta reação de rejeição de um monarca cujas iniciativas todas são consideradas
manifestações da dupla vontade de destruir as liberdades e anular a verdadeira fé”, id., ibid., p.337.
511
“a fonte ou antes como (...) o Oceano de todo bem”, Articles de la saincte union des
Catholiques François, 1588, p.2.
512
“Lembrai-vos (Senhor) que Deus vos colocou em grau soberano para ser instrumento da sua
glória e distribuidor das suas graças, sobre o número infinito dos vossos súditos, para conservá-los
nas antigas leis, costumes e Religião dos franceses”, ibid., p.31.
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190
sont assez forts pour nous rompre la force que Dieu à mis en nos mains
513
, e a
luta pela religião e contra eles mostrará as suas mentiras, revelando o seu
verdadeiro propósito.
Os Articles retomam a dinâmica em que a Liga acusava os politiques de
quererem a ruína do Estado, e estes por sua vez devolviam a acusação, afirmando
que essa era a intenção dos Guise. A apresentação, pelo autor dos artigos, da
alegação politique mostra a dimensão tomada pela guerra feita através das
publicações de ambos os lados:
Je pondrais succinctement aux raisons qu’ont fait semer et publier (par toute la
France) plusieurs politiques, mal affectionnés au service de Dieu, repos et sûreté
de la France, Premièrement ils ont osé alléguer que cette union qu’ils appellent
ligue pour la rendre plus odieuse, tend à l’éversion de l’état, que messieurs de
Lorraine pour s’emparer de la Couronne ont sous prétexte de religion troué cette
intention. À quoi je dirai en un mot à la vérité, Dieu a voulu que d’une si sainte et
céleste entreprise, ils soient les auteurs et moyen
514
.
Contra os politiques e os protestantes, era nos Guise que o rei deveria buscar
apoio. Para evitar a deterioração de uma relação já conturbada com a população e
as autoridades francesas, sobretudo as parisienses, Henrique III aceita as
determinações presentes nos artigos da Santa União, e torna público o seu próprio
édito Sur l’union de ses subjects Catholiques. Segundo um espectador anônimo
e católico – dos acontecimentos,
Le Roi vraiment très chrétien, brûlant de l’amour du Dieu vivant, et zélé d’un saint
zèle a promis par l’Édit public leur union, laquelle d’abondant il désire jurer et
confirmer par ses États, et en faire une loi fondamentale en ce Royaume, qui est
certes un trait de prudence singulière, et digne de sa Majesté très chrétienne, étant
cet Édit l’espérance de notre salut, l’honneur de l’Église, l’ornement de sa
noblesse, et le repos de son pauvre peuple
515
.
513
os hereges nem os Politiques são suficientemente fortes para romper a força que Deus colocou
nas nossas mãos”, ibid., p.22,
514
“Eu responderia sucintamente às razões que fizeram semear a publicar (por toda a França)
vários politiques, mas afeiçoados no serviço de Deus, tranqüilidade e segurança da França,
Primeiramente eles ousaram alegar que essa união, que eles chamam liga para torná-la mais
odiosa, visa a abertura do estado, que os senhores de Lorena, para tomarem a Coroa, furaram essa
intenção. Ao que eu diria em uma palavra na verdade Deus quis que de um tão santo e celeste
empreendimento, eles fossem os autores e meios”, ibid., p.27.
515
“O Rei verdadeiramente muito cristão, queimando pelo amor do Deus vivo, e zeloso de um
santo zelo prometeu pelo Édito público a sua união, a qual ele deseja jurar e confirmar
abundantemente pelos seus Estados, e fazer uma lei fundamental neste Reino, o que é certamente
um traço de singular prudência, e digno de sua Majestade muito cristã, sendo este Édito a
esperança da nossa salvação, a honra da Igreja, o ornamento da nobreza, e a tranqüilidade do seu
pobre povo”, Advertissement aux trois estats de France assemblez en la ville de Blois, pour
obtenir de Sa Majesté l'interpretation d'une close de son dernier edict de reünion faulsement
exposee par les heretiques & politiques leurs associez, 1588, pp.6-7.
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No Edict du roy sur l’union de ses subjects Catholiques, Henrique III
confirma as cláusulas da Santa União, ordena a todos os franceses que se juntem a
ele e à Liga na conservação do catolicismo e indica que, após a sua morte, não
poderá haver mudança de religião no reino, isto é, seu sucessor deverá ser, como
ele, católico:
Avons résolu (...) à ce que de notre vivant il soit établie au fait de notre Religion
Catholique Apostolique & Romaine, un bon & assuré repos, & lorsqu’il plaira à
Dieu disposer de nos jours pour nous appeler à soi, nous puissions nous
représenter en notre conscience que nous n’avons rien omis de ce, l’esprit
humain s’est pu étendre pour obvier qu’après notre décès il n’advienne en celui
notre Royaume, changement ou altération au fait de la Religion. Voulant pour cette
occasion que tous nos sujets Catholiques, de quelque dignité, qualité & condition
qu’ils soient, s’unissent & joignent avec nous, pour l’acheminement & perfection
d’un oeuvre si nécessaire & agréable à Dieu, nous communiquant avec eux &
s’unissant à nous pour la conservation de notre sainte Religion
516
.
Henrique III havia sido obrigado a essa decisão. Após o Dia das Barricadas,
para tentar aproximar-se de Guise, o rei o havia nomeado lugar-tenente geral, ao
mesmo tempo em que, para evitar que o domínio do duque sobre a capital se
estendesse ao resto da França, convocava uma nova assembléia dos estados gerais.
Esperando construir uma maioria favorável entre os deputados que se reunirão em
Blois, o rei interfere pessoalmente nas eleições para os estados. Mas melhor
resultado tem a Santa União: dos representantes do clero e do terceiro estado, a
maior parte é de partidários da Liga; os deputados da nobreza dividem-se
igualmente entre royaux e ligueurs.
Os estados reconhecem o édito da União como lei fundamental do reino, e o
rei jura, como havia jurado no momento da sua coroação, a sua intenção de
manter apenas uma religião no reino. Mas para conservar a religião, Henrique III
precisava de fundos. Mais uma vez, como nos estados gerais de 1576, o rei pede
aos deputados dinheiro para reconquistar o reino para a Igreja. Mais uma vez, os
estados negam o pedido de Henrique III. Para o rei, por trás dessa nova recusa está
Henrique de Guise, cuja intenção seria destituí-lo de toda a sua autoridade de
516
“Decidimos (...) que durante a nossa vida seja estabelecido sobre a questão da nossa Religião
Católica Apostólica e Romana, um bom e seguro repouso, e quando Deus quiser dispor dos nossos
dias para nos chamar a ele, possamos manter que não omitimos nada disso, onde o espírito
humano pode estender-se para evitar que depois da nossa morte não aconteça neste nosso Reino
mudança ou alteração na questão da Religião. Queremos nessa ocasião que todos os nossos súditos
católicos, seja qual for a sua dignidade, qualidade e condição, unam-se e se juntem a mim, para o
encaminhamento e completação de uma obra tão necessária e agradável a Deus, nos juntando a
eles e se unindo a nós para a conservação da nossa santa Religião”, Edict du roy sur l’union de ses
subjects Catholiques, 1588, s/p.
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monarca e tornar-se, no seu lugar, o líder incontestável da reação católica à
perniciosa influência protestante sobre o reino.
Henrique III decide então dar fim à sua disputa com o duque de Guise. Em
23 de dezembro de 1588, em Blois, o duque é assassinado pelos Quarente-Cinq, a
nova guarda pessoal do rei, criada em 1585. Henrique III, segundo um panfletista
royaliste, a fait entendre que c’est punition pour avoir conspiré et attenté contre
lui et son état
517
. O cardeal de Guise, irmão do duque, é preso e assassinado no
dia seguinte. Alguns deputados ligados à Santa União são presos, assim como o
cardeal de Bourbon. Mas ao contrário do que esperava Henrique III, a morte de
Guise faz aprofundar-se a distância entre ele e seus súditos, que vêem no
assassinato a confirmação da tirania real. Em 1589, Paris, dominada pela Liga
desde o Dia das Barricadas, meio ano antes, torna-se o centro de difusão de um
radicalismo religioso que se nutre na oposição ao rei. Na capital, as procissões
expiatórias, as perseguições aos funcionários da Coroa e aos partidários do rei
tornam-se mais e mais freqüentes. Ainda em janeiro a faculdade de teologia
declara os franceses livres do seu juramento de obediência ao rei. Henrique III
passa a ser Henri de Valois, pessoa privada, não mais rei. Por anagrama, Henri de
Valois é chamado também de Vilain Hérodes
518
, e comparado a Calígula, la vie
duquel est naïvement conforme à celle de Henri de Valois
519
.
De Paris e de outras cidades, as publicações contra Henrique III inundam a
França. Os assassinatos de 23 e 24 de dezembro, especialmente o do duque de
Guise, fizeram de um rei pouco popular o inimigo do reino e da religião. Segundo
os sermões e panfletos ligueurs, as penitências, as procissões, a devoção
manifestada por Henrique III não eram nada além de spécieux préceptes de son
maître Machiavel
520
, que ensinava a mentir e fingir para conquistar um objetivo,
517
“disse que é punição por ter conspirado e atentado contra ele e seu estado”, Apologie pour les
Catholiques d'Angers, demeurez fermes en l'obeissance du Roy, calumniez d'heresie, pour n'auoir
voulu estre de la ligue, 1589, p.32.
518
Denis Crouzet reporta uma passagem do Contre les fausses allegations que les plus
qu’Architofels, Conseillers Cabinalistes, proposent pour excuse Henry le meurtrier de l’assassinat
par luy perfidement commis en la personne du tres illustre Duc de Guise (1589) em que o autor
conta que un prêcheur de Paris lui a fait cet anagramme, Vilain Hérode(Crouzet, 1990, p.528
nota 97).
519
“cuja vida é naturalmente conforme a de Henrique de Valois”, L'Arpocratie ou Rabais du
caquet des politiques et Jebusiens de nostre aage. Dedié aux agens & catholiques associez du roy
de Navarre, 1589, p.12.
520
“sedutores preceitos de seu mestre Maquiavel”, Advertissement envoié par un Catholique aux
Villes de S. Quentin, Coucy et la Fere, salutaire et profitable pour les autre villes tenant party
contraire a l'Union, 1589, p.7.
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car s’il eût eu cette Religion et cette dévotion extérieure aussi fort imprimée en
l’âme, comme il le voulait montrer en apparence
521
, o protestantismo, e os
protestantes, teriam sido definitivamente expulsos do reino. Os crimes cometidos
contra os defensores do catolicismo haviam provado que l’habit ne faisait pas le
Moine, et sous la queue gisait le venin
522
. Se até o dia 23 de dezembro de 1588
havia sido possível ter a esperança de que Henrique III restabeleceria a Igreja en
sa première splendeur
523
sobretudo com a confirmação, durante a reunião dos
estados gerais, do édito da União –, depois desse dia fatal,
comment peut-on croire qu’il soit Catholique et Chrétien, ayant contre cette foi
publique par lui donnée, ratifiée et confirmée par le serment qu’il fit sur le saint
Sacrement de l’Autel en l’assemblée des États, massacré sans sujet un Cardinal
Prince, Légat du saint-siège Apostolique, et député de sa Province : Emprisonné
un autre Cardinal Prince du sang, et un Archevêque qu’il détient encore : fait tuer
et inhumainement assassiner le premier Prince du monde, la terreur des
Hérétiques, et l’appui des Catholiques Français?
524
A realidade do reinado de Henrique III era ainda pior pois, segundo o autor
anônimo desse Advertissement, aqueles que um dia acreditaram na sinceridade do
rei, que viram nele um defensor da religião quando ele na verdade contrefaisait
(...) le Religieux et dévot, faisant bâtir des Oratoires, portant par les rues l’habit
de Pénitent avec un fouet à la ceinture
525
, esses estavam sendo enganados desde
as primeiras horas de um governo infame. Convencidos de que as guerras civis
eram uma ameaça para o Estado, e de que o Estado deveria ser preservado a
qualquer custo, os bons cidadãos de Saint-Quentin, Coucy e La Fère haviam sido
levados a crer que a religião não estava em questão, e que portanto não se tratava
de salvá-la, mas de salvar o Estado. Mentiras. Mentiras de politiques, hereges e
ateus, qui vont publiant partout, qu’il n’y va point de la Religion, que l’on veut
seulement attenter à l’État, et que le Roi n’a autre désir que d’extirper les
521
“pois se ele tivesse tido essa Religião e essa devoção exterior tão fortemente impressa na alma,
como ele queria mostrar em aparência”, ibid., p.7.
522
“o hábito não fazia o Monge, e no rabo estava o veneno”, ibid., p.7.
523
“no seu primeiro esplendor”, ibid., p.7.
524
“como podemos acreditar que ele seja Católico e Cristão, tendo contra essa pública por ele
dada, ratificada e conformada pelo juramento que ele fez sobre o santo Sacramento do Altar na
assembléia dos Estados, massacrado sem motivo um Cardeal Príncipe, Legado da santa
Apostólica, e deputado da sua Província; Aprisionado um outro Cardeal Príncipe de sangue, e um
Arcebispo que ele ainda mantém preso; matado e inumanamente assassinado o primeiro Príncipe
do mundo, o terror dos Hereges, e o apoio dos Católicos Franceses?”, ibid., p.8.
525
“fingia (...) o Religioso e devoto, fazendo construir Oratórios, vestindo pelas ruas o hábito do
Penitente com um chicote na cintura”, ibid., p.7.
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hérésies
526
. Mentiras publicadas que, segundo o autor do Advis et exhortation en
toute humilité & obeissance, era preciso enfrentar:
Plus serait de besoin par une sévère ordonnance de réprimer et borner les langues
de ces gens qui ne se ressentent que de la terre, qu’on appelle politiques ou à
mieux dire Athéistes. Car de l’abondance du coeur (comme savez) la bouche parle,
et telles personnes peuvent de leurs méchantes langues messagères de leurs coeurs
pervers et de leurs pensées diaboliques, infecter les pauvres âmes simples, mêmes
par leurs faux bruits engendrer une division en cette ville de Paris, qui est l’oeil, le
miroir et la torche de la France. Lesquels témérairement par leurs serpentines
langues blâment et parlent mal tant des bons Princes morts, que de vivants : Ce qui
ne se devrait souffrir ni permettre entre nous autres Chrétiens et fidèles
Catholiques unis
527
.
Mentiras que, como as dissimulações do rei, sont des artifices du diable et
de ses supports
528
. E assim, pergunta o Advertissement aos moradores de Saint-
Quentin, Coucy e La Fère,
Ne voyez-vous pas que celui de qui vous soutenez si opiniâtrement le parti, et ses
supports, ne respirent autre chose que le sang des Catholiques, l’établissement de
l’hérésie, et abolition de la vraie Religion ?
529
Com esse único propósito Henrique III governava a França. Para o autor do
Advertissement, como para os outros panfletistas ligueurs, o assassinato do duque
de Guise era uma afronta feita ao mesmo tempo ao reino e a Deus. No Advis aux
catholiques francois, sur l'importance de ce qui se traicte aujourd'huy, sur
l'irresolution de quelques scrupuleux ensemble & principalement sur les ruzes des
politiques, atheistes, forgeurs de nouvelles, & aultres ennemys de Dieu, depois da
morte de Henrique de Guise –
ce grand Capitaine, voire le plus grand, le plus néreux et accompli en toute
vertu, que la France ait nourri depuis longtemps, feu monseigneur le Duc de
Guise, assassiné traîtreusement et méchamment à Blois, au Cabinet de celui qui se
disait roi très chrétien
530
526
“que vão publicando por todo lado, que não se trata da Religião, que querem apenas atentar
contra o Estado, e que o Rei deseja apenas extirpar a heresia”, ibid., p.12.
527
Advis et exhortation en toute humili & obeissance. A messeigneurs du Conseil d'Estat
general, de la saincte Union de l'Eglise catholique apostolique & romaine. Contre les
blasphemateurs du nom de Dieu, & de ceux qui seront trouvez en adultere & paillardise.
Ensemble contre ceux qui soustiennent les heretiques & politiques de ce temps, 1589, p.18.
528
“são artifícios do diabo e dos seus suportes”, Advertissement envoié par un Catholique aux
Villes de S. Quentin, Coucy et la Fere..., op.cit., p.12.
529
“Não vedes que esse cujo partido, e seus suportes, vós apoiais tão teimosamente, respiram
apenas o sangue dos Católicos, o estabelecimento da heresia, e a abolição da verdadeira
Religião?”, ibid., pp.4-5.
530
“esse grande Capitão, quiçá o maior, o mais generoso e completo em toda virtude, que
muitos anos a França alimentou, falecido senhor Duque de Guise, assassinado traidora e
malvadamente em Blois, no quarto daquele se dizia rei muito cristão”, Advis aux catholiques
francois, sur l'importance de ce qui se traicte aujourd'huy, sur l'irresolution de quelques
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depois da morte de Guise, portanto, tornava-se uma obrigação juntar-se à Liga
para enfrentar l’injure de ce tyran
531
, e também ces Politiques qui ont été tant
étroits amis de ce tyran
532
; para defender o reino e a religião.
Os assassinatos dos líderes católicos ordenados pelo rei em Blois
resultaram em uma radicalização da violência da Liga contra o rei. Segundo Denis
Crouzet, depois de dezembro de 1588,
il y a Union des catholiques, parce qu’il y a affirmation sacrale que nul ne doit
préférer une chose mortelle et caduque à Dieu (...). Dieu doit primer sur tout, et la
résistance au roi est légitime parce que Dieu doit être aimé
533
acima de todas as coisas, acima também do rei.
A oitava guerra civil, iniciada na primavera de 1585, custava ao rei suas
diminutas reservas, e muitas cidades que haviam sido tomada pelos exércitos
ligueurs eram-lhe agora hostis. Ainda mais isolado do que antes da morte de
Henrique de Guise, o rei propõe uma aliança a Navarra. Este vinha publicando,
sempre com redação de Philippe Duplessis-Mornay, cartas aos três estados do
reino, aos membros do parlamento de Paris e aos parisienses, nas quais afirmava a
sua vontade de paz, e assegurava que esta não seria atingida pela eliminação do
catolicismo, mas apenas pelo respeito deste e dos católicos. Em 13 de abril de
1589, os representantes de Henrique III e Navarra assinam em Tours um acordo,
com validade de um ano, estipulando que este último deveria combater o duque de
Mayenne, irmão e herdeiro de Guise na liderança da Santa União, e, em troca,
poderia manter, entre as cidades retomadas, uma por bailia. No mesmo mês,
Navarra atravessa o rio Loire e junta-se a Henrique III, no dia 30 de abril de 1589,
em Plessis-lès-Tours, de onde seguem com seus exércitos, que, somados, contam
mais de 30 mil homens, na direção de Saint-Cloud. Em maio, o papa Sixto V
excomunga o rei da França. Em julho, Henrique III e Navarra cercam Paris.
Dentro da cidade, as opiniões exacerbam-se. A Santa União declara justa e
necessária a desobediência ao rei, e a deposição deste passa a ser a matéria da
scrupuleux ensemble & principalement sur les ruzes des politiques, atheistes, forgeurs de
nouvelles, & aultres ennemys de Dieu, 1589, p.4.
531
“injúria desse tirano”, ibid., p.5.
532
“esses Politiques que foram tão próximos amigos desse tirano”, Dieudonné, op.cit., p.25.
533
“há União dos católicos porque afirmação sacral que ninguém deve preferir algo mortal e
caduco a Deus (...). Deus deve primar sobre tudo, e a resistência ao rei é legítima porque Deus
deve ser amado”, Crouzet, 1990, p.491.
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quase totalidade dos sermões ouvidos na capital. O autor do Advertissement
envoié par un Catholique aux Villes de S. Quentin, Coucy et la Fere explica que,
sendo Deus o verdadeiro rei da França, e a religião o seu verdadeiro Estado, o rei
a ser respeitado não era Henrique III, nem o Estado a ser mantido era o seu
governo, pois
nous avons donc avant toutes autres choses, et sans aucun respect humain, à
contenter le Roi des Rois, et conserver son État en la France (qui est sa Religion)
contre tous les assauts et des hommes et des diables, laquelle nous voyons que
celui qu’il nous avait donné pour son ministre, et que nous avons jusqu’à cette
heure reconnu pour tel, veut éteindre et assoupir
534
.
No Advis aux catholiques francois, a exortação final tem o objetivo de
demover os últimos partidários de Henrique III, que alegavam em seu favor a
religiosidade do rei e a fidelidade devida a ele por juramento:
Il est notre Roi, dites-vous, il est l’Oint de Dieu : O combien vous le poignez au
vif ! c’est autant comme si vous disiez, il est défenseur de la religion, protecteur de
la patrie, père du peuple (car voilà que c’est être Roi, Roi de France) et vous voyez
comme il a sapé l’Église, favorisé l’hérétique, fait venir les étrangers en ce pauvre
Royaume (...). Si vous doutez qu’il soit hérétique : je vous renvoie aux effets (...) Je
crois que nous sommes tous charmés. Eh bien cela vous semble dur, de démettre un
Roi, lui ôter la couronne : pourquoi ? puisqu’il viole le serment fait en son sacre,
pour ce qu’il détruit l’Église, puisque lui nous a délivré du serment de fidélité, s’il
violait sa Foi puisqu’il se rend indigne de telle majesté ?
535
Alguns sermões ligueurs radicalizam a oposição ao rei: o tiranicídio é
justificado como um ato de libertação do povo de Deus. Em 1º de agosto, o monge
Jacques Clément apunhala Henrique III, que morre no dia seguinte. Nas ruas de
Paris, a notícia é comemorada: Bonnes nouvelles, mes amis! Bonnes nouvelles!
Le tyran est mort! Il n’y a plus de Henri de Valois en France !
536
.
534
“nós temos portanto antes de tudo mais, e sem nenhum respeito humano, que contentar o Rei
dos Reis, e conservar o seu Estado na França (que é a sua Religião) contra todos os ataques tanto
dos homens quanto dos diabos, a qual vemos que aquele que ele nos havia dado como seu
ministro, e que nós até agora reconhecemos como tal, quer extinguir e eliminar”, Advertissement
envoié par un Catholique aux Villes de S. Quentin, Coucy et la Fere..., op. cit., p.6.
535
“Ele é nosso Rei, dizeis, ele é o Ungido de Deus: é como se dissésseis, ele é defensor da
religião, protetor da tria, pai do povo (pois eis o que é ser Rei, Rei da França) e vês como ele
minou a Igreja, favoreceu o herege, fez virem os estrangeiros nesse Reino (...). Se duvidais que ele
seja herege : eu vos remeto aos efeitos (...) Creio que estamos todos enfeitiçados. Pois bem,
parece-vos duro depor um Rei, tirar-lhe sua coroa: por quê? posto que ele viola o juramento feito
na sagração, porque ele destrói a Igreja, posto que ele nos libertou do juramento de fidelidade, se
ele violasse sua Fé posto que ele se torna indigno de tal majestade”, Advis aux catholiques
francois..., op.cit., pp.22-23.
536
“Boas notícias, meus amigos! Boas notícias! O tirano está morto! Não mais Henrique de
Valois na França!” apud Crouzet, 1990, p.492.
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2.
1589-1598
A paz pela tolerância civil: Henrique IV e os politiques
1589 é provavelmente o ano em que mais trabalharam as prensas a serviço
da Santa União. Delas saíram centenas de publicações em que Henrique III era
descrito como o inimigo maior da religião e do reino, como o Advertissement des
nouvelles cruautez et inhumanitez, desseignees par le Tyran de la France, e o
Advertissement aux Catholiques sur la Bulle de nostre Sainct Pere, touchant
l’excommunication de Henry de Valois. Depois da morte do rei, rias
publicações descreveram o tiranicídio, remetendo à providência divina a ação do
monge dominicano Jacques Clément, entre eles o Advertissement, ou Vray
discours de ce qui est advenu à Pont S. Clou, touchant la mort de Henry de
Valois. O Discours veritable de l’estrange & subite mort de Henry de Valois,
advenue par permission divine, versão mais longa dentre uma série de textos
(entre eles o Advertissement citado) em que a morte de Henrique III era explicada
aos franceses, revelava, na relação entre o rei e os politiques e protestantes, a
união de heresia e mau governo que o levara a ser excomungado pelo papa e
finalmente executado por um monge que havia provado “combien les forces
divines surpassent les humaines
537
. Segundo o Discours,
Il n’y a celui d’entre nous qui ne soit certain, avec suffisante et déplorable épreuve
du mal que Henri de Valois pendant son gne a procuré à ses sujets,
principalement à ceux qu’il a connu être bons et fidèles Catholiques, et par
conséquent amateurs de la vertu et du bien public, et ennemis des hérétiques et
politiques de ce Royaume, qu’il a préféré à Dieu, à l’Église, et à son honneur
538
.
Em Paris, Jacques Clément é aclamado como o Anjo libertador
539
enviado
por Deus. Morto pela guarda real imediatamente após ter apunhalado o rei, o
monge torna-se rapidamente o mais importante rtir da Santa União. Roland
Mousnier afirma que
537
“quanto as forças divinas superam as humanas”, Discours veritable de l’estrange & subite mort
de Henry de Valois, 1589, p.Aiij.
538
“Não há ninguém entre nós que não esteja certo, com suficiente e deplorável prova do mal que
Henrique de Valois durante seu reino gerou para os seus súditos, principalmente para os que ele
sabia serem bons e fiéis Católicos, e conseqüentemente amadores da virtude e do bem público, e
inimigos dos hereges e politiques desse Reino, que ele preferiu a Deus, à Igreja, e à sua honra”,
ibid., s/p.
539
Cf. Crouzet, 1990, p.491.
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les “bons catholiques”, les “bons fidèles chrétiens” (...) célébrèrent Jacques
Clément comme l’envoyé du Ciel pour délivrer le peuple catholique, comme
l’instrument de Dieu, comme un martyr, comme un saint
540
.
Como instrumento da vontade divina, o monge não era culpado de
assassinato, não havia pecado no seu gesto; o assassinato do tirano havia se
tornado um dever, e não um crime. A Arpocratie ou Rabais du caquet des
politiques et Jebusiens de nostre aage
541
demonstra como essa transformação foi
justificada: recorrendo sobretudo aos escritos bíblicos, mas também à história
romana, à francesa e a autores contemporâneos, como Bodin
542
, seu autor sustenta
que o assassinato de Henrique III não havia sido um crime, e sim o cumprimento
de uma lei divina. Segundo a Arpocratie,
Non seulement il est permis de tuer un tyran, mais aussi c’est une chose juste et
raisonnable, car celui qui abuse du glaive qu’il porte, mérite et est digne de mourir
par le même glaive
543
.
Mais do que isso, havia sido um ato da Providência:
Pour cette cause la sacro-sainte école de Sorbonne ayant connu les actions, vies et
moeurs de ce bon Religieux, d’un commun accord a conclu qu’il n’a point péché,
attendu que cela s’est fait par le mouvement et instinct du Saint Esprit
544
.
Em Saint-Cloud, Henrique III teve tempo, antes de morrer no dia 2 de
agosto, de designar Navarra como seu sucessor. O embaixador de Veneza,
540
“os “bons católicos”, os “bons fiéis cristãos” (...) celebraram Jacques Clément como o enviado
do Céu para libertar seu povo católico, como o instrumento de Deus, como um mártir, como um
santo”, Mousnier, 1964, p.199.
541
O certificado de aprovação dado pelos Docteurspara a impressão do texto é datado de 8
de setembro de 1589, ou seja, pouco mais de um s após a morte de Henrique III. Inserido na
última página do panfleto, nele se lê: Nous certifions avoir lu ce présent traité intitulé,
l’Arpocratie ou rabais du caquet des Politiques ou des jébusiens de notre âge, auquel traité nous
n’avons rien vu qui soit contre la foi et la religion Catholique, ni contre les bonnes moeurs, fait ce
vingt-huitième jour de Septembre 1589.
542
O autor da Arpocratie faz menção ao capítulo II do livro V dos Six livres de la République, de
Bodin. Neste capítulo, Bodin chega no entanto à conclusão inversa daquela que mantém o autor da
Arpocratie, isto é, Bodin afirma que não é lícito matar o rei, mesmo sendo ele um tirano: Je dis
donc que jamais le sujet n’est recevable de rien attenter contre son Prince souverain, pour
méchant et cruel tyran qu’il soit; il est bien licite de ne lui obéir pas en chose qui soit contre la loi
de Dieu ou de nature, s’enfuir, se cacher, parer les coups, souffrir la mort plutôt que d’attenter à
sa vie, ni à son honneur” (Bodin, 1993, II, V, p.229).
543
“Não apenas é permitido matar um tirano, mas também é algo justo e razoável, pois aquele que
abusa da espada que carrega, merece e é digno de morrer pela mesma espada”, L'Arpocratie...,
op.cit., p.10.
544
“Por causa disso a sacro-santa escola da Sorbonne tendo conhecido as ações, vidas e costumes
desse bom Religioso, de comum acordo concluiu que ele o pecou, visto que isso foi feito pelo
movimento e instinto do Espírito Santo”, ibid., p.10.
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Giovanni Mocenigo, que estava em Tours quando o rei foi atacado, reconstruiu, a
partir dos relatos dos presentes à cena, as últimas declarações de Henrique III:
Mon frère, vous voyez comment vos ennemis et les miens m’ont traité ; il faut que
vous preniez garde qu’ils ne vous en fassent autant. (...) Messieurs, approchez-vous
et écoutez mes dernières intentions sur les choses que nous devrez observer quand
il plaira à Dieu de me faire partir de ce monde. (...) Je vous prie comme mes amis,
et vous ordonne comme votre roi, que vous reconnaissiez après ma mort mon frère
que voilà, que vous ayez la même affection et fidélité pour lui que vous avez
toujours eue pour moi, et que, pour ma satisfaction et votre propre devoir, vous lui
en prêtiez le serment en ma présence. Et vous, mon frère, que Dieu vous y assiste
de sa divine providence
545
.
Um autor ligueur sob o pseudônimo de Jean de La Mothe apresentará em
1591 a sua versão para os momentos finais de Henrique III, reiterando a imagem
divulgada pela Liga depois do assassinado do duque de Guise segundo a qual o rei
havia se dedicado mais a desprezar e combater a verdadeira religião do que a
defendê-la, ao mesmo tempo descrevendo a relação entre Henrique III e Navarra e
os politiques, herdeiros das suas más-intenções: o rei,
étant au lit de la mort, avait néanmoins insisté en l’alliance des libertins,
hérétiques et politiques : et qu’au lieu de penser en sa conscience et au salut de sa
pauvre âme, et d’impétrer de Dieu merci de sa vie lubrique, bestiale, tyrannique,
hypocrite, ambitieuse, voluptueuse, tant détestable et damnable, à l’imitation d’un
Antiochus, ou Hérode, ou d’un Julian l’Apostat, il écumait encore plus sa rage, et
faisait apparaître son félon, contre les bons Catholiques de son Royaume, qui lui
avaient été meilleurs vassaux qu’il ne leur avait été bon Roi. Et ce qui est plus
déplorable pour sa pauvre âme, lorsqu’il ne devait penser qu’en Dieu, en larmes,
soupirs et confession sacramentelle, et en la réception du saint Sacrement de
l’autel et en l’extrême onction, il institua son successeur son beau frère et cousin,
Henri de Bourbon hérétique et relaps, et par le saint père de Rome
personnellement excommunié, en lui requérant, et à tous ses fauteurs, qu’ils
eussent de venger sa mort, et de poursuivre les Catholiques associés et unis pour
l’entretien de l’honneur de Dieu, et de la religion Apostol. Cathol. et Romaine,
disant et tellement leur enchargeant de venger sa mort, qu’ils eussent d’y employer
le vert et le sec, c’est-à-dire tous leurs amis, biens et pouvoir, afin qu’ils fussent
exterminés
546
.
545
Meu irmão, vedes como vossos inimigos e os meus me trataram; é preciso que tomeis cuidado
para que eles não vos façam o mesmo. (...) Senhores, aproximem-se e escutem minhas últimas
intenções sobre as coisas que devereis fazer quando Deus quiser me fazer partir deste mundo. (...)
Eu vos peço como meus amigos, e ordeno como vosso rei, que reconheçais depois da minha morte
meu irmão que aqui está, que tenhais a mesma afeição e fidelidade com ele que sempre tiveram
comigo, e que, para minha satisfação e vosso próprio dever, prestem-se juramento na minha
presença. E vós, meu irmão, que Deus vos ajude na sua divina providência”, apud Cottret, op.cit.,
pp.135-136.
546
“estando no leito de morte, tinha entretanto insistido na aliança com os libertinos, hereges e
politiques: e que em vez de pensar na sua consciência e na salvação da sua pobre alma, e rogar de
Deus perdão pela sua vida lúbrica, bestial, tirânica, hipócrita, ambiciosa, voluptuosa, tão detestável
e condenável, como um Antiochus, ou Herodes, ou um Julian l’Apostat, ele espumava ainda mais
a sua raiva, e fazia aparecer sua traição, contra os bons Católicos do seu reino, que lhe tinham sido
melhores vassalos do que ele tinha sido bom Rei. E o que é mais deplorável para a sua pobre alma,
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200
As disposições do rei moribundo encontram resistência entre os senhores
católicos que o apoiavam, e que se indispõem com a obrigação de servirem a um
rei protestante. Para começar a vencer as dificuldades que se apresentarão ao seu
reconhecimento como rei, Navarra publica uma Déclaration et serment du roi à
son avènement à la couronne, feita no dia 4 de agosto, em que afirma a intenção
de maintenir et conserver en notre royaume, la religion catholique, apostolique
et romaine en son entier, sans y innover, ni changer aucune chose
547
.
Mas talvez, para os senhores católicos que permaneceram ao lado de
Henrique III, mais decisivo para o seu apoio a Navarra do que manter a religião
tenha sido o compromisso por ele assumido “d’être instruit par un bon, légitime et
libre concile général et national pour en suivre et observer ce qui y sera conclu et
arrêté
548
. O novo rei dessa forma reiterava as indicações de que não se opunha,
em princípio, a abdicar do protestantismo e tornar-se novamente católico, e,
através delas, obtém o apoio da maioria dos católicos moderados do reino e
fortalece sua ligação com os politiques, que serão os seus mais importantes
aliados na reconquista do reino. Para Arlette Jouanna, a perspectiva de uma
conversão resultou no engagement de la majorité des Politiques aux côtés de
Henri IV”, adesão que
s’est accompagné d’un combat résolu en faveur de quelques thèmes simples qui
donnent à leur pensée l’épaisseur doctrinale qui lui manquait jusqu’alors. Ils ont
été ainsi des artisans efficaces du ralliement des esprits au roi
549
.
Por outro lado, a promessa de Henrique IV desagrada aos senhores ligueurs,
que vêem nela uma manobra para desestruturar o argumento da oposição católica
no momento em que ele devia pensar apenas em Deus, em lágrimas, suspiros e confissão
sacramental, e no recebimento do santo Sacramento do altar e em extrema unção, ele instituiu seu
sucessor seu cunhado e primo, Henrique de Bourbon herege e relapso, e pelo santo padre de Roma
excomungado pessoalmente, requerendo dele, e a todos os seus desenganados, que eles vingassem
a sua morte, e perseguissem os Católicos associados e unidos para a conservação da honra de
Deus, e da religião Apostol. Catol. e Romana, dizendo e tanto os encarregando de vingar a sua
morte, tivessem eles que empregar tudo, quer dizer, todos os seus amigos, bens e poderes, a fim de
que eles fossem exterminados”, La Mothe, 1591, pp.5-6.
547
“de manter e conservar no nosso Reino a religião católica, apostólica e romana inteiramente,
sem inovar, nem mudar nada”, Henri IV, 1829, t. XV, p.3.
548
“de ser instruído por um bom, legítimo e livre concílio geral e nacional para seguir e observar o
que será concluído e decretado nele”, id., ibid., p.3.
549
“engajamanento da maioria dos Politiques ao lado de Henrique IV”, “foi acompanhada por um
combate decidido em favor de alguns temas simples que dão ao seu pensamento o volume
doutrinal que lhe faltava até então. Eles foram assim os artesãos eficazes da adesão dos espíritos ao
rei”, Jouanna, op.cit., p.391.
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baseado na impossibilidade de se receber e obedecer a um rei herege. No dia
seguinte à declaração de Navarra, o duque de Mayenne, nomeado pela Santa
União lugar-tenente geral após a morte do irmão, torna pública uma Déclaration
du lieutenant général et du conseil général de l’union pour réunir tous les
Français à la défense de la religion catholique. Nela, Mayenne insiste que a
intenção da Santa União
n’a jamais été autre que de s’opposer aux desseins desdits rétiques, pour
conserver ladite religion catholique et cette couronne en leur entier, qui sont deux
choses qu’ils ont toujours estimées, comme nous tenons encore être
inséparables
550
.
Nos seus sermões e publicações, a Liga não deixará portanto de repetir seu
zelo pela ordem monárquico-religiosa que unia o rei à Igreja, e de criticar os
católicos que se haviam aliado a Navarra, especialmente os politiques, que, junto
com os protestantes, teriam abandonado a verdadeira para servirem aos seus
próprios interesses. Segundo o veil matin et mot du guet des bons catholiques, é
Henrique de Navarra, com a ajuda de
son damnable parti, (...) le capital ennemi de ladite tant sainte et si salutaire union,
et par conséquent de la Religion Catholique, Apostolique et Romaine, dont ils
devraient être les premiers appuis et défenseurs
551
.
