Download PDF
ads:
FDV
MESTRADO EM DIREITOS E GARANTIAS
CONSTITUCIONAIS FUNDAMENTAIS
ROBERTO JOSÉ FERREIRA DE ALMADA
A GARANTIA DA PUBLICIDADE NO PROCESSO CIVIL
VITÓRIA
2004
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
FDV
MESTRADO EM DIREITOS E GARANTIAS
CONSTITUCIONAIS FUNDAMENTAIS
ROBERTO JOSÉ FERREIRA DE ALMADA
A GARANTIA DA PUBLICIDADE NO PROCESSO CIVIL
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da FDV,
como exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em Direitos e Garantias Constitucionais
Fundamentais, na área de concentração em Garantias
Constitucionais Fundamentais, sob a orientação do Prof.
Doutor José Roberto dos Santos Bedaque.
VITÓRIA
2004
ads:
3
FDV
MESTRADO EM DIREITOS E GARANTIAS
CONSTITUCIONAIS FUNDAMENTAIS
ROBERTO JOSÉ FERREIRA DE ALMADA
A GARANTIA DA PUBLICIDADE NO PROCESSO CIVIL
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
Prof. Dr. JOSÉ ROBERTO DOS SANTOS BEDAQUE
____________________________________________
Prof. Dr.
______________________________________ ______
Prof. Dr.
Vitória, _______ de _______________ de 2004.
4
À memória de meus pais, Roberto e Vilma.
À minha esposa, Ana Rosa.
À Juliana, Gabriela, Roberto Neto, Pedro Frederico e
Maria Vilma,
meus filhos.
5
AGRADECIMENTOS
A Deus, em primeiro lugar.
À minha mãe, Vilma Paraíso Ferreira de Almada, pela inspiração.
À minha esposa, Ana Rosa Almada, pela paciência.
Ao meu orientador, Prof. Dr. José Roberto dos Santos Bedaque, pela generosidade
do convívio e das lições.
Aos meus amigos Geovany Cardoso Jeveaux e Américo Bedê Freire Jr., pelo
estímulo e pelo exemplo de perseverança.
Aos colegas da magistratura, pelo apoio.
Aos colegas e aos professores do mestrado, pelas experiências e pelas angústias
compartilhadas.
6
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
(ISTO, Fernando Pessoa)
7
RESUMO
A legitimação e a controlabilidade das atividades judiciárias dependem do respeito
que se deve devotar à garantia processual da publicidade. Assim, o princípio
processual da publicidade, direito fundamental das partes e do povo nas suas
relações com os juízes e com o Estado, no plano da jurisdição, está expresso no
reconhecimento formal dos direitos de acesso à justiça, de defesa e ao contraditório,
aqui compreendidos como direito à adequada possibilidade de participação no
processo e na implementação do mecanismo técnico e político de revelação
transparente dos atos imparciais realizados pelo Estado. A combinação desses dois
atributos, contidos na garantia da publicidade, prestam-se a dotar o processo da sua
imprescindível essência democrática. Cumpre destacar que as idéias inspiradoras
da garantia processual da publicidade assentam-se na noção de que o poder
pertence ao povo, as atividades exercidas pelo Estado são fundadas no princípio
da delegação popular, e não se ignora que os delegados do povo agem em seu
nome, o que basta para que deles sejam exigidas as devidas contas a propósito de
tudo aquilo que se realiza em favor da comunidade afetada por tais ações. Isso é
suficiente para demonstrar por que e como é efetivamente necessário que os atos
judiciários sejam revelados e compartilhados publicamente com o auditório universal,
para que possam angariar a sua legitimidade popular intercomunicacional. Convém
ressaltar que o princípio processual da publicidade advém de um padrão ético
mínimo, fixado pelo povo para manter a serenidade dos relacionamentos
interpessoais, e funda-se na justificação democrática do poder político, de modo a
identificar, no Estado de Direito, o paradigma de legitimidade de todas as ações do
Estado. Desta forma, enquanto o princípio do contraditório, expressão interna da
publicidade, cuida de satisfazer a exigência da democracia processual na
perspectiva das partes, cabe à garantia externa da publicidade atender a essa
mesma expectativa no plano difuso da comunidade universal. Consagrada a
garantia processual da publicidade no ambiente constitucional, a legitimação do
processo civil é angariada pelos mecanismos populares de fiscalização e de controle
ao gosto da democracia participativa ditada pelo agir comunicativo, cujo exercício há
sempre de pressupor a obediência ao standard mínimo que se exige na revelação
transparente e socialmente compartilhada dos atos jurisdicionais.
8
ABSTRACT
Legitimacy and popular controlability of the courts activities depend on the respect to
the so called guarantee of an open and public proceeding. The principle of the public
proceeding, a fundamental right of the people and the parties vis-a-vis the judge and
the State, actually is expressed on the right of defense (audiatur et altera pars) of the
parties, which deserve suficient information on a way to participate on the
relationship stablished with the representaive of the State, and also as a thecnical
and political mechanism of public revelation of the acts done by the State on the
exercise of jurisdiction both of those elements, that make the substance of this
fundamental principle, provide the desirable democratic spirit to the proceeding. The
ideas related to the guarantee of publicity come from the principle of popular
sovereignty, as soon as the people detains the exclusive power to run their lives and
destinies. The activities executed by the State always must be founded on a popular
delegation, also, and the delegates of the people must act only on the name of the
people, what mean that they have to explain their actions to the comunity affected by
them. It shows why and how the judiciary acts need to be explained to the universal
auditorium, and shared with it, only way to get popular and intercomunicational
legitimacy for them. As any other of the several fundamental guaranties of the
proceeding, the principle of publicity comes from a minimun ethical standard elected
by the people to justify the serenity of the interpersonal relationships and also, as
soon as it shows the need to control and fiscalize the public administration, it cames
from a democratic justification of the political power on a way to identify, on a civilized
territory, the paradigmatic standard of legitimacy of the general acts of the State.On
one hand, the rigth of defense reconized to be aplied to the parties, internal
expression of the publicity, attends the democratic needs of proceeding on their own
perspectives, while on the other hand, the external expression of the publicity
satisfies the same need expressed by universal auditorium, whith envolves the entire
community geographically involved by the jurisdiction. Considering that the full
guarantee of the open and public proceeding is consagrated by the current
constitutionalism, the legitimacy of the civil proceeding is gained only by the popular
mechanisms of control and fiscalization typical of the participative and
intercomunicational democracy, meaning the necessary respect to the basic standard
of the public and socially shared revelation of the jurisdictional acts.
9
SUMÁRIO
RESUMO ......................................................................................................
06
ABSTRACT ..................................................................................................
07
1 CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS .......................................................
09
1.1
JUSTIFICATIVA ....................................................................................
09
1.2 A IMPERFEITA PERCEPÇÃO DA PUBLICIDADE COMO GARANTIA
DO PROCESSO DEMOCRÁTICO .......................................................
12
1.3 A FEIÇÃO INTERVENCIONISTA E PÚBLICA DO PROCESSO .........
15
2 A HISTÓRIA DO PROCESSO CIVIL E A PUBLICIDADE .......................... 28
3 A PUBLICIDADE E A LEGITIMAÇÃO DO PODER E DA JURISDIÇÃO ... 40
3.1 O LIBERALISMO E A DEMOCRACIA:DIFERENTES CONCEPÇÕES
DO DIREITO E DA JURISDIÇÃO, E SUA INFLUÊNCIA NA NOÇÃO
DE PUBLICIDADE ................................................................................
51
3.2 A PUBLICIDADE NO SISTEMA DA ORALIDADE ...............................
55
4 O QUADRO GERAL DAS GARANTIAS DO PROCESSO ..........................
65
4.1 A CONCORRÊNCIA DEONTOLÓGICA DOS PRINCÍPIOS ................
72
4.2 A ORDEM DE PREFERÊNCIAS OU DE IMPORTÂNCIAS? ...............
75
4.3 A INTERPENETRAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA PUBLICIDADE E DA
MOTIVAÇÃO ........................................................................................
77
4.4 A INTERPENETRAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA PUBLICIDADE, DO
JUIZ NATURAL, DO CONTRADITÓRIO, DO DUPLO GRAU E DA
LEGALIDADE .......................................................................................
83
4.5 A RESTRIÇÃO PREVISTA PARA A GARANTIA DA PUBLICIDADE E
A PONDERAÇÃO DE DIREITOS .........................................................
85
5 A GARANTIA PROCESSUAL DA PUBLICIDADE ..................................... 94
5.1 AS CATEGORIAS DE PUBLICIDADE .................................................
103
5.2 A PUBLICIDADE INTERNA ..................................................................
113
5.3 A PUBLICIDADE EXTERNA ................................................................
118
6 SANÇÃO PROCESSUAL PELO DESCUMPRIMENTO DO PRECEITO
FUNDAMENTAL ..........................................................................................
129
7 CONCLUSÃO ...............................................................................................
145
REFERÊNCIAS ...........................................................................................
148
10
1 CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS
1.1 JUSTIFICATIVA
Partindo-se da premissa de que não mais se concebe a falta de transparência na
atividade pública de prestação da tutela jurisdicional, a modernidade enaltece a
virtude da publicidade dos processos judiciais e dos seus julgamentos.
No âmbito do tratamento constitucional positivo dedicado ao tema, dois são os
preceitos que disciplinam a publicidade dos atos do processo, sendo um deles de
caráter garantístico e geral (art. 93, inciso IX), que trata da necessária feição pública
dos julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário, e o outro de caráter pragmático, ou
funcional, tendente à sua restrição (art. 5º, inciso LX), ao admitir a relativização da
garantia sempre que se mostrar necessária à preservação da intimidade e do
interesse social
1
.
A doutrina que se dedica ao estudo desse assunto sustenta que os atos de
autoridade exercidos por delegação popular sempre devem estar fundados em
premissas de índole cognitiva e jamais índole potestativa, para que se apresentem
demonstráveis e controláveis. Também no que interessa à atividade jurisdicional
2
1
Comoglio afirma que “A publicidade dos atos processuais é suscetível de restrições apenas quando
o exija a proteção da privacidade ou o interesse social; por conseqüência, todos os atos dos órgãos
do poder judiciário são blicos e as decisões jurisdicionais são motivadas, sob pena de nulidade;
mas a lei, onde se imponha o interesse público, pode limitar a presença em juízo, para o cumprimento
de determinados atos, às partes e aos seus advogados, ou apenas a estes” (Tradução nossa). Para
conferir credibilidade, segue o texto original: “La publicità degli atti processuali è suscettibile di
restrizioni unicamente quando lo esiga la protezione della riservatezza ovvero l’interesse sociale; di
conseguenza, tutti i giudizi dinanzi agli organi del potere giudiziario sono pubblici e le decisioni
giurisdizionali sono motivate, a pena di nullità; ma la lege, ove lo imponga il pubblico interesse, può
limitare la presenza in giudizio, per il compimento di determinati atti, alle parti ed ai loro avvocati, o
soltano a questi”. (COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie costituzionali e “giusto processo” (Modeli a
confronto). Revista de Processo, São Paulo:RT, n. 90, ano 23, abril-jun. 1998, p.141-142)
2
Taruffo aduz que “Sob o plano da jurisdição, isso significa que a justiça não é mais a manifestação
da vontade do soberano, ou do Führerprinzip, mas resulta do exercício de um poder que o povo
delegou ao juiz” (Tradução nossa). Segue texto original, para dar credibilidade, “Sul piano della
giurisdizione, ciò significa che la giustizia non è più una manifestazione della volontà del sovrano, o
del Führerprinzip, ma risulta dall’esercizio di un potere che il popolo ha delegato al giudice”.
(TARUFFO, Michele. Il significato costituzionale dell’obligo di motivazione. In: GRINOVER, Ada
Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo. São
Paulo: RT, 1988, p. 41)
11
dada à necessidade da população resgatar a soberania que lhe é de direito
3
, é
necessário assegurar aos destinatários finais da função pública o conhecimento dos
negócios estatais e permitir que se desencadeiem os mecanismos de seu controle
difuso, quebrando a lógica oculta, ou autoritária, das ações do administrador e
substituindo-a por condutas transparentes e compartilhadas com os cidadãos.
É nesse contexto que a publicidade, lado a lado com a motivação das decisões
judiciais, mostra-se apta a cumprir a nobre missão de permitir, não apenas às partes
do processo, mas igualmente a qualquer um do povo, jurisdicionados potenciais em
sentido lato, a constatação concreta da lisura e da legalidade dos atos judiciais,
particularmente exigindo que sejam comunicados todos e tantos quantos por eles
possam se interessar, dando-se-lhes conhecimento geral por intermédio dos meios
usuais de revelação.
Assim posto, parece confortável imaginar que o ordenamento jurídico vigente e
mesmo a praxe forense estejam em total harmonia com o valor fundamental da
publicidade dos julgamentos, tal como o exige a ordem constitucional vigente,
embora com a possibilidade de sua restrição em caso de ponderação de bens
fundamentais de mesma feição constitucional (art. 5º, inciso LX).
Ocorre, porém, que as coisas o se passam exatamente da maneira sugerida pela
apressada ilação supra, quer porque ainda não houve suficiente amadurecimento do
conceito de publicidade do processo tanto assim que a doutrina de melhor calibre
tem por bito relegá-la ao nível de somenos importância, desconsiderando a sua
aplicação em situações para as quais seria ela ainda assim imprescindível -; quer
porque ainda habitualmente se relativiza a garantia constitucional em casos alheios
àqueles excepcionados pelo real espírito da norma tendente à sua restrição,
mediante ponderação de bens ou de direitos, de igual modo constitucionalmente
tutelados – art. 5º, inciso LX, Constituição Federal.
3
Andrea Proto Pisani diz que a jurisdição civil, função estatal típica, é expressão direta da soberania
popular. (PISANI, Andrea Proto. Il consiglio superiore della magistratura e l’indipendenza della
magistratura in Italia. Palestra, p.2)
12
É exatamente para esses aspectos, além da sistematização do princípio
constitucional relativo à publicidade do processo, que estarão voltadas as atenções
deste trabalho, com o objetivo de serem afinal reveladas as remanescentes
deficiências e as incompatibilidades das normas infraconstitucionais de regência e
de certas práticas cotidianas do foro, em cotejo com os bens tutelados pela
indigitada garantia, bem como pelas imperfeitas interpretações dedicadas ao tema
pela doutrina e pela jurisprudência.
Necessário se faz, também, sem prejuízo do que se pôs a cogitar nas linhas
anteriores, legitimar a atividade jurisdicional numa perspectiva atenta aos ideais da
cidadania, atribuindo à publicidade o meio “sine qua non” de validação da função
estatal, sob pena de se operar a subversão dos valores da democracia
4
.
É aqui que se deseja demonstrar a excepcional importância da publicidade como
mecanismo capaz de validar aos olhos populares a atividade jurisdicional, dela
retirando o habitual ranço, advindo da sua condição intervencionista no âmbito das
esferas particulares dos interesses afetados, adequando os mecanismos
processuais às expectativas e aos bens compartilhados pelo auditório universal
5
.
A relevância dessa abordagem epistemológica encontra especial justificativa no fato
nem sempre bem explorado de não serem eleitos os agentes do Poder
Judiciário, ao contrário dos demais mandatários públicos que se fazem agraciados
pelo voto popular. O fundamento das funções jurisdicionais deve, então, ser
publicamente revelado, sem subterfúgios, permitindo o controle crítico difuso e
4
Enrique Vescovi lembra que “A democracia, mais que um simples regime político, constitui todo um
sistema de vida e, além da dimensão política como sua indispensável sustentação se integra à
democracia social e econômica” (Tradução nossa). Para atribuir fidelidade, segue o texto original, la
Democracia, más que un simple régimen político, costituye todo un sistema de vida y se integra,
además de la dimensión política – y como sustento indispensable con la democracia social y
económica”. (VESCOVI, Enrique. Una forma natural de participación popular en el control de la
justicia: el proceso por audiencia publica. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido
Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo. São Paulo: RT, 1988, p. 360-379)
5
Michele Taruffo certifïca que “A motivação deve ser, ao contrário, potencialmente direta ao ´auditório
universal´, em uma acepção concreta e histórica do termo, ou seja, ao cidadão de média cultura no
lugar, no tempo e no contexto sócio-cultural em que a decisão é pronunciada” (Tradução nossa).
Atribuindo fidelidade, segue o original, “La motivazione deve essere invece potenzialmente diretta all’
“auditorio universale” in um’accezione concreta e storizizzata del termine, ossia al cittadino di media
cultura nel luogo, nel tempo e nel contesto sócio-culturale nel quale la decisione viene pronunciata”.
(TARUFFO, Michele. Il significato costituzionale dell’obligo di motivazione. In: GRINOVER, Ada
13
generalizado da parte daqueles a quem afeta a dita atividade pública, quer no plano
dos interesses concretos envolvidos, quer no plano genérico e potencial dos sujeitos
da comunidade.
1.2 A IMPERFEITA PERCEPÇÃO DA PUBLICIDADE COMO GARANTIA DO
PROCESSO DEMOCRÁTICO
A se admitir a concepção Chiovendiana da jurisdição, segundo a qual a atividade jurisdicional seria
fruto do poder-dever atribuído ao Estado de pacificação dos interesses em conflito, para, em última
análise, ensejar a atuação da vontade concreta da lei
6
teoria esta que não é bem assimilada pela
sociologia do Direito que, ao contrário, defende para a jurisdição a missão de controlar a
comunicação e finalizar o discurso dialético impondo obediência
7
–, é importante sustentar, mesmo
neste caso, que, a exemplo do que ocorre em outros campos da atividade blica (v.g., tributação,
produção legislativa), a esfera privada dos indivíduos é diretamente afetada quando a jurisdição se
realiza. Cumpre ao juiz realizar a jurisdição, valendo-se de um específico meio instrumental que se
concebe pela via do processo, observando procedimentos previstos em lei
8
, particularmente
devotando respeito às garantias constitucionais da justiça, dentre as quais podem ser citadas, sem
demérito às demais, as exigências do contraditório e da fundamentação das decisões judiciais.
A doutrina de processo civil costuma advertir para a necessidade de que a jurisdição
seja legítima, fazendo-se aceitável aos olhos dos seus destinatários
9
. Sem deixar de
observar a dificuldade resultante da falta de eleição dos juízes pelos mecanismos
populares do voto, Marinoni
10
entende que essa legitimação na democracia
contemporânea se opera mediante a participação dos sujeitos afetados pelo
procedimento, com a observância das garantias gerais da jurisdição, particularmente
o contraditório.
Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo. São
Paulo: RT, 1988, p. 50)
6
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. 3.ed. Campinas-SP: Bookseller,
2002, p.45.
7
Geovany Cardoso Jeveaux aduz que “...se se considerar o sistema jurídico mais que um conjunto
de normas ou de instituições, mas um fenômeno de “partes em comunicação”, onde estão
pressupostos uma interação (troca de mensagens), um relato (informação contida na mensagem) e
um cometimento (informação sobre como encarar a mensagem), a atuação do juiz-Estado como
terceiro comunicador – além dos dois primeiros, que são as partes, as quais estarão sujeitas à
decisão ocorre numa situação de controle comunicativo para tornar a decisão um instrumento de
suscitação de obediência, justamente através de um domínio e de uma estratégia de domínio”.
(JEVEAUX, Geovany Cardoso. A simbologia da imparcialidade do juiz. Rio: Forense, 1999, p.8)
8
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento.
3.ed. São Paulo: RT, 2004, p.78-79.
9
Dinamarco, ao tratar de motivação das decisões judiciais, em sua obra Instituições de Direito
Processual Civil”.(DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. vol. I.
2.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p.241)
10 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz .Op. Cit., p. 78-79, ver nota 8.
14
Muito embora seja de inegável validade a premissa que se volta para a legitimação
do processo e da jurisdição, na perspectiva das pessoas afetadas pela atividade
correspondente, com o reconhecimento implícito da feição instrumental das
garantias constitucionais da justiça para o alcance desse desiderato, é certo que a
legitimação de qualquer poder público e das atividades por ele empreendidas não
podem estar restrita à participação das pessoas diretamente interessadas, antes é
necessário que a universalidade dos cidadãos possa conhecer, controlar e validar a
jurisdição pelos expedientes compatíveis com o conceito de cidadania.
Dinamarco
11
, na linha do pensamento de Cappelletti, observa que o processo não
passa de um microcosmo da democracia, vale dizer, instrumento democrático de
atuação da vontade da lei, quer no âmbito dos interesses diretamente envolvidos e
revelados pelas pessoas dos litigantes, quer numa dimensão mais envolvente e
difusa, a abranger toda a coletividade. É imprescindível, então, que sejam revelados
os atos do processo ao público geral, que Taruffo chama de auditório universal
12
, a
fim de que se possa ter por legítima a atividade específica e geral da jurisdição.
Não fosse assim, seria necessário admitir que o Estado pudesse intervir nos
interesses alheios dos administrados, afetando seus direitos de toda ordem de
importância, valendo-se de uma potestade que não mais se harmoniza com os
regimes democráticos de direito. A jurisdição é atribuição típica do Estado que em
nada difere de qualquer outra função entregue, por delegação
13
, aos agentes de
poder e, assim, deve ser legitimada pelas condições inexoravelmente morais,
impessoais e públicas das condutas correlatas.
Há, não se pode negar, uma certa tendência no sentido de considerar que a
atividade judiciária, por suas peculiaridades, isola-se de todo o resto do
funcionamento da administração, encapsulando-se em ambiente hermético sujeito a
regras próprias e estanques, inassimiláveis de tudo o que mais cumpre ao Estado
11
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. vol. I. 2.ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2002, p. 194.
12
TARUFFO, Michele. Il significato costituzionale dell’obligo di motivazione. In: GRINOVER, Ada
Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo. São
Paulo: RT, 1988, p. 50.
13
Ibidem, p.41.
15
fazer. Ledo engano. Embora a jurisdição consista numa atividade pública peculiar,
nada nela existe que a possa distinguir de qualquer outro poder-dever estatal
14
.
Não estando suficientemente atentos os operadores do Direito, e mesmo uma boa
parcela da doutrina de processo civil, às dimensões reais e concretas da legitimação
da atividade jurisdicional a partir de uma perspectiva de cidadania popular em que
pesem as várias advertências dos pensadores mais afeitos à atualidade democrática
– muito ainda se propaga em desfavor da feição pública e transparente da jurisdição.
É forçoso admitir que, no ambiente sócio-cultural brasileiro, não obstante o enorme
avanço experimentado nas últimas décadas, a consciência coletiva carece de
maturidade e de consistência histórica suficientes para a consolidação definitiva dos
ideais da democracia. O autoritarismo teima em habitar o inconsciente popular e,
lamentavelmente, é comum que o homem médio se curve resignado diante de
atitudes arbitrárias das autoridades públicas. Decerto, por conta de cios culturais
da mais variada condição, que igualmente habitam as mentes de muitos juristas, é
que assumem plausibilidade algumas absurdas interpretações legais que primam
por defender a licitude de julgamentos secretos, feitos na penumbra a portas
fechadas – dos órgãos integrantes do Poder Judiciário.
Não mais se afeiçoam, porém, ao ideário deontológico constitucional e às garantias
da justiça posicionamentos dessa natureza, por ofensivos à publicidade dos
negócios do Estado e, portanto, à ordem democrática do direito, exceto nas
situações muito particulares em que a privacidade e o interesse público possam
efetivamente recomendar a restrição do direito de informação e de acesso irrestrito
aos acontecimentos do processo, por parte das pessoas do povo.
14
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. vol. I. 2.ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2002, p. 193.
16
1.3 A FEIÇÃO INTERVENCIONISTA E PÚBLICA DO PROCESSO
Ao longo da história, muito se discutiu, na doutrina, a grande evolução dos conceitos
de ação e de processo
15
. O processo, porém, seja qual for a concepção que se
lhe tenha atribuído a doutrina no curso do seu tempo de evolução, ensejo à
intervenção do Estado no domínio dos interesses individuais e coletivos dos
particulares
16
.
Atualmente, não se discute a natureza pública da jurisdição, que resulta do exercício
da ação e que faz surgir o processo, este entendido como relação jurídica própria e
inconfundível com a relação de direito substancial em cujo contexto tem origem o
conflito, embora dele sempre dependa. Instaurado o processo, nele passam a
conviver autor, u e juiz em procedimento que se desenvolve em contraditório e na
conformidade das regras ditadas por lei, em busca da tutela jurisdicional
17
.
Ainda quando estava em voga defender a importância do processo e da sentença
18
,
como instrumentos de pacificação dos conflitos sociais, era dito que o direito
material, que existe para orientar a solução das possíveis controvérsias
intersubjetivas (a força da lei), quando falhava no seu papel de instrumento original
de regulação dos interesses disputados, fazia surgia uma segunda ordem, emanada
da jurisdição, capaz de impor-se coercitivamente com base no princípio sociológico
do poder superior (a força do juízo). Mas não é que exista um fundamento de
validade diverso e superior da força do juízo em relação à força da lei, senão uma
dualidade própria do direito, em que triunfa a ordem judicial sobre a ordem legal,
15
Dinamarco lembra que a polêmica entre os romanistas Alemães Bernhard Windscheid e Theodor
Muther em 1856 serviu de base histórica para o advento da teoria abstrata de Bulow em 1868. Em
verdade, diz Dinamarco, a obra de Von Bülow foi precedida desses “três estudos sobre a actio
romana vista da perspectiva do direito moderno, nos quais se lançaram as bases para a percepção
da autonomia da ação em confronto com aquele conceito romanístico”. (DINAMARCO, Cândido
Rangel. Instituições de direito processual civil. vol. I. 2.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p.
193)
16
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o
processo. 3.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 29.
17
Ibidem, pág. 11
18
GOLDSCHMIDT, James. Teoria geral do processo. Campinas: Editora Minelli, 2003, p. 38-39.
17
sendo que aquela, necessariamente, remete-se a esta, vale dizer, a ordem judicial
prevalente encontra amparo exatamente nas normas legais
19
.
Houve intensa disputa doutrinária a respeito do conceito da ação e seus efeitos no
processo
20
, mas também é antiga a defesa da importância da legitimação do
desfecho processual no plano da expectativa dos sujeitos que a tanto se expõem.
Não é nova a concepção, segundo a qual dois são os planos de expectativa do
cidadão ao exercer o direito de ação: o primeiro de natureza abstrata, suposto
processual; e o segundo de feição concreta, suposto material de justiça. Tais planos
importam uma primeira exigência de que o Estado administre justiça, e uma segunda
que se traduz na esperança de que seja outorgada proteção jurídica mediante uma
sentença favorável. É natural, por conseguinte, que esse complexo de expectativas
seja legitimado por ações transparentes e democráticas frente aos anseios
populares
21
. Isso fica ainda mais claro quando se compreende a jurisdição como
meio de se proporcionar o respeito à lei, ou seja, aquela surge apenas quando
fracassa a obediência que os cidadãos devem devotar ao direito. Numa visão
sociológica e metajurídica, portanto, a jurisdição assume o papel de uma segunda
ordem, advinda do descumprimento da primeira que se contém na lei, nos casos de
colisão de direitos
22
.
É ainda possível explicar o mesmo fenômeno associando-o à noção de garantia
jurisdicional, que resulta da tarefa posta sob a responsabilidade do Estado com vista
à observância do direito, apesar de ser sempre preferível que o cumprimento da lei
19
Goldschmidt diz que o direito é para o juiz que lavra a sentença não um súdito de suas ações, mas
soberano capaz de fazer-se instrumento da atividade imperativa estatal, de que depende aquela
segunda ordem (judicial) que advém e sucede o descumprimento da primeira ordenação feita, sem
êxito, pela força da norma descumprida na origem do conflito. (GOLDSCHMIDT, James. Teoria geral
do processo. Campinas: Editora Minelli, 2003, p. 45)
20
Goldschmidt critica a concepção concreta do direito de ão de Wach ação como exigência de
proteção jurídica e sem se filiar à teoria abstrata de Bülow – relação imperfeita entre a sentença e a
realidade do direito material – adota a posição de Kohler quanto à pertinência do conceito de
“situação jurídica” revelado pelo processo. (Ibidem, p.38)
21
Ibidem, p. 38.
22
Calmon de Passos, baseado em Luhmann, fala dos seguintes procedimentos redutores de
complexidade no âmbito da produção do direito: a) a definição prévia de expectativas compartilháveis,
expressas em termos gerais (direito material); b) a subseqüente disciplina do procedimento a ser
adotado pelos interessados e pelos agentes públicos, quando atuarem para prevenir ou solucionar os
conflitos de interesses não compostos pelos próprios interessados (direito processual); c) a
organização da função e definição das competências dos agentes responsáveis pela composição dos
conflitos (normas de organização). (CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Direito, poder, justiça e
processo. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 20)
18
se passe de modo espontâneo no âmbito da relação de direito material a envolver as
pessoas que dele participam
23
.
A noção atual de efetividade da jurisdição era prenunciada na Itália em tempos
não tão recentes, partindo-se da premissa de que o papel do processo é impor ao
vencido a observância da mesma conduta, e o mesmo resultado prático equivalente,
que se lhe era esperado no plano da vontade espontânea que independesse da
tutela estatal
24
. Atualmente, fala-se da obrigação do Estado resolver os conflitos,
propiciando ao cidadão uma tutela que corresponda, em termos práticos, à
realização da ação privada (autotutela) que, com o avanço da civilização, foi
proibida
25
.
A doutrina mais antiga detectava, ademais, no contexto da relação psicológica que
se estabelece entre o demandante e os efeitos que pretende retirar da jurisdição
26
,
certa relação de causalidade (finalidade), conduzida pela motivação interior, que
busca dar êxito à proteção do bem da vida ameaçado ou lesado, coisa inerente ao
princípio dispositivo (iniciativa processual correspondente às partes), demonstrando
forte vínculo no campo do interesse público de permanente pacificação social pela
23
Calamandrei diz tratar-se de um remédio, de uma defesa, de uma extrema ratio destinada a fazer
valer somente em um segundo momento, na falta de um evento com o qual se contava no primeiro
momento e que, se tivesse ocorrido, teria tornado inútil a garantia. Diz-se que o Estado garante a
observância do direito, enquanto o normal e o desejável é que o direito seja voluntariamente
observado por aqueles aos quais se dirige como regras de sua conduta. Só quando falte essa
observância voluntária, por parte dos mesmos, tem início o momento jurisdicional do Direito, ou seja,
colocam-se em prática, por parte do Estado, os meios de garantia dispostos para fazê-lo observar,
inclusive – em caso de necessidade – com a força. Ao mandado da lei, quando desobedecida, segue-
se outro, “secundário e acessório do primeiro, pelo qual o Estado ordena aos próprios órgãos
(jurisdicionais) observar um certo comportamento se continuar sendo desrespeitado o primeiro
mandado [...] ao passar do primeiro para o segundo termo desse binômio o mandado contido na
norma jurídica muda, por assim dizer, de direção: enquanto o mandado contido na norma primária se
orienta à vontade do indivíduo para que ele tenha uma determinada conduta o mandado contido na
norma secundária se destina aos órgãos jurisdicionais para que coloquem em ação contra o indivíduo
insubmisso os meios de coação estabelecidos”. (CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito
processual civil. 2.ed. Campinas: Bookseller, 2003, p. 120)
24
Para Calamandrei, A principal finalidade da garantia jurisdicional é a de agir na vida das relações
humanas de forma a conseguir, independentemente da vontade do obrigado, o mesmo resultado
prático (ou um resultado equivalente) que se teria alcançado se a norma jurídica tivesse sido
observada voluntariamente”. (Ibidem, p. 123)
25
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento.
3.ed. São Paulo: RT, 2004, p. 30.
26
GOLDSCHMIDT, James. Teoria geral do processo. Campinas: Editora Minelli, 2003, p. 97-98.
19
via do processo
27
, típico poder-dever do Estado resultado da obrigação de
administrar justiça (fundamento público do processo).
Para a jurisdição, constatou-se, além disso, a feição de mandado concreto e
individualizado, tendente, nos casos de tutela condenatória, ao exercício de poder
prático coercitivo sobre o patrimônio do devedor como meio de forçar o concreto
cumprimento da obrigação resistida, estampando o mais grave efeito
intervencionista da atividade estatal realizada pelo processo
28
.
É forte, ademais, na doutrina italiana do século passado, o sentimento, hoje ainda
mais válido, de ligação entre as funções estatais legislativa e judiciária, esta dando
efetividade concreta aos comandos abstratos estipulados por aquela, a um
tempo, portanto, estampando a intensa ligação que a contemporaneidade muito
enaltece entre o direito substancial violado e a tutela jurisdicional capaz de restaurá-
lo
29
, além da feição intensamente pública da atividade jurisdicional
30
-
31
.
27
Jeveaux menciona que “Os conflitos não são eliminados, mas somente contornados, e a decisão
não ocorre para uma opção de alternativa ótima, mas de uma alternativa aceitável, sendo pois um
instrumento de ação de mecanismos políticos capazes de suscitar obediência”. (JEVEAUX, Geovany
Cardoso. A simbologia da imparcialidade do juiz. Rio: Forense, 1999, p.65)
28
O caráter coercitivo do mandado concreto e individualizado advindo da jurisdição desmente o seu
fim pacificador, tal como denunciado pela leitura sociológica do Direito, pois a decisão judicial
contorna a eterna dialeticidade do problema e impede o seu retorno às barras da Justiça, através da
coisa julgada.
Acerca disso, Calamandrei diz que a função da jurisdição compreende “não só a atividade que o
Estado realiza para aplicar a norma geral e abstrata, existente, ao caso concreto e para
caracterizar o mandado individualizado que dela nasce, mas também a atividade posterior que o
Estado leva a cabo para fazer com que esse mandado concreto seja observado na prática (em si
mesmo ou no preceito sancionador que o substitui), também, se necessário, através da força física
destinada a modificar o mundo exterior e fazê-lo corresponder à vontade da lei. [...] Dessa maneira,
enquanto as decisões pronunciadas com finalidade de simples declaração de certeza ou com
finalidade constitutiva esgotam a função jurisdicional e encerram o processo, a decisão de
condenação encerra a fase de cognição, mas abre a de execução forçada. A coação não pode ser
posta em prática senão quando exista uma declaração de certeza que a autorize (título executivo); e
a forma típica de título executivo é constituída precisamente pelas sentenças. Mediante a
condenação realiza-se o que se pode chamar de conversão da obrigação em sujeição à força física:
antes da condenação, o destinatário do preceito jurídico era um obrigado à ativa e voluntária
colaboração, a quem estava confiado o cumprimento da obrigação e, por conseguinte, a observância
do direito; após a condenação, ele se converte em um subjectus, passivamente exposto à força, cuja
vontade não tem qualquer relevância frente aos meios coercitivos que, queira ou o queira, o
Estado põe em ação contra ele, sem absolutamente levar em conta sua autonomia e a intangibilidade
de sua esfera jurídica”. (CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito processual civil. 2.ed.
Campinas: Bookseller, 2003, p. 145-147)
29
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o
processo. 3.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 13.
30
Em verdade, que se atentar para a equivalência pública e privada dos fins do processo pois,
segundo Couture, “Esse fim é privado e público. Satisfaz, ao mesmo tempo, o interesse individual
comprometido no litígio e o interesse social de assegurar a efetividade do direito por intermédio da
20
Naturalmente, não se pode justificar a natureza pública e intervencionista da função
estatal correspondente à jurisdição unicamente vinculando-a aos efeitos coercitivos
(execução em sentido estrito) das sentenças condenatórias, tanto assim que nos
dias atuais se evoluiu a ponto de ser admitida a tutela de interesses inerentes a
toda uma coletividade, mesmo quando os seus titulares não são passíveis de
identificação, no âmbito dos chamados direitos difusos ou coletivos
32
. De todo modo,
sem qualquer prejuízo à feição publicista do processo, sempre foi ressalvada a
existência de tutelas que não pressupõem efeitos de índole executiva, tal como se
passa com a supressão de incerteza pela via da tutela declaratória, ou pela tutela
constitutiva (necessária) que se destina à restrição da autonomia da vontade nas
relações intersubjetivas que se voltam para a criação, extinção ou modificação de
negócios jurídicos
33
.
É flagrante a percepção do caráter público do processo na teoria que atribui à ação
o papel de atuar a vontade concreta da lei, ali se mostrando nítida a relação entre a
jurisdição, em sentido amplo, e a lesão do direito material que se busca reprimir ou
reparar. Não cuida o processo, portanto, aos olhos dos partidários de Chiovenda, de
incessante obra da jurisdição [...] Em nosso conceito, o interesse da coletividade não precede o
interesse privado, senão que ocupa idêntico plano deste” (Tradução nossa). Para aferir credibilidade,
segue o original, “Esse fin es privado y público. Satisface, al mismo tiempo, el interés individual
comprometido en el litigio, y el interés social de asegurar la efectividad del derecho mediante la obra
incesante de la jurisdicción [...] En nuestro concepto, el interés de la colectividad no precede al interés
privado, sino que se halla en idéntico plano que éste”. (COUTURE, Eduardo. Fundamentos del
derecho procesal civil. Buenos Aires: Júlio César Faira Editor, 2002, p.118-119)
31
Calamandrei fala das estreitas ligações que têm lugar, no sistema da legalidade, entre as funções
jurisdicional e legislativa. Assim, “O Estado, à medida que cria o direito, estabelece abstratamente
regras de conduta que devem ser observadas por outros, ou seja, pelos cidadãos em suas relações
interindividuais. Mas se depois os preceitos concretos que, segundo as circunstâncias, nascem
dessas normas, não são observados por aqueles em função dos quais se tenham individualizado,
então, para que as leis tenham um valor prático, é necessário em um segundo momento por em ação
essa atividade posterior, a qual serve para garantir que o Estado intervenha para fazê-lo observar por
outros meios; e a jurisdição é constituída, precisamente, da colocação em prática desses meios.
Parece evidente quando se observa o modo como é formulado e acionado o direito no sistema da
legalidade, que a função jurisdicional persegue uma finalidade eminentemente pública”.
(CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito processual civil. 2.ed. Campinas: Bookseller, 2003,
p. 149-151)
32
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o
processo. 3.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 11.
33
Calamandrei disserta sobre o conceito mais amplo da jurisdição, conforme o sistema da legalidade,
esclarecendo que ela toma assento não quando o preceito tenha sido transgredido (garantia a
posteriori), mas também, e em medida tanto mais ampla quanto mais acentuada for a tendência do
Estado a restringir e a controlar a autonomia privada, quando o preceito seja incerto ou quando, pela
natureza indisponível dos interesses aos quais o mesmo se refere, o Estado imponha, antes que o
mesmo possa ser posto em execução, a declaração oficial de certeza (garantia a priori).
(CALAMANDREI, Piero. Instituições de direito processual civil. 2.ed. Campinas: Bookseller, 2003,
p. 154)
21
simples negócio entre particulares. A resolução do conflito, se por um lado aos
litigantes interessa, por outro lado a eles somente não se restringe, uma vez que a
consagração do império da lei e da justiça é do interesse coletivo, sendo deveras
nobre e amplo esse papel atribuído à jurisdição, sem demérito da sua feição
puramente casuística a priori detectada no âmbito dos interesses concretos
assimilados pelo conflito
34
.
Para Andrea Proto Pisani
35
, o grande significado da obra de Chiovenda consiste em
haver, sob a influência da doutrina e da legislação alemã da segunda metade do
século XIX, se esforçado em modificar o eixo do sistema processual civil,
substituindo a prevalência do componente privatístico pelo componente publicístico.
Com a afirmação do caráter público da ação e da jurisdição, Chiovenda desenvolveu
o princípio da máxima instrumentalidade possível do processo relativamente ao
direito substancial, princípio que se traduz na célebre máxima, segundo a qual o
processo deve propiciar tanto quanto possível praticamente tudo que ao titular fosse
dado obter - modo de atuação da lei de acordo com o possível, sem que as
34
Para Chiovenda, uma relação entre a ação judicial e a lesão de direito material, e o autor parte
dos conceitos que a respeito do tema foram desenvolvidos por Adolfo Wach, sem validá-los
integralmente, por não reconhecer adequada à tradição latina a visão germânica de direito de querela
(direito a uma prestação, posto antes em face do Estado do que contra o adversário), trata-se a ação
de “poder jurídico de dar vida à condição para a atuação da vontade concreta da lei”. Embora admita,
na esteira do pensamento de Wach, que existem vontades concretas da lei que se concebe por
obra dos órgãos blicos no processo, todavia normalmente esses órgãos a pedido de uma parte
podem promover a atuação, de modo que normalmente a atuação da lei depende de uma condição, a
saber, a manifestação de vontade de um indivíduo; e diz-se que esse indivíduo tem ão, querendo
dizer-se que tem o poder jurídico de provocar, com seu pedido, a atuação da vontade da lei”. Daí
deságua Chiovenda naturalmente no conceito de jurisdição, embutido na idéia do processo civil, na
condição de “complexo de atos coordenados ao objetivo da atuação da vontade da lei (com respeito a
um bem que se pretende garantido por ela), por parte dos órgãos da jurisdição ordinária”, esta aqui
entendida como função estatal típica. Justifica-a lembrando que as leis modernas punem o exercício
arbitrário das próprias razões, reprimindo-se a violência privada com enérgicas sanções “o Estado
moderno considera como função essencial própria a administração da Justiça; é exclusivamente seu
o poder de atuar a vontade da lei no caso concreto, poder que se diz “jurisdição”. A função pública
desenvolvida no processo consiste na atuação da vontade concreta da lei, relativamente a um bem
da vida que o autor pretende garantido por ela. Objetivo dos órgãos jurisdicionais é afirmar e atuar
aquela vontade da lei que eles estimam existente como vontade concreta, à vista dos fatos que
consideram como existentes. A atividade dos juízes dirige-se, pois, necessariamente a dois distintos
objetos: exame da norma como vontade abstrata de lei (questão de direito), exame dos fatos que
transformam em concreta a vontade da lei (questão de fato). Resultado de sua atividade será a
atuação da vontade da lei, como o afirma o autor, se se reconhece existente, e mediante sentença de
admissão, eventualmente execução, ou, diversamente, a atuação da vontade negativa da lei, pela
rejeição do pedido. Para chegarem a esse resultado, os órgãos jurisdicionais procedem mediante
substituição da atividade alheia pela própria: seja da atividade intelectiva (que na sentença se
substitui à atividade das partes e de todos no afirmar ou negar a existência de uma vontade concreta
da lei), seja da atividade material, que na execução tende, em lugar do devedor, a procurar de fato
para o titular do direito o bem que a lei lhe garante”. (CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito
processual civil. 3.ed. Campinas-SP: Bookseller, 2002, p.41-60)
22
delongas da marcha processual se traduzam em dano para o titular do direito.
Dentro dessa perspectiva, assentam-se as idéias atuais de processo oral
concentrado e imediato, que se desenvolve diante de um Juízo que ocupa uma
posição central de órgão público interessado na realização da melhor e mais rápida
justiça.
Em Carnelutti
36
, o processo igualmente assume a feição de método necessário à
aplicação do direito com o propósito de cessar a contenda e alcançar a paz social,
de forma certa e justa, finalidade que se contém na composição da lide, aqui
entendida como “conflito de interesses qualificado por uma pretensão contestada”.
A visão de Carnelutti sobre o conceito de lide parte do pressuposto de que o conflito
é útil à sociedade como um todo, na medida em que afasta a debilidade e a
incerteza dos direitos controvertidos, sendo muito mais do que simples pressuposto
da resolução da disputa numa perspectiva particular do interesse lesado
37
. Não
obstante as severas críticas dedicadas pela sociologia do Direito a esse
posicionamento
38
, uma vez que o processo encerraria simples método de finalização
do conflito pelo uso da técnica coercitiva de obediência, ainda assim é válido
destacar o sentido publicístico, atribuído por Carnelutti ao processo, já que
o processo civil se desenvolve não no interesse das partes, e sim por meio
do interesse das mesmas. O interesse das partes é um meio, em virtude do
qual se realiza a finalidade pública do processo, ou em outras palavras, o
interesse no conflito é aproveitado para a composição do conflito.
39
Sustenta-se aqui, basicamente, que o processo, ao dar a razão a quem a tem e,
portanto, ao fazer justiça (compor a lide de forma justa, em razão das iguais
35
PISANI, Andrea Proto. Il códice di procedura civile del 1940 fra pubblico e privato. Roma: Il
Foro Italiano. Vol. 73, Marzo 2000, p.10-12.
36
CARNELUTTI, Francesco. Instituições do processo civil. Vol. I. São Paulo: Classic Book, 2000,
pp. 72, 76, 78, 93.
37
CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil. Vol. I. São Paulo: Classic Book,
2000, p. 95.
38
Geovany Cardoso Jeveaux indaga Será que realmente o processo tem obtido ou pode obter o
propósito de ‘pacificar’ conflitos individuais e coletivos? Me parece que, em verdade, e por não ser um
propósito concreto, e muito mais ideal, a ‘pacificação’ tem-se mostrado inalcançável por essa via [...]
Por que o fato em si de se dar solução ao problema, via decisão, não o resolve, mas o contorna”.
(JEVEAUX, Geovany Cardoso. A simbologia da imparcialidade do juiz. Rio: Forense, 1999, p.81)
39
CARNELUTTI, Francesco. Op. Cit, p. 337, ver nota 37.
23
oportunidades de convencimento distribuídas entre as partes), atendendo ao
interesse geral da sociedade, cumpre a sua missão de ser o mandado concreto
derivado da lei abstrata e genérica. Isso está dito de forma mais explícita na
passagem em que Carnelutti disserta sobre o papel atribuído ao processo de fazer a
justa composição da lide
40
, quando defende que apenas a jurisdição realiza a
suprema tarefa de fazer justiça às partes e à sociedade e, embora seja mais custosa
do que os meios alternativos de resolução dos conflitos intersubjetivos, dentre os
quais está a transação, é mais proveitosa ao interesse comum da coletividade, uma
vez que prestigia sempre o direito e a legalidade, jamais podendo se desviar dos
parâmetros ditados pela necessidade de justiça.
