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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA POLÍTICA
CONFLITO E INTERESSE
NO PENSAMENTO POLÍTICO REPUBLICANO
Maria Aparecida Azevedo Abreu
Tese apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Ciência Política do
Depto. de Ciência Política da
Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo, para a obtenção do título
de Doutora em Ciência Política
Orientador: Prof. Dr. Gabriel Cohn
São Paulo
2008
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2
A Raphael Neves
e às flores temporariamente
estreladas
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3
A mim não me cabia a ardente certeza dos
grandes criadores, a mim me cabia a cruel
inquietação do pesquisador.
Marcel Proust
Cada qual considera claras as idéias que estão
no mesmo grau de confusão que as suas.
Marcel Proust
Assim como o mergulhador vai apalpar no
fundo da água os destroços que o aviador
apontou do alto do céu, a inteligência imersa
no meio conceitual verificará ponto por ponto,
por contato, analiticamente, o que fora objeto
de uma visão sintética e supra-intelectual.
Henri Bergson
4
AGRADECIMENTOS
A pesquisa que deu suporte a esta tese foi realizada com o apoio
financeiro do CNPQ, durante um ano, e da FAPESP, durante dois anos, que financiou
inclusive um estágio na Universidade de Princeton, EUA. Tal apoio, obviamente, foi
fundamental para a execução da pesquisa e a elaboração deste texto.
Gostaria de agradecer a várias pessoas que tiveram influência direta
no resultado desta tese. Tal influência não se deu necessariamente no conteúdo, mas sim
muitas vezes em meu ânimo e ímpeto para escrever. Sem essas pessoas, pra dizer sem
meias palavras, esta tese não existiria.
Agradeço aos Professores Sérgio Cardoso e Miguel Rossi pelos
comentários e críticas feitos em seminário de projeto de tese e exame de qualificação,
respectivamente.
Agradeço ao Professor Maurizio Viroli, por ter me recebido de
forma tão amigável em Princeton, e pelas sugestões bibliográficas, principalmente relativas
ao capítulo sobre os Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, de Maquiavel.
Agradeço ao Prof. Gildo Marçal Brandão pela sua existência, e por
ser sempre um modelo de compromisso com e paixão pela atividade intelectual, pela
docência e pela política.
Ao Prof. Cícero Araújo, agradeço cada comentário e cada leitura
paciente e atenta a partes do texto desta tese. Além disso, sua dedicação como professor e
como intelectual fazem parte de minhas memórias que têm inspirado e inspirarão minha
atividade acadêmica.
5
A meus irmãos Manoel e Lucas, pelo afeto quase incondicional,
todo o meu carinho de irmã.
A meus amigos Luciano, João, Bernardo, Maria Fernanda, Luís
Fernando, Julio, Gabriela, Rossana, Christina, Helion, Camila, Isa, Ed, Roga, Glenda,
Mauro e Guilherme, agradeço os momentos compartilhados de discussão intelectual e de
amizade.
A Alessandra e Rômulo agradeço os momentos cotidianos
compartilhados.
Às minhas amigas Elaine, Liliane e Micaela, que suportam o meu
lado mais sombrio e estimulam meu lado mais luminoso, o meu maior afeto.
Com a minha psicanalista, Mirta, a quem tanto tenho que agradecer,
compartilho a conquista de transformar o cumprimento de um dever num exercício de
prazer.
Ao meu orientador, Gabriel Cohn, agradeço por tudo o que
representou pra mim nestes quase nove anos de mestrado e doutorado, como modelo de
honestidade intelectual e compromisso com a qualidade acadêmica e com a universidade
pública. Gabriel é o mais raro exemplar de combinação de sutileza com profundidade em
suas análises. Tudo isso é coroado com uma generosidade que só os grandes mestres
possuem. Obrigada, Gabriel!
A Raphael Neves dedico esta tese, como manifestação de amizade.
6
RESUMO
Esta tese tem como objeto investigar, no pensamento republicano, como as categorias
políticas conflito e interesse foram tratadas. Foram analisadas as obras Os Discursos sobre
a Primeira Década de Tito Lívio, de Maquiavel, Oceana, de Harrington, O Contrato Social
de Rousseau, Que é o Terceiro Estado?, de Sieyes, O Espírito das Leis, de Montesquieu,
Os Artigos Federalistas, de Madison, Hamilton e Jay, e Da Revolução, de Hannah Arendt.
Nessa análise, verificou-se que o conflito e o interesse estiveram juntos, no interior da
política, no caso de Maquiavel, e fora dela, no caso de Harrington, Rousseau, Sieyes e
Montesquieu. Com os Federalistas, conflito e interesse se dissociaram, com o interesse
permanecendo no interior da república e o conflito dando lugar à pluralidade. Hannah
Arendt preservou a pluralidade, mas retirando novamente o interesse da política. Com isso,
verificamos que o conflito deixou de ser uma categoria relevante no pensamento político
republicano, enquanto a pluralidade ocupou um lugar definitivo.
7
ABSTRACT
This dissertation's subject is to research, in the republican thought, how the cathegories
conflict and interest have been considered. The work was focused on the following classical
books: Discorsi,Oceana, The Social Contract, Rousseau, What is the Third State?,The
Spirit of Laws, The Federalist Papers, On Revolution. Analysing them, it was verified that
conflict and interest have had been together and in the politics with Machiavelli, an out of
politics with Harrington, Rousseau, Sieyes and Montesquieu. With Hamilton, Madison and
Jay, conflict and interest were divorced: interest stood in the politics and conflict was left
out of it, being replaced by plurality, which become the central political cathegory. Hannah
Arendt confirmed it, but her politics is without interests. Despite of this, the final result is
conflict as a less relevant cathegory in republican political thought, and plurality as the
most important one.
8
ÍNDICE
INTRODUÇÃO 10
1. CONFLITO E INTERESSE 12
1.1 Interesse
1.2 Conflito
13
16
1.2.1 Interesse e opinião 19
1.2.2 Conflito e consenso
1.2.3 Conflito e pluralidade
1.2.4 Propósito das distinções
21
22
24
2. O FIO DO ENREDO REPUBLICANO 25
3. OS DISCURSOS REPUBLICANOS DE MAQUIAVEL: A GRANDE
ZA DA
POLÍTICA
41
3.1 O Conflito
3.1.1. Conflito e participação do povo na comunidade política
3.1.2 Conflito, grandeza e expansão
3.2 Interesse, liberdade e expansão
42
45
51
55
3.3 O conflito republicano de interesses de Maquiavel 65
3.3.1 O conflito público de interesses
3.3.2 O caráter não-particular do conflito de interesses
3.3.3 O conflito de interesses coletivos
4. OCEANA: A REPÚBLICA DE PROPRIETÁRIOS OS DOS INTERESSES
PRÉ-DELIMITADOS
4.1 Propriedade, equilíbrio e estabilidade
4.2 Conflito, interesse e lei
4.3 Harrington e o cidadão-soldado
4.4 De volta ao conflito de interesses
66
67
68
70
71
76
78
80
5. A REPÚBLICA UNITÁRIA FRANCESA: DO CONTRATO SOCIAL E
QUE É O TERCEIRO ESTADO?
81
5.1 O contrato social e a república de um só interesse
5.2 Lei e interesse em Do Contrato Social
83
90
9
5.3 A república liberal de Sieyes
5.4 A sinédoque de Sieyes ou o terceiro estado como a nação francesa
5.5 A unidade de Sieyes e Rousseau: diferenças
96
98
103
6. A REPÚBLICA PLURAL DE MONTESQUIEU
6.1. A república republicana de Montesquieu
6.2 A república liberal de Montesquieu
6.3 Conflito e interesse em O Espírito das Leis
106
108
112
121
7. A REPÚBLICA PLURAL AMERICANA
7.1 O republicanismo dos Artigos Federalistas
7.2. A república dos Artigos
7.3 Uma república de interesses: a república federada de grandes dimensões
7.4 Um república de indivíduos
7.5 A república da opinião pública
7.6 A república em expansão: um projeto maquiaveliano?
129
131
136
144
151
154
159
8. HANNAH ARENDT E A DIGNIDADE DA REPÚBLICA PLU
RAL
AMERICANA
8.1 A interpretação da fundação constitucional americana por H. Arendt
8.2 Interesses e opiniões: duas faces da pluralidade
8.3 A proposta de Hannah Arendt
168
170
172
176
9. O PENSAMENTO REPUBLICANO CONTEMPORÂNEO 178
10. CONCLUSÃO
11. FIOS SOLTOS
12. BIBLIOGRAFIA
181
188
189
10
INTRODUÇÃO
Embora esta tese não possa ser considerada exatamente uma extensão de
minha dissertação de mestrado, guarda com ela pontos em comum, e talvez a mesma mola
propulsora. Esta mola, o conflito, tem uma tensão cuja intensidade é definida pelo interesse.
Foi a partir destas categorias políticas que analisei a obra de Hannah Arendt em meu
mestrado. E, agora, elas voltam como tema do doutorado. Portanto, mais do que uma tese
sobre o pensamento político republicano, o que moveu minha pesquisa foi a investigação de
como estas categorias vinham sendo tratadas pelo pensamento político. Obviamente, este
seria um escopo muito amplo, ainda que para uma pesquisa de doutorado. Diante disso,
delimitei meu âmbito de alcance para o pensamento republicano e, a partir daí, formulei
minha hipótese central.
Tal hipótese é a de que haveria no pensamento político republicano a
partir de Maquiavel e, aqui, foi feito mais um recorte uma inflexão no tratamento das
categorias conflito e interesse e essa inflexão estaria situada nos Federalist Papers, que
teriam separado duas categorias que, no pensamento republicano anterior e, ousaria dizer,
no próprio senso comum a respeito da política andavam juntas. Esta hipótese foi inspirada
na observação de Pocock de que os Federalistas teriam substituído a noção de virtude, cara
ao pensamento republicano anterior, pela de interesse. Tomando tal observação como
correta, associei-a com uma conclusão a que já havia chegado no mestrado, de forma
incidental às minhas afirmações centrais: a de que nos Artigos Federalistas o conflito era
visto como algo negativo, e este havia sido substituído pela idéia de pluralidade. Isto, no
meu entender, se casava perfeitamente com as idéias de Pocock, e então foi inevitável:
embora esteja presente o interesse na proposta formulada pelos Federalistas, o conflito não
o está. Logo, houve uma curiosa dissociação entre interesse e conflito na concepção política
desses autores.
Esta dissociação se apresentou como curiosa para mim devido ao fato de
conflito e interesse estarem associados nas concepções mais intuitivas de política. Desde o
jargão mais corrente, até as concepções mais sofisticadas de política, muitas vezes se tem
de passar, quase de maneira inevitável, pelo “conflito de interesses”. Mas uma das obras
capitais do pensamento político dissociou tais categorias. Como? A nossa resposta, já
11
apontada na dissertação de mestrado, na análise da obra de Hannah Arendt, é a de que o
conflito foi retirado da política para dar lugar à pluralidade.
Talvez aí esteja a chave para a compreensão de como a idéia de
pluralidade tomou conta de pelo menos uma parte das teorias contemporâneas da
democracia, o que foi feito, a meu ver, acarretando uma desvalorização do conflito na
política. Embora este não seja o escopo de minha tese, procurar apontar ao menos um dos
momentos em que a categoria conflito perdeu sua força é de importância crucial. Mas por
quê, então, a escolha do pensamento republicano? Porque talvez Maquiavel tenha sido o
autor que tenha valorizado o conflito em um contexto em que isto se configurava o mais
ousado e, mais do que isso, pelo fato de que os diversos textos que tratam da fundação e
constituição de uma comunidade política e, portanto, de como deve ser enfrentado o
conflito de interesses, posteriores a Maquiavel poderem ser filiados a uma linha
republicana. Além disso, os republicanos contemporâneos reivindicam para a tradição
antiga desta corrente de pensamento a origem de várias idéias que hoje são caras às
diversas concepções de democracia o que, portanto, tornaria a corrente republicana uma
espécie de linha mestra que teria se metamorfoseado, ou se dividido, em diversas correntes
de pensamento, como veremos mais adiante.
Se conflito e interesse são a nossa mola, a energia que a coloca em
movimento é a tentativa de (re) valorização da categoria conflito no pensamento político
nesta tese, delimitando-se ao âmbito republicano , mostrando que a simples presença de
interesses não asseguram sua presença ou, ainda, que um possível caráter negativo da
presença do interesse na vida política possa ser afastado se a idéia de conflito também
estiver presente.
Enfim, todo o esforço realizado nesta tese, ainda que apresente
resultados incidentais, tem como objetivo principal examinar quando o conflito está ou não
presente, e como ele se articula com seu par - inseparável? -, que é o interesse, em algumas
obras capitais do pensamento político denominado republicano. Este exame é apenas o
ponto de partida para uma investigação que talvez dure ainda muitos anos, mas empreendê-
lo nessas obras, julgo eu, foi e tem sido um começo bastante estimulante e, algumas vezes,
surpreendente.
12
1. CONFLITO E INTERESSE
Os Ratos Errantes
1
dois tipos de ratos:
Os famintos e os fartos.
Os fartos têm contentes seu lar,
Mas os famintos saem a vaguear.
Esses revoltos ratos
Não temem nem inferno, nem gatos;
E querem, sem bens, nem dinheiro,
Redistribuir o mundo inteiro.
Heinrich Heine
Conflito e interesse são categorias centrais da política e
intuitivamente são pressupostos quando se examina uma situação ou um texto político. No
entanto, embora nenhum autor cujas obras serão analisadas nesta pesquisa tenha tratado
dessas categorias especificamente, a forma com que elas compõem cada teoria é bastante
diferente, e a diferença de tratamento, por sua vez, importa em algumas conseqüências.
Por causa disso, conflito e interesse são o objeto desta pesquisa,
delimitada no campo do pensamento republicano a partir de Maquiavel, e permearão todo o
texto, acompanhando cada obra a ser estudada. No entanto, como veremos, em nenhuma
das obras que serão estudadas há a preocupação de que sejam enunciadas definições
inequívocas de conflito e de interesse, até porque estes conceitos não eram a preocupação
central nessas obras. Elas são uma preocupação refletida neste texto. Para acompanhar a
análise de cada obra, é conveniente operar aqui uma conceituação que será a que nos guiará
durante o texto. Esta conceituação nos ajuda, também, a deixar claro desde o início do que
estamos falando, quando falamos de conflito.
Antes de adentrar em nossa conceituação, é conveniente fazer alguns
esclarecimentos. Nesta tese, partimos de uma definição, tomada a partir de alguns autores, e
vemos como ela se apresentou no corpo de algumas obras capitais para o pensamento
republicano. Apenas para citar um exemplo, Maquiavel, nos Discorsi, não fala
propriamente de interesse e, se levarmos em consideração as observações sobre a evolução
1
Não há tradução deste poema em português que tenha sido publicada. A tradução aqui transcrita foi feita por
Sebastião Nascimento.
13
histórica da noção de interesse feita por Hirschman (HIRSCHMAN, 1978), de fato, naquele
período não era possível falar de uma conceituação de interesse. No entanto, veremos que
Maquiavel muitas vezes fala do “conflito de interesses” tal como iremos defini-lo aqui.
1.1 Interesse
A noção de interesse é quase intuitiva e é um tema recorrente em
praticamente qualquer texto atual a respeito da política, seja teórico ou não. Poderíamos
discutir a concepção de interesse de cada autor ou como ela se configura em cada teoria
política. Outra possibilidade seria fazer uma trajetória histórica do significado de interesse,
como o faz Albert Hirschman, em seu As Paixões e os Interesses, mas não o faremos aqui,
apenas retomaremos mais adiante algumas de suas observações que vão nos ajudar no
desenvolvimento da tese.
Sem a pretensão de fazer qualquer percurso histórico minimamente
rigoroso, partimos de uma definição geral, que eu tomo de Marcelo Neves (NEVES, 2006,
p. 134), definida em outro contexto, que não propriamente o da teoria política, mas que
contém elementos que ajudarão a esclarecer o que está em questão neste trabalho. Segundo
Neves, os interesses são concebidos como “as formas em que as relações entre meios e fins
manifestam-se no comportamento e nas comunicações de indivíduos e grupos”.
Analisemos a definição: relações entre meios e fins. Aqui está
presente um elemento que é apresentado freqüentemente como a grande “vantagem” que o
interesse traz que é a de conter a possibilidade de cálculo e a previsibilidade das ações
(HIRSCHMAN, 1978, pp. 55-59). Ora, se as pessoas agem tendo em vista relacionar meios
e fins, elas têm uma ação calculada e previsível. Essas relações se manifestam “no
comportamento e nas comunicações”. Como vemos, segundo a definição, o interesse
impregna as ações, opiniões e discursos daqueles que interagem na comunidade política,
que são “os indivíduos e os grupos”. E isto diz respeito a algo que não se encontra explícito
nesta definição de Marcelo Neves, mas que convém acrescentar: quando falamos de
interesse nesta tese estamos sempre falando de algo parcial em relação ao conjunto que
envolve toda a comunidade política. Se o interesse for de toda comunidade política
falaremos de bem comum, ou de bem público e não mais de interesse.
14
Essa definição de interesse traz consigo alguns dos elementos que
estavam presentes naquela que Hirschman aponta como característica de fins do século
XVI (HIRSCHMAN, 1978, p.40). Segundo ele, a idéia de interesse naquele período não se
limitava à idéia de vantagem econômica, mas englobava todas as ações e estava ligada às
idéias de reflexão e cálculo de como essas aspirações deveriam ser perseguidas. Neste
sentido, o interesse se constituía numa espécie de mediador das aspirações, ou, para
aproveitar a observação de Aplleby, um mediador da vontade humana
2
.
De acordo com Hirschman, essa concepção de interesse sofreu
mudanças ao longo dos séculos. A emergência do interesse como algo não só relevante,
mas positivo, vem quando ele é colocado como a alternativa viável às paixões humanas. No
confronto entre as paixões e a razão, esta havia perdido o embate, e era bastante forte a
idéia de que só uma paixão poderia frear outra paixão (Bacon e Spinoza). Daí então surgir a
idéia de que algumas paixões fossem “positivas” e outras “negativas”. Com essa
classificação, as primeiras poderiam ser utilizadas para frear as segundas. Dessa forma foi
que a avareza e a ganância foram sendo vistas como paixões aptas a domarem outras
paixões mais “selvagens”. Isto era válido tanto no âmbito interno de cada ser humano,
como nas disputas existentes no âmbito político. E então, as paixões positivas foram sendo
vistas como interesses, que por sua vez passaram a ser associados à idéia de uma paixão
compensadora de paixões perniciosas.
A passagem das “paixões positivas” para o terreno do interesse, se
não foi uma criação de Adam Smith, pelo menos ganhou espaço teórico com ele. Sua
principal operação, segundo Hirschman, foi transformar os vícios e paixões de Mandeville
em vantagens e interesses. Isto foi possível graças a uma mudança na linguagem a respeito
das paixões, como apontado brevemente logo acima.
Ora, se a paixão havia ganhado a batalha contra a razão, e essa idéia
já estava presente em Hobbes, o interesse passa a ser uma terceira alternativa que garante
alguma racionalidade aos ímpetos humanos e assim passa a ser visto como algo
extremamente positivo para a vida dos homens em comunidade. Se somarmos a isso a
operação feita por Smith, podemos chegar a ponto de vislumbrar que a busca dos seres
2
Segundo Joyce Appleby, “economic writers went beyond mere acceptance of self-interest; they refashion it
into a constructive mediator of human will” (1992, p. 267).
15
humanos por vantagens, ou pelos seus interesses, dá às ações humanas alguma estabilidade
e previsibilidade. Com a valorização do interesse, portanto, os homens não estariam à
mercê da intempestividade das paixões, na medida em que o interesse guarda consigo o
cálculo da ação, nem perderia o vigor destas, como aconteceria se só estivessem guiados
pela razão.
Essa idéia de estabilidade foi reforçada pela predominância da visão
do interesse como vantagem econômica. A ganância por dinheiro é algo que não encontra
limites e, por isso pode ser uma constante no comportamento humano. É diferente do
anseio pela aquisição de determinados bens, ou de algum cargo político, que pode gerar
alguma frustração quando são obtidos. Quem anseia pelo dinheiro, sempre poderá ansiar
por mais dinheiro, o que se torna, portanto, uma constante. Além disso, Hirschman ainda
observa que a oposição de interesses no campo econômico nunca é tão vigorosa quanto no
campo político (HIRSCHMAN, 1978, p. 58). E aqui temos de fazer uma observação: para
afirmar isto, primeiro Hirschman parte de uma distinção entre os âmbitos político e
econômico e, depois, trata os conflitos econômicos como se fossem disputas entre diversos
comerciantes ou proprietários que quisesses maximizar seus lucros, e não que há grupos
com interesses bastante antagônicos entre si.
De qualquer forma, a idéia de que o comércio, com a valorização dos
interesses de cada um dos comerciantes, gera maior coesão e pacifismo entre as
comunidades é bastante difundida inclusive por teóricos políticos. Apenas como exemplo,
lembremos que, para defender sua Poliarquia, Dahl aponta que as democracias, justamente
por garantir e estimular uma liberdade de comércio, evita guerras e estimula a convivência
pacífica entre os Estados. Segundo ele, esta seria uma das “vantagens” da democracia
(DAHL, 2001, pp. 70-71).
Instalada a supremacia do interesse, transpôs-se para o seu campo
algo que era aplicado às paixões: se uma paixão somente pode ser freada por outra paixão,
também a um interesse deve ser contraposto outro interesse. E aqui se deve notar que está
sendo falado de freio, de controle, e não de repressão. Os diversos interesses devem
encontrar espaço para sua manifestação. Os freios ocorrem automaticamente, em
decorrência dessa mesma manifestação. Mas qual o papel que ainda restaria às paixões?
Embora o interesse próprio seja algo não mais pernicioso, é possível que os agentes se
16
enganem a respeito de qual seja seu verdadeiro interesse, e as paixões são elementos que
contribuem para esse engano. Mas este não será nosso tema aqui, pois está relacionado com
aspectos subjetivos do interesse, que não nos interessam. Estaremos sempre focalizados na
forma “objetiva” dos interesses dos atores políticos que, inspirando-nos em Bergström, são
determinados pela posição política ocupada pelos atores
3
. Consideraremos sempre que a
política lida com os interesses tais como eles se externalizam, sem buscar justificativas
psicológicas para a confirmação ou questionamento deles. Neste sentido, a manifestação é
verificada pela direção que o interesse dá à ação política. Por ora, fiquemos com a definição
de Marcelo Neves, acrescentando a observação de que o interesse possibilita o cálculo e a
previsibilidade na vida política.
1.2. Conflito
Se foi possível, para os fins de nossa pesquisa, enunciar apenas uma
breve definição de interesse, o mesmo não ocorre com a noção de conflito. Isto porque não
é tão claro muito menos intuitivo de que conflito será falado ao longo de todo este trabalho.
A noção mais intuitiva e corriqueira de conflito engloba qualquer
diversidade ou divergência de opiniões ou de interesses numa determinada situação
política. No entanto, a concepção de conflito que levaremos adiante é um pouco mais
estreita que esta e abarca aquelas situações em que há oposição ou contradição de opiniões
ou interesses que não têm condições de continuarem existindo, no espaço político, depois
de uma deliberação ou decisão governamental.
Neste sentido, como veremos adiante, conflito não pode ser visto
como algo oposto a consenso, como é comum no âmbito do pensamento político. Ou, em
outras palavras, não é porque não há consenso, que já temos uma situação em que esteja
presente o conflito. Podemos estar diante de uma situação em que não há consenso de
3
Bergström opõe os sentidos “subjetivo” e “objetivo” de interesse. Quanto a estes últimos, afirma: “the
(‘objective’) interests of an actor are determined for him by his social position or by the social structure of the
society to which he belongs”. Esta visão, segundo ele, foi elaborada por Dahrendorf e segundo este, interesses
seriam simplesmente orientações da ação. (BERGSTRÖM, 1770, p. 202). No texto, optamos por falar em
“posição política” apenas para manter o vocabulário adotado ao longo da tese. Mas não acreditamos que esta
opção, em detrimento de “posição social”, produza qualquer diferença substantiva.
17
opiniões, nem de interesses, mas estes possam continuar coexistindo no espaço do debate
político. É o que ocorre quando temos uma diversidade ou pluralidade de opiniões,
divergentes entre si, mas não divergentes a ponto de não poderem continuar coexistindo.
Ou uma diversidade de empresários, discordando sobre incentivos a este ou aquele
determinado produto. Nestes casos falamos apenas de divergência, mas não de conflito.
Uma situação de conflito ocorre quando temos dois interesses que,
pela natureza de sua divergência, não podem continuar coexistindo após uma deliberação
política, porque a deliberação certamente trará um resultado que não pode ser considerado
um meio termo dos dois. Ou se trata de uma terceira alternativa, ou da opção por um dos
interesses, num determinado momento mais legítimo do que o outro em disputa. O critério
para definir o grau de divergência deve ser verificado mais na medida com que cada grupo
está envolvido do que pela matéria sobre a qual há o conflito. Por exemplo, imaginemos
neste sentido um debate sobre o tamanho da extensão dos direitos de aposentadoria. Se o
que estiver em discussão for a idade em que se adquire o direito, o grau de divergência vai
depender mais do acirramento dos ânimos dos grupos do que da questão em si. Pode-se
muito bem chegar a um meio termo, e certamente se a idade escolhida for a menor, todos
serão beneficiados pela concessão do direito. No entanto, se por trás desta questão, o que
normalmente ocorre, estiverem visões diferentes de Estado, fundamentadas em interesses
opostos de grupos, então este será um conflito que não será resolvido por um meio termo,
mas certamente pela prevalência da visão de Estado do partido ou grupo que ocupa o poder.
Note-se que não se trata de chegar a um consenso, neste caso. Há um conflito, e uma
posição deve ser tomada, que provavelmente desagradará um dos lados. Mas a decisão
tomada acaba sendo aceita, em nossas democracias, pela legitimidade do processo que
levou um determinado partido à condição de decidir sobre uma determinada questão.
Situação diferente é aquela em que se discute a distribuição de
equipamentos públicos numa cidade. É claro que pode haver conflitos, mas o mais provável
é que, entre os grupos envolvidos e interessados diretamente pelo benefício dos
equipamentos, haja acordos para que estes estejam situados em locais que melhor atendam
a todos. Outra situação diferente é a de um Estado oferecer diversos cursos universitários, e
o cidadão, num sistema educacional absolutamente universalizado, poder escolher
livremente qual irá cursar.
18
Outros tantos exemplos poderiam ser tomados, e o grau de conflito
sempre vai variar de acordo com cada situação concreta. Mas o que é importante ter em
vista é que há situações que não se reduzem a meras discordâncias ou divergências de
pontos de vista, ou simplesmente, diferenças de interesses ou preferências. E como se
caracteriza o conflito, de um ponto de vista mais geral?
Hirschman (1994) mais uma vez nos dá algumas balizas. Ele sugere
a distinção entre conflitos resultantes de contradições antagônicas e não antagônicas (p.
211). Os primeiros são do tipo “ou/ou” (either-or), enquanto os últimos são do tipo
“mais/menos” (more-or-less). Segundo ele, as soluções dos conflitos do primeiro tipo são
sempre “definitivas” (once and for all) e as do segundo tipo são mais temporárias (p. 214).
Estes, são típicos de uma sociedade de mercado. Mas o que nos interessa aqui são os
conflitos do primeiro tipo, ou seja, os resultantes de contradições antagônicas, que
demandam solução ou/ou. Expliquemos melhor, agora sem a ajuda de Hirschman.
Tenho um conflito sempre que houver uma contradição ou oposição
de interesses e opiniões em que não possa simplesmente ser adotada uma solução de meio
termo ou que as duas opiniões ou interesses possam coexistir após uma decisão. Ou seja, há
dois interesses, defendidos por sujeitos diferentes, do tipo:
(i) eu quero A x eu não quero A
ou
(ii) eu quero A x eu quero -A
Claro que não se trata aqui de chamar de conflito apenas situações
extremas, em que a oposição ou contradição sejam tão profundas que um dos agentes tenha
de ser excluído do processo de tomada de decisão. Não estão abarcadas nesta descrição
somente circunstâncias de guerra ou em qualquer outra em que impere um conflito, tal
como proporia Carl Schmitt, do tipo amigo x inimigo. Trata-se, sim, de situações
conflitivas como as descritas na epígrafe deste capítulo, em que provavelmente a fome do
rato pobre não vai ser saciada apenas tirando um pouco da abundância desfrutada pelo rato
rico. Como dito na epígrafe: um deles está satisfeito, o outro quer dividir o mundo. O
conflito não diz respeito apenas à intensidade dos interesses: uns querem muito, outros
pouco; mas à sua espécie. Em outras palavras, conflito aqui está relacionado com qualidade
e não com quantidade. Se estivéssemos tratando de quantidade, seria um conflito decorrente
19
de contradição não antagônica, na distinção feita por Hirschman, que já excluímos de nosso
objeto.
Bergström dá uma solução elegante para a definição de conflito de
interesses, baseada na incompatibilidade (BERGSTRÖM, pp. 207-11). Temos dois
interesses incompatíveis quando não é possível haver atendimento de ambos e, ao mesmo
tempo, é possível o atendimento de cada um isoladamente. Bergström faz essa ressalva
porque não poderá haver incompatibilidade se um dos interesses for simplesmente
impossível de realização, por qualquer razão que seja. Obviamente, a impossibilidade
somente pode ser verificada caso a caso, em circunstâncias geográficas e temporais
definidas, o que confere a esta definição uma certa vagueza. Mas ainda que isto seja vago,
acreditamos que a definição de conflito de interesses baseada na incompatibilidade destes
nos ajude a clarear a definição que vimos esboçando.
1.2.1 Interesse e opinião
Indicada a abrangência do conflito de que iremos tratar nesta tese,
falta ainda diferenciar o que seria um conflito propriamente de interesses e o que seria um
conflito de opiniões.
Interesses são negociáveis. Opiniões são objetos de comunicação e
convencimento. Para a negociação de interesses, utilizo contratos, numa acepção ampla.
Para a troca de opiniões, utilizo a persuasão e a retórica. Além disso, o interesse guarda
estreita relação com a justiça, pois, se tenho que tomar uma decisão justa, é a partir dos
interesses dos envolvidos que devo medir a justiça. A opinião, diferentemente, pouca
relação guarda com a justiça. Além disso, se voltarmos à nossa definição de interesse, este é
identificável pela manifestação de um comportamento atinente à relação entre meios e fins.
A opinião não precisa tratar disso. Ela pode ser, nesse sentido, “desinteressada”
4
. Além
disso, e talvez o mais importante, a opinião consiste num julgamento, individual ou
coletivo, e como tal refere-se sempre a algo que já ocorreu. O interesse, não. Ao invés
disso, se retomarmos a idéia de Aplleby segundo a qual o interesse seria um mediador da
4
Há uma distinção entre “opinião de direito” e “opinião de interesse” feita por Hume que não será abordada
aqui devido ao fato de Hume ter em vista outra noção de opinião, que não a nossa. A respeito dessa distinção
ver ARAÚJO, 1996, pp. 92-95.
20
vontade, e se admitirmos que a vontade é sempre direcionada ao futuro, fica claro que sua
vocação é voltar-se para o futuro e dar alguma determinação à ação. Nesta tese, teremos
como foco sempre o conflito de interesses. O conflito de opiniões poderá ser considerado
na medida em que expresse conflito de interesses, e será deste que trataremos, não na forma
de sua expressão pela opinião.
Esta opção se justifica, ainda, porque as divergências entre opiniões
têm sempre menos potencial conflitivo do que aquelas entre os interesses. Opiniões, na
maioria das vezes, são apenas divergentes e, mesmo quando esta divergência assume graus
que tangenciariam o conflito, este, ao menos nos termos em que é definido nesta tese, não
se encontra presente, pois as opiniões supostamente ou potencialmente conflitivas podem
continuar coexistindo num dado espaço político. A diferenciação entre interesses e opiniões
invoca ainda outra diferenciação: se interesses são negociáveis por meio de contratos, a
resolução do conflito entre eles ou é a vitória de um sobre o outro, ou o acordo entre os
sujeitos interessados, que originará uma terceira opção, que não necessariamente indicará o
meio termo entre um interesse e outro. No âmbito das opiniões, em que estas podem ser
apenas trocadas, ou em que pode haver o prevalecimento de uma opinião sobre a outra, por
meio do convencimento, pode ser almejado um consenso, ainda que parcial, ou seja, tendo
em vista apenas um dos aspectos em que a troca de opiniões se opera. A respeito da
oposição entre conflito e consenso teceremos alguns comentários mais adiante.
A distinção entre interesse e opinião operada aqui tem como ponto
de partida a definição de opinião feita por Hannah Arendt, mas, no entanto, não se limitou a
ela, pois para Arendt as opiniões que adentram o espaço político tal como definido pela
autora somente são aquelas desinteressadas. Interesse e opinião, portanto, constituem
produtos diferentes da atividade humana. Interesse, para a autora, produz algum tipo de
determinação da atividade humana que a descaracteriza como ação política. A opinião
autenticamente política, ao contrário, apresenta-se sempre livre de qualquer tipo de
determinação, pronta para estar sujeita à indeterminação própria do espaço político
arendtiano
5
.
5
A distinção feita aqui no âmbito da obra de Hannah Arendt leva em consideração o conjunto da
obra, mas é possível examinar alguns textos específicos: para a definição de interesse, ver ARENDT, 1988, p.
181; para a definição de opinião ver ARENDT, 1992, p. 292. Confrontando os conceitos de opinião e
interesse na obra de Hannah Arendt, ver ABREU, 2004, pp. 87-92.
21
A mesma distinção nem mesmo é feita por qualquer dos autores
cujas obras serão estudadas. Nos Artigos Federalistas, interesses e opiniões são muitas
vezes tratados de forma bastante semelhante. Outras vezes, na mesma obra, a opinião é
tratada como um dos mecanismos de legitimação ou de fundamentação de um governo, o
que examinaremos oportunamente. A finalidade aqui, portanto, não é traçar um terreno
conceitual comum nas obras que vamos estudar, mas apenas, é necessário sempre
esclarecer, definir claramente de que concepção de conflito vamos falar ao longo desta tese.
Por isso, essa distinção não foi realizada no tópico anterior, quando falamos de interesse.
Na verdade, a distinção entre interesse e opinião nos é útil apenas para definir melhor
conflito. Não fosse por isso, a distinção não seria necessária.
Outra utilidade para tal distinção é que ela facilita a defesa de que a
demarcação de conflitos no interior da política não seja incompatível com a idéia de
pluralismo. Assim, é possível levar a sério os conflitos existentes numa comunidade
política sem desvalorizar, nem mesmo negligenciar, “o fato do pluralismo” de que fala John
Rawls (2002) e que muitas vezes é apontado como um ponto de dificuldade para o
pensamento republicano. Para alguns críticos da corrente republicana de pensamento
político, ela seria menos “apta” do que o liberalismo para reconhecer o pluralismo porque
estaria centrada na idéia de um bem comum definido comunitariamente (ou pelo Estado)
que não reconheceria a diversidade de concepções desse mesmo bem numa determinada
comunidade
6
. Se admitirmos que interesses e opiniões podem ocupar por vezes lugares
distintos, é possível vislumbrar melhor que conflitos de interesses podem conviver com
pluralidade de opiniões. Isto será melhor examinado no item 1.2.3, quando tratarmos da
relação entre conflito e pluralidade.
1.2.2 Conflito e consenso
Para ficar cada vez mais claro de que se fala quando tratamos do
conflito nesta tese, é conveniente que identificamos qual seria o seu oposto. Conflito e
6
A respeito desta crítica, ver de John Maynor, 'Factions and Diversity: A Republican Dilemma',
Politics at the Edge, Pierson, C., and Tormey, S. (ed.) London, MacMillan, 2000. O próprio Maynor
apresenta uma resposta a esta crítica, mostrando que o republicanismo é mais apto que o liberalismo para lidar
com o pluralismo.
22
consenso são comumente pares antagônicos em textos políticos e não propriamente
políticos
7
. É freqüente, quando está em jogo qualquer tipo de deliberação que envolva
perspectivas diferentes de decisão, que se fale em consenso e conflito como lugares opostos
na relação entre os grupos envolvidos na decisão. Mas temos que observar que, ao menos
no âmbito desta tese, não o são. Se o conflito foi definido acima como contradição ou
oposição de interesses, qualquer situação de não-oposição ou não-contradição é uma
situação não conflitiva. Em outras palavras, sempre que interesses possam continuar
coexistindo, ainda que de forma divergente, sem que haja oposição ou contradição entre
eles, temos uma situação em que o conflito não está presente.
Ora, se temos uma situação em que há divergências, portanto não-
consensual, mas que pode ser considerada como não-conflitiva, então isto significa dizer
que, não é porque não há conflito que há consenso. É certo afirmar que, se há conflito, não
há consenso. Mas se não há conflito, não é certo que haja consenso. Portanto, estes não são
pares opostos.
1.2.3 Conflito e pluralidade
Definimos que conflito não é o oposto de consenso. Também não é
sinônimo de pluralidade. Podemos dizer que o que Hirschman caracteriza como conflito
decorrente de uma relação não antagônica pode ser aqui definido como, na verdade,
divergências existentes no âmbito da pluralidade. Esta, presente sempre que há uma
diversidade de interesses e opiniões, não será aqui definida nos mesmos termos que o
conflito. Nem sequer podemos dizer que a definição de pluralidade abarca o conceito de
conflito. Vejamos por quê.
Quando falo em pluralidade, estou normalmente admitindo que,
numa determinada comunidade política, há uma diversidade (um número maior do que
um
8
) de interesses ou opiniões. Seria possível imaginar que uma situação conflitiva (nos
termos aqui definidos), na medida em que envolve ao menos dois interesses divergentes e,
portanto, diferentes, pode ser considerada um pequenino território dentro da dimensão
7
Dentre os textos propriamente políticos, provavelmente o mais notório é o de Matin Seymour
Lipset: Consenso e Conflito: ensaios de sociologia política. Lisboa, Gradiva, 1992.
8
E sempre, como veremos, ao menos potencialmente maior do que dois.
23
maior da pluralidade. No entanto, isto não ocorre porque o ponto de vista da pluralidade é
sempre o ponto de vista de um certo “nivelamento” das diferenças. Explico melhor: se na
situação conflitiva tenho dois interesses que são opostos ou contraditórios entre si, olhando
sob o ponto de vista da pluralidade, estes interesses são apenas diversos, como todos os
outros que a compõem. Para usar os exemplos já citados neste texto, é como se,
examinando as situações políticas sob a perspectiva da pluralidade, a diferença entre
concepções de Estado que fundamentam uma reforma da previdência, a negociação dos
locais de determinados equipamentos públicos, e a possibilidade de escolha de um curso
universitário num sistema educacional universal fossem igualmente diversos, igualmente
plurais. Se tivermos o conflito como referência, sabemos, como já afirmamos aqui, que as
situações são bastante distintas.
As mesmas situações acima servem também como exemp lo de que a
perspectiva do conflito não anula nem inviabiliza a perspectiva da pluralidade, apenas diz
respeito a situações distintas. A possibilidade de escolha de curso universitário certamente
deve ser vista sob o ponto de vista da pluralidade: pluralid ade de preferências. O mesmo
pode ocorrer em relação aos equipamentos públicos que, mesmo admitindo que cada um se
interesse por ter um equipamento mais perto de sua casa, trata-se de uma pluralidade de
interesses. O mesmo não ocorre em relação aos interesses que fundamentam uma
concepção de Estado.
Além disso, outro aspecto que poderíamos apontar como distintivo
entre conflito e pluralidade é o fato de que o conflito, pela sua própria natureza, é sempre
reduzido a duas posições bem demarcadas. Posições plurais, ainda que se apresentem em
duas direções, poderiam potencialmente se apresentar como três, quatro, ou mais
alternativas. Os exemplos já citados nos ajudam a entender isso. Posições acerca de qual a
melhor localidade para a instalação de um equipamento público podem se manifestar
definindo diversos locais, tendendo ao infinito. Posso ter uma assembléia de n cidadãos em
que cada um deles defende um local diferente. Caberá à assembléia estabelecer regras para
chegar a um local mais adequado. Quanto à concepção de Estado que fundamenta uma
reforma da previdência, ainda que se assumam diversas posições divergentes numa
assembléia, estas sempre serão redutíveis a um par de opostos: o Estado deve ou não arcar
com o custo da assistência dos que em algum momento não tiveram ou perderam sua
24
capacidade contributiva; ou, dito de outra forma: os indivíduos devem ou não receber o
benefício previdenciário de acordo com sua contribuição?
É claro que, nas questões demandadas a um governo, conflito e
pluralidade coexistem. No entanto, pelas razões expostas, ainda que conflito e pluralidade
coexistam, o terreno do conflito não pode ser visto como uma pequena parte da pluralidade.
Ter o conflito como categoria de referência leva a categoria pluralidade para um outro
âmbito, como já indicamos aqui. Ambas categorias podem estar presentes simultaneamente,
mas não são redutíveis uma à outra.
1.2.4. Propósito das distinções
Feitas estas breves distinções, é inevitável que surja a seguinte
pergunta: qual será o seu propósito? Uma mera idiossincrasia da autora, querendo formular
o seu próprio conceito de conflito? Ou será um mero jogo de palavras, exercício lingüístico
prazeroso para alguns?
Certamente não se trata de nenhum deles. O que se pretende, aqui, é
valorizar uma determinada concepção de conflito que, julgamos, estava presente nos
Discorsi de Maquiavel, ainda que não exatamente sob este nome. O nosso propósito é
tentar resgatar e comentar o que aconteceu com esta concepção de conflito ao longo das
obras que serão objeto de nossa pesquisa. Tudo isso porque pensamos que o conflito, tal
como aqui definido, é uma noção chave para a política, e que deve permanecer no interior
desta. Obviamente, não será realizado nesta tese todo o potencial normativo deste
propósito, mas acreditamos que ela seja um começo possível.
25
2. O FIO DO ENREDO REPUBLICANO
O fio do enredo é mentira
A história do mundo é brinquedo
O verso do samba é conselho
E tudo o que eu disse é ilusão
Paulo César Pinheiro
Ao delimitar o âmbito de pesquisa da tese ao pensamento
republicano, como afirmado na Introdução, a primeira pergunta que teve de ser respondida
foi: mas o que deve ser considerado pensamento republicano? As características que
definem o que pertence ou não a esta linha de pensamento não são bem definidas, e não há
consenso entre os intérpretes e entre os próprios autores que reivindicam o pertencimento a
essa corrente de pensamento, sobre que autores ou que tipo de pensamento ela abarca.
Neste sentido, começaremos nossa análise a partir de um texto de
Habermas
9
, em que compara as concepções republicana e liberal de democracia,
sintetizando algumas diferenças que, de uma certa forma, se encontram confirmadas no
debate em geral. Nesta diferenciação, Habermas situa no mesmo campo da teoria política
republicanos e comunitaristas. Segundo ele, os campos liberal e republicano se
distinguiriam segundo alguns critérios:
i) a função da política: neste âmbito, enquanto para os liberais a
política tem um papel de mediação entre o Estado e os indivíduos ou grupos particulares,
para os republicanos a política é uma forma constitutiva da sociedade como um todo;
ii) o papel do cidadão: aqui, se para os liberais o cidadão é definido
pelos seus direitos, em face principalmente do Estado, o que acarreta uma concepção de
liberdade “negativa”, para os republicanos os cidadãos são atores políticos responsáveis em
uma comunidade de pessoas livres e iguais, o que corresponde a uma concepção de
liberdade “positiva”;
iii) o conceito de direito: como corolário dos anteriores, para os
liberais os direitos existem para limitar a ação do Estado e podem ter uma fundamentação
até mesmo transcendental, enquanto para os republicanos há um conteúdo objetivo da
9
“Três modelos normativos de democracia”. In Lua Nova nº 36. Este texto foi apresentado originalmente no
seminário “Teoria da Democracia” na Universidade de Valência, em 15 de outubro de 1991. A divisão se
encontra presente também em Direito e Democracia.
26
ordem jurídica, e os direitos existem a partir da própria comunidade e se legitimam a partir
dela; e
iv) o processo político democrático: no modelo liberal o processo
político democrático se traduz na luta por posições, e a política é dominada pela ação
estratégica que lida com os eleitores como se estivesse situada num mercado em que o
número de votos é definido pela preferência dos eleitores; no modelo republicano a política
é diálogo de valores e não de preferências.
Se a diferenciação de Habermas está correta ou não e as implicações
que ela terá em sua teoria não serão nosso objeto aqui. Mas há um ponto, enumerado no
item ii) acima, que é necessário ressaltar. A associação feita por ele entre liberdade
republicana e liberdade positiva e entre liberdade liberal e liberdade negativa remonta a
uma diferenciação clássica, feita por Isaiah Berlin, que foi objeto de intenso debate, e, no
âmbito dos teóricos filiados à corrente republicana, Quentin Skinner e Philip Pettit
contribuíram de forma significativa. Nem Skinner nem Pettit invocam Habermas em seu
debate, mas seus argumentos certamente podem ser utilizados para enfraquecer a divisão
quase didática feita por ele.
Skinner (1986), remontando a Bentham, Berlin, e a toda tradição
republicana e comunitarista, inclusive em sua vertente contemporânea (Arendt, MacIntyre e
Taylor), procura demonstrar que a dicotomia entre uma liberdade baseada na teoria dos
direitos (liberdade negativa) e a liberdade vista como exercício da atividade política
(liberdade positiva) é falsa (1986, p. 249). Segundo ele, a idéia de liberdade “negativa” está
e esteve presente na tradição do pensamento republicano, e a liberdade “positiva” pode ser
vista como uma forma de maximizar a própria liberdade negativa. Além disto, nenhuma
teoria política poderia prescindir de algum tipo de noção de liberdade negativa para
caracterizar o espaço político que se defende.
Pettit (1997), com alguns argumentos convergentes com os de Skinner,
afirma que a dicotomia não abrange um terceiro tipo de liberdade, a como “não-
dominação”, que seria a constante do pensamento político republicano. Pettit formula a sua
noção de liberdade como não-dominação como contraposição às noções de liberdade
27
formuladas por Berlin
10
. É certo que o principal adversário de Pettit não é Berlin, mas um
certo conceito consagrado de liberdade negativa, que é colocado por muitos teóricos como
mais adequado para ser uma meta política do que o conceito de liberdade positiva. Nestes
conceitos consagrados, liberdade negativa pode ser definida como a não-interferência de
outrem sobre a vontade do agente, e liberdade positiva diz respeito ao auto-governo (self-
mastery). Embora Berlin não seja o único alvo de Pettit, nem o de Skinner, convém resgatar
as suas formulações sobre a dicotomia liberdade positiva/negativa.
Neste sentido, convém observar que a liberdade negativa de Berlin pode
não ser entendida simplesmente como não-interferência sobre o agente, tal como delimita
Pettit. O que está por trás do conceito, como formula Berlin, é a pergunta: “Qual é a área
em que o sujeito uma pessoa ou grupo de pessoas é ou deve ter permissão de fazer ou
ser o que é capaz de fazer ou ser sem a interferência de outras pessoas?”, em contraposição
à pergunta “O que ou quem é a fonte de controle ou interferência capaz de determinar que
alguém faça ou seja uma coisa em vez de outra?”
11
, que está por trás do conceito de
liberdade positiva. Estas duas perguntas podem ser colocadas de forma diferente: “Até que
ponto o governo interfere na minha vida?” e “Quem me governa”
12
.
Berlin admite que estes não são os únicos conceitos de liberdade que
podem ser formulados e que sempre haverá uma parcela de “liberdade negativa” em
qualquer conceito de liberdade que se formule, inclusive no de liberdade positiva. No
entanto, sua preocupação se volta para o rumo histórico que a concepção de liberdade
positiva tomou ao longo do tempo, levando alguns teóricos a, em nome dela, afirmar qual
10
Estas noções têm sua origem, como aponta Pettit, e admite Berlin, na diferenciação também canônica feita
por Benjamin Constant entre a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos (CONSTANT, Benjamin.
“Da liberdade dos antigos comparada à liberdade dos modernos”. In Filosofia Política. Porto Alegre: LPM
Editores, 1985).
11
“Proponho examinar não mais que duas de suas acepções mas elas são centrais, com muita história
humana atrás de si e, ouso dizer, ainda por acontecer. O primeiro desses sentidos políticos de liberdade
(freedom ou liberty vou usar essas duas palavras para significar a mesma coisa), que (conforme muitos
precedentes) vou chamar de sentido 'negativo', está implicado na resposta à pergunta: 'Qual é a área em que o
sujeito uma pessoa ou grupo de pessoas é ou deve ter permissão de fazer ou ser o que é capaz de fazer ou
ser sem a interferência de outras pessoas?'. O segundo, que vou chamar de sentido 'positivo', está implicado
na resposta à pergunta: 'O que ou quem é a fonte de controle ou interferência capaz de determinar que alguém
faça ou seja uma coisa em vez de outra?”. As duas perguntas são claramente diferentes, mesmo que as
respostas possam coincidir parcialmente.' (BERLIN, “Dois conceitos de liberdade”, p. 229)
12
“A resposta à pergunta ‘Quem me governa?’ é logicamente distinta da que seria dada à pergunta ‘Até que
ponto o governo interfere na minha vida?'. É nessa diferença que reside afinal o grande contraste entre os dois
conceitos de liberdade positiva e negativa” (BERLIN, p. 236)
28
seria um ideal de vida política, ou determinar como deveriam agir os membros de uma
comunidade política.
Este parece ser o problema capital de Berlin com a liberdade positiva,
pois ela iria contra os pressupostos de um pluralismo político, ou pluralismo de visões da
boa vida política, que é seu o ponto principal a ser defendido. A liberdade negativa seria
uma meta mais adequada para a noção de liberdade por deixar a cada um a definição de
como e o que fazer. Apenas seria definido até onde cada agente político poderia atuar.
Além disso, ter a liberdade negativa como meta exige a constante pergunta: até onde o
governo pode intervir na vida privada dos cidadãos? Esta pergunta, por sua vez, possibilita
uma divisão clara entre espaço público e espaço privado, sendo este aquele em que o
indivíduo pode agir sem a interferência do governo ou do Estado.
Esta mesma pergunta também demarca o terreno liberal em que pousa a
liberdade negativa, e esta noção de liberdade foi e vem sendo utilizada como ponto de
diferenciação entre os liberais e os republicanos. O maior exemplo disto talvez seja a
classificação de Habermas, já citada.
Mas voltando a Berlin, ele não filia a noção de liberdade positiva,
entendendo esta como auto-governo, como própria de uma linhagem republicana de
pensamento. Ao contrário, como autores filiados a uma concepção de liberdade positiva,
ele coloca nomes que tradicionalmente não se encontram nas mesmas correntes do
pensamento político: Kant, Hegel, Rousseau e Marx, entre outros. E o problema desta
concepção é, como já dito, que afasta qualquer ideal de pluralismo político, na medida em
que leva a uma determinação de como os indivíduos devem agir. Em última instância, esta
concepção de liberdade, segundo Berlin, levada como ideal, poderia fundamentar formas
totalitárias de governo. É diante disto que Berlin elege a liberdade negativa como a meta
adequada para qualquer formulação institucional política. Segundo esta meta, na
constituição de um governo, a preocupação deve ser, o tempo todo, responder: “até onde o
governo pode intervir na vida dos cidadãos”.
Philip Pettit procura formular a sua noção de liberdade como não-
dominação como uma alternativa à dicotomia proposta por Berlin. Segundo Pettit, a
liberdade como não-dominação não se trata da liberdade positiva de que fala Berlin e se
diferencia da liberdade negativa que Pettit trata como não-interferência porque, como
29
afirma Pettit, há casos em que há interferência, mas não há dominação, e há casos em que
há dominação, mas não há interferência.