Expor o perigo representado por essa Ligue des hérétiques et politiques de
ce Royaume
552
, a que o Réveil matin se refere, é o propósito por exemplo do
citado Advertissement envoié par un Catholique aux Villes de S. Quentin, Coucy
et la Fere, de 1589, em que um ligueur explica aos habitantes dessas cidades as
razões por que eles deveriam abandonar o partido de Henrique III e dos politiques
para se juntarem à Liga e enfrentarem aqueles e os protestantes. Je sais que vous
me direz”, afirma o autor anônimo,
que votre but et votre intention est de maintenir l’État de la France, et que vous ne
vous souciez point quoi qu’il advienne, pourvu qu’il ne périsse. Mais vous devez
penser, que de tous ceux qui portent les armes pour le parti de l’Union, il n’y en a
point qui après le fait de la Religion, ait autre but que celui-là (...) avez-vous
maintenant les yeux et l’entendement, que vous ne pouvez discerner ni reconnaître
la ruse de notre ennemi, qui pour être soutenu de vous, ne couche que de l’État,
550
“foi sempre se opor aos propósitos dos ditos hereges, para conversar a dita religião católica
inteiramente, que são duas coisas que eles sempre estimaram, como estimamos ainda, serem
inseparáveis”, Mayenne, 1589, s/p.
551
“seu condenável partido, (...) o inimigo capital da dita tão santa e salutar união, e
conseqüentemente da Religião Católica, Apostólica e Romana, de que eles deveriam ser os
primeiros apoios e defesas”, La Mothe, op.cit., p.2.
552
“Liga dos hereges e politiques deste Reino”, ibid., p.4.
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202
sachant comme il est très certain que de la conservation d’icelui, vu l’état auquel
est maintenant cette pauvre France, dépend la dépérdition de la Religion
Catholique, et l’établissement de l’hérésie ? Vous devez savoir et croire, qu’en
cette querelle générale de la France, il y va principalement de la Religion et non
de l’État. Cause pourquoi vous devez fléchir et démettre toutes vos affections
particulières, aussi véritablement l’État de la France ne se peut perdre, trop bien
changer de main : mais la Religion y peut périr et y être abolie, comme de fait on y
tend
553
.
Se a França seguisse pela via traçada por Henrique III, sobretudo depois da
sua aliança com Navarra, o reino poderia sobreviver – mesmo mudando de mãos o
reino não se acabaria –, diz o Advertissement, mas a religião pereceria. A temática
da comparação entre a destruição do reino e a da religião foi comum nas
publicações durante as guerras de religião. O Advertissement aux trois estats de
France assemblez en la ville de Blois recorria a ela para assegurar os leitores de
que, em uma França sem religião, não valeria a pena viver. Na sua invocação
final, o autor anônimo diz que é melhor morrer católico do que ser obrigado a
viver em meio à heresia:
Mourons Chrétiens, mourons Catholiques, de bonne heure mourons, si l’on veut
plutôt condamnés de rébellion au jugement de quelques politiques que convaincus
en nos âmes de religion d’avoir manqué de nous opposer par toutes voies aux
hérétiques, mourons devant que de voir mourir notre foi, mourons, car aussi bien
nous n’emporterons rien en mourant, que nous ne réservions, si nous vivons à la
disposition des hérétiques, à son honneur et vie : mais en mourant n’oublions par
de mener mourir nos enfants avec nous, de peur que en leur laissant cette vie ils ne
soient par la commination hérétique conduits à la mort et condamnation
éternelle
554
.
553
“Eu sei que me direis”, “que vosso objetivo e vossa intenção é a conservação do Estado da
França, e que não vos preocupais com nada, desde que ele não pereça. Mas deveis pensar, que de
todos os que se armaram pelo partido da União, não há nenhum que depois da questão da Religião,
tenha outro objetivo que não esse (...) onde tendes agora os olhos e o entendimento, que não podeis
discernir nem reconhecer a astúcia do nosso inimigo, que para ser apoiado por vós, fala apenas do
Estado, sabendo como é certo que para a conservação deste, visto o estado em que está agora esta
pobre França, depende a perda da Religião Católica, e a instalação da heresia? Deveis saber e crer
que nessa querela geral da França, trata-se principalmente da Religião e não do Estado. Razão pela
qual deveis vos curvar e eliminar todas as suas afeições particulares, tão verdadeiramente o Estado
da França não pode se perder, quando muito mudar de os: mas a Religião pode perecer e ser
abolida, como de fato se pretende”, Advertissement envoié par un Catholique aux Villes de S.
Quentin, Coucy et la Fere..., op.cit., pp.4-5.
554
“Morramos Cristãos, morramos Católicos, cedo morramos, se for o caso melhor sermos
condenados por rebelião segundo o julgamento de alguns politiques, do que convencidos em
nossas almas religiosas de termos deixado de nos opor por todas as vias aos hereges, morramos
antes que ver morrer nossa fé, morramos pois também não levaremos nada morrendo que não
perderíamos se vivermos à disposição dos hereges, à sua honra e vida: mas ao morrermos, o
esqueçamos de levar a morrerem conosco nossos filhos, de medo que os deixando essa vida eles
sejam, pela ameaça herege, levados à morte e condenação eterna”, Advertissement aux trois estats
de France assemblez en la ville de Blois..., op.cit., pp.21-22.
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203
No trecho do Advertissement aux trois estats, o autor se refere aos politiques
sugerindo que eles acusavam a Liga de rebeldia porque os ligueurs escolhiam
enfrentar os protestantes a “ver morrer a fé”. Em outras palavras, se a Santa União
fosse condenada por defender a religião, ela o seria pelo partido que, tendo que
decidir entre a religião e o Estado, escolhia o Estado e abandonava a religião para
ser arruinada. Um panfleto publicado em 1590, com o título de Raisons des
politiques qui veullent faire Henry de Bourbon Roy de France, & celles des
Catholiques, par lesquelles est prouvé qu’il ne le doit estre, afirma que Navarra,
como os seus politiques,ne reconnaît plus grand que soi en ce monde
555
.
Segundo o Fouet des heretiques, politiques, et traistres de la France associez du
feu Roy de Navarre, este partido era formado por franceses que se declaravam
bons católicos e excelentes súditos, mas que eram na verdade inimigos da religião.
No texto anônimo de 1590, um amigo explica ao autor, um francês que voltava da
Itália onde se dizia que les Français ont divisé Jésus Christ
556
–, que o reino
estava de fato cindido entre “deux partis de Catholiques
557
, e que
tous les prétextes & excuses, de ceux lesquels se disent Catholiques, & néanmoins
tenant le parti du Roi de Navarre, avancent en ce qu’ils peuvent le parti des
hérétiques, n’ont aucune apparence entre les gens de bien, & que se sont vrais
ennemis de la religion Catholique, plus dangereux en l’Église de Dieu que ceux qui
ouvertement sont hérétiques
558
.
Os inimigos da religião mais perigosos ainda do que os protestantes,
fórmula várias vezes repetida desde a década de 1580, tornam-se, depois da morte
de Henrique III, o inimigo principal a combater. O assassinato do rei e a ascensão
de Henrique de Navarra criam um fosso na França que subverte a divisão entre
católicos e protestantes. Desde o início das guerras de religião, em 1562, a mera
clivagem entre as confissões não traduzia corretamente a ruptura que a Reforma
protestante havia produzido no reino. em 1560 havia membros da alta nobreza
católica que discordavam da posição intransigente do grupo que estava se
555
“não reconhece maior que si mesmo neste mundo”, Raisons des politiques qui veullent faire
Henry de Bourbon Roy de France, & celles des Catholiques, par lesquelles est prouvé qu’il ne le
doit estre, 1590, p.8.
556
“que os franceses dividiram Jesus Cristo”, Le fouet des heretiques, politiques, et traistres de la
France associez du feu Roy de Navarre, 1590, p.5.
557
“dois partidos de Católicos” ibid, p.5.
558
“todos os pretextos e desculpas, dos que se dizem Católicos, e no entanto apoiando o partido do
Rei da Navarra, avançam no que podem o partido herege, não têm nenhuma aceitação entre as
pessoas de bem, e que são verdadeiros inimigos da religião Católica, mais perigosos na Igreja de
Deus do que os que são abertamente hereges”, ibid., p.5.
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204
transformando no partido católico. A Coroa, especialmente durante a chancelaria
de Michel de L’Hospital, desaprovara o plano de extirpação da heresia proposto
pelos católicos intransigentes, e, depois do afastamento do chanceler, o projeto de
instauração da tolerância civil havia sido mantido por Catarina de Médici e seus
filhos, Carlos IX e Henrique III. Mas, mesmo conduzindo um processo que levaria
à dualidade confessional, a Coroa guardava como objetivo final o retorno do reino
à unidade católica a tolerância civil implicava em uma coexistência temporária
de católicos e protestantes como meio de solucionar o problema das guerras civis,
e a pacificação do reino permitiria a um concílio nacional ou universal prover
à questão da reforma da Igreja. A hipótese de uma conversão do rei ao
protestantismo não havia sido aventada seriamente em nenhum momento. Apesar
das divergências entre a Coroa e o partido católico, apesar da política de
tolerância civil e de por vezes apoiar o partido protestante, a monarquia
permanecia e permaneceria católica. Até que a morte do duque de Alençon-Anjou,
em 1584, alçou o protestante Henrique de Navarra à condição de herdeiro do
trono.
Durante os cinco anos que separaram a morte de François d’Alençon-Anjou
do assassinato do último Valois, a divisão pouco nítida entre católicos e
protestantes transformou-se, primeiro, em uma oposição entre legalistas que
consideravam a lei sálica lei fundamental do reino, e portanto inviolável – e
aqueles que preferiam recorrer a outros critérios para decidir a sucessão, de modo
a garantirem que o novo rei fosse um católico. Os partidos em disputa, politiques,
ligueurs, protestantes, católicos moderados e mesmo a Coroa, repartiram-se entre
essas duas posições. A discussão centrava-se na questão da religião do rei. Era
possível que o rei da França, que usava o epíteto de Très-Chrétien, não fosse
católico? Para a Liga, não. Segundo Louis Dorléans, mais importante do que
respeitar a lei sálica era fazer cumprir a lei de Deus, que, no Deuteronômio, ne
permet de recevoir un Roi infidèle, qui puisse conduire son peuple à
l’infidélité
559
. Por essa razão um dos propósitos que haviam levado à organização
559
“não permite receber um rei infiel, que possa levar seu povo à infidelidade”, Dorléans, op.cit.,
p.29.
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205
da Liga era qu’aucun ne soit admis et reçu à la Couronne s’il n’est
Catholique, et tel que tous les Rois de France ont été en Religion
560
.
Para os aliados de Henrique de Navarra, os critérios para a definição do rei
deveriam seguir as leis fundamentais do reino, e além disso poderiam se basear no
caráter do pretendente ao trono, na sua vida pregressa e nas demonstrações que
ele havia dado de que tinha a intenção e seria capaz de defender o bem comum. O
autor do Restaurateur de l’État François faz um longo elogio de Navarra, no qual
apresenta as suas muitas qualidades, todas imprescindíveis ao bom rei. Nenhuma
menção à sua religião, nem à preservação da religião, é feita:
Je puis dire avec l’aveu de vos consciences, avec vérité, qu’il surpasse en toutes les
parties requises en un bon Prince l’élection & les souhaits des hommes. Il est
agréable et louable en sa personne & actions autant qu’homme qui vive. Il règne
sur lui & sur ses sujets plus divinement qu’humainement. C’est l’esprit le plus vif,
le plus arrêté & le plus ferme qu’on puisse désirer, la liberté duquel on n’a jamais
vu être captivée par quelconques affaires de contentement ou d’ennui qui lui soient
survenues. Il est toujours élevé par dessus tout ce qui ce présente. Sa raison lui est
si naturelle, est si puissante & remplit tellement son esprit, que les passion n’y
peuvent demeurer n’y entrer. Jamais homme ne se ressembla tant à toutes heures
qu’il se ressemble. Il est grand guerrier si jamais il en fut, il communique avec les
soldats en toutes les fatigues de la guerre, ne différant en rien de ses soldats qu’en
incomparable conduite & valeur, il est avisé & heureux en guerre, & s’il se peut
dire il est digne de son heur : jamais Prince ayant si peu de volonté de faire la
guerre que lui, ne fit tant d’exploits de guerre que lui, Ce ne sont point les hommes,
mais la raison, l’expérience & le jugement qui sont aux hommes qui le gouvernent
avec le conseil de son âme & l’Esprit de Dieu. Il aime ses affaires, il veut tout voir,
ouïr et savoir : ce qui apporte un ts grand soulagement aux sujets & est le seul
ou plus sûr moyen de maintenir les officiers en leur devoir. Il est populaire, il est
affable, il est doux & clément : & néanmoins il n’y a Prince qui aie plus de
majesté, qui attire tant le respect, qui contienne mieux un chacun en son devoir, &
qui conserve mieux la Justice au contentement de tous que lui. Il ne connaît la
cruauté, l’injustice, la prodigalité & l’oppression, que comme choses contraires à
ce à quoi il s’étudie : on n’a jamais oui dire, qu’il ait tué, massacré ou assassiné
aucun de ses sujets, aucun de ses serviteurs dans son foyer ou ailleurs : on ne sait
point qu’il détienne injustement le bien d’autrui, ses Palais ne sont point tit ni
enrichit de la ruine & saccagement des villes & du peuple : il dépend selon ses
moyens, il estime plutôt ses moyens être à ses sujets que ceux de ses sujets être à
lui : il donne tellement, qu’il a assez d’amis & serviteurs, il donne tellement, qu’il
lui en reste assez, pour subvenir à ses affaires, sans qu’il soit contraint avoir
recours aux oppressions. Cette vérité n’est point offensée, pour les oppressions que
beaucoup sentent aujourd’hui des armées & gens de guerre du Roi de Navarre.
Car il en est autant ennuyé que ceux même qui sentent & souffrent les pertes &
incommodités, il le témoigne assez par la vérité de ses larmes, par ses plaintes
ordinaires, par les soigneuses poursuites qu’il fait de la paix, par les courtoisies
ordinaires qu’il fait à ceux qui implorent sa Clémence : il ne tient pas à lui qu’il ne
soit aussi doux en la guerre, qu’il est en la paix, il retranche tant qu’il peut les
justes sévérités de la guerre, mais il ne peut faire que la guerre ne soit guerre. S’il
560
“que ninguém seja admitido e recebido na Coroa se o for Católico, e como todos os Reis da
França forma quanto à Religião”, id., ibid., p.4.
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avait assez de moyens pour soudoyer & entretenir ses gentilshommes & soldats,
pour soutenir le fait de la guerre contre ses ennemis, vous pouvez croire qu’il le
ferait, & que les choses se passeraient si doucement, que vous seriez peu ou point
incommodés par les siens, pour le désir qu’il a de vous soulager tous. Mais il lui
est impossible d’exécuter cette bonne volonté qu’il a envers vous : d’autant que la
plupart de ses biens sont saisis & levés par ses ennemis, tous ceux qui le suivent
Seigneurs, gentilshommes & autres sont injustement bannis de leurs pays, chassés
de leurs maisons, privés de la jouissance de leurs biens & frustrés de l’exercice de
leurs vacations. Il faut qu’ils vivent, qu’ils s’entretiennent puisqu’ils ne le peuvent
de leurs biens, parce que leurs ennemis les usurpent, il faut qu’ils se servent du
bien de leurs ennemis, de ce qu’ils trouvent. Ainsi ce n’est pas du Roi de Navarre
qu’il se faut plaindre : c’est de la guerre, c’est des auteurs de cette guerre, laquelle
il n’a point commencé, mais en est extrêmement déplaisant, il ne demande & ne
prétend bien ni repos, qu’avec le bien & le repos de vous tous. Il se peut bien
abstenir des plaisirs de votre Cour : il se résoudrait incontinent de renoncer à
votre Couronne s’il n’y allait que du sien : mais il y va plus du votre que du sien :
il y va de vos biens, de vos honneurs & dignités, de votre renommée, de votre vie &
de la liberté qui a toujours éinestimable à tous hommes, mais principalement à
vos ancêtres : tellement que le devoir, son rang, sa vocation & la bonne volon
qu’il vous porte ne lui permettent point de vous abandonner au péril auquel vous
êtes, & parce qu’il vous veut préserver de ruine ou servitude : ou périr pour vous,
ou périr avec vous. Ouvrez donc les yeux, & jugez le droit, le rite & l’intention
de ce Prince : ne rejetez point un tel Prince. Préparez-vous de le recevoir en la
qualité & au rang que Dieu le vous présente & présentera, sans désirer toutefois le
départ du Roi que vous avez pour le présent, que Dieu vous a donné. Regardez
d’un regard favorable le Roi de Navarre puisqu’il est tel, que quand il vous serait
permis d’attendre un Roi selon votre élection & vos souhaits, vous n’en pouvez
élire ni souhaiter un plus digne. Et croyez que vous recevrez plus de profit,
commodité & contentement de son gne que lui : il se peut mieux passer de tels
sujets, que vous d’un Prince que lui. Donc ne conjurez plus contre lui, c’est contre
vous-mêmes, c’est contre Dieu que vous conjurez. Ne regardez, ne désirez, ne
recherchez plus les étrangers
561
.
561
“Posso dizer com a confissão das suas consciências, com verdade, que ele ultrapassa em todas
as partes requeridas em um bom Príncipe a eleição e os desejos dos homens. Ele é agradável e
louvável na sua pessoa e ações tanto quanto qualquer homem. Ele reina sobre si e sobre seus
súditos mais divina que humanamente. É o espírito mais vivo, o mais decidido e o mais firme que
possamos desejar, cuja liberdade nunca vimos ser feita prisioneira por qualquer assunto de
contentamento ou de aborrecimento que lhe tenha acontecido. Ele está sempre acima de tudo o que
acontece. Sua razão é-lhe tão natural, é tão poderosa e preenche tanto o seu espírito, que as paixões
não podem entrar nem permanecer nela. Nunca homem se pareceu sempre tanto consigo mesmo a
qualquer hora. Ele é o grande guerreiro como jamais houve, ele divide com os soldados todos os
percalços da guerra, diferenciando-se dos seus soldados apenas quanto à incomparável conduta e
valor, ele é hábil e feliz na guerra, e se se puder dizer, ele é digno da sua sorte: nunca Príncipe
tendo tão pouca vontade de fazer a guerra quanto ele, realizou tantas façanhas de guerra quanto
ele, Não são os homens, mas a razão, a experiência e o julgamento que estão nos homens que o
governam com o conselho da sua alma e do Espírito de Deus. Ele ama seus negócios, quer ver,
ouvir e saber tudo: o que traz um enorme alívio para os súditos, e é o único ou mais seguro meio
de conservar os oficiais nos seus deveres. Ele é popular, ele é afável, ele é doce e clemente: e
contudo não Príncipe com mais majestade, que incite tanto o respeito, que mantenha melhor
cada um no seu dever, e que conserve melhor a Justiça no contentamento de todos quanto ele. Ele
não conhece a crueldade, a injustiça, a prodigalidade e a opressão, a não ser como coisas contrárias
àquilo a que ele se dedica: nunca se ouviu dizer que ele matou, massacrou ou assassinou nenhum
dos seus súditos, nenhum dos seus servidores na sua casa ou em outro lugar: não se conhece que
ele detenha injustamente o bem de outro, seus Palácios não são construídos e enriquecidos pela
ruína e saques das cidades e do povo: ele gasta segundo seus meios, ele considera antes seus meios
pertencerem aos seus súditos, do que os dos seus súditos serem seus: ele dá tanto, que tem muitos
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207
Quais são as qualidades de um rei? Quais são as virtudes necessárias ao rei?
Segundo Michel Senellart, a partir do século XII o príncipe passa a ser o espelho,
o exemplo no qual os súditos devem reconhecer toda virtude
562
. Não apenas
aquelas ligadas à disciplina da carne, mas às virtudes cardeais, prudência, justiça,
fortaleza e temperança, que, de Aristóteles, eram incorporadas, por Tomás de
Aquino, ao inventário das características do príncipe cristão. Petrarca, de acordo
com Quentin Skinner, havia descrito as virtudes necessárias ao homem (as
virtudes singulares que o faziam um ser virtuoso) como incluindo “não apenas as
virtudes cardeais exaltadas pelos moralistas antigos, mas também a virtude,
fundamental, da cristã”
563
. Na década de 1470, Francesco Patrizi apontou, no
seu De regno et regis institutione, a cristã como a virtude mais importante ao
amigos e servidores, ele tanto, que lhe resta o suficiente para subvencionar aos seus negócios,
sem que ele seja obrigado a recorrer às opressões. Essa verdade não é em absoluto contestada por
causa das opressões que muitos sentem hoje por causa dos exércitos e gente de guerra do Rei da
Navarra. Pois ele está tão desagradado quanto aqueles mesmos que sentem e sofrem as perdas e
incômodos, ele suficiente testemunho disso pela verdade das suas grimas, pelas suas
reclamações habituais, pelas cuidadosas buscas que ele faz pela paz; pelas cortesias comuns que
ele faz aos que imploram a sua Clemência: não depende dele que ele o seja tão doce na guerra,
quanto ele é na paz, ele reprime o quanto pode as severidades da guerra, mas ele não pode fazer
que a guerra não seja guerra. Se ele tivesse meios suficientes para assalariar e manter seus fidalgos
e soldados, para sustentar a questão da guerra contra seus inimigos, podeis crer que ele o faria, e
que as coisas aconteceriam de maneira tão doce, que vós não seríeis absolutamente ou quase nada
incomodados pelos seus, por causa do desejo que ele tem de aliviar-vos todos. Mas lhe é
impossível executar essa boa vontade que ele tem em relação a vós: dado que a maioria dos seus
bens está conquistada e tomada pelos seus inimigos, todos os que o seguem, Senhores, fidalgos e
outros, estão injustamente expulsos das suas regiões, expulsos das suas casas, impedidos de gozar
dos seus bens e privados do exercício das suas rendas. Eles precisam viver, precisam se
mantenham posto que não o podem pelos seus bens, porque os inimigos os usurpam, eles devem se
servir dos bens dos seus inimigos, do que encontrarem. Assim, não é do Rei da Navarra que se
deve fazer queixa: é da guerra, é dos autores dessa guerra, que ele não iniciou, mas de que está
extremamente desgostoso, ele não pede nem ambiciona bem nem tranqüilidade, a não ser
juntamente com o vosso bem e a vossa tranqüilidade. Ele bem pode se abster dos prazeres da sua
Corte: ele se decidiria incontinente renunciar à sua Coroa, caso se tratasse apenas do seu: mas se
trata mais do vosso do que do dele: trata-se dos vossos bens, das vossas honras e dignidades, do
vosso nome, da vossa vida e da liberdade, que foi sempre inestimável para todos os homens mas
sobretudo para vossos antepassados: tanto que o dever, seu lugar, sua vocação e a boa vontade que
ele tem em relação a vós não lhe permite absolutamente abandonar-vos ao perigo em que estais, e
porque ele quer vos preservar de ruína ou servidão: ou por vós perecer, ou perecer convosco. Abri
então os olhos, e julgai o direito, o mérito e a intenção deste Príncipe: não rejeitem tal Príncipe.
Preparai-vos para recebçe-lo na qualidade e no lugar que Deus o apresenta e apresentará, sem no
entanto desejar a partida do Rei que tendes atualmente, que Deus vos deu. Olhai com um olhar
favorável o Rei da Navarra, posto que ele é tal que quando vos for permitido esperar um Rei
segundo vossa eleição e vossos desejos, não possais eleger nem desejar um mais digno. E creiam
que recebeis vós mais proveito, comodidade e contentamento do seu reino do que ele: ele pode
melhor dispensar súditos como vós, do que vós um Príncipe como ele. Portanto, não conjureis
mais contra ele, é contra vós mesmos, é contra Deus que conjurais. Não olheis, não desejeis, não
procureis mais os estrangeiros”, Le Restaurateur de l’Estat François, op.cit., pp. 277-282.
562
Senellart, 1995, p.48.
563
apud Skinner, op.cit., p.113.
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208
príncipe, pois ela “exibe um tal esplendor que na sua falta todas as demais
virtudes dos reis e príncipes empalidecem”
564
. Os espelhos de príncipe (como o
livro de Patrizi, dedicado ao papa Sixto IV) acrescentam ainda, ao lado dessas,
quatro outras virtudes que não deveriam faltar aos governantes: a liberalidade, ou
generosidade, a magnificência, a clemência, e a honra, que soma a capacidade de
manter a palavra dada à qualidade de nunca mentir para Patrizi, um rei “nunca
deve iludir, nunca mentir, nunca permitir que outros mintam”
565
. Em 1573,
François Hotman, autor dacitada Epistre envoiée au Tigre de la France (1560),
afirma, na sua Histoire des massacres et horribles cruautez commises en la
personne de messire Gaspar de Colligny grand Amiral de France, que
Les plus recommandables vertus à un Roi son justice, bénignité et clémence,
l’inhumanité et cruauté sont à condamner en toutes personnes, mais surtout aux
Roi
566
.
564
Apud id., ibid., p.147.
565
Apud id., ibid., p.149. Dentre as virtudes revistas e criticadas por Maquiavel, este entendimento
acerca da honra será talvez o mais atingido. Maquiavel transforma a virtus composta por uma série
de virtudes que deveriam ser seguidas pelo príncipe, na virtù, cuja principal função era domar a
fortuna e assim manter o estado, o poder. Segundo Senellart, no Príncipe Maquiavel realiza um
deslocamento do conceito ético-político de virtus para o de virtù (Senellart, op.cit., p.224), que “ne
designe plus une forme supérieure de qualification éthique, mais l’attitutde créative, propre à
l’homme d’État” (id., ibid., p.225). Obrigado a operar em um mundo regido pelo tempo, e portanto
em constante mutação, o príncipe deveria poder adaptar-se à realidade que são as necessidades do
tempo, e agir de acordo com as demandas de cada momento, ao invés de permanecer estático,
preso à obrigação a ser clemente, generoso, prudente, justo... Quando o for conveniente ao
príncipe, para a conservação do seu poder, agir de forma generosa, ele simplesmente não deve
fazê-lo, pois às vezes é preciso “agir contra a fé, contra a caridade, contra a humanidade, contra a
religião” (Maquiavel, 1997, XVIII, p.103). Da mesma forma, apesar de ser comumente
reconhecido que honrar a palavra dada é louvável em um príncipe (id., ibid., XVIII, p.101), “vê-se
nos nossos tempos, pela experiência, alguns príncipes terem realizado grandes coisas a despeito de
terem tido em pouca conta a fé da palavra dada” (id., ibid., XVIII, p.101). Em um mundo
impregnado pela idéia da virtude, Maquiavel aconselha ao príncipe parecer ser justo, clemente e
generoso, mas estar preparado para o o ser quando necessário. Para o autor florentino, a adesão
do príncipe às virtudes cardeais e às teologais e cristãs não estava em questão, mas sim o resultado
que ele seria capaz de produzir com o objetivo de manter-se e ao seu estado. Iludir, parecer ser
ganham então status de virtudes, fazem parte da virtù do príncipe. A honra, no sentido da
manutenção da palavra dada, perde espaço para a honra que se associa à glória e à fama que
provinham de conquistar a fortuna, vencer e manter um estado (id., ibid., XVIII, p.103). Mesmo
nessa relação conflituosa entre fortuna e virtù, Navarra sai vencedor: o autor do Advis d’un
Francois à la Noblesse catholique de France (1590), que se discute ainda hoje se era Philippe
Duplessis-Mornay ou Étienne Pasquier, afirma a um dado momento, sobre Navarra, que “il semble
que la fortune le contrarie lui donnant pour âpres ennemis, ceux qui lui devaient être sujets
affectionnés(Advis d’un Francois à la Noblesse catholique de France, sur la remonstrance d’un
Ligueur, auquel le devoir des Catholiques, à la mémoire du feu Roy, & envers le Roy à présent
régnant, ensemble la conjuration de la Ligue contre l’Etat, ses traités & alliances avec l’Espagnol
sont déclarés, 1590, p.8), e assim, se sua virtude não fosse tanta, e tamanha a sua coragem, ele não
teria forças para andar de cerco em cerco, com armas às costas, caçando e perseguindo inimigos
mas esses são percalços que a fortuna lhe impinge para fortalecê-lo, ce sont exercices qu’elle lui
donne pour faire mieux paraître sa vertu” (ibid., p.8)
566
“As mais recomendáveis virtudes para um Rei são justiça, benignidade e clemência, a
inumanidade e a crueldade devem ser condenadas em todas as pessoas, mas sobretudo nos Reis”,
Hotman, 1573, p.XXXVIII. A Histoire des massacres et horribles cruautez commises en la
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As palavras de Hotman são como um reflexo das qualidades de Henrique de
Navarra listadas pelo autor do Restaurateur de l’Estat François, por volta de
1588. Sabedoria, clemência, generosidade, justiça, temperança, fortaleza, as
virtudes guerreiras, e a maior das virtudes cristãs, a caridade, o amor ao próximo.
Todas características de Navarra. Além disso, segundo o Reformateur, o seu
governo era superior ao dos demais homens, porque era feito de razão,
experiência e juízo, a que se somava o “Espírito de Deus”. Nenhuma menção à
religião de Navarra, nem à defesa da religião, mas à afirmação da escolha de
Deus. O que fazia o escolhido de Deus? Ele garantia aos franceses a manutenção
de vos biens, de vos honneurs & dignités, de votre renommée, de votre vie & de
la liberté qui a toujours éinestimable à tous hommes”. E se sacrificava por eles,
pois, sendo o único a reunir todas as virtudes necessárias ao rei e sendo o
escolhido de Deus – Navarra tinha a obrigação de fazê-lo, tinha o dever de
restaurar a paz e prover ao bem comum. Como para Bodin, a religião estava no
fundamento do poder real, mas ela não era o seu objetivo. O autor do
Restaurateur é bil ao desvincular o rei da obrigação de defender a religião, sem
no entanto produzir uma oposição entre a religião e o rei, o que poderia afastá-lo
do seu objetivo de conquistar novas adesões ao partido de Navarra. O problema da
confissão do rei é sanado pela afirmação da ligação especial entre Navarra e Deus,
o que torna supérflua a sua confissão. Quando fosse chegado o momento, o rei
deveria ser escolhido e aceito porque reunia le droit, le mérite & l’intentionde
um bom rei, e não porque era católico.
Progressivamente, os debates sobre a sucessão real na França se
encaminharam assim para a pergunta sobre a diferença entre a Igreja e o Estado:
que critérios deveriam definir o herdeiro do trono, aqueles derivados da lei de
Deus, ou das leis do reino? Era imprescindível que o novo rei fosse católico
mesmo que isso significasse que ele seria um estrangeiro –, o que correspondia na
época à afirmação da sua obrigação de preservar a religião; ou, por outro lado, era
determinante que as leis do reino fossem respeitadas, posição defendida pelo
personne de messire Gaspar de Colligny grand Amiral de France, & autres seigneurs gentils-
hommes, personnages honnorables de diverses qualitez, hõmes femmes &enfans, tant en la ville de
Paris qu’en plusieurs lieux & endroits du Royaume, le 24 jour d’Aoust 1572. & autres suivans,
ficou mais conhecida sob seu título latino, De Furoribus Gallicis.
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partido que considerava como função do rei a preservação da paz e do bem
comum, independentemente das necessidades da Igreja?
A Liga concentrou aqueles que julgavam que o vínculo entre a Igreja e o rei
era imperativo e deveria ser mantido, considerando a implicação religiosa da
sucessão mais importante do que a legal. O autor das Raisons des politiques qui
veullent faire Henry de Bourbon Roy de France responde à afirmação, feita pelos
politiques, de que Navarra deveria ser reconhecido como rei porque era o sucessor
determinado pela lei nos seguintes termos:
Vous supposez qu’il soit légitime, et qu’il soit par droite lignée successeur pour
être Roi de France, votre supposition concédée et accordée, il ne s’ensuit qu’il le
soit. Car il ne suffit être successeur de lignée, faut aussi être successeur des autres
Rois de France Catholiques, en foi Très-chrétienne, Catholique, Apostolique et
Romaine, en laquelle il défaut
567
.
Para fazer frente a esses argumentos desenvolvidos pela Liga, havia os
protestantes e os legalistas, formados pela nobreza fiel a Henrique III, e pelos
aliados de Henrique de Navarra, parte deles politique. Os confrontos passaram a
girar em torno à pergunta: o rei tem como função realizar as necessidades da
Igreja, ou aquelas do Estado? Segundo os politiques, era pelo Estado que deveria
se empenhar o rei, e a necessidade do Estado era de paz. Em 1589, ao juntar seus
exércitos aos de Henrique III, no combate à Liga, Navarra havia explicado, em
publicação escrita com Duplessis-Mornay, que a repetição das guerras civis era a
causa do caos, e o seu resultado seria le renversement de la Maison nous
sommes logés”, que, por sua vez, ne se peut pas faire, qu’il ne nous accable
568
.
A única forma de evitar esse fim calamitoso, era recorrer à paz,
une Paix, qui du Chaos si ténébreux, où vous vous êtes mis, vous remit en lumière :
qui vous rendit vous mêmes, à votre nature, et à votre sens ; qui vous délivrât de
ces inquiétudes, où vous êtes ; de ce labyrinthe, où vous êtes entrés, que vous jugez
bien, que ne pouvez franchir, et dont cependant, vous ne voyez le bout. Une Paix,
qui remit chacun en ce qu’il aime : rendit au bonhomme sa charrue ; à l’artisans,
sa boutique ; au marchant, son trafic ; aux champs la sûreté ; aux villes, la police ;
à tous indifféremment, une bonne justice. Une Paix, qui vous rendit l’amour
paternelle du Roi ; à lui l’obéissance et fidélité, que lui devez. Une Paix, en
somme, qui rendit à cet Etat, l’âme et le corps : le corps, qui s’en va tiré par ses
567
“Supondes que ele seja legítimo, e que ele seja por linha direta sucessor para ser Rei da França,
vossa suposição concedida e acordada, não se segue que ele o seja. Pois o basta ser sucessor de
linhagem, é preciso também ser sucessor dos outros Reis da França Católicos, e Mui-cristã,
Católica, Apostólica e Romana, o que ele não é”, Raisons des politiques qui veullent faire Henry
de Bourbon Roy de France..., op.cit, pp.4-5.
568
“a destruição da Casa onde moramos”, “não pode acontecer, sem que nos destrua”, Henri IV,
1589-a, p.17.
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ambitions en mille pièces ; l’âme, je veux dire, ce bel ordre : qui l’a conservé, qui
du haut jusqu’au bas degré, s’en va tout en confusion
569
.
Por outro lado, aos olhos da Santa União, fervorosa defensora da religião, os
aderentes da segunda hipótese, essa que ligava o rei à manutenção do reino ao
mesmo tempo desvinculando-o da obrigação para com a salvação das almas dos
seus súditos, tornavam-se adversários muitas vezes mais perigosos do que os
protestantes. A paz, dizia Jean Boucher, era de fato mais desejável do que a
guerra, mas uma paz como aquela a que aludiam os politiques, uma paz como
aquela apresentada por Navarra, era pior do que a própria guerra:
Cette guerre nous fait ennemis des hommes, cette paix ennemis de Dieu. Cette
guerre nous fait résister au Diable, cette paix nous rend traîtres à Dieu. En guerre
pour sauver l’âme, nous perdons le corps ; en paix pour sauver le corps, nous
perdons les âmes
570
.
Para a Liga, para Boucher, os politiques, partido que segundo a Santa União
condensava todos esses novos inimigos, não propunham uma outra forma de
chegar a Deus, propunham que chegar a Deus não era o problema a ser
imediatamente resolvido, e que a discussão sobre como chegar a Deus deveria ser
deslocada para uma instância própria, em que o Estado, instância, por sua vez,
própria da ação dos homens e do rei, não estaria ameaçado. Para o autor do Advis
aux catholiques francois, sur l'importance de ce qui se traicte aujourd'huy, a idéia
da existência de um Bem humano, distinto e em certos casos superior ao divino,
era a causa da dépravation de ce siècle, et les propositions de cet athée
Machiavel, Évangéliste des politiques d’aujourd’hui
571
haviam levado alguns
franceses a esquecerem as suas obrigações com relação a Deus.
569
“uma Paz, que do Caos tão tenebroso onde vos colocastes, vos recolocasse na luz: que vos
fizesse novamente vós mesmos, segundo a vossa natureza, e vossos sentidos; que vos libertasse
dessas inquietações onde estais; desse labirinto, onde entrastes, que julgais com razão não puder
ultrapassar, e cujo final no entanto não vedes. Uma Paz, que recolocasse cada um no que ama:
devolvesse ao camponês seu arado; ao artesão, sua loja; ao mercador, seu comércio; aos campos a
segurança; às cidades, o governo; a todos indiferentemente uma boa justiça. Uma paz, que vos
devolvesse o amor paternal do Rei; a ele a obediência e fidelidade, que lhe deveis. Uma Paz, em
suma, que devolvesse a esse Estado a alma e o corpo: o corpo, que vai sendo puxado pelas suas
ambições em mil pedaços; a alma, quero dizer, essa bela ordem: que a conservou, que do alto ao
mais baixo grau está totalmente confusa”, id., ibid., pp.17-18.