A conjugação das teorias finalísticas do processo e da jurisdição, defendidas por
Chiovenda e Carnelutti, leva a doutrina, atualmente, a concebê-las em simbiose,
revelando a um tempo o papel do Estado de aplicar a vontade concreta da lei,
com justiça, dando a cada um o que é seu, tal como previsto na ordem jurídica, e de
compor a lide, fazendo cessar o conflito de interesses
41
.
Muito antes do desenvolvimento que se atingiu na atualidade a respeito da visão
crítica do processo e da jurisdição, numa perspectiva garantística e comprometida
com a angústia dos litigantes (hoje não mais sendo possível conceber o caráter
reservado das funções estatais correlatas) a doutrina vinha amadurecendo com
bastante acuidade noções que se mostraram fundamentais para que se pudesse
alcançar o atual estágio conceitual. Exemplo disso é a teoria do “estado de
incerteza” abraçada por Couture ao tratar do fenômeno consoante o qual as partes
ficariam, no processo judicial, em estado de suspensão, aguardando o desfecho do
caso, delas sendo provisoriamente retirada a razão invocada na defesa dos seus
interesses. O mesmo se pode afirmar a respeito de Couture quanto cogita da ação
como substituto civilizado da vingança particular
42
, a qual envolve pretensão que
40
Ibidem, p. 371.
41
MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. vol. I. Campinas: Bookseller,
1997, p.107-109.
42
Couture assevera que “Somente à custa de grandes esforços históricos foi possível substituir na alma humana a
idéia da justiça pelas próprias mãos pela idéia da justiça a cargo da autoridade”. (COUTURE, Eduardo.
Introdução ao estudo do processo civil. Belo Horizonte: Editora Líder, 2003, p.21)
24
tanto pode ser fundada ou infundada, tanto faz, dado aquele mencionado estado de
incerteza que somente a sentença será capaz de por fim. Além disso, o célebre
mestre uruguaio aludia a conceitos hoje bastante em voga, de que é exemplo a
carga de sacrifícios e de dor que o processo carrega e que a sentença jamais
consegue reparar de modo integral
43
.
O próprio conceito publicístico do processo é muito bem assimilado na doutrina do
mestre uruguaio, quando trata da ação como meio de provocação da atividade do
tribunal (direito de petição constitucional), fruto da evolução política dos Estados
modernos que passaram a dispor desse instituto como garantia fundamental dos
cidadãos
44
. Exatamente isso é que fez surgir a necessidade de serem concebidas
normas de feição constitucional capazes de assegurar o direito à justiça, passando o
processo a se colocar “sobre a fronteira da Constituição, para garantir a eficácia dos
direito do homem no que diz respeito à justiça”
45
.
Bastante curiosas são, ademais, as considerações de Couture acerca da posição do
demandado em Juízo, que se obrigado a comparecer ao litígio sem que o
deseje
46
, advindo daí conseqüências de toda ordem, particularmente a necessidade
de lhe serem respeitados os direitos que possa ter na causa em discussão, numa
perspectiva que é pública, e não privada, de resguardo aos direitos do homem e do
cidadão
47
. Daí ser tão patente a necessidade de fundamentação exaustiva das
razões de eventual acolhimento do pedido formulado na ação
48
, jamais podendo
haver condenação sem prévia ouvida do réu e sem a obediência ao devido processo
legal
49
.
43
Ibidem, p. 21.
44
Ibidem, p. 22-23.
45
COUTURE, Eduardo. Introdução ao estudo do processo civil. Belo Horizonte: Editora Líder, 2003, p. 24.
46
Para Couture, O fato é este: o demandado é perturbado em sua paz pelo litígio. O direito de petição não é
inofensivo, sob a forma de ação e justiça, mas profundamente perturbador para a tranqüilidade do adversário”.
(COUTURE, Eduardo. Introdução ao estudo do processo civil. Belo Horizonte: Editora Líder, 2003, p.34)
47
É preciso observar, porém, que na origem dos direitos do cidadão (“Petition os Rights” de 1629; “Bill of
Rights” Inglesa de 1688; “Bill” da Constituição da Virgínia de 1776; Declaração Francesa de 1789), a sua
concepção e a própria proteção que se lhes dispensavam eram mais de ordem privada do que pública, tendo
expressão mais econômica do que jurídica, cunhados que foram no estado de natureza – perspectiva originalista.
48
COUTURE, Eduardo. Op. Cit., pp. 30 e 34.
49
Ibidem, p. 35.
25
O processo, por seu turno, que Couture
50
lembra ter sido tratado quer como relação
jurídica autônoma
51
(a partir da obra de Büllow e com as contribuições de Wach,
Degenkolb e Plosz teoria abstrata da ação), quer como situação processual
5253
,
assume o papel de uma instituição que se estrutura funcionalmente nos moldes de
um método de debate, que não é vazio, mas dialético, porquanto opera mediante
teses, antíteses e sínteses e, portanto, funda-se no contraditório, sendo também
teleológico, pois busca alcançar a resolução de um conflito de interesses. Aqui é
ressaltada a importância do ato de autoridade (Couture alude à doutrina de Zamora
e Castillo
54
), para, com base nisso, ser sustentado que tal fim é, ao mesmo tempo,
público e privado - privado, porque interessa às próprias partes fazer cessar o
conflito; público, porque o fim do processo é de interesse da comunidade,
“garantindo a efetividade do direito em sua integralidade, na condição de
instrumento de produção jurídica e forma incessante de realização do direito”
55
.
Muito embora ainda não cuidasse a doutrina de Couture propriamente das idéias
mais avançadas que primam pela transparência das ações do juiz que se relacionam
50
Couture adota o termo “instituição” com o propósito de demonstrar para o processo os sentidos de
permanência e continuidade no âmbito da coordenação no campo social dos interesses públicos e
particulares (substituição do eu pelo nós); o processo se encontra em um ponto em que os interesses
públicos e os privados interferem constantemente, de modo que a iniciativa particular da ação faz
resultar um instituto unitário e orgânico (o processo) que penetra profundamente no mundo social. O
próprio Couture usa essa imagem unicamente para ilustrar o seu raciocínio, uma vez que se declara
partidário da concepção do processo como relação processual. (Ibidem, p. 74-75)
51
Dinamarco ressalta ter cabido à Bülow a identificação do processo como relação jurídica especial
distinta da relação jurídico-material litigiosa por conta dos seus sujeitos (juiz, autor e réu), seu objeto
(provimentos jurisdicionais) e seus pressupostos (pressupostos processuais). (DINAMARCO, Cândido
Rangel. Instituições de direito processual civil. vol. I. 2.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p.
257)
52
A respeito do processo como situação jurídica, Dinamarco lembra que a posição de Goldschmidt,
pouco aceita pela doutrina em geral, teve o mérito de apresentar grande rigor científico e de
sistematizar as diferenças entre a categoria dos ônus processuais e os deveres e obrigações.
(Ibidem, p. 258)
53
Goldschmidt rebela-se contra a teoria do processo como relação jurídica por não compartilhar com
Bülow da opinião de que os pressupostos processuais sejam pressupostos inerentes ao processo,
mas, ao revés, entendendo-os como elementos de decisão típica sobre o mérito, que integram e
são resolvidos no andamento do processo, fazendo parte dele, e não de uma etapa preliminar in iure
à moda romana. Para Goldschmidt, o juiz está obrigado a conhecer a demanda com fundamento no
direito público, que independe da relação processual, advindo do dever do Estado administrar justiça
através do juiz, “cujo cargo, por sua vez, lhe impõe simultaneamente obrigações diante do Estado e
do cidadão”. (GOLDSCHMIDT, James. Princípios gerais do processo civil. Belo Horizonte: Editora
Líder, 2002, p. 20)
54
GOLDSCHMIDT, James. Princípios gerais do processo civil. Belo Horizonte: Editora Líder,
2002, p. 34.
55
Ibidem, p. 45.
26
à declaração de direitos para, por conta disso, instrumentalizar a “paz jurídica”
56
,
se reconhecia a necessidade de a jurisdição se dar na conformidade dos ideais
que atualmente são associados à democracia. Numa crítica a Montesquieu, o mestre
uruguaio lembra que o juiz é homem e não um ser inanimado ou um signo
matemático, jamais podendo ser apenas a boca que pronuncia as palavras da lei,
porque a lei não tem a possibilidade material de pronunciar todas as
palavras do direito; a lei procede com base em certas simplificações
esquemáticas, e a vida apresenta, diariamente, problemas que não
puderam entrar na imaginação do legislador.
57
era, além disso, criticada e desmistificada, com veemência, a natureza
eminentemente lógica da sentença, nela não sendo reconhecido o caráter de norma
pura mas, ao contrário, típico resultado da obra humana, criação da inteligência e da
vontade ligada ao espírito
58
. O juiz, portanto, não fabrica simples silogismos, pois na
sentença se contém uma pequena constelação de induções, de deduções e de
conclusões particulares; tampouco o juiz pode ter caráter voluntarista desvinculado
da lógica. Na realidade, o juiz tem as suas ações ditadas pelo direito, dispondo de
uma certa margem de liberdade na construção da solução jurídica dedicada ao caso
concreto. Aqui é que se revela o lado crítico da missão jurisdicional: sendo falível o
juiz, por suas ambições, paixões, impulsos e debilidades
59
, a criação e a produção
do direito dependem da possibilidade de serem inibidos os vícios do espírito
humano, pois, do contrário, o direito acabará valendo sempre o que valem os
homens que o pronunciam. É, então, imprescindível, a partir dessa premissa, que as
ações decisórias se mostrem transparentes a todo e qualquer um que delas deseje
cientificar-se ou inteirar-se.
É impossível, portanto, não perceber a destacada importância que assume a
publicidade dos atos praticados no processo pelo juiz, de modo a afastar a
56
JEVEAUX, Geovany Cardoso. A simbologia da imparcialidade do juiz. Rio: Forense, 1999, p. 04.
57
COUTURE, Eduardo. Introdução ao estudo do processo civil. Belo Horizonte: Editora Líder, 2003, p. 53.
58
Ibidem, p. 55.
59
COUTURE, Eduardo. Introdução ao estudo do processo civil. Belo Horizonte: Editora Líder, 2003, p. 56-
57.
27
possibilidade das decisões se fundarem em motivos inconfessáveis. Ao lado da
motivação das sentenças, a publicidade se põe a socorrer a democracia e a
legalidade, estampando e tornando visíveis as atitudes dos agentes estatais
delegados responsáveis pela jurisdição, particularmente dando eficácia aos direitos
fundamentais associados à moralidade, à impessoalidade e à legalidade das
condutas da administração que, tanto quanto se passa no âmbito da exteriorização
geral das condutas do Estado, aplicam-se igualmente à atividade blica da
jurisdição
60
.
O processo, que foi dito tratar-se de relação jurídica, exterioriza-se no
procedimento realizado em contraditório que, advindo do exercício da ação,
possibilita à jurisdição satisfazer o seu escopo último de típico instrumento de
“pacificação social”
61
.
Há, porém, uma parcela muito respeitável da doutrina que defende tratar-se o
processo não mais do que procedimento em contraditório, pouco importando que se
configure como relação jurídica mas, antes disso, tendo a sua ratio distinguendi
explicitada pela condição dialética da sua estrutura (struttura dialética)
62
. Fazzalari,
aliás, é bastante explícito na defesa da sua posição:
O processo é um procedimento em que participam (são habilitados a
participar) aqueles em cuja esfera jurídica o ato final é destinado a se fazer
efetivo: em contraditório, e de modo que o autor do ato não possa obliterar
(suprimir) essa atividade [...] Em suma, o processo se quando em uma
ou mais fases do iter de formação de uma ato é contemplada a
participação não –e obviamente do seu autor, mas ainda dos
destinatários dos seus efeitos, in contraddittorio, de modo que estes
possam desenvolver atividade a ser levada em conta pelo autor do ato; e
cujo resultado pode até ser desatendido, mas jamais ignorado.
63
60
Calmon de Passos fala que “a ameaça à cidadania vem do poder não submetido a efetivos
controles sociais, e isso não diz respeito apenas ao Executivo, à Administração Pública, mas a todas
as funções do Estado e aos que a desempenham, incluídos, portanto, o legislador e o julgador”.
(CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense,
1999, p.117)
61
Não é possível, todavia, esquecer o papel que a sociologia jurídica atribui ao processo e à
sentença, impondo uma solução rigorosa para estancar os efeitos prejudiciais que o conflito provoca
no ambiente das relações jurídicas, sufocando o diálogo e forçando o acatamento da sentença pelo
mecanismo da coisa julgada.
62
FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale. VIII edizione. Padova: Cedam, 1996, p. 84.
63
FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale. VIII edizione. Padova: Cedam, 1996, p. 83.
28
No mesmíssimo sentido pauta-se a doutrina de Vicenzo Caianiello:
O que distingue o processo que se desencadeia em juízo do
procedimento é o contraditório, pressuposto indefectível ao seu
desenvolvimento num plano de paridade entre as partes. Paridade significa,
portanto, que todas as partes atuem no processo gozando de situação
processual simétrica e paritária em relação ao adversário. Na teoria geral do
processo, a paridade das partes constitui precondição do contraditório, que,
por sua vez, é a essência do processo.
64
A toda e qualquer pessoa assiste o direito de demandar em juízo
65
, sendo isso fruto
do direito subjetivo e incondicionado que se intitula direito de ação, tal como se
extrai do art. 5º, XXXV, da Constituição; ao provimento sobre a situação jurídica
material controvertida, ou seja, à sentença de mérito, têm direito aqueles que se
mostram capazes de preencher certos requisitos, genericamente conhecidos como
condições da ação. A tutela jurisdicional, esta sim, finalmente, é reservada apenas e
tão somente para as pessoas que estejam concretamente amparadas pelo direito
material, sendo exatamente esse o escopo final do processo
66
. Vale dizer o amparo
do direito material litigioso e, por conseqüência, a pacificação do conflito através do
acolhimento da pretensão de uma das partes. Mais do que isso, a tutela jurisdicional
que se logra obter pela via do processo é o modo de se garantir a proteção efetiva
de todos os demais direitos dos cidadãos
67
, sendo imprescindível que ela se
apresente tempestiva e efetiva, atenta ao plano do direito material para fazê-lo valer
concretamente
68
.
A noção cunhada na atualidade para a tutela jurisdicional é fundamental, portanto,
para a explicitação da natureza pública do processo, que se legitima no plano da
intervenção sobre a esfera privada dos litigantes, notadamente numa perspectiva
mais difusa e geral do seu campo potencial de incidência, caso sejam observados os
64
CAIANIELLO, Vicenzo. Riflessioni sull’ art. 111 della costituzione. Rivista di Diritto Processuale.
VIII edizione. Padova: Cedam, Gennaio, Marzo 2001, p. 48.
65
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o
processo. 3.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 27.
66
Ibidem, p. 28
67
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento.
3.ed. São Paulo: RT, 2004, p. 30.
29
princípios do Estado democrático de direito, em particular, a publicidade das ações
da administração que se traduzem na específica prestação do serviço blico
correlato.
68
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento.
3.ed. São Paulo: RT, 2004, p. 29.
30
2 A HISTÓRIA DO PROCESSO CIVIL E A PUBLICIDADE
Não se reconhece o caráter científico e a própria autonomia, do direito processual
civil senão depois de meados do culo XIX
69
; antes disso, não havia qualquer
separação entre o direito material e a ação que lhe pudesse preservar a integridade,
que a nada mais se prestava senão à pronta resposta, ou reação, diante da injusta
agressão perpetrada ao direito alheio.
Ainda assim é possível examinar as características da jurisdição ao longo da
história, desde que observadas as peculiaridades associadas ao fato dela consistir
numa atividade processual desprovida de existência própria, representando mero
conjunto de formalidades para a aplicação do direito privado
70
.
Em Roma, nos dois primeiros dos três períodos de evolução do processo civil,
chamados das legis actionis e per formulas, aquele durando desde a fundação de
Roma (754 a.c.) até o ano de 149 a.C. e este dali até o Século III da era cristã,
concebia-se a jurisdictio totalmente desprovida de “imperium”, que se exercitava
através do procedimento privado da actio. Nesse tempo, concedida a ação pelo
magistrado ao final da fase in iure, era designado o iudex, árbitro particular
responsável pela condução da fase subseqüente do processo, chamada in iudicio, e
pela prolação da sentença e declaração do direito controvertido. Sendo inteiramente
oral o procedimento, era necessário que as partes acorressem à presença do
magistrado e, depois disso, do árbitro, acompanhadas de parentes e amigos,
incumbidos de gravar, na memória, os parâmetros da litiscontestatio, os quais não
eram levados a registro pelo signo da escrita. Mesmo ao tempo da República e no
período formulário, foram mantidas as duas fases do procedimento (in iure e in
iudicio), com a diferença de que era concedida aos interessados na solução do litígio
uma fórmula escrita em que se explicitava o seu objeto. De resto, desde que aceita a
ação pelo pretor, dava-se início à segunda fase, in iudicio, sob a responsabilidade do
árbitro privado (de regra nomeado na fórmula gravada num pequeno pedaço de
69
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o
processo. 3.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 24.
70
MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. vol. I. Campinas: Bookseller,
1997, p. 77.
31
madeira, a qual ainda compreendia os termos da litiscontestatio e o inteiro objeto da
controvérsia).
O papel do juiz privado (iudex) era, então, o de unicamente declarar o direito
controvertido na causa, sem que lhe fosse reconhecida a possibilidade de lançar
mão de atos de força, imperativos
71
. Uma vez declarado o direito, cumpria ao
sucumbente satisfazê-lo no prazo de trinta dias, conforme previsão da Lei das XII
Tábuas, sob pena de o credor pôr-lhe a mão em cima (manus injectio) e conduzi-lo à
presença do pretor (in ius ducito)
72
. Havia a possibilidade de ciência dos atos do
iudex pelas pessoas próximas aos litigantes, uma certa publicidade, de se convir,
mas a jurisdição tinha feição eminentemente privada.
O terceiro e o último período do processo romano foram denominados cognitio
extraordinaria, ou cognitio extra ordinem; tendo durado entre 294 d.C. até
aproximadamente 530 d.C., decorreu da atribuição dada pelo governo imperial aos
funcionários do Estado para o exercício das funções judiciárias
73
. Consta que a
estatização da jurisdição foi fruto da exigência de se impor, aos povos dos territórios
conquistados pelo Império, o respeito às leis romanas
74
. A partir de então, a
jurisdição passou a ser estatal, desde a instauração do processo até os atos de sua
execução, deixando de lado as fórmulas e a bipartição do procedimento em duas
fases. As alegações das partes, autor e réu, deixaram de ser orais e passaram a ser
feitas por escrito (libellus convencionis e libellus responsionis), tanto quanto a
sententia do magistrado, que já admitia recurso.
71
“As medidas executivas se realizavam sem qualquer auxílio da autoridade. Quando da execução,
era o credor que se incumbia de ultimá-las, alcançando tanto os bens imóveis e móveis do devedor,
quanto os eventuais direitos que este possuísse.” (TUCCI, José Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luiz
Carlos. Lições de história do processo civil romano. São Paulo: RT, 1996, p. 134-135)
72
GRECO, Leonardo. O processo de execução. Vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 11-12.
73
Na extraordinaria cognitio, o magistrado-iudex, quando não era o próprio monarca, intervinha não
como autônomo titular de uma função jurisdicional destacada do poder político, mas, sim, como
imediata emanação deste, atuando como delegado da autoridade que se postava no vértice do
governo imperial. E isso de tal modo que o detentor da supremacia política, visando a impor sua
vontade aos cidadãos nos quadrantes de todo o império, delegava poderes a certos magistrados para
que julgassem diretamente as controvérsias. (TUCCI, José Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luiz Carlos.
Op. Cit., p. 139, ver nota 71)
74
GRECO, Leonardo. Op. Cit., p. 23, ver nota 72.
32
A maior importância desse período final, na fase de desagregação do Império
Romano, reside na força coercitiva do Estado para fazer valer as suas sentenças
75
,
passando a ser admitido que se seguissem ao ato de declaração de direitos as
atividades tipicamente executivas da sentença (pignus ex causa iudicati captum).
Quanto à participação de pessoas estranhas aos litigantes nos atos do processo,
arremedo de publicidade motivada por razões de mera instrumentalidade do
procedimento, ela deixa de se justificar nos moldes anteriormente praticados
(períodos das legis actionis e formulário), uma vez que a escrita passou a registrar
os principais atos da cognitio extra ordinem. A jurisdição, enfim, deixou de ter a
feição de um negócio particular entre os litigantes, assumindo clara função pública
voltada para a paz social, mas sem que houvesse qualquer interesse na revelação
dos seus atos a terceiros.
Curiosa é a observação feita por Ovídio Batista a propósito da jurisdição romana
76
,
ao menos no período clássico, dizendo que abrangia exclusivamente a actio, vale
dizer, tinha por única função a declaração de direitos, com a exclusão das demais
atribuições afetas ao praetor, inseridas no âmbito dos interdicta, onde se incluíam as
stipulationes praetoriae e a restitutio in integrum, tidos e havidos como providências
de natureza administrativa. Somente a actio, desenvolvida conforme o procedimento
ordo iudiciorum privatorum, nos tempos da legis actionis, possuía natureza
jurisdicional, a significar precisamente relação de direito privado (tanto que era
particular a pessoa escolhida do iudex). O imperium, por outro lado, inerente aos
interditos e desde que exercido pelo pretor, advinha de um vínculo de natureza
publicística
77
.
75
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 12.ed. São Paulo:
Saraiva, 1989, p. 44.
76
SILVA, Ovídio Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. São Paulo: RT,
1996, p. 33.
77
A esse propósito é bastante elucidativa a lição de Cruz e Tucci e Azevedo, os quais lembram que,
com a evolução dos tempos, o pretor passou a ser autorizado a exercer tipos especiais de tutela,
dentre as quais os interdicta, as missionis in possessionem, as stipulationes praetoriae e as
restitutiones in integrum, cujos interesses resguardados eram predominantemente blicos,
particularmente no caso dos interdicta, dado que ao pretor incumbia fundamentalmente, dentre outros
encargos, a administração da res publica, cuja ordem era calcada no poder do imperium, de caráter
administrativo. (TUCCI, José Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luiz Carlos. Lições de história do
processo civil romano. São Paulo: RT, 1996, p. 113)
33
Essas constatações históricas são interessantes para explicar a dicotomia entre os
interditos e a jurisdição romana, sendo aqueles utilizados sempre que se deparasse
com direito previamente reconhecido, enquanto esta pressupunha direito duvidoso
ainda pendente de declaração (algo como o que hoje se denomina atividade
cognitiva). Não é por outra razão que os interditos, em Roma, implicavam atividade
administrativa visceralmente pública, enquanto a jurisdição era típico negócio
privado de interesse adstrito às partes.
As mesmas premissas acima reveladas mostram-se decisivas, ademais, para a
compreensão dos motivos que levaram os sistemas modernos derivados do direito
romano canônico (Europa Continental e América Latina) a se manterem fiéis à
tradição meramente cognitiva e declaratória da actio, negando para a jurisdição, via
de regra, o poder de imperium,
78
ao ponto de ainda se exigir uma atividade
processual autônoma para os atos executivos das obrigações de pagar (apenas
recentemente foram admitidos atos executivos lato sensu no âmbito do processo de
conhecimento para as obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa art. 461 e
461-A do CPC). Contrariamente, o direito anglo-americano manteve precisamente a
parcela mais significativa dos poderes atribuídos aos magistrados romanos, diz
Ovídio Batista, dando destacada importância, no âmbito da jurisdição, aos atos de
coerção e de império.
Enfim, no direito romano a jurisdição tinha, ao menos no período clássico, feição
claramente privada e representava o poder da parte vencedora exigir do vencido a
prestação do direito declarado pelo árbitro
79
. Quando se converte em atividade
pública entregue à responsabilidade do Estado, ao tempo de esfacelamento do
Império, a jurisdição passa a se reger por procedimento escrito e, por conseguinte, já
não mais admite a participação de pessoas estranhas às partes, comprometendo
seriamente o arremedo inicial de publicidade.
Com a queda do Império Romano e o início da Idade Média, os povos bárbaros
invasores instituíram nos territórios ocupados, uma jurisdição rudimentar baseada
78
SILVA, Ovídio Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. São Paulo: RT,
1996, p. 9-10.
79
Ibidem, p. 64-65.
34
em procedimentos assembleares orais sob a presidência de um prócere
80
. Esse
modelo de julgamento convinha à tradição de uma gente de cultura nômade, cuja
história foi marcada por uma enorme vivência comunitária, organizados que eram
em comunas e clãs dentro dos quais se formou o hábito de que as deliberações de
interesse geral se dessem em ambiente participativo e público. Não é de estranhar,
portanto, do ponto de vista histórico, que o mesmo se passasse com as soluções
exigidas para os litígios, levadas a efeito em praça aberta e com a participação livre
de todos os viventes
81
. Foi então que teve lugar o bizarro sistema instrutório fundado
em juramentos, ordálias e duelos
82
e, além disso, a vinculação erga omnis da
sentença dada pela assembléia
83
, a demonstrar o caráter público da jurisdição, que
a todos interessava e afetava. De forma peculiar, era ainda o fato de o procedimento
ser invariavelmente unitário, englobando cognição e execução, tanto que a sentença
gerava efeitos mandamentais imediatos, sem maiores formalidades
84
.
Não tardou, entretanto, passado o tempo da chamada “alta idade média”, para que o
direito canônico de forte inspiração romana
85
exercesse influência sobre o direito
barbárico, deformando-o de modo a reincorporar instituições clássicas inimagináveis
aos povos germânicos, particularmente no que interessa à dicotomia entre atos
cognitivos e executivos. Isso se deu em decorrência do fato de o direito romano
jamais ter perecido, não obstante tenha havido a dissolução do Império, subsistindo
nas chamadas regiões dominadas (Veneza, Roma, Nápoles e Sicília), além da
80
Limongi França observa que o Direito Intermédio iniciou-se em 476 d.C., quando Odroaco, rei dos
Hérulos, subjugou o Império do Ocidente, sendo que, cerca de meio século antes (410/415), Ataulfo,
rei dos Godos, havia dominado a Península Ibérica, tudo isso fazendo com que se não fosse às
inteiras, mas, ao menos em parte, o Direito Bárbaro desde então vigisse em território Romano,
estendendo-se por toda a Idade dia. Em Portugal, o Código Visigótico constituiu lei até o advento
da primeira das Ordenações em 1446. (FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade da lei e o direito
adquirido. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p.24-25)
81
GRECO, Leonardo. O processo de execução. Vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 26.
82
A respeito da evolução histórica das provas judiciárias, ver GILISSEN, John. Introdução
histórica ao direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 711 e seguintes.
83
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 12.ed. São Paulo:
Saraiva, 1989, p. 44-45.
84
SILVA, Ovídio Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. São Paulo: RT,
1996, p.60.
85
Limongi França diz que “a marca romanística do Direito Canônico é inelutável, a começar da
linguagem dos textos que não mais é o latim bárbaro das Constituições Góticas ou do Direito de
Reconquista, mas um latim, quando não clássico, pelo menos semelhante ao das Constituições
Justinianéias”. (FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade da lei e o direito adquirido. 6.ed. São
Paulo: Saraiva, 2000, p.27)
35
contribuição dada à sua sobrevivência por obra e graça da Igreja
86
. Os bárbaros,
ademais, adotaram desde sempre o princípio da personalidade do direito, aplicando
também para a sua gente o direito germânico e reservando o direito romano aos
povos dominados
87
.
A miscigenação envolvendo o direito germânico e o direito romano revelou-se,
assim, inevitável com o passar do tempo, dando origem ao que Limongi França
denomina “direito de multiformes manifestações”
88
, fruto do encontro natural das
culturas dos povos vencedores e vencidos e do comércio entre os europeus, embora
ainda incipiente e rudimentar. Coube aos estudos romanísticos, iniciados na
Universidade de Bolonha
89
, sepultar de vez as possíveis resistências à mistura das
práticas processuais, fazendo definitivo o ressurgimento no continente europeu do
direito romano
90
, e dando início ao tempo dos glosadores, dos pós-glosadores, dos
canonistas e dos práticos, que forçaram definitivamente a contaminação dos
costumes jurídicos do povo germânico pelo direito romano, a esta altura
culturalmente enraizado
91
. Foi então que surgiu o chamado direito romano-canônico,
que se espalhou por toda a Europa Ocidental, mais tarde alcançando as terras da
América. Tendo reprimido a feição originariamente pública e popular (assemblear)
dos julgamentos do tempo de apogeu do Direito Germânico da alta idade média, o
processo civil assumiu caráter excessivamente formalista, por inspiração dos
86
John Gilissen lembra que, nos séculos X-XII, particularmente em França e no Império, a divisão do
poder conduz ao desmembramento das jurisdições: feudais, territoriais, senhoriais. Ao mesmo tempo,
em conseqüência do enfraquecimento das jurisdições laicas, as jurisdições eclesiásticas atingem o
seu máximo desenvolvimento, adquirindo competência cada vez mais alargada, mesmo em matérias
que, noutros tempos couberam aos tribunais laicos. Como os tribunais eclesiásticos aplicavam em
matéria civil um processo escrito, inspirado em grande escala pelo processo do direito romano,
pareceu natural que as jurisdições laicas adotassem, sobretudo a partir do século XVI, o processo
escrito baseado no direito canônico. A isso se somou o fato da função jurisdicional ter passado
progressivamente, entre o século XIII e o século XVIII, das mãos de juízes populares para as mãos
de juízes profissionais, com formação jurídica adquirida em universidades e com forte inclinação para
a romanização do direito. (GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1995, p. 383-391)
87
GRECO, Leonardo. O processo de execução. Vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 28.
88
FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade da lei e o direito adquirido. 6.ed. São Paulo: Saraiva,
2000, p. 15).
89
Ibidem, p. 28.
90
MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. vol. I. Campinas: Bookseller,
1997, p. 77.
91
José Frederico Marques explica que os glosadores assim eram chamados por conta das breves
notas (glossae) de interpretação elaboradas em torno dos textos romanos; os pós-glosadores eram
homens práticos envolvidos com o direito que se debruçavam sobre as glosas do período anterior e
que buscavam soluções para os casos cotidianos. (Ibidem, p.78)
36
doutores da Igreja, e complicado, por conseqüência da multiplicidade de fontes e da
variedade de comentários da doutrina.
Com o passar do tempo, porém, esse procedimento rebuscado e demasiado formal
sofreu os efeitos inexoráveis ditados pelas transformações sociais, gradativamente
adotando características de oralidade e de sumariedade, como forma de reprimir a
ineficácia funcional da jurisdição diante dos reclamos dos fatos da vida
92
. Reduzidas
então as formalidades, o procedimento sumário passou a atuar simpliciter et de
plano ac sine strepitu et figura iudicis
93
.
O processo civil começou, desta forma, a se afastar paulatinamente do processo
romano-canônico próprio da fase intermédia, sendo nesse exato contexto,
particularmente na França, com a concentração do poder monárquico do
absolutismo, baixadas as ordenanças régias (a partir do Século XIV), voltadas para a
simplicidade, a oralidade e a publicidade (aqui entendida como mecanismo de
ciência às partes dos acontecimentos de seu interesse) dos atos do processo,
passando o juiz a deter o poder de admitir com liberdade a prova dos fatos
controvertidos, tudo isso culminando, em 1806, com a implantação do Código de
Processo Civil francês, fortemente inspirado na Ordenança Civil de Luiz XIV, de
1667.
A codificação francesa passou então a influenciar toda a Europa
94
, em especial a
doutrina italiana e o processo civil adotado na Alemanha e na Áustria, ainda presos
ao excesso de formalismo dos primeiros tempos de influência da Igreja, dando início
92
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 12.ed. São Paulo:
Saraiva, 1989, p.47.
93
MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. vol. I. Campinas: Bookseller,
1997, p. 79.
94
Segundo Michele Taruffo, “No curso do século XIX, parece verificar-se uma convergência oculta à
imitação, que se difunde na Europa, do modelo constituído pelo code de procédure civile napoleônico,
mas essa convergência diminui no final do século essencialmente por causa da ruptura determinada
pela Zivilprozessordnung austríaca, que se põe como novo e diverso objeto de inspirações e de
imitações por grande parte da doutrina e por alguns sucessivos legisladores processuais” (Tradução
nossa). Para dar credibilidade, segue o original, “Nel corso del secolo XIX sembra verificarsi uma
convergenza docuta all’imitazione, che si diffonde in Europa, del modello costituito dal code de
procédure civile napoleonico, ma questa convergenza viene meno verso la fine del secolo
essenzialmente a causa della rottura determinata dalla Zivilprozessordnung austriaca, Che si pone
come nuovo e diverso oggeto di ispirazione e di
imitazione per gran parte della dottrina e per alcuni
legislatori processuali successivi”. (TARUFFO, Michele. Osservazioni sui modelli processuali di
civil law e di common law. IV Jornadas Brasileiras de Direito Processual Civil)
37
a uma nova fase evolutiva dos métodos de procedimento civil. Foi sob a inspiração
dessa fase nova do processo civil que surgiu, na Alemanha, o Regulamento
Processual de 1877 (Civilprozessordnung), por cujo intermédio foi implantado o
procedimento oral de feição sumária, gerando, por conseqüência, a adoção de
mecanismos afeitos à concentração, à imediatidade, à publicidade e à liberdade de
condução do processo pelo juiz no tocante à prova
95
.
A essa altura da história é que teve lugar o acontecimento reconhecido como
definitivo para a renovação científica do Direito Processual Civil, tal como se operou
em 1868 por obra e graça de Oscar Bulow, com a publicação do seu trabalho sobre
a Teoria das exceções e dos pressupostos processuais, permitindo, enfim, o
nascimento da relação processual e a sua sistematização
96
. Seguiram-se as
contribuições de Kohler, com o desenvolvimento da teoria da relação processual, de
Adolf Wach, com a defesa da ação como direito público e autônomo, e Degenkolb,
com sua doutrina da ação como direito abstrato, dando impulso ao movimento que
permitiu a consolidação da cientificidade do direito processual civil
97
.
No que importa mais especificamente ao direito luso-brasileiro, é de ser lembrado
que na Península Ibérica a influência dos direitos romano e canônico igualmente
operou-se durante boa parte da Idade Média, embora mesclando costumes
germânicos enraizados e consolidados no Código Visigótico de 693, também
chamado Fuero Juzgo.
Com a separação do Condado Portucalense do resto da Ibéria em 1139 e sob a
influência do direito romano (imposto pelo reis para enfraquecer o poder da Igreja),
adveio, em 1446, no reinado de Afonso V, a primeira das Ordenações portuguesas,
as Afonsinas, cujo terceiro livro foi dedicado ao processo civil, reunindo regras de
95
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 12.ed. São Paulo:
Saraiva, 1989, p.48.
96
Goldschmidt, ao discorrer sobre a obra de Büllow, diz chamar “A Teoria das Exceções Dilatórias e
os Pressupostos Processuais” (“Die Lehre von den Prozesseinreden und die
Prozessvoraussetzungen”), salienta, ainda, que ele teve o mérito de formar a base de todos os
sistemas do processo, sendo indubitável que a partir de Bülow, e o antes, começa a se formar
uma ciência própria do Direito processual”. (GOLDSCHMIDT, James. Princípios gerais do processo
civil. Belo Horizonte: Editora Líder, 2002, p
.
17
)
97
MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. vol. I. Campinas: Bookseller,
1997, p.81.
38
direito romano e de direito canônico, normas de direito foraleiro (Cartas de Foro dos
primeiros tempos do reino), normas costumeiras e disposições da Lei das Sete
Partidas (de substância romana, organizada por Afonso X de Castela e traduzida
para o vernáculo por ordem de D. Diniz)
98
.
As Ordenações seguintes, Manuelinas e Filipinas, respectivamente de 1521 e 1603,
mantiveram as linhas mestras da tradição do processo civil português, aplicando-se
no território brasileiro até época relativamente recente
99
. Caracterizavam-se as
Ordenações pela existência de um procedimento ordinário mais formalista e de
outros ritos mais simplificados, sumário e especial, estes relativos às demandas do
tipo possessórias, despejos e executivo-fiscais. quanto ao rito ordinário,
caracteriza-se por conter fase postulatória dilatada, com libelo, contrariedade, réplica
e tréplica, além da clara separação das fases e procedimentos seguintes, instrutória,
decisória e executória, sendo que, no contexto das provas, merece relevo o fato de
as testemunhas serem ouvidas em segredo, comprometendo seriamente a atual
noção da garantia de publicidade
100
.
Proclamada a independência do Brasil, as leis portuguesas permaneceram em vigor;
com a promulgação do digo Comercial de 1850, seguiu-se o Regulamento 737,
que continha regras de processo exclusivas para as lides mercantis. Continuaram as
causas civis a serem reguladas pelas Ordenações e pelas leis extravagantes até o
advento da Consolidação Ribas, em 1876, de curta duração diante da ordem do
Governo Republicano Provisório de que as causas cíveis também se regulassem
pelo Regulamento 737, excepcionados os processos especiais e os de jurisdição
voluntária, regidos ainda pelas Ordenações.
A confusão no campo normativo do processo civil foi agravada a partir da
Constituição de 1891, com o implemento dos Códigos Estaduais de Processo Civil, a
maior parte deles inspirada nas Ordenações Filipinas e no Regulamento 737, exceto
nos casos da Bahia (1915) e de São Paulo (1930), além do Distrito Federal, que
98
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 12.ed. São Paulo:
Saraiva, 1989, p.50.
99
Leonardo Greco lembra que as Ordenações vigoraram até o século XX no Brasil. (GRECO,
Leonardo. O processo de execução. Vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 38)
39
adotavam o pensamento renovador e científico adotado na Alemanha para o
processo civil.
O Código de Processo Civil de 1939, editado para satisfazer o espírito de
reunificação do direito processual ditado pelas Constituições de 1934 e 1937,
representou um sério avanço científico, que Moacyr Amaral Santos
101
ilustra,
salientando a feição do processo como instrumento do Estado no desempenho da
função pública jurisdicional, norteando-se pelos princípios da publicidade e da
oralidade (concentração dos atos, imediação do juiz com as partes e os meios de
prova e identidade física do juiz), além da combinação do princípio dispositivo com o
princípio do juiz ativo. Foram os seus defeitos em matéria de recursos e de
execução, além das dificuldades relacionadas à implementação da celeridade e da
concentração dos atos, que induziram a reforma de 1973, cujo Código com as
devidas atualizações se encontra em vigor, por intermédio do qual foram inicialmente
abrandadas as linhas diretrizes de sua original inspiração.
De todo modo, conforme será visto em tempo oportuno, as parcas referências até
aqui feitas à publicidade prendem-se ao conceito de ciência, pelas partes, dos atos
do processo, particularmente os de iniciativa do adversário, como meio de permitir o
desenvolvimento concentrado do fluxo procedimental, algo que hoje se conhece
como publicidade endoprocessual. Somente no tratamento dedicado ao processo
civil pelo direito positivo posterior à Segunda Grande Guerra, em virtude da
implantação do Estado Social e com o objetivo de serem afugentadas as horrorosas
lembranças do nazismo, é que os institutos processuais passaram a espelhar os
ideais da democracia, assumindo o conceito de publicidade, a noção de
transparência externa e de controlabilidade popular.
Historicamente, portanto, a noção mais amadurecida de publicidade, nos moldes tais
como hoje ela é proclamada, é, sobremaneira, nova, em que pese Chiovenda
102
100
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 12.ed. São Paulo:
Saraiva, 1989, p.50.
101
Ibidem, p. 56.
102
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. 3.ed. Campinas-SP:
Bookseller, 2002 , p. 105.
40
defenda que a publicidade tenha sido, ao menos em parte, observada nos processos
mais antigos, romano e germânico, e excluída dos processos intermédios
103
.
No que se refere à história das provas no processo civil e naquilo que possa
interessar ao estudo da publicidade processual, são curiosas as observações de
John Gilissen
104
, particularmente ao lembrar que, enquanto no direito romano
clássico eram admitidos todos os meios de prova, tais como a confissão, o
testemunho, o escrito (chirographum – declaração escrita pelo devedor para provar o
seu compromisso) e o juramento, na idade média teve lugar o “sistema das provas
irracionais” que, embora tenha entrado em crise por volta dos Sécs. XII e XIII,
desaparecendo da Europa entre os Séculos XIII e XV, foi mantido até o fim do
Século XIX em certas regiões, nomeadamente na Inglaterra e na Rússia.
Nesse sistema, recorria-se a um ente superior, por exemplo Deus, para ajudar o juiz
a fazer justiça, submetendo-se a parte a uma prova chamada ordálio (cf. o alemão
urteil, decisão, sentença) ou juízo de Deus. De acordo com o resultado da prova,
desfecho que se impunha querido pelo ente sobrenatural, assim o juiz decidia o
conflito. Consta que o juiz não era obrigado a recorrer a ordálios, podendo admitir
provas racionais como testemunhos e documentos, havendo, portanto, uma
coexistência do místico e do racional; desde, porém, que o juiz impusesse uma certa
prova, o seu papel tornava-se passivo, cumprindo-lhe apenas constatar o seu
resultado.
103
Na verdade, Chiovenda refere-se à publicidade nos moldes tais como hoje se conhece pela sua
qualidade endoprocessual, que, de fato, houve em Roma, tanto assim que Cruz e Tucci e Azevedo
afirmam, relativamente à sentença do período extraordinaria cognitio, estar ela sujeita a certas
formalidades, em especial ser escrita e lida publicamente na presença dos litigantes. Mais tarde, no
tempo de Constantino, quando se iniciava o gradativo esfacelamento do Império Romano e eram
freqüentes as práticas de corrupção e abusos na administração da justiça, previu-se ampla
publicidade para as causas criminais e cíveis, e foram estimuladas as acusações contra autoridades
das províncias. A publicidade, então, se prestava, fundamentalmente, à preservação dos interesses
legítimos das partes, inclusive na execução, fossem credores ou devedores. Já no tempo do processo
justinianeu, a partir do ano 527 d.C., sob a influência das primeiras migrações germânicas, em
audiência pública, eram definidos os limites da controvérsia, produzidas as provas e prolatada a
sentença, que inclusive poderia ser objeto de impugnação oral e imediata através da appellatio,
tomando-a por termo, embora também pudesse se dar por escrito no prazo de dois dias. (TUCCI,
José Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luiz Carlos. Lições de história do processo civil romano. São
Paulo: RT, 1996, pp. 147, 153, 156, 160, 161, 170)
104
GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995,
p. 711 e seguintes.
41
Os ordálios podiam ser unilaterais ou bilaterais. Os unilaterais, na idade média,
eram, sobretudo, as provas de ferro em brasa (não se podia queimar a mão que
segurasse o objeto), da água fervente ou da água fria (o mergulho se dava com pés
e mãos ligados) e do cadáver (tocava-se o cadáver sem que o pudesse fazer
sangrar). Nos ordálios bilaterais, os litigantes se confrontavam para prevalecer o seu
direito. Assim, no iudicium crucis (julgamento da cruz), bastante difundido na época
carolíngia, as duas partes ficavam pelo tempo máximo que suportassem de braços
estendidos; a primeira que deixasse cair os braços perdia a questão. O meio mais
difundido de ordálio bilateral foi o duelo judiciário, em que as duas partes (ou seus
campeões) se batiam à espada, à paulada ou de outra forma, vencendo a questão
quem vencesse o duelo subsistiu até o Século XV e até o Século XX na
modalidade de duelo de honra. Por fim, o juramento purgatório, espécie de ordálio,
mediante o qual as partes eram instadas a jurar a verdade quanto à razão invocada,
sob pena de confissão em caso de recusa, ou de automaldição, punindo Deus quem
houvesse prestado falso juramento não obstante tenha desaparecido em questões
de Direito Penal, em matéria cível permaneceu sob o nome de juramento
litisdecisório (Código da Itália de 1942 e do Egito de 1948).
Com a proibição dos ordálios pelo Concílio de Latrão desde 1215, é natural que o
sistema romano canônico tenha buscado inspiração nos elementos colhidos do
direito romano. Baseado em classificação sistemática das provas em graus, o seu
tratamento se dava nos seguintes níveis de hierarquia: a) notorium, distinguindo três
tipos de notoriedade: notorium facti (o que ressalta aos olhos de todos publice
coram omnibus), notorium iuris (autoridade do caso julgado e confissão em juízo) e
notorium praesumptionis (presunção iuris et de iure); b) probatio plena, baseada em
duplo testemunho ou em ato escrito público; c) probatio semiplena, baseada em
testemunho isolado, documentos particulares, fuga ou fama; d) iudicium ou indícios
de fato (ameaça, rumores, inimizade).
Depois de uma fase de larga utilização da tortura e da sua indireta inserção entre as
provas legais, como subproduto da modalidade iudicium adotada na época do
processo inquisitório, quando houve grave comprometimento às idéias da
publicidade, em substituição aos ordálios, que durou entre os séculos XV e XVIII
(embora a tortura não fosse propriamente tida como prova mas meio de se chegar
42
até ela, por confissão, pois Deus daria ao inocente forças para resistir à dor), adotou-
se a partir do culo XIX, em matéria penal, o sistema da prova livre, cumprindo ao
juiz julgar conforme a sua convicção íntima, valendo-se de todas as provas
admitidas sem valor legalmente estabelecido entre elas. Para as matérias cíveis,
sobretudo durante e a partir do século XX, particularmente na Europa, prepondera a
tendência de se passar do sistema das provas legais para o sistema da prova livre,
embora ainda prevaleça o maior prestígio dedicado à prova documental, em
detrimento do testemunho.
43
3 A PUBLICIDADE E A LEGITIMAÇÃO DO PODER E DA JURISDIÇÃO
Exposta a questão em termos diretos e claros, é preciso que o exercício do poder
público, inclusive no que diz respeito à tutela jurisdicional, esteja fundado em
premissas de validade que lhe possam dar sustentação. Carente desses
pressupostos, o poder perde legitimação e o seu exercício passa a representar uma
clara usurpação da soberania popular.