A diferenciação entre os dois conceitos também se dá pela observação de
que há dominação sem interferência. E aí o exemplo de Pettit é o de que alguém poder ter
não interferência na vida privada, mas vive sob um regime de escravidão. Aqui, de fato, há
uma diferença entre os dois conceitos. Convém ressaltar, ainda, que o próprio Berlin admite
que ter a liberdade negativa como meta é compatível com tipos de governo não exatamente
democráticos, e que para garantir a forma democrática de governo é necessário colocar
outros ideais como meta, além da liberdade negativa, como justiça ou igualdade.
Então, parece que a diferença significativa entre os conceitos de
liberdade como não-dominação de Pettit e o de liberdade negativa, de Berlin, é
exemplificada pelos casos em que não há interferência, mas há dominação, casos em que é
necessário um conceito de liberdade que vá além do de liberdade negativa. No entanto, é
preciso dizer que, se a liberdade como não-dominação é mais ampla que a liberdade
negativa formulada por Berlin, a concepção de Pettit também tem caráter “negativo”, na
medida em que não afirma a representação e a defesa de interesses “positivos” de todos os
membros de uma comunidade política.
Não pretendemos debater aqui se a dicotomia proposta por Berlin faz
ou não sentido, embora tenda a concordar com os dois autores republicanos citados. A
razão para invocá-los aqui não é tanto para isso, mas para demonstrar que a adoção de uma
determinada concepção de liberdade como linha de divisão entre o pensamento político dito
republicano e o liberal, embora seja bastante difundida e a mais comumente adotada, é no
mínimo polêmica, e não é ela que será adotada aqui, nem a sua problematização será nosso
foco.
Como afirma Honohan (2002, p. 5), a tradição republicana não se
constitui de um único fio, mas de várias cordas entrelaçadas e para reconstituir essas cordas
se trata muito mais de uma questão de filiação do que de estabelecer uma genealogia de
cada uma delas
13
. Neste sentido, todas as obras aqui analisadas reivindicam a condição de
13
“This tradition [a civic republican tradition] is constituted not of a single thread but of multiple
interwoven strands. While certain strands persist throughout, some are present in the early phases and become
thinner with time; others are introduced at certain points and come to take increasing weight. In any case
30
republicanas. Mais do que isso, comentadores dessas obras, em suas interpretações, e até
para reforçar a sua própria tradição, classificam-nas como republicanas. E nesta tese elas
são assim classificadas pelas razões que passamos a expor.
Maurizio Viroli, em um pequeno livro de divulgação,
Republicanism, em que descreve as características que demarcariam esta corrente de
pensamento, diferenciando-a não somente da corrente liberal, mas também da comunitária,
oferece algumas observações que convém serem colocadas aqui. A primeira definição, feita
de modo relativamente simples, é a seguinte: o pensamento republicano é um corpo teórico
político comprometido em sustentar o princípio da liberdade e explicar quais meios
políticos e legais para obtê-la e preservá-la
14
. Nesta caracterização, o que deve ser
destacado é que a liberdade não é um atributo já existente, não importa de que ente, cidadão
ou comunidade política, que deva ser preservado. Ela deve ser obtida. Teríamos, então, a
liberdade como não-dominação de que fala Pettit? A definição e o texto de Viroli sugerem
que não apenas. No campo do pensamento republicano, trata-se de pensar quais os
mecanismos legais que preservarão essa liberdade, por meio, sim, de evitar a não-
dominação, mas também de desenvolver nos cidadãos algo que mantenha a comunidade
coesa, que por muito tempo no pensamento republicano foi a virtude cívica. Trata-se,
portanto, de voltar a atenção para a fundação e constante modificação do corpo político de
modo que os cidadãos sejam livres e possam manter a sua liberdade e a do próprio corpo
político. Liberdade, aqui, é um atributo não só dos cidadãos, mas do próprio corpo político.
E, na constituição desse atributo, a existência de leis destinadas para esse fim é
imprescindível para o seu êxito. Note-se que não se trata de um fetichismo da lei, ou
mesmo de colocá-la como a fonte emanadora de direitos invioláveis dos cidadãos em face
do Estado, mas sim de um conjunto de regras constitutivas da própria vida cívica e,
conseqüentemente, da liberdade dos cidadãos. Estas leis não servem apenas de limites, e
sua legitimidade vem da própria vida pública. Segundo Lefort, no republicanismo.
“Não há nenhum fetichismo da virtude, da educação, da lei. Estas ganham
sentido somente numa sociedade efervescente em que a definição do bem,
traditions are always constituted or reconstituted in retrospect, and are as much a matter of affiliation as of
genetic descent.” (HONOHAN, 2002, p. 5).
14
“Republican thought: a distintive body of political theory comitted to sustaining the principle of liberty and
to explaining the political and legal means to attain and preserve it” (VIROLI, 2002a, p.3).
31
da justiça, da legitimidade sempre estão em questão e na qual os
imperativos de conservação se combinam com os imperativos da
inovação”. (LEFORT, 1999, p. 196)
Voltando à definição feita por Viroli, sua caracterização é bastante
ampla e situa o republicanismo como uma espécie de berço de onde teriam surgido as
demais correntes de pensamento político. Segundo ele, as teorias políticas liberal e
democrática são “províncias” do republicanismo, baseadas em sua forma clássica em dois
princípios, o rule of law e a soberania popular (VIROLI, 2002a, p. 7), e o patriotismo cívico
republicano teria contribuído para o aparecimento das democracias constitucionais
(VIROLI, 2002a, p.26).
Tal patriotismo cívico é utilizado por Viroli para diferenciar o
republicanismo de uma outra linha do pensamento político, que comumente é tida como
pertencente ao mesmo campo que ele, que é o comunitarismo. Segundo ele, o que
caracterizaria o comunitarismo é um nacionalismo antes que um patriotismo. De fato,
acompanha a trajetória do pensamento republicano aquilo que Claude Lefort chamou de
“cidadão-soldado” (LEFORT, 1999, p. 200), como exemplar da virtude cívica exigida pela
república, e está fortemente presente nas obras de Maquiavel e de Harrington. Ao contrário
disso, o comunitarismo define o patriotismo como algo que vai além de uma mera aceitação
comum da legitimidade de diversas culturas, sob um mesmo conjunto de leis. Segundo
Charles Taylor,
“temos de lembrar de que o patriotismo envolve mais do que princípios
morais convergentes; trata-se de uma adesão comum a uma comunidade
histórica particular. O cultivo e o apoio a isso têm de ser uma meta comum,
sendo mais do que o simples consenso quanto à regra de direito. Dito de
outro modo, o patriotismo envolve, além de valores convergentes, um amor
ao particular. O apoio a esse conjunto histórico específico de instituições e
formas é e tem de ser um fim comum socialmente endossado” (TAYLOR,
2000, p. 214).
A esta idéia de patriotismo, que Viroli denomina de nacionalista, este autor contrapõe a
idéia de “patriotismo constitucional”, que seria própria do republicanismo:
“Unlike nationalism, constitutional patriotism separates the political ideal
of the nation of citizens from the conception of the people as a pre-political
community of language and culture. This form of patriotism recognizes the
full legitimacy and moral worth of different forms of life and is commited
to the inclusion of different cultures within the framework of the republic.”
(VIROLI, 1995, p. 170).
32
Esta capacidade de incluir as distintas culturas nos limites da
república está associada à idéia de igualdade, que Viroli afirma estar presente no
republicanismo:
“Republican equality does not consist solely of equaly of civil and political
rights; it also affirms the need to ensure all citizens the social, economic
and cultural conditions to allow them to live with dignity and self-respect.
The masters of modern republicanism left us two particularly valuable
considerations on this theme of social equality. The first, formulated by
Machiavelli, is that poverty should not translate into either exclusion from
public honors or a loss of repute. The second, wich we owe to Rousseau, is
that in a republic worthy of the name no one should be so poor as to be
forced to sell himself (or to sell his loyalty and obedience to powerful and
wealthy citizens, becoming servant or a client) or so rich as to able to
purchase, with favors, the obedience of other citizens.” (VIROLI, 2002a, p.
66).
A despeito da defensabilidade normativa desta demarcação de Viroli
acerca da igualdade republicana, e provavelmente se aqui eu me colocasse como uma
autora filiada à corrente republicana, eu tenderia a adotá-la, esta caracterização deixaria de
fora boa parte das obras escolhidas para o desenvolvimento desta tese, e talvez não
corresponda às caracterizações feitas pelos autores que reivindicam o pertencimento a essa
corrente de pensamento atualmente. Assim, por se adequar melhor, na medida em que
descreve de forma mais próxima as características das proposições dos autores
republicanos, inclusive os escolhidos nesta tese, adoto a definição feita por Viroli
enunciada anteriormente.
Esta conduta aqui adotada pode parecer metodologicamente suspeita,
pois se trata de escolher uma definição que se adeque a uma escolha já anteriormente feita,
mas na verdade não se trata bem disso. Os autores escolhidos nesta tese são “classificados”
por uns e por outros como republicanos, embora a definição do que seja republicano nem
sempre esteja presente nos textos daqueles que os classificam. Ao examinar diversos textos,
identifiquei uma linha que poderia ser perseguida, e então teríamos de encontrar o que
haveria em comum em autores tão diferentes. Este ponto em comum é o que está sendo
buscado aqui, e Viroli parece ter oferecido a principal referência. Além disso, as obras dos
autores aqui estudados influenciaram o pensamento político sem que eles estivessem
preocupados acerca do pertencimento a esta ou aquela corrente política. Além disso, a
33
própria corrente republicana foi sendo levantada e de uma certa forma retomada a partir do
século XX, e uma das principais vertentes desta valorização emerge justamente de uma
reinterpretação da fundação constitucional dos Estados Unidos da América.
Joyce Aplleby aponta que foi a partir das obras de Bernard Baylin,
The Ideological Origins of The American Revolution (1967), Gordon Wood, The Creation
of The American Republic 1776-1787 (1969) e, mais tarde, de J.G.A. Pocock, The
Machiavellian Moment (1975), que as influências republicanas sobre o debate
constitucional norte-americano, e notadamente os autores dos Artigos Federalistas, que o
republicanismo ganhou força na teoria política contemporânea. Segundo a historiadora, o
reconhecimento desta influência teve o mérito de oferecer alguma contrapartida ao até
então inquestionável prevalecimento da corrente liberal no campo de influências sobre o
lado “vencedor” daquele debate constitucional. No entanto, ela aponta também que, a partir
desse reconhecimento, passou-se, então, a enxergar o republicanismo em todo lugar
15
, o
que de uma certa forma está presente na tentativa de Viroli descrita anteriormente de tornar
o republicanismo uma espécie de ancestral comum de todas as vertentes não autoritárias ou
totalitárias de teorias políticas. De fato, ao lado de uma releitura da fundação constitucional
americana, o republicanismo emerge no século XX também retomando suas vertentes
florentina e inglesa. Daí Claude Lefort falar em três sedes do republicanismo: a florentina, a
inglesa e a americana (LEFORT, 1999), as três resgatadas por Pocock e Skinner.
Nesta tese, estas três “sedes” do republicanismo estão representadas
por Maquiavel, com os Discorsi, como representante da sede florentina, Harrington, com
seu Oceana, como representante da sede inglesa, e os Federalistas, com seus Artigos, como
representante da sede americana. Desta última, Montesquieu pode ser considerado também
um representante, embora seja um autor francês.
A estas três sedes, somamos a contraposição de duas linhagens: uma
norte-americana e outra francesa. Nessa contraposição, a norte-americana valorizaria a
divisão de poderes e a pluralidade a ela associada como elemento da estabilidade nacional
(MANIN, 1994), enquanto a francesa colocaria nas idéias de sufrágio universal e de
15
“The recent discovery of republicanism as the reigning social theory of eighteenth-century America has
produced a reaction among historians akin to the response of chemists to a new element. Once have been
identified, it can be found everywhere.” (APPLEBY, 1985, p. 461).
34
soberania a unidade expressa através de uma vontade e interesse nacionais únicos
16
(ROSANVALLON, 1994). É importante ressalvar que, embora estejamos diferenciando
estas duas linhagens de pensamento, isto não significa que a contraposição soberania x
separação de poderes não estivesse presente no interior de cada um dos debates americano
e francês no final do século XVIII. A diferença dessas linhagens se dá principalmente
porque nos processos políticos norte-americano e francês cada uma dessas idéias foi a que
predominou nas formas políticas adotadas após as Revoluções Americana e Francesa. E
neste sentido deve ser apontado que os problemas a serem solucionados em cada uma
dessas Revoluções eram diferentes: nos Estados Unidos da América havia um conjunto de
Estados pré-existentes que não pretendiam perder totalmente o poder, e na França o
problema era a divisão rígida de classes
17
. Neste aspecto, Rosanvallon (1994) aponta que
as idéias de sufrágio universal e de unidade nacional presentes na Revolução Francesa
teriam trazido problemas para a aplicação das instituições democráticas instauradas após a
Revolução. Neste aspecto, os norte-americanos teriam sido mais bem sucedidos, pois não
tiveram de enfrentar a contradição entre instituições que significavam a divisão de poderes
e ideais de unidade e soberania nacionais. Reforçando esta linha de interpretação, John
16
A importância de Rousseau aqui é clara. Para ele, há correspondência entre interesses e conflitos, mas
ambos devem ficar de fora da constituição republicana, que deve ter como referência o interesse coletivo que
informa a vontade geral. Estes são traduzidos pelo legislador nas leis que fundam a república. Tal posição,
ainda, está de acordo com a concepção de soberania defendida por Rousseau. Se a soberania, segundo ele, é
una, indivisível e tem como titular o povo, não faz sentido que este seja visto como algo composto por grupos
com interesses conflitantes (CARDOSO, 2004).
17
Isto é demonstrado em Que é o Terceiro Estado. Sieyes, analisando a constituição sócio-política da
sociedade francesa no cenário da revolução de 1789, afirma não haver uma vontade comum na França e que
há ali a presença de interesses bastante opostos (SIEYES, pp. 92-3). Para ele, a mudança proposta para a
sociedade francesa de então deveria partir do terceiro estado, pois “a razão e a justiça estão a seu lado”
(SIEYES, p. 130). Com isto, percebe-se que Sieyes postula que os conflitos existentes na sociedade francesa
por ele analisada devam ser levados em consideração na elaboração da constituição nacional. Sobre as
possíveis cisões que isto acarretaria, Sieyes afirma claramente que o terceiro estado representa a maioria e
que “a maioria não se separa do todo” (p. 137) e que só os setores minoritários poderiam provocar cisões,
que, por serem provocadas por uma minoria, não comprometeriam a unidade da nação, necessária para a
identificação do interesse coletivo. Além disso, para Sieyes a representatividade dos três estados da sociedade
francesa na Assembléia Constituinte deveria ser de acordo com o número que eles representam no conjunto
de cidadãos. Assim, os representantes reunidos na Assembléia Constituinte poderiam representar o interesse
comum da nação. Para Sieyes, portanto, o conflito deve ser considerado na constituição de uma comunidade
política, para que seja proporcionada a devida representatividade dos setores em conflito. No entanto, para
ele o conflito, associado aos interesses dos grupos em disputa, não é constitutivo da comunidade política
como o era para Maquiavel. Os conflitos devem ser considerados para que seja caracterizada uma maioria, e,
de acordo com esta, ser identificado o interesse comum. Ou, em outras palavras, os conflitos devem ser
considerados para que se tenha uma representatividade justa e, com isto, uma constituição mais adequada à
situação nacional. Esta constituição seria elaborada por homens que fossem capazes de agir politicamente de
acordo com o interesse e a vontade comuns.
35
Dunn (DUNN, 1994), destaca que nem Montesquieu nem Madison apresentaram, em suas
formulações, uma concepção substantiva de bem comum, deixando, portanto, para os
cidadãos a possibilidade de um pluralismo em relação à busca de um bem comunitário.
Esta observação de John Dunn a respeito de Montesquieu e de Madison fará com que, no
momento em que tratarmos especificamente dos Federalistas, tenhamos de verificar se essa
obra se enquadra mesmo no ramo republicano de pensamento político, mas por ora,
admitamos apenas que sim, sem mais ressalvas.
Joyce Aplleby situa Skinner e Pocock, em The Foundations of
Modern Political Thought, e Machiavellian Moment, respectivamente, como exemplares de
uma certa “abordagem ideológica”
18
. Sobre este tipo de abordagem, ela aponta o problema
de que, ao conferir a um “sistema de comunicação específico historicamente” a atribuição
de expressar uma única “estrutura de sentido”, está afastada qualquer discussão acerca das
visões parciais, e conflitivas, de mundo que podem estar presentes numa determinada
sociedade, em um determinado momento histórico. Por causa disso, afirma a historiadora
americana:
“Consensus not conflict is the seedbed for triunphant ideologies. What
serves society serves its members, and ideologies prevail and endure
because they are widely believed, not because they issue from a dominant
class. In recent years ethnomethodologists have denied the existence of a
single cultural perspective operating in societies, but the indispensability of
the concept seems to have overriden doubts about its empirical base. This
tendency to view ideologies as single overarching belief systems has been
strengthened by the sociologists´preoccupation with societal forms. If
societies are most crucially affected by their being traditional or modern,
then differences with a given society seem by comparison to be trivial.
Ideology as a cultural system has thus offered deliverance from the
mechanical association of belief and self-interest without encumbering its
users in a contemporary ideological dispute.” (APPLEBY, 1992, pp. 134-
135).
De fato, as análises de Pocock sempre constituem generalizações a
respeito de determinados períodos históricos que são seu objeto de análise, e talvez saia daí
o poder de sua análise. A despeito deste poder, sua interpretação parte sempre de uma
sociedade, num determinado momento histórico, vista como um todo, uma estrutura que
18
Para classificar esta abordagem como ideológica, Appleby parte do seguinte conceito de ideologia: “a
structure of meaning expressed through a historically specific system of communication” (APPLEBY, 1992,
p. 125).
36
pode ser classificada e definida conforme sua ideologia (a predominante). No caso se
Skinner talvez a afirmação de Aplleby seja de demonstração um pouco mais difícil, mas
admitamos que a historiadora esteja correta para que avancemos em sua argumentação.
A observação de Aplleby de que o consenso, e não o conflito, seria o
solo em que fecundaria o republicanismo contemporâneo de Pocock e Skinner chama a
atenção para uma pergunta que nos deve ser feita: Por que tratar de conflito e interesse no
pensamento político republicano, e não em qualquer outra corrente de pensamento?
Justamente porque o pensamento republicano é comumente associado à idéia de virtude
cívica como atributo dos cidadãos, que se traduziria em uma certa capacidade ou aptidão do
cidadão de agir de acordo com o interesse público, ou bem comum. Neste sentido, as
relações de solidariedade deveriam ser fortalecidas, e os cidadãos se moveriam por
patriotismo, como aponta Viroli, e já indicado aqui, ou para alcançar a liberdade que só é
possível de ser atingida agindo em conjunto com outros cidadãos, como sugere Hannah
Arendt, ou para agir de acordo com a vontade geral, como defenderia Rousseau.
Contrapondo o republicanismo com a corrente democrática de
pensamento político, Cícero Araújo identifica dois ideais normativos que predominam,
cada um por sua vez, nos conceitos de república e democracia. Segundo ele, predominaria
no conceito de república o ideal do civismo, pelo qual são identificadas as pessoas que
estão aptas a integrar a comunidade política; na democracia predominaria o ideal do
plebeísmo, que procura incluir o maior número de pessoas atingidas pelas decisões da
comunidade política nessa mesma comunidade. Outra distinção entre democracia e
república é feita por Sergio Cardoso, que, analisando a obra de Rousseau, identifica na
república o esforço pela formação de uma vontade coletiva:
“Desse modo, enquanto a substancialização do povo introduz nas
democracias uma inclinação fortemente plebiscitária (pretende-se, aí,
constantemente, ouvir o povo, fazê-lo manifestar-se, prestar-lhe contas,
submeter-se a seus juízos, por tudo reduzir-se à apuração da sua vontade),
nas repúblicas, trata-se sempre de construir esta vontade como
autenticamente coletiva, de ‘empreender a instituição de um povo’
(Rousseau, 1943, II, 7, p. 180), de persuadi-lo e soldá-lo pela autoridade
das leis, enfim, emendá-lo e produzir sua vontade comum pela experiência
da civilidade política” (CARDOSO, 2004, p. 59).
37
Ora, se a República é o lugar da virtude cívica, do patriotismo, do
civismo, da formação da vontade coletiva, parece aí haver pouco espaço para o conflito. O
espaço para o conflito estaria reservado no corpo teórico do liberalismo, onde os interesses
são o que movem os agentes, que, por causa desse movimento, entram em conflito; ou,
nesta segunda contraposição, na teoria democrática, que busca estender cada vez mais os
limites da comunidade política. E, para estender os limites, como vamos ver, admitir os
conflitos e abarcá-los no espaço político é um instrumento bastante conveniente. No
entanto, este afastamento do conflito não estava presente no primeiro autor republicano que
será analisado nesta tese: Maquiavel.
E este é um aspecto apontado de forma recorrente pelos defensores
de uma corrente republicana de pensamento político. John Maynor (2000), ao tratar dos
dilemas enfrentados pelo republicanismo, destaca que este é “uma doutrina dinâmica, que
abarca diversidade e diferença”. Além disso, baseando sua análise na obra republicana de
Maquiavel, afirma que para os republicanos a discórdia interna (conflito), embora possa
ameaçar a liberdade da comunidade política, é também um componente crucial desta. Com
isto, Maynor aponta a necessidade de que a comunidade política possibilite aos cidadãos
que exerçam sua cidadania, manifestando seus apetites, humores e interesses e, ao mesmo
tempo, possam exercer sua virtude cívica buscando não dominar os interesses dos demais.
Se os interesses estão presentes livremente numa comunidade política, tal como aponta
Maquiavel, uma população tumultuosa é uma decorrência lógica de uma cidadania ativa e
da virtude cívica. Por possibilitar a manifestação da cidadania ativa de cada membro da
comunidade política, o republicanismo, segundo Maynor, é muito mais bem sucedido ao
lidar com o pluralismo do que o liberalismo, na medida em que, além de possibilitar a
manifestação da pluralidade de interesses e visões de mundo, pode também garantir a
tolerância, na medida em que veda a dominação neste sentido, Maynor compartilha a
concepção de liberdade de Pettit , de todos os possíveis interesses e visões. Como já
afirmado no capítulo anterior, conflito e pluralismo conviveriam plenamente no espaço
político republicano. Tais cidadania ativa e virtude cívica seriam promovidas pelas
instituições republicanas e, dentre estas, a atividade legislativa assume papel primordial. É
por meio dela que o estado republicano possibilita e garante aos cidadãos a oportunidade de
participarem da vida política, sem sofrerem a ameaça de dominação.
38
Neste mesmo tom, Joyce Appleby aponta que o ressurgimento do
republicanismo no século XX, nas obras já apontadas aqui, oferece ainda uma alternativa
ao liberalismo na medida em que abre um terreno para a discussão de questões atinentes ao
reino público, o que significa discutir muitas questões marginalizadas pelo liberalismo,
como a virtude cívica e a participação dos cidadãos na vida pública. No contexto específico
norte-americano, apresenta uma alternativa também ao socialismo, porque a este não pode
ser atribuída uma origem no debate coincidente com a própria fundação da república norte-
americana. O republicanismo, tal como o propuseram Gordon Wood e Bernard Baylin, sim.
Estas defesas do republicanismo servem como possíveis respostas à
pergunta feita por Céline Spector: não seria a oposição entre liberalismo e republicanismo
artificial? (SPECTOR, 2003, p. 52) No entanto, temos que insistir um pouco mais na
resposta a ela, ainda que não obtenhamos uma resposta definitiva. Como já dito aqui,
autores como Montesquieu e os Federalistas são responsáveis em grande parte pela forma
institucional que as democracias liberais assumiram, independentemente de serem
republicanos ou não. Aliás, a própria idéia de governo misto, ou equilibrado, que se
encontra presente no pensamento republicano antigo, com Políbio, muito tem a ver com a
idéia de divisão de poderes que se encontra presente nas democracias contemporâneas de
inspiração liberal. Isto certamente justifica a idéia defendida por Viroli de que o
republicanismo seria um berço das demais correntes de pensamento político, mas não
contribui muito para diferenciá-lo.
Assim sendo, embora esta questão possa ser novamente levantada a
cada obra que vamos estudar, talvez caiba aqui enunciar alguns aspectos que se encontrem
presentes nelas.
O primeiro inequívoco é o da fundação de uma comunidade política
e a preocupação de como gerar instituições que garantam e viabilizem um certo conjunto de
liberdades, ainda que seu conteúdo varie de autor para autor. Portanto, o desenho das
instituições é algo central neste tipo de pensamento. A eleição deste aspecto como
caracterizador do pensamento republicano contraria uma observação feita por Honohan de
que a comunidade republicana de cidadãos é marcada mais por um senso de lealdade como
fraternidade e amizade do que um acordo acerca de instituições e procedimentos
(HONOHAN, 2002, p. 6). O próprio Honohan observa, em alguns autores analisados por
39
ele, e também analisados aqui (Maquiavel e Montesquieu) a importância das instituições
em suas obras. No entanto, provavelmente por ter em vista uma vertente mais
comunitarista, representada em seu texto por Charles Taylor, Honohan frisou mais os
sentimentos comunitários do que as instituições republicanas. Esta não será nossa opção
aqui. O comunitarismo, pelas razões que já expusemos, está sendo considerado nesta tese
como uma corrente distinta da republicana. Além disso, nos autores aqui citados, a emersão
dos sentimentos de solidariedade ou fraternidade dependerá do conjunto de instituições
adotado no momento da fundação.
O segundo é uma preocupação a respeito do que deve orientar a vida
pública dos cidadãos, mais do que estabelecer os limites da ação da comunidade política
sobre a vida privada de cada cidadão ou grupo de cidadãos. Ou seja, embora haja variação
de autor para autor, há uma vida política pública comum que deve ser preservada e
valorizada. Isto pode ser verificado em todas as obras aqui analisadas e, embora a vida
individual e privada seja mais valorizada em dois deles (Federalistas e Montesquieu), a
fundação e a preservação da comunidade política sempre desponta como o foco das
instituições por eles propostas.
Este segundo se desdobra no terceiro, que é o de que a comunidade
política, por meio de suas instituições, e, mais uma vez variando em graus de autor para
autor, tem um papel de promotora dessa vida pública, ou seja, que ela (a vida pública) não
vai surgir pura e simplesmente da ação dos indivíduos. A ação dos indivíduos pura e
simplesmente também não será capaz de gerar o bem comum, a solidariedade, a vontade
geral, ou qualquer outro nome que se dê àquilo que se pretende e emerge da comunidade
política como uma espécie de terreno comum às disposições dos ind ivíduos e de objetivo
geral dessa mesma comunidade. Portanto, no terreno do republicanismo, há mais que um
agregado de indivíduos, e a comunidade política como um todo pode ser vista como algo de
estatura distinta desse mero agregado.
Feita esta breve resposta inicial, outra pergunta emerge: e por que só
essas obras? Por que não outras? A resposta imediata é a de que julgamos estas as mais
representativas, e acreditamos que a tese justificará nossa escolha. Como já dito, nossa
hipótese aqui é a de que, na trajetória do pensamento republicano, os Artigos Federalistas
se constituem num ponto de inflexão, que, dentre outras coisas, demarcaria a divisão de
40
águas entre uma trajetória propriamente republicana, e outra de cunho mais liberal-
democrático. As obras aqui escolhidas cumprem seu papel nessa estratégia, e atendem às
características que estabelecemos acima como marcantes do pensamento político
republicano.
Nosso campo republicano parece estar enredado, então, por uma
corda de três fios: a fundação da comunidade política; as instituições que definirão e
delimitarão essa mesma comunidade e o que chamaremos aqui apenas de bem comum,
para simplificar, mas que pode estar expresso nas diversas teorias de diversas formas,
como a vontade geral ou a solidariedade. É nas tranças e curvas dessa corda que
analisaremos nossas duas categorias centrais: conflito e interesse.
41
3. OS DISCURSOS REPUBLICANOS DE MAQUIAVEL: A GRANDEZA DA
POLÍTICA
O mundo. Eis alguém que ama
verdadeiramente o mundo.
Hannah Arendt, sobre Maquiavel
Feitas as definições que irão demarcar a nossa investigação e
delimitado o espaço em que elas estarão situadas, a primeira obra que iremos analisar nesta
tese são os Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, à qual nos referiremos a
partir de agora somente como Discursos. Os Discursos foram escritos entre 1513 e 1519
19
e neles Maquiavel não utiliza os termos conflito nem interesse. Já vimos que no período
em que Maquiavel escreve interesse não era um termo utilizado no vocabulário político. A
idéia de interesse aparece em Maquiavel, mas não com esse nome (HIRSCHMAN, 1978,
p. 45). São utilizados humores, paixões, apetites. Quanto ao conflito, os termos utilizados
são tumultos, desunião, dissensão, oposição e inimizade. A despeito de tudo isto, como
veremos, pode-se falar em conflito de interesses na obra de Maquiavel, e os seus
comentadores têm feito isso sem grandes reservas.
Atualmente, não há dúvidas de que Maquiavel seja um autor
republicano (HULLIUNG, 1983, 234; VIROLI, 1998, p.115). No Brasil, esse
reconhecimento foi consolidado com o livro Maquiavel Republicano de Newton Bignotto,
publicado em 1991. Também entre o debate especializado sobre a obra de Maquiavel, é
praticamente consenso que se trata de um autor que, em sua obra, principalmente a
republicana, dá ao conflito um caráter positivo (BONADEO, 1973, p. 39; POCOCK, 2003,
p. 196; SKINNER, 1999, p. 306; MANSFIELD, 2001, p. 51; VIROLI, 1998, p. 126;
BIGNOTTO, 1991, p. 95; McCORMICK, 2001 e 2003). O que varia é a interpretação
sobre o alcance disso. Como argumentos em direção à relativização desse caráter positivo,
comumente são utilizados outros pontos importantes na obra de Maquiavel, como a
valorização das instituições como mecanismo de canalização desses conflitos, a defesa
19
A data em que Maquiavel teria escrito os Discursos já foi assunto de controvérsia acadêmica. Estou me
baseando aqui no artigo de Felix Gilbert “The composition and structure of Machiavelli´s Discorsi”, Journal
of the History of Ideas, vol. 14, n.1, (jan. 1953), pp. 136-156, em que utiliza diversos fatos narrados na obra
pra justificar essas datas.
42
feita por nosso autor do projeto expansionista romano, ou até mesmo outros textos seus,
em particular História de Florença.
Em favor da afirmação sem restrições do mesmo caráter positivo, o
principal argumento são as observações feitas por Maquiavel em relação à integração do
povo na comunidade política, as quais, combinadas com a idéia positiva de conflito,
poderia caracterizar Maquiavel como um democrata bastante radical até mesmo para os
referenciais atuais e, neste caso, sua teoria representaria um avanço em relação a muitas
teorias contemporâneas de democracia (McCORMICK, 2001; 2003).
Procuraremos passar ao menos pelas balizas principais desse
debate e, nesse percurso, apresentar nossa própria posição. Mas, antes de qualquer
comentador, vamos ao texto do próprio Maquiavel e, na articulação das idéias que o autor
faz, inseriremos as diversas posições dos comentadores.
3.1 O conflito
Ao analisar os Discursos, se nosso foco é o conflito de interesses,
há um capítulo que devemos analisar antes de qualquer outro, que é o Quarto do Livro
Primeiro. Nesse capítulo , encontramos o seguinte título: “A desunião entre o povo e o
Senado foi a causa da grandeza e da liberdade da república romana” (“Che la disunione
della Plebe e del Senato romano fece libera e potente quella republica”). Sobre a relação
entre povo e Senado, Maquiavel observa
20
:
Examinemos, porém, as outras particularidades de Roma. Os que criticam
as contínuas dissensões entre os aristocratas e o povo parecem desaprovar
justamente as causas que asseguraram fosse conservada a liberdade de
Roma, prestando mais atenção aos gritos e rumores provocados por tais
dissensões do que aos seus efeitos salutares. Não querem perceber que há
em todos os governos duas fontes de oposição: os interesses do povo e os
da classe aristocrática. Todas as leis para proteger a liberdade nascem de
sua desunião, como prova o que aconteceu em Roma (I, 4, p. 31)
21
.
20
As passagens citadas de Maquiavel são todas dos Discursos, e serão assim referenciadas: o algarismo
romano se refere ao nº do livro, o algarismo arábico ao número do capítulo, seguidos do número da página da
edição utilizada. Somente uma única citação será de História de Florença, que será identificada por HF,
seguido da página utilizada.
21
No original: “Ma vegnamo agli altri particulari di quella città. Io dico che coloro che dannono i tumulti
intra i Nobili e la Plebe mi pare che biasimino quelle cose che furono prima causa del tenere libera Roma, e
43
Aqui, temos que fazer algumas observações: Maquiavel não utiliza o termo interesse, mas
“humores” (umori). No entanto, neste caso, podemos falar, sim, de interesses, pois, embora
a idéia de “humor” possa ter uma conotação subjetiva, a maneira como Maquiavel utiliza
neste capítulo se encaixa em nossa definição de interesse, na medida em que está se
referindo a modos de manifestação em público de uma posição adotada quanto aos meios e
fins a serem utilizados naquele cenário político. Como Maquiavel deixa bem claro: o povo
quer apenas não ser oprimido, e os ricos querem oprimir. Bom, esta observação já
evidencia também que estes dois humores ou, nos nossos termos, interesses, são
conflitivos. Uns estão interessados em oprimir, outros em não ser oprimidos. Aí está
presente a incompatibilidade de que falamos quando tratamos do conceito de conflito. Não
é possível que os dois interesses sejam atendidos. Ou um, ou outro prevalecerá. Admitido o
conflito de interesses presente no texto de Maquiavel, vejamos o tratamento que lhe é
dado.
Na passagem citada, o conflito é uma idéia central e, mais do que
isso, positiva para a comunidade política, pois assegura a conservação de sua liberdade.
Essa conservação é possibilitada pelas leis que, por sua vez, emergem do mesmo conflito.
Esta valorização do conflito foi bastante destacada pelos comentadores
22
, e o destaque
varia conforme o sentido que cada um pretende dar para sua própria interpretação. Este
sentido normalmente está relacionado com outro aspecto que é a necessária inclusão do
povo (e de seus interesses) no interior da comunidade política para que se mantenha a
liberdade dessa mesma comunidade. Aliás, podemos dizer que a relação de implicação é ao
contrário. É necessário enfrentar os conflitos existentes na comunidade política para que o
povo seja incluído nessa mesma comunidade. Com isto, temos que a admissão do conflito
como algo positivo e a inclusão do povo na comunidade política são idéias relacionadas na
obra de Maquiavel.
che considerino più aromori e alle grida che di tali tumulti nascevano, che a´buoni effeti che quelli
partorivano; e che e´ non considerino come e´sono in ogni republica due umori diversi, quello del popolo e
quello de´ grandi; e come tutte le leggi che si fanno in favore della liberta, nascano dalla disunione loro, como
facilmente se può vedere essere seguinto in Roma” (MACHIAVELLI, 2000, p. 71).
22
Como já apontado anteriormente, ver: MANSFIELD, 2001, POCOCK,2003, BIGNOTTO,1991,
McCORMICK, 2001 e 2003, HULLIUNG, 1983.
44
A valorização do conflito é o fundamento teórico e até mesmo
“sociológico” para a defesa do governo misto proposto por Maquiavel sem muitas
explicações logo no capítulo II do Livro I. Se o governo misto é a mistura das diversas
formas de governo (monarquia, aristocracia e democracia), por meio das instituições do
consulado, do senado e do povo, esta forma é a que admite, em seu interior, que os
interesses opostos existentes na comunidade política possam se expressar e se tornar
públicos.
Além da defesa do governo misto, Maquiavel faz a defesa de outras
instituições que possibilitem a manifestação dos humores dos cidadãos, principalmente do
povo em relação aos nobres, como é o caso das denúncias públicas:
“é útil e necessário que as leis da república concedam à massa um meio
legítimo de manifestar a cólera que lhe possa inspirar um cidadão; quando
este meio regular é inexistente, ela recorre a meios extraordinários: e não
há dúvida de que estes últimos produzem males maiores do que os que se
poderia imputar aos primeiros.” (I, 7, p. 41).
Além de mecanismo de canalização das paixões, as instituições
voltadas para as demandas populares servem também de mecanismos de salvaguarda da
liberdade, em razão da maior estabilidade que o povo apresenta quando comparado aos
nobres:
“De fato, se considerarmos o objetivo da aristocracia e do povo,
perceberemos na primeira a sede do domínio; no segundo, o desejo de não
ser degradado portanto, uma vontade mais firme de viver em liberdade,
porque o povo pode bem menos do que os poderosos ter esperança de
usurpar a autoridade. Assim, se os plebeus têm o encargo de zelar pela
salvaguarda da liberdade, é razoável esperar que o cumpram com menos
avareza, e que, não podendo apropriar-se do poder, não permitam que
outros o façam”. (I, 5, p. 33)
Esta defesa do povo em relação aos nobres como o segmento mais
adequado para cuidar da conservação da comunidade política sugere que temos em
Maquiavel um defensor da supremacia popular, ou de uma democracia bastante radical.
Mas vejamos qual é a extensão dessa proposição ao longo dos Discursos.
45
3.1.1. Conflito e a participação do povo na comunidade política
A valorização do conflito e a inclusão do povo no interior da
comunidade política fez John McCormick ver em Maquiavel um verdadeiro defensor de
uma “democracia populista”. McCormick apresenta a sua tese em um artigo publicado em
2001 e convém expor aqui seus argumentos, pois nos permitem explorar bastante o alcance
da teoria de Maquiavel.
Com o propósito de contribuir no debate acerca da accountability
das elites na teoria democrática contemporânea, McCormick aponta que Maquiavel
apresentou, nos Discursos, mecanismos institucionais de controle das elites. Segundo ele,
Maquiavel reduziu o papel das elites (I, 5), ao conferir ao povo o papel de “guardião da
liberdade”, defendeu a existência de mecanismos de participação popular, ao propor as
denúncias públicas, condenando as calúnias, e reconheceu os benefícios da ação coletiva,
ao afirmar que o povo, coletivamente, por não querer ser dominado, decide melhor acerca
dos rumos da república e distribui melhor os cargos públicos (McCORMICK, 2001, p.
304). McCormick chega a afirmar que o governo misto proposto por Maquiavel é uma
mistura de “participação direta e representação popular”:
“we can think of the popular element within mixed government in
Machiavelli´s formulation as itself a mixture of direct participation and
popular representation, such that the people do make policy. Machiavelli
seems to read back into the early republic a more directly popular element
from its middle and late periods. In this way, he may exaggerate the
policymaking powers of the plebs. The fact that he seldom specifies
whether the assemblies of which he speaks are the wealthy-dominated
comitia or the exclusively plebeian concilium further blurs the issue.”
(McCORMICK, 2001, p. 334)
Os mecanismos de representação popular e participação direta
seriam, segundo McCormick, mecanismos de canalização de um comportamento “feroz”
do povo, reagindo às ameaças constantes de que sua liberdade seja violada pelas elites. Por
isto ele fala de um “ferocious populism” sugerido por Maquiavel.
De fato, Maquiavel apresenta defesas da sabedoria e da estabilidade
próprias do povo, bem como de diversos atributos deste em relação à capacidade de
defender e resguardar a liberdade da república. As passagens citadas por McCormick,
46
algumas delas já reproduzidas aqui, demonstram isso. No entanto, o pensamento de
Maquiavel não nos parece ser tão unívoco assim.
No capítulo Trigésimo Sétimo do Livro Primeiro, quando
Maquiavel apresenta os problemas enfrentados com a Lei Agrária em Roma, nosso autor
observa que não se pode passar por cima de cada um dos interesses conflitantes de forma
abrupta. Isto faria com que os conflitos sejam acirrados de um tal modo que as duas partes
passariam a utilizar mecanismos que ameaçam a liberdade da república, e podem inclusive
ocasionar a tirania. Portanto, na dinâmica do conflito, não há que se falar em uma das
partes, ainda que esta seja o povo, passar por cima da outra. A existência e convivência das
duas partes conflitivas é essencial para a manutenção da liberdade e para a própria
conservação da república. Isto é confirmado na seguinte passagem, em que Maquiavel
comenta a tirania do decenvirato romano e a relutância do Senado em realizar algum ato
que evitasse essa tirania e pudesse restaurar o seu próprio poder e o dos tribunos populares:
“Pode-se concluir desta passagem que esta infeliz tirania de Roma teve as
mesmas causas de quase todas as outras: o desejo ardente de liberdade por
parte do povo e o desejo não menos vivo que tinha a nobreza de dominá-
lo.
Quando esses dois partidos não conseguem chegar a um acordo para
estabelecer uma lei que proteja a liberdade, e um deles favorece um
cidadão, o monstro da tirania ergue sua cabeça”. (I, 40, p. 133)
Este acordo entre as partes conflitantes a que se refere Maquiavel
na passagem acima deve sempre ser feito de forma pública. Publicidade é uma idéia chave
no pensamento republicano de Maquiavel e parece ser esse o fio que indica o alcance que
pode ter o conflito para que ele seja considerado positivo. Isto porque, para Maquiavel, não
é qualquer conflito, ou qualquer disputa entre o povo e os nobres que possa ser considerada
positiva na vida de uma república. Os conflitos que não forem devidamente tornados
públicos por meio das instituições são conflitos facciosos que, ao contrário da grandeza,
levam à ruína da república:
"Se se trata de uma república, não há melhor meio de corromper os
cidadãos do que introduzir dissensões entre eles, governando uma cidade
dividida em facções, na qual cada partido emprega todos os recursos para
conseguir aliados.” (III, 27, p.382)
47
Neste sentido, Newton Bignotto comenta que o papel do Estado, na
obra de Maquiavel, é o de se opor, pela força de suas leis, à ação destruidora dos desejos
particularistas, e a sociedade justa, por sua vez, é aquela que é “capaz de encontrar uma
solução pública para o conflito de seus cidadãos” (BIGNOTTO, 1991, p. 95). Na busca
desta solução pública, há latente uma tensão entre o público e o privado, o comum e o
particular. Para que tal solução pública seja alcançada é necessário que os interesses se
manifestem não como interesses particulares ou facciosos, mas como aqueles que se
pretendem comuns. Neste aspecto, não importa se são interesses de origem popular ou
aristocrática, mas a vocação deles de se tornarem ou não públicos, ou seja, de serem
transparentes para informar os mecanismos de solução pública. Com tudo isto podemos
perceber que Maquiavel não defende a oposição de interesses, qualquer que ela seja.
Embora tenha tido o mérito de identificar e explorar a origem social dos conflitos
existentes na política republicana
23
, e de ter defendido, de forma bastante incisiva, a
inclusão do povo na comunidade política, não se pode dizer que Maquiavel defenda uma
espécie de “supremacia popular” nas decisões públicas. Diversos autores têm destacado
isso. Alfredo Bonadeo frisa a necessidade de que as instituições retratem algo além dos
simples interesses de cada grupo para que elas sejam estáveis
24
. Skinner apontou o quanto
as instituições, na obra de Maquiavel, vão além dos interesses de cada grupo para
promover o bem público. As leis, com isso, teriam um poder coercitivo sobre cada grupo,
fazendo com que as facções com seus interesses tenham que se acomodar às proposições
legais de interesse público (SKINNER, 1999, pp. 305-6). Maurizio Viroli, seguindo a linha
interpretativa de Skinner, defende que a república de Maquiavel é marcada por um
compromisso com o ideal de uma república bem-ordenada, ou seja, aquela que, por meio
de instituições que asseguram a cada grupo seu lugar próprio, submete-se ao rule of law.
Esta idéia de boa ordem certamente não tem a ver com a ausência de conflitos ou de alguns
23
Afirmo isso baseada na seguinte observação de Alfredo Bonadeo: “Machiavelli did assign positive value to
conflicts only under particular circumstances, as it will be seen; but he was indeed the first thinker to have
become sharply aware of the political and social origins and implications of division and conflict in the
context of Roman and Florentine history.” (BONADEO, 1973, pp. 39-40). Este tema será retomado mais
tarde, quando abordarmos o tipo de interesse de que fala Maquiavel.
24
“Since the laws and institutions of a city divided by factions represent only the interests of particular men
and factions, these laws and institutions are inherently unstable, for they are bound to vary as factions rise and
fall.” (BONADEO, 1973, p. 51)
48
tumultos no interior da república
25
, mas de um compromisso de cada componente da vida
política com o princípios da vida política e civil (vivere político; vivere civile) (VIROLI,
1998, p. 116).
Esse entendimento se reforça se levarmos em consideração a
seguinte passagem, não dos Discursos, mas de História de Florença:
"As graves e naturais inimizades que existem entre as pessoas do povo e
os nobres, causadas porque estes querem mandar e aqueles não querem
obedecer, são os motivos de todos os males que surgem nas cidades,
porque desta diversidade de humores nutrem-se todas as outras coisas que
perturbam as repúblicas. Foi isso o que manteve Roma desunida; isso, se
lícito for igualar pequenas e grandes coisas, manteve Florença dividida;
diversos foram os efeitos resultantes numa e noutra cidade, convenha-se,
porque as inimizades que no início surgiram em Roma entre o povo e os
nobres definiram-se discutindo, e em Florença, combatendo; as de Roma
com a lei, as de Florença, com a morte e com o exílio de muitos cidadãos
terminaram; as de Roma, sempre a virtude militar aumentaram, as de
Florença, de todo apagaram-na; as de Roma, de uma igualdade entre os
cidadãos a uma grandíssima desigualdade conduziram, as de Florença, de
uma desigualdade a uma assombrosa igualdade reconduziram". (HF, p.
136)
Como se vê, o que parece diferenciar o conflito “positivo” do
conflito “negativo” no interior das repúblicas é justamente a maneira como está
relacionado com as instituições. Além disso, parece estar indicado que, para Maquiavel, a
igualdade alcançada não é algo que seja marca da grandeza de uma república, embora a
existência de alguma igualdade seja um requisito necessário para a constituição das
repúblicas. Neste sentido, veja-se que para Maquiavel a igualdade não é algo a ser obtido
com a política, mas algo já existente, que pode ou não ser estimulado e cultivado, como
podemos ver nas seguintes passagens:
“Portanto, que o fundador de uma república a institua onde haja, ou possa
haver, ampla igualdade; que se prefira criar uma monarquia onde exista a
desigualdade. Do contrário, nascerá um Estado desproporcionado no seu
conjunto, sem condições para uma longa vida.” (I, 55, p. 174)
25
Neste sentido, é exemplar a seguinte passagem de Maquiavel: “Se os tribunos devem sua origem à
desordem, esta desordem merece encômios, pois o povo, desta forma, assegurou a participação no governo (I,
4, p. 32).
49
“O Estado que não precisa dos súditos para empreendimentos gloriosos
pode tratá-los ao sabor dos seus caprichos, como já observamos. Se
quiser, contudo, alcançar os mesmos êxitos de Roma, não deverá criar
distinções no seu seio. Sendo o argumento válido no que toca à posição
social, resolve a questão relativa à idade, que se segue necessariamente.”
(I, 60, p. 185)
McCormick não chega a tratar dessa última questão aqui levantada
sobre a igualdade, que seria fundamental para demonstrar o alegado anti-elitismo de
Maquiavel, mas enfrenta as demais objeções em um outro artigo seu, de 2003:
“Machiavelli against Republicanism: On the Cambridge School´s Guicciardinian
Moments”. Neste artigo, o autor, de maneira bastante incisiva, até mesmo raivosa, se
insurge contra aquela que ele denomina escola de Cambridge (Pocock, Skinner, Pettit,
Viroli) e diz que a interpretação desses autores está aquém do alcance anti-elitista da obra
de Maquiavel. McCormick afirma que a teoria de Maquiavel é mais igualitária do que a
tradição republicana invocada por esses autores e na qual incluem Maquiavel (p. 617). Os
argumentos são pontuais para cada comentador, e não serão discorridos aqui. Talvez
McCormick tenha razão ao atribuir a esses autores uma interpretação “moderada” de
Maquiavel, na medida em que valoriza demais o papel das instituições em “neutralizar” o
conflito. No entanto, acreditamos que McCormick exagera no caráter “popular” que
atribui à república maquiaveliana. Vamos desenvolver este argumento.
Para defender sua república popular maquiaveliana, McCormick
questiona a legitimidade de que se coloquem no mesmo plano as diversas obras de
Maquiavel. Segundo ele, cada uma delas tem um objetivo retórico específico e, portanto,
devem ser analisadas cada uma em seu contexto. Assim, História de Florença, dedicada ao
Papa Clemente VII (Giulio de Médici) não poderia ser analisada da mesma forma que os
Discursos, obra destinada a uma audiência muito mais ampla. De fato, nosso autor
florentino dedica seu texto a dois de seus amigos, Buondelmonti e Rucellai, de origem
popular. Ocorre que, admitindo que McCormick tenha razão e Skinner compartilharia
desse mesmo entendimento (SKINNER, 1969) -, é necessário observar que nos próprios
Discursos é possível verificar que Maquiavel é contrário a qualquer tipo de prevalecimento
do interesse, ou das paixões, de uma das partes que compõem a estrutura social da
república. Qualquer situação em que prevaleçam interesses parciais pode levar à ruína da
república, conforme já indicamos em outras passagens. Se levarmos adiante a análise da
50
retórica sugerida por McCormick, veremos que a própria defesa do povo pode ser
interpretada nesse registro como um recurso de convencimento a respeito da idéia de que o
povo deva estar ainda mais incluído na vida da república, em oposição à idéia dominante
de que uma república aristocrática seria o modelo a ser seguido. Esta parece ser a
interpretação sugerida por Bignotto:
“Não há no pensamento de Maquiavel, no entanto, nenhuma idealização
do povo. O que é criticado violentamente é a tese aristocrática, a
esperança dos 'ottimati' florentinos de fundar uma nova Veneza,
excluindo inteiramente o povo”. (BIGNOTTO, 1991, p. 109)
E por que isso? A partir do que se depreende do texto, pelas
características da república que Maquiavel pretende ver fundada em Florença:
“Assim, se alguém quiser fundar uma nova república, deverá decidir se o
seu objetivo é como o de Roma, aumentar o império e o seu poder, ou ao
contrário, mantê-los limitados dentro de justos limites. No primeiro caso,
seria preciso organizá-la como Roma, deixando as desordens e dissensões
gerais seguirem seu curso da maneira que pareça menos perigosa; sem
uma população importante, bem armada, nenhuma república poderá
jamais crescer” . (I, VI, 39)
As opções a Roma que Maquiavel tem em vista nesta passagem são
Esparta e Veneza, um exemplo antigo e outro contemporâneo de república para nosso
autor. Ambas não tinham como objetivo crescer e expandir-se. Portanto, poderiam
preservar seu caráter atistocrático e desenvolver sua vida política sem se preocupar com a
inclusão de cidadãos e com sua incorporação a um exército numeroso. No entanto,
“uma cidade que pretende adquirir vasto império precisa empregar toda a
sua indústria para desenvolver a população: sem uma população
numerosa, nenhuma cidade poderá jamais engrandecer-se”. (II, III, 203).
Esta última passagem nos indica uma outra noção muito importante
na obra de Maquiavel como um todo: a de grandeza. No caso dos Discursos, ela está
associada, sem dúvida, à expansão da república, como a passagem acima indica, mas não
somente a ela. Vejamos.
51
3.1.2 Conflito, grandeza e expansão
A noção de grandeza é bastante forte na obra de Maquiavel e nos
Discursos ela ocupa um lugar central
26
. É de grandeza que Maquiavel está falando quando
elege Roma como exemplo de república. E a grandeza, quando aplicada a Roma, nos leva
quase que intuitivamente à idéia de expansão e esta ao Capítulo Sexto do Livro Primeiro
dos Discursos. A expansão romana, para Maquiavel, somente foi possível por haver,
naquela república, um grande número de pessoas compondo o exército, ou seja, foi porque
o povo estava integrado ao exército, que então se tornou numeroso, que a expansão foi
possível. Para ter esse exército numeroso, com o povo integrado à política, torna-se
necessário enfrentar os conflitos que envolvem os interesses do povo e os demais existentes
no interior da república. É isso o que Maquiavel parece querer dizer quando afirma:
“se se quiser um povo guerreiro e numeroso, que estenda o domínio do
Estado, será necessário imprimir-lhe um caráter tal que o tornará difícil
de governar; se se quer restringi-lo dentro de limites estreitos, ou mantê-
lo desarmado, a fim de melhor governá-lo, ele não poderá conservar suas
conquistas, ou se tornará tão covarde que será presa fácil do primeiro
agressor” (I, 6, p. 38-39).