570
“Esta guerra nos faz inimigos dos homens, esta paz inimigos de Deus. Esta guerra nos faz
resistir ao Diabo, esta paz nos torna traidores de Deus. Em guerra para salvar a alma, perdemos o
corpo; em paz para salvar o corpo, perdemos as almas”, Boucher, 1594, p.604.
571
“depravação deste século, e as proposições desse ateu Maquiavel, Evangelista dos politiques de
hoje”, Advis aux catholiques francois..., op.cit., pp.13-14.
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212
Quando Henrique III é assassinado, apesar de a maioria dos católicos
moderados do reino aqueles que se haviam mantido fiéis ao rei aceitar a
coroação de Navarra desde 1589, uma parte deles rejeita a idéia de um rei herege,
e mesmo alguns politiques resistem a apoiar o sucessor indicado por Henrique III.
Alguns, como Étienne Pasquier, não tiveram entusiasmo na sua decisão, antes
resignação:
Ainsi me délibéré-je vivre et mourir sous celui qui nous gouvernera désormais,
sans entrer en aucun examen de sa conscience ; car tel que Dieu nous l’a donné, il
nous le faut prendre
572
.
Caso diferente é o de Jean Bodin. Nos estados gerais de 1576, Bodin havia
sido deputado do terceiro estado pelo Vermandois, e seu relato das reuniões é
fonte indispensável para se entender o contexto das disputas entre as ligas, os
protestantes, os politiques e o rei. A sua atuação nas assembléias em Blois havia
revelado nele um politique exemplar, que ao mesmo tempo em que buscava
produzir uma filosofia política de fortalecimento da autoridade do rei, através do
desenvolvimento do conceito de soberania e da idéia de que o rei reinava acima de
todas as ordens do reino (abaixo apenas de Deus), participava ativamente, nos
estados gerais, dessa construção. As duas principais discussões em Blois foram a
reunificação dos franceses em uma mesma religião (por meio da guerra ou
pacificamente) e a alienação dos bens da Coroa e da Igreja (necessária para
custear uma guerra pelo catolicismo). Nas duas questões o deputado do
Vermandois fez-se notar, envolvendo-se profundamente e às vezes comandando
os debates.
Quando Henrique III havia declarado a sua intenção de restaurar a unidade
religiosa no reino, alguns deputados, mesmo os católicos, tinham se mostrado
reticentes quanto às implicações dessa decisão. Para Bodin, a reunificação
imediata representava um perigo para o reino, pois dificilmente se chegaria a ela
sem guerra, e a guerra não era desejável. A discussão sobre a religião do reino,
durante os estados, foi longa, e as intervenções de Bodin foram essenciais para
que, ao final deles, o pedido pela reunião dos franceses no catolicismo viesse
572
“Assim decidi-me viver e morrer sob este que nos governa agora, sem entrar em nenhum exame
da sua consciência; pois tal como ele nos foi dado por Deus, devemos tomá-lo”, Pasquier, Lettres
historiques, apud Daussy, 2002, p.463 nota 160.
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acompanhado da fórmula: par les plus douces et saintes voies que sa Majesté
aviserait
573
.
1576 havia sido também o ano da primeira edição dos seus Six Livres de la
République, em que Bodin apresentava e discutia a soberania, marca diferencial
do rei, e seus limites. Segundo ele, havia poucos freios para a autoridade soberana,
e entre eles o principal era a lei de Deus e da natureza. Quando age com injustiça
e desonestidade, um rei
franchit et brise les bornes sacrées de la loi de Dieu et de nature. Si on me dit qu’il
ne se trouvera point de Prince si mal appris, et n’est pas à présumer qu’il voulût
commander chose contre la loi de Dieu et de nature, il est vrai: car [celui-là] perd
le titre et l’honneur de Prince, qui fait contre le devoir de Prince
574
.
Nos anos seguintes aos estados de Blois, Henrique III havia se tornado o
príncipe mal apanhado que, para Bodin, não deveria manter seu título. O rei teria
se tornado indigno de ocupar sua função por duas razões: seus atos eram
incongruentes e não pareciam ter como objetivo a salvaguarda do reino; e o
assassinato do duque de Guise e do seu irmão cardeal não havia sido motivado
pela necessidade do Estado, mas pela incapacidade do rei de manter a sua
autoridade e pela pura inveja de quem havia deixado de ser o primeiro no coração
dos franceses. Em 1590, torna-se pública uma carta de Bodin dedicada a justificar
a sua adesão à Liga. O pretexto da epístola é a defesa do direito do cardeal de
Bourbon à Coroa, pois de acordo com Bodin, as determinações das leis do reino
indicavam que era o cardeal o parente mais próximo, por linha masculina, de
Henrique III:
La Loi du Royaume dessert la Couronne à la plus proche maison venant en directe
ligne de la race des Rois. Et cette coutume est conforme à la loi de Dieu : et a été
suivie et approuvée par la loi des douze tables. Or est-il que Monseigneur le
Cardinal de Bourbon, à conter depuis le Roi Saint Louis, se trouve descendu par
son fils Robert de France Comte de Clermont, duquel est venue la branche de
Bourbon, à prendre de père à fils, au treizième degré, et le Roi de Navarre au
quatorzième, et par tant plus éloigné un degré
575
.
573
“pelas mais doces e santas vias que sua Majestade decidirá”, Bodin, 1577, p.16.
574
“ultrapassa e arrebenta os limites sagrados da lei de Deus e da natureza. Si me dizem que não se
encontrará nenhum Príncipe o mal apanhado, e não é presumível que ele quisesse comandar algo
contra a lei de Deus e da natureza, é verdade: pois perde o título e a honra de Príncipe aquele que
faz contra o dever de Príncipe”, Bodin, 1993, III, IV, p.286
575
“A Lei do Reino transmete a Coroa à casa mais próxima vindo em linha direta da raça dos Reis.
E esse costume está de acordo com a lei de Deus: e foi seguido e aprovado pela lei das doze
tábuas. Ora, -se que meu Senhor Cardeal de Bourbon, contando a partir do Rei São Luís,
encontra-se descendente, por seu filho Robert de França Conde de Clermont, de que veio a
linhagem de Bourbon, de pai para filho, ao 1grau, e o Rei da Navarra ao 14º, e portanto mais
afastado um grau”, Bodin, 1590, p.12.
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A discussão acerca das regras e direitos de sucessão era extensa, e servia
também como um álibi por trás do qual os partidários de cada grupo legitimavam
a sua posição. Em 1588, Antoine Hotman, irmão católico intransigente de
François Hotman, havia publicado, na mesma linha de Bodin, um Traicté sur la
déclaration du Roy pour les droits de prérogative de Monseigneur le Cardinal de
Bourbon e um Advertissement sur les lettres octroyées à M. le cardinal de
Bourbon. Em ambos, a motivação presente nas publicações do arquidiácono
François de Rosières repetia-se: tratava-se de excluir Henrique de Navarra da
sucessão real, indicando o herdeiro que deveria, de acordo com as leis do reino e
de Deus, assumir o trono. Hotman escrevia porque, apesar de os decretos
publicados por Henrique III no início da oitava guerra civil instituírem “les droits,
privilèges, et prérogatives de Monseigneur le Cardinal de Bourbon
576
, rias
publicações, de protestantes e politiques, contradiziam-nas, o que o levava a
assumir a missão de “faire cesser toutes les doutes
577
sobre a sucessão.
Para Bodin, Navarra não tinha as qualidades necessárias para ser rei da
França porque era protestante e mantinha uma vida desregrada. Em 1576, nos Seis
Livros da República, o monarca ideal era assim descrito:
un Roi juste et droiturier, qui craint Dieu sur tout, qui honore la vertu, qui fait prix
des bons, qui châtie les vices, qui décerne le droit loyer aux gens de bien et la
peine aux méchants, qui a les flatteurs en horreur, qui tient sa foi et ses promesses,
qui bannit les sangsues de cour, et les inventeurs de nouvelles exactions, qui
épargne le sang de ses sujets comme le sien, qui venge les injures d’autrui et
pardonne les siennes, et qui, surtout, a la religion d’honneur devant ses yeux
578
.
Nem o temor a Deus nem o rigor da virtude eram, para Bodin, qualidades de
Navarra, e o desrespeito a essas regras significava que a corrupção da função do
soberano, que havia caracterizado o reinado de Henrique III, seria perpetuada.
Segundo Jouanna, para Bodin le mouvement ligueur est simplement l’instrument
576
“os direitos, privilégios, e prerrogativas de meu Senhor o Cardeal de Bourbon”, Hotman, 1588,
s/p.
577
“fazer cessarem todas as dúvidas”, id., ibid, s/p.
578
“um Rei justo e honesto, que teme Deus acima de tudo, que honra a virtude, que premia os
bons, que castiga os vícios, que dispensa a justa retribuição às pessoas de bem e a pena aos maus,
que tem horror dos aduladores, que mantém sua e suas primessas, que bane os sanguessugas de
corte, e inventores de novas exações, que preserva o sangue dos seus súditos como o seu, que
vinga as injúrias de outrem e perdoa as suas, e que, sobretudo, tem a religião em honra sob seus
olhos”, Bodin, 1993,VI, V, p.555.
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dont Dieu s’est servi pour balayer la corruption du dernier Valois
579
, por isso a
adesão a um partido cujas teses políticas não concordavam com as suas. A
realidade, iminente, de um rei que não fosse católico provocou em muitos
moderados e politiques, homens que acreditavam e defendiam uma separação
entre a função do rei e a religião, a rejeição ou o desconforto com as suas próprias
idéias. Para Bodin, apoiar Navarra era apoiar a continuação do governo
corrompido de Henrique III. Opor-se a ambos era aliar-se à Santa União.
Depois de se considerar providencialmente libertada da tirania de Henrique
III,
la mort duquel non précogitée par jugement humain, mais venant de la main de
Dieu, qui use de son bras droit contre les Rois et Princes, quand ils se
méconnaissent
580
,
a Liga empenhava-se em impedir a coroação de Navarra e em lutar contra os
católicos aliados a ele, agindo para isso em todas as instâncias possíveis. Da
publicação de discursos e sermões públicos, de tratados e panfletos difamatórios, à
escolha de outro sucessor para Henrique III, o cardeal de Bourbon, Carlos X,
proclamado rei da França pela Liga em 5 de agosto de 1589, mesmo preso, e cujos
poderes, segundo o Arrest de la cour de Parlement, de recognoistre pour Roy,
Charles dixiesme de ce nom, datado de 21 de novembro desse mesmo ano,
passariam ao duque de Mayenne a a sua libertação
581
. Da nomeação de um
conselho real ligueur, e de ligueurs para os altos cargos da administração pública,
à convocação dos estados gerais e à promulgação, pelo Parlamento de Paris, de
leis anti-protestantes, como aquela anunciada no Arrest de la Cour de Parlement
pour la conservation du repos public de la ville & faux-bourgs de Paris, & sureté
des habitans d’icelle, de 11 de setembro de 1589, que proibia os moradores da
capital de tenir et souffrir l’exercice, autre que de la religion Catholique,
Apostolique et Romaine”, e de “favoriser le parti des Hérétiques, leurs fauteurs et
579
“o movimento ligueur é simplesmente o instrumento de que Deus se serviu para afastar a
corrupção do último Valois”, Jouanna, op.cit., p.390.
580
“cuja morte não prevista por julgamento humano, mas vindo da mão de Deus, que usa do seu
braço direito contra os Reis e Príncipes, quando eles se desconhecem”, Bodin, 1590, p.20.
581
Arrest de la cour de Parlement, de recognoistre pour Roy, Charles dixiesme de ce nom, 1589,
p.4.
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adhérents, ni leur assister, prêter conseil, confort et aide
582
. Das procissões
expiatórias aos confrontos armados contra os exércitos fiéis a Henrique IV.
Nos anos seguintes à morte de Henrique III, os exércitos ligueurs,
comandados por Mayenne, combaterão na França as forças de Henrique IV,
enquanto Paris permanecerá, resistindo a cercos sucessivos, como a capital da
Santa União. Um conselho formado por magistrados e outros católicos
proeminentes da cidade é criado para geri-la e às demais localidades que fizessem
parte da Liga. O Advis et exhortation en toute humilité & obeissance. A
messeigneurs du Conseil d'Estat general, de la saincte Union de l'Eglise
catholique apostolique & romaine, publicado em 1589, descreve a constituição
desse corpo e as suas funções, ao lembrar aos seus membros que
Dieu vous a fait la grâce d’être ainsi honorés de la charge et autorité, en laquelle
vous êtes colloqués, ce qu’on sait n’avoir été par brigues ni par ambition, mais par
l’antique, bonne et ancienne voie d’élection du peuple, qui n’a été faite de vos
personnes, que pour la bonne vie qu’on a connue être en vous, et le bon zèle et
affection qu’avez toujours montré et fait paraître durant et pendant les orages et
tempêtes, à la fense et manutention de la foi et religion Catholique, Apostolique
et Romaine, et au bien public de ce pauvre et misérable Royaume de France, jadis
heureux, triomphant et florissant sur tous les Royaume de la terre
583
.
Frente a esses homens honrados, estão outros, que, sem honra alguma, dão
mais valor às coisas da terra do que às do céu. Segundo o autor anônimo,
Ce sont gens de la terre, et non du Ciel, lesquels préfèrent (tant ils sont aveuglés)
plutôt ce qui est du tout corruptible à ce qui est incorruptible, spirituel et éternel.
(...) Telles personnes sont de belle apparence et pleins de beaux et graves propos
de Rhétorique, mais fort peu fermes, zélés et affectionnés à la foi et religion
Catholique, sinon seulement à leur insatiable avarice et ambition, ne se souciant
d’autre chose en ce monde, qui est une peste, qui ruine l’âme et le corps d’une
République
584
.
582
“manter e suportar o esercídio, outro que o da religião Católica, Apostólica e Romana”,
“favorecer o partido dos Hereges, seus agentes e aderentes, nem os assistir, dar conselho conforto
e ajuda”, Arrest de la Cour de Parlement pour la conservation du repos public de la ville & faux-
bourgs de Paris, & sureté des habitans d’icelle, 1589, p.4.
583
“Deus vos fez a graça de serem assim honrados com o cargo e autoridade, na qual estais postos,
o que sabemos não ter sido por intriga nem por ambição, mas pela antiga, boa e velha via de
eleição pelo povo, que foi feita das vossas pessoas apenas pela boa vida que se reconheceu em vós,
e o bom zelo e afeição que sempre mostrastes e fizestes aparecer durante e ao longo das
chuvaradas e tempestades na defesa e conservação da fé e da religião Católica, Apostólica e
Romana, e do bem público deste pobre e miserável Reino da França, antes feliz, triunfante e
florescente acima de todos os Reinos da terra”, Advis et exhortation en toute humilité &
obeissance..., op.cit., p.8.
584
“São gente da terra, e não do Céu, os quais preferem (tão cegos estão eles) antes o que é
totalmente corruptível ao que é incorruptível, espiritual e eterno. (...) Tais pessoas têm bela
aparência e o cheios de belas e sérias propostas de Retórica, mas muito pouco firmes, zelosos e
afeiçoados à e religião Católica, se o apenas à sua insaciável avareza e ambição, não se
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Para impedir a ruína do reino, e o abandono da religião, em janeiro de 1593
a Liga convoca os estados gerais, que se reunirão na capital. O número de
presentes é pequeno: 127 no total. Das duas reuniões anteriores dos estados, em
Blois, em 1576 e 1588-1589, haviam participado respectivamente 383 e 437
deputados. A razão é simples, e é já o recurso que Henrique de Navarra usará para
rejeitar as suas disposições: os estados gerais de 1593, ao serem convocados pela
Liga, elegeram apenas deputados católicos (mesmo alguns politiques
participariam). Para os protestantes, não eram portanto disposições representativas
da vontade ou das necessidades do reino. Para a Liga, no entanto, a autoridade
desses estados em nada se diferenciava das reuniões anteriores, as decisões
tomadas neles sendo igualmente soberanas.
Uma decisão interessava especificamente à Santa União: a sua doutrina
conferia aos estados o poder e a função de indicar o rei. O velho cardeal de
Bourbon, preso por Henrique III em 24 de dezembro de 1588, havia morrido na
prisão de Fontenay-le-Comte em maio de 1590, e a Liga, firme no propósito de se
opor à coroação de Navarra, precisava escolher novamente um herdeiro para o
trono. As candidaturas eram várias: o irmão católico do príncipe de Condé e
novo cardeal de Bourbon, a infanta espanhola, o duque de Sabóia, o filho de uma
filha bastarda de Henrique II, o jovem filho do duque de Guise e o filho de
Mayenne. Os dois últimos proponentes eram apoiados pela Liga; a infanta e o
duque de Sabóia eram frutos dos casamentos que haviam selado a paz de Cateau-
Cambrésis entre França e Espanha, em 1559. Mas a lei sálica, que impedia as
mulheres de ocuparem e de transmitirem o direito ao trono, foi reiterada por uma
parte dos deputados do terceiro estado, que assim invalidaram a candidatura da
infanta, e, entre os pretendentes restantes, nenhum reunia o entusiasmo dos
estados sobre o seu nome. Sobretudo, alguns deputados interrogavam-se acerca do
grau de legitimidade que teria uma decisão sua, tão poucos e tão pouco
representativos eram eles. Segundo Jouanna, alguns deles questionavam sua
própria autoridade, pois dans ces conditions, comment être sûrs que le choix de
preocupando com outra coisa nesse mundo, o que é uma peste, que arruína a alma e o corpo de
uma República”, ibid., pp.10-11.
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l’assemblé ait une légitimité assez incontestable pour s’imposer à l’ensemble du
royaume?
585
.
Mayenne tinha preocupação semelhante. Para tentar dar credibilidade à
escolha dos estados, o duque convida então os príncipes de sangue, demais
príncipes e oficiais da Coroa católicos que apoiavam Navarra a se reunirem aos
deputados. Como Navarra rejeita enfaticamente o convite, declarando ilegais os
estados de Paris, os príncipes, oficiais, prelados e senhores católicos a ele
associados conseguem em substituição a aprovação para um encontro entre os
seus representantes e os de Mayenne. Os participantes do lado ligueur são eleitos
entre os deputados moderados presentes aos estados gerais. Em 29 de abril de
1593 abre-se em Suresnes, ao lado de Paris, a conferência. Sua primeira decisão é
estabelecer uma trégua de dez dias, enquanto durarem as conversas (em julho, a
trégua será renovada pelo período de três meses). Os partidários da paz, cada vez
mais numerosos, exultam e entrevêem a possibilidade real de se decidirem os
conflitos. O deputado Guillaume Du Vair, conselheiro do parlamento de Paris,
conclui na sua Exhortation à la Paix, escrita entre 1592 e 1593, que
toutes les considérations concourent pour persuader Monsieur du Mayne et les
Princes de mettre fin à tant de misères, et donner quelque moyen à tant de peuples
affligés et tantôt tous consumés de respirer sous le fait d’une si étrange
calamité
586
.
Em 17 de maio, o arcebispo de Bourges, Renaud de Beaune, principal nome
da delegação dos royaux, anuncia solenemente que Navarra receberá uma
instrução católica e, em conseqüência dela, abjurará o protestantismo.
em 1576, durante os estados gerais de Blois, Navarra havia feito
referência a uma instrução religiosa. Segundo Bodin, na resposta aos
embaixadores que haviam sido enviados a ele por Henrique III para informá-lo da
decisão tomada pelos deputados do retorno à unidade católica, o rei da Navarra
afirmara que,
Quant à ce qu’en particulier ils désirent qu’il ait à faire qu’il n’y ait qu’une
Religion Catholique Romaine, et quitter celle dont il fait profession, il a accoutumé
de prier Dieu, et le prie en une si belle assemblée, que si sa religion est la bonne
comme il croit, qu’il veuille l’y conserver et assurer. Que si elle est mauvaise, lui
585
“nessas condições, como ter certeza de que a escolha da assembléia tem uma legitimidade
suficientemente incontestável para se impor ao conjunto do reino?”, Jouanna, op.cit, p.380.
586
“todas as considerações concorrem para persuadir o Senhor du Mayne e os Príncipes de pôr fim
a tantas misérias, e dar algum meio a tantos povos afligidos e logo todos consumidos por respirar
sob o fato de uma tão estranha calamidade”, Du Vair, 1592, p.107.
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fasse entendre la bonne, et illuminer son esprit pour la suivre, et y vivre et mourir,
et après avoir chassé de son esprit tous erreurs, lui donner force et moyen pour
aider à la chasser de ce Royaume, et de tout le monde, s’il est possible
587
.
Em 1584, quando se começou a discutir o problema da religião de Navarra
após a morte do duque de Alençon-Anjou, aventou-se a possibilidade de uma
conversão após um período de instrução no catolicismo. No relato ficcional da
reunião que se teria seguido à entrevista entre Navarra e o duque de Épernon,
enviado de Henrique III, um dos presentes, o senhor de Roquelaure, defendera
uma conversão imediata, enquanto outro, Du Ferrier, acreditava que sobre ela se
deveria recorrer ao estudo da religião e instruir-se par les saintes lettres. Car les
discours politiques, et toutes les raisons sur lesquelles s’est fondé monsieur de
Roquelaure, semblent être fort peu à propos
588
.
Duplessis-Mornay, em texto de 1585, afirmava que Henrique de Navarra
est prêt et sera toujours de recevoir instruction d’un Concile libre et légitime, et
de laisser l’erreur quand il lui sera montré
589
. No mesmo ano, a Déclaration et
protestacion du roy de Navarre, de M. le prince de Condé et M. le duc de
Montmorency informa que Navarra se soumet à un concile et déclare qu’il est
prêt d’être instruit par icelui
590
. Cinco anos mais tarde, em 1590, o autor do
Advis d’un François à la Noblesse catholique de France, Duplessis-Mornay ou
Pasquier, assegura que Notre Roi ne désire autre chose d’avantage que d’être
instruit
591
.
Instrução era o que pedia Navarra em carta de março de 1589 (antes
portanto do assassinato de Henrique III) aos três estados do reino: je me suis
toujours offert à la raison, et m’y offre encore. (...) Instruisez-moi : je ne suis
587
“Quanto ao que eles desejam particularmente que ele deva fazer com que haja apenas uma
Religião Católica Romana, e deixar aquela de que ele faz profissão, ele costuma rogar a Deus, e
roga-lhe em uma tão bela assembléia, que se a sua religião é a certa como ele acredita, que ele
queira conservá-lo e assegurá-lo nela. Que se ela é errada, faça-o ouvir a boa, e iluminar seu
espírito para seguí-la, e viver e morrer nela, e depois de ter expulsado do seu espírito todos os
erros, dar-lhe força e meio para ajudar a expulsá-la deste Reino, e de todo o mundo, se for
possível”, Bodin, 1577, p.87.
588
“pela sagrada escritura. Pois os discursos políticos, e todas as razões sobre as quais se baseou o
senhor de Roquelaure, parecem não vir nada ao caso”, Double d'une lettre..., op.cit., p.65.
589
“está disposto, e estará sempre, a receber instrução de um Concílio livre e legítimo, e a deixar o
erro quando ele lhe for mostrado”, Mornay, 1585, p.32.
590
“submete-se a um concílio e declara que está disposto a ser instruído por ele”, Henri IV, 1585,
s/p.
591
“Nosso Rei não deseja nada mais do que ser instruído”, Advis d’un Francois à la Noblesse
catholique de France..., op.cit., p.41.
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point opiniâtre. Prenez le chemin d’instruire
592
. Instrução, de novo, é a palavra
usada por ele para indicar aos católicos que uma conversão não era impossível,
dois dias depois da morte de Henrique III, na Déclaration de 4 de agosto de 1589.
Instrução, finalmente, é o que anuncia o arcebispo de Bourges em maio de
1593. A conversão acontece em pouco mais de dois meses, em uma cerimônia na
basílica de Saint-Denis, no dia 25 de julho de 1593.
Boa parte dos católicos do reino receberá com entusiasmo a notícia, entre
eles vários ligueurs menos intransigentes. Bodin abandonará a Liga e retornará,
antes de morrer, em 1596, às fileiras politiques aliadas a Navarra, quando este
retoma Laon, em 1594. Menor será a satisfação dos protestantes, e ainda menor a
do grupo radical dentro da Liga. Para estes, a conversão de Navarra era apenas um
golpe politique sem que houvesse qualquer mudança nas suas verdadeiras
intenções, a principal delas destruir a Igreja.
Em 1588 a possibilidade de Navarra se tornar católico já havia sido
rechaçada pela Santa União: o autor dos Articles de la saincte union des
Catholiques François afirmava:
Je sais que les politiques mal affectionnés à leur Religion font grand état des
paroles qu’a tenu le Roi de Navarre aux Députés des États de Blois qu’il avait été
toujours nourri et instruit à cet exercice de Religion, et que si par un Concile
dûment assemblé, sa Religion était trouvée mauvaise, et la notre confirmée, il
emploierait tous ses moyens pour la manutention des Catholiques. Ce sont de
beaux propos qu’il dit à l’Archevêque de Vienne et qu’il avait accoutumé de prier
Dieu, que si sa Religion était bonne, comme il croit, qu’il veuille lui confirmer et
assurer, que si elle est mauvaise lui fasse entendre la bonne, et illuminer son esprit
pour la suivre, et y vivre et mourir. Mais par ces propos emmiellés il ressemble à
quelque vile orcande, depuis le sommet de la tête jusqu’à la fin du corps, et le reste
est la queue d’un dragon très venimeux et épouvantable, car si les actions
accompagnées des effets nous font bien juger des hommes, nous ne pouvons
conclure autre chose de lui, sinon qu’au lieu de demander d’être instruit et
enseigné, il veuille confirmer sa nouvelle opinion par force et par armes, et pour
sonder et rechercher les choses de près et les peser au poids, et mesurer à l’aune,
il se sert de cet artifice pour ne découvrir ouvertement le venin qu’il couve dedans
l’âme
593
.
592
“sempre me ofereci à razão, e me ofereço ainda. (...) Instruí-me: eu não sou nada teimoso.
Tomem o caminho de instruir”, Henri IV, 1589-a, s/p.
593
“Eu sei que os politiques mal afeiçoados à sua Religião dão grande atenção às palavras que
disse o Rei da Navarra aos Deputados dos estados de Blois, que ele tinha sido alimentado e
instruído nesse exercício de Religião, e que se por um Concílio devidamente reunido a sua
Religião fosse considera errada, e a nossa confirmada, ele empregaria todos os seus meios para a
conservação dos Católicos. São belas propostas que ele diz ao Arcebispo de Vienne e que ele
estava acostumado a rogar a Deus que, se a sua Religião for certa, como ele acredita, que ele
queira lhe confirmar e assegurar, que se ela for errada, faça-lhe ouvir a boa, e iluminar seu espírito
para seguí-la e viver e morrer nela. Mas por essas propostas açucaradas ele se assemelha a alguma
vil orcande, desde o topo da cabeça até o fim do corpo, e o resto é o rabo de um dragão muito
venenoso e assustador, pois se as ações acompanhadas dos efeitos de fato nos fazem julgar os
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Dois anos mais tarde, entre as Raisons des politiques qui veullent faire
Henry de Bourbon Roy de France, estava a referência ao concílio nacional,
proposta novamente recusada com o argumento de que uma instância superior, um
Concile général”, o de Trento, havia rejeitado o protestantismo. O fato de
Navarra pedir um concílio nacional quando outro, de maior autoridade, havia
decidido a questão da dissensão religiosa, faz o autor advertir: Telle allégation
me semble plus un subterfuge ou évasion à échapper, que bonne volonté de
s’amender et sortir de son hérésie
594
. Em 1591, outra publicação anônima
enumerava as razões que deveriam impedir os franceses de aceitarem Navarra
como rei, e refutava em seguida algumas objeções politiques aos argumentos
citados. Diziam os politiques: «Le Roi de Navarre pourra se faire Catholique.»
Réponse: «Mais il ne l’est pas»
595
. Em 1593, ainda não se acredita na conversão.
Nos Sermons de la simulée conversion, et nulité de la prétendue absolution de
Henri de Bourbon, o padre ligueur Jean Boucher declara: rien n’importe, si le
loup est tu en peau de brebis. Car il ne laisse d’être loup, et n’en perd pas les
dents pourtant
596
.
Para convencer os indecisos quanto à conversão, e para dissuadir os seus
adversários, os politiques, como era sua prática, publicam e publicam. No
Advertissement salutaire aux François, de 1594, o autor, novamente anônimo,
volta ao primeiro argumento dos católicos intransigentes contra a coroação de
Henrique de Navarra, e lembra que
homens, não podemos concluir outra coisa dele senão que em lugar de pedir para ser instruído e
ensinado, ele quer confirmar sua nova opinião pela força e pelas armas, e para sondar e procurar as
coisas de perto, e pesá-las ao peso, e medir à vara, ele se serve deste artifício para não expor
abertamente o veneno que prepara dentro d’alma”, Articles de la saincte union des Catholiques
François, op.cit., p.15.
594
“Tal alegação me parece mais um subterfúgio ou evasão para escapar, do que boa vontade de se
corrigir e sair da sua heresia”, Raisons des politiques qui veullent faire Henry de Bourbon Roy de
France..., op.cit, p.12.
595
““O Rei da Navarra poderá fazer-se Católico.” Resposta: “Mas ele não o é”.”, Les raisons, pour
lesquelles Henry de Bourbon, soy disant Roy de Navarre ne peut et ne doit estre receu, approuvé,
ne recogneu Roy de France. Avec les responses aux plus communes objections des Polytiques.
1591, p.31.
596
“não importa nada se o lobo está vestido em pele de cordeiro. Pois ele o deixa de ser lobo, e
não perde portanto seus dentes”, Boucher, op.cit., p.604.
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Les passages de l’écriture tirés par les cheveux n’ont manqué à nos Docteurs
vénaux. Et tout cela, disaient-ils, pour ce que le Béarnais ou Roi de Navarre était
hérétique
597
.
Depois da conversão, no entanto, a situação estava transformada, pois
le voilà Catholique, Dieu a exaucé les voeux et prières des bons, notre désir a
réussi par la bonté, grâce et miséricorde de ce grand Roi des Rois, qui a frappé de
sa puissante main l’entendement de notre Roi, pour le nous rendre et nous à lui. Il
est fils comme nous de l’Église Catholique, Apostolique et Romaine, à laquelle il
s’est soumis pour le Spirituel. Dieu lui a ouvert et tendu les bras, comme jamais il
ne rebute le pécheur converti. Quand tous les hommes lui fermeraient la porte,
c’est en vain, puisqu’il est dedans. Il est Roi légitime, l’élu et l’oint de Dieu en
cette charge. Dieu puissant sur les hommes, qui s’opposeraient à sa miséricorde, a
certes montré par là l’amour qu’il porte à ce pauvre Royaume
598
.
Como única barreira para a aceitação de Navarra como rei legítimo, a sua
religião poderia justificar a recusa católica em reconhecê-lo, mas depois de
abjurar o protestantismo, e regressar à Igreja católica, a causa da rejeição ao novo
rei havia sido eliminada. Entretanto, diz o autor desse Advertissement, alguns
focos de resistência continuavam atuando, publicando panfletos e fazendo
sermões, assegurando que a conversão não era sincera nem válida:
L’Espagnol mécroyant, et la ligue des seize tyrans
599
faisaient prêcher impossible
sa conversion, les chaires des prêcheurs en retentissaient sur même billet, comme
ils en étaient bien payés
600
.
Os franceses, porém, os que ainda não tinham aceitado a coroação de
Henrique IV, deveriam saber que mentirosos eram os ligueurs, mentirosas as suas
afirmações, e que
Notre Roi (vrai Français) est du vrai tige et race de ce bon saint Louis, la plus
noble et ancienne du monde, c’est notre gloire. Non de race nouvelle, d’un maître
d’hôtel d’un Empereur, un petit Comte d’Habsbourg, il n’y a que trois cent ans, ou
597
“As passagens da escritura puxadas pelos cabelos não faltaram aos nossos Doutores venais. E
tudo isso, diziam eles, porque o Bernês ou Rei da Navarra era herege”, Advertissement salutaire
aux François, 1594, p.4.
598
“ei-lo Católico, Deus realizou os votos e pedidos dos bons, nosso desejo realizou-se pela
bondade, graça e misericórdia desse grande Rei dos Reis, que tocou com sua poderosa mão o
entendimento do nosso Rei, para dá-lo a nós e nos dar a ele. Ele é filho como nós da Igreja
Católica, Apostólica e Romana, à qual se submeteu quanto ao Espiritual. Deus abriu e estendeu os
braços a ele, como nunca rejeita o pecador convertido. Quando todos os homens fechariam a porta
a ele, é em vão, posto que ele está dentro. Ele é Rei legítimo, o eleito e o ungido de Deus nesse
cargo. Deus poderoso sobre os homens, quem se oporia à sua misericórdia, certamente mostra
dessa forma o amor que tem por esse pobre Reino”, ibid., pp.4-5.
599
Referência aos Seize, grupo radical dentro da Liga, que foi em alguns momentos responsável
pela administração de Paris (cf. Jouanna et al., op.cit., pp.1297-1298).
600
“O espanhol descrente, e a liga dos 16 tiranos faziam pregar impossível a sua conversão, os
púlpitos dos pregadores retumbavam na mesma nota, como eram bem pagos para tal”,
Advertissement salutaire aux François, op.cit., p.5.
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223
d’un Henri bâtard de Castille, établi Roi par Pierre de Bourbon qui déchassa de ce
Royaume de Castille, Pierre le Cruel. Sa conversion a été faite en l’Église saint
Denis en France, sur les tombeaux et comme en la face de ses majeurs, âmes
généreuses, témoins de sa conversion, et cautions envers nous ayant laissé ce beau
très-Chrétien, très puissant, et le plus noble Royaume de la terre, que l’étranger le
nouveau Chrétien veut par nos mains impies, et par le poison semé des langues
vénales perdre maintenant et dissiper
601
.
A discussão sobre a sinceridade desta sexta
602
conversão de Henrique de
Navarra é menos importante do que a percepção de que foi uma preocupação do
rei revesti-la da mais plena sinceridade. Navarra pedia para ser instruído, admitia
que poderia estar errado na sua opção confessional e assegurava que, se a Verdade
se apresentasse, ele não teria pudor nem medo de abraçá-la. A afirmação da
necessidade de instrução – além de poder ser a expressão de um sentimento
genuíno é um reflexo da sua preocupação em controlar as opiniões sobre a
conversão: uma abjuração imediata poderia parecer oportunismo, mas a mesma
decisão tomada depois de ampla discussão e profunda reflexão era justificável, e
poderia, inclusive, ser vista como um ato da Providência.
Nos poucos meses entre o anúncio da instrução de Navarra e a conversão de
fato, a Liga continuou a pressionar os estados gerais para que eles elegessem um
novo rei. Após a abjuração, no entanto, o aumento significativo dos aliados de
Navarra torna nula a autoridade dos deputados quanto a essa questão. A força da
Liga começa a ceder.
Em janeiro de 1594, o governador de Meaux entrega a cidade a Navarra. No
mesmo mês, o parlamento de Aix o reconhece como rei. Em fevereiro, seu
exército entra em Lyon. No fim do mês, Navarra é sagrado em Chartres. No dia
601
“Nosso Rei (verdadeiro francês) é do mesmo tronco e raça desse bom são Luís, a mais nobre e
antiga no mundo, é nossa glória. Não de raça nova, de um maître d’hotel de um imperador, um
pequeno conde de Habsburgo, apenas 300 anos, ou de um Henrique bastardo de Castela, feito
Rei por Pedro de Bourbon que expulsou desse Reino de Castela Pedro o Cruel. Sua conversão foi
feita na Igreja Saint Denis na França, sobre os mulos e como que frente aos seus maiores, almas
generosas, testemunhos da sua conversão, e garantia para nós tendo deixado esse belo mui-Cristão,
muito poderoso, e o mais nobre Reino da terra, que o estrangeiro o novo Cristão quer pelas nossas
mãos ímpias, e pelo veneno semeado pelas línguas venais perder agora e dissipar”, ibid., pp.5-6.
602
Henrique de Navarra havia sido batizado católico, mas desde cedo recebera uma educação
calvinista sob a orientação de sua mãe, a rainha da Navarra Jeanne d’Albret (que abjurara
publicamente o catolicismo no Natal de 1560). Quando o pai, Antoine de Bourbon, torna-se lugar-
tenente geral do reino, em 1561, Navarra está vivendo em Paris, e, no ano seguinte, passa a ser
educado, com os filhos de Henrique II e Catarina de Médici, na religião católica. Alguns anos
depois da morte do pai, em 1562, Jeanne d’Albret recupera a guarda do filho e, por volta de 1567,
ele é novamente protestante. Após a Noite de São Bartolomeu, o novo rei da Navarra (a rainha
havia morrido no mesmo ano de 1572, pouco antes do casamento de Henrique e Margarida de
Valois) é obrigado a abjurar, mas se converte mais uma vez depois de fugir da corte, em 1576. A
conversão de 1593 será portanto a sexta, e última.
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224
22 de março, Paris abre as portas a Henrique IV. Segundo Robert Descimon, la
conversion du 25 juillet 1593 ouvrit à Henri IV le coeur des Parisiens
603
, que
haviam resistido a dois cercos durante a oitava guerra de religião. O primeiro,
ainda em 1589, havia reunido Henrique III e Navarra. Após o assassinato do rei,
em 8 de agosto Henrique IV suspendera o cerco e deixara Saint-Cloud. No ano
seguinte, a cidade foi novamente sitiada, entre o início de maio e o final de agosto
de 1590, meses em que a fome e as doenças devastaram a população da cidade.