A garantia da publicidade, para o processo, cumpre, exatamente, o papel de revelar
aos jurisdicionados e ao povo em geral, a legitimidade dos atos estatais exercidos no
âmbito jurisdicional. Garantia de segundo grau, como lembra Antônio Magalhães
Gomes Filho
105
, citando Cappelletti, serve a publicidade para atestar o respeito pelo
Estado às demais garantias processuais, notadamente à cláusula do devido
processo legal de duas diferentes formas, denominadas publicidade interna e
publicidade externa.
Sendo dialético o processo, ele resulta da existência de diferentes versões para o
mesmo fato e de diferentes percepções normativas associadas à interpretação e à
aplicação do ordenamento jurídico, conforme os interesses disputados pelas partes
na lide. Disso advém a necessidade de que se realizem os seus atos em
contraditório, cujo respeito se viabiliza mediante a revelação aos interessados
que participam da relação processual, de tudo o que no processo se contém. A
publicidade nesse contexto, portanto, denominada de publicidade interna, traduz-se
num instrumento que possibilita o exercício do contraditório, atestando sempre a
legalidade e a validade do procedimento adotado pelo Estado à luz dos interesses
diretos dos litigantes.
na perspectiva da publicidade externa, o Estado de Direito adota a exigência
fundamental de que às pessoas do povo seja demonstrado que os julgamentos
realizados pelo Poder Judiciário se operam dentro das balizas da democracia, sob
pena da jurisdição perder a sua sustentação de validade, ou seja, revelar-se
ilegítima. Cumpre à publicidade, por conseguinte, cumprir esse papel de revelação
105
GOMES FILHO, Antônio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo: RT, 2001,
p.35.
44
pública da regularidade do procedimento adotado no processo, satisfazendo a
necessidade popular de verificação da legitimidade do exercício do poder pelos
agentes públicos delegados. Afinal de contas, numa democracia, a atividade dos
órgãos públicos funda-se no conceito de soberania, isso implicando a contínua
necessidade de resgate pelo povo da titularidade do poder, através da ciência e da
aprovação de tudo aquilo que se realiza em seu nome.
Costuma-se satisfazer a exigência de fundamentação e de legitimação do poder
estatal com base na legalidade, decorrendo a aceitação e a justificação das ações
públicas sempre que sejam elas exteriorizadas de modo compatível com o modelo
fixado em regras pré-existentes. Abstraída a dualidade entre a moral e o direito, por
razões de ordem funcionalista bem ao gosto do positivismo, e supondo-se que o que
está na lei atende ao padrão ético mínimo da coletividade, a lei (em sentido lato)
tende a ser, enfim, o grande elemento lógico de fundamentação do poder
106
.
O discurso s-moderno, contudo, critica com veemência essa percepção simplória
da legitimidade do poder, reputando-a insuficiente para atender aos reclamos da
sociedade pluralista contemporânea e insistindo na necessidade de serem
identificados novos paradigmas de fundamentação do Estado e do Direito
107
.
Tanto assim que um certo tom de inconformismo no discurso de Habermas,
quando relata a pobreza da interpretação positivista do direito, dizendo que se trata
de simples
forma que reveste determinadas decisões e competências com força de
obrigatoriedade fática. [...] Direitos valem, desde a época de Windscheid,
106
Para Habermas, “O direito moderno tira dos indivíduos o fardo das normas morais e as transfere
para as leis que garantem a compatibilidade das liberdades de ação. Estas obtêm sua legitimidade
através de um processo legislativo que, por sua vez, se apóia no princípio da soberania do povo”.
(HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I, Rio de Janeiro:
Editora Tempo Brasileiro, 1997, 114-115)
Isso, porém, gera o paradoxo do surgimento da legitimidade a partir da legalidade. Por que se trata
de um paradoxo? Porque esses direitos dos cidadãos têm a mesma estrutura de todos os direitos, os
quais abrem ao indivíduo esferas da liberdade do arbítrio”. Quanto a isso, Jeveaux lembra o
fenômeno da auto-asserção, ou o “elogio da lei pela lei”, da lei conferir legitimidade a si própria,
espécie de auto-imunidade, de pouca ou nenhuma coerência científica – “a lei é justa pelo fato de ser
lei. A questão da justiça pressupõe a convenção (lei), mas reduz-se a justiça à questão de validade
(existência). Portanto, ainda que injusta, a lei é válida”. (JEVEAUX, Geovany Cardoso. A simbologia
da imparcialidade do juiz. Rio: Forense, 1999, p. 23)
107
HABERMAS, Jürgen. Op. Cit., p. 117.
45
como reflexos de uma ordem jurídica, a qual transmite a indivíduos o poder
de vontade incorporada objetivamente nela: Direito é um poder de vontade
ou dominação da vontade conferido pela ordem jurídica.
108
É idêntica a abordagem crítica que Habermas dedica ao positivismo de Kelsen, uma
vez que
desengata o conceito do direito do da moral, e inclusive do da pessoa
natural, abrindo o caminho da dogmática do direito para uma interpretação
puramente funcionalista dos direitos subjetivos que, através de decisões
metódicas, se livra de todas considerações normativas.
109
Com o fim da Segunda Grande Guerra, surgiu a necessidade de ser repensada a
legitimação do direito, que o positivismo deixou de se mostrar suficiente para
atender aos anseios críticos da sociedade, que passou, cada vez mais, a buscar a
compreensão normativa para fundamentação da ordem jurídica. Para Habermas,
isso adveio do desencadeamento de reações espontâneas contra o destronamento
e solapamento moral do direito
110
.
Retomou-se, então, a histórica busca de consenso
111
a respeito da maneira pela
qual se pode legitimar
112
a ação do Estado junto à esfera dos particulares, pelo uso
do ordenamento jurídico, inclusive no âmbito da jurisdição.
Mauro Cappelletti, aliás, é bastante enfático quando discorre sobre a encruzilhada
que se apresentou no caminho do processo civil, excessivamente oneroso e
delongado, incapaz de atender aos anseios da moderna noção de acesso à justiça.
Para ele, o litígio judicial deixou de ser atraente aos olhos do público exatamente
porque a jurisdição tornou-se o resultado de um emaranhado de procedimentos
complicados e de excessivo formalismo, realizada em “ambientes que intimidam,
108
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I, Rio de Janeiro:
Editora Tempo Brasileiro, 1997, p. 117.
109
Ibidem, p. 118.
110
Ibidem, p. 119.
111
Geovany Cardoso Jeveaux fala que “o Poder é um recurso gerado pela formação de uma vontade
comum, isto é, pela capacidade dos membros de uma comunidade política de concordarem com um
curso comum de ação. Donde a necessária ligação com a idéia de consenso, que nada mais é que a
retórica da legitimação do poder estatal. E o consenso é obtido na medida em que o discurso
ideológico da integração social, em torno de um projeto político em implantação (ato de origem), é
persuasivo o suficiente para obter a adesão da maioria”. (JEVEAUX, Geovany Cardoso. A
simbologia da imparcialidade do juiz. Rio: Forense, 1999, p. 17)
46
como o dos tribunais, onde juízes e advogados, figuras tidas como opressoras,
fazem com que o litigante se sinta perdido, um prisioneiro num mundo estranho”
113
.
Buscando demonstrar que é possível reverter o desprestígio da jurisdição em certas
camadas sociais, sob a perspectiva intrínseca da legitimação popular, Cappelletti
parte da premissa de serem de diferentes tipos os litígios e diferentes as
repercussões sociais que deles advém para a sociedade, para sugerir a existência
de cortes e procedimentos especiais para causas peculiares.
114
. É nesse contexto
que cita os interessantíssimos casos do denominado “modelo de Stuttgart”, o qual
adota procedimento de extrema oralidade e informalidade, cada vez mais difundido
no processo civil germânico
115
, e dos tribunais de pequenas causas da Austrália
116
.
Enfim, desde que Deus foi substituído pela razão no campo da justificação da
estrutura político-organizacional da sociedade
117
, a ordem jurídica tem padecido da
falta de consenso a respeito dos seus fundamentos, especialmente por ser recusada
a existência de direitos naturais absolutamente intangíveis, sujeitos que são à
112
Para Geovany Cardoso Jeveaux, Quando a decisão conduz à convergência de valores entre
quem a emite e quem a recebe, fala-se em legitimidade”. (JEVEAUX, Geovany Cardoso. A
simbologia da imparcialidade do juiz. Rio: Forense, 1999, p. 27)
113
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris
Editor, 1988, p. 24.
114
Os litígios diferem em natureza e em complexidade, em montante financeiro envolvido, em
quantidade de pessoas potencialmente atingidas, em forma de resolução e, finalmente, em tempo
necessário a ser despendido para a sua composição. (Ibidem, p. 71-72)
115
As partes dialogam sobre os fatos e o direito com o juiz, de forma concentrada, produzindo de uma
só assentada todas as provas e as alegações, e discutindo o teor da decisão proposta, podendo optar
por conciliação a qualquer tempo. Disso resulta uma satisfatória compreensão e assimilação do
conteúdo da sentença e um baixíssimo índice de recursos, sendo que três quartos das causas
terminam no espaço de apenas seis meses. (Ibidem, p. 78)
116
O juiz é mais ativo e menos formal e senta-se junto com os litigantes em torno de uma mesa de
café, pondo-se a conversar; quando o juiz sente necessário confirmar alguma versão dos fatos, ele
próprio telefona a alguém que possa servir de testemunha. (Ibidem, p. 103)
117
Friedrich Müller menciona que “Desde que Deus se retirou da vida política (e se despediu da
história), seu cargo na estrutura funcional não foi declarado vago. Assim como outrora ELE, o povo foi
desde então usado da boca para fora e conduzido aos campos de batalha por todos os interessados
no poder ou no poder-violência, sem que antes lhe tivessem perguntado. A diferença reside no fato
de que o povo poderia perfeitamente ter sido consultado. Mas nesse caso os donos do poder
deveriam ter se contentado com a população real, e nesse caso resultariam sempre desejos distintos,
o caráter heteróclito das necessidades, a contrariedade dos interesses, a incompatibilidade das
intenções, em suma, a situação real. Em vez disso, e provavelmente também por causa disso, a
despedida de Deus não foi aceita sem ambigüidades. E o dono do poder (juntamente com os seus
adversários que queriam tornar-se donos do poder) criou o povo conforme a sua imagem; conforme
as suas necessidades e o seu gosto ele o criou”.(MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o poder
constituinte do povo. São Paulo: RT, 2004, p.21-22)
47
permanente mutação e relativização frente a outros direitos fundamentais do
homem.
Bobbio fala, a propósito disso, que três são os possíveis modos de serem fundados
os valores supremos da humanidade
118
: (a) a descoberta deles a partir de um dado
objetivo constante, tal como se passa com a natureza humana; (b) a sua
identificação como verdades evidentes em si mesmas; e (c) a generalidade de sua
aceitação, concluindo que apenas o último alcança certa plausibilidade normativa.
Afinal, não se pode considerar a natureza humana um dado objetivo invariável e,
além disso, o se lhe pode conhecer a essência a ponto de serem nela
identificados valores universais (a), sendo ademais recusada a possibilidade de que
verdades evidentes associadas à natureza humana possam resistir ao fluxo da
histórica e à modificação das suas bases axiológicas (b).
O último dos meios de justificação de valores universais critério advindo do
consenso (c) – e apenas ele, sustenta Bobbio, pode ser factualmente comprovado e,
portanto, acatado, de tal modo que um valor (jurídico) “tanto mais será fundado
quanto mais for aceito”
119
.
Para que haja a possibilidade de consenso, seria necessário que os indivíduos
juridicamente afetados no plano normativo sejam convocados a participar do
processo e possam eventualmente manifestar sua aceitação. O papel da
publicidade, na condição de garantia do processo, é exatamente permitir que os atos
nele realizados sejam compartilhados com a opinião pública, além das pessoas que
participam diretamente da relação processual, demonstrando a legitimidade dessas
ações e angariando a aprovação sob a forma de respeito e acatamento ao império
da Justiça.
Basta que se oculte da comunidade o conhecimento dos assuntos processuais, ou
que a sua revelação seja restrita unicamente aos interessados diretos da causa,
para que se impeça qualquer aprovação popular a respeito do modo de realização
da jurisdição, perdendo-se a fundamentação democrática dos julgamentos estatais.
118
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 16. ed. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1992, p. 26-27.
119
Ibidem, p. 27.
48
O antídoto para esse mal indesejável se revela na publicidade externa dos
procedimentos e dos julgamentos judiciários, permitindo a partilha pelos detentores
da soberania (o povo) daquela parcela de poder objeto de delegação ao Estado.
Ausente a publicidade, ou mitigada a sua aplicação, a jurisdição deixa de ser
atividade pública fundada, ou legitimada, nos ideais democráticos de cidadania,
tornando-se instrumento de arbítrio e de falsas promessas de justiça. Presente a
publicidade, porém, nos moldes constitucionalmente desejados, a revelar inclusive o
respeito dos atos do processo às demais garantias fundamentais do Estado de
Direito, sesempre possível lograr o desejável consenso público a respeito dos
meios de realização da justiça.
Tal é a posição que se adota atualmente a respeito da fundamentação da ordem
jurídica e, conseqüentemente, a respeito da legitimação dos julgamentos do Poder
Judiciário. Atentos, com efeito, à nova ordem social marcada pela generalização das
técnicas industriais (e sua influência nos modos de reflexão filosófica) e pela
intersubjetividade comunicacional, os pensadores da Escola de Frankfurt deram
enorme contribuição à pós-modernidade, reformulando os modos de legitimação do
Direito.
Karl Otto Apel defendeu que a comunicação intersubjetiva e de feição técnica
presente nos mínimos aspectos da vida cotidiana acabaram por fazer da
comunicação lingüística uma norma racional fundamental
120
, tornando lugar comum
a assertiva de que a comunicação é pressuposto de validade de qualquer
compreensão. Habermas, discípulo de Apel, partiu dos fundamentos dessa teoria
para desenvolver a concepção da sua denominada “prática comunicacional”,
entendida como intercompreensão dos fundamentos dos bens jurídicos, a significar
“participação dos parceiros, sua inevitável participação no processo de
compreensão, o entendimento entre sujeitos capazes de falar e de agir”
121
. Aqui o
que de prevalecer é a intersubjetividade alcançada pela linguagem, de que se
pode cogitar caso os interlocutores possam dispor da possibilidade de participar do
120
GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. São Paulo: Martins Fontes,
2002, p. 300.
121
Ibidem, p. 304-305.
49
mecanismo de legitimação do processo pela linguagem, vale dizer, caso sejam
inteirados dos acontecimentos de seus interesses, pela revelação pública dos seus
contornos intencionais e possam ser ouvidos para que suas opiniões sejam tomadas
em conta.
Tendo a Escola de Frankfurt dado início na filosofia ao que se chamou de “teoria da
ação”, filosofia da práxis, Habermas rompeu com os paradigmas do passado para
sustentar que apenas pela via da comunicação intersubjetiva é possível conhecer as
intenções normativas do direito e validá-las:
a exigência deontológica associada a mandamentos e normas não se
identifica com uma exigência assertória de validade. Kant tem razão contra
Hegel: os enunciados éticos e jurídicos, diferentemente dos enunciados
científicos, necessitam de uma legitimação, que pode ser assumida pela via
processual da discussão.
122
Ao criar uma ética cognitiva dos direitos, Habermas indica, ao mesmo tempo, a
deficiência das convenções positivistas e a fraqueza intrínseca das teorias clássicas
do jusnaturalismo; sustentando que a razão o pode ficar segura de si mesma,
conclui que o conceito de discursividade (verdade, sinceridade, justiça), ou de
comunicação, torna-se exigência de legitimação dos enunciados jurídicos em sua
normatividade e, portanto, o seu núcleo de racionalidade prática
123
.
Segundo o autor, nos tempos atuais marcados pelo enorme tecnicismo das condutas
humanas e pela dinâmica dos mecanismos de comunicação de massa,
sem a retaguarda de cosmovisões metafísicas ou religiosas, imunes à
crítica, as orientações práticas podem ser obtidas, em última instância,
através de argumentações, isto é, através de formas de reflexão do próprio
agir comunicativo...Numa sociedade pluralista, as normas de convivência
tornam-se reflexivas e exigem orientações de valores universais; ao mesmo
tempo cresce a necessidade de legitimação que só pode ser satisfeita
através de discursos morais, voltados ao regulamento imparcial de conflitos
de ação. É então que surge a consciência lógica de questões éticas e
morais, embutida nas estruturas de agir orientado pelo entendimento.
124
122
GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. São Paulo: Martins Fontes,
2002, p. 305.
123
Ibidem, p. 306-307.
124
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I, Rio de Janeiro:
Editora Tempo Brasileiro, 1997, p. 131-132.
50
Está muito claro que a sociedade não mais se pode colocar impávida diante das
ações estatais, percebendo-as como condutas sacrossantas ou naturalmente
inevitáveis, sendo antes preciso compreendê-las e legitimá-las. Isso é possível
pelos mecanismos
125
de intercompreensão ao gosto do discurso crítico e reflexivo, a
que somente se pode chegar, no plano prático e no funcional, assegurando-se o
acesso popular aos atos do poder público, tarefa primordialmente afeta à
publicidade. Isso se deve ao fato de que o fundamento dos institutos do direito
não reside no ordenamento da natureza, nem na razão como marca da
natureza humana, nem na postulação de uma ciência dedutiva e causal da
realidade social. Pertence à consensualidade das máximas da ação
intersubjetiva – uma norma só tem alguma chance de ser seguida de efeitos
se é ligada à disposição de agir de todos os elementos concernidos.
126
Enorme, portanto, é a contribuição da garantia da publicidade dos atos do processo
e dos julgamentos do Poder Judiciário para o aperfeiçoamento das instituições de
direito, em particular para a legitimação da jurisdição, que apenas por seu
intermédio é possível desencadear a participação intersubjetiva e discursiva dos
elementos populares associados à respectiva atividade pública. Isso naturalmente
sem que se perca de vista o conjunto formado pelas demais garantias
constitucionais do processo, indispensáveis à ordem jurisdicional justa e
democrática
127
.
Habermas, fazendo referência a Raws, sustenta a respeito da sua teoria de justiça
que
na verdade o existe visão geral e abrangente que possa fornecer um
fundamento publicamente aceitável para a justiça. Toda a teoria da justiça
125
Jeveaux fala da “legitimação por procedimentos, vale dizer, mecanismos de produção organizada
de decisões. O direito é a estrutura dos sistemas sociais, que assegura as suas opções decisórias. E
aqueles processos legais não sistemas sociais sincronizados com os processos de decisão. A
legitimação é, pois, a institucionalização do reconhecimento das decisões como obrigatórias, tanto
pelo lado dos participantes, como dos não participantes do procedimento”. (JEVEAUX, Geovany
Cardoso. A simbologia da imparcialidade do juiz. Rio: Forense, 1999, pp. 31, 33)
126
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I, Rio de Janeiro:
Editora Tempo Brasileiro, 1997, p. 308.
127
Cappelletti e Garth advertem que jamais podem ser abandonadas as garantias fundamentais do
processo civil “procedimentos altamente técnicos foram moldados através de muitos séculos de
esforços para prevenir abitrariedades e injustiças [...] Não se pode permitir que as pressões sobre o
sistema judiciário venham a subverter os fundamentos de um procedimento justo”. (CAPPELLETTI,
Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1988, p. 163-
164)
51
deve levar em conta o fato do pluralismo e, portanto, possuir uma dimensão
concreta na qual a prática prevalece sobre a teoria. Em outras palavras, o
que é reconhecido justo deve obter a sustentação de um consenso por
coincidência parcial, o único que de fato caracteriza a justiça como
eqüidade...Portanto, os fios condutores de uma teoria de direito, bem como
as regras publicamente aceitas que o estruturam e lhe orientam a prática,
pertencem ao tecido social e ao conhecimento público do senso comum a
livre razão pública. A unidade social, assim situada na origem de sua
concepção de justiça, implica sobretudo que a vantagem e o bem de cada
qual seja publicamente aceito como base de acordo em confrontos
intersubjetivos, e que os princípios da justiça sejam objeto de uma
publicidade que os ponha ao alcance de todos os cidadãos.
128
Esse é, portanto, o único meio para que, na visão de Rawls, explicitada no discurso
de Habermas, haja justificação ou legitimação para as estruturas da ordem social,
política e jurídica
129
. Desta forma, consoante Habermas, desde que o direito foi
aliviado dos seus fundamentos sagrados, passou a receber pressão da sociedade,
aqui compreendida como totalidade de ordens legítimas que se concentra cada vez
mais no sistema jurídico. As ordens modernas do direito, portanto, podem ser
legitimadas a partir de fontes que não o coloquem em contradição com as idéias de
justiça e os ideais de vida pós-tradicionais, que se tornaram decisivos para a cultura
e a conduta de vida
130
. Argumentos em prol da legitimidade do direito devem ser,
então, compatíveis com os princípios morais de justiça e da solidariedade universal,
bem como com os princípios éticos de uma conduta de vida auto-responsável,
projetada conscientemente, tanto de indivíduos, como de coletividades
131
.
Na realidade, toda a teoria de Habermas, a propósito de uma ordem jurídica
democrática, assenta-se na premissa de autocompreensão, a que se chega
racionalizando a tensão entre as pretensões normativas das ordens democrático-
constitucionais e a facticidade de seu contexto social, a isso chamando de tensão
entre facticidade e validade. Em outras palavras, o direito não é bastante apenas de
per si, sendo, antes, necessário acoplar aos fundamentos normativos de validade
contidos na legitimidade presumida do processo legislativo sufragado pela soberania
popular – os elementos concretos da vida social, tal como se apresentam nas
expectativas populares cotidianas. Chega-se a isso convocando as pessoas
128
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I, Rio de Janeiro:
Editora Tempo Brasileiro, 1997, p. 316.
129
Ibidem, p. 319.
130
Ibidem, p. 133.
131
Ibidem, p. 133.
52
(potencialmente atingidas pelas ações estatais previstas na norma) à manifestação
de consenso e à aprovação para que o direito ganhe a sua necessária legitimidade.
A legitimidade do direito apóia-se, em última instância, num arranjo comunicativo:
enquanto participantes de discursos racionais, os parceiros do direito devem poder
examinar se uma norma controvertida encontra ou pode encontrar o assentimento
de todos os possíveis atingidos. Por conseguinte, o almejado nexo interno entre
soberania popular e direitos humanos se estabelece se o sistema dos direitos
apresenta as condições exatas sob as quais as formas de comunicação podem ser
institucionalizadas juridicamente.
A co-originalidade da autonomia privada e pública somente se realiza quando se
consegue decifrar o modelo de autolegislação através da teoria do discurso, que
ensina serem os destinatários simultaneamente os autores de seus direitos
132
.
A garantia processual da publicidade, portanto, como forma de dar transparência e
conhecimento geral das coisas feitas pelo Estado no plano normativo, percebida
numa perspectiva jurisdicional concreta individual ou coletiva, é o modo excelente,
na visão atual da teoria do direito, de se obter a legitimidade das suas instituições.
Hoje em dia, na perspectiva de Habermas, apresenta-se de forma muito clara,
particularmente no plano da jurisdição (o processo judicial é tido como ponto de fuga
para a análise global do sistema jurídico) a necessidade de permissão jurídica para o
emprego da força legítima pelo Estado
133
. O autor identifica a tensão entre
facticidade e validade no plano da jurisdição estatal como tensão entre o princípio da
segurança jurídica e a pretensão de tomar decisões corretas; a assimilação
recíproca dessas tensões é a única forma de se obter a desejável racionalidade da
jurisdição
134
.
As decisões judiciais devem ser fundamentadas racionalmente, para que possam
ser aceitas e acatadas no plano externo. Isso é ponto pacífico. A legitimação que se
132
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I, Rio de Janeiro:
Editora Tempo Brasileiro, 1997, p. 138-139.
133
Ibidem, p. 244.
53
obtém pelo positivismo jurídico, através da legalidade, não satisfaz a reflexão
crítica da sociedade pluralista, que não mais admite a máxima segundo a qual as
regras são válidas porque podem ser proclamadas conforme o modelo fixado pelas
instituições competentes. É que, afinal, a concepção de direito positivo faz com que
a garantia da segurança jurídica eclipse a garantia da correção, vale dizer, deixa-se
um largo espaço, nos casos de imprecisão normativa incapaz de regular os casos
concretos, para que o juiz atue no processo segundo o seu próprio arbítrio,
efetuando escolhas de preferências que nem sempre são juridicamente sustentáveis
e valendo-se de padrões morais tampouco autorizados pelo direito
135
. Com isso,
limita-se sensivelmente a racionalidade das decisões judiciais, retirando a validade
das escolhas judiciais que, é cediço, nem sempre se sustentam em razões
confessáveis
136
.
É então flagrante a necessidade de que as decisões judiciais sejam moralmente
compartilhadas pelos seus destinatários específicos ou potenciais, para que possam
ser antevistos os critérios deontológicos adotados no caso concreto, ainda que à luz
fria da lei e detectada a racionalidade decisória, legitimando cotidianamente a
jurisdição e fazendo-a transparente aos olhos dos jurisdicionados. A isso se chega,
ou se pode chegar, enfim, de modo ótimo, pela via da publicidade dos atos e dos
julgamentos do Poder Judiciário, fazendo com que a tal garantia do processo civil
ganhe foro de premissa lógica e racional do sistema estatal de distribuição de
justiça, dando-lhe enfim a imprescindível legitimação social.
134
Ibidem, p. 245.
135
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I, Rio de Janeiro:
Editora Tempo Brasileiro, 1997, p. 251.
136
Buscando eliminar as imprecisões racionais dos critérios adotados no sistema positivista, Dworkin
elabora a sua teoria dos direitos, elegendo uma norma fundamental ao estilo de Kant e de Rawls, que
se traduz no direito natural dos homens esboçarem projetos e fazerem justiça. Essa teoria apóia-se
na premissa de que a jurisprudência contempla pontos de vista morais relevantes que foram
incorporados pelo positivismo ao longo da história (aliás, mesmo o processo democrático de
legislação deve contemplar argumentos morais, segundo Alexy). Dworkin desemboca na necessidade
de que as decisões consistentes sejam ligadas a regras ou princípios, que resultam da apropriação
crítica da história institucional do direito, e que acabam por compor os seus argumentos de princípios,
imprescindíveis para a justificação externa das decisões judiciais. Enfim, com base em Dworkin,
recusa-se a neutralidade moral do direito, tendo em vista que o discurso normativo incorpora, ainda
que de modo sutil, princípios morais e finalidades políticas que são injetados na linguagem dos
códigos jurídicos. Daí porque o positivismo jamais conseguiu se desvencilhar da busca de validade de
direito legítimo, levando Habermas a sustentar que a justificação externa das decisões judiciais
transparece em decorrência “do direito vigente já incorporar conteúdos teleológicos e princípios
morais, assimilando os argumentos da decisão do legislador político”. (Ibidem, p.251)
54
3.1 O LIBERALISMO E A DEMOCRACIA: DIFERENTES CONCEPÇÕES DO
DIREITO, DA JURISDIÇÃO E SUA INFLUÊNCIA NA NOÇÃO DE PUBLICIDADE
No início da idade moderna, tempo em que o liberalismo surgiu para se opor ao
absolutismo, quando ruíam as instituições políticas européias, foi no direito que se
encontrou a única resposta possível diante da falta de consenso moral dos
iluministas. O positivismo então, inspirado pelo imperativo categórico de Kant,
passou a adotar fórmulas escritas de comportamento negativo, do tipo “a todos cabe
o dever de não causar prejuízo a outrem”, espécie de moral universal, gerando com
isso a impressão de que o direito pudesse pretender-se avesso à história mesmo
evoluindo, com era de se lhe admitir, supunha-se mantida a sua essência
137
.
Foi sob o influxo dessas idéias que adveio na França o Código de Napoleão, em
larga medida adotado como modelo de inspiração (ou simples cópia) de inúmeros
diplomas de Direito Civil, inclusive o brasileiro, marcando uma longa fase de
compreensão individualista do fenômeno jurídico. O grande defeito dessa dimensão
liberal do direito advém da falta de qualquer preocupação com a sua legitimação
popular. Friedrich Müller diz, a propósito disso, que toda a ordem jurídica liberal se
sustentava em falsas promessas de liberdade e de igualdade. Tomando-se em
consideração, porém, que a realidade dos sistemas jurídico-constitucionais define-se
pela sua prática, e não pelo conteúdo formal dos diplomas que os instituem, não
tardou para que se notasse que as tais promessas de igualdade e de liberdade
eram eficazes para os membros das minorias privilegiadas, a ponto de serem
individualmente desvalorizados os que não pudessem, de fato, usufruir dos direitos
formais reconhecidos, fracos que se mostravam na nobre missão de subirem na
vida
138
.
Bem ou mal, porém, essa duradoura fase de concepção liberal do direito deixou
profundas cicatrizes no pensamento jurídico e, como não poderia deixar de ser, isso
acabou por influenciar a própria noção historicamente atribuída à garantia da
publicidade do processo e da sentença. É dessa época do pensamento jurídico que
137
SILVA, Ovídio Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. São Paulo: RT,
1996, p.192-193.
55
advém a noção de publicidade tão somente como exigência de serem cientificados
os litigantes judiciais dos acontecimentos do processo capazes de prejudicar os seus
interesses, dela fazendo um típico instrumento (garantia de segundo grau) de
realização do contraditório publicidade interna. No mais, particularmente no que
interessa à revelação pública dos atos processuais, para eventual controle e censura
popular das atividades judiciais e mesmo para legitimação das ações estatais
realizadas no âmbito jurisdicional publicidade externa - supunha-se que a
exigência da legalidade bem se prestava a suprir as necessidades correlatas.
Ocorre, todavia, que a realidade do mundo contemporâneo tornou explícita a utopia
da neutralidade da lei, em razão da pluralidade de interesses políticos e morais
envolvidos nas situações concretas da vida a reclamar o fenômeno da sua
incidência. A par disso, não se pode deixar de perceber a contribuição dada pela
globalização - e as suas repercussões na criação de uma cultura de massa apátrida
na evolução dos padrões de comportamento social, afetando profundamente as
noções atuais de bem comum. Mudou o conceito da lei
139
, portanto, que passou a
representar a expressão dos interesses políticos vitoriosos no jogo de forças
partidárias, retratando uma vontade que não se harmoniza necessariamente com os
interesses gerais da coletividade, mas com a vontade da força política
legislativamente dominante.
A legitimação pública da jurisdição, portanto, não se obtém pela simples adequação
do método jurisdicional à legalidade estrita, mas, sobretudo, pela revelação
inequívoca das boas razões de julgamento e da lisura dos atos processuais a toda e
qualquer pessoa que por eles possa se interessar. O processo justo, na sua atual
acepção, é aquele capaz de se harmonizar com os bens da democracia, ocupando-
se da sua transparência e da visibilidade do seu conteúdo, nada tendo a esconder e
não se fazendo passar por instrumento de opressão. Até mesmo porque, conforme
lembra Calmon de Passos
140
,
138
MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o poder constituinte do povo. São Paulo: RT, 2004, p.
27-28.
139
SILVA, Ovídio Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. São Paulo: RT,
1996, p. 203-204.
56
...também a função jurisdicional se coloca sob o império da lei e sujeita-se à
deslegitimação pelos agentes das demais funções básicas do Estado, como
mandatários do povo soberano, e pelo próprio povo, diretamente...Não se
eximiu nenhum agente da função política da necessidade de sua prévia e
adequada legitimação para desempenhá-la, nem do imperativo de ser
responsabilizável todo e qualquer agente público, dada a incompatibilidade,
num sistema democrático, de outorgar-se poder sem se fazer possível a
responsabilização do outorgado.
Enfim, passado o tempo do liberalismo e sob a forte influência dos ideais
democráticos inerentes à noção de Estado de Direito, não mais se pode conceber a
garantia constitucional da publicidade como um arremedo de revelação individual
dos atos do processo, que somente aos litigantes possa interessar a eles também
se revela eficaz a garantia da publicidade na condição de direito fundamental ao
exercício pleno do contraditório, estampando internamente e sem restrição o
conteúdo dos acontecimentos processuais para eficaz resguardo de seus interesses.
É igualmente nobre, porém, a missão reservada para a publicidade externa, única
capaz de demonstrar aos quatro cantos do mundo a lisura dos procedimentos
estatais afetos à jurisdição, e submetê-los à atividade censória permanente e
democrática
141
.
Ainda que sem prejuízo direto para as partes, a falta de publicidade externa em dado
processo faz da jurisdição um mero mecanismo privado de composição de conflito,
afastando por completo do controle popular a atividade estatal. Numa perspectiva
democrática da atividade jurisdicional, é absolutamente impensável que se possa
dar respaldo à semelhante situação hipotética, uma vez que se estaria a retroceder
ao tempo dos obscuros porões das ditaduras e da feição absolutista do exercício
jurisdicional.
140
CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro:
Forense, 1999, p. 90-91.
141
Jeveaux discorre sobre a feição necessariamente dúplice da publicidade (interna e externa): O
que realmente importa é que, no âmbito do processo, os participantes acreditem que possuam as
mesmas oportunidades para influenciar o convencimento do magistrado, e que este não ofereça
motivos ou desconfiança a qual lado vai pender e que, ainda, mesmo com resultado adverso, ter-se-
ão novas e novas oportunidades por meio dos recursos. Para os não participantes a crença também
vale, ante a expectativa de que, se vierem a estar na mesma situação, terão as mesmas chances.
que isso não vale exclusivamente para dentro do processo, mas também, e principalmente, para que
todos da comunidade acreditem que todo aquele aparato está realmente ali, à sua disposição,
somado a outros tantos que, por assim dizer, estabilizam as suas expectativas e forcejam a ilusão de
que, idealmente considerados, virão em seu socorro caso necessário”. (JEVEAUX, Geovany
Cardoso. A simbologia da imparcialidade do juiz. Rio: Forense, 1999, p. 83-84)
57
Calmon de Passos é preciso ao demonstrar o seu repúdio à quebra das garantias
democráticas do processo, dizendo da importância do Direito e particularmente da
magistratura para a democracia, de modo a imunizar
a sociedade contra a tentação diabólica de transformarem-se os produtores
do direito em novos tiranos...A independência de que precisam desfrutar os
juízes em face dos agentes das demais funções do Estado é diretamente
proporcional à sua responsabilidade sócio-política, vale dizer, a sua
submissão a controles sociais institucionalizados, capazes de coibir-lhes os
abusos e os desvios deslegitimadores.
142
142
CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro:
Forense, 1999, p. 106.
58
3.2 A PUBLICIDADE NO SISTEMA DA ORALIDADE
Desde o início do século XX, particularmente no continente europeu, tem havido um
grande esforço de aperfeiçoamento dos procedimentos judiciários; sob a designação
“oralidade”, ocupa-se essencialmente do aprimoramento de institutos tais como “a
livre apreciação da prova“, a “concentração do procedimento” e o “contato imediato
entre juízes, partes e testemunhas”, bem como a utilização dos “juízos de instrução
para investigar a verdade e auxiliar a colocar as partes em pé de igualdade”
143
.
No Brasil, experimentou-se primitivamente o mesmo expediente, tanto assim que o
CPC de 1939
144
adotava o processo oral
145
e, portanto, por exigência legal, previa-
se que todo o debate empreendido pelas partes fosse travado em audiência
146
.
Decorria daí a necessidade não apenas de que na audiência se desse a
demonstração dos fatos controversos como, sobretudo, ocorresse a aplicação do
direito ao caso concreto. À luz daquele sistema primitivo, Liebman se posicionava
dizendo que “a realização da audiência é uma garantia essencial e imprescindível
para o conhecimento suficiente da causa
147
”; e mais, que seria impossível no regime
do Código de Processo Civil de 1939
148
, ao juiz, sem a prévia realização da
audiência, decidir o mérito da causa
149
.
Sabe-se, contudo, que a reforma do Código de Processo Civil ocorrida em 1973
abrandou a aplicação do instituto da oralidade
150
. Desse modo, não mais é possível
143
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris
Editor, 1988, p. 76.
144
LIEBMAN, Enrico Túlio. Estudos sobre o processo civil brasileiro. São Paulo: José Bushatsky
Editor, 1976, p. 81.
145
Conforme Liebman, “a oralidade foi concebida como o principal instrumento para garantir por sua
vez todos os outros intuitos visados pelo legislador: a concentração as atividades instrutórias na
audiência, o contacto imediato do juiz com os meios de prova, a livre convicção do juiz na apreciação
das provas, a direção do processo nas mãos do órgão jurisdicional e, acima de tudo, a concepção do
processo como instrumento público de administração da justiça”. (Ibidem, p. 81,82)
146
Ibidem, p. 82.
147
Ibidem, p. 83.
148
Ibidem, p. 84.
149
Liebman é textual ao dizer que “a lide não pode ser julgada sem a prévia realização da audiência”.
(Ibidem, p.84)
150
Dinamarco fala de oralidade bastante atenuada, reduzindo-se a sua prática às poucas audiências
que o sistema inclui, autorizando-se a plena recorribilidade das decisões interlocutórias em primeiro
grau de jurisdição, mas assegurando-se parcialmente a identidade física do juiz que houver dado
início à instrução oral da causa. (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual
civil. vol. I. 2.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p.184)
59
defender que o art. 444 do Código vigente, que reproduz o teor do art. 263 do CPC
de 1939 e que trata da publicidade da audiência, esteja a contemplar de modo
satisfatório a exigência constitucional da publicidade dos atos do processo. Afinal de
contas, a partir de 1973 não mais se admite o acompanhamento público de uma
considerável gama de atos processuais, os quais são em sua grande maioria
produzidos por arrazoados forenses, fora do ambiente da audiência, sem os signos
da oralidade e da concentração
151
.
Veja-se, a propósito, que Buzaid foi muito claro ao discorrer, na exposição de
motivos do CPC de 1973, sobre o abandono do princípio da oralidade nos moldes
adotados pelo ordenamento processual anteriormente vigente
152
. No Brasil, portanto,
não é propriamente através da audiência que se realiza a publicidade do processo,
ao menos não nos casos vários, e tantos, em que a oralidade restou extirpada do
procedimento (excetuam-se desse contexto, v.g, o rito sumário e o procedimento
que rege os feitos perante os Juizados Especiais, sob a égide da Lei 9.099/95)
153
.
151
Comoglio aduz que A oralidade não é um valor absoluto e dominante, mas se realiza em medida
atenuada, no âmbito de um sistema complessivamente misto, que prescreve e mantém a forma
escrita em muitos atos do processo” (Tradução nossa). A fim de atribuir credibilidade, segue o
original, “L’oralità non è um valore assoluto e dominante, ma si realizza in misura attenuata,
nell’ambito di um sistema complessivamente misto, che prescrive e mantiene la forma scritta per molti
atti del processo”. (COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie costituzionali e “giusto processo” (Modeli a
confronto). Revista de Processo, São Paulo:RT, n. 90, ano 23, abril-jun. 1998, p.144)
152
Buzaid, na Exposição de Motivos do CPC de 1973, diz que a extensão territorial do país, as
promoções dos magistrados de entrância para entrância, o surto do progresso que deu lugar à
formação de um grande parque industrial e o aumento da densidade demográfica, vieram criar
considerável embaraço à aplicação dos princípios da oralidade e da identidade física do juiz,
consagrado em termo rígidos no sistema do Código [...] Não se duvidava, pois, da excelência da
oralidade, mas se apontavam os males de uma aplicação irrestrita e incondicional à realidade
brasileira [...] O projeto manteve, quanto ao processo oral, o sistema vigente, mitigando-lhe o rigor, a
fim de atender às peculiaridades da extensão territorial do país. O ideal seria atingir a oralidade em
toda a sua pureza. Os elementos que a caracterizam são: a) a identidade da pessoa física do juiz, de
modo que este dirija o processo desde o início até o julgamento; b) a concentração, isto é, que em
uma ou em poucas audiências próximas se realize a produção das provas; c) a irrecorribilidade das
decisões interlocutórias, evitando a cisão do processo ou a sua interrupção contínua, mediante
recursos que devolvem ao tribunal o julgamento da decisão impugnada. Falando do processo oral em
sua pureza, cumpre esclarecer que se trata de um tipo ideal resultante da experiência legislativa de
vários povos e condensado pela doutrina em alguns princípios [...] Ocorre, porém, que o projeto, por
amor aos princípios, não deve sacrificar as condições próprias da realidade nacional. Atendendo a
essas ponderações, julgamos de bom aviso limitar o sistema de processo oral, não só ao que toca ao
princípio da identidade da pessoa física do juiz, como também quanto à irrecorribilidade das decisões
interlocutórias”.
153
Para Barbosa Moreira, O processo civil brasileiro não é um processo essencialmente oral, no
sentido clássico da expressão. Salvo no procedimento sumaríssimo (CPC, art. 278) e no dos
Juizados Especiais de Pequenas Causas (Lei 7.244, de 7.244, de 7-11-1984, art. 31), onde ao réu
é lícito defender-se oralmente, toda a fase postulatória em que as partes expõem suas pretensões
ao juiz processa-se por escrito (petição inicial, contestação, exceções, reconvenção). Pode
acontecer que nem sequer se realize uma audiência: cabe ao órgão judicial, em vários casos, proferir
60
que se buscar, então, nova justificativa para a publicidade, particularmente no
que interessa à sua visibilidade externa para, com isso, permitir que as pessoas
interessadas no acompanhamento dos casos forenses possam se inteirar dos
episódios do feito, de pouca valia se revelando o enunciado do art. 444 do CPC em
vigor.
Para as muitas situações, com efeito, em que não se adota a realização concentrada
dos atos em audiência (a forma se exterioriza por meio de documentos escritos e
protocolados nos autos, sendo a sentença proferida nos gabinetes, à distância das
partes e do público), é necessário que seja franqueado o acesso dos interessados
aos autos, para manuseio e obtenção de certidões, uma vez patenteada a mudança
de rota do processo civil a partir de 1973
154
.
Nessa medida, então, não mais se pode usar a regra do art. 444 do CPC para que
seja legitimado o caráter público do processo, dada a sua limitada aplicação no
âmbito do processo civil, sendo, antes, preciso, para os inúmeros casos em que se
dispensa a realização da audiência (ou dela se ocupa apenas para a prática de atos
instrutórios, sem espaço para as alegações orais das partes e tampouco para
prolação da decisão final), que a publicidade seja efetivada por meio de outros
mecanismos capazes de permitir o maior acesso do público aos atos forenses.
Mostra-se fundamental a mudança da prática usual dos cartórios judiciários, os
quais, por mazelas culturais do passado que pouco condizem com os ideais
democráticos da modernidade, têm por hábito recusar o acesso de pessoas comuns,
diversas das partes
155
, aos autos para que possam se inteirar do andamento de
feitos, muito menos se dispondo a permitir a manipulação dos elementos materiais
correlatos
156
.
sentença sem realizá-la, inclusive para julgar o mérito da causa: assim, por exemplo, quando o for
necessária a colheita de provas a serem produzidas em audiência, porque a controvérsia respeita
unicamente a questões de direito ou comporta deslinde à luz exclusiva das provas já constantes dos
autos (CPC, art. 330, I)”. (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual. 5.
série. São Paulo: Ed. Saraiva, 1994, p. 4)
154
Embora o processo civil não seja de regra propenso à realização de debates e de julgamentos em
audiência, percebe-se o seu gradual retorno às origens, em busca de uma maior efetividade, de que
é exemplo o procedimento de pequenas causas.
155
Estudantes e pesquisadores, por exemplo.
156
Couture lembra que “O expediente judicial pode ser consultado, dentro do nosso direito, pelas
partes, seus defensores e por todo aquele que tiver interesse legítimo na sua exibição” (Tradução
61
Do contrário, dar-se-á prosseguimento à falácia de sustentar que a publicidade do
processo se verifica pela possibilidade de amplo acesso das pessoas do povo aos
recintos onde se realizam as audiências, algo que foi uma realidade ao tempo de
vigência do CPC de 1939, mas que, a partir de 1973, salvo as exceções veiculadas,
não mais se aplica
157
.
Não se nega, entretanto, e ainda no campo das normas infraconstitucionais que
regem a garantia da publicidade do processo, que o art. 155 do CPC a contempla,
ao menos no plano programático. O seu parágrafo único restringe a obtenção de
certidões e o direito de consulta dos autos por qualquer que seja a pessoa, ainda
que não tenha interesse indireto no resultado da causa, apenas naqueles casos em
que se justifica a tramitação do feito em segredo de justiça. É preciso convir, todavia,
que o preceito legal aqui comentado (art. 155 do CPC) é muito pouco eloqüente ao
tratar da publicidade dos atos do processo, fazendo-o de forma lacônica e imprecisa,
sem sequer sugerir o modo de realização desse ideal político e social; a regra
adquire maior grau de concretude e especificidade apenas quando restringe a
garantia da transparência no seu parágrafo único, disso resultando a impressão de
um certo desprestígio normativo dedicado ao instituto.
A insensibilidade diante da relevância do princípio constitucional da publicidade que
se contém nos preceitos do Código de Processo Civil destinados à sua
nossa). Para ser fiel, segue o original, “el expediente judicial puede ser consultado, dentro de nuestro
derecho, por las partes, sus defensores y ‘por todo el que tuviere interés legítimo en su exhibición”.