Outra opção que não um exército formado por pessoas do povo
seria um exército formado por soldados contratados, um exército de mercenários. Mas estes
soldados não teriam o patriotismo necessário para formar um exército corajoso e
destemido. O patriotismo, como já vimos no capítulo 2 desta tese, é um elemento precioso
no campo teórico republicano e, na obra de Maquiavel, ocupa um lugar importante mesmo
em O Príncipe. É ele uma espécie de cimento que faz com que as comunidades políticas se
tornem mais coesas e, sejam elas repúblicas ou principados, possam sobreviver às
dissensões e durar. Além disso, Maquiavel defende que se crie numa república um treino
permanente para a guerra, pois isso não somente tem efeitos positivos para o próprio
exército, como para a vida civil na república. Neste sentido, deve-se amenizar os efeitos
perniciosos que pode ter um período de paz numa república:
26
Ao analisar a obra de Maquiavel Skinner observa que os Discursos não trata apenas das repúblicas, mas da
grandeza das cidades, enquanto O Príncipe cuida dos conselhos ao governante (SKINNER, 1988, p. 51).
52
“Se refletirmos sobre os remédios que podem ser aplicados a tal situação,
lembraremos dois: o primeiro é manter os cidadãos na pobreza, para que a
riqueza, sem virtudes, não possa corromper; o segundo é orientar para a
guerra todas as instituições de homens capacitados, como fez Roma nos
primeiros tempos da sua existência. O costume de manter sempre um
exército em campanha alimentava sem cessar a coragem dos cidadãos;
não se podia deixar de atribuir aos melhores o tratamento devido, porque,
se isto acontecesse por engano ou por experiência o resultado seria
uma tal desordem, e traria tais perigos, que se preferia retornar logo ao
bom caminho.” (III, 16, p. 354)
A virtude militar e a capacidade de expansão sem dúvida são
aspectos da grandeza romana destacada e valorizada por Maquiavel, mas tal grandeza está
associada também ao caráter institucional da república romana, como podemos ver nas
seguintes passagens:
“Se nunca
existiu outra república que tivesse feito conquistas iguais às de
Roma, isto se deve a que nenhuma outra teve, desde o início, instituições
tão apropriadas a este fim. Foi à coragem dos seus soldados que Roma
deveu as conquistas; mas foi à sua sabedoria, ‘à sua conduta e ao caráter
especial que lhe imprimiu seu fundador que deveu a conservação dessas
conquistas” (II, 1, p.193)
“Não vou negar que a sorte e a disciplina tenham contribuído para o poder
em Roma; mas não se pode esquecer que uma excelente disciplina é a
conseqüência necessária de leis apropriadas, e que em toda parte onde
estas reinam, a sorte, por sua vez, não tarda a brilhar.” (I, 4, p. 31)
Como se vê, a grandeza romana, tida por Maquiavel como
exemplar, parece apresentar dois aspectos: um expansionista e outro institucional. Há um
terceiro aspecto, menos explícito, que fica mais claro se pensarmos os Discursos em
conjunto com o Príncipe, e que chamaremos aqui de “fenomenológico”. Este terceiro
aspecto foi valorizado em sua forma mais acentuada por Hannah Arendt. Ele diz respeito à
glória conferida pelos atos políticos, tanto ao ator político como à comunidade política
como um todo. Esta valorização está presente no ensaio de Arendt “Que é autoridade?”,
que faz parte da coletânea Entre o passado e o futuro, mas se encontra de forma mais
explícita em suas notas de aula sobre Maquiavel (ARENDT, 2002, p. 300), quando coloca a
grandeza como critério último do Estado concebido por Maquiavel. Mas essa grandeza, que
pode ser entendida como glória, é algo obtido também pelo indivíduo/cidadão:
53
“O principal conceito da ação política é a glória, que é alcançada pela
fortuna e pela virtù: a glória para um povo ou um príncipe ou quem quer
que esteja envolvido nos negócios mundanos. A glória brilha doxa
[aparência, louvor], aparece, é vista e se faz ver. O príncipe realiza
grandes empresas pela glória eterna e a glória presente. A fama é o
prolongamento da glória, é a glória tornada durável. A glória brilha por si
mesma graças a todas as grandes ações e empreendimentos.” (ARENDT,
2002, 300-1)
Esta definição de glória e a valorização da política como aparência
são o grande ponto em comum que Arendt tem com Maquiavel, e a faz ter desse autor tão
destoante do seu modo de ver a política uma das interpretações mais luminosas. No
Maquiavel de Hannah Arendt, glória, fama e grandeza estão relacionadas com os grandes
feitos e realizações que entram para a história. Nesta medida, estão relacionados, também,
com a capacidade dos atores de deixarem de lado seus interesses pessoais mais mesquinhos
e agir em torno de feitos e causas que deixem sua marca no mundo. No entanto, trata-se de
uma interpretação parcial. Lembremos que Hannah Arendt não é exatamente uma intérprete
de Maquiavel, mas alguém que formula sua própria teoria política, que será devidamente
analisada mais adiante. Mas podemos adiantar que esta sua interpretação não leva em
consideração dois pontos: o conflito e a expansão. Deixemos Arendt de lado, pois
retornaremos a ela nesta tese, e voltemos aos aspectos institucional e expansionista da
grandeza maquiaveliana.
Como eles se relacionam? Para responder isto, temos de levar em
consideração a situação política em que se encontra a república antes de cada elaboração
institucional. Como já vimos, essa elaboração, no caso exemplar romano, passa pelo
enfrentamento dos conflitos existentes no interior da república. A existência de conflitos,
ou seja, a manifestação pública de interesses opostos, por si só, já apresenta um ganho para
a república, pois cada um dos interesses (ou paixões) em questão freia o seu oposto e assim,
contém seus excessos. Enfim, é da manifestação de cada parte oposta que a outra pode ser
freada. Deste conflito entre os segmentos de cidadãos podem surgir instituições voltadas
para o bem comum e que incorporam o povo à comunidade política, que por sua vez
possibilitam a formação de grandes exércitos e a expansão da república.
Esta última relação fez Mark Hulliung afirmar que o conflito social,
para Maquiavel, é funcional não meramente porque ele possibilita a existência de freios e
54
contrapesos que asseguram a liberdade, mas também porque oferece combustível para a
engrenagem da guerra, e para a tendência da república à grandeza (HULLIUNG, 1983, p.
26). A interpretação de Hulliung é bastante inclinada para um lado “imperialista” de
Maquiavel e logo no começo de seu livro Citizen Machiavelli, chama atenção para esse
tema, que ele julga ter sido esquecido na interpretação contemporânea dada ao autor
florentino e que havia sido valorizado por Harrington. Hulliung afasta a importância dada à
retórica, criticando toda a linha de interpretação feita desenvolvida por Pocock e Skinner e
frisa bastante o lado de Maquiavel voltado para a glória e a grandeza, não só dos cidadãos,
mas das comunidades políticas.
Em favor dos argumentos de Hulliung, está a “classificação” feita
por Maquiavel, entre as repúblicas que querem crescer e as que não o querem, e as
primeiras são as que devem conferir ao povo a atribuição de guardião da liberdade:
“seria difícil decidir a quem confiar a guarda da liberdade, pois não se
pode determinar com clareza que espécie de homem é mais nociva numa
república: a dos que desejam adquirir o que não possuem ou a dos que só
querem conservar as vantagens já alcançadas. É possível que um exame
aprofundado nos leve à seguinte conclusão: ou se trata de uma república
que quer adquirir um império como Roma, por exemplo ou de uma
república que tem como fim exclusivo a sua própria conservação. No
primeiro caso, é preciso fazer como se fez em Roma; no segundo, pode-se
imitar Esparta e Veneza” (I, 5, p. 34).
Como se vê nesta passagem, o que diferencia Roma das demais
repúblicas é sua vontade de adquirir um império. Se o intuito for somente a conservação
pode-se ter Esparta e Veneza como modelo. No entanto, como sabemos, Maquiavel elege
Roma como modelo. E, se a expansão era a sua marca, então pareceria possível concluir,
junto com Hulliung, que a expansão seja o grande objetivo para Maquiavel.
Pocock se opõe a esta interpretação de Hulliung em seu artigo
“Machiavelli in the Liberal Cosmos” de 1985, apontando que a visão de Hulliung de que
Maquiavel teria a conquista e a glória como seus únicos objetivos e toda a sua obra deva ser
lida com este propósito em vista é bastante extremada e constitui apenas uma parte da
teoria maquiaveliana. O que parece dar razão a Pocock é o fato de que a importância dada
por Maquiavel às instituições não parece ser apenas um acessório da conquista, embora
essa relação às vezes esteja presente. Talvez Hulliung esteja certo em colocar a grandeza
55
como o objetivo central de Maquiavel, como Hannah Arendt também o fez. Mas as duas
interpretações do que seja grandeza na obra de nosso autor talvez não se adequem ao que
está presente nos Discursos. Ela nem é somente expansão, como pretende Hulliung, nem é
só aparecimento em público e permanência na história, como formula Arendt. Ela é algo
mais, como passamos a verificar.
3.2. Interesse, liberdade e expansão
Curiosamente, na tentativa de definição do que seria a grandeza na
obra de Maquiavel, esteve até agora fora do centro de nossas preocupações um outro tema,
bastante caro ao nosso autor e a seus comentadores: a liberdade. E aqui temos de iniciar
nossa exposição enunciando que a liberdade, para Maquiavel, não é somente um atributo
dos cidadãos, mas também das comunidades políticas. E as repúblicas são as formas de
governo em que as comunidades políticas melhor podem ser livres. Maquiavel chega a
qualificar as repúblicas de Esparta e Veneza como livres, o que nos levaria a concluir que
liberdade não necessariamente está relacionada com expansão. O que podemos afirmar é
que a liberdade pode ser considerada o par oposto de corrupção, pois a ruína de uma
república, ou seja, a perda de sua liberdade, se dá quando fontes de corrupção emergem e
tomam conta da vida pública. “A liberdade é, portanto, a chave para a compreensão das
vitórias de uma cidade, mas também a causa da fraqueza daquelas que não a possuem”
(BIGNOTTO, 1991, p. 79). Ao longo dos Discursos, Maquiavel aponta uma série de
comportamentos que podem ser considerados fontes de corrupção: (i) a conspiração, que se
realiza sempre que um cidadão ou um grupo de cidadãos atenta contra alguma instituição
da república, o que acontece principalmente quando há mudança de regime e os que foram
prejudicados com a mudança tentam restituir as vantagens anteriores; (ii) as calúnias, que
são objeto de um capítulo específico dos Discursos (o oitavo), que consiste na denúncia,
privada, sem provas, de alguém por outrem, geralmente motivada por inveja, ódio ou algum
motivo faccioso; (iii) formação de lealdades privadas (ex.: poderio militar, aproveitamento
de ocupação de funções públicas), daí a necessidade de mandatos temporários, pois a
permanência por um longo tempo em funções públicas pode intensificar essas lealdades;
(iv) existência de cidadãos muito mais ricos que outros, na medida em que isto possibilita o
56
suborno de ocupantes de funções públicas e a “compra” dos mais pobres. Em todos estes
tipos de fontes de corrupção está presente o prevalecimento dos interesses particulares de
um cidadão ou de um grupo deles sobre o interesse público e sobre os mecanismos públicos
de manifestação de paixões, como é o caso das calúnias.
Alfredo Bonadeo formula uma definição de corrupção na obra de
Maquiavel que, se não é precisa, ao menos nos fornece elementos para estruturar a análise
desse tema:
“In Italy, and especially in Florence, corruption corresponded to bad
customs, vices, disrespect for the laws, the existence of factions and
absence of freedom and, of course, the disorderly government”
(BONADEO, 1973, p. 9).
Os vícios e maus hábitos a que se refere Bonadeo certamente não
são vícios morais. Sabemos que esta não é a preocupação de Maquiavel. São eles, sim,
comportamentos dos cidadãos que se dão tendo em vista unicamente o interesse privado e
que atentam contra a ordem e o bem comum. As calúnias são o exemplo mais bem acabado
disso. O desrespeito às leis é uma das causas fundamentais de corrupção, pois, como
veremos, as leis são o que possibilitam constituir e manter uma comunidade política livre e
cumprem papel fundamental nas repúblicas. A existência de facções está relacionada com a
corrupção, como vimos, por representar mecanismos de prevalecimento de interesses de
grupos e portanto, parciais, em relação aos interesses de toda a comunidade e ao bem
comum. A ausência de liberdade está relacionada com as formas de relações de dominação
no interior da república e o governo desordenado, obviamente, é aquele que é utilizado não
para o bem da comunidade, mas no interesse daqueles que ocupam seus cargos ou de
grupos favorecidos, o que pode ocorrer não só com os mecanismos de favorecimento
diretos deste ou daquele grupo de cidadãos, mas com decisões institucionais equivocadas,
que podem sê-lo principalmente quanto ao tempo. Decisões políticas, sejam elas quais
forem, devem ser tomadas no tempo certo. Isto pode ser demonstrado pela seguinte
passagem:
"para se conduzir adequadamente, sobretudo nas ações importantes, deve-
se atentar para as circunstâncias do momento, ajustando-se a elas. Os que,
por deliberação errônea ou inclinação natural, se afastam dos tempos em
57
que vivem, são geralmente infelizes, e condenados ao insucesso em seus
empreendimentos; o êxito coroa aqueles que se ajustam ao seu tempo.”
(III, 8, p.332)
De todos estes elementos, detenhamo-nos um pouco mais no
desrespeito às leis. As leis, que aqui serão tratadas como sinônimo de instituições, pois no
texto de Maquiavel não há distinção substantiva entre esses dois termos, têm um papel
crucial na constituição e conservação de uma república. Não é por acaso que nosso autor
começa os três livros em que se encontram divididos os Discursos observando a
necessidade de instituições adequadas para a vida de uma república. As instituições estão
relacionadas tanto com a liberdade como com a grandeza da república e, de uma certa
forma, elas são o mecanismo que possibilita, na equação política republicana, tomar
liberdade e grandeza como sinônimos.
A respeito das instituições, há algo em Maquiavel bastante presente
e que, de uma certa forma, marca sua obra. É a importância do momento da fundação da
república e de sua atualização institucional. A fundação de uma república envolve, em
primeiro lugar, a escolha de um território e a escolha de uma forma institucional que
inaugurará a comunidade política. Embora se tenha dois tipos de república (I, 2), um que
recebe de um só homem e de uma só vez toda a legislação (Esparta) e outra que recebe a
legislação gradualmente (Roma), o ato de fundação é sempre um ato solitário (I, 9) e
violento. “É necessário que um só homem imprima a forma e o espírito do qual depende a
organização do Estado” (I, 9). Esse ato deve ser feito não de acordo com os interesses
pessoais do legislador/fundador, mas de acordo com o interesse público, e pode utilizar
meios violentos para concentrar a autoridade necessária para o ato. É assim que Maquiavel
justifica o crime inicial que marca a fundação de Roma (a morte de Remo por Rômulo).
Escolhido o território, o foco passa a ser as instituições e este é o
objeto central de Maquiavel. A escolha das melhores instituições terá como critério
principal a conservação da comunidade política fundada. Em outras palavras, deverão ser
escolhidas aquelas instituições que me lhor contribuírem para a futura manutenção do
Estado. A escolha das instituições não se esgota neste momento fundacional, embora ele
seja extremamente importante. Como dito, no exemplo de Roma, as instituições foram
sendo estabelecidas gradualmente. Com isto, Maquiavel, absolutamente inovador, afirma
58
que a manutenção de uma comunidade política não depende apenas do ato de fundação e de
sua rememoração
27
, mas de uma constante atualização de seu espírito por meio de novas
instituições. Estas devem mudar, conforme a necessidade das circunstâncias. A fundação,
portanto, não se trata de um ato acabado, mas que deve ser permanentemente atualizado.
Daí Leo Strauss e Newton Bignotto (1991, p. 199), nele inspirado, utilizar a expressão
“fundação contínua”. Conclui-se, disso, que as instituições são necessárias não somente no
momento da fundação de uma república, mas devem ser os mecanismos para a sua própria
renovação, necessária para a conservação da república:
“Como falo aqui de entidades complexas, como as repúblicas e as
religiões, vale esclarecer que só são salutares as alterações que as fazem
renovar-se, retornando ao seu princípio. As entidades melhor constituídas,
cuja existência perdura mais longamente, são aquelas cujas instituições
lhes permitem renovar-se com maior freqüência, ou as que, por algum
infeliz acidente, passam por tal renovação.” (III, I, 301)
Se somarmos esta idéia de que as instituições são o mecanismo de
renovação da república e, portanto, o tempo todo têm de ser atualizadas, com a idéia de que
elas, numa república que pretende se expandir, devem ser capazes de canalizar as
paixões/humores/interesses em conflito numa república, tem-se que em Maquiavel as
instituições assumem um caráter radicalmente contingencial. Aliás, é possível dizer, que a
criatividade institucional de uma república é a sua virtu
28
, ou seja, aquilo que lhe dá
27
Para uma contextualização da inovação que esta perspectiva de Maquiavel significou para a época, ver
Pocock, que afirma ser esta a grande subversão da obra de nosso autor: “The legislator-prophet is an even
rarer figure in the Discorsi than in the Pricipe, because the legislator´s virtù is becoming less significant than
the social and educational processes he sets in motion, and he can thus afford to live in time and be a lesser
figure than Lycurgus or Moses. But in diminishing the role of the legislator, Machiavelli has diminished his
need of the Savonarolan doctrine that the establishment of the republic the prima forma must be the work
of Grace. If men do not need the superhuman in order to become citizens, but achieve citizenship in the
world of time and fortune, the earthly and heavenly cities have ceased once again to be identical; and this
again may be an ethical as well as a historical distinction. We are moving back to the point at which it is seen
that “states are not governed by paternosters”, and civic ends including the virtue of citizenship are
divorced from the ends of redemption. This is to be the most subversive suggestion contained in the Discorsi
more so, it may be well argued, than any to be found in Il Príncipe.” (POCOCK, 2003, pp. 193-4).
28
Ver: “para Maquiavel, o desenvolvimento da “virtù” implicava necessariamente a expansão, e que, assim, a
incompreensão da imutabilidade do mundo como possibilidade sempre da conquista não está em contradição
com suas análises da liberdade, ou mesmo com a criação de grandes impérios.” (BIGNOTTO, 1991, p. 210).
E a imutabilidade da possibilidade perene de conquista não parece estar em contradição, também, com a
contingencialidade da política.
59
condições de lidar com as diversas circunstâncias oferecidas pela fortuna
29
. Outra forma de
dizer isso é afirmar que as instituições, na obra de Maquiavel, têm um caráter
eminentemente político. Esta é uma característica marcante em sua obra, e talvez aquilo
que o coloque num lugar único na história do pensamento político, não somente
republicano. O caráter político conferido às instituições por Maquiavel certamente
compreende a relação entre lei e liberdade apontada por Skinner como característica do
pensamento republicano
30
, e que remonta à distinção entre liberdade positiva e liberdade
negativa que descrevemos anteriormente, no Capítulo 2 desta tese. No entanto, esse caráter
político vai além do conteúdo “positivo” da liberdade conferida pela lei, em Maquiavel. Em
primeiro lugar, essa permanente atualização que as instituições sofrem e dá às repúblicas os
instrumentos necessários para sua conservação foge à idéia de uma comunidade política
ideal, construída no momento de fundação e que reuniria, nesse momento, os elementos
necessários para se constituir de forma bem-ordenada e duradoura
31
. Em segundo lugar e,
mais importante, ao serem formuladas a partir do conflito, as instituições ganham uma
densidade que tornam o seu caráter político e social mais profundo do que simplesmente
29
Não abordaremos aqui o conceito de virtù de Maquiavel, nem mesmo quando significa atributo de uma
cidade. No entanto, julgamos interessante destacar aqui uma passagem de Felix Gilbert, em que fala da virtù
como uma espécie de espírito que uma comunidade política possui, que não se confunde com a soma da
virtude de seus cidadãos: “Machiavelli´s concept of ‘virtù’ postulates the existence of coherence among the
institutions of a political society. Moreover, in its widest sense his concept of virtù implies that certain
fundamental elements of strength and vitality have to be present in any well-organized society regardless of
its particular form of government. Some forms of government in Machiavelli´s opinion it was a popular
government might be superior to others, but none could function without virtù. Details of Machiavelli´s
concept of virtù might seem quaint and contradictory, but his concept was eminently fruitful for it contais the
suggestion that in every well- organized society a spiritual element pervades all its members and institutions
tying them together in a dynamic unit which is more than a summation of its constituent parts. By separating
politics from other human concerns Machiavelli made one contribution to the gênesis of modern idea of the
state; his concept of virtù represent another”. (GILBERT, 1965, p. 180)
30
“The account the republican writers give, however, of the relationship between law and liberty stands in
strong contrast with the more familiar account to be found in contractarian political thought. To Hobbes, for
example, or to Locke, the law preserve our liberty essencially by coercing other people. It prevents them from
interfering with my acknowledged rights, helps me to draw around myself a circle within which they may o
ttresspass, and prevents me at the same time from interfering with their freedom in just the same way. To a
theorist such as Machiavelli, by contrast, the law preserves our liberty not merely by coercing others, but also
by directly coercing each one of us into acting in a particular way. The law is also used, that is, to force us out
of our habitual patterns of self-interested behaviour, to force us into discharging the full range of our civic
duties, and thereby to ensure that the free state on which our own liberty depends is itself maintained free of
servitude.” (SKINNER, 1993, p. 305)
31
Neste aspecto, ver: “É pela ação presente, pela criação de meios extraordinários, que uma república afronta
os ataques do tempo. É da mistura entre a ação criativa e a constituição que nascem os poderes de resistência
à corrupção. Maquiavel convida assim os republicanos a exprimir em termos legais o que o tempo os obrigará
de qualquer maneira a fazer.” (BIGNOTTO, 1991, p. 101).
60
constituir um conjunto de regras que, se obedecidas, poderão estruturar uma república livre
e duradoura. Essa densidade, da maneira como proposta por Maquiavel, não é algo
corriqueiro no pensamento político. Vejamos.
Antes de verificarmos a densidade do tratamento dado por nosso
autor às instituições, convém observar que esta separação entre social e político que
acabamos de sugerir não é uma proposta normativa de análise nossa, nem mesmo é
apresentada por Maquiavel. No entanto, como mais tarde, nos Federalistas e,
principalmente, em Hannah Arendt, haverá uma cisão entre esses campos, do ponto de vista
analítico é possível e conveniente que façamos essa separação para que seja possível
diferenciar o tratamento dado por Maquiavel às instituições e o tratamento que será dado
posteriormente.
Quando Maquiavel fala que as instituições devem resultar do
conflito entre os interesses opostos existentes no interior da república, ele está falando,
como vimos, de as instituições se constituírem como mecanismo de soluções públicas
(BIGNOTTO, 1991) para os problemas enfrentados na vida política da república. Como já
apontado no item 3.1.1, soluções públicas, aqui, devem ser vistas como uma oposição a
tudo o que tem em vista apenas o atendimento de um interesse particular, seja por meio de
privilégios, ou por meio de mecanismos não-públicos de obtenção dos benefícios de um
governo.
O fato de Maquiavel ter as instituições como mecanismos de
soluções públicas para os conflitos não significa dizer que ele seja contra a manifestação
dos interesses existentes na sociedade. Ao contrário, como já sugerimos, e gostaríamos de
deixar explícito, a manifestação dos interesses opostos existentes na comunidade política é
necessária justamente para que o conflito se torne público e possa ser fonte de instituições
adequadas. Um comentador que destacou, além da importância do conflito, a do interesse
no pensamento de Maquiavel, de forma incisiva e bastante competente, foi Kent Brudney,
que observou que os cidadãos republicanos de Maquiavel não são motivados por noções
abstratas de bem comum ou de responsabilidade pública, mas por interesses privados, que
ele chama de interesses “de classe” (BRUDNEY, 1984, p. 511)
32
. A observação de
32
Nas palavras de Brudney: “Aside from threats to them from a foreign power and aside from a willingness
to share governmental authority with the opposing class, Machiavelli´s republican citizens were not
61
Brudney tem algumas implicações bastante importantes para o entendimento da concepção
de república formulada por Maquiavel. A primeira delas é a de que o cidadão
maquiaveliano não necessita ser alguém que seja capaz de, a todo tempo, abrir mão de seus
interesses em nome de um interesse público. O cidadão da republica maquiaveliana é
interessado. Isto de uma certa forma afasta uma das críticas ao pensamento republicano por
ser muito “exigente” em relação aos cidadãos, na medida em que tem como ponto principal
a defesa do interesse público ou do bem comum
33
. A outra conseqüência, complementar à
primeira é a de que os interesses não são quaisquer deles, mas somente aqueles que têm
algum eco coletivo, ou que seja socialmente reconhecido. Em outras palavras, não se trata
de qualquer interesse individual, mas daquele que seja compartilhado por um grupo que
tenha identidade “de classe” e que pretenda manifestá-los e submetê-los à discussão,
avaliação e disputa publicamente. São esses interesses passíveis de serem canalizados por
meio de mecanismos públicos de solução. Segundo Brudney, esses interesses não seriam
facciosos, e contribuiriam para uma vida política mais virtuosa e mais bem ordenada (p.
514).
Esta análise de Brudney tem especial importância para esta tese
porque ela qualifica o interesse presente nos Discursos, permitindo que exploremos melhor
a relação entre interesse e conflito na obra de Maquiavel. O próprio Brudney não chega a
afirmar isso, mas podemos dizer, a partir de suas observações e daquelas feitas por Georg
Simmel sobre o conflito em geral, que o fato de o interesse ter tal qualificação na obra de
Maquiavel está relacionado com a valorização do conflito dada pelo autor. Façamos uma
breve digressão por Simmel.
Em seu artigo Conflito, Simmel aponta o poder de coesão que o
conflito tem sobre a estrutura das partes que se encontram em conflito (SIMMEL, 1964,
especialmente pp. 87 e 99). Com isto, embora do ponto de vista da sociedade como um
todo o conflito importe em alguma divisão, pois se caracteriza por divergências duais ou
antagônicas, ele ao mesmo tempo importa numa unificação no interior de cada uma dessas
frequently animated by abstract notions of public responsibility and the common good. They were more
private (if we construe private as comprehending class interest) and less public (if we construe public as
acting in common with all citizens) than Shumer would have us believe". (BRUDNEY, 1984, p. 511) S.M.
Shumer á um comentador que lê Maquiavel sob lentes "arendtianas" e criticado por Brudney.
62
partes, constituindo um forte elemento de coesão social. Quando cada uma das partes se
encontra em conflito ela tem de se organizar e de deixar claro seu interesse, para que possa,
na disputa com a parte antagônica, prevalecer socialmente em relação a ela. Ao organizar
cada uma das partes, o conflito acaba por operar uma organização da própria disputa que se
dará publicamente, tornando mais fácil a identificação do que de realmente relevante está
em questão.
Ora, quando Brudney afirma que na obra de Maquiavel há uma
defesa de que os cidadãos manifestem seus interesses de forma coletiva para que se tenha
uma melhor ordem na manifestação pública desses interesses, podemos dizer, inspirados
em Simmel, que isto está plenamente de acordo com a valorização do conflito feita por
Maquiavel, e reconhecida por muitos comentadores. Em outras palavras, e sem
desvalorizar as observações feitas por Brudney, ao contrário, reforçando-as, podemos dizer
que se lermos a valorização do conflito feita por Maquiavel com o olhar sociológico
sugerido por Simmel, isso somente poderia importar na defesa da manifestação de
interesses coletivos socialmente reconhecidos numa comunidade política.
Com isto, podemos dizer que a interpretação de Brudney sobre a
obra de Maquiavel tem o mérito de lançar luz sobre os aspectos mais sociológicos de seu
trabalho, efeito este de uma certa forma pleiteado por McCormick, mas de uma forma mais
apelativa e, no nosso entender, menos precisa e fecunda. Talvez o Maquiavel de Brudney
já não seja mais muito fiel ao Maquiavel do século XVI, mas sua leitura certamente abre
portas para um tratamento sociológico-político do conflito.
Levando adiante, a interpretação de Brudney como nossa e
adicionando a ela algumas observações sobre o conflito, podemos dizer que os interesses
manifestados pelos cidadãos nos Discursos, são interesses coletivos que, na medida em que
se opõem, se apresentam em conflito e, com isto, possibilitam uma organização da vida
pública. É isto que viabilizará, em nosso entender, o papel das instituições de dar uma
solução pública para esses conflitos.
A capacidade de gerar soluções públicas para o conflito de
interesses é o que marca a liberdade das repúblicas vocacionadas para a expansão. Nestas
33
Refiro-me aqui à crítica feita por Habermas em Direito e democracia: entre faticidade e validade, quando o
autor formula o seu modelo de democracia, em oposição aos modelos liberal e republicano. (HABERMAS,
2003, v. II, pp. 10-25)
63
repúblicas, sua grandeza está em expandir-se e, ao mesmo tempo, conseguir a liberdade
viabilizada pelas suas instituições. Esta liberdade somente se realiza na medida em que as
instituições, ou leis, no vocabulário de Maquiavel, conseguem prover as tais soluções
públicas de que falamos, demandadas a partir de conflitos de interesses coletivos dentro da
comunidade política. O conflito solucionado publicamente tem um papel integrador da
comunidade, tanto do ponto de vista da coesão entre os grupos, como do ponto de vista da
inclusão do maior número de pessoas possível dentro dos assuntos da república. Este efeito
unificador tem papel importantíssimo na realização dos projetos de expansão de uma
república.
Maquiavel não explora de forma explícita tais potenciais
unificadores. Exigir isso do autor seria requerer que ele fosse, além de tudo, um grande
sociólogo (!). Mas tudo indica que devamos admitir que sua relação entre conflito e
expansão vá além de uma estratégia para aumentar o número de soldados do exército e,
assim, incrementar a engrenagem da máquina de guerra que é uma república em expansão,
como pretendeu demonstrar Hulliung.
A capacidade de solucionar conflitos de interesses coletivamente
organizados e socialmente reconhecidos dá à república uma capacidade de se bem-ordenar
que lhe confere uma capacidade de permanência, que, por sua vez, também lhe confere
grandeza. Podemos dizer que as leis, na medida em que integram e unificam a comunidade
política a partir das soluções por elas viabilizadas, têm um papel central na grandeza de
uma república: são elas que possibilitam sua expansão, e sua permanência. Elas, nesta
medida, buscam canalizar as duas paixões presentes em toda república: expandir-se e
manter-se livre (I, 29, p. 100). Se somarmos a isso que as leis já cumpriram um papel
fundamental na fundação de uma república, temos que, nos Discursos, a vida de uma
república e suas leis estão completamente emaranhadas. Esta capacidade de bem-ordenar já
foi apontada por Maurizio Viroli e já citada aqui, mas sem que tenha sido dado destaque
para o caráter unificador do conflito.
Com isso, podemos caracterizar melhor o caráter das leis na teoria
política republicana de Maquiavel. Elas têm um potencial constitutivo evidente e inegável
elas constituem a república e sua liberdade -, mas mais do que isso, elas têm uma
densidade política que, sob a perspectiva de um leitor atual que se encontra sob o pesado
64
legado do liberalismo e de sua concepção de lei, talvez seja a marca do pensamento
republicano de nosso autor. E essa densidade não se dá apenas pelo fato de serem resultado
da contingência, e da capacidade dos homens de se adequarem às circunstâncias, como
tantas vezes Maquiavel aponta no texto (III, VIII, 332; III, IX, 336), mas por serem as leis
resultado do conflito de interesses coletivos manifestados publicamente na comunidade
política. Lembremos que a densidade vem do conflito e do tipo de interesses que estão em
disputa em seu interior. Esta densidade política dada às leis será única talvez em todo o
pensamento político, e certamente nas obras estudadas nesta tese. Assim, se as leis têm, no
pensamento político republicano, um papel distinto do proposto pelo liberalismo, como
aponta Skinner, Maquiavel vai um pouco além da marca republicana, ao dar às leis um
caráter tão dinâmico e denso.
Acabamos de afirmar o potencial constitutivo das leis na
formulação republicana de Maquiavel. No entanto, devemos matizar esta afirmação. As leis
são formas públicas de solução dos conflitos existentes na república e, nessa medida, fontes
da liberdade dessa mesma república, mas não são “em si a origem da liberdade”. Elas são
fontes da liberdade na medida em que os segmentos em oposição na comunidade política
enxergam, nelas, a manifestação de seus “desejos” (BIGNOTTO, 1991, p. 106). Imaginar
que as leis, por elas somente, garantiriam a constituição da república livre seria retirar do
texto de Maquiavel justamente a densidade social de que falamos anteriormente. Seria
imaginar, também, que a república bem ordenada poderia surgir a partir da elaboração
inteligente e acurada de alguns sensíveis, ou, sendo mais exigente, extraordinários,
legisladores. Não. Ainda que a grandeza proposta por Maquiavel seja algo de uma certa
forma extraordinário, porque não são todas as repúblicas que conseguem se adequar às
contingências do tempo e suportar todas as ocasiões que se tornam fontes de corrupção, a
grandeza se origina da vida cotidiana e social da cidade, pois ela é, como tudo em
Maquiavel, contingencial e política. E a política, para Maquiavel,
“não é, pois, o espelho das decisões jurídicas ou da escolha voluntária das
formas constitucionais. Ela é o campo onde as forças sociais se batem e de
onde nasce a possibilidade da vida social. Não é, portanto, estranho que a
liberdade seja um problema em todas as formas de governo, uma vez que
65
ela nasce do desejo de não-opressão do povo, e do resultado das lutas que
ele desencadeia na 'polis'". (BIGNOTTO, 1991, p. 118)
34
.
Se é verdade que a liberdade é um problema de todas as formas de
governo na obra de Maquiavel, é verdade também que, para nosso autor, é nas repúblicas
que ela pode se realizar, na medida em que encontra nas instituições não só mecanismos de
evitar as causas de corrupção, mas também mecanismos de canalização dos interesses
opostos existentes na comunidade política, principalmente os do povo.
Com isto, vemos que é justamente a densidade que as leis têm na
obra de Maquiavel que impede que elas sejam os únicos elementos constitutivos da
comunidade política e de sua liberdade. São os elementos essenciais na fundação de
qualquer república, mas a grandeza e a liberdade desta dependerá da própria grandeza dos
conflitos sociais que, expressos e canalizados nas leis, podem dar vida livre e duradoura à
república.
Enfim, na república maquiaveliana, as leis são o mecanismo de
expressão e extravasamento dos conflitos de interesses. O conflito de interesses nos
Discursos de Maquiavel foi o nosso objeto neste capítulo. Deixemos claro agora o que
levaremos adiante para futuras comparações e análise em relação às demais obras que serão
abordadas.
3.3 O conflito de interesses republicano de Maquiavel
Ao longo deste capítulo, tentamos delimitar e qualificar o que seria
o conflito de interesses nos Discursos de Maquiavel. Vimos que não se tratava de qualquer
oposição de interesses, mas sim daquela em que os interesses são passíveis de serem
canalizados em mecanismos públicos de solução. Neste sentido, tais interesses deveriam ter
uma pretensão de se tornarem comuns e transparentes e, neste sentido, não serem facciosos,
nem secretos. Utilizamos as observações de Brudney para indicar que os conflitos
defendidos por Maquiavel são coletivos, ainda que ele não os tenha qualificado nesses
termos. Mas talvez ainda seja necessário deixar um pouco mais claro de que realmente se
34
Embora esta passagem esteja incluída em um capítulo sobre a liberdade em O Príncipe, julgamos que ela se
aplica perfeitamente aos Discursos, e parece que o próprio Bignotto pretendia, com ela, dar uma interpretação
66
trata esse conflito de interesses maquiaveliano, para que tenhamos bem definido o que
levaremos adiante nesta tese. Para isto, nesta seção não diremos nada novo, apenas, a partir
do que já foi argumentado anteriormente, sugerimos que a definição de conflito de
interesses está ancorada em algumas dicotomias que nos ajudarão. São elas:
privado/público; particular/comum; facção/coletividade. Vejamos como cada uma delas se
relaciona com nosso conflito de interesses.
3.3.1 O conflito público de interesses
Quando examinamos as fontes de corrupção indicadas por
Maquiavel vimos que elas sempre se constituem a partir de expedientes privados de
manifestação de interesses. Exemplo maior disso são as calúnias, às quais nosso autor opõe
as denúncias públicas. Mas poderíamos dizer que as calúnias também se dão publicamente.
Aliás, se elas não se derem publicamente, não se constituem como calúnias. Ocorre que,
como Maquiavel bem ressalta, as calúnias não são submetidas a contra-provas e não
utilizam expedientes transparentes e públicos no sentido de serem acessíveis a todos
para se manifestarem. Seu resultado a atribuição de algo pernicioso a alguém -, é
público, mas o ato que a provoca é privado e na maioria das vezes nem se sabe quem é seu
autor. Por isso as denúncias públicas são mecanismos apropriados de canalização da paixão
popular, pois, por meio delas, os denunciados podem, publicamente, defender-se e todos
saberem a autoria e a motivação da denúncia.
É claro que o mecanismo de denúncias públicas não é suficiente
para a canalização de todas as paixões existentes numa república, nem mesmo se constitui
no melhor mecanismo de solução pública de conflitos, mas sua caracterização nos ajuda a
entender o conflito de interesses de que estamos falando.
O conflito de interesses maquiaveliano deve ser manifestado
publicamente, ou seja, os segmentos que detêm os interesses opostos têm de ser
id entificados e, a partir do embate que se dá politicamente, a solução institucional, que por
sua vez também é pública, poderá ser encaminhada. Assim, temos que interesses
manifestados secretamente ou ardilosamente não estão aptos a se submeterem aos
geral à obra de Maquiavel.
67
mecanismos institucionais de solução e são, portanto, possíveis fontes de corrupção da
república. Os interesses em conflito que constituirão a fonte da liberdade por meio das
instituições são transparentes e públicos.
3.3.2 O caráter não particular do conflito de interesses
Uma das principais preocupações de Maquiavel na sua formulação
republicana é a formação, no interior da comunidade política, de um terreno comum, que
propicie a boa ordem e a unidade necessárias para a grandeza da república, inclusive em
seus projetos de expansão. Daí a importância que dá à religião e à educação, no Capítulo
Segundo, do Livro Segundo, que trata justamente da expansão da república. Esse terreno
comum é o que possibilita o compartilhamento de valores e, principalmente, o valor à pátria
e à liberdade, necessários para que os cidadãos defendam e preservem sua pátria.
Outra faceta desse terreno comum defendido por Maquiavel é a sua
condenação a quaisquer manifestação de interesses particulares no interior da república.
Neste sentido, mais um ponto do conflito de interesses maquiaveliano, fonte de instituições
duradouras e garantidor da liberdade é que ele nunca se encerra no terreno do particular,
mas sempre se destina ao comum. Tentemos dizer isso mais claramente.
Os interesses conflitantes vocacionados a serem alvos de soluções
institucionais não são nunca os interesses de pequenos grupos, que pretendam, de alguma
forma, obter algum tipo de distinção ou privilégio. Ao contrário, os interesses passíveis de
serem expressados institucionalmente são aqueles que, ainda que sejam defendidos por um
grupo e isso sempre ocorre, porque os interesses são sempre parciais -, tenham a
pretensão de se tornarem interesse de toda comunidade. Apenas para dar um exemplo, não
teria cabimento que um dos segmentos (povo ou aristocracia), interessado em obter
benefícios na nomeação de determinados cargos públicos, pretendesse ver o seu desejo
atendido por meio das instituições. Essa pretensão não tem vocação de se tornar comum,
pois ela é em sua essência particularista, na medida em que visa o privilégio de uma parte
dos cidadãos sobre os demais.
Com isto, temos a dizer que o conflito de que fala Maquiavel é de
interesses parciais, sim, mas que se pretendem comuns, e não almejam privilégios ou
benefícios que resultem no prevalecimento de um segmento sobre os demais.
68
3. 3. 3 O conflito de interesses coletivos
A última dicotomia facção/coletividade tem estreita relação com a
anterior, mas merece uma análise em separado. Podemos dizer que o conflito de interesses
defendido por Maquiavel é o de interesses coletivos. Quando dizemos coletivo, neste caso,
não estamos querendo dizer não-individual, como seria intuitivo supor, mas não-faccioso.
Façamos a distinção.
Interesse faccioso é todo aquele que, individual ou não, tem índole
facciosa, ou seja, de produzir na comunidade política uma separação ou cisão. Neste
sentido é que Maquiavel afirma que “os partidos criam as facções que dividem as cidades, e
originam a ruína dos Estados.” (I, VII, 42). Como se vê, o partido é uma coletividade, mas
produz facções. Quando, então, se tem uma coletividade que não produz facções?
Quando analisamos o texto de Brudney no item 3.2, vimos que ele
fala de interesses “de classe”. Tais interesses, os do povo e os dos aristocratas, apresentam
coesão interna nestes grupos, o que ocasiona o conflito e, mais do que isso, têm uma
identidade reconhecida publicamente e uma vocação de se tornarem comuns, e não são
apenas particulares, como distinguimos no item anterior. Assim, os interesses facciosos são
sempre particulares, embora não sejam individuais, enquanto os não facciosos, que estamos
chamando aqui de coletivos, se pretendem sempre comuns.
Com isto, poderia ser perguntado se é necessária esta última
distinção entre interesse faccioso e coletivo, tendo em vista a distinção feita entre interesse
comum e particular. Julgamos ser necessária para deixar claro que não é suficiente que os
interesses, para integrarem o conflito tal como defendido por Maquiavel, sejam não
individuais. Interesses não individuais podem ser facciosos e, nesta medida, particulares,
como qualquer outro interesse individual.
Portanto, o conflito de interesses de que fala Maquiavel é aquele
que se dá a partir de interesses coletivos e comuns, passíveis de serem expressados por
meio de mecanismos institucionais públicos e transparentes e que, nesta medida, se torna
elemento constitutivo da liberdade da república.
69
Maquiavel, em sua dedicatória nos Discursos anuncia que tratará
das coisas do mundo. Os interesses certamente são coisas do mundo, mas aqueles que
interessam a república livre e bem-ordenada de Maquiavel são aqueles vocacionados para
se manifestarem no mundo e dignos de permanecer nele ao menos por um breve tempo
por meio de sua expressão nas instituições. São esses interesses que configurarão o conflito
capaz de promover a grandeza da república livre em expansão.
70
4 OCEANA: A REPÚBLICA DE PROPRIETÁRIOS OU DOS INTERESSES PRÉ-
DELIMITADOS
- Consideras o amor a mais forte de
todas as paixões?
- Conheces outra mais forte?
- Sim, o interesse.
- Imagino que esse termo significa para ti
um amor privado de qualquer calor
animal.
- Proponho que aceitemos essa definição.
Thomas Mann
A segunda obra que iremos analisar nesta tese é The
Commonwealth of Oceana, de Harrington, à qual nos referiremos a partir de agora apenas
como Oceana. Além disso, traduziremos Commonwealth por República. Oceana foi
publicada em 1656 e, embora tenha envergadura teórica e significância política certamente
menor do que as demais obras analisadas aqui, é de nosso interesse por ser a principal
representante do republicanismo de vertente inglesa
35
que, se por si só não fosse
suficientemente importante, o seria por ter influenciado a formulação constitucional dos
Federalistas, que é a obra cuja análise será central em nossa tese.
A despeito desta importância, é uma obra relativamente pouco
estudada, se compararmos com as demais analisadas aqui. Basta realizar uma simples busca
nas ferramentas eletrônicas de pesquisa existentes para que se verifique isso. No Brasil,
então, não há estudos sobre essa obra e há poucas traduções de trabalhos que apresentam
interpretações dela. Diante desta dificuldade, é forçoso reconhecer que a nossa análise se
encontra bastante limitada pela própria bibliografia secundária e, como tem um foco
bastante específico, não contribuirá muito para estabelecer essa bibliografia. No entanto,
continuamos considerando ser a breve análise que será aqui apresentada útil para o
entendimento de como conflito e interesse foram tratados pelo pensamento dito
republicano.
Feitas estas observações, passemos à análise da obra.
35
foi citada nesta tese a divisão feita por Lefort, daquelas que ele chama de sedes do
republicanismo, entre as vertentes florentina, inglesa e americana. Ver Capítulo 2 supra.
71
4.1. Propriedade, equilíbrio e estabilidade
Oceana trata-se do modelo de república proposto por Harrington
que, além de suas trinta regras, é precedido também por um conjunto de princípios. Dentre
todos eles, desde a interpretação dada por Hume, em seu ensaio, publicado pela primeira
vez em 1748, Se o governo britânico se inclina mais para uma monarquia absoluta ou
para uma república, o principal princípio é o de que “o balanço de poder depende do
balanço de propriedade” (HUME, 2003, p. 36; DWIGHT, 1887, p. 6; SHKLAR, 1959, p.
668; DOWNS, M. 1977, p. 17; CROMARTIE, 1998, p. 988).
O princípio do balanço de propriedade se encontra enunciado por
Harrington nos princípios que antecedem a sua apresentação do modelo de Oceana e
também na décima terceira regra do modelo. Segundo este princípio, na constituição da
república modelar harringtoniana, deveria ser instituída a “agrarian law” que delimitaria a
propriedade dos cidadãos da república, de acordo com uma série de critérios, entre eles a
renda e o número de filhos. Harrington afirma que o objetivo disto é evitar que a
propriedade caia na mão de poucos, tendo como suficiente, para que se caracterizasse um
equilíbrio popular, a sua distribuição pela mão de cinco mil proprietários (HARRINGTON,
p. 108). Macpherson aponta que este princípio/regra seria pouco para garantir a distribuição
de poder pretendida por Harrington, pois cinco mil proprietários, no contexto de
Harrington, era um número bastante pouco significativo diante da população, mas não
entraremos nesta questão(MACPHERSON, 1977, p. 188). Admitamos ser este um número
significativo e suficiente para os objetivos de Harrington, pois isto não faz parte de nosso
problema.
O objetivo de Harrington, na elaboração desse princípio, é garantir
a estrutura necessária para um governo balanceado, ou governo misto, no linguajar
republicano e de Maquiavel, conforme examinamos. Este governo misto, baseado em uma
certa igualdade de propriedade, como vimos, é caracterizado no equilíbrio da relação entre
os poucos [few, gentry, aristocracy
36
] e o povo [people]. Este equilíbrio é assim descrito
por Harrington:
36
No texto de Harrington esses termos são aplicados em diversos contextos, com significados algumas vezes
distintos. Como o estabelecimento de limites claros dessas definições é bastante difícil e, neste sentido,
72
“The wisdom of the few may be the light of mankind, but the interest of the few
is not the profit of the mankind, nor of a commonwealth; wherefore, seeing we
have granted interest to be reason, they must not choose, lest is put our their light;
but as the council dividing consisteth of the wisdom of the commonwealth, so the
assembly choosing should consist of the interest of the commonwealth. As the
wisdom of the commonwealth is in the aristocracy, so the interest of the
commonwealth is in the whole body of the people, and whereas this, is case the
commonwealth consist of na whole nation, is too unwiedly a body to be
assembled, this council is to consist of such a representative as may be equal, and
so constituted as can never contract any other interest than that of the whole
people; the manner whereof, being such as is best shown by exemplification, I
remit unto the model. But in the present case, the six dividing, ant the fourteen
choosing, must of necessity take in the whole interest of the twenty.
Dividing and choosing, in the language of a commonwealth, is debating and
resolving; and whatsoever upon debate of the senate is proposed unto the people,
and resolved by them, is enacted auctoritate patrum et jussu populi, by the
authority of the fathers and the power of the people, which concurring make a
law.” (HARRINGTON, p. 24).
Nesta passagem, Harrington deixa claro que o que marca sua
república modelar é a combinação da sabedoria dos poucos, dotados de autoridade, com o
poder do povo, que por sua vez, também precisa ser balanceado. A autoridade dos poucos
conferida pela sua sabedoria é possível justamente porque eles não detêm um sobrepeso no
equilíbrio em decorrência da propriedade. O que caracteriza os poucos, para Harrington, é a
sua maior sabedoria. O poder deve ser dividido, e não concentrado em qualquer grupo. É o
balanceamento desse poder que o princípio do balanço da propriedade tem em vista. A
capacidade de escolher do povo fica mais equilibrada e com isto pode ser atendido o
interesse comum da república. A idéia de que a legislação deve ser fruto da combinação
entre a autoridade do senado e o poder do povo nos faz lembrar, sem dúvida alguma, da
formulação de Maquiavel de que as leis deveriam resultar das manifestações do povo e do
senado, e Maquiavel de fato é um autor bastante citado por Harrington. No entanto, as
formulações são de naturezas bastante distintas, do ponto de vista de análise adotado nesta
tese, que é o do conflito de interesses.
Maquiavel fala claramente, como vimos, da existência de um
conflito de interesses entre povo e senado, que se torna positivo para a elaboração de leis
que garantam e promovam a grandeza da república (garantam a liberdade e promovam a
expansão, se quisermos considerar as duas dimensões da grandeza maquiaveliana). Ora, o
que Harrington sugere não é que haja um conflito entre os poucos e os muitos, ou entre a
Macpherson já apontou a confusão entre fidalguia e nobreza existente na obra, fiquemos com um termo só,
73
aristocracia e o povo. O que ele postula é que se evite o prevalecimento de um sobre o
outro em decorrência da distribuição da propriedade e, com isto, possa ser obtido o melhor
dos dois lados: a capacidade dos poucos, com sua sabedoria, propor, e dos muitos, com sua
melhor capacidade de tomar a decisão certa, de escolher. A combinação disto é
complementada por um conjunto de magistrados que, eleitos, executam as propostas e
decisões assim tomadas:
“An equal commonwealth (by that which hath been said) is a government
established upon an equal agrarian, arising into the superstructures or
three orders, the senate debating and proposing, the people resolving, and
the magistracy executing by na equal rotation through the suffrage of the
people given by the ballot.” (HARRINGTON, p. 34).
Em nenhum momento Harrington propõe, como faz Maquiavel, que
aristocracia e povo manifestem seus interesses contrapostos no interior da república. Na
verdade, ao haver a divisão entre propriedades, os interesses já foram equalizados e não há
mais oposição entre eles. O senado, ou a aristocracia, propõe e debate, o conselho popular
resolve e decide. Não há hostilidade entre a nobreza e o povo, pois esta já foi resolvida com
a divisão de propriedade. A nobreza, neste contexto, se constitui numa elite de homens
talentosos, ou sábios, e não de homens poderosos (DOWNS, 1977, p. 28). Isto permite o
equilíbrio de poder e também que tanto nobreza quanto povo ajam tendo em vista o
interesse da república. Com isto, Harrington procura resolver aquela que é provavelmente
sua principal discordância de Maquiavel: o elogio dos tumultos na república romana.
Na sua interpretação de Maquiavel, Harrington apropria deste a
defesa de que a República deva se expandir e, neste sentido, os dois compartilham da
eleição de Roma como modelo de república expansionista. No entanto, Harrington discorda
de Maquiavel quando este aponta serem os conflitos a causa da grandeza romana. Ao eleger
Veneza como modelo para as relações no interior da república (HARRINGTON, p. 159-
163), Harrington já indica a sua posição a respeito do conflito. Que posição é essa?
Harrington, com seu princípio do balanço de propriedade pretende,
como todo autor republicano, constituir uma república estável e duradoura. Com a divisão
razoavelmente equânime de propriedade entre os proprietários, é possível imaginar uma
significando sempre um grupo que não é o povo, que aqui denominaremos genericamente de “os poucos”.