De acordo com Jean Hippolyte Mariéjol, no início do cerco havia em Paris cerca
de 100 mil pessoas; em agosto, a fome havia matado 13 mil, e outras 30 mil
pessoas haviam perecido, ou pereceriam ainda, por causa das infecções
decorrentes das condições insalubres na cidade
604
. Como resultado do mal-
sucedido cerco, quase metade da população que estava na capital, 43% dela,
estava morta. Quando Henrique IV finalmente conquista a cidade, não é preciso
cerco nem sangue: na madrugada de 22 de março, o governador da capital,
Charles de Cossé-Brissac, abre uma das portas de Paris às forças reais. Às 6h da
manhã, quando o rei entra na cidade, nenhuma resistência é oferecida a ele
605
. A
entrada solene do rei na sua capital acontecerá em 15 de setembro de 1594.
Depois da capital, caem Rouen, Le Havre, Harfleur, Montivilliers, Pont-
Audemer, Verneuil, Troyes e outras cidades. No outono, Charles de Guise, filho
do duque de Guise assassinado em dezembro de 1588 por Henrique III, alia-se ao
rei.
Em 17 de janeiro de 1595, Henrique IV declara guerra à Espanha. Como o
almirante Gaspard de Coligny em 1572, o rei esperava reunir os franceses em uma
guerra contra um inimigo exterior, e assim fortalecer a conciliação interna de
católicos e protestantes sob a sua liderança. Conselho semelhante dava Jean Bodin
nos seus Six livres de la République:
Le plus beau moyen de conserver un état et le garantir de rébellions, séditions et
guerres civiles, et d’entretenir les sujets en bonne amitié, est d’avoir un ennemi,
auquel on puisse faire tête
606
.
603
“a conversão de 25 de julho de 1593 abriu a Henrique IV o coração dos parisienses”,
Descimon, 1990, p.30.
604
Mariéjol, op.cit., pp.352-355.
605
Jouanna, op.cit., p.388.
606
“O mais belo meio de conservar um estado e protegê-lo de rebeliões, sedições e guerras civis, e
de manter os súditos em boa amizade, é ter um inimigo, ao qual se possa fazer frente”, Bodin,
1993, V, V, p.463.
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225
Em junho, Henrique IV vence em Fontaine-Française as forças de Mayenne
e da Espanha juntas. O duque, assim como o sobrinho Guise antes dele, é
perdoado pelo rei e transforma-se em um novo aliado. O édito assinado com
Henrique IV no início do ano seguinte, em janeiro de 1596, garante-lhe boas
vantagens, como em 1594 o acordo com o duque de Guise: Mayenne recebe três
cidades como places de sûreté durante seis anos (Chalon, Seurre e Soissons) e a
soma de pouco mais de três milhões e quinhentas mil libras. As vitórias
conquistadas pelos exércitos de Henrique IV, somadas aos perdões distribuídos e
às negociações deveras favoráveis aos seus antigos adversários, resultaram no fim
da resistência da Liga. De acordo com as memórias de Sully, o rei teria gastado
cerca de 32 milhões de libras para conquistar os chefes ligueurs, tendo mais uma
vez atitude próxima daquela recomendada por Bodin, que ensinava que les plus
avisés estiment que, de tels ennemis, il en faut faire de bons amis ou les tuer du
tout
607
. Louis Dorléans, autor ligueur da Apologie ou Defence des catholiques
unis les uns avec les autres, contre les impostures des catholiques associez à ceux
de la pretendüe Religion (1586), louvará, em 1603, o esforço de pacificação feito
por Henrique IV, demonstrado pelo seu empenho em esquecer e superar antigas
inimizades: Si le roi n’eût pardonné, à qui eût-il commandé, car toute la France
était contre lui, et à présent, elle est glorieusement à lui
608
, afirmará Dorléans.
Na primavera de 1596, resta contra Henrique IV apenas o duque de
Mercoeur, na Bretanha, que resiste com o reforço dos mais de mil soldados
enviados por Felipe II. A luta contra ele durará até o início de 1598. Em dezembro
de 1597, os estados provinciais declaram oficialmente apoio ao rei e apelam a ele
contra Mercoeur e as forças espanholas. Em fevereiro seguinte, o duque é
obrigado a capitular após a queda de Dinan. Segundo Bernard Cottret, le chef
ligueur n’était plus qu’un oiseau désemparé qui ne peut plus voler
609
.
Em 30 de abril, é assinado em Nantes o novo édito de pacificação. Em 2 de
maio de 1598, é a vez de Felipe II assinar um tratado de paz com Henrique IV,
nos moldes daquele feito em 1559 em Cateau-Cambrésis. O fim de ambas as
607
“os mais ilustrados estimam que, de tais inimigos, é preciso fazer bons amigos ou matá-los
todos”, id., ibid., IV, I, p.339. Os inimigos a que Bodin faz referência nessa passagem não eram os
seus contemporâneos, mas os inimigos da república romana.
608
“Se o rei não tivesse perdoado, a quem teria ele comandado, pois toda a França estava contra
ele, e agora, ela é gloriosamente dele”, Louis Dorléans, carta de 18 de abril de 1603, citada por
Cottret, op.cit., p.131.
609
“o chefe ligueur era apenas um passarinho desamparado que não pode mais voar”, Cottret,
op.cit., p.123.
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226
guerras, a interna e a exterior, o significou no entanto que a luta pela
pacificação do reino estivesse terminada. As sete tentativas, representadas pelos
sete édito promulgados por Carlos IX e Henrique III, haviam resultado em novas
guerras, e não em paz. A dificuldade no registro do édito de Nantes poderia
indicar que também ele falharia em construir a paz. De fato, a aplicação do édito
não foi simples, nem os seus efeitos, imediatos. No Natal de 1598, que Henrique
IV escolhe, simbolicamente, passar em Paris, ecos da Liga ainda ressoam, e,
segundo Cottret, pendant l’hiver (...) les prédicateurs se laissent à nouveau aller
à des excès de chaire dont retentissent les églises parisiennes
610
.
Quanto ao édito, foi necessário pressionar os parlamentos para que as suas
cláusulas fossem registradas. Ao parlamento de Paris, Henrique IV faz uma visita
em 7 de janeiro de 1599. Do seu discurso, emanam sobretudo a autoridade do rei e
a sua intenção de restaurar a paz:
Ce que j’ai à vous dire est que je vous prie de rifier l’Édit que j’ai accordé à
ceux de la Religion. Ce que j’en ai fait est pour le bien de la paix. Je l’ai faite au
dehors, je la veux au dedans. Vous me devez obéir, quand il n’y aurait autre
considération que de ma qualité et de l’obligation que m’ont tous mes sujets, et
particulièrement vous tous de mon Parlement
611
.
Henrique IV tem suficiente autoridade, ao contrário de Carlos IX e Henrique
III, para fazer respeitar sua vontade de rei, e o édito é feito lei
612
. Essa autoridade,
os politiques ajudaram a construí-la, elaborando nas suas publicações um processo
de sacralização pessoal do rei. Afirmações da intervenção divina favorecendo
Navarra nos campos de batalha onde ele era apoiado par une guide et escorte
divine, et par un vent en poupe de la fortune, qui érige trophée sur trophée, et
continue victoires à d’autres victoires
613
–, longos elogios sobre as suas muitas
610
“durante o inverno (...) os pregadores deixam-se ir novamente a excessos de púlpito com os
quais retumbam as igrejas parisienses”, id., ibid., pp.208-209.
611
“O que tenho a vos dizer é que eu rogo a vocês que registrem o Édito que concedi aos da
Religião. O que fiz é pelo bem da paz. Eu a fiz no exterior, eu a quero no interior. Deveis
obedecer-me, quando não houvesse outra consideração além da minha qualidade e da obrigação
que tem em relação a mim todos os meus súditos, e particularmente vós todos do meu
Parlamento”, l’Estoile, 1982, pp.164-165.
612
Em 25 de fevereiro de 1599, o parlamento de Paris registra o édito. Outros parlamentos ainda
resistirão até o ano seguinte, ou por até 10 anos: Grenoble fez o registro em 27 de setembro de
1599, Dijon em 12 de janeiro de 1600, Toulouse e Bordeaux respectivamente nos dias 19 e 27 do
mesmo mês, Aix em 11 de agosto, Rennes no dia 23 e, finalmente, Rouen, no dia 5 de agosto de
1609.
613
“por um guia e escolta divina, e por um vento em popa da fortuna que erige troféu sobre troféu,
e segue vitórias à outras vitórias”, Advis d’un Francois à la Noblesse catholique de France...,
op.cit., p.8. O providencialismo criado em torno de Navarra não significava por certo que alguma
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virtudes que garantiam que le nom d’Auguste ou conquérant peut aussi bien
être donné à notre Roi
614
– coabitavam, nos textos politiques, com a afirmação da
importância do seu propósito, da necessidade da paz e da capacidade única do
novo rei de restaurá-la, por que ele, como nenhum outro antes, conhecia a sua
função: il a le bien de son peuple en trop grande recommandation, la sûreté de
son Etat trop chère
615
.
Para o autor do Advis d’un François à la Noblesse catholique de France,
das batalhas, Navarra às vezes saía vencedor simplesmente porque seus inimigos
voyaient leur entreprise impossible par la seule vertu du Prince, à qui ils avaient
affaire
616
. Segundo o autor, Pasquier ou Duplessis-Mornay,
Admirable est la vertu, innommable le courage de ce grand guerrier invincible,
invaincu, qui rend vraisemblables les prouesses de ces anciens Princes et
Capitaines, dont les Histoires sont honorées, que jusqu’à présent nous avions
estimé impossibles, saintes et accrues par la plume des Historiens
617
.
Mas, continua o Advis,
ses vertus ne sont pas seulement guerrières, (...) car il a pareillement les autres
vertus qu’un grand Roi, pour l’ornement de la paix, doit avoir. Son naturel est
reconnu aimer la justice, le soulagement du peuple, et ce qui en l’un et l’autre est
grandement recommandable est Prince de foi et très-religieux observateur de sa
parole
618
.
Publicado no mesmo ano do Advis, o Anagramme de Henry de Bourbon
(1590), este assinado por Pasquier, reiterava os elogios feitos naquela publicação e
explicava à França que, com a chegada de Henrique de Navarra, acabara-se a
guerra, chegara a paz:
France, dont le navire a si longtemps é
Sur la mer de Malheur par l’orage battue,
Et dont les tourbillons de la vague tortue
igreja, católica ou protestante, passaria a deter o monopólio da divinização do rei tal
conseqüência seria, teoricamente, a reiteração da obrigação do rei para com a igreja.
614
“o nome de Augusto ou conquistador pode igualmente ser dado ao nosso Rei”, ibid., p.7.
615
“ele tem o bem do seu povo em muito alta recomendação, a segurança do seu Estado muito
cara”, ibid., p.61.
616
“viam sua empresa impossível unicamente pela virtude do Príncipe com quem lidavam”, ibid.,
p.145.
617
“Admirável é a virtude, indescritível a coragem desse grande guerreiro invencível, invicto, que
torna verossímeis as proezas desses antigos Príncipes e Capitães, cujas Histórias o honradas, que
até o presente estimávamos impossíveis, santas e aumentadas pelas penas dos Historiadores”, ibid.,
pp.5-6.
618
“suas virtudes não são apenas guerreiras, (...) pois ele tem igualmente as outras virtudes que um
grande Rei, para o ornamento da paz, deve ter. Sua natureza é sabido amar a justiça, o alívio do
povo, e o que em um e outro é recomendável é Príncipe de e mui-religioso observador da sua
palavra”, ibid., p.39.
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Ont brisé tout le dos, çà et là tempêté.
Courage, vois l’Ardant sur ton mât arrêté,
La saint-Herme est venu, qui de clarté pointue
En bref te fera voir la tourmente abattue,
Et l’Hiver de tes maux s’échanger en Été.
C’est le Royal flambeau de la gloire Bourbonne,
Illustrant de ses rais la Française couronne :
Heur espéré des bons, des mutins grand effroi.
C’est Henry de Bourbon, donne-paix,
chasse-guerre,
À l’arrivée duquel, crois France, que ta terre
A de bon roy bon heur, et de bon heur
bon roy
619
.
Depois da proclamação do édito de Nantes, a glorificação do rei se
fortaleceu com as suas conquistas, com a guerra já vencida, contra a Liga e contra
a Espanha, com a paz anunciada e regulamentada pelo édito. O autor anônimo do
De la Concorde de l'Estat (1599) exaltava ao mesmo tempo Henrique IV e a paz,
que considerava obra sua:
Voici, il nous est un Prince, grand Architecte et brave conducteur de notre
concorde : jetons la vue sur ses yeux : contemplons ses affections, observons ses
intentions, et ne gâtons point un si bel ouvrage de notre Paix entrepris par ce
Monarque, avec tant de peines et de travaux, Monarque, qui par la force de ses
armes et par sa patience a consolidé toutes les plaies de cet État, Monarque qui
nourrit en sont sein deux grandes vertus, la vaillance et la clémence, et de ses deux
mamelles allaite et alimente cet État. L’une pour vaincre, l’autre pour pardonner.
L’une pour se faire craindre et redouter de ses ennemis : l’autre pour se faire
aimer de ses sujets
620
.
A vitória de Navarra era fruto das suas virtudes e das suas intenções,
conquistada pela força e pela paciência, por um duplo trabalho realizado nos
campos de batalha e nas consciências francesas, preparadas, com o tempo, para
aceitarem a sua paz. Para os politiques, a vitória permitia a instituição da
tolerância civil também porque, pelas suas virtudes e pelas suas intenções, o rei
mostrava ser o escolhido. Havia uma benção, uma unção a pairar sobre Henrique
de Navarra, e ela havia sido recebida por ele como uma dádiva pessoal, dada
diretamente por Deus, sem que fosse preciso passar pelo intermédio de nenhuma
619
Pasquier, 1590, p.3.
620
“Eis, nasceu-nos um Príncipe, grande Arquiteto e bravo condutor da nossa concórdia: deitemos
a vista sobre os seus olhos: contemplemos suas afeições, observemos suas intenções, e não
estraguemos uma tão bela obra da nossa Paz realizada por esse Monarca, com tanta pena e
trabalho, Monarca, que pela força das suas armas e pela sua paciência, consolidou todas as feridas
deste Estado, Monarca que alimenta em seu seio duas grandes virtudes, a valentia e a clemência, e
das suas duas mamas amamenta e alimente este Estado. Uma para vencer, a outra para perdoar.
Uma para se fazer temer e recear pelos seus inimigos: a outra para se fazer amar pelos seus
súditos”, De la Concorde de l'Estat..., op.cit., pp.89-90.
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instituição
621
. Para o autor do Advis, as vitórias acumuladas por Navarra, mesmo
em momentos de maior adversidade, montrent une singulière faveur de la
fortune conduite par la main de Dieu, qui a perpétuellement accompagné ce
Prince et lui aide à manier ses affaires
622
. Como no longo trecho já citado do
Restaurateur de L’Etat François, a razão e o Espírito de Deus guiavam os passos
do soberano, garantindo-lhe uma capacidade superior ao comum dos homens, uma
inteligência e uma grandeza sobre-humanas
623
.
A mitificação pessoal de Henrique IV o o afastava no entanto dos
homens, nem das suas necessidades: atender a elas, que tomavam forma no bem-
comum, era o objetivo para o qual o rei havia sido ungido
624
. Com o objetivo de
621
Pode-se reconhecer nessa idéia a premissa protestante de que a relação entre o homem e Deus
não precisa da intermediação da igreja, pois todo fiel é um pastor. Em termos históricos,
igualmente, não se pode deixar de pensar que a monarquia absoluta de direito divino possa ter
um primeiro desenvolvimento teórico.
622
“mostram um singular favor da fortuna conduzida pela mão de Deus, que acompanhou
perpetuamente esse Príncipe e o ajuda a manejar seus negócios”, Advis d’un Francois à la
Noblesse catholique de France..., op.cit, p.7.
623
Le Restaurateur de l’Estat François, op.cit., pp. 277-282, transcrito nas páginas 203-204 desta
tese.
624
A mitificação de Henrique IV, Henri le Grand, não cessou após o seu reinado. O assassinato do
rei, em 1610, foi profundamente lamentado pela população francesa, que via nele um herói, ao
mesmo tempo que um pai. A historiografia francesa nos séculos XVII, XVIII e XIX, e
especialmente aquela produzida pelo Iluminismo, criou para Henrique IV a imagem de um
monarca superior aos demais, em bondade e competência, e do pacificador de uma guerra sem fim.
Para Tallement des Réaux, on n’a jamais vu prince plus humain ni qui aimât plus son peuple
(“nunca se viu príncipe mais humano nem que tenha amado mais seu povo”, apud Desprat &
Thibau, 2001, p.116). Em 1728, Voltaire abre a sua Henriade (uma primeira edição, incompleta,
data de 1723) declarando: “Je chante ce Héros, qui régna dans la France,/ Et par droit de
conquête, et par droit de naissance,/ Qui par de long travaux apprit à gouverner,/ Qui formidable
et doux, sut vaincre et pardonner,/ Confondit et Mayenne, et la Ligue, et l’Ibère,/ Et fut de ses
sujets le vainqueur et le père(“Eu canto esse Herói, que reinou na França,/ Tanto por direito de
conquista, quanto por direito de nascimento,/ Que por longos trabalhos aprendeu a governar,/ Que
formidável e doce, soube vencer e perdoar,/ Confundiu tanto Mayenne, quanto a Liga e o Ibero,/ E
foi dos seus súditos o vencedor e o pai”, Voltaire, 1728, p.1). Michelet, na sua monumental
Histoire de la France, publicada entre 1833 e 1846, afirma que Après qu’il eut conquis son
royaume, toute l’Europe sentait une chose, c’est qu’il n’y avait qu’un roi et c’était le roi de
France. Le voeu de tous nos voisins eut été d’être conquis. Les Flamands écrivaient aux nôtres :
« Ah ! si nous étions Français” (...) Est-ce à dire que la voix publique a tort de vanter ce règne?
La légende est-elle vaine? Non, le peuple a eu raison de consacrer la mémoire du roi singulier,
unique, qui fit désirer à tous d’être Français(“Depois de ele ter conquistado seu reino, toda a
Europa sentia uma coisa, que havia apenas um rei e era o rei da França. Os desejos de todos os
nossos vizinhos foi de serem conquistados. Os flamengos escreviam aos nossos: “Ah! Se nós
fôssemos franceses”(...) Deve-se dizer que a voz pública está errada em elogiar esse reino? A
legenda será ela vã? Não, o povo teve razão de consagrar a memória do rei singular, único, que fez
todos desejarem ser franceses”, apud Desprat & Thibau, op.cit., p.119). Em 1844, Alexandre
Dumas trata o ainda jovem Navarra como a luz em meio à escuridão de tempos sombrios. Segundo
Eliane Viennot, em Rainha Margot Le Bourbon annonce de temps nouveaux, celui où la raison,
l’intelligence, la tolérance, prendront le pas sur la passion, l’aveuglement, le goût du sang et de la
haine(“O Bourbon anuncia tempos novos, em que a razão, a inteligência, a tolerância tomarão o
passo à paixão, à cegueira, ao gosto do sangue e do ódio”, Viennot, 1994, p.630). E ainda em
1935, Heinrich Mann, em seu A juventude do rei Henrique IV, discorre, segundo Georg Lukács, “a
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realizarem a sua proposta de tolerância, os politiques fizeram de Henrique IV uma
espécie de grande guia para a França atribuindo ao rei, responsável pela
construção e aplicação do novo édito de pacificação, marcas que confirmavam,
por causa da sua unção pessoal, a veracidade e a validade do seu objetivo e do
instrumento que conduzia a ele – e se, diz o autor do De la Concorde de l'Estat, os
seus contemporâneos não soubessem ainda reconhecer a grandeza de Henrique
IV, a posteridade que, na França, existirá por causa do rei e da sua paz
saberá dar graças e reconhecer o seu valor:
C’est donc Prince magnanime) par l’observation de vos Édits de Pacification,
plus que de nuls autres, qu’il vous faut maintenant affermir la concorde de cet
État, C’est par leur moyen qu’il faut effacer les couleurs, les ombrages, les
prétextes de nos rébellions, empruntées sous le titre de Religion, C’est par leur
autorité qu’il vous fait retenir la créance sur les uns, et sur les autres vos sujets :
Et quoique le peuple de ce siècle trop aveuglé en ses passions n’en puisse juger les
effets, et trop ingrat n’en puisse reconnaître les bienfaits : la postérité seule rendra
témoignage de vos actions, et comblera de louanges vos vertus : Postérité qui se
ressentira encore de la bonne odeur de vos lys, de l’heureuse réconciliation de vos
sujets, et de la prudente conduite de cet État
625
.
Segundo Arlette Jouanna, a proposta politique, que consideramos exposta na
passagem acima, baseava-se ao mesmo tempo na personalidade de Henrique IV e
no desenvolvimento da idéia da necessidade urgente do reino que, à medida que
as guerras prosseguiam, tornava mais visíveis os resultados e o caos que
derivavam dos conflitos movidos por interesses alheios ao bem comum. Para
Jouanna,
Le roi a une personnalité suffisamment forte et charismatique la différence de
celle de Henri III) pour servir de support crédible à cette mythification de l’image
royale ; il a surtout la chance d’arriver à un moment où l’excès des misères
publiques a rendu irrépressible cette attente passionnée et mystique d’un ordre
échappant aux passions humaines
626
.
respeito de uma humanidade real e vitoriosa manifesta em Henrique IV” (Lukács, 1993), que
era, como para Dumas, o contraponto das trevas representadas pelo avanço do regime nazista.
625
“É portanto Príncipe magnânimo) pela observação de vossos Éditos de Pacificação, mais do
que de nenhum outro, que deveis agora fortalecer a concórdia deste Estado, É por meio deles que
as cores, as desconfianças, os pretextos das nossas rebeliões, disfarças sob o tulo de Religião,
devem ser apagadas, É pela sua autoridade que deveis reter a crença em uns, e nos outros vossos
súditos: E mesmo que o povo deste século, cego demais nas suas paixões não possa julgar os
efeitos, e ingrato demais não possa reconhecer seus benefícios: a posteridade unicamente dará
testemunho das suas ões, e cobrirá de elogios vossas virtudes: Posteridade que sentirá ainda o
bom odor dos nossos lírios, da feliz reconciliação de vossos súditos, e da prudente condução deste
Estado”, De la Concorde de l'Estat..., op.cit., pp.92-93.
626
“O rei tem uma personalidade suficientemente forte e carismática (ao contrário da de Henrique
III) para servir de apoio credível a essa mitificação da imagem real; ele tem sobretudo a sorte de
chegar em um momento em que o excesso das misérias públicas tornou irreprimível esta espera
apaixonada e mística por uma ordem que escapasse às paixões humanas”, Jouanna, op.cit., p.392.
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231
Mas a vontade do rei não foi a única razão para a pacificação do reino,
muito embora ela tenha estado sempre presente, liderando o processo. O que
tornou o édito de Nantes viável foi o fato de as condições envolvendo-o serem
distintas daquelas em que os tratados anteriores haviam sido elaborados e
assinados. Diferentemente deles, o édito promulgado após a oitava guerra de
religião foi o resultado de longos anos de discussões entre católicos, protestantes e
os representantes do rei, e a possibilidade da sua aplicação foi fruto da aceitação
da idéia de que a única forma de dar fim aos conflitos era impedir que a
coexistência de católicos e protestantes fosse motivo de guerra, era, em outras
palavras, desvincular a diferença na religião da oposição na república.
Durante os nove anos da última guerra de religião, a contar do assassinato
de Henrique III, a reconquista do reino frente às resistências da Liga foi
acompanhada de negociações para o estabelecimento de uma nova paz, e a
elaboração de um novo édito de pacificação
627
. As conversas com a Liga iniciam-
se em 1590, quando Philippe Duplessis-Mornay, representando o rei, e o senhor
de Villeroy, Nicolas de Neufville, principal conselheiro do duque de Mayenne,
encontram-se em Soindres, nas proximidades de Mantes
628
, em 26 de março.
Ambos consideram imprescindível pôr fim aos conflitos, sendo a melhor opção
para tal a reconciliação entre o rei e Mayenne. Villeroy, no entanto, exige a
conversão, e Mornay pode apenas lhe oferecer a afirmação do desejo de paz que
move o rei, que ele, Mornay, era (como continuou sendo nos anos seguintes,
inclusive após a abjuração) radicalement hostile à toute idée de conversion
629
.
Um novo encontro, em que Mornay é acompanhado por dois outros conselheiros
de Henrique IV, o católico marechal de Biron e o protestante visconde de
Turenne, acontece em outubro de 1590. No mês seguinte, Mornay e Biron voltam
a se reunir com Villeroy, e em 1591 as conversas continuam entre Biron e o
enviado de Mayenne. Sem obterem resultado, as negociações são suspensas e
retomadas em março e abril de 1592, quando a questão da religião do rei é mais
profundamente debatida por Mornay e Villeroy. O católico apresenta ao
protestante um expédient”, elaborado pelos conselheiros de Mayenne, segundo o
627
Poton, 2006, p.104.
628
Para a descrição das entrevistas entre os representantes de Henrique IV e o senhor de Villeroy
ver Daussy, 2002, pp.446-448.
629
“radicalmente hostil a qualquer idéia de conversão”, id., ibid., p.447.
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232
qual o rei deveria se comprometer a, depois de receber a instrução anunciada em 4
de agosto de 1589, converter-se. Mornay, desconfortável com a obrigação de
firmar um acordo que significaria uma ameaça à permanência de Henrique IV na
religião reformada, argumenta que o rei não pode, antes da sua instrução,
assegurar uma abjuração do protestantismo, pois esta atitude sentirait plutôt son
athéiste que son catholique”, e sugeriria
qu’il ne faisait aucune différence entre aller à la messe du soir au lendemain sans
instruction, et le promettre dès à présent après icelle, ne sachant encore quel effet
elle ferait en sa conscience
630
.
Villeroy cede, e o texto do expédient apresentado ao rei e aceito por ele pede
apenas que Henrique IV siga a sua instrução com a intenção de se converter
depois de ela concluída. Junto com o expédient, no entanto, uma série de outros
artigos não é bem recebida, pois, segundo Hugues Daussy, eles feririam a
autoridade soberana do rei
631
. Uma nova proposta é feita por Mornay, mas os
encontros entre os representantes dos dois lados tornam-se esparsos, enquanto os
confrontos armados entre os exércitos de Mayenne e Henrique IV multiplicam-se.
Para a submissão de Mayenne, mais importantes do que as negociações iniciadas
em 1590 são a vitória de Henrique IV em Fontaine-Française, em junho de 1595,
e o perdão e as condições financeiramente favoráveis propostas pelo rei no acordo
assinado em janeiro de 1596. Com a maioria dos demais líderes da Santa União
não será diferente, e a paz será definida pela vitória de Henrique IV nos campos
de batalha e pelas somas, privilégios e perdões que significavam a reintegração
entre a nobreza francesa – oferecidos pelo rei.
Do lado protestante, outras guerras de religião haviam sido entremeadas de
conversações entre deputados protestantes e o rei – como a segunda (1567-1568) e
a quinta (1574-1576), cujos relatos foram publicados respectivamente com os
títulos de Memoires des choses advenues sur le Traicté de la Pacification des
Troubles qui sont en France (1568) e Negotiation de la Paix, es mois d'Auril et
May 1575 (1576) –, mas a maioria foi pouco produtiva por não ser regida por uma
lógica de negociação: a sua dinâmica consistia em os protestantes proporem
630
“antes cheiraria ao seu ateu do que ao seu católico”, “que ele não fazia nenhuma distinção entre
ir à missa da noite ao dia seguinte sem instrução, e prometê-lo desde agora para depois dela, não
sabendo ainda qual efeito ela faria na sua consciência”, Villeroy, Apologie et discours de M. de
Villeroy... apud Daussy, 2002, pp.454-455.
631
Daussy, 2002, p.457.
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233
artigos para um tratado de paz e o rei aceitá-los ou não. Como muitos dos pontos
apresentados pelos protestantes transgrediam a autoridade soberana do monarca
e a preservação dessa autoridade havia sido uma preocupação fundamental de
Carlos IX e Henrique III o rei o poderia acatá-los como artigos válidos para
um édito real. As negociações de que resultou o édito de Nantes tiveram uma
organização diferente.
Uma série de assembléias, a partir de 1593, reuniam as demandas
protestantes, que eram em seguida apresentadas a Henrique IV, repetindo o
processo de composição dos cahiers entregues aos reis franceses durante os
estados gerais. Participando dessas reuniões, os representantes de Navarra
levavam aos deputados protestantes as propostas do rei, e formulavam em
conjunto com eles os artigos que seriam enviados de volta para a avaliação de
Henrique IV e dos seus conselheiros. A primeira assembléia reúne-se entre
novembro de 1593 e janeiro do ano seguinte, em Mantes, a convite do rei. Outras
seis seguem-se a ela: entre 18 e 31 de julho de 1594 em Sainte-Foy; entre 24 de
fevereiro e 20 de março de 1595 em Saumur; e, entre abril de 1596 e junho de
1598, em Loudun, Vendôme, novamente em Saumur, e, finalmente, em
Châtellerault
632
. Os cadernos com as demandas enumeradas são levados ao rei
depois de cada assembléia pelos comissários da Coroa presentes às discussões:
Mornay, Gaspard de Schomberg e Jacques-Auguste de Thou são alguns dos
representantes escolhidos por Henrique IV. O rei e seu conselho transmitem então
às assembléias, por meio dos mesmos comissários ou dos protestantes que os
haviam acompanhado à corte, sua posição sobre os artigos, e alguma nova
instrução ou decisão recente sobre as questões debatidas
633
.
Nessas reuniões, a construção de um acordo com os protestantes foi
intrincada, sobretudo após a conversão de Henrique IV, pois seus antigos
companheiros reformados começaram a temer a volta da repressão ao culto. A
aliança, a confiança que havia levado as assembléias protestantes a escolhem o rei
da Navarra como seu Protetor, em 1576, tornava-se frágil. Em 1590, os
protestantes ainda reconheciam nele um líder messiânico, que os conduziria
632
cf. Daussy, 1998, p.207 nota 1. A partir da reunião de Loudun, as assembléias tornam-se
permanentes, mudando de lugar mas sem se desfazerem, estabelecendo-se, além de Loudun (abril-
outubro de 1596), em Vendôme (novembro 1596-fevereiro 1597), em Saumur (março-maio de
1597), e em Châtellerault (junho 1597-junho 1598).
633
cf. Garrisson, 1997, pp.11-13.
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inexoravelmente à vitória final, na guerra das armas e na da religião. Uma
publicação anônima, atribuída por Denis Crouzet aos aliados protestantes de
Henrique IV, dava conta nesse ano, após a batalha de Arques, da assistência
divina de que gozava o novo rei. Para reforçar o valor e o destino de Navarra, o
autor o compara a Moisés, que conduziu seu povo pelo deserto até a Terra
Prometida:
Et qui douterait de l’assistance de Dieu, puisqu’il nous l’a confirmée par des
signes si authentiques, par la nuée et le feu, qui conduisaient anciennement le
peuple élu dans le désert ?
634
Porém, em março de 1597, no momento em que os exércitos reais
enfrentavam os ligueurs e espanhóis em Amiens, dos senhores protestantes
chamados por Henrique IV para retomarem com ele a cidade alguns se recusaram
a obedecer ao rei, e não se apresentaram para lutar. Em assembléia, declararam:
Nous ne pouvons faire service à votre majesté si nous ne sommes, si nous ne
subsistons. Or nous ne pouvons ni être, ni subsister si nous demeurons astreints
aux dures conditions qu’on nous veut faire recevoir
635
.
Coube a Philippe Duplessis-Mornay a negociação com os protestantes. A
forma de aplacar a revolta crescente entre eles foi a proposta de elaboração de um
novo édito regulamentando o culto no reino. De grande influência entre os
protestantes, protestante ele mesmo
636
, Mornay era, para Hugues Daussy, a melhor
escolha de Henrique IV para tratar com os protestantes.
Idéalement placé, géographiquement et politiquement, pour remplir un rôle
d’intermédiaire, le gouverneur de Saumur s’engage avec détermination dans un
combat son action, guidée par une morale politique très bien définie, s’avérera
décisive
637
.
634
“E quem duvidaria da ajuda de Deus, pois que ele no-la confirmou por sinais tão autênticos,
pela núvem e pelo fogo, que conduziam antigamente o povo escolhido no deserto”, Discours de la
divine Election du Tres-Chrestien Henry Roy de France. Confirmée par les merveilleux faicts que
Dieu a monstré en la persone et action de sa Majesté, auparavant et depuis son advenement à la
Couronne, et de la ruine inevitable de ceux qui s’y opposent, notamment de la ville de Paris, Par
G.R.N, 1590, pp.75-77 apud Crouzet, 1990, p.578.
635
“Nós o podemos prestar serviço à sua majestade se nós o somos, si nós não subsistimos.
Ora nós não podemos nem ser, nem subsistir, se continuarmos sujeitos às duras condições que nos
querem fazer receber”, apud Poton, op.cit., p.143.
636
Philippe Duplessis-Mornay era conhecido por seus contemporâneos como o papa dos
huguenotes, cf. id., ibid e Michelet, 1982, p.792.
637
“Idealmente localizado, geográfica e politicamente, para cumprir um papel de intermediário, o
governador de Saumur se engaja com determinação em um combate onde sua ação, guiada por
uma moral política muito bem definida, se mostrará decisiva”, na Daussy, 2002, p.515.
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Desde 1576, Mornay trabalhava com Henrique IV para divulgar a idéia de
que a necessidade urgente em que se encontrava o reino impunha ao rei a
obrigação de restaurar a paz produzindo uma convivência pacífica entre católicos
e protestantes. A Henrique III, Mornay havia defendido o deslocamento da
discussão acerca da dissensão religiosa para o âmbito de um concílio nacional, em
que os maiores chefes da Igreja galicana e da igreja huguenote decidiriam sobre a
reunião dos franceses em uma só religião. Ao rei caberia convocar esse concílio, e
não decidir sobre o fim da dualidade. Até que as instâncias próprias apresentassem
sua decisão, ao rei caberia também produzir e manter a coexistência pacífica entre
as duas confissões: Attendant ce bien de votre Majesté, supportons nous les uns
les autres en douceur, laissons gner vos Édits de paix, laissons en repos les
consciences
638
, pedia Mornay em 1586.
Durante os debates com católicos e protestantes, o conselheiro e amigo de
Henrique IV procurou conduzir as posições diversas a este mesmo ponto comum:
garantir a coexistência das duas religiões como forma de preservar o reino. Não
foi uma tarefa cil. A resistência protestante ao rei foi possivelmente o maior
obstáculo para a conclusão do édito de Nantes. Os receios, o sentimento de que,
depois de terem conduzido Navarra ao trono, haviam sido por ele abandonados,
tornavam delicada a negociação.
Na Déclaration de 4 de agosto de 1589, logo após a morte de Henrique III,
Navarra havia permitido o culto protestante apenas nos locais onde ele era
celebrado naquela data:
Il ne se fera aucun exercice d’autre religion que de ladite catholique, apostolique
et romaine qu’aux villes et lieux de notre royaume elle se fait à présent, suivant
les articles accordés au mois d’avril dernier entre le feu roi Henri III, de bonne
mémoire, notre très honoré seigneur et frère et nous
639
.
O acordo feito entre Henrique III e Navarra em 3 de abril de 1589 havia
definido as condições que presidiriam à reunião dos dois reis: Navarra e seu
exército deveriam lutar contra o duque de Mayenne, e as regiões conquistadas
durante a campanha teriam que ser devolvidas ao rei, com a exceção de uma
638
“Esperando esse bem de vossa Majestade, suportemo-nos uns aos outros em doçura, deixemos
reinarem vossos Éditos de paz, deixemos em repouso as consciências”, Mornay, 1586, p.27.
639
“Não se fará nenhum exercício de outra religião a o ser da dita católica, apostólica e romana,
a o ser nas cidades e lugares do nosso reino onde ela se faz atualmente, seguindo os artigos
acordados no mês de abril último pelo falecido rei Henrique III, de boa memória, nosso muito
honrado senhor e irmão”, Henri IV, 1829, pp.3-4.
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cidade por senescalia ou bailia, que poderia ficar sob o domínio de Navarra e onde
o culto protestante seria permitido
640
. Era menos do que havia concedido Henrique
III no último édito de pacificação, de Fleix (que retomava as cláusulas de
Poitiers), que determinava que o culto poderia ser realizado nas propriedades dos
senhores haut-justiciers (ou que tivessem fief de haubert) e que os protestantes
pourront être et demeurer sûrement par toutes les villes et lieux de ce Royaume,
sans pouvoir être recherchés, ni inquiétés pour le fait de ladite religion, sous
quelque couleur que ce soit, en se comportant au reste selon qu’il est ordonné par
les articles susdits dudit Édit
641
.
Foi apenas em julho de 1591 que Navarra, pelo édito de Mantes, aumentou a
permissão ao culto protestante, recuperando o édito de Fleix. Para os protestantes,
que haviam sido até então os companheiros de religião e de guerra do novo rei, e
cujas vidas e propriedades tinham lhe servido de base e força, era ainda pouco.
