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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL
CURSO DE DOUTORADO
Alessandra Daflon dos Santos
Rádice: muito prazer!
Crônicas do passado e do futuro da Psicologia no Brasil
Rio de Janeiro
Maio, 2008.
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL
CURSO DE DOUTORADO
Alessandra Daflon dos Santos
Rádice: muito prazer!
Crônicas do passado e do futuro da Psicologia no Brasil
Tese apresentada ao programa de s-Graduação em
Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro como requisito parcial para obtenção do tulo
de Doutor em Psicologia.
Orientadora: Profa. Ana Maria Jacó Vilela
Rio de Janeiro
Maio, 2008.
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BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________
Profa. Dra. Ana Maria Jacó Vilela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Orientadora)
_____________________________________
Prof. Dr. Luís Reznik
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
_____________________________________
Prof. Dr. Francisco Teixeira Portugal
Universidade Federal do Rio de Janeiro
_____________________________________
Profa. Dra. Cecilia Maria Bouças Coimbra
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________
Prof. Dr. Edson Luiz André de Sousa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Suplentes:
_____________________________________
Prof. Dr. Pedro Paulo Gastalho de Bicalho
Universidade Federal do Rio de Janeiro
_____________________________________
Profa. Dra. Irene Bulcão
Universidade Cândido Mendes
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AGRADECIMENTOS
“Com açúcar e com afeto”, abraços, chamegos, cafunés, apertos, beijinhos, amassos em
Carlos Ralph e todos que colaboraram com esta tese com suas histórias e memórias.
Aos meus amigos companheiros de viagem da aventura-doutorado: Renato, Marcelo,
Tininha, Irene, aos leitores Isabel e Tutuca e ao “povo do Clio”. À minha família: Francisco,
Fátima, Mônica, René (in memorian), Simone, Paulo, Lucas, Isabela, Alexandre, Carla,
Johann, Hyago e Ícaro.
À banca de avaliação: Cecília Coimbra, Francisco Portugal, Luis Reznik, Edson L. A. de
Sousa e, à minha orientadora, Ana Jacó-Vilela.
Aos funcionários da secretaria da s-graduação em Psicologia Social sempre
quebrando todos os nossos galhos: Aníbal, Marcos, Jussara e Matheus (in memorian).
Aos meus companheiros e amigos do CRPRJ: conselheiros, funcionários (em especial
para Zarlete, Juliana, Mirthes e o pessoal do setor de atendimento, tirando algumas dúvidas e
me ajudando a encontrar alguns psicólogos que colaboraram com a Rádice) e aos
colaboradores do conselho.
À FAPERJ pela bolsa.
5
“... quantas coisas perdidas e esquecidas no teu baú
de espantos...”
Esconderijos do tempo
(Mário Quintana)
6
RESUMO
O objetivo desta tese é apresentar a revista Rádice revista de psicologia, produzida por
psicólogos cariocas entre 1976 e 1981. Esta revista foi de grande importância (intelectual e
afetiva) para a geração que, durante o período da ditadura militar brasileira, graduava-se em
psicologia. Levava aos seus leitores matérias sobre temas variados e polêmicos, não
existentes nas revistas de psicologia da época, como a repressão política, o tratamento
desumano nos hospitais psiquiátricos, a regulamentação da profissão de psicologia, as terapias
corporais. Participava, com outras publicações “nanicas”, do Comitê de Imprensa
Alternativa, indicando sua participação ativa nos debates poticos ocorridos à época. A
Rádice é, pois, um analisador da constituição histórica da psicologia no Brasil, sendo um dos
poucos dispositivos de divulgação de outras formas de se fazer psicologia.
Palavras-chave: hisria; psicologia; Rádice.
7
ABSTRACT
The aim of this work presents “Rádice a psychology magazine”, published by
psychologists from Rio de Janeiro between 1976 and 1981. This publication had a huge
intellectual and emotional importance for a generation of psychology students graduated
during the period of militar dictatorship in Brazil. “Rádice” offered to its readers papers on
diverse and polemical themes, unusual to psychology publications of that epoch, such as
political repression, nonhuman treatment in psychiatric hospitals, regulation of the
psychologist profession, and corporal therapies. “Rádice” was, like other small publications,
part of the Alternative Press Committee, and had an active participation on the political
debates of that time. “Rádice”, thus, allows us to analyze the history of psychology in Brazil,
being one of the fews devices to present other ways of doing psychology.
Key words: history; psychology; Rádice.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 10
CAPÍTULO 1
EMERGÊNCIA ............................................................................................................... 26
1.1. Do campo de batalhas ...................................................................................... 28
1.2. Há vida no campus ........................................................................................... 43
1.3. “Rádice, Muito Prazer!” .................................................................................. 52
1.4. “Jornalismo da psicologia” – loucura, loucura... ............................................ 61
CAPÍTULO 2
ALTERNATIVO .............................................................................................................. 76
2.1. Rádice Revista de psicologia ......................................................................... 79
2.2. Reich e Sexo na Rádice .................................................................................... 82
2.3. O novo sindicalismo e as articulações políticas no campo da psicologia ..... 100
2.4. A mobilização contra o “Pacote de Abril da Psicologia” ............................. 112
2.5. Rádice e sua família: a Imprensa Alternativa .............................................. 118
2.6. Anistia e Tortura: o que a Rádice tem a ver com isso? ................................. 122
CAPÍTULO 3
DOS ENCONTROS ....................................................................................................... 130
3.1. Transformações no universo “Psi” ................................................................ 131
9
3.2. Os últimos números da Rádice ...................................................................... 139
3.3. Rádice-movimento: promovendo encontros .................................................. 149
3.4. Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante... .............................................. 156
CONCLUSÃO ................................................................................................................ 166
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 168
Anexo 1 Capas das Rádice .......................................................................................... 176
INTRODUÇÃO
O objeto de investigação desta tese de doutorado é a revista Rádice, produzida por
psicólogos, estudantes de psicologia, artistas e jornalistas durante a segunda metade da década
de 1970, no Rio de Janeiro. O trabalho partiu da vontade de saber como a revista foi possível
e como foi, para o grupo de colaboradores, produzí-la. A iia que sustenta este trabalho é a
de que existem movimentos instituintes
1
no campo da psicologia, e que a Rádice é um deles.
Meu objetivo é apresentar a trajetória desta revista-acontecimento irradiadora de idéias,
pensamentos e discussões que marcaram determinado momento histórico da psicologia no Rio
de Janeiro e, porque não dizer, no Brasil.
Esta pesquisa é fruto de rios e significativos encontros que tenho feito desde a
graduação até os dias de hoje. É o trabalho de alguém que se incomoda com certo sentido
para a psicologia ou, pelo menos, desencontrar o sentido dominante que lhe é atribuído.
Atualmente, estou vinculada ao Clio-Psyché, Programa de Estudos e Pesquisas em História da
Psicologia, onde se encontram pesquisadores de graduação e de pós-graduação, orientados por
Dona Clio” e Dona Psyché”
2
, e preocupados com os “fazeres e dizeres” da psicologia no
Brasil. No encontro da psicologia com a história, esta tornou-se ferramenta de análise sobre a
constituição do “universo psino Brasil.
De acordo com Jacó-Vilela, Jabur e Rodrigues (1999), o I Encontro Clio-Psyché
Histórias da Psicologia no Brasil, realizado na UERJ em 1998, deu origem ao programa de
1
De acordo com a análise institucional, os movimentos instituintes são aqueles que irrompem num dado
momento da história e que retiram as coisas de seus lugares demarcados, que estava institucionalizado. Os
movimentos instituintes provocam o caos, desorganizam o que antes estava organizado. A esses movimentos,
segue o momento de institucionalização que captura alguns desses movimentos irruptivos, tornando-os uma nova
norma geral. Essa é a forma como os autores da alise institucional interpretam os movimentos que produzem
a história. O que foi instituído é interpelado pelo instituinte que, em alguns pontos, em alguns momentos, é
apreendido sob a forma de nova regra. O que me interessa dessa idéia é a potência característica dos
movimentos instituintes, eles continuam a vibrar, têm potência. Por isso a Rádice é instituinte.
2
Estas são as “identidades secretas” das professoras Ana Maria Jacó-Vilela e Heliana de Barros Conde
Rodrigues, mas não estamos autorizados a revelar quem é quem.
pesquisas, além de promover um intercâmbio entre professores e pesquisadores de outras
instituições.
O Clio como é carinhosamente chamado por todos também se preocupa em organizar
e produzir um sistema de informação, como a criação do acervo áudio-visual e tamm
bibliográfico. Centros, núcleos ou programas como esse têm surgido em outros estados
brasileiros, como em Minas Gerais e São Paulo, com o objetivo de não apenas organizar
material sobre história da psicologia no Brasil, mas produzir conhecimento, traduzido como
um vasto material escrito, visual e em áudio sobre essa temática.
Esse movimento, esse grande esforço, embora esbarre em dificuldades de toda ordem o
parco financiamento das agências de fomento que não privilegiam as pesquisas no campo das
Ciências Humanas; as dificuldades institucionais para conseguir material de trabalho como
computadores, livros e outras ferramentas, além do espaço físico que hoje tem sido pequeno
para a quantidade de alunos que desenvolvem inúmeras atividades na sala 10.120 do bloco F,
da UERJ (como grupos de estudo, orientações, relatórios, pesquisa, etc.) tem feito com que
os psilogos possam se encontrar com múltiplas histórias sobre a institucionalização desse
campo no Brasil e também com as tensões e questionamentos que emergiram desse processo.
O Clio é um espaço multidisciplinar onde a história e a psicologia se encontram, fazendo
com que ultrapassemos os limites estabelecidos institucionalmente por nossa formação
acadêmica. Das técnicas de formação, comprometidas com a reprodução dos especialistas e
seus especialismos, adquirimos o hábito do respeito aos limites do campo ao qual nos
sentimos pertencentes. Aos psilogos, a psicologia! A qualificação universitária
contemporânea nos encerra dentro de um campo disciplinar. Por um lado, ultrapassar os
limites pode significar, ao mesmo tempo, a renúncia a determinado “conhecimento e a
desqualificação, pois não se está autorizado à utilização de ferramentas “estranhas” ao campo
que lhe é próprio. Por outro lado, Ewald (1996) incita-nos a pular os muros e propõe que,
para conhecermos a psicologia, devemos nos encontrar com a sociologia, com a antropologia,
com a filosofia, com a arte e com a história. Diante desse impasse, deve-se correr o risco.
Foi na sala do Clio que ocorreu meu primeiro encontro com a revista Rádice. Procurando
na biblioteca do Núcleo textos relacionados à dissertação de mestrado que elaborava na
época, esbarrei com a revista e me apaixonei. Muito esforço foi feito para não abandonar o
tema original da dissertação que já se encontrava com a pesquisa realizada e me dedicar
exclusivamente à nova paixão.
Surpreendi-me com ela ao reconhecer ali um movimento diferente do que ouvia e lia
sobre a psicologia nos anos 70 do último século. Ao contrário dos Guardiões da ordem
3
,
encontrei psicólogos rompendo com uma forma de compreender a psicologia que era
hegemônica naquele período, criticando seu modelo positivo-científico e biológico,
ultrapassando seus limites, promovendo encontros de toda ordem, de coisas diferentes,
apresentando uma novidade, algo fresco e vigoroso. Interessei-me por tal força, pela
intensidade, pela criatividade, pela audácia, pelo riso, pela crítica, dizendo, sem ter medo, que
era possível fazer diferente e fazer diferença.
Para documentar a existência da Rádice, mesmo correndo o risco de parali-la no tempo,
congelando-a feito passado em uma tese de doutorado, orientei-me por dois “efeitos-Rádice”
4
:
o primeiro relaciona-se com as memórias construídas em torno da Revista. Quando falo dela,
percebo forte emoção nas pessoas e logo surgem memórias e histórias sobre a festa que
participou, o simsio no Parque Lage, os artigos que leu, a primeira vez que teve contato
com a Rádice. São interessantes as marcas que deixou em seus leitores e colaboradores, na
memória que cada um guardou daquela experiência, o confundindo com uma memória
pessoal”, já que os elementos sociais, culturais e políticos constituem essa memória,
tornando-a sempre memória coletiva.
São vários os “dizeres” sobre a Rádice. Algumas pessoas se referem a ela como uma
revista de “bioenergética”, outras, como de “psicologia”, ou de “terapias corporais”, ou
aquela do Reich”, ou, ainda, como “porra-louca, mas muito legal”. Uma grande comoção
misturada com lembranças de aventuras vividas que se atualizaram no momento dos
depoimentos para este trabalho.
Inicialmente me perguntava: como algo de que as pessoas se lembram de forma tão
carinhosa e emocionada foi abandonado ou esquecido, guardado, empoeirando nos armários
ou nos “baús de espantos”?
O outro efeitose direciona aos alunos de psicologia que, como eu, não conheciam a
Revista. Ela nos enche de vontade de fazer alguma coisa tão vigorosa, tão potente. Como
inventar novas práticas no campo da psicologia?
3
tulo do livro-referência de Cecília Maria Bouças Coimbra sobre a psicologia nos anos 70. Ver Coimbra,
1995.
4
A expressão “efeito-Rádice” foi apropriada de Heliana de B. C. Rodrigues que, ao se referir ao institucionalista
René Lourau, cunhou a expressão “efeito-Lourau”.
Compreendo a Revista como uma expressão de um campo político-cultural marcado
pelos movimentos de contestação e de resistência que eclodiram no ano de 1968. Pergunto
então: Como um campo do conhecimento a psicologia comprometido com a produção de
normatização social, de controle das condutas dos sujeitos, com a testagem dos indivíduos,
com a produção e afirmação de rótulos e estereótipos, foi parar no campo das resistências”,
das lutas contra o pensamento dominante, do enfrentamento da ordem? Ou terá sido a força
desses movimentos que invadiu os espaços bem constituídos e delimitados da vida, retirando
as coisas, a psicologia, de seus lugares e interrogando-as?
Rádice surgiu a partir da vontade do psicólogo Carlos Ralph
5
, ou Cê Ralph, como
assinava nos editoriais e matérias, e de um grande número de colaboradores. Este grupo,
além de muito grande, era também heterogêneo, expressando uma das marcas da revista sua
diversidade, pluralidade e polifonia.
Carlos Ralph formou-se em psicologia em 1975 pela UFRJ. Logo em seguida, iniciou o
curso de Mestrado em Comunicação Social na Fundação Getúlio Vargas. Ao mesmo tempo,
começou a lecionar na Universidade Gama Filho (UGF). Saiu da UGF para aquilo que
chamou um salto de pára-quedas”, sua aventura-Rádice. Segundo Ralph, todo o processo de
construção e realização da Revista o tomou: ele, um ex-militante da Ação Popular (AP)
6
, que
fora torturado pelos órgãos de repressão, estava construindo um veículo de comunicação para
poder se expressar. O país vivia sob o regime de exceção imposto por um golpe de Estado
articulado pelas Forças Armadas. Foram quatro anos e sete meses de intensa dedicação para
manter a revista viva e crescendo, o prazer de escrever e a descoberta da arte gráfica o que
fica muito claro nas páginas da Rádice.
5
Carlos Ralph Lemos Vianna, um dos “pais” da Rádice tem colaborado com minha tese, doando materiais e
concedendo várias entrevistas. Depois da Rádice, publicou o jornal Luta & Prazer, permanecendo neste apenas
nos primeiros números, desvinculando-se em 1984; em seguida publicou a revista Orgón que teve apenas um
único número. Em 1985, participou da “Caravana Voadora do Circo Voador, projeto cultural do Rio de
Janeiro, elaborado por Mário Portella e Márcio Galvão que percorreu o país, do Rio de Janeiro até o Maranhão,
documentando a diversidade cultural do Brasil. O nome de Carlos Ralph esligado às Terapias Corporais e à
difusão do pensamento de Willhem Reich e A. Lowen no Brasil. Atualmente, viaja pelo Brasil ministrando
cursos, wokshops, palestras e organizando diversos encontros nos quais são debatidas essas temáticas. Também
trabalhou fora do país acompanhando pacientes com câncer na Argentina. Ralph nunca abandonou seu lado
“comunicólogo”: hoje dirige o jornal Qualitá! órgão informativo do Espaço Saúde, localizado no Rio de Janeiro,
com circulação no Rio de Janeiro, Porto Alegre, Curitiba e Florianópolis.
6
A Ação Popular (AP) teve suas origens no grupo Juventude Universitária Católica (JUC), criado nos anos 50.
Porém, não podemos relacioná-la apenas a essa origem, pois foi se unindo a várias tendências de esquerda ao
longo de sua história, culminando em 1973 com a integração ao Partido Comunista do Brasil (PC do B). A
história da AP é representativa de outras histórias de grupos cristãos em toda a Arica Latina que passaram a
defender as idéias marxistas, principalmente o marxismo-leninismo. (RIDENTI e REIS FILHO, 2002).
A Revista foi palco de debates sobre temas variados, muitos deles até então não
compreendidos como relativos ao campo “psi” (psicologia, psicanálise e psiquiatria). Em
suas páginas lê-se sobre as relações de poder no campo da medicina, a psiquiatria preventiva,
a educação, a cientificidade da psicologia, o uso de drogas, o preconceito racial, sexo,
casamento, macumba, prisões e desaparecimentos de presos políticos no Brasil e na América
Latina, os efeitos da tortura, as transformações no campo da saúde mental no Brasil e em
outros países, a experiência da antipsiquiatria, além de entrevistas e matérias com inúmeros
autores conhecidos no cenário brasileiro como Nise da Silveira, Luiz Alfredo Garcia-Roza,
Gilberto Velho, Samuel Chaim Katz, Jurandir Freire Costa, Eduardo Mascarenhas, Hélio
Pellegrino, e, também, nomes internacionais Ronald Laing, Franco Basaglia, Félix Guattari,
Wilhelm Reich, Carl Rogers.
O período em que a revista Rádice foi produzida compreende o momento no qual os
movimentos sociais e populares materializavam a denúncia dos atos violentos da repressão,
reivindicando o fim da ditadura militar; a volta dos exilados (obtida com a Lei de Anistia); a
cobrança de respeito aos direitos humanos feita ao governo brasileiro pelos organismos
internacionais; as transformações no campo da saúde que serviriam de base para a
organização de movimentos singulares como o sanitarista e a luta antimanicomial, nos anos
80; as mudanças nas expressões culturais e nas formas de compreensão e organização da luta
política, confirmando novos modos de resistência.
A Revista teve 15 números, contando ainda com dois extras: a edição de comemoração de
4 anos e a edição Rádice Teoria/Crítica, uma publicação voltada para a divulgação de textos
considerados mais acadêmicos, que teve somente um exemplar.
A crítica, o bom-humor, o riso são marcas desta “Revista menina”
7
, que participava do
Comitê de Imprensa Alternativa. No Brasil, na segunda metade dos anos setenta, houve um
boom de publicações chamadas “nanicas”. Antes mesmo deste boom, ainda nos anos 60, dois
jornais tornaram-se emblemáticos desse tipo de imprensa: O Sol e O Pasquim, por
questionarem não as questões relativas à política brasileira, mas também o próprio modelo
de imprensa que havia. Essas publicações reuniam, além de jornalistas, escritores, poetas,
cartunistas, pessoas ligadas aos meios de produção cultural do país.
O esforço na construção (e manutenção) de uma revista como essa, em períodos tão
difíceis, é, por isso só, um ato de resistência. Ela de ser percebida como um instrumento,
7
Expressão utilizada por Ralph, para se referir à Revista, presente emrios editoriais.
uma ferramenta para o protesto, a ironia, a irreverência, a denúncia, o pensamento, a
provocação, o encontro, o riso.
Ao mesmo tempo que a revista apresentava características regionais, pois foi feita no Rio
de Janeiro, irradiou para outros lugares e espaços, não só porque teve uma distribuição
nacional através da organização dos grupos sucursais (mesmo precariamente), mas porque os
temas explorados faziam parte do debate da época de questionamento da psicologia.
Como dito, esta pesquisa objetiva contar a trajetória da revista, mapeando movimentos
nos quais se engajou, rompendo com o que se encontrava consolidado, constituindo futuros
possíveis.
A organização dos dados, a escritura, a narrativa (o documento escrito), a delimitação do
objeto de pesquisa (os fatos, os conceitos, as práticas a serem investigadas), o estabelecimento
das fontes (os dados oficiais, os monumentos, as práticas sociais, as memórias), antes tão bem
delimitados na forma tradicional de se pensar a pesquisa histórica, chamada ora de
continuísta, ora de dialética, atualmente podem se definir a partir do que até há pouco tempo
o era considerado acontecimento histórico: os modos de sentir e ver o mundo, o medo, o
amor, a consciência, e outros tantos (CERTEAU, 2002).
No campo da historiografia, vários movimentos surgiram no final dos anos vinte do
último século, contestando a história dita positivista, na qual o documento oficial era a fonte
que expressava a verdade dos fatos, organizados em uma linha temporal sucessiva de
acontecimentos, descritos pelo historiador neutro que olhava para o passado distante.
Desde então, a história tem se diferenciado daquilo que reconhecemos como sendo o
trabalho clássico do historiador: o pesquisador envolvido por poeira, mergulhado nos arquivos
das grandes bibliotecas, procurando documentos como atas, leis, livros de registro etc.
A partir do final dos anos 20 do século XX, essa tradição historiográfica sofreu abalos em
suas estruturas quando, em torno de uma revista Annales-histoire, sciences sociales ,
organizaram-se historiadores que propunham novos objetos para a pesquisa hisrica,
implicando novas técnicas e métodos que dariam a esse campo um caráter diferente: o da
interdisciplinaridade. A nova história passou, então, a dialogar com outros saberes como a
sociologia, a antropologia, a psicologia e a psicanálise.
As transformações técnicas e tecnológicas que ocorreram no século XX contribuíram de
forma definitiva para essa nova forma de investigação, através do surgimento do cinema, da
televisão, do deo, da informática, da reprografia. Segundo Voldman (2002), novas
possibilidades documentais apareceram e os pesquisadores desse período passaram a
reconhecer e construir novas fontes.
A autora assinala a discussão sobre o testemunho que os antigos historiadores utilizavam
e que a história positivista, com o seu rigor e desconfiança sobre o presente, recusou, pois as
palavras dos sujeitos o eram confiáveis. Somente no século XX, reavivou-se o interesse
pela testemunha ocular e objetivou-se que sua mensagem fosse acessível a todos. A invenção
do gravador permitiu que fosse possível o registro de tais depoimentos, garantindo, assim, a
provacientífica. A palavra gravada tornou-se o documento sonoro, uma nova fonte para a
pesquisa histórica. Segundo ainda Voldman (2002), existem dois modos de tratar o
documento:
um que confere maior importância à precio factual e à informação, e outro
mais preocupado com o que revelam os interstícios do discurso. Os
primeiros se atêm essencialmente à elaboração de um documento legível
para suas pesquisas; eles privilegiam os modos de proceder. Os outros dão
também atenção ao depoente, sensíveis à dimensão da presença dos corpos e
aos “modos de dizer (p. 35).
A historiadora francesa faz ainda outra distinção, entre arquivo oral e fonte oral. O
primeiro seria um documento sonoro, o registro da palavra através do gravador, realizado por
um pesquisador, sobre um assunto específico e cuja guarda está a cargo de uma instituição
que irá preservar o conteúdo do documento para os pesquisadores do futuro. a fonte oral é
o material extrdo através das entrevistas por um pesquisador, para as necessidades de sua
pesquisa, confirmando ou não hipóteses e orientando-se a partir daquilo que lhe pareça
necessário obter. Por exemplo, os depoimentos colhidos para esta tese foram fontes orais e
o um arquivo oral.
Para Amado e Ferreira (2002), entre as novas metodologias que surgem, a história oral
emerge trazendo temas antes inusitados: as relações entre a história e a memória, novos
conceitos, organização de novos arquivos (orais), o uso de entrevistas o depoimento ,
novas formas de narrar (biografias, autobiografias, história de vida), o tempo presente como
campo de investigação. As autoras destacam também a diversidade e a polifonia como
características do campo da história oral.
Porém, este termo “história oralé considerado ambíguo entre os historiadores. Amado e
Ferreira (2002) apresentam as três principais posturas existentes: a história oral como uma
técnica, como uma disciplina e como uma metodologia. À história oral, vista como uma
técnica, interessa as experiências com o gravador, transcrições e conservação do material e
tudo o que envolve tal procedimento: aparelhagem moderna, forma de transcrição, modelos
de arquivos. Os defensores desta postura estão envolvidos na constituição e conservação de
acervos orais.
A história oral vista como disciplina pretende unir os procedimentos técnicos com as
explicações e conceituações teóricas, como forma de garantir unicidade ao novo campo do
conhecimento. Requer o status de disciplina autônoma para a história oral. Citando o
historiador Ian Mikka (1988), as autoras enunciam seus postulados: o testemunho oral é o
núcleo da investigação, o que obriga o historiador a fazer uma reflexão sobre as relações entre
a história e a memória, escrita e oralidade; o uso desse tipo de testemunho possibilita o
esclarecimento de trajetórias individuais e eventos que não têm como serem elucidados de
outra forma e a geração de documentos, as entrevistas, o que leva o historiador a debater a
relação sujeito/objeto; a hisria do tempo presente é a perspectiva temporal por excelência da
história oral; o objeto de estudo do historiador é recriado através da memória dos
entrevistados; a forma de construção e organização do discurso é a narrativa e, por fim, a
história oral guarda uma pluralidade de técnicas, pois é praticada também fora dos meios
acadêmicos e por pesquisadores de outros campos do conhecimento.
A terceira postura, apresentada pelas historiadoras, defende a história oral como
metodologia, ou seja, o que estabelece e ordena procedimentos de pesquisa. Segundo as
autoras, a história oral suscita questionamentos, formula perguntas e, para Amado e Ferreira
(2002), as respostas devem ser buscadas onde sempre estiveram, na teoria da hisria, que se
dedica a pensar os conceitos de história e memória, bem como as complexas relações entre
eles.
Das três posturas apresentadas pelas historiadoras, me agenciei com a segunda e a
terceira: para realizar este trabalho foi imprescindível colher depoimentos para saber sobre as
condições de produção da revista; ao ouvir os depoentes, pude perceber que os relatos sobre a
revista confundiam-se com a vida de cada um; a cada encontro uma “nova” Rádice surgia
através dos afetos e da forma como cada um foi marcado por aquela experiência. Os
questionamentos suscitados através desses encontros me fizeram querer saber sobre a relação
tempo-memória-subjetividade: o tempo, sempre o do presente; a memória vista como marcas
impressas no corpo a partir das experiências vividas; a subjetividade entendida como o modo
singular de ver, pensar e perceber o mundo, efeito das experiências e dos encontros ao longo
da vida.
Ao se debruçar sobre o presente, um desafio se fez para a história. Segundo Chauveau e
Tétart (1999), as primeiras gerações dos historiadores dos Annales preocuparam-se com as
estruturas duráveis, os longos períodos. Suas inovações metodológicas não modificaram,
necessariamente, as relações da história com o seu fundamento: o tempo. Assim, pensar o
tempo presente implica a ultrapassagem do campo disciplinar historiográfico, tendo, que se
confrontar consigo e dialogar com outros campos do conhecimento como a sociologia, a
antropologia, a psicologia, o jornalismo.
o retorno do tema da memória ao campo da história foi marcado pelo editorial escrito
por François Bédarida (2002), intitulado “A nova oficina de Clio”, publicado no primeiro
Boletim do Instituto de História do Tempo Presente (IHTP), na segunda metade dos anos 70
do século XX. O autor destaca três linhas de reflexão sobre o tema da memória que giram em
torno dos binômios: história e verdade, história e totalidade, hisria e ética.
O primeiro bimio é marcado pela afirmação do autor de que a verdade é a regra de
ouro do historiador, e que a verdade da história tem sua origem nos complexos elementos do
passado que chegam até nós através de documentos, vestígios do tempo. A tarefa do
historiador é conferir/interpretar esses documentos.
Nesse ponto o autor se depara com a questão da objetividade, imposta pela história
positivista e as críticas endereçadas tanto pelos historiadores dos Annales, que lançavam seus
questionamentos na direção do fetiche dos fatos e à ênfase ao papel que o historiador exerce
ao construir a história quanto pela fenomenologia ao objetivismo, apontando a
impossibilidade de separar sujeito e objeto, pois a realidade depende da consciência que a
apreende. Mesmo considerada como um ideal, para Bédarida (2002) a verdade deve ser o
objetivo do historiador que deve distinguir veis de verdade com maior ou menor grau de
aproximação e diferentes estágios de certezas.
Ao contrário do historiador, não a preocupação, neste trabalho, com a definição de
uma história verdadeira sobre a Rádice, muito menos construir sua “história oficial”. Esta é
uma história possível, entre outras tantas que se seguirão. Aqui, de braços dados com Michel
Foucault, afirmo a transitoriedade de qualquer verdade e que seu estabelecimento depende do
momento histórico no qual é produzida.
Retomando Bédarida (2002), a fim de compreender esses novos movimentos no campo
da história, apresentamos o segundo binômio: hisria e totalidade. Esse laa luz sobre as
transformações no campo historiográfico, constituindo novos campos, multiplicando as
fontes, diversificando abordagens e assumindo novos problemas. O autor chama a atenção
para a complexidade do estudo do tempo presente, que deve se concentrar em problemáticas
globais, que gerem esquemas explicativos para a produção de sentido sobre o mundo
contemporâneo: o importante é estudar os problemas e o os períodos. Por isso, a Rádice
tem uma tripla função: é objeto, é fonte e também o problema desta tese: como foi possível?
Quais foram as condições de sua emergência? Que efeitos produziu no mundo?
O último binômio diz respeito ao posicionamento do historiador. Como realizar um
estudo do presente sem se transformar em um tribunal? Manter um posicionamento crítico
em relação ao objeto de pesquisa não quer dizer neutralidade. Segundo Bédarida (2002), o
historiador deve se colocar o problema da responsabilidade e da sua função social. Desafio
posto para nós psicólogos também, pois a reflexão ética deve ultrapassar os digos
deontológicos que normatizam nossas ações. Um posicionamento ético necessariamente
implica na reflexão cotidiana, não tem norma ou manual decidindo por nós. Bédarida afirma
que a história do tempo presente é uma história inacabada, em constante movimento, a
história não tem fim, pois é fruto da experiência humana.
Para Roger Chartier (2002) a história do tempo presente “não é uma busca desesperada
de almas mortas, mas um encontro com seres de carne e osso”. Para esse autor, as relações
entre a escrita histórica e a escrita ficcional são pertencentes à categoria das narrativas. Toda
história consti suas próprias entidades, suas temporalidades, suas causalidades como toda
narrativa de ficção. Ricouer (s/d), por sua vez, cotejou que narrativa e tempo estão ligados,
definindo temporalidade como forma da existência e narrativa como estrutura da linguagem,
estabelecendo uma relação recíproca entre estas duas funções. A história, para esse autor, é
sempre narrativa, seqüência das ações humanas que se tornam reais, quer dizer, a ação do
homem produz sua própria realidade, ou seja, sua história. Para ele, a criatividade narrativa e
as práticas constituem o campo da história.
Os historiadores Chauveau e Tétart (1999) apontam, ainda, outros dois fatores que se
tornaram relevantes para o debate sobre história do presente: a questão da geração e a
demanda social. Sobre o primeiro fator, assinalam o impacto dos acontecimentos sobre os
sujeitos, a partir do século XX. A experiência dos “sujeitos históricos”, agentes das
transformações que ocorreram em todo o século, nos leva a pensar sobre a função do
“historiador-narradordos acontecimentos, o historiador como testemunha do seu tempo. O
segundo fator deve-se à divulgação nos meios extra-universitários das obras historiográficas,
o crescimento da produção editorial promovida pelos novos meios de comunicação e a
ampliação do acesso às obras (as coleções de bolso, a distribuição e venda em bancas de
jornal, os preços mais acessíveis, a linguagem mais simplificada, o formato de revistas).
Em um pequeno artigo sobre a verdade e a memória na história, Gagnebin (1998)
pergunta o porquê de falarmos em memória e o porquê da tarefa dos historiadores. Com essas
questões, a autora afirma que a relação entre o passado e o presente é também histórica.
Apoiando-se no pensamento de Walter Benjamim, Gagnebin (1998) recusa o ideal de ciência
histórica e seu fim último de estabelecer a verdade dos fatos, objetivando os acontecimentos.
Não possibilidade de conhecer o passado tal como ele foi, afirma Benjamim (1987).
Para este autor, os fatos adquirem tal estatuto a partir de um determinado discurso que os
constituiu assim, tornando-os reais. Também não há como descrever o passado como um
objeto sico, pois não podemos pegá-lo, não é uma coisa com massa, volume, profundidade.
Mas através do que o passado se manifesta? Podemos arriscar num primeiro momento uma
resposta: nos documentos, nas pistas, rastros, marcas, na memória. Em primeiro lugar é
preciso um trabalho arqueológico para identificá-lo. Mas não podemos pensar que iremos
encontrá-lo precisamente. O que encontramos são cacos, restos de antigas construções,
objetos pessoais, pedaços de roupas, de tecidos, pequenas lembranças embaraçadas,
distorcidas, marcas nos corpos (o tempo fica impresso no corpo) fragmentos, rastros. o
encontramos “O Passado”, já que o é uma substância.
Notamos primeiro que o rastro, na tradição filofica e psicológica,
foi sempre uma destas noções preciosas e complexas (...) que
procuram manter juntas a presença do ausente e a ausência da
presença. (...) O rastro inscreve a lembrança de uma presença que não
existe mais e que sempre corre o risco de se apagar definitivamente.
(...) Por que a reflexão sobre a memória utiliza tão freqüentemente a
imagem o conceito de rastro? Por que a memória vive essa tensão
entre a presença e a ausência, presença do presente que se lembra do
passado desaparecido, mas também presença do passado desaparecido
que faz sua irrupção em um presente evanescente. Riqueza da
memória, certamente, mas também fragilidade da memória e do rastro.
(GAGNEBIN, 1998, p. 218)
Segundo Gagnebin, é percebendo a fragilidade dos conceitos de rastro e memória que se
torna necessário lutar contra o esquecimento. Mas precisamos ficar atentos às estratégias
formadas para apagar rastros: por exemplo, os nazistas, nos últimos dias de guerra,
queimaram documentos, destruíram maras de gás e campos de concentração. Contudo, não
puderam apagar os pesadelos dos que sobreviveram às crueldades as quais foram submetidos
nestes campos.
Assim como não se conseguiu apagar a memória daqueles que foram torturados durante
os períodos de ditadura militar, que dominaram por longo tempo os países da América Latina.
A luta das Mães da Praça de Maio é um exemplo de resistência e luta contra o esquecimento:
exigir que se encontrem os restos mortais de seus filhos é fazer com que o Estado reconheça
seus crimes; por outro lado, o modo como resistem é ensinando os jovens argentinos a pensar,
através de iniciativas como a Universidade do Povo. A luta das “madres” não é nem
ressentida, nem lamuriante, mas representa um posicionamento de enfrentamento no presente.
Lutar contra o esquecimento é tarefa potica, capaz de tirar do lugar a memória que se tornou
oficial sobre estes fatos.
O esquecimento dos mortos e a denegação do assassínio permitem
assim o assassinato tranqüilo, hoje, de outros seres humanos cuja
lembraa deveria igualmente se apagar. (GAGNEBIN, 1998, p. 221,
grifo da autora)
E ainda,
o historiador atual (...) precisa transmitir o inenarrável, manter viva a
memória dos sem-nomes, ser fiel aos mortos que não puderam ser
enterrados. Tarefa altamente política: lutar contra o esquecimento e a
denegação é também lutar contra a repetição do horror. Tarefa
igualmente ética (...): as palavras do historiador ajudam a enterrar os
mortos do passado e a cavar um mulo para aquele que dele foram
privados. Trabalho com o luto que deve ajudar, nós, os vivos, a nos
lembrarmos dos mortos para melhor viver hoje. (GAGNEBIN, 1998,
p. 221)
A produção da memória oficial dos acontecimentos acaba por silenciar outras narrativas,
ou pelo menos, desqualificá-las como “lembranças pessoais”, porque são confusas, não
corresponderiam à “verdade dos fatos”. De acordo com Pollak (1989), as “lembranças
pessoais” são transmitidas oralmente dentro de certas redes de sociabilidade, como a familiar,
por exemplo. São memórias subterrâneas que nem sempre reproduzem a “memória oficial”,
tornando-se proibidas ou vergonhosas. Como exemplo, o autor cita a memória dos judeus
que, num primeiro momento, acreditavam que podiam negociar com os nazistas a título de
sobrevincia nos guetos. Existem nessas lembranças zonas de sombras ou de silêncio, pois
o encontram uma escuta para elas. A fronteira entre o dizível e o indizível, ou seja, entre
uma memória coletiva subterrânea ou de grupos específicos e uma memória coletiva
organizada, resume a imagem que uma sociedade ou Estado deseja passar ou impor.
A história oral, ao se debruçar sobre novos temas e métodos na pesquisa historiográfica,
ao se preocupar com a memória a memória dos “vencidos” , diferente da memória oficial,
introduz a dimensão da subjetividade na narrativa histórica. Essa subjetividade não se refere a
um “interior”, não está presa dentro do corpo. Refere-se aos modos como nos constituímos a
partir das conexões que estabelecemos com as coisas do mundo. Félix Guattari e Gille
Deleuze definem a subjetividade, ou melhor, as subjetividades, como algo que é produzido,
criado, inventado, não possuindo uma natureza objetivamente localizável. Por isso, a
memória e as subjetividades não podem ser pensadas a partir dos modelos que inserem uma
na outra. A memória não escontida nas coisas, ela é efeito, marca impressa no corpo que
vibra com os encontros, conexões, ou agenciamentos que promove.
A memória não está fixada a um fato. Quando um grupo de amigos se reúne, por
exemplo, para contar sobre os “velhos tempos”, as lembranças suscitadas estão impregnadas
da experiência de cada um com as coisas que ocorreram, ou seja, efeitos daquilo que foi
experimentado, como foi experimentado. São efeitos de como as coisas nos afetam e como
nos misturamos com elas. A memória e os modos de ser, ver e pensar o mundo o uma
invenção.
A história (ou as histórias) sobre a Rádice que é (serão) apresentada(s), aqui, também foi
(foram) inventadas. Parte(m) de uma interrogação contemporânea, no presente, que implica o
questionamento sobre a psicologia e a formação, o envolvimento com instituições
representativas da profissão, a constituição de novas práticas. Essas questões ganham
destaque na medida em que, hoje, pensamos a psicologia como prática social, possível no
campo das resistências, buscando formas de escapar aos modelos há muito naturalizados. A
psicologia deve ser um instrumento de interpelação e análise das relações sociais e históricas
e nossas implicações com o mundo. Ao abrir a Rádice, o que nos fez apaixonar foi perceber
nela tal afirmação, da psicologia como resistência: a Revista torna-se, assim, instrumento de
atualização das questões do presente.
Ao delimitar a revista como objeto, iniciei um movimento de “ras-la” em pedaços para
compreendê-la: sua organização, os temas abordados, o lugar das pessoas que se envolveram
com ela. Elaborei mapas com resumos do conteúdo de cada número. Isso me ajudou a
conhecer seus temas, saber seu conteúdo e a locali-lo quando necessário especialmente
durante as entrevistas. Também fiz uma extensa lista com todos os nomes que aparecem nos
expedientes de todos os números, qualificando-os, ou seja, dizendo onde aparecem, em quais
números, a “função” e suas mudanças, se fizeram matérias, resenhas, notas, etc.
Também estabeleci modos diferentes de lê-la: primeiro, fazia uma leitura geral, sem parar
e sem me preocupar com anotões. O objetivo era criar uma iia geral sobre cada número.
Em seguida, preocupada com os registros, pois aí a Revista torna-se fonte, concentrava-me
na leitura dos editoriais e da seção “Geralmente”, desta vez com dois objetivos: primeiro,
nesses dois espaços da revista encontram-se dados referentes ao momento hisrico,
relacionando Rádice com o tempo; segundo, para relacionar uma revista com a outra,
constituindo mapas comparativos, para saber as especificidades estruturais de cada
publicação.
Não existe documento oficial sobre a Rádice, a não ser o seu registro no DCDP/DPF
(Divisão Cultural de Diversão Pública/Departamento de Polícia Federal) e a Revista
materialmente. Isso fez com que tivesse que escolher ferramentas auxiliares na construção do
trabalho. Por isso, a necessidade dos depoimentos daqueles que fizeram a revista e, também,
dos que se encontravam ali no mesmo campo das resistências.
Outra estratégia metodológica foi a realização de entrevistas, ou depoimentos como
prefiro chamá-las atualmente. Entrevista parece algo oficial, que tem um roteiro prévio
estabelecido para orientar a análise, por comparação, das respostas dadas e a formalização
como documentos. Depoimento me soa menos tenso, menos rigoroso, no sentido do respeito
a formas instituídas de se realizar uma pesquisa. Não estabeleci roteiro, pedia somente que o
depoente me contasse sobre sua formão, sua trajetória e seu encontro com a Rádice era o
que bastava. Esses depoimentos não foram analisados ou interpretados formalmente, foram
instrumentos que me faziam vibrar.
Para os depoimentos levava, além do gravador, as Revistas, ação que chamei de
“instrumento para suscitar memórias”. Quando o depoente havia colaborado com a Revista,
tinha o cuidado de levantar tudo que havia feito, conforme estivesse registrado no corpo da
revista e nos expedientes (nem sempre os colaboradores estão referenciados nos expedientes).
A escolha dos depoentes ocorreu sob critérios diversos: ao esmiuçar a revista, localizei
pessoas que se destacavam pela quantidade de trabalho, observada pelo número de notas e
matérias. Nem todos foram localizados; aos que conseguia encontrar, pedia indicação de
nomes para novos depoimentos. Para mapear os possíveis depoentes entre os que leram a
revista e participaram dos simpósios e festas, contei com a colaboração de antigos professores
e amigos.
Os depoimentos também foram importantes para conhecer as condições nas quais ocorria
a produção da revista, sua manutenção, seus objetivos, dificuldades e impasses, encontros e
desencontros, alianças e rupturas, escolha das pautas, das matérias, das imagens que aparecem
em suas páginas. Todo este movimento, possibilitou que a escritura da tese percorresse três
capítulos.
No primeiro capítulo, denominado emergência, objetivei indicar as condições históricas
que possibilitaram o surgimento da Revista, dividindo-as em dois momentos: primeiro, o
período final da ditadura militar com a emergência dos movimentos sociais e a exigência da
anistia; as transformações nas universidades brasileiras e a vida que borbulhava no campus.
Segundo, descrevo meu objeto, os seus primeiros passos representados pelos quatro primeiros
números publicados: o início da organização do grupo, como se encontraram, como
produziram a revista, as dificuldades, desafios e atropelos para conseguirem colocá-la no
mundo. Os dados referentes às condições de produção da Revista estarão presentes em todos
os capítulos, pois são efeito das mudanças que ocorreram no grupo, na captação dos recursos,
etc. Para encerrar, os primeiros incômodos” publicados em suas páginas: denúncias das
violências institucionais, como as que ocorriam nos hospitais psiquiátricos e as formas de luta
e resistência nesse campo, representadas pela Drª. Nise da Silveira e a história do boiadeiro
messias Aparecido Galdino.
Com as questões relacionadas aos “alternativos”, apresento o capítulo dois,
problematizando essa idéia de “alternativo” e afirmando as expressões singulares de modos de
ver o mundo e de transformá-lo. Essa é uma fase mais propositiva da Rádice. É o momento
de encontrar caminhos para a construção de novas formas de resistência e luta potica. Como
expressão desses modos resistentes, destaquei: as idéias de Wilhelm Reich, devido à grande
importância que este autor teve nessa fase da Revista, permanecendo até o seu final; a
imprensa alternativa e seu papel de difusora do pensamento da esquerda brasileira naquele
período; o peodo da anistia e as denúncias de tortura que comavam a despontar nas
páginas da imprensa alternativa e, claro, na Rádice, um dos primeiros veículos que publicou
um número exclusivo sobre o tema. Relato também duas experiências que considero
singulares no campo da psicologia e das quais a Rádice participou: a mobilização contra as
propostas de currículo para os cursos de formação em psicologia e a constituição do Sindicato
dos Psilogos no Rio de Janeiro.
Nesse capítulo serão analisados os números 5, 6, 7, 8, 9, e 10. É o momento em que
Rádice se afirma como revista de psicologia”, marcado por sua ampliação de várias formas:
em cada publicação, um tema específico é tratado
8
; além de mudanças estruturais muda o
papel utilizado e a arte gráfica; o grupo torna-se mais organizado, definindo funções para
todos; aumenta o número de páginas, o número de colaboradores; e a Revista passa a ser
vendida em bancas de jornais, ampliando a circulação e ganhando maior visibilidade.
Consideramos esse momento como o de afirmação potica da Revista: estava mais engajada
nas críticas ao governo ditatorial no Brasil e na América Latina, assim como também
reproduzia severas críticas à formação universitária psi e à própria prática profissional.
No último capítulo, falo dos encontros que ocorreram ao longo da trajetória da revista
os simsios alternativas no espaço psi, os ciclos Reich, as batalhas psicanalíticas, o encontro
com o IBRAPSI (Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições) e de sua
metamorfose no jornal Luta & Prazer. Os números 11, 12, 13, 14 e 15 e alguns números do
jornal Luta & Prazer serão as fontes para este capítulo.
8
Número 5: Macumba; número 6: Tortura; número 7: Hospitais psiquiátricos brasileiros; número 8: Sexo;
número 9 e 10, as transformações no campo da assistência psiquiátrica na Itália, primeira matéria internacional
da Rádice, as transformações no campo da assistência psiquiátrica na Itália.
CAPÍTULO 1
EMERGÊNCIA
Vocês que vão emergir das ondas em que agora nos
afogamos, pensem quando lembrarem de nossas
fraquezas dos tempos sem sol de que tiveram a sorte
de escapar.
(Bertold Brecht, em Rádice, nº 5)
Apresento neste capítulo alguns encontros que possibilitaram a emergência da Revista
Rádice Revista de Psicologia. Tais encontros ocorreram nos gramados da universidade, nas
lutas políticas contrárias à ditadura militar, nas ações dos movimentos sociais que se
fortaleciam, todos implicados com a possibilidade de transformar a realidade. Parto da iia
de que essa Revista é uma expressão do campo potico-cultural dos anos 70, período marcado
pelas experiências irruptivas do ano de 1968.
A Rádice foi um instrumento de crítica aos modelos de psicologia, comprometidos com a
produção da normatização social, de controle das condutas dos sujeitos, com a testagem,
medidas e esquadrinhamento dos indivíduos, com a produção e afirmação de rótulos e
estereótipos, que se tornaram hegemônicos naquele momento. Os questionamentos a tais
modelos promoveram uma problematização da própria psicologia, aproximando o universo
psi” das críticas que aconteciam em outros campos do conhecimento, como a filosofia, a
história e também com a política, a cultura, a arte. Ao problematizar a ciência, a formação e a
prática psi”, a revista se inseria no “campo das resistências”, das lutas contra o pensamento
dominante, enfrentando a ordem instituída.
Sem pedir autorização e colocando em análise aquilo que se colocava como verdadeiro”,
científico” ou como “a solução para os males sociais, a Rádice inventou para si um espaço
de luta diversificado, não-unitário, misturado com bandeiras, desejos, risos, utopias,
militância, crítica, arte, vontade de mudar tudo.
Não circulava nas páginas da Rádice o conhecimento erudito ou acadêmico em forma de
textos técnicos, como acontecia nas demais publicações das instituições de formação ou
associações dos diferentes campos da psicologia, que apresentavam não debatiam temas
como cognição, seleção e orientação profissional, psicometria, educação (e seus temas
clássicos: crianças consideradas “excepcionais”, os superdotados, os alunos-problema etc.),
todos de controle do processo de aprendizagem, produção de diagnósticos, os testes
psicológicos etc. Nem tão pouco se interessava pela divulgação da psicologia nos termos que
outras publicações, também vendidas em bancas de jornal, promoviam, como destacado nesse
trecho de um editorial: “as páginas de Ego possibilitam a compreensão dos diversos
problemas que dificultam o perfeito relacionamento humano” (Revista Ego Guia do
Comportamento Humano, 1975, p. 1).
Aberta para as possibilidades, a revista não tinha um projeto inicial que orientasse sua
produção. Nasceu do desejo de colocar alguma coisa em movimento, da luta contra o
presente. Como não havia um caminho pré-determinado, foi feita no dia-a-dia, na batalha,
letrinha por letrinha, efeito das experiências e inexperiências daqueles que colaboraram
com idéias e trabalho.
Começo essa narrativa conectando alguns fios do emaranhado da história para dar conta
do objetivo deste primeiro capítulo que é mapear as forças constitutivas do acontecimento-
Rádice. Neste capítulo, destaco as transformações que ocorreram no ano de 1968 em alguns
países e no Brasil; apresento, também, as principais características do peodo de
autoritarismo que o país viveu. Os movimentos de enfrentamento e de resistência à ditadura
estão presentes ao longo da tese, pois estão relacionados com a trajetória da Revista. Neste
primeiro momento, detenho-me sobre as transformações nas universidades brasileiras
impostas pela reforma universitária de 1968 e sobre as primeiras denúncias de violência e
maus tratos aos que encontravam-se internados nos hospitais psiquiátricos, que partiam dos
profissionais de saúde mental e que fizeram eclodir a luta antimanicomial no Brasil. Esses
movimentos imprimiram suas marcas na Revista: o enfrentamento e a denúncia.
1.1. Do campo de batalhas
O ano de 1968 foi emblemático e ficou assinalado como um momento especial, de
modificações radicais na história do século XX. O historiador Reis Filho (1988), ao analisar
os acontecimentos daquele ano no Brasil, apresenta, ao final do livro 1968, a paixão de uma
utopia, outra forma de interpretação que foge aos padrões dos textos acadêmicos e científicos
Houve uma grande conjunção de Plutão com Urano no signo de
Virgem. Até 1968, os dois planetas transitavam neste signo, mas em
graus distantes, e foram se aproximando, até que em janeiro de 1968
eles estavam a uma distância de seis graus. Formaram então uma
conjunção, que é um aspecto planetário que se forma quando dois ou
mais planetas estão muito próximos. É um aspecto de soma de
energias, como se fosse a força de uma ignição. [...] Houve então a
combinação de duas forças simbólicas revolucionárias. Plutão com a
vontade de transformar, romper, depurar, limpar o sistema vigente, de
maneira radical, profunda, explosiva, e Urano, com seu movimento
inovador, libertador, imediatista, revolucionário. (MENEZES apud
REIS Filho, 1988, p. 196)
As interpretações astrológicas para os acontecimentos que ocorreram em 1968 baseavam-
se na observação da posição dos planetas e suas conjunções; já a história olha para os
acontecimentos como produzidos pelos homens. Na história, não há transcendência, há forças
múltiplas e intensas, que produzem acontecimentos em diferentes direções e sentidos,
constituindo realidades distintas. Como não podemos prever essas direções, não como
predizer o futuro. O futuro está no desvio, na mudança de sentido, na emergência das coisas.
Como já assinalado, o ponto de partida deste trabalho são as revoluções e transformações
do ano de 1968. Transformações que ocorreram em países pobres e ricos, dentro dos sistemas
ditos democráticos e das ditaduras, disparadas por questionamentos de toda ordem. Não
houve em 1968 uma comunhão de valores e opiniões, pelo contrário, houve questionamentos
dirigidos aos problemas específicos de cada coletividade. O surpreendente foi a dimensão
mundial desses questionamentos, presentes nas ações dos grupos mais oprimidos e
desqualificados socialmente, com participação significativa dos mais jovens.
Surgiu uma nova visão, uma nova abordagem dos problemas
militantes [...]. Bruscamente estudantes, jovens trabalhadores
„esqueceram‟ o respeito ao saber, o poder dos professores, dos
contramestres, dos responsáveis etc. Eles romperam com uma certa
forma de submissão aos valores do passado e abriram uma nova via.
(GUATTARI, 1987, p. 24)
Para os jovens de então, era urgente modificar a realidade através da ação violenta,
imediata, tomar os controles nas mãos, realizar a potica como haviam aprendido nos textos
marxistas. De acordo com Araújo (2000), criticavam os chamados “teóricos revisionistas” do
marxismo, acadêmicos e intelectuais de esquerda vistos como contemplativos demais do
cenário social. Havia uma paixão pela ação, um sentido de urgência lançava fogo sobre tudo
que era relacionado à tradição e ao conservadorismo. Era preciso agir, misturar-se, agitar.
Vários grupos de jovens espalharam-se pela Europa, E.U.A., Japão e América Latina nos
anos 60
9
. Os estudantes norte-americanos questionavam a hierarquia universitária e todo o
sistema social e econômico, recusando-se a ingressar nas empresas a que, naturalmente, seus
estudos especializados se destinavam. As reivindicações desses estudantes estavam ainda
vinculadas a duas questões que eram obscuras para a sociedade naquele momento: os negros e
o Vietnã. A hostilidade à potica tradicional fez com que esses jovens encontrassem nas
experiências de Cuba e da China sua inspiração de luta.
O movimento hippie, o rock mais pesado e distorcido a guitarra de Jimi Hendrix e a voz
rouca de Janis Joplin, por exemplo que aquele outro da década de 1950, agora visto como
“bem comportado”, o expressões desse momento que questionavam o modo de vida norte-
americano, o american way of life, um estilo de vida fundado na tecnocracia e no consumo. A
busca de novas experiências na vida coletiva, no orientalismo e no uso de drogas alucinógenas
misturavam-se com um espírito de contestação.