74
vida republicana mais equilibrada. A constituição de Oceana e de seu respectivo balanço
deve ser eterna (SHKLAR, 1959, p.675). Todo o conjunto de regras ali estabelecido o é
feito para erigir uma estrutura constitucional capaz de garantir a igualdade mínima
necessária para que boas decisões, ou seja, decisões tomadas de acordo com o bem comum,
possam ser tomadas. Isto viabiliza a estabilidade, que por sua vez está relacionada com a
acomodação dos interesses. Essa acomodação é feita pelas regras a serem estabelecidas
para a república, e comportam, como vimos, a divisão prévia de propriedade e,
conseqüentemente, de poder. Com isto têm-se a liberdade da república e, conseqüentemente
a liberdade dos cidadãos (HARRINGTON, p. 20).
Tal acomodação de interesses é bastante diferente da dinâmica de
interesses proposta por Maquiavel. Comparando os dois modos de lidar com as
controvérsias existentes no interior da república, temos que
Harrington also returned to Machiavelli to make two points in reference
to commonwealths. He included a lengthy quotation from the Discourses
to indicate that commonwealths for preservation are generally peaceful
while those for increase have tumults. Commonwealths for preservation
have foreign problems because of their general weakness;
commonwealths for increase have domestic problems because of the
attention they must give to foreign affairs. The problem of balancing the
advantages and disadvantages involved is serious, for Machiavelli felt that
this problem had no solution. Harrington argued that an equal
commonwealth could accomplish this balance. It would be strong in its
relationships with its rivals, and the widespread and generally equal
distribution of landed property would eliminate the tumult at home.”
(DOWNS, 1977, pp. 75-76)
Como vimos, para Maquiavel, para a sobrevivência de uma
república é necessário que haja uma fundação institucional adequada, mas, mais do que
isso, é necessário que haja uma atualização institucional a todo tempo justamente para que
a república seja capaz de canalizar, publicamente, o conflito de interesses entre os cidadãos.
Este conflito, embora seja traduzido na fórmula genérica de que o povo quer não ser
oprimido, enquanto os ricos querem oprimir, assume diversas formas, e a república tem de
estar institucionalmente dotada para lidar com esses conflitos. A necessidade disso é fácil
de imaginar, porque, como Maquiavel defende uma república que se expanda
territorialmente e inclua o povo em seu exército, tem-se que sempre há um novo conjunto
75
de cidadãos sendo incorporado à república e, com isso, o conflito pode ir assumindo outras
formas que não a originária do momento da fundação.
Esta observação acerca da dinâmica dos interesses na república
expansionista de Maquiavel nos induz a pensar em como Harrington concilia sua defesa de
uma república expansionista com a também sua definição de um conjunto de regras que
institua a Oceana e seja eternamente válida. Se em Maquiavel expansão e
contingencialidade da política e das instituições, como vimos, estão associadas, em
Harrington essa associação não se encontra presente e o problema parece ser solucionado
por meio da determinação de divisões de terra que deverão ser procedidas em seguida a
cada expansão, sem que o autor inglês enfrente os problemas decorrentes de se encontrar
um novo povo a ser incorporado. Isso não é problema para ele porque suas regras se
pretendem universais. Harrington defende Roma apenas como modelo de expansão, mas
não concorda com Maquiavel em ser a existência dos tumultos decorrentes dos conflitos
necessários para essa expansão (POCOCK, 2003, p.393). Harrington parece apostar tudo no
momento da fundação e na sabedoria de seu fundador/legislador, que ele invoca como Lord
Archon. Todas as demais situações que ocorrem na vida da república em expansão devem
se enquadrar nas regras estabelecidas nesse momento original.
Esta confiança no momento da fundação e na sabedoria de um
legislador, somados com o caráter utópico que é conferido à obra de Harrington
37
poderia
sugerir uma semelhança entre a sua Oceana e a República de Platão. No entanto, há uma
diferença, que é necessário ressaltar. A república platônica, como devemos lembrar, é
produto de um diálogo, e, portanto, dedutível como verdade, ou seja, dotada de certeza. A
república que Harrington propõe, por maior que seja a sua marca utópica, é baseada em
experiências concretas. No entanto, Harrington também enfraquece o caráter contingencial
da política, na medida em que procura antecipar um conjunto de regras que, julga o autor,
serão adequadas às gerações futuras (COTTON, 1979, p. 3869). Voltaremos a essa idéia
mais adiante.
37
Lembremos que a Oceana de Harrington é freqüentemente considerada, ao lado de Utopia de Thomas More
(1516) e Nova Atlântida, de Francis Bacon, como obra utópica.
76
4.2 Conflito, interesse e lei
Diante do quadro traçado sobre a idéia de equilíbrio defendida por
Harrington, fica claro que o conflito se encontra fora da comunidade política proposta por
ele (SHKLAR, 1959, p. 664). Os conflitos são solucionados previamente, no
estabelecimento da “agrarian law”. Não há paixões a serem freadas, nem canalizadas por
meio das instituições. Há uma hostilidade entre o povo e a nobreza que é neutralizada pela
aplicação do princípio do equilíbrio. Mas o que ocorre com o interesse?
Para Harrington, a integração ao exército é o principal mecanismo
de o cidadão participar da vida política da república e, em sua Oceana, para que o cidadão
possa fazer parte do exército ele tem de ser proprietário (POCOCK, 2003, p. 390). Com
isto, a propriedade é o principal critério para que um cidadão possa manifestar seus
interesses. Ocorre que se a propriedade é o principal critério, ela também é o principal
fundamento de qualquer interesse. Não bastasse isso, à medida que Harrington determina
previamente os limites da propriedade de cada cidadão, ele delimita também seus
interesses. Isso pode ser feito assim porque Harrington não se encontra preocupado com a
exploração e o desenvolvimento de atividades econômicas, mas somente com a extensão da
propriedade (SHKLAR, 1959, p. 670), como se delimitá-la, por si só, já fosse suficiente
para estabelecer sua “equal commonwealth”. O equilíbrio conferido pelo estabelecimento
dessa república é o que dá legitimidade à lei que delimita a propriedade. Esta legitimidade
se fundamenta nos interesses expressos nesse equilíbrio
38
.
O equilíbrio de interesses proposto por Harrington, como vimos,
não tem relação necessária com uma determinada situação ou contexto políticos. “He
thought a republic not only a suitable form of government for England in 1656, but the
absolutely and eternally best.” (SHKLAR, 1959, p. 671). Desta forma foi que ele pôde
propor uma república de interesses pré-delimitados. Com esses interesses pré-delimitados,
foi possível para Harrington prever que cada cidadão agiria tendo em vista o interesse ou
bem comum. As leis que pré-estabelecem os interesses são produtos da razão e constituem
38
“Legitimacy is based solely on interest, on the balance of property. Effective law can only be made by those
who possess the balance of property and stability depends on law expressing their interests” (SHKLAR, 1959,
p. 674).
77
a virtude. De acordo com essas leis, os cidadãos também agem segundo sua razão e não
suas paixões:
“Now government is no other than the soul of a nation or city; wherefore
that which was reason in debate of a commonwealth, being brought forth
by result, must be virtue; and for as much as the soul of a city or nation is
the sovereign power, her virtue must be law. But the government whose
law is virtue, and whose virtue is law, is the same whose empire is
authority, and whose authority is empire.
Again, if the liberty of a man consist in the empire of his reason, the
absence whereof would betray him unto the bondage of his passions; then
the liberty of a commonwealth consisteth in the empire of her laws, the
absence whereof betray her unto the lusts of tyrants.” (HARRINGTON,
pp. 19-20).
Esta confiança no império das leis é formulada de forma ainda mais
explícita mais adiante: “a commonwealth is an empire of laws and not of men” (p. 20) e
pode ser relacionada, também, à argumentação feita por Harrington quando discorda de
Maquiavel quanto à defesa que este faz do povo e dos conflitos existentes no interior da
república ao tratar de seu modelo romano. Segundo Harrington, os atributos que Maquiavel
enxerga no povo romano, na verdade são da própria república: “where there is a
liquorishness in a popular assembly to debate, it proceedeth not from the constitution of the
people, but of the commonwealth” (HARRINGTON, p. 163).
O estabelecimento de leis na fundação da república permite a
igualdade dos cidadãos por meio da distribuição da propriedade e, conseqüentemente, do
poder. Seu império, que se dará durante toda a vida da república, permite que a igualdade
inicialmente estabelecida não se corrompa, nem indivíduos ou grupos usurpem do poder.
Esta igualdade é garantida não só pela propriedade, mas também pela rotatividade dos
cargos, tanto naqueles relativos à administração dos negócios públicos, quando no exército.
A proposição de tal roEstatatividade, como sabemos, não constitui novidade no pensamento
político, tendo estado presente desde Aristóteles. E esteve presente também em Maquiavel.
O que é novo aqui, e gostaríamos de ressaltar, é a diferença da idéia
de “império da lei” de Harrington e a defesa de um governo por leis feita por Maquiavel.
Aqui, as leis não só devem guiar como é possível que elas sejam estabelecidas apenas no
momento da fundação da república. É como se exclusivamente elas já fossem capazes de
78
conter os riscos de abusos que corre uma república em expansão. É uma república imperial
que Harrington defende, e este império parece ser exercido por meio de suas leis.
4.3 Harrington e o cidadão-soldado
Se até este ponto já fizemos algumas comparações entre a Oceana
de Harrington e a república proposta por Maquiavel, há um aspecto que sem dúvida pode
ser considerado o principal ponto em comum entre os dois autores e que se encontra
estritamente relacionado com a temática da expansão: a defesa, existente em ambos, de que
a condição de cidadão de uma república envolve a participação em seu exército. Buscando
identificar esta característica em comum entre os dois autores, Lefort, como já apontamos
no capítulo 2, utiliza a expressão cidadão-soldado para caracterizar o cidadão da república
desses dois autores. Pocock, a respeito de Harrington, afirma que ele procura justificar a
república militar na Inglaterra a partir da regra de um “povo armado” retirada de
Maquiavel
39
. Esta marca do cidadão-soldado está completamente relacionada com a
importância que o patriotismo tem para o pensamento republicano.
Na sua interpretação de Maquiavel, Mark Hulliung, como vimos,
reivindica maior destaque justamente para o aspecto expansionista da república proposta
pelo autor florentino e, nesta reivindicação, invoca a interpretação dada por Harrington.
Hulliung, sem entrarmos no mérito de estar correta ou não, tem uma das interpretações
mais provocativas de Maquiavel, afirmando que, se o animal político para Maquiavel é um
centauro, metade homem, metade besta, é justamente o lado animal que mais fascina
Maquiavel
40
. Portanto, seria o seu lado menos racional, mais apaixonado do homem aquele
39
Oceana is one of those works that transcend their immediate context. The book´s historical significance is
that it marks a moment of paradigmatic breakthrough, a major revision of English political theory and history
in the light of concepts draw from civic humanism and Machiavellian republicanism. The immediate reason
for untertaking such a revision was the impulse to justify the military republic in England as the rule of a
popolo armato.” (POCOCK, 2003, pp. 384-5, itálico do autor).
40
“Arendt’s conclusions are the opposite of Machiavelli’s because her starting point and his are radically
different. She, sounding strangely like a Stoic arguing against Epicureans, is out to discover a realm unshared
by man with animal, an activity distinctively human and therefore uniquely worthwhile. Labor, fabrication,
and force being common to man and animal, they do not satisfy her quest only public speech does.
Contrariwise, exactly that which man shares with animals fascinates Machiavelli. Political animals are
centaurs, half man, half beast, the human characterized by law, the bestial by force. Even without law, force
79
valorizado pelo pensador florentino. Se considerarmos esta característica ressaltada por
Hulliung, talvez a interpretação dada por Harrington não seja a mais adequada a ser
invocada.
Voltando ao patriotismo, ele parece ter características diferentes em
nossos dois autores. Maquiavel defende que o povo seja integrado à política para que ele
componha o exército e, assim, este seja composto por soldados patriotas. Faz parte desta
argumentação a condenação feita pelo autor florentino das tropas mercenárias. O soldado
maquiaveliano é “apaixonado”: manifesta seus interesses internamente à república, e
manifesta seu amor à pátria na guerra. Em contraposição, para Harrington a defesa tem um
cunho diferente. Em primeiro lugar, como vimos, seu cidadão-soldado é, antes de tudo, um
proprietário que, tendo o seu interesse já previamente delimitado, pode “interessar-se” em
defender a república. Além disso, Harrington estabelece uma série de regras para o
revezamento entre os cidadãos que serão soldados e, somando tudo isto, pode-se sugerir
que o cidadão-soldado de Harrington é um desapaixonado.
Portanto, se Harrington valoriza o caráter expansionista como
reivindica Hulliung, ele o faz deixando de lado os componentes mais “apaixonados”
presentes em Maquiavel, que são os interesses dos cidadãos-soldados. O termo
“apaixonado” é colocado entre aspas, aqui, porque, como vimos no capítulo 1 desta deste,
o interesse, na forma com que estamos lidando aqui, tem um componente de racionalidade,
de cálculo inegável. Mas também é inegável que, em Maquiavel, se podemos falar de
interesses [lembremos que o autor não utiliza esse termo], estes têm que vir acompanhados
de sua carga apaixonada. São as paixões de cada um dos segmentos sociais da república
que Maquiavel pretende ver freadas uma pela outra. No caso de Harrington elas foram
freadas previamente, não uma pela outra, mas pelas leis, estabelecidas racionalmente pelo
legislador.
can sometimes succeed, and with law force is still essencial, so the bestial in man is primary, and its use,
effective or ineffective, constitutes the criterion upon which fame should be allotted”. (HULLIUNG, 1983, p.
23)
80
4.4. De volta ao conflito de interesses
Como vimos pela nossa breve exposição, o conflito de interesses é
admitido por Harrington, mas fora da vida da república. No momento da fundação, se esses
conflitos não foram exatamente solucionados, foram equacionados por meio de uma
engenharia legislativa. Esta é que exercerá o império sobre os cidadãos na vida da Oceana.
Esta equalização é o que permitirá a Harrington formular que em sua república há uma
unidade em que nada se exclui dela: o governo é sua alma (p. 19), a república coincide com
a própria consciência nacional, envolvendo inclusive a religião (p. 39), ela é que é dotada
de liberdade, acarretando a liberdade dos indivíduos (p. 20). Nessa república, não há que se
falar em facções, pois a principal fonte de interesses que poderiam mover os indivíduos
nesse sentido, que é a propriedade, foi equalizada previamente. Também não há que se falar
em paixões a serem freadas. Resta saber onde há política na república de Harrington.
81
5- A REPÚBLICA UNITÁRIA FRANCESA: DO CONTRATO SOCIAL E QUE É O
TERCEIRO ESTADO?
A minha vontade é forte,
mas minha disposição
em obedecê-la é fraca.
Carlos Drummond de Andrade
Neste capítulo, teremos como objeto a teoria republicana de dois
autores que contribuíram decisivamente para a formulação daquilo que se configurou como
linhagem francesa de pensamento republicano, e para isso analisaremos as obras Do
Contrato Social, de Rousseau, e Que é o Terceiro Estado?
41
, de Sieyes
42
. A esta se
contrapõe a denominada linhagem republicana americana, que nesta tese será representada
por O Espírito das Leis, de Montesquieu, e Os Artigos Federalistas, de Hamilton, Madison
e Jay. Esta divisão é realizada a partir não mais da classificação feita por Lefort e já
mencionada aqui anteriormente, mas daquela existente na coletânea de artigos organizada
por Biancamaria Fontana, The Invention of the Modern Republic. Nos artigos ali presentes,
se encontra uma divisão mais ou menos assim definida: a concepção francesa de república
seria unitária, com ênfase na soberania popular, e a concepção americana seria pluralista,
com ênfase na separação de poderes. Os debates unidade x pluralismo e soberania una e
indivisível x separação de poderes estavam presentes tanto no debate francês quanto no
americano, mas a idéia geral que prevaleceu foi a de unidade da soberania associada à
república francesa e a de república plural aos americanos. Na Declaração de Direitos do
Homem e do Cidadão francesa se encontravam presentes também a separação de poderes.
Mas a Assembléia constituinte tratou a nação como um conjunto de indivíduos iguais e a
representação como um órgão deliberativo considerado como expressivo da vontade geral.
A representação, ali, não significava uma pluralidade de interesses, mas o único interesse
da nação (GUENIFFEY, 1994, p. 97). E é por isto que Rosanvallon (1994) afirma que, na
França, houve problemas na aplicação das instituições democráticas, como a representação
e a separação de poderes, pois estas instituições entram em choque com uma idéia de
soberania una e indivisível. Também no debate americano, principalmente no contexto
41
Embora o título da edição da tradução brasileira seja A Constituinte Burguesa, adoto aqui a tradução literal
do título original Qu’est-ce que le Tiers État?, que é como a obra se tornou conhecida.
82
anterior à independência, a discussão sobre qual a concepção de soberania deveria ser
adotada também estava presente, mas o que acabou prevalecendo foi a doutrina da
separação de poderes.
Montesquieu é situado na linhagem americana, embora seja francês,
por suas formulações teóricas, na perspectiva que será adotada aqui, se encontrarem muito
mais próximas da dos americanos do que da concepção de república que predominou na
França. Como será visto nos próximos capítulos, o debate sobre a doutrina da separação de
poderes e o seu alcance foi algo que marcou a formulação constitucional americana e
algumas das formulações de Montesquieu, para além da separação de poderes, como o
federalismo, foram colocadas em aplicação naquele debate.
Outra justificativa que deve ser feita é a de que, apesar de Do
Contrato Social ser posterior a O Espírito das Leis e Que é o Terceiro Estado? ser posterior
a Os Artigos Federalistas, neste trabalho os franceses serão analisados antes como
estratégia para nossa argumentação de defesa de nossa tese, que é a de que, nos Artigos
Federalistas, haveria um ponto de inflexão no pensamento republicano e, assim sendo,
temos de analisar principalmente Do Contrato Social antes deles.
Do Contrato Social foi publicado em 1762 e Que é o Terceiro
Estado? em janeiro de 1789, e constituem obras de características bastante diferentes.
Rousseau escreve um texto teórico de grande densidade, enquanto Sieyes escreve um texto
de intervenção, num contexto pré-revolucionário. Sieyes também tem pretensões teóricas,
obviamente, mas certamente menores que as de Rousseau. A despeito dessa diferença,
trataremos dos dois aqui no mesmo capítulo por, na nossa perspectiva, estarem do mesmo
lado: a defesa da república unitária e, de uma certa forma relacionada com isso, a mesma
posição a respeito do conflito de interesses, que é a de que o conflito deve estar fora da
comunidade política a ser constituída. O que diferencia os dois autores, e veremos isso, é a
maneira como cada um trata os interesses parciais no interior dessa mesma comunidade.
Feitas essas observações gerais, passemos à análise das obras
propriamente ditas.
42
Adoto aqui a grafia utilizada nas edições dos livros de Pasquale Pasquino Sieyes et l’invention de la
constitution em France e de Murray Forsyth Reason and Revolution The political thought of the Abbé
Sieyes.
83
5.1 O contrato social e a república de um só interesse
Antes de lidar com os temas que são objeto desta tese, o conflito e o
interesse, e com outros temas a eles relacionados, convém deixar claro de que ponto de
vista do contrato social formulado por Rousseau partiremos. Para isso, a leitura somente de
Do Contrato Social não basta, e temos de confrontá-la com outras obras do autor,
principalmente o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens. Ali se encontram as formulações sobre o estado de natureza e de análise da
sociedade civil existente necessárias para a compreensão do projeto do contrato. Neste
aspecto, adotamos uma visão esquemática proposta por Maurizio Viroli em seu Rousseau
and the well-ordered society, em que os “momentos” que dão base à formulação
rosseauniana podem ser divididos em três, que chamarei aqui de estado de natureza,
sociedade civil e estado civil. O primeiro, anterior a qualquer convenção, é o estado em que
os indivíduos se encontram livres, mas sujeitos às inseguranças e desigualdades naturais.
Trata-se de uma construção hipotética, utilizada para que possa ser reconstituído o
surgimento da sociedade em que se vive e a origem de suas agruras (VIROLI, 1992, p. 84;
STAROBINSKI, 1991, p. 25). No estado de natureza, as desigualdades existentes na
sociedade ainda não existem e ele constitui, assim, uma espécie de referência à qual se
recorre para que se saiba que as relações que ocorrem na sociedade acontecem por
convenção e não são derivadas da natureza.
O segundo, que descreve as sociedades existentes analisadas por
Rousseau, é aquele das convenções que encontramos nas sociedades em geral, e que
possibilitou as desigualdades estabelecidas convencionalmente. Estas desigualdades,
originadas da afirmação: “isso é meu”, estão relacionadas com a necessidade de cada um,
nessa sociedade, de distinguir-se dos demais. Na sociedade civil, os indivíduos manifestam
seu amor próprio (amour-propre), que se baseia nas aparências e na distinção em relação
aos demais. Essas relações baseadas na aparência são mediadas, política e economicamente,
pelo interesse. Em oposição ao amor próprio, Rousseau defenderá relações mais autênticas
e transparentes, estabelecidas sem mediações. Daí a importância que nosso autor dá às
festas públicas (STAROBINSKI, 1991, . 107) e a sua proposição de educação em O Emílio.
84
Nas relações transparentes, o que vigora é o amor de si (amour de soi), que é um
sentimento que permite a cada um colocar-se no lugar do outro, desejar a vida em
comunidade e o decorrente compartilhamento sem a mediação do interesse (SALINAS
FORTES, 1997, p. 62). Enquanto o amor de si é um sentimento natural de auto-respeito e,
portanto, um sentimento autônomo, o amor próprio é um sentimento faccioso próprio das
sociedades em que os seres humanos se encontram competindo (PELED, 1980).
Embora estas questões relativas ao amor de si não estejam presentes
em Do Contrato Social, este é a proposição política para a solução das agruras presentes
nas sociedades civis existentes e a instituição do que chamamos acima de estado civil. Por
meio do contrato social proposto, por convenção, se pretende evitar que as desigualdades
existentes na sociedade civil se estabeleçam. Este estado, com isso, deve ser estabelecido a
partir de um retorno hipotético ao momento em que surgem as convenções da sociedade
civil (ROUSSEAU, 1997, pp. 30-1), para que se estabeleça um contrato que ao mesmo
tempo preserve a liberdade que os indivíduos possuem no estado de natureza e promova a
justiça, evitando as desigualdades. Com isso, o que Rousseau pretende não é estabelecer
uma ordem artificial num mundo de desordem natural, mas uma ordem artificial para
“corrigir” uma desordem artificial (VIROLI, 1992, p. 37). Esta vida integrada à
comunidade do cidadão possibilita a ele que se realize também como indivíduo
(BARNARD, p. 252). O contrato social não é um retorno ao estado de natureza, mas a
transformação de indivíduos autárquicos, que são os indivíduos naturais, em cidadãos. A
passagem do estado de natureza para o contrato social é a passagem da autonomia pura e
simples para a vida em conjunto com a comunidade, da autarquia para a participação
(BARNARD, 1984, p. 245).
Este esquema, obviamente, não é a única interpretação possível da
proposta de Rousseau. No entanto, não discutiremos isso aqui. Nosso objeto nesta tese é o
conflito de interesses e este pequeno esquema inicial é feito unicamente para tornar a nossa
análise desses temas em Do Contrato Social mais clara. Nosso foco é este texto de
Rousseau e não sua obra como um todo, que envolveria o tratamento de temas cuja
complexidade ultrapassa em muito o alcance desta tese. Por isto, fiquemos apenas com esta
pequena demarcação de posição sobre o contrato, e adentremos nos conceitos que se
85
relacionam diretamente com o que nos importa. E tendo este objetivo em vista, o primeiro
tema central a ser enfrentado é a vontade geral.
Em Do Contrato Social um dos conceitos centrais e certamente o
mais específico e original da obra é o de vontade geral (SHKLAR, 1969, pp. 168-169). A
partir da formulação deste conceito feita por Rousseau, podemos iniciar nossas observações
acerca do tratamento dado pelo autor ao nosso objeto, que é o conflito de interesses. A
formulação de Rousseau do conceito de vontade geral é feita quando ele procura
caracterizar a soberania do corpo político por ele proposto, e, ao argumentar em defesa de
sua inalienabilidade, enuncia:
“só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado de acordo com a
finalidade de sua instituição, que é o bem comum, porque, se a oposição
dos interesses particulares tornou necessário o estabelecimento das
sociedades, foi o acordo desses mesmos interesses que o possibilitou. O
que existe de comum nesses vários interesses forma o liame social e, se não
houvesse um ponto em que todos os interesses concordassem, nenhuma
sociedade poderia existir. Ora, somente com base nesse interesse comum é
que a sociedade deve ser governada.” (ROUSSEAU, 1987, p. 43).
Na passagem acima, é afirmado que o conflito de interesses tornou
necessário o estabelecimento das sociedades. Portanto, Rousseau admite o conflito de
interesses. No entanto, parece que esta questão é objeto de seu Discurso sobre a origem e
os fundamentos da desigualdade entre os homens e não do Contrato. De qualquer forma, o
contrato social proposto por Rousseau visa exatamente corrigir as desigualdades
estabelecidas nas sociedades existentes, restaurando a liberdade característica do estado de
natureza, sem a insegurança deste. Embora admita a existência do conflito, nessa mesma
passagem afirma que só a existência de um interesse comum torna as sociedades possíveis.
Ou seja, não é o conflito que as constitui. O que ele propõe, para a sociedade a ser criada
com o seu contrato, é que ela seja governada exclusivamente com base em tal interesse
comum.
Esse interesse comum não coincide com os interesses privados. No
entanto, ao agir de acordo com o interesse comum, e com a vontade geral, pois interesse
comum e vontade geral sempre estão relacionados, o soberano ao mesmo tempo atende ao
interesse de todos - ainda que não atenda aos interesses privados -, em decorrência da
própria natureza do contrato social, que
86
“compreende um compromisso recíproco entre o público e os particulares,
e que cada indivíduo, por assim dizer, consigo mesmo, se compromete
numa dupla relação: como membro do soberano em relação aos
particulares, e como membro do Estado em relação ao soberano”
(ROUSSEAU, 1987, p. 34).
Como cada indivíduo, que detém seus interesses particulares, faz parte do soberano, que
age segundo a vontade geral, ao submeter-se ao soberano o indivíduo/cidadão submete-se a
si mesmo
43
. Nesta relação, não importa aquilo do qual cada indivíduo teve de abrir mão no
momento do contrato, mas sim o interesse comum de que o soberano aja de acordo com a
vontade geral e, assim, em benefício de todos os cidadãos. Nessa relação entre súdito e
soberano, não há como o soberano agir contra os interesses de cada cidadão:
“o soberano, sendo formado tão-só pelos particulares que o compõem, não
visa nem pode visar a interesse contrário ao deles, e, conseqüentemente, o
poder soberano não necessita de qualquer garantia em face de seus súditos,
por ser impossível ao corpo desejar prejudicar a todos os seus membros”
(ROUSSEAU, 1987, p. 35)
Se não há como o soberano agir contra os interesses dos cidadãos,
pois cada um deles se submeteu ao pacto para que o interesse comum, que também é de
cada um, fosse atendido, o mesmo não pode ser dito a respeito de cada cidadão em relação
ao soberano, pois “cada indivíduo, com efeito, pode, como homem, ter uma vontade
particular, contrária ou diversa da vontade geral que tem como cidadão. Seu interesse
particular pode ser muito diferente do interesse comum” (ROUSSEAU, 1987, p. 35). Por
causa disso, deve haver um constrangimento que faça cada cidadão obedecer às leis ditadas
segundo a vontade geral, o que nada mais é, segundo a conhecida formulação de Rousseau,
do que forçar cada cidadão a ser livre. Obedecer às leis que foram estatuídas segundo a
vontade geral, e, portanto, a vontade de cada cidadão, significa agir no sentido dado pela
sua própria vontade - na medida em que a vontade geral é também sua vontade -, o que
significa ser livre (ROUSSEAU, 1987, p. 37). Entre as limitações que um indivíduo deve
43
Nessa relação entre súdito e soberano é que se realiza o propósito do contrato social, assim definido por
Rousseau: “Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado
com toda força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo,
permanecendo assim tão livre quanto antes. Esse, o problema fundamental cuja solução o contrato social
oferece.” (ROUSSEAU, 1987, p. 32).
87
sofrer em nome do interesse comum, Rousseau restringe o direito de propriedade,
afirmando que tal direito se encontra “subordinado ao direito que a comunidade tem sobre
todos”, e este direito da comunidade é um dos elementos que dá força e significado à
soberania do corpo político.
A maneira com que Rousseau define o ajuste do interesse individual
à vontade geral é a obediência às leis e, por meio desta, ele parece articular também
liberdade e igualdade. Se submeter-se ao soberano e obedecer as leis emanadas segundo a
vontade geral é ser livre, essas mesmas leis são o que permitem estabelecer, artificialmente,
uma igualdade que corrija desigualdades que poderiam decorrer da própria natureza dos
homens. Por meio das leis, Rousseau enxerga a possibilidade de substituir a desigualdade
natural por uma igualdade civil ou moral (ROUSSEAU, 1987, p. 39). Assim liberdade e
igualdade, na teoria de Rousseau, parecem estar indissociáveis, e a lei é a expressão dessa
indissociabilidade. A promoção da justiça e da liberdade coincide com a ordem
estabelecida pela lei, que por sua vez possibilita a vida política, que é artificial (VIROLI,
1992, p. 52). E a república de Rousseau pode ser considerada como uma resposta racional
ao problema da desordem, uma vez que, em primeiro lugar, garante que a lei é soberana
(VIROLI, 1992, p. 190). A lei é uma condição necessária para que a liberdade política
exista (VIROLI, 1992, p. 193). Ela é expressão do bem público e, com isso, estabelece-se a
relação entre bem público e liberdade, tão cara aos republicanos. Mas voltemos ao nosso
tema, que é o interesse.
Como sugerimos brevemente em esquema anterior, Rousseau é um
crítico da relação de aparências mediada pelos interesses que vigora na sociedade civil. Sua
crítica ao interesse acompanha sua crítica à falta de transparência
44
das relações sociais e,
conseqüentemente, à representação. Esta crítica se encontra presente em sua obra como um
todo
45
, mas em Do Contrato Social aparece de maneira mais explícita apenas na crítica à
44
O tema da transparência é recorrente entre os comentadores de Rousseau. Exemplo disso é a interpretação
consagrada de Jean Starobinski A transparência e o obstáculo. Mas há recentemente estudo sobre a obra do
autor que busca conciliar a aplicação da teoria da rational choice com as proposições de transparência de
Rousseau. Ver HILL, Greg. Rousseau´s theory of human associations transparent and opaque communities.
New York, PalgraveMacmillan, 2006.
45
Em relação à dimensão econômica dos interesses, a obra a ser examinada é Considerações sobre o Governo
da Polônia e sua reforma projetada (1982); também nesta obra se encontra uma defesa da realização de festas
públicas, para que relações desmediadas se estabeleçam entre os cidadãos; em Emílio (2004) pode ser
encontrada uma defesa da autenticidade e da busca da autonomia por meio dela;e no Discurso sobre a origem
88
representação política, inerente à sua formulação do conceito de soberania e de vontade
geral. Deixando isso de lado, os interesses particulares, sejam individuais ou coletivos,
chamam a atenção de Rousseau somente na medida em que eles possam fazer o indivíduo
agir contra a vontade geral. Neste sentido, como vimos, deve haver formas de
constrangimento dos indivíduos para que não ajam assim. Mas e os casos em que os
indivíduos agem segundo seus interesses, mas não contrariam a vontade geral? Estes casos
não parecem importar para o nosso autor. Ações desse tipo ocorrem o tempo todo, mas não
dizem respeito ao corpo político estabelecido pelo contrato sugerido por Rousseau. O corpo
político, existente por meio do Estado, tem tanto maior êxito quando os negócios de
interesse público prevalecem sobre os de interesse particular (ROUSSEAU, 1987, p. 107).
Não se trata, nesse caso, de acomodar, equacionar, conciliar ou compensar interesses
particulares existentes. Existe um interesse comum que informa a vontade geral, que não
guarda qualquer relação necessária com os interesses e vontades particulares
46
. Neste
sentido, convém recuperar aqui a notória diferenciação que Rousseau faz entre a vontade
geral e a vontade de todos:
“Há comumente muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral.
Esta se prende somente ao interesse comum; a outra, ao interesse privado e
não passa de uma soma das vontades particulares. Quando se retiram,
porém, dessas mesmas vontades, os a-mais e os a-menos que nela se
destroem mutuamente, resta, como soma das diferenças, a vontade geral.”
(ROUSSEAU, 1987, pp. 46-7).
Nem mesmo os interesses de grupos, ou de “sociedades parciais”
(parcelas de sociedade), têm valia especial na formulação de Rousseau. Ao contrário, se
houver dentro de um corpo político, um grupo tão grande que seu interesse possa
sobrepujar os demais, fazendo-se passar por um interesse comum, é necessário que se
atente para o fato de que o interesse desse grupo, por mais numeroso que seja, é apenas um
interesse parcial, e não pode sobrepujar-se ao interesse comum (ROUSSEAU, 1987, pp. 47-
8). O interesse que informa a vontade geral é o interesse comum, que não pode ser
e os fundamentos da desigualdade entre os homens (2005), toda a crítica da necessidade de distinção existente
no homem que vive na sociedade civil.
46
O que deve ser garantido é que todos sejam levados em consideração na obtenção da vontade geral. “Para
que uma vontade seja geral, nem sempre é necessário que ela seja unânime, mas é preciso que todos os votos
sejam contados. Qualquer exclusão formal rompe a generalidade.” (ROUSSEAU, 1987, p. 45, nota 97).
89
explicitado previamente e de forma genérica, mas varia de povo para povo, de circunstância
para circunstância. Rousseau, portanto, não define de antemão qual seria o conteúdo da
vontade geral. Não se pode avaliar se uma vontade geral está correta ou não, pois a vontade
geral nunca erra (Rousseau, 1987, p. 46). O que pode encontrar-se equivocada é a
interpretação da vontade geral, ou os mecanismos para obtê-la encontrarem-se
imperfeitos
47
. Embora Rousseau não defina de antemão qual é o interesse que informa a
vontade geral, é possível deduzir de sua teoria, não só a partir de Do Contrato Social, mas
também do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens,
que o que mobiliza os homens a realizar o contrato social proposto por ele e estabelecer
mecanismos de expressão da vontade geral é um interesse pela prevenção da desigualdade:
“The general will must, therefore, express the fundamental common
interests that all man can accept as both their advantage and duty: the
prevention of inequality. The general will is a ‘tendency to equality’.
Personal non-civic interests survive, but as long as they are not organized
into privilege sinking groups, they cancel each other out. The general will,
in any case, is not determined by the number of voices that can, at any
moment, be heard, but by the one interest that unites the citizens which
may momentarily be forgotten. What that inerest is, however, is very well
known. It is the replacement of the inequalities of nature by civil equality.”
(SHKLAR, 1969, p. 187)
Este interesse comum de prevenir a desigualdade ao mesmo tempo
garante a unidade necessária para o corpo político para que não se divida em facções. Em
Rousseau, pelo que parece, igualdade entre os cidadãos e unidade do corpo político
parecem ser indissociáveis. O desejo de distinguir-se pode levar o indivíduo a formar
grupos e criar facções. Logo no Capítulo I do Livro I de Do Contrato Social, Rousseau
afirma que por toda a parte o homem se encontra a ferros, e que há senhores que não podem
ser menos escravos do que os outros. Ora, se há senhores e escravos, há desigualdade, que
torna todos os homens não-livres. Esta desigualdade, que diz respeito à sujeição de uns em
relação a outros, não é natural, é artificial. O que Rousseau propõe, com o contrato, é
47
A respeito da relação entre a vontade geral e o interesse comum e do acerto/erro da vontade geral, ver
TRACHTENBERG, Zev M. Making Citizens - Rousseau’s political theory of culture. London e New York,
Routledge, 1993. O autor examina a obra de Rousseau a partir da idéia de sucesso e erro e faz uma análise
detalhada da relação entre o interesses particulares, o interesse comum e a vontade geral. Partindo de uma
perspectiva que ele mesmo denomina de “realista” da obra de Rousseau, é feita inclusive a quantificação das
90
estabelecer uma nova convenção artificial, que estabeleça a igualdade moral. O estado de
liberdade anterior, melhor caracterizado no Discurso, é uma referência, é certo, mas não é a
ele que se deve retornar, pois é uma liberdade não segura. A liberdade a ser estabelecida
pelo contrato social é uma liberdade segura, pois, como vimos, os cidadãos podem ser
“forçados” à liberdade. Isto só é possível em um estado estabelecido artificialmente, não no
estado de natureza (VIROLI, 1992, p. 157). No estado de natureza rousseauniano, como
sabemos, não há a guerra de todos contra todos, como o propõe Hobbes, mas a liberdade é
insegura em decorrência das desigualdades que podem ocorrer pela natureza. A passagem
dessa desigualdade natural, para uma desigualdade civil, existente nas sociedades civis
reais, é que o contrato social proposto por Rousseau pretende evitar (VIROLI, 1992, p.68).
Se evitar a desigualdade é o interesse que informa a vontade geral,
sua forma de manifestação por excelência é a lei, como já vimos. Esse é um tema que, na
obra de Rousseau, e em nossa tese, pelo rumo que tomou até aqui, merece uma atenção
especial.
5. 2 Lei e interesse em Do Contrato Social
Rousseau se refere a noções de lei ao longo de várias passagens de
Do Contrato Social, mas há uma definição explícita feita por ele que julgamos bastante
elucidativa para os nossos propósitos:
“quando todo o povo estatui algo para todo o povo, só considera a si
mesmo e, caso se estabeleça então uma relação, será entre todo o objeto sob
um certo ponto de vista e todo o objeto sob um outro ponto de vista, sem
qualquer divisão do todo. Então, a matéria sobre a qual se estatui é geral
como a vontade que a estatui. A esse ato dou o nome de lei.”
(ROUSSEAU, 1987, p. 54)
Essa definição nos interessa em primeiro lugar por deixar claro que a
lei é uma manifestação da vontade geral, em segundo porque, na condição de ser essa
manifestação, o é de um todo para um todo. A relação entre todo e parte é fundamental na
formulação do contrato social de Rousseau. Qualquer manifestação que não represente o
diferenças entre os interesses particulares e o interesse comum. Esse nível de detalhamento não nos convém
aqui.
91
todo é facciosa e, portanto, voltada para um interesse particular, não importa o número de
indivíduos que sejam partidários desse interesse. Já vimos que o interesse que informa a
vontade geral não guarda relação necessária com qualquer interesse particular.
A este respeito, poderia ser dito que o que diferencia o contrato
social proposto por Rousseau das sociedades existentes, também convencionais ou seja,
não naturais é a relação entre parte e todo. Nas sociedades civis reais existentes,
interesses parciais prevalecem sobre os interesses do todo. Ora, para a efetivação de um
contrato como esse, as leis, que são os mecanismos de manifestação da vontade geral,
somente poderiam expressar a vontade do todo e serem destinadas ao todo. Ao ser
manifestação da vontade geral, e, portanto, do interesse que une um determinado corpo
político (ROUSSEAU, p. 50), e ao ser produto do todo destinado ao todo, opera-se, nessa
manifestação da vontade geral um “acordo entre o interesse e a justiça”, que é o que
diferencia a lei de qualquer regra particular, a discussão pública de qualquer acordo entre
partes e, assim, pode ser estabelecida a igualdade entre os cidadãos (ROUSSEAU, 1987, p.
50).
O sentido da lei na obra de Rousseau, então, é organizar a vida
social, dar-lhe ordem, como diz Viroli, na medida em que viabiliza e preserva o todo
(VIROLI, 1992, p. 39). Essa ordem artificial, proporcionada pelas leis, é a ordem
republicana de Rousseau, que assim define República: “todo o Estado regido por leis, sob
qualquer forma de administração que possa conhecer, pois só nesse caso governa o
interesse público e a coisa pública” (ROUSSEAU, 1987, p. 55). O todo preservado pela lei
o é na medida em que esta preserva o interesse público. Essa lei, boca pela qual fala a
vontade geral, instrumento de justiça, deve estar fora do âmbito das paixões e sua
elaboração deve ficar a cargo do legislador, um sujeito que não necessariamente faz parte
do corpo político, e certamente não tem nele qualquer poder:
“se aquele que governa os homens não deve governar as leis, o que governa
as leis não deve também governar os homens: de outra forma, suas leis,
instrumentos de suas paixões, freqüentemente não fariam mais do que
perpetuar suas injustiças e jamais ele poderia evitar que pontos de vista
particulares alterassem a integridade de sua obra.”
“(...)na obra da legislação encontramos, ao mesmo tempo, dois elementos
que parecem incompatíveis: uma empresa acima das forças humanas e,
para executá-la, uma autoridade que nada é” (ROUSSEAU, 1987, p. 58).
92
A elaboração das leis, para Rousseau, é, portanto, um ato fora da
própria dinâmica política de sua república. O legislador, agente que, ao exercer sua
atividade, se coloca fora do corpo político, deve adequar sua empresa ao povo à qual
destina (ROUSSEAU, 1987, p. 60). Neste sentido, as leis para Rousseau não possuem um
conteúdo universal válido para quaisquer sociedades, nem há um modelo de república que
possa ser recomendado para diversos povos. A circunstância e as características de cada
povo são um elemento crucial para o sucesso da empreitada legislativa, segundo Rousseau.
A república de Rousseau a ser estabelecida pelo contrato social não é uma república que se
pretende um modelo eterno para as diversas sociedades, como é a Oceana de Harrington.
Mas a atividade de legislação também não possui o caráter dinâmico
que encontramos em Maquiavel. Se lá as leis são definidas na circunstância de cada
comunidade e, mais do que isso, a partir da dinâmica dos conflitos existentes em cada
circunstância nessa mesma comunidade, aqui parece haver um dinamismo um tanto menor.
Em primeiro lugar, Rousseau não diferencia claramente o momento de fundação da
atividade legislativa que deverá ser operada no decorrer da vida de uma república. Ao que
tudo indica, suas observações dizem mais respeito ao momento da fundação, mas em
muitos momentos elas parecem se aplicar a quaisquer elaborações legislativas. O fato de a
atividade de legislação estar “fora” da vida política da república dá a ela um caráter que,
com nosso vocabulário atual, poderíamos chamar de técnico e pouco político. A
correspondência entre a legislação e o interesse público acontecerá não em decorrência dos
debates ou disputas existentes na comunidade política, mas da capacidade de um legislador
de captar o interesse comum e a decorrente vontade geral de um determinado povo em uma
determinada circunstância. Não fica claro se esse legislador aparece somente na fundação
da república, ou toda atividade legislativa de acordo com a vontade geral depende dele. Se
admitirmos que o legislador aparece somente na fundação, não fica claro como se dá a
expressão da vontade geral ao longo da vida da república.
Com isto, podemos sugerir que a lei de Rousseau é produto de fora
da política. Tem relação e é informada por ela, mas não decorre tão somente do que
acontece em seu âmbito. Devemos verificar agora seus efeitos. A legislação produz, sim,
modificações na vida da república e, principalmente, é o mecanismo para que os cidadãos
93
possam ser forçados a serem livres, e, antes disso, que indivíduos possam se tornar
cidadãos, ou seja, que saiam de sua autonomia individual, para formar parte de um todo e
ser dependente dele:
“Aquele que ousa empreender a instituição de um povo deve sentir-se com
capacidade para, por assim dizer, mudar a natureza humana, transformar
cada indivíduo, que por si só é um todo perfeito e solitário, em parte de um
todo maior, do qual de certo modo esse indivíduo recebe sua vida e seu ser;
alterar a constituição do homem para fortificá-la; substituir a existência
física e independente, que todos nós recebemos da natureza, por uma
existência parcial e moral. Em uma palavra, é preciso que destitua o
homem de suas próprias forças para lhe dar outras que lhe sejam estranhas
e das quais não possa fazer uso sem socorro alheio. Na medida em que tais
forças naturais estiverem mortas e aniquiladas, mais as adquiridas serão
grandes e duradouras, e mais sólida e perfeita a instituição, de modo que, se
cada cidadão nada for, nada poderá senão graças a todos os outros, e se a
força adquirida pelo todo for igual ou superior à soma das forças naturais
de todos os indivíduos, poderemos então dizer que a legislação está no mais
alto grau de perfeição que possa atingir.” (ROUSSEAU, 1987, p. 57)
Esta passagem nos remete à comparação entre o estado de natureza rousseauniano e o
estado civil proposto pelo autor. Se, como vimos, o estado de natureza é uma referência
positiva, não se trata, na sociedade civil desigual em que se vive, de retornar ao estado de
natureza. Isto porque o homem natural, na medida em que é uma unidade, depende só de si
mesmo. Ao se tornar cidadão, ele passa a depender da comunidade. A passagem da vida
individual para a vida em comunidade é, portanto, a passagem de um estado de
independência, para o de dependência (BARNARD, 1984, p. 245). Neste sentido, ao se
tornar um cidadão o indivíduo passa a ter de se realizar não somente como indivíduo, mas
como parte de uma unidade maior. E a consciência da participação dessa unidade e da
necessidade dessa mesma participação possibilita que o indivíduo possa enxergar no
interesse comum o seu próprio interesse, não aquele particular, mas uma espécie de
interesse comum individualizado, e não ser detentor somente da liberdade natural, mas da
liberdade civil. A interdependência não é algo negativo para o cidadão se este está
consciente da necessidade de sua participação da comunidade e de sua dependência dela.
Nesta consciência, o legislador tem papel decisivo:
“To make men realize that as individuals they can do nothing without the
cooperation of others, the Legislator has to transform them from
independent into interdependent beings; he has to convince them that what
94
they gain through a binding union is of greater permanent value than what
they surrender, that by working with and for others they truly work for
themselves. And in order to convince them, he has to induce them to
consult their reason and not merely to listen to their inclination. Emotional
affinities cannot by themselves instruct people whether or not they have
any interests in common, let alone reveal to them if there were grounds on
which all interests coincided. Yet only the discovery of such grounds can
form a foundation upon which satehood can rest.” (BARNARD, 1984, P.
252).
Esta passagem de Frederick Barnard nos coloca mais uma vez diante da formulação de
Rousseau de que o interesse comum, a ser apreendido pelo legislador, em nada tem a ver
com os interesses particulares, nem com quaisquer manifestações de cada um dos cidadãos
ou de um grupo de cidadãos. É algo que só pode advir do todo da comunidade. Além desta
questão, novamente, nos deparamos com a relação entre parte e todo. Vimos que as leis são
produto do todo, captado pelo legislador, direcionado para o todo. Nesta medida, ela faz
com que cada cidadão faça parte desse todo e seja destinatário, individualmente, dessa lei.
É este indivíduo/cidadão que faz parte do corpo político soberano unitário de Rousseau.
Na análise desta relação entre parte e todo, temos de fazer algumas
observações. Entre o indivíduo e o corpo político, em Rousseau, não há qualquer sujeito
coletivo intermediário. Em sua formulação, todo sujeito coletivo formado no interior do
corpo político é parcial e faccioso e, como tal, pode constituir uma ameaça à apreensão da
“correta” vontade geral. As partes constituintes do contrato social são os indivíduos e o
soberano, que por sua vez é constituído dos próprios indivíduos/cidadãos. Neste aspecto,
Rousseau não se distancia do marco individualista que caracteriza o contratualismo. A
diferença aqui é que a comunidade política é estabelecida não para garantir a segurança dos
indivíduos, tal como pretendida por Hobbes, nem a preservação da propriedade, tal como
proposta por Locke. A justificativa para o contrato social é a justiça que ele promove, que
se traduz em uma busca por evitar a desigualdade. Apenas para ilustrar esta afirmação, é
bastante interessante a comparação feita por Shklar entre os individualismos de Locke e
Rousseau: “Locke’s was the individualism of the strong, Rousseau’s the individualism of
the weak”
48
(SHKLAR, 1969, p. 41).
48
O livro de Shklar sobre a obra de Rousseau enfoca bastante o caráter “individualista” da república de
Rousseau. Não compartilhamos desse enfoque, mas acreditamos que parte das observações ali feitas são
válidas para a nossa tese.
95
Feita esta pequena digressão, voltemos à relação entre parte e todo
que marca a formulação de nosso autor acerca da soberania e da vontade geral, porque ela
tem toda relação com o nosso tema, que é o conflito de interesses.
Em Rousseau o interesse comum de toda comunidade deve
prevalecer sobre o dos indivíduos. Isso é muito claro ao longo de sua obra. Mas se
somarmos a isso que quaisquer interesses parciais sejam individuais ou coletivos - são
desconsiderados na obtenção desse interesse comum e, conseqüentemente, o conflito se
encontra fora do que venha a ser constituído como vontade geral, e, portanto, do conteúdo
da lei (e não nos esqueçamos de que mesmo esta não é propriamente política), temos que a
constituição de sujeitos coletivos não é valorizada na comunidade política proposta por
Rousseau. Ela é possível, não se trata aqui de um projeto que veda a sua constituição, mas
os interesses apresentados por quaisquer atores coletivos são sempre considerados parciais,
como qualquer interesse individual. A relação entre parte e todo, em Rousseau, é feita por
apenas dois pólos: todo e não-todo, em que neste último estão quaisquer interesses parciais.
Isto faz todo sentido quando pensamos no papel de liga social
assumido pelo conflito, como vimos a partir de Simmel, na nossa leitura dos Discursos de
Maquiavel. Se não há o conflito de interesses para que se formem grupos parciais, sim, mas
coesos, como falar em sujeitos coletivos? Em Maquiavel também se encontra presente a
proposição de que os interesses da comunidade política devam prevalecer sobre os demais e
que as leis devam ordenar a vida da comunidade. Tanto em Rousseau quanto em Maquiavel
há uma correspondência entre o bem público, que informa a lei, e a liberdade por ela
promovida
4950
. No entanto, na proposição de Maquiavel, o interesse da comunidade é
informado por interesses coletivos, “de classe” como já apontamos, em análise baseada em
artigo de Kent Brudney (1984). Isto é possível porque, a partir da obra de Maquiavel pode
ser feita, como fizemos, uma distinção entre interesse coletivo e interesse faccioso. Em
Rousseau, não existe esta possibilidade. A coesão é dada pelo interesse comum que diz
49
Lembremos que isto, segundo Viroli, é marca característica do pensamento republicano (VIROLI, 2001, p.
226)
50
Outra comparação entre Rousseau e Maquiavel digna de nota, embora não trate dos temas de que cuidamos
aqui, é aquela feita por Pocock. Segundo ele, Rousseau pode ser considerado o Maquiavel do século XVIII
por ter colocado em questão a certeza então vigente de que a contradição entre virtude e cultura seria
resolvida com sucesso. De acordo com Pocock, para Rousseau o processo a ser enfrentado pela humanidade,
embora necessário, é “self-defeating”. Esta afirmação, ainda segundo Pocock, é tão impactante quanto o
divórcio apontado por Maquiavel entre os valores cívicos e cristãos. (POCOCK, 2003, pp. 504-5)
96
respeito ao todo da comunidade política, qualquer coesão intermediária em nada contribui
para a obtenção desse interesse comum, na medida em que é parcial ou particular. Outras
justificativas que poderiam ser acrescentadas para esta impossibilidade de defesa da
formação de interesses coletivos a partir da obra de Rousseau é que, em sua defesa pela
transparência, a única forma de esta ocorrer na política é aquela em que todos estão em
condição de igualdade e fazem parte de um todo comum, que se expressa pela vontade
geral, e é constituído o titular da soberania. A transparência é necessária até para que a
vontade geral possa emergir. Fora disso, o que se tem são vontades e interesses parciais
que, nesta condição, são não-transparentes, ou “opacos”. Isto acontece porque a única
forma de se obter a transparência são as situações em que todos os cidadãos são atores e
espectadores ao mesmo tempo, sem qualquer identificação parcial com outros (FREITAS,
2003, p. 43; STAROBINSKI, 1991, p. 107). Coesão, transparência e totalidade, na obra de
Rousseau, portanto, parecem estar absolutamente associados. No contrato social, o conceito
de vontade geral é formulado justamente para tornar isso possível. Todos são súditos e ao
mesmo tempo fazem parte do soberano. A transparência, portanto, se opera com a inclusão
de todos naquilo que está acontecendo na vida da comunidade política. Qualquer cisão ou
manifestação parcial de interesses não integra aquilo que deve ser feito para a manifestação
da vontade geral. Esta, portanto, diz sempre respeito ao todo, sem levar em consideração
suas partes. Com isto, o conflito se encontra absolutamente fora do que pode ser
considerada a atividade política da república. Se a república é o governo de leis, e estas são
expressões da vontade geral, que somente emerge a partir da totalidade, não há que se falar
em conflito no interior da república rousseauniana.