(COUTURE, Eduardo. Fundamentos del derecho procesal civil. 4.ed. Buenos Aires: Júlio César
Faira Editor, 2002, p.158)
157
Eduardo Couture asegura que A publicidade, com a natural conseqüência de ensejar a presença
do público nas audiências judiciais, constitui o mais precioso instrumento de fiscalização popular
sobre a obra dos magistrados e defensores. Em última análise, o povo é o juiz dos juízes. A
responsabilidade pelas decisões judiciais ganha ampla dimensão caso tais decisões sejam proferidas
logo em audiência pública com a presença das partes e do povo. O método escrito que vigora na
maioria dos países hispano-americanos diminui a efetividade do princípio da publicidade. Não se
pode dizer que nosso processo seja secreto; mas o método escrito virtualmente torna impossível a
obra de fiscalização popular a que acabamos de aludir” (Tradução nossa). Para conferir credibilidade,
segue o original, “La publicidad, com su consecuencia natural de la presencia del público en las
audiencias judiciales, constituye el más precioso instrumento de fiscalización popular sobre la obra de
magistrados y defensores. En último término, el pueblo es el juez de los jueces. La responsabilidad de
las decisiones judiciales se acrecienta en términos amplísimos si tales decisiones han de ser
proferidas luego de una audiencia pública de las partes y en la propria audiencia, en presencia del
pueblo. El método escrito que rige en la mayoría de los países hispano-americanos, diminuye la
efectividad del principio de publicidad. No puede decirse que nuestro proceso sea secreto; pero el
método escrito hace virtualmente imposible la obra de fiscalización popular a que acabamos de
aludir”. (Ibidem, p. 158)
62
regulamentação (com as escusas históricas de terem sido recepcionados pela
ordem constitucional em vigor que, a toda evidência, deu muito maior ênfase à
indigitada garantia do que se costumava anteriormente fazer), decerto contribui para
que esse tema receba, na doutrina de processo civil, tratamento um tanto acanhado,
ressalvadas as valiosas contribuições advindas de uma ilustre parcela de juristas
que gradativamente têm dedicado uma maior atenção à matéria.
É preciso reconhecer, por outro lado, que as regras infraconstitucionais atualmente
vigentes as quais se dedicam à disciplina da publicidade não mais se mostram aptas
a regular com precisão essa garantia processual de tamanha relevância, devendo
ser modernizado ou o texto da lei, ou a sua interpretação e aplicação, com vistas à
preservação e à evolução do instituto.
Nesse contexto, assume especial relevo o lúcido enfoque dado ao tema por Enrique
Vescovi
158159
, que chama a atenção para a necessidade de um maior controle
158
VESCOVI, Enrique. Una forma natural de participación popular en el control de la justicia: el
proceso por audiencia publica. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel;
WATANABE, Kazuo. Participação e Processo. São Paulo: RT, 1988, p. 360-379.
159
Na visão de Enrique Vescovi, “Enfocando o tema da Justiça, resulta elementar que o reclamo pela
democracia participativa se estenda a esse ramo, dado que o Poder Judiciário, junto com o
Legislativo e o Executivo, constituem as funções essenciais de governo. Dito de outra maneira, que a
função jurisdicional também se integra ao governo, considerado em sentido amplo. E não dúvida
de que os magistrados exercem tarefa de governo. Por isso tudo é que a participação que se
reclama, com razão, nessa tarefa, sirva para conformar um sistema essencialmente democrático. [...]
A questão se torna problemática quando se trata de resolver em que grau a participação popular
pode – ou deve – ser admitida na Justiça e no processo, tema crucial e difícil de resolver pelas muitas
arestas que contempla. [...]
Em princípio, uma parte da doutrina tem reclamado a participação popular na Justiça. Em especial a
italiana, entre outras razões por conta da norma do art. 102 (Ord. 30), uma vez que estabelece caber
à lei “regular os casos e as formas da participação direta do povo na administração da Justiça”. [...]
A participação popular mais direta que pode surgir em matéria de Justiça e processo se constitui quer
pela designação de juízes eleitos pelo voto popular, sistema adotado nas comunidades locais dos
Estados Unidos, quer pela própria designação de juízes populares nos moldes dos tribunais de
camaradas soviéticos. Ou, em todo caso, o sistema misto de formação do tribunal por juízes técnicos
e leigos, conforme o regime dos tribunais trabalhistas mexicanos, por exemplo. [...]
Parece-nos, examinados os diversos aspectos da questão, que as qualidades dos juízes, como tem
sido dito reiteradamente, não podem ser apreciadas popularmente e o efeito da política seria negativo
em nossos países para admitir a eleição popular. [...]
Dentre todas as formas possíveis de participação popular no processo, optamos pela atividade de
controle que se realiza através do sistema do processo por audiência pública. [...] Consideramos que
em nossos atuais sistemas democráticos, deve ser exigida ao máximo (e também ao mínimo) a
possibilidade de controle popular amplo de todas as funções de governo. [...] Da experiência vivida
nos últimos anos de governos militares nas democracias do cone sul-americano, resultou de
indubitável transcendência (negativa) a falta desse controle, isto é, a faculdade de governar, em todos
os planos, sem a mínima possibilidade de crítica (nem cabe falar em consenso) pública (e também
privada) da tarefa de governo. Às vezes sem o menor conhecimento da existência de decisões
transcendentes para toda a população, quando não da forma com que essas decisões são adotadas,
63
público e democrático das atividades judiciais, uma vez estarem elas inseridas no
contexto geral das funções essenciais do governo. Depois de se mostrar avesso à
seu real conteúdo, seus fundamentos, etc. Revela-se de importância transcendente, portanto, para
nossas renascentes democracias representativas, a atividade de controle que se realiza
popularmente através da publicidade dos atos de governo. [...]
Temos reiterado de diversas maneiras a adesão ao sistema da oralidade na organização do
processo. E o processo oral é o único no qual se pode dar a publicidade reclamada por todos sem
discrepância. Em termos puros, não se trata de reclamar um processo exclusivamente oral, senão
misto, mas que, fundamentalmente, se realize através de audiência. Em outros termos, o chamado
processo por audiência.
Assim mesmo, cabe reiterar que é somente neste (ou por intermédio do sistema da oralidade) que
realmente podem ser realizados os princípios que todos os processualistas reclamam como
essenciais: concentração, imediação, economia, abreviação e publicidade.” (Tradução nossa).
Com fim de credibilidade, segue o original, “Enfocando el tema de la Justicia, resulta elemental que el
reclamo de Democracia participativa debe extenderse a esta rama, dado que el Poder Judicial, junto
com el Legislativo y Ejecutivo costituyen las funciones esenciales de gobierno. Dicho de otra manera,
que la función jurisdiccional también se integra en el Gobierno, considerado en el sentido amplio. Y
no cabe duda, que los Magistrados ejercen tarea de Gobierno. Por todo ello la participación se ha
reclamado, con razón, en esta tarea, para conformar un sistema esencialmente democrático.
La cuestión se plantea cuano se trata de resolver qué grado de participación popular puede o debe
– admitirse en la Justicia y en el proceso, tema crucial y difícil de resolver en sus distintas aristas. [...]
Em princípio uma parte de la doctrina reclamado la participación popular em la Justicia. Em
especial la italiana, entre outras razones por la norma constitucional del Art. 102 (Ord. 30), en cuanto
establece que “la legge regola i casi e le forme delle participacione diretta del popolo
all’amministrazione della giustizia”. [...]
La participación popular más directa que puede surgir en materia de Justicia y proceso la constituye,
sea la designación de jueces elegidos por voto popular, sistema que se ensaya en las comunidades
locales de los Estados Unidos, así como la propia designación de jueces populares tales como los
tribunales de camaradas soviéticos. O, en todo caso, el sistema mixto de conformación del Tribunal
por jueces técnicos y laicos, tales como el régimen de tribunales laborales maxicanos, por ejemplo.
[...]
Nos parece, por sobre todas las cosas, que las cualidades del Juez, como se ha dicho
reiteradamente, no son apreciadas popularmente y el efecto de la política sería negativa en nuestros
países para admitir la elección popular. [...]
De entre todas otras formas de participación popular en el proceso hemos elegido la actividad de
contralor que se realiza a través del sistema del proceso por audiencia pública. [...] Consideramos que
en los actuales sistemas democráticos cabe reclamar por sobre todo (y también como mínimo) la
posibilidad de contralor popular amplio de toda la función de gobierno. [...] En la experiencia vivida en
los últimos años de gobiernos militares em nuestras democracias del Cono Sur americano, resultó de
indudable transcendencia (negativa) la falta de ese contralor. Esto es, la faculdad de gobernar, en
todos los planos, sin la mínima posibilidad de crítica (ni que hablar de consenso) pública (y aún
privada) de la tarea de gobierno. A veces sin el menor conocimiento de la existencia de decisiones
trascendentes para toda la poblición, cuando no de la forma en que se adoptaran dichas decisiones,
su real contenido, sus fundamentos, etc. Resulta entonces trascendente para nuestras renacientes
democracias representativas la actividad de contralor que se realiza popularmente y a través de la
publicidad de los actos de gobierno. [...]
Hemos reiterado de diversas maneras la adhesión al sistema de oralidad en la organización del
proceso. Y en el proceso oral, es el único en el cual se puede dar la publicidad reclamada por todos
sine discrepandi. En puridad no se trata de reclamar un proceso puramente oral, sino más bien uno
mixto, pero que, fundamentalmente, se realiza a través de la audiencia, En otros términos, el llamado
proceso por audiencia.
Asimismo cabe reiterar que es solo en este (o en el sistema de la oralidad) que realmente pueden
realizarse los principios que todos los procesalistas reclaman como esenciales: concentración,
inmediación, economia, abreviación y publicidad”. (VESCOVI, Enrique. Una forma natural de
participación popular en el control de la justicia: el proceso por audiencia publica. In: GRINOVER, Ada
Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo. São
Paulo: RT, 1988, p. 360-379)
64
implantação da eleição direta dos juízes, por sistema de voto popular, em razão das
deficiências culturais dos povos latino-americanos e da falta de critérios adequados
para aferição de mérito dos bons julgadores os quais, a seu juízo, não deveriam ser
envolvidos em processos político-eleitorais, Vescovi demonstra a sua adesão ao
princípio da oralidade em sua expressão elementar de audiência pública. Para ele,
não outra forma de ser plenamente efetivada a publicidade e propiciado o
controle popular dos atos processuais, senão pela via do processo oral
160
ou, como
ele próprio diz, processo por audiência, indispensável para que possam na verdade
ser realizados todos demais princípios que todos los procesalistas reclaman como
esenciales: concentración, inmediación, economia y abreviación”, além da
publicidade. É textual a observação de Vescovi. Nas palavras do autor, percebe-se
que
No que se refere a esse último não cabe dúvida de que não se pode realizar
dentro do processo escrito (desesperadamente escrito) de que padecem os
sistemas latino-americanos. Por mais que se reclame a publicidade do
expediente, o processo não tem a menor publicidade e, muito menos, um
controle da atividade jurisdicional pelo povo. O sistema escrito, no processo
civil e penal, supõe que tudo se restrinja ao expediente, que a maior parte
da atividade seja realizada por funcionários na sede do Juízo, e que a
elaboração da sentença seja feita pelo juiz fechado em seu gabinete (ou
trabalhando em sua casa, como é habitual em nosso país) [...] Resulta
disso, então, que se queremos publicidade a cujo respeito não
questionamento esta se mostra viável através do sistema do processo
oral (por audiência), e, assim mesmo, se queremos um efetivo controle
popular do processo, isto só se pode realizar pelo dito meio.
161
160
Comoglio, discorrendo sobre a forma dialética oral do processo, diz que “Il che non è soltanto la
più semplice e diretta espressione delle opinioni, delle divergenze o delle conoscenze umane, ma è
anche la più trasparente, essendo costantemente controllabile pure da chiunque vi possa assistere ab
externo, senza trovarvisi personalmente coinvolto”. (COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie
costitucionali e giusto processo: modeli a confronto. Revista de Processo, n. 90, ano 23, abril-
junho de 1998, p. 109)
161
Para conferir credibilidade segue o texto original “En lo que refiere a este último no cabe duda
que no puede realizarse dentro del proceso escrito (desesperantemente escrito) del que padecen los
sistemas latinoamericanos. Por más que se proclame la publicidad del expediente, el proceso no tiene
la menor publicidad y, mucho menos, un contralor de la actividad jurisdiccional por el pueblo. El
sistema escrito, en el proceso civil y el penal, supone que todo se vuelca en el expediente, que la
mayor parte de la actividad se efectua por funcionarios en la Sede de la Oficina Judicial, y que en el
dictado de la sentencia es el Juez encerrado en su gabinete (o trabajando en su casa, como es
habitual en nuestro país), que realiza dicha actividad [...] Resulta, entonces, que si queremos
publicidad – en lo cual no hay cuestionamento esta solo cabe a través del proceso oral (por
audiencia). Y, asimismo, si queremos un efectivo contralos popular del proceso, este solo puede
realizarse a través de dicho meio”. VESCOVI, Enrique. Una forma natural de participación popular en
el control de la justicia: el proceso por audiencia publica. In: GRINOVER, Ada Pellegrini;
DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo. São Paulo: RT,
1988, p. 360-379)
65
Bem se que a doutrina de Vescovi pugna, de modo peremptório, pela reforma da
legislação processual civil e pela implantação, ou reimplantação, do sistema da
oralidade como único meio de ser efetivada, de forma plena, a garantia da
publicidade nos moldes constitucionalmente preconizados, numa clara apologia aos
tempos pretéritos ao Código de Processo de 1973.
Embora a tanto o se chegue no plano da ordem positiva infraconstitucional, não
como negar a pertinência do pensamento do mestre Uruguaio, quando afirma
que o princípio da publicidade, notadamente na sua perspectiva extraprocessual,
vale dizer, como meio de legitimação e de controle popular dos atos jurisdicionais,
não se coaduna com o processo escrito
162
. Hermético e avesso aos olhos da
população, quando não o é à própria visão dos litigantes, o processo escrito, afora o
seu excesso de formalismo e os defeitos relacionados ao ritmo lento da marcha
procedimental, enclausura-se nos cartórios e serventias e se fecha ao mundo
exterior.
A ser mantida a atual feição escrita como característica modal de uma significativa
parcela dos casos encaminhados ao Poder Judiciário, é preciso então rever o modo
de realização efetiva da garantia da publicidade dos julgamentos e dos atos
processuais, para tanto não mais se prestando a mera remissão legislativa ao
caráter público das audiências (art. 444, CPC), rarefeitas que se revelam na própria
previsão do sistema processual. De muito pouca valia se reveste, ademais, a
lacônica (embora elegantemente burocrática) enunciação de pouca funcionalidade
que está contida no preceito que prevê a natureza pública dos atos processuais (art.
155, parte inicial, CPC), por força do seu pequeno apelo pragmático.
Não se pode negar, todavia, que se prevê para o processo civil a tentativa
obrigatória de conciliação quando da abertura da audiência de instrução, nos casos
do litígio versar sobre direitos patrimoniais de caráter privado (art. 447, CPC),
tampouco se deve ignorar a previsão de que possa ser designada audiência de
162
Tanto isso é verdade que Vescovi recorda das bases uniformes adotadas para o projeto de
reforma da legislação processual dos países latino-americanos, cujo anteprojeto proposto
contemplava o processo oral por audiência para o processo civil, de sorte a prestigiar o princípio da
oralidade. (VESCOVI, Enrique. Una forma natural de participación popular en el control de la justicia:
66
conciliação quando a causa igualmente versar sobre direitos disponíveis (art. 331,
CPC). Esses preceitos, em parte, atendem às recomendações feitas por Vescovi a
propósito daquilo que chama de audiência preliminar, reservada para que el juez y
las partes se miren a los ojos”
163
. Finalmente, por intermédio da conjugação desses
preceitos se cumpre o saudável desiderato de que os atos processuais contemplem
una audiencia preparatoria, la cual se inicia con la tentativa de conciliación”
164
. Dela
se diz preparatória porque ao mesmo ensejo da audiência, desde que frustrada a
conciliação, devem ser resolvidas as questões processuais pendentes, fixados os
pontos controvertidos e deliberados os meios de prova a serem produzidos (par. 2º,
art. 331, CPC).
Acontece, porém, que ambas as regras da legislação processual civil
infraconstitucional mencionadas não se revelam incidentes na globalidade dos
casos, começando pelo art. 447, pois a tentativa prévia de conciliação ali prevista,
com a convocação obrigatória das partes, está sempre a depender da necessidade
de que seja realizada a instrução da causa em audiência, sendo cediço, porém, que
nem todos os litígios demandam tal providência. Quanto ao art. 331, a sua incidência
somente tem lugar quando não se adota o julgamento conforme o estado do
processo, em cujo contexto se inserem as hipóteses inúmeras das causas que
dispensam atos instrutórios, ficando comprometida a publicidade em razão da
prolação habitual das chamadas sentenças de gabinete.
A ser mantido o esquema metodológico avesso à oralidade, há de permanecer
deficiente o alcance pleno do ideal democrático do processo sob a perspectiva da
sua publicidade
165
, abandonando a forma mais salutar de acesso popular à
jurisdição, pois,
el proceso por audiencia publica. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel;
WATANABE, Kazuo. Participação e Processo. São Paulo: RT, 1988, p. 371).
163
VESCOVI, Enrique. Una forma natural de participación popular en el control de la justicia: el
proceso por audiencia publica. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel;
WATANABE, Kazuo. Participação e Processo. São Paulo: RT, 1988, p. 374.
164
Ibidem, p. 377.
165
Na linha de pensamento de Comoglio, “A oralidade não se sobrepõe à publicidade mas se
desenvolve em paralelo com ela podendo subsistir também onde esta ocorra menos –e, em todo
caso, tende a reforçá-la. De fato, apenas um debate ou um juízo oral no qual, assinalo, qualquer
audiência (ou pelo menos aquela principal em discussão) se conduz oralmente pode-se dizer
realmente aberto ao público e exposto ao controle direto da opinião pública. Ambas as garantias são,
de qualquer modo, agora concebidas seja nas tradições do common law, seja naquelas do civil law
67
Em definitivo, em todo caso, o processo se realize diante do povo, isto é, de
forma pública, em suas etapas essenciais. São escritas apenas as peças de
ingresso e de contestação, os recursos e alguns incidentes,
excepcionalmente, pois as questões suscitadas em audiência se resolvem,
de ordinário, no ato. Todo o resto, isto é, o desenvolvimento essencial do
processo, o fazer judicial, se realiza de forma pública e sob a batuta do
controle permanente de todos os que possam presenciar a audiência. Em
salas, cuja porta permaneça sempre aberta, salvo no caso, ditado por
razões especiais, do Tribunal determinar o sigilo da causa.
166
– como elementos cardeais de qualquer processo moderno, civil ou penal, perfilando-se como
aspectos essenciais de uma justiça eficiente, liberal e socialmente avançada”. Para efeito de
credibilidade, segue o texto original: “L’oralità non si sovrappone allá pubblicità, ma si sviluppa in
paralelo con essa pur potendo sussistere anche laddove questa venga meno ed, in ogni caso,
tende a rafforzala. Infatti, soltanto un dibattimento o un giudizio orale in cui, appunto, qualsiasi
udienza (o, almeno, quella principale di discussione) sia condotta oralmente può dirsi realmente
“aperto” al pubblico ed esposto al controllo diretto della pubblica opinione. Entrambe le garanzie sono,
comunque, ormai concepite sia nelle tradizione di common law, sia in quelle di civil law come
elementi cardinali di qualsiasi moderno processo, civile o penale, profilandosi come aspetti essenziali
di una giustizia efficiente, liberale e socialmente avanzata”. (COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie
costitucionali e giusto processo: modeli a confronto. Revista de Processo, n. 90, ano 23, abril-
junho de 1998, pp. 117-118)
166
Para dar credibilidade, segue o original, En definitivo, en todo caso, el proceso se realiza ante el
pueblo, esto es, en forma pública, en sus etapas esenciales. Solo por escritas la demanda y
contestación, los recursos y algún planteo incidental, excepecionalmente, pues los suscitados en las
audiencias se resuelven, de ordinario, en el acto. Todo lo demás, esto es, el desarollo esencial del
proceso, el hacer judicial, se realiza en forma publica y bajo el contralor permanente de todos quienes
pueden presenciar la audiencia. En salas, cuya puerta queda siempre abierta, salvo que, por razones
especiales, el Tribunal disponga la reserva de la causa”. (VESCOVI, Enrique. Una forma natural de
participación popular en el control de la justicia: el proceso por audiencia publica. In: GRINOVER, Ada
Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo. São
Paulo: RT, 1988, p. 378-379)
68
4 O QUADRO GERAL DAS GARANTIAS DO PROCESSO
As garantias constitucionais são postulados indispensáveis à convivência civil na
medida dos limites intransponíveis que fixam para o exercício do poder
167
. Ao lado
das garantias gerais (mecanismos de freios e contrapesos dos poderes), postam-se
as garantias especiais, entendidas como instrumentos de proteção aos direitos
individuais
168
.
Dentro do seu amplo leque de atuação, as garantias constitucionais encontram no
processo judicial campo fértil de atuação, regulando a obediência dos procedimentos
às regras previamente estipuladas, dando validade e justiça ao método jurisdicional
e às suas decisões, viabilizando, enfim, os seus escopos sociais e políticos
169
. Daí é
que surge a visão do processo como instrumento de participação do indivíduo nas
próprias decisões dos órgãos do poder que possam afetá-lo
170
.
A percepção atual do processo como instrumento democrático de atuação do direito
induz à dimensão garantística do discurso contemporâneo, segundo a qual a
legitimidade da intervenção estatal pressupõe a preservação de certos bens jurídicos
publicamente compartilhados
171
. Essa é a razão pela qual o processo deve tributo
aos fundamentos da convivência civilizada, que se expressam por exigências
conhecidas por vocábulos de acepção moderna tais como igualdade, dignidade
humana e liberdade. Isso também explica a constitucionalização do direito
167
FERRAJOLI, Luigi. Diritto e ragioni: teoria del garantismo penale. 3. ed. Roma: Ed Laterza,
1996, pp. 899-900.
168
MAGALHÃES GOMES FILHO, Antônio. A motivação das decisões penais. São Paulo: RT,
2001, p. 26.
169
Calmon de Passos assevera que “A estabilidade da ordem social reclama sejam colocados
parâmetros à solução dos conflitos, cumprindo ao direito formalizar modelos decisórios como
expectativas a serem compartilhadas pelos integrantes do grupo, funcionando também como limite ao
arbítrio do decisor. Disso resulta que a composição dos conflitos de interesses não atende a
postulados ou pressupostos deduzíveis de uma idéia de justiça ou constelação de valores absolutos,
previamente dados e capazes de serem intuídos pelos homens ou que a eles se imponha, sim de
quanto for politicamente definido e regulado, vale dizer, de tudo quanto se fizer possível em termos
contingentes e históricos. Destarte, as decisões que dizem respeito ao macro-conflitos são sempre
formuladas previamente em termos de dever-ser genericamente posto e têm natureza
predominantemente política, com o que se limita e condiciona a solução jurídica dos micro-conflitos,
que se busca progressivamente, tanto quanto possível, tornar imune a todo subjetivismo e
arbitrariedade”. (CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Direito, poder, justiça e processo. Rio de
Janeiro: Forense, 1999, p. 81)
170
MAGALHÃES GOMES FILHO, Antônio. Op. Cit, p. 28, ver nota 167.
171
Ibidem, p. 30.
69
processual civil, a exauriente explicitação no diploma político das garantias do
processo e a generalização da idéia de processo justo
172
.
O ordenamento constitucional brasileiro, com efeito, sucumbiu à tendência
universalmente aceita e se deixou inspirar pelo garantismo judicial, consagrando
textualmente os seguintes princípios para o processo: o juiz natural, imparcial e
independente; o duplo grau de jurisdição; o contraditório; a igualdade processual; o
acesso à justiça; a defesa; o direito à prova; o direito à presunção da inocência; a
oralidade; a publicidade; a legalidade ou formalidade; a motivação das decisões
173
.
A doutrina de processo civil, talvez cedendo ao intuitivo bito de ordenar as coisas
conforme os graus de sua aparente importância, fixa certa ordem de preferência
entre os princípios constitucionais aplicáveis ao processo civil. No a de
sistematizá-los, e até mesmo de justificar a interpenetração conceitual que lhes é
própria
174
, cumpre mencionar, o fato dos princípios processuais constitucionais
conterem carga deontológica de princípios alheios, os autores elegem e fixam alguns
deles como verdadeiras premissas lógicas de fundamentação de outros, para com
isso defenderem a precedência em importância de uns tais e quais, em detrimento
de outros tantos.
Essa sistematização dos princípios por ordem de hierarquia, embora tenha inegável
apelo pedagógico e satisfaça o senso prático comum, parece carecer de
cientificidade em razão da variabilidade das classificações de precedências dos
direitos fundamentais envolvidos, conforme a diversidade da inspiração pessoal dos
172
JJ. Calmon de Passos afirma que “Devido processo constitucional jurisdicional é complexo de
garantias mínimas contra o subjetivismo e o arbítrio dos que têm poder de decidir. Exige-se, sem que
seja admissível qualquer exceção, a prévia instituição e definição da competência a quem se atribua
o poder de decidir o caso concreto (juiz natural), a bilateralidade da audiência (ninguém pode sofrer
restrição em seu patrimônio sem ou em sua liberdade sem previamente ser ouvido e ter o direito de
oferecer suas razões), a publicidade (eliminação de todo procedimento secreto e da inacessibilidade
ao público interessado de todos os atos praticados no processo), a fundamentação das decisões
(para se permitir a avaliação objetiva e crítica da atuação do decisor) e o controle dessa decisão
(possibilitando-se, sempre, a correção da ilegalidade praticada pelo decisor e sua responsabilização
pelos erros inescusáveis que cometer). (CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Direito, poder,
justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 69)
173
MAGALHÃES GOMES FILHO, Antônio. A motivação das decisões penais. São Paulo: RT,
2001, p. 34-35.
174
Antônio Magalhães Gomes Filho fala em modelo ou sistema de garantias processuais, pois o
direito fundamental ao processo justo não se cristaliza nem se exaure em garantias particulares, mas
na coordenação de garantias concorrentes. (Ibidem, p. 33)
70
juristas. Esse estado de coisas demonstra, a par da falta de consenso da doutrina
(coisa que lhe é corriqueira), a virtual impossibilidade de ser materialmente
identificado o núcleo essencial hermético dos princípios constitucionais.
A depender dos autores, ou bem se diz que o princípio do devido processo legal é
matriz de fundamento de todos os demais, ou bem se apresenta diferente a
perspectiva de precedência e não rara é a adoção dos conceitos de alguns ou de
vários princípios como condição inexorável para a definição de outros, numa mistura
bem ao gosto do sincretismo.
pensadores que defendem, por exemplo, para o princípio constitucional do
devido processo legal, a condição de fonte mediata e imediata dos princípios
judiciais existentes dentro do sistema jurídico. Essa é a posição de Nelson Nery Jr.,
para quem “o princípio fundamental do processo civil, que entendemos como a base
sobre a qual todos os outros se sustentam, é o devido processo legal”
175
.
É idêntica a opinião de Marcelo Abelha, que diz tratar-se o devido processo legal de
fonte primária dos princípios do direito processual civil, apesar de não estar atrelado
apenas às normas de direito processual. Para ele o devido processo legal,
genericamente caracterizado pelo trinômio “vida, liberdade e propriedade”, gênero
contido no art. 5º, LV, da CF/88, que legitima e legaliza a existência dos demais
princípios processuais arrolados na Carta, dos quais se fazem espécies. Na sua
concepção, invocando o pensamento de Nelson Nery Jr., bastaria ao texto
constitucional enunciar o princípio “mater” do devido processo legal para que a maior
parte dos seus desdobramentos se tornasse despicienda, muito embora se apresse
em reconhecer que a explicitação das garantias fundamentais dele derivadas
mostra-se benéfica ao sistema, uma vez que enfatiza a importância dos demais
princípios destacados
176
.
175
NERY JR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 6. ed. São Paulo:
RT, 2000, p. 30.
176
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de Direito Processual Civil. 2.ed. São Paulo: RT,
2000, p. 56-57.
71
Maior ainda é a dosagem de sincretismo adotada por Nelson Nery Jr.
177
, ao dizer,
enfático, que:
a garantia do contraditório compreende para o autor a possibilidade de
poder deduzir ação em Juízo, alegar e provar fatos constitutivos do seu
direito e, quanto ao réu, ser informado quanto à existência e conteúdo do
processo e poder reagir, isto é, fazer-se ouvir. Para tanto é preciso dar as
mesmas oportunidades para as partes, e os mesmos instrumentos
processuais, para que possam fazer valer em juízo os seus direitos. A
ampla defesa constitui fundamento lógico do contraditório, que abrange não
as garantias processuais, mas também o respeito, dentro do processo,
aos direitos fundamentais de cidadania, religião, liberdade sexual, etc.
Celso de Mello, citado por Marcelo Abelha
178
, por sua vez, decompõe a essência do
“dues process of law” no processo civil e nele insere os seguintes princípios: 1)
igualdade das partes; 2) garantia do “jus actionis”; 3) respeito ao direito de defesa; 4)
contraditório.
Dinamarco
179
incorre no mesmo raciocínio, misturando todos os princípios num
vetor deontológico mais amplo e abrangente, quando diz que
nos Estados ocidentais de hoje de se oferecer em si mesmo a garantia
da legalidade processual seria estranho o juiz, órgão estatal, agir com
arbítrio no exercício da sua função de controlador da legalidade e ser
dotado de meios aptos a promover a igualdade e garantir a liberdade [...] A
existência de um processo acessível a todos e a todas as suas causas
pressupõe garantias constitucionais de igualdade substancial entre as
pessoas (carga axiológica da sociedade contemporânea), que se traduzem
na inafastabilidade do controle jurisdicional, da ampla defesa e do
contraditório, do devido processo legal todos eles endereçados à
efetividade do processo em sua função de instrumento a serviço da ordem
constitucional e legal
.
Daí a necessidade de que o processo “seja feito em contraditório, respeitada a
igualdade entre as partes perante o juiz natural, observadas as garantias inerentes à
cláusula “dues process of law”, ou em outras palavras, citando Cappelletti, “o
processo precisa refletir as bases do regime democrático, como microcosmo do
Estado-de-direito que é: liberdade, igualdade e participação (contraditório), em clima
de legalidade e responsabilidade”.
177
NERY JR, Nelson. Nery Jr. Op. Cit., p.130, ver nota 174.
178
Apud. RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de Direito Processual Civil.2. ed. São Paulo:
RT, 2000, p. 57.
179
DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 4. ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 1994, pp. 25 e 32.
72
Cintra, Grinover e Dinamarco
180
o separam o contraditório da ampla defesa,
aquele tendo por berço o brocardo romano “auditur et altera pars” e esta traduzindo-
se na expressão “nemo inauditus damnari potest”. Para eles, a ampla defesa é
possibilitada pelo contraditório e com ele mantém íntima ligação.
Delosmar Mendonça Júnior
181
, por sua vez, sustenta que o contraditório emana da
contraposição dialética de ação e a defesa e, pautado em Ada Pellegrini Grinover,
menciona que
O paralelismo entre ação e defesa é que assegura aos dois sujeitos do
contraditório instituído perante o juiz a possibilidade de exercerem todos os
atos processuais aptos a fazerem valer em Juízo seus direitos e interesses
a condicionar o êxito do processo. Ação e defesa acabam se transformando
em abrangentes garantias do justo processo. E o contraditório, neste
enfoque, nada mais é do que uma emanação daquela ação e daquela
defesa.
Ao referir-se a Humberto Theodoro Júnior, aduz que
Não se completa o contraditório com a simples ouvida da parte. de se
lhe ensejar oportunidade de rebater as alegações do outro litigante, com
argumentos e provas. De tal forma, se ouve a parte, mas não lhe dá
oportunidade de provar as alegações, o contraditório fica vazio de conteúdo.
Completa ainda que “toda matéria que diga respeito à defesa judicial de direitos no
processo está afeta ao princípio do contraditório: alegações, meios de provas,
acompanhamento na formação da prova, prazos, poderes, faculdades e ônus para o
exercício da defesa, etc”.
Luiz Guilherme Marinoni
182
, por seu turno, opera certa inversão de prioridades, e
discorre sobre a igualdade substancial como matriz de fundamento do contraditório.
Sustenta ser imprescindível a participação real, e não apenas ilusória (formal), dos
litigantes no processo.
180
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria geral do processo. 9. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1993, p. 53.
181
MENDONÇA JR., Delosmar. Princípios da ampla defesa e da efetividade no processo civil
brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, pp. 35, 36 e 40.
182
MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil . 3. ed. São Paulo: RT, 2001, p.
256-257.
73
Trilhando os mesmos passos, Francisco Glauber Pessoa Alves
183
diz sem rebuços
que o princípio jurídico da isonomia engloba todos os outros princípios, inclusive o
“dues process of law”, que nele estaria contido pelo simples fato de que a igualdade
antecede a própria noção de processo - o sentimento de divisão equânime de
atribuições e de direitos estava presente mesmo nas sociedades primitivas - sendo
no mínimo sinônimo de devido processo legal substantivo.
Para a doutrina de Francisco Glauber Pessoa Alves
184
, é o princípio da isonomia,
associado ao princípio da razoabilidade, que permite que se atinja o bem jurídico
pretendido, até mesmo por critérios discriminatórios, desde que o fim almejado tenha
agasalho no ordenamento jurídico. Para a aferição dos direitos contidos no ideário
político da constituição, é preciso que se recorra, num país de tradição positivista
(“civil law”) como o Brasil, à própria carta. No processo civil, é preciso sempre que a
orientação tenha em mente os seguintes princípios: devido processo legal (5º, LIV),
isonomia (5º, caput), juiz e promotor natural (5º, XXXVII), inafastabilidade da
jurisdição (5º, XXXI), contraditório (5º, LV), proibição da prova ilícita (5º, LVI),
publicidade dos atos judiciais (5º, LX e 93, IX) e motivação das decisões judiciais
(93, IX). De volta à isonomia e ao critério de desigualação, o autor assevera que,
para ser atingida a igualdade real, é preciso temperá-los com a razoabilidade,
amoldando o critério aos interesses protegidos na constituição. Para Canotilho, deve
haver íntima relação entre os princípios da isonomia e da proporcionalidade, para
que nas situações concretas o tratamento desigual seja adequado e exigível,
alcançando um determinado fim tão importante que possa justificar a tal
desigualdade de tratamento acolhida em certo preceito normativo. Isso é melhor
explicado nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, que adota três critérios
para a elucidação da técnica de igualdade real, ou substancial: a) o primeiro é a
identificação do elemento que induz à desigualação; b) o segundo é a correlação
lógica abstrata entre esse elemento e a disparidade fixada no tratamento jurídico
desigual; c) o terceiro é a consonância dessa correlação gica com os interesses
absorvidos no sistema constitucional.
183
PESSOA ALVES, Francisco Glauber. O princípio jurídico da igualdade e o processo civil
brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 37.
74
Está bem visto que não , na doutrina, a menor sombra de consenso a respeito da
posição prioritária que os princípios processuais da constituição possam assumir no
contexto do processo civil, sendo corriqueira a inversão das posições de uns e
outros, no esforço habitualmente empreendido de construção de uma ordem
hierárquica.
Quer parecer, enfim, que há um certo clima de competição entre os princípios
processuais constitucionais, uns pretendendo conter carga deontológica superior ou
mais nobre do que outros ou, quando menos, servindo de fundamento de validade
da matriz de fundamentação alheia.
184
PESSOA ALVES, Francisco Glauber. O princípio jurídico da igualdade e o processo civil
brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 41-42.
75
4.1 A CONCORRÊNCIA DEONTOLÓGICA DOS PRINCÍPIOS
Sendo verdade, por um lado, que os princípios podem e devem inspirar-se uns nos
outros, imiscuindo-se no contexto alheio naquilo que se lhes reconhece em
amplitude e em abrangência capazes de potencializar o resultado da tutela
dispensada aos direitos fundamentais, de outra parte nem por isso se admite que os
princípios esses ou aqueles possam assumir uma posição de precedência (“a priori”)
ou de hierarquia superior quando sejam cotejados.
Basta ver que, no âmbito da publicidade processual e da motivação das decisões,
tratam-se de garantias processuais que não se justificam de modo isolado, antes
sendo elos da cadeia global das garantias constitucionais, as quais se apresentam
como unidade sistemática em forma de circularidade sistema completo de várias
garantias tendentes a assegurar, por meio do processo, uma proteção jurisdicional
correta e eficaz dos direitos. Daí se dizer que as garantias completam mutuamente
as outras e, assim, asseguram-lhes reciprocamente a eficácia: à garantia do juiz
ligam-se a imparcialidade, a independência, o juiz natural e o duplo grau de
jurisdição; à garantia do contraditório ligam-se a igualdade processual, a defesa e o
direito à prova. Enfim, destacam-se as “garantias das garantias”, garantias de
segundo grau, ou modos de controle das garantias já explicitadas, as quais se
traduzem na publicidade, oralidade, formalidades do processo e motivação das
decisões
185
.
Enrique Alonso García
186
, discorrendo sobre as cnicas de ponderação de “valores”
constitucionais e sobre a colisão de princípios, sustenta a total impossibilidade de
que possa haver qualquer tipo de ordem, ou gradação, de importância entre eles.
A sua doutrina destaca que um dos motivos pelos quais a jurisprudência dos
valores
187
sofreu grande desenvolvimento nas técnicas de julgamento constitucional
185
MAGALHÃES GOMES FILHO, Antônio. A motivação das decisões penais. São Paulo: RT,
2001, p. 35. De se observar que a expressão “garantia das garantias” consta do original, enquanto a
o termo “garantias de segundo grau” advém de uma remissão do autor a Ferrajoli.
186
GARCIA, Enrique Alonso. La interpretación de la constitucion. Madri: Centro de Estudios
Constitucionales, 1984, p. 415.
187
Partidário da jurisprudência dos valores, de índole axiológica, Enrique Alonso Garcia divorcia-se
de Alexy, que se apega à jurisprudência dos conceitos, de índole deontológica, advinda da
76
foi a necessidade de compatibilizar coerentemente princípios potencialmente
contraditórios entre si (tutelas do meio ambiente e do desenvolvimento econômico,
liberdade de expressão e de intimidade, segurança e justiça, direito a processo sem
dilações indevidas e direitos à ampla defesa e acesso aos recursos existentes,
direitos sindicais e direitos dos sindicatos, processo justo e liberdade de imprensa,
liberdade parlamentar de ordenação de gastos públicos e desigualdade, direitos ou
interesses de participação e eficácia administrativa, etc)
188
. Na implementação da
ponderação de interesses constitucionalmente tutelados, não pode haver prestígio
de uns em detrimento de outros e tampouco ordem de prioridades, pois “os valores
não são hierarquizáveis pura e simplesmente porque não podem ser medidos ou
quantificados quando os interesses em jogo são comparáveis é que se pode
aplicar a doutrina do “balancing”.
Nas palavras de Hesse, “os bens juridicamente protegidos devem coordenar-se
entre si de tal maneira que cada um deles alcance efetividade”, o que significa que,
em se tratando de direitos contrapesados, deve ser buscada a otimização de todos
os bens envolvidos e a sua limitação, para que assim possam eles chegar a uma
virtualidade ótima
189
. Em resumo, sendo comparáveis, ambos os princípios podem
chegar a ser um só por meio dessa técnica de otimização, o que significa a busca do
equilíbrio dos bens no lugar da sua hierarquização, embora relativa, particularmente
pela preservação de direitos fundamentais e pela alternativa menos gravosa.
Vitalino Canas
190
, por sua vez, dissertando sobre a proporcionalidade, invoca a lição
de José Carlos Vieira de Andrade para quem a proporcionalidade se qualifica como
critério de execução do princípio da concordância prática, ou método e
processo de legitimação de soluções para conflitos ou colisões de direitos e
valores constitucionais ou, ainda, medida de compreensão de cada um dos
direitos ou valores de forma diferente conforme o modo com que se
apresentam, com sacrifício desigual de direitos e valores.
genealogia dos conceitos de Puchta, cuja teoria de base é adotada neste trabalho. (CAMARGO,
Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito.
Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 140).
188
GARCIA, Enrique Alonso. La interpretación de la constitución. Madri: Centro de Estudios
Constitucionales, 1984, p. 418.
189
Ibidem, p. 435.
190
CANAS, Vitalino. O Princípio da Proibição do Excesso na Constituição: Arqueologia e Aplicações.
In: MIRANDA, Jorge (org.). Perspectivas Constitucionais nos 20 Anos da Constituição de 1976.
Vol. II, Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 343.
77
Os princípios constitucionais integram um plano único, mediante natural sistema de
intercomunicação e, assim, reclamam permanente harmonização com vistas à sua
otimização. Não entram em conflito, tampouco, muito menos se sobrepõem uns aos
outros.
Liliane Roriz
191
diz que o conflito normativo (antinomia) é fenômeno que afeta as
regras (para as quais, teoricamente, a aceitação de uma resulta na exclusão da
outra) e, ainda assim, de forma aparente no plano constitucional, que sequer a
admite, dado que a Constituição é uma e indivisível. Já quanto aos princípios,
quando virtualmente colidentes, devem eles ser conciliados, mediante a aplicação
de cada qual em extensão variada conforme a sua relevância para o caso concreto.
A cnica da ponderação dos valores
192
, extraída do direito norte-americano,
destina-se exatamente a garantir a unidade da constituição. Mais conhecida como
“nexus theory”, ou teoria da interdependência das normas constitucionais,
representa a possibilidade de serem ponderados os valores em conflito, através de
interpretação sistêmica da Carta, sopesando-se casuisticamente qual interesse deve
merecer tutela constitucional, mediante utilização do princípio da razoabilidade, sem
que se caia na armadilha da hierarquização pura e simples e sem negar
completamente qualquer dos direitos envolvidos na disputa “balancing test”. A
técnica em questão não admite que um direito fundamental seja superior a outro,
mas apenas que, no caso concreto examinado, possa não ocorrer o pressuposto
fático subsumível previsto na hipótese normativa no que tange ao interesse que se
deixou de tutelar. A isso se pode dar o nome de teoria da posição preferencial
“preferred position”, adotada pela Suprema Corte Americana desde 1937, por
iniciativa do Juiz Benjamin Cardozo.
191
RORIZ, Liliane. Conflito entre Normas Constitucionais. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2001,
p. 74.
192
Ibidem, p. 31-32. Aqui também a autora distancia-se da pureza terminológica de Alexy, fazendo a
opção pela jurisprudência dos valores, bem ao gosto da tradição norte-americana.
78
4.2 A ORDEM DE PREFERÊNCIAS OU DE IMPORTÂNCIAS?
Do que se da doutrina constitucional dedicada à ponderação dos bens
fundamentais juridicamente tutelados - que nada mais significa senão a expressão
substancial do princípio da igualdade em caso de “balancing” em sentido estrito, ou
do devido processo legal substantivo em caso de “balancing” em sentido amplo - não
uma clara demarcação das fronteiras dos princípios, uns se contendo nos outros,
dada à generalidade do universo dos direitos fundamentais globais que impregnam
um certo sistema jurídico. Daí não ser próprio falar em devido processo legal sem a
noção de contraditório e, tampouco, em ampla defesa sem a idéia substancial da
isonomia, e assim sucessivamente, num plano evolutivo à moda de círculo vicioso.
Não é certo imaginar, portanto, que existam princípios processuais constitucionais
que por si sós se bastem. Muito do conceito de cada qual está contido no princípio
que se avizinha e, assim, todos eles, em conjunto, formam um complexo normativo
que de pautar todo o ordenamento jurídico no plano dos direitos fundamentais.
Importância maior de uns sobre os outros não pode haver, uma vez que não são
suficientes de “per si” ou, quando menos, demandam interpenetrações sistêmicas,
sob pena de subversão do seu plano deontológico.
De outra parte, os princípios não se apresentam uns antes dos outros e tampouco
podem dar-se, isoladamente, à condição de fundamento dos enunciados contidos
nos princípios alheios, que não gozam de existência hermética, senão que se
revelam como tipos normativos integrantes de uma universalidade de prescrições
proibitivas e permissivas tendentes a dar coerência ao sistema jurídico, cada qual
voltando-se para determinado bem tutelado que, no conjunto, acaba por dar uma
feição sistêmica ao direito
193
.
A doutrina de processo civil não peca quando reconhece a destacada importância
desse ou daquele princípio, tal como sucede com o contraditório e com a isonomia.
Ela apenas desmerece a construção histórica das garantias constitucionais, baseada
numa estrutura de globalidade, quando inverte a sua lógica, buscando estabelecer
193
No âmbito do processo civil, o papel dos princípios é dar a feição democrática ao método
processual.
79
níveis de hierarquias, ou de preferências, entre os princípios, que simplesmente não
deve existir por critério elementar de coerência, que a harmonia e a unidade deles
é da essência do escopo político-constitucional.
A conjugação em de igualdade, enfim, de todos os princípios processuais
contemplados na Carta Política é imprescindível para o constitucionalismo, devendo,
portanto, ser revista a idéia de que possam esses ou aqueles bens valer mais do
que outros.
Já quanto ao fato dos princípios fundamentarem-se reciprocamente nos moldes
reconhecidos na doutrina de processo civil, isso é natural e decorre da própria
natureza deles, sem que, porém, uns possam assumir maior importância nesse
contexto, senão nivelando-se em absoluta harmonia, uma vez que exatamente a
reunião dos seus enunciados é que torna legítima a ordem positiva que eles
inspiram.
É nessa medida que talvez mereça ser repensada a habitual tendência da doutrina
de processo civil dedicar maiores honras e tributos a alguns princípios processuais
constitucionais em detrimento de outros não menos nobres, de sorte a se
reconhecer, afinal, que o processo muito deve a todos os direitos fundamentais que
ordenam o sistema positivo judicial.
80
4.3 A INTERPENETRAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA PUBLICIDADE E DA
MOTIVAÇÃO
Na esteira do pensamento de Ferrajoli, Antônio Magalhães Gomes Filho
194
destaca
que tanto a publicidade processual, quanto a motivação das decisões compõem as
garantias de segundo grau, ou “garantia das garantias”
195
, apresentando-se como
instrumentos pelos quais se assegura o controle sobre a efetividades das garantias
expressas pelos demais princípios constitucionais. Afinal, de nada valeria a
exigência imposta ao processo de respeito ao contraditório ou à igualdade de
tratamento entre os litigantes, por exemplo, se não existissem meios capazes de
atestá-los nas situações concretas da atividade jurisdicional.
Por um lado, então, cumpre à motivação das decisões demonstrar a racionalidade
dos julgamentos e a sua conformidade ao padrão pré-estabelecido segundo as
regras materiais e processuais do direito
196
, observada a feição deontológica
sistemática extraída das garantias globais do processo; à publicidade incumbe, por
outro lado, a honrosa tarefa suplementar de transparecer, ou revelar, interna e
externamente, a lisura dos atos e dos julgamentos realizados no âmbito da atividade
jurisdicional, dando-lhe a necessária feição democrática
197
.