No Leste Europeu, o totalitarismo burocrático começava a gerar forças contrárias. Os
jovens dirigiam críticas ao modelo potico implantado na antiga Alemanha Oriental, na antiga
União Soviética, na Polônia, na Tchecoslováquia com sua primavera e em outros países da
cortina de ferro”. Unidos aos operários, afirmavam que a burocratização do Estado era
nociva à revolão.
Os jovens ingleses encontraram sua primeira expressão no movimento antinuclear,
tornando pública a descoberta de abrigos nucleares ultra-secretos reservados aos membros do
governo. O arcaísmo da vida cotidiana inglesa, com suas tradições arraigadas, também foi
alvo das críticas desses jovens.
No Japão, ocorreu a união entre os estudantes e os operários, o que foi uma realização
importante, com a criação da Zengakuren (Organização dos Estudantes Revolucionários) e
sua união com a Liga dos Jovens Trabalhadores Marxistas sob orientação comum da Liga
9
As informações sobre os grupos de jovens foram retiradas do livro Situacionista: teoria e prática da revolução
Internacional Situacionista. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2002. Coleção Baderna.
Comunista Revolucionária. Os alvos principais eram o capitalismo do ocidente e a burocracia
dos países ditos socialistas.
Os estudantes franceses reivindicavam a demolição completa da sociedade capitalista. O
socialismo real era possível, era preciso superar o capitalismo para se chegar ao socialismo,
atingindo, assim, o objetivo de materialização de uma sociedade sem classes, sem exploração
a sociedade comunista (SADER, 1995, p. 27). Para isso, era necessária uma ação violenta e
radical e não apenas a substituição no poder da burguesia pela classe operária. Segundo as
leituras marxistas vigentes, isso implicava a destruição dos aparelhos de Estado, de suas
formas de funcionamento, a destituição de seus agentes. O “Projeto Revolucionário”
implicava a dominação consciente da história pelos homens que a constroem.
Como assinala Guattari (1987), os acontecimentos de Maio de 68, na França, provocaram
pequenas fraturas nos modelos militantes tradicionais e seus efeitos se estenderam e se
fizeram sentir de diferentes formas, com conseqüências profundas infiltrando-se em toda a
sociedade. Após a onda transformadora, são visíveis dois movimentos em sentidos diferentes:
a captura de algumas dessas expressões revolucionárias pelo capitalismo, reorganizando-as
sob as mesmas bases que contestavam e, outro, o surgimento de novas formas de luta potica,
que se distanciavam da tríade partido-representação-vanguarda, voltando-se para a
modificação do cotidiano, segundo seu interesse e vontade, expressas nos movimentos de
mulheres, dos negros, dos trabalhadores, dos homossexuais, das pessoas em confinamento
nos hospitais psiquiátricos, nas prisões, etc. Segundo Foucault (1999, p. 72), uma ação
revolucionária que por seu caráter parcial está decidida a colocar em questão a totalidade do
poder e de sua hierarquia.
A constituição desse novo campo potico ocorreu a partir das críticas dirigidas aos
partidos comunistas no mundo inteiro, acusados de imobilismo e de optarem por estratégias
de ação consideradas conservadoras. De acordo com Sader (1995), no Brasil, surgiram
grupos dissidentes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que, na luta contra a ditadura
militar, promoveram ações armadas nas cidades e no campo, no final da década de 1960.
Esses grupos foram eliminados pelos órgãos de repressão, seus militantes ou se exilaram ou
foram presos e torturados, muitos mortos e desaparecidos. Na segunda metade da década de
1970, surgiram novos movimentos comprometidos com as pequenas revoluções do cotidiano
e o debate sobre temas que, segundo Araújo (2000), eram considerados “tabus” ou silenciados
porque eram “imorais”, como sexualidade, aborto, corpo, drogas, religião, pílula, temas
sintetizados na frase “é proibido proibir”, a livre expressão sobre o mundo e o modo como nos
relacionamos com ele.
Os movimentos contestatórios da cada de 1960 não concretizaram, necessariamente, o
projeto revolucionário marxista, mas, inspirados nele, promoveram o rompimento com tudo
que estava há muito institucionalizado, até mesmo as formas de reivindicação e de luta
política. Por outro lado, As experiências de contestão vividas pelos povos dos países
periféricos e mais pobres do globo foram marcadas por reações violentas de seus governantes.
No Brasil, omaio durou muito tempo e foi cinza, período marcado pela ditadura e a
violência de Estado.
O golpe militar no Brasil foi tramado desde o momento da renúncia de Jânio Quadros, em
1961 (Sodré, 1979). Com a cadeira presidencial “vaga”, pois o vice-presidente João Goulart
fazia uma viagem oficial à China, criou-se um clima de conspiração entre os ministros
militares que negavam os direitos do vice, planejando sua prisão. Manifestações de
resistência surgiram, tendo na figura do Marechal Teixeira Lott uma de suas expressões,
seguida do então governador do estado do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que
surpreendeu os militares com uma resistência não expressa em palavras, mas em ões,
mobilizando o povo e um agrupamento militar. O autor assinala que a atitude de Brizola
desestabilizou o grupo golpista, que não esperava uma atitude tão radical de um governador.
Acredito que a contestação de Brizola não teria desestabilizado o golpe, se não houvesse
uma frente que defendesse e garantisse a posse de João Goulart, composta, além dos nomes e
grupos citados acima, dos movimentos dos sargentos, dos estudantes e dos militantes do PCB.
Com o fiasco do “golpe branco”, os militares e seus apoios na burguesia recuaram, mas
impuseram uma alteração do regime potico, inaugurando um período parlamentarista. Essa
manobra visava controlar os rumos da política nacional-reformista de João Goulart. Porém, o
parlamentarismo durou um curto tempo, tendo o seu fim decretado com o posicionamento
popular a favor do presidencialismo no plebiscito realizado em 1963.
João Goulart tornou-se presidente contrariando as expectativas de empresários associados
às multinacionais, bem como dos militares que, de acordo com as análises de Dreifuss (1981),
iniciaram uma articulação civil-militar a fim de conter as aspirações reformistas do novo
presidente. Stepan (1975) salienta que no período de 1961 a 1963 desenvolveu-se no país
uma crescente sensação de crise e insegurança institucional, marcada por um decréscimo do
crescimento econômico e pela incapacidade do governo em converter as promessas em
políticas concretas. Somam-se a isso as críticas que o presidente passou a receber advindas de
sua base de apoio militantes do PCB, trabalhadores, industriais e a classe média,
intensificando o estado de crise.
A articulação civil-militar citada por Dreifuss (1981) percebeu, nesse estado de
fragilidade do governo, o momento ideal para agir. Através de uma estratégia potica de
desestabilização e desmoralização do governo, as Forças Armadas interviram tomando de
assalto a direção do país, para “salvar” o país da “subversão”, da corrupção”, do “perigo
comunista” e do populismo. O golpe militar recebeu apoio da populão, especialmente, da
classe dia urbana, que demonstrava seu contentamento participando das “Marchas com
Deus e pela Família”.
Das janelas, cai papel picado. Senhoras pias exibem seus pios e
alvacentos leóis, em sinal de vitória. Um cadillac conversível pára
perto do „Sixe surge uma bandeira nacional. Cantam o Hino também
nacional e declaram todos que a Pátria está salva. Minha filha, ao meu
lado, exige uma explicação para aquilo tudo.
É carnaval, papai?
Não.
É campeonato do mundo?
Também o.
Ela fica sem saber o que é. E eu também fico. Recolho-me ao sossego
e sinto na boca um gosto azedo de covardia. (CONY, 2004, p. 12)
Segundo Fico (1997), os militares lançaram campanhas que motivavam a sociedade a
participar da grande empreitada de colocar o país em seu “devido lugar”, entre as grandes
potências mundiais, visando a modernização e o aumento do prestígio internacional do Brasil.
Os militares governaram o país através de atos institucionais, instrumentos utilizados
para legitimar suas ações truculentas e violentas. Fecharam o Congresso Nacional,
extinguiram os partidos políticos
10
, além de realizarem cassações de mandato, exílio,
aposentadoria compulsória, banimento, prisões e assassinatos dos que expressassem críticas
às poticas restritivas que impunham. A proposta de “reconstrução econômica, financeira,
política e moral do Brasil
11
era fundamentada nos projetos liberais (abertura para o capital
estrangeiro, venda de divisas internas, traduzido no lema “crescer para multiplicar”) que
passaram a nortear a economia do país e foram garantidos através de ações autoritárias.
10
Foram criados dois partidos: a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e o Movimento Democrático
Brasileiro (MDB). O primeiro representava os interesses dos militares, dos empresários e latifundiários e o
segundo era o partido oficial de oposição.
11
Ato Institucional nº1. Fonte: www.acervoditaduras.rs.gov.br/legislação_2.htm, acessado em 29/05/2002.
Em 31 de março de 1964 foi desencadeado o golpe e em 9 de abril o Comando em Chefe
das três Armas formado pelo General do Ercito Arthur da Costa e Silva, pelo Tenente-
Brigadeiro Francisco de Assis Correia de Mello e pelo Vice-Almirante Augusto Hamann
Rademaker Grunewald, editou o Ato Institucional nº 1, o primeiro de uma série de outros que
se seguiram. O general Castello Branco foi o primeiro general a ocupar o poder, de 1964 a
1967, seguido de Arthur da Costa e Silva (1967 a 1969), Emílio Garrastazu Médici (1969 a
1974), Ernesto Geisel (1974 a 1979) e João Batista Figueiredo (1979 a 1985).
A principal marca de todo o período autoritário foi a tensão constante entre grupos no
meio militar que disputavam o comando do país: os da “linha dura” e os da “Sorbonne”. Aos
primeiros eram relacionadas as ações de radicalização da política de repressão; aos do
segundo grupo, a elaboração das estratégias político-administrativas, considerados os
“intelectuais” do regime de exceção.
As ações truculentas e arbitrárias contra seus opositores também marcaram todo o
período ditatorial. De Castello à Figueiredo, da “limpeza” moral contra os “corruptos” e
comunistas” às ações terroristas dos grupos de direita no começo da década de 1980. No
governo de Costa e Silva e de Médici a “linha dura” tomou as rédeas do poder potico. Estes
são considerados os momento mais duros, arbitrários e prepotentes de todo o ciclo militar,
regido pelas palavras-chave: autoritarismo, repressão, guerra e radicalização.
O período de 1964 a 1968 foi marcado pelas manifestações populares contrárias ao golpe.
Mesmo sob controle e violência da polícia, foram organizadas passeatas em vários pontos do
país. O descontentamento também se expressava no campo das artes. As músicas de Geraldo
Vandré, Chico Buarque, Caetano Veloso, Edu Lobo, Carlos Lira levaram multies aos
festivais de música popular. No teatro, em peças como Opinião” interpretada por Nara Leão
(que depois foi substituída por Maria Bethânia), Kéti e João do Vale; no Teatro de Arena,
Augusto Boal encenava obras sobre Zumbi dos Palmares e a conjuração de Tiradentes; no
Teatro Oficina de JoCelso Martinez Correia, “O Rei da Vela” (Oswald de Andrade) e Os
pequenos burgueses” (Máximo Górki); no TUCA (Teatro da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo), Morte e vida Severina” (João Cabral de Mello Neto). No cinema, Glauber
Rocha, Ruy Guerra e Nelson Pereira dos Santos produziam os filmes Terra em transe”, Os
fuzise Vidas secas”, respectivamente. Nas artes plásticas, Lygia Clark, Hélio Oiticia e seus
Parangolés, revolucionavam a linguagem artística, interpelando também os modos de se ver e
fazer arte. Implodir, inquietar, desconstruir a maneira de pensar, produzir e contemplar
12
a
arte, tornou-se uma atividade potica.
A partir de 1967, intensificaram-se as ações dos grupos de esquerda que vislumbravam a
possibilidade de uma insurreição popular. Os movimentos ligados à luta armada apontavam
que a estratégia política de alianças do PCB havia falhado e, influenciados pela experiência
cubana e as teses de Régis Debray
13
, iniciaram ações voltadas para o financiamento e a
organização da revolução. Outros grupos dissidentes do PCB ganharam destaque como a
Ação Libertadora Nacional, liderada por Carlos Marighela
14
; o Partido Comunista Brasileiro
Revolucionário; o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8); a Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR), que contava com a liderança de Carlos Lamarca
15
. Marighela e
12
Aliás, a palavra contemplar não cabe nesse movimento, pois a arte deixa de ser contemplativa para ser um
instrumento de afetação: deve-se tocar, mexer, perceber a arte no corpo, nos poros, misturar-se com ela,
exprimentá-la. A arte não é mais feita para o olho, mas para o corpo inteiro, introduzindo novas percepções e
sentidos.
13
Jules Régis Debray (1940 - ), seguidor de Louis Althusser, teve grande influência sobre a juventude dos anos
60, do último século, a partir da publicação do livro “A Revolução na Revolução, onde relatava a trajetória de
Fidel Castro e Che Guevara e o êxito da Revolução Cubana. Desenvolveu a teoria do foco guerrilheiro”, ou
“foquismo”, que, de acordo com Ridenti (2002), articulava três teses: “opção pela luta armada; opção pela guerra
de guerrilhas como método para desenvolvê-la; e opção pela montagem imediata de um foco guerrilheiro no
campo como forma de iniciar a guerra de guerrilhas (p. 275). Acompanhou Che na guerrilha da Bovia, quando
este foi assassinado, em 8 de outubro de 1969, ficando preso neste país no período de 1967 a 1971. Após uma
rápida passagem pelo Chile, regressou à Paris em 1973. Segundo Loïc Wacquant, em seu livro Prisões da
Miséria (1999), na década de 1990 Debray participou do governo Francês defendendo a implementação da
política de “tolerância zero” naquele país. (Fontes: SADER, E. O anjo torto: esquerda (e direita) no Brasil. São
Paulo: Brasiliense, 1995 e RIDENTI, M. Capítulo 6: ão Popular: cristianismo e marxismo. Em: RIDENTI,
M. e REIS FILHO, D. A. (orgs.) História do marxismo no Brasil: volume V partidos e organizações dos anos
20 aos 60. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2002).
14
Carlos Marighella (1911-1969), nascido em Salvador, BA, foi membro do Partido Comunista Brasileiro
(PCB), fundador do grupo revolucionário Ação Libertadora Nacional (ALN) e um dos mais combativos
militantes implicados no combate ao autoritarismo no Brasil. Marighella aderiu ao PCB em 1929, ainda
estudante de Engenharia da Escola Politécnica da Bahia. No combate à ditadura de Getúlio Vargas, foi preso
inúmeras vezes, sendo anistiado em 1945, momento do processo de democratização do país marcado pela
deposição de Vargas e pela saída do PCB da clandestinidade. O apoio popular à Marighela foi expresso na
eleição à Assembléia Constituinte, em 1946, onde representou o estado da Bahia como deputado federal. Dois
anos depois, cassado pela repressão do governo Dutra, voltou, junto com o Partido, às atividades clandestinas,
condição que manteria até sua morte. Depois de anos criticando a política de alianças com a burguesia e o
imobilismo do PCB diante do golpe de 1964, Marighela requereu seu desligamento do Partido, em dezembro de
1966, explicitando sua posição de lutar junto às massas, em vez de ficar à mercê do jogo político. Em dezembro
de 1967 fundou ALN, afirmando a luta armada como caminho para a derrubada da ditadura e a instalação de um
Governo Popular Revolucionário. Marighella foi assassinado por policiais comandados pelo delegado Sérgio
Paranhos Fleury, em uma armadilha em São Paulo, em 4 de novembro de 1969. (Fontes: SADER, E. O anjo
torto: esquerda (e direita) no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1995 e Escritos de Carlos Mariguella. São Paulo:
Editora Livramento, 1979).
15
Carlos Lamarca (1937-1971), um dos fundadores do grupo Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) que,
junto com a ALN, viria a ser uma das principais organizações da luta armada contra a ditadura militar, que se
instaurou no Brasil a partir de 1964. O Capitão Lamarca, como era conhecido, fez parte de um movimento de
militares que optou pelo enfrentamento da repressão. Em 1971 desligou-se da VPR e ingressou no Movimento
Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e, com a finalidade de estabelecer uma base desta organização no interior
do país, foi para o município de Brotas de Macaúbas,no sertão da Bahia, onde foi morto pela repressão. (Fontes:
SADER, E. O anjo torto: esquerda (e direita) no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1995 e
WWW.torturanuncamais-rj.org.br acessado em 23 de junho de 2008, às 13:45).
Lamarca foram assassinados pelos militares que, como estratégia para conter as ações, se
fixavam na eliminação dos líderes desses grupos.
O movimento estudantil foi o responsável pelas primeiras manifestações contrárias à
ditadura militar que se espalharam pelas ruas do país. Durante todo o ano de 1968, as ações
de enfrentamento à ditadura tornaram-se mais constantes e visíveis. Em 28 de março, o
estudante Edson Luis de Lima Souto foi assassinado pela polícia militar no restaurante
universitário Calabouço, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no Rio de
Janeiro. Esse fato intensificou as manifestações populares através de passeatas e greves,
culminando na maior delas, a Passeata dos Cem Mil, também no Rio, em 26 de junho. Os
militares aumentavam a truculência invadindo universidades, prendendo, seqüestrando e
assassinando todos aqueles considerados “inimigos” da ordem pública. Em outubro, um
último ato, a realização do XXX Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em um
pequeno tio em Ibiúna, interior de São Paulo, a pocia invadiu o local prendendo os 920
estudantes que ali estavam, entre eles, os principais deres estudantis da época: Vladimir
Palmeira, José Dirceu, Luís Travassos e Jean-Marc Charles Frederic von der Weid
(POERNER, 2004, p. 273).
O acirramento do autoritarismo veio em 13 de dezembro de 1968 com o Ato Institucional
5, cuja justificativa era a manutenção da ordem democrática” objetivando o impedimento
de ações de “grupos anti-revolucinários, oriundos dos setores poticos e culturais que
trabalhavam contra a revolução, dando pleno poder ao Presidente da República de decretar
o recesso parlamentar e cuja. Também foram suspensas as garantias constitucionais ou legais
de vitalicidade e estabilidade, bem como a garantia de habeas corpus, nos casos considerados
como crime potico, contra a segurança nacional, a ordem ecomica e social”.
16
Segundo Hollanda (2004), na virada dos anos 60 para os 70, instalou-se definitivamente a
repressão, sendo o AI-5 o que ficou conhecido como “golpe dentro do golpe”. Os militares
asseguravam para os demais países a imagem do Brasil como país calmo, organizado, onde o
capital estrangeiro poderia investir tranqüilamente. Viveu-se um clima de ufanismo, com
construção de grandes monumentos, de estradas (como a Transamazônica), de hidrelétricas,
pontes (como a Ponte Rio-Niterói), etc. A classe média, motivada pelo “milagre econômico”
brasileiro, adquiriu alto poder de consumo de bens como automóveis, apartamentos,
televisões coloridas. Pom, no campo da cultura, a censura tornou-se impiedosa,
16
As palavras e frases entre aspas fazem parte do texto Ato Institucional N º 5. Fonte:
www.acervoditaduras.rs.gov/legislação_2.htm, acessado em 29/05/2002.
dificultando e até mesmo impedindo a realização de peças de teatro, de filmes e a circulação
de publicações impressas.
O começo da década de 1970 foi o mais duro no que diz respeito às ações de repressão da
ditadura em relação aos movimentos de resistência. Os grupos de esquerda tornaram-se alvo
das ações truculentas do Estado que perseguiu, capturou e torturou militantes políticos,
culminando com o massacre de um grupo de militantes do Partido Comunista do Brasil
(PCdoB) na região do Araguaia, no norte do país, no ano de 1972.
Na segunda metade da década, a ditadura militar atravessou um período de mudanças:
houve a posse do general Geisel, em 1974, as eleições parlamentares que deram vitória
esmagadora ao MDB, na disputa pelo Senado. Paralelamente, vivia-se no plano interancional,
a crise mundial do petróleo. Sader (1995) assinala dois fatores que mudaram o sistema de
forças da ditadura: um, a viria expressiva do MDB nas eleições parlamentares a derrota
dos grupos de esquerda tornou o partido um eixo de combate à ditadura; dois, a crise do
capitalismo mundial que desestabilizou as bases da economia brasileira, contribuindo para o
fim de um período de ascensão econômica no Brasil.
O femeno do “milagre econômico” estava em enfraquecimento. Singer (1977) aponta
que desde 1973 havia sinais de esgotamentos da economia refletidos em um movimento de
diminuição da capacidade de produção, ao mesmo tempo que aumentavam o subemprego e o
número de vagas ociosas na instria. Nesse ano, houve um surto inflacionário e a
diminuição no ritmo do processo de industrialização do país. A entrada de capital estrangeiro
acabou gerando um deficit na balança comercial, aumentando a dívida externa brasileira.
A passagem de uma fase de intenso crescimento para uma fase de recessão foi uma
conseqüência inesperada pelos economistas cuja matriz econômica orientava o pensamento e
ação do grupo militar. As condições para a expansão rápida da economia deixaram de existir.
O país precisava adotar com urgência políticas para conter os efeitos negativos do fim do
“milagre”. De acordo com Fico (1997), isso provocou, inicialmente, um aumento do delírio
de construção do país como grande potência até o ano 2000. As expressões de confiança e
otimismo nos planos de desenvolvimento do governo eram veiculadas através dos principais
meios de comunicação. Ainda segundo o autor, foi nesse período do governo Geisel e do fim
do “milagre” que mais se reiterou o pedido de sacrifícios da população mais pobre no
combate à inflação e na criação de um clima de ordem, dedicação ao trabalho e “confiança no
futuro”.
O outro golpe que contribuiu com a desestabilização do poder dos militares foi o
resultado das urnas. Com o fortalecimento do MDB nas eleições, a ARENA, objetivando
desacreditar o MDB, vinculou nomes do partido oficial de oposição ao comunismo, utilizando
instrumentos como intervenção e cassação do mandato dos parlamentares do MDB e
instauração de CPIs (Comissão Parlamentar de Inquérito). Havia uma tensão dentro do MDB
entre dois grupos que o compunham, denominados “moderados” e “autênticos”. Os primeiros
tentavam uma estratégia mais cordata com o regime, visando não comprometer o processo de
distensão potica acenado pelo general Geisel e, assim, procuravam conter os ditos
autênticos, considerados mais “radicais”.
De acordo com Kucinski (1982), assim começou a “abertura”, um período de transição
causado pelo choque desses dois abalos. Outro tipo de pressão também contribuiu nesse
momento: foram as denúncias sobre as violações dos direitos humanos e tortura praticados
pelos militares dentro das pries brasileiras que começaram a chegar no exterior,
principalmente na Europa. A imagem do Brasil como um país pacífico, onde reinava a alegria
do carnaval estava comprometida. Os movimentos internacionais e nacionais de defesa dos
direitos humanos passaram a pressionar o regime autoritário e exigiam, além da liberdade dos
que estavam presos, esclarecimentos sobre o paradeiro de inúmeros militantes que haviam
desaparecido”.
O estado de crise agravava-se. Kucinski (1982) ressalta os efeitos sociais do fim do
“milagre” que eclodiram nas cidades e no campo: houve um êxodo rural jamais visto os
trabalhadores rurais foram expulsos do campo pelas novas culturas mecanizadas que teve
como conseqüência o inchamento das cidades, provocando um colapso nos serviços públicos,
nos transportes, e o deterioramento das condições de vida (condições sanitárias, na qualidade
do ar e da água, no aparecimento de grandes epidemias). Tudo isto afetava diretamente as
populações mais pobres que ocupavam a periferia e as favelas dos grandes centros urbanos e
eram, em sua maioria, resultantes do êxodo rural.
O terror institucional continuava nas unidades do DOI-CODI (Destacamento de
Operações e Informações Centro de Operações de Defesa Interna). Em 1975 o jornalista e
professor Vladimir Herzog foi preso e a notícia de sua morte se espalhou através da edição do
número 16 do jornal alternativo EX
17
que, ao chegar às bancas em 6 de novembro, sofreu dois
17
Com a manchete “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”, circulou a última edição do EX que trazia
como tema principal a morte de Herzog sob o título “A morte de Vlado”, reunindo depoimentos de amigos do
jornalista e familiares, documentos oficiais, laudos e notícias veiculadas em jornais e revistas. Em 1977, essa
duros golpes: a apreensão pela pocia federal da Edição Extra, O Melhor do EX”, contendo
trabalhos publicados nos 12 primeiros meros e a submissão do jornal à censura prévia
(ALMEIDA FILHO, 1977, p. 66). O assassinato de Herzog dentro das dependências do DOI-
CODI
18
transformou-se em gatilho para uma grande mobilização de protesto realizada na
Catedral da Sé, em São Paulo, reunindo milhares de pessoas que passaram por cima de suas
diferenças partidárias, de classe, religião etc., e se reuniram contra a violência, contra a
ditadura militar e pela defesa dos direitos humanos. (COIMBRA, 1995, p. 48).
No dia 20 de janeiro de 1976, outro assassinato dentro das dependências do DOI-CODI
do II Exército mobilizava novamente a opinião pública,
Às 13 horas de segunda-feira o comando do II Exército divulgou nota
oficial em São Paulo informando que fora encontrado morto em um
dos xadrezes do DOI/CODI o metalúrgico Manuel Fiel Filho. Por
volta de 17 horas do mesmo dia, em Brasília, o Palácio do Planalto
anunciou a substituição do general Ednardo d‟Avila Melo pelo general
Dilermano Gomes Monteiro no comando do II Exército. (Jornal
Opinião, 1976, p. 3)
19
.
Esses episódios e as denúncias de violações dos direitos humanos pelo Exército abalaram
as estruturas da ditadura. Alguns generais, indignados com a demissão do general Ednardo
d‟Avila Mello, exigiram do general-presidente as cabeças dos opositores. Um novo ciclo de
cassações se instaurou, seguido de ações que visavam neutralizar o avanço da frente de
oposição que se organizava no MDB, como, por exemplo, a aplicação da Lei Falcão
denominação derivada do nome dde seu signatário o então Ministro da Justiça, Armando
Falcão que determinava o fim do sistema de horário livre na televisão para os candidatos às
eleições municipais. Mesmo com essas medidas, o MDB saiu fortalecido frente ao eleitorado
(KUCINSKI, 1982).
Em 1977, Geisel fechou o Congresso Nacional e promulgou reformas com base nos atos
institucionais. Como estratégia para retomar as rédeas e aplacar a crise potica, lançou, junto
com o general Golbery, um pacote de medidas que modificavam o regime potico. De acordo
com Kucinski (1982), o “Pacote de Abriltinha os seguintes objetivos: controle do processo
legislativo, com a redução do quorum mínimo para a aprovação de emendas à Constituição e
grande matéria publicada pelo jornal EX se transformou em um livro intitulado A sangue quente a morte do
jornalista Vladimir Herzog, de Hamilton Almeida Filho, que era em 1975, editor do EX.
18
Cinco dias depois, a Justiça Militar de São Paulo instalou um Inquérito Policial Militar para esclarecer o caso.
A versão oficial, divulgada em 20 de novembro de 1975, apresentou a tese de que Vlado teria se suicidado com a
tira de pano do macacão de prisioneiro que vestia. (ALMEIDA FILHO, 1977, p. 91).
19
Matéria “Troca de comando em São Paulo”, seção O Brasil. Jornal Opinião, nº 168, de 23 de janeiro de 1976.
a criação de um novo tipo de senador, denominado “biônico” pela oposição, pois seria
indicado pelo colégio eleitoral; ampliação de cinco para seis anos o mandato do presidente;
controle dos executivos estaduais, eleição indireta de governadores de estados; restrição das
campanhas eleitorais, estendendo a Lei Falcão para as eleições nacionais. Neste caso, a
oposição perdia o mais poderoso instrumento de comunicação implementado na campanha de
1974 a televisão.
No Jornal Movimento (1976), na seção “Cena brasileira”, uma reportagem serve para
ilustrar o resultado desta diretriz do governo a partir da população. Em Macaíba, Rio Grande
do Norte, o vendedor Jonas Francisco, depois do seu expediente na “cigarreira” da Estação
Rodoviária, tomava conta do aparelho de TV instalado na estação. O povo se reunia em torno
do televisor púbico e assistia à novela, ao “repórter”, aos jogos de futebol e aos filmes de
Kung Fu. Outro morador da pequena cidade dava seu depoimento:
Venho pra cá quase toda noite, pois não? Só quando tou ressacado,
enfadado, aí eu num venho. Home! Pra falar a verdade, eu apreceio
seja o que for que aparece naquele quadrinho, né? Mas aqui o que sai
direto é novela mesmo, é o que se vê, às vezes um futebol. Agora, pra
falar verdade, eu num lembro bem de nada que andei vendo esses
tempos. É danado! Das vez que eu lembro assim um pedaço da
novela, mas num gravo nadinha. Eu agrado muito do repórter
também, mas também num guardo as fala dele, viste? na hora,
adepois passa, como que apaga. Mas acho, sim sinhô, que isso
desperta o camarada, né? (depoimento de Celestino Soares ao jornal
Movimento, nº 27, 05 de janeiro de 1976, Cena Brasileira tv de
rua”, por Jorge Baptista, p. 2)
20
.
A sucessão do general Geisel foi marcada por uma crise institucional que contava ainda,
além dos elementos citados, com o ressurgimento das mobilizações populares o
movimento estudantil que se reorganizava, o novo sindicalismo, os movimentos ligados à
Igreja Católica como as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), o movimento dos
trabalhadores rurais, as associações de bairro, os movimentos contra a carestia, o movimento
pela anistia ampla, geral e irrestrita”.
O final da década de 1970 foi decisivo para as mudanças que ocorreram em todos os
planos da vida dos brasileiros. A população voltava às ruas reivindicando o fim da ditadura e
20
O prefeito da cidade atribuiu à televisão papel importante nas eleições de novembro de 1974, tendo em vista a
institucionalização da propaganda eleitoral gratuita. Em seu município, ao contrário do que aconteceu no resto
do estado do Rio Grande do Norte, o seu partido a Arena ganhou. Diante do bom resultado, pretendia
instalar outros televisores nos demais distritos eletrificados, ampliando esse “serviço”, pois, segundo ele, era
uma forma de “educar o povo”. (Movimento, 1976)
anistia, também é o momento no qual retornam ao país alguns militantes exilados. Segundo
Coimbra (1995), as contas do “milagre” começaram a ser cobradas pelo sistema financeiro
internacional, o país entrou num longo período de recessão, encarecendo o custo de vida e
tendo como principal alvo as classes médias urbanas. Em 1979, tomou posse o último
general-presidente, João Batista Figueiredo, ex-chefe do Serviço Nacional de Informações
(SNI).
A década de 1980 iniciou-se dando visibilidade às novas formas de luta que se
organizavam para cobrar as contas do “milagre” e também como forma de resistência potica:
o fortalecimento dos movimentos sociais, como os sindicatos; a organização das associações
de bairro, na periferia e também, na classe média; os grupos chamados de “minoritários”, em
defesa de causas específicas, como os grupos pela defesa das mulheres, homossexuais e
negros; as questões sobre sexualidade; as preocupações ecológicas; o surgimento do
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).
O fim do bipartidarismo e a fundação de novos partidos poticos
21
fizeram com que a
população experimentasse um misto de “insatisfão”, “insegurança”, mas também de
esperança” aventada pela possibilidade de abertura política. Foi vedada a organização dos
partidos comunistas, pois a lei proibia a criação de partidos com “vínculos com governos e
entidades estrangeiras” (Kucinski, 1982, p. 138), como também foram proibidos partidos de
base religiosa, “com sentimentos de raça ou classe” (Kucinski, 1982, p. 138). O governo
mantinha as rédeas do processo chamado de abertura, alargando ou apertando os limites da
abertura partidária, usando interpretações mais ou menos restritivas da própria lei, aplicando
truques processuais, manipulando a justiça eleitoral” (idem).
Kucinski (1982) observa que durante a gestão Geisel a abertura foi tratada como uma
preocupação periférica que orientava certas decisões e servia de argumento e justificativa de
algumas ações, a sabor do general. no governo Figueiredo, a abertura se transformou no
norte político, meta principal do governo mesmo que à força. Mas Figueiredo foi o
primeiro presidente a cancelar uma eleição. Nos períodos anteriores, as estratégias utilizadas
foram as cassações individuais e as prisões. Impossibilitado de cassar a vontade coletiva,
justificou o cancelamento das eleições de 1980 sob o pretexto de reorganização partidária e
necessidade de constituição de novos partidos. A oposição, por não considerar esse golpe
decisivo e embriagada com as novas “liberdades” formais, não reagiu a tal imposição.
21
O MDB transformou-se no PMDB, a ARENA no PDS e outros atores nasceram como o Partido dos
Trabalhadores (PT) e o Partido Democrático Trabalhista (PDT).
O ano de 1980 foi marcado por violentas investidas de grupos ligados aos militares. No
Rio de Janeiro, no primeiro mês do ano, uma bomba explodiu na Escola de Samba
Acadêmicos do Salgueiro, pouco antes de ser iniciado um ato de apoio ao PMDB. Em março,
explodiram duas bombas no jornal Hora do Povo e, em abril, outra bomba explodiu em uma
loja que vendia ingressos para o show de de maio. Em todo o país, bombas explodiram
bancas de jornais que vendiam publicações da imprensa alternativa. Na capital mineira, no
mês de julho, uma bomba explodiu no auditório do Instituto de Educação de Belo Horizonte,
enquanto falava o ex-governador Leonel Brizola. Em agosto, a cidade do Rio de Janeiro é
mais uma vez alvo dos atentados a bomba, uma carta-bomba foi enviada à redação do jornal
Tribuna Operária e outra à sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Com esta
última explosão, morreu a secretária da OAB, Lyda Monteiro. Uma terceira carta-bomba
explodiu no prédio da Câmara Municipal. O mais noticiado de todos os atentados aconteceu
também no Rio de Janeiro, durante um show de música popular, na Barra da Tijuca. A
bomba explodiu dentro de um carro que manobrava no estacionamento do Rio Centro. O
sargento Guilherme Pereira do Rosário morreu e o capitão Wilson Luis Chaves Machado
ficou gravemente ferido. Ambos do Destacamento de Operações de Informações (DOI) do I
Exército (D‟ARAUJO, M. C. et al, 1995, pp. 313-314).
A OAB elaborou um relatório sobre os atentados e o encaminhou para uma Comissão
Parlamentar de Inquérito a CPI do Terror aberta para investigar os atos terroristas. No
relatório são citadas como autoras dos atentados as seguintes organizações todas de direita:
Comando de Caça aos Comunistas (CCC); Grupo Anti-Comunista (GAC); Movimento
Anticomunista (MAC); Comando Delta, Falange Pátria Nova; Tradição, Falia e
Propriedade (TFP); Movimento de Reorganização Nazista (MRN) e Vanguarda de Caça aos
Comunistas (VCC).
Em 1982, foi aprovado pelo Congresso o denominado emendão”, conjunto de medidas
que alterava o Colégio Eleitoral responsável pela eleição do presidente da República e
instituía o voto distrital misto para 1986. Em novembro, foram realizadas eleições com o
comparecimento maciço do eleitorado. A oposição conquistou maioria na Câmara dos
Deputados, mas o PDS mantém o controle sobre o Senado, garantindo maioria governista no
Colégio Eleitoral, encarregado de escolher o sucessor de Figueiredo. No ano seguinte, uma
campanha por eleições diretas para presidente teve início e o deputado do PMDB, Dante de
Oliveira, apresentou uma emenda constitucional propondo eleições diretas para presidente da
república em 1985.
A campanha adquire amplitude nacional e recebe adesão de figuras importantes da
oposição como Lula, Leonel Brizola, Teotônio Vilela e Ulysses Guimarães. A “campanha
pelas diretas” desenvolveu-se através de cocios em diversas cidades em todo o país e foi
engrossada pela participação das associações de advogados, jornalistas, artistas, professores, e
boa parte da classe média e de trabalhadores brasileiros.
Em 10 de abril de 1984 realizou-se no Rio de Janeiro oComício das Diretas-Já”,
objetivando a aprovação da emenda Dante de Oliveira. A manifestação multiplicou-se e em
16 de abril foi realizada também em São Paulo, reunindo um milhão de pessoas o dobro do
número de participantes no Rio de Janeiro. O governo proíbe que as emissoras de televisão e
rádio façam a cobertura ao vivo do momento de votação da emenda. Em várias partes do país
a população promoveu um “panelaço” para mostrar que não esqueceu a data. Como relata um
participante desta experiência em Brasília:
Em algumas superquadras, os habitantes dormiram um pouco mais
porque passaram parte da noite batendo caçarolas e conversando
excitados sobre o grande espetáculo de protesto que a cidade
produziu. À medida que me aproximo do Congresso, vejo que
algumas pessoas ficaram tão empolgadas que já acordaram buzinando
e fazendo barulho pela abolição da ditadura. A policia baixou o cerco
ao Congresso e ao invés do corredor polonês de ontem, encontro uma
juventude colorida, (...) curiosos para entrar na galeria e ver o que
estava acontecendo lá. Muitos não tinham idéia de como era por
dentro o Congresso de seu país. Diante do prédio, centenas de
universitários escreveram com seus corpos a frase diretas já, pesadelo
dos militares encarregados da repressão (...). Do lado de fora, as
pessoas cantam Caminhando, desfilam com bandeiras do Brasil; aqui
dentro correm noticias sinistras bomba em Minas, crise na PM de
São Paulo. A democracia não é um piquenique mas as milhares de
pessoas que se agitam nas ruas estão muito mais com cara de quem
espera o nascimento de uma criança do que propriamente pensando no
enterro dos seus sonhos (GABEIRA, 1984, pp. 78-79)
A emenda foi derrotada no Congresso Nacional, reafirmando o projeto dos militares de
eleição indireta para presidente. Em 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves e José Sarney
foram eleitos pelo Colégio Eleitoral, respectivamente como presidente e vice. Às vésperas da
posse, Tancredo Neves foi internado no Hospital de Base de Brasília, onde se submeteu a uma
operação de emergência. O vice-presidente JoSarney assumiu o cargo de presidente da
República. Após 38 dias de internação, em 21 de abril de 1985, morreu Tancredo Neves,
mitificado pela história oficial como o representante da democracia brasileira.
1.2. Há vida no campus
A ditadura militar interferiu em toda a vida social, política e cultural dos brasileiros. Essa
interferência também ocorreu nas universidades através de um processo de reforma em sua
estrutura, que implementou uma lógica voltada para a formação de técnicos para atuar no
mercado de trabalho, ampliou o acesso à universidade com o incentivo à criação e à
ampliação de vagas nas instituições privadas, instaurou o concurso vestibular entre outras
modificações. Houve inúmeras reações contrárias à reforma universitária, devido ao seu
caráter autoritário. Tais críticas partiram de estudantes, professores e funcionários, sendo que
muitos foram punidos por instrumentos criados para controlar a vida nos campi
afastamentos, aposentadorias compulsórias, cancelamento de matrículas, instrumentos
associados ao terrorismo de Estado. Como o grupo inicial da Rádice era composto, em sua
maioria, por estudantes universitários, é importante contar um pouco sobre as transformações
e a resistência no Movimento Estudantil.
Segundo Cunha (1988), logo no início da década de 1970, vivia-se nas universidades os
efeitos do ano de 1968: o refluxo das lutas estudantis contra a ditadura militar, as prisões e
intervenções na vida acadêmica pelos óros de repressão e a implantação da Reforma
Universitária (Lei 5.540 de novembro de 1968). Eram anos de pós-reforma, s-Lei Suplicy e
pós-Decreto 477 instrumentos de repressão criados especialmente para controlar a vida nas
universidades. Os militares invadiram os campi, alunos, funcionários e professores foram
perseguidos ou desligados de suas funções. “Silêncio e “marasmo” são as expressões
utilizadas por quem viveu esse período ao se referirem à vida nas universidades.
Ao se tornarem o modelo do que ficou conhecido como “bloco capitalista” a partir de
1945, os norte-americanos viam-se como os defensores da democracia, impondo seu modelo
econômico aos demais países da América Latina e também em outros continentes. Os
problemas que surgiam nos países mais pobres da América Latina eram tratados como
questão de “política interna” dos E.U.A.. Para consolidar o poder das classes dominantes,
suas aliadas, nesses países, eram empregadas todas as forças, como, por exemplo, o apoio à
militarização da política local (IANNI, 1968).
Cunha (1988) e Ianni (1968) observam que a influência norte-americana nos projetos
voltados para o que se considerava “desenvolvimentoe progresso” no Brasil ocorria antes
do golpe militar, este só aprofundando e intensificando os acordos e convênios. Era o espírito
“modernizador” (desenvolvimento, progresso, industrialização, formação de profissionais-
técnicos competentes para implantar e administrar as novas tecnologias produzidas pelos
países ricos) que impulsionava a reformulação do ensino superior no Brasil dos anos 60. Esse
espírito” motivou a transformação da universidade brasileira, afeita ao conservadorismo
colonial, na universidade-empresa necessária ao desenvolvimento do capitalismo moderno.
Por outro lado, Cunha (1988) nos adverte que as bases dessa transformação já estavam
presentes nos anos 40/50 no pensamento intelectual e nas universidades, iias propagadas
por aqueles que, dez anos depois, seriam os críticos da reforma implementada pelos militares
professores e estudantes.
A implantação de uma “nova universidadefazia parte do plano desenvolvimentista da
ditadura militar, que apostava na ciência e na tecnologia como fatores importantes para o
crescimento econômico do país. Principalmente na fase do “milagre”, o governo investiu
massivamente em projetos nas áreas das telecomunicações, instria bélica e aeronáutica,
energia nuclear, pesquisa espacial etc., campos de interesse das Forças Armadas.
Houve grande reação dentro dos muros das universidades brasileiras ao projeto
“modernizador, devido ao caráter autoritário e privatizante de seu conteúdo e propósito. A
Reforma Universitária brasileira foi garantida à base de demissões de reitores e diretores,
cassação de professores, banimento de estudantes, aposentadorias compulsórias, tornando
ilegais as entidades de representação estudantil.
Fernandes (1979) aponta os principais efeitos dessa mudança: a esterilização das
atividades políticas e culturais nas instituições; a consolidação do caráter elitista do projeto
refletida nas ligações com as profissões liberais; a afirmação das expreses culturais que
apoiavam a nova ordem; a institucionalização da tutela externa; e o efeito mais dramático, a
produção da “universidade do silêncio” nos dez anos que se seguiram (1968-1978), com a
marginalização e afastamento dos que contestavam tal modelo.
Entre as medidas “saneadoras” estavam a repressão ao movimento estudantil; a
fragmentação do conhecimento em disciplinas; a organização das universidades segundo o
princípio taylorista; a implantação do regime de créditos; o fim das cátedras; a transformação
das faculdades em unidades menores, os departamentos. Além disto, houve medidas de
expansão das universidades, em dois sentidos: um, expansão/financiamento das universidades
privadas, que passaram a contar com uma porcentagem do Fundo Nacional de Educação
(FNE) e, outra, a implantação da extensão universitária e a iia do campus avançado.
22
Essas propostas de transformão das universidades brasileiras foram recebidas com
muitas críticas pelo meio acadêmico. Em 1965, os estudantes organizaram passeatas
reivindicando mais verbas para as universidades, mais vagas nos cursos de graduação, contra
os acordos MEC-USAID (United States Agency for International Development),
estabelecidos entre estas instituições para a elaboração do projeto de reforma, contra a política
educacional dos militares e os instrumentos de repressão utilizados para a contenção dos
protestos dentro dos campi.
Nos anos 60, a mobilização nas ruas, a organização de passeatas, a expressão crítica
através de músicas, peças de teatro, cinema, livros, artigos em jornais, ainda era possível.
Mas, à medida que a ditadura endurecia através dos métodos de controle e de repressão sobre
aqueles considerados opositores aos seus projetos, essas expressões tornavam-se mais difíceis.
O ano de 1968 foi marcado por vários acontecimentos: atentados realizados por grupos
paramilitares de direita nos grandes centros urbanos; pedidos de cassações de parlamentares;
intervenções em instituições de ensino superior nos moldes das que foram realizadas no ano
do golpe. Entre 1964 e 1968 várias universidades sofreram intervenções dos militares, como
a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a Universidade Federal de Goiás (UFGO), a
antiga Universidade do Brasil (UB, hoje UFRJ), a Universidade Federal Fluminense (UFF), a
Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade de Brasília (UnB). Destaco, a seguir,
alguns relatos sobre tais invasões:
junto com a notícia do golpe, veio a notícia de que a Maria Antônia ia
ser ocupada pela polícia. Então nos organizamos para impedir a
ocupação. E nos distribuímos por todos os prédios, e pelas portas e
janelas. E ficamos na porta central, de braços dados, Florestan,
Antônio Cândido a tropa de choque -, Mário Schemberg, Simão
Mathias, Maria Isaura, Fernando Henrique, Eder Sader, e eu com a
minha barriga. [...] É daqueles períodos em que as casas dos principais
professores foram invadidas. [...] Esse período é um período de
22
A extensão universitária surgiu para levar conhecimentos técnicos às áreas mais isoladas do país visando
promover o desenvolvimento destas regiões. Além disso, a idéia de integração nacional estava bastante presente
nestes projetos. O RITA (Rural Industrial Technical Administration)/UFCE, fruto de um dos acordos
estabelecidos com a USAID, foi o projeto que inspirou os demais. Os mais conhecidos e emblemáticos destes
projetos de extensão são os CRUTACS (Centro Rural Universitário de Treinamento e Ação Comunitária)
desenvolvido pela UFRN em 1966 e o projeto RONDON, de 1967 (Cunha, 1988).
enorme silêncio, de muito temor, e da primeira partida, a primeira leva
dos exilados. (CHAUÍ, 2001, p. 79)
23
O relato seguinte refere-se à invasão da UnB:
Foi no dia 29 de agosto de 1968 [...] um monte de estudantes se
movimentava por ali, numa grande agitação. Carros da polícia
fechavam a passagem. Não pudemos entrar, impedidos por policiais
com metralhadoras, que tinham cercado a universidade. [...] Um
pouco depois, os policiais entraram na universidade, e ouvi barulho de
tiros, bombas, tilintares. [...] Logo vieram caminhões do Ercito,
soldados cercaram o gramado e as pessoas que estavam ali foram
levadas para as carrocerias dos veículos, debaixo da mira de armas.
[...] Fomos carregados para um quartel. [...] No final da tarde,
terminada a triagem, os estudantes foram soltos. [...] era um tempo
de medo, já sabíamos das torturas, dos desaparecimentos de colegas,
exílio e morte eram palavras constantes nas nossas conversas. Mas a
paixão pela liberdade, pela justiça social, pela luta em si, cegava
nossos olhos jovens aos perigos. (MIRADA, 2002, p. 11)
24
No Rio de Janeiro, a polícia militar e os estudantes se enfrentavam...
Era uma quinta-feira, 28 de março, entardecia no Rio e os estudantes
preparavam nova manifestação pelas ruas do centro da cidade,
armavam faixas e bandeiras, desenhavam cartazes. Os choques da
polícia militar chegaram, como sempre, pretendendo fazer medo,
intimidar. Receberam vaias e assobios. Os policiais resolveram então
invadir o restaurante e já o fizeram de armas na mão. Diante da
vaia, agora ensurdecedora, foram os policiais que se amedrontaram e
começaram a atirar. Mataram Edson Luis de Lima Souto. (REIS
FILHO, 1988, p. 14)
De acordo com Cunha (1988), uma das primeiras ações voltadas para acabar com as
resistências dentro das universidades brasileiras foi a desorganização e o aniquilamento do
movimento estudantil. Dois instrumentos foram utilizados para tal fim: a Lei 4.464 de
novembro de 1964, que ficou conhecida como Lei Suplicy e o Decreto 477 de fevereiro de
1969.
A Lei Suplicy extinguiu as representações estudantis, a União Nacional e as estaduais dos
estudantes UNE e UEEs impondo uma nova entidade, pretensamente representativa, o
Diretório Nacional dos Estudantes (DNE). A representação estudantil imposta era obrigatória
em cada faculdade, sua diretoria eleita pelos alunos, com voto obrigatório e medidas punitivas
23
Entrevista com Marilena Chauí, As grandes entrevistas de Caros Amigos. Revista Caros Amigos, número 3,
abril de 2001.
24
Miranda, Ana. Barra 68. Revista Caros Amigos, ano VI, número 63, junho de 2002.
para aqueles que não votassem (como, por exemplo, ficar impedido de prestar exames). Em
cada universidade deveria existir um Diretório Estadual dos Estudantes (DEE), composto por
representantes dos diretórios acadêmicos. O DNE seria composto por representantes do DEE,
as reuniões poderiam ocorrer em Brasília para debates de natureza exclusivamente técnica
(CUNHA, 1988).
Os estudantes organizaram um plebiscito em repúdio à Lei Suplicy”, não reconhecendo
as entidades criadas pela ditadura como representativas. Duas formas de enfrentamento se
destacaram naquele momento: uma, acreditando que deveriam concorrer à direção dessas
entidades, ocupando o espaço possível” (CUNHA, 1988, p. 63) para, por dentro, modificá-
las. Outra postura, mais radical, defendia os diretórios livres, independentes da potica
oficial. Esta segunda forma foi a mais comum entre os estudantes, que continuaram a se
organizar em conselhos de representantes e a eleger representantes de turma, mesmo não
sendo reconhecidos formalmente.
Em 1967, a Lei Suplicy foi substituída pelo Decreto Aragão, Decreto-Lei 228 de
Raymundo Moniz de Aragão, então Ministro da Educação, que extinguiu os DEE‟s e o DNE e
instituiu a Conferência Nacional do Estudante Universitário (CNEU) que, de acordo com
Cunha (1988), nunca se realizou.
Fundamentado no AI-5, o Decreto 477, definia as infrações disciplinares praticadas por
professores, alunos e funcionários das universidades acusados de envolvimento com
atividades “subversivas”, prevendo punições como demissões, desligamento para os
estudantes e a proibição de se matricular em qualquer outra instituição no prazo de três anos.
A partir de 1972, os processos contra estudantes passaram a ser arbitrados pelo MEC, o que
o diminuiu a perseguição e fez com que os institutos e faculdades criassem seus próprios
instrumentos de coerção. O Decreto 477 vigorou por pouco tempo, mas permaneceu como
prática dentro das universidades. O acompanhamento e avaliação permanentes dos alunos
considerados desviantes” eram feitos por conselhos e comissões formados por professores
nomeados especialmente para tal tarefa que, em alguns casos, utilizavam-se de instrumentos
de medidas psicológicas
25
.
25
Em 1977, a Faculdade de Medicina da UFRJ compôs uma comissão para estudar medidas a serem aplicadas
aos alunos matriculados no primeiro e no quinto anos do curso. Tais medidas tinham como objetivo identificar
sinais de distúrbios mentais, com o objetivo de recuperar e evitar a exclusão desses alunos”. O deferimento
do pedido de matrícula estava condicionado a tal avaliação e os alunos diagnosticados como “doentes mentais”,
através de instrumentos de medidas psicológicas, poderiam ser afastados do curso (Rádice, ano 1, 4, 1977).
Em 1980, uma aluna do curso de psicologia da então Faculdade Celso Lisboa, que havia posado nua para uma
revista, respondeu a um inquérito aberto pela direção da instituição, sendo punida com trinta dias de suspensão.
O acirramento da repressão e o aumento das restrões com a aplicação dos instrumentos
de punição, não conseguiu pôr um fim ao movimento estudantil. em 1964, a União
Estadual dos Estudantes (UEE), havia conseguido compor uma junta governativa para dirigir
a UNE, que tinha sido esvaziada. A junta deu lugar a uma diretoria eleita pelo Conselho
Nacional de Estudantes, que tinha sua base na União Metropolitana dos Estudantes (UME) do
Rio de Janeiro. Em julho de 1965, realizaram em São Paulo o XXVII Congresso da UNE, o
último o-clandestino (CUNHA, 1988).
Quem entrou na universidade na segunda metade da década de 1970 deparou-se com a
lógica empresarial que orientava a educação superior, e com a expansão da rede universitária,
motivada pela implantação dos programas de pós-graduação e o aumento da rede privada de
ensino, ambos dispondo de generosos recursos públicos. A classe média vislumbrava no
diploma universitário o passaporte para ascender socialmente. Dois mitos foram construídos:
do profissional liberal e da universalização do acesso à universidade.
Esse acesso universal” era garantido através do vestibular, concurso pretensamente
democrático, criado para selecionar aqueles “aptos” para o exercício da vida acadêmica ou,
nos contornos cartoriais do Brasil, para o exercício de determinadas profissões. O vestibular
evidenciava que o ensino superior não era para todos
26
. Quem tinha melhores condições
econômicas, estudava em boas escolas (privadas) e garantia sua vaga nas universidades
públicas. Aos estudantes mais pobres destinavam-se as vagas nas instituições particulares de
ensino superior que ofereciam ensino de baixa qualidade. Eram pirâmides que que
mostravam a crueldade da desigualdade brasileira.
Enquanto as instituições públicas cresciam com os investimentos no campo das ciências
tecnológicas, principalmente no campo da s-graduação, entendidas como necessárias para o
desenvolvimento do país, as particulares contribuíam com a expansão da rede de ensino
superior através da abertura, em qualquer esquina, de cursos diversos, principalmente no do
campo de humanas, em função do seu baixo custo.
A universidade “aberta a todos”, instrumento para formar profissionais competentes”
visando seu engajamento no projeto desenvolvimentista militar, vivia as conseqüências dos
desmandos de alguns reitores, do desvio de verbas destinadas à manutenção dos laboratórios e
salas de aula, de bibliotecas sem condições de funcionamento, da desorganização
Um documento com seu nome completo seguido de todos os artigos em que se considerava que ela havia
infringido foi colado em todas as portas da faculdade (Rádice, ano 4, nº 14, 1980).
26
Pois levava em consideração as respostas a provas de conhecimento, sem levar em consideração as diferenças
sócio-econômicas para obter os referidos conhecimentos.
administrativa, do descaso com a assistência aos estudantes (as moradias precárias, os
“bandejões” com filas quilométricas etc.).
Na primeira avaliação dos primeiros cinco anos de efetivação das mudanças preconizadas
no projeto Reforma Universitária, os técnicos do MEC se depararam com um elemento
inesperado: o aumento do número de matculas, mas também o alto índice de evasão
escolar
27
. A insatisfação com a qualidade do ensino, as perseguições poticas, a necessidade
de trabalhar para pagar as contas, eram as justificativas apontadas.
Se houve um silenciamento das expressões de resistência dentro das universidades no
começo dos anos 70, a partir da segunda metade da década, contudo, surgiram outros modos
de se organizar. Não era mais possível uma revolução macro, grandiosa, com desfile de
bandeiras pela avenida depois da derrubada do poder opressor. A resistência passou a ser
micro, local, algo que deveria ser exercido todos os dias, ao acordar, ao ir para o trabalho, na
praia, no convívio com familiares, com amigos. O riso, a ironia, a galhofa tomaram o lugar
das armas, e a arte passou a ser a expressão dessa resistência.
O silenciamento nos campi era aparente. Havia burburinho nos bares, nos grupos de
estudos, nas peças de teatro encenadas e nas publicações artesanais organizadas pelos
estudantes. Nos campi ferviam e borbulhavam idéias e milhares de falas. Apesar da
repressão causada pela presença de delatores infiltrados pela polícia nas salas de aula,
constituiu-se uma rede de contatos, de atividades e intervenções que driblavam aquele
impedimento. As perseguições aos estudantes, professores e funcionários tiveram um efeito
paralisador em um primeiro momento, mas, em seguida, as pessoas encontraram novas formas
de subverter tal controle, encontrando-se, mesmo que de forma rápida, pontual e efêmera.
A experiência universitária foi radical para a constituição de novas subjetividades. A
universidade era um elemento importante na vida social, política e cultural. A partir da
segunda metade dos anos 1970, uma nova forma de experimentar a vida acadêmica surgiu. A
universidade tornou-se um espaço de dificuldades e afrontamentos, mas também de vida, de
acontecimento, de alegria. Deixava de ser um lugar exclusivo para o ensino e a aprendizagem
formais, tornara-se espaço de vida, as pessoas se encontravam, estudavam, discutiam,
namoravam, brindavam, sentiam-se entrando em um território novo que, ao mesmo tempo,
era delas também.
27
Matéria: “A evasão de alunos na universidade”, por J. Casado. Opinião, nº 198 de 20 de agosto de 1976, p. 7.
Havia encontro, embaixo da amendoeira depois da aula do Clauze e o
Garcia-Roza era considerado um professor estonteante. Aquele
terririo era nosso. Havia uma relação de filiação e pertencimento
naquele campus. Vovia a vida florescer. As falas eram compostas
no enfrentamento da ditadura. A formação de esquerda acontecia na
universidade. O silêncio não era tão absoluto. (CONDE, Diva Lúcia
Gautério, (depoimento). Rio de Janeiro, 2007)
Novas formas de expressão potica se constituíam misturadas com a realidade social dos
grandes centros urbanos. Intervir nessa realidade passou a ser a condição primeira de
transformação. No campo da psicologia, essa preocupação se explicitava no engajamento no
campo da saúde mental, no campo da educação e no trabalho em favelas, que se desenvolviam
através do contato com os deres e representantes dos moradores. Os estudantes subiam os
morros cariocas levando informações sobre saúde, oferecendo atendimentos a mulheres e
jovens. A formação do psicólogo passa a contar mais com esses “fluídos” do campus
universitário que com as teorias clássicas ensinadas em sala de aula. Foi essa experiência
militante que contribuiu para a afirmação de novas práticas no campo da psicologia.
Depois de massacrar os grupos de esquerda e impor um período de silêncio em toda a
sociedade, a ditadura militar voltará a ouvir as vozes dos estudantes a partir de 1977.
Como assinala Poerner (2004), as reivindicações foram ampliadas, iam desde a oposição à
ditadura, contra o fechamento do Congresso Nacional, contra a censura, contra as medidas
repressivas, contra os atos de exceção e a exigência da anistia “ampla, geral e irrestrita”, até às
questões relacionadas às condições das universidades, mais verbas para as instituições de
ensino, à limitação do preço das anuidades nas instituições particulares, à melhoria do vel
de ensino, ao funcionamento dos restaurantes universitários e das moradias estudantis, à
defesa do ensino público e gratuito, à revogação das punições impostas aos demais estudantes,
à libertação dos que se encontravam presos. A deteriorização da qualidade do ensino e o
problema dos alunos excedentes também se tornaram bandeiras na década de 1970,
conseqüências da redução de verbas e do modelo de massificação que relegava a qualidade a
um segundo plano.
No ano de 1978, as ações dos estudantes se concentraram nos preparativos para o
Congresso de reconstrução da UNE, marcado para maio de 1979, em Salvador. Essa data foi
uma decisão do Encontro Nacional de Estudantes, realizado na USP. Desse Encontro
também foi tirada outra decisão importante: o apoio aos candidatos do MDB nas eleições de
novembro de 1978, contrariando as propostas dos grupos mais radicais (POERNER, 2004).
De acordo com Araújo (2007), o responsável pela organização do Congresso foi o estudante
baiano Ruy César Costa e Silva, até então presidente do DCE da Universidade Federal da
Bahia.
O XXXI Congresso da UNE foi aberto com uma homenagem ao estudante ex-presidente
da entidade, que estava desaparecido, Honestino Guimarães.
Dos últimos presidentes da UNE, dois (Aldo Arantes e Altino
Rodrigues Dantas Júnior, ambos do PCdoB) estavam na cadeia, três
(José Luís Moreira Guedes, Jean-Marc e Luís Travassos), no exílio, e
um (Honestino Guimarães), desaparecido. (POERNER, 2004, p. 288)
No primeiro Congresso da UNE depois de 1968, os estudantes aprovaram um documento
intitulado Carta de Princípios que assegurava a constituição da UNE como uma entidade
“livre e independente”. Constituiu-se uma diretoria provisória que teria como tarefa organizar
as eleições para a diretoria definitiva. Essa nova diretoria foi eleita pelo voto direto, como
sublinha Poerner (2004), fato inédito na trajetória da entidade, tendo o estudante Ruy César
Costa e Silva eleito como presidente.
Terminada a longa e acidentada travessia de Ibiúna a Salvador, a UNE
rompia as barreiras da proscrição e da clandestinidade. Estava
reconstruída, embora ainda não reconhecida pelo governo.
Representando mais de 1,3 milhão de universitários, era a primeira
entidade nacional de massa a se reestruturar. (POERNER, 2004, p.
290)
Os dirigentes da UNE pretendiam retomar sua antiga sede, um prédio na Praia do
Flamengo, no Rio de Janeiro, ocupado, naquele momento, por cursos de teatro da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO. De acordo com Araújo (2007),
policiais militares invadiram o prédio, de posse de um laudo do Corpo de Bombeiros que
recomendava a demolição.
A intenção das autoridades era, exatamente, esta: retirar do
movimento que se reconstruía o patrimônio cultural, o edifício
histórico que representava a sua memória. E que ligava o Movimento
Estudantil do final da década de 70 às lutas dos anos 1950 e 1960.
(ARAÚJO, 2007, p. 134)
O prédio foi abaixo, apesar dos protestos de estudantes e parlamentares, que foram para a
frente do imóvel enfrentar os policiais, e também da liminar do Juiz Carlos Davi Santos Aarão
Reis, da 3ª Vara Federal, para sustar a ação iniciando uma batalha judicial com o Tribunal
Federal de Recursos. Mesmo sob ameaça de morte, o juiz Aarão Reis foi até o local armado
com um revólver para tentar impedir a demolição.
O prédio desabou, toda a frente e o miolo, e ficaram aparentes
somente o fundo e a abóbada do teatro. Foi um episódio extremamente
doloroso. Acho que foi uma agressão à história do Brasil, um atestado
de ignorância não dos militares, mas também dos dirigentes do
governo e da Prefeitura do Rio de Janeiro. (Ruy César, conforme
citado em ARAÚJO, 2007, p. 236)
As ações de enfrentamento da década de 1960 tornaram-se ações de resisncia na década
de 1970. Emergiu outra forma de ação: dizer, falar, nomear. Dizer quem fez o que, com
quem, para quê, exigir o fim da ditadura e a anistia, a punição dos autores dos crimes de
tortura e assassinato e a democratização do país. Deleuze (2005), comentando os trabalhos de
Foucault, assinala que tal tipo de ação representa a primeira inversão do poder, o primeiro
passo para que surjam outras lutas: o discurso de luta se oe ao segredo. Sem a proposta
reformista, sem querer reorganizar o Estado, surgem nessa cena novos movimentos: a
liberação sexual, a luta das mulheres, dos grupos homossexuais, do movimento negro, do
movimento de familiares das pessoas internadas nos hospitais psiquiátricos, da exincia que
o Estado prestasse contas dos corpos desaparecidos etc. Através de suas lutas específicas,
esses movimentos questionavam o problema do poder, os dogmas do marxismo e a sociedade
burguesa.
Coimbra (1995) estabelece uma diferenciação entre um tipo de militância que ordena e
organiza e outra que constitui novos territórios, a partir da experiência do cotidiano no qual
intervém. As resistências não foram coisas inocentes, em que os puros lutaram e entregaram
suas vidas por um ideal límpido, claro. É um campo de embates, contradições, batalhas,
enfrentamentos, tensões, instabilidades. Consideramos a Rádice como uma das expressões
dessa resistência que questionou os saberes instituídos a psicologia colocada no alvo das
críticas e problematizações e renovou a luta potica na década de 1970, produzindo muito
barulho, muito ruído.
1.3. “Rádice, Muito Prazer!”
O período em que a revista Rádice foi produzida (de 1976 a 1981) compreende, portanto,
o momento no qual os movimentos sociais e populares materializavam a denúncia dos atos
violentos da repressão, reivindicando o fim da ditadura; a volta dos exilados poticos; a
pressão feita ao governo autoritário pelos organismos internacionais de direitos humanos; as
mudanças nas expressões culturais e nas formas de compreensão e organização da luta
política, confirmando novos modos de resistência.
A Rádice surgiu no Rio de Janeiro em setembro de 1976, a partir da união de um grupo
de pessoas, em sua maioria psicólogos e estudantes de psicologia, mas também artistas e
jornalistas. Muitos outros se uniram depois a esse grupo inicial, fazendo com que a revista
chegasse a outros estados do país, deixando de ser uma experiência somente carioca. O
número de colaboradores da Revista é muito grande e heterogêneo, expressando uma de suas
marcas a diversidade, a pluralidade. Seu principal responsável foi o psicólogo Carlos
Ralph, ou Cê Ralph, como assinava os editoriais e matérias.
A Rádice teve sua gênese, ainda, nas experiências de Carlos Ralph durante o exílio na
Argentina, na leitura atenta e constante dos jornais da imprensa alternativa e conversando
com um, com outro
28
. Ainda durante o período de graduação em psicologia, Ralph
participou da editoração da Revista de Psicologia Revista dos Alunos do Instituto de
Psicologia da UFRJ, proposta do então estudante de psicologia Antônio Geraldo Peixoto
Filho. Do corpo editorial provisório”, além de Antônio Geraldo, faziam parte os estudantes
Cláudio Smith da Silva, José Virgílio, Maria Cristina Leal Viana, Irene Zaslavsky, Cristina
Rauter, Sheila Feital, Gabriel Atalla e Sandra Medeiros.
Ralph deixou sua marca desenhando as capas dos dois últimos números da Revista de
Psicologia, que teve vida breve, com apenas quatro números
29
. Devido às inúmeras
dificuldades pouco dinheiro, poucos recursos técnicos sua confecção era artesanal e
amadora: inicialmente, era composta a partir de um original datilografado e, em seguida,
copiada em outras instituições, como a UFF e a PUC-RJ, onde os alunos ainda tinham acesso
à equipamentos como fotocopiadoras.
Essa Revista surgiu da necessidade dos alunos de criar um meio para expressar suas
idéias e críticas relativas à formão e à psicologia. Seu objetivo era abrir um espaço para o
estudo de outras perspectivas da psicologia que o eram oferecidas pela maior parte dos
28
VIANA, Carlos Ralph Lemos Rádice, editorial , número 1, 1976.
29
Número 1, agosto/setembro de 1972; número 2, outubro/novembro de 1972; número 3, maio de 1973; número
4, outubro de 1973. Este material está disponível no arquivo do Núcleo Clio-Psyché/UERJ.
professores, considerados conservadores. Professores como Luiz Alfredo Garcia-Roza,
Antonio Gomes Penna e Clauze Roland são lembrados pelos estudantes dessa época como
aqueles que eram mais próximos dos alunos, pois realizavam grupos de estudos nos quais
outras temáticas apareciam, como a fenomenologia e a gestalt, a epistemologia de Gaston
Bachelard, as críticas à psicologia experimental behaviorista, tão presente na formação
naquele momento. O modelo da formação em psicologia no Instituto de Psicologia da UFRJ
naquele momento, contava com espaços de resistência constitdos pelos debates que
ocorriam em grupos organizados por esses professores e alunos. Em seu primeiro editorial, os
alunos da Revista de Psicologia perguntavam o que acontecia com a psicologia brasileira,
apontando as precárias condições da universidade (tanto no que se referia à estrutura física, as
instalações dos laboratórios, quanto às questões relacionadas com a parte teórica).
O debate e a circulação de idéias é um ato de resistência. Como afirma Carlos Ralph
(VIANA, 2005), a Rádice foi um grande movimento, fez vibrar o que era tido como
estabelecido, tinha “potência”. Considero que o esforço na construção (e manutenção) de
uma Revista como essa, em períodos tão difíceis, foi um ato de resistência.
Segundo Ralph, todo o processo de construção e realização da revista o tomou: ele, um
ex-militante da ão Popular (AP), que fora torturado pelos órgãos de repressão, estava
construindo um veículo de comunicação para poder se expressar em plena ditadura militar.
Foram quatro anos e sete meses de intensa dedicação para visando manter a revista viva e
crescendo, o prazer de escrever e a descoberta da arte gráfica.
Além de Ralph, Rádice contou com inúmeros colaboradores para a elaboração do
logotipo da revista, das matérias, de fotos e imagens, a realização de entrevistas, a divulgação,
distribuição, venda etc.
Seu primeiro número
30
foi lançado numa festa, no dia 20 de setembro de 1976, no Teatro
João Caetano, contando com convidados de destaque como Djavan, Ângela Rôrô e
Therezinha de Jesus. Mas um atraso na impressão da Revista impediu que fosse apresentada
aos que compareceram à festa.
30
Em cada número descrito, reproduziremos os nomes dos colaboradores registrados no Expediente da Revista.
No primeiro número, além, claro, de Carlos Ralph colaboraram: Joel Bueno, Jussara Lins, Eduardo Tornaghi,
Regina Salim, David Bocai, Jean dos Santos, Maria da Glória, Solange Perdigão, Ângela Bernardes, Milton
Athayde, Tereza Costa Barros, Jo Novaes, Maria Buschinelli, Sandra Medeiros, Margarida Lopes, Beth,
Regina, Ruben Fernandes, Vera Bernardes, Washington Lessa, Sérgio Falcão, Roberto Dalmaso.
Agradecimentos para Wit-Olaf Prochnick, Charles Esberard, Maria Cecília Tornaghi, Rawlinson P. Lemos,
Raimundo Fagner, Newton Tornaghi, Bernardo Jablonski.
Ao todo foram 15 números, contando ainda com dois extras: a edição de comemoração de
4 anos, lançada em 1980, e a Rádice Teoria/Crítica, uma publicação voltada para a divulgação
de textos considerados acadêmicos, lançada em 1979, e que teve somente um número.
Com uma apresentação cuidadosa, na capa do primeiro número
31
aparece uma grande raiz
em sépia, o nome Rádicee as chamadas das matérias. O nome foi inspirado na palavra
“Radic” ou “radix”, que significa “raiz” em latim. Ralph inventou um acento na palavra e
assim a revista foi batizada. No editorial, a proposta de ser uma “revista de jornalismo da
psicologia”, ainda que isso não estivesse claro para o grupo. Tal proposta concretizava-se nos
textos que, em sua maioria, abusando da linguagem coloquial, marcava um distanciamento
dos textos acadêmicos.
Sem muita experiência sobre como fazer uma revista e sem muito dinheiro para investir
neste sonho, os idealizadores da Rádice contaram, nesse começo, com a ajuda de familiares
que compraram “ações” da Revista ou cotas imaginárias para a implantação da Revista
32
.
Para cada número publicado, um grande esforço se fazia: o dinheiro arrecadado na venda dos
exemplares servia para pagar os empréstimos tomados e novos empréstimos eram feitos;
também eram organizadas festas a fim de arrecadar mais um pouco de dinheiro. Como boa
parte da imprensa alternativa, não podiam contar com anúncios publicitários
33
, pois os
anunciantes privilegiavam os veículos da grande imprensa. A partir do terceiro número, foi
lançada uma campanha de assinaturas intitulada “mamão sem caroço”,
Compre prá trás, assine prá frente. Faz bem prá saúde. Os nº 1, 2, 3,
e 4 vorecebe imediatamente e os cinco próximos 6, 7, 8, 9 e 10
bem rápido, assim que forem saindo da gráfica. Preço? 150 mangos,
perdão, mamões, perdão, cruzeiros. (Rádice, nº5, janeiro de 1978).
Esta campanha foi aperfeiçoada e ampliada, transformando-se na “Aníbal tinha razão”.
O que considero interessante é que mesmo sem saber se poderiam cumprir com as promessas
dos planos, eles prometiam...
Assine prá frente. É o plano racional. Retire uma nota de 100 do seu
orçamento e passe para o nosso. Em troca mandaremos os próximos 5
números 6, 7, 8, 9 e 10 e como brinde um número atrasado que você
escolher. É a compensação. Assim falou Aníbal...
31
As capas da Rádice estão reproduzidas no Anexo I.
32
VIANA, Carlos Ralph Lemos (depoimento). Rio de Janeiro, 2008.
33
A não ser a divulgação da Drogaria do Povo, farmácia do tio do Ralph que assim colaborava financeiramente
em troca da divulgação.
Nos anos 70, a impressão desse tipo de material ocorria de maneira que hoje poderíamos
denominar artesanal, cada página era montada cuidadosamente letra por letra, imagem por
imagem, sua diagramação levava até uma semana para ser concluída. Desde o primeiro
editorial, havia a promessa de ser uma revista bimestral com o sonho de tornar-se mensal, mas
essa proposta nunca se concretizou. Devido às dificuldades financeiras e de produção, a
Rádice saía “quando dava em quando dava”
34
.
As primeiras reuniões sobre a revista aconteceram nos gramados da UFRJ, no campus da
Praia Vermelha. Era ali, debaixo das árvores, que Ralph fazia o convite-sedução aos
estudantes de psicologia para participarem na elaboração da Revista. Essas reuniões também
aconteciam em outros endereços como a resincia de Wit-Olaf Prochnick, cunhado de Carlos
Ralph e grande incentivador da Revista, e de Vera Bernardes, responsável, junto com
Washington Lessa, pela arte gráfica. O bar 007 na Rua Farani, no bairro de Botafogo,
também serviu de sede e, para fazer contatos com outros colaboradores e possíveis
distribuidores, utilizava-se um telefone público situado em frente ao bar. Outro lugar de
referência da revista foi a casa da Rua Alice, no bairro das Laranjeiras, que foi moradia
Ralph e outros colaboradores da Revista dividiram o mesmo espaço, constituindo uma
comunidade, falaremos mais dessa experiência nos próximos capítulos e lugar de reuniões,
debates e festas animadíssimas que ficaram na memória de todos.
no segundo número
35
, Ralph e o grupo de colaboradores conseguiram uma sala na
Casa do Estudante Universitário (CEU), que na época era um centro de efervescência cultural
e potica, de movimentação.
A CEU tinha grandes salões... era autônomo. Isso incomodava muita
gente, a UFRJ era a dona do prédio, mas não conseguia interferir em
nada (...). tinha uma lavanderia coletiva, uma cantina coletiva, um
cineclube, um teatro e uma biblioteca tudo funcionava por
comissões. Tinha três andares. No andar de baixo ficavam algumas
resincias e essa parte de serviços. O segundo andar era moradia dos
estudantes e o terceiro era um albergue que albergava, principalmente,
estudantes do mundo todo. Era fantástico o número de pessoas que
passava pela CEU por ano. Então, a CEU foi um espaço incrível, teve
uma fase áurea, depois uma fase de decadência. A CEU, eu acho que
foi, no Rio, um acontecimento, na minha formação foi fantástico (...).
34
VIANA, Carlos Ralph Lemos (depoimento). Rio de Janeiro, 2005.
35
Colaboradores: Joel Bueno, Jussara Lins, Antonio Luiz Brandão, David Bocai, Wanderley Pinto, Eduardo
Tornaghi, Maria Buschinelli, Ângela Bernardes, Jean dos Santos, Solange Perdigão, Milton Athayde, Darcy
Cléa, Maria da Glória, Tânia Christini, Vera Bernardes, Ruben Fernandes, Washington Lessa, Beto Felício,
Sérgio Falcão, Roberto Dalmaso, Leila Castilho, Roberto Tavares, Regina Gaio, Lucinda Freire, Salomão Luna,
Maria Eugênia, Carlos Bezerra, Maria Terezinha. Agradecimentos: Helio de Almeida Lemos, Clytia Lemos
Viana, Tereza Walcacer, Décio Pessanha Viana, Ezir Nogueira de Miranda Lins.
Até que veio a fase negra do tráfico, a gente não conseguia saber
quem era estudante (...), , depois acabou. (RESENDE, João,
(depoimento). Niterói, 2007)
A CEU tinha por função acolher os estudantes que vinham de outras cidades do estado,
ou mesmo de outras partes do país. Em 1973, passou a funcionar na antiga Escola de
Enfermagem Ana Néri. Os estudantes organizavam-se em comissões, sendo eleita uma
diretoria responsável pela administração do lugar. Era o único lugar no Rio de Janeiro que
abrigava encontros de grupos que não tinham onde se reunir, como o grupo Corpo, os grupos
de teatro Tá na Rua”, de Amir Haddad, e o “Asdrúbal Trouxe o Trombone”, que ensaiava
sua peça “Trate-me Leão em uma das salas alugadas pela direção da CEU. Também se
reuniam ali o Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) formado pelos familiares dos presos
políticos e o Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP) que era composta, em
grande parte, por editores do jornal alternativo O Bagaço. A CEU também acolheu outros
jornais alternativos como Nós Mulheres e Brasil Mulher. Um terceiro grupo feminino teve
ainda seu espaço garantido na CEU, o grupo dissidente do Nós Mulheres, ligado ao grupo
político Liberdade e Luta (Libelu).
A redação da Rádice passou a ocupar uma das salas da CEU, resolvendo com isso, além
do problema da falta da sede, a falta de uma editora para fazer seu lançamento. Um dos
diretores da CEU, Roberto Lapa, enfrentava a mesma dificuldade com seu jornal O Bagaço e
decidiu criar uma editora, como mesmo nome do jornal, que editou a Rádice até o número
cinco.
No começo, a distribuição era bastante restrita, os primeiros “pontos-de-venda” eram os
diretórios acadêmicos das universidades. Era trabalho de bater de porta em porta oferecendo-
a, tarefa do estudante de psicologia e morador da CEU João Resende. A partir do segundo
número, a distribuição foi ampliada, chegando a outros diretórios de escolas que ofereciam
cursos de psicologia em outros estados do país. A ampliação da distribuição fez com que
fosse instaurado um sistema chamado “grupos sucursais”, compostos por psicólogos e
estudantes de psicologia que enviavam notícias das movimentações em seus estados e
também matérias e entrevistas. A revista chegou a ter cinqüenta sucursais, num sistema de
micro-revolução, de micro-administração e num modo quase artesanal.
Mesmo afirmando-se a partir do quarto número como revista de psicologia”, o conteúdo
da Rádice sempre foi bastante diversificado, ultrapassando as fronteiras do “universo psi”.
Desde o primeiro número, os leitores são convocados a participar da Revista enviando textos,
artigos, notas, denúncias e mesmo vendendo-a. A partir do segundo número, uma seção de
cartas, Opinião”, em que são reproduzidas críticas, elogios e comentários diversos sobre a
Revista. A única seção que foi mantida do início ao fim da revista foi a “Geralmente”, com
dicas culturais e notícias rápidas sobre o cotidiano (potica; saúde; psis; alerta sobre remédios
proibidos nos países de “primeiro mundo”, mas vendidos no Brasil; divulgação de
publicações da imprensa alternativa; críticas; erratas; denúncias; alertas ecológicos etc.)
36
.
A Revista não era corporativista, direcionando críticas ácidas aos processos de
psicologização das questões político-sociais e ao conseqüente esvaziamento de lutas poticas.
Não estava ligada a nenhuma instituão, mantendo sua posição independente em relação às
instituições oficiais da profissão, de formação, etc. até seu último número. No editorial do
número 1, o grupo da Rádice apresentava a família da qual fazia parte: “uma linha alternativa
de imprensa”, junto com outras publicações como o Bondinho, Ex, Pasquim, Movimento,
Opinião, Scaps, Versus, Ordem, Abertura” (Rádice, editorial, nº 1, 1976).
Para seus inúmeros colaboradores em todo o país, participar da revista, viver a Rádice,
era uma forma de militar politicamente, vendendo-a, indicando, falando com amigos, levando
as discussões em sala de aula das universidades muitos eram estudantes, indo aos encontros
de psicologia. A Revista era vista como um espaço por onde ecoava a voz dos que queriam
falar e pensar novos problemas para a psicologia.
Esse foi o momento que a psicologia se estabeleceu no plano do cotidiano, ou seja, a
figura do psilogo tornou-se presente, constante, participando de debates na televisão,
ditando regras de comportamento, escrevendo ou sendo entrevistado em matérias de revistas
de grande circulação, abordando temas como drogas, maternidade, educação infantil, como
ser isso ou aquilo, o que fazer em determinados momentos da vida, como criar os filhos, como
lidar com os jovens etc., sempre de maneira prescritiva.
O psicólogo passa a ser visto como aquele que tudo sabe, e que pode predizer
comportamentos e mesmo prescrever modos de ser. Os discursos psi” entram pelos poros,
são absorvidos pelas almas. Em movimentos paradoxais, a legitimidade científica da
psicologia é problematizada, enquanto são organizadas lutas em defesa da categoria
profissional, como a reivindicação das associações de psilogos pela instauração do
36
Outras seções que apareceram, ao longo de seu percurso, não tão constantes como a “Geralmente”: “Estágios
(aparece nos números 1, 2, 3, 4, e 5), “Mestrados” (nos números 2 e 10), “Teses” (números 3, 4 e 5), “Livros”
(números 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8), “Opinião” (número 2 , 10 e edição de quatro anos), “Psicologia nos estados
(números 8, 10, 11), “Toques” (números 13, 14 e 15).
sindicato e pela afirmação da institucionalização da profissão, pois mesmo já tendo ocorrido a
regulamentação em 1962
37
, ela ainda parece frágil.
Ao trabalhar com a revista foi necessário, através de malabarismos
38
, presumir algumas
datas, pois em muitos números não registro temporal. Para futuras pesquisas, apresento
aqui a relação das datas de publicação, lembrando que algumas foram presumidas
39
: número
1, setembro de 1976. Número 2, janeiro ou fevereiro de 1977. Número 3, junho de 1977.
Número 4, ano 1, setembro de 1977. Número 5, ano 2, janeiro de 1978. Número 6, ano 2,
junho/julho de 1978. Número 7, ano 2, setembro/outubro de 1978. Número 8, ano 2,
dezembro de 1978. mero 9, ano 2, abril/maio de 1979. Número 10, ano 2, julho/agosto de
1979. Número 11, ano 3, novembro/dezembro de 1979. mero 12, ano 3, março de 1980.
Número 13, ano 3, junho de 1980. Número 14, ano 4, outubro de 1980. Número 15, ano 4,
abril de 1981. Rádice Teoria/Crítica número 1, ano 1, 1979. Rádice edição de quatro anos
(compilação das melhores matérias dos três primeiros números), setembro de 1980.
A expressão revista de psicologia” vinculada ao nome Rádice apareceu pela primeira
vez no segundo número, desapareceu no terceiro e reapareceu no quarto, tornando-se
constante. De acordo com o editorial do número dois, foram realizadas discussões e debates
37
Lei nº 4.119 de 27 de agosto de 1962, que dispõe sobre os cursos de formação em psicologia e regulamenta a
profissão de psicólogo. A lei 4.119 foi regulamentada pelo Decreto nº 53.464 de 21 de janeiro de 1964, que
dispõe sobre a profissão de psicólogo. Os Conselhos Federal e Regionais foram criados através da Lei 5.766
de 20 de dezembro de 1971, porém somente em 20 de dezembro de 1973 foram escolhidos os componentes do
Conselho Federal de Psicologia (CFP), indicados por associações de psicologia convocadas pelo Ministério do
Trabalho. O I Plenário do CFP (20/12/1973 a 10/12/1976) foi composto pelos seguintes conselheiros efetivos:
Arrigo Leonardo Angelini (presidente), Arthur de Mattos Saldanha, Clovis Stenzel (secretário no período de 17
/08/1975 a 20/12/1976), Geraldo Magnani, Geraldo Servo (secretário no período de 20/12/1973 a 17/08/1975),
Halley Alves Bessa (tesoureiro), Oswaldo de Barros Santos, Tânia Maria Guimarães e Sousa Monteiro, Virgínia
Leone Bicudo, e os conselheiros suplentes Antonio Rodrigues Soares, Caio Flaminio Silva de Carvalho,
Francisco Pedro Pereira de Souza, Márcia Lucy Mello e Silva, Mathilde Neder, Myrian Waltrude Patitucci Neto,
Odette Lourenção Van Kolck, Reinier Antonius Rozestraten e Rosaura Moreira Xavier. Os Regionais foram
constituídos por designação do CFP e instalados em 27 de agosto de 1974 (à época havia somente sete regionais:
CRP01 Acre, Amazonas, Goiás, Pará e Territórios Federais do Amapá, Roraima, Rondônia e Distrito Federal.
CRP02- Alagoas, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Território de Fernando
de Noronha. CRP03 Bahia e Sergipe. CRP04 Espírito Santo e Minas Gerais. CRP05 Rio de Janeiro.
CRP06 Mato Grosso e São Paulo. CRP 07: Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina).
38
Dois exemplos desses malabarismos: primeiro, para presumir a data do número dois, relacionamos as
informações do editorial em que Ralph menciona que foi escrito em novembro, com algumas matérias (uma
sobre a primeira assembléia orçamentária ocorrida no Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, que
utiliza dados retirados do boletim informativo da entidade datado de dezembro de 1976; outra, a publicação de
uma carta enviada por Arani Borges Santos, que a Rádice transcreveu do jornal Opinião, nº 214 de 10 de
dezembro de 1976). Presumimos que o segundo número saiu em 1977, provavelmente em janeiro ou fevereiro,
observando que a elaboração do número seguinte já se iniciava. O segundo exemplo, foi a data do número três.
De acordo com o editorial, a edição do terceiro número foi fechada em fins de abril e o editorial foi escrito no
início de maio “um mês antes da entrada em circulação(Rádice, editorial, número três). De acordo com nosso
exercício de detetive, o número três saiu em junho de 1977.
39
As datas presumidas são as dos números 1, 2, 3, 4, 5, 8, 11, mais a edição de quatro anos e a Rádice
Teoria/Crítica.
no Rio de Janeiro sobre a revista, apontando seus acertos e, também, seus aspectos
contraditórios. O lançamento do número dois ocorreu na Casa do Estudante Universitário,
com um debate sobre os problemas da formação do psilogo no Brasil, que teve como
convidada a professora da UERJ, Darcy Cléa. As críticas da professora tiveram como alvo,
além da formação, a condição “alienada” dos psicólogos brasileiros e a importação de teorias,
principalmente os modelos norte-americanos. Outro ponto destacado foi o apoio dado à
Revista por jornalistas, mais que por psilogos.
Esses debates confirmaram-na como uma “revista aberta”
40
, na qual todos podiam
colaborar, e propiciaram algumas modificações estruturais, como a organização do grupo em
editoriais. A proposta de reportar os fatos mais recentes da psicologia tornou-se quase
inviável diante das dificuldades e do tempo que levavam para fechar cada número. Algumas
críticas e elogios ao número 1 foram enviados através de cartas que a revista conseguiu
resgatar, mesmo tendo publicado o endereço errado; tais cartas foram publicadas na seção
Opinião”, espaço para a expressão dos leitores.
Os temas relacionados à saúde mental ganharam destaque desde os primeiros números,
como, por exemplo, a entrevista feita por Joel Bueno com a escritora Helena Jobim que
relatava suas experiências de internação e a relação com a família e a filha; a entrevista com a
Drª Nise da Silveira (1906-1995), contando alguns fatos de sua vida e de seu trabalho
inovador, como a Criação da Casa das Palmeiras, fundada em dezembro de 1956; a
publicação da “Carta aos diretores dos asilos de loucos” de Antonin Artaud (1896-1948); uma
confencia de Ronald Laing ocorrida em Londres, em fevereiro de 1977. Este será um dos
temas mais discutidos pela Rádice, ganhando maior destaque com a publicação de um número
exclusivo sobre os hospitais psiquiátricos brasileiros, o número 7 e matérias internacionais
sobre as transformações produzidas por Franco Basaglia na psiquiatria italiana, publicadas
nos números 9 e 10. Não uma edição da revista que não tenha um informe, um dado, uma
matéria, uma referência sobre as transformações no campo da saúde mental no Brasil e em
outros países.
No primeiro ano da revista, foram produzidos quatro números, em cada um é possível
perceber mudanças: na linha editorial, na arte gráfica, nas seções, na lista de colaboradores
alguns nomes desaparecem outros tantos surgem. Aliás, nenhum número da Rádice é igual ao
outro na apresentação ou na forma: mudam as chamadas de capa, muda o tipo de papel,
40
Editorial, Rádice, nº 2, janeiro ou fevereiro de 1977.
entram as cores, o expediente circula por várias partes da revista, etc. O mais importante,
talvez, é notar o que foi mantido,
Seguimos dentro de um espírito “nanico”; atentos à crítica ao trabalho
da psicologia e psiquiatria nacionais; ainda com dificuldades em
vencer preconceitos com relação à imprensa alternativa; mantendo a
todo custo o preço de Cr$ 15,00, apesar da inflação avassaladora e do
aumento do número de páginas; sempre sem dinheiro. (Rádice, seção
Geralmente”, número 4, ano 1, setembro de 1977, p. 5)
1.4. “Jornalismo da psicologia” – loucura, loucura...
Esta expressão “jornalismo da psicologia” apareceu logo no primeiro editorial da Rádice,
mesmo que seus editores não soubessem muito bem o que isso significava. No segundo
número, aparece algum indício do que seria esse “jornalismo”: reportar fatos da atualidade.
Mas, entre a reunião de pauta e a distribuição dos exemplares da revista para venda,
transcorria um longo tempo. Esse fato promoveu uma mudança em sua linha editorial,
coincidindo com a necessidade de aprofundar-se nos debates sobre os temas que emergiam
naquele momento.
Como dito, um dos temas mais recorrentes, presentes em todos os números publicados,
inclusive com uma edição especial, foi a questão da loucura, ou as várias experiências de
contestação do modelo psiquiátrico tradicional que se espalhavam por alguns países da
Europa e também no Brasil. Outras experiências como as que ocorreram nos E.U.A. e a de
Cuba não são consideradas como contestadoras do modelo psiquiátrico, sendo mencionadas
pelos autores que tratam desse assunto como experiências reformistas.
Tais experiências foram marcadas pelo fim da II Guerra Mundial e pela necessidade de
reconstrução, principalmente, dos países europeus. Segundo Barros (1994), durante a guerra,
o psiquiatra espanhol François Tosquelles
41
desenvolveu no Hospital de Saint-Alban, na
França, uma experiência que problematizava as relações entre psiquiatras, enfermeiros e
pacientes. Quando chegou ao hospital, encontrou algumas iniciativas cooperativistas que
serviram como disparadoras para a criação de outros instrumentos de intervenção, como o
41
Durante a Guerra Civil espanhola (1936-1939), Tosquelles desenvolveu ações terapêuticas com pessoas leigas.
Com o advento da II Guerra Mundial, refugiou-se na França, trabalhando no campo de concentração Sept Fonds
e, em seguida, em Saint Alban, onde desenvolveu os primeiros passos do que ficou conhecido mais tarde como
Psicoterapia Institucional (BARROS, 1994).
jornal e o grupo em que pacientes e técnicos discutiam as regras e as atividades desenvolvidas
na instituição.
O hospital tornou-se foco da resistência francesa durante a guerra, ali se refugiavam
camponeses, intelectuais e artistas. Barros (1994) afirma que Saint Alban foi um deflagrador
de críticas à psiquiatria asilar e medicamentosa, e é apontado pela autora como o embrião da
Psiquiatria de Setor, que propunha a implantação de serviços psiquiátricos espalhados pelas
rias regiões das cidades, contando cada um deles com uma equipe composta por psiquiatras,
psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, além de haver um arsenal de outras instituições
que tinham a função de assegurar o tratamento e a prevenção das doenças mentais. De acordo
com a autora, esse programa foi duramente criticado, pois promovia um esquadrinhamento da
cidade e de sua população. Segundo Amarante (1995), outra crítica vinha dos setores mais
conservadores da sociedade francesa, preocupados com a possibilidade de uma invasão das
ruas da cidade pelos loucos.
Outra experiência francesa, porém muito mais radical, foi a desenvolvida na Clínica de
Cour-Cheverny, ou La Borde, como ficou conhecida. Em 1955, seu diretor Jean Oury, que
havia trabalhado em Saint Alban com Tosquelles, convidou lix Guattari a participar da
equipe para desenvolver o ComiIntra-Hospitalar da clínica. A orientação era instalar um
incessante questionamento com relação a todas as rotinas burocráticas, à passividade e à
hierarquia institucionalizadas dentro do hospital.
Um dos principais marcos norteadores (ou desnorteadores) para aqueles que buscavam a
transformação do modelo assistencial psiquiátrico foi a Psiquiatria Democrática italiana que
teve no trabalho de Franco Basaglia sua maior expressão. Como diretor do Hospital
Psiquiátrico Provincial de Gorizia, Basaglia iniciou seu movimento de denúncia das práticas
de violência institucional, incluindo a psiquiatria como instrumento dessa violência. O
período de 1968-70 foi o auge da revolução pela qual passou a psiquiatria italiana. O trabalho
saiu dos muros do manicômio e expandiu-se, com a criação de centros de higiene mental em
rias cidades, com administrações comunistas e socialistas. Uma das grandes vitórias desse
movimento foi a aprovação da Lei 180, em 1978, conhecida como Lei Basaglia, que
preconizava a eliminação dos manicômios e a mudança de lógica na assistência, questionando
a noção de “doença mental” e o poder dos especialistas sobre os sujeitos.
Outro importante movimento de crítica à psiquiatria foi a antipsiquiatria. Segundo
Amarante (1996), surgiu na década de 60, na Inglaterra, com um grupo de psiquiatras, entre
eles, Ronald Laing, David Cooper e Aaron Esterson. É considerada a primeira crítica radical
ao saber médico-psiquiátrico, rompendo com o modelo assistencial vigente e propondo um
novo projeto de comunidade terapêutica
42
.
Laing e Cooper tornaram-se nomes de destaque, o primeiro direcionando suas críticas
contra a psiquiatria, a ordem social e familiar, afirmando posturas consideradas “marginais”,
livres ou “anti”. Segundo Laing, a loucura é um fato social, potico, e, até mesmo, uma
experiência positiva de libertação. O louco é visto como uma tima da alienação geral, é
segregado por contestar a ordem pública e colocar em evidência a repressão psiquiátrica
43
.
Cooper propunha como projeto uma transformação radical da sociedade, através da
eliminação da “estrutura familiar” (AMARANTE, 1996). No cerne do problema levantado
pelos psiquiatras ingleses, estava a violência psiquiátrica, ou, como diz Cooper “a violência
perpetrada pelos (...) „sadios‟, contra os rotulados de loucos” (COOPER, 1989, p. 15). Um
dos seus trabalhos mais famosos foi a experiência conhecida como Vila 21”. Em 1962,
Cooper encarregou-se de pôr em funcionamento suas idéias “antipsiquiátricas” em uma
enfermaria convencional dentro de um hospital psiquiátrico nas imediações de Londres. O
projeto identificou problemas relacionados com a organização e distribuição dos pacientes
pelas enfermarias; faltava um trabalho de pesquisa e análise das relações grupais e familiares,
“havia a necessidade de dados comparativos sobre a interação nas famílias e nos grupos
terapêuticos especializados” (COOPER, 1989, p. 111); por último, era necessário criar um
protótipo de uma pequena unidade autônoma, fora do contexto institucional, oferecendo aos
pacientes um grau maior de liberdade de movimentos fora dos papéis institucionais
estabelecidos. O trabalho direcionava-se também para a compreensão e discussão dos
preconceitos e juízos de valor sobre a loucura produzidos/reproduzidos pelos funciorios.
Como resultado dessa experiência, Cooper apontava a percepção de que as transformações no
campo da psiquiatria deveriam atingir toda a sociedade. Outra conclusão importante é a
libertação dos funcionários do sistema de hierarquização institucional. Segundo Cooper, essa
42
O termo comunidade terapêutica” foi criado por T.H. Main, em 1946, mas somente em 1959, com o trabalho
de Maxwell Jones, foi consagrado. A idéia de comunidade terapêutica sustentou-se a partir da concepção que o
hospital é constituído de pessoas (pacientes e funcionários) que, de modo igualitário, devem executar as tarefas
referentes ao funcionamento da instituição. Dessa forma, uma comunidade é vista como terapêutica porque
possui princípios que levam a uma atitude comum, não se limitando somente ao poder hierárquico da instituição.
A comunicação e a troca de experiências entre o hospital e a comunidade extramuros também se fazem
necessárias. Nessas comunidades, a discussão sobre os papéis dos funcionários e dos pacientes tornaram-se
instrumentos importantes de análise da instituição psiquiátrica. (AMARANTE, 1996).
43
Gilberto Lourenço Gomes enviou para a Rádice a gravação de uma conferência de R. D. Laing, realizada em
20 de fevereiro de 1977, promovida pela Philadelphia Association, em Londres, sobre o tema “O que é a
psicoterapia?”. Na conferência, Laing falava de seu começo como psiquiatra e as experiências que teve com a
técnica da hipnose. Publicada na Rádice nº 3, junho de 1977.
experiência provou ser possível dar um passo fora do hospital psiquiátrico em direção à
comunidade extramuros.
Essa experiência da antipsiquiatria, assim como outras já citadas, foram estratégias que
colocaram em análise tanto o hospital psiquiátrico quanto as “tecnologias psi”, produtoras de
verdades sobre os sujeitos e o mundo.
Em sua análise da intervenção médica sobre a loucura, Foucault (1977) assinala que a
medicina, a psiquiatria, a criminologia estiveram articuladas produzindo verdades sobre os
sujeitos através de provas (médicas e psicológicas). Segundo ele, os questionamentos dessas
disciplinas que surgiram a partir da segunda metade do culo XX, se direcionavam à forma
de produção do conhecimento e à norma sujeito-objeto, interrogando-os em suas funções de
poder-saber.
de Bernheim à Laing ou à Basaglia, o que foi questionado é a maneira
pela qual o poder do médico estava implicado na verdade daquilo que
dizia, e, inversamente, a maneira pela qual a verdade podia ser
fabricada e comprometida pelo seu poder. (FOUCAULT, 1977, p. 21)
Segundo Foucault, os movimentos psiquiátricos dos anos 60 do século XX, recolocaram
em questão o poder do psiquiatra. Antes desses movimentos, o que estava implicado nas
relações de poder era o direito da o-loucura sobre a loucura, a competência exercendo-se
sobre a ignorância, a normalidade se impondo à desordem e ao desvio, o bom senso
corrigindo erros. Esses movimentos de contestação da ordem psiquiátrica provocaram uma
inversão que consistiu em colocar a intervenção médica no centro do campo problemático e
questioná-la de forma radical.
No Brasil, essas experiências contestadoras mobilizaram parte importante dos
profissionais de saúde mental na segunda metade da década de 1970, somando-se às
experiências singulares que se desenvolviam, como, por exemplo, o trabalho realizado por
Nise da Silveira. Joel Bueno, David Bocai, José Paulo e Jussara Lins realizaram uma grande
entrevista com a psiquiatra brasileira, publicada nos números três
44
e quatro da Rádice. A
44
Colaboraram no número 3: Joel Bueno, Jussara Lins, Ângela Bernardes, Antonio Peixoto, Luiz Brandão, Paula
Borsoi, Elaine Tavares, Maria Sonia Destri, Denise Louro, David Bocai, Eduardo Tornaghi, Maria Buschinelli,
Tereza Walcacer, Vera Bernardes, Ruben Fernandes, Sergio Falcão, Ormino, Roberto Dalmaso, Carlos Pastana,
Lucinda Freire, Carlos Bezerra, Salomão Luna, Maria Eugênia, Tetê Catalão, Leila Castilho, Roberto Tavares,
Maria Terezinha, Regina Gaio, Carlos Oliveira, José Nóbrega.
capa do terceiro número apresentou o negativo da foto de um gato, uma homenagem à Drª.
Nise, conhecida fã dos bichanos
45
Nise da Silveira iniciou sua carreira médica em 1926, ano de sua formatura, vindo em
seguida para o Rio de Janeiro para freqüentar um curso de neurologia. Nesse período, prestou
concurso para a vaga de médico psiquiatra e, aprovada, iniciou sua trajetória no campo da
saúde mental. Dez anos mais tarde, durante o Estado Novo, suas atividades profissionais
foram interrompidas pela denúncia feita por uma enfermeira que viu os livros sobre marxismo
que costumava ler. Ficou presa por um ano e meio, como conseqüência perdeu seu emprego e
foi afastada do serviço público por oito anos.
Em 1944, retomou seu trabalho no Hospital Pedro II, onde iniciou atividades laborais
com os pacientes em uma pequena sala cedida pelo então diretor da instituição, Dr. Fábio
Sodré. Na entrevista, Nise da Silveira relaciona essas atividades com sua experiência na
prisão,
porque todo preso procura uma atividade, senão sucumbe
mentalmente. Você passar mais de um ano parado... Muito perigoso
[...] todo mundo procura organizar atividades. Nesse período lá [na
prisão] estudávamos muito, eu estudei muito quando o tempo ficava
imenso. (SILVEIRA, Nise. Entrevista/ Rádice, 1977: 10)
O trabalho foi ampliado, transformando-se em outras oficinas, como de jardinagem, de
encadernação, de música e de pintura. Ao mesmo tempo, Dra. Nise estudava a dinâmica
dessas atividades e como poderiam funcionar terapeuticamente. Ao procurar referências
teóricas, encontrou na obra de Carl Gustav Jung idéias que a auxiliaram na compreensão dos
desenhos e garatujas dos pacientes. Guardava todas as imagens produzidas e, em 1952,
inaugurou dentro do hospital o Museu de Imagens do Inconsciente. As pinturas produzidas
pelos pacientes tiveram ainda outro destino, foram fotografadas pela Dra. Nise e enviadas ao
psiquiatra suíço. Então, começou uma correspondência que durou cerca de dois anos,
culminando em uma exposição dessas pinturas no II Congresso de Psiquiatria, realizado em
1957, na cidade de Zurique.
No período 1944-46, percebendo o número expressivo de pacientes que retornavam ao
hospital mesmo após a alta médica, a psiquiatra propôs a organização de um setor de egressos
para acompanhar a saída desses pacientes. Essa idéia, bastante extravagante para a época,
contou com o apoio de outra médica, Dra. Maria Estela Braga, que também trabalhava no
45
Ver Anexo I.
hospital. Esse grupo, apoiado pela diretora de uma escola situada no bairro da Tijuca, que
cedeu uma das salas da instituição para as médicas, e contando com a colaboração da
assistente social Ligia Lourenço e da artista plástica Bela Pasleine, foi inaugurada em 23 de
dezembro de 1956, a Casa das Palmeiras. No peodo da realização da entrevista com a Dra.
Nise, a Casa das Palmeiras comemorava 20 anos de trabalho, e foi assim descrita pelos
entrevistadores:
A entrada é quase encoberta por trepadeiras. Dentro, um pandemônio
total, gente subindo e descendo escadas, máquinas fotográficas,
filmadoras. É a festa de aniversário da Casa: 20 anos de terapia em
liberdade. No segundo andar é improvisado um pequeno show, que
vai da recitação a uma experiência em música aleatória. Todas as
salas repletas de pinturas, desenhos, trabalhos de tapeçaria e cerâmica.
Estamos em fins de novembro; no pátio vai ser montado um Auto de
Natal. Uma chuva sem cerimônia, no entanto, vem interromper a
anunciação do arcanjo Gabriel à Virgem. Às pressas, a peça é
transportada para dentro da casa. Enquanto se arruma tudo de novo,
Dra. Nise passa por nós, fala: Estão conseguindo rotular as pessoas?”
Difícil, às vezes impossível mesmo. As velhas categorias têm enorme
dificuldade de se implantarem fora do ambiente hospitalar. (Rádice,
nº 3, junho 1977, p. 12)
O trabalho da Casa das Palmeiras é um dos marcos das transformações no campo da
saúde mental no Brasil. Com a ditadura militar, houve uma reformulação na assistência
dica no Brasil como a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), em
1966. O INPS seguia as políticas centralizadoras instauradas após o golpe e fundamentou-se,
principalmente, na compra de serviços privados de saúde, já que o instituto o concentrou
esforços em ampliar a capacidade da rede com novos serviços. Esse tipo de estratégia gerou
um aumento nos custos dos serviços de saúde e inúmeras distorções em sua prática, como, por
exemplo, o aumento das internações psiquiátricas.
Dono de seis dos dezessete hospitais psiqutricos de Pernambuco, o
dico Luiz Inácio de Andrade Lima Neto foi acusado em janeiro de
1977 de caçar bêbados nas ruas do Recife, interná-los como loucos e
beneficiar-se dos convênios com o INPS. (Rádice, ano 2, 6,
junho/julho de 1978)
Com o aumento do número das internações, a rede privada de saúde crescia a passos
largos, enquanto os serviços blicos sofriam com o descaso e a falta de investimentos. A
organização dos serviços de assisncia psiquiátrica seguia essa mesma lógica privatizante da
saúde. A década de 1970 iniciou-se com a constituição de um grupo de trabalho designado
pela Secretaria de Assistência dica do INPS, com o objetivo de levantar os principais
problemas da assistência. Os resultados dos estudos mostraram um aumento exorbitante das
internações e reinternações, servindo como fonte para a confecção da primeira versão do
Manual de Serviço para Assistência Psiquiátrica, no qual se destacavam programas de
psiquiatria comunitária, estimulando a criação de serviços extra-hospitalares e a formação de
equipes multiprofissionais.
Esse documento é visto como um ponto historicamente importante para o início de uma
transformação da assistência psiquiátrica no país, mas as recomendações nele contidas não
foram minimamente implantadas. Sua aplicação nunca aconteceu, na medida em que os
recursos da Previdência eram todos destinados à compra de serviços privados, e os donos
destes utilizavam sua força política, impedindo a realização de mudanças no modelo
assistencial. Esses donos dos serviços privados, organizados na Federação Brasileira de
Hospitais (FBH), criticavam os ideais da psiquiatria comunitária, os ambulatórios, os regimes
de semi-internação, as emergências psiquiátricas e defendiam ardorosamente o “verdadeiro
hospital psiquiátrico”, afirmando um modelo assistencial voltado para o confinamento e a
segregação.
As primeiras propostas de mudanças defendiam exatamente o que a FBH criticava. Tais
propostas foram preconizadas pelos profissionais de saúde inconformados com o
hospitalocentrismo que caracterizava a assistência no Brasil, com a manipulação das verbas
públicas e com os maus tratos e violências aos que se encontravam internados. Mas as coisas
eram difíceis, qualquer movimento em direção à ruptura era combatido pelos denominados
barões da saúde.
No ano de 1978, a saúde enfrentou uma de suas maiores crises. Os médicos residentes da
Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro iniciaram um movimento de greve que ganhou
âmbito nacional. Suas principais reivindicações eram: aumento dos salários e a garantia dos
seus direitos trabalhistas. Os programas de residência médica integravam o sistema de
formação em nível de s-graduação, sendo os residentes bolsistas, portanto, sem vínculo
empregatício, o que fazia com que seu movimento de greve não recebesse a atenção merecida
por parte dos órgãos do governo, que os ameaçava com o simples cancelamento de suas
bolsas
46
.
46
Jornal do Brasil, 06/07/78.
Nesse mesmo período, ocorreu uma grande crise dentro dos hospitais da Divisão
Nacional de Saúde Mental (DINSAM), que teve efeitos importantes como a organização do
Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM). A gota d‟água foi a demissão de
três bolsistas do Hospital Gustavo Riedel por denunciarem, no livro de ocorrências do
plantão, as péssimas condições de trabalho e atendimento à população. O Sindicato dos
Médicos, em nome dos colegas, procurou o diretor da DINSAM, Alberto Magalhães,
exigindo a recontratação dos bolsistas. O diretor não aceitou diálogo com o sindicato, muito
menos atendeu aos apelos dos outros bolsistas, e mais, considerou extintas as bolsas de 84
dicos, psilogos e assistentes sociais que se solidarizaram com os colegas. No final das
contas, o diretor Alberto Magalhães desligou de suas funções 230 profissionais. Na Rádice,
n.º 7 (1978), foi publicada nota sobre essa crise e o depoimento do Ministro da Saúde,
justificando as ações do diretor da DINSAM:
O Ministro da Saúde, Paulo de Almeida Machado, falando sobre a
demissão, declarou que os bolsistas não foram desligados, “pois o
prazo de suas bolsas, que é de 11 meses, havia vencido e, portanto,
está sendo criado na DINSAM um problema baseado no nada”. A
resposta dos grevistas: “nossos colegas antigos foram demitidos
quando estavam trabalhando um mês com suas bolsas
prorrogadas, e de repente foram desligados. Encaramos isto como uma
punição pela sua participação no movimento reivindicatório da
classe”. Até hoje a confusão continua. A readmissão não pintou e os
bolsistas substitutos convocados se recusaram a tomar posse. (Rádice,
1978, 2 (7), p. 4)
No dia 30 de junho, foi deflagrada a greve dos profissionais que continuaram nos
hospitais na tentativa de pressionar o governo e, principalmente, conseguir a readmissão dos
companheiros. Várias associações de classe
47
formaram uma comissão para tentar o diálogo
com o Ministro da Saúde e apontar as péssimas condições que os hospitais apresentavam. Foi
escrita uma carta e marcado um encontro, mas o ministro Almeida Machado não recebeu os
profissionais
48
que foram até Brasília tentar discutir as políticas de saúde no país. No
47
A carta foi assinada por 18 entidades: Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, Sociedade de Medicina e
Cirurgia, Associação Brasileira de Psiquiatria, Associação Médica do Estado do Rio de Janeiro, Conselho
Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro, Associação dos Médicos Residentes do Estado do Rio de
Janeiro, Associação Profissional dos Psicólogos do Rio de Janeiro, Associação de Psiquiatria e Psicologia da
Infância e da Adolescência, Associação Fluminense de Psiquiatria, Associação Brasileira de Medicina
Psicossomática, Sociedade de Psicoterapia Analítica de Grupo, Instituto de Medicina Psicológica, Sociedade de
Psicoterapia de Grupo do Rio de Janeiro, Sociedade de Psicologia Clínica, Associação Brasileira de Psicologia
Aplicada, Centro de Estudos do Sanatório Botafogo, rculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, Sindicato das
Assistentes Sociais. (Carta das associações e entidades profissionais ao Ministro da Saúde. Rio de Janeiro, 24 de
agosto de 1978.)
48
Júlio de Melo Filho (presidente da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática); Miguel Melzak
(diretor do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro); Vera Lúcia Canabrava (presidente da Associação
documento que seria entregue ao ministro, os profissionais reivindicavam a readmissão dos
profissionais afastados, a ampliação de quadro de contratados, a abertura para discussão dos
planos nacionais de saúde mental e a substituição da direção da DINSAM pela
responsabilidade no desencadeamento da crise e pela falta de flexibilidade no diálogo com as
entidades das categorias de trabalhadores, além de uma reformulação radical do modelo de
assistência psiquiátrica no país.
Todos esses acontecimentos promoveram a aglutinação dos profissionais de saúde no
Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental, que passou a organizar encontros com o
objetivo de aprofundar e ampliar a discussão sobre a política de saúde mental. Em 1980,
conseguiram organizar o I Encontro Regional dos Trabalhadores em Saúde Mental, que
reuniu no Rio de Janeiro 200 pessoas, entre psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais
representantes de diversas associações e estudantes para debateram os problemas ligados à
área. Discutiram a política nacional de saúde mental, as alternativas de atuação que surgiam,
as condições de trabalho, a privatização da medicina, a realidade político-social da população
brasileira. Também foram feitas várias denúncias contra as barbaridades que ocorriam nos
hospitais psiquiátricos.
As transformações no campo da assistência psiquiátrica no Brasil foram acompanhadas
de perto pela Rádice, até as reuniões e assembléias organizadas no começo da década de
1980. Desde então, mudanças importantes ocorreram na organização da assistência em saúde
e também na saúde mental. Dos debates dos anos 1980, surgiram novas diretrizes poticas,
como a Reforma Sanitária que, segundo Bertone (2000), marcou os novos rumos da
assistência, como a implantação das experiências municipais, a formulação do papel dos
estados na área da saúde e a implantação de novas leis. Em 1981, foi criado o Conselho
Consultivo da Administração de Saúde Previdenciária CONASP sugerindo um plano com
quatro linhas básicas de ação: racionalização dos gastos com serviços contratados na área
hospitalar privada, através de um novo modelo de controle de pagamento; regionalização e
hierarquização dos serviços ambulatoriais próprios; maior e melhor utilização da rede pública
de serviços básicos de saúde; e valorização do quadro de profissionais.
Essas e outras modificações permitiram um novo modo de gerenciamento nos hospitais
públicos, dinamizando seu funcionamento e incorporando as propostas defendidas pelos
profissionais engajados na luta do Movimento dos Trabalhadores da Saúde Mental (MTSM),
Profissional dos Psicólogos do Rio de Janeiro) e Pedro Gabriel Delgado (representante dos médicos da
DINSAM).
que começaram, nessa época, a ocupar estrategicamente posições de coordenação e chefias
nos órgãos do governo. Nesse período ocorreram encontros entre gestores, coordenadores e
profissionais de saúde implicados com o aprimoramento das discussões das novas tendências
políticas no setor saúde e em criar novos caminhos para a assistência.
Ainda falando em saúde mental, a Rádice acompanhou o caso de Aparecido Galdino
Jacintho, líder religioso do interior de São Paulo que foi preso e enquadrado na Lei de
Segurança Nacional. A história de Aparecido, publicada na Rádice, nº 4
49
, começou nos anos
60, quando exercia a profissão de boiadeiro e ouviu uma voz lhe falar para cuspir em um dos
seus bois que estava doente. Assim o fez e o boi sarou. Aparecido não parou mais de ouvir a
voz que lhe falava sobre uma missão de fazer o povo voltar à religião. Iniciou suas curas
milagrosas que ganharam fama por partes do estado e do país.
Em 1970, foi noticiada pelo governo a construção da Barragem de Ilha Solteira, parte do
projeto desenvolvimentista da ditadura militar. A grande represa alagaria, e foi o que
aconteceu, a cidade de Rubinéia, onde Aparecido tinha seu sítio e havia constrdo uma
pequena igreja para seus seguidores.
A desapropriação dos residentes da pequena cidade e o aumento de impostos cobrados
dos cidadãos que habitariam a Nova Rubinéia foram as conseqüências da obra faraônica.
Aparecido falava para seu povo que a terra não poderia ser tributada, pois fora dada por Deus
aos homens e, segundo a lei Divina, não era permitido alterar o curso dos rios que pertenciam
aos peixes. A maior parte dos moradores da região, sem ter como reagir, concordou com as
desapropriações e foi removida do local, restando apenas Aparecido e seus seguidores. Para
enfrentar tal situação, ele organizou um ercito, chamado Força Divina, e seus soldados
foram armados de rebenque no caso de terem de se defender.
Em primeiro de outubro de 1970, quando a velha Rubinéia estava praticamente
esvaziada, a casa de Aparecido era o único obstáculo ao projeto, ou o único lugar de
resistência. Na manhã desse dia, enquanto os religiosos rezavam, a casa foi invadida pela
polícia e todos foram presos.
Aparecido foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional, criada em março de 1967 e
reafirmada com o AI-5. Efeito da Guerra Fria, a Doutrina de Segurança Nacional surgiu no
49
Colaboraram na Revista número 4: Joel Bueno, David Bocai, Antonio Peixoto, Paula Borsoi, Marcus
Benedictus, Elaine Tavares, Maria Sonia Destri, Denise Louro, Maria Buschinelli, Jussara Lins, Ângela
Bernardes, Tereza Walcacer, Vera Bernardes, Ruben Fernandes, Leonid Streliaev, Roberto Dalmaso, Carlos
Pastana, Lucinda Freire, Maria Eugênia, TeCatalão, Leila Castilho, Ítalo Campos, Eduardo Ramalho, Regina
Gaio, Marcus Vicius Cunha, Maria Clotilde Magaldi, Carlos de Oliveira, José Nóbrega.
Brasil inspirada no modelo norte-americano de combate ao comunismo, representado pela
antiga U.R.S.S. A divisão do mundo em dois blocos, ao final da Segunda Guerra, fez com
que a América Latina se aliasse ao Ocidente quase como fato natural”. A ideologia da
segurança nacional tinha como finalidade afirmar o estado de guerra permanente. O combate
ao comunismo visava a eliminação total de uma doutrina considerada perigosa para a vida no
Ocidente e de todas as nações aliadas aos E.U.A.
O comunismo era igualado ao nazismo, identificando-o a uma política de guerra que
objetivava a conquista do mundo. Assim, a guerra fria era uma guerra potica, econômica e
psicológica com o objetivo de impedir o avanço do comunismo sobre as novas democracias.
A guerra do Vietnã, o embargo potico e econômico a Cuba, as várias intervenções nos países
da América Latina, como a Nicarágua, a Argentina, o Chile, o Peru, a Bolívia, o Uruguai, o
Brasil, etc., são exemplos dessa estratégia norte-americana de garantir a “democracia” contra
os comunistas.
Várias foram as estratégias para combater este inimigo. A elite das Forças Armadas
dedicava-se ao trabalho de informação. Identificar os “perigosos” que poderiam ameaçar a
paz no continente americano era tarefa precípua dos governos do Ocidente, através da
presença permanente em toda parte da vida social, nos locais de trabalho, nos transportes, nas
escolas, universidades, etc. A informação passou a ser a arma primordial, que contava com
uma estratégia: prisões rápidas com a aplicação de técnicas de tortura ou ameaças aos
familiares e amigos daqueles que estivessem sob a tutela dos militares.
Da formação dos militares, fazia parte o ensino da psicologia da guerra, os conteúdos
necessários para a identificação dos “suspeitos” e técnicas de convencimento, empregadas
para persuadir a população dos perigos dos subversivos” ao desenvolvimento do país e à
vida cotidiana. Entraram em cena estratégias de organização da população, como migrações
forçadas (exemplo: a expulsão dos trabalhadores rurais de suas terras), inserção de disciplinas
obrigatórias em todos os níveis escolares como as de Moral e Cívica, censura aos órgãos de
imprensa e controle das opiniões emitidas sobre o modelo potico e ecomico imposto pelos
militares. Contavam também com a conquista da simpatia da população através da
propaganda do desenvolvimento e do progresso do país, utilizando chavões ufanistas que
preconizavam o Brasil como o país do futuro. Além disto, o sucesso inicial do “milagre
econômico”, elevando o nível de consumo da classe média, solidificou o apoio desta à
ditadura militar.
Os serviços de intelincia controlavam as informações sobre as pries de pessoas
consideradas suspeitas e a divulgação de matérias com conteúdos distorcidos que cobriam os
fatos ocorridos no momento das prisões. Qualquer um, membro de organização de esquerda
ou não, de partido ou não, poderia ser considerado “perigoso”, qualquer escrito, qualquer
pessoa vista como opositora à ditadura era enquadrada como inimigo e deveria ser silenciada,
eliminada.
Segundo Comblin (1980), a Doutrina de Segurança Nacional girava em torno de quatro
preceitos: objetivos, segurança, poder e estratégias. Os objetivos nacionais eram garantir a
integridade territorial e nacional (afirmação da identidade do brasileiro como cordial e
pacífico, com grande capacidade de adaptação e improvisação, reforçando a moral religiosa
cristã); garantir a “democracia” (surpreendentemente palavra largamente utilizada pelos
militares) e a paz social e, ainda, garantir a soberania da nação. Para garantir tais objetivos,
era necessário utilizar a força do Estado contra todos que oferecessem perigo à segurança
nacional. Segundo tal lógica, à onipresença do inimigo, respondia-se com a onipresença das
estratégias de segurança nacional.
O que caracterizava a iia de seguraa nacional era a não-distinção entre ações
violentas e o-violentas. Em nome da segurança, as garantias constitucionais dos cidadãos
foram suspensas, sendo todos passíveis de suspeição e de sofrer as conseqüências. A
segurança nacional agia preventivamente, a fim de afastar possíveis ameaças. Toda a vida da
sociedade era alvo da segurança, que deveria controlar e vigiar todos os setores, culturais,
econômicos, ideológicos.
Os ideólogos militares afirmavam que o Estado tinha o poder de organizar a vida social
utilizando-se de ações para impor o que acreditavam ser o “bem-comum”. Para os militares, o
poder significava a capacidade de manipulação dos recursos naturais, da técnica, do trabalho e
a capacidade de impor a todos a vontade do Estado, seja através de quais instrumentos
fossem: leis, prestígio, pressão social, costumes ou sujeição (pries, torturas, assassinatos).
Os autores militares distinguiam entre quatro poderes: o militar, o potico, o econômico e o
psicológico, este último tendo como alvo a população e as instituições, e como componentes a
moral, a comunicação, a opinião pública e a religião. Convencidos de que esses elementos
eram determinantes na guerra contra o comunismo, os militares enfatizavam a necessidade e a
importância do controle sobre a educação, a demografia, a saúde, o trabalho, a ética, a
religião, a ideologia, a comunicação, o caráter nacional, a (des) politização da população, a
eficácia das estruturas sociais, os problemas urbanos etc., questões consideradas
psicossociais”.
Por fim, toda ação deveria pressupor uma estratégia que envolvesse atividades civis e
militares num corpo na defesa da nação. A idéia de guerra permanente ou absoluta contra
um inimigo interno e externo que era o comunismo fazia com que tudo se tornasse uma
questão militar. A divisão entre vida civil e vida militar foi suprimida. Todo cidadão era um
soldado que deveria zelar pela segurança da nação. Para implementar o projeto de
desenvolvimento nacional, os quatro preceitos da Doutrina de Segurança Nacional deveriam
ser guardados e defendidos por todos; sem segurança, ordem e estabilidade, não haveria
desenvolvimento.
De acordo com Comblin (1980), nas ditaduras impostas por grupos militares, como
aconteceu na América Latina nos anos 60 e 70, os generais afirmavam o caráter transirio
daqueles regimes, buscando justificar com isso a necessidade das ações truculentas que
garantiriam, segundo seus argumentos, a implementação de um projeto democrático
definitivo. Mas, como sabemos, não democracia que seja imposta e garantida através de
violência do Estado e repressão.
A “democracia” virou a marca propagandeada pelos militares em oposição ao
comunismo. A democracia alardeada pelos militares o era neutra, tinha apoiadores,
inimigos e possuía uma doutrina rígida. A democracia dos militares incentivava a
participação do povo, desde que esta se limitasse a integrar e apoiar as tarefas definidas pelo
Estado participar significava obedecer. E quem participava? Na verdade, a expressão
povo” é mais uma figura de linguagem, pois esta participação restringia-se à camada da
sociedade considerada apta ou com mais capacidade de alavancar o progresso e o
desenvolvimento do país a elite.
Outra característica dos regimes de segurança nacional era o controle das instituições,
implementando mudanças radicais como, por exemplo, o fechamento do Congresso Nacional
ou limitando, seu escopo, bem como criando novas instituições para legitimar e sustentar as
ações autoritárias. Em um Estado com tais características, a figura do presidente tem todo o
poder em suas mãos, exercendo-o a partir do controle da administração pública e dos serviços
(secretos) de informação.
Na “versão oficialdada pelos policiais dos fatos ocorridos em Rubinéia, consta que o
grupo de Aparecido, armado de rebenque, resistiu à prisão com violência e, em um dos
cômodos, havia um estoque de bombas capaz de destruir a barragem em construção. Apenas
o der missionário permaneceu preso. Submetido a inúmeros interrogatórios, foi
encaminhado ao Manimio Judiciário de Franco da Rocha para a realização de exame
psiquiátrico que apresentou o diagnóstico de “esquizofrenia paranóide”.
Aparecido permaneceu no manicômio por oito anos. No número 4, lançado em 1977,
Rádice publicou uma longa entrevista com ele, realizada ainda na instituição, depois de um
mês de negociação com o diretor que a autorizou se um psiquiatra e uma psicóloga da
casa” acompanhassem o trabalho de Joel Bueno e Jussara Lins. Em 1979, o caso Aparecido
voltou às páginas da revista, através da pena de Marcos Veras que registrou o momento em
que era libertado.
Sua libertação decorreu de alguns procedimentos encadeados: ao final do ano de 1978,
devido à manifestação do Prof. Jode Souza Martins, da Universidade de São Paulo (USP),
a Comissão de Justa e Paz da Arquidiocese de São Paulo instruiu o advogado Mario Simas a
acompanhar o caso e, ainda, indicou dois psiquiatras, José Roberto Paiva e Richard Van
Curtis, peritos oficiais da Coordenadoria de Saúde Mental da Secretaria de Saúde de São
Paulo, para realizar novo exame em Aparecido. No trabalho realizado por Simas, foi apurado
que Aparecido respondeu a dois processos criminais:
Na Justiça Comum, a Acusação atribuiu-lhe a autoria dos crimes de
curandeirismo”, praticado por gestos e palavras, mediante
remuneração; de resistência”, por haver se oposto à execução de ato
legal e, finalmente, de “lesões corporais leves nas pessoas dos
policiais que o prenderam. Na Justa Militar Federal, o procurador
imputou-lhe os delitos de haver incitado a desobediência coletiva às
leis e de haver constituído organização de tipo militar combativa.
(SIMAS, 1986, p. 300).
A Primeira Auditoria da Aeronáutica, baseada no primeiro parecer psiquiátrico, absolveu-
o dos possíveis crimes contra a não, considerando-o inimputável. Mas, houve apelação à
Justiça Militar de São Paulo, argumentando que a criação de um exército demonstrava as
intenções subversivas” do der religioso, considerado um perigo para a segurança nacional.
O juiz militar determinou, então, seu recolhimento ao manicômio para cumprir medida de
segurança de dois anos, renovável segundo critérios médicos.
De 1973 a 1978, a conclusão apresentada no primeiro laudo psiquiátrico foi reproduzida
pelos médicos responsáveis pela avaliação de Aparecido, o que o manteve tanto tempo
internado. De acordo com depoimento de Joel Bueno, publicado no número 9 da Rádice,
Aparecido foi duplamente estigmatizado como subversivo e louco.
Finalmente, em junho de 1979, Aparecido foi libertado, mediante o novo laudo elaborado
pelos médicos Paiva e Van Curtis,
Erro médico? Erro judiciário? Mais importante que descrever a
odisséia de Galdino é pensar o que levou a Justiça Militar a encarcerar
este humilde benzedor tanto tempo. Salta aos olhos a conivência da
psiquiatria do Estado, aquela que cria seus loucos para justificar a
repressão. E os doentes” são os rebeldes, aqueles que insistem em
manter uma identidade cultural em meio a transformações radicais em
suas vidas. [Aparecido] (...) talvez nem saiba que seus crimes, na
verdade, foram desafiar a propriedade privada enfrentando as
desapropriações causadas pela construção da represa e dar o „péssimo‟
exemplo às populações mais pobres da possibilidade de se organizar.
(VERAS, Marcus. Rádice, 2 (10) 1979, p. 17).
Em 2006, o cineasta Leopoldo Nunes reconstitui a história de Aparecido no filme O
profeta das Águas”. Nunes nasceu em Santa do Sul, cidade próxima à velha Rubinéia e
cresceu ouvindo essa história e outras que a população conta, ainda hoje, sobre Aparecido.
Até esse ano, Aparecido estava vivo, com oitenta anos, casado pela segunda vez e com nove
filhos.
Os acontecimentos apresentados acima foram os que, de alguma maneira, estavam na
ordem do dia no momento da emergência da Rádice, que nasceu no período da abertura
política e em meio aos debates sobre saúde mental. Esses acontecimentos marcaram os
sonhos e as ações de todos que inauguraram uma nova forma de contestação do instituído, da
repressão, da violência, das hierarquias, das cristalizações, dos modelos hegemônicos que
tentam colocar tudo no mesmo lugar, na mesma forma. Lutas que ocorreram nas
universidades, nas prisões, nos hospitais e nas ruas.
CAPÍTULO 2
ALTERNATIVO
Estava bastante perdida, tateando sentidos para
compreender isso que percebia na Rádice e
chamava de “alternativo”. Um dia, entre um
cafezinho e outro nas dependências do Conselho
Regional de Psicologia, conversando com uma
querida amiga sobre como andava a tese, ela me
disse, com toda sua doçura: por que você não
pensa a revista como algo singular?” Ficam aqui
registrados meu agradecimento pela contribuição
valiosa e o grande carinho que tenho por ela, Maria
Beatriz Sá Leitão.
Ao longo da elaboração desta tese, tive a oportunidade de entrevistar diferentes
profissionais ligados direta ou indiretamente à Rádice. Havia uma necessidade de determinar
um lugar para a Revista, não no campo da psicologia, mas em relação aos outros espaços
que ocupou. Como definir em que tipo de publicação alternativa ela estava inserida?
Cultural? Político? Percebi que o seria possível classificá-la através da memória daqueles
com os quais conversei, devido às múltiplas referências e iias que cada um guarda em
relação à Rádice. Também as classificações fornecidas pela historiografia sobre as
publicações alternativas não me serviam, porque Rádice caberia em todas.
Decidi, então, permanecer com a classificação que a própria Revista se atribuiu: “revista
de psicologia”. A partir do seu segundo ano de vida, marcado pela publicação do número 5,
Rádice assume essa especificidade. E o fato de se atribuir tal definição, em nada reduz sua
dimensão política, mas apenas explicita outra forma de se pensar a psicologia. Como já
apontado anteriormente, a Revista não foi uma publicação de divulgação dos conhecimentos
científicos da psicologia, ou um órgão informativo das instituições de pesquisa, nem
tampouco propunha a simplificação ou redução da psicologia através de um linguajar “mais
acessível” à população.
O que Rádice realizou, de fato, foi se entregar à tarefa de coletivizar novos olhares e
reflexões sobre o pensamento, a psicologia, a formação universitária psi”, a política, a ética,
etc. Nela não é possível demarcar os limites dos saberes através de seus objetos bem
definidos. Os saberes estão inevitavelmente implicados, misturados, na própria escolha dos
conteúdos que apresenta. Ao invés de privilegiar o campo das ciências ou de falar da
psicologia a partir do alto do Panto, ela tanto questiona as práticas consolidadas quanto
incorpora questões aparentemente distantes dos psilogos, instaurando a dúvida e
promovendo o desamparo. Retira tais saberes dos lugares inalcançáveis e os insere no
cotidiano dos hospitais psiquiátricos, dos centros de macumba, dos porões das pries, dos
debates sobre sexo, enfim, no mundo comum, aquilo que é dividido, coletivizado, como
define Negri (2003).
Não há como identificar Rádice a não ser com ela mesma, sua expressão singular no
mundo, sua potência ao provocar o estranhamento das formas de se pensar a psicologia e tudo
que acontecia no universo do qual a revista fazia parte. Quando passa a se intitular “revista de
psicologia não é, necessariamente, para se inserir em um campo delimitado, mas para
provocar o questionamento: como uma publicação de psicologia trata de loucura,
manimios, militância, sexo, práticas religiosas, costumes e o que a Psicologia, com “P”
maiúsculo, tem a ver com tudo isso? Esta é a pergunta com que a Revista provoca o leitor no
momento em que ele abre suas páginas e se depara com um universo “radicecalmente”
distinto daquele das instituições e publicações oficiais.
Os autores que tratam desse período da história da psicologia no Brasil localizam-na em
um campo chamado “alternativo”. Este campo é compreendido como aquele que se
contrapõe ao que era tido como oficial, reconhecido como prática institucionalizada e
legitimada pelas instâncias de regulação, como, por exemplo, a formação universitária ou o
Conselho Federal de Psicologia, criado em 1971.
Neste capítulo, apresento movimentos chamados, assim como Rádice, de alternativos.
Mas, alternativos a quê? Geralmente, alternativo” refere-se àquilo que não faz parte do que é
tido como oficial, ou é relacionado com algo excêntrico. Esses sentidos carregam inúmeros
problemas, dentre eles, a pressuposição de uma vida comum ordenada e que todos a
experimentam da mesma maneira, sem diferenças. Quando a diferença emerge, é considerada
como um desvio de comportamento, por exemplo e torna-se alvo das ações de
especialistas como psicólogos, psicanalistas, médicos ou da polícia. O desvio e a diferença
tornam-se objeto das ações preventivas e de controle.
Pretendo assinalar a singularidade desses movimentos, desviantes, impuros,
contaminados pelo mundo, que afirmaram outras maneiras de ser, outra percepção das coisas.
Guattari (1996) utiliza o termo “singularizaçãopara designar esses “movimentos de protesto
do inconsciente contra a subjetividade capitalística” (p.45), afirmando que o protesto contra o
que foi institucionalizado é o traço comum deles.
Isso se sente por um calor nas relações, por determinada maneira de
desejar, por uma afirmação positiva da criatividade, por uma vontade
de amar, por uma vontade de simplesmente viver, ou sobreviver, pela
multiplicidade dessas vontades. É preciso abrir espaço para que isso
aconteça. O desejo pode ser vivido em vetores de singularidade. (p.
47)
Seguindo as idéias do autor citado acima, a singularização implica processos de
diferenciação e de produção de novas subjetividades, processos autônomos, automodeladores,
que constroem suas próprias referências práticas e teóricas. Essa experiência libertária faz
com que tenham a capacidade de analisar sua situação no mundo e o que se passa em torno
deles. Tal capacidade lhes dá a possibilidade de criação (ou de autoinveão).
Mas esses processos também têm seus pontos de captura: ou o absorvidos pelo
capitalismo, ou são implodidos por ele. De acordo com Guattari (1996), um processo de
singularização afirma sua posição ao se agenciar com outros tão singulares quanto, não para
criar uma identidade entre eles, mas para afirmar suas precarização e multiplicidade. O autor
também chamou tais processos de “revoluções”, que correspondem à produção de algo que
o existe, algo novo e inusitado. E é isso que pretendo afirmar.
São fontes essenciais deste capítulo os números 5, 6, 7, 8, 9 e 10 da Revista, publicados
entre 1977 e 1979. Esse critério baseia-se em dois aspectos, sendo o primeiro a afirmação da
Rádice no universo “psi”, a partir do fato de assumir-se de psicologia”. O segundo é a
criação de novas estratégias editoriais, como a exploração de um tema exclusivo em cada
edição: no número 5, macumba; no número 6, tortura; no número 7, os hospitais psiquiátricos
brasileiros; no número 8, sexo; no número 9, a primeira matéria internacional, reportando as
transformações no campo da psiquiatria italiana implementadas por Franco Basaglia; e, por
fim, no número 10, a continuação da reportagem internacional e uma matéria sobre os
problemas políticos e sociais que a Nicarágua enfrentava naquele momento.
2.1. Rádice Revista de psicologia
No primeiro ano da Revista, o trabalho foi intenso e bastante instável. Houve um
momento no qual Carlos Ralph e seus colaboradores pensaram em abandonar a proposta
devido à sobrecarga de trabalho e ao baixo retorno obtido, não apenas financeiro, mas
também com relação a pouca receptividade nos meios “psis” e entre os jornalistas. No
entanto, o prazer que encontravam naquilo que faziam e algumas demonstrações de carinho e
críticas enviadas pelos leitores contribuíram para a manutenção da Revista.
Ao lançar o número 4, Rádice completava um ano de vida contabilizando a chegada de
novos colaboradores, a ampliação da distribuição com a venda em bancas de jornais, a
desconfiança de alguns setores da imprensa alternativa, que olhavam de través para
psicólogos que faziam “jornalismo da psicologia”, a falta de anunciantes e, sobretudo, uma
receptividade crescente entre os leitores expressa através de cartas, artigos e matérias, além do
aumento do número de assinantes, que proporcionou dobrar a tiragem inicial.
Em síntese, esse novo quadro proporcionou uma organização muito mais lida da
Revista. A seção Geralmente tornou-se um espaço importantíssimo de divulgação e
denúncias; houve a criação de novas seções como a de cartas, intitulada “Opinião” e a
“Psicologia nos estados” destinada à publicação das informações enviadas por
colaboradores de outros estados brasileiros. Deve-se destacar ainda a seção Teoria/debate”,
inaugurada com o famoso texto de Luiz Alfredo Garcia-Roza: “A psicologia como espaço de
dispersão do saber”, publicado no número 4. Esta seção tinha como objetivo promover um
grande debate sobre a cientificidade da psicologia, e apareceu em mais três edições. No
número 5, para dar continuidade a seu propósito inicial, foi publicado um texto de Gregório
Baremblitt: “As psicologias, a ciência e a travessa da resignação”; no número seguinte, José
Nóbrega publicou “Ciência, critérios e obstáculos; e, no número 7, Alex Polari de Alverga
assinou o último artigo da série, intitulado “Tortura”. A relevância das questões abordadas
em “Teoria/debate” motivou a criação da revista Rádice Teoria/Crítica, lançada em 1979, e
que contou apenas com uma única edição.
Rádice chegou à maturidade, afirmando-se nacionalmente ao assumir um perfil editorial
mais definido e consistente. Ao impacto das denúncias do primeiro momento, somava-se,
então, o aprofundamento das questões levantadas e a proposição de alternativas.
Por razões comerciais, a Revista se despediu da Editora Ground Informações em 1977 e
passou a ser editada pela Bagaço, editora do jornal alternativo editado pelo jornalista Ronaldo
Lapa. no editorial do número 5, lançado em 1978, Carlos Ralph anunciava a Rádice
Editora, promessa para a próxima edição. Mas por questões burocráticas os números 6 e 7
continuaram sendo editados pela Bagaço. O número 8 foi co-editado pela Bagaço e pela
Editora Raízes Psicologia e Informação Ltda. que, finalmente, assumiu a edição da Rádice do
número 9 em diante.
Ainda no editorial do número 5, Ralph lança críticas à apatia reinante no meio “psi” em
1977. Os poucos congressos realizados naquele ano não trouxeram novos debates,
restringindo-se ao laureamento dos “velhos medalhões” da psicologia. As discussões
importantes permaneciam restritas a pequenos grupos, com destaque para o movimento pela
formação do Sindicato dos Psilogos do Rio de Janeiro, que mobilizou um expressivo
número de profissionais em torno do projeto, concretizado em 1980, como abordarei em
detalhes mais adiante.
A partir do número 6, iniciou-se uma campanha pela organização de grupos sucursais da
Rádice, cuja função era a remessa de informações sobre a psicologia em diferentes estados
brasileiros, inserindo novos temas e ampliando o debate. O primeiro desses grupos foi
organizado na cidade de Pelotas (RS), seguido pelo grupo do estado da Paraíba. E já se
noticiava movimentos pela criação de outras sucursais em Fortaleza, Belo Horizonte, Juiz de
Fora, Uberaba, Salvador e no estado de São Paulo, na capital, em Santo Amaro, Piracicaba e
Dois Córregos
50
.
Nesse momento, 1978, a grande imprensa começava a tratar de um assunto silenciado até
então no Brasil: a tortura. Embora não chegasse ainda à TV e ao rádio, o tema da violência
institucional ganhava as páginas dos “jornalões”, seguindo os passos de veículos alternativos
como a Rádice.
50
Os primeiros correspondentes de Pelotas eram Cláudio Luiz Gastal, Álvaro Luiz Moreira Hypólito, Jorge Luiz
Ferraz e Fernando Pereira Lima. Os colaboradores da Paraíba pertenciam à UFPB e o grupo era formado por
Romero Antônio, Salomé Andrade, Ana Guedes, Virgínia, Elida, Jose, Maúde, Ana e Cybele. Fortaleza: Maria
Lílian Coelho de Oliveira. Belo Horizonte: Marcos Vieira Silva, Eduardo Martins de Lima, Humberto Verona,
Diretório Acadêmico FUMEC. Juiz de Fora: Eneida de Souza Lopes. Uberaba: Eliane Greice. Salvador: gia
Maria Portela da Silva. São Paulo: Tâmara Vivian Katzenstein. Santo Amaro: Adelina Okiyama. Piracicaba:
Ernesto J. G. Trondle. Dois Córregos: José Luiz Penha Carballeda. (“Grupos sucursais a todo vapor, Rádice, nº
8, dezembro de 1978: 6).
A revista publicou um exemplar 6 exclusivo sobre o tema da tortura no Brasil,
explorando e analisando historicamente as diversas formas de violência institucional contra os
índios no período do descobrimento e contra os negros tornados escravos no processo de
colonização
51
. A revista também tratou das denúncias de prática de tortura contra opositores
políticos dos regimes autoritários e das histórias de ex-presos poticos que se desestruturaram
psiquicamente devido à violência sofrida, inclusive os que chegaram ao suicídio, como foi o
caso de Frei Tito de Alencar.
Rádice chama a atenção para a naturalização e banalização da tortura e violência nas
delegacias, nas ruas, nas relações familiares, nos hospitais, etc. No número 7, a matéria
principal “abria os portões” dos hospitais psiquiátricos brasileiros, relatando as condições de
vida das pessoas neles reclusas e denunciando a violência justificada como forma de
tratamento, tema já explorado no primeiro capítulo deste trabalho.
A publicação do número 7 marcou os dois anos de vida da Revista. No editorial, Ralph
relembra o início da publicação e define o que sempre foi o objetivo da Rádice como veículo
de jornalismo da psicologia: reportar e discutir os principais fatos e acontecimentos de sua
área”
52
. Agora, dois anos depois, uma nova questão se colocava para todos: “de que
psicologia devemos tratar?”
53
.
Um grande desafio se impunha: ao problematizar os “manuais psis”, tornava-se
necessário inventar novas práticas, e Rádice participou intensamente desse processo ao
afirmar que a psicologia tinha a ver com a violência e com a tortura institucionalizadas, que
tinha a ver com macumba e as diversas expressões religiosas, com sexo, com a mobilização
pela abertura política e o fim da Ditadura, não só no Brasil como em todos os países nos quais
a população era submetida a regimes autoritários.
Destaca-se o número 8, todo dedicado ao tema “Sexo”, abrindo o debate sobre poticas
do corpo no cotidiano e as diversas formas de experimentar a sexualidade, a partir das
contribuições de Wilhelm Reich. No 9, a Revista publicava sua primeira matéria
internacional, “Telhados vermelhos”, reportagem de Valquíria Coelho da Paz sobre as
transformações radicais pelas quais passava a assistência psiquiátrica na Itália
54
, a partir das
idéias de Franco Basaglia. Valquíria passou 15 dias do mês de setembro de 1978 no antigo
51
Matéria “Os efeitos da tortura”, por Carlos Raph L. Viana e Elias Fajardo da Fonseca, Rádice nº 6, junho/julho
de 1978 , pp. 12-20.
52
Editorial Radice nº 7, stembro/outubro de 1978.
53
Editorial Radice nº 7, stembro/outubro de 1978.
54
Tema já apresentado no primeiro capítulo.
hospital psiquiátrico de Arezzo para conhecer o cotidiano e as novas experiências que ali
aconteciam. Por ser bastante extensa, a matéria foi subdividida, só sendo concluída no
número seguinte (10) da Revista. Neste foram incluídas matérias como “Relatos de guerra”,
escrita por Lúcia Murat e Paulo Adário, sobre as questões poticas na Nicarágua
55
, e uma
nota publicada na seção “Geralmente”, assinada pelo jornalista Marcus Veras, sobre o
desparecimento da psicóloga argentina Beatriz Perosio, à época, presidente da Associação de
Psilogos de Buenos Aires (APBA) e da Federação de Psilogos da República Argentina
56
.
2.2. Reich e Sexo na Rádice
Acontece que um militante político e um psicanalista
se encontrem na mesma pessoa e que, ao invés de
ficar separados, não parem de se misturar, de
interferir, de comunicar, de se tomar um pelo outro.
É um acontecimento raro desde Reich.
(Deleuze, 1974)
O pensamento de Wilhelm Reich
57
ganhou destaque na Rádice a partir, especialmente, do
número 8, cuja capa mostrava um casal azul fazendo sexo
58
e esta palavra logo abaixo em
letras amarelas. Segundo Carlos Ralph, seu contato com as idéias de Reich ocorreu na década
de 1960, no caldeirão das transformações pós-68. Psicólogo, comunista e que pregava a
55
A matéria sobre a Nicarágua foi feita meses antes de julho de 1979, data da vitória da revolução Sandinista
que depôs o ditador Anastásio Somoza Debayle, que governou a Nicarágua com mão-de-ferro durante 45 anos.
Lúcia Murat e Paulo Adário colheram depoimento de um antigo militante expulso da Frente Sandinista de
Libertação Nacional (FSLN), acusado de traição, porém, de acordo com a matéria, esse militante foi preso e sob
tortura foi obrigado a assinar um termo de confissão. Este documento foi divulgado em toda a imprensa.
(Rádice, nº 10, julho/agosto de 1979).
56
Esta matéria foi publicada no nº 11, novembro/dezembro de 1979, que será discutido no capítulo 3.
57
Nascido em 1897, na região que na época era posse do Império Austro-Húngaro, em uma família abastada de
proprietários judeus, Reich concluiu seus estudos de medicina na Universidade de Viena, em 1922. Interessado
pelas questões relacionadas com a sexualidade, começou a freqüentar o Seminário de Sexologia da Faculdade de
Medicina de Viena, e no fim do ano de 1919, foi eleito diretor desse seminário. Através de sua função de diretor,
teve o primeiro contato com Freud e ficou impactado com as idéias do médico austríaco sobre sexualidade e o
conceito de pulsão (WAINEMANN, 2002).
58
O original dessa imagem é uma foto de uma cena do filme “W.R. Mistérios do Organismo, do cineasta sérvio
Dusan Makavejev, lançado em 1971. O filme redescobriu a obra de Wilhelm Reich para as novas gerações e
encampou suas teorias sobre sexualidade. Devido ao escândalo provocado, o filme foi banido da Iugoslávia (a
rvia fazia parte deste país à época), bem como seu diretor que viveu no exílio até 1988. Em 1971, “W.R.
Mistérios do Orgasmo” participou da seleção de filmes do Festival de Cannes. .
revolução sexual era tudo que um jovem revolucionário estudante de psicologia precisava
para incendiar o mundo e acessar as moças...
59
.
Carlos Ralph transformou-se em terapeuta e importante divulgador do pensamento de
Reich no Brasil. Esse envolvimento com a obra reichiana foi expresso na Rádice, que, ainda
hoje, é reconhecida como importante instrumento de divulgação do pensamento de Reich e
também das terapias corporais no Brasil.
A trajetória de Reich foi turbulenta e polêmica. De acordo com Mezan (1995), ao buscar
soluções próprias para resolver dificuldades da prática terapêutica, Reich, mesmo não sendo
reconhecido pela maioria dos psicanalistas ligados à teoria freudiana, trouxe significativas
contribuições à psicanálise, entre elas, a análise das resistências, da transferência e
contratransferência. Wagner (1995) aponta outras contribuições, citando como exemplo os
estudos psicanalíticos de determinados fenômenos sociais e poticos, como o fascismo.
Em 1924, Reich ingressou na Sociedade Psicanalítica de Viena
60
e tornou-se o primeiro
assistente de Freud na Policlínica Psicanalítica, ocupando o cargo de diretor desta instituição
entre 1928 e 1930. Em 1927, tornou-se membro do Partido Comunista Austríaco e fundou em
Viena a Sociedade Socialista de Informação e Investigação Sexuais, que tinha como objetivo
levar informações sobre sexo aos jovens do partido. Este serviço foi estendido aos cidadãos
de Viena, através da criação de centros de higiene sexual.
Segundo Weinmann (2002), nesses centros era oferecido tratamento psicanalítico para
aqueles que não tinham condições de pagar, e isso significava para os jovens analistas
discípulos de Reich, um trabalho inovador. Reich instaurou a prática da apresentação de
seminários sistemáticos, a fim de promover o debate sobre os casos mal sucedidos,
procurando desvendar as razões do insucesso terapêutico. Foi nesses seminários que
desenvolveu sua técnica de análise de caráter, afirmando o caráter como o principal enfoque
de análise pelo psicanalista, contrariando os pressupostos freudianos. Reich acompanhava
Freud em suas iias sobre as pulsões, mas perguntava-se sobre a fonte de energia das
neuroses e qual seria o destino das quantidades de excitação na produção das neuroses.
59
VIANA, Carlos Ralph Lemos (Depoimento). Rio de Janeiro, 2007.
60
Em 1902, Freud e seus alunos criaram a Sociedade Psicológica das Quartas-feiras uma referência ao dia no
qual se encontravam para desenvolver seus estudos sobre a psicanálise. Foi a primeira sociedade de psicanálise
criada no mundo e, em 1908, transformou-se na Sociedade Psicanalítica de Viena. A Associação Psicanalítica
Internacional (International Psychoanalitical Association IPA) surgiu em 1910, a partir do segundo Congresso
Internacional de Psicanálise, realizado em Nuremberg. Carl Gustav Jung foi o primeiro presidente da IPA.
(ROUDINESCO, 1995; GAY, 1989)
Em 1930, Reich mudou-se para Berlim e lá criou o Movimento para Economia e Potica
Sexual, atuando no interior do movimento operário, com um grande número de jovens,
dicos e professores
61
. Organizavam festas e sessões informativas sobre educação sexual
cujos principais tópicos eram a habitação, a higiene sexual, a contracepção e o aborto,
questões com conotões políticas radicais para a época. Esse movimento transformou-se na
Associação Alemã para uma Política Sexual Proletária SEXPOL.
Esse trabalho havia sido desenvolvido dentro do Partido Comunista austaco, como já
referido, e mostrou-se eficaz em seus propósitos tanto dentro quanto fora do partido. Porém,
pressões políticas fizeram com que Reich deixasse a Áustria e recriasse seu projeto em
Berlim.
Um fato que marcou a trajetória de Reich foi a ascensão do partido nazista. Wagner
(1995) argumenta que a perseguição nazista à psicanálise começou antes mesmo da ascensão
de Hitler ao poder em 1933. era ponto de discussão do movimento psicanalítico as
conseqüências de tais perseguições e o envolvimento político de seus pares. O Instituto de
Psicanálise de Berlim, fundado em 1920, congregava analistas considerados rebeldes”, entre
eles Eric Fromm, Melaine Klein, Otto Fenichel e o próprio Reich. O grupo de Berlim,
distante da batuta de Freud, teve a oportunidade de se desviar da sua rigorosa disciplina.
Wagner (1995) afirma que tanto em Viena quanto em Berlim a luta era pela
sobrevincia da psicanálise, mas no primeiro grupo optou-se pelo isolamento potico e
defesa da “neutralidade da ciência” conforme idealizada pelo próprio Freud; no segundo
grupo, diante da ameaça clara e evidente, a discussão era como enfrentar a repressão nazista.
Nesse embate, de acordo com o autor, o grupo de Berlim dividiu-se: uma parte reagrupando-
se sob a liderança de Fenichel, que propunha uma oposição velada ao grupo de Viena, para
o romper com a instituição; enquanto a outra parte, fiel a Reich, sustentava a dissolução do
Instituto de Berlim e a oposição declarada a Viena. A estratégia de Fenichel prevaleceu,
sendo a de Reich considerada demasiadamente ingênua. Em documento de maio de 1937,
Fenichel reconheceu que havia se enganado e que teria sido melhor seguir as sugestões de
Reich.
Judeu, comunista e psicanalista Reich representava um grande perigo naquele
momento. Russo (1993) destaca a importância dessas características para os seus seguidores,
indicando o caráter “marginale “subversivoda teoria e da prática reichianas. Em 1933,
61
Em 1929, Reich aderiu ao Partido Comunista Alemão.
Reich foi expulso do Partido Comunista e, em 1934, da IPA talvez por falar sobre sexo com
os comunistas e sobre política com os psicanalistas:
62
tenho a desgraça de ser um analista extremamente ortodoxo, e, ao
mesmo tempo marxista tudo numa peça o que, no nosso mundo
de hoje, colocou algumas desagradáveis verdades. (trecho de carta
escrita por Reich, datada de 1 de maio de 1933, apud ESCOBAR,
1974).
Fugindo da perseguição nazista, Reich passa pela Dinamarca, Suécia e Noruega
momento no qual se afasta definitivamente da ortodoxia psicanalítica, postulando a noção de
energia vital” (orgônio), responsável pelo bem-estar e também pelo adoecimento dos
organismos. Para Wagner (1995), pode-se pensar em dois momentos do pensamento
reichiano: o primeiro, quando intitulava sua teoria de economia sexual, e o segundo, quando
passou a designá-la de orgonomia.
Até a descoberta da energia orgônio, Reich intitulava sua teoria
científica de economia sexual. Seu método de investigação era o
pensamento funcional e sua prática era designada vegetoterapia
carátero-analítica. Posteriormente, com a descoberta do orgônio,
Reich adotou o termo orgonomia para designar a nova ciência da qual
a economia sexual tornou-se um dos campos de estudos. O método
permaneceu o mesmo, na forma e no conteúdo. A prática
vegetoterapêutica recebeu incrementos de tratamentos orgonoterápicos
e passou a ser designada orgonoterapia. (p. 21)
Reich percebia na economia sexual o elo entre a psicanálise e a orgonomia. Colocando
em evidência o corpo, identificou nele uma energia denominada de bioenergia ou orgone, que
circularia no meio ambiente e dentro de nós. Ele é considerado o autor que estabeleceu as
bases das terapias corporais, mas, como advertem os estudiosos desse campo, nem todas as
terapias corporais podem ser relacionadas como reichianas.
Ao analisar as continuidades e descontinuidades entre Freud e Reich, Wagner (1995)
afirma que o segundo parte de duas condições precípuas estabelecidas por Freud para
implementar seus estudos: a hipótese do inconsciente como uma estrutura dinâmica e a
necessidade de legitimação da psicanálise como ciência natural. Reich buscou na Física os
62
Hipóteses à parte, esses dois processos de expulsão são ainda bastante obscuros. Existe uma documentação
cartas trocadas entre Reich e Freud guardada sob sigilo absoluto pela IPA, e a ela nem mesmo os institutos
relacionados a Reich têm acesso. Alguns autores que estudam esses acontecimentos acreditam que as cartas
podem conter material importante para o esclarecimento dos fatos relacionados à expulsão de Reich da
instituição psicanalítica. De acordo com informações colhidas através dos depoimentos feitos para esta tese, os
“arquivos de Reich” foram abertos em 2007 e estão disponíveis para pesquisadores que se interessarem pelo
assunto. Como este trabalho não tem por finalidade explorar tal temática, não busquei essas informações.
parâmetros que necessitava para comprovar cientificamente suas descobertas. Preocupava-se
em demonstrar a existência sica da energia das pulsões. Isso se tornou fundamental, porque
para Reich, a fuão sexual não é apenas uma função importante, mas, antes disso, é a
função principal em torno da qual gravita toda a vida do sujeito, e a partir da qual resulta a
saúde ou a patologia” (p. 94).
Em 1933, na Dinamarca, Reich publica o livro A psicologia de massa do fascismo, com
sua análise sobre o nazismo e o que considerou a grande derrota dos operários alemães e de
todas as forças que lutavam pela liberdade. Define o que denominou de “psicologia de
massa”, diferenciando-a da “psicologia burguesa”.
Para Reich (1974), a psicologia burguesa respondia às questões relacionadas ao
indivíduo, particularizando-o, resumindo os problemas de um coletivo a um distúrbio no
comportamento de um indivíduo. Um dos interesses da psicologia burguesa era estudar o que
motivava o indivíduo em suas ações. a psicologia de massas debruçava-se sobre a vida
cotidiana dos trabalhadores, a ideologia das massas e o fator subjetivo na história. A questão
que se colocava era: por que as massas atendem ao chamado dos líderes autoritários?
O que Reich chamou de psicologia das massas fundamentava-se na economia sexual,
construída sobre os alicerces sociológicos de Marx e os psicológicos de Freud. A economia
sexual teria por função se perguntar o motivo da sexualidade ser reprimida pela sociedade e
recalcada pelo indivíduo. Na perspectiva reichiana, a sexualidade deveria ser tratada como
uma potica pública, politizando a vida íntima e privada. Isso ocorreria a partir do momento
em que se pudesse falar livremente sobre sexo com todos os cidadãos, especialmente com os
jovens, ouvindo seus conflitos e dificuldades em suas relações e não impedindo tal expressão.
“A juventude tem mais que um simples direito à „informação‟, ela tem plenamente direito à
sua sexualidade” (REICH, 1975, p. 21).
As dramáticas rupturas com a IPA e o Partido Comunista, a exaustiva perambulação pela
Europa, os ataques a sua obra e seu isolamento potico levaram Reich a desembarcar nos
E.U.A. Logo foi convidado por um dos membros da Sociedade Americana de Medicina
Psicanalítica, Theodore P. Wolfe, para lecionar na New School for Social Research, em Nova
Iorque. Em 1942, criou o Instituto Orgônio e um meio para divulgar suas pesquisas: o
International Journal of Sex-Economy and Orgnone Research. Seus prositos poticos
foram aos poucos deixados de lado, não sem uma crítica feroz aos comunistas.
Progressivamente, abandonou as idéias marxistas, dedicando-se inteiramente às pesquisas
biofísicas. Suas descobertas e estudos, especialmente sobre o orgônio, são tomadas pelos
agentes do F.B.I. como atividade de espionagem; seu trabalho é colocado sob investigação; e
ele acaba sendo acusado de subversão.
Durante toda a década de 1940 até sua prisão em 1957, Reich dedicou-se às pesquisas e
tentativas de aplicar suas descobertas, laando instrumentos como os “acumuladores de
orgones”, que acreditava realizarem o diagnóstico e a terapêutica das biopatias, como, por
exemplo, o câncer e o que chamou de cloudbuster, através do qual pretendia provocar chuva
ou impedir sua continuidade (RUSSO, 1993). Por atribuir ao “acumulador de orgônio” a cura
do câncer, foi processado pela Food and Drug Administration (FDA), em 1954, sendo
condenado e preso três anos mais tarde. As cumprir oito meses de prisão, faleceu tima de
ataque cardíaco, em novembro de 1957.
Essa exaustiva cronologia serve para compreender um pouco a vida conturbada de Reich
e para situar sua importância na vida cultural de boa parte do século XX e no
desenvolvimento das terapias corporais, ainda mais porque não é autor comum nos curso de
psicologia. São muitos os elementos que fizeram com que se tornasse um dos mais influentes
autores nas transformações de 1968. Por exemplo, em um documento produzido pela
Internacional Situacionista
63
durante a gestação do maio francês, intitulado “A miséria do
meio estudantil considerada em seus aspectos econômico, político, psicológico, sexual e,
mais particularmente, intelectual, e sobre alguns meios para remediá-la”, escrito por
Mustapha Khayati e revisado por Guy Debord, referenciando-se em Reich, os militantes desse
movimento faziam críticas ao comportamento dos estudantes que reproduziam as mesmas
expressões de sexualidade da sociedade conservadora e tradicional que contestavam.
A IPA considerava inaceitável a ênfase de Reich nas bases sociais e econômicas para a
prática psicanalítica. Para os seguidores de Freud, Reich cometeu a heresia de afirmar que a
psicanálise seria possível se apoiada em um forte movimento político, elaborando uma
crítica à família nuclear burguesa segundo ele (1976), “fábrica de ideologias autoritárias e
63
A Internacional Situacionista (IS) foi criada em 1957, a partir da fusão de três grupos Internacional Letrista,
Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista e Associação Psicogeográfica de Londres. Seus
fundadores foram Giuseppe Pinot Gallizio, Piero Simondo, Elena Verrone, Michele Bernstein, Guy Debord,
Asger Jon e Walter Olmo. Entendiam-se como uma frente revolucionária na cultura”, debatendo sobre temas
como arte e cultura, tendo nos surrealistas o alvo de suas críticas mais ácidas. Em uma segunda fase da IS,
ocorre uma transformação, endereçando suas críticas aos intelectuais de esquerda chamados de “acadêmicos” e
contemplativos, afirmando a urgência de agir para transformar a realidade. A IS teve participação ativa nos
conselhos de ocupação organizados na Sorbonne, em maio de 1968. Um dos seus principais líderes, Debord,
participou do grupo Socialismo ou Barbárie, liderado por Cornelius Castoriadis e Claude Lefort. Durante o maio
francês, vários textos foram pichados nos muros de Paris, sendo alguns atribuídos à IS, tais como: sejam
realistas, exijam o impossível”; “não trabalhe jamais”; viva sem tempo morto”; “goze sem entraves”. A IS se
autodissolveu em 1972. (Situacionista: teoria e prática da revolução Internacional Situacionista. São Paulo:
Conrad Editora do Brasil, 2002. Coleção Baderna.)
estruturas conservadoras” (p. 111) e seu principal efeito: a repressão sexual, que tinha como
conseqüência a integração passiva do indivíduo na massa apolítica apoiando a ordem
autoritária.
O comitê executivo do Partido Comunista alemão via a inflncia do pensamento de
Reich na organização juvenil comunista a noção de liberdade sexual e o encorajamento de
maior autonomia como uma ameaça. Reich (1976) lançava críticas à constituição de grupos
sectários criados no movimento revolucionário que reivindicavam, todos, o privilégio de
serem os únicos” e “verdadeiros” herdeiros do “autêntico marxismo-leninismo” (p. 65). De
acordo com sua análise, essa fragmentação e a burocratização que se instalou dentro do
Partido Comunista enfraqueceram o movimento operário, impedindo a realização dos
objetivos revolucionários que levariam à expropriação do capital e à socialização dos meios
de produção, instituindo a democracia do trabalhador. Afirma que seria preciso criar novas
formas de dar conta dos problemas que aconteciam naquele momento e, ainda, novas formas
de influenciar as massas, que considerava apolíticas.