A relação entre parte e todo será o diferencial também entre Do
Contrato Social de Rousseau e outra obra que iremos analisar aqui como representante da
concepção unitária de república francesa: o Que é o Terceiro Estado?, de Sieyes.
5.3. A república liberal de Sieyes
Autor de envergadura certamente menor que a de Rousseau, e cujo
reconhecimento provavelmente foi bastante prejudicado pela opinião de Edmund Burke
sobre ele, a escolha da obra mais famosa de Sieyes para nossa análise pode ser questionada
97
em primeiro lugar pelo seu caráter de texto de intervenção, o que lhe retira densidade
teórica, e também pelo seu equívoco caráter republicano
51
. De fato, o livro que nos fez
incluir aqui Que é o Terceiro Estado?, de Sieyes foram as posições apresentadas na
coletânea de artigos organizada por Biancamaria Fontana The invention of the Modern
Republic, que tem como objeto a formação da república burguesa liberal. Já dissemos, em
capítulo anterior, que em alguns aspectos a corrente republicana de pensamento político
pode ser considerada adversária da liberal, e acreditamos que estes aspectos são, de certa
forma, os mais fecundos. No entanto, também vimos no mesmo capítulo anterior que há
muitos pontos em comum na tradição republicana e na liberal, que deram origem às
democracias modernas. Aliás, a “invenção da república liberal” poderia ser considerada a
própria invenção da democracia. Neste aspecto, Sieyes é o autor de uma distinção que se
tornou muito cara aos governos constitucionais: a distinção entre poder constituinte
originário (pouvoir constituant) e poder constituinte derivado (pouvoir constitués). Não
abordaremos esta distinção aqui. De nossa parte, acreditamos ser possível situar Sieyes no
campo republicano por apresentar as características que julgamos fundamentais dessa
corrente de pensamento e já apontadas anteriormente: a preocupação com a fundação (neste
caso, constitucional) da comunidade política e com as respectivas instituições dessa
fundação, e uma noção de bem comum como algo que diz respeito à comunidade como um
todo. Indicada a possibilidade de Que é o Terceiro Estado? ser enquadrada como uma obra
republicana, devemos dizer ainda que analisá-la aqui é conveniente, se não por si só, para
iluminar alguns aspectos de Do Contrato Social. Ou seja, ainda que Que é o Terceiro
Estado? não pudesse ser considerada republicana, e acreditamos que possa, seu estudo aqui
teria a utilidade de clarear pontos levantados anteriormente em Do Contrato Social.
Rousseau e Sieyes estão colocados aqui como parceiros da defesa da
república unitária, mas são autores que divergem em pontos cruciais (FORSYTH, 1987, pp.
51
Uma das razões que reforçam esse caráter equívoco foram as posições políticas assumidas pelo
abade Sieyes durante a sua vida. Da mesma forma que formulou uma proposta constitucional para a
revolução, também formulou para o golpe que a terminou. A este respeito, Murray Forsyth, num dos poucos
trabalhos em língua inglesa sobre a obra de Sieyes, observa, logo no início do livro: “He was able to intervene
decisively in the course of events the two most notable examples being the motions that he proposed in the
chamber of the Third State in June 1789, and his elaboration of the coup of 18 Brumaire in 1799 which had
the result of elevating Napoleon to power. By the first Sieyes opened the Revolution, by the second he closed
it or rather, as Sainte Beuve remarks, it was closed on him” (FORSYTH, 1987, p. 1).
98
63-4)
52
. O primeiro e mais importante deles é a respeito da idéia de representação.
Rousseau, como indicamos anteriormente, é um crítico ferrenho da representação, enquanto
Sieyes é um radical defensor. Isto fará com que suas idéias de soberania sejam bastante
distintas, o que torna a república unitária defendida em cada uma das suas obras um tanto
diferente. E é isto que passamos a analisar agora, com o foco na relação entre a parte e todo
em Que é o Terceiro Estado?
5.4 A sinédoque de Sieyes ou o terceiro estado como a nação francesa
A proposição contida no texto de Sieyes, publicado em 1789, tem
como principal objetivo atentar contra os privilégios existentes na sociedade francesa de
então. Neste sentido é que sua defesa do Terceiro Estado é feita, atribuindo a ele o espírito
e o destino da nação como um todo:
“Quem ousaria dizer que o Terceiro estado não tem em si tudo o que é
preciso para formar uma nação completa? Ele é o homem forte e robusto
que está ainda com um braço preso. Se se suprimisse as ordens
privilegiadas, isso não diminuiria em nada a nação; pelo contrário, lhe
acrescentaria. Assim, o que é o Terceiro estado? Tudo, mas um tudo
entravado e oprimido. O que seria ele sem as ordens de privilégios?
Tudo, mas um tudo livre e florescente. Nada pode funcionar sem ele, as
coisas iriam infinitamente melhor sem os outros.” (p. 68)
Como se vê, Sieyes diz acima que não somente as ordens privilegiadas não são necessárias
como elas são nocivas para os assuntos de interesse da nação. Se somente o Terceiro Estado
não é a ordem privilegiada da sociedade francesa, e se é interesse da nação que se
combatam os privilégios, isto quer dizer que o Primeiro e o Segundo Estados possuem
interesses contrários aos nacionais: “A partir do instante em que um cidadão adquire
privilégios contrários ao direito comum, já não faz mais parte da ordem comum. Seu novo
52
Sobre a influência de Rousseau: “Sieyes mentions Rousseau on his Works by name only a handful of times
in his unpublished notes, and he refers to him only once, without actually naming him, in his published
writings. Despite this disappointing pucity of direct references, and the lack of any sustained anlysis by him of
Rousseau´s writings, there can be little doubt that Sieyes was thoroughly familiar with them. This is obvious
not only from the style of the notes in one of them Sieyes refer simply to ‘J-J’, in another re refers em
passant to Rousseau´s ideas on music, while in two other he cites a Latin tag taken from Rousseau´s Discours
sur línegalité but also from Dumont´s observation that the Contrat social was one of Sieyes´favourite books
99
interesse se opõe ao interesse geral” (p. 74). Ora, se quem possui privilégios já não pode
fazer parte da ordem comum, isto quer dizer que primeiro e segundo estados devem ser
excluídos da nação, daí Sieyes utilizar a expressão “nação depurada” (p. 72) para se referir
à situação proposta por ele, em que o Terceiro Estado coincida com a própria nação. Neste
sentido, as ordens privilegiadas se constituem como verdadeiros inimigos da nação:
“Nunca será demais repetir que todo privilégio se opõe ao direito
comum. Portanto, todos os privilegiados, sem distinção, formam uma
classe diferente e oposta ao Terceiro estado”. (p. 74).
“Os privilegiados certamente não se mostram menos inimigos da ordem
comum que os ingleses dos franceses em tempos de guerra.” (p. 83)
O estabelecimento das ordens privilegiadas como inimigos do Terceiro Estado e, portanto,
da nação, já coloca presente o conflito político e temos de analisar como este é tratado por
Sieyes nesta obra que estamos analisando.
A oposição de interesses entre o Terceiro Estado e o resto da nação
apontada por Sieyes certamente se encaixa na concepção de conflito que adotamos
inicialmente nesta tese. Mas vejamos onde exatamente ela se situa. Sieyes, como vimos,
fala em “nação depurada” e que aqueles que possuem privilégios não devem fazer parte da
ordem comum, ou seja, devem ser excluídos. Claro que em qualquer república os
privilégios devem ser abolidos, mas Sieyes nem mesmo considera possível a defesa dos
interesses daqueles que não fazem parte do Terceiro Estado. Na verdade, não há
possibilidade de conflito entre o Terceiro e os demais Estados. O que há é o choque entre
interesses privilegiados e os interesses da nação. Estes são os legítimos, os outros devem
ser expurgados:
“Sieyes formulated a tenet that was to weigh heavily on the course of the
Revolution. The affirmation of national sovereignty of the unitary
general will could be accomplished only by the exclusion from the
political area of all those considered enemies of the nation.” (BACZKO,
1988, 108)
when he was living in Chartres, and from the strong echo of Rousseau´s words that are to be found in some of
the products of Sieyes´ pen.” (FORSYTH, p. 59)
100
Os interesses legítimos do terceiro estado não são considerados interesses parciais, mas
interesses do todo.
Complementemos isso com a concepção de representação de
Sieyes.
53
Para ele, um deputado eleito não representa os interesses de quem o elegeu, mas o
interesse da nação como um todo:
“os deputados de um distrito não são unicamente representantes do
bailiado que os nomeou; foram chamados para representar, também, os
cidadãos em geral, a votar por todo o reino. Faz-se necessária, pois, uma
regra comum, e condições que por mais que o desagradem certos
comitentes possam assegurar a totalidade da nação contra o capricho de
alguns eleitores.” (pp. 85-86)
Com esta concepção de representação, não há espaço, na
assembléia de representantes de Sieyes, para o conflito de interesses. Todos são
representantes da nação. Embora os representantes de Sieyes ajam em nome da nação, as
divergências entre eles tornam necessário que as decisões sejam tomadas pela maioria. Em
nenhum momento é necessária a unanimidade. A batalha de Sieyes é para que não haja
possibilidade de que a vontade de uma minoria prevaleça sobre a da maioria:
“Na origem encontram-se sempre vontades individuais, e elas formam
seus elementos essenciais; mas consideradas separadamente, seu poder
seria nulo. Só existe no conjunto. Faz falta à comunidade uma vontade
comum;sem a unidade de vontade ela não chegaria a ser um todo capaz
de querer e agir. Mas é certo também que este todo não tem nenhum
direito que não pertença à vontade comum.” (p. 115)
“Pois uma nação nunca pode estatuir que os direitos inerentes à vontade
comum, quer dizer, à maioria, passem para a minoria. A vontade comum
não pode se destruir a si mesma. Não pode mudar a natureza das coisas e
fazer com que a opinião da minoria seja a opinião da maioria” (pp. 125-
126)
Depreende-se, das citações acima, que a vontade comum não passa
de uma soma das vontades individuais e que ela coincide com a vontade da maioria. Neste
aspecto, Sieyes diverge completamente de Rousseau, para quem, como vimos, a vontade
53
Pasquino aponta as relações entre a teoria da representação de Sieyes e sua concepção de divisão do
trabalho. No entanto, não abordaremos esta questão aqui (PASQUINO, 1998, p. 91)
101
geral é distinta da soma das vontades individuais, não podendo ser reduzida nem mesmo à
unanimidade das vontades, que dirá da maioria. Sieyes não tem qualquer pretensão de que
seja obtida, a partir de um terreno comum das vontades individuais, uma vontade ou
interesse geral que possa ser qualificado de comum, em oposição a interesses particulares.
Isto é reforçado por outras passagens, que julgamos pertinente citar aqui:
“As vontades individuais são os únicos elementos da vontade comum.
Não é possível privar o número maior do direito de expressá-la, nem
tampouco decretar que dez vontades só valem uma, contra outras dez que
valerão por trinta.” (p. 126)
“é uma evidência que vontade comum é a opinião da maioria e não a da
minoria” (p. 126)
“De fato, a maioria não se separa do todo; haveria contradição nos
termos, pois, para tanto, seria preciso que ela se separasse dela mesma.
Somente a minoria pode se permitir não se submeter ao voto da maioria
e, por conseguinte, fazer uma cisão.” (p. 137)
Com isto, tem-se que a principal razão para que o Terceiro Estado,
embora seja parte da nação, seja considerado coincidente com o seu todo não é somente a
natureza de seus interesses
54
, mas também uma questão numérica, como vimos acima. Ele
comporta a maioria da nação. Além disso, e principalmente, sua vontade coincide com a
vontade nacional:
“O Terceiro estado pode considerar-se, pois, sob dois aspectos. No
primeiro se vê como uma ordem. Neste caso é melhor, então, não livrar-
se completamente dos preconceitos da antiga barbárie. Admite duas
outras ordens no Estado, sem se lhes atribuir, entretanto, outra influência
além da que pode conciliar-se com a natureza das coisas. Tem por elas
todas as considerações possíveis, consentindo em duvidar de seus direitos
até a decisão do juiz supremo.
Já no segundo aspecto, ele é a nação. Como tal, seus representantes
formam a Assembléia Nacional: têm todos os seus poderes. Como são os
únicos depositários da vontade geral, não têm necessidade de consultar
seus constituintes sobre uma dissensão que não existe.” (p. 139)
Diante de tudo isto, vemos que para Sieyes o Terceiro Estado, por
ser a maioria, detém interesse e vontade que coincidem com o interesse e a vontade da
102
nação. É com esta formulação que Sieyes defende que o Terceiro Estado deixe de ser nada,
que é o que ele é, para ser tudo na nação francesa. Esta é a maneira como Sieyes resolve o
problema político da existência de mais de um interesse no interior da república. Mas o
autor ainda realiza, rapidamente, uma breve sistematização dos tipos de interesses
existentes nos indivíduos:
“Assinalemos no coração dos homens três espécies de interesses: 1º)
aquele pelo qual os cidadãos se reúnem: apresenta a medida exata do
interesse comum; 2º) aquele pelo qual um indivíduo se liga somente a
alguns outros: é o interesse do corpo; e, finalmente, 3º) aquele em que
cada um se isola pensando unicamente em si: é o interesse pessoal”. (p.
142)
Como em todos os autores que serão estudados aqui, a
preocupação de Sieyes é destinada para os interesses do segundo tipo acima, ou seja,
interesses de grupos, que formam partes em relação ao todo. Estes são os mais perigosos,
segundo ele, pois são os que geram os inimigos mais temíveis em relação à nação. Sieyes
não chega a formular as razões para isso de forma mais detida, mas é bastante claro que é
da ação de grupos que podem se constituir os privilégios, pois dificilmente um cidadão,
isoladamente, conseguirá obtê-los unicamente para si.
No combate ao privilégio e na defesa de que o Terceiro Estado
tenha politicamente a relevância que já tem economicamente na nação, Sieyes enuncia suas
idéias a respeito de como se organizam os interesses na nação. Neste aspecto, vale ressaltar
ainda que a legislação, para o abade, é justamente a enunciação dos interesses gerais e do
que há de comum entre os cidadãos, estando excluídos dela quaisquer tipos de privilégios:
“A lei não concede nada; protege o que existe até o momento em que o
que existe começa a prejudicar o interesse comum.” (p. 145)
“como a união social só pode ser feita por pontos comuns, somente a
qualidade comum tem direito à legislação” (p. 146)
“tudo o que sai da qualidade comum do cidadão não deverá participar
dos direitos políticos. A legislação de um povo só está encarregada do
interesse geral.” (p. 147)
54
Sobre a natureza dos interesses do Terceiro Estado, ver PASQUINO, 1998, p. 61; FORSYTH, 1987,
p. 85.
103
Temos, então, que para Sieyes há um interesse comum nacional
que coincide com o interesse da maioria, e a legislação deve expressar esse interesse
comum. Nesta organização bastante simples, os interesses diversos se encontram de fora da
dinâmica da vida da república, devendo aqueles que se tornarem importantes o suficiente
para ameaçar a unidade nacional serem eliminados. Desta forma, o conflito entre interesses
é visto em sua forma mais extrema, sendo incompatível com a vida ordinária da república.
A política republicana de Sieyes é, portanto, sem interesses e sem conflito.
5.5. A unidade de Sieyes e Rousseau: diferenças
Do ponto de vista do nosso foco nesta tese, que é sobre o conflito e
o interesse, tanto na república de Sieyes como na de Rousseau, o conflito de interesses se
encontra fora da comunidade política, em favor da unidade da república. No entanto, a
maneira como isso se dá em cada um dos autores é um pouco diferente. Vejamos.
Para Rousseau, há divergências entre interesses particulares
(individuais ou coletivos, sempre parciais), mas elas não importam para a formação da
vontade geral, que é aquilo que informa a legislação da república. Cada um pode ter
interesses particulares, até mesmo contrários à vontade geral, desde que haja mecanismos
(um legislador) capazes de expressar, por meio de leis, essa vontade geral. A unidade se dá
pela totalidade de cidadãos que expressam seu interesse comum na vontade geral, que se
externaliza nas leis. Em Rousseau, existe o indivíduo, que só se torna livre na república,
mas a vontade geral não guarda relação com qualquer manifestação individual. Inclusive,
pode ser que nenhuma das vontades individuais ou parciais, dentro da comunidade,
coincidam com a vontade geral. Esta não é produto de soma, de negociações, ou de
ponderações. É algo que emerge a partir do interesse comum da comunidade política,
variando de comunidade para comunidade, como vimos. Na comunidade política de
Rousseau, a formação de sujeitos coletivos não é estimulada, e pode ser considerada até
mesmo algo ameaçador para a mesma comunidade. A vontade de sujeitos coletivos pode
induzir a enganos a respeito da vontade geral, produzir facções, enfim, ser algo pernicioso
para a vida da república. A unidade de Rousseau é totalidade.
104
Para Sieyes a unidade se dá de forma bem diferente. Em primeiro
lugar, ela é mediada pela maioria, e daí ser possível para ele colocar a vontade e o interesse
do Terceiro Estado como coincidentes com a vontade e o interesse nacionais. A unidade
tem a ver com soma numérica de vontades individuais e é, dessa forma, parcial. Em Sieyes,
é possível que a parte signifique o todo. O único (e, obviamente, significativo) requisito, é
que essa parte seja a maioria. Com isto, a vontade comum coincide com vontades
individuais. Não de todos os indivíduos, mas da maioria deles. Assim é que ele pode
formular: “O que é a vontade de uma nação? É o resultado das vontades individuais, como
a nação é o resultado dos indivíduos” (p. 141). A liberdade comum, a segurança e a coisa
pública, para Sieyes, é obtida a partir do atendimento dos interesses da maioria. Lembremos
que é contra os privilégios que Sieyes se insurge e é por causa deles que o autor destinará
suas farpas à formação de sujeitos coletivos na comunidade política:
“A grande dificuldade vem do interesse pelo qual um cidadão está ligado
somente com alguns outros. Daí se originam projetos perigosos para a
comunidade e se formam os inimigos públicos mais temíveis.”
“Não nos surpreendamos, pois, se a ordem social exige com tanto rigor
que não se permita aos cidadãos dispor-se em corporações, se chega a
exigir que os mandatários do poder público que, pelas exigências das
circunstâncias formam verdadeiros corpos, renunciem, enquanto durar
seu emprego, a serem eleitos para a representação legislativa.” (p. 143)
Além disso, para Sieyes a consideração de sujeitos coletivos pode criar dificuldades para
que se verifique o interesse da maioria e, conseqüentemente, da nação. A república unitária
de Sieyes, portanto, é a da unidade de acordo com o interesse da maioria dos indivíduos.
Mas como se encontram os interesses em conflito nessa unidade? Ora, se há o interesse de
uma maioria que coincide com o da nação, o conflito só pode vir de minorias. Interesses de
minorias são facciosos e, no limite, se encontram em oposição ao interesse nacional da
maioria e, portanto, devem ser eliminados. Os interesses que não coincidem com o da
maioria devem ser colocados de fora da comunidade política. Eles, se atendidos, serão
vistos como privilégios, e como tais não devem informar a formulação e a obtenção daquilo
que possa ser o bem geral e comum.
A unidade de Rousseau, portanto, é a da totalidade; a de Sieyes é a
da ma ioria, a da parte pelo todo. Esta diferença se reforça se considerarmos a idéia que cada
105
um dos autores tem de representação. Embora Rousseau admita algum tipo de
representação no governo (que corresponderia ao poder executivo, em termos atuais), em
relação ao legislativo, detentor da soberania, sua intransigência com qualquer tipo de
representação é conhecida. Não há possibilidade de representação porque não há como
reduzir a totalidade, que sedimenta a vontade geral, a ser tomada em sua parte. Em Sieyes,
ao contrário, não só é possível a representação, como ela é desejável. Para Sieyes, os
representantes não representam uma parcela da população, mas a totalidade da nação
55
. Ele
admite a possibilidade de que um conjunto de pessoas possa agir de acordo com os
interesses de toda a república. Isto é possível porque ele vê a nação não como um conjunto
de interesses diversos, mas como algo cimentado por interesses fundamentados em
qualidades comuns a todos os cidadãos: “o direito de fazer-se representar só pertence aos
cidadãos por causa das qualidades que lhes são comuns e não devido àquelas que os
diferenciam” (p. 144). A defesa da representação o distancia de Rousseau, e ao assumir tal
concepção de representação, consolida a retirada do conflito de interesses do interior da
vida política republicana. Se cada representante age em nome da nação como um todo, o
interesse da nação é um só, sem, portanto, haver conflito.
Enfim, nas duas obras analisadas neste capítulo, o conflito de
interesses, ainda que por razões diferentes, se encontra fora da vida política da república,
que é unitária.
55
Para uma tipologia das diversas concepções de representação ver PITKIN, 1972. Aqui, estou tendo como
referência apenas a oposição entre uma concepção de representação como ação em nome de alguém (acting
for) e em nome da república como um todo (standing for).
106
6. A REPÚBLICA PLURAL DE MONTESQUIEU
Montesquieu é, antes de tudo, o sociólogo
consciente da diversidade humana e social
Raymond Aron.
Iniciar um capítulo intitulado “a república plural de Montesquieu”
logo após terminar um capítulo sobre a república unitária francesa pode induzir a alguns
equívocos. Desfaçamo-nos deles. O primeiro é induzido se levarmos juntamente em
consideração a frase transcrita na epígrafe. Neste caso, diversidade, se considerada como
sinônimo de pluralidade, pode ser também considerada como oposta de unidade. Queremos
dizer que, pelo menos em nosso entender e, principalmente, no âmbito desta tese, não é. O
segundo, que está relacionado ao primeiro, diz respeito a uma comparação entre
Montesquieu e Rousseau: embora a contraposição dos títulos possa render uma rápida
comparação entre, de um lado, Montesquieu e suas categorias da pluralidade e da
diversidade e, de outro, Rousseau e as categorias da unidade e da não-diversidade, isso não
significa que Rousseau possa ser considerado um teórico defensor da não-diversidade ou da
homogeneidade.
Raymond Aron enaltece a consciência da diversidade tida por
Montesquieu para apontá-lo como um grande precursor dessa ciência comumente
considerada inaugurada por Auguste Comte. Diversidade, portanto, nessa citação, trata-se
de um conceito sociológico. A pluralidade de que falamos aqui é um conceito político que
se contrapõe a unidade. É neste sentido que a república francesa, principalmente a de
Rousseau, é unitária, e não plural, o que não significa, nem de longe, afirmar que Rousseau
não admitia ou reconhecia a diversidade humana e social. Talvez este não fosse um
problema para ele, mas não é possível afirmar que Rousseau não admitia a diversidade.
Diferentemente disso, o que Rousseau (e Sieyes) afasta ao formular sua república unitária é
a idéia de pluralidade. Qual seria, então, o par oposto da diversidade? Consideramos, aqui,
que seja outro conceito que pode ser considerado sociológico: a homogeneidade. Esta breve
diferenciação conceitual em pares de opostos será bastante útil para analisarmos Os Artigos
Federalistas e Sobre a Revolução.
Com esta breve diferenciação queremos, então, deixar claro:
107
1) pluralidade e unidade são pares opostos;
2) diversidade e homogeneidade são também pares opostos;
3) Rousseau, ao propor a unidade da República, não propõe necessariamente sua
homogeneidade;
4) Montesquieu não se opõe a Rousseau por ter como pano de fundo de sua análise a
diversidade, mas por suas idéias serem opostas à idéia de unidade republicana
proposta por Rousseau;
5) Os Federalistas, como veremos, ao propor a pluralidade em sua República,
diferentemente de Montesquieu, não necessariamente afastam a homogeneidade.
Esta última proposição será verificada mais adiante, mas a sua apresentação aqui já ajuda a
evitar possíveis antecipações equivocadas que poderiam comprometer o entendimento deste
capítulo.
No caso de Montesquieu, é possível que tenhamos uma
coincidência da proposição de uma república plural e ao mesmo tempo baseada numa
sociedade diversa. Mas não são os aspectos sociológicos da obra de Montesquieu que
chamarão mais a nossa atenção. Estaremos preocupados, antes de tudo, com a pluralidade
de sua república, ou, dito de modo melhor, com a não-unidade de sua república. Vejamos.
A obra que analisaremos aqui é seu livro mais conhecido e citado: O Espírito
das Leis. Publicada em 1747, é anterior ao Contrato Social de Rousseau. Mas aqui nesta
tese é analisada posteriormente por essa análise ser um preâmbulo para outra análise da
república proposta na América pelos Federalistas. A influência de O Espírito sobre os
Federalistas é notória, e tentaremos iluminar aqui os pontos que dizem respeito ao tema de
nossa tese: a relação entre conflito e interesse.
108
6.1 A república republicana de Montesquieu
A caracterização da república é feita por Montesquieu na primeira
parte de O Espírito das Leis no âmbito da conhecida tipologia feita por ele, classificando as
formas de governo em monarquia, república e despotismo. Nesta tipologia, república e
democracia são consideradas na maioria das vezes como sinônimos. Em algumas
passagens, Montesquieu parece dividir os governos republicanos em duas modalidades:
aristocracia e democracia
56
. Mas isto não desfaz a tipologia tríplice feita pelo autor. Nesta
tipologia, o que mais importa a Montesquieu é menos a natureza dos governos, e mais o
princípio que os move
57
. Este é o seu motor, o seu espírito, que dará a tônica das
instituições (leis) que deverão ser instituídas no âmbito de cada um. Se o espírito da
monarquia é a honra e o do despotismo é o medo, o espírito da república é a virtude de seus
cidadãos. Mas o que significa isso
?
Que em todas as repúblicas os cidadãos são virtuosos
?
Não. E Montesquieu é bastante explícito nisso: esse é o espírito que deve mover as
repúblicas, para que elas funcionem bem
58
. Sem a virtude dos cidadãos, como o poder de
cada cidadão é igual ao do outro, o que predominam são as facções e a disputa de poder
entre elas. Veja-se o exemplo dado por Montesquieu:
“Foi um espetáculo deveras interessante, no século passado, assistir aos
esforços impotentes dos ingleses para estabelecerem entre eles a
democracia. Como aqueles que participaram dos negócios não tinham
virtude, como sua ambição estava acirrada pelo sucesso daquele que tinha
sido mais ousado, como o espírito de uma facção só era reprimido pelo
espírito de outra, o governo mudava sem cessar; o povo espantado
procurava a democracia e não a encontrava em lugar algum. Enfim, após
muitos movimentos, choques e sacolejos, foi necessário voltar para aquele
governo que tinha sido proscrito” (EL, p. 32).
56
Esta divisão é adotada e assumida por Renato Janine Ribeiro em sua apresentação à edição brasileira da
obra (MONTESQUIEU, 2000, pp. XXXII)
57
Eis a clássica definição de Montesquieu do que seria a natureza e o que seria o princípio de um governo:
“Existe a diferença seguinte entre a natureza do governo e seu princípio: sua natureza pe o que o faz ser como
é, e seu princípio o que o faz agir. Uma é sua estrutura particular; o outro, as paixões humanas que o fazem
mover-se” (EL, p. 31). Como serão muitas as citações da obra neste capítulo, optamos por indicar as
referências pelas iniciais EL seguidas da página de cada referência.
58
“Tais são os princípios dos três governos: o que não significa que, em certa república, se seja virtuoso; e
sim que se deveria sê-lo. Isso não prova que em certa monarquia se tenha honra e que num Estado despótico
109
A virtude é definida por Montesquieu como o amor maior pelo
interesse público do que pelo próprio interesse. Nas repúblicas (democracias), como o
poder é confiado a todos os cidadãos, estes têm de apresentar esta virtude para não
corromper tal forma de governo. O amor pelo interesse público se traduz pelo respeito às
leis e pelo amor à pátria (EL, p. 46). Para isto, a educação dos cidadãos é imprescindível.
Segundo Montesquieu, o desejo pela honra, necessário às monarquias, está completamente
afinado com as paixões humanas, com o desejo de glória e o de distinção. Da mesma
forma, o medo necessário ao despotismo decorre das simples ameaças feitas por aqueles
que comandam tal tipo de governo. A renúncia do interesse particular em nome do interesse
público, ao contrário, é contra a natureza das paixões humanas, pois importa numa renúncia
de si mesmo, e não decorre de um simples modo de governo, sendo necessário que
continuamente seja transmitido por meio da educação, e daí a importância da educação
republicana.
Esta forma de governo, que exige dos cidadãos uma renúncia de si
mesmo e, portanto, vai na contra-corrente das paixões humanas, é o governo da
moderação
59
. Esta característica estará presente não somente em seus cidadãos, como
também em suas instituições. Do ponto de vista social e não apenas individual, a república
é o governo da igualdade real entre os cidadãos. Desigualdades extremas entre os cidadãos
e desigualdade entre os que governam são as causas de perdição dos governos aristocráticos
(EL, p. 63). Para o estabelecimento desta igualdade é necessário que haja leis e que as
mesmas sejam obedecidas. Estas leis também serão o instrumento para o estabelecimento
da moderação entre os cidadãos. Montesquieu admite que a combinação é difícil:
“Para formar um governo moderado, devem-se combinar os poderes,
regulá-los, temperá-los, fazê-los agir, dar, por assim dizer, maior peso a
um deles, para colocá-lo em condições de resistir a outro; é uma obra-
prima de legislação, que o acaso cria raramente e que raramente se deixa à
prudência. Um governo despótico, pelo contrário, salta, por assim dizer,
aos olhos; é uniforme por toda parte: como só precisamos de paixões para
estabelecê-lo, todos são bons para isso.” (EL, p. 74)
particular se tenham temores, e sim que seria necessário tê-los, sem o que o governo seria imperfeito” (EL, p.
40).
59
Moderação é a alma dos governos democráticos e aristocráticos (EL, p. 34)
110
Aqui já temos um esboço da idéia de balanceamento dos poderes e do freio de um pelo
outro que está associada à teoria da separação de poderes de Montesquieu. Mas adiemos
um pouco este tema. Ainda é preciso caracterizar melhor a república. É o governo de
homens iguais, mas iguais pela lei: “No estado de natureza, os homens nascem realmente
na igualdade; mas não poderiam nela permanecer. A sociedade faz com que a percam, e
eles só voltam a ser iguais graças às leis” (EL, p. 123). Portanto, embora Montesquieu
afirme ser a democracia o governo da igualdade real, o que faz essa igualdade real ser
possível fora do estado de natureza é a elaboração de leis que estabeleçam tal igualdade. A
igualdade real de que fala Montesquieu, então, nada tem a ver com igualdade natural, mas
com a igualdade artificial e civil que somente as leis podem estabelecer. Além das leis, é
preciso que os cidadãos sejam virtuosos o suficiente para obedecê-la, como já visto, e
também que haja juízes que sejam apenas a boca pela qual fala a lei:
“Quanto mais o governo se aproxima da república, mais a forma de julgar
se torna fixa; e era um vício da república da Lacedemônia que os éforos
julgassem arbitrariamente, sem que houvesse leis para dirigi-los. Em
Roma, os primeiros cônsules julgaram como os éforos: sentiram os
inconvenientes disto e criaram leis precisas.
No governo republicano, é da natureza da constituição que os juízes sigam
a letra da lei. Não há cidadão contra quem se possa interpretar uma lei
quando se trata de seus bens, de sua honra ou de sua vida.” (EL, p. 87)
Não só o abuso dos direitos individuais é que deve ser combatido numa república, também
o deve ser o despotismo de muitos, caracterizado quando muitos despojam o poder que é
lícito a poucos exercerem. Este é o caso quando o povo usurpa o poder do senado (EL, p.
125) e, com isto, adquire uma liberdade extrema, por não se encontrar limitado por leis
moderadas: “O lugar natural da virtude é ao lado da liberdade; mas ela não se encontra mais
próxima da liberdade extrema do que da servidão”. (EL, p. 124)
60
Com a dificuldade de que se crie essa legislação balanceada, esse
conjunto de instituições que garanta a obediência da legislação, sem o despotismo de
muitos ou o privilégio de poucos, e que se tenha, no povo, um conjunto de cidadãos
60
Aqui é evidente a semelhança da preocupação de Montesquieu com a dos Federalistas com a “tirania da
maioria” presente no famoso Artigo Federalista n. 10.
111
virtuosos Montesquieu admite que somente em países pequenos é viável a forma
republicana de governo:
É da natureza da república que ela só possua um pequeno território; sem
isto não pode subsistir. Numa república grande, existem grandes fortunas
e conseqüentemente pouca moderação nos espíritos; existem depósitos
muito grandes para colocar entre as mãos de um cidadão; os interesses
particularizam-se; um homem sente, primeiro, que pode ser feliz, grande,
glorioso, sem sua pátria; e, logo, que pode ser o único grande sobre as
ruínas de sua pátria.” (EL, p. 132)
Numa república grande, o bem comum é sacrificado em prol de mil
considerações, está subordinado a exceções, depende de acidentes.
Numa república pequena, o bem público é mais bem sentido, mais
bem conhecido, mais próximo de cada cidadão; os abusos são
menores e, conseqüentemente, menos protegidos. (EL, p. 132)
Isto faz com que Montesquieu não veja a república como a melhor forma de governo: “Se
uma república for pequena, ela será destruída por uma força estrangeira; se for grande, será
destruída por um vício interior” (EL, p. 141). Neste sentido, a monarquia apresenta
vantagens em relação à república, pois, embora não seja formada por cidadãos tão
virtuosos, é institucionalmente viável em territórios grandes e, com isto, pode resistir
melhor ao ataque estrangeiro. A forma de governo ideal seria, então, a que combinasse as
características internas da república e a força externa de uma monarquia.
Montesquieu soluciona isso com sua formulação de república
federada. E é a defesa desta forma de governo que inicia a Segunda Parte de O Espírito das
Leis:
"Assim, parecia muito provável que os homens fossem afinal obrigados a
viver sob o governo de um só, se não tivessem imaginado uma forma de
constituição que possui todas as vantagens internas do governo
republicano e a força externa da monarquia. Estou referindo-me à
república federativa.
Esta forma de governo é uma convenção segundo a qual vários Corpos
políticos consentem em se tornar cidadãos de um Estado maior que
pretendem formar. É uma sociedade de sociedades, que formam uma nova
sociedade, que pode crescer com novos associados que se unirem a ela.
(EL, p. 141)
Composto por repúblicas, goza da excelência do governo interior de cada
uma; e, quanto ao exterior, possui, pela força da associação, todas as
vantagens das grandes monarquias." (EL, p. 142)
112
Com isto, Montesquieu caracteriza a sua “forma ideal”
61
de governo, que combina a virtude
da república e a presteza e a excelência da monarquia. A virtude confere o sucesso interno
do governo e a dimensão grande que a monarquia possibilita confere ao mesmo governo
uma segurança militar que agrada a Montesquieu. Neste sentido, ele se encontra muito
próximo aos demais autores republicanos aqui analisados na importância dada ao aspecto
militar das repúblicas. E, se a monarquia, com sua presteza e excelência (EL, p. 67), é a
forma de governo que possibilita a grandeza militar, a virtude republicana é necessária para
a formação dos cidadãos-soldados
62
. Este continua sendo também para Montesquieu um
aspecto essencial para a segurança e a grandeza das formas republicanas de governo
(WOLFE, 1977, p. 435). A segurança militar está relacionada com a própria liberdade da
república (WOLFE, 1977, p. 438), na medida em que, como veremos no próximo tópico, a
liberdade de Montesquieu está fortemente ligada à segurança de cada cidadão de que não
será violado por outros cidadãos, ou, no caso da república como um todo, por outros
Estados. Definida sua forma preferida de governo, o autor passa a discutir como devem ser
as instituições no interior dessa república confederada e, agora, podemos nos aprofundar no
seu pensamento “republicano”. E aqui fica ainda mais claro que a república de
Montesquieu é o governo das leis.
6.2. A república liberal de Montesquieu
Se a república é o governo das leis para Montesquieu, estas, na
teoria do autor, têm total relação com a liberdade. “Liberdade é o direito de fazer tudo o
que as leis permitem” (EL, p. 166) é sua definição clássica. A despeito da clareza da
definição, alonguemo-nos um pouco mais sobre o que ela significa.
A liberdade republicana de Montesquieu nada tem a ver com poder
popular: “como nas democracias o povo parece mais ou menos fazer o que quer, situou-se a
61
Colocamos a expressão forma ideal entre aspas por ser ela de difícil aplicação a Montesquieu, pois ele a
todo tempo enfatiza a necessidade de buscar, nos governos existentes, os princípios e características gerais
que possibilitaram a tipologia adotada por ele. No entanto é possível dizer que, para ele, a melhor, ou mais
próxima da perfeita, forma de governo é aquela que une as características da monarquia e as da república.
62
A preocupação da formação de cidadãos-soldados, como sabemos, não está presente somente em O Espírito
das Leis, mas outras obras já analisadas aqui.
113
liberdade nestes tipos de governo e confundiu-se o poder do povo com a liberdade do
povo.” (EL, p. 166). Também não está relacionada simplesmente com o querer: “Em um
Estado, isto é, numa sociedade onde existem leis, a liberdade só pode consistir em poder
fazer o que se deve querer e em não ser forçado a fazer o que não se tem o direito de
querer” (EL, p. 166). O querer relacionado à liberdade, como se vê, está associado a uma
noção de direito, que somente é concretizável por meio das leis que, por sua vez, estatuem
o que se deve querer. Isto tudo possibilita que expectativas públicas sejam estabelecidas
para que os indivíduos
/
cidadãos acreditem que os demais obedecerão as leis
63
, o que gerará
uma sensação de segurança: “a liberdade política, em um cidadão, é esta tranqüilidade de
espírito que cada um tem sobre sua segurança; e para que se tenha esta liberdade é preciso
que o governo seja tal que um cidadão não possa temer outro cidadão” (EL, p. 168).
Esta equação hobbesiana formulada por Montesquieu é solucionada
por este autor de outra forma. Ao invés de erigir o soberano tal como o pensador inglês,
Montesquieu aponta a solução do governo moderado: “a liberdade política só se encontra
nos governos moderados. Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela
disposição das coisas, o poder limite o poder” (EL, p. 166). A moderação do poder, na
medida em que é o meio pelo qual se constitui a liberdade, é também o que possibilita a
segurança de cada cidadão. Há uma associação clara, portanto, para Montesquieu, entre
liberdade, moderação e segurança (KRAUSE, 2000)
64
.
A liberdade como segurança de que fala Sharon Krause, garantida
pela moderação do governo, é viabilizada, na formulação de Montequieu pela separação
dos poderes do Estado: o executivo, o legislativo, e o de julgar:
Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder
legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque
se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis
tirânicas para executá-las tiranicamente.
Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder
legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder
sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria
63
“Deve-se ter em mente o que é a independência e o que é a liberdade. A liberdade é o direito de fazer tudo o
que as leis permitem; e se um cidadão pudesse fazer o que elas proíbem, ele já não teria liberdade, porque os
outros também teriam este poder.” (EL, p. 166)
64
“It is true that Montesquieu favors moderate governments because they protect individual liberty (in the
form of security)” (KRAUSE, 2000, p. 240)
114
legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a
força de um opressor.
Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos
principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer
as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as
querelas entre os particulares.” (EL, p. 168)
Nesta combinação moderada dos poderes, o poder de julgar é, para
o autor, nulo, sendo que os titulares desse poder devem ser somente “a boca pela qual falam
as leis”. Tal combinação pode ser aperfeiçoada com a existência de uma divisão no corpo
legislativo, que crie uma moderação em seu próprio interior. Além disso, a “opinião sobre a
própria segurança” que dá aos cidadãos a liberdade, é propiciada também pela existência de
leis criminais capazes de promovê-la:
“A liberdade filosófica consiste no exercício de sua vontade, ou pelo
menos se devemos falar em todos os sistemas na opinião que se tem de que
se exerce sua vontade. A liberdade política consiste na segurança, ou pelo
menos na opinião que se tem de sua segurança. É da excelência das leis
criminais que depende principalmente a liberdade do cidadão.” (EL, p. 198)
Montesquieu apresenta uma longa seqüência de considerações sobre
as leis criminais, mas deixemo-las de lado. Fiquemos com a sua famosa formulação da
separação de poderes. É preciso ressaltar que ela está calcada no modelo inglês e diz
respeito a um modelo de estrutura social, diferenciada e estratificada (KRAUSE, p. 260).
Este modelo de estrutura política e social foi para Montesquieu propícia para suas
formulações acerca de uma república que combinasse a soberania (indireta) popular, com
uma forma moderada de exercício dos três poderes do Estado (KRAUSE, 237). Com esta
moderação Montesquieu pôde afastar um de seus maiores temores: o despotismo de todos,
propiciado quando se tem a liberdade dos cidadãos, sem a moderação do governo, o que
acaba por corromper a liberdade dos próprios cidadãos como manter a opinião sobre a
própria segurança sem a idéia de moderação, aos olhos de Montesquieu
?
A separação de poderes é a forma institucional da moderação, para
nosso autor. Com ela, embora se possa falar em soberania popular, em liberdade da
república, se pode também falar em segurança dos cidadãos, por meio de competências
claras para legislar e, principalmente, da existência do judiciário. Enfim, com ela se pode
garantir as liberdades individuais numa república, que exige que os cidadãos sejam
115
virtuosos e que, portanto, estejam mais voltados para o interesse público do que para o
próprio interesse. A separação de poderes possibilita a liberdade
/
segurança individual no
interior da república. Ela parece ser um dos elementos que torna a república de
Montesquieu liberal, na medida em que garante, por meio da segurança individual, um
certo bem-estar da comunidade política. Esta segurança, quando associada à liberdade,
garante também que esta não seja ilimitada, traduzida no exercício da vontade desmedida
do indivíduo, mas sim seja limitada pela regra geral (lei) que torna a liberdade individual
associada à liberdade de todos garantida pela lei. Esta última liberdade é a liberdade
constitucional da república e é aquilo que impede o “delírio da liberdade”, que se traduz, na
verdade, no despotismo de todos (KRAUSE, 2000, p. 240). Gilbert fala de uma “sociologia
da individualidade” (GILBERT, 1994, p. 47), que foi celebrada por Durkheim e Althusser.
Thomas Pangle, numa feliz observação, aponta que, em Montesquieu, o que parece, em
princípio, ser uma definição de liberdade a partir da lei, de fato é uma definição de
liberdade e de lei a partir do indivíduo (PANGLE, 1989, p. 111).
Esta forma de ver a república guarda estreita relação com aquela
que será apresentada pelos Federalistas. Mas deixemos este assunto para o futuro. Vamos
insistir na república liberal de Montesquieu, porque parece ser a qualificação de liberal à
sua república que o torna diferente de todos os seus antecessores
65
. Antes de explicar esta
última afirmação, vejamos um pouco como Montesquieu vê o seu grande modelo, que é a
constituição inglesa:
"England is not, then, the simply best regime for Montesquieu, as
sometimes is suggested. It represents a republican species of
Montesquieu´s ideal type of constitution, one in which the constitution of
separate powers is combined with popular sovereignty; traditional
monarchy is a different species of the same ideal type, where a balance of
powers is combined with the sovereignty of one alone." (KRAUSE, 2000,
p. 243).
Este modelo ideal de combinação de soberania popular com separação de poderes é o que
faz da república de Montesquieu uma república (democracia, com soberania popular)
65
Neste sentido, vale destacar que Thomas Pangle, tem em seu livro Montesquieu´s Philosophy of Liberalism
um capítulo intitulado “Liberal Republicanism”. Daí o título para este item, nesta tese.
116
moderada (com separação de poderes). Mas não é somente isso que chama a atenção de
Montesquieu na Inglaterra. Para ele,
"Outras nações fizeram com que interesses do comércio cedessem a
interesses políticos: a Inglaterra sempre fez com que seus interesses
políticos cedessem aos interesses de seu comércio.
É o povo do mundo que melhor soube aproveitar-se ao mesmo tempo de
três coisas: a religião, o comércio e a liberdade". (EL, p. 349).
O comércio tem, ainda, a grande vantagem de, com a moderação que lhe é associada, ser
um substituto para a virtude: “commerce works its favorable effects without requiring the
painful self-sacrifice of republican virtue” (KRAUSE, 2000, p. 247). Além disso, a
liberdade característica das repúblicas comerciais faz com que os cidadãos se tornem mais
preocupados em adquirir do que em conservar (EL, p. 347), o que torna os indivíduos mais
propensos em relacionar-se com os demais, para fazer trocas e adquirir mais bens. O
comércio não está associado ao atendimento de necessidades, mas à idéia de aumento: “não
são as nações que não precisam de nada que perdem fazendo o comércio; são as que
precisam de tudo. Não são os povos auto-suficientes mas os que não possuem nada em seu
território que encontram vantagens em não fazer comércio com ninguém” (EL p. 359). O
comércio, como se vê a partir dessa passagem, é voltado para aquisição e não para
subsistência. O comércio, portanto, pode estar também associado à expansão da república
(idéia que também será muito cara aos Federalistas). Expansão e moderação na república de
Montesquieu, portanto, estão associadas ao comércio.
Combinando estas observações sobre o comércio na Inglaterra com
a defesa de Montesquieu de que na república o interesse geral deve prevalecer sobre os
interesses particulares, tem-se que o interesse geral não necessariamente está relacionado
com interesses políticos ou propriamente do Estado. Interesses gerais podem ser os do
próprio “comércio”, entendido não a partir dos indivíduos nele envolvidos, mas a partir de
um “espaço público” em que as atividades comerciais seriam realizadas. Neste sentido, é
possível dizer que preservar e estimular o comércio atende ao interesse público, e não
somente ao dos indivíduos que realizam suas atividades e lucram com elas. Mas por quê
essa valorização do comércio
?
Porque ele contribui para a moderação dos costumes, para a
tolerância e, inclusive, para a limitação da paixão dos governos, sem que seja necessária a
117
exigência da virtude republicana (HIRSCHMAN, 1978, p. 92). Ou seja, com o comércio, é
mais fácil a uma república sobreviver sem a virtude dos cidadãos, o que significa que sua
sobrevivência se torna mais viável. Além disso, o comércio também contribui para a
interdependência das nações, o que, por sua vez, contribui para a paz entre elas
66
.
Qualificar a república de Montesquieu de liberal já o torna bastante
diferente dos demais autores estudados aqui, mas talvez convenha desenvolver brevemente
a comparação da sua obra O Espírito das Leis não só com as demais aqui analisadas, mas
também com outros autores do pensamento político, para que possamos detectar
exatamente em quê a obra de Montesquieu foi inovadora e por que se tornou tão influente,
embora, muitas vezes, pareça apenas uma junção de idéias anteriormente apresentadas e
que foram mais bem desenvolvidas por outros autores.
A idéia de moderação
67
nas formas de governo já se encontrava no
pensamento político antigo, tanto de Aristóteles como de Políbio. Em relação a este último,
é citado explicitamente por Maquiavel ao formular seus discursos sobre o governo
republicano. Obviamente, em Maquiavel também estava a idéia de moderação, como já
vimos. Mas o que os diferencia
?
Como vimos, em Maquiavel, há um equilíbrio entre povo
e Senado que, embora não formulado nestes termos, pode ser visto como um equilíbrio de
poderes, fundamentado numa oposição de interesses entre o grupo dos pobres e o grupo dos
ricos. Em Maquiavel há dois pólos de poder que se equilibram. Em Montesquieu, não. Seu
equilíbrio de poderes se dá entre três poderes e, mais importante do que isso, é enunciado
na fórmula geral: um poder deve ser freado por outro poder. Se considerarmos que, embora
haja três poderes, eles possam ser exercidos por diversos órgãos, temos que pode haver uma
multiplicidade de fontes de poder se equilibrando. Esta situação é muito diferente da de
Maquiavel, em que há duas fontes opostas e que se equilibram justamente pela oposição.
Se a idéia de moderação já estava presente nos antigos e em
Maquiavel, muitas passagens em que Montesquieu defende a idéia de liberdade como
segurança individual lembram argumentações de Hobbes. No entanto, aqui a diferença é
clara. Em Hobbes, o problema da segurança é resolvido com a emersão do soberano, fonte
unitária de poder. Ora, se as formulações de Maquiavel se distinguiam das de Montesquieu
66
É interessante notar como esta argumentação é semelhante à de Dahl (2001)em um dos argumentos de sua
defesa da democracia poliárquica.
67
Sobre governos moderados, ver ARAÚJO (2004)
118
pelas fontes de poder, aqui a distinção se dá de forma ainda mais acentuada. A solução de
Hobbes é a da fonte unitária do poder, enquanto para Montesquieu não o é
68
.
Outro autor que poderia ser considerado um precursor da idéia de
moderação de Montesquieu é John Locke, com a sua defesa de que executivo e legislativo
estejam em lugares distintos. Embora esta idéia seja semelhante à de Montesquieu, este a
torna um pouco mais complexa, não só porque acrescenta o poder judiciário em sua
fórmula de moderação, mas, principalmente, porque acrescenta a idéia de que somente um
poder pode frear outro poder. Esta é uma marca que poderá ser considerada como
precursora das teorias políticas tanto dos Federalistas como de Hannah Arendt.
Comparação inevitável também é a sua concepção do comércio
como algo que substitui a necessidade de virtude com as idéias de Hume - outra fonte de
influência dos Federalistas -, o que é reforçado se assumirmos Montesquieu como um autor
liberal. No entanto, o que Montesquieu oferece de particular é a formulação de uma
organização política que corresponda a essa idéia e, com isso, compatibilize a estrutura
política com a organização social. Neste sentido é que Montesquieu, baseado numa
sociedade estratificada que apresenta a nobreza, mas que, ao mesmo tempo, apresenta uma
diversidade de interesses originados do comércio, pode formular a sua idéia da separação
de três poderes com um legislativo bicameral e, junto com isto, formular uma idéia um
pouco mais genérica de que o poder deve frear outro poder.
E, neste último aspecto, voltemos à comparação com Rousseau. Se
considerarmos a concepção de Montesquieu sobre o contrato social, veremos que ela não
difere muito da de Rousseau. No entanto, como já vimos, Montesquieu não concebe a
república como algo unitário, não só pela sua idéia de separação de poderes, mas também
por causa de sua visão do comércio como substituto para a virtude
69
. E o comércio é
essencialmente plural.
Com estas breves comparações, podemos dizer que a república
plural de Montesquieu se encontra assentada em três formulações:
68
Obviamente, as diferenças entre Hobbes e Montesquieu são muito mais acentuadas que esta, mas esta breve
diferenciação é feita apenas para acentuar a caracterização que nos convém aqui, que é a de como
Montesquieu trata o tema do poder na obra analisada nesta tese.
69
POCOCK, 1995, p. 148. Para conhecer melhor a visão que Rousseau tem sobre o comércio, ver
ROUSSEAU, J-J. Considerações sobre o governo da Polônia e sua reforma projetada. São Paulo:
Brasiliense, 1982.
119
(i) a separação dos três poderes em órgãos diferentes;
(ii) a idéia de que somente um poder pode frear outro poder;
(iii) a defesa de que o comércio, com cada um atuando individualmente, contribui
para o bem público.
A primeira formulação é feita a partir da realidade examinada por
ele e da concepção de organização política que melhor se adeque àquela realidade. É neste
sentido que ele aponta que os poderes devem estar situados em órgãos diferentes e que o
legislativo seja bicameral. Com os poderes em lugares diferentes está assegurada a
liberdade traduzida na segurança que cada indivíduo deve ter de que o outro não violará a
sua liberdade. Com o legislativo bicameral é garantido que nobres e não-nobres se
equilibrem no poder legislativo, com a moderação própria do corpo de nobres.