Motivação e publicidade são, assim, garantias constitucionais siamesas, que
estabelecem entre si uma clara relação de complementariedade, aperfeiçoando-se
reciprocamente. Associadas, atestam a transparência dos atos realizados pelo
Poder Judiciário, uma dando prova de que as decisões não derivam dos caprichos
ou das vicissitudes dos juízes, ou mesmo de crassas desconformidades com a lei, e
194
GOMES FILHO, Antônio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo: RT, 2001, p.
48.
195
Ibidem, p. 35.
196
“L’obbligo della motivazione si àncora ad una esigenza di trasparenza ed è coerente con una
nozione della giurisdizione che fonda la sua credibilità sulla ragionevolezza delle proprie decisione più
che sull’imperium di cui è inevitabilmente dotata”. (VERDE, Giovanni. Giustizia e Garanzie nella
Giurisdizione Civile. Rivista di Diritto Processuale. Padova: Cedam, 2000, p. 310)
197
Antônio Magalhães Gomes Filho diz que graças à publicidade é possível haver um controle não só
das partes, mas também do público em geral sobre o modo pelo qual é administrada a justiça
(GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Op. Cit., p. 48-49, ver nota 193)
81
a outra revelando publicamente a regularidade do processo numa perspectiva de
cidadania
198
.
Do ponto de vista instrumental, graças à motivação é que se demonstra que a
decisão resulta da efetiva apreciação de todas as questões de fato e de direito
veiculadas pelas partes, afastando as inclinações e as preferências pessoais do
julgador
199
. Cumpre, portanto, à motivação garantir a natureza puramente cognitiva e
não potestativa do julgamento, vinculando-o, quanto ao direito, à estrita legalidade e,
quanto aos fatos, à prova colhida nos autos. À publicidade cabe o papel fundamental
de revelar aos litigantes e às pessoas do povo o respeito a tais exigências.
Enfim, a ligação da publicidade com a motivação é íntima, de instrumentalidade
recíproca, pois ambas m o objetivo comum de possibilitar que a atividade
processual se comunique com o ambiente social. Para Taruffo, a garantia da
publicidade pode ser efetiva se a sentença for fundamentada e, quanto à
motivação, para nada ela serviria se não lhe fosse assegurada a publicidade
200
.
Barbosa Moreira
201
salienta, com a habilidade de costume, que as garantias da
motivação das decisões e da publicidade do processo adquirem justificativa a partir
da atenção dedicada à racionalidade da atividade jurisdicional e aos conseqüentes
desdobramentos técnicos e políticos dessa premissa. No plano técnico, importa a
motivação para a correta interpretação do julgado, com a determinação precisa do
seu conteúdo, permitindo a delimitação da coisa julgada. No plano da impugnação
das decisões, é certo que o conhecimento das razões de decidir permite aos
interessados recorrer de forma adequada, enquanto igualmente possibilita aos
órgãos superiores o exercício seguro e justo do controle de revisão da legalidade
198
Calmon de Passos sustenta que “Aplicar o direito impõe não só a organização política democrática
adequada da função jurisdicional, mas igualmente o processo jurisdicional democrático adequado,
entendendo-se como tal todo aquele que satisfaz às exigências de um Estado de Direito
Democrático”. (CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Direito, poder, justiça e processo. Rio de
Janeiro: Forense, 1999, p. 71)
199
Embora não se possa falar em neutralidade do direito, é necessário que se afaste da decisão os
motivos inconfessáveis.
200
TARUFFO, Michele. Il significato costituzionale dell’obligo di motivazione. In: GRINOVER, Ada
Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo. São
Paulo: RT, 1988, p. 49-50.
201
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O Juiz e a Prova, Revista de Processo, n. 35, São Paulo: RT,
jul./set. 1984, p. 181.
82
das decisões que lhes é atribuído - isso sem falar nas ações impugnativas
autônomas, dos tipos tais como a ação rescisória e o mandado de segurança contra
ato judicial, e bem assim para efeito de uniformização de jurisprudência.
A tônica do problema encontra-se no plano dos princípios fundamentais, de ordem
política aqui a garantia é vista como dever de enunciar, publicamente, as razões
justificativas da decisão proferida. A exigência de publicidade e de motivação das
decisões judiciais gera a possibilidade de aferição concreta de imparcialidade do juiz
(neutralidade diante das partes), de legalidade da decisão (conformidade legal) e o
exame das escolhas valorativas
202
do juiz nos casos de conceitos jurídicos
indeterminados, como “bons costumes”, “exercício regular de direito”, “interesse
público”, etc (somente sendo motivada a decisão, é possível saber se o juiz usou
bem ou mal a sua liberdade de escolha ou se ultrapassou os limites da discrição,
caindo no arbítrio). Permite ainda o exame das questões de direito e de fato
tomadas em consideração pelo juiz na causa, para saber da observância das
normas que vedam ao juiz conhecer de elementos não constantes dos autos, ou de
questões não suscitadas pelas partes quando lhes é essencial a iniciativa, ou
mesmo a respeito da adequada valoração das provas. De resto, garante às partes o
direito de serem ouvidas e de que sejam examinadas as questões que tenham
suscitado, para que se saiba se o material oferecido nos autos foi ou não
negligenciado pelo julgador.
Barbosa Moreira parte da premissa de que o Estado de Direito não pode jamais
patrocinar a intromissão na esfera jurídica das pessoas sem justificação, e sustenta
que isso se opera de duas maneiras: material e formal. justificação material
quando para a intromissão existe fundamento; há justificação formal quando se
expõe, ao se declarar e ao se demonstrar o fundamento. O pronunciamento da
justiça, destinado a assegurar a inteireza da ordem jurídica, deve se fundar na lei
(sentido material) e é preciso que se manifeste, para saber se o império da lei foi, na
verdade, assegurado (sentido formal).
202
Para que se evite imprecisão terminológica, o termo aqui é utilizado no seu sentido próprio,
expressando a seleção de significados possíveis dos vocábulos ambíguos.
83
Na modernidade, não se ocupa apenas do controle endoprocessual das decisões
judiciais, como também, sobretudo, do controle generalizado e difuso sobre o modo
como o juiz administra a justiça. Logo, os destinatários da motivação não são
apenas as partes e os seus advogados, mas a opinião pública, vale destacar, os
membros gerais da comunidade. Os meios extraprocessuais de controle visam ao
fortalecimento da confiança na tutela jurisdicional, fator indispensável ao Estado de
Direito.
É exatamente idêntica a linha de raciocínio trilhada por Perelman, quando cuida da
motivação das decisões judiciais
203
. Depois de discorrer sobre a natureza um tanto
flexível ou subjetiva das razões de decidir, admitindo que, para as decisões judiciais,
não se possa eleger um standart invariável, aduz que, na fundamentação, se
encontra a legitimação e a justificação dos atos decisórios, sem uma conotação
cartesiana de capacidade universal de convencimento.
Na realidade, ainda se experimenta o amadurecimento do próprio significado da
motivação das decisões judiciais, visto que até tempos históricos relativamente
recentes era comum que se recorresse aos ordálios, mesmo para definição da regra
jurídica aplicável ao caso concreto
204
. O resultado disso é que os tais julgamentos
assim conduzidos não apenas deixavam de contemplar motivação expressa como
ela mesma, a motivação se mostrava desconhecida pelos próprios juízes, que
entregavam a Deus a tarefa de administrar a justiça. Passada essa etapa obscura do
processo ordálio e inaugurada a era da indispensabilidade da motivação por
inspiração revolucionária francesa
205
(Decreto da Constituinte de agosto de 1790;
Constituição de 5 frutidor do ano III), que acabou por impor sanção de nulidade para
a sua inobservância (Lei de 20 de abril de 1910), os juízes passaram a se ver na
obrigação de fundamentar suas decisões para, inicialmente demonstrar a
conformidade das suas razões de julgamento aos ditames estritos da lei. Nesse
ambiente histórico, o juiz não se encarregava de fazer justiça, pois esse papel
203
PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 559.
204
Ibidem, p. 560.
205
Ibidem, p. 561-562.
84
cumpria exclusivamente à lei, bastando-lhe indicar os textos que sustentavam a sua
sentença
206
.
Com o correr dos tempos, porém, o juiz foi adquirindo maior dose de liberdade na
qualificação das questões de direito e de fato passíveis de submissão à ordem
jurídica, intervindo de modo a preencher as lacunas, obscuridades e insuficiências
da lei
207
. Modificou-se inteiramente, por conseguinte, com a evolução do Direito, o
sentido da motivação da sentença em virtude da migração do sistema da estrita
legalidade dos tempos revolucionários para o regime do Estado de Direito: a
motivação que, inicialmente, prestava-se a demonstrar o respeito do juiz à letra fria
da lei, na democracia atual, passou a significar a exigência ditada pela opinião
pública de que a sentença seja o mais conforme possível à eqüidade e ao interesse
geral
208
.
Em outras palavras, embora se admita modernamente, para o juiz, uma margem
razoável de liberdade, de apreciação e de aplicação do Direito
209
, ele jamais pode
exercê-la de forma arbitrária ou desarrazoada, que nada mais significa senão aquilo
que aos olhos da opinião pública pareça inaceitável, quer por iniqüidade, quer por
incompatibilidade com a situação concreta objeto de julgamento
210
.
Assim, na democracia o juiz está obrigado a prestar contas do modo como usa o seu
poder, mediante motivação que, acima de tudo, está dirigida aos seus ouvintes, que
se traduzem nas partes, nas instâncias superiores e na opinião pública esclarecida,
de tal modo a permitir que sejam harmonizados os bens da segurança jurídica, da
equidade e do interesse geral
211
. O papel de conciliação entre esses interesses
multiformes, particularmente a proteção do interesse geral da coletividade, é que
cumpre à publicidade desempenhar, na condição de típica garantia associada ao
princípio análogo da motivação, permitindo a “persuasão de um auditório conhecido,
206
Ibidem, p. 565.
207
PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 563.
208
PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 565.
209
Perelman diz que “O juiz em nossos dias é detentor de poder, e não “a boca que pronuncia as
palavras da lei”, pois, mesmo sendo obrigado a seguir as prescrições da lei, possui uma margem de
apreciação: opera escolhas que dependem de juízo de valor, ditadas não somente pelas regras de
direito aplicáveis, mas também pela busca da solução mais adequada à situação”. (Ibidem, p. 566)
210
Ibidem, p. 566.
211
Ibidem, p. 567.
85
de que a decisão é conforme às suas exigências”. Trata-se de mostrar que as
decisões se adaptam às exigências ou às expectativas públicas, e que se revelam
“oportunas, eqüitativas, razoáveis, aceitáveis. O mais das vezes, elas concernem a
dois aspectos, conciliando a vontade da lei, o espírito do sistema, com a apreciação
das conseqüências. A motivação deve se adaptar ao auditório que se propõe a
persuadir, ajustando-se às suas exigências em matéria de direito e de justiça, e à
idéia de que ao papel e aos poderes do juiz soma-se o conjunto das instituições
nacionais e internacionais”
212
.
Muito embora se possa perceber a imprescindibilidade da motivação das decisões
como garantia inerente ao processo, de nada ela valeria, conforme bem acentuou
Michele Tarufo
213
, sem a garantia suplementar da publicidade como meio a propiciar
a sua revelação aos litigantes e, sobretudo, ao chamado auditório universal.
212
PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 570.
213
TARUFFO, Michele. Il significato costituzionale dell’obligo di motivazione. In: GRINOVER, Ada
Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo. São
Paulo: RT, 1988, p. 50.
86
4.4 A INTERPENETRAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA PUBLICIDADE, DO JUIZ
NATURAL, DO CONTRADITÓRIO, DO DUPLO GRAU E DA LEGALIDADE
Por meio da motivação e da publicidade das decisões, a um tempo, é que se
pode denotar a independência e a imparcialidade do juiz, afastando o perigo do
arbítrio e da ditadura judicial, tema de grande interesse no campo do controle de
constitucionalidade, sobretudo difuso, para que se possa aferir eventual subversão
de competência legislativa. As razões de decidir e a sua revelação pública
contribuem, ademais, para a descoberta do caminho mental trilhado pelo juiz, sendo
fonte de indícios de virtual conduta parcial ou sujeita a pressões externas
214
.
Também para a efetivação do contraditório é a publicidade que o garante, permitindo
que as partes possam se inteirar (informação) dos acontecimentos que as afetam,
no processo, e possam reagir, participando dos seus atos e contribuindo para
modificar o desfecho final do caso, fazendo com que prevaleçam, enfim, os seus
interesses. A publicidade processual é, então, instrumento do contraditório ou meio
de sua realização, no plano interno, enquanto que, no ambiente externo, é graças a
ela que se demonstra, de forma popular e legitimadora, que a participação dos
litigantes no processo e os seus resultados foram tomados em conta no deslinde da
atividade judicial. Inútil seria o esforço empreendido pelas partes no sentido de
tutelarem seus interesses se não houvesse a possibilidade de ser demonstrada a
clara obediência do juiz às regras prefixadas que prestigiam a participação efetiva
dos litigantes no processo.
Do ponto de vista do duplo grau de jurisdição, é igualmente a publicidade interna
que permite que se realize o reexame das decisões pelos meios de impugnação
admitidos no sistema processual, mediante ciência inequívoca dos termos e das
razões dos julgados tanto pelas partes, quanto pelo órgão recursal.
214
Piero Calamandrei assevera que “A fundamentação da sentença é sem dúvida uma grande
garantia de justiça, quando consegue reproduzir exatamente, como levantamento topográfico, o
itinerário lógico que o juiz percorreu para chegar à sua conclusão, pois se esta é errada, pode
facilmente encontrar-se, através dos fundamentos, em que altura do caminho o magistrado se
desorientou”. (CALAMANDREI, Piero. Eles, os Juízes, vistos por nós, os Advogados. 7. ed.
Lisboa: Livraria Clássica Editora, p. 143)
87
Finalmente, somente através da publicidade é que se pode atestar que o Estado, no
exercício da jurisdição, observa para as formalidades do procedimento e para as
decisões judiciais, condutas compatíveis com as exigências da legalidade,
devotando respeito à lei material e processual e dispensando obediência à igualdade
de tratamento dos litigantes, ao amplo direito de ação e de defesa e à regularidade
dos meios de prova, de modo a atender as exigências firmadas não apenas pelos
interessados diretos (as partes), como, sobretudo, também pela necessidade de
controle popular da atividade processual.
88
4.5 A RESTRIÇÃO PREVISTA PARA A GARANTIA DA PUBLICIDADE E A
PONDERAÇÃO DE DIREITOS
215
Problema dos mais sérios reside na restrição da garantia da publicidade, que a
Constituição admite para os casos de preservação da intimidade e do interesse
social – arts. 5º, LX, e 93, IX.
Afinal, a exigência de que sejam públicos os atos e os julgamentos realizados pelo
Poder Judiciário consiste num dos pilares do processo justo e democrático, sendo
desaconselhável a sua restrição exceto em situações muito particulares nas quais se
possa ter em jogo direito qualquer de maior envergadura, dentre aqueles previstos, a
atrair a proteção do sistema jurídico. A exemplo das demais garantias do processo, a
publicidade se contém em enunciado fundamental que expressa solene
reconhecimento do direito à revelação popular dos atos realizados no processo.
Na versão analítica concebida por Alexy para os direitos fundamentais, se por um
lado os princípios que os contemplam expressam um enunciado normativo e
qualifica pessoas e ações; por outro lado, fazem surgir, para os titulares do direito, o
poder (posição) de exercê-lo diante do Estado
216
. A publicidade, então, é algo que
se coloca à disposição dos jurisdicionados com o intuito de protegê-los da
insegurança que possa advir de um processo secreto, conduzido a portas fechadas,
sem a possibilidade de revelação e de controle; é também proteção difusa conferida
ao público, que passa a perceber na jurisdição a feição democrática que lhe é
inerente e sem a qual ela redunda opaca e hermética, fora, portanto, dos padrões do
Estado de direito.
Na condição de direito fundamental, é lição de Alexy tratar-se a publicidade, tal como
acontece com outra garantia qualquer do processo, de uma “posição fundamental”,
que a todos, em geral, afeta, e a ninguém em particular
217
.
215
O presente capítulo é inteiramente baseado no artigo ainda inédito intitulado “O Conceito de
Princípio na Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy” de autoria do professor Geovany
Cardoso Jeveaux, a quem agradeço a gentileza de haver cedido a redação final dos seus
manuscritos para consulta e reprodução parcial.
216
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales.Madri: Centro de Estudios Políticos y
Constitucioales, 2001, p. 174-178.
217
Ibidem, p. 241.
89
Nessa medida, a garantia da publicidade expressa um dever-ser que se contém no
princípio fundamental correlato, sendo emanado de um mandado deôntico que, por
ser assim, encerra proibição e permissão: a proibição de que se afaste o processo
judicial da transparência prevista para os seus atos e julgamentos e, ao mesmo
tempo, a permissão de que seja restringida essa revelação pública nas hipóteses em
que o interesse social e a intimidade possam justificá-lo.
Embora seja delicada a tarefa de compatibilizar, num enunciado normativo, esses
dois vetores de direções opostas proibição e permissão isso é bem da natureza
dos princípios e, como tal, bastante assimilável.
Para que seja compreendida essa afirmação, é necessário observar que para Alexy
os princípios e as regras o espécie do gênero normas, diferenciando-se entre si
pelo grau de generalidade. De fato, ao contrário das regras, os princípios têm alto
grau de generalidade pois “...no están referidos a las posibilidades del mundo real o
normativo
218
.
Além disso, princípios e regras se diferenciam ainda por critério de grau e qualidade,
uma vez que aqueles encerram verdadeiros mandados de otimização, vale dizer,
ordenam que algo se realize da melhor maneira possível, dentro das possibilidades
jurídicas e reais existentes (o campo do possível), enquanto as regras são
determinações já contidas no mundo das possibilidades concretas (o campo do
juridicamente existente e peremptoriamente válido). Daí porque para as regras até
poderia valer a máxima do tudo ou nada de Dworkin
219
, de tal modo que o conflito se
resolvesse pela exclusão ou eliminação mediante critério de invalidade, ao passo
que a colisão de princípios de ser sempre solucionada pelo mero afastamento de
um deles no momento da resolução do embate, uma vez sendo possível demonstrar,
na situação concreta examinada, a maior possibilidade fática e jurídica do outro que
prevalece
220
.
218
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estudios Políticos y
Constitucioales, 2001, p. 83.
219
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre facticidade e validade. Vol. I, Rio de Janeiro:
Editora Tempo Brasileiro, 1997, p. 251.
220
Para Habermas, está bem claro que só pode haver conflito entre regras, introduzindo uma cláusula
de exceção ou declarando uma das regras conflitantes como inválida. Ora, no conflito entre princípios
não se faz necessária uma decisão do tipo “tudo ou nada”. É certo que um determinado princípio
90
Essas características assinaladas para regras e princípios explicam, também, a
razão pela qual o mandado (deôntico = permissão e proibição) daquelas é absoluto
e definitivo (de modo tal que ou bem existe e vale, ou não), enquanto o mandado
dos princípios é sempre relativo
221
, dependente das suas possibilidades frente ao
mundo fático e jurídico
222
.
Em outras palavras, marcadas por uma natural vocação à definitividade da decisão,
as regras podem conflitar entre si e, neste caso, resolve-se o embate pela exceção
ou pela invalidação de uma delas, por critérios de tempo, por especialidade ou por
hierarquia. os princípios, que, no máximo, colidem e que não se posicionam entre
si, contendo diferentes posições hierárquicas, ordenam-se diante do caso concreto,
conforme os diferentes pesos reclamados pela posição a ser regulada, dando origem
ao método da ponderação de direitos.
Enfim, os princípios não se afeiçoam, por sua própria natureza, à dimensão
normativa absoluta e definitiva, dado que gravitam sobre o sistema jurídico no plano
deontológico, prescrevendo ações estatais de permissão e de proibição frente aos
bens protegidos. Dizer intangível certo princípio é reduzir a sua propriedade de
norma prima facie, dando-lhe impropriamente a feição incondicionada e absoluta
(definitiva) que não contém
223
.
Tanto isso é verdade que a Lei de Colisão de Alexy parte do pressuposto de não
haver relação de prioridade entre os princípios, antes tomando por base as suas
conseqüências jurídicas de acordo com os pressupostos fáticos da situação concreta
a justificar o embate. É daí que surge a metáfora do peso, a levar em consideração
goza de primazia, porém não a ponto de anular a validade dos princípios que cedem lugar. Um
princípio passa à frente do outro conforme o caso a ser decidido. No desenrolar dos casos,
estebelece-se entre os princípios uma ordem transitiva, sem que isso arranhe sua validade.
(HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre facticidade e validade. Vol. I, Rio de Janeiro:
Editora Tempo Brasileiro, 1997, p. 259)
221
De se observar que a relatividade do princípio acontecerá diante de outro princípio, pois, embora
se admita que aconteça, a rigor não deveria haver embate entre um princípio e uma regra.
222
HECK, Luis Afonso. Regras, Princípios Jurídicos e sua Estrutura no Pensamento de Robert Alexy.
Dos Princípios Constitucionais. Considerações em Torno das Normas Principiológicas da
Constituição. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 66.
223
Bobbio diz não ser o caso de “repetir as infinitas críticas dirigidas à doutrina dos direitos naturais,
nem demonstrar mais uma vez o caráter capcioso dos argumentos empregados para provar o seu
valor absoluto [...] Essa ilusão já não é possível hoje: toda busca de fundamento absoluto é
91
as situações concretas e relativas da ponderação de bens e, assim, nem sempre
garantindo o mesmo resultado.
Em caso de colisão entre princípios, aplica-se a xima
224
de proporcionalidade, de
tal modo que sejam inicialmente aferidas a adequação e a necessidade das
possibilidades fáticas que possam condicionar a precedência dos princípios
envolvidos para, depois disso, serem examinadas as possibilidades jurídicas
contidas na proporcionalidade em sentido estrito. O meio utilizado na conciliação de
princípios colidentes deve, enfim, mostrar-se adequado (não haver desvio de
finalidade da prática de um princípio) e necessário (não ser possível a identificação
de outro meio mais benéfico de realização dos princípios colidentes). Feito isso,
caso permaneça a colisão, tem assento a proporcionalidade em sentido estrito, por
cujo intermédio se realiza o mandado de ponderação, pondo-se as conseqüências
jurídicas dos princípios colidentes numa balança (metáfora do peso) para ser
detectado qual deles é racionalmente mais atuante no caso concreto.
Chamada por Alexy de primeira lei de ponderação (a segunda é denominada
epistêmica e também se utiliza da metáfora do peso, traduzindo-se na identificação
das premissas técnicas/científicas que sustentam um certo direito fundamental a
intervir no caso concreto
225
), ela se define de acordo com a maior intensidade
demonstrada pela ingerência de um dado direito fundamental, quando então maiores
irão se revelar os fundamentos justificadores dessa intervenção. Nas palavras do
autor
Quanto maior é o grau de não-satisfação ou de afetação de um princípio,
tanto maior tem que ser a importância de satisfação do outro – o que é mais
importante nas ponderações é saber o grau ou a intensidade da não-
satisfação de um princípio, por um lado, e o grau de importância da
infundada”. (BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 16. Tiragem, Rio de Janeiro: Editora Campus,
1992, p. 16-17.
224
Alexy adota o termo “máxima de proporcionalidade”, e não “princípio de proporcionalidade”, por
considerá-la simples técnica ou critério de solução de conflitos, que jamais entre em colisão com os
princípios e que serve apenas para justificar a intervenção no caso concreto do princípio que se
mostrar mais atuante.
225
ALEXY, Robert. Epílogo a la Teoría de los Derechos Fundamentales. Revista Española de
Derecho Constitucional. Madri: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. n 66, set/dez 2002,
p. 26.
92
satisfação de outro princípio, por outro...assim se revelando racionalmente
fundamentado.
226
O embate entre princípios, portanto, e a precedência de um sobre outro
condicionada às possibilidades fáticas e jurídicas reclamadas pelo caso concreto,
são da essência do modelo deontológico que lhes confere a substância normativa.
Não é de estranhar que semelhante coisa aconteça com o direito fundamental da
publicidade dos atos e dos julgamentos, no que pertine à sua eventual restrição em
situações cotidianas não virtuais, mas efetivas.
O que de diferente no caso da garantia da publicidade é que a norma de direito
fundamental que a consagra prevê, de antemão, a sua restrição nos casos tais
como os que se encontram contemplados no inciso LX do art. 5º da Constituição.
O exame apressado da restrição constitucional admitida para a garantia da
publicidade gera a impressão de ser enunciada, desde a origem do tratamento
normativo do princípio, a permissão para que o legislador faça, ele próprio, a
ponderação incondicionada de interesses colidentes, fora das situações concretas
da vida dos direitos fundamentais. Fosse por acaso sustentável esse ponto de vista,
haveria uma ruptura “a priori” do método de ponderação, sendo atribuído à
publicidade um tratamento semelhante ao das regras de direito, sujeitas a critérios
de validade e de existência previamente estipulados pelo sistema. Porém essa
impressão não se confirma, uma vez que as situações para as quais se pode
justificar a quebra da publicidade estão sempre a depender das possibilidades do
mundo tico e jurídico, não sendo previstas por antecipação no plano da realidade
da sua aplicação normativa, ao revés do que se passa com a generalidade das
regras, em seu baixo nível de generalidade.
226
Para dar credibilidade, o original – “Cuanto mayor es el grado de la nón satisfacción o de
afectación de un principio, tanto mayor tiene que ser la importancia de la satisfacción del outro lo
que és importante em las ponderaciones, es decir, el grado o la intensidad de la no satisfacción de
um principio, por um lado, y el grado de importancia de la satisfacción del outro principio, por el outro
[...] dice que és lo que tiene que ser fundamentado racionalmente”. (ALEXY, Robert. Colisão e
Ponderação como Problema Fundamental da Dogmática dos Direitos Fundamentais. Palestra
proferida na Casa Rui Barbosa, 10 dez. 1998. Tradução Gilmar Ferreira Mendes.)
93
Muito pelo contrário, a garantia da publicidade, pico enunciado de direito
fundamental que expressa mandado de otimização com alto grau de generalidade, é
princípio como outro qualquer do processo e, como tal, de ser tratado. Em seu
campo de aplicação, embora tenha a incidência delimitada pelos interesses
disputados, o seu modo de atuação não é previamente detalhado, diferenciando-se
fundamentalmente das regras.
Acomete peculiarmente a publicidade, entretanto, a circunstância de ser para ela
antecipada, desde o nascedouro do seu enunciado deontológico, a máxima da
proporcionalidade. Isso acontece porque, partindo da premissa de que a sua
aplicação incontida poderia ferir, a priori, a intimidade e o interesse social, pareceu
conveniente à norma fundamental apressar-se nas ressalvas quanto aos bens por
ela identificados.
Assim, não é que o enunciado normativo previamente anteveja e regule a colisão
entre princípios; o que nele se faz é dar ao princípio da publicidade feição peculiar e
intuitivamente restrita, ou seja, o sistema atribui ao direito fundamental a
característica essencial de não ser um enunciado deontológico aberto, mas
originariamente restrito
227
.
Tomando-se em conta que os casos previstos para a restrição do princípio da
publicidade se tratam de seus elementos intrínsecos, que lhe dão a necessária
individualidade ontológica, é natural que não se dissociem dele e que igualmente se
apresentem com elevado grau de abstração ou de generalidade, integrando o
campo das possibilidades previstas e indefinidas aprioristicamente. Em outras
palavras, da mesma forma como a aplicação dos princípios não é absoluta e se
sujeita às possibilidades fáticas e jurídicas das circunstâncias concretas, também as
hipóteses de restrição ao princípio da publicidade não se revelam invariáveis e
incondicionadas, sendo-lhes impossível a generalização.
227
Comoglio, disserta a propósito da garantia da publicidade dizendo que “È soggetta ad importanti
eccezioni (nelle diverse ipotesi di procedimento “in camera di consiglio”) o di udienza “a porte chiuse”,
ogni qual volta la stessa legge prescriva l’esclusione del dibattimento pubblico o sia il giudice ad avere
il potere di disporla caso per caso. Tale esclusione si riconduce, perlopiù, a “ragioni di sicurezza dello
Stato, di ordine pubblico o di buon costume, ovvero può giustificarsi con esigenze di salvaguardia
della riservatezza” e della “sicurezza” personale di testimoni o di parti private. (COMOGLIO, Luigi
94
Somente nessa medida é que se admite a plausibilidade deontológica de o mandado
de otimização da publicidade permitir ao legislador a restrição da publicidade dos
julgamentos e dos atos processuais em casos recomendados pelo interesse social e
para preservação da intimidade dos litigantes. Nesse contexto, inclusive, e somente
nele, é que se pode validar a possibilidade, por exemplo, de o CPP contemplar o
sigilo do inquérito policial (art. 20) e de o CPC disciplinar a tramitação de feitos em
segredo de justiça (art. 155)
228
.
Não obstante, revela-se curioso que tenha sido, no processo civil, generalizada a
quebra do princípio da publicidade (externa) nos feitos judiciais que versam assuntos
de direito de família - inciso II do art. 155, CPC. Parece incoerente essa constatação,
na medida do que se acabou de afirmar, ou seja, que, em sede de aplicação de
princípio constitucional, possa-lhe o legislador ordinário ter dedicado tratamento
típico de regra (baixo nível de generalidade, prévia determinação do estado de
aplicação, enunciado de incidência peremptória que independe das possibilidades
dos casos concretos). Ainda assim, vencida a surpresa inicial, semelhante
tratamento se justifica dentro da própria teoria dos direitos fundamentais, em razão
do repúdio demonstrado pelo ordenamento jurídico à curiosidade popular atentatória
à dignidade dos litigantes, que intuitivamente tende a se debruçar sobre as mazelas
que dizem respeito unicamente à intimidade dos casais e da sua prole, em lides que
envolvem questões de família.
Com efeito, a generalização da restrição da publicidade nas lides de direito de
família (tutela reservada à intimidade) encontra guarida no fato de que a norma da
dignidade humana é regra, além de ser princípio (art. 1º, inciso III, da Constituição
Federal). Sendo um dos fundamentos da República, quando for tratada a dignidade
humana como princípio, ela não se antepõe aos demais, confirmando a inexistência
de precedência absoluta entre eles; diferentemente, sendo tratada como regra, tal
como ocorre na hipótese contemplada no inciso II do art. 155 do CPC, há de
prevalecer genericamente sobre os demais enunciados deontológicos do sistema,
Paolo. Garanzie Costituzionali e “Giusto Processo” Modelli a Confronto. Revista de Processo, São
Paulo: RT, ano 23, abril-junho de 1998, n. 90, p. 117).
228
A remissão feita aos dispositivos legais do CPP e do CPC é apenas ilustrativa e não exclui outras
possíveis, dentre as quais o art. 143 da Lei 8.069/90, que cuida do sigilo dos atos judiciais, policiais e
administrativos que digam respeito a crianças e adolescentes.
95
dado o seu alto nível de especificidade e de precisão
229
. É aceitável, portanto, o
tratamento de regra dispensado pelo ordenamento à preservação da intimidade em
casos de direito de família, assumindo as características típicas dessa modalidade
normativa: baixa generalidade, predeterminação do seu estado de aplicação e feição
absoluta.
O mesmo não se passa com a remissão genérica ao interesse público ou social,
prevista tanto no texto constitucional (arts. , LX, e 93, IX), quanto na legislação
infraconstitucional (art. 155, I, CPC). Para essas hipóteses, cujos contornos
concretos a vida cotidiana pode revelar, é, então, necessário que se utilize da
máxima da proporcionalidade, para que, eventualmente, se possa aplicar a
recomendação aberta e genérica da tutela do interesse coletivo, restringindo a
publicidade. Em outros termos, sendo por um lado justificável a genérica restrição da
publicidade nas causas de família, uma vez que a dignidade da pessoa é capaz de
reclamar tratamento típico de regra e, portanto, comportar campo de aplicação
previamente explicitado no plano normativo, por outro lado o mesmo não se passa
com a tutela do interesse público, ou social, em cujo contexto é sempre necessário
que sejam identificadas as possibilidades de incidência dos princípios, e suas
precedências, conforme o demonstrem os fatos e os acontecimentos concretos da
vida.
Está visto, então, que a publicidade não é uma garantia absoluta do processo, coisa
que, todavia, é própria dos princípios, nenhum deles sendo capaz de se apresentar
de outro modo senão como mandados relativos que dependem de circunstâncias
fáticas e jurídicas; dentro das possibilidades de sua restrição genericamente
previstas no enunciado de direito fundamental, exceto no que se refere às causas
judiciais que cuidam do direito de família (previsão específica da legislação
infraconstitucional baseada na dignidade humana como regra), é necessário que se
apreendam, no caso concreto, as circunstâncias de sua eventual não aplicação,
levando em conta aspectos de fato e de direito, sem a possibilidade de sua
generalização.
229
Alexy considera a dignidade humana regra sempre que se cogita de sua violação. (ALEXY,
Robert. Teoria de los derechos fundamentales.Madri: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales, 2001, p. 92)
96
Essas premissas geram a conseqüência de serem absurdamente incompatíveis com
a ordem democrática do direito, e do processo - exceto no que se refere à restrição
da publicidade nos casos de tutela da intimidade (v.g., direito de família), por razões
atreladas à defesa da dignidade humana todas as normas de direito
infraconstitucional que mitigam a garantia da publicidade fora das balizas
determinadas pela máxima da proporcionalidade, as quais somente encontram
espaço de aplicação nos casos concretos, tendo em mira certos bens que ali
possam se mostrar mais sujeitos à proteção social do que a revelação pública dos
julgamentos e dos atos processuais.
Exemplos de situações plausíveis e concretas de restrição à publicidade são aqueles
em que a publicidade possa comprometer a instrução probatória (risco efetivo à
busca da verdade real) ou a efetividade da tutela demandada (restrição da
publicidade e do contraditório nas liminares inaudita altera pars), além do perigo de
execração ou de escárnio públicos da parte antes do desfecho final do processo e
até mesmo de atentado aos bons costumes e à moral. Situações, enfim, que não
podem ser descortinadas a priori pelo legislador, mas somente identificadas nas
ocorrências específicas de certos litígios
230
.
230
Alexy cita o caso Lebach, julgado pelo TC alemão: quatro soldados foram assassinados e armas
foram subtraídas do depósito do exército, na cidade de Lebach; prestes a deixar a prisão, um dos
condenados postulou ordem proibitória da exibição pública de um documentário televisivo intitulado “o
assassinato dos soldados de Lebach”, argüindo lesão ao seu direito individual à personalidade e o
risco para a sua ressocialização. Embora o Tribunal Provincial tenha negado o seu pedido, o TC o
acatou entendendo que uma notícia jornalística (liberdade de informação) repetida e não atual não
pode se sobrepor à proteção da personalidade.
97
5 A GARANTIA PROCESSUAL DA PUBLICIDADE
Na sua versão pós-moderna, concebida para que a atividade jurisdicional seja capaz
de efetivamente satisfazer as necessidades dos litigantes numa dimensão justa e
participativa
231
, a garantia da publicidade nada mais significa senão a clara
incorporação pelo processo dos ideais da democracia. De fato, somente o Estado de
Direito é que pode dar vazão plena à recomendação constitucional de revelação
interna e externa (popular) dos atos judiciais, permitindo que o processo angarie
adesão e legitimidade social
232
.
Inicialmente concebido para compor as crises pouco complexas e individualistas das
sociedades e das economias liberais, o processo atualmente está em crise
233
por
sofrer os efeitos do descompasso entre as suas premissas lógicas primitivas e a
enorme complexidade das querelas que atualmente lhe são oferecidas a exame,
isso sem falar no pluralismo de ideologias e de expectativas contemporâneas e na
chamada jurisdicionalização da política
234
, a exigir cada vez mais a interferência do
Judiciário no campo da administração dos interesses públicos e privados, numa
perspectiva tanto individual como coletiva.
Dentro da dinâmica ordem social que se instala no mundo globalizado, de irrestrito
acesso aos meios de comunicação e de rápidas transações envolvendo negócios
realizados no tempo real da informática, já não espaço para a morosidade
incômoda das soluções jurisdicionais atreladas ao formalismo exacerbado dos
231
Comoglio fala do repúdio à tutela predeterminada, e da observância do procedimento
correto/adequado e da efetividade das chances processuais. (COMOGLIO, Luigi Paolo. Giurisdizione
e processo nel quadro delle garanzie costituzionali. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura
Civile. Milano: Giuffré Editore, ano XLVIII, 1994, p. 1069)
232
Couture diz que a publicidade do processo é da essência do sistema democrático de governo e
que a publicidade dos atos do parlamento e do executivo deve ser acompanhada da publicidade dos
atos do Poder Judiciário, cujos eventuais inconvenientes são amplamente compensados pela
fiscalização popular dos atos dos juízes. (COUTURE, Eduardo. Fundamentos del derecho procesal
civil. Buenos Aires: Julio César Faira Editor, 2002, p. 158)
233
BATISTA DA SILVA, Ovídio. Democracia Moderna e Processo Civil. In: GRINOVER, Ada
Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo. São
Paulo: RT, 1988, p. 99.
234
Antônio Magalhães Gomes Filho fala que o Judiciário, mais do que simples agente de atuação da
vontade concreta da lei, na atualidade passou a dirimir conflitos coletivos de larga expressão subjetiva
e a controlar em grande escala os demais poderes do Estado, obrigando-se à tomada de posições
morais, políticas e econômicas e situando-se como verdadeiro centro de produção jurídica, fazendo
com isso surgir a expressão “jurisdicionalização da política”. (MAGALHÃES GOMES FILHO, Antônio.
A Motivação das Decisões Penais. São Paulo: RT, 2001, p. 12-13)
98
códigos processuais
235
e para a falta de sensibilidade dos seus institutos para os
reclamos urgentes da satisfação concreta e oportuna das resoluções dos conflitos
regulados pelo direito
236
. Fala-se, então, na efetividade e brevidade do processo e
na revisão dos seus escopos para melhor servir os seus destinatários, ávidos
consumidores do serviço público estatal da jurisdição
237
.
Na realidade, essas novas idéias trazidas para o processo (de resultados)
representam o antídoto que se experimenta para permitir a sobrevivência do direito
processual em crise
238
, que se prostra acamado e febril correndo o sério risco de ser
deslegitimado pela sociedade cada vez mais exigente e intercomunicacional
239
.
Esses escopos atuais do processo buscam, portanto, justificar a manutenção do
poder-dever estatal atinente à jurisdição numa nova perspectiva, bem diversa
daquela sua triste feição histórica que sempre insistiu em manter afastadas as
necessidades comunitárias, servindo prioritariamente (quando não exclusivamente)
aos interesses dos grupamentos sociais abonados
240
. A atualidade crítica e
235
Comoglio diz que il diritto di chiunque a “ce que sa cause soit entendue” non soltanto
“équitablement” e “publiquement” ma anche (e sopratutto) “dans um delais raisonnable” in cui si
traduce l’essenza del “diritto ad um processo èquo”, para concluir que essas premissas formam os
princípios gerais do direito comunitário europeu. (COMOGLIO, Luigi Paolo. Il Giusto Processo Civile
in Italia e in Europa. Palestra apresentada nas Jornadas Brasileiras de Direito Processual Civil,
Fortaleza, 6-10 de agosto de 2001, p. 31)
236
Roger Perrot assevera que o acréscimo de demanda no Judiciário se deve à rápida evolução da
sociedade e à sucessão acelerada das leis, que “geram um contencioso mais abundante, tanto mais
quanto os nossos contemporâneos, mais bem informados de seus direitos que no século passado, já
não hesitam em dirigir-se aos tribunais ante a menor dificuldade e, se necessário, percorrendo todos
os graus da hierarquia judiciária [...] de outro lado, a natureza dos litígios que chegam à Justiça exige
solução cada vez mais rápida”. (PERROT, Roger. O Processo Civil Francês na véspera do Século
XXI. Tradução de José Carlos Barbosa Moreira. Revista de Processo, São Paulo: RT ano 23, 91,
julho-dezembro de 1998, p. 204-205)
237
Cappelletti refere-se a “consumidores do direito e da justiça, em suma, usuários”. (CAPELLETTI,
Mauro. Problemas de Reforma do Processo Civil nas Sociedades Contemporâneas. Revista de
Processo, nº 65, ano 17, jan-mar/92, p. 130,
238
Cappelletti fala em morosidade na distribuição de justiça, por causa da inadequada organização
judiciária (inclusive o excesso de recursos), na demora insuportável dos processos, na deficiência dos
serviços de assistência judiciária, na insuficiente atuação da oralidade, etc. (Ibidem, p. 127).
239
As a consequence of profound societal changes, the principal issues of our day no longer involve
an essentially individualistic, static “private law” and its “droits subjectifs”, but rather they reflect the
problems of an industrial, dynamic, pluralistic society including such matters as strike and labor
conflicts, social and traffic insurance, pollution, consumer portection, and multinational corporations. If,
then, the judicial function of deciding disputes has to be enlarged to encompass such new and
challenging issues, even the judicial organs and procedures are forced to chenge. The old formalistic
bodies and thecniques are frequently unsuitable for the new role”. (CAPPELLETTI, Mauro.
Fundamental Guarantees os the Parties in Civil Proceeding (General Report).Milano: Giuffrè,
1973, p. 725)
240
Taruffo chega ao ponto de dizer que “tem sido sugerido, em substância, o abandono da idéia de
que a decisão judiciária deveria fundar-se em critérios aceitos intersubjetivamente, porque tais
critérios nada mais fariam que reforçar o predomínio dos grupos e das classes que já detém o poder”.
99
participativa não admite a passividade do ambiente social à eventual
imprestabilidade ou à morosidade das funções públicas, exigindo transformações
que possam conduzir as atividades do Estado aos novos tempos
241
. O mundo
globalizado instala na cultura das nações, em particular no processo civil uma nova
dinâmica operacional para resolução das crises e, conseqüentemente, isso interfere
sensivelmente nos institutos consagrados nos ordenamentos jurídicos
242
.
A sociedade brasileira sofre de rarefeita tradição democrática e ainda padece diante
de elites governamentais avessas às críticas populares, mas apesar disso, tem-se
exigido o contínuo repensar do processo na tentativa de conformá-lo a certas
exigências sociais anteriormente jamais experimentadas. Muito embora sejam de
diversas ordens, de acordo com os inúmeros escopos instrumentais do processo
243
(v. g., brevidade e efetividade dos seus resultados), é certo que as imposições que
ao processo são feitas pela opinião blica cuidam sempre da sua democratização
ou da sua inserção na nova e salutar ordem do Estado de Direito.
(TARUFFO, Michele. Senso Comum, Experiência e Ciência no Raciocínio do Juiz. Aula inaugural
proferida na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, 05 mar. 2001.Tradução do
professor Cândido Rangel Dinamarco.
241
Giovanni Verde sustenta, ao comentar o aumento da demanda no processo civil italiano, que È,
questa, uma delle ragioni per le quali i tempi della giustizia si allungano e viene sistematicamente
violato uno dei principi cardine del processo giusto secondo la nostra Costituzione, ossia quello della
ragionevole durata, risolvendosi i ritardi quasi sempre o troppo spesso in denegata giustizia. È chiaro,
allora, che lo Stato deve organizzare um processo capace di concludersi in tempi ragionevoli...La
società, quando le istituzioni sono incapaci di provvedere, trova da sola le sue risposte. Coloro i quali
ne hanno la possibilità fanno ricorso agli arbitrati, sfruttando la facoltà che l’art. 25 Cost. Lascia ai
singoli di fare ricorso ai giudici non statali. Infatti”. (VERDE, Giovanni. Giustizia e Garanzie nella
Giurisdizione Civile. Rivista di Diritto Processuale. Padova: Cedam, 2000, p. 308)
242
Taruffo, quando trata dos efeitos da globalização no direito processual, particularmente
destacando o caráter transacional dos conflitos de interesses e a tendência de contínua mutação e de
uniformização da cultura processual: “Non a caso Habermas parla, per riferirsi a ciò che solitamente si
chiama globalizzazione o mondializzazione, di ‘costellazione post-nazionale’, com uma metafora che
può essere opportunamente usata anche a propósito delle trasformazioni in corso nella giustizia civile
[...] Questi fenomeni hanno luogo all’interno dei dei contesti nazionali in funzione dell’emersione della
prularità di culture anche nell’ambito di singoli sistemi, ma si verificano com particolare intensità su
scala globale.Così come la rete transnazionale dei rapporti giuridici allude ad um diritto più ‘leggero’ e
policentrico, così la cultura giuridica può diventare meno chiusa e sistematica, più varia e variabile,
centrata su molti ponti di referimento culturale collocati in varia luoghi del mondo invece che nella
tradizione consolidata ed autarchica di um solo paese”. (TARUFFO, Michele. Osservazioni Sui
Modelli Processuali di Civil Law e di Common Law. Palestra apresentada na IV Jornadas
Brasileiras de Direito Processual Civil, p. 8)
243
Dinamarco elenca fundamentalmente os escopos social, político e jurídico no plano teleológico do
processo (DINAMARCO, Cândido Rangel. Escopos Políticos do Processo. In: GRINOVER, Ada
Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo. São
Paulo: RT, 1988, p. 120)
100
A democratização da atividade pública processual, típica imposição do mundo
contemporâneo, inspirada nas exigências de efetividade e de resolutividade concreta
dos interesses disputados em Juízo, jamais poderá ser plenamente atingida sem a
observância das garantias processuais
244
, em particular a publicidade, na medida da
comunicação que assegura entre a atividade jurisdicional e o mundo exterior das
expectativas dos sujeitos por ela afetados, ainda que indiretamente
245
.