Um dos fatores do fracasso do socialismo, segundo Reich, foi a ausência de uma
psicologia política marxista. Essa lacuna foi a arma do fascismo. Reich perguntava por que
as organizações se esclerosaram, (...), e por que as massas agiram contra o seu propósito
apoiando Hitler?” (1976, p. 10). Enquanto no movimento operário eram realizadas vastas
análises históricas e exposições econômicas sobre os conflitos imperialistas, as massas
entusiasmavam-se pelo nacionalismo fascista, que promovia motivações afetivas. Não
estaremos a ver coisas através das lentes do „especialista‟?”, perguntava Reich (1976, p. 12).
Para ele, era importante associar “o que se passava nas cabeças‟, ou na estrutura mental dos
homens (condições subjetivas)” às análises objetivas do desenvolvimento das forças
produtivas sobre a sociedade (1976, p. 12)
Em sua análise, francamente mecanicista, Reich afirmava que o desenvolvimento das
quinas teria um funcionamento intico à estrutura psíquica dos homens, que o fruto do
trabalho representaria o funcionamento humano. Seria inconcebível a economia sem a
estrutura emocional humana. Não como analisar as relações humanas unilateralmente, o
que levaria ao psicologismo (somente as forças psíquicas fazem a história) ou ao
economicismo (somente o desenvolvimento técnico é que faz história). Buscava compreender
melhor as inter-relações entre grupos de pessoas, natureza e máquina, pois elas funcionariam
como unidades, por estarem condicionadas umas às outras. Não há como dominar o processo
cultural se não se compreender que no âmago dele está a estrutura sexual. Esse processo,
segundo ele, decorre da necessidade sexual, e está voltado para a preservação da vida.
por intermédio da cabeça do homem, da sua vontade de trabalho,
da sua procura de alegria de viver, em resumo, da sua existência
psíquica, que nós criamos, consumimos, transformamos o mundo. Foi
tudo isto que esqueceram muito os “marxistas” que degeneraram
em economistas. (REICH, 1976, p. 19)
Reich (1976) defendia que a noção de consciência de classe desempenhava um papel
fundamental no movimento socialista, sendo importante para que os movimentos se
organizassem com um fim comum que seria a revolução. Criticava a iia de que a direção
do partido constituía a vanguarda que levaria a consciência às massas e daria a direção do
caminho revolucionário. Tal crítica baseava-se em uma distinção, elaborada por ele, entre a
consciência de classe dos dirigentes e a das massas. A dos dirigentes não seria de conteúdo
pessoal e incluiria o conhecimento das contradições da economia capitalista, da necessidade
da revolução; apreenderia o processo histórico, as condições ecomicas e sociais às quais os
homens estão submetidos, e seria preciso compreender tal processo para dominá-lo e ser
senhor dele, não escravo. Já a consciência de classe das massas seria de conteúdo pessoal, na
medida em que as massas pensam na satisfação de necessidades da vida cotidiana, como a
alimentação, o vestuário, as relações com os outros, o cinema, o teatro, as tarefas, a
dificuldade da educação das crianças, etc.
O autor afirmava que, se houvesse chance de uma nova revolução (cultural, sexual,
política), que se contasse com os conhecimentos dos trabalhadores e não com o daqueles
abotoados em suas togas que geralmente exercem uma ação de cima para baixo, baseada nas
hierarquias sociais, econômicas, culturais, e que tratam a população como o grupo que precisa
ser disciplinado e adaptado à nova situação revolucionária”.
Para Reich, o único meio para consolidação do socialismo internacional, era “ir ao
encontro da vida cotidiana, humilde, banal, primitiva e simples das mais vastas massas em
toda a sua diversidade geográfica e social” (1976, p. 20). Esse seria o único caminho possível
para resolver a contradição que separaria o ponto de vista objetivo (a consciência de classe
dos dirigentes) do ponto de vista subjetivo (a consciência de classe das massas). Mas, um
resquício vanguardista” podia ser identificado quando afirmava que os debates filosóficos
sobre “vanguarda” e “tática” que se davam dentro do grupo de dirigentes deveriam ser
deixados de lado, pois o que deveria ser levado para as massas seria a consciência dos seus
direitos, a fim de permitir que os trabalhadores se conscientizassem do seu próprio modo de
viver.
Reich questionava também o princípio de renúncia, sacrifício e obediência à causa
revolucionária, por correlacioná-lo com o fascismo e a Igreja, que pregavam aos trabalhadores
as mesmas condições, apoiadas no sentimento de culpa e na aceitação de enfrentar os desafios
com docilidade, silenciamento e a mesmo alegria. Aponta que a juventude não se
identificava mais com os dirigentes do movimento juvenil que reproduziam aquele princípio.
Se se quer mobilizar a massa popular na batalha contra o capital, desenvolver a sua
consciência de classe e levá-la à revolta, é forçoso admitir que o princípio de renúncia é
nocivo, pesado, estúpido e reacionário” (REICH, 1976, p. 21).
Para Reich, a desigualdade estaria no antagonismo entre o capital e o trabalho. O lucro
extraído pelo burguês da exploração do trabalho alheio, ou seja, a mais-valia, seria a fonte de
produção da desigualdade social e da exploração do trabalho, temas clássicos da obra de
Marx. Quando o trabalhador percebe sua condição social somente por comparar sua vida com
a vida dos ricos, Reich (1976) assinala que a moral burguesa estaria contida nesta percepção.
Reich intensificou suas análises em torno da sexualidade infantil e da juventude,
defendendo o onanismo e a relação sexual dos jovens de 15 e 16 anos. Em relação à mulher,
questionava a virgindade (compulsória) antes do casamento, afirmando que seria desastroso
para um casal que pretendia ligar-se de forma duradoura que o se conhecesse sexualmente.
Defendia o direito da mulher não casada possuir um amante, bem como desconsiderava a
idéia de dever conjugal nenhuma mulher deveria ter relações sexuais quando não o
desejasse, afirmando que com tal atitude se liquidaria a ideologia de violentação e a posição
de que a mulher deva ser conquistada, ou pelo menos suavemente violentada” (REICH, s/d, p.
61).
As iias revolucionárias do Reich da economia sexual seduziram a juventude de 1968,
tornando-se uma das bandeiras das novas formas de se relacionar e experimentar o corpo e a
sexualidade. Por ouro lado, é interessante notar que, no desenvolvimento da prática clínica
reichina, são os conceitos do “segundo” Reich, ou seja, a orgonoterapia, que se difundiram.
No Brasil, as idéias de Reich foram difundidas principalmente por Ângelo Gaiarsa e
Roberto Freire
64
, nas décadas de 1960 e 1970. Ambos são considerados os primeiros
64
De acordo com Coimbra (1995), José Ângelo Gaiarsa teve contato com a obra de Reich em 1955 e foi o
primeiro a iniciar uma prática psicoterápica com fundamentação reichiana. Com influências também de Jung,
Gaiarsa desenvolveu uma abordagem corporal própria, formando a primeira geração dos chamados
psicoterapeutas corporais no país, responsáveis pela formação de várias gerações de
terapeutas corporais. Em São Paulo, surgiram os primeiros trabalhos e institutos preocupados
com a difusão das terapias corporais; no Rio de Janeiro, essas práticas foram difundidas um
pouco mais tarde, no começo da década de 1980, através de grupos de estudos organizados
por Romel Alves Costa
65
, Nicolau Maluf
66
, Geni Cobra
67
.
De acordo com Pedro Castel (2000), o movimento reichiano tem uma organização
complexa e seus membros fazem uma distinção entre duas correntes: uma chamada s-
reichiana, que congrega profissionais que trabalham a partir da leitura atenta dos pressupostos
teóricos produzidos por Reich, uma espécie de “retorno” a Reich. Esta corrente preocupa-se,
inclusive, com a organização do movimento e institucionalização de cursos de formação,
normatizando a prática clínica fundamentada no pensamento de Wilhelm Reich. A segunda
corrente, chamada neo-reichianos, é constitda por terapeutas que estudaram a obra de Reich
e a partir dela propuseram outras práticas. Nesse grupo situam-se Alexander Lowen, Gerda
Boyesen, David Boadella, compondo o que é conhecido como bioenergética.
Carlos Ralph e Rádice têm um merecido lugar de destaque dentro do universo reichiano,
mas na memória de algumas pessoas são mais associados à bioenergética. Acredito que a
revista, por sua característica independente, também circulou dessa mesma maneira nesse
universo. São explícitas as críticas em Rádice a qualquer movimento normatizador, seja no
campo psi, seja no campo potico ou em qualquer outro com o qual se deparou. A Revista
existiu em momento anterior ao da institucionalização das práticas reichanas no Rio de
Janeiro, mas, devido à estreita ligação entre Rádice e Carlos Ralph com este movimento,
“corporalistas” paulistas. O trabalho de Roberto Freire difundiu-se nos anos 1960 e 1970 influenciando muitos
“corporalistas” em todo o país. Freire viveu intensamente o período anterior ao golpe de 1964, vinculado ao
Teatro de Arena e participando do Programa Nacional de Alfabetização, coordenado por Paulo Freire. Escreveu
peças de teatro e foi presidente da União Paulista da Classe Teatral. Em 1963, dirigiu o Serviço Nacional do
Teatro e, com o golpe no ano seguinte, foi demitido e preso por duas vezes. Com o AI-5, Freire viajou para a
Europa e conheceu o grupo Living Theatre e os laboratórios de teatro de Grotowski. Nesse momento teve início
sua aproximação com a obra de Reich, também teve influências da antipsiquiatria de David Cooper e Ronald
Laing e da gestalt-terapia de Perls. Em 1976, vem a público seu método terapêutico a somaterapia resultado
de suas experiências nos diversos campos (cultura, arte, ciência) pelos quais passou. (pp. 279-288)
65
Considerado por Coimbra (1995) o primeiro profissional carioca que desenvolveu um trabalho “corporal” no
Rio de Janeiro, em 1975. Romel tornou-se um autodidata na obra de Reich, trabalhando seu próprio corpo. A
base do seu trabalho foi a orgonoterapia. (p. 189)
66
Nicolau Maluf Júnior iniciou seus trabalhos em 1975, em São Paulo. Migrou para o Rio de Janeiro em 1980,
coordenando grupos de estudos e foi membro-fundador da Escola da Clínica Somato-Psicanalítica e tamm da
Associação de Psicoterapia Corporal do Rio de Janeiro (APCRJ). Em: OLIVEIRA, Jo Guilherme e
RODRIGUES, Henrique. O saber em movimento tecendo a rede das psicoterapias corporais. CDROOM, Rio
de Janeiro, 2000.
67
Geni Cobra fez formação com Gerda Boysen e com David Boadella. Sua atuação baseia-se na ênfase aos
princípios da Psicologia Biodinâmica e na prevenção de neuroses. Geni Cobra não se dedicou à formação, como
Romel e Nicolau, embora tenha participado na década de 1980 de inúmeros workshops e vivências. (COIMBRA,
1995, p. 289)
penso ser de extrema importância fazer algumas considerações sobre o movimento reichiano
no Rio de Janeiro, vendo-o como um grande universo no qual estão incluídas todas as
tendências terapêuticas reichinas. Rádice divulgou e dialogou com todas elas, mas, para
efeito desta tese, centrar-me-ei na história do CIO Centro de Investigação Orgonômica
Wilhelm Reich, instituição com a qual Carlos Ralph dialogou, e foi bastante ligado.
O CIO Centro de Investigação Orgonômica Wilhelm Reich foi a primeira instituição
voltada para a formação, transmissão e divulgação do pensamento reichiano no Rio. Sua
fundação nasceu do encontro entre Denise Dessaune, José Felipe Fernandes
68
e Carlos
Eugênio Marer
69
, nos Ciclos Reich
70
, Empenhados em organizar um grupo voltado para a
formação de terapeutas, levaram quase um ano, do final de 1982 a meados de 1983,
conversando e debatendo sobre suas diferenças e semelhanças em relação ao pensamento e à
prática terapêutica de Reich. Nessa mesma época, já havia grupos de estudos sobre a obra de
Reich, mas o CIO teve a preocupação de sistematizar e institucionalizar a formação reichiana.
O processo de formação veio com a proposta, que é ponto fundamental no pensamento
reichiano, de ir além da perspectiva clínica individual e trabalhar com uma visão social de
transformação do ambiente onde se vive. No início, contava com projetos voltados para a
informação sexual através de palestras abertas ao público em geral, a fim de difundir a
existência do pensamento de Reich. Em um segundo momento, abriu-se para a formação de
psicoterapeutas e economistas sexuais.
À medida que o trabalho foi adquirindo visibilidade, as tarefas avolumaram-se, pois os
três coordenadores dividiam-se entre ministrar aulas, exercer a função de terapeutas e dar
supervisão, sem contar as atividades ligadas à administração da instituição. Foi preciso contar
com um reforço, que veio através da colaboração do médico Ivan Campos
71
.
O curso era composto pela supervisão de casos cnicos e pelo estudo da psicanálise
base do pensamento reichiano , das técnicas de análise de caráter e da repressão da couraça,
além dos trabalhos posteriores de Reich (orgonomia). A formão, que durava em média três
anos, enfatizava o desenvolvimento do próprio terapeuta, seguindo um dos preceitos mais
importantes de Reich, que considerava que a transformação social ocorreria a partir da
68
José Felipe Fernandes era orgonoterapeuta argentino, radicou-se no Brasil em 1983 e foi figura de grande
destaque no movimento reichiano carioca.
69
Carlos Eugenio Marer foi colaborador da Rádice e também do jornal Luta & Prazer. Participou intensamente
da organização dos Simpósios Alternativas no Espaço Psi e outras atividades desenvolvidas pela Revista. Sobre
esses temas falarei no próximo capítulo.
70
Sobre os Ciclos Reich, ver capítulo 3.
71
Ivan Gonçalves Campos vinha de formação psicodramática e em 1986 associou-se ao CIO. (COMIBRA,
1995, p. 297)
transformação individual e que os grandes problemas sociais seriam decorrentes dos
problemas individuais não resolvidos e que se estabelecem como situação problema nas
relações interindividuais e interinstitucionais. Somente assim, segundo Reich, os indivíduos
poderiam assumir “atitudes co-responsáveis” consigo e com o mundo que os cerca.
O CIO contava com diversos parceiros individuais e institucionais, como psicanalistas,
que eram convidados para ministrar cursos, e instituições como a Associação Wilhelm Reich,
em São Paulo. Em 1987, organizou a II Semana de Orgonomia, convidando duas figuras
iminentes para palestrar: o Dr. Frederico Navarro, presidente da Escola Européia de
Vegetoterapia, e a Drª. Barbara Koopman, do Colégio Americano. A vinda de Navarro
culminou com o surgimento do Instituto de Orgonomia Ola Raknes
72
(IOOR), fundado por ele
em 1989. Russo (1993) afirma que esse fato provocou uma disputa entre as duas instituições
pelo monopólio do controle e regulação da formação. No mesmo momento da criação do
IOOR, outras quatro instituições surgiram: o Centro Brasileiro de Biossíntese, o Instituto de
Biossíntese (ligado a David Boadella), a Sociedade de Análise Bioenergética do Rio de
Janeiro e a Clínica Social de Terapia Reichiana, fundada por Pedro Castel
73
, em 1986.
O CIO funcionou de 1984 a 1997, e, mesmo antes do seu fim oficial, vinha dando sinais
de desgaste tanto institucionalmente quanto nas relações entre seus coordenadores. Estes,
então, decidiram convidar a analista institucional Regina Benevides, hoje, professora do
Departamento de Psicologia da UFF, para desenvolver um trabalho de intervenção no grupo.
O fechamento da instituição não foi uma decisão impulsiva, nem de cima para baixo, e, sim,
discutida entres seus fundadores e, também com os alunos, que contribuíram, através de
cartas, com depoimentos sobre o período de formação. Outro acontecimento, bastante
dramático, colaborou com a decisão de fechar a instituição: o assassinato de Felipe Fernandes,
em um sinal de trânsito do Rio de Janeiro em 1997.
Coimbra (1995) assinala que essas instituições voltadas para a formação de terapeutas
reichianos reproduzem as mesmas preocupações das instituições psicanalíticas, ou seja, o
controle sobre a formação, o aval sobre quem é terapeuta ou não, a regulamentação. Parece
que as práticas ditas alternativas, em um dado momento, institucionalizaram-se, como uma
forma de buscar reconhecimento e legitimidade. Assim procuraram deixar o espaço
72
Ola Raknes (1887-1975), orgonoterapeuta norueguês. Foi aluno e colaborador de Reich e exerceu forte
influência na orgonoterapia européia. Seu pensamento clínico foi disseminado no Brasil por Frederico Navarro.
Em: OLIVEIRA, JoGuilherme e RODRIGUES, Henrique. O saber em movimento tecendo a rede das
psicoterapias corporais. CDROOM, Rio de Janeiro, 2000.
73
Pedro Castel foi colaborador da Rádice e do jornal Luta & Prazer, e participou ativamente do Simpósios
Alternativos no Espaço Psi e dos Ciclos Reich. Ver capítulo 3.
desqualificadono qual se transformou o que era “alternativo”, com o objetivo de proteger
um determinado conhecimento e também consolidar-se no mercado psi”.
Robert Castel (1987), ao analisar as condições das transformações das práticas médico-
psicológicas nos anos 70 do século XX, destaca o surgimento do que chamou de “nova
cultura psicológica”. O autor classifica esta como a era da s-psicanálise. O que não
significa o fim da psicanálise, “mas o fim do controle pela psicanálise do processo de difusão
da cultura psicológica” (p.133), devido, em grande parte, à banalização do discurso
psicanalítico. Essa nova cultura vai além dos aspectos patológicos e dos dispositivos de
controle médico-jurídico espalhados pela sociedade, tomando como objeto privilegiado o
“homem normal”.
Para ocorrer esse processo de difusão e integração da psicanálise à cultura geral, foi
fundamental sua inserção nos cursos de formação de psicólogos. No Rio de Janeiro, soma-se
a esse fator a abertura das sociedades de psicanálise ligadas à IPA, possibilitando, com isso,
que outros profissionais, como os psilogos, pudessem realizar sua formação.
Segundo Oliveira (2002), nas décadas de 1940 e 1950, houve um acirramento do debate
em torno dos limites da prática psicanatica e sobre quem seria autorizado a praticá-la (e em
que condições). No Rio de Janeiro, as principais sociedades de psicanálise Sociedade
Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ, fundada em 1955) e a Sociedade Brasileira de
Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ, fundada em 1957) permaneceram por longo tempo
responsáveis pela formação de novos psicanalistas, aceitando apenas candidatos médicos.
Em 1953, contrariando tal procedimento e inaugurando um novo espaço de formação,
Iracy Doyle
74
fundou o Instituto de Medicina Psicológica (IMP), no Rio de Janeiro. Outros
institutos também foram criados com essa mesma característica, como o Instituto Brasileiro
de Psicanálise (atual Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro). Essas instituições que
74
Iracy Doyle Ferreira (19111956) formou-se em medicina em 1935, na Faculdade Nacional de Medicina da
Universidade do Brasil (atual UFRJ), especializando-se em psiquiatria. Fez formação psicanalítica na William
Alonson White Psychoanalitic Society, nos Estados Unidos, no final da década de 1940, e era crítica da
ortodoxia e inflexibilidade dos grupos que ofereciam formação analítica, no Rio de Janeiro. O Instituto de
Medicina Psicológica (IMP) não era vinculado à IPA e oferecia formação psicanalítica a todos que se
interessassem pela psicanálise estudantes, médicos, assistentes sociais, professores e psicólogos, que depois
da regulamentação da profissão em 1962 interessaram-se pelos cursos oferecidos. Aos 45 anos, quando se
preparava para concorrer à cátedra de psiquiatria da Faculdade Nacional de Medicina, Iracy Doyle morreu vítima
de uma encefalite virótica. As atividades do IMP foram paralisadas e só retomadas em 1960, quando um dos ex-
alunos dela, Hórus Vital Brasil, retornou de sua formão nos Estados Unidos. Com a revitalização da
instituição, suas diferenças com a IPA foram reforçadas, através da fliliação à International Federation of
Psychoanalitic Societies (IFPS), instituição fundada em 1966 pelas sociedades de psicanálise críticas à IPA. O
IMP passou a se chamar Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle (SPID), em homenagem à sua fundadora.
(www.spid.com.br/a_spid.htm , acesso em 17/01/2008 às 16:45, e COIMBRA, 1995, p. 107).
ofereciam cursos de formação em psicanálise a profissionais com outras formações, em sua
maioria, não eram filiadas à IPA.
Russo (1993) argumenta que a cultura psicológica que se formou nos anos 70 fez com
que a psicanálise ultrapassasse a simples prática terapêutica, tornando-se uma referência
social, dividindo aqueles que faziam análise e os “demais”, e um modo de vida, fazendo com
as pessoas passassem a valorizar a individualidade, o autoconhecimento, a mudança pessoal,
“interna”.
Retomando as análises de Castel (1987), é possível observar outros elementos que
contribuíram com a expansão da cultura psicológica. Como, por exemplo, os
questionamentos de Jacques Lacan à ortodoxia da IPA e às sociedades relacionadas a esta
instituição, comprometidas com a observância fiel e rigorosa do corpo teórico desenvolvido
por Freud na formação dos futuros analistas. São apontados também pelo autor os debates
calorosos nos meios universitários do s-68 sobre a psicanálise, a partir de autores como
Lévi-Strauss, Michel Foucault, George Canguilhem e Louis Althusser, além, é claro, do
próprio Lacan. Castel (1987) não vê uma crise propriamente dita da psicanálise, e sim a
multiplicação de práticas que tiveram como efeito uma rica produção teórica. E salienta que,
diante dessa multiplicidade, os dispositivos de legitimação da prática psicanalítica perderam o
controle da formação e da difusão da cultura psi”. Com isso, iniciou-se o embate entre os
defensores da ortodoxia freudiana e aqueles que a ela se opunham.
Dois processos de difusão da cultura psicológica ocorreram então: um ligado aos meios
freudianos e à “cultura do divã”, e outro, derivado das novas práticas da psicanálise. É o que
Castel (1987) chama exatamente de pós-psicanálise, ou seja, novas propostas de terapias que
se distanciam tanto da ortodoxia quanto dos seus críticos como Lacan, por exemplo. Essas
novas terapias foram desenvolvidas, em sua maioria, nos Estados Unidos, agrupadas em torno
do Movimento do Potencial Humano, compreendendo a Bioenergética, a Gestalt-terapia, a
Análise Transacional, o Grito Primal, os trabalhos de Carl Rogers, entre outras. De acordo
com o autor, tais métodos seriam “herdeiros” do pensamento de Wilhelm Reich, a partir de
sua mudança para os Estados Unidos, e são caracterizados como terapias para os normais”,
encarregando-se da problemática da “felicidade” e do “bem-viver”.
As novas terapias (...) promovem uma visão do homem pela qual se
concebe ele mesmo como um possuidor de uma espécie de capital
(seu “potencial”), que gere para dele extrair uma mais-valia de gozo e
de capacidade relacionais. em suma indivíduos subdesenvolvidos
e em via de desenvolvimento como os tecnocratas dizem dos países do
terceiro mundo. E, para se desenvolver, é preciso, literalmente,
investir e trabalhar, fazer frutificar seu potencial humano. (CASTEL,
1987, p. 146)
A partir das análises de Castel, é possível afirmar que esse campo considerado
alternativo” se organizou fora dos limites da psicanálise (a ortodoxa e a dos críticos da
ortodoxia freudiana) e fora, também, do espaço acadêmico de formação em psicologia. Os
cursos de formação em psicologia no Brasil da década de 1970 privilegiavam a escola
behaviorista, a teoria do desenvolvimento infantil de Jean Piaget, os gestaltistas Koller,
Kofka e Wertheimer, os clássicos associacionistas e funcionalistas, além da obra de Freud.
Não eram tema dos estudos formais de então, como ainda hoje, praticamente, o são Reich,
Jung e outros “alternativos”.
Para Coimbra (1995), a expansão das práticas alternativas no Brasil dos anos 70 deveu-
se, primeiramente, às críticas lançadas à hegemonia da psicanálise e, também, em certa
medida, à oposição à ditadura militar. A autora considera que os movimentos revolucionários
da década de 1960 pretendiam transformar toda a sociedade, principalmente, aqueles
integrados por jovens latino-americanos que se organizavam na luta contra as ditaduras
militares. O sonho revolucionário que caracterizou esse período perdeu sua intensidade na
década seguinte, devido às ações de repressão que, em países como o Brasil, acabaram por
solapar toda expressão contestatória. O novo momento caracterizava-se o mais por atitudes
ativas, mas de abandono, apatia e desencanto.
A partir dessa conjunção as iias de Reich, movimentos críticos em relação à
psicanálise, críticas endereçadas ao conservadorismo de toda ordem o sexo tornou-se
explícito na Rádice através de uma grande matéria que abria a discussão sobre o tema a partir
de diferentes depoimentos: de uma empregada doméstica,
Maria tem seis filhos, mora em Morro Agudo, trabalha no Rio como
domestica e está grávida de quatro meses. Seu segundo marido, seu
João, trabalha numa obra em Botafogo e, por economia de tempo e
dinheiro, dorme em dias alternados no próprio local de trabalho.
Maria é descontraída e alegre, apesar do sufoco geral de viver de
salário, andar de trem da Central (“com os homens ainda por cima
querendo se encostar de qualquer maneira”) e ter que enfrentar as filas
do INPS, para si e para seus seis filhos. Tem dias que endoidece. Não
tem saída. (Jean dos Santos, dice, ano 2, nº 8, dezembro de 1978,
p. 10).
Pra falar a verdade eu casei duas vezes (...), mas dizer que eu gosto
mesmo de homem, não gosto não, de jeito nenhum. (...). Que jeito,
... Tem que ir, mas dizer que gosta... Olha, vou te falar, eu não sei
o que é carinho de homem (...). É só vamos lá, vamos cá e pronto. Eu
vou porque é minha obrigação (...). (Depoimento de Maria, Rádice,
ano 2, nº 8, dezembro de 1978, p. 10).
De uma prostituta da Central do Brasil,
Oito horas da noite na Central do Brasil, Rio. Num bar abafado, com
algumas mesas e um balcão estreito, um grupo de pessoas fala em voz
alta. À nossa frente, uma mulher alta, magra com o rosto marcado por
uma profunda cicatriz na altura da testa. Sempre que fala, seu sorriso
parece querer explodir, mas não explode. Nem mesmo quando ela diz
que é muito fogosa e não sabe distinguir quando está fantasiando ou
dizendo a verdade. Maria Lúcia tem 40 anos, mora no subúrbio e
todas as noites faz ponto na Central. (Elias Fajardo e Francisco Viana,
Rádice, ano 2, nº 8, dezembro de 1978, p. 12).
Se sou boa de cama? Quem sabe dizer é quem vai comigo. Meu
amor é muito forte, tão forte que tenho de me controlar pra não fazer
uma besteira. A mulher tem de ter pudor, amor próprio. Respeito os
outros para ser respeitada, não abuso dos fracos nem dos valentes.
(depoimento de Maria Lúcia, Rádice, ano 2, nº 8, dezembro de 1978,
p. 13).
De um homem casado que reproduzia o estereótipo do “machão”,
O homem brasileiro recebe suas primeiras noções sobre sexo na rua,
onde se inicia com prostitutas e aprende a ser “macho” acima de
qualquer outra coisa. Jorge, 30 anos, profissional liberal, salário de
Cr$ 30 mil mensais, fez questão de se dizer um homem sem
preconceitos, afirmou que as parceiras nunca reclamaram e que sua
mulher estava satisfeita com sua performance. No espaço decorrido
entre esta entrevista e sua publicação, a mulher separou-se dele. (Luiz
Horta, Rádice, ano 2, nº 8, dezembro de 1978, p. 13).
Quando você sai com outra mulher, tem sempre a excitação de se estar
fazendo algo proibido, você conhece uma nova parceira. Tem mais
mistério. Não que minha mulher o seja uma boa parceira: eu não
trocaria ela por ninguém. O relacionamento entre nós é perfeito. (...)
Eu não acredito que ela [a mulher dele] transe com outro. Não vou
ficar teorizando: se soubesse realmente de alguma coisa, eu ficaria
grilado. Não por mim, mas pelos padrões de comportamento da
sociedade que já vem com suposição feminina mais passiva. Vivemos
num patriarcado e qualquer mudança sempre choca. Eu admito que
nesse ponto eu sou machista: ia ficar muito puto. Minha reação eu
o poderia dizer. (depoimento de Jorge, Rádice, ano 2, 8,
dezembro de 1978, p. 13).
De um casal homossexual masculino que havia adotado uma menina,
Pedro e Mário se conhecem há aproximadamente 10 anos e vivem
juntos seis. No começo mantinham relações heterossexuais com
outras pessoas para “manter a imagem”, mas depois conseguiram,
através de muita luta, a tranqüilidade necessária para dar a volta por
cima e viver como escolheram. (Jean dos Santos e Vera Vitis, Rádice,
ano 2, nº 8, dezembro de 1978, p. 14).
Nossa relação é boa, geradora de prazeres, intimidades, confiança e
muita amizade. Não precisa nem falar que pinta posse, ciúme e essas
coisas, mas a gente tá sempre questionando. (depoimento de Mário,
Rádice, ano 2, nº 8, dezembro de 1978, p. 14).
Com relação à Marina (...), ela vive bem, vai ser uma pessoa legal e o
que eu espero é que ela escolha sozinha o que vai ser, em todos os
sentidos. (depoimento de Pedro, Rádice, ano 2, nº 8, dezembro de
1978, p. 14).
De uma mulher casada que abandonou tudo para viver com outra mulher,
No Brasil atual, gatas e gatinhas, mulheres mais maduras, mães de
família estão começando a assumir (...), para terror da tradicional
família e do chamado status quo. (...) Iracema M., 34 anos, mineira de
algum ponto qualquer das tradicionalíssimas Minas Gerais, 4 filhos,
“senhora e esposa” de um importantíssimo advogado (...), um belo dia
viu-se apaixonada por uma médica, desfez seu bem formado
casamento e, segundo ela, “picou a mula”, escandalizando para
sempre a cidadezinha (...). (Márcia Almeida, Rádice, ano 2, nº 8,
dezembro de 1978, p. 15).
Pra mim, o fundamental foi ter deixado sair a minha mulher e a minha
criaa. Pra isso enfrentei tudo e todos (...). E conhecendo minha
mulher, tendo e sendo essa minha mulher e, mais do que isso, sendo
amiga dessa mulher que só pôde sair da prisão na hora que foi buscada
e despertada, inesperadamente, por uma outra pessoa do meu mesmo
sexo. Tive barras nesse relacionamento como qualquer outro
relacionamento, mas tive muito amor e amei muito e, o mais
importante de tudo, fui feliz. (depoimento Iracema, Rádice, ano 2, nº
8, dezembro de 1978, p. 15).
De um escritor de contos eróticos publicados em livros de bolso que percebeu que
contava em seus textos suas próprias fantasias,
Protegido pelo pseudônimo, deixei escapar primeiro todos os frutos
proibidos que existiam (e existem) na minha cabeça. Crueldade
sexual, dominação das fêmeas pelos machos, sadismo, dor e prazer
intimamente ligados. Depois deste primeiro impulso veio uma fase de
gratificação onde os personagens tinham uma vida amorosa intensa e
até saudável, justo o meu oposto, encaixotado em 15 anos e formação
presbiteriana. (...) Parei de escrever quando senti meu “passado
reescrito (...) tinha chegado a um ponto onde continuar a escrever
industrialmente significava mexer no meu presente” (...) (Bruno
Almada pseudônimo , Rádice, ano 2, 8, dezembro de 1978, p.
16)
Além dos depoimentos, foram publicados artigos, entre estes um escrito por Elias
Fajardo, intitulado Educação sexual. Qual?”, outro de Carlos Ralph, O sonho acabou”, um
terceiro sobre a trajetória de Reich, sem assinatura e, um último do preso político Alex Polari
de Alverga sobre o sexo nas prisões.
A sexualidade nas prisões, (...) é uma das formas de aprisionar o corpo
nas teias da violência institucionalizada do cárcere, na rotina dos
deferimentos e interdições, nas tramas da normalidade e da
anormalidade, nos temas da saúde e da patologia indispensáveis ao
“sadiodiscurso ideológico ao mesmo tempo obtido e exercido contra
milhares de seres confinados. (Alex Polari de Alverga, Rádice, ano 2,
nº 8, dezembro de 1978, p. 23).
Também foram publicadas duas entrevistas, uma com Romel Alves falando sobre
Orgonoterapia e outra com o psiquiatra Isaac Charam, à época, presidente da Sociedade
Brasileira de Sexologia, dando o tom “institucionalizado” ao debate.
O que se destaca é a forma encontrada para debater o tema sexo, primeiro porque
relataram as experiências daqueles considerados “marginais”, ou “desviantes” da norma social
geral, expondo pontos de vista diversos, as dificuldades de cada um, os preconceitos, a
relação com o corpo.
Estamos falando de sexo porque falar de sexo nunca é supérfluo, e
quase sempre é importante. Falar e deixar fala. Ecoar vozes pouco
ouvidas nas edulcoradas páginas das revistas coloridas pode o saciar
apetites acostumados sempre ao mesmo paladar, mas trazem
importantes dados do que possa estar significando sexo para outras
pessoas (...). Sexo é um assunto importante ninguém nega , e
bastante tratado idem, idem , mas poucas vezes desnudado
publicamente enquanto experiência pessoal e discussão livre de
vivências oficialmente consideradas “fora dos padrões de
normalidade”. (...) Nossa preocupação em não trazer respostas
(também não as temos) pode não ter sido cumprida à risca, pois todas
as colocações que fizemos trazem o perigo de estarem “contaminadas”
por uma visão facciosa que não é possível ser consertada pelo simples
discurso. Mas tentamos. (Carlos Ralph, Rádice, ano 2, 8,
dezembro de 1978).
100
Ou seja, retirando o sexo dos espaços privados da vida e inserindo-o como tema de
debate público, coletivo. Inclusive entre os próprios colaboradores da revista, que passaram a
se dedicar ao estudo da obra de Reich e a publicarem na Rádice traduções de parte de obras
que não existiam por aqui e, também, algumas resenhas.
Não foi à toa o encontro entre Reich e Rádice. Segundo Escobar (1974), Reich foi um
desbravador, um começo dos grandes debates contemporâneos sobre a psicanálise que
inaugurou um período de críticas neste campo. Apesar do biologismo característico da
segunda fase do pensamento de Reich, que acabou por levá-lo à um impasse, cristalizando-o
em uma biofísica dogmática, ao aproximar a psicanálise da política, Reich passou a refletir
também sobre a prática analítica, reflexão da qual Rádice comungou.
2.3. O novo sindicalismo e as articulações políticas no campo da
psicologia
Como já apontado no Capítulo 1, na segunda metade dos anos de 1970, houve uma
grande mobilização social pela abertura política e o fim do Regime Militar promovida,
principalmente, pelos movimentos sociais (associações de bairro, organização das lutas dos
grupos ditos minoritários, os Centros Eclesiais de Base (CEB), etc.) que emergiram como
força política. Essa mobilização era, também, pela reorganização dos movimentos que foram
desarticulados pela repressão, como os sindicatos.
Com o acirramento do autoritarismo, a partir de 1968, a resisncia política e a
organização dos trabalhadores se tornaram mais difíceis devido às perseguões dos órgãos de
repressão. De acordo com Abramo e Silva (1988), os sindicatos tornaram-se espaços de
propaganda do “milagre”, vendendo o sonho de ascensão através de políticas assistenciais que
priorizavam ações voltadas como a compra de prédios para suas sedes, e a construção de
colônias de férias, seguindo o lema do “desenvolvimento” e “segurança”. Às greves e
manifestações da década de 1960, seguiram-se a apatia e desmobilização da de 1970.
Portanto, o golpe de 1964 e o acirramento da repressão em 1968 desarticularam os
sindicatos e modificaram as relações de trabalho no Brasil. Os militares promoveram
intervenções nas confederações, federações e sindicatos, cassaram os direitos políticos de
inúmeros dirigentes sindicais, deixando acéfalo o movimento operário. Outras medidas foram
101
tomadas para enfraquecer os sindicatos e impor as novas políticas para os trabalhadores. A
primeira foi a transferência para o governo do poder de fixar o índice do reajuste anual dos
salários, dificultando com isso as negociações entre patrões e empregados. A segunda medida
foi a proibição das greves, através da Lei 4.330/65 e a inclusão desse tipo de mobilização na
lista dos crimes contra a Segurança Nacional. A terceira medida foi a implantação do Fundo
de Garantia por Tempo de Serviço FGTS, suspendendo com isso a garantia de estabilidade
no emprego e promovendo uma alta rotatividade dos trabalhadores nas empresas, visando
dificultar a organização destes.
Entre 1966 e 1967, motivado pelas passeatas e mobilizações promovidas pelo movimento
estudantil, o movimento operário esboçou uma reação através de protestos contra as novas
leis trabalhistas, contra o arrocho, o FGTS e o aumento do custo de vida.
Por trás dessa agitação, estavam os grupos de esquerda que atuavam dentro do
movimento operário. Frederico (1987) divide esses grupos em duas posições: uma,
representada pelo PCB, que até o golpe detinha a hegemonia no movimento operário e
propunha uma política de alianças que levaria a uma luta parlamentar, fortalecendo o MDB. A
outra posição reunia os diversos grupos de esquerda que lançavam críticas ao reformismo do
PCB e propunham ações radicais como a luta armada.
A estratégia conciliadora do PCB resultou na organização, dentro do Congresso Nacional,
de uma frente de oposição, contando com a participação de setores marginalizados e com
líderes poticos que se opunham à Ditadura, como João Goulart, Juscelino Kubitscheck e
Carlos Lacerda. Em 1967, parecia haver uma esperança de enfrentamento à Ditadura e
reorganização do movimento. Com as eleições em diversos sindicatos que estavam sob
intervenção, havia a expectativa de renovação das lideranças, e o PCB, com o objetivo de
reanimar as entidades de classe, propôs a tese da Unidade Sindical, reunindo em um programa
mínimo as lutas que deveriam unificar os trabalhadores, independentemente de sua posição
ideológica.
Foi organizada uma Campanha Nacional de Proteção Contra a Política de Arrocho
Salarial e em torno desta realizaram-se diversos encontros regionais que resultaram na
formação de órgãos centralizadores da luta sindical, como a Frente Intersindical Antiarrocho,
no Rio de Janeiro, e o Movimento Intersindical Antiarrocho (MIA), em São Paulo
75
.
75
Segundo Frederico (1987), este último, com uma história bastante conturbada, foi acusado de subversivo pelas
confederações e federações ligadas ao Regime Militar, devido a sua organização horizontal que reunia os
dirigentes sindicais, contrariando a legislação brasileira que imprimia um caráter vertical à organização sindical
102
Frederico (1987) observa que mesmo proibido por lei, o movimento operário criou, em
diferentes momentos de sua história, organizações com tal característica. Importante destacar
que durante a Ditadura Militar, esse tipo de organização figurava entre os crimes contra a
Segurança Nacional.
O segundo grupo potico citado por Frederico (1987) reunia diversas tendências que
compartilhavam da crítica ao PCB e suas estratégias, consideradas “pacifistas” e
reformistas”. De acordo com o autor, esses grupos heterogêneos politicamente tinham dois
pontos em comum: um, a crença de que a Ditadura somente poderia ser derrubada pela luta
armada; outro, a desconfiança com relação à participação nos organismos legais que existiam
à época. Criticavam o que chamavam de “sindicalismo de Estado”, ou seja, a manipulação
política dos sindicatos pelos grupos que se revezavam no poder. Esse tipo de sindicalismo era
chamado de “cupulista” e tinha sua sobrevivência garantida pelo imposto sindical
compulsório e não através da participação dos trabalhadores. Um dos efeitos do
“sindicalismo de Estado observado pelos grupos de esquerda era a política populista
conseqüente da dependência ao Ministério do Trabalho. Esta potica reforçou uma
consciência nacionalista mitificada que manteve os trabalhadores desarmados e incapazes de
resistir ao golpe militar.
Carone (1984) especificou melhor esse grande grupo de esquerda, dividindo-o da
seguinte forma: grupos dissidentes do PCB ão de Libertação Nacional (ALN), Partido
Comunista do Brasil (PC do B), Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e Partido
Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Grupos de origens diversas Vanguarda
Popular Revolucionária (VPR), Política Operária (POLOP) e Ação Popular (AP); e grupos de
origem trotskista o Posadismo, Convergência Socialista, Liberdade e Luta (Libelu)
76
.
O ano de 1968 foi marcado por diversas manifestações contrárias à ditadura e, também,
por grandes greves operárias. Frederico (1987) cita as greves ocorridas em abril e outubro em
Contagem (MG), as paralisações em São Bernardo do Campo ocorridas em maio e a grande
greve de Osasco, em julho, sublinhando que, mais do que movimentos de reivindicação
(sindicatos na base e federações e confederações na cúpula). Por sua vez, as oposições sindicais acusavam o
MIA de burocratismo e não o reconheciam como representante dos trabalhadores. As atividades do MIA
aconteceram no período de 1967 a 1968 e levaram a encontros nada tranqüilos: de um lado a intimidação
policial, de outro as divergências dentro do movimento, acusando a organização de não ser representativa dos
trabalhadores e sem força para preparar a classe para a luta contra a Ditadura. A repressão apertou o cerco em
torno do MIA, que acabou sendo desarticulado em 1968. Na década de 1980, surgiram a Unidade Sindical, a
Anampos, a Central Única dos Trabalhadores e a CONCLAT.
76
Não é o objetivo deste trabalho descrever cada grupo e suas diferenças e estratégias de luta e enfrentamento da
ditadura. Existe vasto material bibliográfico disponível sobre estes grupos de esquerda.
103
econômico-corporativa, foram ações coletivas de contestação e resistência à ditadura militar.
Apesar da repressão e do acirramento da violência de Estado com o AI-5, o autor afirma que o
movimento operário o foi completamente desarticulado nesse período, pois durante 1969 e
1970 ocorreram pequenas greves e paralisações. Segundo Frederico (1987), os militares
alcançaram êxito em desmantelar o movimento operário em 1971, quando as lutas operárias
foram confinadas ao interior das fábricas, sem repercussão na sociedade.
A partir de 1972, outro cenário se ims. A repressão conseguiu minar o trabalho dos
comunistas entre os operários, provocando o fim da hegemonia do PCB no ABC paulista. Os
grupos de esquerda que não se aliavam às propostas dos comunistas, tentavam formas de ação
mais radicais a partir de duas estratégias: a primeira consistia na mobilização dos militantes
de origem burguesa (médicos, professores, advogados, etc.) para colocar suas práticas
profissionais a serviço do movimento operário; a segunda estratégia era fazer com que
militantes se empregassem nas fábricas e no campo. Frederico (1987) aponta que várias
organizações lançaram mão dessas estratégias, mas a que as levou mais adiante foi a AP, pois
havia a preocupação entre seus militantes em suprimir a divisão entre trabalho manual e
intelectual era, pois, a chance de incorporarem a “ideologia operária”.
Outra estratégia era a “propaganda armada”, que consistia na invasão de fábricas por
militantes armados com metralhadoras, para intimidar os chefes e gerentes e panfletar entre os
operários, com a finalidade de incentivar o engajamento na luta contra a ditadura. Frederico
(1987) chama a atenção para a dificuldade desses grupos proporem um programa político
dirigido à classe operária e seu distanciamento em relação a esta.
Para Abramo e Silva (1988), a luta sindical no Brasil ressurgiu no final da década de
1970, motivada pelo movimento sindical metalúrgico de São Paulo que se organizava de
forma independente dos sindicatos oficiais, por isso sua importância e destaque na história do
movimento operário brasileiro. Os metalúrgicos paulistas foram os grandes protagonistas das
greves realizadas no período 1978-1984 e, em função disso, se destacaram como referência
para outros movimentos de organização dos trabalhadores. Os autores observam que isso não
significa que o movimento tenha tido características homogêneas, diferenciando-se na forma
de organização e nas orientações poticas.
A emergência das lutas sindicais no final da década de 1970 foi uma resposta ao longo
período de silenciamento desde o AI-5. O “milagre” promoveu um esmagamento da classe
trabalhadora com a extensão da jornada de trabalho, baixos salários, alta rotatividade de
trabalhadores nos postos de trabalho. As altas taxas de crescimento econômico tiveram como
104
efeito o processo de precarização das relações de trabalho e, conseqüentemente, a
deteriorização das condições de vida dos trabalhadores.
A partir da segunda metade da década de 1970, um novo modo de organização sindical
surgiu, combatendo o imobilismo e o peleguismo. Outros elementos disparadores dos
movimentos de greve apontados por Abramo e Silva (1988) foram a oposição generalizada ao
Pacote de Abril” e a saída às ruas dos estudantes, fortalecendo o clima geral de insatisfação.
Somente em 1979 ocorreram 430 greves em todo o país, mobilizando trabalhadores das mais
diversas categorias, tais como metalúrgicos, professores universitários e do Ensino Médio,
bancários, motoristas e cobradores de ônibus, canavieiros, funcionários públicos, etc.
Em pequenas ões nas fábricas e nos bairros, os operários organizaram o movimento
Oposição Sindical que com as greves de 1977 e 1978 saiu fortalecido politicamente. Essa
organização criticava os sindicatos vigentes e enfrentou diretamente o Estado autoritário,
levando diferentes categorias de trabalhadores a utilizarem o instrumento da greve.
Devido ao processo recessivo em que entrou a economia pós-milagre, as lutas visavam a
defesa da estabilidade no emprego e também a reposição salarial. Eram os anos do arrocho
salarial, que trouxeram efeitos devastadores para os trabalhadores e para a classe média
brasileira. Os movimentos grevistas sofreram, mais uma vez, ações repressivas do governo,
que ampliou os setores de Segurança Nacional nos quais as greves eram proibidas. Mas o
momento político era outro, a sociedade se organizava e tomava as ruas exigindo o fim da
ditadura militar. O resultado das eleões de 1975 e as denúncias de tortura e violência que
ocorriam nas pries brasileiras feitas aos organismos internacionais de defesa dos direitos
humanos produziam uma tensão potica importante, fazendo com que o general Geisel, ao
assumir o poder, engendrasse o discurso da distensão potica. Diante dessas novas
condições, os sindicatos se fortaleceram e transformaram-se em um canal de expressão da luta
dos trabalhadores, modificando sua estrutura. Essa nova forma de organização potica
independente também ocorreu entre outro “tipo de trabalhador, os profissionais liberais”
como, por exemplo, os psicólogos. Naquele momento tornou-se fundamental participar do
movimento social de resistência à ditadura e também reivindicar transformações no campo do
trabalho.
Desde a década de 1960, começaram a surgir associações de psilogos em vários
estados brasileiros. Para fundar uma associão era necessária a participação de 1/3 dos
profissionais da região, elaborar um estatuto em conformidade com a legislação sindical, fixar
o preço das mensalidades, obter aprovação da proposta dos associados através da convocação
105
de uma assembléia geral e registrá-la no Ministério do Trabalho. A lei exigia, ainda, atestado
ideológico e provas de boa conduta dos diretores das associações. O Ministério do Trabalho
autorizava a transformão da associação em sindicato pela Carta Sindical, levando em conta
o cumprimento rigoroso de todas as exigências descritas acima (LEITE, 1984). O primeiro
sindicato dos psilogos surgiu em São Paulo, antes mesmo da criação do Conselho Federal e
regionais de psicologia, que, como vimos, só ocorreu em 1971.
No Rio de Janeiro, as iniciativas para constituir o sindicato são do final da década 1970,
com a retomada das atividades da antiga Associação Profissional dos Psicólogos do Estado da
Guanabara (APPEG), criada em 1962. A APPEG, fundada por Yone Caldas, Terezinha Lins
e Hans Lippman, o tinha entre seus propósitos constituir, no futuro, um sindicato. Esses
psicólogos e professores estavam comprometidos com a criação de uma entidade nos moldes
das associações científicas, voltada para estudos e difusão do conhecimento psicológico. Em
1968, esse grupo fundador deixa a associação para criar a Sociedade de Psicologia Clínica do
Rio de Janeiro. A associação ficou inativa até 1977, quando um grupo de psilogos,
mobilizados pelas eleições para o Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro,
interessou-se em revitalizá-la, mas com outro objetivo, o de transformá-la em sindicato para a
consolidação da profissão de psilogo.
Em outubro de 1977, foi convocada uma assembléia geral, presidida por um
remanescente da antiga APPEG, o psilogo Marcos Vinícius, para eleger uma diretoria que
assumisse o trabalho de reorganização da associação e encaminhasse a solicitão da Carta
Sindical ao Ministério do Trabalho. Com a temática “A situação evolutiva da profissão de
psicólogo no Brasil”, a assembléia mobilizou cerca de 250 psicólogos reunidos na Fundação
Getúlio Vargas (FGV-RJ), que aprovaram o novo estatuto da associação e a eleição para
compor uma nova diretoria. A eleição ocorreu em 25 de novembro, e no dia de dezembro
era empossada a nova diretoria da agora Associação Profissional dos Psicólogos do Rio de
Janeiro (APP/RJ), que contava com os seguintes nomes: Vera Lúcia Canabrava (presidente);
Helena Lins (vice-presidente); Mara Regina (secretária geral) e Lúcia Estrela (tesoureira).
Estávamos no governo do general Geisel (...). O fato mesmo de ainda
estar em vigor um regime político duro, trazia-nos muitas angústias
quanto aos modos de inserção de um sindicato: que lutas abraçar?
Haveríamos de nos envolver, apenas, com as questões da própria
categoria ou juntar nossos esforços para a transformação da cena
nacional? Mas, (...) nossa opção foi (...) lutar pelas nossas questões
específicas e lutar pela democratização da nação. (CANABRAVA,
s/d, p. 3)
106
Os anos de 1978 e 1979 foram dedicados à organização da entidade e a atender as
exigências do Ministério do Trabalho para a obtenção da Carta Sindical. Os membros da
associação trabalharam intensamente para associar 850 psicólogos, 1/3 do número de
profissionais de cada região, de acordo com as regras do MT. Com as contribuições
financeiras dos associados, foi possível alugar um andar de sobrado na Rua do Catete. Ali,
foram criadas comissões de trabalho para ampliar a campanha de filiação ao sindicato, para
lutar pela criação do cargo de psicólogo nas secretarias de Estado e, ainda, uma comissão de
imprensa responsável pela publicação do jornal PSIndicato. Além dessas tarefas mais
administrativas, iniciou-se a integração da APP/RJ com as lutas sindicais do período, através
da participação no primeiro encontro de lideranças sindicais nacionais em Gragoatá, no ano
de 1977 (CANABRAVA, s/d, p. 6).
O reaquecimento do movimento sindical a partir de 1977, o engajamento nos debates
nacionais, como a luta pela anistia e o fim da ditadura, as mudanças que aconteciam nas
condições do exercício dos profissionais de psicologia, a necessidade de reconhecimento do
trabalho do psicólogo são elementos que explicam o surgimento das associações e sindicatos.
Segundo Leite (1984), em 1984 havia quatro sindicatos de psicólogos funcionando (São
Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Paraná) e onze associações profissionais (Piauí,
Mato Grosso do Sul, Ceará, Alagoas, Espírito Santo, Goiás, Bahia, Pernambuco, Rio Grande
do Norte, Distrito Federal e Minas Gerais).
Um dos primeiros desafios da associação em relão às lutas pela consolidação da
profissão foi abrir caminho para os psilogos no serviço público e participar da construção
de um plano de carreira incluído neste o debate sobre carga horária e salário. A APP/RJ e,
posteriormente, o Sindicato dos Psilogos participaram de algumas batalhas importantes, as
mais significativas sendo as queses relativas à criação do cargo de psilogo nos órgãos
estaduais e municipais de educação e, em seguida, de saúde e de administração, bem como o
enfrentamento do projeto Julianelli
77
e outros projetos de currículo para os cursos de
psicologia. Também se posicionou, frente ao caso Amílcar Lobo, repudiando suas atividades,
77
Hoje enfrentamos um novo Julianelli”, o Projeto de Lei (025/2002) do senador Geraldo Althoff (PFL/SC),
conhecido como Ato Médico. O projeto define como ato médico todos os procedimentos diagnósticos ou
terapêuticos que envolvam a prevenção e os cuidados da atenção de saúde primária, secundária e terciária,
ferindo a atuação e o livre exercício de várias categorias profissionais e atingindo diretamente a população que,
em última instância, teque, em primeiro lugar, procurar um médico caso queira iniciar um tratamento com
outros profissionais da saúde como nutricionistas, psicólogos, fonoaudiólogo, etc. Este projeto rompe com as
noções de interdisciplinaridade e integralidade, princípios que regem o Sistema Único de Saúde.
107
e no apoio aos psicanalistas Hélio Pelegrino e Eduardo Mascarenhas no momento em que
foram expulsos da Sociedade de Psicanálise do Rio de Janeiro (SPRJ)
78
.
Outra discussão inflamava as assembléias e reuniões da psicologia: o projeto de Lei nº
248, de 1977, que dispunha sobre a regulamentação do exercício da profissão de psicanalista
clínico, propondo que o exercício da nova profissão fosse privativo aos diplomados em
medicina e psicologia, com curso específico de psicalise em nível de s-graduação
reconhecido pelo Ministério da Educação e Cultura. O projeto de lei dispunha que a
fiscalização do exercício da profissão de psicanalista clínico competiria ao Conselho Federal e
aos Conselhos Regionais de Medicina. Esse projeto, de autoria do senador Nelson Carneiro,
deu o que falar no meio “psi”, isso porque era o terceiro que se propunha a regulamentar a
profissão de psicanalista, sendo o primeiro a admitir psicólogos na nova categoria; além disso,
tinha boa chance de ser aprovado. Todos tinham críticas ao projeto e negavam a necessidade
de tal regulamentação. O projeto foi arquivado devido às pressões dos profissionais “psis”.
Quanto aos esforços pela criação do cargo de psicólogo no funcionalismo público, em
1978 a Associão encaminhou ao então governador do estado do Rio de Janeiro, Faria Lima,
e ao prefeito, Marcos Tamoyo, um documento solicitando a criação do cargo de psilogo nos
óros estaduais e municipais de educação. Tal reivindicação deveu-se ao fato de que havia
um expressivo número de profissionais que atuavam como psilogos dentro dos órgãos de
educação alguns desde 1959 , mas em desvio de função, pois haviam iniciado suas
atividades como professores.
O cargo de psicólogo foi, então, oficializado na rede municipal de ensino em 14 de março
de 1979, através da Lei 95, que dispunha sobre o Plano de Classificação de Cargos e
Vencimentos do Município do Rio de Janeiro e de dois decretos: o 3.410 de 11 de novembro
de 1982, que regulamentava o cargo e definia as atribuições do profissional, prevendo sua
lotação em três secretarias municipais: saúde, educação e administração; e o decreto 3.422 de
9 de março de 1982, que fixava o número de vagas relativas ao quadro funcional, no total de
quatrocentas. A contratação dos psicólogos deveria ocorrer através de concurso público, mas
este mecanismo acabou gerando um problema para 380 profissionais contratados que corriam
o risco de perderem alguns direitos, como o tempo de trabalho e a diminuição de seus
vencimentos
79
.
78
Este tema será tratado mais adiante, no capítulo três.
79
Fontes: Diário da Câmara Municipal, ano VI, nº 893, de 03/12/82, e as matérias: “Prefeito não houve queixa
de psicólogo”, Jornal Última Hora, 03/08/1982; “Psicólogos do Município querem ser enquadrados sem fazer
108
A Lei 95 determinava que os funcionários em desvio de função não seriam beneficiados
com a transposição automática para o cargo criado, como era proposto na esferas estadual e
federal. A lei determinou um mecanismo para a mudança de cargo, a transferência, que
desconsiderava o tempo de serviço, ou seja, ao assumir o cargo, o funcionário iniciaria pela
faixa salarial mais baixa. Outro problema desse mecanismo era que o número de vagas
destinadas aos funcionários em desvio de função era insuficiente para acolher todos os que
estavam naquela situação.
Com a criação do cargo, uma nova luta se iniciou, agora para modificar a lei e pleitear a
transposição, que consistia no enquadramento do funcionário no nível adequado ao seu tempo
de serviço, sem perda de seus direitos e garantias trabalhistas. Em 1982, o Sindicato dos
Psilogos promoveu uma intensa mobilização que ganhou destaque nos principais jornais do
Rio, exigindo o enquadramento através da transposição. A situação pareceu ter sido resolvida
quando a mara Municipal promulgou a Lei 389 de 20 de dezembro de 1982, que
assegurava aos ocupantes de qualquer cargo de professor, portadores de habilitação
específica, caso se encontrassem na função de psicólogos, o direito de serem enquadrados
naquele cargo. Essa lei só beneficiou os psilogos que ocupavam cargo de professor, sendo
iniciada uma nova batalha para que o benefício se estendesse aos demais colegas que
ocupavam outros cargos.
A luta pela aprovação do Sindicato dos Psilogos do Rio foi intensa, e somente em 3 de
dezembro de 1980 foi autorizada a transformação da associação em sindicato. O não
cumprimento de todas as exigência burocráticas fez com que fosse impugnada a primeira
eleição da primeira diretoria. Era proibida a participação de funcionários blicos nas
direções de entidades como os sindicatos, e a psicóloga Lúcia Estrela, integrante da diretoria
eleita, era funcionária da Secretaria Estadual de Educação. Esse fato rachou o grupo, tendo
como conseqüência a formação de duas chapas.
Sindicato, enfim
Saiu, saiu, o sindicato saiu. Depois de anos de briga contra a
burocracia, contra os interesses, contra o comodismo, saiu o Sindicato
dos Psilogos do Município do Rio de Janeiro. E está se
organizando para suas tarefas de defesa da categoria. Neste momento,
as duas principais tendências que dividiam o poder na antiga
Associação dos Psilogos negociam um acordo político para o
prova”, O Globo, 07/08/1982; Psicólogos frustrados com reivindicação não atendida”, O Globo, 03/08/1982;
“Psicólogo protesta para conseguir enquadramento”, Jornal dos Sports, 07/08/1982; Massacre do plano atinge
psicólogos”, Jornal Última Hora, 07/08/1982; Sindicato dos Psicólogos do Município do Rio de Janeiro, Ofício
nº 49 de 4 de agosto de 1982, a Júlio Coutinho, Prefeito do Rio de Janeiro.
109
lançamento de uma chapa única para as primeiras eleições do
sindicato. Se não conseguirem, irão para a luta na base do voto. Acho
ótimo qualquer dessas opções; numa ficará demonstrada a capacidade
de negociação e acordo numa questão difícil; na outra a eleição da via
democrática, do voto livre e secreto, para dirimir questões que
interessam à categoria. Estamos todos de parabéns por termos
conseguido o Sindicato. Estamos todos esperando uma atuação firme
e segura da defesa de nossos interesses. Vamos colaborar, participar.
Empolgação, minha gente!! (Carlos Ralph, seção “Geralmente”,
Rádice nº 15, de 1981).
Novas eleições foram organizadas e, em setembro de 1981, foi eleita a chapa composta
dos seguintes nomes: Cláudio Smith da Silva (presidente), Vera Lúcia G. Canabrava (vice-
presidente), Leda Maria (secretário-geral), Ângela Tunnine (primeiro secretário), Helena
Martins (tesoureiro geral) e Maria Cristina Nazareth (primeiro tesoureiro). Era fundamental
naquele momento participar do movimento sindical, e o sindicato dos psilogos, filiado à
CUT, engajava-se nas lutas pela democratização, pela anistia e pela criação das centrais de
trabalhadores no Rio de Janeiro.
Mudanças aconteciam dentro da psicologia. O estereótipo de “profissional liberal”, auto-
suficiente e isolado em seu consultório, estava se transformando a partir de sua nova inserção
no mercado de trabalho. A condição de assalariado tornava-se realidade não na categoria
dos psicólogos, mas também na médica, seu modelo de profissão liberal. Outro aspecto
importante da transição da associação para o sindicato foram as mudanças na prática
profissional do psilogo especialmente, a afirmação da psicologia como uma profissão do
campo da saúde, devido, especialmente, às transformações que ocorriam no campo da saúde
mental e o engajamento de alguns psicólogos nessa luta política.
Nessa época surgiram duras críticas aos vários pacotes que preconizavam modelos para a
psicologia, tais como: a reformulação do currículo nimo, o projeto de especialização
sugerido pelo CFP
80
e um projeto de lei que propunha que o psilogo e outras onze
categorias profissionais poderiam praticar determinadas atividades com
autorização/supervisão de um médico. Era o famoso projeto 2.726, de autoria do deputado
Salvador Julianelli (PDS-SP). Seu caráter discriminatório e antidemocrático foi objeto de
denúncias e manifestações de repúdio por parte de estudantes e profissionais ligados à saúde.
O modelo para a psicologia estava pautado nos moldes médicos do Instituto Nacional de
Previdência Social (INPS): os profissionais de saúde considerados “não-médicos” ficariam
80
Sobre esses dois projetos, ver próximo item deste capítulo.
110
sob supervisão médica que, por sua vez, teria plenos poderes para receitar/indicar tal ou qual
técnica para o paciente. Aqueles que idealizaram o projeto advinham do setor público, mas o
Julianelli assegurava à rede privada conveniada com o INPS a manutenção da assistência
tradicional. Vale lembrar que, nesse momento, a saúde pública, especialmente a saúde
mental, atravessava um período de críticas ao modelo hospitalocêntrico através das denúncias
e críticas que partiam, sobretudo, do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental
(MTSM) que se fortalecia. Quando essas ações contestatórias começavam a atingir a forma
como eram realizados os convênios entre o INPS e a rede privada, surgia o Julianelli.
Profissionais e entidades de várias categorias ligadas à saúde se mobilizaram contra o projeto,
incluindo o Sindicato dos Médicos.
O projeto acabou sendo retirado da pauta pelo próprio deputado, em função dessa intensa
mobilização, que reunia diferentes profises da área de saúde, ampliando o campo de luta e
articulando diferentes categorias.
A defesa dos direitos da população contra o corporativismo tornava-se uma bandeira cada
vez mais forte. Os profissionais que naquele momento atuavam no campo da saúde/saúde
mental assumiam nova consciência quanto à organização de classe e a defesa dos direitos dos
cidadãos. Os psilogos passaram a discutir os efeitos da prática “psi” na sociedade e a
questionar a falta de organização e comprometimento político da maior parte da categoria.
No campo da saúde, o próprio “poder médico” tornava-se cada vez mais questionado, em
função da inadequação dos tratamentos em serviços públicos e privados de saúde, sendo
banais as denúncias de maus tratos em vários hospitais psiquiátricos, como os de Barbacena
(MG), Juqueri (SP) e Colônia Juliano Moreira (RJ). Grupos antes silenciados dentro das
conservadoras associações de classe médicas passaram a se organizar e pleitear direitos e
deveres, trazendo oões de tratamento e novas idéias ao sistema de atendimento então falido
e ineficiente.
As lutas pela organização política da profissão e seu reconhecimento como um campo
distinto da medicina abandonando-se, assim, a idéia de uma classe “auxiliar” no campo da
saúde promoviam a conquista de novos espaços de atuação. A partir da segunda metade da
década de 1980, surgiram os primeiros concursos públicos para cargos de psilogo, sendo o
primeiro, realizado em 1986, um marco importante para a inserção dos psilogos na saúde
mental. Muitos já atuavam em diversos hospitais como bolsistas, com baixa remuneração ou,
às vezes, até mesmo sem remuneração. Esse também é um período de muitas transformações
na saúde pública brasileira, momento de questionamento da lógica medicalizante e da
111
participação dos profissionais de saúde nas conferências de saúde, como ocorreu na VIII
Conferência Nacional de Saúde.
Toda essa mobilização em torno do Projeto Julianelli e também da implantação do
currículo nimo para os cursos de psicologia possibilitaram o trabalho de articulação
nacional das entidades “psis”, no início da década de 1980.
De acordo com Leite (1984), o I Encontro Nacional das Entidades Sindicais de Psicologia
aconteceu em 1981 e foi realizado em São Paulo, com a presença do sindicato paulista,
carioca e gaúcho, além das associações do Espírito Santo e Distrito Federal. Os temas
discutidos nesse encontro foram a questão do imposto de renda e o mercado de trabalho. O II
Encontro, realizado em 1982, teve como tema principal a articulação dos psicólogos com o
movimento sindical nacional. Além das entidades do primeiro encontro exceto a do Espírito
Santo participaram as de Minas Gerais, Ceará e Pernambuco. No mesmo ano, no Rio de
Janeiro, foi realizado o III Encontro, com a participação de duas novas associações Rio
Grande do Norte e Alagoas , e os temas discutidos foram as questões salariais e o
desemprego generalizado no país. Em maio de 1983, realizou-se o IV Encontro, em Recife, e
o V ocorreu em 1984, em Brasília. O principal problema enfrentado por todas as entidades
(associações e sindicatos) era a pouca participação da categoria. Na maioria das entidades,
apenas uma pequena porcentagem de profissionais era associada e, desses, poucos
participavam ativamente das atividades desenvolvidas.
A atuação da APP/RJ e, posteriormente, do Sindicato dos Psilogos, da década de 1970
até o início dos anos 90, foram singulares, garantindo conquistas importantes para o
reconhecimento da profissão. O momento histórico das lutas gerais dos trabalhadores e de
toda a sociedade brasileira pela democratização do país inspirava também o Sindicato, que em
certo momento iniciou um processo de autocrítica, problematizando sua natureza e fuão,
que culminou na dissolução da entidade, deliberada em assembléia realizada em 18 de março
de 1992, com a renúncia coletiva da diretoria.
O Sindicato dos Psilogos do Rio de Janeiro permaneceu fechado até meados da década
de 1990. Em 24 de junho de 1993 foi realizada uma assembléia para discutir a reativão da
entidade, da qual participou, além dos psicólogos presentes, um dos representantes da
Executiva Nacional dos Estudantes de Psicologia, Hildeberto Martins. Foi designada uma
comissão de reativação que, em seguida, deu posse à uma junta governativa com a tarefa de
promover as ações necessárias para viabilizar a reabertura da entidade, como mudanças no
estatuto; empreender campanha de sindicalização e organizar eleição. O tempo de mandato
112
da junta governativa foi de um ano, de 26 de abril de 1995 a 25 de abril de 1996. Realizadas
as eleições, a nova diretoria do sindicato tomou posse em 26 de abril de 1996. Mas, esta é
outra história, que foge aos objetivos desta tese.
2.4. A mobilização contra o Pacote de Abril da Psicologia”
Bem embrulhado hermeticamente fechado ,
baixou o pacote de abril da psicologia propondo
novas formas de atuação para os psicólogos...
(Rádice, nº 9, abril/maio de 1979).
Em 1979, na Rádice nº 9 uma grande matéria sobre a proposta de um novo currículo para
os cursos de psicologia no Brasil contava a hisria dessa proposta, seu início em 1976,
quando o Conselho Federal de Educação (CFE) abriu um processo de reformulação do
currículo nimo da psicologia e a constituição em 1977, de uma comissão do Departamento
de Assuntos Universitários do Ministério da Educação e Cultura (DAU/MEC), com o mesmo
propósito. A denúncia desses acontecimentos, visto como ato autoritário, pois não houve uma
convocação ampla de todos os interessados, gerou intensas mobilizações, reunindo estudantes,
professores e profissionais de psicologia. Essas mobilizações, que se estenderam por todo o
país, além de terem tido um caráter singular, tiveram como efeito o arquivamento da proposta.
A partir da vincia da Lei 4.119 de 27 de agosto de 1962, que regulamentou a profissão
de psicólogo e os cursos de formão em psicologia, foi fixado, o currículo de psicologia,
através do Parecer 403 do Conselho Federal de Educação (CFE). O objetivo explícito do
parecer era acentuar o caráter científico da psicologia, garantindo uma posição de relevo (...)
no concerto das chamadas profissões liberais e, (...), evitar as improvisações que (...) a
levariam fatalmente ao descrédito.” (Psicologia Legislação, 1976, p: 31).
O primeiro currículo foi elaborado a partir da experiência dos centros de formação já
existentes no país e das discussões provocadas pela proposta de currículo publicada em 1954
na revista Arquivos Brasileiros de Psicologia (ABP)
81
, com a colaboração de professores
81
Em setembro de 1949, dois anos depois de ter criado o ISOP (Instituto de Seleção e Orientação Profissional)
na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, Emílio Mira Y pez criou a revista Arquivos Brasileiros de
Psicotécnica para divulgar a produção científica da psicologia da época. Com as alterações do papel do ISOP,
seu nome foi alterado em 1969 para Arquivos Brasileiros de Psicologia Aplicada.
113
renomados nacionalmente
82
. A proposta apresentava matérias comuns (exigência mínima
para o bacharelado e a licenciatura), que envolviam conhecimentos instrumentais como
fisiologia e estatística, e os conhecimentos de psicologia psicologia geral e experimental,
psicologia da personalidade, psicologia social e psicopatologia geral. Definia, ainda, para a
formação do psicólogo, duas matérias chamadas “fixas” (Técnicas de Exame e
Aconselhamento Psicológico e a Ética Profissional) e três variáveis”, definidas pelos
estabelecimentos de ensino de acordo com suas necessidades e possibilidades, mas que
deviam observar e atender às características da atividade do psilogo nas áreas tradicionais,
como a escola, a empresa, a cnica. A lista apresentada para tal escolha incluía psicologia do
excepcional, dinâmica de grupo e relações humanas, pedagogia e terapêutica, psicologia
escolar e problemas de aprendizagem, teorias e técnicas psicoterápicas, seleção e orientação
profissional e psicologia da indústria. Para a obteão do diploma de psicólogo, passou-se a
exigir também a chamada “formação teórico experimental”, através do cumprimento do
estágio supervisionado ao longo de, pelo menos, 500 horas de atividades.
O documento enfatizava a importância dada ao reconhecimento da psicologia como
profissão de qualificação intelectual”, de prestígio social” e da definição da tarefa do
psicólogo como de “educação” e reeducação”. No artigo nº 4 do Decreto nº 53.464 de 21 de
janeiro de 1964, em que são definidas as funções do psilogo, destaco a primeira, por seu
caráter extremamente normatizador: utilizar métodos e técnicas psicológicas com o objetivo
de: (...) solucionar problemas de ajustamento” (Psicologia Legislação, 1976, p. 13). Quanto
aos cursos de formação, sua duração foi definida como sendo de quatro anos letivos para o
bacharelado e a licenciatura, seguidos de mais um ano para a formação de psicólogo,
perfazendo o total de cinco anos.
No ano de 1976, o Conselho Federal de Educação (CFE) encarregou a conselheira Nair
Fortes Abu-Mehry de apresentar um anteprojeto para a reformulação do currículo nimo da
psicologia, que, como dito anteriormente, havia sido estabelecido pelo Parecer 403 de
1962. Em 1977, foi constituída pelo Departamento de Assuntos Universitários do Ministério
da Educação e Cultura (DAU/MEC) uma comissão, presidida por Samuel Pfromm Netto, com
o mesmo objetivo reformulação do curculo. Essa comissão apresentou em novembro de
1978 seus estudos ao MEC que, por sua vez, enviou tal proposta às instituições de ensino
solicitando análise e sugestões no sentido de adequar o currículo às novas necessidades do
82
M.B. Lourenço Filho, Nilton Campos (Universidade do Brasil, hoje, UFRJ), Carolina Martuscelli Bori
(Universidade de São Paulo), Padre Antonius Benko (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e
Pedro Parafita (Universidade de Minas Gerais, hoje, UFMG). (Psicologia Legislação, 1976, p: 31).
114
“mercado de trabalhoe exigências profissionais
83
. O prazo dado para o retorno das análises
foi julgado insuficiente pelas universidades, gerando reação dos professores. Aconteceu o
que, talvez, não fosse esperado pelos idealizadores da proposta de currículo: uma ampla
mobilização contra a proposta por parte de estudantes, professores e profissionais, mesmo em
pleno período de férias.
Nas sugestões enviadas por grupos de profissionais que se aliavam aos propósitos do
MEC revelavam-se duas preocupações: uma, com uma unificação dos currículos de
psicologia; outra, com a definição do que seria o objetivo da formação, que deveria ser como
a dos dicos, engenheiros, arquitetos e outros, ou seja, visando formar profissionais liberais.
A diversificação dos currículos, a proliferação dos cursos de psicologia nas faculdades de
filosofia, o fato de os cursos de psicologia terem sido fundados, em sua maioria, por não-
psicólogos, eram os principais argumentos para justificar a reestruturação dos currículos que
deveriam buscar uma homogeneidade para a formação “o importante é que se chegue a uma
imagem concreta do psicólogo que é o produto destes cursos” (ROZESTRATEN, 1976, p.
81).
Outro argumento a favor da mudança curricular nos moldes propostos pelos pareceristas
do MEC apoiava-se numa definição de psicologia, presente na Classificação Internacional
Uniforme de Ocupações, editada pela Secretaria Internacional de Trabalho, em Genebra
(1966), com as seguintes atribuições listadas:
Medição de características sicas e mentais; planejamento e
realização de experimentos em seres humanos; prognóstico e controle
do comportamento; tratamento e prevenção de doenças mentais;
colaboração com psiquiatras e assistentes sociais para ajudar
desajustados; determinar as causas da inadaptação e prescrever
programas corretivos; elaborar e aplicar testes psicológicos, escalas
qualitativas e outros meios para medir traços psicológicos (apties,
habilidades, atitudes etc.); às vezes se especializa em um ramo da
psicologia: clínica, pedagógica, experimental, industrial ou social.
(Classificação Internacional Uniforme de Ocupações, apud
ROZESTRATEN, 1976, p. 84)
As críticas ao processo de reformulação do currículo de psicologia e aos argumentos
expostos acima foram intensas, gerando a mobilização de professores universitários,
estudantes, profissionais psicólogos e diversas entidades representativas, como os sindicatos,
em todo o país.
83
Seção Geralmente “Mudanças?” Rádice, nº 1, setembro, 1976, p. 28.
115
Os primeiros debates aconteceram em 1978, na Unesp, em Assis (SP) e na XXX Reunião
da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) de São Paulo, e aprofundaram-se
no II Encontro Nacional de Estudantes de Psicologia (ENEP)
84
, que ocorreu em Ribeirão
Preto (SP). Os temas de destaque do encontro foram a questão da formação e a função do
psicólogo na sociedade brasileira e os efeitos da proposta de currículo DAU/MEC,
culminando com a idéia de constituição de uma Comissão Paritária Nacional para o estudo do
currículo
85
.
Pela primeira vez uma unanimidade na psicologia brasileira: todos contra o “pacote
pfrometa”, que propunha a psicologia como uma entidade repressiva, psicologizando os
problema sociais. Rádice (1979) aponta uma série de enganos, na proposta, que vão desde a
formulação do documento, passando pela definição de psicologia, estabelecimento de uma
psicologia tecnocrática ligada à produção, incremento do consumo e repressão, e, ainda, o
desconhecimento das diferenças regionais e da autonomia universitária, além de deixar de
mencionar a prática da pesquisa. A revista contrapôs um trecho do documento a um dos
artigos do digo de Ética do Psicólogo, o sem lançar críticas à atuação do conselho
profissional no debate:
de más inteões o currículo está cheio, a começar por imprimir um
rumo planificador e corretivo à sociedade através do psicólogo.
Leiam com atenção o trecho retirado das páginas 3/4: Reconhece-se,
nos dias que correm, que a ação preventiva, de orientação psicológica,
diagnóstico precoce, aconselhamento e terapia psicológica, exercida
em larga escala é um dos poucos recursos realmente efetivos que as
comunidades podem lançar mão, a fim de evitar que se agrave ainda
mais um estado de coisas realmente inquietante, notadamente em
domínios como crime e delinqüência, tóxicos, deteriorização de
relações familiares, abuso de crianças, alcoolismo, desvios sexuais,
84
O I Encontro Nacional de Psicologia (ENEP) aconteceu em novembro de 1976, em Ribeirão Preto (SP).
Delegações de quase todo o país estiveram presentes nesse primeiro esforço de organização dos estudantes de
psicologia. Rádice cobriu o evento e apontou críticas em relação aos “chavões” e disputas poticas que
deixaram em segundo plano o debate dos problemas dos estudantes de psicologia. (São “Geralmente”
Rádice, nº 2, janeiro de 1977, p. 7).
85
Surgiram núcleos regionais da Comissão Paritária no Ceará, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e no
Paraná. Mas a mobilização foi feita também através de outras ações: na Paraíba, houve paralisação das aulas e
discussão sobre o currículo; professores e estudantes formaram uma comissão para elaborar um documento sobre
a discussão. Em Pernambuco, foram realizadas reuniões gerais e os chefes de departamento dos cursos de
psicologia enviaram um documento ao MEC, solicitando o adiamento do prazo para envio das sugestões;
também foi realizado o Encontro de Estudantes, Profissionais e Professores de Psicologia no qual foi elaborado
um boletim com os debates que ocorreram no II ENEP. Na Bahia, foi elaborado um questionário sobre o
currículo respondido por estudantes e professores; houve paralisação das aulas para discussão com a participação
da Associação Bahiana de Psilogos. Em São Paulo, a Comissão Paritária da USP encaminhou uma proposta
de currículo com uma visão mais crítica da realidade social. No Rio de Janeiro, houve grande mobilização com
assembléias da Associação Profissional de Psicólogos, que elaborou uma carta e um abaixo-assinado
encaminhados à imprensa, além de uma paralisação total das atividades acadêmicas para debater as formas de
luta contra o “currículo pfrometa”. (Rádice, ano 2, nº 9, abril/maio de 1979).
116
desvios ideológicos e terrorismo etc.”. E agora, o artigo 5, item C, do
Código de Ética dos Psicólogos: “É vedado ao psicólogo influenciar
as convicções poticas, filoficas ou religiosas de seus clientes”.
Com base neste dado foi levantada a questão que o pfrometa seria
antiético, devendo seu texto ser encaminhado com urgência às
sonolentas comissões de ética dos Conselhos Regionais. (Rádice, 9,
abril/maio de 1979, p. 18)
As comissões paritárias não pretendiam propor um currículo alternativo e sim,
estabelecer um amplo debate sobre as normas e a filosofia que deveriam norteá-lo. Essas
comissões tornaram-se representantes legítimas da psicologia nacional. O principal efeito de
toda a mobilização foi o comprometimento da implementação da proposta de currículo do
DAU/MEC.
As mobilizações não pararam e na seção Psicologia nos Estados”
86
, são relatadas as
reuniões, debates, assembléias e organizações de novas comissões paritárias em diferentes
regiões do país. O tema da reforma curricular e suas implicações surgiram na VI Semana de
Estudos Sobre Saúde Comunitária (VI SESAC) ocorrida em Florianópolis (SC). Nela foram
aprovadas propostas como a de uma formação coerente com a realidade brasileira através de
ensino que vise, além da cultura técnica, o conhecimento dos problemas sociais, ecomicos e
políticos da população” (Rádice, 10, 1979, p. 39). Em Pelotas (RS), foi realizada uma
assembléia em apoio ao Movimento de Sustação do Currículo DAU/MEC, e, também, à
reorganização das entidades estudantis. Em Fortaleza, CE, aconteceu o Encontro de
Estudantes e Professores de Psicologia do Ceará, com ampla participação, dele resultando a
formação de um grupo para analisar o projeto de reconhecimento oficial do curso de
psicologia.
O currículo DAU/MEC foi, então, arquivado. No III ENEP
87
, que aconteceu de 30 de
outubro a de novembro de 1979, em Belo Horizonte (MG), reunindo 700 estudantes que
representavam 37 escolas de psicologia, foram formados 12 grupos para discussão de temas,
dentre os quais um relacionado às poticas educacionais, com destaque para os problemas do
currículo. Como resultado dos trabalhos dos grupos, concluiu-se que o projeto pfrometa
estava definitivamente suspenso, mas percebeu-se também que era importante o
fortalecimento da Comissão Paritária Nacional para o enfrentamento de novos desafios, como
as demissões políticas de professores componentes da Comissão que trabalhavam na
Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, e na FUMEC, em Minas Gerais.
86
Rádice, nº 10, 1979, p. 39.
87
Matéria “O (des) encontro nacional de estudantes de psicologia)”. Rádice, nº 11, nov/dez, 1979, p. 10-12.
117
As resoluções votadas no III ENEP foram: a manutenção da luta contra o currículo
DAU/MEC e a divulgação dessa luta para toda a sociedade; sistematização da discussão sobre
a função social da psicologia, as políticas educacionais, história da psicologia no Brasil, com
encaminhamento de relatórios sobre esses temas à Comissão Paritária Nacional e às escolas
de psicologia.
A preocupação com o caráter científico da formação do “novo profissional” surgiu em
períodos anteriores ao de 1970. Esch e Jacó-Vilela (2001) ressaltam as propostas do
psicólogo polonês radicado no Brasil, Waclaw Radecki, o projeto apresentado pelo psiquiatra
espanhol Mira y López e, ainda, o projeto substitutivo a esse apresentado pelo Conselho
Nacional de Educação (CNE), em 1957.
No tocante à normatização da categoria, seus defensores afirmavam
que definir parâmetros para a profissionalização e controle do
exercício psicológico permitiria reverter o quadro de descrédito que a
prática exercida sem quaisquer normas ou fiscalização promoveria
quanto à desejada imagem do novo profissional. As opiniões
divergiam apenas quanto à especificidade curricular do novo
profissional. Tentando conciliar medicina e psicologia, a nova
proposta substitui o exercício da prática psicoterápica pela solução de
problemas de ajustamento, esta última assumindo a feição de função
privativa do psilogo. (...) Pela preocupação em promover uma
formação científica a partir do modelo positivista de ciência, as
propostas de curculo (...) apresentadas têm mais convergências do
que divergências (...): todos parecem conter a idéia de que a
Psicologia se embasa e/ou se espelha em vários outros conhecimentos,
oriundos tanto das Ciências Humanas e Sociais, quanto das Biológicas
e, mesmo, da Matemática; o entendimento do ser humano se apresenta
atomizado, fragmentado em diferentes “processos” que,
aparentemente, se associam e formam o conjunto denominado
personalidade; a prática se insinua como mera aplicação técnica da
teoria. (ESCH e JA-VILELA, 2001, pp. 19-21).
As autoras observam, ainda, que no modelo de currículo proposto por Radecki, nos idos
de 1930, havia uma preocupação com a valorização da filosofia, campo excluído nos outros
modelos que se seguiram, o que indicaria uma afirmação da psicologia no campo da técnica,
ligada a uma racionalidade científica fundada no modelo positivista. Esse foi o modelo
implementado no Parecer 403/62.
Bernardes (2004) sintetiza os diversos movimentos de institucionalização da psicologia,
afirmando que no período de 1930 até 1950 a busca no campo da psicologia visava o
reconhecimento e regulamentação da profissão, expressão do desejo daqueles profissionais
118
que já trabalhavam com o conhecimento psi”; no período de 1960 a 1979, identifica forte
postura técnico-cientificista influenciada pelos ideais positivistas, além das lutas corporativas
com outras categorias profissionais e pela abertura de postos de trabalho no mercado.
O autor observa que desde os anos 60 vinha sendo produzida uma “cultura psi”
caracterizada pela disseminação de uma lógica individualista e intimista, mplice de estados
autoritários, tanto no campo político como no da educação. Esse estado de coisas contribuiu
para a transformação das demandas sociais e políticas em demandas psicológicas. Nos anos
70, é clara a aliança de certas práticas psi” com a lógica liberal centrada no indivíduo e na
idéia de mercado.
Outro ponto de grande polêmica foi a proposta de implantação de um nível de
especialização da profissão de psilogo pelo CFP. Os motivos alegados pela autarquia eram
a constatação de que o objeto da psicologia seria extremamente diversificado e complexo. Os
psicólogos deveriam comprovar a conclusão de curso de especialização ou comprovar cinco
anos de experiência, de prática e somente poderiam requerer uma única especialização.
Rádice
88
apontou algumas conseqüências dessa proposta: elitização do saber, que os cursos
de especialização, em princípio seriam oferecidos pelas universidades particulares, porque as
públicas não disporiam de recursos; possíveis restrições para o psicólogo não-especializado,
pois o “mercado” tenderia a privilegiar os psicólogos especializados. Mais uma mobilização:
foi deflagrado um dia nacional de protesto contra a especialização, algumas faculdades
entraram em greve, marcando o posicionamento quase unânime da categoria como contrária
ao projeto do CFP
89
.
2.5. dice e sua família: a Imprensa Alternativa
Como observa Araújo (2000), na década de 1970 houve uma proliferação de um tipo de
imprensa que ficou conhecida como Imprensa Alternativa ou “nanica”. Dela faziam parte
diversos jornais geralmente em formato tablóide ou minitablóide, de tiragem e periodicidade
88
Rádice, nº 11, nov/dez, 1979.
89
Em 2000, o Conselho Federal de Psicologia emitiu uma resolução que regulamentou o título de especialista.
Os argumentos apresentados pela entidade para justificar tal retrocesso se sustentam na Lei 5.755 de 1971 e no
Decreto nº 79.822 de 1971 que prevêem a inscrição de psicólogo e psicólogo especialista. Tal medida tem
promovido uma corrida dos profissionais pela titulação sem a problematização necessária sobre a naturalização
dos especialismos na atualidade.
119
irregulares, vendidos em bancas e, importante, sempre de oposição ao regime militar. Em
suas páginas, combatiam a ditadura, denunciando os atos de violência e arbitrariedades
cometidos pela repressão. Traziam notícias sobre o Brasil e o mundo que não interessavam à
grande imprensa, que apoiava quase incondicionalmente as determinações do poder militar.
Rádice fez parte desse grande e diversificado grupo dos “nanicos”, até por suas
características: era independente, não estava ligada a nenhum partido, grupo ou instituição;
vivia principalmente da venda em bancas de jornais e de uma carteira de assinantes, já que era
difícil convencer os anunciantes a utilizarem o espaço da imprensa alternativa
90
, e,
fundamentalmente, por sua função interrogativa não da psicologia, como do próprio
regime militar participando intensamente dos debates sobre a abertura política, o fim da
ditadura, a luta pela anistia aos presos e exilados políticos, a denúncia de tortura nos porões
das prisões. Às ações da repressão censura, invasões às redações, prisão de jornalistas os
alternativos” respondiam organizando-se em um comitê, como Rádice divulga:
As investidas da repressão, em abril passado, pressionando o Bagaço e
Mutirão, prendendo jornaleiros que vendiam Em Tempo e invadindo a
sede do Movimento, no Rio, reativaram de vez o Comide Imprensa
Independente. O debate blico pela Liberdade de Expressão
realizado na ABI em 14 de abril, junto com a mostra de capas, marcou
a solidariedade interna e dos leitores com os órgãos atingidos. A
unidade se fez necessária e presente. As reuniões do Comiestão
sendo realizadas todas às quartas, à noite e algumas resolões
práticas imediatas já foram referendadas: tarja em todo os órgãos
denunciando a censura nos jornais O São Paulo, Movimento e Tribuna
da Imprensa; concurso para selo do Comitê, um prêmio de uma
assinatura anual de todos os órgãos componentes para o vencedor. As
discussões podem ser enviadas para o endereço provirio do Comitê
(...) em nome da Rádice. (Rádice nº 6, junho/julho de 1978, seção
Geralmente, p. 6).
Outra característica da revista, comum a todos os alternativos, se relacionava com as
dificuldades ecomicas, que comprometiam não só a periodicidade, mas também o tempo de
vida das publicações poucas conseguiram sobreviver por mais de um ano. No caso da
Rádice, houve uma grande vitória, pois a Revista circulou nacionalmente por quatro anos e
sete meses!
91
É importante olharmos para esse momento não por sua relativa unidade de ações, mas por
suas variadas expressões, contradições e objetivos. As publicações alternativas, em sua
90
Na Rádice, os anúncios que apareceram foram de livrarias principalmente da Livraria Muro, de algumas
editoras consideradas de “esquerda” e da drogaria do tio do Ralph, um dos “acionistas” da revista.
91
De setembro de 1976 a abril de 1981.
120
grande maioria, eram produzidas por jornalistas e intelectuais de esquerda, todos de classe
dia. A imprensa “nanica” era vista como um instrumento de resistência à ditadura.
O golpe de 64 significou a tomada do poder potico pelo que havia de mais reacionário e
conservador e, na sociedade brasileira, não foi somente através da violência de Estado que os
militares construíram e implementaram suas estratégias poticas. Souberam se utilizar de uma
arma fundamental do nosso tempo a comunicação: a imprensa escrita, o rádio e a televisão.
Guattari (1996), ressalta que a produção de subjetividade seria muito mais poderosa e
importante que a do petróleo; os militares sabiam disso. Sua legitimação e manutenção no
poder decorreu da massificação de informações impregnadas dos seus valores e intenções. A
ditadura tinha ao seu dispor todas as ferramentas de divulgação e de controle das informações
que circulavam no país.
Sodré (1966) lança a hipótese de que a história da imprensa é a história do
desenvolvimento da sociedade capitalista, que pode ser empreendida pela análise do controle
dos meios de difusão das idéias. Alguns traços que para o autor comprovam sua hipótese são
a conformidade de valores éticos e culturais e a tenncia à uniformização de tais valores e a
liberdade (ou não) de opinar e informar. Ele destaca que a busca de um padrão é
acompanhada pelas inovações técnicas que ampliam a possibilidade das informações
alcançarem os sujeitos. Para o autor, as transformações pelas quais o mundo tem passado
desde o século XVIII modificaram também as formas de controle sobre as informações. Em
relação à liberdade de opinião, são apresentados dois aspectos: a orientação da opinião
pública através de um fluxo de informação, controlado pelas agências de notícias, que
surgiram no século XIX, e uma postura resistente que, recusando esta distribuição de notícias
padronizadas, optou por uma linha editorial que privilegiava a opinião à informação.
De certa maneira, podemos localizar as publicações da imprensa alternativa integradas ao
segundo aspecto indicado por Sodré (1966). É importante ressaltar que esta imprensa
resistente não foi, no Brasil, um fenômeno exclusivo do período da ditadura militar. Sodré
(1966) relaciona diversas publicações com tais características ao longo de nossa história,
desde os tempos coloniais.
Na década de 1970, havia uma imprensa relacionada com a resistência, não só às poticas
autoritárias e antidemocráticas, mas, também, aos dispositivos que controlavam as
informações que circulavam pelo país. Fico (1997) realizou um estudo sobre a utilização dos
meios de comunicação pelos militares para propagandear os valores da ditadura. O momento
no qual os meios de comunicação foram mais utilizados para tal fim foi o ano de 1975, que
121
marcou a passagem de uma fase de intenso crescimento para uma de recessão, já que as
condições para a expansão da economia deixaram de existir. O país precisava adotar
rapidamente poticas para conter os efeitos negativos do fim do “milagre econômico
brasileiro”. De acordo com o autor, o fim do “milagre” provocou um aumento no delírio de
construção do país como grande potência até o ano 2000. As expressões de confiança e
otimismo nos planos de desenvolvimento do governo eram veiculadas através dos grandes
meios de comunicação e dos filmes de propaganda oficial. Foi nesse período do governo
Geisel que mais se reiterou o pedido ou a imposição de sacrifícios à população mais
pobre, visando o combate à inflação e a criação de um clima de ordem, dedicação ao trabalho
e “confiança no futuro”.
Mas, também, como já vimos, é um momento marcado por novas idéias e ações
militantes e resistentes, que passam a ser significadas pela noção de dissidência, de
heterodoxia e pelo signo do alternativo. Seguindo as iias de Araújo (2000), o mais
importante, nesse momento, foram as novas questões que surgiam no campo de lutas: a
diferença, a alteridade, a valorização da subjetividade e do cotidiano. A riqueza da imprensa
alternativa vinculava-se à própria multiplicidade de movimentos, grupos, organizações e lutas
políticas da época que se expressavam através de diversas publicações. A autora distingue
três tipos destes: jornais de esquerda; revistas de contracultura e as publicações dos
movimentos sociais.
Os jornais de esquerda eram publicações influenciadas direta ou indiretamente pelos
partidos e organizações de esquerda que estavam na clandestinidade. Muitos desses grupos,
impedidos de divulgarem seus pensamentos e opiniões, utilizavam-se das publicações para tal.
Nem todos os que trabalhavam nos jornais eram militantes poticos, mas a orientação potica
fundamental era dada pela organização que sustentava ideologicamente essas publicações. A
maior parte dos jornais de esquerda sucumbiu aos impasses políticos das organizações que os
respaldavam. Entre os principais, estavam o Pasquim, Opinião, Movimento, Versus e Em
Tempo.
As revistas de contracultura também marcaram época, consagrando no Rio de Janeiro um
grupo de poetas e literatos malditos, como Chacal, Jorge Salomão, Waily Sailormoon,
Torquato Neto e Jorge Mautner, entre outros. As principais publicações foram Biscoitos
Finos e Almanaque Biotônico Vitalidade.
Do terceiro grupo, formado por publicações ligadas aos movimentos sociais, em geral
o participavam jornalistas, nem militantes organizados, mas pessoas diretamente vinculadas
122
aos movimentos. Eram desse tipo a imprensa feminina (Brasil-Mulher, Nós Mulheres e
Mulherio); a chamada imprensa negra (Tição, Sinba, Koisa de Crioulo); os jornais do
movimento estudantil, as publicações voltadas para a defesa das causas indígenas, os jornais
de grupos homossexuais (Gente Gay, Jornal da Aliança de Ativistas Homossexuais, Boca da
Noite, Lampião da Esquina, Jornal Corpo do Grupo Somos), os jornais de bairro, etc.
Segundo Araújo (2000), a imprensa alternativa constituía não apenas um fenômeno
jornalístico, mas também um fenômeno político. Representava a difícil convivência entre o
legal e o ilegal, o público e o clandestino.
Esse fenômeno durou ao começo da década de 1980. Por volta de 1980-81, quase
todos os jornais e revistas alternativas haviam deixado de circular. São vários os motivos para
isso. De acordo com Kucinski (2003), havia uma grande precariedade ecomica, pois os
alternativos o conseguiam implementar uma distribuição que os libertasse das comissões
dos grandes distribuidores. Os jornais alternativos que tinham projetos nacionais insistiam em
uma circulação a mais ampla possível, como parte de sua proposta de visibilidade, e o preço a
pagar era alto: viviam no vermelho. Além disso, havia uma repressão de fato; como os
atentados a bomba contra jornais e bancas de jornais, fazendo com que os jornaleiros
recusassem receber para vender as publicações alternativas. Outros mecanismos também
eram utilizados, como devassas contábeis, cobrança de débitos previdenciários, pries,
invasões de redações. O autor aponta ainda que parte da atividade alternativa passou por um
processo de institucionalização, com o fortalecimento dos sindicatos e movimentos sociais e a
criação dos seus órgãos de divulgação.
2.6. Anistia e Tortura: o que a Rádice tem a ver com isso?
Os debates populares, exigindo o fim da ditadura militar, e a perda de prestígio potico
do partido governista nas eleições são dois fatores que devem ser destacados ao se discutir o
processo de abertura política que ocorreu a partir da segunda metade da década de 1970. Ao
assumir a presidência do país em 1974, o general Geisel tinha como principais tarefas atenuar
os ânimos dos militares ligados à “linha dura”, que controlavam o aparato de repressão, e
manter as taxas de crescimento do país, atingidas no período anterior. Esse momento foi
marcado por atitudes ora liberalizantes, quando o general-presidente acenou com o projeto de
123
distensão, estabelecida nos termos “lenta”, gradual e “segura”; ora repressivas, pois
continuavam as prisões e torturas aos militantes de esquerda, ou aos assim considerados.
Existia na sociedade, de uma maneira geral, uma crescente expectativa de abertura
política, demonstrada nas mobilizações a favor da volta dos brasileiros exilados, nas
denúncias dos assassinatos que ocorriam nos porões da ditadura e nas pressões dos
movimentos sociais e sindicais que se reorganizavam e se fortaleciam. Segundo Coimbra
(1995), a partir de 1975, começava a ganhar corpo a luta pela anistia ampla, geral e irrestrita
, principalmente nos setores ligados à classe dia urbana.
Diniz (1985) afirma que essa mobilização contribuiu com o alargamento do processo de
abertura potica, e apresenta uma distinção entre projeto de abertura e processo de abertura.
O primeiro seria a proposta elaborada pelo alto, mas que acabou por se transformar no
segundo, pois seu rumo foi determinado não exclusivamente pelos militares, mas pelas
diversas forças sociais. Segundo o autor, a abertura ocorreu a partir da interação de duas
dinâmicas: uma de negociação e pacto, conduzida pelas elites, e outra de pressões e demandas
vindas da sociedade, observadas através da organização potica dos movimentos sociais. O
objetivo do general Geisel ao acenar com a distensão era de recompor suas bases de apoio,
propondo uma liberalização lenta, gradual e segura, sem abrir o do controle, das regras e
limites desse processo.
Nessa conjuntura, surgiram movimentos populares que exigiam a democratização do país
e que são considerados os pioneiros na luta pela anistia: o Movimento Feminino Pela Anistia
(MFPA), organizado pela advogada Therezinha Zerbine, em 1974, e, em 1978, o Comi
Brasileiro pela Anistia (CBA), organizado por advogados, amigos e familiares de presos e
exilados poticos. Os principais objetivos do CBA eram: levantamento do mero de presos,
banidos, exilados, desaparecidos, cassados e aposentados por motivos poticos; levantamento
do número de estudantes punidos pelo Decreto 477; promoção de um trabalho de assistência
aos presos políticos e exilados, criando um sistema de apoio jurídico e publicação do boletim
informativo Anistia.
Ao analisar os múltiplos aspectos políticos do processo de abertura que levaram à
promulgação da Lei de Anistia, em 1979, logo depois que o general João Batista Figueiredo
substitu Geisel, Lemos (2002) destaca que tal lei serviu como estratégia conciliatória a fim
de preservar os interesses daqueles que ocupavam o poder e, também, como instrumento para
controlar a crise institucional que dominou o período Geisel. O autor observa que se esperava
promover o enfraquecimento da oposição, reunida institucionalmente em torno do MDB,
124
abafando suas reivindicações e garantindo a ordemnecessária para a transição. A Lei de
Anistia contribuiu para que fossem anistiados não só os que sofreram a violência de Estado,
mas, também, àqueles que foram os autores dessas violências.
O vocabulário anistia tem sentidos comuns, tanto no vocabulário
jurídico especializado quanto no linguajar leigo: um ato de perdão que
torna inexistente uma atitude anteriormente considerada negativa.
Etimologicamente, anistia significa esquecimento. (LEMOS, 2002, p.
301)
Tal interpretação de Lemos (2002) está presente também em Mourão e colaboradores
(2002), que afirmam ter a Lei de Anistia funcionado como mais um instrumento de
silenciamento ao estender seus benefícios aos que torturaram e assassinaram, ou seja,
cometeram crimes hediondos durante o regime militar. A anistia serviu, até hoje, como
argumento para não se apurar as responsabilidades do Estado brasileiro na tortura, no
assassinato e desaparecimento de centenas de cidadãos.
Retomarei as análises de Lemos (2002) a fim de salientar outro aspecto importante
destacado pelo autor, que é o caráter heterogêneo da anistia, que dividida opiniões dentro das
Forças Armadas (pois havia os que se opunham às investigações e apurações das
responsabilidades dos militares) e, também, entre os grupos da oposição. O historiador
apresenta dois exemplos: a posição do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e os diversos
entendimentos no Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA). O PCB via na anistia um meio de
luta contra a ditadura e a condição para o fim do bipartidarismo o surgimento de novos
partidos e a legalização do PCB , bem como a instauração de uma nova Assembléia
Constituinte que definiria o regime potico que substituiria a ditadura. as posições dentro
do CBA não eram homogêneas: general Peri Beviláquia defendia a concessão da anistia em
prol de toda a sociedade; enquanto núcleos do Comitê, dentro e fora do país, apontavam
problemas na anistia recíproca.
Encampando os anseios populares pela anistia, Rádice lançou o seu sexto número,
dedicado a esse debate e à denúncia e reflexão sobre a prática da tortura nas prisões
brasileiras.
Por que tortura?
(...)
Uma revista de psicologia tem muito a ver com isso quando se propõe
a refletir (...) as condições de vida e portanto de saúde mental de
uma comunidade e suas implicações tanto a vel individual quanto
coletivo. Esta é nossa proposta e com esta matéria acreditamos estar
125
somando nossos esforços aos de todos aqueles que lutam pela
erradicação da prática da tortura. (Editorial da Rádice 6,
junho/julho de 1978).
Em seu editorial, Ralph aponta a “naturalização da prática da tortura” não só nas prisões,
mas nos hospitais, nas escolas e nas famílias. Em matéria intitulada “Os efeitos da tortura”,
Carlos Ralph e o jornalista Elias Farjado da Fonseca exploram as inúmeras situações de
violência: as internações involuntárias (ver Capítulo1 Caso Aparecido) nos hospitais
psiquiátricos, a tortura a presos políticos e também à população considerada “marginalizada”:
negros e pobres.
Também constam no número 6 o depoimento do preso político Alex Polari e a publicação
de duas cartas escritas por Jessie Jane Vieira de Souza, durante sua prisão, por motivos
políticos, no Presídio Ari Franco, em Água Santa, no Rio de Janeiro. Na primeira dessas
cartas, endereçada a João Henrique Bortoluzzi, então presidente da Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB), Jessie Jane denunciava as violências cometidas contra presos comuns dentro do
presídio; na segunda, endereçada à sua família, na qual relata o assassinato, durante o
carnaval, de um preso (“aquele rapaz de 24 anos”) que teve o corpo exposto no corredor da
enfermaria do hospital do presídio, como “lição” para os demais.
Mais um morto. Provavelmente ninguém reclamou sua presença.
Terá família? Um amor?
Desde domingo estou engasgada, observando os presos; pra eles,
morte-assassinato é rotina. Não podem fazer nem falar nada (...).
Mas eu me sinto ligada àquele rapaz de 24 anos.
Amanhã será outro. E mais outro. Me sinto impotente. Esta é a vida
numa prisão brasileira. Morte.
To angustiada. Com ódio.
Beijos
Jane.
(Carta de Jessie Jane Vieira de Souza. Rádice 6, junho/julho de
1978: 18).
A história de Frei Tito de Alencar ganhou destaque na revista. Preso em 1969,
juntamente com vários outros frades dominicanos, em São Paulo, Frei Tito foi tima de
longas sessões de tortura, pelas mãos do comissário Sergio Fleury, responsável pelo DOPS e
um dos membros do Esquadrão da Morte. Em 1971, depois de longo tempo na prisão, Frei
Tito foi exilado para o Chile. A proximidade com o Brasil permitia que notícias chegassem
com freqüência, o que em nada o ajudava em seu precário estado de saúde.
126
A queda de Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973, segundo Frei Betto (1982),
abalou os sentimentos de esperança de Frei Tito, fazendo com que mergulhasse em profundo
silêncio. Em junho de 1973, foi para Lyon, na França, em busca de um ambiente mais
tranqüilo, passando então a viver no convento de Eveux. Lá, passou a sofrer terríveis
alucinações, durante as quais ouvia a voz do delegado Fleury o interrogando e via seu rosto
ameaçador por todos os lados. Frei Tito ainda passou por um período de internação no
Hospital Edourad Herriot, mas acabou enforcando-se num galho de álamo, em 10 de agosto
de 1974. Na cruz que os dominicanos erigiram para ele, lá mesmo em Eveux, há a inscrição:
Frei da Província do Brasil. Encarcerado, torturado, banido,
atormentado... até a morte, por ter proclamado o Evangelho lutando
pela libertação de seus irmãos. Tito descansa nesta terra estrangeira.
Digo-vos que, se os discípulos se calarem, as próprias pedras se
calarão- Lucas, 19,40 (citado por Frei Betto, 1982, p. 253)
Rádice também publica os depoimentos de Dom Adriano Hipólito, na época bispo de
Nova Iguaçu (RJ); de dois operários presos e torturados pelos agentes do DOPS/SP; de Ana
Maria Moreira, paciente psiquiátrica denunciando os “tratamentos” praticados dentro da
instituição onde estivera internada; dos familiares de uma militante potica desaparecida, Ísis
Dias de Oliveira.
Kolker (2002) observa que a tortura, antes utilizada apenas contra os setores mais pobres
da sociedade, passou a ser instrumento usado pelo Estado para calar as vozes opositoras ao
regime, que adaptou a legislação brasileira à Doutrina de Segurança Nacional e legitimou o
terror como forma de controle político-social. Todo o aparato de repressão visava não apenas
à eliminação física dos opositores poticos, mas também à disseminação do “estado de medo
e da imobilização de toda a sociedade. Demonizar os inimigos do regime e convertê-los em
inimigos da pátria, da família e da propriedade servia portanto a dois objetivos: isolá-los e
justificar o rigor da repressão” (Kolker, 2002, p. 39).
De acordo com Coimbra (2002), a noção de “periculosidade” e a de prevençãosão os
argumentos do Estado para justificar a violência institucionalizada. A primeira pressupondo
algo que se transmite” hereditariamente os “perigosos” são os indivíduos descendentes dos
escravos, dos índios e filhos da população mais pobre, que carregam um gene” relacionado à
periculosidade”. Essa é uma forma de interpretação relacionada com as idéias eugênicas e
racistas muito difundidas no Brasil dos anos 20, que, ainda hoje, prevalece na sociedade de
maneira geral. Na segunda noção, o perigoso deve ser separado da vida coletiva, seja
127
encarcerando-o nas prisões superlotadas e violentas ou “tratando-o” através das técnicas
psiquiátricas e psicoterápicas. Tais técnicas, ainda, guardam o poder de prever essa condição
de “periculosidade”, antecipando a segregação. Para a autora, ao longo do século XX,
especialmente no período do regime militar que se instaurou no Brasil, e com o acirramento
das ações repressivas a partir do AI-5, a tortura era justificada pelos generais como
“necessária em certos casos”, para evitar um mal maior”, como expressava o general Geisel.
A autora denuncia que durante a ditadura militar foram produzidos pelo Ministério do
Exército manuais que orientavam como proceder durante os interrogatórios, vistos pelos
militares como uma “arte” a de extrair o máximo de informações dos considerados
“subversivos”. Para atingir seu objetivo, os interrogadores o estavam obrigados a observar
as regras do Direito e seus conhecimentos técnicos eram respaldados por profissionais como
dicos-legistas, psiquiatras, psicólogos, advogados. Coimbra (1995) denunciou também a
prática de psicólogos que contribuíram com seus conhecimentos a fim de traçar o “perfil do
terrorista brasileiro”. A citação que se segue foi retirada da pia de um documento do I
Exército datado de 5 de agosto de 1971, que foi fornecido por Cecília Coimbra :
Esta Agência remete em anexo, cópia de um Relatório Confidencial,
(inelegível) conclusivos sobre o estudo e interpretação do teste de
RORSCHACH, (inelegível) a um grupo de terroristas, solicitado pelo
I Ercito.
O assunto será tratado oportunamente na imprensa, de maneira
adequada.
RELATÓRIO CONFIDENCIAL
Resultados conclusivos sobre o estudo e interpretação do teste de
Rorschach, aplicado a um grupo de terroristas solicitado pelo I
Exército. O grupo examinado era constituído de elementos de ambos
os sexos, com vel de escolaridade de grau médio e superior.
(...)
TRAÇOS DOMINANTES DO GRUPO:
Os terroristas, em sua maioria, revelaram como traços dominantes:
a. estabilidade emocional e afetiva, precária;
b. dificuldades de adaptação e ajustamento;
c. atitude opisicionista, voltando sua agressividade
(inelegível), ora contra o próprio ego;
d. escasso interesse humano e social (atitude anti-social);
e. pensamento rígido e índice de estereotipia elevado;
No romance de Arthur Poerner, Nas profundas do inferno, de 1979, reeditado em 2007,
um depoimento sobre técnicas de inquérito e investigação às quais o autor foi submetido e
que podem ser relacionadas aos discursos e práticas “psis”:
128
Apareceram dois guardas, o do chaveiro e o da metralhadora todo o
tempo apontada para mim, enquanto um oficial me entregava bloco,
um questionário impresso e um lápis-tinta bem apontado. Devo
fornecer o máximo de detalhes sobre a minha vida, (...), tais como “A
sua infância pode ser considerada normal?”, Vorecebeu suficiente
formação religiosa?”, (...) “Quando e em que condições manteve sua
primeira relação sexual? No fundo, eles estão querendo entender
como alguém pode se opor a um regime tão bom. E buscam (...), em
possíveis traumas infantis, desvios religiosos ou complexos de ordem
sexual, as causas da doença oposicionista de que fui acometido.
(POERNER, 1979, p. 41)
A Rádice 6, divulga que a Anistia Internacional denunciava o aumento do número de
pessoas presas no mundo em razão de suas condições poticas, religiosas ou de raça, e a
participação de médicos nas atividades de tortura: ou realizaram exame antes dos
interrogatórios que, sabidamente comportaria torturas; ou assistindo às próprias sessões, a fim
de dar alarme caso ocorresse algum risco vital; ou, ainda, com a tarefa de reanimar as vítimas
para que se pudesse dar continuidade às torturas. Além disso, muitos desses profissionais
contribuíram no desenvolvimento de novas formas de tortura a partir de técnicas médicas. No
Brasil, um caso emblemático dessa prática, descrito por Coimbra (1995), foi o do ex-dico
Amílcar Lobo ou Dr. Carneiro, codinome que utilizava ao acompanhar as sessões de tortura,
nas dependências do DOI-CODI do Rio de Janeiro.
A sociedade civil passa a se organizar para denunciar os crimes cometidos pelo Estado
brasileiro contra cidadãos durante o período da ditadura e a exigir esclarecimentos sobre tais
crimes, bem como recuperar a historia daqueles que foram assassinados e desaparecidos. Em
26 de setembro de 1985, foi criado o Grupo Tortura Nunca Mais, entidade civil cujas
finalidades são a denúncia e o esclarecimento de todo e qualquer crime e a postura contra a
impunidade. Em 1987, esse grupo realizou o I Seminário Tortura Nunca Mais e as
confencias proferidas foram reunidas e publicadas em livro. Neste seminário, o psicanalista
Hélio Pellegrino explica o que é tortura, o que nos mostra a sua atualidade:
A tortura no Brasil foi, e é, plenamente , um fato político e, como
tal, deve ser analisada. A tortura política é um sintoma terrível e
eloqüente da crueldade da luta de classes em nosso país. (...) Fome é
tortura, doença é tortura, ignorância é tortura, relento é tortura, criança
abandonada é tortura. (PELLEGRINO, 1987, pp. 95-96).
Em outros países da América-Latina as transições poticas seguiram outros rumos, em
relação à responsabilização daqueles que em nome do Estado, torturaram e assassinaram,
129
como na Argentina, por exemplo, que tem condenado alguns militares envolvidos nos crimes
no período ditatorial. Para Lemos (2002), (...) a simples formalização da denúncia e a
subseqüente decretação de penas já indicam uma maneira menos conciliatória de lidar com a
questão dos crimes cometidos por agentes do Estado durante os períodos ditatoriais” (p. 299).
Ao que parece, temos um longo caminho a ser percorrido no Brasil no que se trata da
violência de Estado, no período da ditadura e na atualidade.
130
CAPÍTULO 3
DOS ENCONTROS
Eu já estou com o pé nessa estrada
Qualquer dia a gente se vê
Sei que nada será como antes,
Amanhã...
(“Nada será como antes”, Milton Nascimento e
Ronaldo Bastos)
Uma vez assistia a uma mesa redonda em homenagem ao professor Cláudio Ulpiano,
quando um dos palestrantes, citando o filósofo Baruch de Espinosa, disse que o bom encontro
é aquele que possibilita a vida. Essa frase grudou em mim e é ela que norteia este capítulo. A
Rádice foi efeito de muitos bons encontros, bem como promoveu muitos deles. O “bomnão
é moral, é potência porque cria e positiva a vida, como afirma Deleuze:
Encontram-se pessoas (e por vezes sem as conhecer sem as ter jamais
visto), mas também movimentos, iias, acontecimentos, entidades
(...). Encontrar é descobrir, capturar, roubar. Mas não um método
para descobrir, apenas uma longa preparação. Roubar é o contrário de
plagiar, de copiar, de imitar ou de fazer como. A captura é sempre
uma dupla-captura, o roubo, um duplo-roubo. É assim que se cria,
o algo mútuo, mas um bloco assimétrico, (...) sempre fora e
entre. (DELEUZE e PARNET, 1996, p. 17)
Dos bons encontros”, novos campos de batalha se constituem, novos enfrentamentos. A
vida sempre tensa e multifacetada um emaranhado caótico, nada linear ou harmônico
debate também sua finitude. A vontade se direciona para outro lugar, novos mares... é um
131
momento de transformação. A menina Rádice se metamorfoseia no moleque Luta & Prazer.
É o fim da nossa história.
3.1. Transformações no universo “Psi”
Os primeiros acontecimentos da década de 1980 trouxeram a vontade de conquista da
democracia, mas também a inflação, e todos os efeitos do fim do “milagre”, fazendo com que
novas formas de luta e de resistência potica surgissem: os movimentos sociais que se
fortaleciam, o fim do bipartidarismo e o surgimento de novos partidos poticos, as questões
sobre sexualidade, drogas, o movimento ecológico, o surgimento do Movimento dos Sem
Terra (MST), entre outros.
Como vimos, a partir da década de 1970, são lançadas críticas à psicologia em rias
direções, questionando os efeitos das práticas “psis”. Para os psicólogos, as coisas também
mudaram nos anos 80, com a constituição de novos campos de atuação. As críticas à
psicologia apontavam que, por ter uma eficácia no mundo, os discursos psis” produziam
(produzem) padrões de normalidade, excluindo aqueles sujeitos que não reproduziam tais
padrões e inventando técnicas de ajustamento e adequação. Esses padrões não estão
relacionados somente aos aspectos psicológicos, mas também se aplicam como
condicionantes social, cultural e político se aplicam sobre toda a vida.
É por analisar as práticas e sua eficia que Baptista (2000) coloca em questão a
formação psi, entendendo-a como uma fábrica que produziindivíduos montados peça por
peça para ocuparem seus consultórios e salas de postos de saúde, promovendo o
desaparecimento dos que pela porta entrarem. A fala do especialista faz desaparecer os
corpos e suas marcas históricas. A escuta é surda, o olhar descreve e a memória é um feixe de
neurônios.
Ao interrogar a psicologia e apontar os efeitos de tal prática, abre-se um campo de
possibilidades. Torna-se necessário inventar novas formas de atuação, implicando a
psicologia com o campo social e político.
Segundo Pessotti (1988), houve, na década de 1980, uma cisão entre a universidade e o
campo da prática. Na universidade, as mudanças aconteciam lentamente, preservando o
modelo clássico de formação ligado à psicologia experimental e ao behaviorismo. Ao mesmo
132
tempo, a formação em psicologia passa a ser bastante procurada; esse fenômeno, percebido
como um investimento comercial lucrativo, promoveu a abertura de cursos em instituições
mais comprometidas com os dividendos da educação.
As exigências curriculares de 1962 favoreceram cada vez mais a crescente tecnificação
da formão, aspecto exacerbado pela Reforma Universitária, como já apresentado no
primeiro capítulo, reforçando práticas da psicologia comprometidas com as medidas
individuais, a classificação e ajustamento dos desvios” de comportamento, rotulando e
excluindo os sujeitos.
Fora dos muros da universidade, a interrogação das práticas possibilita o surgimento de
novas experiências como, por exemplo, o que ficou conhecido como psicologia comunitária.
As “comunidades”, especialmente as mais desprivilegiadas e abandonadas pelos governos,
tornam-se uma preocupação dos profissionais “psi”, que passam a subir as favelas. Com o
apoio das associações de moradores, da Pastoral de Favelas, das escolas e dos profissionais de
saúde que atuavam nesses espaços, foram estreitando relações com a população,
desenvolvendo trabalhos, orientando professores para a pré-escola, participando de mutirões
para a construção de casas, debatendo as necessidades básicas com a população, como o
acesso à saúde.
No campo da saúde, comam a aparecer os primeiros concursos públicos oferecendo
vagas para o cargo de psilogos. Os profissionais de saúde implicados com as mudanças no
campo da saúde mental, assumiram seus postos de trabalho não mais de forma precária, mas
garantidos como funcionários púbicos e implementaram os novos preceitos,
descentralizando a assistência e criando alternativas à hospitalização.
O ano de 1987 foi um marco na reorganização do movimento dos trabalhadores em saúde
mental no Rio de Janeiro. Os profissionais de saúde reuniam-se semanalmente para discutir
as questões poticas do setor, as questões da promoção e defesa dos direitos dos cidadãos
internados nos hospitais psiquiátricos. Essas reuniões, antes realizadas dentro dos hospitais,
tomam outros espaços da cidade, sendo o Sindicato dos Psilogos um desses espaços.
Em 1989, o sindicato abriu uma discussão com a Secretaria Estadual de Saúde a respeito
da ampliação do número de vagas para os psicólogos tanto na saúde mental quanto nos
hospitais gerais. As propostas de inserção dos psicólogos nesses espaços decorreriam de sua
compreensão como um profissional de saúde e que deveria estar integrado à equipe de saúde
dos hospitais. Pretendia-se também discutir a rotina dos hospitais, a qualidade do
133
atendimento que era oferecido à população, a vida nas enfermarias. Naquele momento, o
sindicato foi fundamental na organização da classe, nas discussões e também na abertura de
novos campos de atuação.
Outro ponto de destaque desse momento anos 80 eram as críticas endereçadas às
sociedades de psicanálise ditas oficiais”, ou seja, ligadas à IPA, que apareceram também no
número 15 da Rádice. A psicanálise chega ao Brasil em momento de grandes transformações
políticas, culturais e sociais do começo do século XX, como a Revolução de 30; a
reorganização no papel social da mulher com o direito ao voto; a Semana de Arte Moderna e a
fundação do Partido Comunista, em 1922. Tornou-se referência de “modernidade” por um
lado, mas por outro, se agenciou aos mecanismos de controle e disciplina social impregnando
com suas idéias outras instituições além do hospital como, por exemplo, a escola, que nesse
momento de mudanças buscava um saber voltado para a orientação, seleção e assistência
psíquica aos alunos que se afastavam das normas de sociabilidade e aprendizagem.
Rocha (1989) indica dois fatos que marcaram o nascimento da psicanálise no Brasil: a
criação da primeira Sociedade Brasileira de Psicanálise em 1927
92
, em São Paulo,
preocupada, principalmente, com a formação do analista, que até então eram os psiquiatras
que se interessavam por esse novo saber, não existindo escola que oferecesse formação
específica; e a publicação da primeira revista especializada em Psicanálise, em 1928, a
Revista Brasileira de Psychanalyse.
A existência de uma formação específica em psicanálise representou um distanciamento
entre a psiquiatria e a psicanálise, que deixava de ser apenas uma técnica do aparato
psiquiátrico para se constituir num novo tipo de abordagem com características próprias. De
qualquer forma, manteve-se monopolizada o tempo todo pelos médicos: “a psiquiatria assiste
a psicanálise se desenvolver em seu interior como uma especialidade de segundo grau. Essa
relação de englobamento, entretanto, foi sendo paulatinamente invertida” (RUSSO, 1993, p.
75). Nas décadas de 40 e 50, ocorreu a institucionalização da psicanálise com a criação da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), da Sociedade Psicanalítica do Rio
de Janeiro (SPRJ) e da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ)
93
.
92
Esta sociedade contava com Franco da Rocha como presidente e Durval Marcondes como secretário. No ano
seguinte, foi criada a Seção Rio de Janeiro com Juliano Moreira como presidente e Júlio Porto-Carrero como
secretário-geral. Em 1929, a Sociedade Brasileira de Psicanálise foi reconhecida pela International
Psychoanalitical Association (IPA). É importante ressaltar que esta sociedade não permaneceu por muito tempo,
outras surgiram a partir de 1940, com outro enfoque. Sobre o assunto ver: RUSSO, 1993.
93
A SBPSP foi reconhecida pela IPA, em 1951, no XVII Congresso Psicanalítico Internacional, em Amsterdã.
A SPRJ, em 1955, no XIX Congresso Psicanalítico Internacional, em Genebra. Por último, a SBPRJ que
134
Segundo Russo (1993), nos anos 60 do século passado, os psiquiatras-psicanalistas
disputavam com seus colegas “organicistas” o poder e o prestígio dentro dos hospitais
psiquiátricos. Se num primeiro momento, os psiquiatras que se interessavam pela psicanálise
ocupavam posição privilegiada dentro dos hospitais, no segundo momento este lugar tornou-
se dos psicanalistas que preconizavam reformas nessas instituições, afastando os leigos em
psicanálise e buscando novos aliados fora da medicina (psicólogos, assistentes sociais), sem,
contudo, abrir mão do prestígio da psiquiatria.
A procura pelas sociedades “oficiais” de formação psicanalítica multiplicou-se,
principalmente no eixo Rio-São Paulo. Nos anos 70 do século XX, ocorreu o boom referente
à psicalise no Brasil. Para Russo (1993), esse fato deveu-se à combinação de uma intensa
divulgação da psicanálise nos meios leigos e a um aumento da demanda de terapia em alguns
segmentos da classe dia. Foi nessa época, segundo a autora, que os psiquiatras-
psicanalistas conseguiram a hegemonia nas instituições psiquiátricas. Isso se explicou pela
difusão desse saber entre os profissionais não-médicos, especialmente os psilogos. A
psicanálise teve forte influência nos cursos de Psicologia e ampliou, assim, seu próprio
mercado e demanda por seus serviços.
Entretanto, as sociedades oficiais reservavam suas vagas somente àqueles que possuíam
diploma de médico, o que levou os psilogos a constituírem suas próprias sociedades.
Assim, verificou-se uma disputa pela “verdadeira psicanálise”: de um lado as sociedades
ligadas à IPA; de outro as que não se enquadravam e tentavam acabar com o monopólio das
primeiras. Os rachas, as cisões aconteceram por vários motivos. Primeiro, em relação à
questão: “quem pode ser psicanalista”; depois, em relação à difusão da psicanálise, e, assim, a
cada novo impasse, uma nova sociedade, ou escola, ou instituição psicanalítica surgia no
cenário psicanalítico brasileiro.
Porém, havia uma questão: os psilogos formados pelas sociedades de psicanálise não-
oficiais” não tinham o mesmo prestígio que os analistas-médicos formados pelas associadas
à IPA. De acordo com Coimbra (1995), três fatores contestaram o monopólio dos médicos:
primeiro, ocorre a criação de duas instituições que passaram a oferecer cursos e que
congregavam um grande número de psilogos: o Centro de Estudos de Antropologia Clínica
(CESAC) e a Associação de Psicologia e Psiquiatria da Infância e da Adolescência (APPIA);
segundo, a imigração de psicólogos e psicanalistas argentinos afugentados pela repressão
somente em 1959 teve seu reconhecimento pela IPA, no XXI Congresso Psicanalítico Internacional, em
Copenhague. Ver: COIMBRA, 1995.
135
política em seu país, e que desafiam a hegemonia das sociedades “oficiais”, criticando a
psicanálise ortodoxa” praticada nas clínicas privadas, propondo formas de intervenção com
famílias, comunidades, instituições etc. que fogem à tradição; e terceiro e último fator, que
também vem colaborar com a ruptura do monopólio médico, foi a invasão da teoria lacaniana,
de maneira especial no Rio de Janeiro. A partir desses acontecimentos, as sociedades
oficiais” se viram obrigadas a admitirem candidatos psicólogos em seu quadro de alunos,
isso em 1980.
Com o boom dos discursos psis”, emergiu um fenômeno chamado psicologização”, ou
seja, a redução dos problemas sociais e políticos a explicações psicológicas e
individualizantes. O discurso psicologizante tomava conta das famílias, particularmente as de
classe média. A família era percebida como o suporte e a mantenedora de uma sociedade
saudável; caso algo desse errado”, só ela seria a responsável pelos filhos “desviantes” ou
diferentes”. Tudo foi reduzido ao psiquismo e o eu” predominou, as pessoas passavam a se
preocupar com seu mundo “interior”, com suas emoções.
Segundo Coimbra (1995), a repressão potica vivida nos “anos de chumbo e os
movimentos que contestavam as ações do regime da ditadura militar eram ignorados e
desqualificados pelos “psi”, preocupados com sua “clínica”. As sociedades “oficiais”
reproduziam as mesmas práticas autoritárias que marcaram todo o período da ditadura militar
no Brasil. A psicanálise deveria ser preservada para se manter pura”. Os que pretendiam se
tornar analistas deveriam se submeter ao saber e ao poder do analista-didata, encarado como o
Grande Mestre. Para se tornar analista, havia uma série de etapas as quais os candidatos
deveriam se submeter, sendo a primeira a escolha de um analista didata. A formação é um
investimento, o candidato deve pagar por ela. As sociedades controlavam quem poderia ser
candidato a analista e quem se tornaria analista. A oferta de vagas era sempre abaixo da
procura, promovendo a elevação dos preços do investimento. As sociedades eram vistas
como instituições altamente hierarquizadas, burocráticas e hermeticamente fechadas.
As sociedades mais tradicionais e conservadoras tornaram-se alvo de uma série de
críticas, inclusive de seus associados, muitos implicados com o momento político do país de
abertura potica. Se toda e qualquer forma de autoritarismo era questionada, interrogada
naquele momento, as sociedades de psicanálise mais conservadoras, ligadas à IPA, o
podiam deixar de ser alvo dessas críticas.
Um fato analisador desse momento foi a expulsão de dois psicanalistas da SPRJ, lio
Pelegrino e Eduardo Mascarenhas. As críticas e denúncias sobre a expulsão foram
136
publicizadas, permitindo um debate amplo a partir da repercussão da expulsão e da
constituição, dentro da SPRJ, do Fórum de Debates. Esses fatos trouxeram à tona também as
denúncias contra o ex-médico Amílcar Lobo, promovendo uma grave crise institucional.
A história da expulsão dos dois psicanalistas começou com a publicação de uma matéria
do jornalista Roberto Mello, no Caderno B do Jornal do Brasil de 23 de setembro de 1980, na
qual apresentava as críticas feitas por três psicanalistas ao “baronatodos membros diretores
das sociedades oficiais” de psicanálise
Três psicanalistas Eduardo Mascarenhas, Wilson Chebabi e Hélio
Pellegrino acabam de denunciar o „baronato‟ da psicanálise: os altos
custos do tratamento, a gerontocracia nas instituições psicanaticas, as
discriminações ideológicas contra candidatos à formação, o falso
„apoliticismo‟, e até mesmo a ignorância das obras de Freud.
(MELLO, R. Os barões da psicanálise. Jornal do Brasil, 1980)
A denúncia havia sido feita durante o Simsio Psicanálise e Potica que acontecia
sempre às quartas-feiras no auditório da PUC-Rio. O simsio era organizado pela Clínica
Social de Psicanálise, criada por Helio Pellegrino e Katrin Kemper. Nesse mesmo simpósio,
um ex-preso potico denunciou Amílcar Lobo como o médico que o acompanhara nas seções
de tortura às quais fora submetido durante sua prisão.
Durante o I Simsio Alternativas no Espaço Psi realizado em 1981 em Porto Alegre,
Hélio Pellegrino relembrou outros elementos que compuseram essa história:
Em 1968, participei das grandes passeatas de então, (...). Quando veio
o AI-5, em dezembro de 68, tive que me esconder, pois era bastante
visado. Depois de algum tempo, apresentei-me, porque o havia
nenhum motivo para eu me tornar clandestino. Depois de um mês e
meio, dirigi-me ao Ministério do Exército, (...). fui preso e processado
pela Lei de Segurança Nacional. Eu poderia ficar mais ou menos
tempo preso, na medida que o processo ficasse pronto com maior ou
menor rapidez. Solicitei, então da S.P.R.J., uma carta dizendo apenas
o seguinte: Declaramos que a prisão do Dr. Hélio Pellegrino pode
eventualmente provocar ansiedade nos seus pacientes”. (...).
Entretanto, a Sociedade se negou a -la, em nome do apoliticismo.
Nesse mesmo ano, 1969, foi aceito como candidato da S.P.R.J. um
dico chamado Dr. Amílcar Lobo Moreira da Silva. Esse médico,
nos anos de 1970 a 1973, fez parte, inequivocamente (...) do DOI-
CODI da Pocia do Exercito da Rua Barão de Mesquita do Rio de
Janeiro. Ele fez parte de uma equipe de torturadores poticos.
(PELLEGRINO, 1982, p. 35)
137
Esses fatos tornaram visíveis o corporativismo e o autoritarismo característicos das
instituições psicanaticas. A SP/RJ foi alvo de críticas vindas do lado de fora dos seus muros
e também do lado de dentro. Na mesma época do episódio da expulsão de Hélio Pellegrino e
Eduardo Mascarenhas
94
, constituiu-se dentro da SPRJ o Fórum de Debates, movimento
organizado por Carlos Alberto Barreto, Fábio Lacombe, Heládio Miziara, Nilo R. de Assis e
Wilson Chebabi.
Além da defesa dos psicanalistas expulsos e dos outros 13 punidos por prestarem
solidariedade a Pellegrino e Mascarenhas, o Fórum tinha como plataforma a reforma do
estatuto da instituição, inserindo o direito ao voto do membro associado. O “baronatoao
qual o jornalista havia se referido e que fazia parte das denúncias era uma metáfora do modo
como a instituição se organizava.
De todos os membros efetivos e associados somente os primeiros tinham poder de
decisão, ditando os rumos da instituição, além de exercerem o papel de didata, aquele que
orientava os Seminários e analisava os candidatos a psicanalista que se matriculavam no
Instituto de Ensino mantido pela sociedade. A escolha dos didatas era feita pela IPA, a partir
de uma lista de nomes pré-selecionados enviada pela instituição. Como analisavam os
candidatos, os didatas eram chamados de barões, pois tinham o poder sobre o feudo. Na
SPRJ, por exemplo, a análise pessoal do candidato era quatro vezes por semana, sendo
custeada pelo próprio, cada didata possuía um número específico de candidatos,
caracterizando, assim, um baronato.
Depois de cinco anos de análise pessoal e de formação no curso teórico, os candidatos
apresentavam um trabalho teórico, cabendo aos membros da direção da instituição apro-los
ou não. Só então, os candidatos passavam a ser membros associados. Mas, na hierarquia da
sociedade, só os membros efetivos tinham direito ao voto. Os associados ficavam sob a tutela
dos efetivos.
O Fórum não foi um movimento psicanalítico, ou seja, não estava em questão a teoria da
psicanálise, mas foi a maneira encontrada pelos seus fundadores para dizer que a teoria
psicanalítica não poderia ser amordaçada pela ditadura da instituição. Organizaram um
movimento porque pretendiam mudar a sociedade de dentro para fora. Houve um cisma na
94
De acordo com Barreto (1982), as Assembléias Gerais que determinaram a expulsão dos dois psicanalistas
ocorreram entre os dias 14 de abril e 05 de maio de 1981. Em 14 de abril, foi lido um documento assinado por
trinta membros associados que exigiam a suspensão de qualquer punição aos colegas e o início de um processo
de auto-análise institucional, considerando que todos eram responsáveis pela crise que atravessavam. Em 27 de
maio de 1981, foi constituído o Fórum de Debates.
138
SPRJ: havia a sociedade e o grupo do rum, que também foram expulsos por um longo
tempo da sociedade, passando a se reunir no Sindicato dos Médicos. Mesmo assim,
intitulavam-se Fórum de Debates da Sociedade de Psicanálise do Rio de Janeiro,
evidenciando seu laço com a instituição.
No final da década de 1980, houve o que consideraram uma abertura da SPRJ. O Fórum
voltou a ocupar seu espaço dentro da sociedade e era tido como opositor” e crítico” aos que
ocupavam os cargos de direção, considerados reacionários e de direita. Em 1990, os membros
do Fórum concorreram às eleições para os cargos de direção da SPRJ e depois de uma
fragorosa derrota dissolveram o movimento. Outro fator determinante na dissolução do
Fórum foi a saída da sociedade de seus líderes, como, por exemplo, Carlos Alberto Barreto.
Hélio Pellegrino e Eduardo Mascarenhas haviam sido readmitidos na sociedade depois de um
processo judicial. “A sociedade mudou, abriu as portas para outros profissionais. Houve uma
reforma estatutária. E entram as mulheres nos cargos de direção. Deixaram o ambiente mais
claro” (BARRETO, Carlos Alberto, (depoimento). Rio de Janeiro, 2008).
Outra instituição que entrou no debate sobre a crise da psicanálise foi o IBRAPSI, que
surgiu em 1978 com o I Simpósio Internacional de Psicanálise, Grupos e Instituições que
aconteceu entre os dias 20 e 22 de outubro no Copacabana Palace, com a chamada “O maior
acontecimento psicanalítico da América Latina”. O simpósio reuniu nomes da psicologia, da
psicanálise e da psiquiatria, tendo a presença de Felix Guattari, Franco Basaglia, Robert
Castel, Thomas Szasz, Irvin Goffman e, inexplicavelmente, Shere Hite. Contou ainda com os
brasileiros Sergio Arouca, Roberto Machado, Gilberto Velho, Jurandir Freire Costa, Peter Fry
e Armando Bauleo, entre outros.
O objetivo era fazer do simpósio um ato inicial de um movimento de reformulação crítica
da psicalise, psicologia e psiquiatria. Os organizadores foram Samuel Chaim Katz, Luiz
Fernando de Melo Campos e o argentino Gregório Baremblitt e tinham como proposta reunir
psicólogos, psiquiatras, antropólogos, sociólogos e outros profissionais das ciências humanas
na formação de uma instituição singular que servisse como contraponto às instituições
oficiais” de psicanálise.
A proposta era inovadora, o que provocou uma forte resistência contra a instituição. Ao
contrário do que acontecia nas outras sociedades de psicanálise, o IBRAPSI oferecia acesso a
todos em seus cursos de formação e por isso foi acusado de assistencialista. Outros
criticavam ainda o fato de ser uma instituição privada, de funcionar como uma empresa. Foi
139
um ponto importante na promoção da reflexão política da prática “psino Brasil, propondo
outra maneira de pensar a formação e a prática profissional que implicava,
(...) formar um trabalhador de saúde mental capaz de atuar de forma
transdisciplinar e capaz de fazer uma leitura complexa, potica, social,
histórica e pquica de sua prática. Isso significa uma mudança radical
do sistema de formação. (Gregório Baremblitt, em entrevista ao
Jornal do CRP06 de maio/junho de 1993).
O IBRAPSI durou seis anos e marcou a formação de muitos “psis que viram na
instituição uma saída para a formação acadêmica, que pouco mudara, e para as sociedades de
psicanálise. Era um lugar de debates e intensas discussões, de paixões e encontros, associado
a uma nova aposta de que a prática clínica poderia ser entendida como prática política.
3.2. Os últimos números da Rádice
Das denúncias do primeiro momento, passando pela afirmação de alternativas, a revista
Rádice entra em sua terceira fase: com uma linha editorial mais opinativa, afirma seu lugar no
mundo. Os números que serão fonte deste capítulo o 11, 12, 13, 14 e 15, publicados entre
1979 e 1981.
A Rádice se multiplicou. Em 9 de outubro de 1979, Carlos Ralph lançou a revista Teoria
Crítica, motivado pelos artigos publicados na seção Teoria/debate nos números 4, 5, 6 e 7.
O objetivo dessa nova publicação era debater temas considerados mais “acadêmicos”. O
lançamento, em uma festa na Livraria Muro “foi um tremendo barato. Rolando o maior baile,
abrilhantado pelo conjunto Forrobodó, o que aconteceu não sai em gibi. Alegria, alegria, 70
litros de batida e a revista circulando entre os sorrisos e pares do salão” (Rádice, seção
Geralmente”, nº 11, novembro/dezembro de 1979, p. 5).
Uma nova Rádice, um novo espaço para o debate”, assim Carlos Ralph definia a Teoria
Crítica, no editorial do primeiro e único número. Os textos publicados foram “Catarse da
Agressão ainda resta uma esperança. Aliás duas. Talvez até três...” de Bernardo Jablonski,
O excepcional e a norma” de Lilia Ferreira Lobo, “Capitalismo e doença mentalde Rinaldo
Barros, “As lutas do desejo e a psicanálise” de Félix Guattari, “O complexo de Édipo e contos
de Fadas” escrito por Ana Maria Horta Thomé, Rosane Chonchol Dowek e Sandra Mara
Lopes, “Sobre a violência” de Gilio Cerqueira Filho.
140
Entre um artigo e outro, seções como Posições, Citações, Cata Curtas”, Livros
Indispensáveis em Psicologia e Ressonância. Ficaram de fora desse primeiro número os
artigos “O que não fazer num trabalho de psicologia comunitária”, de Roosevelt M. S.
Cassorla e “Sobre Wilhelm Reich”, de Romel A. Costa. De acordo com Carlos Ralph, as
dificuldades econômicas impediram a ampliação do espaço da Revista, prometendo a
publicação dos dois artigos no número seguinte, o que não ocorreu, pois, a Teoria Crítica teve
somente esse primeiro número.
Na seção Geralmente do 11
95
, foi publicada uma carta endereçada ao “Editor Geral
da Rádice”, enviada pelo Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, respondendo às
acusações feitas em números anteriores por Carlos Ralph. Uma das primeiras “brigas” da
Rádice, ou melhor, de Carlos Ralph, foi com o Conselho profissional. A autarquia não
mantinha uma relação estreita com os psicólogos, sendo vista como uma instituição
burocrática e que não representava a categoria. Outra questão apontada inúmeras vezes na
Rádice era a realização de assembléias orçamentárias pouco divulgadas e esvaziadas e os
sucessivos aumentos no preço das anuidades, considerados extorsivos. Na carta enviada à
instituição, Carlos Ralph defendia-se das acusações apontadas na representação ética aberta
pelo Conselho contra ele. O CRP afirmava que houve divulgação da assembléia orçamentária
do ano de 1978 no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, como estabelecido pela lei que
rege as autarquias. Ralph, na Tréplica”, argumenta que o veículo utilizado para divulgação
o era lido pelos psilogos e que cabia ao conselho a responsabilidade por uma divulgação
mais ampla, e denunciava:
(...) recebo informação que o mesmo expediente de Assembléias
fantasmas está sendo posto em prática por outros CRPs. (...) A
categoria gostaria de saber quantos estiveram presentes à Assembléia
do Rio; quantos votaram a favor do aumento e quantos são os
associados do CRP. Questão de representatividade, compreendem? A
notícia da Rádice de que a Assembléia não foi devidamente divulgada
está certa. O CRP errou, como vem ocorrendo freqüentemente
(Carlos Ralph Lemos Viana, Editor Geral da Rádice. Em Rádice,
seção “Geralmente”, nº 11, 1979, p. 5)
95
Colaboraram no nº 11: Jean dos Santos, Carlos Eugênio Marer, Cora Sauerbronn Villela, Mayta de castro de
Oliveira, Luiz Fernando Sarmento, Vera Vitis, Fernando Goldgaber, Denise Cunha, José Jackson Coelho
Sampaio, Valéria Pereira de Souza, Oswaldo da Silva, José Luiz Thadeu, David Bocai, Vera Ferraz, Ruben
Fernandes, Marco Aurélio Pereira de Lacerda, Antonio Di Sordi, Marcelo Lartigue, Conchita Batalha, Nicolau
Bina Machado. Sucursais: Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife, Maceió, Salvador, Vitória, Belo Horizonte,
Uberaba, Viçosa, Brasília, São Paulo, Dois Córregos, São Caetano do Sul, São José dos Campos, Lorena, Baurú,
Alto dos Pinheiros, São Vicente, Florianópolis, Pelotas.
141
Na matériaTemporada de caça”, publicada no último número da revista, em 1981,
Carlos Ralph denunciava o processo ético movido contra ele pelo Conselho regional. De
acordo com a matéria, a Comissão de Ética do Conselho acusava-o de infração a quatro
artigos do Código de Ética Profissional dos psicólogos, e que tal representação fora motivada
pelas críticas ao modo como o CRP conduzira o processo eleitoral, publicadas no número 13
da Rádice. Ralph obteve apoio de psilogos que haviam recusado a indicação feita pelo
Conselho para serem seus defensores dativos, e também do Sindicato dos Psicólogos, que
fixou a carta aberta do editor da Rádice em suas paredes.
O clima de contestação não se restringia às brigas com o conselho. Na capa do 11,
desenhada por Jaime Leão, uma caricatura de Freud sentado em seu divã tendo, ao fundo,
uma parede com pichações “direito de greve”, pela humanização dos hospitais
psiquiátricos”, “anistia”. A matéria principal, intitulada “A psicologia de oposição, relatava
e discutia o surgimento de diversos movimentos políticos dentro do universo “psi”, motivados
pela necessidade de união para discutir a profissão e a organização política dos psicólogos.
Os profissionais psis” saíram de seus consultórios e enfrentaram a realidade dos hospitais e
das políticas privatizantes de saúde, e as dificuldades nos demais campos de atuação,
principalmente, na educação. Do sonho de profissional liberal, despertaram para a dura
condição de assalariado. que se chamar atenção para um duplo movimento dentro do
universo psi”: ao mesmo tempo que popularizou-se a figura do psicólogo e do trabalho
clínico realizado nos consultórios privados, houve a inserção destes profissionais nos setores
públicos saúde e educação. Entendo esse segundo movimento como importante na
constituição de novas práticas no campo da psicologia, contribuindo com as mudanças na
relação desse profissional com o trabalho.
Grupos, antes estigmatizados e reduzidos ao silêncio nas
conservadoras associações de classe, passaram a ser ouvidos, a se
organizarem, a pleitearem direitos e deveres, a trazerem opções para
este sistema falido de atendimento e poder. O posicionamento firme
em defesa dos direitos da população, ao invés da defesa cega a uma
falsa lealdade de classe, é uma bandeira cada vez mais forte. (Rádice,
nº 11, dezembro de 1979, p. 14)
Rádice reuniu em uma extensa matéria depoimentos de pessoas ligadas a diferentes
movimentos políticos no campo da psicologia e da psiquiatria, como a Oposição Sindical de
São Paulo, o Movimento Es-Passo/Renovação (M.R.E.), em Recife e, no Rio de Janeiro, o
142
Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental e o Núcleo de Psiquiatria Alternativa,
afirmando seu papel de mobilizadora e divulgadora dessas novas expressões.
Como destaque no número 11, a história de Beatriz Perosio, psicóloga argentina, tima
do regime de terror que havia se instalado naquele país desde 1976. Carlos Ralph recebeu via
Correios um envelope lacrado, sem remetente, com o material que foi publicado na Rádice.
Estela,
Veio aqui Juan Manuel Sanches da Pocia Federal. Me disse que devo
acompanhá-lo ao Departamento de Polícia Central da Polícia Federal,
para averiguação de antecedentes. Disse que não nos demoraremos
muito. Segundo andar. Disse que podes me buscar agora mesmo, é na
Av. Belgrano a 4 quadras da 9 de julho. Venha buscar-me agora, pois
se me demorar terei que faltar ao trabalho. Não se assuste. Chau.
Bea.
(Rádice nº 11, 1979, bilhete escrito por Beatriz Leonor Perosio, antes
de desaparecer em 8 de agosto de 1978 tradução livre/Rádice).
De acordo com a matéria da revista, Beatriz Perosio era presidente da Associação de
Psilogos de Buenos Aires (APBA) e da Federação de Psilogos da República Argentina.
Seu seqüestro abalou os psilogos argentinos e foi o primeiro de uma série de outros
seqüestros cometidos contra psilogos. No dia seguinte ao seqüestro de Beatriz, Alfredo
Smith, Secretário de Assuntos Profissionais da APBA, e sua esposa, Celia Kriado, educadora,
também foram seqüestrados e levados para lugar ignorado. Os familiares e amigos de todos
os três mobilizaram-se para tornar os desaparecimentos de conhecimento público, com o
intuito de forçar a localização deles. O pai de Beatriz, Mario Perosio, impetrou habeas
corpus em 12 de agosto, mesmo dia em que a APBA realizou uma assembléia geral para dar
ciência à categoria e dar início às ações pela liberdade dos psilogos. Cartas foram enviadas
a ministros e ao ditador Jorge Rafael Videla, bem como às associações de psicologia em todo
o mundo, denunciando o desaparecimento.
A primeira pressão internacional veio da American Psychological Association (APA),
que através de seu presidente à época, Charles A. Kiesler, solicitou ao ditador argentino
informações sobre os psicólogos desaparecidos. No dia 17 de novembro, Alfredo Smith e
Celia Kriado foram localizados, no presídio de Villa Devoto em regime de
incomunicabilidade. Em 22 de maio de 1970, Smith, sua esposa e o filho que nascera na
prisão (Celia estava grávida no momento do seqüestro) foram libertados.
Beatriz foi vista pela última vez no centro clandestino de detenção conhecido como El
Vesubio um dos centros de tortura de maior atividade no período da ditadura argentina
143
de acordo com o relato de uma ex-presa política que esteve presa ali. Beatriz figura na lista
dos desaparecidos poticos da Argentina. O dia do seu desaparecimento, 8 de agosto, é
lembrado pelos psilogos argentinos de hoje como Día Nacional del Psicólogo Victima del
Terrorismo de Estado”.
Matérias como essa, presentes também no número seis, além do artigo sobre a Nicarágua,
evidenciam a posição assumida pela Rádice em toda sua trajetória: forçar a instituição a falar.
Posicionar-se contra a ditadura militar e em defesa das coisas coletivas significava interrogar
a psicologia, forçando a reflexão sobre seus efeitos no mundo. A pergunta-provocação “o que
a psicologia tem a ver com isso?”, lançada no editorial do número seis, cujo tema foi a tortura,
obrigava à reflexão sobre as práticas “psis”.
Provocadora, Rádice afirmava “nadamos contra a corrente por puro prazer (...)”
96
, esta
frase expressa bem esse novo momento da Revista, que lança em 1980 um dos seus números
mais polêmicos: o 12
97
, especial sobre comportamento. A capa apresentava uma foto em
preto e branco de recém-casados rasgada ao meio, separando o casal, tendo a chamada Tá
todo mundo separando” logo abaixo. A Revista pergunta como vai o casamento, conversa
com o recém-chegado Fernando Gabeira, Edílson Martins e com José Carlos Gondim,
“solteirão”; divulga o trabalho de grupos que ofereciam terapia de casal, como o Centro de
Atendimento à Mulher e à Infância (CEAMI); fala sobre uma relação entre duas mulheres e
de casais que escolhem uma relação aberta”; critica as agências de casamento que surgiam e
colhe depoimentos de “personalidades” como Agnaldo Silva (jornalista, editor do Jornal
Lampião)
98
, Eugenio Marer (psicólogo, 2 casamentos), Antonio Oliveira (despachante, 34
anos de casado), Dona Joana (72 anos, 48 de casada), Jorge Saldanha (técnico de som, 5 anos
de casado), Jerusalém (músico, solteiro), Marlene (prostituta, casada), Ciro (psiquiatra,
solteiro), Celso (marceneiro, estudante), Heloísa Vila-Real (psicóloga, casada), Hugo Carvana
(ator, casado). Ainda publica o texto “Casamento indissolúvel? de Wilhelm Reich, traduzido
e condensado por Luiz Sarmento. Fala dos clichês do casamento, da submissão feminina, do
machismo, das relações hetero e homossexuais, da “amizade colorida”.
96
Rádice, editorial, nº 12, março de 1980.
97
Colaboraram no nº 12: Jean dos Santos, Adauri Bastos, Carlos Eugênio Marer, Cora Sauerbronn Villela,
Mayta de Castro de Oliveira, Luiz Fernando Sarmento, Vera Vitis, Fernando Goldgaber, Glória Sueli Victor
Gomes, Luiz Nunes Rodrigues, Teresa Cristina Stavele, Marcus Veras, José Jackson Coelho Sampaio, Valéria
Pereira de Souza, Oswaldo da Silva, José Luiz Thadeu, David Bocai, Vera Ferraz, Joana de Bom Parto Coelho,
José Nóbrega, Carol Pires. Sucursais: Manaus, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Campina Grande, Recife, Maceió,
Salvador, Vitória, Belo Horizonte, Uberaba, Viçosa, Petrópolis, Brasília, São Paulo, Dois Córregos, São Caetano
do Sul, São José dos Campos, Lorena, Bauru, Alto dos Pinheiros, Londrina, São Vicente, Florianópolis, Pelotas,
Porto Alegre.
98
As observações entre parênteses são citações da Rádice.
144
Rádice número 12 dividiu opiniões. Foi feita a partir das expressões de vida de cada
colaborador da Revista que discutiam naquele momento seus próprios relacionamentos, mas a
revista o agradou a todos, como revelado nas correspondências de José Jackson Sampaio e
Caesar Sobreira enviadas a Carlos Ralph.
2ª coisa: a Rádice 12 sendo muito mal recebida nestas bandas, as
críticas estão sendo muito fortes. Numa carta anterior. (...) estamos
preparando um documento sobre a 12. O pessoal psi daqui falou
que como que se faz uma 11 tão boa e a seguinte consegue baixar
tanto de nível. (Carta enviada pelo colaborador Caesar Sobreira a
Carlos Ralph. Recife, 07 de maio de 1980).
Rádice 12 teve repercussão negativa em grandes áreas daqui. Pessoas
ameaçaram suspender assinaturas. Outras deixaram para fazer
assinatura depois de ver o nº 13. (Carta enviada pelo colaborador Jo
Jackson Coelho Sampaio a Carlos Ralph. Fortaleza, 1980).
Ali começava outra história que foi evidenciada no jornal Rádice Luta & Prazer. As
críticas em relação ao número 12 estavam baseadas em um argumento: que a revista havia se
afastado do universo com o qual as pessoas a identificavam ou seja, a discussão potica dos
temas relacionados à psicologia. O tema do comportamento ou a maneira como foi
apresentado não foi percebido pelos leitores como um tema da Rádice. Na crítica apresentada
por Jo Jackson Coelho Sampaio no artigo “Casamento de Rádice”, publicado no 13
(junho de 1980), o autor argumenta que o debate proposto por Rádice “ficou nas discussões
formais, no estereótipo da desrepressão. (...) Precisamos ir muito mais adiante”. Para
Sampaio, não bastava pregar o fim da instituição-casamento e afirmar o “amor livre”,
destacando que “o acasalamento sem diploma legal pode ser tão conservador quanto o
diplomado” (José Jackson Coelho Sampaio, “Casamento de Rádice”. Em Rádice, nº 13, junho
de 1980, p. 42).
Outra crítica foi feita à revista, não exatamente em relação à questão do casamento, mas,
de uma forma mais geral. Na edão comemorativa de quatro anos, lançada em 1980, com os
melhores momentos dos três primeiros números
99
foi publicada uma carta crítica de um dos
antigos colaboradores da Revista, Joel Bueno.
99
As matérias escolhidas para integrarem este número comemorativo foram: a entrevista com Nise da Silveira
(publicada no número 3 com continuação no número 4); a transcrição da palestra de Ronald Laing realizada em
Londres em 1977, enviada por Gilberto Lourenço Gomes (publicada no número 3); entrevista de Joel Bueno com
a escritora Helena Jobim (publicada no número 2); a reprodução do Jornal Comunidade, órgão informativo dos
pacientes do Hospital Portugal Ramalho, em Maceió, no estado de Alagoas (publicado no número 2); Diálogo
psicanalítico, reprodução da gravação feita por um paciente de uma sessão de análise, seguida do comentário de
145
Toda vez que sai uma Radie nova é uma emoção estranha, meio
alegre, meio melancólica. (...) dá vontade de escrever procês, distribuir
beijos e porradas. (...) o sou romântico, sei que não dava para
sobreviver naquele esquema, quando artigos sumiam em bancos de
ônibus e entrevistas eram engolidas por fitas defeituosas (a que eu
mais gostei de fazer, com o Guattari, nunca deu pra publicar, né?).(...)
Mas saudade, e sempre que sai uma Rádice as aranhas mordem por
dentro, vontade de voltar. Mas voltar pra onde (...), Rádice tá colorida
e brilhante na capa, talvez muito melhor do que jamais foi, mas é
diferente, é outra coisa, o mundo por outro ângulo. (Carta de Joel
Bueno, seção Cartas, Rádice edição de 4 anos, 1980, sem número de
página).
Joel Bueno continua suas análises problematizando o apoio da Revista aos grupos de
oposição”. Em sua carta não deixa claro o que seriam tais grupos, suponho que sejam
aqueles que entravam na disputa pela direção das entidades representativas e os que se
articulavam no campo da saúde mental, conforme referido por Carlos Ralph em sua resposta.
Joel Bueno critica também o que chamou de “moralismos de Reich” “pedir o testemunho do
velho Marcuse que tá tão fora de moda, brincar de transa do corpo‟ é pretexto pra surubada”
(Carta de Joel Bueno, seção Cartas, Rádice edição de 4 anos, 1980, sem número de página).
Carlos Ralph responde
quanto às alianças (...) são realmente necessárias, e o que temos que
fazer é dar força pro pessoal que, por outros caminhos, busca
alternativas concretas para essa realidade difícil da saúde mental.
Quanto à linha reichiana”, te respondo que na época da entrevista da
Nise, também fomos chamados de “junguianos”, na entrevista com
Laing, de “antipsiquiátricos”, e rias outras classificações. (...) Mas
isto faz parte desta marca maior, que voajudou tanto a imprimir, de
“irreverência”. (Carta de Carlos Ralph, seção Cartas, Rádice edição de
4 anos, 1980, sem número de página).
Voltando à descrição do número 12, na seção “Geralmente”, a divulgação do
lançamento do filme “Em nome da razão”. Dirigido por Helvécio Ratton, produzido em
parceria pelo Grupo Novo de Cinema e a Associação Mineira de Saúde Mental, o filme
denunciava as condições desumanas do Hospital Psiquiátrico de Barbacena, conhecido como
depósito humano, à época.
a função da instituição psiquiátrica é ser fechada; quando a gente fez o
filme quebramos este princípio, entramos dentro e tiramos coisas
para mostrar cá fora. Na verdade aquilo foi feito para ficar escondido.
Jean Paul Sartre, publicadas na revista Temps Moderns e, no Brasil, no jornal alternativo Bondinho (número 1).
Na última página, a carta enviada por Joel Bueno “Carta aberta ao editor da Rádice ou „amores do passado no
presente repetem velhos temas banais‟” e a resposta de Carlos Ralph “Chuvas de verão”.
146
Isto bate nos pacientes; todos eles queriam falar, queriam aparecer, e
todos tinham muitas coisas a dizer, muitas mesmo... (Helvécio Ratton,
em Rádice nº 12, 1980, seção “Geralmente”, p. 4).
Outra nota chama a atenção sobre a concessão do tulo de membro honorário oferecido
pelo Conselho Federal de Psicologia ao ditador Emílio Garrastazu Médici. O motivo, Rádice
explica:
foi ato de gratidão por ter assinado a lei que criou os Conselhos de
Psicologia” (Ralph citando Boletim do Conselho Federal de
Psicologia, sem data). Ora, não devemos nada a ele; lutamos anos
para conseguir o que era nosso direito, que é o reconhecimento da
nossa profissão, que ele fez assinar, provavelmente sem nem ligar
ao texto, e vem esse bando de puxa saco com atos de gratidão.
Enquanto a Ordem dos Advogados, a Associação dos Jornalistas
pelejam e pelejaram durante anos pela implantação do estado de
direito, pelo fim das torturas, pelo respeito aos direitos humanos, o
Conselho dos Psicólogos vem lamber a bota, com bastante atraso, do
responsável pelo período de maior terror de nossa historia. (...) O
melhor é colocar eleições diretas para o CFP, em cima de programas e
proposições concretas, ao invés de ficar delegando a direção da
psicologia a essa meia dúzia de sacripantas em busca de prestígio e
mordomia. Profundamente indignado, C. Ralph. (Rádice, nº 12, 1980,
seção “Geralmente”, p. 5).
Mudanças na forma da Revista: além da aproximação de pequenos anunciantes,
inaugurou-se a venda de espaço para o anúncio de aluguel de horários em consultórios. O que
antes era editorial, sempre escrito por Carlos Ralph (sua fala se confundia com a da revista),
agora passa a ser uma coluna assinada. Ralph passa a falar por si só, publicando textos sobre
sua trajetória e alguns contos e “causos”.
Com a cobertura do Congresso Mineiro de Psiquiatria, “Um congresso maneiro”,
matéria assinada por Luíza Cristina V. Cotta, Marcos Vieira da Silva e Francisco José
Machado, Rádice ganha mais um colaborador Kurt Bacamarte, que através das Fotos e
Fofocas e do Phyllum Psychiatrica disse o que todo mundo pensa, mas não diz” (Rádice,
12, 1980, p. 38). Kurt Bacamarte colaborou até o último número com as crônicas “O fato e a
análise do fato(nº 12), A verdade sobre a psicologia” (nº 13) e “A ideologia e o problema
da cura” (nº 15).
Kurt Bacamarte publica contos até hoje, é um personagem criado pelo psiquiatra e
psicanalista mineiro Francisco Paes Barreto, que participava dos debates sobre a psiquiatria
em Minas Gerais. O nome do personagem foi forjado a partir da união de alguns elementos
147
da história e do folclore da psiquiatria: “Kurt” era para homenagear alguns psiquiatras da
história e também derivava de “curtição/curtir”; “Bacamarte” era homenagem a Simão
Bacamarte, personagem de Machado de Assis no conto O alienista.
Che Guevara na capa, e o número 13 pergunta: “Cuba uma revolução na revolução?”.
Matéria principal, que contou com a colaboração de Luigi Moscatelli, sobre as transformações
na assistência em saúde mental no país-sonho dos revolucionários de toda a América Latina
naquele momento. A conclusão é triste: apesar das mudanças promovidas na estrutura dos
hospitais, a psiquiatria cubana não transformou a lógica da assistência, as mudanças foram
administrativas e não na maneira de se pensar a psiquiatria e a “doença mental”.
Na são Geralmente, denúncia sobre a proibição da venda da revista em algumas
instituições de ensino. A censura abateu-se, especialmente, sobre o número 8 e também o
12, considerados pelo diretor da Faculdade de Educação da Universidade Católica de
Petrópolis (UCP), Hanns Lippmann, como “pornográficos” e “obscenos”. Os alunos reagiram
a tal proibição; através de suas entidades representativas lançaram nota de protesto,
defendendo a circulação da Rádice na UCP, a livre manisfestação e expressão e acesso à
informação. Censura de um lado, homenagem de outro. Rádice foi escolhida Patrona de
Formatura da turma de Psicologia da UFF do primeiro semestre de 1980,
À rapaziada da UFF, profunda emoção pela enorme força que vocês
estão nos dando. Nossa singela retribuição é o nosso trabalho nesta
edição, dedicado a vocês. É a certeza que na vida profissional que
vocês entrarão agora, muitas intempéries também vão pintar, mas que
a energia de dentro, transformadora e ousada, renasce a cada
tempestade, cada vez mais forte e criadora, para os dias de sol.
(Rádice, nº 12, 1980, p. 6)
No número 13
100
foi publicada também a cobertura do Simsio Alternativas no Espaço
Psi, primeiro encontro promovido pela Rádice em parceria com a Livraria Muro. No número
anterior, uma tímida notinha na primeira página da seção Geralmente divulgava o encontro
que será apresentado mais adiante. Os temas sobre casamento, sexo, a vida em
comunidades são explorados no número treze e no seguinte, que ainda publica matéria sobre a
retumbante vitória no caso do projeto Julianelli.
100
Colaboraram na nº 13: Adauri Bastos, Jean dos Santos, Valéria Pereira, Luiz Fernando Sarmento, Fernando
Goldgaber, José Luiz Thadeu, Ipojucan Ludwig, Marcus Veras, Joana Coelho, Oswaldo da Silva, Teresa Cristina
Stavele, Vera Vitis, Sergio Falcão, José Carlos Gondim, Carmem Saporetti. Sucursais: Manaus, Belém, Teresina,
Fortaleza, Natal, João Pessoa, Campina Grande, Recife, Maceió, Salvador, Vitória, Brasília, Belo Horizonte,
Uberaba, Viçosa, Barbacena, Juiz de Fora, Petrópolis, São Paulo, Dois rregos, São Caetano do Sul, São José
dos Campos, Lorena, Bauru, São Vicente, Londrina, Porto Alegre, Pelotas.
148
A morte de Franco Basaglia foi anunciada na Rádice número 14
101
, em uma nota escrita
por Carlos Ralph sobre os encontros que teve com o psiquiatra italiano durante sua passagem
pelo Brasil e outra de Chaim Samuel Katz em que afirmava que “os psiquiatras
contemporâneos nunca se deram conta que veio dele [Basaglia] a melhor contribuição para
uma Psiquiatria realmente alternativa (na seção Geralmente, Rádice mero 14, ano 4,
outubro de 1980, p. 3).