A segunda não diz respeito a uma estrutura política específica,
embora a estrutura contida na primeira formulação se enquadre nesta segunda. O que está
dito é que, ainda que haja diversos poderes, não somente aqueles três elencados por ele, é
possível afirmar, como regra geral, que só um poder pode frear outro poder. Ou, em outras
palavras, se considerarmos outras disputas de poder que não os estabelecidos a partir dos
poderes essenciais de um Estado, podemos aplicar esta regra geral. E ela é bastante válida
se considerarmos uma república confederada, em que cada unidade pode ser considerada
uma fonte de poder. O mesmo ocorre se considerarmos as fontes sociais de poder, que
podem ser diversas numa república em que a principal atividade é o comércio, por
exemplo. Daí, Thomas Pangle afirmar, no nosso entender acertadamente, que a idéia de
separação de poderes vai muito além do simples balanço entre os três poderes do Estado,
mas sugere o balanço de facções em disputa (PANGLE, 1989, 131) e isso é confirmado se
considerarmos que a separação de poderes está fortemente relacionada com a idéia de
segurança e de liberdade de indivíduos e de grupos no interior da república.
Outra vantagem que o comércio traz é a tolerância em relação aos
diversos costumes e preferências existentes em cada sociedade. Esta tolerância, ao lado da
tolerância religiosa, contribui para aquela segurança promovida pela moderação defendida
por Montesquieu. Mas não é esta a marca do nosso autor. John Locke já havia postulado a
questão da tolerância, principalmente a religiosa com bastante ênfase e este é um tema
120
precioso na história da Inglaterra. O que parece distinguir Montesquieu de todos os seus
antecessores é a possibilidade que ele abre para uma pulverização do poder. Para que isto
fique claro, retomemos algumas das idéias apresentadas nas obras já analisadas aqui.
Nos Discursos de Maquiavel vimos que o conflito entre povo e
nobreza gerava as boas instituições que por sua vez garantiam a liberdade da república.
Nesta situação, temos dois pólos muito claros de poder, que se contrapõem e, na medida em
que se expõem publicamente, possibilitam uma solução institucional que promova a
liberdade da república. Ainda que se admita em Maquiavel uma idéia de freios entre os
poderes, o que parece mais claro ali é uma idéia de contraposição entre os poderes, mais
que de freio. Isto é claro pela oposição existente entre povo e nobreza, que dividem o poder
legislativo na república modelar romana de Maquiavel.
Em Harrington, os poderes parecem já estar equilibrados na
instituição das leis da república. Não há movimento após a sua instituição, como vimos
70
.
Em Rousseau e Sieyes há uma unidade de poder, no primeiro manifestada na vontade geral,
que emana do conjunto de todos os cidadãos, e no segundo, na vontade do terceiro estado,
parte que representa o todo, como já apresentado. Nestes dois casos, temos uma unidade de
poder, enquanto no caso de Harrington, podemos falar numa inexistência de manifestações
de poder no interior da vida da república.
O que Montesquieu inaugura é a possibilidade de que haja várias
fontes de poder. Ele fala em três, baseado na realidade social inglesa, e podemos dizer que
sua teoria é calcada naquela realidade (PANGLE, 1989, p. 130). Sua idéia de freios é, sem
dúvida feita a partir da realidade existente na Inglaterra, tida como referência para ele. Mas,
provavelmente de maneira não intencional, ao falar de freio entre os poderes, e sem
estabelecer entre eles qualquer tipo de contradição ou oposição, Montesquieu abriu a
possibilidade da existência de muitos poderes na rotina de uma república. Nem unidade de
poder, nem conflito entre poderes, mas uma pluralidade deles. Mas temos de dizer que esta
pluralidade, em Montesquieu, se encontra de maneira apenas potencial. Como vimos, no
início deste capítulo, o autor não vê com bons olhos o simples controle de uma facção pela
outra, o que segundo ele dificultou a implantação da democracia inglesa (EL, p. 32). É bom
70
E Montesquieu parece concordar com nossa interpretação: “Harrington, em seu Oceana, também examinou
qual era o mais alto grau de liberdade a que a constituição de um Estado pode ser levada. Mas pode-se dizer
dele que só procurou por esta liberdade depois de havê-la desprezado.” (EL, p. 178)
121
destacar que ele fala do conflito entre pobres e ricos como fundamento de um legislativo
bicameral, e que seu freio entre os poderes tem em vista principalmente os freios entre o
legislativo e o executivo, pois o judiciário, em sua formulação clássica, é nulo
71
. No
entanto, ao postular a república “comercial” e ao enunciar o freio entre os poderes, algo
mais se tornou possível, ainda que ele ainda não detectasse com seus olhos de “sociólogo”.
Daí o acerto de Thomas Pangle, como já apontamos, ao sugerir que
a separação de poderes de Montesquieu vai além do simples balanço entre executivo,
legislativo e judiciário, mas abre espaço, ainda que o autor não exatamente o defenda, para
o balanço do poder entre facções em competição no interior de uma república comercial.
Estas observações nos permitem examinar como conflito e
interesse, nosso objeto nesta tese, estão presentes em O Espírito das Leis.
6.3 Conflito e interesse em O Espírito das Leis
Uma vez apresentada a pulverização do poder possibilitada pela
teoria de Montesquieu, resta verificar como conflito e interesse estão presentes na obra aqui
estudada. Como é sabido e já apresentado aqui, há três poderes que se freiam entre si. Há
dois que preponderam nesta relação de freios -, mas o terceiro, o judiciário, tem
importância decisiva neste jogo, pois ele garante a segurança dos cidadãos após o
acontecimento dos fatos, e na medida em que assegura o cumprimento das leis, fontes
maiores de tal segurança. O que isto significa
?
Que não há uma oposição entre eles. Isto é
suficiente para afirmar que não há conflito na república de Montesquieu
?
Não. Também
não ajuda a nossa resposta afirmar que o espírito da república é a virtude. Já vimos que a
formulação republicana de nosso autor não é tão simples assim. Não poderíamos, então, de
forma rápida, afirmar a ausência de conflito na obra.
E, ao contrário, poderíamos afirmar a sua presença
?
Para responder
a esta questão, temos de verificar a presença dos interesses e como ela se dá, para que então
verifiquemos a existência do conflito tal como o caracterizamos nesta tese nos capítulos
iniciais. Então, vejamos.
71
“Dos três poderes dos quais falamos, o de julgar é, de alguma forma, nulo. Só sobram dois; e, como
precisam de um poder regulador para moderá-los, a parte do corpo legislativo que é composta por nobres é
12
2
Em primeiro lugar, quando Montesquieu fala de freios entre os
poderes, mormente o legislativo e o executivo, não está afirmando que haja interesses
opostos, ou mesmo divergentes entre esses poderes. Aliás, poder executivo e poder
legislativo são também funções do Estado, que devem estar em órgãos diferentes (e, ao
longo do tempo, o órgão assumiu o nome da função), além de serem propriamente poderes.
E, aqui, cabe uma pequena digressão sobre a noção de poder presente na obra.
*******
Montesquieu, quando fala de poder legislativo, poder executivo e
poder judiciário está falando de funções do Estado, que se realizam por meio de poderes:
poder de julgar, poder de executar as leis, e o poder de elaborá-las. São três esses poderes,
apresentados de forma razoavelmente clara. No entanto, afirmamos anteriormente que a
marca diferencial de sua obra é a pulverização do poder, que seria bem diferente das obras
já analisadas nesta tese. De fato, a noção de poder de Montesquieu é bem diferente da de
soberania de Rousseau (lembremos que Rousseau não fala exatamente de poder). Aliás,
podemos dizer que a formulação do conceito de soberania de Rousseau é uma reação à
separação de poderes de Montesquieu. E é nessa contraposição que a “separação de
poderes” de Montesquieu pode ficar mais clara.
Em Rousseau, o poder por excelência é o legislativo, que detém a
manifestação da vontade geral, de quem detém a soberania, que é o conjunto de cidadãos.
As funções executiva e judiciária são funções administrativas que podem ser exercidas
inclusive por representantes. O intuito de Rousseau é mostrar que o poder soberano é
unitário, que não há contradição, divergência, ou menos ainda pluralidade de fontes dele.
Sua fonte é única: o corpo político, ou seja, o conjunto de cidadãos.
Em Montesquieu, não há poder que deva predominar, e as funções
do Estado são divididas. Ainda que ele admita que o judiciário é nulo, na medida em que
não formula leis ou ações políticas, sendo somente um meio pelo qual o legislativo se
manifesta, reconhece seu papel primordial para o cumprimento da função primeira das leis,
muito adequada para produzir este efeito.” (EL, p. 172)
123
que é a segurança, e a conseqüente liberdade dos cidadãos e da república
72
. Mas por que
podemos falar de pulverização de poder, se Montesquieu também está falando de separação
das funções do Estado
?
A primeira parte, e a mais simples, da resposta, é que, ao afastar a
idéia de soberania, ele fragmentou os poderes do Estado. Mas podemos acrescentar a isso a
defesa que o autor faz do comércio nas repúblicas e a contribuição que este faz para o
caráter moderado dessas repúblicas e o enfraquecimento da necessidade de cidadãos
virtuosos:
"O comércio cura dos preconceitos destruidores; e é quase que uma regra
geral que em todo lugar em que existem costumes suaves existe comércio
e que em todo lugar em que exsite comércio existem costumes suaves.
Podemos dizer que as leis do comércio aperfeiçoam os costumes pela
mesma razão pela qual estas mesmas leis perdem os costumes. O
comércio corrompe os costumes puros: este era o tema das queixas de
Platão; dá polimento e abranda os costumes bárbaros, como podermos
observar todos os dias.
O efeito natural do comércio é trazer a paz. Duas nações que negociam
juntas tornam-se reciprocamente dependentes: se uma tem interesse em
comprar, a outra tem interesse em vender; e todas as uniões estão
fundadas sobre necessidades mútuas." (EL, p. 344)
Ora, a virtude republicana, como Montesquieu mesmo a formula, é a capacidade dos
cidadãos de colocar os interesses comuns à frente de seus próprios interesses. Essa
capacidade de buscar o interesse comum é o que torna possível a unidade da república
pretendida por Rousseau. Montesquieu não fala nessa unidade e não a defende. Por isso ele
pode defender uma república comercial, em que cada um defende e promove seu interesse
próprio. O que ocorre é que, nesse tipo de república, a própria existência do comércio, local
onde os interesses se manifestam, a liberdade é promovida, sem a necessidade da presença
72
Lembremos que Montesquieu diferencia a liberdade dos cidadãos da liberdade da república: “É preciso
notar que os três poderes podem estar bem distribuídos em relação à liberdade da constituição, ainda que não
o estejam tão bem em relação à liberdade do cidadão. Em Roma, como o povo tinha a maior parte do poder
legislativo, uma parte do poder executivo e uma parte do poder de julgar, constituía um grande poder que
devia ser equilibrado por outro. É certo que o senado possuía uma parte do poder executivo; possuía uma
parte do poder legislativo; mas isto não era suficiente para contrabalançar o povo. Era preciso que participasse
do poder de julgar, e dele participava quando os juízes eram escolhidos entre os senadores. Quando os Gracos
privaram os senadores do poder de julgar, o senado não pôde mais resistir ao povo. Eles feriram, então, a
liberdade da constituição para favorecer a liberdade do cidadão; mas esta se perdeu com aquela.
Disto resultam males infinitos. Mudou-se a constituição num momento em que, no fogo das discórdias civis,
quase não havia uma constituição. Os cavaleiros não foram mais aquela ordem média que unia o povo ao
senado, e a cadeia da constituição foi rompida.” (EL, p. 193)
124
da virtude. Montesquieu afastou aqui a necessidade de unidade de interesse. De forma
associada a isso, afastou a necessidade de que o legislativo, na medida em que este constitui
a externalização de uma vontade coletiva ou geral, preponderasse sobre os demais poderes.
A sua república é sim, uma república de leis, mas estas não são necessariamente a
manifestação única de uma vontade geral. Esta, para Montesquieu, se existe, não deve ser
procurada. O papel das leis não é exprimir o interesse geral, mas sim delimitar a liberdade,
garantindo a liberdade de todos. Isto só é realizado por meio dos outros poderes do Estado.
Mas esses poderes traduzem interesses diversos da república
?
Não.
Talvez haja um interesse comum da república, que seja exatamente o da preservação da
segurança e da liberdade, mas este não se exprime por meio de um corpo unitário, nem de
uma síntese ou solução pública que emerja do conflito entre os diversos poderes. Ao
contrário, é da moderação e do freio entre três corpos de poder que tal interesse comum se
realiza. Enfim, a cada poder não corresponde um interesse na república de Montesquieu. E
agora podemos voltar à discussão do interesse e do conflito.
******
A idéia de que a cada poder do Estado não corresponde um
interesse precisa ser mais bem desenvolvida. Em relação ao lastro social de cada poder,
Montesquieu é claro somente quando defende o legislativo bicameral. Não há qualquer
correspondência entre um determinado setor da sociedade e um poder do Estado, embora os
diversos comentadores citados aqui reconheçam que a formulação política de Montesquieu
tenha como base a realidade social da Inglaterra. Com isso, na separação de poderes de
Montesquieu não há interesses a serem contrapostos. Há, tal como Thomas Pangle sugere,
poderes em disputa, o que pode ser ampliado para grupos em disputa no interior da
república. Esses grupos em disputa, detentores de poder, devem ter seus respectivos
poderes balanceados e freados entre si.
Por isto é que, em Montesquieu, em nenhum momento emerge
qualquer solução unitária para as diferenças existentes no interior da república. Se em
Maquiavel há as leis que emergem do conflito entre povo e Senado, em Harrington o
estabelecimento das leis afasta os interesses que poderiam haver, na medida em que
125
delimitam a propriedade, e em Rousseau e Sieyes há a unidade da república, em
Montesquieu nada disso está presente, nem é necessário. Na república comercial sugerida
potencialmente por Montesquieu vários grupos podem estar em disputa, defendendo seus
interesses. Mas eles não precisam ser “retirados” ou “solucionados” por meio da
constituição legal da república. Eles podem sempre continuar existindo, freando-se e
balanceando-se mutuamente.
A partir deste freio entre os diversos grupos é que será possível a
Montesquieu afirmar que o comércio e a moderação vinda com ele torna desnecessária a
virtude. A isto soma-se que os hábitos moderados próprios às comunidades comerciais
estimulam a tolerância e a convivência entre os diversos grupos no interior de cada
comunidade. Assim, na república de Montesquieu a virtude republicana, tão cara até então,
deixa de ser necessária, e a grande dimensão de sua república confederada, caracterizada
pela atividade comercial, possibilita que o interesse comercial prevaleça sobre o político e,
assim, o interesse geral possa vir antes dos interesses particulares sem que estes tenham de
ser mitigados. Nesta república a defesa de cada um de seus interesses particulares
praticamente coincide com o interesse geral e não há contradição nem oposição entre eles.
Concretamente, Montesquieu valoriza, de um lado, as tradições e a estrutura comunitária
inglesa, mas ao mesmo tempo destaca a possibilidade que sua constituição dá a que o
indivíduo defenda seus interesses e possa colocá-los à frente das questões políticas. Isso
faria de Montesquieu, nas palavras de Alan Gilbert, um “comunitarista liberal” (GILBERT,
1994, p. 63). Mas poderíamos dizer que em Montesquieu já se opera o que Pocock
denominou de “americanização da virtude” (POCOCK, 2003, pp. 506 e ss.), que se traduz
no declínio da virtude clássica republicana em favor da ascensão do interesse
?
Acreditamos
que não. O que ocorre em Montesquieu é apenas um preâmbulo do que ocorrerá em Os
Federalistas. Montesquieu dá a base teórica e institucional para a pulverização do poder.
Mas sua formulação ainda não a realiza. É com os Federalistas que esta pulverização irá se
realizar, e o interesse ocupará o espaço da virtude. Em Montesquieu, embora haja uma
defesa da república comercial, há críticas a uma potencial homogeneidade social que
poderia advir com a simples presença do interesse individual (KRAUSE, 2000, p. 264). Por
isto cumpre sempre lembrar que sua idéia de freio entre poderes, embora potencialmente
abra espaço para uma pulverização de poder, tem como ponto de partida a realidade social
126
da Inglaterra e sua respectiva diferenciação social (KRAUSE, 2000, p. 264). É necessário
insistir: a pulverização do poder presente em Montesquieu é apenas sugerida. Sua
formulação tem em vista aquilo que descreve: os poderes do Estado freando-se entre si
numa república comercial em que os hábitos advindos da atividade comercial contribuem
para a moderação e a presença de interesses individuais é condizente com o interesse
público indicado pela vocação comercial da república.
Mas ainda resta verificar, de forma clara, como interesse e conflito
se articulam em O Espírito das Leis.
Como vimos, os interesses estão no interior da república
confederada e comercial de Montesquieu, embora não estejam quando o autor formula o
conceito de república na sua tipologia inicial na obra. No entanto, mesmo na forma
confederada, a relação entre esses interesses não é tipificada pelo autor. Eles convivem no
interior da república, sem que seja levado em consideração se há contradição ou oposição
entre eles. Com isto, então, não há espaço para o conflito na república de Montesquieu.
Podemos dizer que, em sua república comercial e confederada o interesse retorna para o
interior da vida política da república, mas não o conflito.
Diante disto, e retornando a comparação entre Montesquieu e
Rousseau que estava presente no início deste capítulo, podemos dizer que mais do que um
debate sobre a soberania ou divisão de poderes do Estado está presente um debate sobre
como os interesses se articulam no interior da república. Neste sentido, temos de reforçar
que o que Rousseau defende, em sua república unitária, não é que haja uma uniformidade
de interesses e, portanto, uma homogeneidade deles no interior da vida da república. O que
há é a possibilidade do estabelecimento de algo unitário nesses interesses, que não se
confunde com qualquer deles em particular e que pode informar o que seria o interesse
público, ou a vontade geral da república. A unidade defendida por Rousseau, portanto, em
nada tem a ver com uniformidade ou com a ausência do reconhecimento dos interesses
existentes no interior da república. Rousseau admite a diversidade e a reconhece, mas em
sua formulação política tem de estabelecer mecanismos para que ela não apareça e, com
isso, os interesses particulares diversos dêem lugar ao interesse público, geral e único. Em
Montesquieu, a diversidade é reconhecida e a formulação política é feita para que esses
diversos interesses possam se manifestar. No interior de sua república, há uma pluralidade
127
de interesses que devem coexistir e podem competir entre si, freando-se mutuamente. O
interesse público e comercial coincide com esses interesses particulares em competição, e
não há por que afastá-los em nome de um interesse comum e unitário. Montesquieu chega
a, tal como Mandeville, afirmar que os vícios não necessariamente são perniciosos para a
república. Montesquieu faz essa defesa de forma mais “envergonhada” do que a feita por
Mandeville em 1723:
"Não disse isso para diminuir em nada a distância infinita que existe entre
os vícios e as virtudes: Deus me livre! Eu apenas quis mostrar que nem
todos os vícios políticos são vícios morais e nem todos os vícios morais
são vícios políticos; e é isto que não devem ignorar aqueles que criam leis
que contrariam o espírito geral. "(EL, p. 321)
Com isto retornamos à comparação que inicio u este capítulo para reafirmar, acreditamos
que com maior clareza, que o que coloca Montesquieu e Rousseau em terrenos opostos é o
fato de este último postular uma unidade de interesse para o estabelecimento do interesse
público no interior da república, enquanto para o primeiro a pluralidade de interesses
particulares coincide com o próprio interesse público.
Embora Montesquieu indique a pluralidade de interesses e a
respectiva pulverização de poder, não possível, em sua obra, que tal pulverização chegue
até o indivíduo, o que poderia ser sugerido a partir de sua formulação sobre a introdução,
no seu esquema de separação de poderes, do judiciário. A preocupação política de
Montesquieu com o indivíduo é a de que a república seja capaz de garantir a sua segurança,
mas o indivíduo não é, em si, uma fonte de poder. Mesmo a formulação de Montesquieu
sobre o judiciário, e ainda que a associemos à sua república comercial, não pode ser
considerada como tendo em vista a impulsão do indivíduo como a fonte de poder. Embora
Montesquieu admita a manifestação das paixões individuais e do egoísmo individual como
elementos informadores para as instituições da república - e daí mais uma diferença
marcante com Rousseau (GILBERT, 1994, p. 57) - , elas não podem ser vistas como
características para a geração de poder. Isto acontecerá com os Federalistas, como veremos,
mas Montesquieu não pode ser considerado um antecessor neste aspecto. O poder, em
Montesquieu, sempre está associado a um grupo gregário, seja unido pela identidade de
estrato social, seja pelas relações amenas possibilitadas pelo comércio. Em Montesquieu, a
128
pulverização do poder está associada à pluralidade de grupos gregários que podem ser
encontrados na sociedade, que estabelecem convenções entre si. Estas convenções, em
grande número nas sociedades comerciais, tornam necessária a existência de leis, ao
contrário da de juízes (EL, p. 355). Um grande número de juízes é necessário quando há
predominância de atividades individuais, e a possibilidade de ameaça da segurança por um
indivíduo, ou de que um indivíduo tenha sua segurança ameaçada é maior. Novamente,
como veremos seu tratamento ao judiciário será diferente daquele dado pelos Federalistas.
Também não é o indivíduo aqui um agente que deve obter a autonomia em todos os
âmbitos da sua vida (privada e pública), como pretendia Rousseau. Neste aspecto,
Montesquieu está mais uma vez em um terreno oposto ao de Rousseau (BERLIN, 2002).
Finalizada a ligação deste com o capítulo anterior, voltamos nosso
pensamento para o próximo capítulo. Como já dissemos, Montesquieu é apenas um
preâmbulo para o que irá ser operado na formulação política dos Federalistas. Aqui, o
conflito permanece fora da política, com o resgate do interesse. Mas este resgate ainda se
dá de forma tímida, sem que os interesses propriamente individuais prevaleçam. Isso é o
que acontecerá com os Federalistas. Passemos a eles.
129
7. A REPÚBLICA PLURAL AMERICANA
Do I contradict myself?
Very well then I contradict myself.
(I am large, I contain multitudes).
Walt Whitman
Após o preâmbulo de Montesquieu, vamos lidar agora com a
república americana, na formulação feita pelos Federalistas. E aqui cabem alguns
esclarecimentos preliminares sobre as denominações que utilizaremos para tratar da obra e
dos autores em análise. Em primeiro lugar, a edição utilizada aqui será a edição em
português da Editora Nova Fronteira, intitulada Os Artigos Federalistas
73
. Seguiremos esta
denominação, embora muitos de seus comentadores refiram-se à obra como O Federalista.
Utilizaremos a expressão “os Federalistas”, com letra maiúscula para denominar os autores
da obra: Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, e a mesma expressão, em letra
minúscula, para designar aqueles que eram favoráveis ao projeto constitucional federalista
(e não ao confederalista). Poderíamos utilizar Publius, que foi o pseudônimo utilizado pelos
autores e é freqüentemente usado pelos comentadores, mas optamos por utilizar os
Federalistas, que é como entre nós, no Brasil, eles são chamados com mais freqüência.
‘Anti-federalistas’, com letra maiúscula, são os autores dos artigos contrários aos Artigos
Federalistas e anti-federalistas, com letra minúscula são aqueles contrários aos federalistas,
naquele debate constitucional. E utilizaremos a expressão founding fathers para designar
aqueles que participaram da fundação constitucional americana em geral.
Outro esclarecimento que devemos fazer é o do objeto deste capítulo.
Analisar Os Artigos Federalistas pode sempre sugerir a análise da Revolução Americana e
da Constituição que acabou sendo ratificada. No entanto, temos de dizer que nossa análise
aqui será limitada aos Artigos, e a invocação dos antecedentes da revolução, ou da
Constituição posteriormente ratificada será feita somente na medida em que for necessária
para a compreensão do texto em análise. Temos, portanto, quatro grandes pontos históricos
a serem diferenciados: a Revolução Americana e a Declaração de Independência de 1776, a
Constituição aprovada na convenção de Filadélfia em 1787, a publicação dos Artigos
73
Gostaríamos de notar aqui que, na edição brasileira, James Madison aparece como primeiro autor, ao
contrário das edições americanas, entre elas a que utilizamos aqui, em que Alexander Hamilton aparece como
130
Federalistas em 1787-1788 e a posterior ratificação da Constituição pelos Estados. É
importante que esta distinção fique clara, e, embora ela seja óbvia, não é tomada claramente
como pressuposto em duas análises contemporâneas, que é a de Hannah Arendt e a de
Philip Pettit, como será mais adiante visto.
O período entre 1776 e 1787, que compreende o intervalo entre a
declaração de independência e a aprovação da Constituição é chamado pela literatura sobre
o tema de "período crítico". Neste período, o que estava em vigor eram os Artigos da
Confederação e era com eles que a nova Constituição normalmente era comparada. E foi na
defesa deles, ou de propostas de divisão da confederação em confederações menores -
como várias vezes é mencionado no texto dos Artigos - que muitos se insurgiam contra a
Constituição e a União ali instituída. Por isso, no debate com os Federalistas, seus
adversários eram chamados de "confederacionistas" ou "confederalistas", que defendiam
uma maior autonomia dos Estados, enquanto os federalistas defendiam um poder mais
centralizado na figura da União, ainda que na estrutura por eles defendida restasse boa parte
do poder dos Estados.
A diferenciação dos diversos momentos que compreendem o período
em torno da constituição da república americana tem utilidade para a delimitação clara de
nosso objeto de análise, pois a bibliografia sobre os Artigos Federalistas é vasta, muitos
recortes para a abordagem cabível nesta tese tiveram de ser feitos. O contexto histórico em
que foram elaborados os artigos, sua oportunidade no debate de então e as conseqüências
políticas (muito concretas) do que estava ali contido serão levados em consideração apenas
para clarear o que está no texto.
O que fizemos aqui foi uma seleção dos textos que contribuíram para
o nosso argumento e de textos que em sua maioria tinham como foco os Artigos
Federalistas. Preferimos estes aos que apresentavam críticas aos autores inseridos numa
corrente ou num período histórico mais amplo, pois isso exigiria deste trabalho outros
debates que não eram o seu foco. Enfim, como nos outros capítulos, nos dedicamos ao texto
analisado, buscando extrair dele as diferenciações teóricas que interessavam a esta tese.
primeiro autor. Hamilton foi o autor de um maior número de artigos. Não investigamos por que Madison
aparece como primeiro autor na edição brasileira.
131
7.1 O Republicanismo dos Artigos Federalistas
O primeiro aspecto a ser analisado é o caráter republicano dos
Artigos Federalistas. Se em Montesquieu, predecessor dos Federalistas em vários aspectos,
já falávamos em república liberal, aqui essa qualificação ganha mais força. Aliás, talvez
aqui a expressão realmente ganhe sentido. A pertinência do texto dos Artigos Federalistas a
esta ou aquela tradição do pensamento político se confunde com a interpretação dos
eventos históricos a eles relacionados. Assim, mais do que uma análise da filiação teórica
dos Federalistas, foi feita, no contexto do debate americano, sempre uma análise das idéias
que predominaram na formação política americana. Em 1955 foi publicado o principal livro
de filiação americana à tradição liberal, de Louis Hartz: The Liberal Tradition in América:
An Interpretation of American Political Thought since the Revolution. Nesta obra, a tese
principal do autor é a de que teria predominado nos Estados Unidos, desde a Revolução
Americana, as teorias liberais, principalmente a de John Locke. Esta interpretação
consolidou algo que já era corrente na bibliografia sobre a revolução americana e sobre a
fundação constitucional, de que o pensamento político fundante dos EUA seria liberal.
Em 1967, foi publicado The Ideological Origins of the American
Revolution, de Bernard Bailyn, que deu o pontapé inicial de uma corrente de interpretação
da formação política dos EUA como sendo republicana. Esta linhagem de interpretação tem
ainda duas obras seminais, que são The Creation of the American Republic, publicada em
1969, de Gordon Wood, e The Machiavellian Moment, 1975, de J.G.A. Pocock
74
. Além
dessas obras, uma grande autora que integra o rol dos republicanos, Hannah Arendt,
anteriormente a todos eles, em 1963, com On Revolution, se apropriou das formulações dos
Federalistas para a sua própria teoria, o que, ainda que a autora não inaugure expressamente
essa linha de interpretação, até mesmo porque seu trabalho não pode ser classificado como
74
Para uma revisão da linhagem republicana de interpretação da fundação americana, ver "Republican
Revisionism Revisited" (KRAMNICK, 1982).
132
historiográfico, a coloca como reforço à interpretação dos Federalistas como autores
republicanos
75
.
Joyce Appleby, como já apontado no Capítulo 2 desta tese,
reconhece o valor e indica limites de tal interpretação republicana. Segundo ela, embora tal
linhagem de interpretação tenha o mérito de ter arejado o debate sobre a tradição
predominante do pensamento político americano, que até então era dominado pela corrente
liberal, apresenta o problema de ter se tornado uma espécie de terreno onipresente, em que
estariam situadas quaisquer posições ou linhas de interpretação no debate político
americano. Essa onipresença faz com que as disputas entre tais interpretações sejam
mitigadas.
Além da crítica apresentada por Appleby, o debate liberalismo x
republicanismo entre os americanos não esgota todas as questões em disputa nas
interpretações relevantes que se sucederam desde a Revolução Americana. As principais
questões foram mapeadas por Alan Gibson, em seus dois recentes livros Interpreting the
Founding (2006) e Understanding the Founding (2007) e, além do
republicanismo
/
liberalismo, são:
- o debate em torno do caráter econômico dos interesses em disputa na Convenção
de Filadélfia, que se deu principalmente a partir de An Economic Interpretation
of the Constitution of United States, de Charles Beard;
- o debate sobre o quão democrática foi a Constituição ratificada, o que varia de
acordo com o conceito de democracia que se toma e, de uma certa forma, é feito
até recentemente, como demonstra o livro de Robert Dahl How Democratic is
the Constitution;
- a herança escocesa, principalmente de David Hume, que tem como expoente
principal Douglass Adair e, recentemente, Mark Spencer, com um trabalho
minucioso, resgatando fontes históricas para demonstrar a influência do escocês
sobre os Federalistas (2005);
75
Para um exame sobre as idéias republicanas presentes no debate político sobre a revolução americana numa
tentativa de ir além do que Bailyn e Wood foram, ver o empolgado artigo de SHALHOPE, Robert .
"Republicanism and Early American Historiography. " The Willian and Mary Quarterly, 3rd. Ser., Vol. 39,.
No. 2 (Apr. 1982), pp. 334-356.
133
- a tentativa de resgate dos founding fathers esquecidos, ou seja, grupos que
participaram da fundação americana, mas por serem grupos que historicamente
foram alijados do protagonismo histórico, não são considerados fundadores,
como o dos nativos americanos e o das mulheres (neste último caso, sugere-se a
expressão founding mothers).
O primeiro debate acima indicado é o principal deles e está
associado a um grande debate que de uma certa forma permeia todos eles que é o da
linhagem Progressiva, na qual se incluem Charles Beard e todos aqueles que, de alguma
forma, reivindicam a existência do conflito social no contexto da revolução e da fundação
constitucional americanas, e a Não-Progressiva ou Consensual, formada por aqueles autores
que ou não reconhecem os conflitos existentes no mesmo contexto ou diminuem sua
importância. O livro de Charles Beard é provavelmente o mais debatido de todos os escritos
sobre a formação política americana. Sua tese, a de que, na convenção de Filadélfia, na
verdade estavam em jogo a disputa de interesses econômicos dos proprietários rurais e os
de uma "classe" comercial, foi o ponto de referência para a medida do quanto os founding
fathers estavam realmente preocupados com questões da fundação política e do interesse da
nação. Suas afirmações constituíram um marco na literatura sobre o tema, e se tornou uma
referência obrigatória. Ainda que não se adote o mesmo método que o dele - o de investigar
os interesses reais que moveram os fundadores -, as suas afirmações contribuem para
questionar a afirmação da linha de interpretação consensual de que, nos debates da
formação americana, os conflitos sociais não estavam presentes porque eles não existiam,
ou simplesmente foram deixados em segundo plano para a busca do interesse maior da
nação. Este questionamento terá impacto indireto em nosso trabalho, como veremos. Na
linhagem progressiva, ainda, quem ocupou uma posição de destaque e esteve presente neste
debate em diversos momentos foi Merrill Jensen que aqui está presente em artigos de 1937,
1957 e 1970. Embora não tenhamos examinado seu trabalho fundamental, The Articles of
Confederation: An Interpretaton of the Social-Constitutional History of The Amercian
Revolution, 1774-1781¸ estes artigos dão uma boa noção da força de sua posição no debate
e os títulos já indicam sua pertinência no segundo debate acima indicado. O fato de nosso
foco de análise ser o conflito de interesses poderia indicar uma filiação imediata a esta
134
corrente. No entanto, embora sejamos bastante simpáticos a ela, nossas preocupações são
outras. Não estamos interessados em analisar, como já dissemos, no contexto social
americano do final do século XVIII a existência ou não de classes sociais, ou de segmentos
em conflito. Estamos preocupados com, no texto dos Artigos Federalistas, como o conflito
de interesses foi tratado. Estas obras apenas nos auxiliam a verificar que não
necessariamente há uma justificativa simplesmente factual para o que foi defendido
naqueles artigos
76
. Aliás, é difícil acreditar que um Estado em formação que, mais tarde
passou por uma guerra de secessão entre norte e sul, baseada entre outras, numa questão
racial, não tivesse conflitos sociais a serem resolvidos. Se os fatos não justificam
simplesmente o texto, há opções teóricas, que serão aqui analisadas.
O segundo debate, a respeito do caráter democrático da constituição
americana, está muito associado à interpretação da disputa entre federalistas e anti-
federalistas e o papel que estes desempenharam no debate político daquele momento.
Muitos dizem que estes é que eram democráticos, estes é que eram republicanos. Na
disputa entre federalistas e anti-federalistas, bastante abrangente é a coletânea de artigos
organizada por Gordon Wood, The Confederation and the Constitution. Cecilia Kenyon,
buscando defender, ainda no momento em que escreve, os Federalistas dos ataques anti-
federalistas, afirma que os Anti-federalistas eram homens de pouca fé no governo
representativo (KENYON, 1973) e, com isto, não poderiam defender uma república de
grandes extensões, como propunham os Federalistas, que foram vencedores e mostraram e
comprovaram a viabilidade de seu empreendimento. O que a análise de Kenyon acrescenta
ao debate corriqueiro é que os Anti-federalistas eram também grandes constitucionalistas e
que, portanto, o debate ali não se dá em torno da qualidade técnica das propostas
institucionais, mas da "fé" na sua viabilidade real
77
.
76
Apenas para indicar mais uma referência bibliográfica, Brown e Fehrenbacher sugerem perspectivas para a
interpretação da revolução americana: a perspectiva da tradição, que tem como foco a sacralização e
imortalização dos founding fathers e daquele momento histórico; a perspectiva do conflito que situa a
revolução americana no contexto das rebeliões sociais americanas e inglesas; e a da modernização, que coloca
a revolução como um evento singular na história das revoluções, significando sua "modernização". (BROWN
e FEHRENBACHER, 1977).
77
Ressaltando a qualidade teórica dos textos dos Anti-federalistas, considerando alguns deles inclusive
superiores aos Artigos Federalistas, ver a obra de Vernon L. Parrington Main Currents in American Thought:
An Interpretation of American Literature from the Beginnings to 1920 (PARRINGTON, 1958). Para um
comentário sobre tais observações, ver o artigo de Douglass Adair "The Tenth Federalist Revisited" (ADAIR,
1951, p. 64).
135
O terceiro debate tem especial importância para esta tese por dizer
respeito à influência teórica que é pano de fundo para a nossa análise feita a partir do
conceito de conflito de interesses. Hume é provavelmente a principal fonte teórica dos
Federalistas neste tema, e muito do debate sobre sua recepção está associado ao próprio
debate sobre o tratamento do interesse nos Artigos. Atualmente, a influência escocesa é
inegável, sobretudo em relação a Madison, que teve John Whiterspoon como professor,
sendo este, na condição de escocês, um dos principais receptores da obra de Hume na
América naquele período.
O quarto debate tem como principal foco enfatizar a importância dos
Anti-federalistas reivindicando também para estes a posição de founding fathers. Com este
objetivo, Christopher Duncan escreveu o seu trabalho The Anti-Federalists and the Early
American Political Thought, indicando que as propostas por eles defendidas eram muito
mais democráticas e condizentes com o espírito da revolução americana. Digno de nota
também é o artigo de Annie Mitchell a respeito de um dos "autores" dos Anti-Federalist
Papers: A Liberal Republican "Cato".
Além destes debates, temos de apontar, na autoria dos Federalistas,
uma tensão entre as idéias de Hamilton e de Madison. Para a análise desta tensão muito
esforço foi feito para a identificação da autoria dos Artigos e, neste aspecto, são capitais e
praticamente definitivos os artigos publicados por Douglass Adair em 1944
78
. Mas esta
tensão tem se esfriado
79
principalmente porque passou a haver uma espécie de consenso de
que Madison, embora não tenha escrito a maioria dos Artigos Federalistas, é o principal
autor e o grande "teórico político"
80
. A explicação para isto está relacionada à própria
análise do caráter mais democrático ou expansionista das propostas dos Artigos, que estaria
associada a um lado mais democrático e propriamente político (Madison) em oposição a
outro lado mais vigoroso e enérgico (Hamilton) (KRAMNICK, 1988), mas não entraremos
78
Mas ainda restam dúvidas sobre a autoria de alguns artigos. Ver: KESLER, 2003, p. xiii. (Introdução aos
The Federalist Papers).
79
Esfriou, mas não deixou de existir. Ver artigo de Colleen A. Sheehan: "Madison v. Hamilton: The Battle
over Republicanism and the Role of Public Opinion" (SHEEHAN, 2004).
80
Para uma análise sobre a valorização das figuras da Convenção de 1787, ver o trabalho de Richard Maxwell
Brown e de Don E. Fehrenbacher, em que destacam a sacralização de Washington no momento pós-
revolucionário, e apontam a emergência de Madison como a grande figura do período após a II Guerra
Mundial. Os autores apontam que, nas décadas de 50 e 60 o Artigo Federalista n. 10 foi mais analisado que a
própria Declaração de Independência, se tornando o texto histórico americano mais debatido naquele período
(BROWN e FEHRENBACHER, 1977, p. 38).
136
aqui neste debate. A valorização de Madison ou de Hamilton diz respeito, além de uma
avaliação dos impactos teóricos das formulações de um e de outro, a aspectos da vida
política americana que não puderam ser objeto desta tese.
Como se vê, estes debates extrapolam a filiação dos Artigos
Federalistas, que é o nosso objeto aqui. No entanto, a sua breve sistematização nos ajuda a
problematizar a filiação republicana dessa obra, que será assumida aqui por terem sido os
Artigos incorporados pelos autores republicanos contemporâneos como integrantes
relevantes dessa tradição de pensamento. Isto não será feito sem críticas, mas tal admissão é
necessária, até para que as críticas sejam feitas.
7.2 A república dos Artigos
Antes de investigarmos qual o sentido de "república" nos Artigos
Federalistas é preciso lembrar que a república ali presente é debatida num contexto pós-
guerra (ou revolução) de independência em relação à metrópole inglesa. Neste sentido,
contra o governo monárquico inglês é que se constrói o sentido de república no debate
americano em que os Artigos Federalistas estão inseridos. Por isto, quem quisesse sair
vitorioso naquele debate, teria que demonstrar que a sua proposta era a melhor (ou mais
verdadeira ou autêntica) forma de governo republicano (STOURZH, 1970, pp. 55-6). E
tanto os Federalistas quanto seus adversários tinham em conta que era a organização da
liberdade, e do poder que foram as molas que impulsionaram todo o movimento de
independência, que estava em discussão. Não é por acaso que Bernard Bailyn, em seu The
Ideological Origins of the American Revolution tenha dedicado um capítulo com o título
"Power and liberty" e outro "The Contagion of Liberty". E, na disputa de como deveria se
dar essa organização, não somente os autores dos Artigos e os defensores de um governo
centralizado invocavam para si o qualificativo de republicanos. Também os anti-
federalistas se consideravam republicanos. O que diferencia principalmente os dois
pensamentos republicanos é que os anti-federalistas, contrários à instituição de uma União
centralizada, defendiam que o interesse comum das treze repúblicas emergiria da própria
vida republicana e geraria a união entre as treze repúblicas, enquanto que os Federalistas
137
acreditavam que uma União que detivesse o poder centralizado seria necessária para que os
interesses locais fossem deixados em segundo plano em nome de um interesse maior:
“The Federalists thus rejected the Antifederalist argument that union
naturally grew out of common interests: the Federalists were convinced
that the true interests of the American people would remain unrecognized
and unfulfilled until a strong national government, capable of restraining
and directing narrow local interests, was instituted” (ONUF, 1988, p. 94).
Além disso, os anti-federalistas eram mais preocupados com a
existência de mecanismos de manifestação das vontades soberanas dos Estados e da
respectiva participação popular em cada um deles, o que ocasionava mais uma razão para
serem contrários à instituição de um poder centralizado que "sufocaria" essas
manifestações
81
. Se considerarmos o governo republicano como sinônimo de governo
democrático, ou de governo em que há a soberania popular, certamente os anti-federalistas,
muito mais inspirados em Rousseau do que os Federalistas, serão mais republicanos do que
estes. No entanto, embora cada vez mais os textos anti-federalistas venham tendo sua
importância resgatada, a versão republicana dos Federalistas foi vitoriosa e operou
mudanças institucionais e teóricas que têm de ser analisadas. São estas mudanças o nosso
foco aqui.
Tendo isto em vista, a primeira ponderação a ser feita, admitindo os
Artigos Federalistas como uma obra republicana, é o sentido de república ali presente. Este
sentido é formulado junto com a conhecida reflexão sobre as facções presente no Artigo
Federalista 10. A primeira definição que ali aparece é o de república como governo
representativo e logo em seguida uma rápida comparação com a democracia, em
decorrência da definição anterior: “Os dois grandes pontos de diferença entre uma
democracia e uma república são: primeiro, a delegação do governo, nesta última, a um
pequeno número de cidadãos eleitos pelos demais; segundo, o maior número de cidadãos e
a maior extensão do país que a última pode abranger” (AF 10, p.137)
82
.
A definição de república como governo representativo é retomada no
Artigo Federalista 14, para que seja ressaltado que os defeitos que apontam na república
81
Para uma comparação do sentido de república debatido entre federalistas e anti-federalistas, principalmente
em relação à noção de representação assumida em cada um dos lados, ver BALL, 1988, p. 138.
82
Como serão muitas as referências aos Artigos Federalistas, iremos abreviá-las da seguinte forma: a sigla
AF seguida do número do artigo e após o número de página.
138
proposta são decorrentes de uma confusão entre república e o sentido de democracia. Neste
artigo, é apontada a novidade da proposta que está sendo feita pelos americanos e que tal
novidade é apresentada "em favor dos direitos individuais e da felicidade pública” (AF 14,
p. 157). Aqui, também, é deixado claro que a União não disciplinará toda a vida da
república, mas só aqueles assuntos que dizem respeito a todos os cidadãos. Daí a se falar
em direitos individuais, de um lado, e felicidade pública, de outro.
A possibilidade de um governo de grande extensão, com uma
população maior, que o governo representativo republicano proporciona, traz duas
vantagens principais:
1) a escolha de melhores governantes, pois há um universo maior
para que se escolham os poucos a governar. A necessidade de que se escolham os melhores
para que governem e a dificuldade de encontrar pessoas preparadas para tal função é
apontada já no início da obra, no Artigo Federalista 3. Associada a esta "escolha dos
melhores" está a observação de que o governo centralizado feito pelos melhores possibilita
uma direção única e sábia internamente, o que renderá também segurança externa, e com
tudo isto paz, justiça e moderação (AF 3, p. 104);
2) a diminuição do facciosismo, pois a grande extensão dificulta o
sucesso e a expansão de grupos locais, que normalmente são os que se formam para viciar o
interior de uma república: “a influência de líderes facciosos pode atiçar uma chama em seus
Estados particulares, mas será incapaz de disseminar uma conflagração pelos outros
Estados” (AF 10, p. 139). Isto porque numa república de grande extensão o número de
grupos e partidos ligados por interesses é tão grande que é muito difícil que um deles
determine os rumos da política da república: “Amplie-se a esfera e se obterá maior
variedade de partidos e interesses; torna-se menos provável que uma maioria do todo vá ter
um motivo comum para violar os direitos de outros cidadãos; e se esse motivo existir, será
mais difícil para todos que o partilham descobrir sua própria força e agir em uníssono” (AF
10, pp. 138-9). Esta última observação feita pelos Federalistas (Madison) está associada a
um grande temor político presente na obra, que é o da tirania da maioria, presente no Artigo
Federalista 51. O governo representativo republicano tem, portanto, uma terceira
vantagem, que é o de impedir a tirania da maioria. Esta tirania é impedida pelos freios ao
poder legislativo e pela república federada, constituída de Estados (AF 51, p. 351). A
139
preocupação dos Federalistas com o afastamento das facções, assim, está no fato de que
elas dividem o todo, e principalmente com o fato de elas unirem segmentos e grupos sociais
em torno de interesses (EPSTEIN, 1984, p. 71). Esta união em torno de um interesse
comum é o que pode fazer uma facção se tornar tão grande que se torne uma maioria que
tiranize a minoria. Por isso, os autores defendem uma fragmentação maior dos interesses,
viabilizada por uma extensão maior da república, porque assim, por mais que haja grupos
com interesses comuns, eles dificilmente terão uma força numérica capaz de sufocar os
demais.
Este conjunto de idéias e propostas, que podem ser consideradas as
centrais da proposta dos Artigos nos obriga a dar uma pausa para comentar como se situa
teoricamente a crítica ao facciosismo. Esta crítica esteve presente em todos os autores
analisados até aqui, cada um apresentando uma solução.
Maquiavel, como vimos, distinguia os interesses facciosos daqueles
que faziam parte constitutiva da liberdade republicana. Como apontamos no capítulo 3,
baseados na análise de Kent Brudney, interesses coletivos com caráter público e pretensão
de se tornarem o interesse de toda a república são interesses parciais que informam o
conflito de interesses necessário para que possa ser alcançada, por meio de soluções
públicas, a liberdade no interior da república. Neste sentido é que povo e Senado, em
conflito na república romana, foram as forças que, em choque, possibilitaram que aquela
república fosse livre. Nenhum desses grupos, no esquema de Maquiavel, procuravam
privilégios, nem que seu interesse particular prevalecesse sobre o dos demais. O que ocorria
era que cada um desses grupos, com seus interesses coletivos, pretendiam que a sua
posição, ou o seu modo de ver o mundo (Maquiavel não utiliza esta expressão, mas
acreditamos que ela possa ser aplicada), prevalecesse e se tornasse a posição de toda a
república. Do contrário, teríamos interesses facciosos, que Maquiavel considerava
perniciosos à república, sendo uma das causas de sua decadência.
Harrington resolve o problema das facções retirando do interior da
vida da república os interesses. Como já vimos, estes são equalizados previamente, como
principal mecanismo informador da constituição da república. Sem interesses em jogo,
disputando, se associando e se contrapondo, não há que falar em facções.
140
Mais explícitos ainda são Rousseau e Sieyes quanto às facções.
Aliás, a solução republicana unitária desses dois autores é a que mais evidentemente deixa
clara sua posição acerca das facções. Interesses parciais e facciosos nessa república unitária
não somente são perniciosos como devem ser completamente afastados. O que importa é o
interesse geral, que se manifesta na vontade do corpo político soberano - vontade geral -,
segundo Rousseau, ou por meio do terceiro estado, na formulação de Sieyes. Note-se que,
ainda que Sieyes admita um interesse parcial como predominante em sua república, este
interesse, por ser do terceiro estado, e de nenhum outro segmento da sociedade, coincide
com o geral e deve ser assim tratado. No caso de Rousseau, qualquer interesse particular
deve ser desconsiderado na manifestação da vontade geral e os interesses facciosos, então,
são os mais perigosos e ameaçadores no falseamento da obtenção dessa vontade, pois
facilmente podem ser com ela confundidos.
Montesquieu, como vimos, se preocupa com as facções, considera-as
perniciosas para a vida política da república, mas antevê a possibilidade de que uma facção
seja controlada pela outra e, com mecanismos institucionais que comportem esse controle, é
possível que o efeito nocivo que cada uma teria, em seus excessos, seja freada pela ação de
outra. Montesquieu, assim, prevê a possibilidade da existência de muitas facções no interior
da república, que podem ser vistas como focos de poder que se balanceiam e se equilibram.
Uma intensificação dessa preocupação de Montesquieu é o que
ocorre no pensamento exposto nos Artigos Federalistas. A preocupação dos autores
americanos não era com a obtenção de uma solução pública para interesses coletivos e
públicos em conflito (Maquiavel), nem em afastar da comunidade republicana os interesses
que fiquem fora da divisão de propriedade estabelecida na república (Harrington), muito
menos com a unidade do interesse republicano (Rousseau e Sieyes). Tal como
Montesquieu, é com o despotismo de todos que os Federalistas estão preocupados, mas
aqui fica mais clara a preocupação de que uma minoria, ou mesmo um indivíduo, possa
estar garantido e resguardado da força política de qualquer maioria. Aqui se encontram
preocupações com a tolerância religiosa
83
, tema bastante presente na Inglaterra e na
América. Mas estão preocupações, também, com as diversidades de aptidões de adquirir
83
A questão da tolerância religiosa como fundamento para a preocupação com as minorias manifestada pelos
Federalistas, e até para com a noção de pluralidade presente nos Artigos mereceria atenção especial, pois é um
dos pontos bastante freqüentes no debate americano. Mas não a abordaremos aqui.
141
propriedade, como veremos. A preocupação de nossos autores americanos é, então, com
que cada um possa ter seu interesse defendido no interior da república, ainda que vá contra,
ou não esteja de acordo com, o interesse de uma maioria. Neste sentido é que estão
preocupados com o facciosismo, pois as facções podem ser fortes o suficiente para ferir
essas garantias, que são individuais, e o freio entre elas somente é possível se não tiverem
uma força tal (dada pelo número) que seja capaz de oprimir e sufocar as demais.
Enfim, o que parece ocorrer nos Federalistas é que não há
prevalência de interesses, seja pelo seu conteúdo, seja pelo número de cidadãos que o
defendem. Sejam quantos e quais forem os interesses existentes na república, esta tem de
comportá-los e de conter mecanismos para sua manifestação e sua evasão, sem que haja
predominância de qualquer um, ainda que seja o de uma maioria. Neste aspecto, os
Federalistas se valeram das ambigüidades do sentido de república: de um lado, não era mais
o governo da metrópole, o que já tornava o governo republicano, mas não era um governo
em que as maiorias governavam, o que afastava um governo democrático. Com isso, eles
puderam atender também os interesses de uma elite temerosa de que os setores mais
populares, estimulados pela revolução de independência, pudessem querer governar. Para
atender a tudo isso, todos os interesses, não importa de quantos fossem, deveriam ser
passíveis de manifestação e considerados iguais insitucionalmente. Será possível uma
solução pública para essa equação política com tantas (infinitas) variáveis? Eis a questão
dos Federalistas, no que tange ao nosso assunto: o interesse. E essa busca pela acomodação,
ou ao menos canalização dos diversos interesses existentes na república é que caracteriza a
república por eles formulada: uma república de interesses. Mas como estão situados esses
interesses? Encontram-se em conflito? Encontram-se em harmonia? Podemos dizer que
estas não são preocupações para nossos autores.