Tendo Navarra como rei, eles esperavam ver sua religião ampla e oficialmente
reconhecida, o que significava que contavam ter garantida a liberdade de culto
irrestrita. Mas, para Navarra, era preciso em primeiro lugar impor a sua autoridade
de rei por todo o reino, o que significava vencer a resistência da Liga, vencer a
guerra contra ela. O que os protestantes consideravam como seu direito, e
esperavam como retribuição dos anos de apoio e serviços prestados a Henrique
IV, para a Liga e os católicos intransigentes representava o favorecimento da
heresia. Obrigado a negociar com os chefes ligueurs para pôr fim à guerra, o rei
distribui entre eles perdão e dinheiro, e provoca nos protestantes o temor de que
poderia vir, por necessidade, a se converter, e mesmo a se voltar contra eles: de
quel sacrifice Henry IV paiera-t-il encore le ralliement des ligueurs? Seront-ils la
victime expiatoire?
642
, conclui Janine Garrisson.
Em Mantes e depois em Sainte-Foy, em maio de 1594, surge entre os
protestantes reunidos a idéia de eleger um novo Protetor, em substituição a
Henrique IV. Ao final da primeira assembléia protestante, a de Mantes, um dos
enviados do rei, e futuro chanceler, Pomponne de Bellièvre, havia deixado claro
640
Esse mesmo acordo determinou que Saumur seria dada, como mostra da boa-vontade de
Henrique III, aos protestantes, para ser governada por Mornay.
641
“poderão estar e permanecer seguramente em todas as cidades e lugares deste Reino, sem
poderem ser procurados, nem inquietados por causa da dita religião, sob a forma que seja,
comportando-se de resto segundo é ordenado pelos artigos acima ditos do dito Édito”, Stegmann,
op.cit., p.193.
642
“de que sacrifício Henrique IV pagará ainda a adesão dos ligueur? Serão eles as vítimas
expiatórias?, Garrisson, 1997, p.11.
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aos deputados protestantes que as suas demandas não seriam todas concedidas
posto qu’il fallait d’abord consolider le pouvoir d’Henri IV avant de songer à
accéder aux demandes des protestants
643
. Como durante os reinados de Carlos IX
e Henrique III, o de Henrique IV parecia que também geraria a necessidade, entre
os protestantes, da nomeação de um defensor para protegê-los das decisões
nocivas da Coroa.
Em 1595, a assembléia de Saumur decide promover a réunion des Églises
du royaume avec celles des Pays-Bas par tous les moyens possibles
644
, e dois
anos mais tarde o partido protestante recorre à rainha da Inglaterra e aos Países
Baixos para que interviessem em seu favor junto ao rei. 1597 é também o ano em
que alguns grandes senhores que participavam das assembléias protestantes
decidem não responder ao chamado do rei para ajudá-lo no cerco de Amiens. Para
Pierre Joxe, “le danger de sécession n’a jamais été aussi grave
645
.
Nesse contexto de insatisfações mútuas, a função de Mornay era conseguir
dos protestantes sua obediência ao rei, garantindo-lhes em troca pouco mais do
que os éditos anteriores haviam concedido. Permaneceriam no édito de Nantes,
entre outras, as determinações das pacificações anteriores sobre a hegemonia e o
restabelecimento do catolicismo no reino, sobre as places-de-sûreté, as chambres
mi-parties, a anulação dos atos judiciais contra os protestantes durante a guerra, o
livre acesso destes a quaisquer cargos e ofícios, a liberdade de consciência, a
liberdade de culto restrita aos lugares designados nos mesmo moldes dos éditos
anteriores. As cláusulas do novo édito retomarão sobretudo as do de Poitiers, de
1577. Vários itens são integralmente reproduzidos no édito de Nantes, como o
segundo artigo, que era também o segundo do de Poitiers. Nele o rei ordena que se
esqueçam as causas das desavenças passadas e que vivam em paz os franceses:
Défendons à tous nos sujets de quelque état et qualité qu’ils soient, d’en renouveler
la mémoire, s’attaquer, ressentir, injurier, ni provoquer l’un l’autre par reproche
de ce qui s’est passé pour quelque cause et prétexte que ce soit, en disputer,
contester, quereller ni s’outrager ou offenser de fait ou de paroles ; mais se
contenir et vivre paisiblement ensemble comme frères, amis et concitoyens, sur
643
“que era preciso primeiro consolidar o poder de Henrique IV, antes de sonhar conceder os
pedidos dos protestantes”, apud Cottret, op.cit., p.422 nota 63.
644
“reunão das Igrejas do reino com aquelas dos Países Baixos por todos os meios possíveis”,
Joxe, 1998, p.133.
645
“o perigo de secessão nunca foi tão grave”, id., ibid., p.133.
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peine aux contrevenants d’être punis comme infracteurs de paix, et perturbateurs
du repos public
646
.
Este artigo, repetido desde o édito de Janeiro de 1562, valia tanto para
católicos quanto para protestantes, e resumia a política de tolerância civil seguida
pela Coroa desde antes do início das guerras de religião, desde a primeira
concessão de liberdade de consciência aos protestantes, por Michel de L’Hospital
e Catarina de Médici. O fato de ele ser finalmente respeitado, e de o édito de
Nantes ser bem sucedido onde os outros falharam, garantindo a pacificação do
reino por longo tempo, e sobretudo tornando inócuos os partidos adversários,
deve-se em larga medida aos esforços de negociação empreendidos por Henrique
IV e seus agentes do lado protestante como do católico. Algumas das cláusulas
amplamente discutidas foram aquelas relacionadas à liberdade de culto
protestante. As decisões contidas no édito de Poitiers foram mantidas em termos
semelhantes, com pequenas diferenças que favoreciam às vezes os católicos, às
vezes os protestantes. Se o número de convidados que poderia assistir ao culto nas
propriedades de senhores protestantes além dos membros da família deste
passa no édito de Nantes de 10
647
para 30
648
, o perímetro em torno de Paris dentro
do qual o culto fica proibido sobe de duas
649
para cinco léguas
650
.
O preâmbulo do édito lembra essa primeira fase da sua elaboração, de
negociações e debates, em que se começou a preparar a forma de dar fim aos
tempos de “trouble et de tumulte
651
:
Pour cette occasion, ayant reconnu cette affaire de très grande importance et
digne de très bonne considération, après avoir repris les cahiers des plaintes de
nos sujets catholiques, ayant aussi permis à nos sujets de la religion prétendue
réformée de s’assembler par députés pour dresser les leurs et mettre ensemble
toutes leurs remontrances et, sur ce fait, conféré avec eux par diverses fois, et revu
les édits précédents, nous avons jugé nécessaire de donner maintenant sur le tout à
tous nos sujets une loi générale, claire, nette et absolue, par laquelle ils soient
646
“Proibimos todos os nossos súditos, seja de que estado e qualidade forem, de renovarem a
memória disso, atacarem-se, ressentirem, injuriarem, nem provocarem um ao outro por repreensão
do que aconteceu seja qual for a causa ou pretexto, discutirem, contestarem, querelarem nem se
ultrajarem ou ofenderem por fatos ou palavras; mas conterem-se e viverem pacificamente juntos
como irmãos, amigos e concidadãos, sob pena aos contraventores de serem punidos como
infratores da paz, e perturbadores da tranqüilidade pública”, Garrisson, 1997, p.29.
647
O édito de Poitiers permitia a presença no culto de 10 protestantes convidados. Cf. Stegmann,
op.cit., p.133.
648
Cf. Garrisson, 1997, p.32.
649
No édito de Poitiers. Cf. Stegmann, op.cit., p.134.
650
Cf. Garrisson, 1997, pp.34-35.
651
ibid., p.27.
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réglés sur tous les différends qui sont ci-devant sur ce survenus entre eux, et y
pourront encore survenir ci-après
652
.
Mas o que tornou possível a negociação e que nesse sentido foi decisivo –
foi a disseminação de um modo de compreender a função do rei diferente daquele
herdado da tradição medieval. Nessa difusão, como na gestação desse novo
ideário político, os politiques foram fundamentais. Segundo Quentin Skinner, a
repetição e o aprofundamento das guerras de religião tornaram evidente,
aos olhos de diversos teóricos da linha politique, que, para se ter alguma
perspectiva de obter a paz cívica, os poderes do Estado teriam de ser desvinculados
do dever de defender uma determinada
653
.
Durante a elaboração do édito de Nantes, Mornay representava a corrente
que acreditava ser obrigação do rei dar fim às guerras civis, mas que seria
impossível fazê-lo perpetuando-se a discussão acerca da dualidade religiosa. Mais
do que impossível: discutir o problema da religião o cabia ao rei, enquanto
solucionar o problema da guerra era a sua função. Para Friedrich Meinecke, o
propósito do partido politique era détacher les intérêts de l’Etat de la tutelle de
l’Eglise et des passions confessionnelles
654
.
Para um católico intransigente como Jean Boucher, o sentido do poder do
rei – poder, aliás, dado por Deus para esse fim específico – era defender a religião.
Para ele, “le temporel doit par nécessité se conformer au spirituel et la fin
dernière à laquelle il tend, qui est le salut des âmes
655
.
A submissão do rei à obrigação da defesa da religião exposta por Boucher
em 1594 era o reflexo da ideologia da Santa União, cujos artigos fundamentais,
expostos em 1588, afirmavam que
Depuis l’an quatre cent nonente neuf qui fut l’an du Baptême de Clovis la
Monarchie de France a duré en un même état, sous une Foi, une Loi, et un Roi. (...)
C’est aussi le premier serment que font nos Rois à leur sacre et onction, de
652
“Nesta ocasião, tendo reconhecido esse assunto de muito grande importância e digno de muito
boas considerações, após ter retomado os cadernos de queixas dos nossos súditos católicos, tendo
também permitido aos nossos súditos da religião pretensamente reformada reunirem-se por
deputados para listarem as suas e colocar juntas todas as suas representações e, sobre isso,
conferenciado com eles por diversas vezes, e revisto os éditos precedentes, julgamos necessário
dar agora sobre o todo a todos os nossos súditos uma lei geral, clara, direta e absoluta, pela qual
eles sejam pautados sobre todas as diferenças que anteriormente aconteceram sobre isto entre eles,
e poderão ainda acontecer no futuro”, ibid., pp.27-28.
653
Skinner, op.cit., p.620.
654
“desligar os interesses do Estado da tutela da Igreja e das paixões confessionais”, Meinecke,
1973, p.59.
655
“o temporal deve necessariamente se conformar ao espiritual e ao fim último a que ele leva, que
é a salvação das almas”, Boucher, op.cit., s/p.
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maintenir la Religion Catholique, Apostolique et Romaine, sous lequel serment ils
reçoivent celui de fidélité de leurs sujets. Donc puis que le changement de la
Religion est le changement de l’État, et que la subversion d’icelle apporte avec soi
la totale ruine du Royaume
656
.
Antes de Boucher e da Liga, em 1574 o arquidiácono de Toul François de
Rosières havia enunciado a base sobre a qual, para o partido católico, era
preciso lidar com a dualidade em matéria de religião:
Car il n’y a rien qui tienne tant le peuple en honneur, crainte obéissance de Dieu,
révérence, intégrité de bonnes moeurs, subjection aux Princes, et Magistrats,
observances des lois, et autres choses nécessaires en la vie civile, que l’union de la
religion : par l’apostasie de laquelle tout est mis en confusion, et dissolution. Ce
que nous avons vu assez à l’oeil de notre temps en la suscitation de Luther,
Carolstade, Zwingli, Oecolampade, et autres leurs complices, qui en Allemagne en
l’introduction de leurs sectes, et simulées religion ont excité infinies contention, et
tragédies. Tellement que le sujet s’est élevé contre son Seigneur. (...) Et depuis par
autre instigation d’un nouveau sectaire nommé Calvin, et de ses sectateurs et
séducteur le fleurissant Royaume de France a quasi été totalement perdu. De sorte
qu’infinis assassinements, saccagements, et voleries sont sorties de là, et même le
père a été fait étranger de sa femme, fils, fille, parents, amis, et de sa propre
famille (...) Il n’y a donc chose meilleure, ni à laquelle les Princes, et Rois doivent
plus tenir la main, qu’à la religion, observance, et union d’uncelle, tant pour le
bien commun, que pour le repos, et sincérité de la conscience d’un chacun
particulier (...). Par quoi les Princes, et Magistrats doivent soigneusement veiller à
ce que le peuple se contienne aux saintes constitutions, et traditions, ensemble aux
observances de nos pères, en rejettant l’abus, et le superflu qui a écommis par
aucun d’eux. Ce qui a toujours engendré scandale, et qui a été cause du débaux
présent
657
.
656
“Desde o ano 499, que foi o ano do Batismo de Clovis, a Monarquia da França durou em um
mesmo estado, sob uma Fé, uma Lei, e um Rei. (...) É também o primeiro juramento que fazem
nossos Reis na sua sagração e unção, de manter a Religião Católica, Apostólica e Romana, sermão
sob o qual eles recebem o de fidelidade dos seus súditos. Logo dado que a mudança da Religião é
a mudança do Estado, e que a subversão desta traz consigo a total ruína do Reino”, Articles de la
saincte union des Catholiques François, op.cit., p.30.
657
“Pois não há nada que mantenha tanto o povo em honra, temor, obediência a Deus, reverência,
integridade de bons costumes, sujeição aos Príncipes, e Magistrados, observação das leis, e outras
coisas necessárias na vida civil, do que a união da religião: pela apostasia da qual tudo é posto em
confusão, e dissolução. O que vimos bem em nosso tempo na suscitação de Lutero, Carlstadt,
Zwingli, Oekolampadius, e outros seus cúmplices, que na Alemanha, na introdução das suas seitas,
e sumuladas religiões excitaram infinitos desentendimentos, e tragédias. Tanto que o dito
levantou-se contra o seu Senhor. (...) E depois por outra instigação de um novo sectário chamado
Calvino, e dos seus sectários e sedutores o florescente Reino da França foi quase totalmente
perdido. De sorte que infinitos assassinatos, saques, e roubos resultaram daí, e mesmo o pai foi
feito estrangeiro da sua mulher, filho, filha, pais, amigos, e da sua própria família (...) Não
portanto coisa melhor, nem à qual os Príncipes, e Reis devem atentar mais do que è religião,
observação e união desta, tanto para o bem comum, quanto para a tranqüilidade, e sinceridade da
consciência de cada um particular (...). Pelo que os Príncipes, e Magistrados devem
cuidadosamente atentar para que o povo contenha-se dentro das santas constituições, e tradições,
assim como da observação dos nossos pais, rechaçando o abuso, e o excesso que foi cometido por
algum deles. O que sempre gerou escândalo, e que foi causa do desregramento presente”, Rosières,
op.cit., pp.80-81.
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241
A posição que, na França das guerras de religião, era diametralmente oposta
a essa era a de Mornay, e da linha politique que ele representou. Para este partido,
a função do rei era outra, era proteger seus súditos, era garantir-lhes a paz, et la
paix générale avec tous ses sujets, tant d’un côte que d’autre, tant d’une, que
d’autre religion
658
, como Mornay e Henrique IV haviam declarado na Lettre du
Roy de Navarre, aux trois Estats de ce royaume, de 1589. Apenas pela via da
tolerância civil, posto que os politiques consideravam ser provisoriamente
necessária a coexistência das duas religiões, a pacificação do reino seria possível.
Segundo Duplessis-Mornay,
la division en la Religion est une maladie bien grande, mais la guerre civile est un
remède encore plus dangereux que la maladie. Il est question de réunir les deux
partis
659
.
A dissensão religiosa, problema grave, como Mornay não se recusa a
admitir, era no entanto menos grave do que a guerra feita por causa dela. A guerra
levava ao caos, e o caos à destruição do reino. Como remédio, os politiques
propuseram separar o rei da religião. Teórica e praticamente, construíram uma
filosofia política (que foi por eles aplicada) que dava ao rei a função de velar pelo
bem público e distinguia esse objetivo da função da Igreja, de velar pela salvação
da alma. Em 1585, Mornay escreve, na Déclaration et protestacion du roy de
Navarre, de M. le prince de Condé et M. le duc de Montmorency, que para salvar
o reino
fallait composer les troubles (...) par une équitable paix qui fut convenable à la
disposition présente, réservant à Dieu, qui seul règne sur les consciences, d’opérer
aux coeurs de ses sujets pour les réunir et remmener en une Religion
660
.
Em linhas gerais, essas palavras, publicadas em 1585, servem como uma
apresentação do édito de Nantes. O fato de o chanceler Michel de L’Hospital fazer
uma proposta semelhante em 1562, no discurso para a assembléia de Saint-
Germain, e de Mornay apresentar, desde 1576, essa sua opinião, reiterada em
seguida, durante os primeiros anos do reinado de Henrique IV anos de guerra e
de necessidade extrema dessa paz pela maioria dos conselheiros do novo rei e
658
“e a paz geral com todos os seus súditos, tanto de um lado quanto de outro, tanto de uma,
quanto de outra religião”, Henri IV, 1589-ab, s/p.
659
“a divisão na Religião é uma doença bem grande, mas a guerra civil é um remédio ainda mais
perigoso do que a doença. Trata-se de reunir as suas partes”, Mornay, 1574, p.9.
660
“era preciso reparar as perturbações (...) por uma paz eqüitativa que fosse conveniente à
disposição presente, reservando a Deus, que reina sozinho sobre as consciências, agir nos corações
dos seus súditos para reuni-los e colocá-los novamente em uma Religião”, Henri IV, 1585, s/p.
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242
pelo próprio Henrique IV revela como a posição politique passou de marginal a
hegemônica, de absurda a necessária e depois desejada. Era a defesa da tolerância
civil que se fazia por essas palavras, e esta era fruto de uma separação, fomentada
teórica e praticamente pelos politiques, entre a função da Igreja e a do Estado, o
objeto e o objetivo da religião e os da política. Segundo Joseph Lecler,
Nulle part ailleurs en Europe, la tolérance d’un culte dissident n’a été aussi
clairement basée, à cette époque, sur le principe d’une distinction effective entre
les fins de l’État et celles de la religion
661
.
Essa particularidade francesa foi o resultado de quase 40 anos de guerras e
discussões, que desenvolveram uma via de ação e um instrumento: a política
como instância essencialmente humana, e cujo sentido era a manutenção do bem
comum, e a tolerância, ferramenta para construí-lo. É pela investigação do
caminho feito pela idéia da tolerância civil, entre 1561 e 1598, que acreditamos
ser possível afirmar que, na França no século XVI, ela tenha sido criada como um
instrumento da política, a ser aplicado pontualmente na resolução de um problema
crônico que, de outra forma, tornar-se-ia eterno, até que a própria França não
existisse mais. O caminho leva de uma primeira tentativa, violentamente
rechaçada, até a aceitação, resignada, desconfortável, e às vezes entusiasmada, da
noção de que a necessidade urgente do reino demandava um tipo de solução
inédita, e que contrariava a tradição. De idéia marginal e absurda que era para os
franceses na década de 1560, a tolerância foi elaborada, exposta, trabalhada,
aprimorada, cultivada, defendida pelos politiques e transformada em um conceito
com uma função, com um objetivo particular: dar solução ao caos que estava
destruindo o reino. Com Henrique IV, os politiques trabalharam para fazê-lo ser
aceito, enquanto ele se dedicava a vencer as oposições intransigentes e estabelecer
um acordo baseado na idéia central desenvolvida pelos politiques, a da tolerância
civil. O rei e os politiques vencem nos campos de batalha e na guerra de
convencimento que se tratava sobretudo através das publicações. O édito de
Nantes, resultado dessa vitória, trouxe a afirmação de que a coexistência
provisória de católicos e protestantes era a ferramenta necessária à paz, a única
capaz de evitar que o caos destruísse o reino.
661
“Em nenhum outro lugar na Europa, a tolerância de um culto dissidente foi tão claramente
baseada, nessa época, no princípio de uma distinção efetiva entre os objetivos os Estado e os da
religião”, Lecler, op.cit., p.554.
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243
Foi esse o argumento usado para convencer o papa Clemente VIII a aceitar
o édito. Profundamente contrariado com os seus artigos, ao saber da confirmação
registrada pelo parlamento de Paris, em abril de 1599, o papa havia afirmado ao
cardeal de Ossat, embaixador francês no Vaticano, que
Cet édit (...), le plus mauvais qui se pouvait imaginer, permettait liber de
conscience à tous chacun, qui était la pire chose du monde. Grâce à lui les
hérétiques allaient envahir les charges et les Parlements pour promouvoir et
avancer l’hérésie et s’opposer à tout ce qui pourrait tourner au bien de la
religion
662
.
Para demover Clemente VIII da sua recusa em aceitar o édito de Nantes, o
embaixador começou por confessar que, de tels édits, à les considérer en eux-
mêmes, et sans regarder au temps et à la nécessité qui les avaient extorqués,
étaient choses très mauvaises
663
, mas as circunstâncias, o caos provocado pelas
repetidas guerras, e o objetivo de evitá-las, e assim evitar um mal ainda maior,
pediam a aceitação do édito de Nantes. Pediam a tolerância, esse instrumento da
política desenvolvido e experimentado ao longo das guerras de religião, e
instituído legalmente pelo édito de Nantes.
662
“Este édito (...), o pior que se poderia imaginar, permitia liberdade de consciência à cada um e
todos, o que era a pior coisa do mundo. Graças a ele os hereges iam invadir os cargos e os
Parlamentos para promoverem e fazerem avançar a heresia e se oporem a tudo o que poderia levar
ao bem da religião”, Lettres du Cardinal d’Ossat apud Lecler, op.cit., p.519.
663
“tais éditos, a considerá-los neles mesmos, e sem olhar o tempo e a necessidade que os havia
extorquido, eram coisas muito ruins”, Lettres du Cardinal d’Ossat apud Lecler, op.cit., p.520.
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Conclusão.
A invenção da tolerância civil no século XVI: afirmação de
uma novidade
Em 1685, o édito de Nantes é revogado por Luís XIV. Entre 1598 e essa
data, sua história foi feita ao mesmo tempo de confirmações, restrições e
modificações. Como a sua formulação, a revogação do édito de Nantes foi
envolvida por longas discussões, e reacendeu na França o debate sobre a
tolerância. A idéia e a experiência desta, no entanto, eram outras, distintas
daquelas produzidas no século XVI. Nas palavras de Reinhart Koselleck, les
mots qui ont duré ne constituent pas en soi un indice suffisant de alités
matérielles restées identiques
664
. Deste novo contexto, resulta portanto um novo
conceito de tolerância.
Henrique IV é assassinado em 14 de maio de 1610 por François Ravaillac
665
.
Em toda a França, o medo de uma retomada das guerras civis espalha-se. Os
protestantes temem a anulação do édito de Nantes. Em 22 de maio, ele é
confirmado por Marie de Médicis, regente durante a menoridade e os primeiros
anos da maioridade de Luís XIII. O novo rei completa 13 anos
666
em 1614, mas
Marie de Médicis permanece no poder até ser expulsa pelo filho, em 1617.
Apoiada por parte da grande nobreza – pelos duques de Épernon, Mayenne,
Longueville, Nemours, Soissons e Retz –, a rainha-mãe reúne um exército para
enfrentar Luís XIII e seu conselheiro, seu favorito e condestável, o duque de
Luynes, mas é derrotada no verão de 1620.
Entre 1621 e 1629 novos confrontos voltam a opor protestantes e católicos,
no entanto, diferentemente das guerras de religião do século XVI, esses conflitos
664
“as palavras qui duraram não constituem em si um indício suficiente de realidades materiais
que permaneceram idênticas”, Koselleck, 1990, p.114.
665
Segundo seu próprio depoimento no processo que se seguiu ao assassinato do rei, Ravaillac era
uma espécie de despachante que, ao mesmo tempo, ensinava a crianças da cidade onde morava as
orações católicas. Apesar de se dizer arrependido do sofrimento provocado pelo seu ato, o
assassino justificava-se afirmando que havia seguido uma ordem direta de Deus. Os juízes que
interrogaram Ravaillac queriam que ele denunciasse cúmplices ou mandatários, mas, mesmo
depois de repetidas sessões de tortura, o assassino seguia negando o envolvimento de qualquer
outra pessoa, atribuindo sua ação apenas à vontade divina (cf. Mousnier, op.cit, pp.7-13).
666
Um regulamento de Carlos V, de 1374, havia fixado a maioridade do rei aos 14, mas o texto,
ambíguo, especificava que a menoridade se estendia até que o rei “tivesse atingido o seu 14º ano”.
É Michel de L’Hospital que, em 1563, determina que a maioridade do rei se inicia no aniversário
de 13 anos deste, inscrevendo esta disposição entre as leis fundamentais do reino (cf. Jouanna,
op.cit., p.1065).
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não assumiram o mesmo caráter de defesa da religião
667
: a preocupação do rei não
era com a religião dos revoltosos, mas com a sua recusa em obedecer à lei
comum
668
. A retomada de La Rochelle, última fortaleza protestante, em novembro
de 1628, é determinante para o édito de pacificação assinado por Luís XIII em 28
de junho do ano seguinte, em Alès. Nele, e no édito de Nîmes que se segue (20 de
julho de 1629), uma modificação importante é realizada nos termos do édito de
Nantes: todas as places de sûreté concedidas aos protestantes lhes são retiradas
669
.
Segundo Bernard Cottret, la paix d’Alès met définitivement fin à l’organisation
militaire et politique du parti huguenot
670
.
Pela paz de Alès, portanto, o caráter de força militar e de partido dentro do
Estado francês, que os protestantes haviam mantido depois das guerras de religião
do século XVI, é suprimido. Mas, por Luís XIII e pelo cardeal de Richelieu, o
édito de Nantes, que foi a instituição da tolerância civil como instrumento para a
paz, é mantido. Para justificar a decisão de modificar as cláusulas sobre as places
de sûreté, o rei explica ao parlamento de Paris que sua intenção era, novamente, a
de promover a unidade civil do reino, eliminando as decisões que, no passado,
haviam possibilitado aos protestantes a formação de uma facção política; mas
quanto à unidade religiosa, Luís XIII completa: le reste étant un ouvrage qu’il
faut attendre du ciel sans y apporter jamais aucune violence
671
. A distinção entre
o pertencimento religioso e o civil havia sido também reiterada, em 1616, pelo
secretário, ainda não cardeal, Richelieu. Nas instruções entregues ao embaixador
francês junto aos príncipes alemães, ele havia declarado:
Les diverses créances ne nous rendent pas de divers États. Divisés en foi, nous
demeurons unis en un prince au service duquel nul catholique n’est si aveugle
d’estimer, en matière d’État, un Espagnol meilleur qu’un Français huguenot
672
.
Após a morte de Richelieu, em 1642, e de Luís XIII, em 1643, Mazarino e
em seguida Luís XIV mantiveram a defesa do édito de Nantes, confirmado, mais
667
Cottret, op.cit., p.286.
668
Miquel, 1976. p.189.
669
Lecler, op.cit., p.524.
670
“a paz de Ales põe definitivamente fim à organização militar e política do partido huguenote”,
Cottret, op.cit., p.294.
671
“o resto sendo uma obra que é preciso esperar do céu sem nunca colocar aí nenhuma violência”,
Carta de Luís XIII datada de 21 de março de 1629 citada em Lecler, op.cit., p.525.
672
“As diversas crenças não nos fazem de diversos Estados. Divididos na fé, nós permanecemos
unidos em um príncipe no serviço do qual nenhum católico é tão cego de julgar, em matéria de
Estado, um espanhol melhor do que um francês huguenote”, Lettres du cardinal de Richelieu apud
Lecler, op.cit., p.526.
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uma vez, depois da derrota da Fronda, pela declaração de Saint-Germain, de 1652.
A maioridade do rei, em 1651, e o primeiro exílio de Mazarino marcaram o início
do reinado pessoal de Luís XIV. Depois de derrotarem os príncipes, os nobres, os
parlamentos e o povo revoltoso, em 1653, Luís XIV, Mazarino e Colbert
dedicaram-se à reestruturação das finanças do reino e à construção de uma
unidade francesa que pudesse fazer frente às demais potências européias. Em
1678, o Tesouro real estava novamente cheio, as manufaturas francesas eram
exportadas pelo mundo, as colônias, sobretudo as americanas, prosperavam, a
guerra contra a Espanha, o Império, a Holanda, a Dinamarca, a Suécia e a
Inglaterra estava ganha. Depois da morte de Mazarino, o rei governava como
senhor absoluto. A restauração da paz, e a concórdia interna projetadas pelo édito
de Nantes pareciam realizadas. Em 1685, Luís XIV revoga o édito. Mais
maintenant qu’il plaît à Dieu commencer à nous faire jouir de quelque meilleur
repos”, dizia o seu preâmbulo,
nous avons estimé ne le pouvoir mieux employer qu’à vaquer à ce qui peut
concerner la gloire de son saint nom et service et à pourvoir qu’il puisse être
adoré et prié par tous nos sujets et s’il ne lui a plu permettre que ce soit pour
encore en une même forme et religion
673
...
A unificação que não era possível em 1598, o seria um dia? Para Luís XIV,
era hora. Conquistador do reino que havia herdado como o avô antes dele, mas
em outro contexto –, o rei havia imposto a sua autoridade soberana à ambição e
aos interesses dos grandes. A mitificação em torno a Henrique IV, que havia feito
dele, ao final das guerras de religião, um rei ungido, escolhido e favorecido por
Deus, torna-se divinização: declarado por Bossuet
674
herdeiro dos reis de Israel, de
Davi que était choisi de Dieu
675
, Luís XIV responde apenas a Deus, ele é o
intérprete da vontade divina. Mas ao contrário do avô e da instituição do édito de
Nantes e da tolerância civil, Luís XIV decretava, com a revogação, a reafirmação
do antigo axioma une foi, une loi, un roi, que implicava porém em uma nova
relação entre as partes. O édito de Fontainebleau (publicado em 17 de outubro de
673
“Mas agora que Deus quer começar a nos fazer gozar de alguma melhor tranqüilidade
estimamos não poder empregá-la melhor do que em ocupar-nos do que pode concernir à glória do
seu santo nome e serviço, e providenciar para que ele possa ser adorado e rogado por todos os
nossos súditos, e se ele não quis permitir que fosse ainda em uma mesma forma e religião”,
Garrisson, 1997, p.27.
674
Miquel, op.cit., p.214.
675
Bossuet, Politique tirée des propres paroles de l’Écriture sainte, VI, II, VI apud Raynaud &
Rials, 2003, p.76.
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1685), anulando o de 1598, era mais um passo na afirmação da soberania real,
dentro e fora do reino. Em 1685, a experiência da tolerância civil estava feita,
assim como o estabelecimento da necessidade do Estado, e da função do rei como
seu defensor. Quanto à distinção entre os objetivos do Estado e os da Igreja, ela
era uma realidade ao ponto que uma nova relação entre as duas instituições estava
sendo criada.
A discussão sobre a tolerância no século XVII foi marcada pelas Frondas e a
afirmação do poder soberano; pela guerra dos Trinta Anos no Império (1618-
1648); pelas guerras civis (1642-1646 e 1648), a decapitação de Charles I (1649),
a Restauração (1660) e a Revolução Gloriosa (1688) na Inglaterra; pela ameaça
turca, às portas de Viena (1683); pela Contra-Reforma, as revisões do édito de
Nantes
676
e as conversões forçadas na França, as dragonnades, e, finalmente, pela
revogação do édito, em 1685. Quando ela acontece, o debate em torno a ela, a
crítica a ela, feita por exemplo por Pierre Bayle, não considerava tolerância da
mesma forma que o século anterior.
Tolerar, para Bayle, não era um mal menor; não era meio de produzir paz
civil; tolerar não era um instrumento. Nem tampouco era um fim, um objetivo da
ação do homem. Tolerar era um princípio. Era, para Bayle, uma condição moral,
deduzida epistemologicamente a partir da incapacidade do entendimento humano
de conhecer a verdade, e mais especificamente a verdade em matéria de religião.
O resultado era a impossibilidade de se definir em que igreja estava a verdade, e,
logo, a impossibilidade de se considerar que qualquer uma delas estivesse em erro
na sua doutrina. A “tolérance de Religion” deveria estender-se portanto “à qui que
ce soit
677
. “Tolerância de religião”, conceito distinto do de tolerância civil, e que
significava a aceitação pura e simples, isto é, não condicionada, não provisória, de
todas as religiões todas, mesmo as não-cristãs
678
. Tolerância que não era uma
imposição do Estado para garantir a paz civil, nem o bem comum, mas uma
676
Entre 1661 e 1685, quase uma centena de decretos ordenou, entre outros, a supressão de
templos protestantes, a limitação da ação dos pastores, o fechamento de instituições de ensino, a
exclusão dos protestantes de cargos e ofícios, e a instituição de um fundo para financiar novas
conversões. Segundo David El Kenz e Claire Gantet, em 1681 as novas regulamentações sobre o
édito de Nantes podem ter resultado em cerca de 10 mil conversões voluntárias, e provavelmente
recompensadas financeiramente, e 40 mil forçadas pelas dragonnades (cf. El Kenz & Gantet,
2003, p.137).
677
“tolerância de religião”, “a quem quer que seja”, Bayle, op.cit., p.464.
678
id., ibid., p.lv.
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determinação do espírito, que, como não podia ser forçado, coagido, também não
podia coagir nem forçar.
No seu Commentaire Philosophique Bayle respondia, a quem afirmava que
a revogação havia sido necessária porque a coexistência de católicos e
protestantes era uma ameaça para o reino, que a tolerância produz partout (...)
grand calme, et grande tranquillité
679
, e que, ao contrário, “c’est la non-tolérance
qui cause tous les désordres qu’on impute faussement à la tolérance
680
. Como
um princípio moral, a tolerância não poderia ser, em si mesma, um mal, e portanto
não poderia ser prejudicial para o reino.
Contemporâneo de Bayle, John Locke produziu reflexão semelhante à do
Commentaire Philosophique. Na sua Carta sobre a tolerância, publicada em
latim, anonimamente, em 1689, Locke afirma:
Não é a diversidade de opiniões (o que não pode ser evitado), mas a recusa de
tolerância para com os que têm opinião diversa, o que se poderia admitir, que deu
origem à maioria das disputas e guerras que se têm manifestado no mundo cristão
por causa da religião
681
.
Para Locke, tendo em vista que não conhecimento inato, e que tudo se
conhece por meio dos sentidos e da experiência e inclusive Deus pode ser uma
idéia derivada da percepção sensível e da experiência –, não se pode ter
conhecimento verdadeiro acerca da religião, e das afirmações anunciadas como
verdade pelas diferentes igrejas. Toda religião pode, teoricamente, portanto, ser
verdadeira. Segundo Locke, em palavras de novo semelhantes às de Bayle,
cada igreja é ortodoxa para consigo mesma e errônea e herege para as outras. Seja
no que for que certa igreja acredita, acredita ser verdadeiro, e o contrário disso
condena como erro
682
.
Para Julie Saada-Gendron, o argumento assim formulado por Locke tinha
uma função: impedir que se deduzisse, a partir da impossibilidade do
conhecimento verdadeiro um dos fundamentos da filosofia empirista inglesa ,
uma justificativa para a supressão de uma ou outra religião
683
. Na Inglaterra da
Revolução Gloriosa, em que as guerras pela hegemonia religiosa misturavam ao
679
“em toda parte (...) grande calma, e grande tranqüilidade”, id., ibid., p.lv.
680
“é a não-tolerância que causa todas as desordens que são erradamente imputadas à tolerância”,
id., ibid., p.lv.
681
Locke, 1973, p.33.
682
id., ibid., p.15.
683
Saada-Gendron, 1999, p.28.
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pertencimento confessional as disputas de poder, o debate acerca da tolerância
mantinha-se premente, como na França, e repetia a ligação entre o conceito e o
seu contexto.
No século XVI não havia sido diferente: a idéia de tolerância foi aí
formulada como um modo de dar solução ao caos provocado pelas guerras de
religião. Em 1598, era preciso restaurar a paz, e o caminho encontrado foi o de
construir uma forma específica de convivência entre as diferenças que se
enfrentavam. A essa forma, tornada lei pelo édito de Nantes, chamamos tolerância
civil. Elaborado a partir da segunda metade do século XVI, esse conceito remetia
à decisão de permitir uma provisória dualidade religiosa no reino que
interromperia a continuação das guerras civis. Era esse o propósito e foi esse o
resultado do édito de Nantes.
Em 1685, o contexto francês era distinto do de 1598. Também hoje, no
início do século XXI, é outro o contexto. E assim, marcado pela experiência
histórica, também é outro o significado que emana do significante tolerância
684
. O
que havíamos podido inferir a partir da análise sobre a tolerância no século XVI
confirma-se quando chegamos ao século seguinte, e deste ao XXI: o conceito
esteve profundamente imbricado com o momento em que foi desenvolvido. As
transformações por que passou, e ainda hoje passa, a idéia de tolerância
resultado de uma tensão na qual ao mesmo tempo em que constitui a experiência
histórica foi por ela afetada – parecem reforçar a perspectiva koselleckiana sobre a
história dos conceitos, segundo a qual un concept n’est pas seulement l’indice
des rapport qu’il saisit, il est aussi l’un de leurs facteurs
685
.
Em livro publicado em 1912, o professor jesuíta Arthur Vermeersch estuda
duas espécies de tolerância, a religiosa e a civil. Ao discorrer sobre o que chama
de tolerância civil, Vermeersch descreve a noção que, referindo-nos ao século
XVI, chamamos de tolerância religiosa, citando o Coloquium Heptaplomeres de
Bodin, e afirmando que os autores que defendiam essa idéia acreditavam não
haver real diferença entre as religiões, pois que se poderia chegar a um núcleo
comum a todas elas. Segundo a divisão de Vermeersch, a distinção entre
684
As relações entre palavra (significante), conceito (significado) e “coisa”, ou “realidade
material”, são analisadas por Reinhart Koselleck no artigo “Histoire des concepts et histoire
sociale” (Koselleck, 1990, pp.99-118).
685
“um conceito não é apenas o indício das relações que ele apreende, ele é também um dos seus
fatores”, Koselleck, 1990, p.110.
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tolerância civil e religiosa é dada pela autoridade que tolera: a civil ou a religiosa.
Assim, ao falar em “tolerância civil”, o autor está se referindo ao que se discute
entre laicos e ao que lhes interessa; a “tolerância religiosa”, por sua vez, é aquela
estudada, discutida ou experimentada dentro da Igreja
686
.
Julie Saada-Gendron recorre a conceitualização semelhante àquela reportada
por Vermeersch, desenvolvendo-a no entanto em sentido distinto. Segundo a
historiadora,
la tolérance civile est la liberté octroyée par l’État aux sujets d’adopter la religion
de leur choix. La tolérance ecclésiastique désigne la latitude que la hiérarchie de
l’Église laisse aux fidèles dans l’appréciation de certains points de la doctrine, qui
ne sont pas jugés essentiels. La tolérance civile est donc définie par la loi et par le
magistrat, tandis que la tolérance ecclésiastique dépend de la juridiction interne à
l’Église (au sens large), et des limites qu’elle établit entre l’orthodoxie et
l’hérésie
687
.
Em outras palavras, as concepções de tolerância civil e de tolerância
eclesiástica são hoje definidas pelo sujeito, pela instância que tem uma atitude
tolerante em relação a outrem. A partir desse novo entendimento do conceito,
podemos insistir sobre a distinção em que implica a diferença entre as tolerâncias
religiosa, ou eclesiástica, e civil. Duas instâncias que toleram significa duas
instâncias separadas, isto é, significa que Estado e Igreja não são o mesmo. Foi no
século XVI que se formulou essa distinção entre Estado e Igreja a partir das suas
respostas distintas a um mesmo assunto, a Reforma protestante (e sua
conseqüência na França, as guerras de religião). Damos o nome de tolerância civil
à experiência feita no século XVI porque ela foi o resultado do deslocamento
produzido pela resposta a uma pergunta feita à Igreja: era permitido, era possível
aceitar a existência de outra religião que não a católica, hegemônica na Europa
havia mais de mil anos? A resposta não foi dada pela Igreja, mas pelo Estado, que
elaborou sua posição com base na sua função própria, a defesa do bem comum:
686
cf. Vermeersch, 1912, pp.3-5.
687
“a tolerância civil é a liberdade outorgada pelo Estado aos súditos de adotar a religião da sua
escolha. A tolerância eclesiástica designa a latitude que a hierarquia da Igreja deixa aos fiéis na
apreciação de certos pontos da doutrina, que não são considerados essenciais. A tolerância civil é
definida portanto pela lei e pelo magistrado, enquanto a tolerância eclesiástica depende da
jurisdição interna à Igreja (no sentido amplo), e dos limites que ela estabelece entre a ortodoxia e a
heresia”, Saada-Gendron, op.cit, p.227.
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251
la tolérance civile supposerait ainsi que soient séparés l’intérêt national, seul
bien auquel l’État doit pourvoir, et la question de la vérité des religions
688
.
Na Europa cristã, durante a Idade Média e até o século XVI, não havia no
entanto espaço na ordem monárquico-religiosa para conceber seriamente a
possibilidade da existência de uma outra Igreja além da Romana. Movimentos que
reuniam a religião às decisões monárquicas, como as Cruzadas na Terra Santa e a
reconquista da Península Ibérica, contribuíam para cimentar a confusão entre a
autoridade religiosa e a secular. As monarquias cristãs européias organizavam-se e
mantinham-se com o apoio da hierarquia e da teologia católica. Os reis eram
sagrados e prometiam defender a religião; o imperador alemão era o chefe do
Sacro Império Romano Germânico (que combinava as tradições cristã e romana
clássica); a França era a filha mais velha ou filha preferida da Igreja. Neste reino
especificamente, a estrutura de governo baseava-se no axioma une foi, une loi, un
roi, que amarrava juntos as ações e os deveres do rei, as decisões da lei e as
necessidades da fé.
A Reforma protestante que partiu de um movimento interno à Igreja e foi
por ela expulso como heresia – provocou a desestruturação da hegemonia da
Santa Sé entre os Estados nascentes na Europa e colocou à prova o antigo axioma.
O processo de construção do Estado moderno europeu consistiu justamente no
desmembramento das relações entre fé, lei e rei.
Segundo George Sabine, Friedrich Meinecke, Reinhart Koselleck, Quentin
Skinner, Arlette Jouanna e outros historiadores das idéias políticas, as guerras de
religião na França, ao terminarem, deixaram à mostra e em ação uma nova
estrutura de poder e de teorização sobre ele, às quais se convencionou chamar
Estado moderno e política moderna. Para Koselleck, durante o processo das
guerras de religião, la monarchie a construit au-dessus des religions un champ
d’action rationnel déterminé par l’Etat et par la politique
689
.
Teria havido portanto, no correr da segunda metade do século XVI, um
movimento de investigação e desenvolvimento de novas idéias e conceitos
relacionados ao funcionamento do governo, suas funções, responsabilidades e
instrumentos; movimento provocado pelo contexto de guerras civis sucessivas. A
688
“a tolerância civil suporia assim que estejam separados o interesse nacional, único bem ao qual
o Estado deve prover, e a questão da verdade das religiões”, id., ibid., pp.227-228.
689
“a monarquia construiu acima das religiões um campo de ação racional determinado pelo
Estado e pela política”, Koselleck, 1979, p.14.
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252
soberania estudada pela primeira vez de maneira extensiva por Jean Bodin nos
Seis Livros da República (1576) –, sobretudo no que se refere ao seu atributo de
conferir àquele que a detém o poder, exclusivo, de dar a lei, tornou-se um conceito
central do Estado moderno. Naquele momento e a posteriori. Entre católicos e
protestantes, diversas correntes opostas que opunham também católicos a
católicos e protestantes entre si defenderam em tratados, panfletos e discursos o
lugar da soberania. As guerras de religião produziram numerosas discussões
públicas cuja veemência dependia muitas vezes dos objetivos das forças em
disputa sobre o papel do rei, sobre os limites do seu poder e sobre a sua relação
com a religião e a Igreja.
Se as guerras de religião francesas foram o resultado da experiência da
Reforma protestante, os seus próprios resultados significaram implicações para as
relações entre o Estado e a Igreja que foram além das questões de dogma e de
corrupção clerical que lhe deram início. Como sua conseqüência, a reformulação,
nos termos de uma filosofia política, do âmbito das competências da autoridade
religiosa e da secular desenvolveu-se na forma da busca por uma solução para o
caos provocado pela continuação das guerras civis. Depois da entrada da Reforma
na França, a existência de duas religiões no reino colocou o governo e a Igreja
frente a um problema fundamental porque foi ao mesmo tempo questionador
dos fundamentos da monarquia e participou da fundamentação na França da
política e do Estado modernos. É possível a existência de duas religiões dentro de
um mesmo reino? Houve duas formas básicas de responder a essa pergunta: sim e
não. Ao prevalecer, não sem dificuldades, a resposta pela tolerância civil, resposta
afirmativa, o vínculo entre fé, lei e rei foi sendo progressivamente substituído por
uma dinâmica em que o rei, com o auxílio da lei que era a sua prerrogativa como
soberano, conduzia, independentemente dos interesses e da posição da Igreja, os
assuntos do Estado.
A oposição entre essas duas respostas assumiu sua forma mais clara depois
das mortes do duque de Alençon-Anjou (último herdeiro Valois do trono), do
duque de Guise e de Henrique III. É então que a possibilidade de um rei não-
católico torna-se realidade, pois a lei sálica determinava que o protestante
Henrique de Navarra seria o sucessor de Henrique III. Os conflitos desencadeados
pela dissensão religiosa, e que não se limitavam à clivagem entre católicos e
protestantes, passaram, a partir de 1585 e especialmente depois da conversão de
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253
Henrique IV, em 1593, a se concentrar em torno a dois partidos: de um lado os
católicos intransigentes, ligueurs, que se recusavam a aceitar Navarra como rei
porque julgavam falsa e portanto inválida a sua conversão
690
; e do outro os
politiques, a que se somavam, em defesa da legitimidade de Henrique IV,
protestantes e católicos, mesmo os que, tendo pertencido à Liga, acolheram no
entanto a conversão do rei como a eliminação do obstáculo que os impedia de
reconhecerem a sua autoridade.
O partido dos politiques distinguiu-se dos demais grupos em conflito por
considerar a situação francesa a partir de uma perspectiva pragmática e algo
secularizada. Os politiques argumentaram que a melhor forma de pôr fim às
guerras civis, e remediar o caos provocado por elas, era regulamentar a
coexistência do catolicismo e do protestantismo no reino, estabelecendo
justamente a separação entre a autoridade do Estado e a autoridade da Igreja, e
dando ao Estado (ou seja, ao rei) a primazia sobre a Igreja (isto é, sobre os
defensores da fé) quanto à lei para o governo dos homens.
Pelo desligamento entre a função do rei e a defesa da religião; pela
afirmação de que havia, para a República, um outro bem acima do da Igreja, os
católicos intransigentes consideraram os politiques como inimigos mais perigosos
do que os protestantes. E fizeram questão de tornar pública a sua opinião, e a sua
oposição. Nos muitos libelos difamatórios, tratados, panfletos e discursos feitos
pela Santa União, a necessidade de extirpar a heresia vinha acompanhada da
intenção de destruir o partido que sustentava que a religião não era problema do
Estado, que não competia a este lutar para defendê-la, e que fazia derivar dessa
perspectiva a idéia de tolerância civil.
O autor anônimo da Description de l’homme politique de ce temps avec sa
foi et Religion (1588) afirma que, se politique havia sido anteriormente um
substantivo honroso, relacionado à boa administração da cidade, durante as
guerras de religião ele passara a designar aqueles que, optando por uma
perspectiva secular, uma “prudência humana”, defendiam a presença das duas
religiões no reino como meio de restaurar a paz, mas queriam, na verdade, destruir
a Igreja:
Ce nom de Politique était un nom d’honneur,
690
Simulada e hipócrita, dirá o panfleto publicado pelo padre Jean Boucher em 1594: Sermons de
la simulée conversion..., op.cit.
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254
C’était le juste nom, d’un juste Gouverneur.
D’un prudent Magistrat, qui par raison civile
Savait bien policer les membres d’une ville,
Et qui sage et accord, par accordants discords,
De Citoyens divers tirait de bons accords.
(...)
Aujourd’hui ce beau nom, souillé de mille vices,
N’est plus qu’un nom d’horreur, qui détruit les polices,
Un nom rempli d’ordure, et qui est méprisé
Par le crime de ceux qui en ont abusé.
Car ceux-là qui l’ont pris, laissant Dieu qui accorde
L’unisson d’un état dessus la grosse corde,
Et négligeant le ton d’une religion
Mère de l’harmonie, et de toute union :
Ont pensé que flattant la haute chanterelle
Obéissant aux grands, épousant la querelle
Des premiers de l’état, que Dieu tient aveuglés,
Accordant à leurs voix, leurs songes déréglés,
Et par le vain discours d’une humaine prudence
Tenant les deux partis en égale balance,
Ils pourront aisément bien loin de notre corps
Chasser tous différends, et bannir tous discords
691
.
E assim, esse politique,
Donnant un conseil détestable et inique,
Fut d’avis d’abolir le parti Catholique,
D’élever le contraire, et les tenir égaux,
Qu’on en aurait la paix, emplâtre de nos maux
692
.
De seu lado, também os politiques recorreram às publicações para
defenderem-se desse tipo de acusação e ao mesmo tempo atacar seus inimigos.
Depois da morte de Henrique III, estes últimos se reúnem na Liga, comandada
pela família de Guise. Contra eles Étienne Pasquier publicou, em 1590, um
Anagramme de Henry de Bourbon, roy de France & de Navarre. Avec trois
sonnets aux Ligueurs. No anagrama, Henry de Bourbon transforma-se em De
691
“Esse nome de Politique era um nome de honra,/ Era o nome justo, de um justo Governador./
De um prudente Magistrado, que por razão civil/ Sabia governar bem os membros de uma cidade,/
E que sábio e cordato, por discórdias acordantes,/ De Cidadãos em divergência tirava bons
acordos./(...)/ Hoje esse belo nome, manchado de mil vícios,/ o é mais do que um nome de
horror, que destrói os governos,/ Um nome repleto de sujeira, e que é desprezado/ Pelo crime
daqueles que abusaram dele./ Pois esses que o tomaram, deixando Deus que concede/ o uníssono
de um estado sob a grossa corda,/ E negligenciando o tom de uma religião/ Mãe da harmonia, e de
toda união:/ pensaram que adulando a alta corda/ Obedecendo aos grandes, desposando a querela/
Dos primeiros do estado, que Deus mantém cegos,/ Concedendo às suas vozes, seus sonhos
desregrados,/ E pelo discurso vão de uma prudência humana/ Mantendo os dois partidos
equilibrados,/ Eles poderão tranqüilamente bem longe do nosso corpo/ Expulsar toda dissensão, e
banir todo desacordo”, Description de l’homme politique de ce temps avec sa foi et Religion. Qui
est un Catalogue de plusieurs hérésies et athéismes, où tombent ceux qui préfèrent l’état humain à
la Religion Catholique, 1588, pp.3-4.
692
“Dando um conselho detestável e iníquo,/ Foi da opinião de abolir o partido Católico,/ De
elevar o contrário, e mantê-los iguais,/ Que se teria paz, emplastro dos nossos males”, ibid., p.5.
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255
Bon Roy Bon Heur. Ou De Bon Heur Bon Roy
693
. Dos três sonetos, um descreve
o bom católico, não segundo a Liga, mas na versão politique:
Savez-vous que j’appelle être bon Catholique ?
Aimer sur tout la Paix, ne manquer de sa Foi
Premièrement à Dieu, secondement au Roi,
Tiercement au secours du à la République.
Mais un vrai factieux, dont l’orgueil tyrannique,
À son ambition veut asservir la Loi :
Voire qui met l’Église en trouble et désarroi,
Est-il bon Catholique, ou bien Diabolique ?
Il est Diabolique, il le faut tel juger :
Car c’est être endiablé, que de vouloir changer
Sa Foi, sa Loi, son Roi, d’âme brute et farouche.
L’homme bon Catholique n’a le coeur mutiné :
Mais le Diable à la Ligue obstiné,
Se montre Catholique seulement de la bouche
694
.
Apesar da oposição da Liga, e, antes dela, do partido católico intransigente,
os éditos de pacificação das guerras de religião revelavam a presença dos
politiques junto à Coroa, pois eles participaram, mesmo que indiretamente, da
formulação dos éditos de Amboise (1563), Longjumeau (1568), Saint-Germain
(1570), Boulogne (1573), Beaulieu (1576), Poitiers (1577) e Fleix (1580), em que
a liberdade de consciência era garantida aos protestantes
695
, e o culto, se não livre,
era permitido segundo as regras específicas de cada édito. Os sete éditos que
haviam encerrado as sete guerras de religião traziam, essencialmente, cláusulas
regulamentando a presença e a atividade protestante no reino. Embora o seu
objetivo, anunciado e repetido nos preâmbulo dos textos legais, fosse pacificar o
reino, cada novo édito resultara na retomada dos conflitos, em muito devido ao
descontentamento que alguns itens provocavam. Apenas o édito de Nantes, em
693
“De Bom Rei Boa Sorte. Ou De Boa Sorte Bom Rei”, Pasquier, 1590, “Anagramme”, p.3.
694
“Sabeis o que eu chamo ser bom Católico?/ Amar sobre tudo a Paz, não faltar à sua Fé/
Primeiramente a Deus, em segundo lugar ao Rei,/ Em terceiro ao socorro devido à República.//
Mas um verdadeiro faccioso, cujo orgulho tirânico,/ Quer setvir à Lei segundo a sua ambição:/
Quiçá quem põe a Igreja em perturbação e confusão,/ É bom Católico, ou bem Diabólico?// É
Diabólico, é preciso assim julgá-lo:/ Pois é estar endiabrado, querer mudar/ Sua Fé, sua Lei, seu
Rei, de alma bruta e feroz.// O homem bom Católico não tem o coração amotinado:/ Mas o Diabo
na Liga obstinado,/ Mostra-se Católico apenas de boca”, id., ibid., p.5.
695
O édito de Amboise, de março de 1563, restringia a liberdade de consciência aos
Gentilshommes qui sont Barons, Chatelains, Hauts-Justiciers, et Seigneurs tenant plein Fief de
Haubert” (Stegmann, op.cit., p.34).
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256
1598, teve sucesso em organizar e obrigar à coexistência de catolicismo e
protestantismo, pondo fim a quase quarenta anos de guerras civis.
A leitura dos éditos das guerras de religião revela que, fundamentalmente,
as principais decisões com referência aos protestantes franceses repetiam-se, e a
maioria das cláusulas do édito de Nantes constava dos de Janeiro de 1562
(permissão do culto protestante no reino, fora das cidades), de Saint-Germain
(designação de cidades guarnecidas pelas forças protestantes, as places-de-sûreté)
e de Beaulieu (instituição das chambres mi-parties, tribunais compostos pelo
mesmo número de juizes católicos e protestantes, especialmente constituídos para
julgar os casos envolvendo protestantes franceses). Nesse sentido, concordamos
com Joseph Lecler quando ele afirma que l’édit de Nantes ne pouvait passer à
l’époque pour une grande nouveauté
696
. O que foi por outro lado inédito foi a
execução dessas decisões: se os éditos anteriores não foram bem sucedidos na
aplicação das suas determinações, o de 1598 tornou fato a coexistência entre
católicos e protestantes na França até 1685. Para Lecler,
la mise en oeuvre de la tolérance civile réclamait un gouvernement fort et bien
décidé. Tous les édits antérieurs avaient échoué par défaut de cette condition
nécessaire
697
.
Não foi assim com édito de Nantes. A diferença entre ele e os éditos
anteriores além do grau de objetividade das cláusulas, que o tornou um
dispositivo regulatório, enquanto os demais se assemelhavam a declarações de
intenções está no aprofundamento das negociações e dos debates entre o rei,
protestantes e católicos (que resultaram em artigos efetivamente aplicáveis), e na
transformação da percepção dominante na França quanto à necessidade de
solucionar o caos das guerras de religião, produzida essencialmente pelos
politiques, que tornava possível a opção pela tolerância civil. A nova percepção
acerca das guerras civis provocadas em larga medida pela dissensão religiosa
aparece por exemplo no discurso do bispo de Le Mans na assembléia do clero
francês reunida em janeiro de 1596. Como prelado católico, o desejo de Claude
d’Angennes de Rambouillet o poderia ser outro senão a unificação da França
em uma mesma e uma mesma Igreja. Mas a forma de produzir essa unificação
696
“O édito de Nantes não podia passar, na época, por uma grande novidade”, Lecler, op.cit.,
p.517.
697
“a aplicação da tolerância civil pedia um governo forte e bem decidido. Todos os éditos
anteriores haviam fracassado por falta dessa condição necessária”, id., ibid., p.517.
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era bastante diferente no seu discurso e nas demandas apresentadas pelo clero
francês nos estados gerais de Blois (de 1576/1577 como de 1588/1589). Segundo
o bispo,
nous ne prétendons ni entendons exciter ou entretenir par cette supplication les
guerres et dissensions civiles. Nous avons du savoir, et ces derniers temps l’ont
montré et appris par expérience, que pendant icelles, la discipline tant nécessaire
en notre état ne peut être maintenue ni établie
698
.
Uma parcela do partido católico pôde, segundo essa perspectiva, e depois da
conversão de Henrique IV, trocar a oposição ao novo rei pela participação nas
negociações para o édito de pacificação, aceitando a afirmação, feita pelos
politiques e pelo rei, de que a instauração de uma temporária dualidade
confessional asseguraria ao reino o tempo necessário à sua pacificação e à
restauração da ordem. Outra parcela do partido católico intransigente, aquela mais
radical e que permanecia na Liga, mantinha a convicção de que a coexistência de
católicos e protestantes não traria a paz, mas sim a destruição do reino e,
sobretudo, a da religião. Eram opiniões opostas, as de ligueurs e politiques,
determinadas por compreensões distintas acerca dos fundamentos da República,
das relações entre a religião e o Estado, do lugar do sagrado na vida civil.
Nos textos produzidos pela Liga, a paz era condicionada a uma concórdia
imediata uma concórdia, na verdade, que não é preciso qualificar, ela é, como a
definição quinhentista de concórdia, o retorno à unidade, a reunião de todos os
franceses em uma só Igreja, a católica. Já nas publicações de politiques, a paz só é
possível pela tolerância, isto é, pela coexistência das diferenças religiosas. Mas, ao
contrário da concórdia desejada pelos ligueurs, essa tolerância, a tolerância
politique, precisa ser hoje adjetivada, porque foi pelos politiques desenvolvida
como um conceito específico: coexistência provisória de católicos e protestantes
para restaurar a paz, até que a discussão religiosa pudesse ser retomada por uma
instância própria para ela, um concílio (ou pela Providência, opção que aparece no
édito de Nantes). Esta forma de tolerância é a tolerância civil, que recebe esse
aposto porque ela determina a coexistência de diferenças religiosas no espaço da
698
“nós o pretendemos nem tencionamos excitar ou manter por essa suplicação as guerras e
dissensões civis. Temos conhecimento, e esses últimos tempos mostraram-no e ensinaram-no pela
experiência que, durante elas, a disciplina tão necessária em nosso estado não pode ser conservada
nem estabelecida”, Recueil des Actes, Titres et Mémoires concernant les Affaires du clergé de
France, t.XIII (Paris, 1771) apud Lecler, op.cit., p.515.
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cives, e, mais do que isso, porque ela o faz segundo a lógica da política, isto é,
com o sentido de proteger o Estado, a cidade, a sociedade civil.
É uma tese que tem oponentes. Parte da historiografia considera, hoje, que
não houve experiência da tolerância no século XVI.
Basicamente, duas perspectivas historiográficas em debate atualmente
sobre o tema da tolerância na França do século XVI: uma que afirma que os éditos
de pacificação das guerras de religião, e sobretudo o de Nantes, não continham a
idéia de tolerância, e que não se pode considerar que tenha havido experiência da
tolerância no século XVI; e outra que se refere à possibilidade de falar em
tolerância naquele momento como viável, especialmente ao se perceber a divisão
experimentada então entre uma tolerância que significava aceitar todas as formas
de religião existentes como caminhos diversos para chegar ao mesmo Deus, e uma
outra que implicava suportar a presença do protestantismo provisoriamente e com
o objetivo específico de dar fim às guerras civis. Historiadores da segunda linha,
que acreditam na experiência da tolerância no século XVI, como Joseph Lecler,
Arlette Jouanna e Quentin Skinner, consideram estas duas categorias como
conceitos distintos: são, respectivamente, tolerância religiosa e tolerância civil.
Talvez o problema historiográfico acerca da idéia de tolerância no século
XVI seja uma questão de anacronismo às avessas: nega-se, com razão, que o
século XVI tenha conhecido de fato isto é, na prática algo como a tolerância
supostamente experimentada no século XX. Como Michel Grandjean explica, la
tolérance au sens nous l’entendons aujourd’hui, ni les huguenots ni les
catholiques romains n’en voulaient
699
, o que é verdade. Conclui-se a partir d
que não houve tolerância no século XVI. No entanto, quando é preciso explicar o
que era aquilo que alguns haviam chamado e outros chamam ainda de tolerância,
o que se descreve é a idéia de tolerância civil: o édito de Nantes, por exemplo,
seria o resultado
d’un long processus social, politique, culturel et religieux, et (...) il énonce des
règles pragmatiques non pas de tolérance mais de maîtrise de l’intolérance
religieuse par le politique
700
.
699
“A tolerância no sentido em que nós a entendemos hoje, nem os huguenotes nem os católicos
romanos queriam-na”, Grandjean, op.cit., p.8.
700
“de um longo processo social, político, cultural e religioso, e (...) ele anuncia regras
pragmáticas não de tolerância, mas de domínio da intolerância religiosa pelo político”, id., ibid.,
p.9
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Não se emprega todavia o conceito, e nega-se sempre que se trate de um
entendimento quinhentista sobre a tolerância.
Um dos problemas para se poder compreender esse emaranhado de
interpretações é o fato de a base para se defender a idéia de tolerância civil ser
muito tênue, pois o conceito parece vir de Joseph Lecler, mas o próprio não o
analisa. Arlette Jouanna, ao usar o termo, remete a Lecler como fonte. A própria
Jouanna, aliás, aconselha cautela ao lidar com o conceito de tolerância civil o
seu temor, no entanto, é de que o erro aconteça no sentido inverso:
C’est pourquoi, si, à la suite de Joseph Lecler, on peut parler de tolérance civile
pour qualifier la politique suivie par Catherine de Médicis et le chancelier Michel
de L’Hospital, il faut se garder d’y voir l’adhésion à un grand principe
philosophique et abstrait, perçu comme positif : ce serait anachronique. Il s’agit
seulement de parer à « la nécessité de nos affaires », comme l’écrit le 22 janvier
1562 la reine mère à l’évêque de Rennes, ambassadeur auprès de l’Empereur
701
.
Parece que o cuidado de parte dos historiadores foi tamanho que eles
pecaram pelo excesso, e não pela falta. Em outras palavras, para evitar imputar ao
século XVI qualquer compreensão que o lhe pertencesse, abdicaram ou
falharam em reconhecer aquelas que faziam parte dele. Assim é que, nos textos de
alguns dos autores que negam a existência de tolerância no século XVI, uma
séria de passagens cujo objetivo é demonstrar a sua posição, quando, no entanto,
elas remetem, todas, à presença da idéia de tolerância civil.
O historiador da Universidade de Fribourg Mario Turchetti, que pretende
aliar aos estudos sobre a noção de tolerância na época moderna a preocupação
com os critérios metodológicos da pesquisa historiográfica, desenvolveu em um
livro e três artigos
702
a defesa do que chama de concórdia civil, em detrimento da
tolerância, no XVI. Na antologia citada acerca do édito de Nantes, Coexister
dans l’intolérance, Turchetti reforça a necessidade de uma metodologia atenta a
701
“Eis por que se, seguindo Joseph Lecler, podemos falar em tolerância civil para qualificar a
política seguida por Catarina de Médici e pelo chanceler Michel de L’Hospital, é preciso abster-se
de ver a adesão a um grande princípio filosófico e abstrato, percebido como positivo: seria
anacrônico. Trata-se somente de enfrentar a necessidade dos nossos negócios”, como descreve,
em 22 de janeiro de 1562, a rainha-mãe ao bispo de Rennes, embaixador junto ao Imperador”,
Jouanna, op.cit., p.102.
702
Concordia o tolleranza? François Baudoin (1520-1573) e i “moyenneurs” (1984), “Concorde
ou tolérance? De 1562 à 1598” (1985), “Henri IV entre la concorde et la tolérance” (1989), e
“L’arrière-plan politique de l’édit de Nantes, avec un aperçu de l’anonyme De la concorde de
l’Estat. Par l’observation des Edicts de Pacification (1599)” (1998).
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fim de evitar as armadilhas da teleologia e do anacronismo
703
. Em outras palavras,
este autor prescreve a mesma atenção para a qual Jouanna já havia alertado:
Pour éviter ces pièges, il est bon de rappeler un principe de méthode historique
qu’on a tendance à négliger. Il faut que nous nous entendions sur la façon
d’utiliser les sources et leur vocabulaire, car les mots indiquent des idées, des
concepts, des pensées qui appartiennent à des hommes d’une époque qui n’est plus
la nôtre. On sait que le premier moment du travail de l’historien est la
compréhension ; il importe de savoir ce que signifient les mots et les idées, qui sont
attachés aux circonstances de l’époque que l’on étudie
704
.
E no entanto o próprio Turchetti incorre no erro de banir inteiramente o
conceito de tolerância do século XVI. Em seu lugar, o autor prefere falar em uma
concórdia civil que tem a finalidade de produzir uma concórdia religiosa, e que
ambas, da forma como o apresentadas, em nada se distinguem da tolerância
civil. Porém, Turchetti considera que são opostos, dado que a concórdia era
entendida, no século XVI, como a redução das diversidades em unidade, enquanto
a tolerância legitimaria a existência das diversidades. A concórdia religiosa tinha
um duplo significado durante as guerras de religião francesas: ou bem ela remetia
à produção de um entendimento, entre a Igreja de Roma e as diversas correntes
derivadas da Reforma, que possibilitaria o fim da dissensão pela criação de uma
Igreja essencialmente católica, mas purificada dos seus excessos (e nisso
descrevia o propósito mantido por Catarina de Médici e Michel de L’Hospital a
o fracasso do colóquio de Poissy), ou bem ela era a redução dessas diversidades
confessionais à doutrina católica, apostólica e romana, pela força, se necessário
(posição seguida pelo partido católico intransigente francês e pela Liga). Segundo
Julie Saada-Gendron, tratava-se de unifier les volontés dans une même religion”,
ou de
703
Neste trecho específico (Turchetti, 1998, p.94), Turchetti refere-se à confusão entre as duas
histórias possíveis do édito de Nantes (a de 1598 e a de 1685) e aos anacronismos contra os quais o
historiador deve se precaver. Como ensinava Lucien Febvre, o historiador precisa proceder em
busca da inteligibilidade.
704
“para evitar essas armadilhas, é bom lembrar um princípio de método historiográfico que temos
tendência a negligenciar. É preciso que nós nos entendamos acerca de como utilizar as fontes e seu
vocabulário, pois as palavras indicam idéias, conceitos, pensamentos que pertencem a homens de
uma época que o é mais a nossa. Sabemos que o primeiro momento do trabalho do historiador é
a compreensão; é importante saber o que significam as palavras e as idéias que estão ligadas às
circunstâncias da época que se está estudando”, Turchetti, 1998, p.94.
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261
produire un accord dogmatique concernant les choses essentielles au salut, sous
forme d’un credo minimum dont le fond est constitué par la religion catholique
purifiée des dogmes des théologiens
705
.
É considerando a concórdia como unificação da diversidade que, para
Turchetti, com o édito de Nantes Henrique IV tinha o propósito de
rétablir la concorde civile et remettre à plus tard la concorde religieuse, quitte à
tolérer provisoirement la présence de deux confessions chrétiennes dans le
royaume
706
.
O problema que identificamos nessa análise não deriva do entendimento
acerca da concórdia no século XVI, com o qual concordamos, mas sim do fato de
que, como a esta altura estará claro, consideramos que restabelecer a concórdia
civil e adiar a concórdia religiosa é o mesmo que afirmar a tolerância civil, de que
falam Joseph Lecler e Arlette Jouanna. Se o próprio Turchetti admite que esta
decisão significava tolerar provisoriamente a presença de duas confissões cristãs
no reino, então, por que não classificar esse propósito como tolerância civil? A
essa pergunta o historiador suíço não responde. Mas, como se verá, deduzimos
que seja porque, ao considerarmos que o édito de Nantes impõe a tolerância,
estamos lhe atribuindo, e a Henrique IV, como principal objetivo, a produção de
uma concórdia no Estado, e, portanto, estamos construindo um entendimento que
coloca o édito, Henrique IV e os politiques como portadores de uma novidade. Se,
por outro lado, chamamos o édito de Nantes de lei de concórdia, segundo a lógica
de Turchetti, consideramos que a concórdia civil era apenas uma etapa para a
concórdia religiosa, e que, esta, a concórdia na Igreja, a unificação católica, era o
propósito que levara à formulação do édito, era o seu principal objetivo. De
acordo com essa análise, não teria havido, no édito, nem na discussão que levou a
ele, inovação alguma
707
. Ao longo dos cinco capítulos desta tese, o que
procuramos mostrar foi justamente a novidade produzida pela ação de Henrique
IV e dos politiques, novidade que se instrumentalizou no édito de Nantes, que, se
não trazia cláusulas inéditas, tinha um objetivo original.
705
“unificar as vontades em uma mesma religião”, “produzir um acordo dogmático concernindo às
coisas essenciais à salvação, sob a forma de um credo nimo cujo fundo é constituído pela
religião católica purificada dos dogmas dos teólogos”, Saada-Gendron, op.cit., p.206.
706
“restabelecer a concórdia civil e remeter para mais tarde a concórdia religiosa, disposto a tolerar
provisoriamente a presença de duas confissões cristãs no reino”, Turchetti, 1998, p.93.
707
Interpretação apresentada por Turchetti, por exemplo, no artigo “L’arrière-plan politique de
l’édit de Nantes, avec un aperçu de l’anonyme De la concorde de l’Estat. Par l’observation des
Edicts de Pacification (1599)” (id., ibid., p.114).
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262
Como o édito de Nantes, os tratados de pacificação que se seguiram a cada
guerra civil traziam, segundo Olivier Christin, uma nova regra de solução para os
conflitos, que passava pela adoção das questões civis como prioridades da ação do
Estado. Acerca dos éditos, a que chama de paix de religion, este autor conclui:
Toutes les pacifications religieuses comportent donc un ou des articles qui
précisent d’emblée leur ambition particulière : éviter la discussion dogmatique
pour s’en tenir à la conclusion d’un accord exclusivement politique, qui revêt en
partie la forme d’un traité solennel, par lequel les signataires renoncent aux
violences, aux persécutions et aux manoeuvres d’intimidation. Ces articles
interdisent à chaque confession d’intervenir dans les affaires de l’autre et énoncent
une manière de « chacun chez soi » qui permet d’instaurer un nouvel ordre des
priorités, de subordonner le salut de chacun et la conservation de chaque Église au
rétablissement de la sécurité et du calme et à la sauvegarde de la collectivité
708
.
Não está dito literalmente nos tratados, no entanto, que é preciso criar essa
nova ordem: este deslocamento está dado pelo discurso presente nos textos na
forma, por exemplo, da remissão da unificação religiosa do reino a um momento
futuro, quando as diferenças e divisões que envolviam o Estado, e geravam guerra
civil, estariam solucionadas. A perspectiva de um concílio geral, como recurso de
adiamento do problema da religião, foi recorrente tanto nos éditos quanto nos
escritos relacionados a esses assuntos na segunda metade do século XVI. Mario
Turchetti considera, por outro lado, que o fato de os tratados anunciarem a
importância e a convocação futura de um concílio significa que o seu objetivo
era a implantação da concórdia no reino. Segundo ele, Au moment de
l’avènement d’Henri IV, (...) la question de la concorde religieuse s’articule dans
ses deux éléments : conversion du roi et convocation d’un concile
709
.
Ao escrever, em 4 de agosto de 1589 (dois dias após a morte de Henrique
III) a sua primeira declaração oficial como rei, Henrique IV repetiu o recurso ao
concílio, garantindo antes que manteria a religião católica no reino:
Nous Henri, par la grâce de Dieu, roi de France et de Navarre, promettons et
jurons en foi et parole de roi, par ces présentes, signées de notre main, à tous nos
708
“Todas as pacificações religiosas comportam portanto um ou mais artigos que especificam, de
saída, sua ambição particular: evitar a discussão dogmática para se ater à conclusão de um acordo
exclusivamente político, que toma em parte a forma de um tratado solene, pelo qual os signatários
renunciam às violências, às perseguições e às manobras de intimidação. Esses artigos proíbem a
cada confissão intervir nos assuntos da outra, e anunciam uma forma de “cada um na sua” que
permite instaurar uma nova ordem de prioridades, subordinar a salvação de cada um e a
conservação de cada Igreja ao restabelecimento da segurança e da calma, e à salvaguarda da
coletividade”, Christin, op.cit., p.35.
709
“no momento da coroação de Henrique IV, tal como o descrevemos, a questão da concórdia
religiosa articula-se nestes dois elementos: conversão do rei e convocação de um concílio”,
Turchetti, 1989, p.286.
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bons et fidèles sujets, de maintenir et conserver en notre royaume, la religion
catholique, apostolique et romaine en son entier (...) et que suivant la déclaration
patente par nous faite avant notre avènement à cette couronne, nous sommes tous
prêts et ne désirons rien davantage que d’être instruits par un bon légitime et libre
concile général et national pour en suivre et observer ce qui y sera conclut et
arrêté : qu’à ces fins nous ferons convoquer et assembler dans six mois ou plus tôt
s’il est possible
710
.
Esta declaração é, para Turchetti, paradigmática do projeto de Henrique IV
quanto à religião e ao mesmo tempo quanto à condução política do reino
711
. A
presença, nela, do concílio deve-se, de acordo com esse autor, ao continuado
desejo do novo rei de restabelecer a unidade religiosa na França.
Nous pouvons même constater qu’Henri IV n’a tenu dans le domaine de la religion
qu’une seule ligne politique, dès avant son avènement jusqu’à la fin de son règne.
Cette ligne ne relève pas de la tolérance, mais de la « concorde » religieuse, tout
en distinguant la concorde politique, civile et institutionnelle de la concorde
religieuse, car j’utilise cette dernière notion dans son sens strict de réunion dans
une même confession et profession de foi
712
.
Atribuindo a Henrique IV como propósito de governo a concórdia religiosa,
Turchetti constrói uma interpretação acerca do contexto das guerras de religião
que resulta na confirmação da relação estabelecida pela tradição medieval que
considerava o rei da França como filho dileto e protetor inquestionável da Igreja
católica. A opção preferencial pelo concílio seria a solução que apontava neste
sentido: manter a estrutura, os fundamentos, a dinâmica de poderes tal como se
davam antes de a Reforma adentrar o reino. Instaurar a concórdia, manter a
710
“Nós Henrique, pela graça de Deus, rei de França e da Navarra, prometemos e juramos em fé e
palavra de rei, pelas presentes, assinadas de nossa o, a todos os nossos bons e fiéis súditos,
manter e conservar no nosso reino a religião católica, apostólica e romana na sua inteireza (...) e
que, seguindo a declaração patente por nós feita antes da nossa assunção a esta coroa, estamos
prontos e não desejamos nada além de sermos instruídos por um bom, legítimo e livre concílio
geral e nacional para seguirmos e respeitarmos o que será concluído e determinado: que para
esse fim faremos convocar e reunir, em seis meses ou mais cedo se for possível”, Henri IV, 1829,
p.3.
711
Para Turchetti, o recurso ao concílio a que essa passagem faz menção tinha o objetivo de
expressar o desejo da reunificação religiosa do reino. Nós, por outro lado, consideramos, como
procuramos explicitar no início do capítulo anterior (p.198), que neste trecho da Déclaration de
Henrique IV a alusão ao concílio, além de se referir a um retorno à unidade católica (sob a
responsabilidade de outra instância que não a Coroa), tinha sobretudo o propósito de anunciar a
instrução do rei na religião católica, o que possibilitaria uma futura conversão. Esta distinção
pontual entre a interpretação de Turchetti e a nossa não impede, no entanto, que concordemos
(embora tecendo conclusões distintas) com aquele historiador quanto à importância do recurso ao
concílio durante as guerras de religião francesas.
712
“Podemos mesmo contatar que Henrique IV teve, no domínio da religião, apenas uma linha
política, desde antes da sua coroação até o fim do seu reinado. Essa linha não deriva da tolerância,
mas da “concórdia” religiosa, ao mesmo tempo distinguindo a concórdia política, civil e
institucional da concórdia religiosa, pois eu utilizo essa última noção no seu sentido estrito de
reunião em uma mesma confissão e profissão de fé”, Turchetti, 1989, p.280.
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264
religião, reiterar o axioma emblemático, une foi, une loi, un roi. No entanto, nove
anos mais tarde, em 1598, o recurso ao concílio não estará no édito de Nantes
713
,
cujo resultado primeiro é a legalização da presença e do culto (restrito) protestante
na França. Pode parecer um obstáculo à teoria de Turchetti. Para superá-lo, o
autor procura reforçar a sua análise abrindo espaço para a distinção entre o
propósito imediato e o real objetivo do édito. Henrique IV pretenderia isto é,
seria este o fim ao qual miraria a sua ação reunir o reino em uma mesma fé,
católica. O meio para tal objetivo, entretanto, passaria pela temporária aceitação
da dualidade religiosa, pois a guerra civil impedia a instauração imediata da
concórdia. Leitura estruturalmente diferente da que preferimos, e segundo a qual
Henrique IV, e seus companheiros politiques, desenvolveram e adotaram a
tolerância civil como solução para o caos gerado pelas guerras de religião por
compreenderem que o objetivo do Estado era a manutenção do bem comum e da
paz. Se ambos estão ausentes, urge restaurá-los. Se durante 36 anos as sucessivas
tentativas foram mal-sucedidas, então será necessário buscar outro caminho de
solução. A soma da convicção de que o rei deve velar pelo bem público, e não
pelo bem da Igreja, e da compreensão de que o bem da Igreja não é o bem público
leva à conclusão de que o papel do rei, para dar fim ao caos, é remeter o problema
religioso à competência de outra instituição, essencialmente constituída para tratar
dele. Esta é a função do édito de Nantes: deixar o rei livre para cumprir com o que
é de fato a sua obrigação primeira, transferindo para o futuro ou o concílio as
questões essenciais da dissensão religiosa.
Ao nomear uma instância mais competente nos assuntos da para tratar da
dissensão religiosa na França, Henrique IV anuncia que o desejável inclusive
porque não abandonava inteiramente a tradição era devolver a unidade religiosa
ao reino. No entanto, o contexto das disputas e conflitos, sendo determinante,
impedia tal unidade. Era preciso então servir antes às necessidades do tempo, do
Estado, e encerrar as guerras civis. Apenas mais tarde, a questão civil solucionada,
o problema religioso poderia ser retomado e, nesse momento propício, não
deveria ser o rei a conduzir os debates, e sim um concílio propriamente
competente nesses assuntos. É nesse sentido que, ao contrário de Turchetti,
713
Nem todos os tratados de pacificação das guerras de religião recorreram ao concílio como
órgão de decisão acerca da questão religiosa. De fato, dos oito éditos determinando as condições
do fim das oito guerras de religião, em apenas três aparece o recurso ao concílio: Amboise (1563),
Beaulieu (1576) e Poitiers (1577).
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26
5
acreditamos que a demanda pelo concílio não mantém a tradição – segundo a qual
o rei é responsável pela garantia da religião –, mas se distingue dela, na medida
em que a autoridade real não deveria intervir nas deliberações religiosas,
delegadas a une congregation legitime de fideles croyans
714
, conforme um
panfleto anônimo citado por Turchetti.
Poder-se-ia dizer que é mero argumento retórico afirmar que o rei não era
mais comprometido em primeiro lugar com a defesa da Igreja (de qualquer igreja),
se era ele quem determinava a convocação do concílio. Turchetti, por exemplo,
considera que, ao explicitar dessa forma a intenção da reunião confessional do
reino, Henrique IV reiterava a sua obrigação para com a Igreja:
L’idée d’un concile « général ou national » est présente dans la plupart des édits
de pacifications dès 1562. Elle atteste la volonté constante des rois, des parlements
et des institutions nationales de garder l’unité religieuse comme support nécessaire
et traditionnel de l’unité politique
715
.
Trata-se no entanto do seguinte: ao pregar o fim da guerra da forma como o
faz, Henrique IV toma para si uma série de funções e deixa outras, que haviam
feito parte do universo monárquico francês medieval, de lado. As que recolhe para
si dizem respeito diretamente às questões civis, à política propriamente dita, ou
seja, às relações entre os franceses em comunidade, à economia, à produção
agrícola e industrial, à circulação e ao comércio, e assim por diante. O que deixa
de lado (sob os auspícios do famoso concílio, ou diretamente a cargo de Deus) são
questões ligadas aos dogmas da religião, que então não fazem mais parte da
obrigação de manter a paz e o bem comum. A distinção entre a defesa do reino e a
da religião; entre a função tradicionalmente atribuída ao rei, e que se baseava no
axioma une foi, une loi, un roi, e aquela derivada da nova interpretação acerca do
poder soberano, explicam a relação de Henrique IV com a Espanha. A declaração
de guerra, em 1595, faz da França inimiga do Rei Católico, aliado maior do papa
entre as monarquias européias. Para Henrique IV, a necessidade do reino levava
no entanto a essa decisão: não era possível pacificar a França se os interesses
714
“uma congregação legítima de crentes fiéis”, Traicté du Concile..., 1590 apud Turchetti, 1989,
p.298, nota 11
715
“A idéia de um concílio “geral ou nacional” está presente na maior parte dos éditos de
pacificação a partir de 1562. Ela atesta a vontade constante dos reis, dos parlamentos e das
instituições nacional de guardar a unidade religiosa como apoio necessário e tradicional da unidade
política”, id., ibid., p.283. A idéia de um concílio não fazia parte da maioria dos éditos, ao
contrário do que afirma Turchetti, mas, como dissemos acima, apenas de três (Amboise, Beaulieu
e Poitiers) em oito.
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266
espanhóis continuassem interferindo nas guerras civis e alimentando a oposição
de membros do partido católico intransigente contra a Coroa. O ataque à Sua
Majestade Católica Felipe II, o que equivalia no século XVI a atacar a Igreja, foi
uma das formas sob as quais se mostrou a nova concepção do poder soberano que
Henrique IV e seus conselheiros desenvolviam, que considerava em primeiro
lugar a manutenção e a prosperidade do reino, e não as da religião.
No édito de 1598 as questões derivadas da Reforma são reportadas a um
futuro em que poderão ser abordadas com segurança. No preâmbulo, o rei admite
que a França não vivia ainda o tempo da unificação religiosa, mas em seguida
indica que esse não era um problema grave, desde que as repetidas guerras civis,
cujo principal resultado era a ruína do reino, fossem extintas. Ao terminar a
exposição dos motivos de descontentamento que levaram católicos e protestantes
a se enfrentarem, o rei declara seu desejo de trabalhar, em tempos de paz, para que
Deus
puisse être adoet prié par tous nos sujets, et s’il ne lui a plu permettre que ce
soit pour encore en une même forme et religion, que ce soit au moins d’une même
intention et avec telle règle qu’il n’y ait point pour cela de trouble et de tumulte
entre eux
716
.
O propósito final do édito de Nantes (se não apenas por uma questão de
cronologia) era a implantação da concórdia religiosa, mas ao assumir a
necessidade da coexistência de protestantes e católicos, o seu instrumento e o seu
objetivo eram a pacificação dos franceses. Mesmo sem o recurso declarado ao
concílio, o édito portanto uma dupla resposta às guerras de religião, e permite
ver nelas a tolerância civil. Essa resposta era uma novidade, e caracterizou o
Estado moderno e a política moderna. Se para Turchetti os tratados de pacificação
demonstram a permanência do axioma fé, lei, rei, isto é, se mantêm a relação de
dependência entre Estado e Igreja, acreditamos que eles sejam sobretudo
importantes por expressarem o progressivo afastamento entre fé e rei, operado por
este último e indicativo do que estava passando a ser visto como a função
716
“possa ser adorado e rogado por todos os nossos súditos, e se ele o quis permitir que fosse
ainda em uma mesma forma e religião, que seja ao menos com uma mesma intenção, e com tal
regra, que o haja por isso nenhuma perturbação ou tumulto entre eles”, Garrisson, 1997, p.27.
Ao contrário do édito de Amboise, breve e inteiramente voltado para questões práticas, sem
recurso a uma retórica de submissão a Deus, o édito de Nantes, sobretudo no seu preâmbulo, faz
referências constantes à vontade, à graça e ao serviço de Deus.
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fundamental do monarca: restaurar a paz e velar pelo bem comum, e não preservar
a religião. De acordo com Christin,
c’est l’État qui se donne alors comme solution unique à la division religieuse ;
abandonnant au passage, au moins à titre provisoire, les rêves universalistes et les
projets de réunion de la Chrétienté. L’État seul propose et impose la sortie des
guerres de religion
717
.
Apesar de considerar que as paix de religion são parte do desenvolvimento
do Estado moderno, Christin não acredita que esteja presente nelas a idéia de
tolerância. Estudando o édito de Amboise, e os textos legislativos franceses entre
1563 e 1567, a sua conclusão é de que, neles,
la paix devait davantage reposer sur un ordre politique et juridique collectif et sur
des dispositifs institutionnels concrets que sur un principe abstrait de liberté
religieuse concédée aux individus
718
.
Essa sua condição eliminaria a possibilidade da presença da idéia de
tolerância nos éditos de pacificação. Para Christin: “L’histoire des paix de religion
ne se confond donc pas avec celle autrement plus florissante de la
tolérance
719
. Segundo a sua perspectiva, o conceito de tolerância significaria um
comprometimento com a liberdade de consciência, sendo este estabelecido por
causa do direito individual e abstrato do cidadão de dispor do seu próprio
espírito, não por causa, e por meio, da ordem político-jurídica concreta. Este
conceito parece-nos aproximar-se mais propriamente do entendimento acerca da
tolerância que surgiu, timidamente, no século XVI e se desenvolveu no século
XVII, a tolerância religiosa. Christin considera que a defesa da coexistência de
católicos e protestantes nos éditos de Janeiro de 1562, de Amboise e de Nantes,
por exemplo, não era uma decisão pela tolerância, mas a tentativa de remediar
uma situação nociva através da ação política, de interesse restrito ao bem comum,
sem se estender a questões da alma
720
. A tolerância, por outro lado, estaria
717
“é o Estado que se então como única solução para a divisão religiosa; abandonado no
caminho, ao menos a título provisório, os sonhos universalistas e os projetos de reunicão da
Cristandade. O Estado sozinho propõe e impõe a saída das guerras de religião”, Christin, op.cit.,
p.34.
718
“a paz devia antes se apoiar sobre uma ordem política e jurídica coletiva e sobre dispositivos
institucionais concretos, e não sobre um prinpio abstrato de liberdade religiosa concedido aos
indivíduos”, id., ibid., pp.38-39.
719
“A história da paz de religião não se confunde portanto com aquela mais florescente da
tolerância”, id., ibid., p.39.
720
Para Christin, como dissemos na introdução desta tese, a legislação real relaciona a paz “à idéia
de “bem comum”, de “benefício” partilhado, de união fundada para e pelo Estado como anteparo
das paixões religiosas e das dissensões doutrinais descritas sempre em termos de particularismos,
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268
relacionada aos problemas da alma, e da aceitação da mera possibilidade de haver
diferença no que, ainda no século XVI, era mais propriamente ligado a ela, a
religião.
Aqui é lugar para a atenção aos conceitos e ao seu contexto: Christin parece
estar reduzindo a idéia de tolerância à de tolerância religiosa, atribuindo-lhe
características exclusivamente filosófico-religiosas. Acreditamos que a tolerância
civil, que existiu ao lado da religiosa, tenha representado a aceitação da existência
de uma segunda religião, mantida na intimidade dos seus praticantes, em prol da
restauração da ordem e da paz pública. Tratava-se de um dispositivo institucional
concreto com o efeito (pelo menos em teoria) de proteger o bem comum,
restaurando a paz. Nesse sentido, foi precisamente a tolerância civil tolerância
não abstrata, que não se confundia com a tolerância religiosa que fabricou a paz
de religião. Discordando de Mario Turchetti e Olivier Christin, concordamos com
Arlette Jouanna, Joseph Lecler e Jaqueline Boucher, que afirma que no século
XVI a tolerância “ne fut pas (...) un principe philosophique et abstrait
721
.
Uma das formas de pesquisar como esta concepção de tolerância se
desenvolveu é através da leitura dos vários éditos assinados no período das
guerras de religião, como o édito de Janeiro de 1562, alguns meses antes do início
da primeira guerra civil, e o édito de Nantes, que, em 1598, pôs fim à oitava e
última guerra de religião do século XVI na França. Outro meio é pela análise das
publicações da época, em que a idéia de tolerância civil foi sendo
progressivamente desenvolvida por politiques e ao mesmo tempo combatida por
ligueurs.
Ao estudar o libelo De la concorde de l’Estat, publicado em 1599 (a que já
nos referimos na introdução desta tese), Turchetti examina, através das afirmações
do autor anônimo, as características de duas concórdias distintas, a religiosa e a
civil, “concorde en l’Eglise” e “concorde en l’estat
722
.
Distinguons provisoirement, dit-il, les deux concordes, afin de permettre le
rétablissement de l’État ; ne confondons pas la réunification civile et nationale
avec la réunification confessionnelle. Celle-là est prioritaire, car elle est la
condition de la paix ; soyons unis sous les lois et sous l’obéissance du souverain,
malgré la diversité confessionnelle. Mais la concorde civile dont parle notre auteur
de singularidades, de interesses privados” (id., ibid., p.39). Nesse sentido, éditos de pacificação e
tolerância não se confundiriam.
721
“não foi (...) um princípio filosófico e abstrato”, Jouanna et al., op.cit., p.1039.
722
“concórdia na Igreja”, “concórdia no estado”, De la concorde de l’Estat, p.18 apud Turchetti,
1998, pp.110-111.
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269
c’est la question centrale –, n’exclut pas qu’on atteigne un jour la concorde
religieuse : au contraire, cette concorde civile apparaît comme la condition
préalable de la « concorde dans l’Église ». Finalement, tolérons la diversité des
deux religions pour le bien de l’État, « recherchons la paix et la concorde [civile]
pour rétablir la concorde en la Religion » (p.78), c’est-à-dire l’unité
confessionnelle : parce que « sans la concorde de l’Estat, nous ne pouvons
reconquerir la concorde en la Religion » (p.83). Voilà le véritable but immédiat
que notre auteur partage avec les promoteurs de l’édit de Nantes : mais voilà aussi
son but à terme, car la concorde religieuse est remise à une date ultérieure
723
.
A descrição que Turchetti faz do conjunto concórdia civil-concórdia
religiosa, a partir da sua fonte, é a mesma nossa (baseada na leitura de Lecler e
Jouanna) para a tolerância civil. A concórdia civil significa – aplicando-se a
apreciação feita por Turchetti acerca da sua compreensão no século XVI que,
fora do domínio da religião, isto é, em sociedade, deve haver unidade: todos são
franceses, e súditos de um mesmo monarca. De maneira correlata se passa com a
concórdia religiosa: no âmbito da religião, não deve haver mais do que uma
confissão. Para Turchetti, uma, somada, no futuro, à outra dão o programa de
Henrique IV. A este programa, nós chamamos de tolerância civil, pois essa é
precisamente a combinação das duas concórdias expostas pelo autor do De la
concorde de l’Estat e analisadas por Turchetti, ao estabelecer a reunião dos
franceses com base no seu pertencimento civil e a partir da legitimação da
diversidade religiosa, fazendo-o no entanto com o objetivo futuro de uma reunião
também no plano da religião.
Um caminho para tentar compreender por que Turchetti não faz a relação
entre o conjunto concórdia civil-concórdia religiosa e a tolerância civil é por meio
do seu entendimento acerca da tolerância no século XVI. É certo que nem todos
tinham a mesma opinião do autor anônimo do De la concorde de l’Estat, e
Turchetti analisa outro texto anônimo, um pouco anterior: Considération sur la
révocation de l’Édict de la Ligue, de 1591. Segundo Turchetti, esta publicação
723
“Distingamos provisoriamente, diz ele, as duas concórdias, a fim de permitir o restabelecimento
do Estado; não confundamos a reunificação civil e nacional com a reunificação confessional.
Aquela é prioritária, pois ela é a condição da paz; estejamos unidos sob as leis e sob a obediência
ao soberano, apesar da diversidade confessional. Mas a concórdia civil de que fala nosso autor
está aí a questão central não impede que atinjamos um dia a concórdia religiosa: pelo contrário,
essa concórdia civil aparece como a condição prévia da “concórdia na Igreja”. Finalmente,
toleremos a diversidade das duas religiões pelo bem do Estado, “procuremos a paz e a concórdia
[civil] para restabelecer a concórdia na Religo” (p.78), isto é, a unidade confessional: pois “sem
a concórdia do Estado, não poderemos reconquistar a concórdia na Religo” (p.83). Eis o
verdadeiro objetivo imediato que nosso autor compartilha com os promotores do édito de Nantes:
mas eis também seu objetivo final, pois a concórdia religiosa é transferida para uma data
futura”, Turchetti, 1998, p.113, grifos no texto.
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270
pregava a tolérance finitive”, posto que la reünion en une seule religiona
donné l’argument et le pretexte à tant de misères
724
. Segundo Turchetti, para o
autor da Considération,
il faut en finir avec l’imposition de la concorde religieuse, car « réunir » équivaut
à « ruiner ». Il y avait donc des hommes qui voyaient la tolérance définitive comme
le seul remède pour surmonter la crise
725
.
Em oposição à tolerância civil, provisória, haveria essa tolerância definitiva,
que determinaria a convivência de diversas confissões religiosas em caráter
permanente. Essa perspectiva assemelha-se (se não é a mesma) à tolerância
religiosa, que teve, embora poucos, defensores no século XVI. Tratava-se de
pensadores que acreditavam que não deveria haver conflito entre as religiões
porque todas elas derivavam e mantinham um mesmo núcleo comum a sua
posição era mais filosófica do que propriamente interessada no debate dessas
questões sob uma ordem política. Como ficará claro mais adiante, este pequeno
grupo era essencialmente diverso daquele formado pelos politiques, cuja maior
preocupação era o desenvolvimento de uma solução para o caos que minava a
França (solução que encontraram, ao lado de Henrique IV, na tolerância civil).
Esta apreciação, que relaciona o édito de Nantes à ação dos politiques, opõe-se à
de Turchetti, para quem os defensores da chamada tolerância definitiva
n’appartenaient pas forcément au parti réformé, comme on serait tenté de le
croire ; ce sont en majorité des politiques, selon le dessein qu’on attribuait alors à
ce soi-disant parti. Nous saisissons une des différences, peut-être la plus
importante, qui sépare les politiques des promoteurs de l’édit de Nantes
726
.
Essa forma de tolerância definitiva, religiosa insistimos, não estava de
acordo com os ideais politiques, e diferenciava-se da tolerância civil sobretudo
quanto à sua perenidade. A tolerância religiosa, como o próprio Turchetti ensina,
era definitiva
727
, enquanto a civil prescrevia a coexistência de duas religiões por
724
“tolerância definitiva”, “a reunião em uma religião”, “deu o argumento e pretexto a tantas
misérias”, Considération sur la révocation de l’Édict de la Ligue, p.12 apud id., ibid., p.114.
725
“é preciso acabar com a imposição da concórdia religiosa, pois “reunir” equivale a “arruinar”.
Havia portanto homens que viam a tolerância definitiva como o único remédio para superar a
crise”, id., ibid., p.114.
726
“não pertenciam obrigatoriamente ao partido reformado, como seríamos tentados a acreditar;
são na maioria politiques, segundo o desenho que se atribuía então a este suposto partido.
Percebemos aí uma das diferenças, talvez a mais importante, que separam os politiques dos
promotores do édito de Nantes”, id., ibid., p.114.
727
A tolerância religiosa desenvolve-se a partir do século XVI como um princípio filosófico que
discute o cerne da questão religiosa e a relação dos homens com a religião. Os partidários da
tolerância civil percebiam-na tolerância civil) como um instrumento político para solucionar o
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um tempo limitado, isto é, de maneira provisória. Turchetti não considera a
existência dessas duas correntes de tolerância distintas, uma filosófico-religiosa e
outra político-civil (neste caso, os termos de cada um dos binômios são na
verdade sinônimos). Sem levar em conta essa diferença, o autor apresenta como
tolerância definitiva todas as possíveis e diversas interpretações do conceito de
tolerância no século XVI. Mas cabe perguntar: se era preciso caracterizar uma
tolerância como definitiva, então haveria outra, provisória
728
? Como princípio
filosófico, como a afirmação de uma unidade inerente a todas as religiões, a
tolerância definitiva descrita por Turchetti assemelha-se como afirmamos em
relação a Christin à idéia de tolerância religiosa do século XVII, que chegou ao
século XXI com os mesmos pressupostos básicos. Conceito de tolerância que, no
seiscentos, admitia todos os tipos de crença pois o que determinava a verdade da
religião de um homem era a verdade da sua fé. Segundo Pierre Bayle, a tolerância
deveria estender-se a todos os homens, de todas as confissões, pois a obrigação
caos, e descreveram-na como a aceitação provisória de uma segunda religião no reino até que
fosse possível reunificar os franceses quanto à sua religião, estabelecendo a prioridade do
problema político sobre o confessional. É possível que também os defensores da tolerância
religiosa pensassem nela como uma solução para a guerra civil, mas ela era essencialmente um
princípio de vida, e não um instrumento. Nesse sentido, para estes, ela era definitiva, perene,
eterna.
728
uma passagem em Turchetti na qual aparece uma referência à tolerância civil, mas ela
permanece pouco clara: “... l’historien qui demeurait surtout attentif au développement de la
tolérance civile et de la coexistence religieuse, aura tendance à souligner que notre auteur a
exprimé dans ses pages des idées nouvelles, annonçant la priorité de la concorde civile sur la
concorde religieuse, et l’affermissement d’une tolérance définitive (Je fais allusion au maître
ouvrage de Joseph LECLER (Histoire de la tolérance au siècle de la Réforme, Paris, 1955, t.2,
p.128-130), qui semble néanmoins négliger la problématique de la concorde. Par conséquent, en
étudiant ce même texte uniquement dans la perspective de la tolérance, l’auteur en donne une
interprétation trop unilatérale, qui ouvre sur un malentendu.). Or, il n’en est pas ainsi, car notre
auteur n’envisage la tolérance qu’à titre provisoire, la recommandant seulement dans la
conjoncture du moment, comme grand nombre de ses contemporains et, en tout cas, comme les
inspirateurs et les réalisateurs de l’édit de Nantes” (“... o historiador que permanecer atento
sobretudo ao desenvolvimento da tolerância civil e da coexistência religiosa terá tendência a
sublinhar que nosso autor exprimiu nas suas páginas idéias novas, anunciando a prioridade da
concórdia civil sobre a concórdia religiosa, e o fortalecimento de uma tolerância definitiva (Eu
faço alusão à obra mestra de Joseph LECLER (Histoire de la tolérance au siècle de la Réforme,
Paris, 1955, t.2, p.128-130), que parece entretanto negligenciar a problemática da concórdia.
Conseqüentemente, estudando esse mesmo texto unicamente sob a perspectiva da tolerância, o
autor dele uma interpretação por demais unilateral, que se inicia por um mal-entendido.). Ora,
não é assim, pois nosso autor considera a tolerância apenas a título provisório, recomendando-a
apenas na conjuntura do momento, como grande número de seus contemporâneos e, em todo caso,
como os inspiradores e realizadores do édito de Nantes”, id., ibid., p.114). Resta repetir: a
tolerância civil é provisória, e significa, para usar os termos de Turchetti, o recurso à concórdia
civil como forma de restaurar a paz e de tornar possível, posteriormente, a concórdia religiosa. A
tolerância definitiva” a que Turchetti se refere não se assemelha à civil, ela é a aceitação
permanente, perpétua, da diversidade religiosa, idéia que, como dissemos, também teve defensores
no século XVI, embora bastante menos numerosos.
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272
destes era de servir Dieu selon leur conscience
729
, e, se esse dever fosse
cumprido, então a tolerância deveria se aplicar naturalmente a eles. Sentido
semelhante tem a tolerância religiosa no século XXI, que, segundo Guy Saupin, é
une vertu à cultiver
730
. Essa virtude, esse princípio moral, filosófico, é como
Turchetti concebe um conceito de tolerância que é definitiva porque, todas as
religiões sendo válidas, todas expressões distintas da experiência do divino, não
necessidade de distinção (nem muito menos lugar para a oposição) entre elas.
Compreensão que descreve uma idéia de tolerância presente no século XXI,
possivelmente presente, mesmo que em gestação, no XVI, e que será hegemônica
a partir do século seguinte, mas que o esgota o entendimento acerca da
tolerância no XVI, e que, por isso, pode ser considerada, nele, anacrônica.
Em artigo publicado na Revue Historique, Turchetti trabalha com o
comentário de Pierre de Beloy sobre o édito de Nantes, escrito em 1598, antes
mesmo de os parlamentos franceses aceitarem registrar o édito, e publicado dois
anos mais tarde, em 1600. Beloy era um magistrado e autor católico ligado a
Henrique de Navarra. Opondo-se à Santa União desde o seu início, durante os
anos de maior atividade da Liga em Paris ele foi preso por causa das publicações
em apoio a Henrique IV. Mais de uma vez os textos ligueurs referem-se a Beloy
como sendo um politique, como por exemplo, a Description de l’homme politique
de ce temps avec sa foi et Religion, que, enumerando os males do misérable
temps”, anuncia mais este, que exprime o novo significado da palavra politique:
il faut que Belloy, Huguenot découvert, Publiant ses écrits de ce nom soit
couvert
731
.
Ao analisar a Conférence des édicts de pacification des troubles esmeus au
royaume de France, pour le faict de la religion, de Beloy, Turchetti procura
respaldo para a sua teoria acerca da diferença entre concórdia e tolerância, o que
lhe permitiria concluir que não se tratava, no édito, de tolerância, mas sim de
concórdia. No preâmbulo do édito de Nantes está a declaração de que ele era
perpétuel et irrévocable, o que poderia indicar aos contemporâneos que, tendo em
vista a legalização da presença do protestantismo no reino instaurada pelas suas
cláusulas, não haveria posterior reunião dos franceses em uma mesma religião.
729
“de servirem a Deus segundo a sua consciência”, Bayle, op.cit., p.353.
730
“uma virtude a cultivar”, Saupin, op.cit., p.7.
731
“miserável tempo”, “Belloy, sabidamente Huguenote, Publicando seus escritos deve ser coberto
por esse nome”, Description de l’homme politique de ce temps..., op.cit., p.10.
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273
Em outras palavras, o édito de Nantes estabeleceria, de acordo com o conceito
descrito por Turchetti, a tolerância definitiva. No entanto, a designação perpétuel
et irrévocable não significava que o édito assim qualificado não pudesse ser
anulado, mas que, como era tradição, ele somente poderia ser abolido por um
novo édito. Segundo Bernard Cottret, tal menção presente em um édito
ne signifie pas qu’il ne saurait être révoqué, comme on pourrait le croire à
première vue. Non, dans la langue du temps, un édit est irrévocable simplement
parce que sa révocation exige un nouvel édit en sens contraire
732
.
Opinião semelhante tem Marianne Carbonnier-Burkard, que sustenta que
cette formule (...) indique une décision mûrement réfléchie, non circonstancielle,
destinée à s’inscrire dans une durée non limitée. Elle n’exclut pas pour autant la
possibilité de sa caducité, ni de sa révocation par un autre édit procédant
également d’une mûre flexion (...) Bref, pour les légistes des rois de France,
comme pour les fidèles bien informés de l’Église catholique, la perpétuité n’est pas
l’éternité
733
.
Beloy, por sua vez, afirma no seu comentário que a menção à perenidade do
édito era mal-compreendida por alguns contemporâneos seus. Turchetti cita de
Beloy os seguintes trechos, para ilustrar o que queria dizer, de acordo com a sua
perspectiva, o fato de o édito de Nantes impor a coexistência para depois
substituí-la pela reunificação religiosa do reino:
Icy [quanto à declaração no preâmbulo] les ennemis du Roy, restes de la faction
esteincte (les Ligueurs), prennent sujet à blasmer S.M. comme s’il vouloit à jamais
et sans fin authoriser deux religions en France (lisons : comme s’il voulait instituer
la tolérance en France) ; au lieu que ces predecesseurs avoient seulement permise
celle qu’on dit reformee, par provision, et attendant un Concile general ou
national, ou que Dieu eust inspiré les abusez à se recognoistre, et reünir au giron
de l’Eglise Catholique Apostolique et Romaine (on constate l’idée de concorde
selon la formule adoptée la première fois dans l’édit de Janvier).
Mais ces faiseurs de discours continue Beloy – sont ou fort ignorans, ou
malicieux extremement : parce que nous alons monster à veuë d’oeil que ces mots
Perpetuel et irrevocable, qui sont en cest Edict, ne portent, ne peuvent porter ou
comprendre autre chose, que ce qui estoit ès precedens : sçavoir que l’exercice de
cette religion durera, et sera toleree en ce Royaume, jusques à ce que la cause
cesse, et que ceux qui en font professions seront mieux instruits ou convaincus en
leurs consciences par le sainct Esprit, d’erreur et d’heresie. Et que S.M. veut
seulement en ces mots palam profiteri et protester, qu’il n’a intention ni entend
732
“não significa que ele não poderia ser revogado, como poderíamos pensar à primeira vista. Não,
na língua da época, um édito é irrevogável simplesmente porque a sua revogação exige um novo
édito em sentido contrário”, Cottret, op.cit., p.123.
733
“essa fórmula (...) indica uma decisão maduramente refletida, não circunstancial, destinada a
ser inscrita em uma duração não limitada. Ela não exclui no entanto a possibilidade da sua
prescrição, nem da sua revogação por um outro édito procedendo igualmente de uma reflexão
madura (...) Em suma, para os legisladores dos reis da França, como para os fiéis bem informados
da Igreja Católica, a perpetuidade não é a eternidade”, Carbonnier-Burkard, 1998, pp.91-92.
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alterer pour son regard, ou diminuer jamais la volonté, et ferme resolution qu’il a,
de tenir son peuple en repos, pour le faict de la religion, par ceste permission, tant
que la cause d’icelle durera (Beloy, Conference, 38 v. 39)
(...) que personne donc ne se scandalise de la perpetuité de nostre Edict ; car elle
sera esteincte, et la Loy prendra fin incontinent que la cause d’icelle ne se trouvera
plus parmi nous, et que Dieu aura reüni les desvoyez au giron de l’Eglise
Catholique, Apostolique, Romaine (ibid, 42)
734
.
Nessas passagens em que Beloy, explicando o sentido (tradicional,
segundo ele) da expressão perpétuel et irrévocable, afirma o caráter provisório do
édito, definindo o seu limite como sendo o momento em que a causa que o havia
originado (as guerras civis) estivesse extinta, e que a unidade religiosa pudesse ser
restaurada – nessas passagens, Turchetti identifica o conceito de tolerância :
Le facteur temporel, en l’occurrence le caractère strictement passager, scelle la
permission accordée par l’édit, laquelle circonscrit le concept de tolérance
exprimé dans les lignes ci-dessus: une permission temporaire. Sa qualification de
« perpétuel et irrévocable » doit être entendue comme tout à fait relative à l’état de
nécessité
735
.
E conclui :
L’idée de concorde, une concorde toute « catholique », ne quitte jamais la pensée
de Beloy. Il nous mène au coeur du problème et nous rappelle une rité que nous
avons oubliée au cours des siècles : l’édit de Nantes, par la conformation et les
modalités de ses mesures de tolérance, misait essentiellement sur la réunion des
sujets à l’Eglise traditionnelle. C’est par quoi, il se présente sous la forme d’un
édit de concorde, plutôt que de tolérance
736
.
734
“Aqui [quanto à declaração no preâmbulo] os inimigos do Rei, restos da facção extinta (os
Ligueurs), vêem motivo para acusar S.M. como se ele quisesse para sempre e sem fim autorizar
duas religiões na França (leiamos: como se ele quisesse instituir a tolerância na França); onde seus
predecessores haviam somente permitido aquela que dizemos reformada por provisão, e esperando
um Concílio geral ou nacional, ou que Deus tenha inspirado os abusados a se reencontrarem, e
unirem-se novamente no seio na Igreja Católica Apostólica e Romana (constatamos a idéia da
concórdia segundo a fórmula adotada pela primeira vez no édito de Janeiro, como vimos acima).
Mas esses fazedores de discursos – continua Beloy – são ou bastante ignorantes, ou extremamente
maliciosos: porque mostraremos a olhos vistos que essas palavras Perpétuo e irrevogável, que
estão neste Édito, não têm, não podem ter ou compreender outra coisa que não o que estava nos
precedentes: a saber que o exercício dessa religião durará, e será tolerado neste reino aque a
causa cesse, e que os que dela professam estejam melhor instruídos ou convencidos nas suas
consciências pelo Espírito Santo do erro e da heresia. E que S.M. quer somente nessas palavras
palam profiteri e protestar que ele não tem intenção, nem pretende alterar no que lhe concerne,
nem nunca diminuir, a vontade e firme resolução que tem em manter seu povo em paz por razão da
religião, através desta permissão, enquanto a sua causa durar (Beloy, Conference, 38v.39). (...) que
ninguém portanto se escandalize da perpetuidade do nosso Édito pois ela desaparecerá, e a Lei terá
fim assim que a sua causa não se encontrar mais entre nós, e que Deus tiver reunido os desviados
no sei da Igreja Católica, Apostólica, Romana (ibid, 42)”, apud Turchetti, 1985, pp.348-350.
735
“O fator temporal, no caso o caráter estritamente passageiro, sela a permissão acordada pelo
édito, a qual circunscreve o conceito de tolerância expresso nas linhas acima: uma permissão
temporária. A sua qualificação de “perpétuo e irrevogável” deve ser entendida como inteiramente
relativa ao estado de necessidade”, id., ibid., p.348.
736
“A idéia de concórdia, uma concórdia toda “católica”, não abandona nunca o pensamento de
Beloy. Ele nos leva ao coração do problema e nos lembra uma verdade que nós esquecemos ao
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Nossa conclusão, para a análise feita por Turchetti sobre os trechos de
Beloy, é a inversa: o édito de Nantes apresenta-se sob a forma de um édito de
tolerância, antes do que de concórdia, que consideramos que o estabelecimento
imediato da concórdia civil para a produção futura da concórdia religiosa é a
descrição do conceito de tolerância civil. Para Turchetti, o édito de Nantes deve
ser considerado como um tratado de concórdia e o de tolerância pois, segundo
Pierre de Beloy e as suas próprias cláusulas, o seu objetivo era restabelecer a
concórdia religiosa no reino. Para atingi-la, entretanto, Turchetti afirma que era
preciso percorrer um período de coexistência de duas religiões, ou seja, era
necessário aceitar uma tolerância de duração limitada. Em outras palavras, o que
diz o historiador suíço é que, com o édito de 1598, Henrique IV pretendia
instaurar a concórdia, mas para isso era preciso antes instaurar a tolerância: S’il
est vrai que la « première cause » de l’édit est la concorde, la voie à suivre pour
l’atteindre est la tolérance
737
. Por quê ? Porque, diz Beloy,
la necessité du repos et de la chose publique a desiré et desire encore la
permission et licence contenue en ce nostre Edict ; dautant que la paix et la
tranquillité nous est tres-necessaire en cest Estat, et que cestecy ne peut estre sans
telle permission : partant nous disons hardiment, que l’ordonnance de telle
permission est juste, veu qu’elle est necessaire (Ibid, 100)
738
.
A interpretação de Beloy para o édito de Nantes conclui assim que foi a
necessidade do momento que determinou a escolha do caminho da coexistência
religiosa, e que ela seria provisória, sendo posteriormente substituída pela unidade
católica interpretação condizente com a posição politique que lhe era atribuída.
No entanto, como dissemos acima, para Turchetti os politiques propunham uma
tolerância definitiva, enquanto os defensores do édito de Nantes queriam-na
temporária, limitada. Apesar do silêncio de Turchetti nesse sentido, Beloy era, ao
mesmo tempo, um politique (pelas suas idéias, seu envolvimento nas guerras de
religião e segundo a opinião dos seus contemporâneos) e um defensor do édito. O
longo dos séculos: o édito de Nantes, pela sua conformação e as modalidades das suas medidas de
tolerância, apostava essencialmente na reunião dos súditos à Igreja tradicional. Eis por que ele se
apresenta sob a forma de um édito de concórdia, mais que de tolerância”, id., ibid., p.350.
737
“Se é verdade que a primeira causa” do édito é a concórdia, a via a seguir para atingi-la é a
tolerância”, id., ibid., p.351.
738
“a necessidade da paz e da coisa pública desejou e deseja ainda a permissão e licença contida
neste nosso Édito; dado que a paz e a tranqüilidade nos é mui-necessária neste Estado, e que ela
não pode ser sem tal permissão: então dizemos com firmeza que a ordem de tal permissão é justa,
visto que ela é necessária”, apud id., ibid., p.351, grifo no texto.
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fato de as duas identidades serem, para o historiador suíço, opostas – o que
tornaria impossível compreender a posição de Beloy, pois ela não se encaixaria
nessa oposição das duas posturas é um exemplo de como é problemática a
questão da tolerância no século XVI, e de como uma interpretação anacrônica
pode interferir e prejudicar o trabalho do historiador. A explicação de Beloy para
o édito de Nantes é semelhante à de outros personagens que, identificados com o
partido politique, justificavam a necessidade da dualidade religiosa como um
recurso provisório que garantiria a preservação do reino. Catarina de Médici havia
atribuído ao édito de Janeiro de 1562 essa motivação: segundo a rainha-mãe, era
preciso fazer frente à nécessité de nos affaires
739
. O édito de 1562, que Quentin
Skinner chama de “Édito de Tolerância”
740
, é o mesmo que obrigou o politique
Étienne Pasquier a assegurar a um amigo que se tratava de tolérer ce scandale
pour en éviter un plus grand
741
, isto é, era preciso suportar a dualidade religiosa
para impedir o avanço da desordem no reino.
Assim como para a publicação de Beloy, ao analisar o libelo De la concorde
de l’Estat, Turchetti conclui que a tolerância provisória foi apresentada como
solução para o problema das guerras civis causadas pela dissensão religiosa. Ele
explica mesmo que esse caminho pretendia viabilizar as relações civis entre
católicos e protestantes franceses:
la tolérance dont il est question ne s’épuise pas sur le plan religieux, car elle
engage tous les sujets, tant catholiques que formés, à entretenir des relations
civiles plus égalitaires, abstraction faite de leur religions
742
.
E a melhora nas relações civis, isto é, a concórdia no Estado, era necessária,
segundo o De la concorde de l’Estat, por causa do objetivo da concórdia religiosa:
Il sera aisé à juger que la concorde en l’Eglise, ne se peut acquérir qu’il n’y ait
premièrement concorde en l’État, et que pour avoir et maintenir cette concorde en
l’Église, il faut tolérer et non tollir le libre exercice de deux religions, et donner
aux uns et aux autres la communication des charges, offices et dignités
743
.
739
“necessidade dos nossos negócios”, apud Jouanna, op.cit., p.102.
740
Skinner, op.cit., p.517.
741
“tolerar esse escândalo para evitar um maior”, apud Jouanna, op.cit., p.101.
742
“a tolerância de que se trata não se esgota no plano religioso, pois ela obriga todos os súditos,
tanto católicos quanto reformados, a manterem relações civis mais igualitárias, abstração feita das
suas religiões”, Turchetti, 1998, pp.109-110.
743
“Será fácil pensar que a concórdia na Igreja não se pode adquirir sem que haja primeiro
concórdia no Estado, e que para ter e manter essa concórdia na Igreja, é preciso tolerar e não tolher
o livre exercício de duas religiões, e dar a uns e outros o acesso aos postos, ofícios e dignidades”,
De la Concorde de l'Estat..., op.cit., p.16.
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Nas duas publicações estudadas por Turchetti, o recurso à tolerância
provisória era um caminho para atingir a concórdia religiosa. Fica implícito que a
tolerância provisória não era, essencialmente, boa – de certa forma, porque ela não
era um fim em si, mas um instrumento para atingir o objetivo da concórdia. Esse
instrumento, como já dissemos, Beloy chama de “concórdia civil”; no De la
concorde de l’Estat ele aparece como “concórdia no Estado”; e Turchetti conclui
que, se o meio é a concórdia civil, e o fim é a concórdia religiosa, então o
princípio, do édito de Nantes, por exemplo, é a concórdia.
D’après l’étude de Beloy, et sur le commentaire de Beloy, l’édit de Nantes pourrait
s’appeler à juste titre édit de concorde, « Loy de Concorde, Loy d’Union et de
Pacification », selon ses propres termes
744
.
À dinâmica gerada pelo conjunto concórdia civil-concórdia religiosa, Joseph
Lecler e Arlette Jouanna deram o nome de tolerância civil. Segundo esta
dinâmica, não era apenas viável, era mesmo imprescindível que um politique,
como Pierre de Beloy, defendesse a instituição provisória da coexistência religiosa
como forma de solucionar as guerras civis, defendesse portanto o édito de Nantes,
e portanto a tolerância civil. É possível que a distinção entre a leitura de Turchetti
e a de Lecler, de Jouanna e nossa esteja em um ponto bastante específico: o lugar
das guerras de religião (e tudo o que elas envolveram, vale dizer, éditos, tratados,
publicações anônimas ou o, além das batalhas e confrontos armados) no
desenvolvimento do Estado moderno. Ao insistir na denominação de édito de
concórdia para o édito de Nantes, repelindo o aposto “de tolerância”, Turchetti
nos parece estar rejeitando a inovação que este édito (assim como alguns dos
anteriores, como o de Janeiro de 1562, mas mais marcadamente o de Nantes)
apresentava nos termos da relação do Estado com a religião e a política. Se
pensarmos na filosofia política nascente no século XVI, perceberemos como na
França, a partir do contexto das guerras de religião, alguns pensadores (muitos
deles reunidos no partido politique) trabalharam com uma significativa separação
entre Estado e Igreja, que assumia a forma da necessidade de preservação do bem
comum – objetivo primeiro do Estado. Ao insistir na concórdia, mesmo admitindo
que ela é o fim para o qual é necessária antes a tolerância, Turchetti mantém como
744
“Segundo o estudo de Beloy, e sobre o comentário de Beloy, o édito de Nantes poderia ser
chamado com justiça édito de concórdia, Lei de Concórdia, Lei de União e de Pacificação”,
segundo seus próprios termos”, Turchetti, 1985, p.354.
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função e objetivo do Estado a defesa da religião católica. É segundo essa
perspectiva que este autor pode afirmar (como está reportado na citação da nota
728 que Beloy não apresenta no seu comentário des idées nouvelles, annonçant
la priorité de la concorde civile sur la concorde religieuse
745
. Uma leitura que
considere o conceito de tolerância civil chegará à conclusão oposta. Mas parti
dos mesmos princípios, compreendendo que as guerras de religião na França
desenvolveram-se de maneira a ser necessário “renoncer dans l’immédiat à la
concorde religieuse pour recouvrer la concorde civile
746
. Em outras palavras,
alguns pensadores, sobretudo os politiques, como Pierre de Beloy, decidiram que
il est urgent de tolérer la diversité religieuse pour réaliser la concorde
politique
747
.
É segundo a perspectiva dessa decisão no contexto do desenvolvimento do
Estado moderno no século XVI que afirmamos que a experiência da tolerância
civil produziu – ao mesmo tempo em que foi o produto dela – uma distinção entre
os fundamentos e o fim do Estado e os da religião. Joseph Lecler relaciona essa
separação elemento do processo de secularização do Estado e da política às
guerras de religião, por entender que o desenrolar dos conflitos (que não foram
apenas armados), na segunda metade do século XVI, colocou em questão o
vínculo tradicional entre o rei e a Igreja. Yves-Charles Zarka, por sua vez,
adiciona a essa dinâmica a tolerância civil, ao afirmar que
au moment de sa formation (...) le concept moderne de tolérance avait pour objet
de résoudre une question religieuse : comment rendre possible la coexistence de
plusieurs religions dans un me État ? Or ce concept a permis de penser la
coexistence religieuse, en déplaçant le centre de gravité de la question du religieux
au politique. La coexistence des religions est une coexistence civile, ce qui suppose
une séparation de l’Église et de l’État
748
.
Opinião semelhante tem Quentin Skinner ao analisar a participação dos
politiques, como Jean Bodin, na elaboração de uma solução para a crise gerada
pelas guerras de religião:
745
“idéias novas anunciando a prioridade da concórdia civil sobre a concórdia religiosa”,
Turchetti, 1998, p.114.
746
“renunciar imediatamente à concórdia religiosa para recuperar a concórdia civil”, id., ibid.,
p.110.
747
“é urgente tolerar a diversidade religiosa para realizar a concórdia política”, id., ibid., p.110.
748
“no momento da sua formação (...) o conceito moderno de tolerância tinha como objetivo
resolver uma questão religiosa: como tornar possível a coexistência de várias religiões em um
mesmo Estado? Ora, esse conceito permitiu pensar a coexistência religiosa, deslocando o centro de
gravidade da questão do religioso para o político. A coexistência das religiões é uma coexistência
civil, o que supõe uma separação da Igreja e do Estado”, Zarka, 2002-a, p.V.
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279
Quando Bodin afirmou, nos Seis livros da república, que para todo príncipe
deveria ser óbvio que as “guerras travadas por questões religiosas” na verdade o
eram “fundamentadas em assuntos diretamente concernentes ao Estado”, ouvimos
pela primeira vez a voz genuína do moderno teórico do Estado
749
.
Para Reinhart Koselleck, o desligamento proposto – e em certa medida
operado pelos politiques e por Henrique IV quanto às obrigações principais do
rei e a defesa da religião resultava de uma necessidade observada na medida em
que os confrontos entre católicos e protestantes repetiam-se. Segundo esse autor,
à partir de la deuxième moitié du XVIe siècle, un problème se présentait-il de
façon insistante, que l’ordre traditionnel n’arrivait plus à soudre : la nécessité
de trouver une solution au milieu des Eglises intolérantes et impitoyables dans
leurs haines réciproques. Une solution qui éviterait, réglerait ou étoufferait le
conflit. Comment rétablir la paix ?
750
A resposta politique a esta pergunta consistia em fazer a distinção entre as
instituições responsáveis respectivamente pela segurança dos corpos e a das
almas. Seu caminho operava com a noção de que o rei tinha por função a
manutenção do bem comum, e que a resolução do problema da dissensão religiosa
não estava entre as suas obrigações prioritárias, mas o restabelecimento da paz,
sim.
Essa proposta é nova no século XVI.
Depois de 36 anos de guerras civis, iniciadas pelo massacre de Wassy em
1562, e de sete éditos de pacificação, o édito de Nantes restabeleceu a paz civil na
França. A dualidade religiosa, legalizada mas, ao contrário do que freqüentemente
se afirma, estreitamente limitada, produziu o efeito que Henrique IV e seus
conselheiros, em especial os politiques, esperavam dela: a paz. O instrumento para
ela foi a supressão dos movimentos que deslocavam as divergências religiosas
para o âmbito da vida comum, em sociedade, e faziam delas causa para a guerra.
A religião iniciava assim o processo que a levará da esfera pública à privada,
fazendo a distinção entre a “metade pública” do homem-cidadão, e a sua “metade
privada”, o homem-homem, criações resultantes, diz Reinhart Koselleck, das
guerras de religião
751
. A supressão desse deslocamento foi o resultado de outro,
749
Skinner, op.cit., p.620.
750
“a partir da segunda metade do século XVI, um problema apresenta-se de maneira insistente,
que a ordem tradicional o conseguia mais resolver: a necessidade de se encontrar uma solução
no meio das Igrejas intolerantes e impiedosas nos seus ódios recíprocos. Uma solução que evitaria,
resolveria ou sufocaria o conflito. Como restabelecer a paz?”, Koselleck, 1979, p.15.
751
id., ibid., especialmente pp.30-31.
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que formulou, com a intenção de uma aplicação prática e imediata, a distinção
entre o Estado e a religião, nos termos dos seus fundamentos e dos seus objetivos.
Segundo Joseph Lecler,
Ce qui fonde ainsi la tolérance, c’est l’autonomie de l’État dans son ordre, c’est le
fait que l’État a sa mission distincte, comme gardien de la paix civique et du bien
commun temporel
752
.
Sob a perspectiva dessa diferença, o fim para o qual tende o Estado pode
desvencilhar-se da obrigação de manter a religião, e assim empenhar-se em
restaurar a paz e preservar o bem comum, função que cabia à política, de prover às
necessidades temporais, seculares, dos franceses. Até a segunda metade do século
XVI, a hegemonia da imbricação entre fé, lei e rei tornava ilegal uma ação real
contrária à defesa da Igreja. As primeiras tentativas de instauração da tolerância
civil, a partir do édito de Amboise, de 1560, mas mais concretamente depois do de
Janeiro de 1562, fracassaram porque a idéia do desligamento entre esses três
elementos não havia sido suficientemente desenvolvida, nem em termos de
fundamentação filosófica, nem em número de partidários. O seu aprofundamento
conceitual foi tarefa dos politiques, que colocaram em relação a noção da
necessidade urgente do Estado e a dos benefícios trazidos pela paz, construindo
assim a idéia de que a paz, necessidade do reino, era a primeira obrigação do rei e
pedia medidas urgentes, uma em especial: a aceitação da dualidade religiosa.
As publicações de panfletos e tratados que afirmavam a preeminência, no
que tangia ao rei, da ação política (isto é, daquela que visava ao bem comum)
sobre a defesa da religião tinham o propósito de conquistar as opiniões dos
franceses, de fazer novos adeptos, na maioria das vezes entre os católicos
moderados, mas não exclusivamente. Entre os novos adeptos, alguns novos
autores, que, produzindo novos panfletos, novos tratados, procuravam conquistar
ainda mais novos aderentes. No correr da década de 1590, a posição politique
tornou-se gradualmente preponderante porque foi capaz de reunir diferentes
tendências religiosas em torno do objetivo de restaurar a paz e velar pelo bem
comum.
752
“O que funda assim a tolerância é a autonomia do Estado na sua ordem, é o fato de que o
Estado tem sua missão distinta, como guardião da paz vica e do bem comum temporal”, Lecler,
op.cit., p.831.
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281
Ao longo de meio século, a existência de duas religiões na França passou,
de marginal e absurda, a ser considerada uma solução viável para o caos
753
. O caso
do chanceler Michel de L’Hospital é um exemplo desse caminho: nos Estados
Gerais de 1560 o chanceler discursava contra a possibilidade de duas religiões
coabitarem no reino, mas, menos de dois anos depois, na assembléia de Saint-
Germain em agosto de 1562, L’Hospital faz o famoso discurso em que expõe a
diferença entre ser um súdito do rei e um fiel da Igreja, categorias que não
dependeriam uma da outra:
Il n’est pas ici question de constituenda religione, sed de constituenda republica; et
plusieurs peuvent être cives, qui non erunt Christiani: même l’excommunié ne
laisse pas d’être citoyen
754
.
Depois de ter, em 1560, reiterado o axioma que havia guiado a monarquia,
une foi, une loi, un roi, o chanceler abre o caminho para que ele seja abandonado.
Mais do que resguardar a tradição monárquico-religiosa do reino, valia a
preservação do reino ele mesmo. Por isso e para isso era preciso saber que ser
um cidadão, ser parte do reino, não implicava em nada para a consciência
religiosa: tratava-se da coisa pública, e não da religião. Esta tinha suas regras e
suas necessidades, como o reino tinha as suas, diferentes, outras. O conceito de
tolerância civil e a autonomização do Estado encontraram-se assim intimamente
ligados na França quinhentista.
O que faz o chanceler e outros mudarem de opinião? Se a resposta a essa
pergunta for a decisão de suprir à urgente nécessité du temps
755
que o
Parlamento de Paris declara ser a razão da aprovação do édito de Janeiro de 1562
– e de aceitar que só a instauração de um regime de dualidade confessional
poderia dar-lhe solução, então essa resposta é justamente a opção por uma via que
implica em transformar a relação herdada da Idade Média entre o governo do
753
Não são todos os franceses, nem todos os partidos ou pensadores envolvidos na crise que se
tornam adeptos da tolerância civil, mas se pode considerar que essa posição foi ganhando força até
ser dominante na discussão. Segundo André Stegmann, “la pacification et les décisions d’Henri IV
ne sont que l’aboutissement réussi de la politique, engagée la veille des guerres par Catherine et
poursuivie, avec de sérieux accrocs, des repentirs, une certaine duplicité parfois sous Charles IX,
mais avec une indéniable continuité par Henri III (“a pacificação e as decisões de Henrique IV
são apenas o resultado bem sucedido da política, aplicada na véspera das guerras por Catarina e
seguida, com sérios obstáculos, arrependimentos, uma certa duplicidade às vezes sob Carlos IX,
mas com uma inegável continuidade por Henrique III”, Stegmann, op.cit., p.241).
754
“Não é aqui questão de fundar a religião, mas de fundar a coisa pública; e muitos podem ser
cidadãos, que não serão cristãos; mesmo o excomungado não deixa de ser cidadão”,
L’Hospital, op.cit., p.61, grifos no texto.
755
“necessidade urgente do tempo”, Mémoires de Con, t.III, p.92 apud Lecler, op.cit., p.457.
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reino e o governo da religião no reino, servindo-se para isso de um instrumento
específico, a tolerância civil. Opção pela via da política, pela proposta politique de
distinguir Estado de Igreja, de escolher o Estado e criar para a religião um foro e
uma instância em que ela pudesse atuar livremente, mas sem interferir além dos
seus limites.
A instituição da tolerância como instrumento político, as razões por que e a
forma como ela foi bem sucedida em pôr fim às guerras de religião são as
questões a que esta tese procurou responder. Não era, a instituição política da
tolerância, tarefa fácil, como quisemos mostrar. Também hoje não é. A
importância dessas perguntas acreditamos que esteja na sua atualidade. O
problema do entendimento acerca da tolerância voltou a ser, nos séculos XX-XXI,
o problema da incapacidade de coexistência entre as diferenças. A solução pela
idéia da tolerância civil, cinco séculos atrás, pode ainda ter algo a ensinar.
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Bibliografia.
1. Fontes Primárias.
Os documentos citados na tese e que não foram publicados (ou cujas edições
consultadas são versões que não o foram) fazem parte do acervo da Bibliothèque
Nationale de France.
Advertissement aux trois estats de France assemblez en la ville de Blois, pour
obtenir de Sa Majesté l'interpretation d'une close de son dernier edict de
reünion faulsement exposee par les heretiques & politiques leurs associez.
1588.
Advertissement envoié par un Catholique aux Villes de S. Quentin, Coucy et la
Fere, salutaire et profitable pour les autre villes tenant party contraire a
l'Union. 1589.
Advertissement salutaire aux François. Lyon : G. Jullieron et T. Ancelin, 1594.
Advis aux catholiques francois, sur l'importance de ce qui se traicte aujourd'huy,
sur l'irresolution de quelques scrupuleux ensemble & principalement sur les
ruzes des politiques, atheistes, forgeurs de nouvelles, & aultres ennemys de
Dieu. A Paris, pour Anthoine le Riche, 1589.
Advis d'un Francois à la noblesse catholique de France, sur la remonstrance d'un
ligueur, auquel le devoir des catholiques, à la memoire du feu Roy, &
envers le Roy à present regnant, ensemble la conjuration de la Ligue contre
l'Estat, ses traitez & alliances avec l'Espagnol sont declarez. A Tours, chez
Jamet Mettayer, 1590.
Advis et exhortation en toute humilité & obeissance. A messeigneurs du Conseil
d'Estat general, de la saincte Union de l'Eglise catholique apostolique &
romaine. Contre les blasphemateurs du nom de Dieu, & de ceux [sic] qui
seront trouvez en adultere & paillardise. Ensemble contre ceux qui
soustiennent les heretiques & politiques de ce temps... Plus un
advertissement audict Conseil, d'oster les boutiques des perruquieres, qui
vendent les cheveux des morts & des vivans. P.S.C. A Paris, de l'imprimerie
de Denis Binet, 1589.
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AQUINO, Tomás de (Sto.) Suma Teológica. o Paulo: Faculdade de Filosofia
“Sedes Sapientiae”, 1954.
Apologie pour les Catholiques d'Angers, demeurez fermes en l'obeissance du Roy,
calumniez d'heresie, pour n'auoir voulu estre de la ligue. 1589.
L'Arpocratie ou Rabais du caquet des politiques et Jebusiens de nostre aage.
Dedié aux agens & catholiques associez du roy de Navarre. 1589.
Arrest de la cour de Parlement, de recognoistre pour Roy, Charles dixiesme de ce
nom. A Troyes, Par Iean Moreau, M. Imprimeur du Roy, 1589.
Arrest de la Cour de Parlement pour la conservation du repos public de la ville &
faux-bourgs de Paris, & sureté des habitans d’icelle. 1589.
Articles de la saincte union des Catholiques François. 1588.
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Contrains-les d’entrer, ou Traité de la tolérance universelle. A Cantorbery
par Thomas Litwell, 1686.
BEGAT, Jean Remonstrances faictes au roy de France, par les deputez des trois
Estats du Duché de Bourgoigne, sur l'Edict de la pacification des troubles
du Royaume de France... Reueu, corrigé et amplifié sur meilleur
exemplaire, auec annotation et citation des passages en marge. Anvers : G.
Silvius, 1564.
BODIN, Jean Les Six Livres de la République (1576). Paris: Le Livre de Poche,
1993.
__________ Recueil de tout ce qui s'est négotié en la compagnie du Tiers Estat
de France en l'assemblée géneralle des trois Estats, assignez par le roy en
la ville de Bloys, au 15 novembre 1576. 1577.
_________ Copie d’une lettre de Monsieur Jean Bodein, contenant
Prognostication merveilleuse du succes des guerres du Royaulme de
France. 1590.
BOUCHER, Jean de Sermons de la simulée conversion, et nulité de la prétendue
absolution de Henri de Bourbon, Prince de Béarn, à S. Denis en France, le
Dimanche 25 Juillet, 1593. Sur le sujet du même jour, Attendite a falsis
Prophetis, etc. Matth 7. Prononcé à l’Eglise de S. Merry à Paris, depuis le
premier jour d’Août prochainement suivant, jusqu’au neuvième du dit mois.
Par Me Jean Boucher Docteur en Théologie. Imprimée à Paris, chez G.
Chaudière R. Nivelle, & R. Thierry, rue S. Jacques, 1594.
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roy de Navarre et de Monsieur le prince de Condé, touchant la dernière
déclaration de la guerre. La Rochelle : par J. Portost, 1587.
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De-label, 1599.
Description de l’homme politique de ce temps avec sa foi et Religion. Qui est un
Catalogue de plusieurs hérésies et athéismes, tombent ceux qui préfèrent
l’état humain à la Religion Catholique. A Paris, Chez Guillaume Bichon,
rue S. Jacques, au Bichot, 1588.
Dialogue ou pourparler de deux personnages, desquels l'un est le bien veuillant
public, & l'autre le très puissant Prince, Monsieur, le Duc d'Anjou,
nostre très redouté seigneur. 1582.
DIEUDONNE, P. de La Vie et condition des politiques et athéistes de ce temps,
avec un advertissement pour ce (sic) garder d'eux et de n'admettre
indiscretement et indifferemment tous ceux qui s'offriront au party de la
saincte Union. Paris : R. Le Fizelier, 1589.
Discours veritable de l’estrange & subite mort de Henry de Valois, advenue par
permission divine, luy estant à S. Clou, ayant assiegé la Ville de Paris, le
Mardy I. iour d’Aoust, 1589. Par un Religieux de l’ordre des Iacobins. A
Troyes, Par Iean Moreau, M. Imprimeur, pres Nostre Dame, 1589.
DORLEANS, Louis Apologie ou Defence des catholiques unis les uns avec les
autres, contre les impostures des catholiques associez à ceux de la
pretendüe Religion. 1586.
Double d'une lettre envoiée à un certain personnage, contenante le discours de ce
qui se passa au cabinet du roy de Navarre et en sa présence, lorsque le duc
d'Espernon fut vers luy en l'an 1584. Francfort, 1585.
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In : _______ - Actions et traictez oratoires. Edition critique publiée par
René Radouant, Paris: s/l., 1911.
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1585.
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Roffet, 1588.
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de Navarre. A Lyon, Par Loys Tantillon, 1590.
Harengue faite par le Roy estant en son conseil le saizième de juin à la
publication de 26 édicts. En ce compris celle de M. le chancelier [Philippe
Hurault de Cheverni], celle de M. le premier président [Achille de Harlai]
et celle de M. Du Plessis. Paris, jouxte la copie imprimée à Lyon : par J. de
Tourne, 1586.
HENRI III Harengue du Roy nostre sire, faicte en l'assemblée des Estatz, par
laquelle sa Majesté déclaire la bonne affection qu'il a de faire vivre tous ses
subjectz en bonne paix, union, et concorde. 1576.
HENRI IV Déclaration et protestacion du roy de Navarre, de M. le prince de
Condé et M. le duc de Montmorency sur la paix faicte avec ceux de la
maison de Lorraine, chef [sic] et principaux autheurs de la Ligue au
préjudice de la maison de France. Plus deux lettres escrites dudit sieur Roy
de Navarre, l’une à Mesieurs de la Cour de Parlement, & l’autre à
Mesieurs de la Sorbonne. Avec une Epistre au Roy, par un gentilhomme
François. Ortès, 1585.
________ Déclaration du roi de Navarre au passage de la rivière de Loire, au
service de sa Majesté. Fait à Saumur le 21, Avril 1589. 1589-a.
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jour de decembre 1588. 1589-b.
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wealth ecclesiasticall and civill. London : Printed for Andrew Crooke, 1651.
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Bourbon. 1588.
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prérogative de Monseigneur le Cardinal de Bourbon. Paris: G. Bichon,
1588.
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______________ De Furoribus Gallicis (Histoire des massacres et horribles
cruautez commises en la personne de messire Gaspar de Colligny grand
Amiral de France, & autres seigneurs gentils-hommes, personnages
honnorables de diverses qualitez, hõmes femmes &enfans, tant en la ville de
Paris qu’en plusieurs lieux & endroits du Royaume, le 24 jour d’Aoust
1572. & autres suivans. Traduite en François, & augmentee de quesque
particularitez omises en l’exemplaire Latin. Plus, les lettres, declarations &
edicts du Roy touchant lesdits massacres, la forma d’abjuration praescripte
aux revoltez, & la responce des Rochelois). 1573.
LA BOETIE, Étienne de Discours de la servitude volontaire suivi du Mémoire
touchant l’édit de janvier 1562. Introduction et notes de Paul Bonnefon.
Paris : Éditions Bossard, 1922.
LA MOTHE, Jean de (pseud. de Magistri Le P. Yver) Le Réveil matin et mot du
guet des bons catholiques, enfans de l'Église, apostolique et romaine,
unique espouse de Jésus Christ, auquel y a la composition d'une aposume et
triaque fort nécessaire et salutaire pour remédier à la maladie présente de
la France; le tout comprins sous un discours qui faict mention de deux
choses fort nécessaires et dignes d'estre sceuz, dont la première est des
remèdes fort propres aux catholiques, pour appaiser l'orage contre eux
esleue, et la dernière fait mention de partie des cruautez et tyrannies dont
usent à présent les hérétiques, libertins, politiques et athées à l'endroit des
bons catholiques du royaume de France ; le tout recueilly fidèlement et mis
en lumière. Doüay : impr. de J. Bourcier, 1591.
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jouir du bien de la paix, par Louys Le Roy. - Project ou dessein du royaume
de France, pour en représenter en dix livres l'estat entier, soubs le bon
plaisir du Roy. - Les Monarchiques de Loys Le Roy, ou de la Monarchie ou
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prince de Condé et M. le duc de Montmorency sur la paix faicte avec ceux
de la maison de Lorraine, chef [sic] et principaux autheurs de la Ligue au
préjudice de la maison de France. Plus deux lettres escrites dudit sieur Roy
de Navarre, l’une à Mesieurs de la Cour de Parlement, & l’autre à
Mesieurs de la Sorbonne. Avec une Epistre au Roy, par un gentilhomme
François. Ortès, 1585. ver HENRI IV Déclaration et protestacion du roy
de Navarre, de M. le prince de Condé et M. le duc de Montmorency sur la
paix faicte avec ceux de la maison de Lorraine, chef [sic] et principaux
autheurs de la Ligue au préjudice de la maison de France. Plus deux lettres
escrites dudit sieur Roy de Navarre, l’une à Mesieurs de la Cour de
Parlement, & l’autre à Mesieurs de la Sorbonne. Avec une Epistre au Roy,
par un gentilhomme François. Ortès, 1585.
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Loire, au service de sa Majesté. Fait à Saumur le 21, Avril 1589. 1589 ver
HENRI IV claration du roi de Navarre au passage de la rivière de
Loire, au service de sa Majesté. Fait à Saumur le 21, Avril 1589. 1589-a.
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contenant la declaration dudit Seigneur sur les choses advenues en France,
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depuis le 23 jour de decembre 1588. 1589 ver HENRI IV Lettre du Roy de
Navarre, aux trois Estats de ce royaume contenant la declaration dudit
Seigneur sur les choses advenues en France, depuis le 23 jour de decembre
1588. 1589-b.
_________________ Lettres escrites au Roy par le Sieur Du Plessis, sur la
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de Guise, faictes sous le nom de Monseigneur le cardinal de Bourbon, pour
justifier leur injuste prise des armes. Nouvellement imprimé à La Rochelle
par Pierre Haultin, 1585.
Negotiation de la Paix, es mois d'Auril et May 1575. Contenant la requeste et
articles presentez au Roy par M. le Prince de Condé, Seigneurs et gentils-
hommes de la Religion : M. le Mareschal de Danville, Seigneurs et gentils-
hommes Catholiques associez. L'ample pourparler des deputez desdits S.
Prince, Mareschal, Seigneurs et gentilshommes, en presence du Roy, auec
la Royne sa mere, et quelques conseillers. Auec la responce du Roy ausdits
articles. 1576.
PASQUIER, Étienne Anagramme de Henry de Bourbon, roy de France & de
Navarre. Avec trois sonnets aux Ligueurs. 1590.
_______________ Apologie de la paix. Representant tant les profficts et
commodités que la paix nous produict, que les malheurs, confusions, &
desordres qui naissent durant la guerre. A Paris, chez Jean Richer, 1585.
_______________ Exhortation aux princes et seigneurs du Conseil privé du
Roy pour obvier aux seditions qui occultement semblent nous menacer pour
le fait de la Religion. 1561.
_______________ Des recherches de la France, livre premier et second, plus
Un pourparler du prince et quelques dialogues. 1581.
PERRIERE, Guillaume de la Le Miroir politique, contenant diverses manieres de
gouverner & polices des Republiques qui sont, & ont esté par cy devant :
Oeuvre [...]que necessaure à tous Monarches, Rois, Princes, Seigneurs,
Magistrats & autres qui ont charge du gouvernement ou administration
d’icelles : Par M. Guillaume de la Perriere, Tholosain. A Paris, Pour
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Vincent Norment, & Jeanne Bruneau, en la rue de nostre Dame, à l’image
sainct Jean l’Evangeliste en la galerie par ou on va à la Chancellerie, 1567.
Raisons des politiques qui veullent faire Henry de Bourbon Roy de France, et
celles des Catholiques, par lesquelles est prouué qu'il ne le doit estre : Auec
les responses aux arguments et repliques des Biarnais. 1590.
Les raisons, pour lesquelles Henry de Bourbon, soy disant Roy de Navarre ne
peut et ne doit estre receu, approuvé, ne recogneu Roy de France. Avec les
responses aux plus communes objections des Polytiques. Paris: 1591.
Remonstrãce au Roy, par le sieur de La Serre, sur les pernicieux discours
contenus au livre de la Republique de Bodin. A Paris. Par Federic Morel
Imprimeur ordinaire du Roy. 1579.
Le Restaurateur de l’Estat François. sont traitees plusieurs notables
questions, sus les Polices, la Justice & la Religion : le sommaire desquelles
on pourra voir en la page suivante. S/l, s/d.
RONSARD, Pierre de – Exhortation pour la paix. 1558.
_______________ – Ode de la paix. 1550.
_______________ – La paix. Au roy. 1559.
ROSIERES, François de (archidiacre de Toul) – Six livres des politiques, contenants
l'origine et estat des cités, condition des personnes, économie et police des
monarchies et républiques du monde, tant en temps de paix que de guerre,
Avec l’institution du Monarch, & les moyens de conserver & destruire la
chose publique en toutes especes de gouvernement tant droict que
defectueux, ensemble des Magistrats, & loix, desquelles on y doit vser, selon
le iugement des Anciens & modernes Philosophes. Par François de
Rosières, Archidiacre & Chanoine de Toul. Plus, De l’origine, antiquité,
progrés, excellence, & vtilité de l’art Politique : ensemble des Legislateurs
plus renommez qui l’ont pratiquée, & des autheurs illustres qui en ont
escrit, specialement de Platon & Aristote : avec le sommaire & conference
de leurs Politiques. Rheims : impression de J. de Foigny, 1574.
VOLTAIRELa Henriade. A Londres, 1728.
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Apêndice.
Éditos promulgados na França durante as guerras de
religião (1562-1598)
1562 Édito de Janeiro, ou de Saint-Germain (17 de janeiro, dois meses antes do
início das guerras civis), permitindo o culto e as assembléias protestantes fora das
cidades, durante os dias.
1563 Édito de pacificação de Amboise (19 de março), encerrando a guerra
civil (iniciada em de março de 1562), concedendo, sob inúmeras condições,
liberdade de consciência e culto aos protestantes.
1568 Paz de Longjumeau (23 de março), encerrando a guerra civil (iniciada
em 26-28 de setembro de 1567)
756
.
– Ordenações de Saint-Maur, cancelando os éditos de Janeiro, de Amboise e
de Longjumeau e suprimindo o protestantismo na França (setembro).
1570 Paz de Saint-Germain (8 de agosto) encerrando a guerra civil (iniciada
em 23 de agosto de 1568)
757
. Anula as ordenações de Saint-Maur e volta a
regulamentar a liberdade de consciência e de culto protestante.
1573 Édito de pacificação de Boulogne (11 de julho – data do registro no
parlamento de Paris) encerrando a guerra civil (iniciada em 24 de agosto de
1572)
758
.
1576 Paz de Monsieur e Édito de pacificação de Beaulieu (assinado em Étigny,
6 de maio) encerrando a 5ª guerra civil
759
. Criação das chambres mi-parties,
tribunais especiais instituídos para julgar casos que envolvessem protestantes,
devendo contar obrigatoriamente com igual número de juízes católicos e
protestantes.
1577 – Paz de Bergerac (14 de setembro) e Édito de pacificação de Poitiers (17 de
setembro), encerrando a 6ª guerra civil (iniciada em dezembro de 1576)
760
.
1579 Conferência de Nérac (fevereiro)
761
. Durante duas semanas, Catarina de
Médici, membros do conselho privado de Henrique III, o príncipe de Condé e o
756
14 artigos. A paz de Longjumeau é o primeiro édito das guerras de religião cujas disposições
são numeradas.
757
45 artigos.
758
25 artigos.
759
63 artigos.
760
64 artigos.
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298
rei da Navarra reuniram-se em Nérac para discutir os pontos não respeitados do
édito de Poitiers e as vexações sofridas pelos protestantes.
1580 – Ordenações dos estados gerais de Blois (25 de janeiro)
762
. Regulamentação
das decisões resultantes dos estados de Blois, reunidos de 6 de dezembro de 1576
a 17 de janeiro de 1577. Tais resoluções não haviam podido ser aplicadas por
causa da retomada da guerra civil, em dezembro de 1576.
Paz de Fleix (26 de dezembro), encerrando a guerra civil (iniciada em
29 de novembro de 1579)
763
. Resultado de duas conferências realizadas em
novembro e dezembro de 1580, com a presença de Henrique de Navarra e de
François d’Alençon-Anjou em Fleix e Coutras, este tratado é também conhecido
como Conférence de Fleix.
1598 Édito de Nantes (30 de abril), encerrando a guerra civil (iniciada em
março de 1585)
764
.
761
27 artigos.
762
363 artigos.
763
47 artigos.
764
92 artigos compõem o corpo principal do édito de Nantes. ainda 56 articles particuliers ou
secrets, e dois atos adicionais, os brevets.
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