As demais páginas do número 14 foram dedicadas ao debate sobre sexualidade, prazer,
libido e a publicação de uma versão condensada do livro O combate sexual da juventude de
Reich, resumo produzido por Luiz Sarmento, Valéria Pereira de Sousa, Caesar Sobreira,
Raph e Adauri Bastos (ou Dau Bastos). Também foram publicados artigos de Alex Polari de
Alverga, “Aquele verão de 68...”, de Edílson Martins, Porque os homens m rancuãi entre
as pernas”, de Narciso Teixeira “A raiz fascista” texto de repúdio ao Projeto Julianelli e o
de José Jackson Coelho Sampaio “sangue.fogo.fome”. Também há que se relacionar a
entrevista com os representantes do grupo SOMOS do Rio de Janeiro, um expoente dos novos
movimentos sociais que, junto com o jornal Lampião, lutavam pela causa gay.
No final de 1980, Ralph e seus colaboradores repensavam o projeto da Rádice,
considerando vários fatores relacionados à sua produção, tais como: as dificuldades
econômicas e a quantidade de matérias e informão que crescia a cada número e superava a
possibilidade física do formato. A Revista tinha uma produção cara e a saída vislumbrada foi
a mudança do formato, passando a ser em formato tablóide, com capa e papel off-set, a cores,
o que baratearia a produção e possibilitaria a ampliação do número de páginas. A Revista
foi possível, até aquele momento, por causa de uma ação conjunta de todos os colaboradores e
leitores que a mantiveram viva e independente.
Um outro fator que contribuiu para o fim da dice foi a diversificação das atividades
sob a responsabilidade de Carlos Ralph e de seus principais colaboradores. Nesse momento,
são principalmente Valéria Pereira de Souza, Carlos Eugênio Marer, Dau Bastos e Luiz
Sarmento. Carlos Ralph dividia-se entre a edição da Rádice, a administração, junto com
Valéria Pereira de Souza, do Raízes Centro de Estudos sobre o Homem, o Jornal Psi que
101
Colaboraram no nº 14: Adauri Bastos, Luiz Fernando Sarmento, Valéria Pereira, Jean dos Santos, Ipojucan
Pontes Ludwig, José Luiz Thadeu, Luciana Bicalho, Fernando Goldgaber, Marcus Veras, Libe Bejgel, Joana
Coelho, Jo Carlos Gondim, Ivanda Magalhães, rgio Murilo, Silvana Lacretta, João Resende, Alonso
Cristóvam, José Ricardo Fonseca. Sucursais: Manaus, Belém, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Campina Grande,
Recife, Maceió, Salvador, Vitória, Brasília, Belo Horizonte, Uberaba, Viçosa, Barbacena, Lajinha, Juiz de Fora,
Petrópolis, São Paulo, São Caetano do Sul, São José dos Campos, Lorena, Bauru, São Vicente, Londrina,
Florianópolis, Porto Alegre, Pelotas.
149
começou a ser publicado em dezembro de 1980 e o gerenciamento da editora Espaço Psi. Isso
sem falar da organização dos simsios e ciclos que eram produzidos anualmente,
demandando um esforço hercúleo de todos. As atividades foram se multiplicando e as
responsabilidades aumentando.
No número 15
102
, o fim anunciado, o último fôlego e a despedida: “Adeus, minha querida
amante revista menina Rádice. Eu sempre vou te amar. Transformemo-nos juntos no
moleque jornal Luta & Prazer; a viagem vai continuar”. (Carlos Ralph, editorial da Rádice
15, abril de 1981).
No editorial de despedida, Ralph fala do reconhecimento e respeito que a Revista obteve
ao longo de seus quatro anos e meio de vida. Apesar das modificações na linha editorial e no
formato, a Revista não mudou suas principais características: a postura crítica, a linguagem
aberta, o cuidado gráfico, a ousadia nos temas abordados” (Carlos Ralph, editorial da Rádice
15, abril de 1981), destacando como método o trabalho sempre coletivo. A proposta era
transformar-se em um jornal para debater temas como comportamento, cultura e psicologia.
Por ser uma publicação mais dinâmica, o velho sonho de “sair mensalmente” que nunca
conseguiram com a Revista reacende e ainda é citada a chegada de novos colaboradores,
jornalistas, artistas e diagramadores.
Senhoras e senhores, amigos, caras, carinhas, amizades, todo mundo,
queiram embarcar em nossa nave; novos ares, terras, mares nos
aguardam; vamos viajar em mais uma ousadia. Continuaremos juntos
na luta e no prazer. (Carlos Ralph, editorial da Rádice nº 15, abril de
1981)
3.3. Rádice-movimento: promovendo encontros
Imagine um encontro de muitas pessoas de cabeças
abertas, numa linda casa antiga cercada de bosques
por todos os lados. Imagine uma programação de
108 eventos em quatro dais de sol. Imagine que
nesse espaço, nesses dias, discutiram-se inúmeras
102
Colaboraram no 15: Adauri Bastos, João Carneiro, Valéria Pereria, Luiz Fernando Sarmento, Jean dos
Santos, Eugênio Viola, Luciana Bicalho, José Luiz Thadeu, Ipojucan Pedroso, Fernando Goldgaber, Libe Bejgel,
José Carlos Godim, João Resende, Camilo E. Santo, Ricardo Fragoso, Mariza Gomes de Almeida, Jorge A.
Velloso. Sucursais: Manaus, Belém, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Campina Grande, Recife, Maceió, Salvador,
Brasília, Belo Horizonte, Uberaba, Lajinha, Viçosa, Barbacena, Juiz de Fora, Petrópolis, São Paulo, São Caetano
do Sul, São José dos Campos, Lorena, Bauru, São Vicente, Londrina, Florianópolis, Porto Alegre, Pelotas.
150
alternativas para a prática psi no Brasil e fique de
água na boca. (Rádice, ano 3, nº 13, 1980, p. 20).
Rádice saiu de seu formato em papel e se transformou em uma revista-viva, Rádice-
movimento. A proposta inicial dos simpósios era promover um grande encontro entre as
pessoas que, junto com a revista, participavam das transformações no universo “psi” e,
também uma estratégia para solucionar as dificuldades ecomicas que se agravaram. Os
temas dos encontros eram extratos dos que havia sido apresentado pela Rádice, passando pela
macumba até a antipisiquiatria, transpondo as idéias reichianas, psicanálise, filosofia, política
e uma pitada de astrologia. O objetivo era reunir todos os “não-oficiais” do universo “psi”.
Foram inventados dois tipos de eventos: os simsios e os ciclos, este com o objetivo de
debater e divulgar exclusivamente o pensamento de Reich. Ao todo foram realizados oito
simsios (quatro na cidade do Rio de Janeiro e os demais em outras cidades, organizados
pelos colaboradores das sucursais) e mais de uma dezena de ciclos Reich, que também se
espalharam pelo país. Somente os dois primeiros simpósios, realizados em 1980 e 1981,
guardavam relação com a Rádice, já que se transformou no jornal Luta & Prazer.
O nome do primeiro simpósio, “Alternativas no Espaço Psi”, tornou-se a de todos os
demais, sendo que a cada edição se acrescentava um subtítulo. Dos que se tem notícia, o
segundo Simsio Alternativas no Espaço Psi teve como tema a “Política do corpo”; o
terceiro, Expressões de vida corpo e mente em transformão”, o quarto, Prevenção,
Psicologia e Potica”.
Não consegui informações sobre todos os eventos, devido ao fato de não haver registro
dos últimos simpósios e ciclos. Utilizei como fonte o depoimento de Valéria Pereira de
Souza, uma das pessoas que organizou os primeiros simpósios e arquivista desse período foi
quem guardou folders, cartazes e algumas anotações a respeito dos eventos. Além desse
depoimento e do material organizado por Valéria, utilizei também a própria Revista, o jornal
Sigmund, o jornal Psi e o trabalho de Cecília Coimbra, único material mais sistematizado
sobre os quatro primeiros simpósios e os três primeiros ciclos.
Os organizadores do primeiro simsio foram Carlos Ralph, responsável pela parte de
comunicação; Varia Pereira de Souza, responsável pela organização e infra-estrutura; Luiz
Sarmento, produção; e Dau Bastos que tinha como tarefa a divulgação do simpósio nas
universidades do Rio de Janeiro.
151
Com os simpósios, a Rádice ultrapassou os limites do formato de revista. Devido ao
enorme sucesso, a iia difundiu-se entre os colaboradores das sucursais e outros encontros
foram organizados também no Rio Grande do Sul, Belo Horizonte, Olinda e Brasília.
A intenção do primeiro simsio era estabelecer mais um espaço para o debate de
questões como: alternativas para o trabalho do psicólogo; novas perspectivas teóricas no
espaço psi; o mercado de trabalho para os psicólogos; trabalhos desenvolvidos nos
consultórios, instituições e comunidades; contradições na formação; o modelo político da
saúde mental e as transformações que ocorriam nesse campo.
O encontro aconteceu entre os dias 18 e 21 de abril de 1980 na Escola de Artes Visuais,
localizada no amplo jardim do Parque Laje, no bairro do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro.
Sério/Alegre” foi a filosofia do simsio, como descrito a seguir
Partimos Rádice e Muro da convicção de que a transmissão de
informações e vivências (...) podem e devem ser passadas de maneira
livre e informal; que os conteúdos, por mais sisudos que possam
parecer, podem e devem ser transmitidos e discutidos em um clima
que também não exclua a alegria. Afinal, sem ternura, prazer, jamás.
(Rádice, nº 13, 1980, p. 20)
O simpósio, organizado em parceria com a Livraria Muro
103
, contava em seu programa
com conferências, mesas redondas, seminários e atividades práticas chamadas vivências. Para
facilitar a comunicação entre todos, instalaram uma rádio com autofalantes espalhados pelos
jardins do Parque Lage e criaram um grande jornal em forma de mural para circulação de
informações e opiniões. O simsio também contou com exposições, lançamentos de livros e
muitos, muitos namoros.
O Programa foi dividido em três momentos: a) sico ou oficial, b) paralelo e c) surpresa.
A primeira parte do programa, básico ou oficial, contava com mais ou menos 50 atividades
entre conferências, mesas (com exposição de trabalhos considerados alternativos) e vivências
corporais de psicodrama, bioenergética, biodança e outros. Do programa paralelo, constavam
mostra de fotografias, filmes e palestras sobre alimentação natural e respiração, lançamento
de livros, peças teatrais, teatro de bonecos, Do-In. No programa surpresa, baile com
orquestra, show musicais, rádio Sério/Alegre, capoeira, massagens e Madame Zulema “a
cartomante, atraindo filas e curiosidades. As cartas não mentem” (Rádice, nº 13, 1980, p. 20).
103
Uma das sócias da Livraria Muro, Valéria Pereira de Souza, era, também colaboradora da Rádice e, como já
mencionado, participou da organização dos primeiros simpósios.
152
Esses três programas espalhavam-se ao longo do dia, que começava às 7 horas da manhã
com muito trabalho de corpo, respiração e descontração. O primeiro ciclo de palestras,
debates e conferências começava às 9:30 todas realizadas simultaneamente. A programação
paralela e surpresa começavam às 11:30 com música e os programas de utilidade blica e
sentimental” (Rádice, 13, 1980, p. 21) da rádio. O almoço era servido na piscina e à tarde
mais dois ciclos de palestras com a programação paralela encerrando o dia.
Todos participando e ajudando na organização. Todos sérios/alegres,
discutindo, debatendo, de rostos pintados, com a roupa do dia. Com
passeios e namoros no bosque, os flertes em todo lugar. Com a
preocupação constante com o que acontecia dentro e fora de si, perto e
longe do mundo. (Rádice, nº 13, 1980, p. 21).
O primeiro simpósio surpreendeu seus organizadores. O número de participantes foi
superior ao esperado. Chegaram comitivas de vários lugares, principalmente do sul e de
Minas Gerais, ônibus lotados de estudantes. À falta de alojamento sobrou solidariedade
amigos e colaboradores da Revista hospedaram os visitantes em suas casas. O sucesso
também foi financeiro, o saldo do primeiro simsio foi bastante positivo, contribuindo para
sanar as dívidas da Revista. No período em que ocorreram os simsios, a Revista conseguiu
sobreviver com folga. O sucesso financeiro e a inesperada participação mais de 900, entre
cariocas e pessoas vindas de outros estados foram fatores que determinaram a organização
de outros encontros.
O segundo, também realizado no Parque Lage, aconteceu entre os dias 18 e 21 de abril de
1981. Dessa vez, a realização foi uma parceria entre a Rádice e a Espaço Psi Editora e
Livraria, criada por Carlos Ralph e Valéria Pereira de Souza, que também passam a editar o
Jornal Psi, “o corpo visto como fato social, complexo de símbolos e desejos, formas e
expressões” (Jornal Psi, ano I, 2, junho de 1981, p. 20). A divulgação está em outros
espaços, como o jornal do IBRAPSI:
Política do corpo tem simpósio no Parque Lage
Dando prosseguimento ao projeto de “ação integral no espaço
psicológico”, a revista de psicologia Rádice e a Espaço Psi Editora e
Livraria vão promover de 18 a 21 de abril, o Simpósio Alternativas no
Espaço Psi, 81, trazendo como tema central “A Potica do Corpo”. O
objetivo da iniciativa é abrir novos espaços teóricos e práticos no
tratamento da questão do Corpo. (Jornal Sigmund, 1981, ano 1, nº 2,
p. 5).
153
Do programa, constavam 140 eventos entre mesas, confencias e vivências somados às
múltiplas atividades como shows, exposições, teatro, etc., nos padrões do primeiro simpósio.
O público desse simsio foi de 800 pessoas, acontecendo no momento da transformação da
revista Rádice no jornal Luta & Prazer.
O primeiro dia foi marcado por queixas em relação à falta de organização e de
informações sobre os locais das palestras, bem como o tumulto causado pelas inscrições de
última hora. O Grafitti e o Dazibao, dois enormes murais montados para circulação de
informações, estampavam algumas críticas dos participantes à organização: “liberdade não é
zona”; ouviram falar de anarquia e pensam que é isso” (Jornal Psi, ano I, nº 2, junho de
1981, p. 20). Os problemas foram se resolvendo até mesmo com a colaboração dos
participantes. A “anarquia” inicial transformou-se em uma anarquia autêntica, uma ação
autogestionária.
As práticas e vivências desenvolvidas nos primeiros dias do evento atraíram a maior parte
dos participantes. As atividades desenvolvidas por Ângelo Gaiarsa, Rolando Toro, Carlos
Eugênio Marer, Eduardo Tornaghi e Jo Carlos Gondim foram as mais concorridas. A
linguagem corporal expressava-se também nos intervalos das atividades com espetáculos de
dança e mímica,
Quando a imaginária pomba solta por O Lucaro em sua mostra
mímica, voou de mão em mão por quase todos os presentes, numa
cena lindíssima, silenciosa e arrepiante, fez-se o elo quase mágico em
torno desta linguagem quase esquecida. A linguagem do corpo
explodiu ilimitadamente. (Jornal Psi, ano I, 2, junho de 1981, p.
21).
O ápice desse encontro foi no último dia com a apresentação do trabalho de dança de
Marco Konká e Ismael Ivo e a apresentação do teatro espontâneo do grupo Tá na Rua, criado
por Amir Haddad, que durou 4 horas devido à intensa participação de todos nos esquetes e
que terminou com um grande carnaval. O encerramento foi com um show comandado pelo
Grupo Maria Déia, Francisco Mário, Mario Negrão, Celso Mendes e outros do núcleo de
artistas independentes.
A iia de promover encontros para mobilizar estudantes e profissionais para o debate
sobre o universo psi” contagiou colaboradores da Rádice em outros estados “a coisa cresceu
e os estudantes tomaram a coisa pelas mãos e começaram eles mesmos seus simpósios. Um
exercício de democracia” (Rádice Luta & Prazer, nº 4, dezembro de 1981, p. 25).
154
Em 1981, a sucursal de Porto Alegre realizou o I Simsio Alternativas no Espaço Psi
promovido pela Embrião Núcleo de Estudos e Ação em Psicologia e realizado entre os
dias 10 e 12 de outubro. O simsio foi realizado na Faculdade de Ciências de Saúde do
Instituto Porto Alegre, e do grupo que o organizou, participaram: Ademar Becker, Analice
Palombini, Doris Blessnann, Edson Sousa, Kátia Regina Frizzo e Paulo Francisco Slomp.
Nos moldes dos simpósios cariocas, mas um pouco mais organizados, os gaúchos
conseguiram publicar os Anais do simsio. A publicação foi lançada em 1982 com o texto
de algumas palestras proferidas. O encontro foi bem extenso, impossibilitando a publicação
de todos os trabalhos apresentados. Participaram desse simsio os cariocas Carlos Ralph,
Carlos Eugênio Marer, José Carlos Gondim, Eduardo Tornaghi, Helio Pellegrino e Joel
Birman.
Outro simpósio organizado fora do Rio de que se tem registro foi o “Simpósio
Tendências Psi o que se diz e o que se faz hoje”. Realizado nos dias 31 de outubro, 1 e 2 de
novembro de 1981 nas Faculdades de Ciências Humanas, em Olinda, Pernambuco, com
organização do Grupo Gesto Grupo de Estudo e Trabalho. Infelizmente, não encontrei
registro dos encontros em Belo Horizonte e em Brasília.
O III Simpósio Alternativas no Espaço Psi teve como tema a própria vida, sob o título
Expressões de vida corpo e mente em transformação”. O encontro aconteceu no Colégio
Benett, no bairro do Flamengo, no Rio, do dia 8 a 11 de abril de 1982. De acordo com
Coimbra (1995), esse simpósio marcou a aproximação entre grupos como os argentinos do
IBRAPSI, os representantes de movimentos sociais e alguns exilados recém-chegados. Como
nas edições anteriores, contou com gente de todo o país e foi dirigido para além dos limites do
universo psi”, que era comum encontrar nos debates engenheiros, biólogos, jornalistas e
poetas. Também foram oferecidas vivências e debates “políticos, sociais, psicológicos,
analíticos, urbanos, rurais, comunitários, mundiais(Luta & Prazer, nº 8, abril/maio de 1982,
p. 7).
Esse encontro contou com a participação de Jo Carlos Rodrigues, Eduardo
Mascarenhas, Antonio Serra, Paulo Hindemburgo e Esther Frankel, entre outros. Nos
intervalos, filmes de Charles Chaplin, apresentação do grupo na Rua, Manhas e Manias, O
Pior Espetáculo da Terra de Edgard Ribeiro, Matei Minha Mulher (o assassinato de Helena
Althusser) de Carlos Henrique Escobar com Dráusio Gonzaga como leitor do texto. A
organização ficou por conta do Raízes Centro de Estudo do Homem e de Crescimento de
155
Vida. O último encontro no Rio, foi o IV Simsio “Prevenção, Psicologia e Potica”
realizado nos dias 2, 3 e 4 de setembro de 1983.
Outros encontros que marcaram época foram os Ciclos Reich, organizados pelo Raízes.
Os ciclos tinham como objetivo ampliar o debate sobre a obra de Wilhelm Reich e divulgar as
práticas que surgiram a partir do pensamento desse autor.
dar uma dimensão pública ao pensamento reichiano, aos
desenvolvimentos e aplicações de suas teorias, aos trabalhos
profissionais que se realizam em consultórios, clínicas, centros.
Ampliar a brecha, a ação, o debate, a cooperação (Carta-proposta do I
Ciclo Reich enviada pelo Raízes aos convidados sem data).
O I Ciclo Reich foi realizado entre os dias 22 e 24 de outubro de 1982, nas Faculdades
Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, contando com a participação de Caesar Sobreira, José Felipe
Fernandez, Esther Frankel, Nicolau Maluf, Luis Moura, Carlos Eugênio Marer, Luiz
Sarmento, Roberto Freire, Carlos Henrique Escobar, Fábio Landa, Romel Alves Costa,
Antonio Serra, José Ângelo Gaiarsa, Ivan Campos, Rainner Viana, Pedro Castel, Paulo
Hindemburgo, Gregório Baremblitt, Angel Viana, José Carlos Gondim, Maria Rita Kehl.
O II Ciclo, realizado entre os dias 14 e 16 de outubro de 1983, na Universidade Santa
Úrsula, teve como temática “Aplicações práticas da teoria reichiana
realidades/possibilidades”, afirmando o espaço do ciclo para a troca de informações e
atualização no campo das teorias corporais de origem reichiniana. Esse ciclo contou com a
participação de terapeutas corporais brasileiros e estrangeiros.
O III Ciclo foi realizado entre os dias 16 e 18 de outubro de 1992 no Centro de
Convenções do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, no Rio de Janeiro, junto com o I Simpósio
Brasileiro de Terapias Energéticas. Esse evento não teve o mesmo sucesso dos anteriores,
havia uma outra demanda dos participantes e os temas já o eram tão “alternativos” assim,
eram práticas que já tinham sido institucionalizadas, perdeu-se o entusiasmo. O encerramento
ficou por conta da Domingueira Dançante, no Circo Voador, com a apresentação da Rio Jazz
Orquestra. Esse encontro encerrou a fase de eventos organizados no Rio.
O IV Ciclo Reich foi realizado em Curitiba, nos dias 8 e 10 de outubro de 1993, na
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), junto com a I Jornada Sul-Brasileira
de Psicoterapias Corporais e o II Simpósio Brasileiro de Terapias Energéticas. O ciclo foi
realizado em parceria com o Departamento de Psicologia do Instituto de Psicologia da PUC-
PR e a Orgone-Psicologia Cnica. Outras edições dos ciclos foram organizadas em 1994, o V
156
Ciclo Reich foi realizado em Curitiba e um breve registro de um VI Ciclo Reich realizado
em Recife, no mesmo ano.
3.4. Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante...
(...) o prazer como uma política, você viver bem era
como um ato de resistência àquela vida cinza imposta
pela ditadura (...). (VIANA, Carlos Ralph, (depoimento).
Rio de Janeiro, 2002).
O jornal Rádice Luta & Prazer ampliou os debates enfatizando os temas culturais e
comportamentais. Como exemplo, as chamadas de alguns números: “Como a esquerda vai
para cama” (ano I, nº 1, 1981); “Tribos urbanas” (ano I, º 2, 1981); “Bissexualismo” (ano I,
4, 1981). Durou de 1981 até 1983, com uma periodicidade mensal, bem mais regular que a
Rádice, com 18 edições. Mas continuavam as turbulências, o jornal falia a cada quatro
edições”
104
.
As dificuldades eram maiores que as da Rádice, que manteve uma carteira de assinantes,
tinha a vendagem nas bancas, além dos simsios que contribuíram financeiramente e os
empréstimos feitos por parentes. A Rádice tinha um quê, que ia além da psicologia, mas se
mantinha vinculada a esse campo. Já o Luta & Prazer tinha como proposta ser um projeto
cultural, desvinculando-se do universo “psi”; quando ampliou o debate, perdeu o público
específico da Rádice. Não conseguiu manter os assinantes da Rádice e as sucursais foram
minguando aos poucos.
Segundo Bastos (2008)
105
, o jornal não conseguiu discernir um blico alvo e aquele
discurso ampliado não foi bem recebido. As contas viviam em atraso, até que não
conseguiram mais sequer vender o jornal, que passou a ser distribuído gratuitamente. Os
anunciantes olhavam com desconfiança.
A mudança da revista para o jornal pode ser explicada por fatores estruturais e
financeiros. Mas, há também um outro elemento: Rádice e Luta & Prazer este, pelo menos
até o número 4 eram centrados na figura de Carlos Ralph, idealizador da Revista e do
Jornal. Esses projetos mudavam de acordo com a vida do Ralph, como também mudavam a
104
BASTOS, Dau. (depoimento). Rio de Janeiro, 2008.
105
BASTOS, Dau. (depoimento). Rio de Janeiro, 2008.
157
sua vida. Carlos Ralph (2002)
106
, ao explicar sua decisão de deixar o Luta & Prazer, afirma
que novos interesses e necessidades surgiram, como o projeto de se recolher para escrever um
livro nunca publicado.
O lançamento do jornal foi no melhor estilo alegre e com muito bom humor. O grupo
de colaboradores se fantasiou, cada um pegou uma quantidade de jornais e saiu pelas ruas do
Rio de Janeiro vendendo o Luta & Prazer. Circularam por alguns pontos da cidade como a
Cinelândia, os bares mais badalados da zona sul carioca e pela praia de Ipanema. O
lançamento foi feito em três cidades que possuíam redações remanescentes da Rádice, Rio,
Belo Horizonte e São Paulo. A festa do Rio chamou-se “Toque escarlate”, a de São Paulo
Espírito do corpo” e em Belo Horizonte, “Amor agarradinho”. O clima da festa de BH
reproduziu o das demais: “a cachaça abundante, a versatilidade do conjunto musical (...), o
clima de intimidade que se instalou fez, desfez e refez namoros e casamentos” (Luta &
Prazer, Espalhafato, 3, 1982, p. 25). A cobertura da distribuição do jornal pela cidade foi
feita por um colunista social chamado Charles, personagem inventado por Carlos Ralph,
O Rio, cidade sorriso, foi palco de mais uma iniciativa criativa e bem-
humorada. Realmente o lançamento público do simpático jornal Luta
& Prazer (que nome ousado, gente), feito por integrantes da nossa
jeunesse jornalística, foi um autêntico SU (para os desinformados:
SU...cesso). (Charles, Coluna Social, Rádice Luta & Prazer, nº 2,
1981, p. 27).
O primeiro número
107
do jornal saiu com uma tiragem enorme 35.000 exemplares.
Apesar da boa vendagem, o retorno financeiro não foi suficiente para sustentar o jornal,
faliram no primeiro número.
nós éramos totalmente presunçosos, achávamos que tudo o que
fizéssemos seria uma maravilha, que todo mundo ia adorar, porque a
gente era muito bom, competente... então, demos todas as cartadas,
nunca fizemos planejamento econômico de nada, e fazíamos assim
“vamos fazer? No segundo número a gente passou a comer arroz
integral”. (VIANA, Carlos Ralph. (depoimento). Rio de Janeiro,
2002.)
106
VIANA, Carlos Ralph. (depoimento). Rio de Janeiro, 2002.
107
A periodicidade do jornal é mais fácil de ser relatada, pois constam as datas nos exemplares: 1, agosto,
1981. nº 2, setembro de 1981. 3, novembro de 1981. 4, dezembro de 1981. nº 5, janeiro de 1982. nº 6,
fevereiro de 1982. nº 7, março de 1982. 8, maio de 1982. nº 9, edição especial, não há registro do mês, 1982.
10, não há registro do mês, 1982. nº 11, agosto de 1982. nº 12, setembro de 1982. nº 13, outubro de 1982.
14, edição especial, novembro de 1982. nº 15, dezembro de 1982. nº 16, janeiro de 1983. nº 17, abril de 1983. nº
18, maio de 1983.
158
A gente era de uma megalomania impressionante. Era como se o
Brasil inteiro esperasse pelo nosso discurso. (BASTOS, Dau,
(depoimento). Rio de Janeiro, 2008.)
O grupo do Rádice Luta & Prazer diminuiu bastante, Carlos Ralph continuava como
editor geral, contando com antigos radicianos” e novos colaboradores. O grupo do primeiro
número era: Dau Bastos, Amanda Strausz, Marcos Moreira, Ana Cristina Andrade, Carlos
Eugênio Marer, Eugênio Viola, Fernando Pessoa, Helder, João Penido, Jorge Barros, Jorge
Luiz Joaquim, Jorge Velloso, Jo Luiz Thadeu, Leandra Iglesias, Libe Bejgel, Lucionor
Bicalho, Luiz Sarmento, Pedro Castel, Tuika, Valéria Pereira de Souza, Vera Lins. Como na
experiência anterior com a Revista, o grupo de colaboradores era bastante heterogêneo e
flexível.
O jornal nasceu com uma nova proposta, pensando a prática política como intervenções
no cotidiano, na vida, movidos pela necessidade de promover e acompanhar as
transformações sociais que ocorriam naquele momento. A palavra “luta” relacionava-se com
a idéia de libertação “uma luta de vida, que não utilize as mesmas armas que combatemos
(...). pelos direitos à liberdade e autodeterminação. Lutas pelo pleno exercício de nossa
existência.” (Carlos Ralph, editorial, Rádice Luta & Prazer, 1, agosto de 1981). A noção
de prazer estava fundamentada no pensamento reichiano, visto como fundamental para que
ocorresse um novo processo
A vivência do gozo, da alegria, propicia o pleno exercício da condição
humana, da consciência social. O prazer maleabiliza o corpo, expande
as capacidades mentais, felicita a vida. A repressão enrijece, acomoda,
fascistiza. Reivindicamos o prazer. (Carlos Ralph, editorial, Rádice
Luta & Prazer, nº 1, agosto de 1981).
Os temas abordados pelo jornal valorizavam as novas oões, reunindo a reportagem com
a reflexão sobre os acontecimentos do dia-a-dia. De acordo com Aguiar (2008), havia uma
linha editorial no jornal, mesmo que esta não estivesse muito clara para aqueles que o
produziam, que se voltava para o cotidiano, discutindo temas como os ideais da contracultura,
as terapias corporais, a medicina alternativa, as práticas orientais e o emergente ativismo
ambientalista.
Essa nova preocupação expressava-se na defesa do Parque Nacional de Sete Quedas, em
Foz do Iguaçu, no Paraná, que desapareceu no final de 1982 para formar a barragem da
hidrelétrica de Itaipu. O Luta & Prazer encampou o Movimento Adeus Sete Quedas, criado
para defender o parque. A construção da hidrelétrica tinha como justificativa sanar o deficit
159
de energia elétrica e foi um dos projetos faraônicos do regime militar. O lago da barragem
retirou colonos e índios de suas terras, bem como animais que viviam nas matas e ilhas da
região.
O sonho do “profissionalismo invade o jornal, disposto a se organizar de forma
“empresarial”, afirmando uma lógica econômica diferente daquela preconizada pelo
economista Delfim Neto, “não vamos esperar o bolo crescer para dividi-lo, ou surrupiá-lo,
como fazem por . Vamos comendo na medida e possibilidade de nossa fome (Carlos
Ralph, editorial, Rádice Luta & Prazer, nº 1, agosto de 1981).
A frase estampada na capa do primeiro número, “Como a esquerda vai para cama”, gerou
polêmica, não por seu conteúdo, mas também pela foto de corpos nus, que teve como
modelos os próprios colaboradores do jornal. O debate se centrou sobre “sexualidade e
militância potica”, criticando a sisudez que marcou o comportamento do “militante
conseqüente” (Rádice Luta & Prazer, ano I, 1, 1980, p. 3). A sexualidade e o corpo não
eram temas discutidos entre os militantes do PCB, nem mesmo entre os grupos dissidentes.
Havia ainda um controle do comportamento pelos dirigentes do partido e dos grupos
dissidentes, impondo regras rigorosas e mantendo alguns valores morais típicos da classe
dia passar batom podia ser considerado um “desvio pequeno burguês”.
O jornal publicou depoimentos sobre esses temas tabus de pessoas que se projetavam na
época como Heloneida Studart, deputada estadual pelo PMDB, naquele momento, “A
esquerda é tão careta”; Ademar Olímpio da Silva, o Papa-léguas, que havia realizado alguns
trabalhos com o Grupo Oficina de Teatro, “Só transo com quem me deixar molhadinho”;
Amir Haddad, criador do grupo na Rua, Gozar com o poder é patológico”; Lysaenas
Maciel, naquela época, deputado federal e membro da direção nacional do PDT,
Sexualidade, uma perversão?; depoimentos de militantes do movimento estudantil, “Só com
o pessoal do partido”; Roberto Goldcock, ex-militante político em 1968 que, naquele
momento, tornara-se terapeuta sexual, Não sou promíscuo...”. ainda uma entrevista com
algumas mulheres militantes do PT com o título “Mulheres de Atenas?”, em que se falava
abertamente sobre relações sexuais fora e dentro do partido, com pessoas da mesma posição
política e até mesmo com “reformistas”...
Freqüentemente, as pessoas que se transa bem com a cabeça são os
companheiros que estão , na luta, no dia a dia, tentando transformar
a estrutura, etc. Mas eles m uma visão de cama que é uma loucura;
têm um padrão. São caras que vão revolucionar o sistema, mas sexo
o se coloca . Eles separam tudo. Eles são homens fiéis, que m
160
mulher e filhos e que questionam a relação mas é uma mentira. Se ele
trepar com você, você é uma putinha, ou no máximo uma
companheira que tem alguns “desvios”. (Rádice Luta & Prazer,
depoimento, nº 1, ano I, 1981, p. 7).
Nessa entrevista, as mulheres debateram o machismo, o moralismo, as “relações abertas”,
a masturbação, a violência, a condição social da mulher, que posição a organização tem
sobre o fato de mulher levar porrada, ser chamada disso ou daquilo, (...), essas questões que
tem que ser discutidas quando se tem uma prática comum.” (Rádice Luta & Prazer,
depoimento, 1, ano I, 1980, p. 7). Também se discutiu sobre os temas que, acreditava-se,
deviam ser transformados em projetos e ações de luta do novo partido,
espero que mais cedo ou mais tarde o PT apresente uma lei sobre o
aborto (...). existe no PT um ativo de mulheres, que é uma coisa
embrionária ainda; tem um ativo sindical, de favelas; está se abrindo
para a voz do negro, etc. a gente quer é que o lance político que a
gente transe esteja ligado às coisas que a gente está vivendo. E falar
sobre isso. (Rádice Luta & Prazer, depoimento, 1, ano I, 1981, p.
7).
O Jornal publicou também depoimento do filósofo Carlos Henrique Escobar, do escritor
Henfil, do cantor Ney Matogrosso, além de dar voz a pessoas “comuns”: um servente, um
travesti, uma prostituta. Essa grande matéria promoveu uma reação nos militantes, homens,
do PT que criticaram por o terem sido ouvidos também. Seus depoimentos foram
publicados na matéria “Comida, liberdade, socialismo... e tesão!”, no terceiro número.
O pessoal do jornal foi processado por alguns entrevistados que não concordaram com o
tratamento dado à matéria. As entrevistas e depoimentos eram publicados na íntegra, isso foi
comum na Revista e no Jornal. Responderam a processos na justiça devido à publicação sem
cortes dos depoimentos colhidos, devido à mania de escancarar” (BASTOS, Dau.
(depoimento). Rio de Janeiro, 2008).
Um outro exemplo para ilustrar tal despreocupação com a edição dos textos está no
número 3; uma grande entrevista com o cantor Raimundo Fagner, que afirmava “sou o maior
ídolo da juventude atualmente” (Rádice Luta & Prazer, ano I, 3, 1981). Essa entrevista foi
realizada por Dau Bastos, Luiz Sarmento, Carlos Ralph, Eugênio Marer, Rosa Amanda,
Eugênio Viola, o fografo Juliano, tendo como convidado Abel Silva. O jornal cultivava
uma irresponsabilidade com a linguagem, a ironia e a gaiatice, aspectos destacados por Bastos
(2008) que caracterizaram o Luta & Prazer.
161
Abel Silva (meio bêbado) cadê as câmeras?
Todos Que câmera?
Abel Silva De televisão. Porque é um clima visual. Assim vocês vão
explodir. Vocês estão conversando sobre trabalho ou é um inquérito policial?
(Confusão geral, gritos, tentativas de retomar a conversa)
Amanda Péra aí. O Fagner disse que é o Rei da Juventude e estamos
discutindo em cima disso.
Abel Silva Esse papo de ídolo... só se for televio. Na escrita não existe e
cadê as câmeras?
Ralph Maninho, não sei porque você não quer que a gente faça a
entrevista, ou só vale a entrevista com televisão?
Abel Silva Não sou seu maninho; não temos os mesmos pais...
Amanda Vamos lá, vamos lá...
Fagner ótimo, ta ótimo. Chegou mais um...
(Chega o Juliano com a máquina fotográfica)
Amanda Pronto, pintou a câmera!
Abel Silva Também tinha que ter mais mulher nesta redação. Pra mim
esse jornal é desequilibrado.”
(Rádice Luta & Prazer, nº 3, ano I, 1981, p. 14).
O primeiro número do jornal apresentava três seções: “Toque”, Cartas” e “Espalhafato”,
esta última bastante parecida em seus propósitos e formato com a “Geralmente” da Rádice. A
partir do segundo número, surge uma nova seção, Emoções Baratas”, nos moldes de um
correio sentimental nada comportado, com anúncios desde flertes até casais que procuravam
outras pessoas para novas experiências...
Russinha Charmosa
Olga, você era russa mas não era comunista, isto sempre me deu o
maior tesão. Sonhei com você, nós dois trepando na bandeira francesa
Bleu, blanc, rouge. Ah, sonhos liberais... nunca mais nos vimos,
abandonei o partido, entrei pro ramo comercial, sou o que pode se
chamar de um homem bem sucedido. Posso dar a você o que
desejares, mil viagens, luxo, amor. Falo sério. Minha cicatriz na
sobrancelha é tua recordação. Topas?
Bolchevique Esperançoso.
(Rádice Luta & Prazer, nº 1, p. 23, 1981. seção Emoções Baratas)
Sexo Grupal
Casal ligado nas pessoas, nas artes, na cultura e na vida, desfrutando
bom relacionamento, deseja conhecer gente aberta e sensível,
inteligente e disponível pra abordar com sinceridade a teoria e a
prática do sexo grupal.
Alfa & Ômega.
(Rádice Luta & Prazer, nº 1, p. 23, 1981. seção Emoções Baratas).
No segundo número, a grande matéria “Tribos urbanas” abordava as experiências
comunitárias que aconteciam nas cidades, entrevistando pessoas que viviam coletivamente em
Belo Horizonte, Recife, São Paulo e Rio de Janeiro. O próprio grupo do jornal vivia em uma
162
casa em Santa Tereza. Surgiu nesse momento um centauro inventado por Ralph como
logotipo do jornal.
No número 7, foi publicada uma conversa com Fernando Gabeira sobre temas variados
como cultura, críticas à esquerda ortodoxa, os movimentos pacifistas que surgiam no cenário
mundial e também casamento, ciúmes, filhos. Gabeira tornou-se um dos incentivadores do
jornal.
No número seguinte, com a chamada de capa Os temas malditos nos partidos poticos”,
o jornal debate com representantes dos novos partidos PT, PDT, PMDB e PDS temas
como aborto, loucura, drogas e sexualidade.
As dificuldades econômicas se agravam a partir do quarto número e é possível observar
uma diminuição da quantidade de sucursais, que deixaram de colaborar a partir do número 9.
Carlos Ralph não escreveu mais o editorial, no lugar deste surgiu uma seção chamada
Opinião” que contou com artigos de Carlos Eugênio Marer (nº 4), Edílson Martins (nº 5),
Luiz Carlos Maciel (nº 7) e no número 8, o último artigo publicado na seção, que se
extinguiu, de Herbert Daniel. A apresentação do jornal passou a ser feita e assinada
coletivamente. A partir do número 5, Dau Bastos assumiu a edição geral do jornal junto com
Amanda Strausz e Eugênio Viola. Carlos Ralph ficou como colaborador até o número 9.
Fora o fim do casamento entre Ralph e o Jornal, este sobreviveu até o número 18.
Os recorrentes atentados que aconteciam contra bancas de jornal que comercializavam as
publicações da imprensa alternativa contribuíram para aumentar ainda mais as dificuldades
financeiras do Luta & Prazer, que a partir do sexto número deixou de usar o nome Rádice”.
Os jornais alternativos sofreram drasticamente com esses atentados, apontados por Kucinski
(2002) como um dos fatores que comprometeram a produção de inúmeras publicações,
contribuindo com o fim dos “alternativos”, como discutido no capítulo anterior.
Como já assinalado, o número 9 marca o momento da derrocada do Jornal. Mesmo
lutando para mantê-lo em circulação, o grupo liderado por Dau Bastos passou a sofrer com as
pressões. Desse ponto em diante, as sucursais foram extintas, a distribuição passou a ser
somente no Rio de Janeiro e gratuita. Os fatores que determinaram essas mudanças foram a
falta de anúncios e o aumento dos custos gráficos.
Com a saída de Carlos Ralph, restou um grupo pequeno Dau Bastos, Juliano Serra,
Marcello Lipiani e Soraia Jorge para tocar o jornal e alguns poucos colaboradores de Belo
Horizonte, Recife e São Paulo. Uma nova organização foi apresentada, com a extinção de
163
algumas seções e o surgimento de outras novas: “Espalhafatoe a “Pararatimbum” acabaram.
Toques” e “Emoções Baratas” foram mantidas. E as novas, “Corpo & Mente em
Transformão”, Gente Pequena” e Potica Cotidiana”, começam a ser publicadas no
número 11.
Destas, a última merece destaque, pois, com a proposta de acompanhar o processo
eleitoral de 1982, dava voz para alguns candidatos a cargos políticos que representavam,
naquele momento, uma esperança democrática. O critério estabelecido para divulgação das
plataformas poticas desses candidatos era “o fato deles não fazerem o gênero „político
profissional‟” (Luta & Prazer, 11, agosto de 1982, p. 10). Os candidatos divulgados pelo
jornal eram militantes do PT e do PDT, tais como: do PT, Lélia Gonzáles, candidata à vaga de
deputado federal, Lizst Vieira e Lúcia Arruda, candidatos a deputado estadual, Elinor Britto e
Benedita da Silva candidatos à vaga de vereador; do PDT, Sidney de Miguel, Diva de Múcio
Teixeira e Afonso Celso candidatos às vagas de deputado estadual, Carlos Alberto Oliveira, o
Cao, candidato a deputado federal e Silas Ayres candidato a vereador. No número 13, foi
reservado espaço para publicar as propostas políticas dos candidatos do PT “Terra, trabalho,
liberdade ao governo do estado, Lysâneas Maciel, ao senado, Vladimir Palmeira, e, ainda,
o apoio a José Eudes, Eliomar Coelho e Gilson Cardoso.
Sobre viver” foi a chamada de capa do número comemorativo do aniversário de um ano
do Luta & Prazer. No editorial, assinado pelo pessoal do jornal
108
, um sentimento de
desencanto e desgaste:
É verdade. Cansamos de esperar o Grande Dia, aquele momento em
que todas as conjunções planetárias augurassem a completa e
definitiva transformação. Cansaram seus arautos, roucos e afônicos
de tanta anunciação frustrada ou mentirosa. Meio cabisbaixos, muitas
vezes humilhados e ofendidos, tivemos que voltar às poucas certezas
que sobravam desse desencanto: o imediato, o cotidiano, a matéria
bruta dos conflitos, as vontades tímidas e ousadas, as cooperações
frágeis, os projetos rasgados pelo instante, olhares perdidos, pés
tropeçados. (...) não alimentamos a ilusão de que a justeza de nossos
desejos seja a garantia de seu real. Ao contrário, quanto mais arrojado
ou quanto mais óbvio em sua proposta, mais irreal resiste. É a
redução das dezenas de pessoas que curtem a idéia para a meia dúzia
que arregaça as mangas e verte em calor a pulsação do sonho; é a
aparência de gratuidade, exótica numa sociedade de faturas; é o
engodo do embalo fácil, quando o real é pedra e rocha; é ter que
passar do desvario iluminador para o custo mesquinho do papel, das
108
Editores: Dau Bastos, Juliano Serra e Marcello Lipiani. Redação: Adauri Bastos, Soraia Jorge, Clélia Bessa,
Antônio Serra, Herbert Daniel e Rosa Amanda.
164
passagens, do aluguel ou do rango. (Pessoal do Luta & Prazer,
Editorial, nº 12, 1982).
Para o desencanto desta nota, o aniversário de um ano foi comemorado junto com a
SOCII (Pesquisadores Associados em Ciências Sociais), com a organização de uma semana
de debates, realizada de 04 a 08 de outubro de 1982, intitulada “Papos e Agitos”.
O programa contou com os seguintes temas e participações: no primeiro dia, o tema foi
“Juventude e sociedade”, com a participação de Chico Alencar, Perfeito Fortuna, Walter
Moreira Salles Jr. No segundo dia, a discussão sobre “Guerra e/ou paz” contou com a
participação de JoMonserat Filho e Ricardo Aront. “Amor, sexo e sedução” foi o tema do
terceiro dia do evento, com os debatedores Herbert Daniel, Jurandir Freire, Leila Mícolis e
Antônio Serra. Joel Rufino dos Santos e Marcos Vinicius Ribeiro foram convidados para
debater “Brasil: uma outra história”, no dia 07. Encerrando a semana, Rezende, Anabela
Geiger e Luis Antonio Machado debateram o tema “A cidade e seus movimentos”. Para
brindar e comemorar um ano de luta, a Festa Show Surpresa, realizada no Clube Asa, em
Botafogo.
Um outro encontro foi organizado pelo pessoal do Luta & Prazer, o CON-VIVÊNCIAS
pensar o corpo e bailar a mente”. A idéia desse evento surgiu a partir da seção Corpo e
Mente em Transformãoe contou somente com vincias, tais como: Bioenergética, com
Pedro Castel; Grupo de crescimento, com Carlos Eugênio Marer; Dança, com Rainer Vianna;
Terapia do Colonizado, com Paulo Hindemburgo; Ginástica Orgânica , com Carlos Affonso;
Conscientização e jogos corporais, com Angel Vianna; Tai-chi chuan, com Laerte Willmann;
Arte-terapia, com Marly Quintana e Geiuseppa Araújo; Gestalt-terapia, com Francisco Lima;
Psicodrama, com Norma Jatobá; Siddha Yoga & mantras, com Olga Sodré. O encontro
aconteceu entre os dias 03, 04 e 05 de dezembro de 1982 na Escola Senador Correia, na Praça
São Salvador, no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro e contou com pouco mais de 100
pessoas.
Outro evento, que ganhou destaque no Jornal, foi o Cio da Terra, organizado pelos
militantes do Movimento Estudantil do Rio Grande do Sul, que aconteceu em um tio perto
da cidade de Caxias do Sul, em outubro de 1982. Tratava-se de um misto de acampamento/
simsio/festival que reuniu milhares de pessoas em três dias de shows, peças, filmes, daas,
debates sobre drogas, sexualidade, feminismo, sindicalismo, partidos, etc., num clima meio
Woodstock, como descreveu Dau Bastos
165
A quantidade de gente bonita dançando despertava as carências e as
fomes de afeto. Enquanto uns se aproximavam dos outros para dar e
receber sinceramente, alguns misturavam deslumbramento com
vontade de rangar todo mundo ao mesmo tempo, caíam na sedução da
borboleta e às vezes desandavam. (Luta & Prazer, ano II, nº 15,
1982).
Bastos (2008)
109
destaca três personalidades do cenário cultural carioca como
incentivadoras e colaboradoras do jornal: Luis Carlos Maciel, José Celso Martinez e Jorge
Mautner. me referi anteriormente ao primeiro, que teve textos e matérias publicados pelo
Luta & Prazer. Martinez foi responsável por jogar um balde de água fria nos editores do
jornal, ao falar que o projeto era muito interessante, mas que eles não tinham capacidade de
desenvolvê-lo. Jorge Mautner, por sua vez, abriu os olhos da turmaao iniciar um processo
de crítica ao que se chamava “alternativo”, como se fossem seres puros”, que não faziam
parte do que chamavam de “sistema”.
No editorial do 17, há um ar de despedida. Acreditavam que passavam por mais uma
fase ruim, como já haviam vivido outras vezes e que ressurgiriam das cinzas para fazer outros
números. Houve somente mais uma edição, o nº 18, que trouxe como matéria principal uma
conversa com integrantes do movimento punk
110
carioca. A expectativa do pessoal do jornal
era continuar, não esperavam que esse fosse o último suspiro do Luta & Prazer. A luta
passou a ser outra.
109
BASTOS, Dau. (depoimento). Rio de Janeiro, 2008.
110
O movimento (musical) punk surgiu nos anos 1970 na Inglaterra, tendo como primeiros representantes as
bandas britânicas Sex Pistols e The Clash e a norte-americana Ramones. As letras ousadas, irreverentes,
violentas e de cticas ao que se chamava “sistema” eram levadas através do ritmo agressivo, rápido e que
contava, basicamente, com três acordes. Durante os anos 1980, ouras bandas surgiram, bem como várias
vertentes, como o Hardcore, tendo com representantes as bandas Exploited, Agnostic Front, Dead Kennedys e
G.B.H., entre outras. No Brasil, este movimento chegou tardiamente nos anos 80 e teve maior repercussão em
São Paulo e em Brasília, apesar de contar com algumas expressões cariocas. As principais bandas brasileiras
foram Grito Suburbano, Inocentes, Olho Seco, Garotos Podres. Podemos relacionar ainda as bandas do final da
década, como Tubarões Voadores e IML, ambas de São Gonçalo, Rio de Janeiro. A música punk, muito potente,
não garantiu o reconhecimento do movimento, que foi absorvido e banalizado pela indústria cultural.
166
CONCLUSÃO
Realizar esta tese fez com que me sentisse como um personagem do escritor Mario
Vargas Llosa, do livro O falador”. Esse personagem fazia parte de uma tribo indígena da
amazônia peruana que tinha por função viajar pela floresta encontrando as famílias que a
constituíam, pois era uma tribo nômade as famílias que a compunham espalhavam-se pela
floresta. Ao encontrar um grupo indígena daquela tribo, o “falador” contava o que tinha visto
pela floresta, os encontros que teve com as outras famílias daquela tribo e com outras tribos
também, os perigos que enfrentou, as histórias que ouviu... o falador falava misturado com
aquilo tudo.
O principal objetivo desse trabalho foi dizer, para quem não conheceu, que Rádice
existiu. Esta tese pode ser chamada de tese-documento, pois nela encontram-se os registros
que pude fazer sobre Rádice e uma sistematização desses dados. O trabalho serviu para mim
de várias maneiras: para amadurecer idéias sobre a psicologia e a formação no Brasil; para me
encontrar com aqueles que fizeram a revista ou a experimentaram de alguma maneira; para
me tornar militante não de um partido ou grupo ou organização, mas de um outro sentido,
aprendendo a falar, a dizer; para perceber que é possível (e bem-vindo) o desrespeito pelos
manuais e normas, para que outras formas de pensar e fazer as coisas surjam. Também foi
fundamental perceber que a pesquisa o é para estabelecer a verdade sobre as coisas, a
pesquisa é um processo de conhecimento. O cuidado que se deve ter é que o novo o deve
virar manual, as práticas inventadas não devem se tornar modelos, mas devem ser entendidas
como aquilo que foi possível em um determinado momento. O manual não serve, a vida
transborda.
À intensa racionalização e normatização da vida, Rádice respondeu com a construção de
novas possibilidades (de ver, ser, estar no mundo), afirmando que a vida é múltipla. Essa
167
multiplicidade percebe-se nas narrativas sobre a revista que orientaram a construção deste
trabalho em forma de crônicas: sobre resistência, sobre singularidades, sobre os encontros.
Ao elaborar o trabalho, compreendi que o futuro da psicologia no Brasil estava ali no
momento da emergência da Rádice. O que há de futuro? É a intensidade; um espaço de
possibilidades, aberto ao tempo. Não é à toa que a revista tem potência e mobiliza os que a
conhecem hoje. O enfrentamento do presente provoca desvios e é que emergem as coisas
cheias de futuro. Essas percebem seu limite, pois não possuem a vaidade da permancia.
Rádice foi isso: uma grande invenção que se agenciou com o que havia de combativo e
resistente, se conectou com o que tinha força para transformar, desrespeitando o que já havia,
o sério, o correto”, o desde sempre. Sua existência e trajetória foram singulares, não porque
era “boa” ou a “melhor” ou “alternativa”, mas porque estava mergulhada em tensões e
contradições. Foi intensa, ousou e não pediu licença para existir. É possível apaixonar-se por
ela hoje por causa disso tudo. Não virou passado, não ficou conservada como lembrança.
Para ilustrar e me fazer compreender melhor, cito um conto do argentino Cortázar intitulado
“Conservação das lembranças”:
Os famas para conservar suas lembranças tratam de embalsamá-las da
seguinte forma: após fixada a lembrança com cabelos e sinais,
embrulham-na da cabeça aos pés num lençol preto e a colocam contra
a parede da sala, com um cartãozinho que diz: „Excursão a Quilmes‟,
ou „Frank Sinatra‟. Os cronópios, em compensação, esses seres
desordenados e frouxos, deixam as lembranças soltas pela casa, entre
gritos alegres, e andam no meio delas e quando passa alguma
correndo, acariciam-na com suavidade e lhe dizem: „Não se
machucar‟, e também „Cuidado com os degraus‟. É por isso que as
casas dos famas são arrumadas e silenciosas, enquanto nas dos
cronópios há uma grande agitão e portas que batem. Os vizinhos
sempre se queixam dos cronópios, enquanto os famas mexem a cabeça
compreensivamente e vão ver se os cartõezinhos estão todos no lugar.
(CORTÁZAR, 2001, p. 102)
A Rádice-cronópio não virou passado nem mesmo para aqueles que a fizeram. As
pessoas, ao falarem dela e de suas vidas não falavam com nostalgia de algo que passou,
falavam com alegria dos encontros que tiveram e de como se tornaram também cronópios.
168
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1973.
REVISTA EGO GUIA DO COMPORTAMENTO HUMANO, 1975
DEPOIMENTOS
Ângela Bernardes
Antonio Geraldo Peixoto
Carlos Alberto Barreto
Carlos Eugênio Marer
Carlos Ralph Lemos Viana
Célia Lima
Claudia Ozório
Dau Bastos
Denise Dessaune
Diva Lúcia Gautério Conde
Étila E. de Oliveira Ramos
Guiherme de Souza Magalhães
Henrique Rodrigues
Irene Cassiano Marques
Ivan Campus
João Resende
Joel Bueno
Jussara Lins
Leonel Aguiar
Luiz Fernando Sarmento
Marcus Veras
Marcus Vieira da Silva
175
Maria Teresa da Costa Barros
Marília Lessa
Nicolau Maluf
Paulo de Castro
Pedro Castel
Roberto Stern
Ronaldo Lapa
Solange Couto
Valéria Pereira de Souza
Vera Lúcia Canabrava
176
Anexo 1 Capas das Rádice
177
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