Esta característica dos Federalistas de não estarem preocupados com
a situação dos interesses, se estão em harmonia ou em conflito, possibilitou que sua
república fosse bem menos "exigente" que as repúblicas propostas até aqui estudadas nesta
tese. Expliquemos melhor. Como vimos, pelas mais variadas razões, e num sistema teórico
que varia de autor para autor, cada uma das obras até aqui estudadas, não lidava com os
interesses dos cidadãos de uma república sem qualquer exigência. Maquiavel, como vimos,
qualificava o interesse de não-particular, não-privado e não-faccioso, para que pudesse
142
adentrar na república e, em conflito com outros, ser objeto de uma solução institucional
pública. Essa solução institucional guarda o interesse comum, que sempre deve prevalecer
sobre os interesses particulares. Harrington, Rousseau e Sieyes, cada um à sua moda,
retiraram os interesses particulares da vida republicana, para que somente o interesse
comum pudesse prevalecer. Como isso se deu variou de autor para autor, mas a
institucionalização da república requereu que esses interesses estivessem de fora dela, e que
os cidadãos fossem capazes de agir de acordo com o interesse comum instituído pelos
mecanismos institucionais. Em todos eles os cidadãos teriam de apresentar algum tipo de
virtude que os tornem aptos à vida institucional republicana.
Em Montesquieu essas exigências todas se abrandam, como vimos,
com a possibilidade de uma república comercial de grandes dimensões. Nela, não haveria a
necessidade tão forte de que os cidadãos fossem virtuosos, mas de qualquer forma a virtude
ainda é a marca do cidadão. O que ocorre é que não há contradição entre o interesse comum
(comercial) e o interesse particular de cada cidadão. Com a tensão suavizada, a necessidade
de virtude se enfraquece.
Com os Federalistas, esta necessidade não está somente
enfraquecida, ela inexiste. Em primeiro lugar, os Federalistas não compartilham com
Montesquieu a idéia de que as repúblicas comerciais não guerreiam (AF 6, p. 117). Tal
posição é afirmada para dizer que, não instituída a União, e prevalecendo os treze Estados
confederados em uma única confederação, ou em confederações menores, há grande
potencial de que eles guerreiem entre si, até mesmo em razão do espírito empreendedor de
seus cidadãos (AF 7, p. 120). A única solução é a instituição de uma União, que extinga a
rivalidade entre os Estados. Neste sentido, se há algum interesse comum que seja alvo de
preocupação dos Federalistas, é o interesse do governo centralizado, de manter uma União
forte, capaz de solucionar dois problemas: o problema financeiro decorrente da própria
guerra de independência; e a constituição de uma nação forte, capaz de resistir a ameaças
externas e, mais importante do que isso, expandir-se. A solução para o alcance desse
interesse comum não foi, como já sabemos, uma proposta de república unitária, a la Sieyes
ou Rousseau, mas uma república plural. Com essa república plural, não mais a virtude se
tornou necessária, e o interesse do cidadão ocupou o seu lugar. Esta substituição da virtude
pelo interesse é bastante apontada pelos comentadores (STOURZH, 197, p. 70; PANGLE,
143
1986, p. 595; ADAIR, 1957, pp. 348 e ss.; FARR, 1988, p. 23): "The decline of virtue had
as its logical corollary the rise of interest" POCOCK, 2003, 521).
É claro que essa substituição do interesse pela virtude não é feita sem
tensões. Em outra definição de república, feita já quando características institucionais
concretas da república federada proposta estão sendo debatidas nos Artigos, temos o
seguinte enunciado:
"Se quisermos usar com critério os diferentes princípios em que
diferentes formas de governo se fundam, definiremos que é uma
república - ou pelo menos que pode ser considerado digno desse nome -
um governo que extrai todos os seus poderes direta ou indiretamente da
grande maioria do povo e é administrado por pessoas que conservam seus
cargos enquanto são aprovadas e por um período limitado, ou enquanto
exibem bom comportamento. É essencial a tal governo que ele emane da
grande maioria da sociedade, não de uma proporção insignificante ou de
uma classe favorecida; de outro modo, uns poucos nobres tirânicos,
exercendo sua opressão por uma delegação de seus poderes, poderiam
aspirar à condição de republicanos e reivindicar para seu governo o
honroso título de república". (AF 39, pp. 278-9)
Essa base da maioria da sociedade é diversas vezes invocada nos
Artigos Federalistas, e com ela está associada a idéia de governo baseado no consentimento
do povo, que será examinada mais adiante. Mas ela não afasta a idéia de que, para estar
baseado nos interesses da maioria da sociedade, é necessário que o interesse de todos esteja,
de uma certa forma, protegido ou, ao menos, com sua manifestação assegurada, como já
vimos. O "bom comportamento" a que se refere a passagem acima, estará associado à
necessidade que os representantes terão de serem aprovados pelo povo. Nessa aprovação,
os representantes é que devem ser virtuosos, e deve-se sempre ter a expectativa de que eles
assim o sejam. A virtude dos representantes é invocada quando os Federalistas defendem
um número pequeno de representantes. É da virtude deles que os autores estão falando na
seguinte passagem:
"Assim como há na humanidade um grau de depravação que exige certo
grau de cautela e suspeita, a natureza humana tem também outras
qualidades, que justificam certa parcela de estima e confiança. O governo
republicano pressupõe a existência dessas qualidades num grau mais alto
que qualquer outra forma de governo." (AF 55, p. 371)
e é confirmado em outra passagem:
144
"O objetivo de toda organização política é, ou deveria ser, em primeiro
lugar, obter como governantes os homens dotados da maior sabedoria para
discernir o bem comum e da maior virtude para promovê-lo; em segundo
lugar, tomar as mais efetivas precauções para conservar tais homens
virtuosos enquanto mantêm sua responsabilidade política" (AF, 57, p. 376).
Como se vê, a virtude que geralmente caracteriza os governos
republicanos é invocada pelos Federalistas para justificar sua proposta de governo
representativo e, de uma certa forma, tem um caráter elitista. É preciso que alguns poucos,
sábios e virtuosos, sejam escolhidos para cuidar que o interesse de todos possa ser
viabilizado. É por causa desses interesses que os cidadãos escolherão os melhores
representantes. A "sabedoria" e virtude dos cidadãos se traduzem na capacidade de escolha
de representantes, os cidadãos mais bem preparados para cuidar dos interesses de todos.
Engenhosa equação, que é uma das marcas que torna o projeto dos Artigos Federalistas
singular. Vejamos, então, quais as características dessa república que foi criada, não de
cidadãos virtuosos, mas de cidadãos altamente auto-interessados.
7.3 Uma república de interesses: a república federada de grandes dimensões
O título deste item é tomado do livro de Cathy Matson e Peter Onuf:
A Union of Interests - Political and Economic Thought in Revolutionary America. Embora
os aspectos ali levantados não sejam os principais aspectos que nos interessam aqui, pois
foram levantados a partir do foco econômico da análise dos autores, o título é bastante
sugestivo sobre como o interesse, que quase sempre abarca aspectos econômicos, é tratado
pelos Federalistas.
Como vimos até aqui, várias das idéias apresentadas pelos
Federalistas podem ser consideradas intensificações ou aprofundamentos de algumas
possibilidades que já haviam sido sinalizadas por Montesquieu. E a república de interesses
proposta pelos Federalistas é uma dessas intensificações. Mas para que isso ocorresse, foi
necessária a fonte de mais um autor, sem o qual a formulação americana provavelmente
não seria possível: David Hume.
A influência de Hume sobre os Federalistas e especialmente sobre
James Madison não é explícita no texto dos Artigos, mas já é consagrada entre os
comentadores. O principal artigo de análise dessa influência é o clássico, de Douglass
145
Adair, "That Politics May be Reduced to a Science": David Hume, James Madison, and the
Tenth Federalist, publicado em 1957. Tal análise foi recentemente reforçada com o livro de
Mark Spencer David Hume and the Eighteenth Century America, em que Spencer, além de
buscar indícios inequívocos da influência de Hume sobre Madison, a partir das fontes
escocesas da formação deste, e sobre a elite intelectual americana de época pré-revolução
de independência, sugere também razões para a quase ausência de seu nome no texto dos
Artigos. Embora o estudo de Spencer seja bastante minucioso, principalmente em relação às
fontes históricas que utiliza, o texto de Adair, para os propósitos teóricos de nossa tese,
continua sendo o mais fecundo. Nem mesmo o artigo de Edmund Morgan, de 1986, que
apresenta a vantagem, em relação ao de Adair, de usar como fontes mais textos de
Madison, além do Artigo 10, torna as análises de Adair menos úteis para nós. Vejamos.
O principal texto de Hume a ser verificado é o "Idea of a Perfect
Commonwealth", em que aponta os malefícios das facções no parlamento inglês e a defesa
de uma república de grandes dimensões para saná-los. Estas reflexões sobre facções
certamente inspiraram Madison, como Adair, Morgan e Spencer apontam. É de Hume a
idéia de que, num governo de grandes dimensões, é mais fácil manter a estabilidade contra
as facções, pois o impacto que cada uma pode vir a ter na república como um todo é bem
menor (ADAIR, 1957, 349; HUME, 2003, pp. 280-1). Um dos méritos de Adair é sua
excelente pontaria ao destacar onde Madison foi além de Hume, que é justamente levar a
sério as razões econômicas para a formação de facções que são as diversas aptidões para
adquirir propriedade. Para que estas diversas aptidões fossem respeitadas, sem que uma
facção se sobrepusesse a outra, seria necessário uma grande república que tornasse a união
de indivíduos com interesse comum se não impossível, insignificante no impacto em
relação ao todo da república.
Com isto, se com Hume era possível, no interior de uma república de
grandes dimensões, que todos os interesses partidários pudessem conviver e se
manifestarem sem riscos de facciosismos com potência para destruir a estabilidade da
república, com os Federalistas, foi possível que não somente os interesses partidários, mas
os interesses econômicos (que são a principal fonte para a formação de facções) pudessem
se manifestar sem reservas e sem pôr em risco a estabilidade.
146
Por isto os Federalistas puderam ir além também de Montesquieu,
que somente de forma tímida havia esquematizado a sua república de grandes dimensões e
comercial. Somente as idéias de Montesquieu poderiam ser fonte para as idéias que, na
verdade, os Anti-Federalistas defendiam. A idéia de república confederada, que seria uma
união de repúblicas e que, portanto, preservaria a vantagem interna que as repúblicas
apresentam, que é a virtude de seus cidadãos, está muito mais próxima da república
confederada proposta pelos Anti-Federalistas do que a defendida pelos Federalistas. São as
idéias acerca da república comercial de Montesquieu, somadas às idéias de Hume sobre as
facções que tornaram possível que a formulação dos Federalistas fizessem sentido e não, de
todo, contrariassem as idéias de Montesquieu. Note-se que ser fiel ou não às idéias de
Montesquieu era um ponto crucial no debate, pois era consenso naquele momento que uma
república deveria ter um governo moderado e, portanto, com separação de poderes. Neste
sentido, é preciso lembrar que mesmo na França, a forma republicana constituída após a
Revolução Francesa,que teve como uma das fontes teóricas Rousseau, e a unidade
soberana, é a da separação de poderes
84
.
Com os Federalistas, não é somente porque o comércio apazigua os
ânimos, torna os povos menos bárbaros e mais amenos os costumes que a virtude
republicana pode ser substituída. É porque, com a defesa de diversos interesses
econômicos, espalhados no interior de uma república de grandes dimensões, as facções e os
perigos delas decorrentes estão afastados, que a virtude republicana teve de ceder lugar ao
interesse. Numa república de grandes dimensões, só interesses diversificados e
pulverizados podem viabilizar a manutenção de sua estabilidade.Não é necessário, e talvez
nem mesmo conveniente, que cada um abra mão de seu interesse em nome de um interesse
geral. A busca pelo interesse individual contribui para o alcance do interesse geral.
É por isso que dizemos que os Federalistas intensificaram algo que
estava somente em potencial em Montesquieu. Vimos que em O Espírito das Leis já estava
aberta a possibilidade de uma república de grandes dimensões com a república federada, e
já estava aberto também o campo para que a virtude não fosse mais o espírito da república,
com o fortalecimento dos hábitos comerciais. Também estava presente em Montesquieu a
84
Obviamente, havia uma contradição entre a unidade de soberania de Rousseau e a aplicação da separação
de poderes como mecanismo institucional da mo deração do sistema de governo. Apontando e analisando esta
contradição, ver ROSANVALLON, 1994.
147
divisão de poderes, por meio da formulação clássica da separação de poderes e da república
confederada. Mas com os Federalistas tudo isso ganhou maior potência, e se manifestou
institucionalmente de forma muito mais clara. Nos Federalistas, o interesse ganha uma
dimensão que não estava presente em Montesquieu, que é o de se constituir num elemento
que favorece a expansão da república e, com o sistema de freios e contrapesos, sugerido por
Montesquieu, mas bem mais detalhado pelos Federalistas, Pocock aponta de maneira
explícita o caráter expansivo do interesse. Segundo ele, o interesse é tanto uma força
limitadora quanto expansiva:
"Interest and faction are the modes in which the decreasingly virtuous
people discern and pursue their activities in politics; but in Madison´s
thought two consequences soon follow. In the first place, the checks,
balances and separations of powers, to be built into the federal structure,
ensure as we have seen that interest does not corrupt, so that the full
rhetoric of balance and stability can still be invoked in praise of an edifice
no longer founded in virtue, and the very fact that it is no longer so
founded can easily be masked and forgotten. In the second place, there are
passages which strikingly indicate that the capacity of this structure for
absorbing and reconciling interests is without known limits. There is no
interest which cannot be represented and given its place in the distribution
of power - only the most peculiar of institutions, it has seemed to
historians in the Federalist tradition, was to prove an exception to this rule
- and should the growth and change of the people generate new interests,
the federal republic can grow and change to accommodate them."
(POCOCK, 2003, pp. 522-3).
Após esta observação certeira que, de uma certa forma, foi um dos pontos de partida para
esta tese, Pocock observa, citando Wood que, aqui, está presente uma guinada do
republicanismo para o liberalismo. Guardemos essa observação.
Pelo temor das facções é que o poder dos Estados teve de ser
enfraquecido, em nome de uma União centralizadora. Mas a resposta ao temor às facções
não é uma república unitária, pois outra questão estava em jogo para os Federalistas: a
expansão da república. Esta era outra razão para que fosse constituída uma república de
grandes dimensões. Como Montesquieu já havia apontado, uma das vantagens da república
federada é a força externa que ela consegue ter, obtendo, assim, a grande vantagem da
monarquia. Mas a força externa que os Federalistas queriam garantir não era somente a de
defesa contra possíveis inimigos externos, mas também a de expansão da república. Para
148
essa expansão, não bastava que houvesse uma república confederada, era necessário que os
Estados não fossem a unidade elementar dessa república.
Neste sentido, mais uma vez é necessário frisar que os Federalistas
aprofundaram o que Montesquieu havia apenas começado e sugerido. Em Montesquieu,
com sua inspiração inglesa, a liberdade e a segurança individuais são garantidas pela
divisão de poderes, que ainda continua sendo, de alguma forma, feita a partir de unidades
coletivas. Nos Estados Unidos, esta equação se inverte: é a liberdade, afirmada pelo
movimento de independência que fundamenta o poder, que se pulveriza de uma tal
maneira, que tem como fonte o indivíduo. Isto é demonstrável por uma passagem, bastante
citada, do Artigo Federalista n. 10:
“Enquanto a razão do homem for falível, e ele for livre para exercê-la,
diferentes opiniões se formarão. Enquanto subsistir o vínculo entre sua
razão e seu amor-próprio, suas opiniões e paixões influirão umas sobre as
outras; e as primeiras serão objetos a que as últimas se apegarão. A
diversidade das aptidões humanas, que está na origem dos diretos de
propriedade, não é um obstáculo menos insuperável a uma uniformidade de
interesses. A proteção dessas aptidões é a primeira finalidade do governo.
Da proteção de aptidões diferentes e desiguais para adquirir propriedade
resulta imediatamente a posse de diferentes graus e tipos de propriedade; e
da influência disto nas atitudes e idéias dos respectivos proprietários
emerge uma divisão da sociedade em diferentes interesses e partidos” (AF
10, p. 134).
Destrinchemos esta passagem. A sua temática é bastante comum a dois autores, um deles já
brevemente estudado aqui: Locke e Harrington. Em Locke, a garantia da propriedade é
colocada como a principal função da constituição da sociedade e do governo. No entanto,
não há a preocupação de que seja protegida (e estimulada) a capacidade de adquirir
propriedade em sua diversidade e quantidade. O estímulo se dá pela própria garantia do
título: se tenho meu título garantido, faz sentido que procure acumular mais propriedade.
Isto é diferente em Harrington, que nos interessa mais aqui: as distinções de interesses
baseadas na propriedade são resolvidas no momento da instituição da república. Esses
interesses, mais do que protegidos, devem ser equilibrados. Harrington estava preocupado
principalmente com a quantidade de propriedade de cada um, e com os problemas
decorrentes da desigualdade que as diferentes quantidades de propriedade poderiam causar
para a vida equilibrada da república. Com isto, Harrington está preocupado, sim, em
149
proteger as diversas propriedades, em sua quantidade, mas está mais preocupado em criar
regras de equilíbrio para que a república possa sobreviver apesar dessas diferenças nos
títulos de propriedade. A resposta dos Federalistas às distinções decorrentes dos títulos de
propriedade será bem diferente:
“Publius distinguishes two kinds of divisions which result from property:
men differ according to the amount of property they hold, but also
according to the kind of property they hold. The difference according the
amount of property, between rich and poor, was the basis of the fatal
class struggles of small republics. But Publius sees in the large
commercial republic the possibility for the first time of subordinating the
difference over amount of property to the difference of kind of property.
In such a republic the hitherto fatal class struggle is replaced by the safe,
even salutary struggle among different kind of propertied interests. In
such a republic a man will regard it as more important to himself to
further the immediate advantage of his specialized trade, or his
specialized calling within trade, than to advance the general cause of the
poor or the rich. The struggle of the various interests veils the difference
between the few and the many. In particular, the interest of the many as
such can be fragmented into sundry narrower, more limited interests,
each seeking immediate advantage. In such a republic and with such
citizens, 'you make it less probable that a majority of the whole will have
a commom motive to invade the rights of other citizens.' In such a
republic, popular majorities will still rule but now 'among the great
variety of interests, parties, and sects which it embraces, a coalition of a
majority of the whole society could seldom take place on any other
principles than those of justice and the general good.'” (DIAMOND,
1973, pp. 154-5)
O deslocamento do debate sobre a quantidade para o tipo de
propriedade é determinante na constituição do debate americano. Ora, identificar conflitos a
partir das quantidades e identificar patamares toleráveis de desigualdade de quantidades de
propriedade é algo que faz parte das noções mais elementares de justiça, e estava bastante
explícito em Harrington, como vimos. Bastante diferente é a situação se a ênfase recai
sobre o tipo de propriedade, pois, ao que é diverso não se compara, apenas se aceita, ou
tolera. Com isto, o que foi possível com este deslocamento foi trazer, para algo que tem
impactos econô micos muito concretos, a lógica da tolerância e da aceitação da diversidade,
e não a de que há desigualdades que não podem ser toleradas. A questão da propriedade
vira um fundamento para a "opinião" e não para um interesse que se colocará em
divergência com os demais e, nesta divergência, poderá se colocar em oposição a outros
150
interesses e, nesta medida, terá sua sobrevivência no interior da república questionada. Com
isto, o que ocorreu foi que a desigualdade se tornou não só aceitável, mas de uma certa
forma protegida, pois ela se traduz em diversidade: diversidade de títulos de propriedade, e,
aí, não há como não invocar a certeira observação de Judith Shklar: "in a society that
accepts inequality as desirable or inevitable the enforcement of minority rights is indeed the
essence of liberty" (SHKLAR, 1969, p. 191). E tudo isto é feito pelos americanos
invocando a falibilidade da razão do homem. Manifestação dos interesses são
manifestações racionais falíveis que devem ser garantidas livremente na vida da república.
Esta liberdade inicial é o ponto de partida para qualquer configuração de interesses na vida
no interior da república. E esta liberdade infinita é que dá a garantia de que, numa república
de grandes extensões, a possibilidade de que qualquer interesse se manifeste e exista:
"Amplie-se a esfera e se obterá maior variedade de partidos e interesses; torna-se menos
provável que uma minoria do todo vá ter um motivo comum para violar direitos de outros
cidadãos" (AF 10, pp. 138-9). Aqui já está a antecipação da solução institucional que será
dada para o controle das "maiorias" apresentada no Artigo Federalista 51. Neste artigo, fica
claro que a finalidade do governo é impedir que os interesses de uma maioria sufoque os
direitos das minorias e, para isso, o mais indicado é que "o interesse pessoal de cada
indivíduo possa ser a sentinela dos direito públicos". Tendo isto em vista, é proposta a
organização institucional da União ali defendida: um legislativo que perde sua força em
favor de um poder Executivo, que terá o poder de veto sobre os atos emanados pelo
primeiro. O interesse comum, que pode caracterizar uma maioria no legislativo, pode
ameaçar direitos de minorias, e cabe ao Executivo conter isso. O Executivo é, assim, uma
espécie de garantidor da fragmentação da sociedade na "república federal dos Estados
Unidos": "Nela, enquanto toda autoridade emanará da sociedade e dela dependerá, a própria
sociedade estará fragmentada em tantas partes, interesses e categorias de cidadãos que o
direitos dos indivíduos, ou da minoria, serão pouco ameaçados por combinações
interesseiras da maioria" (AF 51, p. 352)
85
.
Aqui, é preciso destacar a relação que temos entre a pulverização do
poder, iniciada com Montesquieu, e a intensificação dessa pulverização aqui operada. Na
85
A força do Executivo na Constituição americana foi objeto de intenso debate, inclusive entre os próprios
Federalistas. A este respeito, ver BANNING, 1974, especialmente pp. 184-5.
151
república federada americana, quanto mais interesses diferentes houver, mais o poder estará
fragmentado, e menos chance de que uma maioria oprima uma minoria haverá, ou seja,
"quanto mais ampla for a sociedade, desde que ela abranja uma esfera viável, mais capaz de
auto-governo ela será" (AF 51, p. 353). Auto-governo e fragmentação de poder estão,
portanto, associados numa relação diretamente proporcional.
O tratamento dado ao facciosismo, então, está bastante relacionado
ao tratamento dado ao interesse e à pulverização do poder. A solução para o facciosismo,
como vimos, não é a unidade, mas o poder ainda mais pulverizado, no menor nível
possível. A menor unidade para esta pulverização é o indivíduo. Passemos a ele.
7.4 Uma república de indivíduos
Com as justificativas teóricas para uma república de grandes
dimensões, federada, e que devesse possibilitar a manifestação dos mais diversos interesses
no interior da república, estava preparado o terreno para que os Federalistas levassem a
cabo seu real projeto: o de inviabilizar a confederação de repúblicas, ou a União de Estados
proposta pelos Anti-Federalistas e de erigir uma república de indivíduos.
A contraposição entre república de Estados e república de indivíduos
é estabelecida de forma explícita na discussão dos Artigos 15 a 22 e é assim enunciada,
pela primeira vez: "O vício enorme e radical na construção da Confederação atual está no
princípio da legislação para Estados ou governos em seu caráter de corporações ou
coletividades, em contraposição à legislação para os indivíduos que os compõem" (AF 15,
p. 160). Esta enunciação irá se desdobrar na demonstração de o quanto um governo de
Estados gera forças centrífugas em relação ao conjunto como um todo, na medida em que
possibilita ações que somente são levadas a cabo por corpos coletivos, e não o seriam por
indivíduos (AF 15, p. 163).Neste sentido, conclamam os Federalistas: "temos de abandonar
o projeto inútil da legislação para os Estados como coletividades; devemos estender as leis
do governo federal aos cidadãos individuais da América" (AF 23, p. 202).
O mecanismo institucional mais eficaz para que o governo observe,
julgue e sancione as condutas é a justiça criminal e civil, que deve ser voltada para os
indivíduos e é este cimento que impede que uma união de grandes dimensões não caia na
152
anarquia. Isto enseja a crítica feita à Confederação de não ter instituído um judiciário (AF
22, p. 198). A defesa do judiciário está associada à defesa da própria autoridade da
constituição e da unidade de fonte emanadora de autoridade (AF 16, pp. 167-8; AF 22, p.
198; AF 22, p. 200; AF, 25, p. 214), como podemos ver nas seguintes passagens:
“uma soberania sobre soberanias, um governo sobre governos, uma
legislação para comunidades, em contraposição a uma legislação para
indivíduos, se é um solecismo na teoria, na prática subverte a ordem e
culmina na guerra civil, introduzindo a violência no lugar da moderada e
salutar coerção da magistratura”. (AF 20, p. 187)
"O plano apresentado pela convenção, ao estender a autoridade do
comando federal aos cidadãos individuais dos vários Estados, permitirá ao
governo empregar a magistratura comum de cada um desses Estados na
execução de suas leis. É fácil perceber que isto tenderá a destruir, na
percepção geral, toda distinção entre as fontes de que as leis possam
proceder; e dará ao governo federal a mesma vantagem de obter uma
devida obediência à sua autoridade que é gozada pelo governo de cada
Estado" (AF 27, p. 222).
Se para impedir a tirania da maioria que poderia vir do Legislativo
foi previsto o poder de veto do Executivo, o Judiciário, reforçado pela existência de uma
Suprema Corte, garante que os indivíduos é que sejam os destinatários das leis da União, e
os direitos individuais estejam garantidos contra maiorias, e também contra as
"coletividades" dos Estados. Com isto, a solução institucional da União apresentada pelos
Federalistas fortalece os poderes Executivo e Judiciário, enfraquecendo o Legislativo. Este
enfraquecimento é ainda reforçado pela importância dada à Constituição e sua
superioridade em relação às leis:
"A importante distinção, tão bem compreendida na América, entre uma
Constituição estabelecida pelo povo e inalterável pelo governo, e uma lei
estabelecida pelo governo e alterável pelo governo, parece ter sido pouco
compreendida e menos observada em qualquer outro país. Supõe-se neles
que, onde quer que resida o poder de legislar, reside também pleno poder
para alterar a forma de governo. Até na Grã-Bretanha, onde os princípios
da liberdade política e civil mais foram discutidos, e onde mais se ouve
falar dos direitos da Constituição, afirma-se que a autoridade do
Parlamento é transcendente e ilimitável, em relação tanto à Constituição
como às matérias usuais de deliberação legislativa." (AF, 53, p. 358).
153
É claro que a idéia de supremacia da Constituição em relação à
legislação ordinária não é privilégio da proposta norte-americana. Todo constitucionalismo
europeu, inclusive com a formulação de Sieyes, separando o poder constituinte originário
do poder constituinte derivado, postula por tal supremacia. Mas não é inapropriado destacar
que tal idéia, somada às soluções do veto do Executivo sobre o Legislativo, e a idéia de
uma Suprema Corte guardiã da Constituição e de um Judiciário voltado para a proteção do
direito dos indivíduos, constitui um elemento de enfraquecimento do poder Legislativo na
república americana. Tudo isto para que o indivíduo fosse protegido.
Com a defesa de que devem ser viabilizados, no interior da república,
os mais diversos interesses, quantos e quais forem eles, a unidade mais elementar para a
medida do interesse é sem dúvida, o indivíduo. E, se o maior temor é o das facções ou de
que uma minoria seja tiranizada por uma maioria, mais uma vez é o indivíduo que tem de
estar no foco das preocupações na instituição da república.
Mas o que exatamente isso representa em relação às demais teorias,
ou às demais experiências republicanas.? Talvez a observação de Paul Peterson,
comentando as observações feitas por Gordon Wood nos dê uma pista: "In America,
constitutions were seen as charters of power given by liberty rather than, as in Europe,
charter of liberty granted by power" (PETERSON, 1979, p. 72). Nessa sugestão, se na
Europa tínhamos a liberdade como conseqüência do poder, na América passamos a ter o
poder em decorrência da liberdade. Faz sentido. No caso europeu, temos a liberdade, se
vista como algo coletivo, como decorrência do próprio poder conferido ao povo; se vista
como algo individual, como direitos decorrentes de legislação emanada do poder
legislativo. No caso americano, temos o poder, organizado por um povo livre, organizado
de forma a pulverizar suas fontes e impedir justamente que o poder de uma maioria possa
inviabilizar os direitos (liberdades) de uma minoria. De fato, na América a liberdade parece
preceder o poder. Como não vamos desenvolver isto aqui, ficamos com a sugestão para
afirmar que a república de indivíduos proposta pelos americanos tem como fundamento a
liberdade do povo, que acabou de se tornar independente da Inglaterra e dos indivíduos, que
devem ter seus direitos garantidos inclusive contra maiorias. Isto é o que significa a
república de indivíduos.
154
7.5 A república da opinião pública
Se a fragmentação da república de interesses leva a uma unidade
fundamental que é o indivíduo, leva também a uma apresentação, ou manifestação como
república assentada na opinião pública. Expliquemos melhor. A diversidade de interesses
apontada pelos Federalistas é muitas vezes associada à diversidade de opiniões. Isto é o que
ocorre na já citada passagem do Artigo 10: "Enquanto a razão do homem for falível, e ele
for livre para exercê-la, diferentes opiniões se formarão", e logo em seguida é feita a
formulação a respeito das diversas aptidões para adquirir propriedade e os diversos
interesses existentes na sociedade. Mas essa opinião de que falam os Federalistas, presente
no artigo 10, relacionada com o interesse, é individual, e nos Artigos está presente uma
idéia de opinião pública que não se limita à opinião associada ao interesse ou à razão dos
indivíduos. Essa opinião pública pode ser analisada associada a diversas outras idéias
presentes nos Artigos:
1) o bom senso do povo americano, muitas vezes invocado até como
estratégia retórica para que os autores convençam seus leitores de que as propostas ali
defendidas são as melhores e mais sensatas, como pode ser observado nas passagens:
“Submeto estas considerações a meus concidadãos, na plena confiança de
que o bom senso que tantas vezes marcou suas decisões conferirá a elas o
devido peso e conseqüência” (AF 16, p. 156).
“A glória do povo da América não está justamente em não ter tolerado,
ainda que manifestando o devido respeito por tempos pregressos e por
outras nações, que uma veneração cega pela antiguidade, pelo costume ou
por nomes sobrepujasse as sugestões de seu próprio bom senso, o
conhecimento de sua própria situação, e as lições de sua própria
experiência?” (AF 14, p. 157).
Estas passagens não esgotam todas aquelas em que o bom senso é invocado para fins
retóricos (ver, por exemplo, AF 41, p. 291), mas gostaríamos de comentar esta última
transcrita. O bom senso, aqui, está ligado a uma capacidade de analisar o presente e de
conhecer a situação, em detrimento da valorização dos exemplos históricos. Com esta
observação, por um lado, os Federalistas estão procurando deixar claro, como várias outras
passagens também indicam, que o que estão empreendendo é algo novo na história da
155
humanidade
86
. Mas também estão dando uma grande valorização ao presente, e à
capacidade que o povo deve ter, e o americano a tem, segundo eles, de ser capaz de opinar
no presente e a partir do presente. É como se tivéssemos uma presentificação da opinião,
que normalmente é informada por juízos a partir da experiência, mas também de modelos
pregressos. Guardemos essa observação, que não pode ser demonstrada, à luz dos artigos,
mas pode ser sugerida. Talvez essa presentificação guarde relação com as outras
observações feitas no último Artigo de que o tempo e a experiência irão aperfeiçoar o plano
de Constituição proposto pela Convenção. Com a idéia de presentificação queremos dizer
também que a opinião é contingencial e não apresenta qualquer problema em ser falível.
Ela pode se adequar e se identificar conforme as circunstâncias. Transformar o interesse em
opinião situa e limita o interesse a uma determinada circunstância.
2) o consentimento do povo, como fundamento último do poder:
"O edifício do império americano deve repousar na base sólida do consentimento do povo"
(AF 22, p. 200). Esta idéia não era novidade na política, e faz parte das raízes lockeanas dos
Federalistas, tal como vasta tradição, cujo principal representante é Louis Hartz, já
apontou
87
.
3) a eleição e aprovação dos representantes eleitos e das medidas
governamentais, constituindo um mecanismo de "responsabilização" dos representantes e
do controle destes pelo povo:
"Um governo deve conter em si mesmo todo o poder necessário à plena
realização das finalidades que lhe foram atribuídas e à completa
execução dos encargos que lhe foram confiados, livre de qualquer
controle além da consideração pelo bem público e pela opinião do povo".
(AF 31, p. 237)
"O gênio da liberdade republicana parece demandar, por um lado, não só
que todo poder emane do povo, mas que aqueles a quem ele é confiado
sejam mantidos na dependência do povo pela curta duração de seus
mandatos; e que, mesmo durante esse período, a confiança deva ser
depositada não em poucas, mas em muitas mãos. A estabilidade, ao
contrário, requer que as mãos que recebam o poder permaneçam as
mesmas por certo período de tempo. A freqüente repetição de eleições
86
Para uma breve análise sobre o papel dessa "novidade" para os Federalistas, ver o artigo de Philip Abbott
"What´s new in the Federalist Papers?" (ABBOTT, 1996, p. 543).
87
Ver acima, neste mesmo capítulo, comentário sobre a tradição liberal de interpretação da fundação
constitucional americana.
156
produzirá uma freqüente mudança de homens e esta uma freqüente
mudança de medidas; por outro lado, a firmeza do governo exige não só
certa permanência do poder como sua execução por uma única mão".
(AF 37, p. 266)
"Mas é a razão do povo, apenas, que deve controlar e regular o governo.
As paixões devem ser controladas e reguladas pelo governo". (AF 49, p.
345)
A opinião, aqui, é vista como algo decorrente da razão, e que deve servir para controlar e
limitar o governo. Somando ao item anterior, ela também legitima o governo e, se
anteciparmos o último ponto abaixo, esse controle, essa limitação e também a legitimidade
é feita a partir das diferentes opiniões existentes. O controle do governo, portanto, sua
moderação, está associado à pluralidade de opiniões.
4) uma opinião individual projetada no coletivo. Esta é a que
queremos investigar com mais detalhe, e parece ser algo particular da proposta americana.
"Se é verdade que todo governo se funda na opinião, não é menos verdade
que a força da opinião em cada indivíduo, e sua influência prática na sua
conduta, depende muito do número de pessoas a quem ele atribui igual
opinião" (AF 49, p. 343)
88
"Quando exercem sua razão, fria e livremente, sobre uma variedade de
questões distintas, os homens são inevitavelmente levados a conceber
opiniões diferentes sobre algumas delas. Quando são governados por uma
paixão comum, suas opiniões, se é que as podemos chamar assim, são
idênticas." (AF 50, p. 348)
Neste aspecto da opinião gostaríamos de nos deter um pouco mais. Em primeiro lugar,
comentemos esta última citação. Se os homens estiverem sob sua razão, cada um terá
opiniões diferentes, sendo estas, ao contrário, idênticas se eles estiverem governados pela
paixão. Com isto, os Federalistas estão retirando da política as paixões e qualquer força
unificadora de opiniões. A razão, aqui, não age em uníssono, como podia ser inferido, por
exemplo, a partir de Rousseau. Aqui, Federalistas e Rousseau estão claramente em terrenos
opostos. Se em Rousseau a vontade geral, unificadora do interesse da república, podia ser
88
No original: "If it be true that all governments rest on opinion, it is no less true that the strength of opinion
in each individual, and its practical influence on his conduct, depend much on the nunber which he supposes
to have entertained the same opinion" (The Federalist Papers, p. 311).
157
vista como uma expressão da razão, nos Federalistas a razão indefine e multiplica, ao invés
de determinar e unir.
Mas é a primeira citação que mais nos importa, pois a distinção entre
pluralidade e unidade indicada acima já é sabida, e foi tomada até mesmo como
pressuposto deste capítulo. Apenas a retomamos para reforçar nossas interpretações aqui.
A força da opinião de cada indivíduo não se dá isoladamente, mas
pela quantidade de pessoas que ele supõe ter a mesma opinião. Hannah Arendt veria nesta
passagem a concretização da mentalidade alargada kantiana, identificada no senso comum
do juízo estético kantiano. Para a autora a mentalidade alargada própria dos juízos estéticos
esquematizada por Kant dá ao juízo estético um caráter político que ele próprio não
explorou (ARENDT, 1994). Segundo ela, esta mentalidade alargada dá ao indivíduo,
mesmo numa situação de solidão, a capacidade de colocar-se no lugar do outro e, com isso,
emitir um juízo que, apesar de individual, tem uma dimensão política, na medida em que é
potencialmente compartilhada por outros. Esta dimensão é conferida pela capacidade de
imaginação do indivíduo que emite esses juízos, fazendo presente o que está ausente e,
portanto, colocando-se na companhia de outros.
Esta sem dúvida é uma interpretação possível, e é uma das bases das
formulações de H.Arendt sobre a fundação constitucional americana. No entanto, é possível
uma outra, que acreditamos ser mais condizente com o todo dos Artigos Federalistas. O
que se pretende possibilitar ali, e de uma certa forma é o que acontece na proteção dos
direitos pelo Judiciário, é uma capacidade do indivíduo de projetar sua opinião no coletivo.
Essa projeção, obviamente, assim como a coletivização decorrente da mentalidade alargada
arendtiana, não se realiza concretamente, ao contrário, se opera apenas num como se, mas
dá ao indivíduo uma potência que, opinando isoladamente, apenas, ele não teria. Como os
próprios Federalistas observam em seguida, a razão do homem é tímida quando
manifestada sozinha e ganha firmeza e confiança quando outras a ela são associadas.
Ora, se associamos a isso que a principal fonte de opiniões diferentes
são os interesses diferentes, temos que o indivíduo auto-interessado americano, ao
transformar seu interesse em opinião tem com isso duas vantagens: a primeira é
presentificar seu interesse, na medida em que as opiniões são voláteis e dizem respeito
sempre a uma determinada situação. Com isto seu interesse pode ser muito mais facilmente
158
"aderido" a outro; a segunda é a de poder projetar esse interesse em outros indivíduos, e
com isto defendê-lo com muito mais ardor, desenvoltura e chances de adesão na república.
O interesse individual, em si, portanto, pode ser expandido.
Neste ponto, gostaríamos de voltar a algumas observações que
fizemos no início do Capítulo 6. Naquela ocasião, ao lidar com os conceitos de pluralidade,
unidade, homogeneidade e diversidade, afirmamos que os Federalistas "ao propor a
pluralidade em sua República, diferentemente de Montesquieu, não necessariamente
afastam a homogeneidade." Agora acreditamos que podemos explicar melhor essa
afirmação. Que os Federalistas lidam com a pluralidade ao invés da unidade já está claro
pelo que dissemos até aqui. Mas como poderíamos explicar que eles não necessariamente
afastam a homogeneidade? Exatamente por o indivíduo ser a unidade elementar do poder, e
termos que os grupos (facciosos ou não) unem e diferenciam os indivíduos, tal como vimos
em Simmel. Com isto, os indivíduos, sem a adesão a grupos unidos por interesses que os
tornam comuns, mas fundamentalmente os diferenciam dos demais, se tornam todos iguais
na medida em que vistos como molas propulsoras de interesse, e, mais do que isso, o
mesmo indivíduo se projeta nos outros sem reconhecê-los. O respeito pelo outro só existe
porque há instituições que garantem que o outro também poderá realizar essa projeção
(igualdade radical), mas o indivíduo, em si, não reconhece o outro.Com o indivíduo como o
unidade do interesse e da opinião, e a possibilidade da projeção dessa mesma opinião sobre
os demais, tornou-se possível a equivalência de uma diferença radical (cada indivíduo é
portado de um interesse, uma opinião) e de uma igualdade radical (todos os indivíduos
incluídos na república comercial têm seus interesses e projetam sua opinião).
Com a associação entre interesse e opinião, e a possibilidade de
projeção da opinião sobre outros, o indivíduo, aqui, se tornou mais que uma unidade
elementar da pulverização do poder. Ele se tornou a unidade e a própria potência desse
poder. É ele a sua fonte, e é ele que pode irradiar a sua extensão, sem inclusive a
responsabilidade de controlá-la. A projeção da opinião, tal como sugerida nesta passagem,
tende ao infinito. O indivíduo, com isso, passa a ser, como veremos, a unidade da expansão
norte-americana, tema que passamos a tratar.
159
7.6 A república em expansão: um projeto maquiaveliano?
Feitas as observações sobre os interesses, a opinião e os indivíduos,
restaria aqui um retorno ao conflito. Onde ficou o conflito na república proposta pelos
americanos? Acreditamos que isto ficará claro ao tratar do projeto expansionista contido em
sua proposta.
Que a América deveria expandir-se é algo que exala dos Artigos
sem qualquer dúvida. A expressão império para se referir à união das treze repúblicas é
recorrente e a exortação de Hamilton, ao fechar o Artigo 11, é inequívoca:
"Que os americanos desdenhem ser os instrumentos da grandeza européia!
Que os treze Estados, congregados numa união firme e indissolúvel,
concorram para a construção de um grande sistema americano, acima do
controle de toda força ou influência transatlântica e capaz de ditar os
termos da relação entre o Velho Mundo e o Novo!" (AF 11, p. 145)
Mas que grande sistema americano é esse ali proposto? Vimos que a defesa da
representação como característica do governo republicano tinha em vista a possibilidade de
uma república de grande extensão. Por sua vez, uma república de grande extensão
inviabilizaria as facções, grande mal a ameaçar todas as repúblicas. Isso se dava na medida
em que, numa grande extensão, a multiplicidade de interesses é tal que dificilmente um
conseguirá adesão suficiente para sufocar os demais. Em outras palavras, numa grande
extensão, com uma multiplicidade de interesses, dificilmente serão formadas maiorias que
possam sufocar minorias. Isso, por sua vez, facilita os propósitos comerciais da república. E
a natureza comercial da república ali proposta é assumida já no Artigo 6.
A defesa de uma república de grandes dimensões tem, ainda,
aspectos territoriais, de organização dos exércitos
89
, e de segurança externa. No entanto, o
que parece preocupar os Federalistas é a expansão comercial da república e, neste caso,
uma expansão de interesses. Já vimos aqui toda a sua preocupação de que interesses locais
não prevalecessem sobre os interesses dos cidadãos como um todo. Já vimos também a
força e importância do cidadão do ponto de vista individual, na organização institucional da
república. Tudo isto indica que, se a expansão territorial é importante, ela o é na medida em
89
Sobre o exército permanente; AF 24, p.206, AF 28, p. 226
160
que possibilita uma ampliação dos interesses, e a acumulação desses interesses no interior
da república como algo benéfico para a sua sobrevivência. A manutenção da república, tal
como em toda a tradição republicana, é uma preocupação constante dos Federalistas e dos
federalistas, que foi consagrada na célebre frase de Benjamin Franklin no diálogo:
"What have you given us, Dr. Franklin?
A Republic, if you can keep it" (BALL, 1988)
A este respeito, Gerald Stourzh, ao analisar o pensamento político de Hamilton, autor da
maioria dos artigos que cuidam da expansão da República proposta nos Artigos, observa:
"Large republics, on the other hand, offered the greater promise of durability precisely
because of the variety of their local interests, remote from one another." (STOURZH, 1970,
p. 119). A durabilidade da república, portanto, está associada à quantidade de interesses que
ela consegue abarcar. Daí concluir que a expansão e a acumulação de interesses é, antes de
tudo, um alimento para a sua sobrevivência e crescimento.
E o que ocorreria se admitíssemos não os interesses em sua
diversidade, mas os interesses em conflito? Bem, os interesses teriam que se agrupar e ser
reduzidos a pontos em comum a fim de gerar os pontos de contradição ou oposição a
fundamentarem o conflito. Com isto, o acúmulo, se não se torna um problema, ao menos se
torna mais difícil. O conflito demarca um espaço de debates e requer mecanismos
institucionais que o solucionem. Interesses podem ficar de fora nessa solução e, com isto, a
acumulação resta no mínimo diminuída. Enfim, se é uma república comercial que se
pretende fundar, reconhecer o conflito e procurar solucioná-lo é algo que pode até
contribuir para a sobrevivência da república, mas não para sua expansão.
Ora, mas a primeira objeção a essa observação que acaba de ser feita
tem como fonte a primeira obra que analisamos nesta tese: os Discursos sobre a primeira
década de Tito Lívio. Ali, Maquiavel postula uma república expansionista, mas que tem no
conflito uma das molas de sua expansão. É que ali, como vimos, o que ocorria é que a
expansão era eminentemente militar. Para compor os exércitos que empenhariam tal
expansão era necessário que o povo fosse incluído, pois só um exército de cidadãos poderia
empreender uma expansão estável, como vimos no Capítulo 3 desta tese. Para que o povo
161
compusesse o exército, era necessário que passasse a integrar a vida política da república, e
isto somente poderia acontecer admitindo o conflito de seus interesses com os do Senado.
O conflito na república modelar romana, segundo Maquiavel, era o que precisava ser
solucionado para que a república tivesse a integridade necessária para ter exércitos fortes e
expandir. Além disso, expandir era, inequivocamente, dominar territórios.
Na república americana proposta no fim do século XVIII temos outra
situação. Ali, a formulação já é pelos exércitos permanentes (POCOCK 2003a), e a
república contava com um contigente de cidadãos a permitir isto. Além disso, parte dos
fundamentos da própria guerra de independência tem como referência questões comerciais
e de tributação. Era necessário e desejável acomodar todos os interesses comerciais
existentes na república, ainda que eles estivessem em conflito entre si, ou com valores
republicanos, como a liberdade de todos os cidadãos, na medida em que a escravidão era
um dos principais problemas sociais existentes na América naquele momento. A
acomodação dos interesses, portanto, levava à exclusão de parcela significativa da
população que, naquele momento, não era titular de qualquer interesse, entendido este
como aptidão para adquirir propriedades.
Foi assim que os Federalistas puderam formular esta proposta de
República como se não existissem conflitos sociais. Há autores que afirmam que os
conflitos sociais internos tinham menor relevância em relação ao conflito externo daquele
momento, buscando defender a interpretação consensualista, de que falamos no início deste
capítulo (MORGAN, 1973). Mas, ainda que admitamos esta interpretação como a correta,
temos de apontar que o arranjo institucional proposto pelos Federalistas inviabiliza o
tratamento do conflito mesmo futuro. Assim, temos que não importa se na sociedade
americana na qual os Federalistas apresentaram suas propostas tinha ou não conflitos. Eles
seriam irrelevantes na sua estrutura política, pois nesta todos os interesses, conflitivos ou
não, estariam acomodados. Eis a expansão sem conflitos tal como os americanos
propuseram.
Ainda comparando com Maquiavel, é conveniente, até como ponto
de partida para uma comparação com o pensamento republicano como um todo, confrontar
a noção de lei utilizada nas duas obras aqui estudadas: os Discursos e os Artigos.
162
Vimos que em Maquiavel a lei era algo eminentemente político,
produto do conflito entre posições opostas no interior da República. Aqui, a lei tem um
conteúdo um pouco distinto. Ao debater a aprovação de uma Constituição, que organizaria
a vida da república, o documento constitucional assumiu muito do papel que até então era
reservado às leis em geral
90
. Em relação às leis, os Federalistas tinham a seguinte visão:
"De pouco servirá ao povo que as leis sejam feitas por homens de sua
própria escolha se estas forem tão volumosas que não possam ser lidas ou
tão incoerentes que não possam ser compreendidas; se forem revogadas ou
revistas antes de serem promulgadas, ou sofrerem alterações tão
incessantes que já ninguém que saiba hoje o que é a lei possa adivinhar o
que será ela amanhã. A lei é, por definição, uma norma de ação; mas como
pode ser norma o que é pouco conhecido e ainda menos estável?".(AF 52,
p. 403)
Façamos alguns comentários. Em primeiro lugar, a atividade legislativa é vista não
necessariamente como algo positivo, e a legiferação em excesso pode inclusive contribuir
para a desorganização da República. Esta visão está absolutamente de acordo com uma
certa visão de juristas de linhagem liberal que defendem a racionalidade e a sistematicidade
dos ordenamentos jurídicos. Mas esta é uma questão que não enfrentaremos aqui. O que
importa é que a lei se tornou algo emitido pelo órgão detentor do poder legislativo, mas que
não necessariamente se relaciona com, ou menos ainda soluciona, demandas propriamente
políticas da república. Como dizem os Federalistas, ela é uma norma de ação, mas o que
parece estar negligenciado na obra, e esta passagem é só uma síntese disso, é que a lei
poderia (acreditamos que deve) ser ela própria um produto da ação. O que houve aqui é que
a lei passou a ser algo a ser incorporado num sistema já existente, e que deve ter coerência
e ser necessária nesse sistema. A estabilidade do sistema é o bem a ser preservado da
ameaça que constitui a promulgação excessiva de leis:
"Haverão de considerar toda instituição destinada a coibir o excesso de
legiferação e manter as coisas no estado em que estejam por um dado
período como prometendo ser muito mais benéfica que prejudicial, porque
ela favorece a maior estabilidade do sistema legislativo. O dano que
poderia talvez ser causado pela anulação de algumas leis boas será
amplamente compensado pela vantagem de impedir a promulgação de
várias leis más". (AF 73, p. 459)
90
Isto ocorreu em todo o debate constitucionalista e, como já dito, não é uma particularidade dos americanos.
163
Se a estabilidade do sistema legislativo é o bem a ser preservado, o judiciário parece ser o
principal guardião dessa estabilidade. Ao se constituir no órgão que resguarda os preceitos
constitucionais, se constitui, também, não somente na “boca pela qual fala a lei” de que
falava Montesquieu, na fórmula que em algumas passagens é incorporada pelos
Federalistas, mas em um poder que limita o poder legislativo. A importância do judiciário é
um tema que não foi abordado de maneira inequívoca pelos Federalistas. Ora é incorporado
o jargão de Montesquieu, que indicava que o judiciário era de uma certa forma nulo, ora é o
órgão eminentemente voltado para os cidadãos individualmente, ou seja, pros principais
destinatários das instituições da União. Essa oscilação é o que justifica a seguinte passagem
do texto:
"a Constituição deve ser preferida ao estatuto, a intenção do povo à
intenção de seus agentes.
Esta conclusão não supõe de modo algum uma superioridade do poder
judiciário sobre o legislativo. Supõe apenas que o poder do povo é superior
a ambos, e que, quando a vontade do legislativo, expressa em suas leis,
entra em oposição com a do povo, expressa na Constituição, os juízes
devem ser governados por esta última e não pelas primeiras." (AF 78, p.
481)
A supremacia da Constituição, na formulação americana, acabou coincidindo com, se não a
supremacia, a valorização do Judiciário e a sua equiparação com o Legislativo. Ocorre que
o Judiciário, ainda que o admitamos como um órgão político
91
, é voltado para os cidadãos
individualmente e sua politização é bem inferior à do poder legislativo. Então, se fizermos
91
Muito se escreveu sobre o judiciário americano, e se destaca a obra de Edward Corwin The Constitution
and What It Means Today. Mas sem dúvida foi Tocqueville quem fez as observações mais perspicazes,
válidas ainda hoje. Transcrevemos aqui uma seleção de seus comentários:
"não creio que, até o presente, tenha alguma nação no mundo constituído o poder judiciário da mesma
maneira que os americanos. (...)
A primeira característica da força judiciária, entre todos os povos, é servir de árbitro. (...)
A segunda característica do poder judiciário é a de se pronunciar sobre casos particulares e não sobre
princípios gerais (...)
O terceiro caráter do poder judiciário é o de só poder agir quando chamado, ou, conforme a expressão legal,
quando é invocado. (...)
Os americanos conservaram esses três caracteres distintivos do poder judiciário. O juiz americano só pode
pronunciar-se quando há um litígio; jamais se ocupa senão de casos particulares; e, para agir, sempre precisa
esperar pelo embargo. O juiz americano assemelha-se, pois, perfeitamente, aos magistrados das demais
nações. É, entretanto, revestido de um imenso poder político. Donde vem esse poder? (...)