Tratando da dupla perspectiva fisiológica ou estrutural do processo democrático,
único capaz de satisfazer as reais expectativas dos destinatários de sua atuação,
Comoglio concebe a dupla perspectiva da jurisdição
246
a) de um lado, visando tornar efetiva, em termos instrumentais, a
possibilidade de recurso ao juiz, para a tutela daqueles mesmos direitos
fundamentais, que são ´reconhecidos´ pela Constituição ou pelas
Convenções Internacionais; b) por outro, identificando, em termos de
conteúdo, os mesmos direitos públicos subjetivos, tem por objeto as
condições mínimas e insuprimíveis de um processo justo (vale dizer: a
imparcialidade e a independência da justiça ´natural´ preconstituída por lei;
a igualdade das partes e a ´paridade de armas´ em juízo; os poderes de
ação e defesa) ou, se se prefere, as condições necessárias e suficientes
para uma justa resolução das controvérsias, no âmbito daquele processo
justo.
247
As noções atuais de processo justo (“fair trial”) decorrem da ampliação do conceito
constitucional de justiça, que se forma pela conjugação das idéias da
instrumentalidade necessária (sua atuação mediante a conjugação com o direito
substancial), do acesso real à corte de justiça (em caso de desigualdades cio-
244
“In generali, si intende per ‘garanzia’ ogni strumento o presidio tecnico-giuridico, il quale sia in
grado di far convertire um diritto puramente ‘riconosciuto’, o ‘attribuito’ in astratto dalle norme, in um
diritto effettivamente ‘protetto’ in concreto, e quindi suscetibili di piena ‘attuazione’ o ‘reintegrazione’
ogni qual volta risulti violato”. (COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie Costituzionali e “Giusto Processo”
(Modelli a Confronto). Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 90, ano 23, abril-junho de 1998, p.
100-101)
245
Arruda Alvim diz que “toda atividade jurisdicional é realizada publicamente, salvo exceções. A
publicidade é garantia para o povo de uma justiça “justa”, que nada tem a esconder; e, por outro lado,
é também garantia para a própria magistratura diante do mesmo povo, pois agindo publicamente
permite a verificação de seus atos. (ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil, vol. 1, 4.
ed., São Paulo: RT, 1992, p. 99)
246
COMOGLIO, Luigi Paolo. Op. Cit., p. 101, ver nota 243.
247
Para dar credibilidade, segue o original a) da um lato, mirano a rendere effetiva, in termini
strumentali, la possibilità di ricorso al giudice, per la tutela di quei medesimi diritti fondamentali, che
sono ‘reconosciuti’ dalle Costituzioni o dalle Convenzioni internazionali; b) dall’altro, identificano, in
termini contenutistici, altrettanti diritti pubblici subiettivi, aventi per oggetto le condizioni minime e
insopprimibili di um processo giusto (vale a dire: l’imparzialità e l’indipendenza del giudice ‘naturale’
precostituito per legge; l’eguaglianza delle parti e la ‘parità delle armi’ nel giudizio; i poteri di azione e
101
econômicas), da independência, da autonomia e imparcialidade dos juízes, das
condições adequadas e paritárias do exercício dos direitos da ação e da defesa, do
direito das partes ao processo igual e justo e da adequação e da efetividade dos
instrumentos da tutela jurisdicional das garantias fundamentais do processo
248
. É daí
que surgem as exigências normativas tendentes a assegurar a igualdade das partes
e, além disso, a independência e a imparcialidade dos juízes e dos tribunais, a
publicidade da audiência e da pronúncia da decisão jurisdicional, o direito efetivo de
acesso e de recurso ao órgão judiciário sem discriminação irracional, o contraditório,
a defesa técnica em juízo, o direito à prova (ou o direito de agir e de defender-se,
provando) e o direito à racionalidade do procedimento
249
.
Em outros termos, o que o texto constitucional se presta a fazer quando apresenta o
elenco das garantias do processo é, em verdade, pugnar pelo processo équo e
justo, ou seja, aquele capaz de abrigar os direitos fundamentais atinentes à
igualdade das partes perante a lei, legalidade, participação e controle públicos dos
atos da jurisdição, juízo natural, acesso à justiça, direito de defesa, gratuidade,
motivação e recurso, a isso tudo se denominando legal guarantism
250
.
As idéias hoje concebidas para o processo “justo e équotêm sido historicamente
construídas a partir das exigências devotadas à imparcialidade dos juízes, ao
contraditório, à duração razoável dos feitos judiciais e ao devido processo legal
fundado na oralidade, na concentração e na imediatidade
251
, atendendo sobretudo
as recomendações contidas na Declaração Universal dos Direitos do Homem de
1948
252
, na Convenção Européia para Salvaguarda dos Direitos e das Liberdades
difesa) o, se si preferisce, le condizione necessarie e sufficienti per uma giusta risoluzione delle
controversie, nell’ambito di quel giusto processo.
248
Ibidem, p. 102-103.
249
COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie Costituzionali e “Giusto Processo” (Modelli a Confronto).
Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 90, ano 23, abril-junho de 1998, p. 108.
250
Ibidem, p. 110-111.
251
COMOGLIO, Luigi Paolo. Il Giusto Processo Civile in Itália e in Europa. Palestra apresentada
nas “Jornadas Brasileiras de Direito Processual Civil”, Fortaleza, 06-10 agost. 2001.
252
cf. l’art 8: “everyone hás the right to na effective remedy by the competent national tribunals for
acts violating the fundamental rigths granted him by the Constitutions or by law”; e l’art. 10: “everyone
is entitled in full equality for a fair and public hearing by an independent and impartial tribunal, in the
determination of his rights and obligations and of any criminal charge against him”. (Ibidem, p. 10)
102
Fundamentais de 1950
253
, no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de
1966
254
e no Pacto de San José da Costa Rica
255
. Em termos mais atuais e
conformes à realidade normativa dos países da comunidade européia, incluem-se no
rol dessas exigências o efetivo acesso à justiça, o direito à defesa e à defesa
técnica, a igualdade de armas e de oportunidades em favor das partes, o direito à
prova e à contraprova com balanceamento dialético dos meios de sua aquisição, a
publicidade da audiência e das decisões e a independência dos juízes
256
.
A repulsa à ciência (informação) privada dos elementos da causa faz então surgir,
no meio de uma gama de outras garantias processuais, o direito ao contraditório e à
publicidade interna
257
, enquanto a publicidade externa assenta-se na necessidade
de controle público da atividade jurisdicional. Palavras de Comoglio
258
:
A publicidade, ou seja, a administração da justiça ´em público´, segundo a
qual, na definição dos juristas do common law, ´a justiça não deve apenas
ser feita, mas deve manifesta e indubitavelmente ser vista como feita´ - é
uma garantia fundamental, proclamada pelas Constituições nacionais e
pelas mais importantes convenções internacionais, as quais visam reparar o
poder judiciário de qualquer risco de arbitrariedade e consentem à
generalidade dos consociados a oportunidade de ´judicar o juízo´,
controlando o operador diretamente em seu ´fazer´. Isso exprime a força de
um grande ideal de civilidade jurídica e interpreta e justifica a reação da
sociedade moderna nos confrontos dos velhos sistemas de justiça ´secreta´,
esotericamente administrada ´atrás de portas fechadas, escondida da vista
do público e da imprensa e abrigada do controle blico [...] A publicidade
representa um expediente essencial para a imparcialidade do juiz, numa
clara implicação do princípio da legalidade e da soberania do povo, em
nome do qual a justiça é administrada. Assim, no âmbito da justiça civil,
quando as partes discutem a causa diante do juiz que deverá decidi-la, tal
audiência de discussão é pública, sob pena de nulidade.
259
253
“cf. L’art. 6, comma: Toute personne a droit à ce que sa cause soit entendue équitablement,
publiquement et dans um delai raisonnable, par un tribunal indépendant et impartial, établi par la loi,
qui décidera soit des contestations sur ses droits et obligations de caractére civil...” (Ibidem, p. 10)
254
“...toute personne a droit à ce que sa cause soit entendue équitablement e publiquement par um
tribunal compétent, indépendant et impartial, établi par la loi...” (Ibidem, p. 10)
255
“l’art. 8, comma: toda persona tiene derecho a ser oida, com las debidas garantias y dentro de
un plazo razonable, por um juez o tribunal competente, independiente e imparcial, establecido por
ley...” (Ibidem, p. 10)
256
COMOGLIO, Luigi Paolo. Il Giusto Processo Civile in Itália e in Europa. Palestra apresentada
nas “Jornadas Brasileiras de Direito Processual Civil”, Fortaleza, 6-10 agosto de 2001, p. 13-14.
257
COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie Costituzionali e “Giusto Processo” (Modelli a Confronto).
Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 90, ano 23, abril-junho de 1998, p. 114.
258
Ibidem, p. 116-117.
259
Para dar credibilidade, segue o original La pubblicità ossia l’amministrazione della giustizia “in
pubblico”, secondo la quale, nella definizione dei giuristi di common law, “justice should not only be
done, but should manifestly and undoubtedly be seen so be done...” - è una garanzia fondamentale,
proclamata da più Costituzioni nazionali e dalle più importanti convenzioni internazionali, la quale mira
a porre al riparo il potere giudiziario da qualsiasi rischio di arbitrarietà e consente alla generalità dei
consociati l’oportunità di “giudicare i giudici”, controllandone l’operato direttamente nel suo “farsi”.
103
Na consciência crítica do homem contemporâneo, não mais espaço para que a
atividade processual se divorcie do modelo democrático, nem tanto por razões de
direito natural associadas à idéia intuitiva de justiça, mas, notadamente, em virtude
do ambiente cultural exigi-lo como imperativo advindo da forma de vida adotada pela
coletividade
260
. Sendo as ações humanas marcadas pelas ordens da
intercomunicação e da busca compartilhada do consenso, não razão plausível
para que as soluções jurisdicionais sejam impostas ao meio social sem a
participação popular. Não pode, desta forma, existir processo regular sem a garantia
da publicidade dos seus atos e julgamentos, considerando particularmente a
circunstância do direito processual, a exemplo de tudo o mais que existe na ciência
jurídica, ser o espelho da cultura da época
261
.
A opinião pública debruça-se sobre o processo judicial à cata de pecadilhos e
deslizes dos agentes responsáveis pela sua condução do mesmo modo que o faz
relativamente às demais atividades do Estado, exigindo que lhe sejam prestadas
contas reais e efetivas, sem que os juízes, embora independentes, possam se pôr à
margem desse controle. A doutrina não discrepa do sentimento popular que pugna
pela fiscalização concentrada e difusa da atividade jurisdicional, bastando mencionar
Cappelletti
262
, para quem é necessária a responsabilização dos juízes perante a
sociedade, quer no plano jurídico, sempre que haja violação injustificada dos
deveres que sobre eles recaem (responsabilidade administrativo-disciplinar, penal e
Essa esprime la forza di um grande ideale di civiltà giuridica ed interpreta la giustificata reazione delle
società moderne nei confronti dei vecchi sistemi di giustizia “secreta”, esotericamente amministrata
“behind closed doors, hinden from the view of the public and the press and sheltered from public
accountability”[...] La pubblicità rappresenta un presidio essenziale per l’imparzialità del giudice,
nonchè una chiara implicazione del princípio di legalità e della sovranità del popolo, nel cui nome la
giustizia viene amministrata. Così, nell’ambito della giustizia civile,quando le parti discutono la causa
dinanzi al giudice che dovrà deciderla, tale udienza di discussione è pubblica, a pena di nullità”.
260
Comoglio, referindo-se à democratização do processo civil nos países da antiga cortina de ferro
advinda das imposições da nova ordem mundial pós-comunismo, assinala que “è generalizzata
l’inclusione di un preciso novero di garanzie processuali minime, a tutela del diritto ad un processo
‘equo”, nelle nuove Costituzioni post-comuniste”, em cujo contexto, dentre outras exigências firmadas,
assoma “le garanzie di pubblicità delle udienze avanti ai tribunali”, implicando enfim o “riconoscimento
dei principî generali di procedura secondo le tradizioni costitucionali europee dei diritti fondamentali”.
(COMOGLIO, Luigi Paolo. Diritti fondamentali e garanzie processuali comuni nella prospettiva
dell’Unione europea.Roma: Il Foro Italiano, 1994, p. 25-34.
261
Frase cunhada por Franz Klein e citada por Cappelletti. (CAPPELLETTI, Mauro. Problemas de
Reforma do Processo Civil nas Sociedades Contemporâneas.Revista de Processo, São Paulo, n.
65, ano 17, São Paulo: RT, jan-mar/92, p. 129)
262
Cumpre ter presente ainda, aqui, o dever do juiz de motivar e de tornar públicas as próprias
decisões, um dever que faz possível semelhante responsabilidade social, mais até do que na crítica
104
civil), quer no plano social, por meio das críticas acadêmicas e dos órgãos de
comunicação de massa
263
.
É passado, enfim, o tempo da auto-suficiência da atividade processual, alheia aos
interesses gerais da população e presa unicamente às atenções dos litigantes. A
feição garantística do processo civil, a envolver as noções atuais de acesso à justiça
e de efetividade da jurisdição, aliada à sua atuação no contexto da crescente
jurisdicionalização da política e da tutela dos interesses coletivos lato sensu, causou
a benéfica penetração da atividade jurisdicional no tecido social, assumindo uma
instrumentalidade de caráter menos individual que, forçosamente, acaba por atrair a
atenção da comunidade e da chamada mass media. Fruto da opção constitucional
do pós-guerra, manifestada com o intuito de facilitar o acesso à justiça e dar
efetividade à tutela jurisdicional no universo dos conflitos sociais de toda e qualquer
a ordem, parece irreversível a tendência cada vez mais intensa da jurisdição
integrar-se ao ambiente cultural das sociedades contemporâneas
264
.
Tanto isso é verdade que se exige, atualmente, para países que pretendem se fazer
inseridos na nova ordem econômica e política mundial, um padrão mínimo de
eficiência jurisdicional, bem ilustrado na noção corrente de tempo razoável do
processo
265
. Giuseppe Tarzia
266
diz que a Corte Européia dos Direitos do Homem,
das leis e em geral da atividade dos ramos políticos, a que freqüentemente falta essa pública
motivação”. (Ibidem, p. 138).
263
Cappelletti lembra que a Corte Européia dos Direitos do Homem recomenda não a simples
tolerância, mas, sobretudo, estímulo ao controle realizado pelos meios de comunicação em massa.
(Ibidem, p. 138).
264
“The exigency of making justice accessible to all is an important facet of a trend which has marked
the most advanced legal systems in our century, not only in the socialist area but also in the west. This
is reflected most clearly by the more progressive 20
th
-century constitutions of the western nations.
These constitutions are characterized by their effort to integrate the traditional individual liberties”
including those of a procedural nature with “social” rights and guarantees, essentialy itended to
make the former acessible to all, thus assuring a real, rather than a merely formal, “equality before the
law”. (CAPPELLETTI, Mauro. Fundamental guarantees of the parties in civil proceedind (general
Report). Milano: Giufrè, 1973, p. 726-727).
265
A exigência de tempo razoável para a tramitação do processo está expressamente prevista no art.
111 da Constituição italiana promulgada em novembro de 1999, cujo inteiro teor assim está redigido:
“1) la giurisdizione si attua mediante il giusto processo regolato dalla legge; 2) la disciplina del
processo è assistita da riserva di legge; 3) ogni processo è caratterizzato dal contradittorio tra le parti;
4) le parti devono trovarsi in condizioni di parità; 5) il giudice deve essere terzo ed imparziale; 6) la
legge deve assicurare la ragioevole durata del processo”. (CAIANIELLO, Vicenzo. Riflessini sull’art.
111 della Costituzione. Rivista di Diritto Processuale. VIII edizione. Padova: Cedam, Gennaio-
Marzo 2001, p. 46)
266
TARZIA, Giuseppe. L’art. 111 Cost. e le Garazie Europee del Processo Civile. Rivista di Diritto
Processuale. Padova: Cedam. Gennaio-Marzo 2001, p. 17.
105
em inúmeros julgamentos, tem formulado a sistemática exigência de que os países
membros da respectiva comunidade cumpram a obrigação (art. 6.1 da Convenção)
de implementar um sistema judiciário capaz de satisfazer os reclamos do processo
justo e équo in termini ragionevoli
267
, com a ressalva de que os parâmetros de tempo
razoável para a duração do processo ainda estão em fase de consolidação, embora
possa ser adotada como baliza de orientação a repulsa já manifestada pela Corte de
Estrasburgo no caso italiano Santilli de 19 de fevereiro de 1991, cujo julgamento,
não obstante haja reconhecido a complexidade da causa, concluiu não serem
razoáveis os cerca de seis anos e nove meses consumidos entre a citação do réu e
o depósito do julgado proferido em sede de apelação
268
. De resto, no que importa
aos marcos delimitadores da contagem do tempo razoável do processo, é tendência
da Corte utilizar o lapso compreendido entre a citação do réu e o trânsito em julgado
da sentença ou, nos casos de sentença condenatória, entre o dito ato citatório e a
efetiva satisfação do direito reconhecido
269
.
A reestruturação do processo civil não é obra do acaso, antes se tratando de um
movimento complexo e plural que se explica claramente a partir das exigências de
uma sociedade cada vez mais afeita aos ideais da democracia, no seu mais
ontológico sentido. Prova disso, no que interessa ao estudo da garantia processual
da publicidade, é a decisão da Corte Européia no caso Diennet v. França
270
, que
concluiu tratar-se a
publicidade dos debates judiciais de princípio fundamental, para proteger os
jurisdicionados contra uma justiça secreta que escape do controle do
público, e que contribua para a preservação da confiança popular nas
cortes e nos tribunais dando transparência às atribuições da justiça, a
publicidade integra o conceito de processo équo.
267
Em particular a sentença do caso Laino v. Itália de 18 de fevereiro de 1999, em que ficou assente
que nos casos que concernem ao status da pessoa, a importância da controvérsia para o
demandante é um critério pertinente e, além disso, se impõe uma diligência particular na
consideração da eventual conseqüência que uma lentidão excessiva (do feito) pode causar, em
particular sobre o gozo de direito relacionado à vida familiar”. (TARZIA, Giuseppe. Ibidem. Ibidem, p.
17)
268
TARZIA, Giuseppe. L’art. 111 Cost. e le Garazie Europee del Processo Civile. Rivista di Diritto
Processuale. Padova: Cedam. Gennaio-Marzo 2001, p. 17-18.
269
Ibidem, p. 19-20.
270
Ibidem, p. 16.
106
Nessa medida, portanto, está claro que, exceto nas situações muito particulares
objeto de restrição nos próprios textos que consagram a garantia da publicidade
(arts. 5º, LV e 93, IX, da Constituição Federal), a transparência popular dos atos do
processo é imperativo indeclinável para efeito de controle e de legitimação do
Estado.
107
5.1 AS CATEGORIAS DE PUBLICIDADE
Mesmo os mais remotos estudos doutrinários dedicados à garantia processual da
publicidade adotaram o hábito - que hoje é de uso corrente - de sistematizá-la em
categorias. Tratam-se de categorias ambivalentes, na linguagem de Rogério Lauria
Tucci e José Rogério Cruz e Tucci
271
, cujas denominações e significados variam
conforme o gosto dos autores, mas que denotam, todas elas, os inúmeros modos de
expressão da garantia da publicidade.
É nesse contexto que José Frederico Marques
272
fala em
a) publicidade imediata, quando os atos do processo estão ao alcance do
público em geral, e publicidade mediata, quando os atos processuais se
tornam públicos através de informes e certidões sobre sua realização e
conteúdo”; b) “a publicidade geral, que é a publicidade em seu sentido
amplo, e a publicidade para as partes, quando estas podem estar
presentes aos atos realizados pelo juiz e auxiliar da justiça.
Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci
273
, por sua vez, trabalham com as
seguintes categorias:
a) Publicidade ativa, em que determinados atos do processo são
involuntariamente conhecidos do público; e publicidade passiva, que se
verifica quando o público, por iniciativa própria, sponte sua, deles toma
conhecimento; b) publicidade imediata, quando a cognição dos atos do
processo está franqueada a todos os cidadãos; e a publicidade mediata,
quando deles se toma conhecimento mediante certidão, cópia, ou pela
mass media (imprensa, por exemplo); e c) publicidade absoluta ou externa,
quando todos os atos do processo se realizam perante as partes, e, ainda,
são acessíveis ao público em geral; e publicidade restrita, ou interna,
quando alguns ou todos eles se realizam, somente, perante as pessoas
diretamente interessadas e seus respectivos procuradores judiciais, ou,
ainda, apenas estes.
Antônio Magalhães Gomes Filho
274
, de sua parte, faz a seguinte distinção:
271
TUCCI, Rogério Lauria; TUCCI, José Rogério Cruz e. Constituição de 1988 e Processo:
Regramentos e Garantias Constitucionais do Processo. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 73.
272
FREDERICO MARQUES, José. Instituições de Direito Processual Civil. Vol II, Campinas:
Millennium Editora, 1999, p. 123-124.
273
TUCCI, Rogério Lauria; TUCCI, José Rogério Cruz e. Op. Cit., p. 73, ver nota 268.
274
MAGALHÃES GOMES FILHO, Antônio. A Motivação das Decisões Penais. São Paulo: RT,
2001, p. 50.
108
Publicidade externa e publicidade interna: a primeira diz respeito ao acesso
do público em geral aos atos do processo e, em casos excepcionais, pode
ser restringida, atendendo-se a outros interesses não menos relevantes,
como a proteção da intimidade e da vida privada das pessoas envolvidas no
processo; a segunda, relacionada ao conhecimento que deve ser
assegurado aos próprios participantes do contraditório, não pode sofrer
restrições, pois isso significaria diminuir-lhes as oportunidades de
participação efetiva nas atividades processuais. É possível ainda distinguir a
publicidade imediata, que se realiza pela presença e contato direto com os
atos processuais, e a publicidade mediata, que resulta principalmente da
divulgação desses mesmos atos pelos meios de comunicação.
A doutrina trazida à colação, embora não adote uma terminologia uniforme, trata dos
mesmíssimos atributos da garantia processual da publicidade, sistematizando-os
apenas em ordens e sob títulos diversos, de acordo com os diferentes efeitos que
nela identificam, tanto no plano interior quanto no plano exterior à jurisdição.
Não como negar que algumas das categorias assinaladas de publicidade são
demasiado particularizadas, dedicando-se aos seus atributos internos meramente
procedimentais e, além disso, que haja uma certa sobreposição de conceitos dentro
da mesma sistematização de classes.
Desde sempre, porém, foi identificada a bipartição da garantia da publicidade nas
duas vertentes que lhe parecem as mais notórias, exatamente por lhe serem
naturais e intuitivas: a publicidade interna e a publicidade externa. Calamandrei
275
,
por exemplo, discorrendo sobre o instituto da publicidade ao tratar das normas
jurídicas que regulam as formas processuais, dizia que os atos do processo tanto
podem correr de acordo com a publicidade quanto de acordo com o segredo.
Tratando do contraste entre a publicidade e o segredo, esclarecia que dois são os
seus sentidos, conforme estivessem a se referir aos sujeitos do processo ou a
terceiros. Assim,
No que se refere a terceiros, isto é, “ao público”, pessoas estranhas ao
processo, podem conceber-se abstratamente dois sistemas: o do segredo,
segundo o qual as atividades processuais devem ser realizadas no segredo
dos gabinetes, sem que os terceiros possam ter delas conhecimento, e o da
publicidade, segundo o qual, ao contrário, tais atividades devem desenrolar-
se sob o controle do público. As legislações modernas adotam
habitualmente um sistema intermediário: a publicidade a respeito dos
terceiros se recomenda e se permite somente em relação a algumas fases
275
CALAMANDREI, Piero. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. I. 2. ed. Campinas:
Bookseller, 2003, p. 276-277.
109
(publicidade das audiências, art. 72 do Estatuto; art. 123 do CPC); enquanto
são blicas as audiência em que se discute a causa, não são públicas as
audiências de instrução (art. 84, Disp. Apl.). No que se refere aos sujeitos
do processo, publicidade significa o conhecimento recíproco (ou ao menos
possibilidade de conhecimento) que cada um deles deve ter das atividades
realizadas pelos outros sujeitos; a estrutura “dialética” que, como se verá,
é própria do processo exige que todos os atos realizados por uma parte
sejam levados a conhecimento da parte contrária, a fim de que esta possa
reagir oportunamente em defesa própria: o princípio do contraditório (art.
101, CPC) é a expressão fundamental desta exigência, em função da qual o
art. 97 das Disp. Apl. estabelece que “o juiz o pode receber informações
particulares sobre as causas pendentes diante dele, nem receber
memorandos, senão por meio da secretaria”. Quanto à atividade do órgão
judiciário, algumas de suas fases podem desenvolver-se em segredo, não
para o público mas também para as partes (por exemplo, a deliberação
da decisão, que se toma em Câmara de Conselho: art. 276 do CPC).
Na abordagem feita às modalidades interna e externa da publicidade processual,
Calamandrei o logrou percebê-las numa perspectiva compatível com a atualidade
dos institutos, tanto que restringiu demasiadamente a sua aplicação, mormente no
que tange à revelação pública dos atos para controle difuso popular, muito embora
não mereça qualquer ressalva a sua remissão ao procedimento adotado in camera
di consilgio”, que ainda se pratica na Itália, apesar da forte crítica que se lhe agracia
a parcela respeitável da doutrina
276
.
Goldschmidt
277
, por seu turno, quando traça considerações sobre a sentença e dela
diz tratar-se de um juízo complexo, que resulta de um processo lógico mental que,
ao mesmo tempo, retrata o que deve ser justo na concepção do julgador
(manifestação de vontade), e complementa que,
Em sua qualidade de resultados de um processo lógico, as resoluções são
justas ou injustas; em sua qualidade de manifestações de vontade, são atos
causais e, assim, são atendíveis (válidas e eficazes) e invariáveis
(imutáveis) ou variáveis, por serem impugnáveis (provisórias) ou
desatendíveis (nulas)
.
276
Cappelletti menciona textualmente a posição de Calamandrei para criticá-la, entendendo
necessária a divulgação dos votos nos órgãos colegiados. (CAPPELLETTI, Mauro. Problemas de
reforma de processo civil nas sociedades contemporâneas. Revista de Processo, São Paulo:RT, n.
65, ano 17, o Paulo: RT, jan.-mar./92, p. 138). No mesmo sentido, Giuseppe Tarzia, duvidando da
“suficiência” da norma do art. 128 do CPC italiano, que garante a publicidade apenas da audiência
em que se discute a causa, sem adotar a mesma exigência quanto à decisão assumida na camera di
consiglio. (TARZIA, Giuseppe. L’art. 111 Cost. e le Garanzie Europee del Processo Civile. Rivista de
Diritto Processuale. Padova: Cedam, gennaio-marzo 2001, p. 16)
277
GOLDSCHMIDT, James. Teoria Geral do Processo. Campinas: Editora Minelli, 2003, p. 157-158.
110
Não obstante a ausência de uma clara abordagem a respeito das categorias interna
e externa do princípio da publicidade na doutrina de Goldschmidt, o seu raciocínio
parece que as contempla implicitamente, à medida da possibilidade assinalada de
submissão dos atos decisórios ao controle que resulta não apenas da sua
impugnação pontual e específica, por obra e graça dos recursos legais, como
também no plano geral das expectativas sociais, mediante a invalidação popular
advinda da falta de legitimidade do pronunciamento judicial. De todo modo,
Goldschmidt
278
se apressa em reconhecer, quando trata do processo penal alemão,
que a inobservância da publicidade para os debates orais do juízo (publicidade
interna) gera nulidade ipso juri.
Chiovenda
279
, ao contrário, adotou posição bem mais explícita a respeito do tema,
prenunciando uma série de conceitos que seriam melhor elaborados apenas no
pensamento contemporâneo do processo civil :
A publicidade das atividades processuais é um princípio que se pode
entender de dois modos diferentes: ou como admissão de terceiros
(público) a assistir às atividades processuais; ou como necessidade entre
as partes de que toda atividade processual tenha a presença de ambas.
Num e noutro sentido, incluiu-se a publicidade nos processos mais antigos
(romano, germânico); e excluiu-se, pelo menos em parte, de muitos
processos intermédios.
Publicidade em Relação a Terceiros - A importância preponderantemente
política depreende-se logo do fato de estar consagrado no Estatuto (art. 72).
Confirma-se no art. 52 do Código que as audiências da autoridade judicial
serão públicas, sob pena de nulidade. Quando, pela natureza da causa, a
publicidade puder oferecer perigo à boa ordem ou aos bons costumes, e
nos demais casos estabelecidos em lei, a autoridade judicial, a
requerimento do Ministério Público, ou de ofício, determina que o debate se
realize a portas fechadas. Decreta-se a medida em audiência pública e
insere-se, com a enunciação dos motivos, na ata respectiva. Tal publicidade
é, todavia, restrita à audiência: não se estende, portanto, a todas as
atividades processuais que se realizem fora da audiência (como as provas
perante o juiz delegado). Dos atos do processo, o, ademais, acessíveis
ao público os provimentos do magistrado, que são atos públicos por
natureza, e não os atos e documentos das partes.
Publicidade entre as Partes - As atividades através das quais se desenvolve
a relação processual, têm necessariamente de ser patentes a todos os
sujeitos da relação mesma. Por conseguinte, toda parte tem direito a
examinar as produções do adversário, e esse direito se estende também
aos que são admitidos ou chamados a assistir ao processo (causae adesse)
sem se tornar partes. As partes e seus procuradores, mesmo antes da
278
Ibidem, p. 165.
279
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Vol III, 3. ed. Campinas: Bookseller,
2002, p. 105.
111
audiência e da constituição, por meio da simples exibição da citação, e o
procurador constituído, com a exibição do mandato, são admitidos a
examinar os documentos depositados em cartório, a tirar-lhes cópias ou
extratos em avulso, ou a pedir, a expensas próprias, certidão legal. Além
disso, durante o debate, toda parte tem a obrigação de exibir à outra seus
documentos. As provisões do juiz são emitidas na presença das partes;
mas a lei pode dispor de modo diverso, como faz em relação à sentença,
que é deliberada em sigilo (art. 358), depois publicada em audiência (art.
366). A deliberação dos provimentos colegiais durante a audiência verifica-
se em audiência mesmo, mas os juízes exprimem seu voto em voz baixa ao
presidente. Também a inquirição de testemunhas se procede em presença
das partes. Em vista de razões especiais, pode-se excluir a pessoa da parte
(interditando, art. 840), não, porém, de seu procurador.
Chiovenda pautou-se com aguçada dose de sensibilidade ao lidar com o instituto da
publicidade, o tratando como expressão democrática do processo civil e, portanto,
tornando o seu pensamento facilmente assimilável pela atualidade. Disse com todas
as letras, afinal, no que interessa à publicidade externa, da sua dimensão política de
típica garantia outorgada aos sujeitos da comunidade face às ações
intervencionistas do Estado, prevendo a sanção de nulidade para a inobservância da
publicidade das audiências e destacando a necessidade de motivação do ato
decisório que concluir pela tramitação do feito em segredo de justiça, dentro das
hipóteses contempladas na lei. Indo mais além, admitiu a restrição da garantia da
publicidade, mesmo nos casos tipificados na lei, apenas para alguns atos do
processo, aqueles que possam comprometer o interesse público ou a privacidade
dos litigantes, particularmente referindo-se à audiência, e insistiu na necessidade de
revelação pública dos provimentos judiciais, atos que disse “públicos por natureza”.
no que importa à publicidade interna, Chiovenda discorreu precisamente sobre o
princípio do contraditório, na condição de subproduto endoprocessual da
publicidade.
Não é de surpreender, assim, que a doutrina atual tenha consolidado as idéias
chiovendianas a respeito da garantia da publicidade, aprimorando-as (e explicitando-
as) de modo a torná-las compatíveis com a concepção democrática do processo
atualmente em voga. É nessa linha evolutiva que o pensamento de Michele Taruffo
apresenta-se com enorme poder de persuasão, representando um claro marco
científico no tratamento dedicado pelo processo civil à garantia da publicidade nas
suas concepções interna e, notadamente, externa.
112
Taruffo, com efeito, em que pese tenha voltado suas atenções prioritariamente para
a motivação das decisões judiciais, acabou por atribuir ênfase destacada à
publicidade (externa) dos atos decisórios como forma de legitimação popular da
atividade jurisdicional. No seu discurso, destaca a contribuição prestada pela
motivação e pela publicidade para a racionalização do sistema de administração da
justiça
280
, muito embora admita que inicialmente esses institutos foram justificados
pelo racionalismo funcionalístico e burocrático típico do iluminismo
281
, servindo para
facilitar a conexão entre a sentença e a sua impugnação
282
.
De fato, somente mais tarde é que a obrigação de motivar as decisões judiciais
tornou-se garantia, inspirando-se em razões advindas da ideologia democrática a
ratio da motivação passou a consistir num mecanismo capaz de assegurar o controle
externo, da parte do povo, sobre o modo com que o juiz exercita o poder que lhe é
confiado (publicidade externa)
283
. É somente então que as tais garantias passam a
adquirir característica de instrumento destinado ao controle democrático difuso dos
fundamentos e da legalidade das decisões, tornando-se elemento essencial à
ideologia democrática da justiça
284
.
O autor justifica o largo espaço ocupado pela publicidade no constitucionalismo
contemporâneo, integrando as garantias fundamentais de administração da justiça,
quando diz que essa obrigação passou a ser encarada como direito natural dos
280
TARUFFO, Michele. Il significato costituzionale dell’obligo di motivazione. In: GRINOVER, Ada
Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo. São
Paulo: RT, 1988, p. 37.
281
TARUFFO, Michele. Il significato costituzionale dell’obligo di motivazione. In: GRINOVER, Ada
Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo. São
Paulo: RT, 1988, p. 38.
282
Antônio Magalhães Gomes Filho diz que “no campo do processo penal, a publicidade dos atos do
procedimento representa uma das marcas distintivas do modelo acusatório que acompanhou os
regimes políticos democráticos desde a Grécia e da Roma Republicana -, ao contrário do segredo
que caracterizou o modelo inquisitório próprio dos sistemas de poder absoluto. Daí a grande atenção
dada ao tema pelo pensamento iluminista, que consagrou à exigência de publicidade processual
algumas de suas mais eloqüentes páginas, propiciando com isso o destaque conferido à garantia da
publicidade nas reformas revolucionárias. (MAGALHÃES GOMES FILHO, Antônio. A Motivação das
Decisões Penais, São Paulo: RT, 2001, p. 49)
283
Comoglio, ao tratar da motivação: “Quale ‘esposizione dei fatti rilevanti’ e delle ragioni giuridiche’
su cui la decisione si Fonda, garantirne la credibilità e la controllabilità diffusa, in forza di uma
tradizione giuridico-politica consacrata”. (COMOGLIO, Luigi Paolo. Giudice Civile. Estratto dal
Volume XV della Enciclopedia Giuridica. Roma: Instituto della Enciclopédia Italiana, 1988, p. 11)
284
TARUFFO, Michele. Il significato costituzionale dell’obligo di motivazione. In: GRINOVER, Ada
Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo. São
Paulo: RT, 1988, p. 38.
113
povos, mesmo nos países que não tratam do tema em suas cartas constitucionais.
Enfim, mais do que garantia processual de senso estrito, tanto a publicidade quanto
a motivação são princípios gerais inerentes a todo e qualquer Estado de Direito
285
.
A obrigação de motivar e de dar publicidade às decisões judiciais surgiu, afinal, da
crise do estado pessoal, autoritário e indiferente à sociedade civil, e da conseqüente
formulação da idéia de que a soberania pertence ao povo. Desde então, a justiça
deixou de ser, na visão de Taruffo, mais uma manifestação da vontade do soberano,
ou do Führerprinzip, antes sendo o resultado do exercício do poder que o povo
delegou ao juiz. A transformação no modo de se conceber a soberania,
particularmente no que interessa à jurisdição, implicou uma profunda transformação
na concepção do poder a passagem do estado absoluto ou, nos tempos
modernos, do estado autoritário ou totalitário, para o estado democrático de direito,
disso advindo o fim do poder absoluto e oculto do estado. No estado democrático de
direito o poder realmente não é absoluto, e sobretudo não é oculto: ao contrário, vige
o princípio da transparência, dado que a sua legitimação não é fundada sobre o
princípio da autoridade, mas na democracia
286
.
Nesse contexto, consoante a perspectiva de Taruffo, o juiz, ao emitir o seu
provimento, não se legitima como autoridade que exerce um poder intangível, senão
o fazendo na qualidade de um típico delegado do povo, que é o primeiro e o real
titular da soberania. Daí a necessidade de serem motivadas e reveladas as
decisões, com isso respondendo-se à necessidade de serem demonstrados os seus
fundamentos de fato e de direito, e permitindo que tais fundamentos possam ser
discutidos e controlados pelo auditório externo de forma difusa. Isso explica,
ademais, a necessidade do poder jurisdicional ser transparente, razoável e
controlável, a exemplo de qualquer outro poder exercido no âmbito do estado
democrático de direito
287
.
285
TARUFFO, Michele. Il significato costituzionale dell’obligo di motivazione. In: GRINOVER, Ada
Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo. São
Paulo: RT, 1988, p. 40.
286
TARUFFO, Michele. Il significato costituzionale dell’obligo di motivazione. In: GRINOVER, Ada
Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo. São
Paulo: RT, 1988, p. 41.
287
Ibidem, p. 41-42.
114
A motivação e a publicidade, para a doutrina de Taruffo, são a síntese de dois
elementos: de um lado, a jurisdição é válida quando motivada, com a
possibilidade de justificação e de controle do provimento judicial; de outro lado, a
necessidade de controle externo e difuso sobre o exercício do poder jurisdicional é
manifestação essencial do princípio de participação popular na administração da
justiça. Através desse controle, enfim, o povo se reapropria da soberania e a exercita
diretamente, evitando que o mecanismo de delegação de poder se transforme numa
expropriação definitiva da soberania pelo órgão que a exerce em nome do povo
288
.
As obrigações constitucionais de motivação e de publicidade das decisões judiciais
se inserem, na visão de Taruffo, organicamente no contexto das garantias
fundamentais de administração da justiça, assumindo o papel de instrumentos
indispensáveis de controle sobre a atuação efetiva das outras garantias
concernentes ao exercício da jurisdição. Essa conexão pode ser ilustrada com base
em três pontos fundamentais
289
: o primeiro, sua relação com o princípio da
independência dos juízes, aqui percebido como pertinente à imparcialidade, que
deve ser verificada na concretude das decisões, que não são imparciais em si
próprias, mas enquanto sejam capazes de demonstrá-lo, coisa que se encontra bem
ilustrada nas palavras de Benthan: “good decisions are such decisions for which
good reason can be given”. Daí porque se mostram indispensáveis a motivação e a
publicidade da sentença para possibilitar o controle da independência e da
imparcialidade do juiz nas decisões concretas que profere. O segundo ponto diz
respeito ao princípio da legalidade das decisões judiciais, vale dizer, do dever do juiz
respeitar e aplicar corretamente a lei, cabendo-lhe demonstrar, na motivação
exposta à publicidade, haver aplicado validamente a lei ao caso concreto. Isso é
necessário porque uma legalidade não controlável equivale a uma não-legalidade.
Embora seja delicado o processo de aplicação da lei, não se tratando de operação
mecânica ou objetivamente determinada, resulta de um processo de escolha e de
valoração somente sendo o juiz capaz de anunciar a razão que justificou a
aplicação da lei ao caso concreto será possível avaliar se a escolha da decisão
288
TARUFFO, Michele. Il significato costituzionale dell’obligo di motivazione. In: GRINOVER, Ada
Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo. São
Paulo: RT, 1988, p. 42.
289
Ibidem, p. 42-44.
115
resulta da lei ou do arbítrio do juiz
290
. O terceiro ponto cuida da garantia processual
da parte, essencialmente a garantia da ampla defesa, em que a motivação
transparente assume o importante papel de demonstrar a observância efetiva dessa
recomendação do sistema. De fato, a garantia da ampla defesa de significar a
possibilidade de a parte influir na decisão do juiz, sob pena do seu exercício
aparente servir de mera cobertura formal ao arbítrio do juiz - é nesse amplo contexto
que se insere o direito à prova (uma das principais manifestações do direito de
defesa), aqui compreendido como o direito à valoração da prova pelo ato decisório
judicial.
O direito de defesa, enfim, engloba o direito à prova e o direito de interrogar e de
influir sobre a decisão envolvendo questão relevante de fato e de direito e, portanto,
a motivação deve valorar a defesa e a prova da parte, em particular quando o ato
decisório se funde em razão ou prova diversa daquela que a parte haja produzido,
demonstrando-o publicamente.
De resto, ao tratar da garantia constitucional da motivação, Taruffo aborda os seus
três caracteres elementares: racionalidade, integralidade (“completezza”) e
controlabilidade
291
. Para ele, racionalidade
292
significa que a motivação é um
discurso justificativo que busca mostrar que a decisão é juridicamente válida e é
fundada sobre a verdade de fato, atendendo os requisitos de validade da
argumentação prática (congruência, coerência, nexos de causalidade, uso correto
da linguagem comum e jurídica, etc); o requisito da integralidade (“completezza”) se
define tendo em conta o contexto da justificação racional da escolha que tenha
determinado a decisão, cumpre ressaltar, uma “completezza” justificativa, com a
290
Comoglio fala da “necessita di costruiri una struttura persuasiva di motivi, che valgano a giustificare
in termini giuridicamente credibili le scelte valorative e pragmatiche, celate nella ratio decidendi reale”.
(COMOGLIO, Luigi Paolo. Giudice Civile. Estratto dal Volume XV della Enciclopédia Giuridica.
Roma: Istituto della Enciclopédia Italiana, 1988, p. 11)
291
TARUFFO, Michele. Il significato costituzionale dell’obligo di motivazione. In: GRINOVER, Ada
Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo. São
Paulo: RT, 1988, p. 47-49.
292
Michele Taruffo explica que os instrumentos utilizados para que se realizem raciocínio racionais,
controláveis e justificados são hoje “mais complexos e difíceis de manejar do que eram considerados
no passado: a moderna lógica da argumentação não é mais aquela aprendida durante os estudos
colegiais de filosofia e a ciência é hoje infinitamente mais ampla e sofisticada...”. (TARUFFO, Michele.
Censo comum, experiência e ciência no raciocínio do juiz. Aula inaugural proferida na Faculdade
de Direito da Universidade Federal do Paraná, 05 mar. 2001. Tradução de Cândido Rangel
Dinamarco, p. 41).
116
necessária presença do argumento que confirmou a validade da escolha adotada na
decisão (em outro termo, deve ser cognoscível a concatenação dos juízos, de fato e
de direito, de que a decisão é o resultado final); para a controlabilidade da
motivação, finalmente, é indispensável que seja ela pública e acessível, para ser
compreensível - motivação técnica pode ser considerada adequada para os fins
endoprocessuais, no que interessa particularmente à impugnação e ao controle
superior sobre a sentença impugnada, que assimilável pelos operadores do
direito, mas é duvidosa a sua valia para o controle externo difuso popular.
A dimensão garantística da obrigação de motivação, a envolver o controle difuso e
externo dos atos judiciais, reclama que possam ser eles controlados e, portanto,
compreensíveis potencialmente por toda e qualquer pessoa medianamente culta,
pois o seu significado fundamental é assegurar o controle social dos fundamentos da
decisão. A motivação, no que interessa à sua controlabilidade, deve ter em mira o
“auditório universal” em uma acepção concreta e histórica do termo, voltando-se
para o cidadão de cultura mediana no lugar, no tempo e no contexto sócio-cultural
em que se tenha pronunciado a decisão. O juiz, para Taruffo, não deve se comportar
como órgão burocrático que redige formalmente um staatsakt, ou como jurista
apenas, mas como um homem médio do seu tempo, dando-se conta de que exercita
a sua função em certo ambiente social no qual se espera que a sua decisão possa
operar efeitos
293
.
Somente desse modo, de fato, poder-se-á realizar em concreto, e não apenas no
campo da enunciação abstrata, o significado profundo da obrigação constitucional
de publicidade das decisões judiciais motivadas, como garantia de participação do
povo na administração da justiça através do controle social difuso sobre o exercício
do poder jurisdicional
294
.
293
TARUFFO, Michele. Il significato costituzionale dell’obligo di motivazione. In: GRINOVER, Ada
Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo. São
Paulo: RT, 1988, p. 49-50.
294
Ibidem, p, 50.
117
5.2 A PUBLICIDADE INTERNA
O princípio processual da publicidade, aplicado no plano interno, é que torna
possível às partes o exercício do contraditório, condição sine qua non para a
existência de um processo justo
295
. Afinal, sem a ciência (informação) de todo e
qualquer acontecimento processual potencialmente capaz de afetá-las, as partes
acabariam sendo privadas da possibilidade de reação bastante a ensejar a
preservação dos seus interesses, com igual comprometimento à contribuição delas
para o desfecho final da contenda nos moldes compatíveis com as suas
expectativas
296
.
Cintra, Grinover e Dinamarco
297
explicam que o princípio do contraditório tem por
berço o brocardo romano “auditur et altera pars”, vale dizer, o princípio da audiência
bilateral. É inseparável da distribuição organizada de justiça e está intimamente
ligado ao exercício do poder de influir sobre a esfera jurídica das pessoas, a ponto
dele modernamente ser considerado inerente à própria noção de processo – a
bilateralidade da ação está contida na idéia da bilateralidade do processo, ou seja,
muito embora o autor instaure a relação processual ao invocar a tutela, ela se
completa e se põe em condições de realizar-se com o chamamento do réu. “O juiz,
ouvindo uma parte, não pode deixar de ouvir a outra somente assim dará a ambas
a possibilidade de influir sobre o seu convencimento”. A ampla defesa, por sua vez,
é possibilitada pelo contraditório e com ele mantém íntima ligação, traduzindo-se na
expressão “nemo inauditus damnari potest”. Decorre de tais princípios a
295
Ao lado de outros direitos fundamentais o menos nobres, naturalmente. Comoglio fala, por
exemplo, da imparcialidade e do juízo natural, da publicidade da audiência e da decisão (e por
reflexo, do tratamento oral da causa), e também da concentração e da duração razoável do tempo
processual, para configuração do modelo de processo équo. (COMOGLIO, Luigi Paolo. Diritti
fondamentali e garanzie procesuali comuni nella prospettiva dell’Unione europea. Roma: Il Foro
Italiano, 1994, p. 35-36)
296
“Nel qualificare il fatto storico e nel determinare la regula juris ad esso applicabile, il giudice
realizza in modo pieno la sua autonomia, soggiacendo all’imperio esclusivo delle norme del diritto. Il
carattere tecnicamente officioso di questo potere, come non elimina del tutto la necessità di una
collaborazione delle parti nell’idividuazione di talune fonti normative, così non può certo sancire la
sottrazione dell’operato del giudice al vaglio fondamentale del contraddittorio. Un coerente sviluppo
dei poteri di chiarificazione, infatti, porta a considerare come inderogabile il dovere del giudice di non
‘sorprendere’ le parti con una soluzione giuridica o con un’applicazione di principî normativi, su cui
non sia stato tempestivamente sollecitato il loro dibattito”. (COMOGLIO, Luigi Paolo. Giudice Civile.