A causa acha-se exclusivamente no seguinte fato: os americanos reconheceram o direito de fundarem os
juízes as suas decisões na Constituição, antes que nas leis . Noutras palavras, permitiram-lhes jamais aplicar
as leis que lhes parecessem inconstitucionais." (TOCQUEVILLE, 1987, pp. 82-3)
164
todas essas associações e somarmos a elas o temor central dos Federalistas que são as
facções e a formação de maiorias que oprimam as minorias, temos que a legislação
ordinária, que diz respeito justamente às disputas políticas mais cotidianas, perdeu muito da
sua politização e da sua densidade. A lei, com isso, passa a ter um sentido mais jurídico, na
medida em que é um elemento do sistema jurídico que tem como demarcação fundamental
a Constituição, e a esta está subordinada. Dessa forma, ocorre também que a predominância
de um sentido jurídico da lei é um elemento tipicamente liberal, e não republicano.
Na diferenciação entre a lei liberal e a republicana, podemos lembrar
também a distinção feita por Skinner e lembrada por Alan Patten de que a lei, para os
republicanos, preserva a nossa liberdade na medida em que faz com que nós ajamos de um
determinado modo (lei orientadora da ação), enquanto a lei liberal promove a nossa
liberdade na medida em que limita a liberdade dos outros (PATTEN, 1996, p. 33). Esta
diferenciação está em harmonia com a distinção, que já se tornou canônica, de Isaiah Berlin
entre liberdade positiva e liberdade negativa e já mencionada no segundo capítulo desta
tese.
Se somarmos, então, as duas distinções entre a concepção liberal e a
concepção republicana de lei, temos que nesta o conteúdo político é muito mais presente.
No entanto, vimos aqui nesta tese, que a densidade política da noção de lei de Maquiavel se
perdeu ao longo do pensamento republicano, como apontamos aqui em cada obra analisada.
Embora a densidade já tivesse sido perdida, aqui, com Os Artigos Federalistas, uma nova
mudança se operou. Com a supremacia da Constituição, e um poder judiciário que é muito
mais do que "a boca pela qual fala a lei", é o titular do controle de constitucionalidade de
cada lei
92
, e com a própria Constituição e a estrutura institucional da república voltada para
os indivíduos, e não para grupos, estejam esses ou não em conflito, temos que houve uma
juridicização do conceito de lei que em nenhuma obra anterior esteve presente. A lei é um
conjunto de comandos que pertence a uma ordem jurídica, que um cidadão pode obedecê-
la, mas contra a qual ele também pode se insurgir. Há direitos que precedem cada lei
promulgada e o sistema judiciário como um todo está estruturado justamente para que esses
92
Sobre a teoria constitucional presente nos Artigos Federalistas e o papel do judiciário nessa teoria, ver o
artigo de Roberto Gargarella; "En nombre de la Constitución: el legado federalista dos siglos después"
(GARGARELLA, 2000).
165
direitos sejam prevalecidos. O crivo para a legitimidade de uma lei é muito menos político,
portanto, e muito mais jurídico.
Essa juridicização do conceito de lei está associada, ainda, a uma
nova concepção da idéia de moderação do governo, tão cara aos republicanos. Se desde
Maquiavel a moderação vinha de um certo equilíbrio entre as funções do Estado e a disputa
de interesses entre os cidadãos (a forma do equilíbrio varia de autor para autor), com os
Federalistas passou a ser a de um governo limitado pela Constituição e toda a atividade
política a ela circunscrita. A fundação da República, aqui, ganhou uma dimensão ainda
mais importante e tornou a vida política posterior bastante enfraquecida. E aqui, temos mais
uma guinada liberal operada pelos Federalistas. A moderação, um problema eminentemente
político para o pensamento republicano, se tornou uma construção jurídica, que tem na
Constituição a primeira fonte do direito (ou a norma-origem, no jargão da teoria geral do
direito) e as leis estatutos a ela inferiores. É claro que a idéia do poder limitado pela
Constituição tem origem bem anterior aos Artigos, mas o que eles fizeram foi, dentro de
uma tradição, a republicana, utilizando de uma legitimidade própria a ela, introduzir
elementos de uma outra tradição, a liberal, e construíram uma formulação institucional que
foi imitada por diversas outras repúblicas que foram sendo fundadas desde então.
Por isto, entre outras coisas, é que vários temas liberais e
republicanos e confundiram com problemas liberais e tiveram soluções pertencentes à
tradição liberal de pensamento. Com os Federalistas, não é demais afirmar, houve uma
supremacia do liberalismo sobre o repub licanismo, e o triunfo do indivíduo, utilizando um
vocabulário e uma problemática, ao menos inicialmente, republicana. Esta mudança,
acreditamos, foi irreversível, e teve impactos sensíveis sobre o tema que é foco de nossa
tese: o conflito de interesses.
Como vimos até aqui, é muito claro que a República proposta pelos
Federalistas é a república dos interesses, e já comentamos como isso se deu. Mas
gostaríamos de acrescentar mais alguns comentários. Com inspiração nas observações de
Simmel (SIMMEL, 1964) sobre o conflito e os mecanismos de formação de grupos, temos
a observar que, numa sociedade em que a individualização é muito forte (como é o caso
aqui), e que, portanto, a força de coesão social do conflito não se exerce (como também é o
caso aqui, como vimos com as facções), temos que cada indivíduo pode participar de um
166
sem número de grupos, de acordo com cada uma de suas atividades. Assim, por exemplo,
um indivíduo jovem, que toca um instrumento e mora num bairro X, pode pertencer a
alguma associação juvenil, a outra de músicos e a uma comunidade de bairro. Mas note-se
que estas associações não se opõem entre si, e não se opõem a outras
93
. Por isto os
americanos conseguiram a proeza de juntar um profundo individualismo com um difundido
associativismo. Esta é a realização da pluralidade, em que o indivíduo se une a outros que
tem o mesmo interesse, mas sem a coesão do conflito, que alimentaria uma oposição com
outro grupo. E é dessa maneira que os americanos afastaram o conflito de sua "república":
o indivíduo faz parte dela com seus interesses, se associa a outros conforme esses
interesses, mas não se encontra em oposição a nenhum outro grupo. Qualquer "conflito",
ainda que exista entre os grupos, será resolvido judicialmente, ou individualmente, ou com
os grupos sendo tratados da mesma forma que indivíduos. Esta foi a solução americana
para o conflito. Esta é a característica "jurídica" da democracia dos americanos
94
, baseada
no indivíduo, que elege e controla seus representantes por meio da opinião pública (que não
necessariamente é coletiva, como vimos) e tem seus direitos individuais garantidos pelo
Judiciário. Além disso, tem o terreno político demarcado pela Constituição, impedindo
grandes mudanças legislativas. Democracia e segurança do indivíduo, portanto, estão
indissociadas.
Assim, temos que a república plural americana é a dos interesses
viabilizados pelas instituições republicanas e garantidos pelo judiciário, sem que seja
necessário verificar a existência de qualquer conflito político. Ele será irrelevante. Aliás,
provavelmente a própria política seja irrelevante nessa república. Portanto, se há algo de
maquiaveliano no projeto dos Federalistas é o tema da expansão republicana, mas a
maneira com que se dá é bastante distinta, e, no que tange à política, de natureza
praticamente oposta. Se em Maquiavel a expansão se dá por via da política, com os
Federalistas ela é feita alijando a política da república.
93
Tocqueville aponta o associativismo americano como uma "solução" para o individualismo daquela
sociedade (TOCQUEVILLE, 1987, especialmente pp. 388-394). Discordamos. da maneira como expusemos
aqui, o associativismo é só mais uma forma de manifestação do individualismo, traduzido politicamente na
pluralidade.
94
William Nelson utiliza uma interessante expressão "concepção individualista de governo pelo consenso",
para designar um ânimo americano, que teve origem já na guerra de independência, que teria levado à direção
da democracia (NELSON, 1965, pp. 1005-6)
167
A despeito dos fundamentos desta crítica, a fórmula americana dos
Federalistas teve bastante "sucesso". E uma das manifestações desse "sucesso" é a obra que
passamos a analisar no próximo capítulo: Da Revolução de Hannah Arendt.
168
8. HANNAH ARENDT E A DIGNIDADE DA REPÚBLICA PLURAL AMERICANA
Era mais seguro não querer
Eucanaã Ferraz
A análise da relação entre conflito e interesse na obra de Hannah
Arendt como um todo, e não somente em Da Revolução, já foi realizada em outro trabalho
nosso (ABREU, 2004). A despeito disso, retomar tal análise e concentrar o foco apenas em
uma de suas obras, que é a que caracteriza a autora como "republicana" tem seu interesse
aqui por nos dar a possibilidade de tornar mais claros alguns pontos que possam ter ficado
obscuros em nosso texto anterior e, principalmente, por permitir reforçar outros pontos de
nossa análise sobre Os Artigos Federalistas no capítulo anterior. Assim, iniciaremos a
análise de Da Revolução retomando nosso trabalho anterior.
Para Hannah Arendt, a categoria central da política é a pluralidade.
Na teoria da autora, isto está associado aos seguintes pontos:
1) os indivíduos, ao atuarem no espaço político, são iguais não
naturalmente, mas em decorrência de leis que estabelecem uma igualdade, que é, portanto,
artificial;
2) os indivíduos, ao atuarem no espaço político o fazem como seres
singulares que procuram mostrar essa singularidade em público, por meio de suas ações e
de suas opiniões;
3) os indivíduos, ao agirem politicamente (no sentido genuíno desse
advérbio), agem desinteressadamente e sem ter em vista qualquer finalidade (o que implica
retirar da ação política o interesse e a vontade);
4) os indivíduos, ao agirem politicamente, agem em conjunto, e
assim, geram poder e liberdade;
5) liberdade e poder são um resultado, portanto, da ação política
plural realizada por indivíduos em conjunto.
Tudo isto indica uma teoria bastante exigente em relação à política,
na medida em que retira dela, principalmente, os interesses
95
dos agentes e requer, para a
95
Hannah Arendt retira o interesse da política porque não quer nela nem as paixões, nem o cálculo. Dessa
forma, em qualquer sentido que se adote para o interesse, ele deve estar de fora da política.
169
geração de poder e de liberdade, que os indivíduos ajam em conjunto. A partir desses
pontos, sintetizados muito brevemente a partir da obra de Hannah Arendt como um todo,
passamos a analisar Da Revolução. Neste livro, que pode ser considerado o único trabalho
em que Arendt faz proposições a respeito do que deveria ser uma comunidade política
(república), a autora empreende uma comparação entre as Revoluções Francesa e
Americana, realizando uma severa crítica à primeira, e uma defesa bastante entusiasmada
da segunda. O ponto de diferenciação é a tentativa, presente na Francesa, e ausente na
Americana, de que fossem resolvidas questões sociais por meio da revolução, ou, em outras
palavras, de que se utilizasse a política para resolver questões que estão fora dela. Este tipo
de comparação e o seu conteúdo não eram novos no momento em que Arendt escreve.
Desde 1800, em livro inclusive citado por ela, Frederick Gentz, já havia estabelecido
pontos de diferença entre as Revoluções Francesa e Americana bastante semelhantes aos
indicados pela autora
96
.
Mas há alguns pontos novos na análise de Hannah Arendt, na medida
em que ela viu, na fundação constitucional americana, um caso modelar de fundação de
uma comunidade política com aquelas características bastante exigentes que enunciamos
acima. Como isso foi possível se, como vimos, a república dos Artigos Federalistas é
eminentemente uma república de interesses? É o que vamos procurar explicar.
96
Ver, de Frederick Gentz, The French and American Revolutions Compared. A Tradução para o inglês foi
feita por John Quincy Adams, um dos founding fathers. A própria tradução se insere no debate para tornar as
idéias defendidas pelos Federalistas vitoriosas. A separação de Gentz não tem o fundamento teórico de
Arendt, que separa categoricamente o social do político, e suas distinções se estabelecem em quatro pontos,
que podem ser assim resumidos: 1) the lawfulness of origin: "The American revolution was grounded partly
upon principles, of which the right was evident, partly upon such, as it was at least very questionable, whether
they were not right, and from beginning to end upon no one that was clearly and decidely wrong; the French
revolution was an uninterrupted series of steps, the wrong of which could not, upon rigorous principles, for a
moment doubted (GENTZ, 1955, p. 31); 2) character of the conduct: "The American revolution was from
beggining to end, on the part of the Americans, merely a defensive revolution; the French was from the
beggining to end, in the highest sense of the word, an offensive revolution (GENTZ, 1955, p. 47); 3) quality of
the object: "The American Revolution, at every stage of its duration, had a fixed and defined object, and
moved with definite limits, and by a definite direction towards this object. The French revolution never had a
definite object; and in a thousand various directions, continually crossing each other, ran through the
unbounded space of a fantastic arbitrary will, and of a bottomless anarchy." (p. 60); 4) compass of resistance:
"The American revolution had a mass of resistance, comparatively much smaller to combat, and therefore,
could form and consolidate itself in a manner comparatively much easier, and more simple; the French
revolution challenged almost evety human feeling, and every human passion, to the most vehement resistance,
and could therefore only force its way by violence and crimes" (p. 76). Todos estes pontos são elencados para
demonstrar aquilo que era o propósito do livro: "A modern philosopher may contend that the sheriff, who
executes a criminal, and the highwayman, who murders a traveler, act upon the same principles; the plain
170
8.1. A interpretação da fundação constitucional americana por Hannah Arendt
Ao interpretar a fundação constitucional americana, Hannah Arendt
não diferencia a revolução americana da fundação constitucional propriamente dita. Toda a
sua interpretação se dá como se a visão daqueles que eram a favor da constituição de uma
União fosse uma só e a única naquele contexto americano. Com isto é que ela utiliza textos
de Thomas Jefferson, John Adams e James Madison como se não houvesse, entre eles, e
entre eles e outros (Hamilton, por exemplo) tensões que tornariam a análise no mínimo
mais trabalhosa. Além disso, as diferenças entre o que era esperado na revolução, e o que
acabou sendo instituído como Constituição não são levadas em consideração. A despeito
disso, analisemos suas observações, para depois tentar confrontá-las com as nossas já feitas
no capítulo anterior, ainda que nosso foco tenha sido apenas os Artigos Federalistas.
O sucesso da fundação constitucional americana, para Hannah
Arendt, se deu, principalmente, em virtude de ali ter sido operada a instituição de uma
comunidade política sem com isso ter a pretensão de resolver problemas sociais. A
escravidão, questão social que perdurou para além da aprovação da Constituição, não foi
tratada porque era como uma questão "inexistente" (DR, p. 57) e também não foram
levantados problemas relativos à precariedade das condições sociais da população. Arendt
viu, portanto, na fundação constitucional americana, a separação entre o social e o político,
que ela postulou em toda sua obra. A mesma separação entre o social e o político foi o que
fez Arendt ver também nos sovietes, implantados no decorrer da Revolução Russa, uma
experiência genuinamente política. Só que, ali, a ressalva feita pela autora foi a de que os
sovietes foram bem sucedidos enquanto operaram de acordo com uma separação não-
marxista entre política e economia (DR, p. 52). A separação entre as questões políticas, de
um lado, e as econômicas e sociais, de outro, foi o que permitiu a Hannah Arendt retirar da
política o interesse, como já apontado. E, a despeito de operar com essa separação, ela viu
na fundação constitucional americana um caso exemplar de ação política desinteressada, e
geradora de poder.
sense of mankind will still see the same difference between them, that is here proved between the American
and French Revolutions. - The difference between right and wrong. (GENTZ, 1995, p. 3-4)
171
Examinando as interpretações sobre a fundação constitucional
americana, Arendt rechaçou veementemente a interpretação de Charles Beard. E seu ataque
à crítica empreendida por Beard se deu menos pelo conteúdo do que pela forma da crítica.
Como já apontamos no capítulo anterior, Beard investigou quem eram os founding fathers,
ou seja, quais os interesses que os moviam no momento das discussões e da votação da
proposta de Constituição dos Federalistas. Segundo Arendt, esse tipo de crítica não faz
sentido, uma vez que vai além daquilo que a política é: o terreno das aparências. Tal tipo de
investigação, de acordo com a autora, é semelhante à "caça aos hipócritas" operada por
Robespierre no contexto da Revolução Francesa, e não diz respeito ao terreno do político.
Para ela, a política lida com aquilo que os indivíduos representam no cenário político, e esta
é uma garantia dada pela própria política. É porque a política lida com aparências que ela
pode lidar com indivíduos iguais. Avançar, portanto, essa proteção, ou retirar a "máscara"
dos atores é passar a usar instrumentos não-políticos que não contribui para a análise dos
eventos históricos nessa perspectiva política.
Afastada, portanto, a análise de Beard, e qualquer investigação sobre
os interesses que estavam em questão naquele debate, Arendt afastou a presença do
interesse da fundação constitucional americana. Mas, como a nossa própria análise já
apontou no capítulo anterior, ainda que se admita a falta de sentido da análise de Beard e a
sua pouca veracidade em relação aos fatos do período, e mesmo admitindo que os
Federalistas não estavam ali defendendo seus próprios interesses, parece inegável que os
interesses estão presentes no projeto de república proposto por eles, ao menos aquele
defendido nos Artigos Federalistas. Hannah Arendt parece ter desconsiderado essa
presença.
Para Arendt a grande inovação apresentada pelos americanos foi uma
nova equação para o poder. Segundo ela, eles estavam menos preocupados em limitar o
poder, tal como sugeria a adoção da fórmula da separação de poderes de Montesquieu, do
que com a garantia da geração de mais e mais poder (DR, p. 123)
97
. Isto foi possível por
eles terem identificado, ao contrário dos franceses, a diferença de fontes para a lei e para o
97
Outra solução para a organização dos poderes da república que Arendt louvou como obra americana, foi a
atribuição de autoridade ao poder judiciário, modificando a solução romana segundo a qual o poder estava no
povo, e a autoridade no Senado. Como para explicar melhor isso precisaríamos adentrar o conceito de
autoridade da autora, deixamos aqui apenas indicado.
172
poder (DR, p. 132). Na França, na formulação constitucional teorizada por Sieyes, a
diferença entre poder constituinte e poder constituído sempre gerou um círculo vicioso em
que o pode de emanar leis daqueles que estivessem tentando aprovar uma constituição
poderia ser questionado. Na América, diferentemente, a elaboração da Constituição e,
posteriormente, das leis, eram atos que não dependiam do poder, que tinha sua fonte
anterior à própria constituição, e continuaria tendo sua fonte posteriormente, com a abertura
deixada pela Constituição para a ação. Reivindicar uma separação clara entre lei e poder
está em pleno acordo com a concepção de lei como algo pré-político , como já explicamos
em trabalho anterior.
Com os franceses, ou mobilizados em torno de uma vontade geral, a
la Rousseau, ou de um interesse parcial que é estendido ao todo, tornando-se único a la
Sieyes, o tempo todo era verificado se a Constituição ou as leis a serem estabelecidas eram
resultado legítimo dessas fontes de poder. Com os americanos, a Constituição deveria
garantir os poderes já existentes e viabilizar que mais poder pudesse ser gerado. Eis a
síntese de Arendt sobre as diferenças de tratamento do poder nas duas revoluções. Estamos
parcialmente de acordo com a autora. Até aqui a sua análise combina com a que
empreendemos nos capítulos anteriores. Apenas destoamos em um ponto: Hannah Arendt
desconsiderou a presença dos interesses na república americana. Vejamos como.
8.2 Interesses e opiniões: duas faces da pluralidade
No capítulo anterior, ao caracterizar a república fundada pelos
americanos, a denominamos de "república de interesses", "república de indivíduos" e
"república da opinião pública". Hannah Arendt provavelmente concordaria com as duas
últimas denominações, mas não com a primeira. No capítulo anterior vimos, em algumas
passagens do próprio texto dos Artigos Federalistas, e também apoiados em alguns textos
de comentadores, como interesse e opinião estavam indissociados em várias passagens. A
opinião, em vários momentos, poderia ser considerada uma tradução política para o
interesse econômico. A forma da república comercial, em expansão, tendo de garantir que
os interesses econômicos de cada indivíduo estivessem mais que protegidos, viabilizados, é
aquela em que cada um pode ter sua opinião, manifestá-la e, mais ainda, projetá-la sobre os
173
demais. A opinião pública, projetada, é a fórmula política da expansão econômica do
interesse comercial.
Hannah Arendt, como já sabemos, voltou-se apenas para a parte
política da equação enunc iada acima. Para ela interesse e opinião não coincidem:
"Interesse e opinião são fenômenos políticos completamente diversos.
Politicamente, os interesses só são relevantes como interesses de grupos, e
para a depuração desses interesses grupais parece ser suficiente que eles se
façam representar de tal forma que seu caráter parcial seja preservado em
quaisquer condições, mesmo na circunstância em que o interesse de um
grupo possa eventualmente ser o interesse da maioria. As opiniões, ao
contrário, nunca dizem respeito a grupos, mas exclusivamente a indivíduos,
que 'manifestam livre e desapaixonadamente os seus pontos de vista' e
nenhuma multidão, seja ela representativa apenas de uma parte da
sociedade, seja de sua totalidade, jamais será capaz de formar uma opinião"
(DR, p. 181).
A própria Hannah Arendt esclarece, em nota, que tal distinção se encontra fundamentada
no Artigo Federalista 10. Retomemos, pois, tal artigo. Ali, como já apontamos, se postula
uma pluralidade de interesses, baseada na pluralidade de aptidões de adquirir propriedade.
Não se pode afirmar, a partir do Artigo 10, que as opiniões decorrem dos interesses. Mas
também não podemos afirmar que são fenômenos politicamente diversos e que somente
quando coletivos os interesses interessam politicamente. Ao contrário, o que parece estar
proposto ali é justamente a maior diversificação de interesses possível, cuja unidade, como
já dissemos e repetimos, é o individuo. Interesses e opiniões, no artigo 10, são fenômenos
bastante semelhantes e, inclusive, têm o mesmo efeito sobre a formação de facções: se as
diversas opiniões, e os diversos interesses forem assegurados, não haverá formação de
facções. As facções é que não são interessantes para a república. Os interesses individuais,
sim.
Por causa dessa "mudança de sentido" do que foi dito no Artigo
Federalista 10, Hannah Arendt pôde ver uma política assentada principalmente na formação
de opiniões, por sua vez fundamentadas no bom senso dos indivíduos
98
. E, assim, Arendt
pôde ver ali uma noção de povo em que este consiste numa multiplicidade de vozes e
opiniões. E é com base nesta experiência americana (tal como a autora interpreta) que
174
Arendt pôde formular seu conceito de povo, tão bem enunciado por Margareth Canovan.
Segundo Canovan, ressaltando o caráter fenomenológico da conceituação de Arendt,
"because the People are mobilized around a shared world, they can act as
one while maintaining their plurality as distinct individuals. In contrast to
Rousseau´s "people", who are supposed to be united by an identical
General Will inside them all, members of Arendt´s People are held
together by being gathered around the objective, federated, institutional
world of the Republic" (CANOVAN, 2002, p. 414)
A distinção entre a pluralidade de Hannah Arendt e a unidade de Rousseau reforça a
separação feita nesta tese entre república plural e república unitária. Ainda que se admita a
riqueza e a utilidade dessa definição, como faz Canovan, mais adiante, diferenciando tal
definição de povo de uma definição populista que é totalizante e massificante, temos de
reconhecer, também, que está assentada de forma bastante acentuada no indivíduo, como
demonstramos tanto na versão "federalista", quanto na versão de Arendt.
Como se vê, na apropriação feita por Hannah Arendt do conceito de
povo dos Federalistas, muito se preservou, mas foi retirado talvez o elemento, na nossa
interpretação, essencial para caracterizar a estrutura política proposta pelos americanos: o
interesse. Com isto, Hannah Arendt pôde enxergar, na experiência da fundação
constitucional americana uma forma de constituição de um corpo político baseado na
pluralidade de indivíduos que agem desinteressadamente e, por meio da troca de suas
opiniões, "partilham um mundo comum", como aponta Canovan. Neste sentido, também,
Arendt pôde ver, nessa mesma troca de opiniões, o exercício da mentalidade alargada
kantiana, própria dos juízos estéticos e dos políticos, segundo a autora. Essa mentalidade
alargada se traduz na capacidade de cada um de colocar-se no lugar dos outros. Vimos,
quando analisamos Os Artigos, que a multiplicidade de opiniões não se dava
necessariamente assim. O compartilhamento de opiniões, sugerido pelos Federalistas, nos
parece estar muito mais associado à projeção da opinião de um indivíduo sobre os demais.
Com tudo isto, Hannah Arendt pôde colocar os Federalistas no
mesmo lugar republicano que o seu, defensora de uma república baseada na troca de
opiniões e na ação política de indivíduos singulares, que agem desinteressadamente. É claro
98
Nesse aspecto, lembrar que a valorização da opinião pública pelos Federalistas está associada, também, à
valorização do bom senso do povo americano, como apontamos no capítulo anterior.
175
que isto não a torna defensora do que era a sociedade americana quando escreveu, ou
mesmo da atual sociedade americana. Ao comentar o "tesouro perdido" da tradição
revolucionária, ela faz severas críticas à política que sucedeu as revoluções e aponta, em
relação aos americanos:
"O que deles restou, na América, depois que o espírito revolucionário foi
relegado ao esquecimento, foram as liberdades civis, o bem-estar
individual da grande maioria da população, e, além disso, a opinião
pública como a força mais poderosa a dirigir uma sociedade democrática e
igualitária. Essa transformação corresponde, com grande precisão, à
inversão da esfera política pela sociedade; é como se os princípios,
originalmente políticos, fossem traduzidos em valores sociais." (DR, p.
177)
O que parece ter faltado, na análise de Hannah Arendt, então, foi
perceber que aquilo que ela estava criticando já estava presente no próprio texto dos
Artigos Federalistas e estava contido no seu projeto político. Ali, não se pretendeu resolver
as questões sociais, é certo, mas o mesmo não se pode dizer quanto às questões
econômicas. Dessa forma, se houve uma mistura entre o político e o econômico, operou-se
ali uma confusão entre o social e o político da mesma forma que nos demais projetos
políticos analisados pela autora
99
. Só que, no caso americano, com a supremacia do
interesse individual.
Vendo na experiência americana uma defesa da pluralidade, parece
que Hannah Arendt logo viu ali um caso exemplar para a sua teoria. No entanto, a
pluralidade de que falava m os americanos era, acima de tudo, a pluralidade de interesses e
estes, se não eram a única fonte para a diversidade de opiniões, certamente era uma delas e
talvez a mais importante. Esta interpretação feita por Arendt, mudando o sentido da
pluralidade proposta pelos americanos, poderia ser avaliada como apenas mais uma
interpretação que os grandes autores fazem de outros, adequando-os a sua própria teoria.
No entanto, neste caso, os efeitos talvez sejam um pouco diferentes. A idéia de pluralidade
presente na obra de H.Arendt vem, muitas vezes, casada com a idéia de democracia
participativa, como acontece, inclusive, em Da Revolução, como veremos a seguir. Além
99
Refiro-me aqui à Revolução Francesa e aos sovietes pós-revolucionários russos. Arendt aponta que estes
últimos foram bem sucedidos politicamente somente até o momento em que não buscaram resolver questões
econômicas por meio de suas decisões políticas.
176
disso, como já dito, sua teoria política é bastante "exigente" em relação aos atores políticos,
que devem, acima de tudo, agir desinteressadamente. Isto dá à teoria da autora uma
aceitação no interior do debate democrático - que muitas vezes é precipitada -, que faz com
que a inclusão da experiência fundacional americana como um dos exemplos de ação
política genuína seja atribuir qualidades que aquela experiência não tem, nem seus atores
parecem ter pretendido que tivesse. Então, por isso o título desse capítulo, sugerindo a
afirmação de que, com Hannah Arendt, a república plural passou a ter uma dignidade que
antes não tinha.
8.3 A proposta de Hannah Arendt
Como já dito, Hannah Arendt não é só uma intérprete dos textos da
fundação constitucional americana, mas principalmente uma teórica que viu, naquela
experiência, um exemplo para sua teoria, que tem como elementos centrais aqueles que
apontamos no início deste capítulo. Mas qual é a proposição contida em Da Revolução?
Arendt não formula uma proposta explícita, mas é possível
depreender uma a partir dos comentários que ela fez a respeito das revoluções e,
principalmente, dos conselhos revolucionários russos e húngaros. Tentemos esboçá-la.
A estrutura de governo proposta pela autora é a de conselhos, que
vão do local para o mais abrangente do ponto de vista territorial, e os conselhos "inferiores"
devem eleger representantes para os conselhos "superiores". Arendt defende
veementemente uma democracia de conselhos ao invés da democracia representativa de
partidos (DR, p. 216)
100
. Segundo ela, os conselhos sempre surgiram espontaneamente, da
própria ação política (no caso, revolucionária). O que impediu os conselhos revolucionários
de serem bem sucedidos politicamente é que houve, neles, a confusão entre assuntos
políticos e assuntos administrativos (DR, p. 218). Ocorre que não fica muito claro o que
seriam exatamente assuntos "administrativos". O que se pode depreender da obra da autora
é que são todos aqueles que digam respeito a questões econômicas e de zeladoria da
comunidade. Só que resta saber o que exatamente estaria fora do âmbito "administrativo" e
100
Hannah Arendt, embora tenha visto a política eminentemente como representação, era uma crítica da
democracia representativa, como várias passagens de Da Revolução demonstram.
177
seria propriamente político. Se fizermos uma aplicação rígida das exigências teóricas de
Hannah Arendt veremos que sobra muito pouco: aquilo que não disser respeito a questões
econômicas, sociais, aos interesses dos indivíduos, enfim, somente aquilo em que os
indivíduos se manifestem desinteressada e desapaixonadamente. Temos de reconhecer que
a proposta de Arendt, interpretada nestes termos, fica pouco factível. Mas ela não deixou
outra interpretação possível. Com isso, os exemplos indicados por ela acabam sendo ainda
mais fortes, pois se tornam uma "realização" de sua teoria. E daí a importância de ela ter
colocado a experiência fundacional americana como um desses exemplos de realização da
ação política genuína, de acordo com as exigências de sua proposta.
A interpretação de Arendt de que os americanos mudaram a
maneira de ver o poder, e que estavam muito mais preocupados em gerar mais poder do que
em limitá-lo foi a sua intuição certeira que certamente contribuiu muito para nossa
interpretação exposta no capítulo anterior. Mas entre ver na pluralidade de fontes de poder
ali operada como a realização de uma política desinteressada há uma grande distância, que
é preenchida justamente pela importância que os interesses (não importa os de quem)
tiveram na formação daquela república. No entanto, com a inclusão operada por Arendt, da
experiência americana como um exemplar da política genuína exigida pela sua teoria, a
autora parece ter estendido ainda mais a grandeza daquela experiência. Provavelmente lhe
deu uma dignidade que ela não tinha, nem seus autores pretendiam que tivesse.
178
9. O PENSAMENTO REPUBLICANO CONTEMPORÂNEO
Depois de Hannah Arendt, ainda restam algumas rápidas observações
sobre o pensamento republicano contemporâneo. Neste caso, estamos nos referindo a
J.G.A. Pocock, a Quentin Skinner e a Philip Pettit. Na obra de Pocock, centrada bastante
num esforço historiográfico, embora apresente insights teóricos de grande monta, como o
que deu o ponto de partida para esta tese, temos que o conflito não foi uma categoria central
em sua análise. Embora ele tenha em algumas passagens mencionado o conflito, este não
foi uma categoria central em sua análise que, ao estabelecer relações com o interesse,
esteve muito mais voltada para a virtude, como sabemos. Mas há uma passagem da obra de
Pocock que gostaríamos de citar, por corroborar uma de nossas teses sobre Os Artigos
Federalistas:
"Interest and faction are the modes in which the decreasingly virtuous
people discern and pursue their activies in politics; but in Madison´s
thought two consequences soon follow. In the first place, the checks,
balances and separations of powers, to be built into the federal structure,
ensure as we have seen that interest does not corrupt, so that the full
rhetoric of balance and stability can still be invoked in praise of an edifice
no longer founded in virtue, and the very fact that it is no longer so founded
can easily be masked and forgotten. In the second place, there are
passages which strikingly indicate that the capacity of this structure for
absorbing and reconciling conflicting interests is without known
limits."(POCOCK, 2003, p. 522, negrito nosso)
101
.
Nesta passagem, Pocock percebe a reconciliação de conflitos operada
pelos americanos, mas não a problematiza. Seu foco se encontra justamente sobre os
interesses, aliás, como a maior parte da literatura que lida com o projeto fundacional
americano.
Quanto a Skinner e Pettit, o foco de ambos foi muito mais sobre a
questão da liberdade republicana, como algo a ser diferenciado da liberdade liberal. No
caso de Pettit temos, ainda, em relação aos Artigos Federalistas mais uma vez a mistura,
também operada por Hannah Arendt, entre a revolução e os Artigos. Para defender no
projeto republicano americano a existência de uma liberdade como "não-dominação" Pettit
101
Esta análise de Pocock está ancorada nas análises de Gordon Wood, especialmente sobre o Artigo
Federalista n.. 51.
179
invoca questões ligadas ao movimento de independência. No entanto, sabemos que o
projeto republicano americano, e isso se reforça se considerarmos unicamente Os Artigos
Federalistas, não tinha como preocupação principal a não-dominação. A não ser que
admitamos que a construção de qualquer corpo político tem em vista a não-dominação,
afinal, nenhuma comunidade que se constitui pretende não ser dominada, do contrário,
obviamente, não se constituiria. O que poderia fundamentar essa interpretação de Pettit é a
sua visão de republicanismo, exposta sinteticamente da seguinte forma:
"I defend a consequentialist version of republicanism. This
republican doctrine, as we shall see, is a consequentialism with a
difference: it allows us to say that the institutions which promote
people´s freedom as non-domination go to constitute that freedom,
not to cause it" (PETTIT, 1997, p. 81).
De fato, se aplicarmos esta definição de "republicanismo
conseqüencialista" ela parece se ajustar ao caso americano, no sentido de que a liberdade ali
não foi gerada pelas instituições, mas era anterior a elas. No entanto, sabemos que a
liberdade ali instituída não era apenas como não-dominação. Aliás, como vimos aqui,
inspirados em Gordon Wood, o que existia, em primeiro lugar, no território americano, e
precisava ser organizado, era o poder. A liberdade era posterior às esferas de poder
existentes na sociedade americana pós-independência. Neste aspecto, vários autores
concordariam: Arendt, Wood e Peterson, já citados aqui.
Não tratamos do tema liberdade nesta tese, como anunciamos no
segundo capítulo, mas podemos indicar que, ao menos no caso americano, a liberdade
republicana de Pettit, como não-dominação parece não se ajustar.
Estes breves comentários foram feitos apenas para deixar indicado
que o conflito não é um tema no pensamento republicano atual que, na maior parte das
vezes, assume um caráter de historiografia do pensamento republicano. Neste sentido,
devemos lembrar as críticas já citadas aqui de Joyce Aplleby, que afirma que o triunfo do
republicanismo contemporâneo está calcado numa idéia de consenso, e não de conflito
(APPLEBY, 1992, p. 193) e de McCormick, que apontava a interpretação "moderada"
daqueles que ele denominava de escola de Cambridge. Esse caráter moderado, calcado no
consenso e, de uma certa forma, historiográfico, é mantido para reivindicar uma espécie de
180
origem única do pensamento político como republicana e que, portanto, essa corrente de
pensamento seria muito mais adequada para entender, interpretar e, até mesmo, modificar o
mundo. Não acreditamos que isso possa ser assim, até porque, com a operação feita pelos
americanos, o que nos parece é que, ao invés de o republicanismo ser um manto que cobre
toda teoria política, o que ocorreu é que o liberalismo se apropriou das principais temáticas
republicanas e as converteu em um registro a partir do individualismo.
Se o republicanismo se pretende uma alternativa ao liberalismo,
talvez o passo seja diferenciar-se de fato, buscando onde, nas suas raízes, era
inequivocamente irredutível a qualquer problemática liberal. Neste caso, talvez tenhamos
que retornar a Maquiavel. E, neste retorno, resgatar principalmente o conteúdo político de
sua concepção de lei, que certamente nada tem a ver com qualquer concepção liberal. É
certo que a formulação de Maquiavel a respeito das leis contrasta inclusive com os demais
autores analisados aqui, mas sem dúvida seu oposto é o conceito liberal de lei segundo o
qual ela só deve limitar a ação dos indivíduos e estabelecer garantias para os mesmos e não
ser um produto da política e, ao mesmo tempo, um estímulo de exercício da política.
181
10. CONCLUSÃO: DE VOLTA AO CONFLITO DE INTERESSES
Estamos chegando ao fim de nosso trabalho e temos de voltar
estritamente ao nosso foco: o conflito de interesses. Talvez não tenhamos conseguido nosso
intuito mais objetivo, que era verificar se havia, nos Artigos Federalistas, um ponto de
inflexão a partir exatamente desse foco. Acreditamos que, diante do analisado, a hipótese
saiu fortalecida, mas ela não restou inequivocamente demonstrada, até porque, para esse
propósito, ter analisado somente as obras aqui interpretadas não foi o suficiente.
Vejamos então, como a nossa hipótese saiu reforçada, retomando os
principais pontos de cada obra aqui analisada.
Nos Discursos, de Maquiavel, o ponto de partida no fio do nosso
enredo republicano, o conflito, era um elemento constitutivo da estrutura institucional
republicana e também da liberdade da república e dos cidadãos. O conflito devia fazer parte
da rotina da vida da república para que, a partir da sua solução institucional pública pudesse
ser constituída a liberdade. Note-se que, com essa estrutura, não havia obstáculo para que
fossem manifestados os interesses, desde que eles fossem não facciosos, coletivos e
tivessem uma vocação pública. Conflito e interesse, portanto, faziam parte da vida e da
rotina política da república. Com isto, o cidadão de Maquiavel não era tão exigido, bastava
que, por meio de seu grupo (para não dizer, anacronicamente, classe), manifestasse os
interesses publicamente e se submetesse às leis decorrentes da solução pública adotada.
Deve, sim, prezar o bem da república mais que ao próprio bem (e por isso se submete às
leis), mas não precisa deixar seus interesses de lado, ao contrário, deve manifestá-los para
que, em conflito com os interesses opostos, possa gerar boas leis e a liberdade da
república
102
.
Na Oceana de Harrington, o principal fundamento do interesse á a
propriedade, e a república é concebida a partir de uma regra de equilíbrio que garante a
distribuição de propriedade de uma tal forma que conflitos não surjam na vida da república.
Os interesses, portanto, encontram-se, na estrutura da república, já delimitados. A vida
102
Devemos lembrar que Maquiavel não exige dos cidadãos a virtù que é exigida do príncipe. Os cidadãos
precisam ter amor à república, mas não precisam, em sua ação, ter toda a perspicácia, senso de oportunidade
e, muitas vezes, frieza, do príncipe. Os cidadãos podem manifestar seus humores, paixões e interesses. São
estes que, nos conflitos públicos, gerarão a república livre.
182
política livre da república depende da limitação prévia desses interesses para que não
decaia em razão dos conflitos decorrentes. A vida política (se é que se pode qualificar assim
a vida no interior dessa república) na Oceana prescinde, portanto, dos interesses e,
conseqüentemente, do conflito entre eles. Essa é a conseqüência da regra de equilíbrio
proposta por Harrington ao nosso foco.
A república constituída pelo Contrato Social é bastante exigente em
relação aos seus cidadãos. Requer deles que deixem de lado seus interesses, ou, ao menos,
aceitem que seus interesses particulares não sejam levados em consideração para a
construção institucional da república e que aceitem tal construção como a manifestação da
vontade geral, bem como todas as decisões que deverão ocorrer durante a vida da república.
É claro que, no esquema de Rousseau, a própria qualidade da estrutura e das decisões
decorrentes da vontade geral é o fundamento para sua aceitação. No entanto, ainda que se
admita a viabilidade dessa estrutura, ao menos para as decisões de maior relevância, a
exigência de Rousseau é extrema. Com tais cidadãos, não há que falar em interesses na
república, muito menos em conflitos. Não há fragmentos: o que deve emergir da república
assim o faz como manifestação de um todo unitário. Assim sendo, o conflito de interesses é
afastado, para que a unidade da república e a soberania inequívoca do povo possa ser a
única fonte da lei na república.
Já a proposta, também unitária, contida em Que é o terceiro estado?,
de Sieyes, é um pouco diferente. Ali, um interesse parcial, o do terceiro estado, prevalece
sobre os demais e é tratado como se fosse o interesse de toda a comunidade, dada a
importância do terceiro estado naquela república. A unidade, portanto, não decorre da
existência de um interesse e de uma vontade geral que informam as decisões públicas a
serem tomadas. Ela ocorre porque somente um interesse, que é o da maioria, será
considerado. Um interesse parcial, único, portanto, é o que deve informar a estrutura e as
decisões da república de Sieyes. Há um interesse e, portanto, não há conflito. Mas não há
que se falar que os interesses ingressaram no interior da vida da república. Eles continuam
fora dela. O estabelecimento de qual será o interesse ouvido é feito antes de qualquer
deliberação. Repetindo: é uma solução unitária. Interesses e conflito encontram-se de fora
da vida da república.
183
A república plural já esboçada por Montesquieu em O Espírito das
Leis ainda não traz, inequivocamente, os interesses para o interior da vida da república, mas
há uma abertura para que eles nela ingressem, na república comercial de grandes
dimensões. A estrutura da separação de poderes e a indicação da viabilidade da república
federada constituída numa ampla extensão territorial são os passos preciosos que
Montesquieu deu para a mudança que iria se operar com os americanos. Mas Montesquieu
ainda fala em virtude, e, na sua república, de pequenas ou grandes dimensões, não há
espaço para o conflito. Sua república, portanto, não considera o conflito, nem lida com o
interesse, embora admita a possibilidade dele.
Com Os Artigos Federalistas o tratamento do interesse muda
bastante. Os interesses passam a ser não somente tolerados, mas garantidos e estimulados
pela república. República federada de grandes dimensões e repúb lica de interesses são duas
faces da mesma moeda. Os interesses, na maior diversidade e quantidade possíveis, são
constitutivos da república. E é importante que o conflito entre eles não seja considerado
para que eles não sejam reduzidos a quantidades menores, para formação de pares opostos
ou contraditórios. A solução política para isso é tratá-los como igualmente diversos, como
interesses plurais. Assim, todos os interesses poderão ser admitidos e a república comercial
em construção, expandir. Os interesses entraram para a vida da república e são seu
combustível, sem que seja considerado e enfrentado o conflito entre eles.
Institucionalmente, isso foi solucionado com a supremacia da constituição sobre a lei e,
dessa forma, um enfraquecimento do legislativo e um fortalecimento do judiciário. Tudo
isto está relacionado à valorização do indivíduo, em detrimento dos Estados ou quaisquer
grupos ou sujeitos coletivos, e, com o fortalecimento do indivíduo, e a permissão sem
quaisquer freios à manifestação dos interesses, uma valorização da opinião na igual medida
da valorização do indivíduo. Essa valorização da opinião se reforça com a invocação
constante da opinião pública como instância legitimadora dos eventos políticos a se
sucederem na vida da república. E, somando a opinião pública com a ausência de conflito,
o que parece ter se estruturado ali foi um consenso sobre uma diversidade de interesses
tendente ao infinito. Por causa dessa diversidade, Edmund Morgan chamou o consenso
criado pelos Federalistas de "consenso que convida ao conflito" (MORGAN, 1973, p. 309).
Temos de discordar, se considerarmos o conflito naquele conceito enunciado no início
184
desta tese. O que os Federalistas fundaram foi uma república de interesses plurais tendentes
ao infinito, de forma adequada à sua expansão comercial.
Esta ênfase no indivíduo, no interesse e no caráter comercial da
república serve de fundamento para invocarmos Gordon Wood e Pocock quando
reconhecem no projeto contido nos Artigos uma mudança do republicanismo para o
liberalismo (POCOCK, 2003, p. 523; WOOD, 1998, pp. 606-615). De fato, se tomarmos a
idéia de uma comunidade política plural ela é hoje muito mais associada a teorias liberais a
la Robert Dahl e Antony Downs do que ao republicanismo propriamente dito. Aliás, A
idéia de democracia plural tem uma vertente mais tendente ao liberalismo do que ao
pensamento republicano.
Quem retoma a noção de pluralidade e a conserva no pensamento
republicano é, como vimos, Hannah Arendt em Da Revolução. Só que sua república,
novamente, afasta o interesse do interior da política. Neste aspecto, Arendt retoma as
exigências dos cidadãos e requer, na sua república, que os atores políticos atuem
desinteressadamente e de forma espontânea. Isto poderia aproximá-la de Rousseau:
desinteresse e espontaneidade são aspectos centrais da vida política idealizada pelo
genebrino. Mas Arendt é crítica ferrenha ao seu pensamento por ter como elemento central
o que ela talvez mais afaste em sua teoria: a unidade de poder. Então, ela viu nos
americanos uma fonte de inspiração para sua república, mas não trouxe para sua teoria os
interesses ali contidos. A pluralidade de Arendt é a das opiniões e dos atores que agem, não
dos interesses. Arendt, portanto, formulou uma república plural com cidadãos
desinteressados. Interesse e conflito, novamente, estão juntos e fora da vida política.
Nem no republicanismo contemporâneo o conflito de interesses
voltou para o interior da república.
O que se operou então? Falar em ponto de inflexão nos Artigos
Federalistas talvez não seja possível a partir das obras analisadas. Mas o que se pode dizer
é que ali há uma situação única no pensamento republicano: o interesse veio para dentro da
república, sem vir acompanhado do conflito. Esta característica, que torna a obra, no nosso
entender, muito mais próxima do pensamento liberal do que do republicano, a coloca numa
posição separada nessa linhagem de pensamento. Mas o que deu lugar ao conflito? A
categoria pluralidade. E esta parece ter sido a grande vencedora nesse jogo conceitual
185
acompanhado nesta tese. A pluralidade se tornou uma categoria presente no pensamento
republicano (sem o interesse) e também no pensamento liberal (com os interesses
econômicos presentes sem quaisquer ressalvas) e nas teorias democráticas contemporâneas,
tanto em sua versão deliberativa quanto na sua versão competitiva. Se tivesse havido uma
batalha entre a pluralidade e o conflito (e não parece ter havido), a pluralidade teria ganho
em todas as frentes.
Em relação às nossas categorias centrais, aqui, podemos dizer que o
interesse, ainda que não tenha prevalecido em várias obras do pensamento republicano, teve
um grande retorno com os Federalistas. Quanto ao conflito, temos que, desde Maquiavel,
parece estar ausente dessa linhagem de pensamento. Mas qual a importância disso?
##########
Tivemos como foco nesta tese o conflito e o interesse porque
acreditamos serem duas categorias centrais da política, como a intuição nos indica. No
entanto, o conflito foi a nossa primeira preocupação. O interesse foi agregado ao nosso
projeto para que qualificássemos o conflito como conflito de interesses. Mas por quê o
conflito?
Porque acreditamos ser ele uma categoria central na política, que dá a
ela sentido. O conflito é, para a ação política, o mesmo que o atrito é para o movimento dos
corpos reais. O atrito não causa o movimento dos corpos, assim como o conflito também
não motiva a ação. Mas sem o atrito, os corpos ficariam no mesmo lugar, patinando,
infinitamente. Situação semelhante parece ocorrer com a ação, se não for considerado o
conflito. É como se os atores agissem, simplesmente, e assim continuassem, porque algo os
motivou. Sabemos que o conflito, nas relações sociais e econômicas, existem. Em diversas
situações, os interesses que estão em jogo são opostos. Mas por que não tratá-los
politicamente assim? Em alguns projetos políticos, porque o conflito traz consigo a ameaça
das facções. Em outros, como o caso dos Federalistas, porque ele é um obstáculo para a
expansão acumulativa baseada no interesse individual. Em ambos os casos, o problema
parece ser o efeito unificador do conflito, tão bem apontado por Simmel.
186
Além disso, e talvez de forma associada às suas características acima,
o conflito dá densidade e profundidade à política que, sem ele, se torna um terreno de
aparências e formalidades em que o conteúdo da ação e do que está em discussão, debate
ou disputa, não importa muito. O conflito, também, politiza, na medida em que
contingencia, a noção de bem comum que, se definido a partir do conflito, não fica
relacionado a mecanismos meramente abstratos para seu alcance. Com o conflito, somente
as relações materiais e concretas podem informar o bem comum.
No entanto, apesar de ser uma categoria elementar, ele esteve ausente
em praticamente toda a trajetória do pensamento republicano. E talvez o mesmo ocorreria
se tivéssemos como foco o pensamento democrático, ou liberal. Ali, com a supremacia do
indivíduo, a pluralidade, como já apontamos, tornou-se a categoria central. E aqui, temos
uma segunda razão para a defesa do conflito: o conflito é uma categoria que aponta para o
coletivo, e não para o individual. Na diversidade de interesses de nossas sociedades, para
que cheguemos a uma situação conflitiva temos de identificar pontos em comum em
diversos interesses para localizar o conflito. Ele não é evidente a partir de indivíduos. Ao
contrário, a pluralidade remete a indivíduos e à pulverização da sociedade. O conflito une e
coletiviza, enquanto a pluralidade divide e individualiza.
O conflito traz, ainda a vantagem de, ao vir acompanhado pelo
interesse, possibilitar à republica uma constituição menos exigente em relação a seus
cidadãos, podendo ser mais extensiva e mais democrática. O que ameaça a busca do bem
comum numa república não é a manifestação de interesses particulares, mas que ela venha
desacompanhada do enfrentamento do conflito.
A defesa do conflito não significa, em nenhum momento, abrir mão
de valores ligados à tolerância e à proteção de garantias individuais, próprias tanto de
projetos liberais quanto de republicanos. Apenas acreditamos que essas preocupações não
possam ser o centro da estrutura institucional e da vida política. Não pode ser permitido que
a lógica da tolerância, que preceitua a aceitação da diferença, valha para desigualdades
(injustiças) econômicas. A lógica da pluralidade vale para alguns temas, mas não para todos
os que devem ser enfrentados por uma comunidade política, seja ela estruturada segundo
um projeto republicano ou liberal.
187
Esta defesa, nesta tese, também não significa uma sugestão, então, de
que Maquiavel seja o autor a quem devamos retornar para resolver os problemas atuais da
teoria política. Devemos sim, retornar a ele, mas não se trata, aqui, de uma defesa
incondicional de suas idéias, como, aliás, problematizamos no capítulo destinado aos
Discursos.
O que pretendemos foi retomar uma concepção de república que
incorpore o conflito tal como sugerido pelo texto de Maquiavel, a partir das interpretações
aqui analisadas. Pretendemos, em suma, indicar um ponto de partida teórico para que seja
trazido o conflito de interesses para o interior da comunidade política, com toda a sua
capacidade de tornar a vida da república mais dinâmica e, por que não o dizer, mais
política.
188
11. FIOS SOLTOS
Tanto na Introdução quanto na Conclusão afirmamos que o projeto
desta tese não acaba aqui. Então, talvez possamos indicar alguns fios que não foram
percorridos, mas que foram detectados no estágio em que se encontra esta pesquisa.
O primeiro deles seria investigar o conflito de interesses no
pensamento liberal-democrático. Provavelmente a conclusão não seja muito diferente à
desta tese, que é a ausência do conflito na teoria política, mas certamente o percurso
mostraria acidentes diferentes.
O segundo é a recepção dos Artigos Federalistas no Brasil, não só
logo após serem escritos, mas nos debates constitucionais nacionais. Seria proveitoso para
investigar como as instituições nossas, muitas delas inspiradas na república federada dos
EUA estão estruturadas e como elas se relacionam com o conflito de interesses.
Um terceiro fio seria aprofundar algo que não pôde ser feito aqui e
que talvez será desenvolvido imediatamente: investigar a repercussão sociológica da
substituição da categoria conflito pela pluralidade. Como sabemos, apenas detectamos essa
substituição. Não conseguimos nem mesmo indicar os principais efeitos dela. Sugerimos
alguns, a partir da própria teoria política, mas certamente há muito mais a investigar.
Por fim, um fio que valeria a pena seguir é tentar "atualizar" a
interpretação de Tocqueville acerca da democracia americana. Atualizar as constatações
perspicazes do pensador francês seria um exercício bastante fecundo, imaginamos.
Mas esses são fios soltos, que saem desta tese e se apresentam a
serem percorridos.
189
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