Estrato dal Volume XV Della Enciclopedia Giuridica. Roma: Istituto Della Enciclopedia Italiana, 1988,
p. 10)
297
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria geral do processo. 9. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1993, p. 53.
118
necessidade de que se ciência a cada litigante dos atos praticados pelo juiz e
pelo adversário somente conhecendo-os, poderá efetivar-se o contraditório. Por
ciência, não se deve considerar apenas atos do tipo citação, intimação e notificação,
mas qualquer meio que se mostre suficiente para permitir a identificação, sem
sombra de dúvida, ou o conhecimento bilateral dos atos contrariáveis.
Para Cintra, Grinover e Dinamarco
298
, ainda, tratando-se de direitos disponíveis, não
deixa de haver o pleno funcionamento do contraditório mesmo que a contrariedade
não se efetive é o caso do réu em processo civil que, citado em pessoa, fica revel
– sendo indisponível o direito, porém, o contraditório precisa ser efetivo e equilibrado
(daí é que advém o conceito de réu indefeso no processo penal). Isso leva os
mencionados autores a sustentar que “o contraditório é constituído por dois
elementos: a) informação e b) reação (esta, meramente possibilitada nos casos de
direitos disponíveis). Além disso, o contraditório não admite exceções mesmo nos
casos de urgência, quando o juiz provê “inaudita altera parte”, com o intuito de evitar
o “periculum in mora”, o demandado deverá ser convocado para inserir-se na
atividade processual plena e sempre antes que o provimento se torne definitivo”.
Luiz Guilherme Marinoni
299
diz da participação real e não apenas ilusória (formal)
dos litigantes no processo, para com isso ser propiciada às partes a paridade de
armas, evitando situações imprevisíveis que possam impedi-las de participar de
forma efetiva do processo.
Para o contraditório Delosmar Mendonça nior
300
sustenta a possibilidade de as
partes exercerem todos os atos processuais aptos a fazer valer em Juízo seus
direitos e interesses, condicionando o êxito do processo. Para a sua doutrina, a
participação (que melhor explicita, citando Dinamarco, no sentido de “viver o
processo, aumentando as suas possibilidades de vitória”) compreende a participação
crítica e construtiva das partes em todos os atos do processo, ou seja, defendendo
as suas razões, produzindo alegações de caráter fático e jurídico, realizando provas
298
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria geral do processo. 9. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1993, p. 54.
299
MARINONI, Luiz Guilherme. Novas Linhas do Processo Civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 1999, p. 256-257.
119
e intervindo na formação da prova da outra parte. Invoca Humberto Theodoro Júnior:
“não se completa o contraditório com a simples ouvida da parte. Há de se lhe
ensejar oportunidade de rebater as alegações do outro litigante, com argumentos e
provas. De tal forma, se ouve a parte, mas não lhe oportunidade de provar as
alegações, o contraditório fica vazio de conteúdo”, para completar: “toda matéria que
diga respeito à defesa judicial de direitos no processo está afeta ao princípio do
contraditório: alegações, meios de provas, acompanhamento na formação da prova,
prazos, poderes, faculdades e ônus para o exercício da defesa, etc”.
Em José Carlos Barbosa Moreira
301
, a garantia do contraditório significa um mínimo
de previsibilidade ou, em outras palavras, é preciso que o réu saiba, ao ser
convocado a Juízo, ou possa verificar com os dados de que dispõe, quais são as
suas chances, tanto para o melhor, quanto para o pior; é preciso que ele possa
avaliar desde logo qual é a pior coisa que lhe pode acontecer na hipótese de
derrota. Dependendo das circunstâncias, o réu pode até mesmo optar
conscientemente por não se defender, desde que esteja seguro do limite máximo do
prejuízo que poderá vir a sofrer, se derrotado. Esse elemento de previsibilidade é
absolutamente essencial para que o réu possa exercer amplamente o seu direito de
defesa. Isso se liga à problemática do pedido certo e determinado sendo, por essa
razão, que a sentença deve se ater a ele. Desobedecida a regra, o juiz deve utilizar
o art. 284, dando prazo para que o autor emende a inicial, adequando-a à exigência
legal, sob pena de indeferimento.
Cândido Rangel Dinamarco
302
, por sua vez, destaca que “a importância atribuída
modernamente à relação jurídica processual associa-se intimamente ao princípio do
contraditório, com o juiz obrigado a praticá-lo efetivamente e a permitir que o
pratiquem as partes”. É somente assim que se pode promover a efetividade dos
direitos
300
MENDONÇA JR., Delosmar. Princípios da Ampla Defesa e da Efetividade no Processo Civil
Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, pp. 39-40.
301
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Correlação entre o pedido e a sentença. Revista de
Processo, São Paulo: RT, n. 83, São Paulo: RT, 1996, p. 208-209.
302
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. vol. I. 2. ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2002, p-213-216.
120
uma tutela jurisdicional sem efetividade não é, na realidade, tutela alguma
[...] o juiz tem poderes-deveres destinados a efetivar a tutela, conclamado a
sair do plano dos enunciados e da impassível contemplação da realidade,
passando a ser participativo e cônscio da responsabilidade de produzir
resultados práticos na vida das pessoas e dos seus direitos [...] O art. 125
do CPC determina que, durante os trâmites de realização do processo, o
juiz se esmere pela efetividade do princípio do contraditório efetivo e
equilibrado, pela celeridade destinada a chegar tão cedo quanto possível a
tutela jurisdicional e pela observância das regras inerentes ao devido
processo legal.
À efetividade do contraditório se chega franqueando às
partes plena e eficiente participação, também participando ele próprio (o juiz
tem o dever de não se comportar como mero expectador de um duelo
deve dirigir o processo efetivamente, mediante atos de impulso oficial,
sanear e depurar possíveis vícios, preparar um julgamento final justo
exercendo a iniciativa probatória nos limites do razoável e estabelecer um
racional diálogo entre as partes); assegurar às partes igualdade de
tratamento consiste em manter um comportamento sem discriminações e,
por outro lado, compensar as desigualdades porventura existentes. É,
também, reconhecido o direito dos litigantes a um processo realizado em
tempo razoável, sendo dever do juiz dar efetividade a isso, exercendo
poderes e deveres conforme as regras de legalidade asseguradas pela
cláusula do devido processo legal”
.
Essas idéias são bem ilustradas por Dinamarco quando examina a extinção do
processo sem julgamento de mérito, entendendo que isso sempre deve ser
precedido de um debate entre as partes, por ser da essência do contraditório
“nada diz o texto infraconstitucional quanto ao contraditório prévio à extinção
processual a ser imposta de ofício, não a tendo pedido o réu. Mas a abrupta e
surpreendente decisão de extinguir o processo, sem ser precedida da manifestação
do autor, é inconstitucional, porque o princípio do contraditório, em sua feição
moderna, inclui a exigência de um diálogo do juiz com as partes nessa situação”.
Comoglio, por sua vez, concebe a garantia do contraditório ao mesmo tempo como
garantia estrutural do procedimento, mecanismo específico de formação idônea da
prova e, finalmente, forma que legitima a decisão judiciária, afastando a sentenza a
sorpresa e demonstrando a imparcialidade do juízo
303
.
Na condição de sub-produto do contraditório efetivo, a paridade de armas é tida e
havida como condição indispensável à existência do processo équo, cujo enunciado,
dentre os tantos outros significados possíveis, pressupõe que nenhuma das partes
tenha oportunidades mais vantajosas de obter êxito na causa do que o adversário;
trata-se, portanto, o princípio do contraditório, a que se chega de modo concreto
121
pela via da publicidade processual interna, do direito reconhecido às partes de
conhecer todas as peças ou observações produzidas e apresentadas ao juiz da
causa, de modo tal que possam participar do debate dialético inerente ao processo e
influenciar na decisão
304
.
Não se concebe na atualidade do processo civil, enfim, a privação das exigências de
informação e participação efetiva das partes no processo, sob pena delas serem
impedidas de influir decisivamente no desfecho da solução reservada para o caso
submetido à jurisdição. A publicidade interna é, portanto, típica garantia do processo
democrático, indispensável à sua própria existência
305
, além da sua validade, que
serve fundamentalmente, nas palavras de Giuseppe Tarzia
306
, para que o juiz
estabeleça um necessário diálogo com as partes
307
.
Para a garantia da publicidade no plano interno, assumem relevo as categorias
isoladas pela doutrina sob os títulos de publicidade para as partes
308
, ou publicidade
interna
309
, que se desdobra
310
em imediata e mediata, a primeira significando a
presença e o contato diretos com os atos processuais, e a segunda resultando da
sua divulgação pelos meios de comunicação. No processo oral, é comum que se
observe a publicidade para as partes, melhor chamada de publicidade interna, na
sua modalidade imediata, ao passo que o processo escrito é mais afeito ao tipo
mediato. De toda sorte, tanto numa como noutra forma de publicidade interna, cuida-
se de evitar que seja mitigada a garantia de pleno acesso à informação concernente
ao ato processual de interesse para as partes, de maneira que elas sempre possam
303
COMOGLIO, Luigi Paolo. Il Giusto Processo Civile in Itália e in Europa.Palestra apresentada
nas “Jornadas Brasileiras de Direito Processual Civil, Fortaleza, 06-10 agost. 2001, p. 22-27.
304
TARZIA, Giuseppe. L’art. 111 Cost. E le Garanzie Europee del Processo Civile. Rivista di Diritto
Processuale. Padova: Cedam. gennaio-marzo 2001, p. 10-12.
305
Fazzalari diz, afinal, que o contraditório é o que basta para que se possa cogitar da existência do
processo. (FAZZALARI, Elio. Istituzioni di Diritto Processuale, VIII edizione. Padova: Cedam, 1996,
p. 83)
306
TARZIA, Giuseppe. Le Garanzie Generali del Processo nel Progetto di Revisione Costituzionale.
Rivista di Diritto Processuale. Padova: Cedam, 1998, p. 667.
307
Giuseppe Tarzia observa, em relação ao contraditório, ser vedada a sua supressão senão o seu
diferimento em casos tais como o processo ingiuntivo e nos casos de urgência das medidas
cautelares e dos procedimentos possessórios. (Ibidem, p. 665)
308
FREDERICO MARQUES, José. Instituições de Direito Processual Civil. Vol II, Campinas:
Millennium Editora, 1999, p. 123-124
309
TUCCI, Rogério Lauria; TUCCI, José Rogério Cruz e. Constituição de 1988 e Processo :
Regramentos e Garantias Constitucionais do Processo. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 73.
310
MAGALHÃES GOMES FILHO, Antônio. A Motivação das Decisões Penais. São Paulo: RT,
2001, p. 50.
122
reagir do modo que melhor contemple as suas conveniências e interesses,
contribuindo para a efetividade da tutela jurisdicional
311
.
311
Ver, a propósito da necessidade de uma nova postura reclamada para os operadores do direito no
âmbito do processo civil, PISANI, Andréa Proto. Giuseppe Borrè e l’Effettività della Tutela
Giurisdizionale. Questione Giustizia. Trimestrale Promosso da Magistratura Democratica.Franco
Angeli, n. 1, 1998.
123
5.3 A PUBLICIDADE EXTERNA
No âmbito da publicidade externa, também a apropriação de categorias
ambivalentes pela doutrina de modo a defini-la, muitas das quais sobrepostas e
coincidentes. José Frederico Marques a chama de “publicidade geral” e a divide
entre os tipos imediato e mediato, conforme estejam os atos do processo “ao
alcance do público em geral” ou estejam acessíveis “através de informes ou
certidões”
312
. Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci tratam-na pelo nome
de publicidade absoluta, e também desdobram-na em imediata e mediata e, além
disso, dizem-na ativa quando a generalidade das pessoas involuntariamente
conhece determinados atos do processo, e passiva a publicidade quando o público,
por iniciativa própria, deles toma conhecimento
313
.
É certo, porém, que a publicidade externa, seja qual for o seu espectro de atuação,
volta-se para interesses que se apresentam além da esfera das pessoas dos
litigantes, com o intuito de dotar o processo de uma legitimidade democrática
associada à obtenção do consenso popular.
Luhmann, que se dedica à legitimação das funções estatais e da jurisdição pela via
do procedimento
314
, defende o isolamento dos interesses processuais sucumbentes
no ambiente social como forma de erradicar dos indivíduos a capacidade de gerar
problemas, independente do seu acordo ou da sua rejeição, e diz que isso está
imanente no conceito de validade das normas
315
. Muito embora esteja claro para ele
que o procedimento judicial se funda na técnica de sua limitação aos únicos
312
FREDERICO MARQUES, José. Instituições de Direito Processual Civil. Vol II, Campinas:
Millennium Editora, 1999, p. 123-124.
313
TUCCI, Rogério Lauria; TUCCI, José Rogério Cruz e. Constituição de 1988 e Processo:
Regramentos e Garantias Constitucionais do Processo. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 73.
314
A teoria de Luhmann sustenta-se na legitimidade como capacidade da estrutura jurídica ensejar a
generalizada aceitação de suas decisões, sendo de cunho decisionista” (caráter decisório da
legitimidade) peculiar, pois, apesar disso, não admitindo a legitimidade baseada em “valores
supremos”, a remete ao procedimento em si, e não às suas partes componentes - no curso do
processo é que se a legitimidade pois os endereçados das decisões aprendem a aceitá-las antes
que elas concretamente ocorram. (FERRAZ JR. Tércio Sampaio, apresentação da obra de
LUHMANN, Niklas, Legitimação pelo Procedimento. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1980, p. 3-4)
315
LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo Procedimento. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1980, p. 102.
124
interessados (com clara repercussão na noção dogmática de interesse processual),
nem por isso defende que a atitude dos não-participantes seja pura e simplesmente
irrelevante para a legitimação pelo procedimento.
Verifica-se exatamente o contrário. A legitimação é a institucionalização do
reconhecimento de decisões como obrigatórias. Institucionalização quer,
porém, dizer que o consenso sobre determinadas expectativas de
comportamento sugere e pode ser utilizado como fundamento da ação. Isso
é possível quando o consenso realmente persiste em grande dimensão,
ou quando é simulado através da não-declaração de falta de consenso.
Para poder estabilizar essas conjecturas de consenso relativas ao caráter
obrigatório da decisão oficial, tem também de se fazer participar no
procedimento os não-participantes. Claro que eles não terão acesso ao
papel de oradores, mas o procedimento, como drama, também a eles se
destina. Têm de chegar à convicção de que tudo se passa naturalmente, de
que pelo esforço sério, justo e intenso se investigará a verdade e a justiça e
que, eventualmente, com a ajuda destas instituições, também eles
recuperarão os seus direitos
316
.
O pensamento de Luhmann não se ocupa das questões da democracia processual,
mais estando voltado para a eficácia fática da decisão oficial através do mecanismo
de isolamento do indivíduo recalcitrante. Ainda assim importa saber que, para ele, o
procedimento público é tanto mais legítimo quanto mais seja divulgada a sua lisura
“com base na situação de comunicação”, pois aquele “que se quer revoltar contra
uma decisão obrigatória não poderá contar com o apoio dos outros”
317
.
É bem mais confortável para a contemporaneidade a simples defesa da posição de
que o princípio da publicidade é imprescindível para a fixação do conceito de
processo justo e équo, sendo o único meio capaz de garantir a lisura e a
transparência dos atos judiciais e permitir o controle e a fiscalização popular
318
.
Ocorre, todavia, que são correntes as vozes que defendem a impossibilidade de
aplicação plena do princípio da publicidade no processo civil diante da escandalosa
possibilidade de violação de outras garantias que igualmente acometem as pessoas
dos litigantes, além do interesse público.
316
LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1980, p. 104.
317
Ibidem, p. 104.
318
COUTURE, Eduardo. Fundamentos del derecho procesal civil. Buenos Aires: Julio César Faira
Editor, 2002, p. 158.
125
Cândido Rangel Dinamarco
319
, por exemplo, associa a garantia da publicidade
processual à democracia e à necessidade de transparência dos atos realizados
pelos órgãos públicos e salienta que, em relação às partes e seus advogados, não
pode haver restrição de qualquer espécie quanto à publicidade dos atos processuais
por se tratar de apoio operacional à efetividade do contraditório. O acesso aos autos
dos feitos que correm em segredo de justiça por parte de advogados que não atuem
no processo e de terceiros, sujeita-se às ressalvas do art. 155 do CPC. É amplo o
acesso aos autos dos órgãos superiores de jurisdição (imperativo lógico do sistema
de ltiplos graus jurisdicionais) e dos órgãos censórios da magistratura e,
finalmente, no âmbito da publicidade geral dos atos processuais, a opção do sistema
brasileiro é pela garantia do direito à informação, com a possibilidade de fiscalização
pública da atividade dos juízes, através da publicidade das audiências, admitindo-se
a presença de pessoas estranhas ao processo no recinto, ressalvados os casos de
segredo de justiça (art. 444/CPC). O autor, por fim, conclui destacando a
necessidade de ser preservada a discrição inerente à atividade jurisdicional contra
os males do sensacionalismo, com a proibição de transmissão televisiva ou
radiofônica das audiências e sessões de julgamento, e com a restrição ao acesso de
estranhos aos autos.
Não difere a posição defendida por Antônio Magalhães Gomes Filho, ao tratar da
divulgação dos atos processuais pelos meios de comunicação, dizendo da
“necessidade de temperar o interesse geral no interesse público do que se passa no
processo com certos direitos das pessoas envolvidas, não menos relevantes para a
sociedade e igualmente dignos de proteção”
320
Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci, de igual modo, lembram o teor do
art. da Convenção Européia para a Salvaguarda dos Direitos dos Homens e das
Liberdades Fundamentais, o art. 14, 1, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos e até mesmo os arts. 128, 1, e 423, 2, respectivamente, do Código de
Processo Civil e do Código de Processo Penal italianos, para destacar o acerto da
restrição legal à ampla publicidade dos atos processuais, tal como se contém no
319
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. I. 2. ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2002, p. 235-236.
126
texto constitucional brasileiro (art. 5º, LX, e 93, IX), dizendo-o compatível com os
mais importantes diplomas de Direito Internacional voltados à proteção dos direitos
humanos.
Realmente, atento a esse importante aspecto, Habscheid justifica a
derrogação da garantia da ampla publicidade, sobrelevando o enorme
poder de condicionamento exercido pela imprensa e por outros mass
media, que, infelizmente, em muitas hipóteses, enseja um verdadeiro trial
by press.
321
.
Exatamente nessa linha de raciocínio Couture
322
apresenta seus argumentos:
A publicidade é em si mesma uma garantia da função jurisdicional. Mas os
instrumentos modernos de difusão de idéias e imagens, têm levado esta
garantia a certas situações que, no seu alcance extremo, conspiram contra
a obra da jurisdição e constitui um perigo tão grande como o próprio
segredo. A televisão de audiência tem provocado em alguns países
profundas reações de protesto. Não apenas os juízes são perturbados em
suas ações por uma malsinada curiosidade, como também as próprias
partes e as testemunhas são submetidas a graves excessos de publicidade
que violam o direito à intimidade, à disponibilidade de sua própria pessoa, o
chamado “direito de ser deixado em paz”, o direito de que a pessoa seja
deixada só. Colocando o problema em termos justos, deve ser dito que o
princípio da publicidade constitui em si mesmo uma preciosa garantia do
indivíduo a respeito da obra da jurisdição; mas a malsinada publicidade, o
escândalo, a indevida vedação daqueles que não podem acudir aos
mesmos meios porque a sua própria dignidade os veda, podem não
invalidar essa garantia como também transformá-la num mal maior.
323
Está visto que a doutrina de processo civil não destoa, ao referendar a restrição, da
garantia processual da publicidade naqueles casos previstos e contemplados no
texto constitucional, exatamente para que a sua efetivação o cause mal ainda
320
MAGALHÃES GOMES FILHO, Antônio. A motivação das Decisões Penais, São Paulo: RT,
2001, p. 50.
321
TUCCI, Rogério Lauria; TUCCI, José Rogério Cruz e. Constituição de 1988 e processo.
Regramentos e garantias constitucionais do processo. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 84-85.
322
COUTURE, Eduardo. Fundamentos del derecho procesal civil. Buenos Aires: Julio César Faira
Editor, 2002, p. 159.
323
Para conferir credibilidade, segue o original - La publicidad és, en misma, una garantia de la
función jurisdiccional. Pero los instrumentos modernos de difusión de ideas e imágenes, han llevado
esta garantía a términos que, desde el otro extremo, conspiran contra la obra de la jurisdicción y
constituyen un peligro tan grande como el secreto mismo. La televisión de audiencias ha provocado
en algunos países profundas reacciones de protesta. No sólo los jueces ven perturbada su acción por
una malsana curiosidad, sino también las propias partes y los testigos son sometidos a graves
excesos de publicidad que violan el derecho a la intimidad, a la disponibilidad de la propia persona, ell
llamado the right to be alone, el derecho a que lo dejen a uno solo y en paz. Colocando el problema
en sus justos términos, debe decirse que el principio de publicidad constituye en sí mismo una
preciosa garantia del individuo respecto de la obra de la jurisdicción; pero que la malsana publicidad,
el escándalo, la indebida vejación de aquellos que no pueden acudir a los mismos medios porque su
127
maior do que a sua inobservância, nas situações que possam comprometer a
dignidade da pessoa humana e quando haja a necessidade de preservação do
interesse público. Está bastante claro, ademais, que os ordenamentos do direito
comparado contemplam semelhante restrição no que tange à publicidade dos atos
do processo, pelos mesmos fundamentos acolhidos na ordem jurídica brasileira
324
.
Então, para evitar ofensa à intimidade dos litigantes, é possível que a restrição à
publicidade se opere como regra e, portanto, incida indistintamente para todos os
casos delimitados na lei (art. 155, II, CPC); diferente há de ser, todavia, o tratamento
dedicado à restrição da publicidade por imperativo de interesse público (art. 155, I,
CPC), expressão adotada expressamente pelo art. 93, IX, da Carta, e substituída no
seu art. 5º, LX, por interesse social. Aqui, com efeito, a restrição da publicidade há
de se dar no caso concreto por critério de ponderação de interesses, de tal modo
que, nas situações justificadas pela maior expressão de certos outros direitos
colidentes, possam estes prevalecer, conforme a sua maior efetividade potencial na
tutela de bens fundamentais.
Com o chamado interesse público, por outro lado, ocorre uma dificuldade adicional
no campo da possibilidade que se lhe admite para a restrição da garantia da
publicidade, a par da inviabilidade de sua adoção como regra a sua condição de
conceito aberto e indeterminado. Essa peculiar característica do vocábulo “interesse
público” leva Barbosa Moreira
325
a exigir clara e exaustiva fundamentação para o ato
judicial que opte por aplicá-lo ao caso concreto, a fim de que se torne possível “o
exame das escolhas valorativas do juiz”, tal como se passa com qualquer outro caso
de utilização de “conceitos jurídicos indeterminados, como “bons costumes” e
“exercício regular de direito”, pois, somente por intermédio de decisão motivada, é
propia dignidad se los veda, pueden no sólo invalidar esa garantía sino también trasformarla en un
mal mayor”.
324
“Quanto alle ragioni che possono dar fondamento ad eccezioni alla regola della pubblicità, le
stesse carte costituzionali fanno riferimento all’interesse ‘della morale, dell’ordine pubblico o della
sicurezza nazionale in uma società democratica’, agli ‘interessi dei minori’ ed alla ‘tutela della vita
privata delle parti nel processo’ (art. 6 della Convenzione europea); in sintesi, alla prevalenza di altri
valori Che pure possono considerarsi costituzionalmente protetti”. (DENTI, Vittorio. La Giustizia
Civile – Lezioni Introduttoria. Bologne: Il Marlins, 1989, p. 92-93)
325
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A Garantia do Contraditório na Atividade de Instrução.
Revista de Processo, n. 9. São Paulo: RT, p. 235.
128
possível “saber se o juiz usou bem ou mal a sua liberdade de escolha ou se
ultrapassou os limites da discrição, caindo no arbítrio”.
De todo modo, ao contrário do que se passa com a publicidade interna, que a regra
prima pela sua cabal observância nos atos do processo, sob pena de violação do
direito essencial das partes ao contraditório, a publicidade externa é passível de
restrição no âmbito dos interesses sociais ou blicos, afetados pela jurisdição e,
notadamente, no resguardo da dignidade das pessoas dos litigantes.
Todavia, a dimensão excessivamente plural dos interesses envolvidos nas
contendas judiciais e a potencialidade lesiva da curiosidade humana aguçada pela
enorme facilidade de acesso aos meios contemporâneos de comunicação, têm
potencializado as perplexidades que pendem sobre os limites de atuação dessas
possíveis restrições, ensejando incertezas que podem perfeitamente resvalar para a
permissividade de revelações comprometedoras da intimidade alheia ou, por outro
lado, para a arbitrariedade e para a indevida ocultação das intenções eventualmente
escusas do julgador. Muito embora para esses últimos casos exista, em tese, o
antídoto que se põe sob a forma da exigência de fundamentação do ato judicial que
haja por bem restringir a garantia processual da publicidade externa
326
, piores são
os reclamos culturais da sociedade contemporânea que, ávida por satisfações
materiais e de consumo bem ao gosto da globalização, com exigências cada vez
maiores de transparência das instituições do Estado, pouco se dispõe a transigir
diante das escusas oficiais que resvalam na mitigação da publicidade processual. A
isso somam-se os hábitos da cultura da informática, a agressividade invasiva da
mídia de massa, e a consciência intercomunicacional dos instrumentos de
legitimação do Poder Público.
Não parece, portanto, que para a delimitação dos contornos operacionais da
restrição externa da garantia processual da publicidade, tal como admitida pelo
sistema constitucional, seja suficiente a simples referência à necessidade de
discrição das solenidades judiciárias ou ao sentimento de repúdio ao desconforto
326
Chiovenda defende que, mesmo no caso de restrição da publicidade externa, o público sofre
restrição de acesso unicamente aos documentos das partes, mas jamais aos provimentos do juiz, que
129
advindo da interferência de terceiros nos ambientes forenses. Não se perdendo de
vista a necessidade de legitimação racional e comunicativa do procedimento pela via
da publicidade externa, é necessário que as hipóteses de sua restrição caiam bem
no gosto da população, a fim de que sejam assimiladas como situações naturais de
preservação de outros interesses sociais de maior envergadura.
Nas palavras de Luhmann,
A publicidade é essencial para permitir uma participação desinteressada do
público no procedimento. O decurso do processo tem de ser presenciado
pelos não-participantes. Trata-se de facilitar aí o acesso, não tanto quanto à
presença atual, mas sim quanto à ida efetiva, quanto à assistência. É
decisivo que exista essa possibilidade. Ela fortalece a confiança, ou pelo
menos impede a criação daquela desconfiança que se liga a todas as
tentativas de guardar segredo. A função do princípio da publicidade do
processo jurídico consiste na criação de símbolos, na ampliação do
procedimento a um drama que simboliza a decisão correta e justa e para tal
não é necessária a presença contínua duma parte maior ou menor da
população. Basta um conhecimento geral e indefinido de que tais
procedimentos se realizam continuamente e de que qualquer pessoa pode,
se necessitar, informar-se com maior exatidão sobre eles
327
.
O que mais importa destacar no âmbito de aplicação da garantia processual externa
da publicidade é que não outro meio mais eficaz de se prestar contas ao povo de
tudo aquilo que se realiza no processo senão por seu intermédio, permitindo que a
atividade censória popular não se dissocie dos procedimentos e das ações judiciais.
Esse é o motivo que inspira Nelson Nery Jr.
328
, por exemplo, a dizer, de modo
confortável, que os preceitos do RISTF (arts. 124, caput, 151 a 153 e 328, VIII) que
disciplinavam, ao tempo da vigência da CF/69, a sessão secreta para exame de
argüição de relevância de questão federal o foram acolhidos pela nova ordem
constitucional. Em outras palavras, há um sentimento intuitivo de resguardo da
moralidade, da legalidade, da impessoalidade e de eficiência no trato da coisa
pública (art. 37 da Constituição Federal), que muito bem se traduz e se aperfeiçoa
pela via da publicidade externa dos atos da administração dos órgãos do Estado, em
são públicos por natureza. (CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Vol III.
3. ed. Campinas: Bookseller, 2002, p. 105)
327
LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1980, p. 105.
328
NERY JR., Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. ed. São Paulo:
RT, 2000, p. 165.
130
particular no contexto da atividade jurisdicional. O segredo, afinal, não cai bem para
as funções estatais, notadamente sob a inspiração dos ideais da democracia
329
.
Não é que o acesso popular aos atos processuais, de per si, implique uma maior
racionalidade da decisão, tanto assim que se obtém por meio da garantia da
publicidade uma simples representação da decisão, tida e havida como “função
simbólico-expressiva”, suficiente a ensejar a legitimação do processo na perspectiva
do auditório externo na medida exata do sentimento de conforto que desperta para a
eventualidade dos terceiros se apresentarem na mesma situação dos litigantes daí
porque nunca se apresentou como argumento suficiente contra a publicidade o fato
das salas de audiências permanecerem muitas vezes vazias, sem a gravitação de
qualquer sensacionalismo, bastando que seja franqueado o acesso
330
.
A dificuldade maior com que se depara o sistema jurídico, no mundo
contemporâneo, reside no relacionamento do Judiciário com a pressão assaz
invasiva da imprensa, embora ela seja vista de forma um tanto benéfica por
Luhmann, uma vez que poupa o desgaste das reuniões tumultuadas
331
.
As reportagens da imprensa, rádio, cinema e televisão podem transmitir a
impressão de que se aplica a justiça sob determinadas formas e
independentemente dos interesses pessoais e disposição de espírito dos
participantes. Através do trabalho de transmissão dos meios de
comunicação a função de assistência vê-se livre da necessidade da
presença física e por esse meio também se estabiliza e se torna
independente dos condicionamentos de motivação individual e de deveres
posteriores do papel. Torna-se indiferente, em comparação, se alguém,
quando tem tempo e vontade de registrar as informações e as aproveitar
no trem para os subúrbios ou durante o café da manhã, no intervalo do
almoço, na televisão antes do programa realmente interessante, ou durante
a comunicação murmurante da esposa que está lendo o jornal. Os meios de
comunicação poupam uma sintonização concreta dos papéis (de interação)
do processo jurídico com a assistência.
329
Vittorio Denti, ao discorrer sobre a motivação das sentenças mas, em verdade, tratando do
princípio externo da publicidade: “Una lettura parzialmente diversa dell’obbligo di motivazione è data
da chi pone l’accento sulla sua funzione extraprocessuale, considerandola come mezzo di controllo
democratico sull’esercizio del potere giurisdizionale da parte della pubblica opinioni...politicamente,
infatti, è fuori di ogni possibile dubbio che in una democrazia il potere giudiziario non possa sottrarsi al
controlo populare, che si esercita attraverso le varie forme di ‘trasparenza’ dei processi ed il connesso
diritto di critica sull’operato dei giudici”. (DENTI, Vittorio. La Giustizia Civile Lezioni Introduttoria.
Bologne: Il Marlins, 1989, p. 93-94)
330
“A ausência também constitui uma relação inteligente para a notoriedade do procedimento no caso
de persistir a possibilidade de presença”. (LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980, p. 105)
331
“La publicité facile sans réunions tumultueuses”, tornando-se com isso uma instituição política
permanente, já dizia Guizot”. (Ibidem, p. 105-106)
131
Em outros termos, é possível que haja publicidade, graças aos meios de
comunicação, sem que os terceiros da comunidade tenham de ocupar os recintos
forenses, deixando mais à vontade as pessoas diretamente interessadas no
processo. que se reconhecer, porém, que a massificação do conhecimento dos
atos processuais propiciada pela imprensa junto à coletividade difusa dos terceiros
populares atrai enormes inconvenientes, que os alemães denominam “delicada via
para a publicidade (üblen trend zur publicity)”, particularmente pela utilização de
“símbolos abstratos que proporcionam pouca segurança quanto às posições
concretas e as qualidades de ação de outras pessoas” que, ao final das contas,
pode fazer que com os cidadãos dêem “pareceres irracionais e injustos”
332
.
É nesse contexto, certamente, que Dinamarco insiste na necessidade de
manutenção da discrição dos atos judiciários, no que parece ter inegável razão.
Luhmann, contudo, diz que os inconvenientes que resultam para o processo a partir
dessas reações das “massas invisíveis” (que travam conhecimento pela mídia com
os atos forenses) têm sido injustamente exageradas pelos juristas
333
. Ainda assim
admite a verdade do fato de os meios de comunicação costumarem apresentar um
quadro seletivo e parcial dos acontecimentos do processo, nem sempre permitindo
um juízo objetivo sobre o caso particular e, atraídos pelas leis de mercado,
disputarem com os concorrentes de outras fontes de informação índices maiores de
audiência, explorando a ressonância pública dos acontecimentos judiciários.
Considera que esse quadro, todavia, é fruto de “um destino contínuo e inevitável de
civilizações altamente diferenciadas”, e diz que isso não impede que a publicidade
angarie para o processo, no fim das contas, “a convicção, proporcionada
simbolicamente, de que a justiça se realiza”
334
. Daí porque Luhmann recomenda
que os tribunais encarem com seriedade as grandes possibilidades de atuação dos
meios de comunicação no âmbito da ressonância pública dos procedimentos
judiciais, dando à publicidade o destaque que ela merece.
332
LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1980, p. 106.
333
Nessa afirmação Luhmann sugere que Habermas esteja inserido dentre aqueles que dedicam
críticas aos excessos dos meios de comunicação no esforço de darem publicidade ao processo.
(Ibidem, p. 106)
334
Ibidem, 106.
132
O próprio Luhmann acaba por reconhecer, porém, na mesma linha do pensamento
uniforme adotado pela doutrina que se dedica à dogmática do processo civil, que
algumas interferências dos meios de transmissão de notícias bem podem
comprometer seriamente a dignidade, a isenção ou a funcionalidade do
procedimento. Em primeiro lugar porque existem os inconvenientes físicos
relacionados à montagem e ao manejo dos equipamentos da imprensa no ambiente
forense, atraindo de tal forma a atenção dos presentes que, além de ofuscar os
episódios principais da atividade judiciária, acabam por causar perturbação de
tamanha ordem que fazem com que o evento descambe para o sacrilégio. Depois,
porque é patente a possibilidade de que a reportagem atual enseje a antecipação de
resultados ainda na pendência do procedimento, comprometendo a imparcialidade
do julgador e a suspensão das expectativas das partes, imprescindíveis à
efetividade da cláusula do devido processo legal, além do contraditório. E, ainda,
porque o risco concreto da imprensa, no afã de angariar as atenções do seu
público, dedicar críticas levianas aos interesses das partes, à conduta do juiz e à
pertinência da sentença, desfigurando a essência do procedimento no seu escopo
de decomposição e isolamento dos problemas do conflito para, apenas ao final do
rito, ditar-lhe a solução concreta
335
.
Tomando por base essas contingências indesejáveis e a possibilidade de as partes
padecerem diante da ostensiva violação da sua intimidade, nas inúmeras situações
que inspiram certa dose de desconforto em razão dos interesses disputados
336
,
Luhmann admite que seja afastada a publicidade dos atos judiciários por meio da
imprensa, sugerindo a mesmo a possibilidade de restrição da publicidade
externa
337
.
Sem que caibam generalizações no tratamento que se deve dedicar à publicidade
externa quando estiver jogo o interesse público ou social, é apenas no caso concreto
que serão reveladas as razões eventuais de se mostrar aconselhável a sua
restrição, em maior ou menor grau. Não obstante seja impossível a sistematização
335
LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1980, p. 107-108.
336
“Ter-se-á de julgar doutra forma se os próprios participantes diretos no processo se sentirem
irritados pela possibilidade dum resumo responsável por cortes e, por isso, deturpado da sua
exposição – por exemplo, só os pontos altos, com lágrimas”. (Ibidem, p. 106)
133
dos casos que justificam a excepcional supressão da garantia processual da
publicidade no plano extraprocessual, é possível perfeitamente associá-los, grosso
modo, à necessidade de resguardo da eficácia operacional do procedimento, em
cujo contexto se inserem as situações de ameaça à imparcialidade do julgador e de
deturpação dos institutos processuais relacionados à postulação, à defesa, à
instrução probatória e à decisão da causa. Sempre que, enfim, for possível identificar
a ameaça de realização, pelo processo, dos papéis instrumentais que lhe tocam no
plano da resolução do conflito, especialmente à luz do devido processo legal e do
contraditório, será cabível a restrição do princípio da publicidade externa.
A par disso, idêntico de ser o desfecho relacionado à mitigação da garantia
externa da publicidade processual quando exista o risco efetivo de violação da
dignidade dos litigantes, quer por conta da lesão que possa acometer a intimidade
humana em razão da natureza um tanto melindrosa dos direitos disputados no feito -
quando então de ter lugar a ponderação de bens para elidir a publicidade -, quer
naquelas causas em que o legislador, antecipando-se ao juiz, houve por bem
determinar o segredo (art. 155, II, CPC).
No que diz respeito a todo o resto, é imperativo que seja observada a garantia
processual da publicidade no duplo plano (interno e externo), de modo a assegurar a
transparência dos atos judiciários e viabilizar a legitimação do processo. Admitida a
restrição no âmbito da recomendação prevista na própria cláusula assecuratória da
garantia (arts. 5º, LX, e 93, IX, da Constituição Federal), deve ser ela vista e
percebida como exceção absurda à regra geral do processo democrático, que cuida
da publicidade extraprocessual na mesma medida de intensidade e de importância
da publicidade endoprocessual, somente sendo justificada a sua mitigação em
situações-limite nas quais algum interesse fundamental de maior envergadura se
mostre merecedor da proteção da ordem jurídica. Nessa ótica excepcional em que
se apresenta a restrição admitida para a publicidade externa, e apenas nesse
estreito contexto, é que não cabe falar em perda substancial do sentido democrático
do processo, uma vez que se estará a cuidar exatamente da preservação de algum
direito que no caso concreto reclame maior cuidado e atenção do sistema.
337
Ibidem, p. 107.
134
6 SANÇÃO PROCESSUAL PELO DESCUMPRIMENTO DO PRECEITO
FUNDAMENTAL
Não teria o menor sentido científico a concepção de uma teoria inteiramente
baseada na exigência de publicidade dos atos e dos julgamentos judiciários sem que
o sistema jurídico contemplasse uma conseqüência concreta, no plano da sanção de
nulidade, para as hipóteses de descumprimento do preceito fundamental.
Considere-se a possibilidade de determinado feito judicial correr em segredo e,
portanto, sem a explicitação concreta da garantia da publicidade processual externa,
em situação totalmente alheia à casuística de exceção tipificada nos preceitos
normativos de regência uma ação de despejo, por exemplo, que, além de não se
inserir no rol do art. 155, I, do CPC, não envolvendo, por conseguinte, interesse
público, deixasse de contemplar mazelas capazes de pôr em risco a intimidade dos
litigantes.
Imagine-se, agora, uma segunda situação ainda mais curiosa: que no mesmo caso
supra aludido as partes, sponte propria, tenham combinado a tramitação do feito em
segredo de justiça, sem oposição do juiz a quem houvessem dado ciência do
arranjo.
Um terceiro e último caso: numa demanda envolvendo reparação civil por acidente
de veículo, o juiz da causa haja determinado a tramitação do feito em segredo de
justiça, pelo fato puro e simples de se tratar uma das partes de juiz de direito titular
de comarca diversa do lugar do fato
338
.
Quais seriam as conseqüências advindas da violação da garantia processual da
publicidade externa em cada um dos problemas assinalados?
De início importa notar que não se cogitou, intencionalmente, em qualquer das
situações hipotéticas concebidas, da violação ao contraditório ou, em outras
palavras, de lesão à garantia processual interna da publicidade. Afinal de contas,
338
Tal exemplo me foi relatado em tom coloquial pelo eminente professor José Rogério Cruz e Tucci,
a quem peço licença para utilizá-lo, ilustrando este trabalho.
135
caso se chegasse a tanto, a nulidade haveria de se operar induvidosa sob a
perspectiva dos interesses pontuais das partes litigantes, que se veriam impedidas
de participar ativamente da relação processual, deixando por conta disso de
influenciar no desfecho decisório. É prudente observar, a esse propósito, que os
preceitos constitucionais que disciplinam a garantia da publicidade não admitem a
sua restrição para as partes ou para seus advogados, exceto em relação àquelas
quando a lei expressamente as ressalva, em situações de grande excepcionalidade,
tanto assim que não se identifica um caso no processo civil brasileiro de restrição
dessa garantia às partes
339
, enquanto no processo penal consta unicamente a
hipótese do art. 217 do Código de Processo Penal, relativamente à testemunha que
se sinta inibida durante a inquirição pela presença do réu – na Itália, segundo
Chiovenda
340
, a única previsão legal diz respeito aos processos de interdição.
Tomando-se em consideração, por outro lado, que a garantia externa da publicidade
se presta a produzir efeitos no plano metaprocessual, naturalmente a
desconformidade do procedimento com as regras pré-estabelecidas do sistema
(violação do devido processo legal) opera impacto de maior monta no ambiente
social (auditório universal) do que junto aos interesses das partes e do processo
isoladamente considerados. Essa constatação advém do fato de que a garantia da
publicidade, ao contrário das demais garantias que se voltam para o processo com o
fito de regulá-lo, tornando-o justo e democrático, embora a tanto também se preste,
repercute igualmente no plano externo da relação processual, na tentativa de
conformá-lo às exigências populares de sua legitimação.
Descumprida a exigência da publicidade externa, sem prejuízo ao contraditório
assegurado às partes, então, pode parecer que a nulidade não se mostre de todo
relevante, particularmente face aos imperativos do sistema da instrumentalidade das
339
Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci, examinando a possibilidade de restrição da
publicidade interna às partes, dizem que “A primeira das disposições constitucionais em exame, por
paradoxal que possa parecer à primeira vista, não apenas reservou a publicidade às partes e aos
seus respectivos advogados, mas tão-somente a estes. Assim, em hipóteses que provavelmente
deverão ser traçadas pela legislação infraconstitucional, a publicidade poderá sofrer ainda maior
restrição”. (TUCCI, Rogério Lauria; TUCCI, José Rogério Cruz e. Constituição de 1988 e processo.
Regramentos e garantias constitucionais do processo. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 86)
340
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. III. 3. ed. Campinas:
Bookseller, 2002, p. 105.
136
formas
341
. Ledo engano pois, ainda assim, grave será a lesão à ordem pública do
processo que, não sendo um fim em si mesmo, não pode ser justificado a partir
unicamente dos seus elementos intrínsecos
342
. Ao contrário, a finalidade da forma
pública interna e externa do processo foi concebida pelo texto constitucional com o
claro propósito de permitir a controlabilidade e a legitimação das atividades
judiciárias, não havendo interesse ou conveniência oportuna das partes que possa
sobrepor-se à exigência de que os atos processuais sejam essencialmente
democráticos.
A cláusula assecuratória da garantia da publicidade, afinal, sem fazer qualquer
distinção entre as suas categorias interna e externa, decreta peremptoriamente a
nulidade do processo que deixa de observá-la. Nesse ponto, cabe a interessante
ressalva do texto constitucional haver ultrapassado a simples enunciação
programática da garantia e, ao contrário do que lhe é de costume, diante da
relevância do bem jurídico tutelado, ter cumprido a missão habitualmente relegada
ao ordenamento infraconstitucional, desde logo consagrando a sanção de nulidade
para o descumprimento do preceito fundamental – art. 93, IX, Constituição Federal.
Não há dúvida, portanto, de que se opera às inteiras a nulidade absoluta do
processo, na hipótese de ser eventualmente inobservada a garantia processual
externa da publicidade, fora das balizas dos casos excepcionados pelo texto
constitucional. Outro não é o magistério de Ada Pellegrini Grinover, Antônio
Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho
343
, ao afirmarem que “o
sigilo conferido a uma audiência, fora dos casos previstos em lei, levará à nulidade
do ato, nos termos do art. 93, IX, e 5º, LX, da CF”. Em outras palavras, conforme
foi dito, a nulidade está expressamente cominada no próprio preceito constitucional.
341
Conforme Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes
Filho, esse sistema se traduz na possibilidade de se dar “mais valor à finalidade pela qual a forma foi
instituída e ao prejuízo causado pelo ato atípico, cabendo ao magistrado verificar, diante de cada
situação, a conveniência de retirar-se a eficácia do ato praticado em desacordo com o modelo legal”.
(GRINOVER, Ada Pellegrini; SCARANCE FERNANDES, Antônio; MAGALHÃES GOMES FILHO,
Antônio. As Nulidades no Processo Penal, 3. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1994, p. 21)
342
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Nulidade Processual e Instrumentalidade do Processo.
Revista de Processo, São Paulo: RT, n. 60, p. 38.
343
GRINOVER, Ada Pellegrini; SCARANCE FERNANDES, Antônio; MAGALHÃES GOMES FILHO,
Antônio. As Nulidades no Processo Penal. 3. ed., São Paulo: Malheiros Editores, 1994, p. 21.
137
A dificuldade com que se pode deparar nesse contexto reside menos no efeito da
sanção de nulidade absoluta cominada para o descumprimento do preceito
fundamental do que no aspecto operacional da sua declaração e do seu
reconhecimento endoprocessuais
344
. É que, realmente, ao contrário da lesão
experimentada no campo da publicidade interna, que aflora ostensiva e direta em
desfavor das partes processuais que, portanto, apressam-se em denunciá-la
345
, a
violação da publicidade externa afeta mais a seara abstrata das expectativas dos
terceiros não-participantes do processo do que as pessoas que integram a lide. Isso
naturalmente repercute na maneira pela qual se pode remeter ao exame da
instância decisória competente a questão relativa à nulidade processual.
De fato, se as partes, eventualmente, se conformam com a violação da expressão
externa do princípio processual da publicidade, por suspeitarem não ser o caso de
lesão à garantia do contraditório (publicidade interna), torna-se penoso imaginar um
mecanismo qualquer capaz de trazer à lume a questão da nulidade do processo.
Esse problema é ainda mais angustiante à medida em que as nulidades processuais
não se operam automaticamente, sendo antes necessário que uma decisão judicial
o declare
346
, disso resultando a consumação dos efeitos do ato nulo enquanto não
344
A respeito da sanção de nulidade absoluta prevista para a violação da garantia externa da
publicidade, Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho
lecionam: Sendo a norma constitucional-processual norma de garantia, estabelecida no interesse
público, o ato processual inconstitucional, quando não juridicamente inexistente, será sempre
absolutamente nulo, devendo a nulidade ser decretada de ofício, independentemente de provocação
da parte interessada. É que as garantias constitucionais-processuais, mesmo quando aparentemente
postas em benefício da parte, visam em primeiro lugar ao interesse público na condução do processo
segundo as regras do devido processo legal. Resulta daí que o ato processual, praticado em
infringência à norma ou ao princípio constitucional de garantia, poderá ser juridicamente inexistente
ou absolutamente nulo; não espaço, nesse campo, para atos irregulares sem sanção, nem para
nulidades relativas”. (GRINOVER, Ada Pellegrini; SCARANCE FERNANDES, Antônio; MAGALHÃES
GOMES FILHO, Antônio. As Nulidades no Processo Penal. 3. ed., São Paulo: Malheiros Editores,
1994, p. 25-26)
345
Teresa Arruda Alvim cita acórdão que bem ilustra a intuitiva tendência das partes se apressarem
na busca ao reconhecimento da nulidade em caso de violação do princípio interno da publicidade:
“Cerceia o direito de defesa do litigante, bem como ofende o princípio da publicidade, a sentença
proferida sem que tenha sido publicada a pauta de julgamento, devendo a parte prejudicada argüir a
nulidade daquela decisão, argüição esta possível mesmo em sede de Recurso Especial,
independentemente do requisito do pré-questionamento” (STJ – Resp. 14.696 – 3ª T., rel Min.
Waldemar Zveiter j. 25/11/91 v.u. RSTJ, a .4, (39): 339-615, nov. 1992). (ARRUDA ALVIM,
Teresa. Nulidades do Processo e da Sentença. 4ª ed. São Paulo: RT, 1997, p. 147-148)
346
GRINOVER, Ada Pellegrini; SCARANCE FERNANDES, Antônio; MAGALHÃES GOMES FILHO,
Antônio. As Nulidades no Processo Penal, 3. ed., São Paulo: Malheiros Editores, 1994, p. 22.
138
haja o reconhecimento formal dessa irregularidade
347
. Passando despercebida para
o juiz a lesão à garantia externa da publicidade do processo, e não o denunciando
as partes, é certo que o vício, de per si, não será capaz de impedir a eficácia do
processo
348
. Isso é fato. Mas acaso não é isso o que se passa com toda e qualquer
hipótese de nulidade processual absoluta
349
? É claro que sim e tanto o é que Teresa
Arruda Alvim fala, de modo categórico, que todos os vícios e as nulidades do
processo são convalidáveis
350
, produzindo efeitos na pendência da declaração
judicial expressa de reconhecimento do vício; é de maior gravidade ainda a
constatação de que, ultrapassado o biênio de propositura da ação rescisória, a
sentença mesmo nula se torna intocável, pondo-se a salvo de qualquer meio que
possibilite a sua desconstituição
351
. Desse modo, mesmo que se desconsidere a
importância dos atos inexistentes e meramente irregulares no âmbito da teoria das
nulidades, aqueles porque sequer adentram no mundo jurídico e, assim, nunca
convalescem, e estes porque se tratam de vícios de mínima gravidade, não se
duvida da possibilidade de os atos absolutamente nulos serem convalidados, ou
347
Uma das características da sanção de nulidade processual é exatamente depender o seu
reconhecimento de um pronunciamento judicial. Assim, ao contrário do que sucede no direito privado,
em que o ato nulo já é, em princípio, ineficaz, em direito processual o estado de ineficácia é
subseqüente ao pronunciamento judicial que reconhece a irregularidade do ato”. (MAGALHÃES
GOMES FILHO, Antônio. A motivação das decisões penais. São Paulo: RT, 2001, p. 203).
348
Sem que se pretenda esgotar o tema que, claramente, foge ao escopo do presente trabalho, é
necessário reconhecer que não podem ser confundidos os planos da existência, validade e eficácia
dos fatos jurídicos. Conforme Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva, uma vez existente o ato
processual, cumpre investigar se ele é válido, ou seja, saber se foram satisfeitos os requisitos legais
para ele previstos; sendo enfim existente e válido o ato, nem por isso será ele eficaz, produzindo os
efeitos que lhe deveriam ser próprios. São, portanto, distintas as três fases pelas quais atravessa o
fato jurídico, o que explica a razão do ato processual eventualmente se mostrar existente e eficaz e,
não obstante, ser inválido, tal como se passa com as hipóteses de nulidade absoluta. (MENDES DA
SILVA, Ricardo Perlingeiro. Teoria da Inexistência no Direito Processual Civil. Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998, p. 27-28)
349
Ricardo Perlingeiro transcreve em sua obra a doutrina de Calmon de Passos, segundo a qual “só
os atos inexistentes (por muitos denominados absolutamente nulos, ou feridos de nulidades ipso júri)
são ineficazes intrinsecamente, porque intrinsecamente impotentes para a produção de qualquer
efeito processual. Todos os atos processuais, entretanto (o ato inexistente é um não-ato processual,
v.g., a sentença proferida pelo oficial de justiça), são eficazes, e a eficácia própria deles somente
pode ser retirada com a aplicação, pelo juiz, da sanção de nulidade. O ato não é nulo por sua
imperfeição constitutiva, por sua atipicidade (muitos são, no processo, os atos atípicos e eficazes),
sim pela ineficácia derivada do pronunciamento judicial, impondo a sanção da lei, em face da
relevância da atipicidade”. (Ibidem, p. 49)
350
ARRUDA ALVIM, Teresa. Nulidades do Processo e da Sentença. 4. ed. São Paulo: RT, 1997, p.
120.
351
Teresa Arruda Alvim, fazendo menção a Cândido Dinamarco, diz que “o ponto extremo a que se
poderá estender ainda a possibilidade de impugnação da nulidade das sentenças de mérito será o
término do biênio da ação rescisória. Após o escoamento deste prazo, os efeitos da sentença
produzir-se-ão normalmente e esta será intocável”. (Ibidem, p. 229)
139
com a coisa julgada, ou com o decurso do prazo para o ajuizamento da ação
rescisória
352
.
A diferença angustiante em demérito da garantia externa da publicidade ainda reside
no mesmo aspecto apontado nas linhas anteriores: o fato dessa violação afetar mais
os interesses do auditório universal (e da democracia) do que as conveniências
oportunas das partes. Mas, afinal, havendo atentado frontal à garantia processual da
publicidade no plano estritamente extraprocessual, quem garante que o mal
perdedor haverá de se conformar com a sucumbência e deixará de se utilizar desse
notório vício para invalidar o processo? E o Ministério Público, que venha a oficiar no
feito, ainda que em grau de recurso, acaso não assume o papel de fiscal da lei? E o
que dizer dos eventuais terceiros intervenientes? um certo tom de pessimismo,
além de notável deturpação da realidade das coisas, na imagem corrente que se
formula a respeito da dificuldade na manipulação do vício no ambiente interno do
processo quando se cuida de atentado à publicidade externa.
Afinal, que diferença é possível apontar entre uma sentença extraída de um
processo secreto e uma sentença imotivada? Acaso ambas não seriam igualmente
nulas, na forma da previsão contida no texto normativo fundamental (art. 93, IX,
Constituição Federal)? O que aconteceria se a parte sucumbente se conformasse
diante de uma decisão carente de fundamentação? Não padeceria igualmente dos
efeitos do ato enquanto não houvesse o reconhecimento do cio? E o que dizer da
violação do direito da parte ao contraditório que não contasse com a pronta
irresignação do prejudicado? Não haveria igual prejuízo para a ordem democrática
do processo, além da lesão ao direito da parte, eventualmente convalidando-se a
irregularidade no curso do tempo?
José Roberto dos Santos Bedaque, depois de lembrar que a jurisdição nada mais é
do que a exteriorização de parcela do poder estatal, que se dá segundo um
procedimento previamente estabelecido em lei, realizado em contraditório, diz da
necessidade do processo se ater à observância das regras procedimentais, sob
352
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Nulidade Processual e Instrumentalidade do Processo.
Revista de Processo, São Paulo: RT, n.60, p. 32.
140
pena de ser deslegitimado e dar ensejo às nulidades
353
. Na sua visão, porém, “as
regras que dispõem sobre a forma do ato processual não têm um fim em si mesmas”
e “somente a atipicidade relevante produz a nulidade do ato”
354
.
De volta à instrumentalidade das formas, por imperativo de praticidade processual,
convém investigar até que ponto é possível desmistificar a aplicação desse princípio
para evitar que se convalide o ato nulo decorrente da inobservância da garantia da
publicidade externa. De acordo com a doutrina de José Roberto dos Santos
Bedaque, “em qualquer hipótese, somente a ocorrência de prejuízo determina a
decretação de invalidade do ato; e o prejuízo deve ser avaliado em função do
escopo deste. Prejuízo e escopo, duas noções essenciais à compreensão do
problema das nulidades”
355
.
Sem que sejam refutadas as premissas supra transcritas, desde logo validadas, são
elas próprias que se encarregam da elucidação do problema: muito embora se
sustente que a instrumentalidade das formas não pode ser descartada a priori pelo
simples fato de ser cominada a nulidade absoluta para o vício, ao mesmo tempo se
reconhece nulo o ato que, em razão da sua desconformidade, não atinge o seu
objetivo
356
.
Pois bem. Sabendo-se que o princípio da publicidade, notadamente na sua
dimensão externa, presta-se à legitimação do processo por técnica de revelação
transparente das atividades imparciais do Estado no exercício da jurisdição, jamais
se poderá ter por atingido o seu escopo em caso de mácula que decorra da carência
353
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Nulidade Processual e Instrumentalidade do Processo.
Revista de Processo, São Paulo: RT, n.60, p. 33-34. O eminente jurista distingue o tratamento
dedicado pelo direito material e pelo direito processual aos comportamentos dos agentes: Enquanto
o direito material reproduz abstratamente algumas situações verificadas na vida real, emprestando a
elas conseqüências e transformando-as em acontecimentos juridicamente relevantes, o processual
opera de forma diferente: ele predetermina uma forma de conduta. Todos os que desejarem se valer
desse direito instrumental [...] devem atuar segundo os padrões impostos pelo legislador. Enquanto o
direito material é resultado da seleção de comportamentos preexistentes, o processual é uma
predeterminação de comportamentos.” E conclui explicando a razão pela qual se interessa o direito
processual pela instrumentalidade das formas, que “muito mais do que a necessidade de
subsunção do ato à norma, preocupa-se com os resultados visados por esse ato, que lhe são
exteriores” (Ibidem, p. 35).
354
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Nulidade Processual e Instrumentalidade do Processo.
Revista de Processo, São Paulo: RT, n.60, p. 31-32 e 36.
355
Ibidem, p. 36.
356
Ibidem, p. 36-37.
141
de publicidade. É exatamente por meio dessa garantia processual que se realiza a
instrumentalidade do processo (sua feição ontológica) numa perspectiva
legitimadora difusa e popular, sem que se possa ignorar que o prejuízo se manifesta
inequívoco no caso de sua violação pela perda da legitimidade que se deseja
implícita ao procedimento. Impossível se revela, portanto, a convalidação da
nulidade advinda da quebra da publicidade, interna ou externa, pela aplicação, de
todo modo incabível, da máxima da instrumentalidade das formas. Não se olvide,
afinal, que o preceito fundamental o qual garante a publicidade processual não leva
em conta os interesses ou as conveniências das partes, antes tutelando direito
objetivo e incondicionado, que gravita na órbita da essência democrática da
jurisdição.
A propósito das inúmeras situações da vida que acabam por desautorizar certas
garantias universais consagradas para o processo civil, é deveras salutar a
advertência que Giuseppe Tarzia
357
faz, ao comentar o descumprimento sistemático,
observado na Itália, à exigência de duração razoável do tempo do processo. Não
obstante aquele país esteja obrigado a respeitar a dita garantia processual por
intermédio do art. 111 da sua Constituição
358
, promulgada em novembro de 1999
para adequar-se ao art. 6.1 Convenção Européia, da qual é signatário, o processo
civil italiano ainda está muito longe de alcançar o tempo ideal de tramitação dos
feitos judiciários. Assim, o referido jurista exige dos
legisladores e do governo uma coerente distribuição dos recursos humanos
(magistrados, outros componentes do ofício judiciário, auxiliares), de
instrumentos e outros meios capazes de propiciar um melhor funcionamento
da justiça e, além disso, um adequado aparato sancionatório para aqueles
que culposamente insistem em violar o dever de tempestividade da tutela
jurisdicional.
As referências da lavra de Giuseppe Tarzia e os reclamos que faz às providências
concretas que possam conspirar em favor da efetividade do processo que se
pretenda justo e équo, bem se ajustam ao princípio processual da publicidade, tanto
na sua dimensão interna quanto externa, de modo a torná-la concreta e efetiva,
357
TARZIA, Giuseppe. L’art. 111 Cost. e le Garazie Europee del Processo Civile. Rivista de Diritto
Processuale. Padova: Cedam, gennaio-marzo 2001, p. 22.
358
COMOGLIO, Luigi Paolo. Diritti fondamentali e garanzie processuali comuni nella prospettiva
dell’unione europea. Roma: Il Foro Italiano, 1994, p. 84.
142
evitando que se transforme num mero enunciado teórico ou programático,
desprovido de qualquer sentido prático, risco que, enfim e de todo modo, acomete a
generalidade dos enunciados constitucionais de mesma feição garantística.
Daí é que, a par da revisão das leis infraconstitucionais as quais se revelam
incompatíveis com o texto fundamental, e da reestruturação do aparato judiciário
com vista à melhoria da capacidade operacional da garantia processual da
publicidade, cumpre ao juiz da causa que se depare com a violação do preceito
fundamental, pronunciar de ofício a nulidade absoluta, independentemente de
provocação da parte interessada, a qualquer tempo ou grau de jurisdição. Sendo o
caso de vício da maior gravidade possível dentre aqueles previstos para o processo
(nulidade absoluta), tal como se passa com a violação da publicidade externa, de
afetação e de prejudicialidade evidentes, dispensa-se a demonstração de dano para
a parte, com o rechaço da utilização da técnica da instrumentalidade das formas,
cumprindo que seja invalidada a atividade processual atentatória à garantia
constitucional, tão logo se dê a sua constatação
359
.
O Brasil ainda amadurece os seus institutos democráticos e tem um longo caminho a
percorrer para que também o processo civil assuma uma feição totalmente
compatível com os ideais do Estado de Direito. No plano das intenções
confirmatórias dessa vocação nacional, inserem-se a intransigente defesa popular
da ordem pública e a fiscalização da lisura dos atos entregues às mãos dos
administradores do Estado. Decerto que as atividades censórias do Poder Judiciário
e o próprio arcabouço normativo infraconstitucional serão aprimorados para evitar,
por exemplo, que ainda se mantenha de a regra do art. 27, parágrafo 2º, da
LOMAN (LC nº 35/79), que prevê julgamento secreto no procedimento de
decretação de perda de cargo para os juízes
360
, ou que preceitos de Regimentos
359
Antônio Magalhães Gomes Filho fala que nesse caso “o prejuízo fica induvidosamente revelado
pela frustração de todos aqueles objetivos políticos e processuais que determinam a exigência
constitucional”. (MAGALHÃES GOMES FILHO, Antônio. A Motivação das Decisões Penais. São
Paulo: RT, 2001, p. 203)
360
Matéria publicada no Jornal O Globo de 18 de junho de 2004, pág. 09, bem a dimensão do
interesse da mídia na redefinição teórica e prática do conceito da publicidade aos olhos do povo. A
manchete estampa: “STJ tentará agilizar investigação sobre juízes Presidente do tribunal diz que
pretende dar mais visibilidade às ações e acabar com a idéia de jeitinho no Judiciário”.Não obstante o
sensacionalismo típico das abordagens do gênero, que primam pela política de linchamento público
do acusado antes da definição da culpa, certo é que se nota o nítido incremento do interesse público
em investigações que até então escondiam-se sob o manto oculto dos procedimentos sigilosos,
143
Internos de Tribunais continuem a consagrar o fechamento das portas nas suas
sessões administrativas. Essas práticas, fundadas em disposições legais
ultrapassadas, claramente se chocam com o princípio da publicidade e, assim,
padecem de manifesta inconstitucionalidade
361
. Não existe, afinal, a menor
possibilidade de o ordenamento jurídico transigir diante de qualquer ofensa à
garantia processual da publicidade, nas suas modalidades tanto interna quanto
externa. A prova disso se contém na preciosa remissão feita por Vittorio Denti à
decisão da Corte Européia no caso Albert e Le Compte, em que ficou assentada a
posição de que o direito à publicidade é uma garantia individual inerente ao
fundamento democrático do Poder Judiciário e essencial à lisura do processo,
tratando, portanto, de um requisito que interest rei publicae e que, como tal, não
pode constituir objeto de renúncia das partes
362
.
Desse modo, enfim, em resposta às indagações contidas nas situações hipotéticas
cogitadas nas primeiras linhas do último item deste capítulo, está claro que serão
sempre eivados do vício de nulidade absoluta os processos que possam contemplar
a violação da garantia processual da publicidade externa, a exemplo do que se
passa no âmbito da lesão à publicidade interna, fora das restrições estreitas
admitidas nos preceitos constitucionais assecuratórios da indigitada garantia (arts.
5º, LX, e 93, IX, Constituição Federal), sob pena de se tornar inviável a desejada
transparência dos atos judiciários, com o grave comprometimento da soberania
popular e dos ideais da democracia processual.
Em razão de tudo o que foi anteriormente ponderado, demonstra ser bastante nítida,
enfim, a impossibilidade de se relevar a nulidade absoluta que advenha da violação
verdadeira cortina de fumaça, particularmente no âmbito da responsabilidade de magistrados
advindas de conduta ilícita. Na referida matéria jornalística salta aos olhos a transcendência do
interesse dedicado ao assunto, no que tange à investigação de certos juízes federais de segunda
instância do TRF da Região, acusados de atos irregulares que estariam ligados a suposto
locupletamento ilícito, ou prevaricação. Na entrevista feita com o Presidente da Corte Superior, ele
próprio se declara a favor de “dar mais visibilidade ao andamento desses processos”, com o intuito de
demonstrar transparência e publicidade dessas ações. Segundo a matéria de jornal, deram apoio ao
Tribunal, por intermédio dos seus respectivos presidentes, a Associação dos Magistrados Brasileiros
(AMB), Associação dos Juízes Federais Brasileiros (AJUFE) e Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB).
361
Que interesse público ou social há de legitimar julgamentos secretos de juízes acusados de
condutas incompatíveis com a função? Onde, ademais, estaria a ameaça à privacidade dos
acusados, ou em que eles se distinguiriam de todo o resto dos mortais em situação análoga?
362
DENTI, Vittorio. La Giustizia Civile: Lezioni Introdutória. Bologne: Il Marlins, 1989, p. 92.
144
à garantia processual da publicidade externa, em vista do caráter objetivo do
interesse tutelado. É forçoso, porém, insistir no reconhecimento de que, para os
terceiros estranhos às partes, é enorme a dificuldade de alegação do vício que, por
motivos inerentes à sua própria natureza, se revela invisível no campo externo do
processo, pondo-se fora das possibilidades difusas de conhecimento. Caso, todavia,
a tanto se chegue, ou seja, se da nulidade for possível dar conhecimento geral, não
há como negar a legitimidade dessa alegação.
Sabe-se, porém, que o papel reservado aos terceiros é de meros espectadores do
espetáculo, sem a possibilidade de intervenção fora dos casos expressamente
admitidos em lei e, para os quais, sempre um fundamento de direito material a
justificá-lo. Desinteressados juridicamente que são os terceiros, membros da
comunidade eventualmente afetada pela quebra da publicidade do processo, muito
embora não o sejam no plano do interesse social, de regra a sua intervenção no
processo é desautorizada, particularmente para efeito de participação e de
interferência no resultado concreto da tutela jurisdicional almejada
363
. Em caso de
violação à garantia processual da publicidade externa, todavia, considerando que o
interesse dos terceiros de se limitar à mera denúncia do defeito processual, para
que sejam adotadas as medidas corretivas de praxe, é imperativo que se admita a
dita iniciativa.
A dificuldade volta então a residir, insistentemente, no modo de provocação intra-
autos do vício de nulidade, até mesmo diante da raridade fática desse
acontecimento hipotético. Seria viável que o terceiro endereçasse petição à
autoridade judiciária, clamando pela sanação do defeito? Ou que formulasse
representação ao Ministério Público exigindo providências? Parece que ambas as
iniciativas se afeiçoam ao escopo constitucional da publicidade externa, valendo
lembrar que, no direito comparado, admite-se a provocação do Conselho
Constitucional francês ao controle de constitucionalidade do processo de elaboração
363
Luhmann lembra que as noções processuais de interesse e legitimidade para a causa operam a
inacessibilidade ao processo daqueles que não atendem certas exigências jurídicas, sem que os não-
participantes, porém, deixem de ter destacada importância para a legitimação pelo procedimento,
tanto que se reserva à publicidade externa o papel de angariar o consenso popular no
reconhecimento da obrigatoriedade das decisões judiciais. (LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo
procedimento. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980, p. 103-104)
145
das leis por simples carta-ofício, dispensando os requisitos formais de uma petição
inicial e, até mesmo, a representação por advogado
364
.
De todo modo, carecendo o terceiro juridicamente desinteressado do direito de
participar da relação processual, muito embora protagonize o interesse difuso ao
processo democrático, é necessário que em favor de alguém seja franqueado o
acesso ao processo, para que dele possa tomar parte. Demonstra ser induvidosa,
nesse contexto, a legitimidade do Ministério Público, na condição de titular da defesa
dos direitos indisponíveis da sociedade, em cujo contexto se insere a garantia
processual da publicidade externa, intervir no processo para suscitar o vício,
mediante provocação ou de ofício, valendo-se até mesmo de ação rescisória, se for
o caso. Desse raciocínio resulta que, mesmo no caso de se conformarem as partes
diante da causa de nulidade processual por violação à garantia da publicidade
externa, nem por isso se admitirá o desprestígio à ordem constitucional. A exigência
que se contém no direito fundamental que consagra a transparência pública do
processo, e dos seus atos, é colocada ao abrigo de ações corretivas de iniciativa do
Ministério Público, ao gosto dos remédios processuais típicos (manifestações e
intervenção incidentais, representações, recursos, ações), todas tendentes ao
reconhecimento judicial do vício que resulte do eventual descumprimento da
garantia da publicidade, tanto interna quanto externa. Ao Ministério Público cumpre,
afinal, defender a ordem jurídica e o regime democrático, e o interesse público,
conforme previsão dos arts. e da Lei Complementar 75, de 20 de maio de
1993. Eventual perplexidade que surja da construção dessa idéia, pela impressão de
que se estaria a dilatar indevidamente o papel institucional do Ministério Público,
poderá ser decerto desfeita diante da textualidade do art. 2º da Lei Complementar nº
75, de 20 de maio de 1993, retro aludida, que define a incumbência do órgão adotar
“as medidas necessárias para garantir o respeito dos Poderes Públicos aos direitos
assegurados pela Constituição Federal”.
364
Joaquim B. Barbosa Gomes adverte que a jurisdição constitucional francesa é da responsabilidade
de um tribunal político - o Conselho Constitucional - que não apresenta as características dos órgãos
judiciários, explicando a razão pela qual não forte apego às formalidades processuais, bastando
em relação às cartas-ofício, mediante as quais se provoca a atividade da Corte, que contenham
sessenta assinaturas, ou que sejam sessenta cartas individualizadas. (GOMES, Joaquim B. Barbosa.
A Quebra de mais um Tabu no Mundo Jurídico: Implantação e Evolução da Jurisdição Constitucional
146
Diferente objeção poderia ser oposta à alegação do vício, agora dizendo respeito à
parte vencida que não tenha sofrido qualquer dano processual direto e queira
mesmo assim suscitá-lo, valendo-se da violação à garantia da publicidade externa:
deve ainda aqui ser negada a possibilidade do cio ser relevado. Nesse caso não
pode ter assento a tese da supremacia da instrumentalidade do processo e,
tampouco, deve-se descambar para o confortável repúdio ao caráter protelatório da
providência eventualmente suscitada pela parte vencida.
Não se trata de criar mais uma fonte de nulidades processuais ou de transformar o
processo numa panacéia de inesgotáveis males; cuida-se, ao contrário, da tentativa
de despertar a comunidade jurídica para a relevância do bem que a garantia externa
da publicidade busca tutelar, cujo escopo não se contém na visão tradicional do
processo civil que, de feição individualista e arraigada de utilitarismo, ocupa-se
unicamente dos interesses das partes. Inserida a jurisdição no contexto amplo da
democracia do Estado, seus institutos passam a reclamar justificação tanto nas
idéias clássicas associadas à efetiva resolutividade do conflito como, sobretudo, na
necessidade de transparência e lisura das atividades realizadas pela administração
da justiça.
Que se faça, novamente, uma analogia entre a lesão à publicidade externa, de um
lado, e a violação ao contraditório ou a falta de motivação das sentenças judiciais,
de outro: acaso ao vencedor interessa denunciar tais vícios? E o que justifica que o
vencido possa fazê-lo, ao contrário do vencedor, senão o fato de lhe ter sido afetado
direito fundamental ao processo democrático e justo, além do prejuízo que suporta
em razão da sucumbência? Haveria alguma diferença para as hipóteses de lesão à
publicidade externa? Certamente que não.
Claro está, afinal, que, além do vencedor, assim também o vencido não teve a
oportunidade de compartilhar com o auditório universal a realidade dos atos
processuais que os afetaram, deslegitimando-os gravemente. E a quem pode
interessar a deslegitimação do processo? Certamente a ninguém e, muito menos, ao
povo ou à sociedade, em cujo seio reside, em última análise, a soberania da
na França. Cadernos de Estudos In Verbis, n. 25, Ano 8, publicação do Instituto dos Magistrados
Brasileiros, p. 399-400)
147
jurisdição. Seria possível, por acaso, dar maior importância, por obra da decantada
supremacia da instrumentalidade processual, aos episódios de violação de direitos
fundamentais individuais (relativos às pessoas que participam do processo, v.g., a
garantia do contraditório) do que às lesões que acometem direitos fundamentais
coletivamente compartilhados, como é o caso da garantia à publicidade processual
externa?
É certamente o apego exagerado ao sentido pragmático do processo, de herança
positivista, que conduz à crença de que mais valem os interesses pontuais dos
litigantes ao resultado da tutela jurisdicional do que a sua legitimação democrática.
Não se deve, porém, esquecer de que o fundamento último e ontológico de todas as
garantias constitucionais do processo reside na escolha, pelo povo, de standards
éticos mínimos, sem os quais ficaria impossível manter a serenidade dos
relacionamentos interpessoais. É exatamente isso que justifica a existência de
princípios que consagram direitos fundamentais do tipo do contraditório, da
inafastabilidade da jurisdição, da legalidade, e de tantos outros, dentre os quais a
garantia da publicidade interna e externa, dos atos e das decisões processuais.
Não como se possa, então, defender a existência de categorias de nulidades, de
diferentes graus de gravidade, conforme a violação acometa os distintos tipos de
garantias processuais fundamentais. O que se pode certamente reconhecer é que o
direito constitucionalmente assegurado à publicidade externa do processo gera
implicações de maior interesse à sociologia jurídica do que ao direito processual.
Isso não significa, todavia, que não caiba à ciência do processo civil investigar com
maior dose de sensibilidade as repercussões sociais e metajurídicas da
instrumentalidade e dos escopos do processo, compartilhando com o ambiente
social as suas conquistas e os seus fracassos. Tanto assim que a doutrina nacional
e estrangeira ocupa-se cada vez mais da identificação dos sentimentos de dor e de
angústia do ambiente universal submetido, ainda que no plano meramente potencial,
aos efeitos da jurisdição, com isso buscando o seu aperfeiçoamento. Seus
representantes têm enorme peso intelectual e indiscutível capacidade de persuasão,
e dentre eles, sem demérito aos demais, vale destacar o brilho do pensamento de
Cândido Rangel Dinamarco, que trata o chamado “terceiro momento metodológico
do processo” como resultado da “consciência da instrumentalidade como
148
importantíssimo pólo de irradiação de idéias e coordenador dos diversos institutos,
princípios e soluções”
365
. Dinamarco arremata:
O processualista sensível aos grandes problemas jurídicos, sociais e
políticos do seu tempo e interessado em obter soluções adequadas, sabe
que agora os conceitos inerentes à sua ciência já chegaram a níveis mais
do que satisfatórios e não se justifica mais a clássica postura metafísica
consistente nas investigações conceituais destituídas de endereçamento
teleológico...Aprimorar o serviço jurisdicional prestado através do processo,
dando efetividade aos seus princípios formativos (lógico, jurídico, político,
econômico), é uma tendência universal, hoje. E é justamente a
instrumentalidade que vale de suficiente justificação lógico-jurídica para
essa indispensável dinâmica do sistema e permeabilidade às pressões
axiológicas exteriores: tivesse ele seus próprios objetivos e justificação
auto-suficiente, razão inexistiria, ou fundamento, para pô-lo à mercê das
mudanças políticas, constitucionais, sociais, econômicas e jurídico-
substanciais da sociedade
366
.
Que não se recuse para a comunidade de homens comuns a dificuldade de
compreender o processo democrático como uma conquista do seu esforço histórico.
Não se negue tampouco a enorme dificuldade de fazer com que essas pessoas
leigas se conscientizem da necessidade de defender a legitimidade do processo
pela via da relação transparente de suas entranhas, permitindo a sua salutar
controlabilidade
367
. Mas, jamais se defenda a possibilidade das garantias concebidas
para a existência do processo justo serem desfeitas pelo uso indiscriminado de
institutos cuja funcionalidade possa se prestar unicamente à satisfação dos
interesses particulares dos litigantes, tal como se passa com a máxima da
instrumentalidade das formas.
É na justificação democrática do poder político que se identifica, no Estado de
Direito, o paradigma de legitimidade de todas as ações da administração pública.
Enquanto o princípio do contraditório, de transcendente importância para o
processo, cuida de satisfazer a exigência da democracia processual na perspectiva
das partes, cabe à garantia da publicidade atender essas mesmas expectativas no
plano externo do auditório universal. Consagrada a garantia da publicidade no
365
DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 4. ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 1994, p. 21.
366
DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 4. ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 1994, p. 21-24.
367
Dinamarco diz que o processo, afinal, é instrumento manipulado somente pelos profissionais do
foro e (especialmente o processo civil) não integra o acervo de conhecimento do homem comum: o
processo não é um fato da vida cotidiana do leigo”. (Ibidem, p. 35)
149
ambiente constitucional, a legitimação do processo civil é obtida pelos mecanismos
populares de fiscalização e de controle ao gosto da democracia participativa e
intercomunicacional, cujo exercício sempre de pressupor a obediência ao padrão
mínimo que se exige na revelação transparente e socialmente compartilhada dos
atos jurisdicionais.
A nulidade absoluta que se concebe para a desobediência do padrão de revelação
pública da conduta processual não advém, portanto, da quebra eventual das
expectativas das partes - linha metodológica tradicional da ciência do processo -, em
cujo seio se justifica o mais que se costuma manipular no campo da teoria das
nulidades, mas da subversão do modelo da democracia popular e participativa, que
a publicidade se ocupa de inserir no espírito do processo civil. A menos que seja
amadurecida essa nova dimensão da atividade processual, que se preocupa mais
com o espaço social do que com o terreno intra-autos, corre-se o sério risco de
transformar a garantia da publicidade, de promessa auspiciosa no plano das
intenções constitucionais, em mera figura de retórica fadada à inoperância, com
grave comprometimento ao prestígio da atividade jurisdicional.
150
7 CONCLUSÃO
A garantia processual da publicidade ainda está por merecer a atenção que lhe é
devida para que seja posta à altura da sua importância científica, mecanismo
essencial e eficaz de controle dos atos da administração judiciária que se revela,
indispensável para o aperfeiçoamento do processo e para a sua inserção no
ambiente da democracia.
Ao longo da história do processo civil, tropeçando o direito em obstáculos inerentes
à saga da evolução humana, foram alternados períodos de maior e de menor, ou de
nenhuma, observância da publicidade processual, e mesmo assim na órbita
exclusiva da sua categoria interna, voltando-se quando muito para a mera
comunicação às partes dos atos processuais de seus interesses. Foi preciso que se
atingisse a fase atual de universalização da democracia para que a publicidade
adquirisse maturidade suficiente para expressar-se de modo pleno, ainda assim
sujeitando-se às intempéries de sua aplicação prática cotidiana.
Com efeito, conspira seriamente contra o ideal da publicidade processual, com
efeito, a mitigada adoção pela ordem judiciária brasileira do sistema da oralidade,
com grave prejuízo para o acesso do blico aos atos e aos ambientes forenses,
sendo necessário que se modifique a visão estigmatizada dos autos processuais
como peças inacessíveis aos terceiros não intervenientes da relação processual.
No quadro geral das garantias processuais, a publicidade ombreia-se com as
demais, prestando-se à revelação transparente da jurisdição civil aos olhos
populares, além de servir à plena efetividade do contraditório, realizando a nobre
missão suplementar de permitir a fiscalização dos atos estatais pelos verdadeiros
detentores da soberania e do poder do Estado. Não há relação de precedência ou
de preferência entre os princípios processuais, mas clara concorrência deontológica
prevista pelo sistema com o objetivo de alcançar a otimização da tutela dos direitos
fundamentais.
Tratando-se de garantia que expressão aos outros princípios processuais de
igual importância deontológica, é bastante natural que a publicidade interpenetre-se
151
em outros postulados fundamentais, fenômeno que se visualiza com maior clareza
no âmbito da garantia da motivação das decisões judiciais, mas que, igualmente,
opera-se no contexto das garantias do contraditório, do juiz natural, do duplo grau e
da legalidade, quer na sua feição meramente interna, quer externa.
No que importa à restrição prevista para a publicidade na literalidade dos preceitos
constitucionais que a consagram, há rara mitigação para a publicidade interna no
sistema brasileiro, que não contempla um único caso para o processo civil e apenas
uma hipótese no processo penal (art. 217 do CPP), enquanto no plano externo
podem excepcioná-la o interesse público, ou social, e a privacidade dos litigantes.
Ao contrário da restrição à publicidade externa, imposta pela eventual necessidade
de preservação da intimidade dos litigantes - que se opera como regra e, portanto,
dentro das possibilidades concretas da norma que a contempla (art. 155, II, CPC),
pelo fato de a dignidade da pessoa humana estar assim também taxada pela ordem
constitucional (art. 1º, III, Constituição Federal) -, a não-aplicação da publicidade
externa em caso de resguardo de interesse público de se dar sempre por critério
de ponderação de bens (máxima da proporcionalidade), conforme algum outro
direito fundamental o justifique no caso concreto, em cuja hipótese o se prescinde
de decisão fundamentada justificando o posicionamento judicial que se entenda por
bem adotar. Neste contexto há uma tendência de se admitir a restrição de acesso
irrestrito dos meios de comunicação de mass media aos ambientes forenses sempre
que for constatada a possibilidade de comprometimento da efetividade da função
judiciária ou de submissão das partes e dos auxiliares da justiça ao escárnio público
ou ao vexame.
No esforço de adequação do processo civil às necessidades do mundo
contemporâneo, e de suas expectativas, surgem as noções de processo justo e
équo, em cujo contexto a garantia processual da publicidade se revela excelente
meio de legitimação da atividade jurisdicional. Dividida a garantia processual da
publicidade em categorias, assumem notável importância as modalidades interna e
externa, aquela se prestando a dar conta às partes dos acontecimentos de relevo
que possam justificar a sua reação e a contribuição para a melhor proteção de seus
152
interesses, e esta fazendo da atividade jurisdicional uma realidade idônea do Estado
aos olhos dos populares.
De resto, descumprida a exigência plena da publicidade dos atos e dos julgamentos
judiciários, fora das balizas dos preceitos que consagram a sua legítima restrição,
quer no plano interno, quer no plano externo, impõe-se a sanção de nulidade do
processo, conforme previsão textual contida no art. 93, IX, da Constituição Federal.
153
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estúdios
Políticos y Constitucionales, 2001.
________. Colisão e ponderação como problema fundamental da dogmática
dos direitos fundamentais. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Palestra proferida
na Casa Rui Barbosa. Rio de Janeiro, 10 dez.1998.
________. Epílogo a la teoría de los derechos fundamentales. Revista Española de
Derecho Constitucional, Madri: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales,
n.66, set/dez, 2002.
ALVES, Francisco Glauber Pessoa. Princípio jurídico da igualdade e o processo
civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. Vol. 1. 4.ed. São Paulo: RT,
1992.
ALVIM, Teresa Arruda. Nulidades do processo e da sentença. 4.ed. São Paulo:
RT, 1997.
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: Influência do direito
material sobre o processo. 3.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003.
________. Nulidade processual e instrumentalidade do processo. Revista de
Processo, São Paulo: RT, n 60.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 16. ed. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1992.
CAIANIELLO, Vicenzo. Riflessioni sull’ art. 111 della costituzione. Rivista di Diritto
Processuale. VIII edizione. Padova: Cedam, Gennaio, Marzo 2001.
CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados. 7.ed.
Lisboa: Livraria Clássica Editora.
________. Instituições de direito processual civil. 2.ed. Campinas: Bookseller,
2003.
CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Direito, poder, justiça e processo. Rio de
Janeiro: Forense, 1999.
154
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma
contribuição ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
CANAS, Vitalino. O princípio da proibição do excesso na constituição: arqueologia e
aplicações. In: MIRANDA, Jorge (org.). Perspectivas constitucionais nos 20 anos
da constituição de 1976. Vol. II, Coimbra: Coimbra Editora, 1997.
________. Fundamental guarantees of the parties in civil proceeding (General
Report). Les Garanties Fondamentales des parties dans le Procès Civil. Milano:
Giuffrè, 1973, p. 661-774.
CAPPELLETTI, Mauro. Problemas de reforma do processo civil nas sociedades
contemporâneas. Revista de Processo, São Paulo: RT, ano 17, n. 65, jan.-mar.
1992.
________.; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris
Editor, 1988.
CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil. São Paulo: Classic
Book, 2000.
________. Instituições do processo civil. Vol. I. São Paulo: Classic Book, 2000.
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. 3.ed. Campinas:
Bookseller, 2002.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO;
Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 9.ed. São Paulo: Malheiros Editores,
1993.
COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie costituzionali e “giusto processo” (Modeli a
confronto). Revista de Processo, São Paulo:RT, n. 90, ano 23, abril-jun. 1998.
________. Diritti fondamentali e garanzie processuali comuni nella prospettiva
dell’unione europea. Il Foro Italiano: Roma, 1994.
________. Giudice civile. Estratto dal Volume XV della Enciclopédia Giuridica.
Roma: Instituto della Enciclopédia Italiana, 1988.
________. Giurisdizione e processo nel quadro delle garanzie costituzionali. Rivista
Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Milano: Giuffrè Editore, ano XLVIII, 1994.
________. Il giusto processo civile in Itália e in Europa. Palestra proferida na
Jornada Brasileira de Direito Processual Civil. Fortaleza, 6/10 agosto, 2001.
155
COUTURE, Eduardo. Fundamentos del derecho procesal civil. Buenos Aires:
Júlio César Faira Editor, 2002.
________. Introdução ao estudo do processo civil. Belo Horizonte: Editora Líder,
2003.
DENTI, Vittorio. La giustizia civile: lezioni introduttoria. Bologne: Ed. Il Marlins,
1989.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 4.ed. São
Paulo: Malheiros Editores, 2002.
________. Instituições de direito processual civil. vol. I. 2.ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2002.
________. Instituições de direito processual civil. Vol. II. 2.ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2002.
________. Instituições de direito processual civil. Vol. III. 2.ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2002.
________. Escopos políticos do processo. In: GRINOVER, Ada Pellegrini;
DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo.
São Paulo: RT, 1988.
FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale. VIII edizione. Padova: Cedam,
1996.
FERRAJOLI, Luigi. Diritto e ragioni: teoria del garantismo penale. 3.ed. Roma: Ed.
Laterza, 1996.
FRANÇA, R. Limongi. A irretroatividade da lei e o direito adquirido. 6.ed. São
Paulo: Saraiva, 2000.
GARCIA, Enrique Alonso. La interpretacion de la constituicion. Madri: Centro de
Estudios Constitucionales, 1984.
GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1995.
GOLDSCHMIDT, James. Teoria geral do processo. Campinas: Editora Minelli,
2003.
156
________. Princípios gerais do processo civil. Belo Horizonte: Editora Líder,
2002.
GOMES FILHO, Antônio Magalhães. A motivação das decisões penais. o Paulo:
RT, 2001.
GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
GRECO, Leonardo. O processo de execução. Vol. I. Rio de Janeiro: Renovar,
1999.
GRINOVER, Ada Pellegrini; SCARANCE FERNANDES; Antônio; GOMES FILHO,
Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 3.ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 1994.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I, Rio
de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 1997.
HECK, Luis Afonso. Regras, princípios jurídicos e sua estrutura no pensamento
de Robert Alexy: dos princípios constitucionais. Considerações em torno das
normas principiológicas da constituição. São Paulo: Malheiros Editores, 2003.
JEVEAUX, Geovany Cardoso. A simbologia da imparcialidade do juiz. Rio:
Forense, 1999.
LIEBMAN, Enrico Túlio. Estudos sobre o processo civil brasileiro. São Paulo:
José Bushatsky Editor, 1976.
LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 1980.
MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. 3.ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 1999.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de
conhecimento. 3.ed. São Paulo: RT, 2004.
MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. vols. I, II, III e IV.
Campinas: Bookseller, 1997.
________. Instituições de direito processual civil. Vol. II. Campinas: Millennium
Editoria, 1999.
157
MENDONÇA JÚNIOR, Delosmar. Princípios da ampla defesa e da efetividade no
processo civil brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 2001.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual. 5.ed. São Paulo:
Ed. Saraiva, 1994.
________. A garantia do contraditório na atividade de instrução. Revista de
Processo, São Paulo: RT, n. 9.
________. Correlação entre o pedido e a sentença. Revista de Processo, São
Paulo: RT, n.83, 1996.
________. O juiz e a prova. Revista de Processo, o Paulo: RT, n. 35, jul./set.
1984.
MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre) o poder constituinte do povo. São Paulo:
RT, 2004.
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal.
6.ed. São Paulo: RT, 2000.
PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
PERROT, Roger. O processo civil francês na véspera do Século XXI. Trad. José
Carlos Barbosa Moreira. Revista de Processo, São Paulo: RT, ano 23, n. 91, jul.-
dez. 1998.
PISANI, Andrea Proto. Il consiglio superiore della magistratura e l’indipendenza
della magistratura in Italia. Palestra.
________. Giuseppe Borrè e l’effettività della tutela giurisdizionale. Questione
Giustizia. Trimestrale Promosso da Magistratura Democratica. Franco Angeli, n.1,
1998.
________. Il códice di procedura civile del 1940 fra pubblico e privato. Roma: Il
Foro Italiano. Vol. 73, Marzo 2000.
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de direito processual civil. 2.ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
RORIZ, Liliane. Conflito entre normas constitucionais. Rio de Janeiro: América
Jurídica, 2001.
158
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 12.ed. São
Paulo: Saraiva, 1989.
SILVA, Ovídio Batista da. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica.
São Paulo: RT, 1996.
________. Democracia moderna e processo civil. In: GRINOVER, Ada Pellegrini;
DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo.
São Paulo: RT, 1988, p. 98-113.
SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Teoria da inexistência no direito
processual civil. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998.
TARUFFO, Michele. Il significato costituzionale dell’obligo di motivazione. In:
GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo.
Participação e Processo. São Paulo: RT, 1988.
________. Osservazioni sui modelli processuali di civil law e di common law. IV
Jornadas Brasileiras de Direito Processual Civil.
________. Senso comum, experiência e ciência no raciocínio do juiz. Aula
inaugural proferida na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná.
Trad. Cândido Rangel Dinamarco. Curitiba, 05 mar. 2001.
TARZIA, Giuseppe. Le garanzie generali del processo nel progetto di revisione
costituzionale. Rivista de Diritto Processuale. Padova: Cedam, 1998.
________. L’art. 111 cost. e le garanzie europee del processo civile. Rivista di
Diritto Processuale. Padova: Cedam, gennaio-marzo, 2001.
TUCCI, José Rogério Cruz e; AZEVEDO, Luiz Carlos. Lições de história do
processo civil romano. São Paulo: RT, 1996.
TUCCI, Rogério Lauria; TUCCI, José Rogério Cruz e. Constituição de 1988 e
processo: regramentos e garantias constitucionais do processo. São Paulo: Saraiva,
1989.
VERDE, Giovanni. Giustizia e garanzie nella giurisdizione civile. Rivista di Diritto
Processsuale. Padova: Cedam, 2000.
VESCOVI, Enrique. Una forma natural de participación popular en el control de la
justicia: el proceso por audiencia pública. In: GRINOVER, Ada Pellegrini;
DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. Participação e Processo.
São Paulo: RT, 1988.
159
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo