Download PDF
ads:
Tula Vieira Brasileiro
“Filho de”: um estudo sobre o sub-registro
de nascimento na cidade do Rio de Janeiro
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação do Departamento de
Educação da PUC-Rio como parte dos
requisitos parciais para obtenção do título de
Doutor em Educação.
Orientador: Profª. Tânia Dauster
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Tula Vieira Brasileiro
“Filho de”: um estudo sobre o sub-registro
de nascimento na cidade do Rio de Janeiro
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor pelo Programa de
Pós-Graduação em Educação do Departamento
de Educação do Centro de Teologia e Ciências
Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.
Profª. Tânia Dauster M. e Silva
Orientadora
Departamento de Educação - PUC-Rio
Profª. Sonia Kramer
Departamento de Educação - PUC-Rio
Profª. Irene Rizzini
Departamento de Serviço Social - PUC-Rio
Profª. Myriam Moraes Lins de Barros
UFRJ
Prof. Luiz Cavalieri Bazilio
UERJ
Prof. Paulo Fernando C. de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de
Teologia e Ciências Humanas
Rio de Janeiro, 08 de agosto de 2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
ads:
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e
do orientador.
Tula Vieira Brasileiro
Tula Vieira Brasileiro, assistente social formada pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, em 1988.
Atuou por 12 anos na área da educação infantil, vinculada à
Fundação Fé e Alegria do Brasil – RJ. Concluiu em 1995 o Curso
de Especialização em Educação Infantil na Pontifícia
Universidade Católica – PUC-Rio. Também pela PUC-Rio
obteve o Mestrado e o Doutorado em Educação nos anos de 2001
e 2008 respectivamente. Atualmente trabalha como assistente
social na Secretaria Estadual de Saúde, SES-RJ e na Secretaria
Municipal de Assistência Social do Rio de Janeiro no Projeto
Rede de Proteção ao Educando desenvolvido nas escolas do
município do Rio de Janeiro.
Ficha Catalográfica
Brasileiro, Tula Vieira
“Filho de” : um estudo sobre o sub-registro de nascimento
na cidade do Rio de Janeiro / Tula Vieira Brasileiro ;
orientadora: Tânia Dauster. – 2008.
221 f. : Il. ; 30 cm
Tese (Doutorado em Educação)–Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
Inclui bibliografia
1. Educação – Teses. 2. Sub-registro de nascimento. 3.
Certidão de nascimento. 4. Infância. 5. Escolaridade. I.
Dauster, Tânia. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Educação. III. Título.
CDD: 370
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
Dedico esta tese a todos os brasileiros que vivem a ausência da certidão
nascimento na figura de Andréia.
E a todos os que lutam para que esta realidade seja modificada.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
Agradecimentos
Ao Lucas, meu filho, amor da minha vida;
À Tania Dauster, orientadora que acredita em mim;
À minha mãe, pelo amor de mãe;
Às minhas irmãs, irmãos, cunhadas e cunhado pelas infinitas ajudas;
A Inês, Teresa, Raquel e Ana Claudia, mães de amigos de Lucas por todas as
colaborações;
Às amigas, Eliane e Dani, pela presença nas várias batalhas da vida;
Às amigas, Vânia e Monica, por sempre me acompanharem;
Às amigas do Hospital Estadual Carlos Chagas, em especial, Monica, Conceição,
Elo, Rita, Neuri, Silvana e Liony por todas as ajudas ao longo desses anos;
Aos colegas da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro por sempre tentarem me
ajudar;
À Ana Paula pela transcrição das fitas;
À Silvia e Leila, pelo carinho com meu filho e retaguarda da casa;
À Carla e Adriani, amigas de sempre;
À Michele, pela preciosa colaboração ao longo do trabalho de campo;
À Maria do Carmo, pela confecção do heredograma;
A SES/RJ e ao Centro de Estudos do HECC, pela possibilidade de realizar o
trabalho de campo no hospital;
A Simone, pela gentileza em me abrir as portas do Projeto Cidadania;
Aos professores Sonia Kramer, Irene Rizzini, Myriam Lins de Barros e Luiz
Bazílio por comporem minha banca.
A todas as pessoas que se dispuseram a fornecer informações e histórias para essa
pesquisa.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
Resumo
Brasileiro, Tula Vieira; Dauster, Tania. “ “Filho de”: um estudo sobre o
sub-registro de nascimento na cidade do Rio de Janeiro.” Rio de Janeiro,
2008, 221 p. Tese de Doutorado – Departamento de Educação, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Esta tese nasceu da minha inserção profissional como assistente social em
uma unidade de saúde de emergência do Estado do Rio de Janeiro – Hospital
Estadual Carlos Chagas - HECC, onde encontrei várias crianças que não possuíam
sua certidão de nascimento. O estranhamento que me causou este fato tornou-se
maior ao perceber recorrências significativas desta situação e suas reverberações.
Verifiquei que essas crianças eram chamadas pelos profissionais do HECC como
“Filho de” acrescido do nome da mãe. Aos poucos compreendi que a ausência de
certidão de nascimento se constitui em um fenômeno oficialmente denominado
sub-registro de nascimento, a respeito do qual há pouca produção teórica, como
pude verificar ao longo do processo de investigação. Tal problemática veio a ser a
minha questão de pesquisa. Meu objetivo nesta tese foi entender porque algumas
crianças atendidas no HECC, no período compreendido entre os anos de 1999 a
2007, não foram registradas. Buscando uma abordagem etnográfica, procurei
desvendar as razões deste fato. Para tanto investiguei os significados da certidão
de nascimento com mães e pais e suas implicações nas interações com as
instituições escolares. Já que algumas crianças não foram registradas porque suas
mães também não o foram, incorporei no processo de investigação adultos
igualmente sem certidão de nascimento. Tal problemática me sugere uma questão
instigante para o debate sobre o registro civil que envolve a reprodução social dos
setores pobres da sociedade. Com este estudo, pretendo contribuir para a
compreensão da história da infância e da família pobre brasileira, na expectativa
de que esta investigação seja um alerta para os setores responsáveis pelo sistema
de registro civil no Brasil. Ademais, pretendo contribuir para a elaboração de
políticas públicas educacionais. Como instrumentos de trabalho, utilizei um
questionário, entrevistas abertas, conversas com mães e pais, observações,
documentos e material institucional do HECC. Meu diálogo central se deu com
Roberto DaMatta (1997a; 1997; 2000), Ana Liési Thurler (2004); Cynthia Sarti
(1996;2004) e Cláudia Fonseca (2005;no prelo).
Palavras-chave:
Sub-registro de nascimento; certidão de nascimento; infância;
escolaridade.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
Abstract
Brasileiro, Tula Vieira; Dauster, Tania (Advisor). “ “Child of”: a study of
birth under-registration in Rio de Janeiro.” Rio de Janeiro, 2008, 221 p.
Thesis – Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
This paper is a consequence of my professional insertion as a social assistant
in an emergency room unity of Rio de Janeiro State – Hospital Estadual Carlos
Chagas – HECC, where I met several children who did not have a birth certificate.
This fact surprised me even more when I realized the situation was significantly
recurrent, as well as its reverberations. I noticed that these children were
referenced by HECC staff as “Child of”, plus the name of their mothers. Slowly I
understood that the birth certificate absence constitutes a phenomenon officially
called birth under-registration, about what there is a few theoric production, as I
could verify during the investigation process. This issue is my research’s subject.
My goal with this paper was to understand why some children treated in HECC
during the period between 1999 and 2007 were not registered. Seeking for an
ethnographic approach, my objective was to find out the reasons for that fact. In
order to do that, I have investigated the meanings of birth certificates with
mothers and fathers, and their implication on interactions with educational
institutions. Since some children were not registered because their mothers were
not registered neither, I have incorporated the adults with no birth certificate in
the investigation process. This issue suggests me an intriguing question for the
debate about civil register which involves a social reproduction of society poor
sectors. With this paper, I intend to contribute for the understanding of childhood
background and Brazilian’s poor families, expecting that this investigation is an
alert for the sectors which are responsible for the civil register system in Brazil. In
addition, I intend to contribute for the elaboration of educational public policies.
As working tools, I used a questionnaire, open interviews, conversations with
mothers and fathers, documents and institutional material from HECC. My central
dialogue occurred with Roberto DaMatta (1997a; 1997; 2000), Ana Liési Thurler
(2004); and Cynthia Sarti (1996;2004) e Cláudia Fonseca (2005; in edition).
Key-words:
Birth under-registration; birth certificate; childhood; scholarship.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
Sumário
1 Introdução
......................................................................................... 11
2 As situações de contato no trabalho de campo: perfil
sociológico das crianças e responsáveis ...................................
19
2.1 Caminhos metodológicos ........................................................... 19
2.2 Perfil das crianças e responsáveis ............................................. 43
3 A certidão de nascimento ou quando existir depende de um
papel ...........................................................................................
52
3.1 Sistema de registro civil no Brasil: alguns aspectos .................... 52
3.1.1 O que é a certidão de nascimento na perspectiva das mães e
alguns pais .................................................................................
60
3.1.1.1 “Filho de” .................................................................................... 73
3.2 Vida e morte ............................................................................... 83
3.3 Ritual da certidão de nascimento ............................................... 88
3.3.1 Significados da escolha do nome dos filhos .............................. 101
4 Por quê não registrou seu filho? ................................................ 111
4.1 Porque as crianças não foram registradas ................................. 111
4.1.1 A espera pelo pai ....................................................................... 121
4.1.2 O mundo dos documentos ......................................................... 143
4.1.3 Adultos sem certidão de nascimento ......................................... 149
5 Conclusão – os horizontes constrangidos da escolaridade:
considerações finais ................................................................... 167
6 Referências bibliográficas .......................................................... 181
Anexos ....................................................................................... 188
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
Lista de Siglas
ABEP – Associação Brasileira de Estudos Populacionais
ABA – Associação Brasileira de Antropologia
ANDI – Agência de Notícias dos Direitos da Infância
ANPED – Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Educação
ANPOCS – Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em
ciências sociais
BPC – Benefício de Prestação Continuada
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CIEP – Centro Integrado de Educação Pública
CDEDICA – Núcleo Especializado de Defesa dos Direitos da Criança e do
Adolescente da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro
CRE – Coordenadoria de Educação
CPF – Cadastro de Pessoas Físicas
DETRAN – Departamento de Trânsito do Estado do Rio de Janeiro
DN – Declaração de Nascido Vivo
HECC – Hospital Estadual Carlos Chagas
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IDS – Índice de Desenvolvimento Social
PBF – Programa Bolsa Família
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
SEI – Serviço de Internação e Alta
SPA - Serviço de Pronto Atendimento
PBF – Programa Bolsa Família
SES – Secretaria Estadual de Saúde
SINASC – Sistema de Informações Sobre Nascidos Vivos
SMAS – Secretaria Municipal de Assistência Social
SME – Secretaria Municipal de Educação
ONU – Organização das Nações Unidas
UNICEF – Fundo das Nações Unidas Para a Infância
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
1
Introdução
Esta tese nasceu da minha inserção profissional como assistente social
numa unidade de saúde de emergência – Hospital Estadual Carlos Chagas -
HECC
1
, onde encontrei várias crianças que não possuíam sua certidão de
nascimento. O estranhamento que me causou este fato tornou-se maior ao
perceber recorrências significativas desta situação e suas reverberações.
Aos poucos compreendi que a ausência de certidão de nascimento se
constitui em um fenômeno denominado sub-registro
2
de nascimento, a respeito do
qual há pouca produção teórica, como pude verificar ao longo do levantamento
bibliográfico. Tal problemática veio a ser a minha questão de pesquisa.
Meu objetivo nesta tese foi entender porque algumas das crianças
atendidas no HECC, no período compreendido entre os anos de 1999 e 2007, não
foram registradas. Buscando uma abordagem etnográfica, procurei desvendar as
razões deste fato. Para tanto investiguei os significados da certidão de nascimento
com mães e pais e suas implicações nas interações com as instituições escolares.
Já que algumas crianças não foram registradas porque suas mães também
não o foram, incorporei no trabalho de campo adultos igualmente sem certidão de
nascimento. Tal problemática me sugere uma questão instigante para o debate
sobre registro civil, que envolve repetição cultural nos setores pobres da
sociedade.
Com este estudo, pretendo contribuir para a compreensão da história da
infância e da família pobre brasileira, na expectativa de que esta investigação seja
um alerta para os setores responsáveis pelo sistema de registro civil no Brasil.
Ademais, pretendo contribuir para a elaboração de políticas públicas educacionais.
1
Unidade de saúde do Estado do Rio de Janeiro onde trabalho como assistente social que acabou
se tornando o campo empírico central da minha tese.
2
Por sub-registro de nascimento o IBGE considera o conjunto de nascimentos ocorridos no ano de
referência da pesquisa Estatísticas do Registro Civil e não registrados no próprio ano, ou até o fim
do primeiro trimestre do ano subseqüente (IBGE, 2006).
A grafia adotada de sub-registro com hífen, baseia-se em Celso Cunha e Lindley Sintia. Nova
Gramática Portuguesa, terceira edição, Editora Nova Fronteira, RJ, 2001. Assinalo, entretanto,
que encontrei em diferentes pesquisas e artigos, as duas formas de grafia dessa palavra, com e sem
hífen.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
12
Essa discussão dá continuidade às reflexões que venho realizando através
de minha inserção profissional e da minha entrada na academia, relativas à
compreensão dos setores brasileiros empobrecidos e as formas de socialização das
crianças.
Clarice Cohn (2002; 2005), nos ajuda a pensar os conceitos de infância e
socialização a partir de análises antropológicas que mostram as crianças como
membros plenos da sociedade, e não como pessoas incompletas que estariam em
um estágio passageiro que precede a idade adulta. As sociedades não são
entidades imutáveis. Os diversos atores, incluindo as crianças, atuam na
reprodução como na contínua produção social, o que permite que as crianças
sejam vistas como ativas em sua socialização.
Por que os pais não registram seus filhos? Como vivem esse processo?
Como lidam com a questão da escolaridade da criança em face da ausência de
documentos? Como os adultos sentem e percebem o fato de não terem sido
registrados? Quais as estratégias sociais que vão sendo inventadas nas interações
entre estes setores e as instituições escolares?
Essas são algumas das indagações que me acompanharam ao longo da
pesquisa de campo no HECC, localizado no bairro de Marechal Hermes, zona
norte da cidade do Rio de Janeiro.
A presente tese é composta de uma introdução, três capítulos, conclusão,
bibliografia e anexos. O material colhido a partir das observações, entrevistas e
aplicação do questionário, encontra-se entrelaçado às análises e discussões
teóricas, atravessando todos os capítulos.
O primeiro capítulo visa recuperar a situação de campo e a utilização dos
instrumentos de trabalho. Foram realizadas 03 entrevistas
3
gravadas com adultos
sem certidão de nascimento e outras sete entrevistas
4
com mães que tiveram filho
internado no HECC, sendo que dentre essas sete, duas mães também não
possuíam certidão de nascimento e aplicado um questionário a 29 responsáveis
por crianças internadas no HECC que também não tinham registro civil, seja no
próprio HECC ou em sua moradia.
3
No anexo I roteiro da entrevista com adultos sem certidão de nascimento.
4
O roteiro da entrevista com os responsáveis por crianças sem certidão de nascimento seguiu o
modelo do questionário que está no Anexo II.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
13
O segundo capítulo apresenta a estrutura administrativa do sistema de
registro civil no Brasil e alguns dados demográficos.
Desenvolvo os sentidos que a certidão de nascimento apresenta para o
grupo pesquisado, relacionando-os com o debate do antropólogo Roberto DaMatta
(1997a; 1997, 2002) sobre cidadania e compreendendo o registro civil como um
rito de passagem nos termos de Van Gennep (1978). Reflito sobre o processo de
nomeação de crianças no diálogo com Francisco Martins (1991).
O terceiro capítulo traz a discussão referente às razões pelas quais as
crianças ainda não foram registradas. Neste item me detive nos dois motivos mais
recorrentes: a espera da mãe pelo pai para que ele registre a criança e problemas
com documentos. A espera da mãe foi problematizada no debate com as autoras
Claudia Fonseca (2005; no prelo), Cinthya Sarti (1996; 2005) e Ana Liesi Thurler
(2004), ajudando-me a pensar a família pobre brasileira. Em relação ao mundo
dos documentos, destaco a reflexão sobre a existência nos dias de hoje de adultos
sem certidão de nascimento que estão impedidos de registrar seus filhos, já que
eles próprios não o foram.
No Brasil, a pesquisa do IBGE “Estatísticas do Registro Civil” (2006)
apontou que o índice de sub-registro de nascimento estimado para o País naquele
ano foi de 12,7%. Isto significou que aproximadamente 400.000 crianças nascidas
no período considerado para o cálculo deixaram de ter certidão de nascimento.
Assim, a cada ano, milhares de meninas e meninos fazem crescer as estatísticas de
brasileiros sem registro civil. Esse índice é seguramente mais alto, haja vista o
fato de não estarem computados os números de crianças de períodos anteriores.
Essa mesma pesquisa mostra que o fenômeno do sub-registro de
nascimento se distribui de maneira diferenciada pelo País, sendo os maiores
percentuais observados nos estados das regiões norte e nordeste. As crianças sem
registro de nascimento vivem em uma lógica social que constrange sua identidade
e cidadania. São cidadãos de uma outra categoria, tendo uma experiência social
distinta de outros que seguem o fluxo hegemônico. São crianças que convivem
com inúmeros limites nas interações que estabelecem no interior de uma
sociedade cartorialista como a brasileira.
A ótica das pessoas que vivem essa situação de ausência do registro civil e
da certidão de nascimento, pode ser uma contribuição para o estudo desse
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
14
fenômeno, haja visto que as pesquisas
5
mapeadas, em sua quase totalidade, não
trazem esse ponto de vista ou o trazem sem aprofundamento. Pretendo que, em
alguma medida, o conhecimento aqui gerado venha a contribuir para pensar as
ações e as políticas públicas voltadas para essa área.
Nesse sentido, tornou-se relevante entender:
o significado atribuído pelos pais à certidão de nascimento;
a razão porque os pais não registram seus filhos;
as formas e as interações com as instituições escolares.
O levantamento de teses, dissertações e artigos que realizei no ano de
2005, revelou que ainda é pequena a produção teórica a respeito do tema do sub-
registro de nascimento como já indiquei. Além disso, não localizei estudos que
tratem da relação entre registro civil e as instituições escolares.
Roberto DaMatta (2002) diz que há uma notável ausência de reflexão
sobre os documentos – por este autor denomInados de “controles invisíveis”.
DaMatta acredita que o motivo possa ser o fato de que estejam muito próximos de
nós. Sendo constitutivos de nossa civilidade deixamos de tomá-los como objeto de
estudo, deixamos de “estranhá-los”.
No levantamento bibliográfico de teses e dissertações, foram consultados
sites de agência de pesquisa, associações de pesquisa, universidades e sites de
busca
6
. Para organizar esse trabalho criei alguns descritores, quais sejam: certidão
de nascimento, registro civil, sub-registro de nascimento e registro de nascimento,
documentos, documento de identidade, cidadania, identidade, família pobre,
infância, criança, filiação, parentesco, nominação, paternidade e maternidade. E
ainda: Serviço Social, Antropologia, Educação, Demografia e Saúde Pública.
A análise que se segue refere-se ao levantamento dos quatro primeiros
descritores: certidão de nascimento, registro civil, sub-registro de nascimento e
registro de nascimento, por serem aqueles diretamente ligados ao tema em questão
e nos quais tive a oportunidade de encontrar trabalhos com os quais dialoguei.
5
Portela (1989); Souza (1989); Cunha (1993); Jorge et al (1997); Makrakis (2000); Cardoso
(2002); Castanhel (2003) e Thurler (2004).
6
CAPES, ANPED, ANPOCS, ABEP, ABA, UFRJ, UNB, UFRGS, PUC - São Paulo, PUC - Rio,
UFPR, MUSEU NACONAL, UFSC e os sites de busca, Google e Cadê.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
15
Nesse processo localizei dissertações, teses, artigos e reportagens de jornal
7
.
Indico as referências das dissertações e teses. Foram encontradas 03 teses e 17
dissertações, sendo o estudo mais antigo do ano de 1978. Constatei uma
concentração das produções no período que vai de 2000 até 2004 (12).
Inicialmente havia delimitado o período dos últimos cinco anos para
levantamento. Como a produção encontrada era pequena, optei trabalhar com o
material disponível em cada site para esses quatro descritores.
Destes trabalhos, tive acesso ao texto na íntegra de 02 teses e 06
dissertações e a 03 artigos produzidos a partir de 01 tese e 02 dissertações. Quanto
às outras 09 pesquisas consultei os resumos dos respectivos sites.
As áreas de concentração das pesquisas referidas são as seguintes: 08 da
Saúde Pública, 02 das Ciências da Computação, 02 da Educação, 01 das Ciências
Sociais, 01 da Nutrição, 01 da Administração Pública, 01 do Direito, 01 do
Desenvolvimento Social, 01 da Lingüística e 01 das Ciências Biológicas e 01 da
Política Social.
Como se pode perceber existe uma concentração maior de estudos na área
da Saúde Pública seguida de longe pelas Ciências da Computação e da Educação.
Verifiquei, ainda, que a produção se encontra disseminada em várias áreas (oito)
que, de alguma forma, tratam esse tema.
Dentre as 20 pesquisas, 09 se ligam de forma direta com o meu tema. De
forma indireta encontrei 06, e são 05
8
aquelas que a ligação é tênue.
Dentre essas 09, cinco (sendo uma tese), oriundas da Saúde Pública, são
pesquisas quantitativas que se dedicam a estimar a taxa de sub-registro em
diferentes cidades do Brasil, usando metodologias variadas, refletindo sobre a
realidade encontrada (Cunha, 1993 - Natal; Almeida, 1978 - Salvador; Castanhel,
2003 - Florianópolis; Portella, 1989 - Piripiri no Piauí e Souza, 1989 - Maringá no
Paraná). Interessa observar que não encontrei nenhum estudo sobre a Cidade do
Rio de Janeiro, onde se deu a presente pesquisa.
7
Nesse processo tive acesso ao site da ANDI Agência de Notícias da Infância. Somente nele
com o descritor registro civil, encontrei 145 reportagens do ano de 2003 até o momento. Fora um
acervo particular que venho fazendo desde 1999.
8
Esses estudos, cinco dissertações das áreas da Nutrição, Educação, Direito, Saúde Pública e
Desenvolvimento Local, não serão utilizados nessa pesquisa.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
16
Duas dissertações são estudos que vêm da área das Ciências da
Computação, ambos da UFSC, que propõem modelos para utilização do
documento eletrônico nos cartórios onde a certidão de nascimento seria gerada via
internet (Bortolli, 2002; Dantas, 2001).
Uma dissertação se dedica a refletir sobre a atual estrutura do Registro
Civil no Brasil, e tem nos cartórios um dos eixos de análise e crítica, (Makrakis,
2000); uma tese discute a questão da deserção da paternidade expressa através de
certidões de nascimento sem o nome do pai, de Ana Liési Thurler, 2004, da UNB.
Nesta tese, por tratar-se de um estudo de inspiração antropológica,
encontrei em Tânia Dauster (1996), Clifford Geertz (1989; 2002), Gilberto Velho
(1980; 1987) e Roberto Cardoso de Oliveira (1996) referência e inspiração para
delinear o fazer etnográfico.
Busquei nas pesquisas do IBGE (2006) e do UNICEF (2006) elementos
que ajudaram a compor um panorama demográfico do sub-registro de nascimento.
Portella (1989), Souza (1989), Cunha (1993), Solange Makrakis (2000), Castanhel
(2003), desenvolveram dissertações sobre o sub-registro de nascimento e
colaboraram no sentido de entender o contexto em que este se desenrola. Também
fornecem informações sobre a história do registro civil e sua estrutura e
funcionamento administrativo atual.
Roberto DaMatta (2002) e Mariza Peirano (1986;2002) são dois
antropólogos que me ajudaram a pensar os documentos enquanto dimensões da
cidadania e da ingerência do Estado. Sobre cidadania meu diálogo central se deu
com Roberto DaMatta (1997a;1997;2002).
Com Van Gennep (1978) e Claudia Fonseca (no prelo) desenvolvi a idéia
da certidão de nascimento como um ritual, em que o processo de nomeação tem
destaque. Sobre este ponto dialoguei com Francisco Martins (1991).
Ana Liési Thurler (2004), Claudia Fonseca (2005), Cynthia Sarty (1996;
2004), e João de Pina Cabral (2005) me ajudaram a dialogar com a empiria em
termos das idéias de paternidade, maternidade e família.
O caminho seguido inspirou-se na abordagem antropológica. Busquei
investigar o universo de significados da certidão de nascimento para mães e pais,
bem como compreender as práticas e estratégias voltadas para a construção da
relação da criança sem certidão com a educação.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
17
Entendendo a cultura nos termos que fala Geertz (1978): “... o homem é
um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a
cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência
experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura
do significado (p: 15)”.
Nessa perspectiva, a etnografia se colocou como uma via promissora num
estudo que pretendeu entender o “outro” em seus termos, pela prática e discurso
dos sujeitos. Para tanto, foi necessário estar em contato com familiares, crianças e
profissionais envolvidos em situações de registro e sub-registro de nascimento,
compor descrições e interpretações sobre a realidade observada.
O relativismo como modo de problematizar ajudou na tarefa de perceber
os fenômenos de forma contextualizada e de conceber a realidade e seus sujeitos
não como uma estrutura opaca, homogênea, mas pelo contrário, heterogênea e
diversa, atravessada pela cultura e por relações sociais concretas, permeada de
conflitos e contradições, sendo, portanto socialmente construídas.
Colocou-se então, o desafio da busca de uma atitude de estranhamento,
segundo a qual o pesquisador pudesse pensar “outros sistemas de referência que não o
seu próprio, outras formas de representar, definir, classificar, organizar a realidade e
o cotidiano que não em seus próprios termos” (Dauster,1996, p: 03).
Segundo Gilberto Velho (1987), essa postura de estranhamento deve ser
elaborada para que a postura do pesquisador não se resuma a um preconceito
diante do inusitado e para que compreendamos o peso que os diversos fatos
possuem na realidade estudada, transformando o exótico em familiar e o familiar
em exótico. Essa perspectiva remete ao debate do antropólogo ao pesquisar em
sua própria cidade. Velho (1980), diz que: “... há distâncias culturais nítidas
internas ao meio urbano em que vivemos, permitindo ao “nativo” fazer pesquisas
antropológicas com grupos diferentes do seu, embora possam estar basicamente
próximos” (p:16).
Segundo Geertz (1978), para construir uma etnografia é necessário captar
ações simbólicas, a forma como elas ocorrem, o clima em que se processam, as
opiniões, os pontos de vista e interpretações que dão corpo a um árduo processo
de busca do significado da realidade pelos sujeitos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
18
É preciso refletir sobre a forma como os grupos sociais organizam,
representam e classificam suas experiências e a interpretação que dão às suas
práticas, gerando assim, interpretações de interpretações.
Estas devem ser trabalhadas num contínuo movimento de reflexão e
diálogo com referências teóricas, buscando ampliar as possibilidades de
conhecimento que será sempre parcial e aproximativo. Fiz assim um movimento
de situar a particularidade do fenômeno do sub-registro de nascimento com
relação a um todo mais amplo.
Portanto, na pesquisa que será discutida a seguir, a perspectiva foi
compreender os significados da certidão de nascimento, os motivos do não
registro e as formas de relacionamento com a escola, a partir da ótica do grupo
pesquisado. Nesse sentido, o trabalho de campo descortinou um universo social
que gerou reflexões, indagações, abrindo espaço para teorizações.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
2
As situações de contato no trabalho de campo: perfil
sociológico das crianças e seus responsáveis
2.1
Caminhos Metodológicos
O material empírico desta pesquisa tem origem em três espaços e situações
sociais distintos: o HECC (Hospital Estadual Carlos Chagas), o Projeto Cidadania
e o acompanhamento do processo de registro tardio de Andréia
9
, uma adulta sem
certidão de nascimento.
O campo central da pesquisa foi o HECC. Neste contexto, descobri a
existência de crianças sem certidão de nascimento. Trabalho com essa temática
desde o ano de 1999 no referido hospital, enquanto assistente social. A partir da
constatação da internação recorrente de crianças sem certidão de nascimento, o
Serviço Social do HECC criou em 2001 o Projeto Registre Sua Criança, que busca
viabilizar a certidão da criança que não é registrada durante seu período de
internação. Essa experiência foi importante na construção do Projeto de
Doutorado.
Incorporei à pesquisa (que ocorria no HECC) a observação de um dia do
Projeto Cidadania e, conseqüentemente, incluí na investigação os sujeitos que
conheci nessa oportunidade e não possuíam certidão de nascimento. O Projeto
Cidadania é um evento itinerante que a Defensoria Pública do Estado do RJ
10
desenvolve em parceria com a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Objetiva
facilitar os moradores a “tirarem“ os documentos, através da concessão de
gratuidade. Estive nesse evento através de um convite da coordenadora do Núcleo
Especializado de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente – CDEDICA,
da Defensoria, que conheci em um Seminário na PUC-Rio. Ela informou que a
9
Todos os nomes dos adultos que aparecem nesta tese são fictícios para resguardar a identidade
dos mesmos. Entretanto, os nomes das crianças foram mantidos sem alterações por terem sido foco
de análises que dizem respeito à sua grafia, americanização, influências da mídia e celebridades,
modismos entre outros aspectos. A mudança destes nomes impediria tal estudo que apresenta
questões interessantes no que diz respeito à nomeação dos indivíduos.
10
A Defensoria Pública do Estado do RJ é um órgão estatal que cumpre o Dever Constitucional do
Estado de prestar assistência jurídica integral e gratuita à população que não tenha condições
financeiras de pagar as despesas desses serviços. (Informações obtidas no site
www.dpge.rj.gov.br).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
20
primeira certidão não era oferecida nesse evento, mas era comum aparecerem
pessoas que nunca tinham sido registradas.
Na tese, discuto também a história de luta de uma mulher sem certidão de
nascimento, Andréia, para conseguir seu registro civil. Eu a conheci no meu
trabalho como assistente social na Secretaria Municipal de Assistência Social da
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, no ano de 2007.
A seguir, faço um mapeamento do material empírico que será discutido
nos Capítulos I, II e III da tese:
HOSPITAL ESTADUAL CARLOS CHAGAS - HECC
- registros pessoais referentes a 41 crianças internadas no ano de 2000 e
que não possuíam certidão de nascimento. Tais registros não seguem nenhum
modelo definido;
- 19 fichas
11
do Projeto “Registre Sua Criança” do ano de 2002, aplicadas
a responsáveis com dados sobre motivos de não registro das crianças;
- 145 fichas com perguntas referentes ao processo de nomeação, aplicadas
a responsáveis de crianças que tinham certidão de nascimento no ano de 2004;
- conversas e entrevistas não gravadas registradas em um diário de campo,
com responsáveis de seis crianças internadas sem certidão de nascimento no
período de junho a outubro de 2006;
- conversas em três manhãs com diferentes mães que aguardavam
atendimento para o filho no Serviço de Pronto Atendimento - SPA do HECC – em
Julho de 2006;
- buscas por alguma criança sem certidão de nascimento na Emergência
Pediátrica durante três manhãs – em julho de 2006. Nesta situação, localizei uma
criança - Andrei;
- entrevista não gravada com funcionária do Serviço de Internação e Alta –
SIA do HECC, em julho de 2006;
- levantamento nos livros de atendimento do Serviço Social do HECC das
crianças atendidas pelo setor nos anos de 1999 a 2007 que não possuíam certidão
de nascimento. Este levantamento tinha como objetivo mapear o universo de
crianças e famílias para a aplicação de um questionário. O resultado foi de 171
11
No Anexo IV modelo da ficha do Projeto Registre Sua Criança do HECC.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
21
crianças. Efetivamente, o questionário foi aplicado nos anos de 2007 e 2008 aos
responsáveis por 29 crianças internadas;
- sete entrevistas gravadas com responsáveis por crianças sem certidão em
suas residências no ano de 2007. As entrevistadas foram: Sheyla, Priscilla, Maria
da Consolação, Laurelina, Sueli, Monique e Rute, estas duas últimas também não
tinham certidão;
- conversas com o funcionário do posto do cartório da Maternidade
Alexander Fleming, unidade do município do Rio de Janeiro, localizada em
Marechal Hermes, mesmo bairro do HECC, zona norte da cidade do Rio de
Janeiro. Travei este contato durante três manhãs, em 2006, porque a maior parte
das crianças sem certidão de nascimento atendidas no HECC nasceu nesta
maternidade. Além disso, há em seu interior um posto de cartório de registro de
nascimento, fruto do Programa Carioquinha Cidadão da Secretaria Municipal de
Saúde do Rio de Janeiro em parceria com a Corregedoria de Justiça do Estado do
Rio de Janeiro, cujo objetivo é registrar as crianças nascidas na Maternidade,
evitando o sub-registro.
12
PROJETO CIDADANIA
- observação do dia de realização do Projeto Cidadania em um CIEP no
bairro de Costa Barros, área de abrangência do HECC, zona norte da cidade do
Rio de Janeiro em abril de 2006;
- contatos e conversas com 05 pessoas que conheci no Projeto Cidadania
em suas casas, no próprio CIEP em que foi realizado ou no Shopping Guadalupe,
localizado nas imediações das residências das pessoas – 2006 e 2007;
- duas entrevistas gravadas com duas adultas sem certidão de nascimento –
2006 e 2007- Eliana e Sandra;
- conversa com a mãe de um adulto sem certidão de nascimento – 2006 –
Mara, mãe da Eliana;
- conversas com a avó de uma adulta sem certidão de nascimento - avó de
Sandra;
12
Considerando a Lei 9534 de 1997 que garante a gratuidade do registro civil, o Ministério da
Saúde criou em 2002 um incentivo ao Registro Civil de Nascimento nas unidades de saúde,
através da Portaria 938/GM de 20 de maio de 2002. O Ministério da Saúde paga por cada criança
registrada.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
22
- entrevista não gravada com a mãe de uma criança sem certidão de
nascimento - Liana;
- entrevista não gravada com os pais de duas crianças sem certidão de
nascimento: pais de Luana de 10 anos e de um bebê recém-nascido;
- conversas com um adulto sem certidão de nascimento, Rodrigo;
aplicação do questionário a sua mãe biológica e conversas com uma amiga de
Rodrigo;
PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO – SECRETARIA
MUNICIPAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL
- acompanhamento da trajetória de Andréia, uma adulta sem certidão de
nascimento para obter seu registro civil;
- entrevista gravada com Andréia;
- entrevista gravada com o Defensor Félix Dutra, coordenador da
Defensoria de Anchieta sobre processo de registro tardio, onde está o processo de
Andréia;
- entrevista gravada com o Desembargador Siro Darlan do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro que coordena o Projeto “Quem sou Eu?”. Este
projeto objetiva contribuir para regularização da identificação civil dos cidadãos
do Estado do Rio de Janeiro e reduzir o sub-registro de nascimento;
- idas aos cartórios, Defensoria Pública de Anchieta, Detran
13
e gabinete
do Desembargador Siro Darlan com Andréia para observação de seu processo de
busca pela obtenção do registro civil.
Em termos da caracterização do campo, o HECC é um hospital de
emergência fundado em 1937, com capacidade instalada de 198 leitos. É o
hospital geral de referência da Área Programática 3.3
14
que engloba uma
população de 1.200.000 habitantes distribuída em 17 bairros, Acari, Costa Barros,
Barros Filho, Ricardo de Albuquerque, Pavuna, Honório Gurgel, Irajá, Vicente de
Carvalho, Coelho Neto, Marechal Hermes, Deodoro, Bento Ribeiro, Rocha
13
Departamento de Trânsito do Estado do Rio de Janeiro. Um dos órgãos responsáveis pela
identificação civil (Informações obtidas no site
www.detran.rj.gov.br).
14
A cidade do Rio de Janeiro na área da saúde é dividida em Áreas Programáticas que englobam
um conjunto de bairros.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
23
Miranda, Oswaldo Cruz, Madureira, Cascadura e Turiaçu.
Atende as especialidades de Pediatria, Clínica Médica, Cirurgia Geral,
Cirurgia Plástica, Trauma-Ortopedia, Ginecologia, Buco-Maxilo, CTI, SPA
(Serviço de Pronto Atendimento) e Ambulatório. Possui ainda os serviços de
Consulta de Enfermagem, Fisioterapia, Nutrição, Odontologia, Psicologia,
Terapia Ocupacional e Serviço Social (Ferrarez, 2005).
A entrada no HECC acontece pela Emergência e para as crianças pela
Emergência Pediátrica (para os casos de emergência) ou pelo SPA – Serviço de
Pronto Atendimento (para os casos de urgência). As crianças internadas ficam na
Emergência Pediátrica ou vão para a Enfermaria de Pediatria situada no segundo
andar do HECC. A maior parte dos casos de crianças sem certidão de nascimento,
acompanhada no trabalho de campo, esteve na Enfermaria.
A Enfermaria de Pediatria que fica no segundo andar do HECC, possui 17
leitos divididos em 04 enfermarias. Ao entramos, já é possível encontrar alguma
criança pelo corredor brincando, correndo ou no colo de sua mãe. Tamm
encontramos acompanhantes (na maior parte das vezes a mãe, mas também há a
presença de pais, avós, irmãos, tios, vizinhos e amigos) dormindo, conversando,
cuidando de suas crianças, estressados com o processo de internação, ansiosos a
espera de uma visita ou telefonema ou para terem alta junto com as crianças.
Em linhas gerais, a rotina da enfermaria consiste na “visita”
15
do médico ao
leito pela manhã, prescrevendo medicamentos em prontuário, a serem
administrados pela enfermagem. Ao longo do dia, diferentes profissionais
circulam pela enfermaria, dependendo da necessidade. À tarde há a visita, quando
o mundo da rua ganha a cena. Mas, várias crianças não recebem visita.
Dentre os vários profissionais que “passam “visita” pela enfermaria, está o
assistente social. No momento do seu contato com os pacientes, a certidão de
nascimento da criança é solicitada, junto com o cartão de vacina e um documento
com foto de um dos responsáveis. O objetivo é verificar se a criança é registrada
ou não, identificar seu responsável, confeccionar a autorização de acompanhante,
caso ainda não tenha sido feita e perceber se há mais alguma demanda para
atuação do assistente social. As crianças que não são registradas, geralmente
15
Termo utilizado pelos profissionais de saúde que designa a prática cotidiana de ir até ao leito de
cada paciente internado e atendê-lo.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
24
carregam em seu prontuário no lugar do seu nome, a expressão “Filho de”
acrescido do nome da mãe. Esta forma de nomeação será analisada no Capítulo II.
Desde que iniciei o Doutorado, em 2004, continuei trabalhando no HECC.
Nesse percurso, estive na condição de assistente social, com famílias que tiveram
crianças internadas sem registro, o que me propiciou um contato permanente com
a temática.
Assim sendo, em 2004, aproveitei para introduzir em algumas fichas do
Projeto Registre Sua Criança do HECC, que se destinavam a organizar o trabalho
do Serviço Social junto aos responsáveis, perguntas geradoras de dados que
pudessem contribuir na compreensão dos motivos do não registro e também sobre
o processo de escolha dos nomes das crianças. Tais fichas eram aplicadas pelas
assistentes sociais a cada vez que encontravam uma criança sem certidão.
Tanto o HECC, quanto a Maternidade Alexander Fleming são unidades
públicas de referência na área, atendendo usuários dos bairros de Acari, Costa
Barros e Barros Filho, dentre outros. Tais bairros se encontram nos últimos
lugares da Cidade do Rio de Janeiro, em termos de qualidade de vida com base no
IDS – Índice de Desenvolvimento Social criado pela Prefeitura da Cidade do Rio
de Janeiro com base no IDH – Índice de Desenvolvimento Humano da ONU.
Como será visto, a situação de sub-registro de nascimento guarda uma relação
com o nível de acesso aos bens econômicos e sociais.
Em março de 2006, dei entrada junto à Secretaria Estadual de Saúde -
SES/RJ, a qual o HECC é subordinado, no pedido de autorização para o
desenvolvimento do trabalho de campo da pesquisa. Como a resposta da SES/RJ
demorou muito a sair, dei início ao trabalho de campo com o aval do Centro de
Estudos do HECC, ainda em Junho. Estive uma manhã por semana, durante 05
meses (Junho a Outubro), enquanto estudante de Doutorado da PUC/RJ no
HECC, desenvolvendo parte do que veio a ser o trabalho de campo da tese, ou
seja, o contato com crianças sem certidão de nascimento e seus responsáveis que
lá estavam internadas durante esse período.
No trabalho de campo valia-me de diferentes estratégias e instrumentos, em
função das características do objeto de estudo e do HECC. Ao longo do processo,
elaborei e utilizei três instrumentos básicos, a saber: um questionário, aplicado ao
responsável pela criança internada, que continha quatro partes - uma com dados
da criança, outra com dados do pai e da mãe, uma terceira com dados sociais da
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
25
família e uma última problematizando algumas questões como os sentidos da
certidão, os motivos do não registro e questões referentes ao processo de
nominação das crianças; um roteiro para entrevista com os pais de crianças sem
certidão e, por fim, um roteiro para entrevista dos adultos sem certidão de
nascimento.
O projeto de produzir e aplicar o questionário nasceu da intenção de
construir um panorama sociológico do grupo pesquisado, tanto das crianças
quanto de seus pais. Também porque desejava refletir sobre algumas questões
mais subjetivas com um número maior de pessoas.
No período da investigação, de Junho a Outubro de 2006, foram internadas
06 crianças sem certidão no HECC. Meu contato com uma delas foi na
Enfermaria de Pediatria (Gláucio); conheci duas na Emergência Pediátrica e,
depois, na Enfermaria (Jair e Natália); outras duas, na Emergência Pediátrica
(Luiz Felipe e Andrei); com outra criança, Milena, não tive contato no HECC; no
ano de 2007, fui até sua residência no bairro de Bento Ribeiro, zona norte da
cidade, duas vezes, conheci-a, entrevistei a mãe e preenchi o questionário. Uma
outra criança (Jair) e sua mãe Monique vieram até a mim em função do telegrama
que enviei. O filho já havia sido internado no HECC e não possuía certidão,
porque a mãe também não havia sido registrada. Jair ficou novamente internado.
Conversei com Monique, preenchi o questionário e em outubro de 2006 fui à sua
casa em Anchieta, zona norte da cidade do Rio de Janeiro, para uma entrevista
gravada.
Inicialmente, apliquei o questionário aos adultos responsáveis por essas 06
crianças internadas no período de Junho a Outubro de 2006.
Naquele momento, optei por não realizar as entrevistas com os pais dessas
crianças sem certidão de nascimento, pois ainda não tinha a autorização formal da
SES/RJ.
Nos seis casos, a interlocutora foi a mãe. Em três casos consegui, além da
mãe, conversar com o pai da criança (Natália, Gláucio e Luiz Felipe). Isto
aconteceu por conta do direcionamento que tentei imprimir no trabalho de campo.
De uma maneira geral, a pessoa mais presente no HECC junto à criança é a mãe.
Na maior parte das vezes, o pai aparece através da fala das mães. Assim, busquei
as seguintes estratégias: pedir à mãe que falasse com o pai para vir conversar
comigo, telefonar para o pai, preencher o questionário quando possível também
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
26
com o pai, conversa com os pais no HECC, fazendo combinados com eles e
marcando retorno. Um fato que facilitou o contato com esses 03 pais é que dois
deles possuíam outros filhos sem certidão, o que tornava a questão mais urgente.
No contato com essas famílias, eu me apresentava como estudante da PUC
fazendo uma pesquisa sobre crianças sem certidão de nascimento e, ao mesmo
tempo, assistente social do HECC, trabalhando na Enfermaria de Pediatria.
Explicava que precisaria conversar com eles, preencher um questionário e
perguntava se estavam dispostos a prestar informações e a colaborar com a
pesquisa. Eles sempre se dispunham a ajudar e a falar, com exceção de Roberta,
mãe de Andrei, que se mostrou mais resistente e reservada, parecendo
incomodada com as perguntas.
Às vezes alguma mãe aproveitava para criticar o pai de seus filhos. Outras
citavam algum caso de criança sem certidão que conheciam, umas se mostravam
falantes e contando intimidades. Outros se apresentavam mais reticentes, como o
pai de Gláucio, que estava envergonhado e ressabiado. Afirmou que era ex-
presidiário, perdeu os seus documentos na prisão e ainda não os tinha tirado
novamente.
Depois das primeiras conversas, eu começava a preencher alguns campos
do questionário como uma espécie de rascunho ou a travar um diálogo mais
dirigido. Em todos os casos, estive com os responsáveis em mais de um contato,
seja porque busquei acessar o pai da criança, ou porque algumas questões do
questionário estavam incompletas, ou ainda, em função dos desdobramentos dos
casos que tentei acompanhar para a pesquisa.
As conversas se davam na Enfermaria, onde geralmente eu me sentava num
banquinho que fica ao lado do leito e da cadeira de acompanhante (quase sempre a
mãe); no espaço de recreação das crianças; ou ainda, na sala do Serviço Social, no
local destinado ao atendimento do setor. Recorri também a uma área aberta no
térreo do HECC que antes fora usada como espaço de recreação e estava sem
utilização no momento, o que possibilitava maior privacidade.
Ao longo do trabalho de campo no HECC, realizei outras ações, tais como:
uma entrevista sem gravar com uma funcionária administrativa do setor
responsável pela internação e alta dos pacientes – SIA, no sentido de saber como
se dava o processo de abertura de prontuário da criança sem certidão de
nascimento; conversas com as recepcionistas do Serviço de Pronto Atendimento -
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
27
SPA, pedindo que encaminhassem alguma criança que não fosse registrada ao
Serviço Social; conversas informais (em três manhãs) com mães que aguardavam
atendimento no SPA para saber se traziam a certidão de nascimento quando
vinham para o HECC. Somavam-se a isso os registros pessoais que já tinha como
assistente social do HECC. Mantive ainda uma interlocução informal com colegas
da equipe do Serviço Social para repartir o que estava a observar.
Estive na Maternidade Alexander Fleming, onde dialoguei com um
funcionário do cartório que fica lotado nesse posto e responsável por realizar o
registro da criança.
O registro da criança ainda na Maternidade não é compulsório. Só é
possível registrar crianças que tenham nascido lá, até 15 dias de vida. Naquele
momento, na Maternidade Alexander Fleming, a DN
16
só estava sendo entregue à
mãe que tivesse documentos.
No ano de 2006 até a primeira quinzena de abril, não havia sido internada
nenhuma criança sem certidão de nascimento no HECC, o que diferia da
estatística de anos anteriores. Naquele momento, deparei-me com a possibilidade
do objeto de estudo estar “diminuindo”, “desaparecendo” ou “assumindo outras
formas”. Vivi o contraditório sentimento de querer que ele diminua e desapareça,
ainda que quisesse realizar minha pesquisa. Aventei então, algumas possibilidades
para essa diminuição do número de crianças sem certidão de nascimento
internadas no HECC. Poderia ser reflexo da expansão do Programa Bolsa Família-
PBF na região que exige documentos de toda a família, ou fruto da criação de
postos de cartório nas maternidades que facilitam o registro, ou ainda resultado da
divulgação da questão do sub-registro na mídia.
Por essa razão, resolvi ampliar o meu campo empírico, compreendendo
que esse movimento é parte do ato de pesquisar, onde não há certezas absolutas e
a realidade está em constante modificação.
Dessa forma foi que participei como observadora de um dia do Projeto
Cidadania, em abril de 2006, como já citado anteriormente.
16
A DN é o instrumento de coleta de dados sobre os nascidos vivos que estrutura o SINASC –
Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos. Instrumento padronizado e impresso pelo Ministério
da Saúde pré-numerado e distribuído aos estados que, por sua vez, distribuem aos municípios.
Contêm dados sobre a mãe e bebê. Feita em três vias de cores diferentes, a amarela é entregue à
família para que possa providenciar o registro.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
28
O Projeto Cidadania ocorreu em um CIEP no bairro de Costa Barros, zona
norte da cidade do Rio de Janeiro. Fui com a equipe de advogados da área da
Infância da Defensoria, na condição de estudante de Doutorado da PUC. Quando
chegamos ao CIEP, já havia uma enorme fila de pessoas aguardando. Apesar de
estarem sendo oferecidos vários serviços, como corte de cabelo, palestra sobre
planejamento familiar, a grande procura era pelo trabalho dos defensores que,
numa grande sala, davam encaminhamentos por escrito para serem levados aos
cartórios. O foco era “tirar” a segunda via da certidão de nascimento ou da
identidade gratuitamente, retrato 3x4, assim como, a papelada para viabilizar o
casamento civil. Sentados em cadeiras com uma pequena mesa à frente, formando
um grande U, 15 defensores atenderam a população durante a manhã e o início da
tarde, quase que ininterruptamente.
Nessa ocasião, conheci 03 crianças e 04 adultos sem certidão de
nascimento, todos moradores do bairro de Costa Barros que me foram
encaminhados pelos defensores, com exceção de uma moça. Posteriormente,
entrei em contato com ela.
Nesse momento, incorporei-os também ao universo empírico da tese.
Desses sete, seis residem na mesma rua, em um local chamado pelos moradores
de “casinhas”, pois foram casas construídas todas iguais e que não foram
ocupadas, sendo depois invadidas. Hoje já não possuem muitos traços em comum.
É um lugar feio e comandado pelo tráfico de drogas.
Vejamos as notas do diário de campo:
“Cheguei ao CIEP Rubens Gomes por volta das 10h30min. Estacionei o
carro dentro do CIEP e subi para falar com a diretora. Desço e me dirijo para as
tais casinhas, onde tentaria localizar o Cláudio, cuja filha Luana de 10 anos não é
registrada e tem um irmão que estuda no CIEP. Conheci Luana através de uma
professora do CIEP que a levou até a mim no dia do Projeto Cidadania porque
estava inconformada pelo fato dela não estudar por não ter certidão. Deixo minhas
coisas dentro do carro, por sugestão da diretora, e vou somente com os óculos,
celular e chave do carro. Vou andando e no meio do caminho peço informação
para três pessoas. Até que um rapaz diz: “Eu sei quem é. É aquele que tem um
monte de criancinhas”. E começa a me indicar como chegar lá. Uma menina que
está ao seu lado fala: “Leva a moça lá”. O rapaz se levanta e sai andando na minha
frente. Agradeço à menina e me apresso para poder acompanhá-lo. Ele vai sempre
a frente mantendo uma distância e de quando em quando, olha para trás para me
ver. Penso que podia estar de carro e que não tenho mais fôlego para essas
aventuras.
O caminho é muito feio. Ruas esburacadas, casas pobres. Passamos por
uma pracinha no extremo do abandono: brinquedos quebrados, mato alto e muito,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
29
muito lixo. Apenas a quadra parece se salvar um pouco e há nela alguns rapazes
jogando futebol. Tento puxar algum assunto e pergunto: “Porque aqui é chamado
de casinhas”? Ele diz: “Porque antes era tudo casinhas, eram todas iguais”.
Subimos uma ladeira e mais uma, até que o rapaz aponta para uma casa e diz: “É
ali”. E vai se retirando. Fico sem entender, até compreender que chegamos e que
o moço no alto, a minha frente, era o Cláudio que eu procurava” (Diário de
Campo – 09/06/2006).
Desde esse evento mantive contato com a direção do referido CIEP para
ter uma base de apoio. Busquei o mesmo com as pessoas que conheci, seja por
telefone, nas suas casas ou em locais próximos à sua moradia (CIEP, Shopping
Guadalupe), objetivando conversar, aplicar o questionário da pesquisa e fazer
entrevistas. Uma delas, Eliana, mudou-se. Fui até Tinguá, Nova Iguaçu, no seu
novo endereço para entrevistá-la.
A participação no Projeto Cidadania aguçou mais o meu olhar e me
instigou a observar a questão dos adultos sem certidão de nascimento, já que
conheci quatro adultos que não eram registrados através desse evento. Esse
fenômeno tornou-se interessante para mim à medida que atravessa gerações,
trazendo mais complexidade para as cenas.
Ainda no interior do trabalho de campo, no mês de Junho de 2006,
buscando ampliar o universo empírico, enviei aerogramas em nome do Serviço
Social do HECC para alguns responsáveis que tiveram crianças internadas em
anos anteriores e que não possuíam certidão de nascimento. Colhi esses dados,
nomes e endereços, nas fichas do Projeto Registre Sua Criança do Serviço Social
do HECC, dos anos de 2002 e 2004. Esse período foi escolhido, pois foram anos
em que o registro do Serviço Social esteve mais qualificado e as informações
sobre as pessoas atendidas estavam mais completas. No conjunto de 10
aerogramas enviados, tive resposta somente de uma pessoa que veio ao Serviço
Social e aproveitou para trazer seu filho que estava doente, conforme sinalizado
anteriormente. Também cheguei a marcar com duas pessoas no HECC, mas elas
não compareceram.
No final do segundo semestre de 2006 e ao longo do ano de 2007, dei
prosseguimento à tentativa de manter contato com esses responsáveis, mas
ampliando o período para os anos de 1999 a 2007, por ser o tempo em que lá me
encontro trabalhando. Portanto, venho acompanhando, de alguma forma, essa
questão. Como indiquei, minha intenção foi construir um pequeno retrato do
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
30
grupo pesquisado, a partir de dados quantitativos e qualitativos ao aplicar o
questionário do trabalho de campo. Já tinha uma noção do número de crianças a
que seria aplicado, mas só naquele momento soube do número real, o que causou
um susto devido ao tamanho da empreitada e a inexistência de recursos: 171
crianças.
17
Por conta desse universo grande e também do desejo de trazer os adultos
sem certidão para a tese, optei em entrevistar somente os adultos sem certidão de
nascimento e, com relação aos responsáveis pelas crianças, aplicar o questionário.
Ocorre que acabei entrevistando 07 responsáveis por crianças sem certidão, pois
quis assegurar mais as conversas que estavam a se desenrolar no momento da
aplicação do questionário.
Para chegar a esse universo de 171 crianças foi preciso fazer um
levantamento em todos os livros de atendimento do Serviço Social desse período,
1999 a 2007. Foi um processo extremamente trabalhoso e exaustivo. Como o
aerograma não surtira efeito, nem a marcação no HECC, decidi ir até a casa das
pessoas.
O processo de levantamento de dados nos livros do Serviço Social, a
aplicação do questionário e a tabulação dos dados contou com a contribuição de
Michele Anacleto. Michele foi estagiária do Serviço Social do HECC e hoje é
assistente social. Trabalhou comigo, na condição de auxiliar de pesquisa. Nesse
sentido, em diferentes momentos, eu me refiro à Michele como “minha auxiliar de
pesquisa”, “minha acompanhante” ou mesmo como Michele, quando a ação
descrita tiver contado com a participação dela. Essa parceria deu mais agilidade à
coleta de alguns dados, assim como tornou o trabalho de pesquisa menos solitário,
à medida que era possível uma troca de pontos de vista entre nós.
A localização de informações nos livros do Serviço Social foi um árduo
processo. Em primeiro lugar, significou pedir à secretária do Serviço Social que
solicitasse os livros aos funcionários do Almoxarifado, que deveriam localizá-los
e retirá-los, o que levou mais de um mês. Com cerca de 25 livros nas mãos, eu e
minha auxiliar de pesquisa passamos a procurar pelos registros de atendimento
17
O número de crianças atendidas pelo HECC e que não possuem certidão de nascimento é
superior, já que ocorre de nem todas passarem pelo Serviço Social. Também porque alguns livros
não foram localizados.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
31
aos responsáveis pelas crianças sem certidão de nascimento. Vale dizer que alguns
livros não foram localizados no Setor dos Arquivos Inativos.
Para encontrar o atendimento a uma criança sem certidão, era preciso
folhear os livros página por página, já que os registros se encontravam em meio a
todos os outros atendimentos realizados a cada dia pelo Serviço Social.
Às vezes eu e Michele encontrávamos através da nominação “Filho de”,
outras vezes, somente ao ler o atendimento realizado é que percebíamos que a
criança não era registrada.
Uma vez localizada a criança no livro de atendimento do Serviço Social,
eu e minha acompanhante transcrevemos os dados para uma listagem organizada
por ano, identificando o livro e as páginas do atendimento. Depois, transcrevemos
as informações de cada criança para uma cópia do questionário a ser aplicado,
guardando-o numa pasta relativa ao ano correspondente.
Posteriormente, eu e Michele organizamos listagens das crianças por
bairro, independente do ano, colocando também endereço e telefone, quando
havia. Deparamo-nos com um número significativo de crianças cujos registros não
continham endereço ou telefone. Em alguns casos, inclusive, constava somente o
nome. Este tipo de registro não possibilitava o conhecimento do caso, muito
menos servia para a pesquisa.
Em seguida, ligamos para as pessoas que tInham telefone, com o objetivo
de marcar uma visita à casa delas para aplicar o questionário. Eu e Michele
utilizamos o telefone do Serviço Social do HECC nos momentos em que não
estava ocupado e também o de casa, inclusive o celular. Em alguns momentos,
usar o telefone do Serviço Social trouxe algum desconforto, porque é utilizado de
forma quase que contínua pela equipe de assistentes sociais. Os números de
telefone muitas vezes eram de um vizinho, familiar, telefone comunitário ou até
mesmo de uma entidade religiosa. Foi um processo rico, em função dos diálogos
travados com algumas pessoas, dos quais emergiam formas inusitadas de
linguagem e diferentes visões de mundo. Entretanto, foi cansativo, pois tivemos
que repetir sempre a mesma fala, apresentando-nos e dizendo quais os nossos
propósitos. Também, encontramos várias situações que se constituíram em
desafios e levaram a buscar outros camInhos para localizar as pessoas. Por
exemplo: a ligação não completava, a pessoa mudou-se, não conheciam quem
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
32
procurávamos e, ainda, o vizinho fica de chamar a pessoa e quando retornávamos
ninguém atendia ao telefone.
Ocorreu que ao chegarmos no endereço informado no HECC, ninguém
conhecia quem procurávamos. Percebi que as pessoas se mudam com freqüência,
pois muitas não eram conhecidas no local. Cheguei a aventar a hipótese de que
algumas forneceram endereço e telefone errados no ato da abertura de boletim no
HECC. Isto aconteceu porque fomos a locais onde havia vizinhos ao endereço
fornecido que sempre moraram ali e não conheciam quem procurávamos.
Outra estratégia utilizada para tentar encontrar algum número de telefone,
foi o serviço 102 da telefonia. Poucas vezes eu e minha acompanhante obtivemos
êxito e conseguimos através do número de telefone informado falar com a pessoa
que buscávamos. O retorno através do uso desse serviço foi pequeno. Geralmente
obtínhamos as seguintes informações: “telefone não disponível para consulta”;
“endereço não localizado” ou “não existe telefone disponível para este endereço”.
Ocorria também do serviço de telefonia fornecer o número de um endereço
semelhante em outro bairro. Em outros casos, quando tínhamos o número do
telefone, ligávamos e não residia ninguém com o nome que procurávamos no
endereço ou próximo à residência.
Algumas vezes, ao telefone, as pessoas eram impacientes e ásperas, outras
vezes, eram ou simpáticas e disponíveis, seja para dizerem que não conheciam tal
pessoa, ou mesmo, para se colocarem disponíveis em receber a mim e a minha
auxiliar de pesquisa. O sentimento, nesse momento, era um misto de frustração e
alegria.
Em conversa com Michele ela me fez o seguinte relato que mostra as
dificuldades do trabalho de campo, por isto vale à pena transcrevê-lo.
“Era muito interessante a maneira como as pessoas reagiam quando eu
falava a seguinte frase: “Bom dia, boa tarde ou boa noite, eu sou Michele auxiliar
de pesquisa da assistente social Tula do Hospital Estadual Carlos Chagas. No ano
X a Senhora deu entrada na unidade com a criança Y e na época ela não tInha
registro/certidão de nascimento e a assistente social Tula está fazendo uma
pesquisa sobre crianças e adultos sem certidão, atendidos aqui no Carlos Chagas
desde 1999 até o presente ano 2007. Nós estamos entrando em contato para saber
se a senhora teria um tempo disponível para responder algumas perguntas sobre as
dificuldades e implicações que a senhora teve para tirar a certidão do(a) seu ou
sua filho(a). É somente uma pesquisa”. A sensação que tínhamos era de que a
pessoa do outro lado da linha ficava preocupada, cismada, receosa e até mesmo
com medo de sermos do Conselho Tutelar, querendo tirar a criança dela. Isso era
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
33
manifesto em várias ligações, quando conseguíamos falar com a pessoa
pretendida. Ela dizia que a criança já estava registrada “há um tempão”, termo
utilizado pela maioria. Perguntava se íamos tirar a criança. Daí eu acabava sendo
impulsionada a explicar novamente a pesquisa, ressaltando que não tínhamos
nenhuma ligação com o Conselho Tutelar, mas que era uma pesquisa para a
faculdade da assistente social Tula, uma espécie de trabalho dizia eu. Por fim
acabávamos conseguIndo convencer a pessoa de nos fornecer a entrevista através
da nossa ida a sua residência. Sempre que eu me deparava com outro contato, era
como se eu tivesse ganho um prêmio, tendo em vista a dificuldade que era obter
êxito na busca. No entanto, era melhor ainda quando conseguia marcar a visita
domiciliar”.
Como última tentativa, eu e minha auxiliar de pesquisa, inserimos os
nomes das crianças e responsáveis no sistema do HECC, que gera os boletins de
atendimento da emergência. Consegui localizar alguns dados que não possuía.
Encontramos também, ao digitar a expressão “Filho de”, cerca de 20 crianças que
não foram atendidas pelo Serviço Social e não possuíam sua certidão, mas que
deram entrada no HECC. Não as incluí na pesquisa, em função do quantitativo já
ser grande e por não terem tido atendimento do Serviço Social do HECC.
Partindo, então, de 171 crianças cheguei ao seguinte quadro:
CRIANÇAS SEM CERTIDÃO DE NASCIMENTO
51
29
27
14
11
10
8
5
4
3
22
171
0
20
40
60
80
100
120
140
160
180
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
34
A partir deste trabalho, optei por delimitar geograficamente o universo a
ser pesquisado. Assim, crianças que residem em bairros que o HECC não abrange,
não fizeram parte do universo onde foi aplicado o questionário. Nesse sentido, a
classificação Fora da Área do HECC, diz respeito às crianças que moram em um
bairro fora da abrangência do HECC, mas que, no entanto, lá foram atendidas.
Esse fato é muito comum, pois um número grande de moradores da Zona Oeste e
da Baixada Fluminense buscam atendimento no HECC.
Chamo Área de risco os locais em que moradores nos aconselharam a não
visitar. Basicamente referem-se aos bairros de Costa Barros, Irajá e Barros Filho.
Por outro lado, várias tentativas sem êxito são aquelas em que eu e Michele
falamos ao telefone, marcamos e os responsáveis não compareceram, ou
marcaram novamente e não conseguimos encontrá-los. Em dois casos desta
categoria, todas as informações confirmavam que estávamos diante da pessoa
procurada, mas ela dizia que não era ela, o que interpretei como sendo uma recusa
ao controle que as instituições exercem em relação à população, ainda mais se
tratando da temática em foco.
Munidas do endereço, eu e minha auxiliar de pesquisa, buscamos
referências nos mapas, na internet e no guia de ruas para saber como chegar às
casas. Montamos roteiros por proximidade e, tendo feito ou não contato pelo
telefone anteriormente, partimos para as casas das crianças. Ás vezes, eu e
Michele íamos no meu carro, ou Michele ia de ônibus, a pé ou de carro com seu
namorado.
No telefone e na casa das pessoas, eu me identificava como sendo Tula,
assistente social do HECC que estava fazendo uma pesquisa sobre as crianças sem
certidão de nascimento que foram atendidas no HECC e Michele, auxiliar de
pesquisa. A identidade do HECC foi fundamental para nos proteger, pois, a
desconfiança das pessoas era grande. Nas primeiras visitas que fiz ainda me
apresentava como estudante e pesquisadora da PUC, uma universidade, falava da
pesquisa, mas em seguida tinha que falar do HECC para que as pessoas
entendessem melhor e também para que abrissem as portas. Logo abandonei essa
forma de apresentação, também porque comecei a me sentir insegura em função
dos locais em que estava a transitar e das diferentes reações das pessoas.
Apresentava-me como representante do HECC, o que garantia alguma proteção.
Assim sendo, eu ou minha auxiliar de pesquisa ficamos sendo vistas como: “a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
35
moça”, “as moças”, “as moças da pesquisa”, “a assistente social”, “a assistente
social do HECC” ou simplesmente como: “é do HECC”.
Não conseguia, face às dificuldades das pessoas, deixar de explicar como
registrar a criança, como o adulto poderia registrar-se, como conseguir o PBF, ou
mesmo problematizar algum assunto em pauta. Não conseguia, principalmente
com os adultos sem certidão de nascimento, não tentar provocar as pessoas para
buscarem tirar seu registro. Dessa forma, os dados coletados, as interpretações
feitas e o conhecimento gerado a partir da presente tese, trazem a marca desses
dois papéis: assistente social e pesquisadora. Na verdade, creio que a
dramaticidade da problemática, por tratar-se de sujeitos que estão numa situação
limite levou a (con) fundir os papéis de pesquisadora e assistente social em
algumas situações e casos. Tal circunstância integra o processo de pesquisa e
marca minhas conclusões da tese.
Nesse sentido, era inevitável que surgisse algum pedido, como por
exemplo, a possibilidade de fazer uma tomografia, ou informação sobre
benefícios. Dei a informação pedida e quanto à tomografia, pedi que me ligassem,
pois iria ver como estava sendo o funcionamento. A pessoa não telefonou. A mãe
que pediu a tomografia foi a mesma que ao telefone disse para a minha auxiliar de
pesquisa que era muito grata ao HECC e a mim pelo atendimento que seu filho
recebera quando esteve entre a vida e a morte.
Quando eu e Michele estávamos juntas, eu conduzia as perguntas e
Michele registrava no questionário. Quando ela estava só, fazia as duas coisas.
Nos sete casos em que também entrevistei a mãe e gravei, eu conduzi a entrevista
e a minha acompanhante fez anotações no questionário. Em uma residência,
apliquei o questionário por telefone. A avó me recebeu e ligou para o trabalho de
sua filha. Esta nos atendeu gentilmente. Eu fui fazendo as perguntas e repetindo
suas respostas em voz alta, ao mesmo tempo, para que minha acompanhante
pudesse anotar.
Um dos aspectos que mais chamou a atenção foi a reação das pessoas
achando que eu e Michele éramos do Conselho Tutelar, ora com medo, ora com
alguma expectativa. Não era uma novidade, mas a associação entre esse órgão, a
coerção e o disciplinamento chocou-me. Isso porque passados quase 20 anos da
implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, a visão da sociedade
sobre o Conselho Tutelar e sobre os conselheiros ainda é muito negativa. O papel
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
36
deste personagem social é incompreendido e distorcido. Algumas pessoas
perguntavam se éramos do Conselho Tutelar e, em seguida, se íamos tirar seus
filhos. Logo se adiantavam em dizer que a criança já estava registrada. Com isso,
buscavam também, em alguns casos, descartar o contato comigo e com minha
auxiliar. Outras pessoas queriam que fôssemos do Conselho Tutelar, seja porque o
vizinho ou mesmo a avó da criança, por exemplo, dizia que os pais da criança não
tinham jeito, só chamando o Conselho Tutelar. A visão que familiares e/ou
vizinhos expressam em relação às mães e/ou pais de uma criança sem certidão de
nascimento é recheada de adjetivos pejorativos: “desmioladas; relaxadas;
descansadas; encostadas; irresponsáveis; safadas; acomodadas; devagar”.
Uma mãe, Monique, em entrevista, relatou que um funcionário do
Conselho Tutelar teria lhe telefonado e dito que iria à sua casa. Por causa disso,
suas crianças, particularmente a Jeniffer, sentiam medo, por conta da possibilidade
do Conselho Tutelar tirá-las da Monique. Esta mãe diz que quando chega alguém
na sua casa, ela corre para dar banho em seus filhos, sobressaltada, com receio de
ser alguém do Conselho Tutelar.
Eu e Michele percebemos já pelo telefone diferentes reações nas pessoas:
desconfiança, medo, preconceito, gentilezas, agradecimentos. Algumas tentavam
se esquivar dizendo que não tinham horário ou que “as coisas estavam
complicadas”, a violência estava grande no local onde moram e ficaria difícil
nosso acesso. Mas estavam se protegendo e a nós também, de alguma forma.
Assim, alguns marcaram local próximo para nos pegar, ou forneceram
recomendações de como chegar.
Algumas residências foram localizadas facilmente; muitas outras, nem
tanto. Foi preciso um “espírito aventureiro” e uma dose de imprudência para
adentrar em determinados locais. Muitos deles em áreas consideradas de risco,
seja por definição do mapa, pelo meu conhecimento, por informação das próprias
pessoas com quem buscava conversar e, até mesmo, por transeuntes que davam
informações. Alguns destes recomendavam que eu e Michele não fôssemos a
determinado local, em seus rostos percebíamos expressões de medo pelo perigo.
Por duas vezes, no bairro de Costa Barros, zona norte da cidade do Rio de Janeiro,
após pedir informações nas ruas, minha auxiliar percebeu que acabara de falar
com alguém envolvido com o tráfico em função da presença de armas e papelotes
de cocaína. Em uma ocasião, nesse mesmo bairro, minha auxiliar achou melhor
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
37
não prosseguir na tentativa de localizar alguns endereços. Estava sozinha, recebeu
recomendações de que o local era perigoso e se sentiu vulnerável. Em outro
momento, estávamos no bairro de Honório Gurgel, zona norte da cidade do Rio de
Janeiro, na casa da criança Luiz Davi. Enquanto gravava uma entrevista com sua
mãe, ouvi um barulho e eu perguntei: “Tiros ou fogos?” e Maria da Consolação
respondeu: “Acho que são tiros”. Desliguei o gravador e esperei um pouco. Em
seguida, como os tiros não prosseguiram, dei continuidade à entrevista.
A forma como as pessoas fornecem informação nas ruas daria uma
interessante pesquisa. Algumas visivelmente não sabem, mas dão a orientação,
outras perguntam a outros. Outros ainda falam uma parte e pedem para perguntar
mais a frente. Algumas ruas, as pessoas não conhecem. Nesse processo de pedir
informação na rua, eu e minha acompanhante acabamos achando algumas ruas e
pessoas por acaso. Em duas situações, quando entrávamos em um local para
chegar a uma determinada rua, acabamos encontrando outra que também
estávamos a procurar. Ao pedir referência a uma moça, percebemos que também
procurávamos por ela. E ainda em outro momento, indagando uma moça na rua
sobre uma pessoa era a própria que eu estava a procurar.
Por várias vezes, pensei em voltar atrás e não ir a determinados locais. Por
exemplo, num fim de tarde, eu e Michele subíamos um morro em Guadalupe, na
zona norte da cidade do Rio de Janeiro, e passamos pelo meio do mato fechado e
da água que escorria pelo chão, em plena epidemia de dengue, para falar com uma
moça que morava no alto do morro. A sensação que tive era a de que não havia
nada depois do mato, e pensava na volta com medo de cair. Saí de lá com o corpo
todo coçando.
Outras vezes, eu e minha auxiliar entramos em becos que pareciam não ter
fim, sempre levadas por crianças. Uma ruela estreita e escura levava a outra mais
estreita e mais escura, várias casas amontoadas ali se anunciavam, pessoas se
esgueiravam. No chão, uma água escorria e um cheiro de esgoto misturado com
gordura. Nestes momentos, eu e Michele trocávamos alguns olhares mudos: o que
fazer? Continuar ou não? E se algo acontecer com Michele, terei que responder
por isso?! Sua família vai me processar?
Um aspecto que chamou a atenção foi a presença das crianças por todos os
locais. Ruidosas, pelas ruas brincando, na lama, no rio, vestidas com o uniforme
da prefeitura, com roupas inadequadas para o tempo, sujas, comendo, vendo
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
38
televisão. Mostravam-se curiosas por saber quem éramos. Efetivamente em alguns
momentos, algumas crianças batalharam para ter um lugar ativo, seja dando uma
informação de endereço, levando-nos até a casa ou pessoa procurada, seja
interrompendo a entrevista que estavam a assistir para tecer um comentário que
lhes parecia importante, merecedor de registro. Por exemplo:
“Estou na sala da Laurelina, bisavó de Ana Beatriz, gravando a entrevista
com ela. Seus vários netos e bisnetos transitam da sala para o quarto curiosos com
a minha presença. Ao longo da entrevista, Laurelina se mostrou muito solícita e
emocionada narrando sua história de sofrimento, pois como diz tem uma filha
presa, uma drogada e um filho que mora na rua. Uma de suas bisnetas, com cerca
de 08, anos vInha tentando falar algo, abria a boca e Laurelina mandava ela se
calar e sair dali. Até que diante de suas várias tentativas de falar, eu lhe pergunto:
“Você queria falar alguma coisa?”. Ela fica quieta e de repente diz a queima
roupa: “MInha tia matou a minha tia”. Todos ficam constrangidos e Laurelina diz:
“Isso já é outra coisa”. E em seguida pede: “Vai brincar, não pode falar nada
vocês, vai brincar” (Diário de Campo – 11/12/2007)!
Ao escrever esse texto, recordo-me do comentário de outra criança
enquanto entrevistava sua mãe, Sandra, também ligado a morte de um parente.
Ela disse: “O tio Fábio já morreu”. Isso no momento em que sua mãe estava
contando um pouco da história de cada um dos seus irmãos. Isto mostra o contato
desde cedo das crianças com a morte de familiares, de tios, de forma violenta:
num caso assassinado pela outra tia e em outro pela polícia.
Como uma extensão da própria casa, as pessoas ocupam as calçadas
próximas, conversando, tomando cerveja e observando o entorno e a
movimentação. A minha chegada e a da minha auxiliar de pesquisa despertava
curiosidade. As pessoas querem saber quem somos e o que viemos fazer. Com
uma freqüência impressionante indagam se somos do Conselho Tutelar, conforme
já assinalado. Lançam um olhar comprido, se oferecem para dar informação,
chegam ao portão, continuam próximas, mesmo quando encontramos quem
procurávamos.
Nas visitas às casas, alguns aspectos me chamaram atenção. O primeiro
deles é a pobreza em que muitas das pessoas vivem. Áreas de invasão aparecem,
barracos de madeira, casas de um cômodo, esgoto a céu aberto, casa no alto do
morro, cheiro de umidade e sujeira. De forma freqüente, a situação das crianças
sem certidão de nascimento vem acompanhada de outras mazelas, o que aponta
para a ligação entre sub-registro de nascimento e pobreza. Em alguns casos, a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
39
pobreza era tanta que cheguei a ficar nauseada. Por isso também ficava difícil
atuar somente como pesquisadora, assim não me furtei a dar informações sobre
programas sociais e serviços existentes. Por isso mesmo, receava aceitar água ou
café nas muitas vezes em que foram oferecidos. Mas, ao mesmo tempo, sabia ser
indelicado não aceitar, e em várias vezes aceitei. Às vezes, a pobreza era
relativizada quando a conversa com o informante tinha um tom positivo, ou
quando a pessoa era engraçada.
Depois de aplicados os questionários, eu e minha auxiliar de pesquisa
passamos à tabulação dos dados e confecção de gráficos. Nesse processo, percebi
que deveria ter feito um pré-teste de aplicação do questionário, pois poderia ter
evitado perguntas parecidas, outras que acabaram não fazendo muito sentido e
ainda outras que não incluí e deveria ter incluído. Na altura do vigésimo
questionário aplicado, comecei a perceber certa saturação dos dados relativos a
algumas perguntas.
Como três das 29 crianças às quais o questionário foi aplicado aos seus
responsáveis foram notificadas ao Conselho Tutelar pelo Serviço Social do
HECC, também busquei dados nas fichas de notificação. Encontrei algumas
informações que não constavam dos livros de atendimento do Serviço Social do
HECC.
Como parte do material empírico da tese, desde abril de 2007, acompanho
a peregrinação de Andréia, 32 anos, sem certidão de nascimento, que vem lutando
para ter seu documento. Eu a conheci através do trabalho na Secretaria Municipal
de Assistência Social da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.
Convivi com Andréia em vários momentos, junto à Defensoria Pública de
Anchieta, ao Detran e em alguns dos 14 cartórios de registro civil do Rio de
Janeiro. Fomos juntas também ao Cartório de Madureira onde está o seu processo
e, mais recentemente, ao gabinete do Doutor Siro Darlan, que coordena o Projeto
“Quem sou Eu”?, voltado para a erradicação do sub-registro de nascimento no
estado do RJ, no sentido de agilizar seu processo. Este processo será detalhado no
Capítulo III da tese.
Nesta oportunidade, pude perceber um pouco do funcionamento desses
vários órgãos no que diz respeito ao registro civil tardio. Em função desse caso,
entrevistei Andréia, o Defensor Público, Félix Dutra da Defensoria de Anchieta e
o Desembargador Siro Darlan.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
40
Quanto à realização de entrevistas, tenho os seguintes dados: 03
entrevistas com adultos sem certidão de nascimento: Eliana e Sandra
18
que
conheci através do Projeto Cidadania e Andréia através da Prefeitura do Rio de
Janeiro. Foram realizadas outras sete com mães que tiveram filho internado no
HECC: Sheyla, Priscilla, Maria da Consolação, Sueli, Laurelina, Monique e Rute.
Estas duas últimas também não possuíam certidão de nascimento.
Na maior parte das vezes, não contei com as melhores condições para a
realização das entrevistas, até porque, eram realizadas com os responsáveis junto
com a aplicação do questionário, não estavam agendadas antes. Mesmo as com os
adultos sem certidão de nascimento que foram agendadas. Diferentes
circunstâncias podem ser descritas: crianças ao redor, televisão ligada sem o som,
barulho de música ao longe e curiosos esticando o pescoço. Somente na entrevista
de Andréia, tive um bom espaço e tranqüilidade, sem ser interrompida por
ninguém. Previamente agendada, foi realizada em uma escola. Fatores outros
como a pobreza me deixando nauseada, a dureza da temática e o constrangimento
que senti diante da situação narrada de ser uma pessoa sem certidão de nascimento
particularmente, em alguns momentos, também marcaram as entrevistas.
Como é possível perceber dada a complexidade do campo e dificuldade de
acessar as pessoas, tive várias entradas que foram simultâneas e construí
diferentes estratégias e possibilidades metodológicas. O que trouxe um material
rico e dificuldades para interpretação dos dados, forçando-me a buscar soluções
em busca dos meus objetivos. A minha empiria gerou uma realidade
multifacetada, como uma espécie de teia.
Em vários momentos os papéis de assistente social e de pesquisadora se
entrelaçaram. No interior do HECC talvez isso tenha sido mais difícil, pois acabei,
em alguns momentos, realizando dois papéis simultaneamente. Como as crianças
têm um tempo de internação relativamente pequeno, se eu não entrasse em contato
com os responsáveis imediatamente, provavelmente, quando voltasse na semana
seguinte, a criança já teria tido alta.
No Projeto Cidadania, pude ser claramente estudante do Doutorado da
PUC que estava fazendo uma pesquisa sobre as crianças sem certidão de
nascimento. Até mesmo posteriormente em contato com os adultos sem certidão,
18
Entrevista transcrita no anexo III
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
41
pude me colocar como uma pesquisadora. Lá fui vista como a “Tula”, “a moça da
pesquisa”, “a moça que esteve no mutirão no CIEP”, “a moça do caso do
Rodrigo”, em relação ao rapaz do grupo que não era registrado.
A existência de crianças sem certidão de nascimento é uma temática que
me causou, como já assinalado, desde o início um grande estranhamento. Quando
transformada num objeto de pesquisa acadêmica, pareceu que esse estranhamento
foi maior ainda. Mas aqui não só mais meu. Em conversas com várias pessoas de
meu convívio, inclusive nos espaços da Pontifícia Universidade Católica – PUC-
Rio, também provocava estranhamento. Provocava em seguida certo fascínio,
deleite com o tema, o que levava as pessoas a fazerem perguntas e a falarem até
mesmo de experiências correlatas suas ou não. Fui percebendo então, que era uma
temática em que se resvala facilmente para o moralismo, talvez porque fale de
uma questão que remeta a todos nós, afinal, somos todos registrados, quanto para
a perplexidade, uma curiosidade enorme, diante de uma dimensão cultural
“exótica”, longe do olhar, apesar de estar tão perto, na nossa própria cidade,
algumas vezes em nossas casas ou na de conhecidos. Tanto para a pesquisa quanto
para a intervenção nenhum dos dois pólos é produtivo, pois não se avança na
construção do conhecimento. Ao longo de todo trabalho de campo, tive que estar
atenta a essas questões, pois é uma realidade muito distante do extrato social em
que vivo mais ainda por se tratar de pessoas que pertencem aos patamares mais
baixos da hierarquia da sociedade brasileira e que trazem uma história de muita
dor e diferentes tipos de abandono, principalmente os adultos sem certidão. Nesse
sentido, logo olhamos as crianças e pensamos que elas podem vir a ser como esses
adultos.
Lembro então de Cynthia Sarti (2004), quando diz que:
“Ouve-se o discurso das famílias como “ignorância”,
negando que este possa ser levado em conta como um
diálogo entre pontos de vista. Essa tendência à
desqualificação do outro será tanto mais forte quanto
mais a família assistida pertencer aos estratos mais
baixos da hierarquia, reproduzindo os mecanismos que
instituem a desigualdade social.
À dificuldade que o tema da família apresenta, por sua
forte identificação com nossas próprias referências e pelo
esforço de estranhamento que a aproximação ao outro
exige, soma-se o problema do estatuto que atribuímos ao
nosso próprio discurso e, consequentemente, ao discurso
do outro (p:34)” .
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
42
Nesse sentido, relativizar o olhar que eu lançava para as mães e pais, a
cada conversa que mantínhamos, foi um movimento muito custoso. Exigiu suor,
repensar, buscar novas formas de perguntar e de enxergar as mães como mulheres.
Mais ainda, quando no contexto do HECC, a premência do papel de assistente
social se colocava exigindo uma intervenção e um combinado com cada família
em relação à realização do registro das crianças. Um bom exercício nesse sentido,
para mim, foi a convivência com Michele. Em muitos momentos me vi fazendo
uma espécie de formação em serviço com ela, provocando-a a se repensar quando
emitia algum comentário um pouco mais conservador ou no plano do senso
comum.
Ao escrever esse texto, percebo que começo a elaborar algumas sensações
anteriores que não conseguia nomear ou mesmo explicar muito bem. Hoje vejo
que o fato de em abril de 2006 eu ter sentido necessidade de ampliar meu campo
empírico, procurando outros locais em que pudesse encontrar mais pessoas sem
certidão de nascimento, porque naquele momento no HECC não havia ainda sido
internada nenhuma, poderia estar ligado às características dessa pesquisa –
crianças sem certidão de nascimento no interior de uma unidade de saúde. Ou
seja, é um objeto que não é permanente na instituição nem específico. Até porque
não se vai para um hospital porque não se tem certidão de nascimento. Isso não se
constitui motivo de internação. Quer dizer, não é todo dia que se tem uma criança
sem certidão de nascimento no HECC mais ainda internada e principalmente nos
últimos anos pude assistir meu objeto de pesquisa ganhando também outras
nuances.
Retomei contato com as pessoas que tiveram passagem pelo HECC, para
continuar tendo um foco numa instituição determinada. Hoje vejo que um
caminho, além de buscar ampliar o universo empírico, poderia ter sido pensar em
estratégias que me possibilitassem um maior convívio com essas pessoas, um
trabalho de campo intensivo quando houvesse alguma criança sem certidão de
nascimento internada. Ou até mesmo uma convivência cotidiana maior com as
famílias em suas residências, ou ainda a partir de processo judiciais com essa
temática. Essa é uma das razões, pela qual a empiria da presente tese é
diversificada em termos de locais onde os dados foram coletados, as diferenças
entre os próprios dados e a forma como foram obtidos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
43
2.2
Perfil das crianças e responsáveis
Passo agora a trazer dados da tabulação do questionário que podem nos
ajudar a compor um perfil das crianças e seus responsáveis de parte do grupo
pesquisado. Como já sinalizado, o questionário foi aplicado a responsáveis por 29
crianças internadas no HECC entre 1999 e 2007 e que não possuíam sua certidão
de nascimento. Ao longo da apresentação desses dados, aponto algumas reflexões
e dialogo com dados de algumas pesquisas quantitativas localizadas na revisão da
bibliografia e anteriormente apontadas, a saber: Souza (1989) procurou estimar a
taxa de sub-registro de nascimento em Maringá, PR; Portela (1989) dedicou-se a
fazer o mesmo no município de Piripiri, PI; assim como Jorge et al (1997) no
município de Londrina, PR e Cardoso et al (2002) no município do Centro Novo
do Maranhão, MA. Esta última, sendo uma pesquisa já após a vigência da Lei da
Gratuidade de 1997 e da realização de três mutirões para “tirada” de certidões de
nascimento, já mostra reflexos dessas ações no índice de sub-registro. Castanhel
(2003) estudou o sub-registro em Florianópolis, SC.
Vale dizer que em termos dos informantes, tivemos o seguinte:
MÃE PAIS AVÓ TIA PAI MÃE
E
AVÓ
MÃE
E TIA
19
3
2
2
1 1
1
QUEM PRESTOU AS INFORMAÇÕES
Em diferentes perguntas os dados relativos ao pai, estão classificados
como não informados, já que as mulheres às vezes não sabiam dar informações,
ou o pai já havia falecido, mas na maior parte das vezes preferiam não informar,
como dizem: “Precisa falar dele?”; “Não quero falar dele não”; “Prefiro não
falar”, foram situações comuns.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
44
LOCAL DE MORADIA
8
4
3
3
3
2
1
1
1
1
1
1
ANCHIETA
GUADALUPE
MARECHAL HERMES
OSWALDO CRUZ
SENADOR CAMARÁ
BARROS FILHO
CAMPINHO
BENTO RIBEIRO
RICARDO DE
ALBUQUERQUE
VILA VALQUEIRE
REALENGO
HONÓRIO GURGEL
Em relação ao local de moradia, com exceção de 04 crianças, cujos dados
foram coletados no interior do HECC durante a internação, as demais fazem parte
do território de abrangência do HECC.
Em relação às crianças o perfil é o seguinte: em termos de sexo, 17 são
meninos e 12 são meninas. Não haveria assim, preferência dos pais em registrar
filho de um sexo em detrimento de outro. Conforme sinalizado por outras
pesquisas, Souza (1989); Portela (1989), Jorge et al (1997), Brasileiro (2001),
Cardoso et al (2002) a variável sexo não se mostra significativa. Como sinaliza
Souza (1989), em pesquisa sobre o sub-registro de nascimentos em Maringá, PR,
a variável sexo diferiu pouco, resultado que para ela era esperado, já que, via de
regra, a sociedade brasileira não valoriza crianças de determinado sexo em
detrimento ao outro.
Em termos da cor da criança, temos o seguinte: 03 negras, 19 pardas, 04
brancas e 03 sem informação.
Em termos da idade das crianças temos o seguinte:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
45
IDADE
12
4
3
4
3
1
1
1
1 MÊS
3 A 4 MESES
6 MESES
7MESES A 1 ANO
2 ANOS
4 ANOS
6 ANOS
11 ANOS
A maior concentração de crianças vai até os seis meses de idade. O que
pode nos indicar que o registro possa vir a ser feito com a criança ainda pequena.
Chama atenção o fato de haver duas crianças em idade escolar, uma delas de 11
anos de idade é Danilo que nunca estudou, a outra é Natália de 06 anos que
também nunca foi à escola.
Em termos da situação do registro dessas 29 crianças, temos o seguinte
quadro:
SITUÃO DO REGISTRO
9
11
6
3
CRIANÇAS REGISTRADAS
DURANTE A INTERNAÇÃO
NO HECC
CRIANÇAS REGISTRADAS
APÓS A INTERNAÇÃO NO
HECC
NÃO REGISTRADOS
SEM INFORMAÇÃO
Temos então, que a maioria das crianças foi registrada. Das 06 que ainda
não estão registradas, 05 são meninos. Em termos do registro o panorama nos
mostra que a maior parte foi registrada no nome do pai e da mãe.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
46
REGISTRADO NO NOME DE QUEM?
11
8
1
PAI E MÃE
E
SEM INFORMAÇÃO
Com relação ao motivo da internação, a maior parte das crianças foi
internada em função de alguma patologia respiratória ou intestinal, o que obedece
ao padrão da Enfermaria de Pediatria
19
.
Coletei também o dado de com quem a criança mora, conforme gráfico
abaixo:
CRIANÇA MORA COM QUEM?
11
14
4
PAIS
MÃE
OUTROS
Vemos que 14 crianças moram com a mãe, dessas, duas moram somente
com a mãe, todas as outras residem também com outros parentes (seja tios, avós
ou primos) e em dois casos com o novo companheiro da mãe, 11 crianças moram
com os pais e 04 crianças classifiquei como outros: uma com a tia, uma com um
19
Segundo dados de 2002 do Doutor Paulo Roberto do HECC as patologias mais freqüentes na
Enfermaria de Pediatria referem-se a infecções respiratórias e gastrointestinais.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
47
casal que a cria, uma com o namorado da mãe e uma criança faleceu. O que fica
claro, é que a mãe é a figura que está mais presente seja qual for o grupo de
pessoas, parentes que morem juntos.
Importa ressaltar que seis crianças (Rodrigo, Natália, Luiz Felipe, Jair,
Ana Beatriz e outro Luiz Felipe) também possuíam irmãos que não eram
registrados. No caso de Rodrigo (mais 02 irmãos) Natália (mais 03) e Luiz Felipe
(mais 04), Jair (mais 02), Ana Beatriz (mais 01 irmão) e por fim, o outro Luiz
Felipe que tinha uma irmã adolescente que ainda não era registrada.
No caso de Natália e Luiz Felipe seus irmãos foram registrados junto com
eles, em função da internação no HECC. No caso de Rodrigo isso não ocorreu,
pois a mãe dele não possui certidão e não abriu um processo de registro tardio;
diferente do caso de Jair, cuja mãe também não é registrada, mas que já abriu o
processo.
Ampliando as informações sobre a realidade de vida dessas crianças, trago
agora alguns dados sobre os seus pais. Em termos da idade dos pais, temos que:
IDADE DO PAI E DA MÃE
0246810
ADOLESCENTE ATÉ 17 ANOS
18 A 21 ANOS
22 A 25 ANOS
26 A 30 ANOS
31 A 40 ANOS
MAIS DE 40 ANOS
O INFORMADO
MÃ E
PA I
Vemos que há a presença de mães e pais adolescentes, o que pode
contribuir para retardar o registro de nascimento da criança, já que dependem de
seus pais para efetivá-lo, conforme citado explicitamente por uma mãe e apontado
por outras pesquisas. Jorge et al (1997) e Castanhel (2003) encontraram
associação entre mães adolescentes e tanto a demora na realização do registro
quanto o sub-registro de nascimento. Vemos que a concentração das mulheres que
vai dos 22 anos até os 30 anos é onde o sub-registro foi maior. Também próxima a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
48
essa faixa etária, entre 20 e 29 anos Souza (1989), encontrou associação com
maiores índices de sub-registro de nascimento. No entanto, na pesquisa de Portela
(1989), as taxas de sub-registro analisadas, segundo idade das mães, são muito
próximas.
Em relação ao número de filhos por mulher, é possível perceber que:
NÚMERO DE
FILHOS X MULHERES
2
5
6
6
5
2
1
1
1
0246
UM
DOIS
TRÊS
QUATRO
CINCO
SEIS
SETE
OITO
ONZE
QUANTIDADE DE FILH
8
O
QUANTIDADE DE MULHERES
Vemos que a maior concentração esentre as mulheres que tiveram de
três até seis filhos, aventando assim uma relação entre alta paridade e baixo nível
sócio econômico. Também encontrado por Souza (1989) e Castanhel (2003).
No conjunto de 29 mulheres, 21 disseram ter feito alguma consulta de pré-
natal.
A variável tipo de parto foi em 22 casos parto normal e em 09 casos parto
cesariana, o que novamente aponta para relação entre sub-registro e baixas
condições de vida. Indicada também por Souza (1989), Jorge et al (1997) e
Castanhel (2003).
Em termos de cor da pele temos uma concentração maior de mães que se
definiram como parda, seguida de negra e os pais empatados entre pardo e negro.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
49
0 5 10 15 20
PA RDO
NEGRO/ MORENO
BRANCO
O INFORMADO
COR DO PAI E DA MÃE
E
PAI
Em relação a escolaridade vemos que:
051015
ENSINO FUNDAMENTAL
COMPLETO
ENSINO FUNDAMENTAL
INCOMPLETO
ENS I NO M ÉDI O
COMPLETO
ENS I NO M ÉDI O
INCOMPLETO
NÃO ALFA BETIZA DO
O SOUBE INFORMAR
ESCOLARIDADE DO PAI E DA
E
E
PAI
Temos assim uma concentração de mães e pais que possuem o ensino
fundamental incompleto, mas o que me chamou atenção é que dentro do ensIno
fundamental, a maior parte só foi até as primeiras séries, denotando uma instrução
precária. Também Jorge et al (1997), encontrou como um resultado
estatisticamente significante que as mulheres sem nenhuma instrução e aquelas de
ensino fundamental incompleto foram as que menos registraram seus filhos.
Também Cardoso et al (2002) e Castanhel (2003), encontraram números que
reforçam a relação entre baixa escolaridade e sub-registro.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
50
Em relação à ocupação da mãe temos o seguinte:
OCUPÃO DA MÃE
1
6
6
1
2
4
0 5 10 15 20
DO LAR
FAXINEIRA
VENDEDORA
AUXILIAR DE SERVIÇOS
GERAIS
EMPREGADA DOMÉSTICA
Em relação ao pai:
OCUPAÇÃO DO PAI
5
3
2
9
6
1
3
02468
PEDREIRO
VENDEDOR
ESTOFADOR
O INFORMADO
OUTROS
FALECIDO
RECLUSO
10
Esse dado foi difícil para tabular, em função da forma como foi coletado,
pois não consegui saber exatamente quantos estavam trabalhando ou não no
momento. A palavra biscate é muito presente, denotando as poucas possibilidades
de trabalho regular e configurando uma trajetória intermitente. O que temos então,
para todos os casos, é o tipo de ocupação que a pessoa costuma exercer quando
trabalha que se caracteriza pela subalternidade, desqualificação, instabilidade e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
51
rendimentos baixos, mesmo as duas mães, auxiliar de serviços gerais, com
trabalho com vínculo empregatício.
Percebemos então, que a maior parte das mulheres não trabalha e que as
demais exercem funções ligadas ao campo doméstico. Em relação aos homens,
predominam atividades que exigem pouca escolaridade. O desemprego se faz
presente e aponta para uma privação material e moral.
Essas pessoas vivem em uma das cidades mais modernas do país, nela
trabalham e todos os dias estão em contato com as possibilidades desse mundo, de
uma sociedade de consumo que lhes nega o que lhes promete.
Interessante observar que a maior parte das crianças mora em casa própria,
em nome de algum de seus pais. Seguido de longe pela condição de aluguel e casa
cedida. Ter casa própria de alguma forma é um diferencial no conjunto dos pobres,
uma marca de distinção, o que não quer dizer que haja estabilidade econômica.
Segundo Sarti (1996), para os pobres a casa própria funciona como a realização de
um valor tipicamente burguês por eles compartilhado, de acordo com o mundo
regido pela lógica do mercado, mas cujo significado não se esgota aí.
Castanhel (2003), em pesquisa sobre a situação dos registros de
nascimentos vivos em Florianópolis – SC no ano de 2000, diz que a exclusão
social é fator determinante do sub-registro de nascimento. A autora encontrou
associação estatisticamente significante entre sub-registro de nascimento e parto
normal, multiparidade, baixo número de consultas de pré-natal, mães
adolescentes, baixa escolaridade materna, mães com situação conjugal instável e
nascido vivo de cor preta. Concluindo assim, relação direta entre sub-registro de
nascimento e baixa condição de vida.
Também Souza (1993) encontrou associação entre sub-registro de
nascimento e piores níveis socioeconômicos em estudo no município de Maringá -
Paraná.
Podemos então, indicar a partir da analise desses dados uma relação entre
sub-registro de nascimento e baixa escolaridade dos pais, exercício de funções
subalternas, parto normal e multiparidade.
O que afirma que a existência do sub-registro de nascimento decorre em
significativa parte em função da desigualdade socioeconômica do Brasil, que pode
ser observada em diversos indicadores.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
3
A Certidão de nascimento ou quando existir depende de um
papel
O presente capítulo traz aspectos da estrutura administrativa do sistema de
registro civil brasileiro e da legislação da área e, ainda, alguns dados demográficos do
fenômeno de sub-registro de nascimento no Brasil. No diálogo com mães e alguns pais
abordo os sentidos da certidão de nascimento para o grupo pesquisado, problematizando
a idéia de cidadania que a posse da certidão parece conferir ao seu portador. O registro
de nascimento será entendido aqui como um ritual nos termos de Van Gennep (1978),
com destaque para o processo de nomeação das crianças quando dialogo com Francisco
Martins (1991). Nesse momento o diálogo central se dá com Celso Simões (1999;
2002), por ser o demógrafo do IBGE ligado à pesquisas sobre registro civil, com
Roberto DaMatta (1997;1997a;2002), por ser minha referência básica da antropologia
para pensar a questão da cidadania, e com a tamm antropóloga Mariza Peirano
(2006). Peirano e DaMatta são os antropólogos brasileiros que abordaram o tema dos
documentos.
3.1
Sistema de Registro Civil no Brasil: alguns aspectos
Para o Estado brasileiro o documento que certifica o registro de nascimento da
pessoa é a certidão de nascimento, conferIndo identidade ao cidadão e estabelecendo
seu relacionamento formal com o Estado
20
. É a representação da existência legal do
indivíduo, condição fundamental ao exercício da cidadania (IBGE, 2005). Nela constam
nome, sexo, data, horário e local de nascimento, além dos nomes dos pais, avós e pessoa
que declarou o nascimento perante o cartório de registro civil
21
.
De acordo com o dicionário Aurélio (1986), o registro civil
22
é a anotação oficial
de todos os dados relativos aos nascimentos, casamentos, óbitos, feita por funcionário
civil. O registro civil implica na obrigação legal de registrar em um estabelecimento
próprio os fatos relativos à pessoa física (ou chamada pessoa natural), no tocante a:
20
No Anexo V uma certidão de nascimento.
21
Informações obtidas no site www.sedh.gov.br (Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal).
22
Alguns aspectos da história do Sistema de Registro Civil Brasileiro encontram-se no Anexo VI.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
53
nascimento, casamento, óbito, emancipação, interdição, sentença declaratória de ausência,
opção de nacionalidade e sentença para legitimação adotiva. Os serviços de registro civil
e emissão das respectivas certidões são exercidos, em caráter privado, por delegação do
poder público, pelas instituições cartorárias e ofícios privativos, denominados Cartórios
de Registro Civil das Pessoas Naturais - RCPN (Makrakis, 2000).
Ser registrada é um direito fundamental da criança garantido pela Convenção
sobre os Direitos da Criança (1989)
23
, da qual o Brasil é signatário, em seu Art. 7:
1- A criança será registrada imediatamente após seu nascimento e terá direito, desde o
momento em que nasce, a um nome, a uma nacionalidade e, na medida do possível, a
conhecer seus pais e a ser cuidada por eles.
2- Os Estados Partes zelarão pela aplicação desses direitos de acordo com a legislação
nacional e com as obrigações que tenham assumido em virtude dos instrumentos
internacionais pertinentes, sobretudo se, de outro modo, a criança tornar-se apátrida;
e em seu Art. 8:
1- Os Estados Partes comprometem-se a respeitar o direito da criança de preservar sua
identidade, inclusive a nacionalidade, o nome e as relações familiares, de acordo com a
lei, sem interferências ilícitas.
2- Quando uma criança vir-se privada ilegalmente de algum ou de todos os elementos
que configuram sua identidade, os Estados Partes deverão prestar assistência e
proteção adequadas, visando restabelecer rapidamente sua identidade.
Também no Brasil, temos uma legislação avançada no que se refere à infância,
conquistada através da mobilização de diferentes setores da sociedade, expressa,
principalmente, no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (1990)
24
. O direito da
criança à proteção integral é reforçado no Art.3:
23
www.unicef.org.br
24
www.unicef.org.br
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
54
- A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana, sem prejuízo da proteção integral de que tratam esta Lei, assegurando-lhes
por lei ou por outros meios todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar
o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade
e dignidade.
O registro civil de nascimento se constitui como o primeiro acesso do indivíduo
aos serviços de justiça no País. É relevante para obtenção dos diversos benefícios
sociais criados pelos governos, bem como ao ingresso no sistema formal de educação. O
controle de qualidade dos dados sobre a criança, os pais ou responsáveis e a
fidedignidade das certidões emitidas são elementos importantes no combate ao tráfico
de menores e à falsificação de documentos (IBGE, 2005).
Quando pessoas nascem ou morrem e não constam nas estatísticas oficiais por
não existirem legalmente, ou seja, por não terem sido registradas, ocorre o sub-registro
de nascimento. Sendo assim, o sub-registro se refere a um conjunto da população que
não possui certidão de nascimento, isto é, existe no anonimato. Somam-se a isso os
cemitérios clandestinos, nos quais são enterradas pessoas sem atestado de óbito e,
conseqüentemente, sem o registro dessas informações (Makrakis, 2000; Simões, 1999).
Sob o aspecto dos estudos demográficos, o sub-registro de nascimento e de óbito
reflete a qualidade e fidedignidade dos indicadores de saúde, impossibilitando o cálculo
direto de alguns destes tais como as taxas bruta e específica de natalidade e mortalidade
(Castanhel, 2003; IBGE, 2003). Isto dificulta, também, o planejamento de políticas
públicas, principalmente na área da educação e saúde. À medida que parte da população
não existe oficialmente, é difícil planejar ações e prioridades no plano político: quais
são as demandas, de fato? Qual a população real?
Até a década de 80, o registro de nascimento em cartório era feito por declaração
verbal do pai ou responsável que, acompanhado de duas testemunhas, obtinha a certidão
mediante pagamento. A partir de 1990, o sistema de registro civil brasileiro define que
passa a ser necessária a declaração de nascimento, DN – Declaração de Nascido Vivo
(fornecida pelo hospital ou maternidade), para proceder ao registro em cartório
(Schochi, 2004).
Assim, de posse do documento de identidade e da certidão de casamento, o pai
ou a mãe pode registrar seu filho. Para pais que não são casados, é necessária a presença
do homem para que a criança possa receber seu nome, já que a mulher sozinha não
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
55
pode registrar o filho no nome do pai. A mulher pode, ao efetuar o registro de seu filho,
declarar o nome do pai e fornecer dados sobre ele a fim de que o Juiz mande notificar o
suposto para que se manifeste sobre a paternidade que lhe é atribuída, conforme
formulação da Lei da Paternidade – Lei número 8560 de 29/12/1992. Esta lei regula a
investigação da paternidade dos filhos havidos fora do casamento e dá outras
providências. Posteriormente voltaremos a essa questão.
Pessoas entre 12 e 18 anos só poderão ser registradas mediante abertura de
processo de registro tardio, acompanhadas de seus pais ou de seu representante legal.
Pessoas maiores de 18 anos podem elas próprias ser declarantes.
A certidão de nascimento é um documento que fala de direitos e deveres. Em
primeiro lugar, direito da criança de ser registrada, de poder ter um nome e uma
existência civil. Para que esse direito se concretize é preciso que os pais ou responsável
legal exerça o dever de proceder a esse registro, passando a ter deveres em relação ao
filho. Ao mesmo tempo, o Estado deve criar condições para que as famílias possam
registrar seus filhos, o que remete a várias questões, dentre elas a garantia de que os
cartórios não cobrem por esse serviço.
A primeira certidão de nascimento e a certidão de óbito são gratuitas, de acordo
com a Lei 9534 de dezembro de 1997. Porém, esta lei não vem sendo cumprida em todo
o território nacional, pois muitos cartórios resistem em abdicar dessa fonte de renda
criando diferentes estratégias para cobrar por esse serviço. Há um custo alto da certidão
de nascimento e de óbito para o cartório. Além disto, há grande variação de cidade para
cidade, podendo o preço da certidão alcançar meio salário mínimo por registro. Essa
situação favorece tanto a manutenção das crianças e adultos sem certidão de
nascimento, quanto o aparecimento de cemitérios clandestinos, principalmente no norte
e nordeste do Brasil (Simões, 2002). Como um desdobramento da lei que instituiu a
gratuidade, há a orientação de formulação de políticas de fundos compensatórios para os
cartórios, mas que também vêm encontrando dificuldades para sua concretização
(IBGE, 2003).
O documento do Unicef “Situação Mundial da Infância” (2006), mostra que
embora a maioria dos países do mundo disponha de mecanismos para registrar
nascimentos, o número efetivamente registrado varia entre eles. Cerca de 48 milhões de
crianças de várias regiões do mundo, nascidas em 2003, não eram registradas, o que
equivale à cerca de 36% do total de nascimentos naquele ano.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
56
Segundo o Unicef:
“Em média, cerca de 55% dos nascimentos anuais nos países
em desenvolvimento (excluIndo a China) não são registrados –
uma proporção que se eleva a 62% na África ao sul do Saara.
Na Ásia Meridional, a parcela é ainda mais alta, chegando a
70%. Cerca de 50% das crianças no mundo todo às quais é
negado o direito a uma identidade legal ao nascer vivem nessa
região. Em Blangadesh, apenas 7% de todos as crianças são
registradas ao nascer. Há uma ampla variação nos níveis de
registros de nascimento – desde os Territórios PalestInos e a
Coréia do Norte, onde praticamente 100% dos nascimentos
foram registrados em 2004, até o Afeganistão, a Tanzânia e
Uganda, onde a taxa é Inferior a 7%” (2006, p: 37).
A maioria das crianças não registradas encontra-se nos países em
desenvolvimento de acordo com dados apontados pelo Unicef (2006). Para alcançar a
universalização dos direitos humanos é desejável que 98% dos nascimentos sejam
registrados, nível alcançado pelos países industrializados no ano 2000 (Pais, 2002).
No Brasil, a pesquisa do IBGE, “Estatísticas do Registro Civil” (2006), apontou
que o índice de sub-registro de nascimento estimado para o País naquele ano foi de
12,7%. Isto significou que aproximadamente 400.000 crianças nascidas no período
considerado para o cálculo
25
deixaram de ter certidão de nascimento. Assim, a cada ano,
milhares de meninas e meninos fazem crescer as estatísticas de brasileiros sem registro
civil. Esse mesmo estudo mostra que o fenômeno do sub-registro de nascimento se
distribui de maneira diferenciada pelo País, sendo os maiores percentuais observados
nos estados das regiões norte e nordeste, conforme gráfico abaixo.
25
Por sub-registro de nascimento o IBGE considera o conjunto de nascimentos ocorridos no ano de
referência da pesquisa Estatísticas do Registro Civil e não registrados no próprio ano, ou até o fim do
primeiro trimestre do ano subseqüente (IBGE, 2005).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
57
As proporções de sub-registro de nascimento mais elevadas foram observadas
em Roraima, no Piauí e Alagoas, respectivamente 42,8%, 33,7% e 31,6%. As
informações dos assentamentos de nascimentos tiveram os mais baixos níveis de sub-
registro em São Paulo e Distrito Federal, 0,4%, e em Santa Catarina e no Paraná, -0,6%
e -0,1%, respectivamente, cuja cobertura superou as estimativas. O Rio de Janeiro
obteve 9,0%.
Os nascimentos notificados nos cartórios fora do período considerado pela
pesquisa do IBGE são incorporados às estatísticas do Registro Civil nos anos seguintes
como registros tardios
26
, que na verdade vêm a ser um desdobramento do sub-registro.
Em 2006, os registros tardios representaram 11,3% (357.156) do total de nascimentos
notificados no País, como consta do gráfico abaixo:
26
A Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973, da qual resultam as atribuições do atual Sistema do Registro
Civil, no seu Art. 50, define que o registro de nascimento deverá ser realizado dentro do prazo máximo de
15 dias, a partir de seu acontecimento, havendo prorrogação por até três meses, para os casos nos quais os
lugares de ocorrência do evento distam mais de 30 km da sede do cartório. Não estão obrigados ao
registro somente os índios não integrados, podendo, esse, ser feito junto a FUNAI (IBGE, 2005).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
58
São Paulo, Santa Catarina e Paraná foram as Unidades da Federação com as
menores proporções de registros tardios, respectivamente, 2,1%, 3,0% e 3,2%. O Rio de
Janeiro apresentou um índice de 5,3%. Os maiores percentuais foram observados no
Amazonas (36,4%), Pará (34,8%) e Amapá (33%).
Tais dados indicam que o entendimento dos motivos que levam a esses índices
deve passar necessariamente por uma análise regional intimamente ligada ao grau de
desigualdade de acesso a determinados bens e serviços.
Segundo o IBGE (2004; 2005; 2006), a redução do sub-registro de nascimento
no Brasil vem se dando de forma gradual, conforme se percebe no gráfico a seguir:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
59
Esta melhoria decorre não só do próprio declínio da fecundidade, mas,
principalmente, da realização de diversas ações com vistas à universalização desses
registros e por iniciativas vindas do Governo Federal através do Ministério da Saúde e
da Secretaria Especial de Direitos Humanos, pelas Corregedorias de Justiça e Cartórios
do Registro Civil de Pessoas Naturais. Dentre essas ações destaca-se a Campanha
Nacional do Registro Civil, cuja continuidade, segundo o IBGE (2006), tem sido
fundamental para manter o patamar de registros alcançados nos últimos anos, bem
como, para a recuperação de registros tardios. O estabelecimento de gratificações para
as unidades de saúde que estimulem o registro antes da alta hospitalar e a instalação de
postos de cartórios nas maternidades são outras ações.
No entanto, se consideramos a certidão de nascimento um dos primeiros passos
na construção da cidadania, há que se afirmar que atravessamos tempos de barbárie,
onde as crianças que não a possuem viveriam uma espécie de anonimato civil. Como
assinalam Bazílio e Kramer:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
60
“Dizer que a criança é cidadã de direitos é entender que tem
direito à brincadeira, a não tomar conta de outras crianças, a
não trabalhar, a não exercer funções que, em outras classes
sociais, são exercidas por adultos e, em grande parte das
situações, são remuneradas. Que têm direito à educação. Aqui
se coloca como essencial o papel do Estado. Se o Estado não
assume sua responsabilidade social, não fomenta políticas
públicas, não implementa políticas sociais, como reverter essa
desigualdade histórica (2003, p:121)”?
A existência de crianças que não possuem sua certidão de nascimento se
configura como a violação de um direito básico, o direito de existir legalmente. Vivem
com possibilidades limitadas de cidadania – possuem uma cidadania constrangida, já
que a elas é negado o acesso a premissas de igualdade e a possibilidade de se incluírem
numa família e numa nação formalmente.
3.1.1
O que é a certidão de nascimento na perspectiva das mães e alguns pais
“Ah, certidão de nascimento? Certidão de nascimento é tudo na vida”
27
.
O trabalho de campo que alimenta as discussões da tese consta de um
questionário aplicado a 29 responsáveis por crianças não registradas, internadas no
HECC nos anos de 1999 a 2007.
Essa parte deste capítulo está estruturada a partir da análise de algumas das
respostas à seguinte pergunta do questionário: “O que é a certidão de nascimento para
você?”. Traz também reflexões sobre a certidão de nascimento enquanto um mecanismo
de controle.
Ao longo do texto recorro às entrevistas e ao caderno de campo, referente não
só às crianças internadas no HECC, mas também às pessoas que conheci no Projeto
Cidadania e no trabalho da Prefeitura do Rio de Janeiro. Além disso, refiro-me a
registros pessoais do ano de 2000 sobre o trabalho do HECC com as crianças sem
certidão de nascimento e, ainda, aos livros de atendimento do Serviço Social do HECC
27
Martha, 26 anos, faxineira, mãe de Caroline de 09 meses, internada no HECC em 2000, sem certidão de
nascimento.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
61
dos anos de 1999 a 2007, no que diz respeito aos sentidos da certidão de nascimento
para o grupo pesquisado.
O gráfico abaixo apresenta o universo de respostas dadas pelos responsáveis à
pergunta “O que é a certidão de nascimento para você?”. Em seguida, analiso as
respostas que apareceram de modo mais significativo.
22
18
16
9
8
5
4
3
3
2
0 5 10 15 20 25
ACESSO AOS SERVIÇOS
É TUDO
PARA EXISTIR
É UM DOCUMENTO
VIVER E MORRER
PROVAR FILIAÇÃO
SER CIDADÃO
SER RECONHECIDO
SER CONHECIDO
OUTROS
SIGNIFICADOS DA CERTIDÃO
DE NASCIMENTO
ACESSO AOS SERVOS
É TUDO
PARA EXISTIR
É UM DOCUMENTO
VIVER E MORRER
PROVAR FILIAÇÃO
SER CIDAO
SER RECONHECIDO
SER CONHECIDO
OUTROS
Conforme sinalizado no gráfico, vemos que a resposta que apareceu com maior
freqüência diz respeito ao fato da certidão de nascimento possibilitar à criança e ao
adulto o acesso aos mais variados serviços e ao exercício de seus direitos. Poder ser
atendido pelo médico, ficar internado em hospitais, fazer pré-natal, entrar para a creche,
para a escola, receber o Programa Bolsa Família - PBF, trabalhar, fazer compras,
“retirar dinheiro do banco” e viajar, foram situações apontadas, seja ao poderem realizá-
las, seja quando se viram impedidos por não terem a certidão de seus filhos ou deles
próprios.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
62
Sheyla, 23 anos, vendedora, é mãe de três filhos, dentre eles Ryan Israel de 07
meses, que foi internado no HECC em 2007, com um abscesso na perna. Ela registrou
seu filho somente em seu nome porque seu companheiro não possuía documentos e
Ryan Israel precisou de um acompanhamento de neurologista no ambulatório de outro
hospital. Em entrevista na sua casa em 2008, ela diz que a certidão de nascimento:
“Significa que a pessoa está viva, está ali, que tem família, é uma forma de
documento do meu filho pra ele quando for para o posto ter acesso à saúde dele,
entendeu?”.
Sueli, 45 anos, pensionista, teve sua filha Milena de 04 anos de idade internada
no HECC no ano de 2006, respondeu ao questionário da pesquisa. Quando em
entrevista na sua casa no ano de 2006, eu lhe pergunto o que seria uma certidão de
nascimento, ela responde:
“É tudo. É importante para tudo. Para hospital. Eu é que sou relaxada”.
Eliana, 26 anos, não trabalha e nunca foi registrada. Eu a conheci em 2006 no
Projeto Cidadania. Em entrevista nesse mesmo ano na sua casa em TInguá, Nova
Iguaçu, ela fala que a certidão de nascimento:
“É tudo. Pode entrar na escola. Muita coisa. Porque sem o registro como é que
vou entrar na escola? Ele não entra na escola sem os documentos (se referIndo ao seu
filho de sete anos). O registro é tudo. A pessoa sem certidão não existe para o mundo,
não existe para o mundo”.
Andréia de 32 anos nunca foi registrada. Não trabalha e nunca estudou. Eu a
conheci em 2007, através do trabalho na Prefeitura do Rio de Janeiro. Em entrevista,
nesse ano, numa escola da rede pública, ela diz:
“Ah, para mim a certidão é tudo (risos), para mim é tudo porque através da
minha certidão eu posso dar entrada num colégio, eu posso dar entrada num hospital e
através dela eu vou tirar meus documentos todinhos, então eu vou ser uma cidadã né,
igual todo mundo”.
Prossegue dizendo que:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
63
“Eu não sou ninguém. Eu sou diferente de todo mundo né, porque todo mundo
tem seus direitos, tem seus direitos de poder dar entrada num hospital porque tem seus
documentos, seus estudos e nada disso eu tenho”.
Já Laurelina, 60 anos, pensionista, que já criou sua bisneta Beatriz que esteve
internada no HECC no ano de 2005 diz, em entrevista na sua casa em 2008 que a mãe
de Beatriz atualmente, está “sumida no mundo” e Beatriz é criada por um casal que
mora em Sepetiba, bairro da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Para Laurelina a
certidão de nascimento:
“Seria grande coisa, porque sem a certidão a pessoa não é nada. Seria uma
grande coisa, porque sem certidão ninguém faz nada, então a certidão bem dizer seria
a vida de uma criança. Como elas têm certidão, elas estudam, desde de pequenInInhas,
estiveram em creche, estiveram em colégio, agora vão entrar de férias”.
De certa forma, as respostas dos responsáveis falam do universo de relações
sociais que a criança irá estabelecendo a partir de seu nascimento e se dará de forma
diferenciada caso seja registrada ou não. Aparecem interdições e constrangimentos que
as crianças e os adultos sem certidão de nascimento estão sujeitos e do que estão
privados. Ter acesso aos serviços públicos, aos direitos sociais e ser aceito nos espaços
em que se transita, sentir-se parte de um coletivo são aspirações, algo que se deseja.
Percebe-se que a certidão de nascimento se configura como um pré-requisito
para a participação em aspectos relevantes da vida social. Numa época e numa
sociedade profundamente permeada pela burocracia, pelo controle e pelas noções de
indivíduo e de identidade civil (nome, sobrenome, nacionalidade, naturalidade, sexo,
idade completa, números infinitos), a certidão representa a porta de ingresso dos sujeitos
ao mundo social, marcando a história e o cotidiano das crianças, bem como sua
subjetividade.
Algumas mães apontam ainda a importância da certidão de nascimento para ter
acesso a outros documentos, já que é ela que permitirá ao indivíduo obter, junto aos
órgãos competentes, a carteira de identidade e, consequentemente, a carteira de
habilitação, a carteira de trabalho, o título de eleitor, CPF (cadastro de pessoa física) e
outros documentos relativos a etapas posteriores de sua vida, até a certidão de óbito. A
certidão de nascimento funciona como uma espécie de “documento mãe” de todos os
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
64
outros, potência de geração e início de vida da qual fica difícil escapar. Seguindo esse
raciocínio, chegamos à seguinte resposta dos responsáveis, que aparece com força no
gráfico anterior sobre os sentidos da certidão de nascimento.
A idéia da certidão de nascimento como tudo e, portanto, como algo muito
importante foi uma resposta dada muitas vezes, como a primeira coisa que vem à
cabeça, ou como se por si só respondesse de forma completa à pergunta ou, ainda,
quando não se sabia exatamente o que falar, a partir de certa surpresa com a indagação.
Na verdade, tudo não precisa de acréscimos, já que é tudo. Tudo que uma vida, uma
trajetória, uma existência pode comportar, como o início legal da caminhada que
possibilita o desencadear da vida social.
A compreensão da certidão de nascimento como tudo remete à terceira resposta
fornecida pelos responsáveis com maior freqüência: a certidão de nascimento permite à
criança e ao adulto poder existir. Já que sem ela não há existência, não se existe perante
a lei, não se é ninguém, não se é nada, não se é gente, não se é cidadão, guardando
relação com as respostas “para ser reconhecido”; “para ser conhecido”, fornecidas
pelos responsáveis e que apareceram com menor incidência.
Priscilla, 28 anos que respondeu ao questionário da pesquisa e foi entrevistada é
mãe de três filhos, trabalha com vendas e faz faxina. Sua filha Letícia foi internada em
2002 (na época com quatro meses de idade) no HECC com pneumonia e não era
registrada. O pai da criança havia falecido quando Priscilla ainda estava grávida. Em
entrevista em 2008, no quintal da sua casa, quando indagada sobre o que seria uma
certidão de nascimento, ela nos diz que:
“Ah, certidão de nascimento para mim, ué, sem a certidão a gente não pode
nada, tipo se eu não tivesse a certidão da minha filha agora, a minha filha não ia estar
estudando, minha filha não poderia ir a um médico, tipo Deus que me perdoe, mas se
acontecesse alguma coisa de ruim com a minha filha ia ter uma série de problemas,
entendeu, ia ter que fazer a certidão dela às pressas. Era mais dor de cabeça, mais
aborrecimento. ... é um negócio muito importante, porque sem ela você não existe. Até
mesmo quando o pessoal do Censo, como é que vai provar que eu existo sem a certidão
de nascimento. Para mim a certidão de nascimento é quando a pessoa nasce, entendeu,
porque sabe tudo da pessoa assim. Para ter identidade eu tenho que ter a certidão de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
65
nascimento primeiro, para mim a partir da certidão de nascimento você passa a ser
uma cidadã, se você não tiver a certidão de nascimento, você não é uma cidadã”.
Maria da Consolação, 36 anos, vendedora, teve seu filho Luiz Davi entre a vida
e a morte no HECC em 2000, respondeu ao questionário e foi entrevistada em 2008 na
sua casa. Para ela a certidão de nascimento:
“É muito importante na vida da criança, a criança pode se registrar numa
escola, o hospital pede e não tem empecilho, a criança não existe sem a certidão de
nascimento, a criança não existe”.
As respostas acima apontam para um sentimento recorrente nos pais, o de que
para eles um filho sem certidão de nascimento é como se não existisse. “Minha filha
não existe para o mundo”; “É como se ele não existisse”; “Agora o meu filho existe”;
‘’É legal ter a certidão da minha filha, ela é minha”; “Meu filho não é conhecido”; “ A
certidão é importante para meu filho ser conhecido no Rio de Janeiro todo”; são falas
freqüentes e fortes que remetem basicamente à dimensão da própria existência, do
reconhecimento público dessa existência e da possibilidade de comprovação da filiação
materna
28
.
Mas, o filho não existe para quem? Qual dimensão não existiria? As mães não
parecem falar do filho como uma unidade empírica, um ser humano biológico, membro
de uma espécie. Sabem de sua existência, quem ele é, seu nome, ainda que com
imprecisões em alguns casos. Parece que estão a dizer que seus filhos não existem de
modo social pleno, pois em primeiro lugar não existem para a sociedade e para o Estado
que é o responsável pela oferta de serviços sociais e o legitimador da cidadania no
Brasil. Como se não tivessem ainda nascido socialmente, já que com a certidão de
nascimento é que haveria o verdadeiro nascimento. Não existiriam então, como
indivíduos e cidadãos.
A certidão de nascimento como pré-requisito para a cidadania, para existir como
cidadão aparece de forma explícita nas respostas de quatro responsáveis. Ser
28
Essa compreensão da certidão de nascimento como fundamento da própria existência me fez recordar
do filme “A Lenda do Piansita do Mar”, de Giuseppe Tornatore que conta a história de um jovem que
nasceu em alto-mar e recebeu o nome do ano do seu nascimento, 1900. Em um navio sempre viveu e
com o mar e a musica se relacionava, numa espécie de eterna ausência de estabilidade na vida. Quando
tem a oportunidade de sair do navio que será destruído e viver fora dele, 1900 não consegue, pois aquele
era seu mundo. Como diz Giuseeppe Tornatore: “O filme fala de uma forma de existir sem realmente
existir”. (Diário de Pernambuco, 03/09/2000).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
66
reconhecido perante a lei, ser igual a todo mundo, sentir-se filiado a uma nação, ser
brasileiro, ter acesso aos serviços, ter seus documentos são símbolos de cidadania para
os pais que relacionaram existência, certidão de nascimento e cidadania.
Gláucio Henrique de 07 meses de idade esteve internado no HECC em 2006
com bronquiolite. Sua mãe, Maria Geralda de 27 anos de idade, faxineira, ao conversar
comigo ao longo do trabalho de campo, diz que para ela a certidão é importante porque:
“Sem ela você não é brasileiro. Você não é conhecido. Para mim ele é Gláucio,
eu sei. Para o Brasil ele não existe, não é cidadão”.
A idéia de cidadania vem também ligada às leis, assim para ser cidadão seria
preciso ter o reconhecimento das leis e vice-versa. A certidão seria o elo dessa equação,
transformando a criança em cidadão, ao possibilitar uma vida mais digna e um status de
igualdade em relação às outras crianças. Realizando o sentido de existência pública e o
exercício de direitos civis.
A certidão é compreendida quase como um “abre-te Sésamo”, ou uma poção
mágica. A sua posse conferiria cidadania e não o contrário. Como pode um documento
provar cidadania? Não seria o inverso? Recordo-me das idéias de Roberto DaMatta
(2002), quando ele diz que no Brasil é a posse do documento que confere cidadania e
não o contrário, porque o Estado Brasileiro é tido como instância conferidora de
cidadania e dignidade social. Para o autor, o controle do cidadão pelo Estado é sem
dúvida um dos mais graves problemas políticos do Brasil.
Há ainda uma dimensão onde a afirmação de que se é cidadão ou que se deseja
ser cidadão, é luta, esperança por melhores dias, uma forma de afirmar direitos. Uma
esperança de que ao se nomearem cidadãos, possam com isso estar garantIndo direitos.
Como diz Roberto DaMatta: “A força da lei é, pois, uma esperança. Para os
destituídos, ela serve como alavanca para exprimir um futuro melhor (leis para nós e
não contra nós), e para os poderosos serve como um instrumento para destruir o
adversário político (1997a, p: 238)”.
A lógica dos direitos estaria voltada para luta, ou seja, para algo ainda a ser
instaurado. Pois, até mesmo as regras universais da cidadania, as leis que teoricamente
valem para todos, acabam por classificar a criança e o adulto sem certidão de
nascimento, de certa forma, como um subcidadão, já que no contato com as instituições
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
67
sociais, por exemplo, eles são sempre definidos pela ausência, pela falta, pelos deveres,
pelas obrigações, pelo que não podem e não devem fazer ou pelo que poderiam caso
tivessem a sua certidão de nascimento. A cidadania marca desvantagem e inferioridade.
O acesso a vários serviços está negado, a própria filiação poderá ser questionada, a
entrada no sistema escolar poderá não ocorrer e até a saída do hospital com um filho de
alta poderá ser impedida.
Ao mesmo tempo, parece que outras mães “dispensam” a certidão de
nascimento, na medida em que para elas é como se a sua identificação e a de seu filho
acontecessem através de seu próprio corpo, sua presença e fala e não por meio de um
papel comprobatório – um documento. Isto se expressa quando ficam perplexas diante
do controle institucional no HECC
29
e da necessidade de terem que provar que elas são
elas, e de que os seus filhos são seus. Indagam-se: a “fala”, a “sua palavra” não bastam?
A semelhança física entre pais e filhos não garante? Dizem: “mas ele é a minha cara”.
Por outro lado, também parecem esperar que o exercício concreto da maternidade seja
suficiente: “eu tenho, crio e agora essa”.
Roberto DaMatta (2002) afirma que sociedades como a brasileira, fundada em
múltiplas éticas e eixos de classificação, indicam uma curiosa dialética para esses
“papéis”, os documentos que formam a cidadania moderna. Para o autor, o valor do
papel e a institucionalização das classificações científicas e policiais, fundadas em
critérios objetivos, não liquida ou diminui o peso das provas pessoais de identificação e
construção da pessoa.
Estaríamos diante de formas alternativas de identificação da pessoa?
Outras mães, ao contrário, gostariam de poder provar quem elas e seus filhos são
através de um documento, mas não têm como, já que não o possuem. Acionam também
o mesmo recurso identificatório: “a fala de boca” e não a “fala de um papel”, como
dizem.
Esse mecanismo fica claro nos dois depoimentos a seguir.
Em entrevista com Rute (32 anos), faxineira, que ainda não foi registrada e que
teve seu filho Rodrigo, também não registrado, internado no HECC em 2004, vemos a
percepção do forte poder comprobatório do documento. Resta a ela dizer quem é, não
podendo ter um reconhecimento oficial, pois não pode provar. Vejamos o diálogo:
29
Na emergência do HECC, o documento do paciente é solicitado, mas não é condição para o
atendimento. Muitos chegam sem documento e há casos de pessoas que não possuem nenhuma
identificação, ocorrendo, inclusive, de virem a óbito.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
68
Tula – Rute, o que é uma certidão de nascimento para você?
Rute – Se eu conseguisse é uma vitória para mim né, entendeu? Registrar os
meus filhos, dar um futuro melhor para os meus filhos, trabalhar, estudar à noite, tirar
o meu documento, tudo.
Tula – Você acha que ter uma certidão de nascimento, significa que a pessoa é o
quê?
Rute - Ela ser bem reconhecida no mundo, né.
Tula – E sem a certidão? Sem a certidão você acha que a pessoa não é
reconhecida?
Rute – Ué, eu acho que para mim não é, eu não tenho documento, entendeu. Só
é de boca, o meu nome de boca.
A mesma questão é assinalada por Sandra, 29 anos, não trabalha e que nunca foi
registrada. Quem me apresentou a ela foi sua vizinha Eliana que conheci no Projeto
Cidadania, em 2006. Quando indagada, em 2007, sobre o que sente por não ter sido
registrada, ela nos conta:
“Ah, eu vejo todo mundo ter documento assim, e só eu que não tenho né, é muito
ruim. Ás vezes o meu sogro, a minha sogra “fala”: - “Poxa Sandra, vai agir os teus
documentos”. Às vezes você tem um trabalho, quer arrumar alguma coisa e não pode,
porque não tem o documento para falar quem é você. Ah, você fala, meu nome é
Sandra, mas existem várias por aí, e não tem um documento para provar que você é
você! Isso é muito horrível e eu falo isso até para minha mãe, quando eu vou lá, eu falo
para ela e aí ela: “Não, eu já estou tirando! “, mas nunca vem o documento, e eu não
estou indo lá na minha mãe, tem um tempão que eu não vou lá”.
A teia de relações na família e os laços pessoais nos quais essas mulheres estão
enredadas, além da memória e da própria história de vida funcionam como sinais
identificatórios, como prova de existência, mais do que os documentos?
Será que para algumas dessas pessoas que não possuem a certidão de
nascimento, a rede de apoio nas quais estão inseridas e transitando: vizinhos, colegas,
amigos, algumas instituições, não seriam mais significativas do que a cidadania, a luta
pela cidadania? Como situa Sarti (1996), vários autores que estudaram os pobres
urbanos, falam do local de moradia e das relações socais que nele se desenvolvem como
base de uma identidade coletiva, como apoio para realização de planos, satisfação de
necessidades e aspirações.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
69
Essas questões remetem ao artigo de Roberto DaMatta (2002) sobre os
documentos no Brasil. Neste artigo, o autor assinala que em sociedades arcaicas e
tribais, que eram ágrafas e sem Estado, a “identidade” não era conferida através de
documentos escritos produzidos dentro de uma lógica burocrática, mas por meio de
“sinais” ou de “marcas relacionais”, como cicatrizes, deformações, pinturas corporais,
etc. “Sinais vincados por uma relação quase sempre substantiva e com uma forte
dimensão física entre o emblema, o nome e a pessoa (p:40)”.
Também o sistema de identificação dos escravos no Brasil Colônia era fundado
no corpo, na fala, no gesto, no temperamento e no relacionamento. Segundo Manuela
Carneiro da Cunha (1985), apesar de integrados à sociedade, os escravos eram
estrangeiros face ao Estado-nacional, ao qual se ligavam de forma marginal, ou seja,
exclusivamente por meio de seus donos. Tinham direito a pertencer livremente à
sociedade, mas lhes era vedada a entrada nas agências do Estado.
Com o nascimento do Estado Moderno, a identificação dos indivíduos passará a
estar fortemente ligada a documentos escritos. A modernidade inaugura instituições,
espaços, relações, exigências de ordem, controle e disciplina com relação à identificação
civil, disseminando princípios de universalidade, racionalidade e individualidade, que
como bem assinala Ariès (1986), deixariam um homem do século XVI ou XVII
espantado (DaMatta, 2002). Segundo DaMatta, “... pode-se situar no século XVIII do
mundo ocidental, o ponto provável da origem desta necessidade de inventariar os
recursos humanos disponíveis na sociedade, pela contagem e classificação de seus
habitantes (2002, pg: 50)”.
Uma das mais importantes exigências da cidadania moderna é o fato de cada
cidadão ser obrigado por lei a ter vários registros escritos dos seus direitos e deveres,
das suas habilidades profissionais, de sua credibilidade financeira e de sua capacidade
política e jurídica junto ao Estado. Tais provas documentais são parte do conjunto dos
direitos do cidadão – do Homem (DaMatta, 2002).
A idéia de indivíduo, característica da modernidade ganha a cena no corpo dos
ideais da Revolução Francesa, de igualdade, liberdade e fraternidade sob a orientação da
razão. Assistimos, assim, ao processo de construção do homem comum como sujeito de
direitos civis. Nessa época, a idéia de cidadania abriu caminho para se buscar liquidar
com as leis particulares, que davam ao clero e a nobreza direito de ter leis especiais. Na
Europa Ocidental, o conceito de cidadania foi um instrumento poderoso para estabelecer
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
70
o universal como um modo de contrabalançar a teia de privilégios que se cristalizavam
em diferenciações e hierarquias locais (DaMatta, 1997; 1997a, Odalia, 2003; PInsky,
2003).
A modernidade é considerada como a época do acesso do homem à razão que
envolve transformações culturais, políticas e econômicas. Quando vai se consolidando
uma versão moderna do sujeito, marcada por maior individualização, controle das
emoções e autoconsciência. Um empreendimento de cunho Iluminista, onde a educação
institucionalizada é um dos mecanismos pelo qual a razão, a racionalidade moderna se
instala e se difunde (Elias, 1994).
O surgimento do Estado Moderno se dá impregnado pela noção de progresso,
progresso humano infindável na terra. O homem moderno não estaria dependente das
leis da natureza, mas teria como missão adaptar a natureza aos seus próprios projetos.
Modernidade seria assim, tanto uma questão de atitudes e idéias, quanto de técnicas.
Nesse sentido, a modernidade se relaciona com o capitalismo, com o sistema capitalista
comercial que surgiu nessa época (Kumar, 1997; Odalia, 2003).
Para Stoer (2004), falar de cidadania é reportar-se aos ideais de igualdade,
forjados nos séculos XVII e XVIII, especialmente com as Revoluções Inglesa (1688),
Americana (1776), Francesa (1789) e Industrial. Ao mesmo tempo, é pensar nas novas
exigências de legitimação da diferença. Trata-se da reivindicação de uma justiça que
não seja simplesmente sócio-econômica, mas também cultural.
Para este autor, se os avanços de cidadania estão relacionados com a divisão de
riquezas de um país, dependem também da luta e das reivindicações. A cidadania
precisa ser conquistada, seja ainda em termos de igualdade em variadas partes do
mundo, seja em termos de diferenças.
Essa idéia aproxima-se do que diz Roberto DaMatta (2002), quando afirma que
o cidadão é uma entidade geral, universal e abstrata, dotada de igualdade e dignidade e,
ao mesmo tempo, o cidadão, apresenta-se como um papel social. Portanto, é preciso
aprender a ser cidadão. Essa perspectiva vai ao encontro de idéias de alguns
entrevistados, quando apontam a dimensão da luta na cidadania cotidiana, na prática e
quando destacam que não se nasce cidadão, conquista-se a cidadania. Assim, por um
lado, há a cidadania em termos conceituais, referindo-se à igualdade entre todos os
homens, também inscrita nas proclamações, constituições e ideários e, por outro lado,
há a cidadania do ponto de vista da prática social.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
71
Como conseqüência, o par simbiótico inclusão/exclusão usado por diferentes
perspectivas teóricas ao discorrer sobre o conceito de cidadania, atualiza-se no contexto
brasileiro, pois:
“Ser cidadão significa fazer parte de um corpo maior, pertencer
a uma unidade comum... A fusão entre nação e Estado é a
chave da inclusão ou exclusão. Mesmo em tempos recentes,
quando a simbiose entre Estado e nação começa a perder sua
aura de naturalidade, as reivindicações de cidadania continuam
a ser reivindicações de inclusão” (Reis, 1986, p: 03).
No Brasil, como nos diz Roberto DaMatta (2002), há fontes diversas para a
classificação e filiação dos membros, múltiplas formas de cidadania que se constroem
simultaneamente. Uma forma de cidadania universalista, construída a partir dos papéis
modernos, que se liga à burocracia e ao mercado e, também outras formas de filiação à
sociedade brasileira – outras formas de cidadania – que se constroem nos espaços
tipicamente relacionais. Há uma nação brasileira que opera fundada nos seus cidadãos,
no ideal da igualdade e uma sociedade brasileira que funciona fundada nas mediações
tradicionais, hierárquicas. De um lado, um modelo em que predomina a noção clássica
e universal de indivíduo como cidadão e, por outro lado, a visão de pessoa ou ser
relacional. A totalidade do sistema fundado no “respeito”, na “honra”, no “favor” e na
“consideração” está a todo o momento sendo ameaçado pelo eixo do econômico e da
legislação - mecanismos universalizantes.
Há 30 anos Roberto DaMatta (1997a), produziu um estudo considerado clássico
no assunto em que buscava entender a nossa sociedade, a partir de diferentes rituais,
dentre eles, o uso difundido do rito autoritário do “Você sabe com quem está falando”?.
Uma forma relacional estabelecida e popular entre os brasileiros. Rito que implica uma
separação radical de duas posições sociais real ou teoricamente diferenciadas e que
revela, por parte de quem a utiliza, uma enorme preocupação com a posição social e a
consciência da manutenção dessa posição.
DaMattta (2002) discute o uso dos documentos como uma manifestação da mão
invisível do Estado na vida da população. Neste contexto, o rito assinalado (“Você sabe
com quem está falando?”) continua mostrando seu vigor e atualidade no caso brasileiro.
Para o autor, o ato de apresentar a carteira de identidade, junto com o “Você sabe com
quem está falando?”, faz com que se passe de cidadão brasileiro, exercendo papéis
sociais universais, para o ser alguém que é realmente alguém pelas relações que tem
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
72
independente das leis. Assim, somos muito mais dominados pelos papéis que estamos
desempenhando do que por uma identidade geral que nos envolve nas leis gerais que
nos organizam, característica dominante da identidade de cidadão.
O uso dessa expressão, “Você sabe com quem está falando?”, atualiza valores e
princípios estruturais da sociedade brasileira, como o esqueleto hierarquizante. Como
assinala Roberto DaMattta (1997a):
“Tudo leva a crer, então, que as relações entre a nossa
“modernidade” - que se faz certamente sob a égide da ideologia
igualitária e individualista – e a nossa moralidade (que parece
hierarquizante, complementar e holística são complexas.
Reforçando-se o eixo da igualdade, nosso esqueleto
hierarquizante não desaparece automaticamente, mas se
reforça, reage e se mantém” p:201).
Nesse sentido, o autor vai dizer que a sociedade brasileira possui variadas
formas de cidadania, haveria uma gradação de cidadania. Pois aos oprimidos, humildes
e destituídos, como diz Roberto DaMatta (2002), só resta poderem ser reconhecidos por
meio de seus documentos, por estarem numa espécie de anonimato.
Assim sendo, a certidão de nascimento diz do lugar que ocupamos na sociedade,
reiterando simultaneamente cidadania igualitária e inferioridade (ou superioridade)
social. Nesse nivelamento, quem não a possui estaria mais abaixo ainda na hierarquia,
passível de exclusão e discriminações. Teria assim, uma cidadania interditada,
constrangida, com o acesso aos direitos e benefícios modernos comprometido.
Entretanto cabe indagar: qual modernização se consideramos que na atualidade, em uma
sociedade de consumo, segundo dados do Unicef (2004), a existência de crianças sem
certidão de nascimento é uma questão quase que global, apesar dos diferentes índices?
Operando com as idéias de Roberto DaMatta (1977; 1997a), poderíamos dizer
que as crianças e adultos sem certidão de nascimento, como visto, não seriam definidos
pelo eixo do indivíduo, do cidadão, já que nem sequer podem provar quem são. A
cidadania aqui assume contornos de conquista e luta para ser reconhecido de forma
legal, como algumas mães indicam. Poderíamos pensar essas crianças e adultos sem
certidão de nascimento, pelo eixo da pessoa; entretanto, submetidos a um universo
social extremamente limitado, restrito à família, vizinhança com uma vida social, uma
circulação pelos espaços da cidade comprometida. Exemplo desse confinamento
espacial foi quando, certa ocasião, Andréia, 32 anos, sem certidão de nascimento não
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
73
pode entrar comigo no prédio da própria Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, pois
não tinha como se identificar.
Outro exemplo do trabalho de campo que caminha nessa direção, do reforço da
lógica relacional, do “favor”, diz respeito ao fato de que temos três adultas sem certidão
de nascimento, Eliana, Sandra e Andréia, que possuem filhos registrados em seu nome e
do pai. Nas três situações os pais possuíam documento de identidade. No caso de
Eliana, o pai da criança tinha um conhecido no cartório que fez o registro para ele, sem
cobrar nada. Acionam-se mecanismos de relações pessoais que alçam a criança a um
patamar de cidadania, ao menos no plano legal. Nos outros dois casos, os pais das
crianças teriam conseguido fazer o registro, também sem pagar nada, através de uma
conversa com algum funcionário do cartório.
3.1.1.1
“Filho de”
“Filha de Hosana”
30
O diálogo com textos de Michel Foucault (1979; 1997) que analisam a
emergência e o exercício do poder disseminado nas relações cotidianas, pode ser
fecundo neste trecho da tese, pois permite a análise de como a família dentro da
população passa a funcionar como lugar privilegiado para gerir a vida. Foucault assinala
que:
“O grande crescimento demográfico do Ocidente europeu
durante o século XVIII levou a necessidade de coordená-lo e de
integrá-lo ao desenvolvimento do aparelho de produção, a
urgência de controlá-lo por mecanismos de poder mais
adequados e mais rigorosos fazem aparecer “a população” –
com suas variáveis de números, de repartição espacial ou
cronológica, de longevidade e de saúde, não somente como
problema teórico, mas como objeto de vigilância, análise,
intervenções, operações transformadoras, etc. (1979, p:198).
Nesse cenário, pode-se compreender a certidão de nascimento enquanto um
documento que funciona ainda como um mecanismo que se reveste de funções de
controle, possibilitando um planejamento das ações, realização de estatísticas e uma
maior vigilância das populações. Podemos pensar que a exigência de uma
30
Registro no prontuário de bebê internado no HECC no ano de 2000.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
74
documentação que certifica o nascimento e a filiação, é mais um dispositivo, um meio
físico denso, permanente e contínuo que mantém o controle sobre a estruturação do
modelo familiar moderno.
A certidão de nascimento poderia ser compreendida como uma estratégia
biopolítica no sentido de que é um instrumento de regulação, um mecanismo de poder
que atua diretamente na vida e no seu desenrolar, possibilitando aos Estados ter
conhecimento sobre a população, as crianças e as famílias, assim como, permite a
racionalização dos problemas propostos à prática governamental no campo da gestão
das forças estatais. Tal conhecimento, ao lado de outros como: censos, estatísticas,
controle das doenças, índices de natalidade, orientam os modos de moldar e guiar para
produzir os sujeitos desejados no campo da gestão das populações.
Para levar a cabo a gestão das populações, vista como fonte de enriquecimento e
peça essencial na força dos Estados, é preciso uma política de saúde que intervenha nas
condições de vida para modificá-las e impor-lhes normas. Assim, à medida que a
necessidade de documentos é uma estratégia de controle sobre a população, uma
exigência para o reconhecimento social, torna-se uma demanda dos próprios sujeitos
que se sentem dependentes destes documentos para existirem, fruto de uma construção
sócio-cultural que marca a subjetividade.
Revela-se, pois uma ambigüidade, por um lado a certidão de nascimento poderia
ser compreendida com algo negativo, uma estratégia biopolítica, no sentido de Foucault
e por outro lado como algo positivo, produtivo como possibilidade de inclusão social,
condição de cidadania, ainda que formal.
Apesar de haver mães que vivem anos e até mesmo décadas sem uma
identificação civil e criam estratégias para inserção no mundo social. De certa forma
escapariam ao controle do Estado? Dariam mais ênfase a determinadas formas sociais
de atuar no mundo do que as leis?
Como nos fala Mariza Peirano:
Uma forma de agir sobre a população é através da exigência de
diferentes papéis, já que os documentos facilitam o ato de
contar, somar, agregar a população (e, assim, taxar a riqueza e
controlar a produção) e identificar o indivíduo – para fins de
conceder direitos e reclamar deveres. Assim, tanto elementos
particulares / individuais quanto o conhecimento sobre a
coletividade – esses dois componentes indissociáveis do “fato
moderno” – se conciliam nos documentos, nos papéis que,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
75
reconhecidos e regulados pelo Estado, identificam o indivíduo
como único. O documento legaliza e oficializa o cidadão e o
torna visível, passível de controle, e legítimo para o Estado. O
documento faz o cidadão em termos performativos e
compulsórios. Essa obrigatoriedade tem seu lado inverso: o de
impedir o reconhecimento social do indivíduo que não tenha
documentos (p.137, 2006).
Nesse sentido, falar de nome é falar também de renominação, muitas vezes
como estratégia na clandestinidade, nas guerras e mesmo nas ruas, como no caso dos
meninos e meninas que vivem nas ruas das grandes cidades. Para eles, muitas vezes
mudar de nome e de idade é possibilidade de alguma sobrevivência. Tenho o relato de
um colega de trabalho que diz conhecer um jovem que o tráfico no Rio de Janeiro não
deixa ele se registrar para que possam controlá-lo. Isto reforça informações do UNICEF
(2006) de que as crianças sem o registro civil podem ficar mais vulneráveis ao tráfico.
Soma-se a esses, outros processos de apagamento dos nomes, como o uso
corrente de apelidos, a aquisição de um novo nome e a utilização de números no lugar
do nome. Crianças em conflito com a lei e presidiários muitas vezes se chamam e são
chamados por apelidos ou número do artigo que estão cumprindo. Alguns bandidos se
tornam famosos por seus apelidos, como se não tivessem nome. Também jogadores de
futebol são, muitas vezes, chamados pelo prenome e por apelidos. Transmutados em
heróis, bandidos e jogadores de futebol se tornam famosos por seus apelidos e são
modelos para muitas crianças. O nome de família não entra em cena.
Tais situações lembram a realidade dos africanos que chegando ao Brasil foram
batizados no catolicismo e receberam um nome; eventualmente, sendo acrescido o nome
de sua nação de sua origem. A impossibilidade de terem acesso a um nome de família
era fruto da dominação e estratégia de corte de laços. Só o escravo alforriado ou que
tivesse comprado sua liberdade poderia receber um nome de família. Muitas vezes, o
nome do senhor (Freire, 1979; DaMatta, 2002; Thurler, 2004).
Essa perspectiva do controle, da classificação, da necessidade de identificação,
do apagamento dos sujeitos e do não reconhecimento social pelo fato de não possuir
documentos, aparece claramente na história de Hosana e sua filha Beatriz que ainda não
era registrada e estava internada no HECC no ano de 2000.
“Ao entrar na sala de enfermagem e ler o quadro com os dados das crianças internadas,
observei que havia na Enfermaria de Pediatria uma criança com um ano de idade que
tinha no lugar do seu nome, a expressão: “Filha de Hosana”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
76
Hosana, 20 anos, faxineira, moradora do bairro de Irajá, zona norte da cidade do Rio de
Janeiro, foi criada junto com seu irmão em um abrigo, e agora, acompanhava sua filha
sozinha e em tempo integral. Estava de resguardo e incomodada por sua filha ser
chamada, de forma pejorativa, por profissionais da enfermagem porFilha de” e por
carregar em toda sua papelada institucional no HECC essa expressão no lugar do seu
nome.
A filha ainda não tinha sido registrada porque Hosana estava esperando que o pai
tivesse essa iniciativa e também porque ele não tinha seus documentos. Ela própria só
tinha a sua certidão. Possuía mais três filhos que também não eram registrados (um com
01 mês, um com dois anos e outro com quatro).
No processo de atuação do Serviço Social do HECC com Hosana, ela decidiu registrar
sua filha somente no seu nome e não mais esperar o pai das crianças. Quando chegou do
cartório, disse para a assistente social que se sentia alegre em ter registrado a filha e
mais alegre ainda por ter tirado seus próprios documentos. Em seguida perguntou:
“Agora vão chamar ela de Beatriz”?
Após a conversa, a assistente social colocou no prontuário da criança o seu nome e
comunicou à enfermagem que Hosana havia registrado sua filha. No dia seguinte
Beatriz teve alta” (Registro pessoal – 2000).
No ano de 2000, na Enfermaria de Pediatria do HECC, em um universo de 505
crianças internadas no período de maio a dezembro, 42 não possuíam certidão de
nascimento, o que vem a ser 8% - índice próximo ao do estado do RJ conforme dados
oficiais do Ministério da Saúde de 1999. Em muitos destes casos, há irmãos que
também não são registrados (Brasileiro 2001).
Sendo chamadas porFilho de”, seguido do nome da mãe. Essa expressão é
utilizada até os dias de hoje de forma freqüente e “naturalizada”, seja através da escrita
nos espaços destinados ao preenchimento do nome da criança ou na fala de diferentes
profissionais. Configura-se como uma categoria nativa expressa por médicos,
enfermagem, e funcionários da recepção e internação do HECC, tornando-se uma
espécie de nominação e termo de chamamento que substitui o nome da criança que
integra a lógica do sistema hospitalar e vem ao lado de outras classificações e regras da
cultura do HECC. Desta forma, embora eu não possa generalizar posso levantar
hipóteses de que esta lógica perpassa outras estruturas hospitalares do gênero
direcionadas para este segmento populacional. Marcando o lugar ocupado pela criança
das classes populares na nossa sociedade, especificamente na cultura e hierarquia do
sistema hospitalar.
A criança não é chamada diretamente por “Filho de”. A expressão é usada entre
os profissionais (principalmente entre as enfermeiras e entre elas e os médicos) seja na
frente da mãe e de acompanhantes de outras crianças, ou nos corredores e no telefone
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
77
com algum outro setor. Assim, é comum falas como: “Ah, é filho de”; “Aquele filho
de”; “Leito 05, Filho de”; “Ih, olha, é Filho de, nem isso...”; “Teve alta, Filho de, não
registrou”.
Os profissionais também chamam a criança, sendo registrada ou não, pelo
“número do leito”, por “criança”, “seu filho”, ou pelo “diagnóstico” (o da gastroenterite,
o da fratura na perna, por exemplo) ou mesmo pelo nome (às vezes sinalizando o fato de
ser “Filho de”) como já é chamada pela família.
No entanto, em se tratando de registrar na papelada institucional, tanto alguns
profissionais da recepção da emergência como da administração e enfermagem,
sinalizam que é melhor escrever “Filho de” porque acontece das mães mudarem o nome
da criança quando vão registrá-la e também para assegurar que aquela criança é aquela
criança.
Segundo relato que me foi concedido por uma funcionária que trabalha no Setor
de Internação e Alta - SIA, as mães não se sentem incomodadas pelo fato de ser escrito
Filho de” no cartão de matrícula e em outros papéis. Para ela, a maior parte é
indiferente a tal situação. Recorda apenas de uma mãe que teria pedido para não
escrever ”Filho de”, dizendo que iria registrar na mesma semana. Pedido que ela disse
não poder atender já que a criança, segundo a funcionária do SIA, “não existia, não
havia nascido, pois não era registrada”.
De acordo com informações de alguns profissionais da enfermagem e da
administração do HECC, essa é uma prática comum na área da saúde, permeada pela
burocracia estatal e pelo controle institucional. Também nos consultórios pediátricos da
rede pública e privada, a mãe da criança geralmente deixa de ser chamada pelo seu
nome e torna-se mãe ou mãezinha.
Como ocorrido no caso de Hosana, a utilização desse termo de chamamento,
“Filho de” por parte da enfermagem, acontece de modo debochado, denotando, em não
raras ocasiões, uma espécie de censura, crítica e moralismo em relação à mãe,
principalmente quando a criança já não é mais recém-nascida.
Há uma tendência forte de culpabilizar a mãe pelo fato da criança não ser
registrada. Essa situação é associada a um comportamento negligente ou até promíscuo.
Raramente a enfermagem dirige essa crítica ao pai da criança e, quando o faz, não é
diretamente.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
78
Não registrar as crianças é percebido por esses profissionais como um
comportamento desviante na medida em que infringe as normas e regras de conduta
dominantes (Velho, 1985). Registrar uma criança é um ritual comum e incorporado e a
sua não realização parece inconcebível, apesar de ocorrer com freqüência. Tal visão,
somada a vários outros fatores, amplia as distâncias, fortalece preconceitos, tornando
mais difícil a comunicação entre os profissionais e as famílias.
Vale dizer que este não é o único tom que permeia as relações. Faz-se presente
também uma fala marcada pela “pena” em relação à mãe e ao seu filho, outras vezes
pela indiferença por ser um fato recorrente nas unidades de saúde e, observa-se também,
ainda que de forma tímida, certa abertura de alguns profissionais de enfermagem para
compreender os motivos pelos quais as mulheres ainda não registraram seus filhos.
Mostrando assim que a partir de um mecanismo de controle e poder, realizou-se um ato
mais produtivo e positivo.
Poderíamos dizer que Hosana, ao se ressentir com o fato da sua filha ser
chamada por “Filha de” tentava, de alguma forma, lutar contra uma espécie de processo
de impessoalização que sua criança estava vivendo. Mesmo que socialmente Beatriz
ainda não fosse um indivíduo, um cidadão, pois não existia legalmente, era sua filha.
Parecia que o critério afetivo e social (enquanto experiência e prática) não era
valorizado.
Ao ser transformada em “Filho de”, no campo burocrático (nos formulários e
nos rituais do HECC, principalmente) sua filha passa a ser ninguém já que não tem
nome próprio. Ela só existe como filha de alguma mulher, Hosana, sua mãe, não teria
também identidade própria, não seria um indivíduo, e sim, mais um pária da sociedade.
Ao mesmo tempo em que o uso da expressão “Filho de” desindividualiza, coloca a
criança em uma linhagem materna e, portanto tem um aspecto de integrá-la em uma
totalidade, ainda que não haja um registro civil oficial.
Esse processo de desindividualização ocorreria à medida que a criança não teria
o prenome que, de acordo com Gilberto Velho, é individualizante e, nem tampouco, o
sobrenome que inclui o indivíduo em categorias mais amplas, como no caso da
família. Para o referido autor, o processo de nominação nas sociedades ocidentais é um
ritual que lida com a permanente ambigüidade e tensão entre indivíduo e totalização
social (1987).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
79
Até mesmo porque, no caso de Hosana, se todos os seus quatro filhos estivessem
internados no HECC, seriam denominados comoFilho de”, não havendo diferenciação
entre eles, a particularidade estaria obscurecida e apagada duplamente. O nome próprio
permite a não colisão dos elementos no interior da família, como também possibilita a
diferenciação de seus membros.
Quando o pai ou a mãe registra a criança, ela deixa de ser “Filho de”, curioso
porque é justamente no ato do registro em que oficialmente ela se torna filho de
realmente, com sua filiação definida.
“Filho de” remeteria ainda à imagem do “filho da puta”, da “rua”, “filho da
mãe”, “filho de mãe solteira”, “mulher adúltera”, “vagabunda” e “traidora” usados
corriqueiramente como termos de xingamento e que nos dias de hoje ainda rondam o
imaginário social. A filiação da criança não está sinalizada e sim adjetivada. Mesmo
quando a expressão “Filho de” é seguida do nome da mãe, não há menção à
paternidade.
Para Thurler (2004), no Brasil atual, o difundido insulto sexista filho da mãe é
uma fórmula popular que esconde a injúria sobre o que se pensa da mulher, genitora do
interlocutor. Também a expressão filho de uma boa mãe é ofensa carregada de ironia e
dupla moral para com a mulher transgressora que teve um filho fora do casamento.
Sobre a ética do genitor dessa pessoa a quem se busca humilhar, todos se calam. A
mesma autora nos acrescenta que:
“A propagação dessa forma de agressão por todas as regiões do
país indica conteúdos enraizados no imaginário social como a
persistência da categorização das mães entre mães casadas e
mães solteiras, a hierarquia permeando as relações sociais de
sexo e a hierarquia entre as cidadãs e os cidadãos que detém
filiação e reconhecimento paterno e os destituídos dessa
condição” (pág. 39).
No entanto, mesmo nesse quadro adverso pode-se dizer que o fato de Hosana ter
registrado sua filha enquanto estava no HECC inaugura uma outra condição para elas
duas de forma objetiva e subjetiva. Hosana pôde, em contato com pessoas de outros
mundos sociais e culturais, repensar práticas e valores, resignificando sua realidade de
alguma forma.
O uso dessa expressão “Filho de”, num debate mais amplo, remete a situações de
anonimato, pessoas apátridas e clandestinas. E ainda a histórias bíblicas, onde toda uma
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
80
genealogia é construída e a costumes de cidades do interior de identificação de seus
conterrâneos em que o uso da expressão “Filho de”, é uma forma de distinção, em que
se qualifica o filho da cidade
31
.
Podemos, por fim, entender a produção e o uso do termo ”Filho de” num espaço
físico, social e simbólico como o HECC que tem uma identidade claramente definida,
enquanto uma expressão das sociedades complexas que tem segundo Gilberto Velho
(1994), como uma de suas principais características “a coexistência de diferentes estilos
e visões de mundo” (p: 14).
A análise dessa realidade vem assim reafirmar uma idéia chave dos estudos de
Gilberto Velho (1994), no sentido de entendermos que para falar de sociedades
complexas é fundamental captar a maleabilidade e fluidez das fronteiras entre o mundo
oficial e um outro, abandonando idéias e conceitos por demais fixantes.
Essa situação guarda paralelos com o que é analisado por João de Pina Cabral
(2005) em seus estudos etnográficos em Portugal e no Brasil. O autor desenvolve o
relato de um pai em uma maternidade em São Paulo, onde seu filho, que nascera
prematuro, era nomeado verbalmente e por escrito, por RN (recém-nascido) seguido do
nome da mãe. Somente começou a ser identificado pelo seu nome, Cassiel, quando
ganhou peso e estava fora de risco.
O pai, chocado com tal situação, percebeu que era como se seu filho não
existisse para o hospital, não tinha existência legal, era apenas um apêndice da mãe.
Para a família e amigos, ao contrário, ele era Cassiel desde o momento em que a ultra-
sonografia revelou o sexo do seu filho. O pai, que viveu esse processo com sofrimento,
crê que naquele lugar liminar, a relação entre pessoa e recém-nascido era uma espécie
de relação com o peso da criança, baseada numa lógica substantiva.
No contexto de Portugal, o autor cita uma outra situação de um bebê que
precisou ficar na maternidade após a alta da mãe. Sendo chamado de “bebê Fróis” –
Fróis era o sobrenome da mãe, não era identificado pelo seu nome – Francisca - nem
pelo sobrenome do pai. Para a mãe da criança, essa prática funcionava como um meio
simbólico de negar a existência autônoma do bebê.
Podemos perceber pelos exemplos das crianças acima, Beatriz, Cassiel e
Francisca, que o processo de nomeação e de registro, enquanto materializa as relações
31
Esta observação do uso da expressão Filho de, como uma marca de distinção no interior do Ceará, me
foi assinalada por uma assessora de um grupo temático no Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais -
CBAS, em Fortaleza, no ano de 2004, por ocasião da apresentação de um trabalho meu.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
81
legais de parentesco, não é isento de emoções. O controle institucional, muitas vezes,
não permite que as crianças sejam vistas como seres separados da mãe ou como
cidadãos. São apenas um número, uma doença, uma quantidade de quilos, extensão da
própria mãe. Segundo João de Pina Cabral:
“O nome pessoal, na sua materialidade, funciona como um
agente coagulante da larga maioria dos processos de
objetificação dos laços de afeto. O nome identifica e distingue
a pessoa ao mesmo tempo que a situa num tecido de relações
familiares, demarcando o acesso a direitos e o assumir de
obrigações. O processo de consolidação física da criança e a
atribuição de nome que geralmente o acompanha conformam,
pois, um limiar de afetos, com todas as implicações emocionais
que tal tem para os que estão relacionados com ela” (2005 p:
19).
Dessa forma, através do nome, chegamos a uma alternativa para compreender
o significado da certidão de nascimento. Uma das respostas dadas ao questionário
indica que a certidão é importante porque permite provar que os filhos são seus, provar
a filiação das crianças. Como diz Rosicleide, 20 anos, não trabalha, é mãe de Vitória,
de 01 mês de idade que não tinha certidão de nascimento e foi internada no HECC em
2007 “A certidão serve para provar que o filho é meu”.
Trata-se de uma forma de materializar as relações legais de parentesco. Vemos
assim que a certidão de nascimento expressa dados da origem da criança, fala de
pertencimento, de ter uma filiação e um vínculo com uma família.
Natália de 07 meses de idade esteve internada no HECC em 2006 e não possui
certidão de nascimento. Sua mãe, Simony de 32 anos, não trabalha, conta que possui
mais quatro filhos, dos quais três também não são registrados. Para ela a certidão de
nascimento seria:
“Pelo que vi hoje é tudo, é importante. Porque a pessoa chega num lugar e
pode levar o filho. Para viver tem que ter a certidão”.
Nesse caso, “levar o filho” é algo condicionado à comprovação da
responsabilidade legal em relação à criança mediante ao Serviço Social do HECC. Este
Setor do HECC estava solicitando da mãe a certidão de nascimento da criança para que
fosse liberada, principalmente pelo fato de Natália ter mais três irmãos de 07, 06 e 04
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
82
anos que também não são registrados. No final das contas, todos acabaram sendo
registrados no nome do pai e da mãe, ainda durante a internação de Natália no HECC.
Monique, 23 anos, faz faxina eventualmente, nunca foi registrada, teve seu filho
Jair que também não era registrado internado no HECC várias vezes. Em entrevista no
quintal de sua casa em 2006, ela diz que para ela a certidão de nascimento seria:
“Não sei. Só sei que é, deve ser um documento muito sério, né, porque quase perdi
meus filhos por causa desse negócio de certidão, olha eu acho que esse é um documento
muito importante né, já pensou eu perder meu filho por causa de uma certidão”?
Ao que eu lhe indago: “Como assim perder seus filhos? Conta pra gente”. E
Monique prossegue dizendo que:
“O Conselho Tutelar falou que ia pegar meus filhos porque eu não tinha
condições de criar, de educar, que até a data de hoje eles não têm documento, mas eles
não esperaram eu explicar eles o porque né. Aí eles estão de olho é mais nela, na
Jeniffer não sei o porquê, eles falaram que se até o ano que vem se a gente não tiver, se
as crianças não tiverem o registro eles vão pegar eles de mim, entendeu”?
Interessante perceber que essa relação entre certidão de nascimento e provar
filiação, também foi estabelecida por uma criança de uma escola pública da cidade do Rio
de Janeiro com quem conversei, por ocasião dos desdobramentos da observação do Projeto
da Cidadania, como parte do trabalho de campo, conforme passagem do diário de campo.
Estou sentada numa cadeira, na entrada principal de um CIEP em Costa Barros,
aguardando a mãe de uma criança que não é registrada para entrevistá-la. Eu a conheci
nesse mesmo CIEP, por ocasião do Projeto da Cidadania. Enquanto isso, algumas
crianças se aproximam e converso com Evelyn de oito anos que bastante despachada e
falante vai logo perguntando quem sou eu. Quando digo que estou fazendo uma
pesquisa, ela pede para fazer com ela. É assim que a nossa conversa tem início”.
Tula - “Você tem certidão de nascimento?”.
Evelyn – “Tenho”.
Tula – “O que é certidão de nascimento”?
Evelyn – “A certidão de nascimento é assim (faz um gesto com as mãos
mostrando o formato de um retângulo). Como esse seu caderno aí. E tem um plástico
por cima. Tem o nosso nome. Nome da mãe e do pai. E o dia que a gente nasceu”.
Tula – “Para que serve?”
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
83
Evelyn – “Para ir ao hospital. Para ir para escola. Para sair. Precisa também pra
quando você morre. Pra ir ao Juiz. Pra sua mãe ficar com você” (Caderno de Campo –
02/06/2006).
É possível que essa criança já tenha experimentado algum tipo de passagem pelo
Juizado ou pelo Conselho Tutelar, ou esse seja um assunto presente de alguma forma
em sua casa, em função da compreensão que apresenta sobre os sentidos da certidão de
nascimento e a intimidade com o assunto. Chama atenção também a relação que as
pessoas estabelecem entre não ter certidão e o Conselho Tutelar “levar as crianças”, o
que pode fornecer pistas sobre a prática do Conselho nessa região do Rio de Janeiro:
Ameaça? Pressão? Controle?
Percebemos, inclusive, certo estranhamento na fala de Monique. Ela parece não
compreender ou não concordar com o fato de uma mãe perder seu filho se ele não for
registrado. Na sua perspectiva, se a pessoa pode chegar a perder um filho por causa de
uma certidão de nascimento, é porque esse documento deve ser realmente importante, já
que seus filhos valem muito.
Por fim, chegamos ao significado da certidão de nascimento enquanto um elo
com a vida e a morte, já que, segundo algumas mães, “para viver e morrer é preciso da
certidão”. Esse aspecto será desenvolvido no ponto seguinte, onde a certidão de
nascimento será compreendida enquanto um ritual.
3.2
Vida e Morte
“Se morrer não vai ter como enterrar. É uma coisa.
A pessoa sem certidão não é nada”
32
.
A análise dos dados coletados no trabalho de campo revela que o debate sobre
certidão de nascimento apareceu permanentemente atravessado por dualidades que
se imbricam entre a condição de possuir a certidão de nascimento e a de não possuí-
la. Assim, percebemos pares de idéias que, no entanto, não podem ser vistos como
dicotomias rígidas, pois existem tensões. Pressupõem ambigüidades e ambivalências,
conforme esquema abaixo:
32
Reginaldo, 27 anos, pai de Luis Felipe, 9 meses, internado no HECC em 2006.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
84
Acesso aos Serviços
Acesso Interditado
Gera outros documentos Sem documentos
Tudo Nada
Existe Não Existe
Seria o próprio Nascimento Ainda não nasceu
Documento
Palavra, Fala, Corpo,
Semelhanças Físicas e Relações
Cidadão Não é Cidadão
Pessoa Não é pessoa
Brasileiro Sem nação
Conhecido Não é Conhecido
Reconhecido Não é Reconhecido
Tem Família Conselho Tutelar leva crianças
Vida
Morte
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
85
Esses pares de idéias marcam passagens, mudanças de um status para
outro, de uma condição para outra, seja no interior de uma nação, de uma
sociedade, no âmbito da família e ainda perante as instituições e o Estado. Em
decorrência, o registro de nascimento poderia ser compreendido enquanto um rito.
Um rito estatal de recepção da criança, como diz Cláudia Fonseca (no prelo), uma
exigência, uma medida burocrática que marca a integração da criança ao mundo
humano e social. A certidão de nascimento seria o documento fundamental, sine
qua non da cidadania, usado para definir direitos e obrigações dos indivíduos. A
autora assinala ainda a perspectiva de se situar o registro de nascimento ao lado de
outros ritos de recepção, quando certas irregularidades tornam-se mais
inteligíveis.
No gráfico sobre os significados da certidão de nascimento, exposto no
início deste Capítulo, chama à atenção a relação entre certidão, vida e morte. O
conhecimento de pessoas que foram enterradas como indigente é uma vivência
que muitas pessoas já tiveram. A própria palavra indigente é de uso corrente no
grupo pesquisado e vem associada à impossibilidade de se proceder à
identificação da pessoa para enterrá-la. Segundo o dicionário Aurélio (1986), o
termo indigente significa pessoa paupérrima, mendigo. Condição que remete, de
certa forma, à perda ou inexistência de documentos.
A certidão de nascimento está ligada aos grandes rituais de vida e morte.
Rituais que se fazem acompanhar de documentos: atestados, registros, certidões,
papéis comprobatórios que se juntam na morte. Morrer sem documentos é algo
que causa vergonha, humilhação e medo. No caso das pessoas sem certidão de
nascimento, é uma possibilidade concreta, que ronda o imaginário e as práticas,
principalmente com os adultos. Trata-se de um símbolo de não cidadania, como se
a pessoa tivesse passado uma vida inteira sem existir. Sendo registro de vida, ao
provar a existência de mais uma pessoa, é também ponte com a morte, na medida
em que para enterrar uma criança é preciso da certidão de nascimento e do
atestado de óbito, no caso dos adultos, é preciso de um documento de identidade e
do atestado de óbito para ser gerada a certidão de óbito.
Luiz Felipe de 09 meses esteve internado no HECC em 2006 e não era
registrado. Possuía quatro irmãos que também não tinham certidão e como eles,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
86
foram registrados ao longo de sua internação no HECC
33
. Sua mãe Rosinéia, de
28 anos, não trabalha, ela acredita que a certidão de nascimento:
“É uma coisa importante. Porque se morrer, não pode ser enterrado.
Meu irmão foi enterrado como indigente. Precisa para a escola, internação,
Cheque Cidadão, Bolsa Família. Sem certidão a assistente social pode tomar as
crianças para o Conselho Tutelar?”.
O pai de Luiz Felipe, Reginaldo, me conta que ele próprio só foi registrado
com 27 anos de idade porque seu pai não ligava pra isso. Para ele a certidão é
importante porque:
“Se morrer não vai ter como enterrar. É uma coisa. A pessoa sem certidão
não é nada”.
Indagada por mim no HECC em 2005 sobre porque ainda não registrou
seu filho, Regina, 30 anos, vendedora, diz que:
“Estou esperando que o pai faça. Ele registrou os outros três filhos que
tenho com ele. Um era uma menina que faleceu e ainda não tinha a certidão. Eu
menti no cartório dizendo que a minha filha estava entre a vida e a morte e não
que já tinha morrido. Tenho medo que aconteça a mesma coisa com esse. O
documento do hospital não é suficiente”?
Nesse caso, a vergonha é tão grande que a mãe mente no cartório, não
dizendo que a criança já morreu. Talvez também por receio de se expor e ser
recriminada. Mas, ao mesmo tempo, num momento seguinte, Regina e o pai
repetem a mesma postura em relação ao novo filho: demoram a registrar o novo
bebê. O medo da morte ronda novamente, mas não parece ser suficiente para que
se faça o registro da outra criança ainda bebê. Para a mãe, nesse momento, esperar
para que o pai registre a criança é a perspectiva mais forte, apesar da experiência
anterior com a morte do outro filho.
33
Ajudei o pai de Luis Felipe a separar a DN de cada criança e prendi com um clips e um papel
com o nome que ele e a mãe queriam colocar em cada um dos 04 filhos, para que não houvesse
confusão no cartório.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
87
Andréia, 32 anos, não trabalha, nunca estudou e não foi registrada, mostra
uma grande experiência neste tipo de situação e traz um depoimento forte.
Vejamos o diálogo:
Tula - “Andréia, como é que você sente, como é que é pra você não ter a
sua certidão de nascimento, não ter sido registrada, como é que é isso pra você”?
Andréia – “Ah pra mim é muito ruim porque eu tenho medo de amanhã ou
depois eu morrer e não ter como me enterrar porque eu já vi dois casos assim, um
foi do meu tio que morreu de tuberculose em casa e deu muito trabalho né, a
minha prima chamou a policia, chegou lá os policiais “pediu” documento porque
ia chamar o Corpo de Bombeiro pra levar ele, só que quando o Corpo de
Bombeiro chegou pediu o documento, aí também ele não tinha, aí ele falou: “- Ah
então você leva pro hospital, abandona lá no hospital e não fala que é parente não,
porque aí lá eles enterram como indigente”, e eu tenho muito medo de passar por
isso também”.
Tula – “E a outra pessoa, quem foi?”.
Andréia – “Ah, a minha madrasta também”.
Tula – “Como é que foi”?
Andréia – “Ela veio a falecer eram duas horas da tarde em casa dormindo,
aí eles foram e chamaram o Corpo de Bombeiros, o Corpo de Bombeiros veio e
constatou que ela tinha morrido e aí pediu o documento e a filha dela falou que ela
não tinha. Aí eles falaram: “-Sinto muito, mas não vai dar pra levar, porque vai
chegar lá no Hospital e vai ter que dar entrada com o documento!”E falou: “-
Espera aí que “vai vim” um outro carro pra ver!”. .
Tula – “Mas por que ela tinha perdido ou por que ela não tinha certidão?
Andréia “Não tinha documento, não tinha. Aí eles pegaram e chegou lá no
cemitério na hora de enterrar, também teve que pagar para enterrar ela, porque
eles não queriam enterrar ela”.
Os fatos relatados por Andréia ocorreram no ano de 2005 e indicam a
existência de uma conexão em torno da questão da morte que envolve funerárias,
hospitais e cartórios e pessoas que os acessam. Pois, como enterrar uma pessoa
que nunca teve documento sem providenciá-lo e sem recorrer à justiça? Isto se
relaciona também com a existência de cemitérios clandestinos, principalmente no
norte e nordeste do Brasil, onde são enterradas pessoas sem atestado de óbito,
principalmente crianças. Segundo o IBGE o sub-registro médio de óbitos para o
ano de 2006 foi de 13,3%.
A reprodução do ciclo: nascer, crescer e morrer, sem aparecer nas
estatísticas oficiais, somente poderá ser rompida com a inserção dos segmentos
excluídos ao acesso de bens e serviços (IBGE, 2006).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
88
Dessa forma, nem sempre a certidão é “tirada” nos primeiros dias de vida,
algumas vezes sendo “tirada” a partir da morte,
34
” ou na eminência dela.
Marcando a formalização legal de uma vida passada e não a chegada de uma vida,
ritualizando a morte, apesar de falar de nascimento, de vida, de vida que chega e
não vida que se vai.
Outras pessoas, nem com a chegada da morte terão sua certidão de
nascimento. Sem nunca terem sido registradas, são enterradas como indigentes.
Não completam o ritual do registro de nascimento, muito menos vivenciam fases
posteriores deste ritual, momento em que poderiam desfrutar de algum direito por
existir legalmente.
Percebemos neste estudo que o ritual do registro de nascimento pode ser
vivido, por boa parte da população brasileira de diferentes maneiras. Talvez,
também o ritual do registro de óbito, pudesse ser pensado da mesma maneira, já
que como exemplificado pelos depoimentos, apresenta variadas formas. Nesse
sentido, aponta-se aqui um aspecto importante para enriquecer as pesquisas
antropológicas sobre a morte: os sentidos do ritual do registro de óbito de crianças
para mães e pais.
3.3
Ritual da Certidão de Nascimento
DaMatta (2002), em um estudo sobre o significado cultural dos
documentos salienta que:
“Há, no Brasil, documentos centrais e periféricos, do
mesmo modo que existem gradações variadas de
cidadania. O documento mais importante é a “certidão de
nascimento”, porque ela é geradora de outros
documentos, sendo o ponto de partida da vida cívica de
qualquer brasileiro. Como disse um informante ela é
nossa “fundação”, “nosso marco zero”. Confirma isso o
fato desse documento ser “tirado” pelos pais ou
responsáveis da criança, nos seus primeiros dias de vida,
ligando oficialmente o nome da criança perante o Estado,
um elemento importante na construção da pessoa no
34
Demonstração exemplar dessa situação é retratada no conto de Moacyr Scliar (2003), “O
Nascimento de um Cidadão”, que conta a história de um José da Silva que na morte irá se
descobrir cidadão.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
89
Brasil. Assim sendo, essa certidão é uma prova oficial
de que a pessoa tem quem cuide do seu bem-estar,
preocupando-se com seu relacionamento com o Estado”
(2002, p: 58).
As idéias de DaMatta (2002) remetem ao conceito de ritual cunhado por
Arnold Van Gennep, quando da publicação de Les Rites de Passage em 1909.
Através de exemplos recolhidos em civilizações diversas, Van Gennep (1978)
evidenciava a similaridade das manifestações que se referem ao ciclo de vida do
indivíduo, ao ciclo familiar, à passagem do tempo, aos ciclos das estações, dos
dias, e das tarefas de produção.
Segundo Gennep (1978), em qualquer tipo de sociedade a vida individual
consiste em passar sucessivamente de uma idade a outra e de uma ocupação a
outra (p. 26)”. Os ritos de passagem configuram rupturas com o cotidiano,
“etapas intermediárias que assinalam e conferem sentido
às transições entre estágios sucessivos da vida dos
indivíduos. Os ritos associam-se a um antes e um depois,
constituem a expressão da dinâmica social, assumem a
condição de “passagem” de uma situação culturalmente
determinada e reconhecida pela sociedade na qual estão
integrados a uma outra situação igualmente determinada”
(p.27).
Para os indivíduos, assim como para os grupos, diz Van Gennep (1978):
“Viver é continuamente desagregar-se, mudar de estado e de forma, morrer e
renascer. É agir e depois parar, esperar e repousar, para recomeçar em seguida
a agir, porém de modo diferente (p. 158)”.
Cada indivíduo estaria “classificado em diversos compartimentos,
sincrônica ou sucessivamente, e, para passar de um ao outro a fim de poder
reunir-se com indivíduos classificados em outros compartimentos será obrigado a
submeter-se a ritos de passagem, ao longo da sua vida e de sua trajetória social
(Van Gennep, 1978, p.157)”.
DaMatta, no prefácio ao livro de Van Gennep, Os Ritos de Passagem
(1978), diz que o rito seria “um fenômeno dotado de certos mecanismos
recorrentes (no tempo e no espaço), e também de certo conjunto de significados,
o principal deles sendo realizar uma espécie de costura entre posições e
domínios, pois a sociedade é concebida pelo nosso autor como uma totalidade
dividida internamente” (p: 16).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
90
Para Van Gennep (1978), um ritual é constituído de três fases: antes,
durante (clímax) e depois. Apresenta uma estrutura seqüencial – um início, um
meio ou clímax e um final. Ou seja, os ritos assentam num esquema de
progressão no tempo que lhes conferem o caráter de acontecimentos
eminentemente históricos, articulando-se com aquilo que os precede e com aquilo
que lhes sucede.
Faz-se assim necessário analisar sua fase anterior e posterior que estão
integradas, na tentativa de ver como se combinam (DaMatta In: Gennep, 1978).
Nesse sentido, poderíamos compreender o registro de nascimento como
um rito de recepção, nos termos de Van Gennep (1978), pois sua efetivação e
posse possibilitam à criança vivenciar uma das primeiras passagens em sua
trajetória social, quando será alçada a um outro status social: o de um sujeito civil.
Marca a transição de mundos, de posições sociais e de relações com a família,
com o Estado, com as instituições e sociedade em geral, conforme já assinalado.
Enquanto um rito estatal de recepção da criança poder-se-ia inferir à
princípio que, para boa parte da população brasileira e para o próprio Estado, a
fase de início do ritual do registro de nascimento seria a concepção, geração e
nascimento da criança. Muitas vezes nessa fase é escolhido o nome da criança que
está para chegar. Também a solidariedade que o pai presta nesse momento pode
indicar se irá assumir legalmente ou não o seu filho. A fase do durante seria
aquela em que nos primeiros dias de vida da criança se realiza efetivamente o
registro no cartório, pelos seus pais. O depois seria a fase em que de posse da
certidão de nascimento, a criança pode ser inserida na rede de serviços e gozar de
um reconhecimento legal e público, de uma cidadania formal.
A certidão de nascimento marcaria, de certa forma, o lugar que ocupamos
na sociedade. Isto se concretiza através de certas regularidades como o nome,
sobrenome, nacionalidade, naturalidade, sexo, idade completa, e ainda, através de
outras configurações como a ausência dos nomes dos pais (muitas vezes expedida
por ordem judicial), ausência do nome do pai, ausência do nome da mãe, carimbo
de grátis, data de registro distante da data do nascimento, dentre outros aspectos.
Tais configurações, em face de sua recorrência poderiam assumir o patamar de
regularidades? Um olhar mais atento mostra que o ritual do registro de nascimento
está sujeito a ser vivido de diferentes formas por boa parte da população
brasileira.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
91
A certidão de nascimento seria na nossa sociedade um símbolo
homogeneizador, produtor de patamares de igualdade. Já que é uma exigência do
Estado para todos brasileiros. No entanto, é atravessado por particularizações,
hierarquias, em função da própria existência de pessoas sem certidão de
nascimento, bem como, pelas diferenças entre as próprias certidões, marcando
continuidades e descontinuidades na sociedade brasileira.
Para Fonseca (no prelo), em certos aspectos o ato de registro civil não
difere muito dos ritos sagrados. A lei estipula quais adultos devem comparecer no
cartório, prescreve prenomes “suscetíveis de expor ao ridículo os seus
portadores”, coloca exigências diferentes ao registro de filhos cujos pais não são
casados legalmente, prevê castigo para quem – oficial do registro civil, pai ou
tutor - errar o processo.
Dialogando com Cláudia Fonseca (no prelo) vemos que com o ECA de
1990 e o novo Código Civil de 2003 não é mais possível fazer menção à origem a
filiação na certidão de nascimento da criança. Entretanto, como já assinalado
anteriormente, filhos tidos fora do casamento, somente receberão o nome do pai
mediante sua autorização ou presença.
Através do trabalho de campo percebi que o rito do registro de nascimento
envolve espaços, pessoas, objetos, diferentes formas de anotação das informações,
valores financeiros, diferentes instituições e hierarquias, a escolha de um nome e
também sentimentos e enredos familiares. Apontarei algumas observações desses
aspectos e aprofundarei a questão do processo de nominação, por ter me chamado
atenção ao longo da pesquisa e por nos ajudar a compreender mais sobre o grupo
pesquisado.
O espaço definido para o rito do registro de nascimento é o cartório
35
, local
em que boa parte dos funcionários é homem e onde a atmosfera é marcada pelo
cheiro de papéis novos e velhos
36
, remetendo à imagens da burocracia: filas,
senhas, guichês, exigências, prazos, assinaturas, impressão digital, multas,
35
Essas observações foram extraídas de contatos profissionais como assistente social do HECC e
da Prefeitura do Rio de Janeiro, com cartórios de registro civil da Ilha do Governador, Méier,
Madureira, Estácio e Saens Pena.
36
Ilustração exemplar desse clima nos é dada por José Saramago no romance Todos os Nomes
(2003) que retrata o funcionamento de um cartório em Portugal e da vida de um dos seus
funcionários com incômodas reflexões. “Mal se cruza o limiar, sente-se o cheiro do papel velho. É
certo que não passa um dia sem que entrem papéis novos na Conservatória, dos indivíduos do
sexo masculino e de sexo feminino que lá fora vão nascendo, mas o cheiro nunca chega a mudar...
(p: 11)”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
92
protocolos, selos, xerox, livros e mais livros para anotações e também
computadores e impressoras. Imagem um pouco diferente é a do cartório no
interior da Maternidade Alexander Fleming, situada em Marechal Hermes, zona
norte da cidade do Rio de Janeiro, conforme citado anteriormente, onde dialoguei
com o funcionário do posto de cartório. Lá temos um aquário de vidro, onde fica
um funcionário homem, com a função de registrar os nascimentos de crianças que
tenham ocorrido naquela maternidade. As famílias devem buscar o serviço até o
15º dia de vida do bebê. Nas paredes, vários materiais sobre a gratuidade do
serviço, sobre a importância de registrar o bebê, legislações pertinentes e normas
de procedimento. Alguns cartazes do Ministério da Saúde da Campanha “Registre
Seu Filho” dão um colorido diferente ao ambiente. Não há filas, não há cheiro de
papel velho.
Através de relatos das mães e pais atendidos no HECC, soube que muitas
vezes ocorrem erros de preenchimento pelos funcionários dos cartórios, nomes
trocados, seja porque o pai estava bêbado, seja porque o escrivão entendeu outra
coisa quando o pai falou o nome e ainda, situações em que o pai aproveita para
colocar o nome que ele queria. Há pais que levam o nome escrito para não
esquecerem.
O depoimento abaixo é significativo, foi escrito por uma aluna a partir de
uma dinâmica sobre a história do nome no Curso para Profissionais de Creche da
Baixada Fluminense no ano de 2002 em que eu era professora
37
.
“Meu nome era para ser Eliane Araújo, escolhido por minha mãe que me criou
sem a presença do meu pai. Ela teve que trabalhar e pagava uma senhora para
tomar conta de mim. Porém, essa senhora fugiu comigo para Niterói. Minha mãe
buscou ajuda no Fórum de Nova Iguaçu; fizeram uma busca conseguindo mais
tarde me recuperar. Desesperada e com medo de me perder de novo, resolveu
acrescentar ao meu nome o sobrenome Maria para diferenciá-lo. Mas no Fórum a
escrivã se confundiu e acrescentou também o Francisco. Fiquei como se fosse
irmã da minha mãe. Enfim, com este erro meu nome hoje é Eliane Maria
Francisco Araújo”.
Nesse contexto, aparecem questões ligadas ao momento da realização do
registro no cartório que é marcado por uma divisão de papéis e uma hierarquia
usual: o homem registra e a mulher está na maternidade ou de resguardo em casa.
37
Programa Nova Baixada – Governo do Estado do Rio de Janeiro, Capacitação para Profissionais
de Creche – 2002.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
93
Ao homem se garante a transmissão da descendência, como a clássica fórmula em
que à mulher cabe a tarefa de gerar o filho e ao homem a de nomear. A mulher
gera e o homem nomeia. Ao homem o mundo da rua, a vida pública. Para a
mulher o mundo da casa. Mas como visto a nomeação e a efetivação do registro
são práticas sexuadas e sua hierarquia muitas vezes invertida.
O ritual do registro de nascimento é atravessado por procedimentos
burocráticos: normas, prazos e, até bem pouco tempo atrás, pelo pagamento, como
citado anteriormente. Há também diferentes instituições envolvidas,
principalmente nos casos de processo de registro tardio, como a Defensoria
Pública e o Detran.
A partir de DaMatta (2002), vê-se que, na realidade, nem sempre a
certidão é “tirada” pelos responsáveis. Muitas vezes é o próprio Estado quem vai
“tirar” a certidão da criança, já que a sua família por algum motivo não pôde
fazer. Outras vezes é a própria pessoa, já adulta, através de um processo judicial
de registro tardio que irá providenciá-la, provando assim que ela não teve, por
alguma razão, quem fizesse essa relação entre ela e o Estado, ao menos nesse
aspecto; ou que, no mínimo, essa relação pode ter sido de forma marginal ou
clandestina.
Dessa forma, para algumas pessoas essa transição de posições,
característica dos rituais, nunca será feita ou ocorrerá tardiamente. Ou ainda,
poderá se dar de forma complexa e tortuosa, como por exemplo, com as crianças
que são abrigadas e não são registradas e com as pessoas que são enterradas como
indigentes como já assinalado.
Basicamente no momento do registro, defrontam-se os pais ou um deles e
o funcionário do cartório. Vários são os objetos e documentos utilizados: livros,
computador, impressora, DN, certidão de casamento, documento de identidade,
pastas que as pessoas trazem onde guardam seus papéis, dentre outros. Tais
objetos possibilitam diferentes formas de registro nos livros do cartório e no
computador. Ocasião de leitura e escrita, que gera mais um suporte de leitura: a
própria certidão. Esta se materializa num papel que recebe as marcas da escrita
como uma espécie de unidade textual, registrando para a sociedade e para a
história os dados da identidade civil de cada novo indivíduo que passa assim a ser
também um número expresso em um documento.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
94
Percebi pelo trabalho de campo que o registro não é um ato frio ou
desligado da relação da mulher/mãe com o homem/pai da criança. Pelo contrário,
é um momento bastante mobilizador para várias mulheres que pode demarcar
limites e mudanças na relação com elas mesmas, com os homens e com os
próprios filhos.
Para DaMatta (2002), os ritos em sistemas individualistas, onde o
indivíduo tem primazia, seriam ocasiões de totalização, de juntar, integrar. Pode-
se pensar, então, o ritual do registro de nascimento como um processo que
imprime no papel a cidadania e a individualidade e, ao mesmo tempo, insere as
pessoas em categorias, contextos mais amplos, como a família.
Dessa forma, ao longo do trabalho de campo, percebi que a certidão de
nascimento e o processo de nomeação estão intimamente ligados, já que para
registrar uma criança é preciso haver a escolha de um nome e, como visto
anteriormente, a certidão oficializa o nome da pessoa perante o Estado. O nome
será um dado identificatório, o primeiro a constar na certidão.
Todos que investiguei possuem um nome, ainda que não tenham seu
registro civil. Mesmo sem ter o registro civil, a criança e o adulto (que um dia foi
uma criança sem certidão de nascimento), foram nomeados por outro, portanto,
possuem um nome e um sobrenome, por eles são chamados e com eles estão a
construir sua história e identidade. Possuem também uma idade, algumas vezes
não defInida com muita precisão, seja pelas próprias crianças e adultos não
registrados, seja pelos seus pais.
Também percebo essa relação pouco precisa com a idade, em contextos
onde as pessoas são registradas - no cotidiano do HECC junto a pacientes e
familiares e em escolas municipais da cidade do Rio de Janeiro na região da Sexta
CRE
38
, junto às famílias dos alunos e professores
39
. Nesse universo, há pessoas
que não sabem dizer quantos anos têm, a idade de seus filhos ou a data de
nascimento; por vezes, também as crianças não o sabem. Ocorre, em alguns casos,
dos pais indicarem a data de realização do registro como sendo a data de
nascimento.
38
O Município do Rio de Janeiro é dividido em 10 CRES (Coordenadorias Regionais de Educação) de acordo
com a Secretaria Municipal de Educação. A Sexta CRE localiza-se no bairro de Deodoro.
39
Através da atuação como professora no Curso de Extensão em Educação Infantil para
professores da rede pública da Cidade do Rio de Janeiro, fruto da parceria entre a Secretaria
Municipal de Educação - SME e a PUC- Rio e também como assistente social da Secretaria
Municipal de Assistência Social - SMAS da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
95
Algumas pessoas se lembram do dia ou do mês, mas o ano do nascimento
geralmente não é lembrado. O fato de alguns não saberem ler, escrever e contar
torna esse quadro ainda mais nebuloso. O que isso nos ajuda a pensar sobre a
relação que essas pessoas estabelecem com o tempo, com a sua história e
memória?
Eliana, uma das minhas informantes, não trabalha e diz que possui 26 anos
de idade e nunca foi registrada. Como já indicado, eu a conheci em 2006, no
bairro de Costa Barros, zona norte da cidade do Rio de Janeiro, através do Projeto
da Cidadania realizado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro em uma escola
pública, e me encontrava ali na condição de pesquisadora. Em uma conversa,
Eliana diz que
“Não sei a data do meu nascimento, mas tenho uma amiga que me ajuda a
lembrar fazendo as contas e me avisando quando está chegando para que eu
possa comemorar”.
Em relação à data de aniversário de seus filhos, diz ela que guarda
“Porque me lembro que é o dia dos professores ou o dia dos pais”.
Por ocasião da entrevista de Rute, não trabalha e nunca foi registrada,
quando lhe perguntei, Você sabe quantos anos você tem? Ela me respondeu: “Na
minha conta eu tenho vinte e cinco anos”. Ao que eu lhe pergunto: “Como é que
você faz essa conta”? E ela me diz: “Só vendo”. Adiante retomo o assunto com
Rute e pergunto-lhe se ela comemora seu aniversário. Ela diz: “Não, porque não
tem como, eu só lembro que é 09 de agosto. Está no papel onde eu nasci. O papel
está ali ”. Rute traz o papel da maternidade e vejo que ela tem 32 anos e não 25
anos, como havia dito. Comento isso com ela, que me diz: “Como é que eu vou
saber sem o documento”?
Nesta ocasião acima relatada fui tomada por um enorme constrangimento,
dado o estranhamento que a conversa me provocou. Minha vontade foi sair dali e
ao mesmo tempo aprofundar a pesquisa. Comento com ela para que guarde aquele
papel que lhe será útil quando for “tirar” sua certidão.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
96
Como diz a autora Viviane Magro (2003): “O reconhecimento da idade do
outro e da idade de si carrega o reconhecimento de modos de sociabilidade, de
uma história pessoal e coletiva e do processo cultural estabelecido (p: 34)”.
Emergiram do campo diferentes maneiras de como as pessoas contam os
seus anos de vida. Conseqüentemente de como significam a idade e comemoram
ou não o seu aniversário e o de seus filhos. Nesse sentido, no diálogo com os
adultos sem certidão de nascimento, ao fazer a pergunta qual a sua idade ou
quantos anos você tem, surgia certo constrangimento recíproco, pois essa resposta
não era dada de pronto, vinha mediada por alguma lembrança (um fato contado)
ou objeto (papel da maternidade, anotações feitas por um pai já falecido)
referencias para reconstrução dessa memória.
Andréia, 32 anos, não trabalha e nunca foi registrada. É mãe de duas
crianças de uma escola pública da cidade do Rio de Janeiro onde trabalho como
assistente social. Em entrevista, quando perguntada sobre quantos anos tem, diz
não saber. Pergunto a ela se tem alguma idéia e ela responde:
“Nem um pouco. Da idade eu não sei nada. Nem da idade, nem data de
nascimento. Meu pai antes de falecer deixou tudo escrito em um papel. Data de
nascimento, ano em que eu nasci, onde eu nasci. Então é tudo através do papel,
assim de cabeça eu não sei nada
40
”.
Andréia diz que
“Nunca comemorei meu aniversário. Vou comemorar mesmo quando tiver mInha
certidão: vai ser a primeira vez quando a minha certidão sair. Eu nunca tive
aniversário, eu nunca tive festa”.
Em 2000, trabalhando como assistente social no HECC atendi uma mãe de
26 anos que não era registrada até o ano anterior quando, então, seu marido
perdeu a sua certidão. Seus quatro filhos ainda não eram registrados. Ela disse que
40
Reportagem do Jornal O Globo, de 29 de maio de 2005, trata de pessoas sem registro civil.
Narra a história de uma mulher do Rio de Janeiro que faz parte de uma família de três gerações
sem documentação. “Sei que meu nome é Patrícia Clemente, mas não lembro o final”. Sua
vizinha, Rosângela, também nunca foi registrada, diz que sabe o seu nome porque alguém mais
antigo da família, antes de morrer, deixou um papel amarelado com o seu nome e a data de
nascimento escritos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
97
na DN de seus filhos o seu nome é Dejanice (disse que era o nome que sua mãe
queria), e na sua certidão de nascimento o nome era Dayse (segundo ela, era o
nome que seu pai queria). Curioso que a referência dela para os partos,
simbolizada pela DN, é o nome que a mãe escolheu. Já em termos do registro, é o
nome que o pai escolheu. O que leva, de certa forma, a reforçar a idéia de que:
“Teoricamente, a concepção de que a mãe pare, mas o homem engendra, fundou
o direito paterno, dando ao homem o direito de nominar (Russo In Thurler, pág.
41,2004).
Ao indagar a idade de seu filho, me disse:
“Não sei, não lembro. Mas me lembro que quando ele nasceu chovia e era perto
do Natal e do Ano Novo. Mas não sei o ano”.
Algumas dessas situações lembram o que fala Àries (1986), sobre o fato de
que, na Idade Média, era raro e difícil uma pessoa lembrar-se de sua idade.
Prossegue dizendo que:
“Na Idade Média, o primeiro nome já fora considerado
uma designação muito imprecisa, e foi necessário
completá-lo por um sobrenome de família, muitas vezes
um nome de lugar. Agora, tornou-se conveniente
acrescentar uma nova precisão, de caráter numérico, a
idade. O nome pertence ao mundo da fantasia, enquanto
o sobrenome pertence ao mundo da tradição. A idade,
quantidade legalmente mensurável com uma exatidão
quase de horas, é produto de um outro mundo, o da
exatidão e do número. Hoje, nossos hábitos de
identidade civil estão ligados ao mesmo tempo a esses
três mundos” (pág. 30).
Ao mesmo tempo em que encontrei uma relação com a idade marcada pela
imprecisão, deparo-me tamm com o registro da idade e da identidade em função
de determinados objetivos. Em 2006, mantive contato com a família de Sandra, 29
anos, não trabalha, é moradora de Costa Barros (subúrbio da cidade do Rio de
Janeiro) através de uma vizinha, Eliana, que fora ao Projeto da Cidadania citado
anteriormente. A avó de Sandra, 60 anos de idade, contou que tentara, anos atrás,
registrar os netos em seu nome, porque sua filha não os registrava. Segundo relata,
“Minha filha é largada e não quer saber de responsabilidade. Faz filho e vai
embora”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
98
Ela conta essa história com ódio da filha, expresso em diferentes
xingamentos. Por conta da tentativa de registrar os netos, diz que foi presa no
cartório e teve que responder a um processo. Até hoje sua filha não registrou os
filhos que foram criados por ela, a avó.
A tentativa dessa avó não é um caso isolado. Diferentes histórias dessa
natureza já chegaram até a mim. Os avós assumem o registro dos netos como se
fossem pais deles. Assim, os filhos tornam-se irmãos de seus pais e todo um
parentesco, ao menos legalmente, é alterado. Os avós são pais oficialmente,
configurando outras teias de paternidade. Em muitos casos, os avós, além de
registrar, também criam os netos. Em jogo diferentes formas de se tornar pai, mãe
e avós. Tal situação é apontada por Dauster (1987) e Fonseca (no prelo) e remete
também ao debate sobre adoção e a chamada adoção à brasileira
41
(Fonseca, 1995;
2006).
Sueli, 45 anos, pensionista, é mãe de Milena – criança de 04 anos, sem
certidão de nascimento, que foi internada em 2006 no HECC. Durante entrevista,
relatou que um amigo seu assumiu a paternidade de sua outra filha para que ela
pudesse receber a pensão dele quando viesse a falecer.
Angelice, mãe de um bebê de 11 meses, que foi internado no HECC em
2007, durante o atendimento do Serviço Social conta que:
“O meu filho é registrado no nome de um amigo que é homossexual. Ele fez isso
porque sua família o perseguia e assim meu filho acabou ganhando um pai,
porque ele pega para passear e tudo”.
O pai biológico não registrou a criança e posteriormente morreu
assassinado por relações com o tráfico.
Estes fatos parecem dizer que a falsidade ideológica para essas pessoas
não se configura em crime e sim em uma saída diante de determinadas
adversidades
42
. Mesmo com a consciência de que pode haver uma punição, a
41
Segundo Claudia Fonseca, essa prática é mais comum que a adoção legal. Mesmo sendo crime
de falsidade ideológica, punível com prisão, não parece desencorajar muitos pais a praticá-la.
42
Certa ocasião uma colega assistente social contou-me que atendera no HECC a irmã de uma
paciente que disse que durante um tempo de sua vida usara os documentos de uma outra irmã já
falecida, como se fossem seus, pois havia perdido os seus. Posteriormente tirou seus documentos
novamente. E ainda, essa assistente social, partilhou comigo que uma vez atendendo a mãe de uma
criança, solicitou sua identidade. Como ela não tinha, sua irmã prontamente lhe perguntou: “Quer
que eu empreste a minha”?.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
99
esmagadora realidade leva a alguma dessas ações, como no caso
43
de um casal de
chineses que internaram seu filho com traumatismo craniano num hospital
especializado da rede pública do Rio de Janeiro, no ano de 2007. A criança era
brasileira e não estava registrada. A assistente social que atendia o caso fez um
encaminhamento para o Juizado da Infância e da Adolescência no sentido de
resolver a questão. O pai, então, revelou que o documento de identidade que
apresentara era do seu irmão, pois ficou com medo de não conseguir o
atendimento no hospital, já que seu visto estava vencido. No Juizado a criança foi
registrada.
Fonseca (no prelo) indica também a alteração das datas de nascimento na
hora da efetivação do registro civil por diferentes motivos: “não se lembrou
direito, mau agouro, evitar destino trágico como de outro filho nascido no mesmo
mês, viabilizar a entrada da criança na escola e tirar carteira de trabalho mais
cedo”.
Ísis, 16 anos, é uma adolescente que estuda em uma escola pública da
cidade do Rio de Janeiro. Eu a conheci através do trabalho na Prefeitura da Cidade
do Rio de Janeiro como assistente social junto à sua escola. Ela possui duas
certidões de nascimento, ambas tiradas no estado da Paraíba. Sua segunda certidão
foi feita, segundo sua tia, para que ela pudesse viajar sem pagar a passagem para o
Rio de Janeiro, alterando a sua data de nascimento, colocando-a com menos idade.
Também sua filiação foi alterada para que pudesse viajar com sua avó, como se
fosse sua mãe. São diferentes usos da certidão de nascimento que marcam
distintos significados desse documento.
Eliana, citada anteriormente, ao ser perguntada sobre qual é o seu nome,
diz chamar-se Eliana e acrescenta o sobrenome da mãe e do pai. Sua mãe que está
ao seu lado ri dela de forma um pouco irônica e diz que ela não tem o sobrenome
do pai. Eliana relata que nunca conheceu seu pai e fica sem graça.
Uma outra informante, Monique, 23 anos, faxineira eventualmente que
também nunca foi registrada, diz que seu nome é Monique Martins. Martins é o
sobrenome materno. Ela diz que, segundo o que lhe conta a sua mãe
“Meu nome foi escolhido por meu pai para combinar com o nome do seu irmão,
Maycon” .
43
Essa história foi partilhada por uma colega assistente social que trabalha no referido hospital.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
100
No entanto, apesar do pai escolher o nome que reforça o seu próprio
grupo familiar e coloca a filha em uma linhagem, nem um dos dois a registrou e
não permitiram que os avós maternos o fizessem.
Vemos assim, tal como assinala Martins (1991), que o nome próprio é um
texto que remete à própria epopéia do sujeito em construção. Designa um
determinado corpo, instala o reconhecimento público da existência do indivíduo
socializado ou em vias de socialização.
Como diz João de Pina Cabral (2005), nomear é um passo central na
constituição social da pessoa – um dos principais meios de integração entre a
reprodução social e a reprodução humana. Para o autor:
“A nomeação é um momento charneira na consolidação
dos laços afetivos entre parentes que se prolongarão
mesmo para além das vidas das pessoas envolvidas –
através do que tenho chamado”identidades continuadas”.
Os nomes funcionam como marcas de relações afetivas
e, por conseguInte, como sinalizadores emocionais.
Como todos sabemos, o nosso próprio nome tem
potencialidades evocativas fortíssimas” (2005, pág. 1).
De acordo com Bourdieu (1996), “o nome próprio é o atestado visível da
identidade de seu portador através dos tempos e dos espaços sociais, o
fundamento da unidade de suas manifestações sucessivas e da possibilidade,
socialmente reconhecida, de totalizar essas manifestações em registros oficiais.
(p: 78)”. Até porque como indica Martins (1991), é recebendo um nome que algo
se torna um objeto cultural no circuito maior da sociedade por intermédio da
linguagem.
Ao fazer opções sobre a nomeação de uma criança, a pessoa está
realizando um ato de reprodução social através de uma instância de procriação.
Esse processo que é relativamente universal ocorre de forma diversificada
(Cabral, 2000).
Para Heller apud Rabinovich (1993), não haveria sociedade no mundo em
que as pessoas não fossem distintas umas das outras pelo nome. O nome, no
contexto de outros nomes, identifica a pessoa. Identificação essa que seria dada
pelo olhar que nomeia, pelo outro.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
101
3.3.1
Significados da escolha do nome dos filhos
A seguir analiso os dados do questionário aplicado aos 29 responsáveis,
onde havia duas perguntas relativas ao processo de nomeação, a saber: “Por que
escolheu esse nome para seu filho”? ; “Quem escolheu o nome?”.
Em alguns momentos, estabeleço comparações com os dados relativos a
perguntas sobre escolha do nome, feitas para 145 responsáveis de crianças
internadas no HECC, ao longo do desenvolvimento do Projeto Registre Sua
Criança do Serviço Social do HECC, mediante o preenchimento de uma ficha pela
equipe de assistentes sociais, como citado anteriormente, no ano de 2004 e que
possuíam certidão de nascimento. Elaborei essa ficha na ocasião, com a intenção
de gerar dados que se prestassem para serem usados no trabalho de campo.
A seguir o gráfico com dados sobre a escolha do nome do questionário
com 29 responsáveis:
POR QUE ESCOLHEU
ESTE NOME?
7
6
4
4
2
2
2
1
1
" H O MEN A GEM "
"S EMPRE GO S TO U"
PORQUE ACHOU "BONITO"
"BÍBLICO"
"PARA COMBINAR COM O
NOME DO(A) IRMÃO(Ã)"
"PORQUE É UM NOME DE
UM(A) ATOR OU ATRIZ"
NÃO COLETADO
NOME DE UMA EX-
NAMORADA
NÃO SOUBE DIZER
A resposta que apareceu com maior incidência foi “fazer uma
homenagem”. No conjunto de sete pessoas, cinco homenagearam pessoas já
falecidas (filho, colega da infância, tio e sobrinho). Para algumas é concebido
como uma forma de gratidão, pois a própria pessoa ou sua família lhe ajudaram na
vida. Remeto-me a João de Pina Cabral (2005), quando afirma que a nomeação
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
102
implica na consolidação dos laços afetivos entre parentes, no que ele chama de
identidades continuadas, pois que se prolongam para além da vida das pessoas
envolvidas.
Em relação à resposta, sempre gostou, (06 pessoas) percebemos que este
significado pode estar camuflando outros, ou mesmo denotando o
desconhecimento dos próprios pais sobre os motivos que levaram à escolha do
nome. Principalmente se levarmos em conta que, segundo Martins (1991), o nome
nada tem de fortuito e natural, sendo fruto da elaboração virtual e da atividade
desejante do sujeito.
Interessante notar que a resposta, “porque achou bonito”, (04 pessoas)
remete à idéia de que é bom nos identificarmos com uma coisa bonita, até porque
o nome nos acompanhará por toda vida. Soa também como uma espécie de querer
bem ao filho, já que o nome tem um forte poder evocativo, inclusive de trazer
coisas boas e belas para o seu portador. Como diz Martins (1991), o nome,
embora sem ser um destino, é portador de desejos e da trama simbólica urdida em
torno de cada sujeito.
No caso dos nomes aqui tidos como bonitos (Rony e Kauãn, por exemplo),
aparecem aqueles em que a beleza está ligada ao uso freqüente das letras W, Y, K,
H, LL. Contrastivamente percebe-se outras maneiras de escolher o nome nas
classes médias. Nomes simples e tradicionais, tais como João, Maria, Francisco e
Antônio.
Como apontam os dados do ano de 2004 do Projeto Registre sua Criança
do Serviço Social do HECC, citado anteriormente, junto a 145 responsáveis cujas
crianças eram registradas, a questão estética também vem associada à sonoridade,
assim como ao uso de nomes compostos, como, por exemplo: Ykaro Luiz, Karina
Lays, Jéfferson Willian, Igor Willian, Naramy Cristina e Ronald Richardson.
Estes, às vezes, refletem arranjos feitos entre os pais como uma forma de chegar a
um consenso entre eles ou outros familiares nessa escolha, conforme citado por
alguns informantes.
A influência do tempo, da moda, da cultura e da história é realmente
grande, pois há muitos outros nomes utilizados outrora que quase não são mais
encontrados, assim como determinados sobrenomes que em função do momento
histórico de um país, podem ter sua tradição modificada. Freire (1970) em Casa
Grande e Senzala, fala a respeito do movimento de Independência no Brasil.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
103
Pontua que um grande furor nativista levou muitos senhores a mudarem os nomes
de família portugueses para nomes indígenas ou para nomes que indicassem a
origem brasileira ou regional.
Através da minha experiência como professora universitária e, mais
recentemente também como assistente social na área da educação através da
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, tenho contato com professores que
relatam ser recorrente o fato de que, por vezes, algumas mães não lembram ao
certo a data de aniversário dos filhos e muitos só comemoram o aniversário na
escola. Ocorre também de não lembrarem o nome de seus filhos, trocarem o nome
dos filhos, ou então só saberem o primeiro nome deles. Confundindo os
sobrenomes de filhos de pais diferentes, chamam algum filho por um nome que
não é o seu, por apelidos, apelidos pejorativos e por Nem.
Loureiro (2002), em estudo sobre a identidade do professor, encontrou o
modo de tratamento “Nem” entre crianças de uma escola municipal da cidade do
Rio de Janeiro localizada em uma favela. A autora indica que esse é um modo de
tratamento nivelador, comum, estando associado ao termo Neném, o que
infantiliza as crianças. Também associa “Nem” ao sentido negativo da conjunção
aditiva. Para a autora, isso produz um enfraquecimento do indivíduo como valor.
As crianças da favela aparecem relativamente desindividualizadas em relação às
crianças do asfalto que, de modo geral estudam em escolas particulares e são
tratadas pelo seu nome próprio.
Os professores também informam que muitas crianças das escolas públicas
da cidade do Rio de Janeiro às vezes têm dificuldade em falar e/ou escrever seus
nomes, pois são muito complicados. Percebo certa ironia na fala de alguns
professores em relação às famílias e às crianças por elas terem nomes
americanizados, compostos, carregados de W, Y, H. Também por terem nomes de
personagens famosos (jogador de futebol, artista de cinema e televisão). Mas
caberia perguntar: por que essa realidade provoca a ironia e até mesmo o riso?
Qual a necessidade dessas famílias em colocar nomes pomposos em seus filhos?
O que informa essa escolha? Será uma maneira de se sentir incluído na sociedade
e de incluir seus filhos? Será o glamour de lugares modernos? Cláudia Fonseca
(no prelo), em pesquisa sobre a prática do batismo em casa no Rio Grande do Sul,
diz que é nesse momento que a criança recebe um nome e que observou a
presença de nomes exóticos:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
104
“Um senhor negro é batizado com o nome
eminentemente ariano, Welfriede, e o casal descendente
de poloneses chama seus filhos por nomes indígenas
como Potiguara, Tupã, Jurema, Jandira. Entre pais
adolescentes, hoje, vemos novas fantasias – o glamour
de lugares “modernos” – incorporados em nomes tais
como Kelly, Michael Douglas, Jackson, Jéssica. (no
prelo, p: 06)” .
É sabido, no entanto, que há situações em que os nomes escolhidos podem
expor as crianças e os adultos ao ridículo. Para Martins (1991), tal prática está
ligada ao princípio do prazer, sendo marcada por princípios escusos, o que nos
leva a pensar na responsabilidade do ato de nomear e na responsabilidade de quem
recebe um nome
44
.
Nesses casos, a legislação brasileira permite que os cartórios possam se
negar a proceder ao registro caso o nome exponha a pessoa a situações
constrangedoras. Interessa anotar que a mudança de nome no Brasil só se faz
mediante processo judicial e pago.
O nome ajudaria a entender um pouco sobre quem são as pessoas com as
quais trabalhamos, já que segundo Rabinovich et al (1993), o nome escolhido para
as crianças revelaria tanto o universo relacional dos pais, quanto o contexto
situacional onde a criança irá adquirindo a sua personalidade. Conforme Fonseca,
“pesquisadores são unânimes em ler, no sistema de nomeação, pistas para a
compreensão da noção de pessoa (selfhood) em determinados contextos” (no
prelo, pág, 07). Martins reforça essa idéia ao dizer que através do estudo do nome
podemos conhecer o sujeito.
Nesse sentido, outra resposta fornecida pelos responsáveis (caso de 04
pessoas), buscou na influência religiosa, especificamente nos “nomes bíblicos”,
uma forma de marcar a criança que estava sendo nomeada, como por exemplo:
Luiz David e Ryan Israel. Muitas vezes escolhidos pelo significado do nome e dos
desejos que ele carrega para o filho. Isto reforça um costume cultural da nossa
sociedade que atravessa os tempos, remetendo-nos a antigas atitudes da Igreja
Católica. Trata-se da intolerância por todo nome que não fosse de santo, bem
como, uma orientação contrária ao uso de nomes ridículos e fúteis tirados de
romances e de pessoas famosas (Fonseca, no prelo).
44
Em entrevista com o defensor da Defensoria do bairro de Anchieta, subúrbio do RJ, ele me
informou que estão envolvidos num processo de mudança de nome: o pai se chama Primitivo e o
filho, autor do processo, Primitivo Junior.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
105
Em entrevista com o Desembargador Siro Darlan em 2008, sobre o sub-
registro de nascimento e processo de registro tardio, indaguei-o sobre sua prática
quando atuava no Juizado da Infância e da Adolescência, de ao registrar as
crianças acrescentar termos relacionados ao mundo religioso, como por exemplo,
o sobrenome do Céu. Ao que ele me respondeu:
“Quando eu cheguei ao Juizado, lamentavelmente nós tínhamos um cadastro que
coloca assim: uma criança negra de aparentemente dois meses e entrava no
cadastro. Isso é um escárnio, isso é um desrespeito, então como os nomes que a
gente coloca num primeiro encontro são provisórios e para evitar que ficasse sem
registro, toda vez que me apresentavam uma criança de origem desconhecida eu
dava a ela o registro e eu colocava o nome de acordo com fatos políticos, com os
fatos sociais, por exemplo: o Romário tinha feito um gol naquela semana, então
botava naquela criança de sexo masculino Romário e ele foi encontrado no
Hospital Carlos Chagas, então colocava Romário Carlos Chagas do Céu, do Céu
porque todo mundo tem que ter um sobrenome”.
Também as crianças guaranis recebem no nome toda a carga espiritual do
seu povo. Em sua grande maioria são nomes que remontam a uma profunda
religiosidade, relacionando-se quase sempre com a idéia de luz, desde o brilho ao
troar do relâmpago, que são elementos fundamentais na mística guarani (Borges,
2002).
Uma outra resposta indicada pelos responsáveis que responderam ao
questionário, aponta que o nome do filho foi colocado para combinar com o nome
do (a) irmão (ã) - caso de 02 pessoas -, utilizando a mesma letra inicial. Letra que
nestes dois casos não é a mesma letra inicial do nome do pai.
Há então, uma lógica de construção de uma identidade entre os nomes de
todos os filhos para além dos sobrenomes, utilizando a mesma letra inicial. Até
porque como indica Sarti (1996) o sobrenome para os pobres é pouco
significativo, pois não dá status, como para o grupo dominante. Assim se cria
como assinala Martins (1991), uma irmandade, uma estrutura familiar que
engloba todos os filhos, buscando, um entrelaçamento pela identidade simbolizada
no nome. Pode-se compreender essa prática também como uma espécie de
demonstração de marca e posse. Remete a outras formas de compreensão que
geram as escolhas dos nomes dos filhos, num primeiro olhar, mais lúdicas ou
estéticas. Também pode ser mais um recurso que os pais utilizam para expressar
amor pela criança.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
106
Fonseca (no prelo), em pesquisa sobre a realização do “batismo em casa”
no Rio Grande do Sul, assinala ser mais comum entre os moradores da localidade
pesquisada a atribuição de nomes em série aos membros de uma fratria (variantes
de um mesmo nome, nomes que começam pela mesma sílaba ou mesma letra, às
vezes o elemento repetido sendo escolhido a partir dos nomes dos próprios pais),
do que meninos batizados com o mesmo nome do pai. Indica assim que há um
número modesto de “Júniors”. Para a pesquisadora, essa repetição, na maioria dos
casos, se limita a fratria e/ou geração e demonstra a inventividade particular dos
pais. Indica ainda a presença de nomes de santos como algo previsível, a
preferência por nomes exóticos e assinala a raridade de nomes como José e Maria.
Segundo a autora:
“Aventamos a hipótese de que, no meio que
pesquisamos, a forma de nomeação centrada nos
prenomes inventados pelos pais reforce uma identidade
familiar calcada em solidariedades “horizontais” antes do
que na linhagem “ancestral”. Em outras palavras, parece
mais importante designar o pertencimento da criança a
uma rede social viva e atuante do que inscrevê-la em um
passado familiar mais remoto” (no prelo, pág 7).
Nesta pesquisa não apareceu a prática de dar ao filho o mesmo nome do
pai, nem mesmo um nome parecido com o do pai ou um nome com a letra inicial
igual ao do pai. Os dados coletados parecem indicar que os sentidos da nomeação,
para esse grupo, estariam passando por algum outro campo mais fortemente do
que pela linhagem ancestral, talvez estando mais próximos do núcleo familiar da
própria pessoa que nomeia. É como se o que contasse fosse o aqui e agora,
reforçando a hipótese de Fonseca (no prelo) de que o significado dessa forma de
nomeação está mais voltado para referenciar a criança ao grupo presente e atual de
sua família, do que ao passado familiar
45
.
Outra hipótese seria a de que o espaço da transmissão da herança familiar
já esteja assegurado com o sobrenome, uma vez que este inscreve a criança em
uma descendência familiar, seja numa combinação do sobrenome materno e
paterno, seja com um dos dois somente, considerando que no processo de
nomeação, geralmente é o sobrenome do pai que será transmitido às próximas
gerações, quando este existir.
45
No levantamento citado anteriormente do Projeto Registre Sua Criança, no conjunto de 145
crianças, em 11 casos, a escolha do nome se deu em função do nome do pai.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
107
Também não aparece, da parte do pai nem da mãe, em nenhum caso, a
escolha pelo nome da mãe para colocar na filha. Por que a transmissão do nome
da mãe para filha não é uma prática comum?
Em relação ao fato de um pai escolher para colocar na filha o nome de uma
ex-namorada, conforme sinalizado pelo gráfico, recordo-me que no ano de 2002,
uma professora da rede pública do Rio de Janeiro fez um relato durante uma aula
que eu estava ministrando em um curso
46
no momento de apresentação das
pessoas com uma dinâmica sobre a história do nome. Ela disse que se chamava
Celina e que seu nome fora escolhido por seu pai. Celina era uma antiga namorada
dele. Sua mãe detestou a escolha. Celina cresceu escutando da mãe que ela era
uma vagabunda, que não prestava. Ela avalia que a mãe passou para ela toda a
raiva que sentia do seu pai por ele tê-la nomeado com o nome de uma ex-
namorada. Celina, que na época tinha 40 anos, disse que precisou de muito tempo
na sua vida para aprender a lidar com essa situação. Bastante emocionada,
sinalizou que hoje gosta do seu nome.
Este não é um caso isolado. Ana Cláudia, professora da rede pública da
cidade de São João do Meriti, participava em 2002, de um curso
47
em que eu era a
professora. Com a mesma dinâmica de apresentação citada acima, ela contou que
seu nome ia ser Wilcinéia (mistura do pai – Wilson e da mãe – Dulcinéia) por
sugestão de sua avó materna, já que sua mãe não tinha nenhum nome escolhido
para ela. Só que na maternidade o pai resolveu colocar Edna. Mas sua mãe não
gostou porque era o nome de uma ex-namorada dele. Então a avó materna sugeriu
que colocassem Ana Cláudia e assim foi feito.
O que leva um homem a agir assim? Obrigar a própria mulher a ter uma
filha com o nome de uma ex-namorada? Fica explícito que o pai tem poder no
processo de nomeação numa demonstração do quanto esse processo pode ser
marcadamente sexuado. Também aponta para as conseqüências que o processo de
nomeação pode ter na vida das pessoas.
Em relação às respostas sobre quem escolheu o nome das crianças, no
conjunto dos 29 responsáveis temos o seguinte:
46
Curso de Extensão em Educação Infantil, convênio entre a Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro e PUC-Rio.
47
Programa Nova Baixada – Governo do Estado do Rio de Janeiro, Capacitação para Profissionais
de Creche.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
108
QUEM ESCOLHEU O NOME DA CRIANÇA?
14
7
22
1111
0
2
4
6
8
10
12
14
16
1
MÃE
PAI
PAI E MÃE
TIA(O)
AVÓ(Ô)
MÃE E OUTRO
NÃO SOUBE
INFORMAR
NÃO COLETADO
Temos assim a predominância da mulher escolhendo o nome dos filhos,
seguida do pai. Importa ressaltar que na categoria “mãe e outro”, este é um
vizinho que ajudou a mãe a definir a escolha do nome. Abaixo, trago uma tabela
que cruza os dados de quem escolheu o nome do filho, com o registro feito no
nome de quem.
QUEM ESCOLHEU
REGISTRO
PAIS PAI MÃE
PAI
6 5 1
MÃE
11 4 7
PAI E MÃE
2 2
MÃE E OUTRO 1 1
TOTAL
20 12 8
Os dados acima se referem a 20 pessoas, no conjunto das 29 que
responderam ao questionário, já que em 06 casos as crianças não estão registradas
e em 03 casos não tenho a informação se o registro foi feito. O que se pode
depreender é que todas as crianças que receberam o sobrenome paterno, o homem
esteve envolvido na escolha do nome. Há apenas um caso em que o pai escolheu o
nome da criança e não a registrou, pois faleceu antes de seu nascimento. Quando a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
109
criança está registrada somente no nome da mãe, em 08 casos, esta colocou um
nome composto em seu filho em 04 casos.
Abaixo uma tabela com dados da idade da criança na época de efetivação
de seu registro de nascimento, cruzados com o registro feito no nome de que
responsáveis.
DATA DO
REGISTRO
REGISTRADA
NO NOME DE
QUEM
PAIS MÃE PAI TOTAL
1 MÊS
2 2
2 MESES
2 2
3 A 6 MESES
22 4
7 A 9 MESES
22 4
1 ANO
12 3
2 ANOS
2 2
6 ANOS
1 1
SEM
INFORMAÇÃO
2
TOTAL
12 6 20
O que os dados parecem indicar é que não há uma diferença significativa
entre quem registra a criança e a época em que esse registro é feito. Havendo
inclusive uma predominância de registros no nome dos pais, com destaque para os
dois primeiros meses de vida da criança.
Em relação a como os pais escolheram o nome de seus filhos, apareceram
algumas indicações nas respostas do questionário, no livro dos nomes, tiraram de
uma música, uma revista, filme e novelas da Rede Globo (Malhação e Da Cor do
Pecado).
Pode-se pensar no universo cultural a que o grupo que forneceu as
respostas está ligado. Estamos falando de pessoas com um acesso cultural
marcado por vários limites, ligado ao universo de televisão, já que o filme
apontado e as novelas já passaram e continuam a passar com freqüência de dia e
de noite.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
110
Trago a seguir outra história, de uma aluna do mesmo curso
48
citado
anteriormente em que eu também era a professora e que foi escrita a partir de uma
dinâmica sobre a história do nome.
“A história do meu nome chega até a ser engraçada. Veja só! Durante toda uma
gravidez minha mãe tinha certeza que esperava um menino, o Paulo Marcos; fez
tudo de menino e nem cogitou a possibilidade de ser menina. Resultado: quando
eu nasci não tinha um nome definido para mim. Minha mãe então pensou em
Heloísa Helena que era o nome de uma boneca que ela tinha e gostava muito,
papai queria que fosse Maria – o nome que ele acha o mais bonito dos bonitos, o
nome que toda mulher deveria ter. Nesta confusão aparece minha tia sugerindo
Aurora (arg!) por causa da hora que eu nasci ou Joana, feminino do nome do meu
pai, imagina só! Devo ter chorado muito e chamado a atenção da minha avó”.
O impasse estava formado, e por minha sorte, a vovó sugeriu o nome das
personagens da Eva Vilma – que ela acha linda – na novela da época: as gêmeas
Ruth e Raquel. Eu seria Raquel. Mesmo assim não me livrei do Maria, fiquei
Maria Raquel. Gosto muito de Raquel, mas Maria...
Ameniza e me conforma quando penso que nesta confusão poderia ser Maria
Joana, Maria Aurora, Maria Heloísa, Maria, Maria... Ufa!. Ainda bem que
escolheram Maria Raquel”.
Essa história aponta um aspecto recorrente em processo de escolha de
nome que é a expectativa por uma criança de um determinado sexo. Exemplifica
bem como a escolha de um nome pode ocorrer de diferentes formas e mobilizar
várias pessoas da família.
A partir do exposto neste capítulo sobre os sentidos que a certidão de
nascimento carrega para o grupo pesquisado, chego agora no Capítulo III à
discussão sobre as razões pelas quais, os pais ainda não registraram seus filhos.
Dentre outras questões, indago-me sobre o vácuo que percebi existir entre o valor
que os pais dizem atribuir à certidão de nascimento e à demora em “tirá-la”, em
alguns casos.
48
Programa Nova Baixada – Governo do Estado do Rio de Janeiro, Capacitação para Profissionais
de Creche- 2002.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
4
Porque não registrou seu filho?
Este capítulo apresenta as razões pelas quais os pais não registraram seus
filhos, a partir dos dados colhidos na pesquisa de campo. A pesquisa sinalizou que
a “espera da mulher pelo homem para que ele faça o registro do filho”, bem
como, as relações que os pais estabelecem com o “mundo dos documentos” são os
dois fatores mais recorrentes para o sub-registro de nascimento. Nesta perspectiva,
a pesquisa traz também elementos sobre a existência de mães que ainda não foram
registradas e que, portanto, a priori, não poderiam ter filhos registrados em seu
nome. O diálogo teórico central se dá com as antropólogas Cinthia Sarty
(1996;2004) e Cláudia Fonseca (2005; no prelo) em função de seus estudos sobre
a família brasileira das classes populares e com Ana Liési Thurler (2004), autora
de uma tese recente na área da Sociologia sobre a questão da deserção da
paternidade, materializada nas certidões de nascimento sem filiação paterna.
4.1
Por que as crianças não foram registradas
Esse trecho do Capítulo III está estruturado a partir da análise das
respostas à pergunta: “Por que ainda não registrou seu filho?”, contida no
questionário do trabalho de campo aplicado a 29 responsáveis por crianças sem
registro internadas no HECC ao longo dos anos de 1999 a 2007, conforme o que
foi situado no Capítulo I. Ao analisar esses dados, indico pesquisas que estimaram
taxas de sub-registro de nascimento em diferentes épocas e em variadas cidades
do Brasil, apontando também alguns motivos para a não realização do registro
civil, conforme já citadas no Capítulo I.
Ao longo do texto recorro às entrevistas e ao caderno de campo referente
não só às crianças internadas no HECC, mas também às pessoas que conheci no
Projeto Cidadania. Também, trago elementos do acompanhamento da trajetória de
Andréia, adulta sem certidão de nascimento que conheci através do trabalho na
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, e utilizo-me de registros pessoais do ano
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
112
de 2000 sobre o trabalho do HECC com as crianças sem certidão de nascimento.
Além disso, trago dados dos livros de atendimento do Serviço Social do HECC
dos anos de 1999 a 2007, no que diz respeito aos motivos pelos quais as crianças e
adultos ainda não tinham sido registrados.
Em termos do questionário, no conjunto de 29 crianças, em relação à
pergunta “Porque ainda não registrou seu filho?”, temos o seguinte universo de
respostas dadas pelos responsáveis:
POR QUE AINDAO REGISTROU?
20
14
7
6
5
4
3
2
2
2
12
ESPERANDO PELO PAI
PROBLEMAS COM DOCUMENTOS DO PAI E OU MÃE
O PAI OU A E É "RELAXADO"
ACHAVAM QUE TINHA MULTA
PAI ESTÁ TRABALHANDO
PROBLEMAS COM A DN
FALTA DE TEMPO
DÚVIDAS DO PAI QUANTO A PATERNIDADE
PORQUE AE NUNCA FOI REGISTRADA
NÃO TEM DINHEIRO PARA A PASSAGEM
OUTROS
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
113
A seguir um detalhamento do significado do que foi classificado como
outros.
OUTROS
1
1
1
1
1
11
1
1
1
1
1
PAI DA CRIANÇA FALECEU
PAI DA CRIANÇA É CASADO COM OUTRA MULHER
MÃE ESTAVA DE RESGUARDO
E É A DOLESCENTE
FILHOS FICARM DOENTES
"POR NADAO"
ESPERANDO APA RECER UM COMPANHEIRO
PAI NÃO QUER QUE OS FILHOS ESTUDEM
PAI DA CRIANÇA ESTÁ PRESO
EO SABE ANDAR SOZINHAR NA RUA
PAIS ESTÃ O BRIGADOS
O PAI É DEPENDENTE DO AVÔ DA CRIA NÇA
A partir das respostas acima percebemos que diversas são as razões para a
existência do sub-registro de nascimento: econômicas, sociais, políticas, culturais
e também subjetivas, que muitas vezes formam uma trama complexa. Em muitos
casos não é apenas uma razão que está por trás de cada enredo contado pela mãe
ou pai e sim um conjunto de motivos entrelaçados.
Essa multiplicidade de fatores fica clara em vários relatos das mães.
Vejamos o de Rosilene, 37 anos, mãe de seis filhos. Um deles, Renan, de dois
anos esteve internado no HECC com pneumonia pela terceira vez.
“Eu ainda não registrei meu filho porque não tenho tempo, trabalho
fazendo faxina. O pai não quer registrar. Vou registrar só no meu nome. Mas eu
não tenho nenhum documento e perdi a minha certidão”.
Também o relato de Cleide, 30 anos, moradora do bairro da Pavuna, zona
norte da cidade do Rio de Janeiro, mãe de 03 filhos. A situação de seu filho de 02
anos, que esteve internado no HECC no ano de 2001 com pneumonia, reforça essa
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
114
perspectiva de que muitas vezes são variados os fatores que levam uma mãe e um
pai a registrarem o filho num prazo posterior ao definido pela lei.
“Meu filho ainda não foi registrado porque ele ficou internado durante 05
meses no hospital onde nasceu. Ele teve várias complicações no parto. Depois eu
não tinha dinheiro porque meu esposo ficou desempregado. Por fim, roubaram os
documentos dele e meu outro filho ficou doente”.
A partir dos dados apresentados vemos que a maior incidência dos motivos
está ligada à espera pela mulher do homem para que ele registre a criança (caso de
20 pessoas) e questões ligadas ao mundo dos documentos (caso de 14 pessoas).
Estes dois motivos serão desenvolvidos respectivamente nos itens 3.1 e 3.2 deste
capítulo.
Como um aspecto estrutural, temos a questão da falta de dInheiro, que
aparece em 08 casos, quando juntamos as respostas: “Achava que cobrava
multa”; e “Não tinha dInheiro para passagem”. Trata-se da falta de dinheiro ou
para pagar o registro, a passagem ou para tirar documentos (segunda via da
certidão de nascimento, identidade ou carteira de trabalho e as fotos para os
documentos).
Segundo o IBGE,
“Vários fatores contribuem para que a cobertura dos
registros de nascimento e a qualidade das informações
sejam deficitárias. A exclusão de parcela significativa da
população dos serviços de saúde e de justiça, o precário
acesso à educação e à informação, especialmente de
camadas mais pobres da população, são elementos
estruturais que estão na base da desigualdade social que
leva ao não registro das crianças nos seus primeiros dias
de vida (2004, p:2)” .
Carlos Eduardo, 29 anos, instalador de interfone, é pai de Wallace de 05
anos que ainda não está registrado e que foi internado no HECC em 2000 com
pneumonia e bronquiolite. Ele e sua esposa, Maria Célia, 27 anos, empregada
doméstica, possuem mais três filhos. Moram numa área de invasão em Anchieta.
Em seu relato aparece também a questão da burocracia nos cartórios.
Segundo o pai, seu filho ainda não foi registrado:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
115
“Por vários motivos. A gente vem tentando e não consegue. A gente
morava em Nova Iguaçu e lá mandavam de um lugar para outro para poder
conseguir tirar a certidão sem pagar. Falavam também que tinha que ter a
declaração de pobreza da Fundação Leão XIII. Depois a declaração da
maternidade molhou com a chuva, ficou ilegível e tivemos que pegar outra”.
No dia seguinte à nossa conversa, a mãe de Wallace me diz que seu
marido já registrou o menino. Este todo contente dizia:
“Meu pai me registrou”!
No Brasil, esses fatores são agravados por outros obstáculos como a
distância a ser percorrida até um cartório
49
, a burocracia e demora no atendimento,
a ausência de cartórios em diversos municípios e um expressivo número de
estabelecimentos paralisados ou interrompidos, principalmente nos distritos. A
reorganização do aparelhamento no sistema de registro civil é lenta e não atende
as demandas da sociedade (IBGE, 2004; Makrakis, 2000).
Portela (1989), em pesquisa que buscou estimar a taxa mínima de sub-registro
de nascimentos vivos na cidade de Piripiri, Piauí, aponta que, possivelmente, o custo
do registro seja o fator que mais contribui para a omissão deste.
Melo Jorge (1997) identificou em estudo de 4.259 nascimentos vivos de
mulheres residentes em Londrina – PR, no ano de 1994, a taxa de sub-registro
entre 5,3% e 6,6%. O custo foi o principal motivo alegado para o não registro,
seguido de negligência e ilegitimidade.
Campelo In Cardoso (2003) realizou pesquisa em 1993, num bairro de São
Luís, Maranhão, e descobriu que dentre as razões do sub-registro estão o alto
percentual de partos domiciliares, a existência de cemitérios clandestinos, o custo
elevado do registro e a distância dos cartórios.
A resposta dos responsáveis que aponta para a hipótese de que se cobrava
multa remete à história do registro civil no Brasil e conseqüentemente à
resistência dos cartórios em abdicar dessa fonte renda. Apesar da Lei da
49
Esse aspecto da distância é retratado no filme “Eu, Tu, Eles” de Andrucha Waddington (2000),
quando o personagem Interpretado pelo ator Lima Duarte se desloca, ao raiar do dia, para o
cartório a fim de registrar em seu nome os filhos de sua esposa numa carroça atravessando um
longo caminho.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
116
Gratuidade de 1997 (Lei 9.534), o imaginário de que é um serviço pago ainda se
faz presente, principalmente tratando-se de crianças que não são mais bebês.
Castanhel (2003), ao analisar a história do registro civil no Brasil, percebe
que a questão financeira foi um dos principais motivos para a constituição do sub-
registro de nascimento. Esse tema é encontrado em estudos diversos da década de
40 até os dias de hoje.
50
Desde a instituição do registro civil foram cobrados
emolumentos, com exceção das pessoas gravemente desfavorecidas, que deveriam
apresentar um atestado de pobreza.
Makrakis (2000) realiza um histórico da origem dos registros públicos e
problematiza a forma como o sistema de registro civil no Brasil foi estruturado,
através da atuação dos cartórios que obtiveram junto ao Estado concessão para
realizar a prestação dos serviços registrais. Segundo a autora, a questão dos
cartórios é antiga e polêmica, desde a época do colonialismo, mas permanece
atual e sua extinção ou não é extremamente política e controversa. O Brasil deve
ser um dos únicos países do mundo que concederam à iniciativa privada, através
de entidades cartoriais, a prestação desses serviços de registro civil. Para a autora,
é na figura dos cartórios que se encontra um dos maiores entraves do sistema.
O Desembargador Siro Darlan, em entrevista concedida para esta pesquisa,
quando indagado sobre a atuação dos cartórios na realização do registro civil, diz
de forma crítica que:
“Os cartórios na verdade são serviços parajudiciais controlados pela Corregedoria
de Justiça. É um problema muito sério, deveríamos pensar em mudar essa situação
jurídica porque como se trata de um direito a ser exercido, o direito de ter o
registro civil, de conhecer a sua família, de ter um nome isso deveria ser feito pelo
próprio poder público, o poder público acaba delegando através dos cartórios. Isso
também é um problema jurídico cultural porque vem desde as ordenações
manuelinas essa cultura cartorial que acaba sendo um belíssimo cabide de
emprego para os donos de cartório”.
Makrakis (2000), diz que até a criação da Lei 9.534 de 1997, que
estabeleceu a gratuidade para os registros de nascimentos e óbitos, os cartórios
cobravam preços diferenciados para efetivação dos registros, impossibilitando o
registro da população mais carente. Ainda que na lei anterior houvesse artigo que
estabelecia o não pagamento de taxas pelas pessoas reconhecidamente pobres, a
burocracia para comprovação do estado de pobreza, a falta de esclarecimentos
50
Moraes (1948), Milanesi e Silva (1965), Suarez (1968), Almeida (1979), Portela (1980; 1989),
Cunha (1992), Mello Jorge (1997), Makrakis (2000) e Castanhel (2003).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
117
adequados e o constrangimento causado nas pessoas foram fatores que
desencorajaram muitos a fazerem o registro.
Nesse contexto, a autora aponta ainda a cobrança de multa àqueles que não
providenciavam o registro dentro do prazo estabelecido como um dos motivos que
levou ao sub-registro de nascimento:
“Esta penalidade sempre existiu nas legislações que
tratavam de registro civil e causou, por quase um século
de existência do sistema, uma espécie de aversão da
população contra a o registro civil. Não são raros os
casos de pessoas que nasceram em uma determinada data
e foram registradas em outra posterior, como se o
nascimento tivesse acabado de ocorrer, distorcendo a
idade delas. Era a forma que parte da população
encontrava para tentar ‘driblar’ a lei e ficar isenta de
pagar as multas impostas. Nos últimos anos, além de ter
havido algumas mudanças na lei, isentando a cobrança
de multas para alguns casos, os próprios cartórios não
mais aplicam tais penalidades com rigor e muitos deles
isentam as pessoas de pagá-las. No entanto, o estigma da
penalidade permanece, e uma camada significativa da
população não conhece as mudanças e/ou os seus
direitos (2000, pág. 64)”.
Makrakis (2000) prossegue suas análises dizendo que os cartórios, em
alguns casos, por falta de condições reais ou como forma de retaliação à
imposição legal da gratuidade dos registros, dificultam ou deixam de prestar o
serviço à comunidade, alegando insuficiência de verbas. A grande maioria deles
subsistia da cobrança dos registros de nascimento e óbito. Após a vigência da Lei
da Gratuidade, pode-se ter criado um outro entrave no sistema, pois se sabe que a
manutenção de muitos cartórios de registro civil não vem sendo possível. Outras
atividades, como registros de casamento, declarações de ausência, opção de
nacionalidade, emancipação, etc., não possibilitam renda suficiente para
sobrevivência dos cartórios pequenos e/ou os que não têm outra atividade cartorial
rentável. Também Scochi (2004), em estudo sobre o intervalo entre o nascimento
e o registro civil no município de Ribeirão Preto diz que os cartórios criaram
alternativas para cobrar emolumentos pelas certidões de nascimento após a Lei da
Gratuidade.
A Lei da Gratuidade de 1997 ainda enfrenta problemas para se efetivar.
Tenho visto no cotidiano do HECC, através do depoimento dos pais, que alguns
cartórios alegam a idade da criança já avançada para cobrar pelo registro, ou
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
118
mesmo, falam de guias que devem ser pagas. Ao mesmo tempo, lançam mão de
diferentes artifícios
51
para receberem por algum outro serviço: a necessidade de
plastificar, de fazer xerox e de autenticar a certidão.
Ainda em termos da relação com os cartórios, trago a resposta de uma
mãe, Janaína, contida nas fichas do Projeto Registre Sua Criança de 2002 do
Serviço Social do HECC, sobre porque não registrou seu filho que mostra outra
faceta que é o medo de ser recriminado.
“Eu sou do Norte e perdi minha certidão. Mas eu tenho minha carteira de
trabalho. O pai da minha menina precisa tirar seus documentos, ele já tem os
retratos”.
Mais tarde Janaína acrescenta que:
“Meu marido tem vergonha de ir ao cartório e ser maltratado. Temos
mais três filhos que também não são registrados. Um de 07, um de 05 e outro
pequeno de 03 anos”.
Outra resposta dada pelas mães no questionário, em 07 casos, diz respeito
ao fato de que ainda não registraram porque: “O pai e/ou a mãe é descuidado,
relaxado, parado, devagar, preguiçoso, desmiolado, descansado”. O que remete
a visão que outras pessoas (avó, bisavó, tia) têm dos pais ou a mãe tem do pai da
criança. Apenas em um caso, o pai expressou essa visão sobre si mesmo.
A questão do pai que está trabalhando e por isso não pode ir registrar o
filho, é uma resposta fornecida em 05 casos. Isso se relaciona com outro fator
assinalado por 03 pessoas, que é a falta de tempo. Essa questão foi indicada
também por Pais (2002), quando afirma a perda de tempo, a viagem, a ausência do
trabalho ou da residência e das responsabilidades familiares, além dos gastos,
como motivos encontrados para a não realização do registro de nascimento.
Segundo dados do UNICEF (2006), as crianças sem certidão de
nascimento estão mais vulneráveis ao tráfico – já que se torna mais difícil seguir
51
No ano de 2006, participando como palestrante de um seminário em comemoração ao dia do
assistente social na cidade de Rio das Ostras/RJ, uma participante relatou que o cartório dessa
cidade estava dando um protocolo para as pessoas no ato do registro da criança e solicitando que
retornassem para pegar a certidão. Quando as pessoas voltavam, o cartório cobrava pelo serviço
alegando se constituir em uma segunda via do documento. Também, diziam que tinham que pagar
pelo selo e autenticar a certidão.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
119
seus rastros. Também estão mais suscetíveis ao trabalho infantil, ao casamento
precoce e à prostituição por não terem como comprovar suas idades. Em muitos
países, estão sujeitas também a um recrutamento militar prematuro e a serem
enviadas para campo de refugiados em zonas de conflitos. Muitas vezes não
conseguem, sequer, o status de refugiados (2004).
Para Pais (2002), a “invisibilidade” das crianças não registradas aumenta
as probabilidades de que passem inadvertidas à discriminação, à desatenção e aos
abusos. A falta de um registro de nascimento submerge-os ainda mais na miséria e
aumenta o estado de marginalização. Para o autor, o registro de nascimento é um
passo decisivo para fazer um bom governo.
Acredito ser necessário, para entendermos o fenômeno do sub-registro de
nascimento, desenvolver uma visão ampla dos fatores de ordem social,
econômica, política e cultural que podem gerá-lo. Assim sendo, é importante
também se debruçar sobre fatores subjetivos e culturais que fazem com que os
pais demorem ou não registrem seus filhos. Reforça esta perspectiva o fato de que
mesmo com a Lei da Gratuidade de 1997 os índices não caíram conforme o
esperado (Castanhel, 2003).
A minha experiência como assistente social e pesquisadora no HECC leva
a supor que as histórias melhor sucedidas e nas quais as mães registraram seus
filhos contaram com um intenso investimento do profissional na construção de um
vínculo com elas. Na verdade, as ações públicas não deveriam se preocupar
somente em reduzir o índice de crianças não registradas, mas deveriam focalizar o
que o processo de registrar uma criança desencadeia em termos de reflexões e
práticas na vida das pessoas.
Um aspecto que corrobora essa questão é que em muitas maternidades
públicas da cidade do Rio de Janeiro já vêm sendo implementados postos dos
cartórios a fim de se fazer o registro da criança recém-nascida. No entanto, ainda
saem crianças das maternidades sem serem registradas. Isso remete ao fato de que
não basta apenas ter um posto de cartório próximo. Há mais aspectos a serem
enfrentados a fim de se diminuir o sub-registro de nascimento.
Tecendo alguns comentários sobre as respostas que foram agrupadas como
outros, destaco: a questão dos pais serem adolescentes e do pai da criança estar
preso.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
120
A existência de pais adolescentes também pode ser um fator gerador do
sub-registro de nascimento, à medida que eles dependem de seus próprios pais
para efetuarem o registro de nascimento de seus filhos.
Carolina tem 14 anos, estudante, é mãe do Marcus Vinicius de 03 meses
que esteve internado no HECC no ano de 2000 com pneumonia. Ela me conta
que:
“Ainda não registrei porque estava esperando o pai dele fazer. Como ele é
adolescente, ele estava esperando seus pais. Eles estavam viajando. Agora já
voltaram de viagem”.
Alguns dias depois Carolina me mostra a certidão de seu filho.
A resposta de que ainda não registrou porque o pai da criança estava preso
foi dada por Roberta, 27 anos, que não trabalha e é mãe de Andrei de sete meses,
internado no HECC em 2006. Apesar de preso, o pai já havia assinado todos os
papéis necessários, reconhecendo a paternidade para que Roberta registrasse o
filho deles. O fato de estar preso trouxe mais dificuldades, mas não o impediu de
reconhecer seu filho. No entanto, ela ainda não tinha providenciado o registro e
indicava vários motivos para isso, como por exemplo: “não ter dInheiro para
passagem”; “não saber andar direito nas ruas”; “estar esperando o sogro para
ir com ela”.
Há ainda o caso de uma mãe, Violeta, de 23 anos, que teve sua filha
internada no HECC em 2002. Ela não respondeu ao questionário, mas constam
registros na fichas do Projeto Registre Sua Criança do Serviço Social do HECC,
onde ela diz que seu filho ainda não havia sido registrado porque:
“O pai do meu filho está preso e se meus pais ficarem sabendo vão me
expulsar de casa”.
Aqui aparece o controle da família em relação à mãe da criança e as
possíveis conseqüências do fato de estar se relacionando com um homem que foi
preso e ter tido um filho dele. Essas conseqüências são a demora para a não
realização do registro da criança e a ameaça de ser expulsa de casa.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
121
4.1.1
A espera pelo pai
Uma das respostas mais freqüentes à pergunta: “Por que ainda não
registrou seu filho?”, envolve a espera pela mãe do pai da criança. O verbo
esperar é recorrente na fala das mães.
“Esperando o pai aparecer”;
“Esperando o pai fazer”;
“O pai ainda não foi fazer”;
“O pai não foi providenciar”;
“Esperando que ele resolva fazer”;
“Estava esperando o pai para ele registrar, mas ele não resolvia”;
“Esperando o pai resolver. Ele diz que vai, mas não vai”;
A ação de esperar aparece em outras relações: a mulher espera o filho
nascer, as crianças esperam que seus pais tirem suas certidões, os pais
adolescentes esperam seus próprios pais para poderem fazer o registro de seus
filhos. O adulto sem certidão espera que o pai ou a mãe o registre, espera também
o tempo da burocracia e tramitação do processo na justiça, espera os documentos
ficarem prontos e ainda espera-se por uma ação divina. É possível passar boa
parte de uma existência ou até mesmo uma vida inteira a espera de algo que pode
não acontecer: por exemplo, possuir um documento. No caso dos adultos sem
certidão de nascimento essa espera pode atravessar gerações.
A idéia da mulher esperando o homem para que ele faça o registro do filho
deles, causou-me estranhamento. Por que essa mulher espera pelo homem?
Chama a atenção o fato dessa espera ocorrer entre homens e mulheres casados
legalmente, apesar de ser muito mais comum entre companheiros e em relações
instáveis. Em relação a este item, os dados do questionário do trabalho de campo
aplicado a responsável por 29 crianças mostram o seguinte:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
122
ESTADO CIVIL DO PAI E DA MÃE
20
2
3
4
2
27
0
5
10
15
20
25
30
SOLTEIRO(A) CASADO(A) FALECIDO(A) NÃO
INFORMADO
PAI
MÃE
Interessa assinalar que das 27 mulheres solteiras, 10 moram com o
companheiro. No caso de 03 mulheres, os companheiros faleceram e em 14 casos,
elas não moram com os pais da criança.
Nos dois casos de pessoas casadas, mediante a informação de que
poderiam elas próprias registrar seus filhos, que transmiti como assistente social
do HECC, elas tomaram essa providência, encerrando a espera pelo pai.
Maria da Consolação, 36 anos, faxineira, diz que seu filho Luis Davi de 01
mês de idade, internado no HECC no ano de 2000, com problemas cardíacos,
ainda não foi registrado porque: “ O pai ainda não foi fazer”. Não sabia que pelo
fato de ser casada legalmente poderia ela própria registrar o filho. A partir dessa
informação que lhe passei, ela o registrou. Quando veio me mostrar a certidão,
estava toda contente.
Para Laurenti (1985), um fator que contribui para o sub-registro de
nascimento é a questão de filhos de pais não casados. Milanesi e Silva (1985)
também encontraram em São Paulo um índice de 12,5% para essa mesma causa.
Portela (1989) descobriu associação estatisticamente significante entre estado civil
e registro civil - em pais não casados legalmente a presença do sub-registro é
maior.
Como indica um estudo de Aparecida Vieira Melo (1998) sobre registros
de nascimentos com pais ignorados no município de São Paulo, os percentuais de
pais ignorados passaram de 9,72% em 1980 para 11,15% em 1987. Em relação
aos resultados do ano de 1994, mesmo por amostragem, o percentual de 8,77%
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
123
não deixa de ser elevado, segundo a autora. Ela assinala ainda que o sub-registro
de nascimento é maior no grupo etário de mães mais jovens e de mulheres
solteiras, podendo ser esse, também, devido ao não reconhecimento da
paternidade pelos seus parceiros.
Esperar o pai se mostra com o sentido de estar no aguardo de alguma
coisa, ficar a espera de e, em alguns casos, também como algo que se conta e que
se tem esperança que aconteça: o registro do filho pelo pai e às vezes a retomada
da relação com o homem.
Antonia, 32 anos, teve sua filha de 01 mês internada no HECC. Quando
indagada sobre porque ainda não a registrou, ela me responde:
“Estou esperando o pai aparecer para fazer o registro. Ele disse que ia
registrar, mas até agora não apareceu. Eu posso registrar só no meu nome?
Depois o pai pode mudar”?
Antonia trabalha como empregada doméstica e dorme no trabalho. No
final de semana, quando vai para casa, vê sua filha de sete anos que mora com a
avó paterna. Ao longo do trabalho de campo, em nossa conversa sobre o registro
da criança, ela se emociona e chora. Chora muito. Acrescenta:
“O pai sabe que ela está aqui. Eu não sei o que fazer porque ele não tem
contato comigo. É quando ele aparece. Se eu registrar só no meu nome, ela vai
carregar isso para o resto da vida”.
Duas semanas depois, Antonia esteve no HECC para consulta de revisão
de sua filha e veio ao Serviço Social me mostrar a certidão da criança: Emanoelle
da Silva. Conta que teve a ajuda de sua patroa. Por um lado, parecia contente em
ter agilizado a certidão; por outro, parecia triste, caminhando para conformada ao
dizer:
“É, o pai não apareceu, aí eu registrei”.
Zuleika é mãe de Pablo de 02 anos que esteve internado no HECC com
pneumonia e não possui certidão de nascimento. Ela conta que:
“Eu me separei do meu marido e ele não queria registrar seu filho. Eu
não quero registrar só no meu nome porque ele tem pai. Quero que ele tenha o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
124
nome dele. E aí o tempo foi passando, eu fui deixando. Agora que voltamos a
morar juntos ele perdeu os documentos dele. Ele disse que está tirando a segunda
via mas que ainda não está pronta” .
Dias depois, seu companheiro trouxe a certidão. Percebemos que registrar
o filho pode ficar condicionado, em alguns casos, ao momento pelo qual a relação
do casal está passando.
Uma forma de compreender essa espera por parte da mulher, é que ela está
a afirmar e reafirmar seu desejo de que seu filho tenha o nome do pai na certidão
de nascimento, a marca da origem inscrita. Algumas mulheres, no contato do
trabalho de campo, dizem: “É importante ter um pai”; “Mais tarde eu não quero
que ele me cobre”; “Puxa, é o pai dele”; “Eu não quero que ela passe o que eu
passei por só ter o nome da mãe nos documentos”; “É importante a criança ter
um pai e crescer tendo um pai”. “É direito dele saber quem é o pai”. “Eu quero
que quando ele tiver na escola ele tenha o nome do pai”.
Está a rejeitar para ela o lugar de mãe solteira e conseqüentemente de filho
de pai desconhecido para seu filho, o que ainda seria um grande peso para a vida
social. Não quer que seu filho passe por discriminações e constrangimentos por
ele ter apenas o sobrenome materno. Vemos assim, tal como Dauster (1983)
observou, que o significado da maternidade não se reduz à reprodução biológica,
ser mãe inclui o ato de criar enquanto reprodução cultural.
Thurler (2004) investiga a prática masculina de não-reconhecimento da
filha ou do filho, quando gerado fora do casamento. Para a autora, nos registros
civis de nascimento sem reconhecimento paterno, materializa-se uma importante
modalidade de deserção da paternidade. Como se a negação desse primeiro
engajamento anunciasse uma recusa da construção da parentalidade no masculino
em relação a filhos tidos fora do casamento. Tal prática inclui o não
estabelecimento do vínculo de filiação e o não engajamento na construção da
parentalidade com uma dimensão pública e cidadã. A autora prossegue dizendo
que:
“Tanto na França, quanto no Brasil, valores e pesos
desiguais envolvem não só o nome de família materno e
o nome de família paterno, mas também as reais
possibilidades de negociação da mãe na transmissão de
seu nome de família. Em um e outro país, a atribuição do
nome da mãe torna-se uma atribuição por falta (do nome
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
125
do pai), no caso de filhas e filhos nascidos fora do
casamento. Efetivamente, no Brasil, a Lei 6.015, a Lei
dos Registros Públicos, de 31.12.1973 estabelece no
caput do artigo 55: “Quando o declarante [ao fazer um
registro de nascimento] não indicar o nome completo [da
criança], o oficial lançará adiante do prenome escolhido
o nome do pai e, na falta, o da mãe” (2004, p: 246).
Em referência à inexistência do nome do pai nas certidões de nascimento
há expressões utilizadas pelas mães no cotidiano da Enfermaria de Pediatria do
HECC tais como: “espaço em branco”, “xiszinho”, “x, x, x, x”, “uns traços”, que
podem revelar uma condição interior de espaço vazio. Assim, percebemos que o
nome dado ou negado é detentor de um poder referencial e identificatório. A
nomeação patrilinear na sociedade ocidental é um dos pilares da sociedade
patriarcal, por isso, a paternidade está em íntimo contato com a nominação. O
nome tem espelhado as relações sociais de sexo. (Thurler, 2004).
Sarti (2004), ao discorrer sobre mudanças na família brasileira,
particularmente as famílias pobres, diz que:
“Não temos ainda suficiente informação, fundamentada
em pesquisas, sobre o que mobiliza as mulheres pobres a
comprovar a paternidade de seus filhos. Que sentidos
têm, para elas, a partilha financeira, mesmo num
contexto de parcos recursos? Dado o alto índice de mães
solteiras e, portanto, de crianças sem registro de
paternidade, parece haver um desejo do nome do pai na
certidão de nascimento, a marca de origem. Qual o
sentido da busca da identificação do pai, pelo filho, e do
pai do filho, pela mãe, entre aqueles que socialmente têm
seus direitos não reconhecidos e tantas oportunidades
negadas? Tais perguntas emergem também pela alta
incidência de filhos que solicitam o exame de DNA na
busca do pai desconhecido (pg. 25)”.
Um outro exemplo da importância atribuída ao sobrenome paterno em
nossa sociedade vem de uma mãe e sua filha caçula já adolescente, que conheci
por ocasião de uma visita domiciliar realizada como assistente social da Prefeitura
do Rio de Janeiro no ano de 2006 no bairro de Anchieta, zona norte da cidade do
Rio de Janeiro. Ela relatou que havia dado entrada em um processo para inclusão
do nome do pai na certidão de nascimento de sua filha. Quando seu marido
faleceu, ela estava grávida. Os avós paternos, através de depoimentos participaram
do processo confirmando a paternidade e a adolescente irá receber o nome do pai.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
126
Esta não escondia a felicidade. Como disse a mãe, era algo que a filha sempre
pedia até porque os outros irmãos possuem o nome do pai.
Silvia, moradora de Engenheiro Pedreira/RJ, já trabalhou como empregada
doméstica, mas no momento está desempregada. Só foi registrada quando adulta,
nunca foi à escola, estudou um pouco em casa. Tem um irmão que também só foi
registrado quando adulto. Possui dois filhos de pais diferentes. Um de 05 anos que
mora com a tia e a Andressa, de dois anos, internada com pneumonia no HECC e
que não é registrada. Ela me conta que ainda não registrou sua filha porque:
“Estou esperando que o pai dela faça isso. Ele fica enrolando. Pegou o
papel amarelo e a minha certidão e depois disse que perdeu a certidão. Disse
também que cobraram ele no cartório porque tinha que preencher um formulário
porque a criança já tinha dois anos e ele não tinha dinheiro” .
Mais tarde Silvia me diz que:
“Eu sou registrada só no nome da minha mãe, porque meu pai fez
igualzinho, ficou enrolando. Fui registrada há pouco tempo, quando minha filha
de 05 anos nasceu para poder registrá-la. Quero que a minha filha seja
registrada também no nome do pai, porque como o pai mora junto, fica estranho
não ter o nome dele. Quando eu era criança eu era zombada porque só era
chamada pelo nome da minha mãe. Sei que estou fazendo parecido com a minha
mãe. Mas não quero registrar só no meu nome”.
Uma semana depois, ao longo de várias tentativas (idas em casa,
telefonemas) junto ao seu companheiro, Silvia fala que:
“Estou aliviada. Tão aliviada que nem sei o quanto. Fiquei contente
porque não precisei registrar só no meu nome”.
A percepção de que a forma como se cuida dos filhos, pode obedecer a um
padrão de repetição dentro da família, traz um tom mais dramático e complexo
para a cena. Outros informantes também fazem essa reflexão. Olham para seu
passado, vêem a semelhança e querem tentar, de alguma forma, dele se distanciar,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
127
inaugurando outras práticas de atenção a seus filhos. O que nem sempre é fácil,
seja por questões culturais, subjetivas ou mesmo sociais.
Mariza Rodrigues, 26 anos de idade, é mãe de Karolaine de 01 ano de
idade, que foi internada no HECC no ano de 2000 com pneumonia, ela diz que:
“Estou esperando o pai para ele registrar, mas ele não resolve e não
deixa registrar só no meu nome”.
Mariza acabou indo ao cartório e registrando em seu nome mesmo.
Quando me mostrou a certidão, perguntei como estava se sentindo e ela disse:
“É legal. Ela é minha”.
Nesse caso, o homem, além de não registrar, impede a mulher de ir fazê-lo
só no seu nome. Não assume legalmente o filho, mas não quer tê-lo só com o
nome da mãe. Como se a isso se associasse alguma fragilidade no seu papel de
homem, pai e provedor. Opta por não assumir legalmente seu filho, talvez por ser
um padrão socialmente mais naturalizado.
Pilar conta que seu filho de 04 meses, Matheus, internado no ano de 2000
com pneumonia, ainda não está registrado porque:
“Estou esperando o pai resolver e fazer o registro. Ele diz que vai, mas
não vai. E aí passa um dia, passa outro. E também ele está trabalhando. Eu quero
registrar no nome do pai também porque ele é o pai. E também para ele não dizer
que a mulher dele é precipitada”.
Durante a internação de Matheus seu pai não veio visitá-lo. Pilar tentou
contato com ele, por telefone através de um amigo, mas não conseguiu localizá-lo.
Disse que ele é assim, às vezes some. Mas que mesmo assim quer registrar em seu
nome. Matheus saiu de alta sem ter sido registrado.
Percebemos por esses dois últimos relatos que há homens que não
registram por algum motivo e ao mesmo tempo impedem a mulher de registrar só
no nome delas ou as recriminam. Quando há alguma interferência externa, às
vezes, isso pode ser diferente.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
128
Vania diz que seu bebê que esteve internado no HECC no ano de 2000
com abscesso no peito, ainda não foi registrado porque:
“O pai falou que só vai registrar quando ela fizer 15 dias, para ver se ela
vinga”.
Segundo a mãe, o pai é auxiliar de enfermagem e falou que já está
providenciando o registro. A criança só ficou internada dois dias. Foi embora de
alta sem trazer a certidão. O registro aparece como um ato de investimento
afetivo e efetivo em uma criança. Caso ela não viva, para quê registrar? Marcaria
uma passagem - a da sobrevivência, a da vitória sobre a morte, como uma espécie
de segundo nascimento. O tempo de 15 dias dado pelo pai também pode estar
ligado ao prazo legal, já que depois será considerado como registro tardio.
A história a seguir também reforça essa perspectiva do registro de
nascimento enquanto um ato de investimento afetivo por parte do pai. Adriana, 27
anos, não trabalha, é mãe de uma criança de 09 meses de idade, Vitória
Aparecida, portadora do vírus HIV, tal qual ela, que esteve internada no HECC no
ano de 2007. Quando se relacionou com o pai de Vitória, José Aparecido, 49 anos,
proprietário de um pequeno hortifruti, ele era casado com outra mulher. Segundo
a mãe, ela ainda não registrou Vitória porque:
“Estou esperando o pai, quero registrar Vitória em meu nome e também
no nome dele. Ele queria menino e teve rejeição à menina. O pai diz que só vai
registrar a criança quando ela tiver um ano de idade e estiver andando. Se ele
não registrar, vou registrar no meu nome e depois boto o pai na Justiça. Ele tem
medo de fazer o DNA”.
Podemos aventar a hipótese de que esse raciocínio do pai poderia estar
ligado ao fato de Vitória ser portadora de uma doença crônica e ter dúvidas quanto
a sua expectativa de vida. Também porque, como sinaliza Adriana, ele é casado e
a mulher dele não quer que ele registre a criança. No entanto, após várias
tentativas do Serviço Social do HECC (telegramas, telefonemas, busca de contato
com outros familiares) a criança foi registrada no nome dos pais.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
129
Paula que teve seu filho de dois meses internado no HECC no ano de 2000
com pneumonia, conta que:
“Meu filho ainda não foi registrado porque o pai estava se alistando e
não podia dizer que tinha filho porque se não sobrava. Como ele sobrou agora já
pode registrá-lo”.
Diz ainda que:
“O pai vem visitar o filho todos os dias. Diz que vai providenciar a
certidão, mas não faz. Eu até poderia tirar só no meu nome, mas quero que tire
no nome dele também porque ele é o pai e moro com ele”.
Dois dias depois o pai registrou a criança: Caíque. Paula veio me mostrar a
certidão e estava visivelmente satisfeita, dizendo:
“Só assim para ele tirar a certidão. Só assim. Precisou o filho ficar
doente. Ele tinha medo de tirar a certidão porque se a gente se separasse e ele
não desse nada para o filho eu dizia que ia botar ele na justiça. Por isso que eu
falei pra senhora ligar”. E toda contente acrescentou: “Agora o meu filho
existe”. Olhando para Caíque falou: “Agradece a tia”. A tia era eu.
Ao mesmo tempo pareceu-me que nem sempre essa espera é uma espera
passiva. Na verdade, entra em cena o poder de persuasão da mulher. No contexto
do HECC, algumas mulheres aproveitam as exigências institucionais para
pressionar os homens, ao passo que outras se envergonham ou se retraem.
Algumas pediam para a assistente social ligar para o pai ou chamá-lo no HECC;
outras vezes elas próprias ligavam ou mandavam recados pela “sogra”, patrão,
para comparecerem ao HECC porque a assistente social estava pedindo a certidão.
Uma mãe chegou a ir procurar o pai pessoalmente.
O desejo do nome do pai também está ligado à possibilidade de poder
pedir pensão alimentícia e de certa forma, forçá-lo a assumir obrigações com seu
filho, o que de outro modo acreditam que não aconteceria: “O pai não quer
registrar para não ter que pagar pensão”; “Ele é casado”; “Ele tem medo que eu
bote ele na justiça”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
130
Num contexto de parcos recursos, a partilha financeira tem seus
significados. Mesmo sabendo que o valor possível é baixo, algumas mulheres
querem esse dinheiro, já que é direito de seu filho. De certa forma, apontam que
qualquer coisa que entra ajuda. Algumas me disseram que pagam o leite com esse
dinheiro, um remédio que precise. Outras nem tentam a pensão porque dizem que
ele não ganha nada, está vivendo de bico. E dizem: “Vou pedir o que a ele”?
Ainda outras relatam que não sabem do pai, que não têm como encontrá-
lo. Quando ocorre a internação no HECC temos uma mulher atada a um filho
doente que está internado num hospital. De certa forma, é como se ela também
estivesse internada. Muitas delas perguntam, Quando vou ter alta? Quando vamos
ter alta? Eu já estou de alta? O processo de internação, ainda que por pouco
tempo, marca uma separação, um isolamento do mundo da rua.
Conseqüentemente, as possibilidades de localizar este pai diminuem e o processo
de espera pelo homem, para que ele registre seu filho, torna-se mais complicado.
Localizar o pai é uma questão presente também nos processos legais de
reconhecimento de paternidade. Se não for encontrado, em última instância
poderá ser considerado pai para efeitos legais.
Pedir pensão aparece também como uma forma de se vingarem ou fazerem
justiça, pois algumas mulheres se sentem traídas. Há casos em que o homem é
casado com outra mulher ou tem uma outra companheira e filhos. Também há
situações em que se sentem enganadas, pois alguns homens não cumprem o que
dizem.
Em toda minha experiência de trabalho com essa temática, ouvi somente
de uma mãe no HECC que ela tinha dúvida em relação à paternidade de seu filho,
e de uma outra mãe, que sabia que o filho não era de seu atual marido, estando em
conflito para resolver a questão do registro.
Nessa direção, algumas mulheres apontam que o fato do pai registrar não
significa que necessariamente vá cuidar do filho, dar afeto e/ou dinheiro. Por isso
mesmo, ainda que de forma menos freqüente, algumas mulheres sinalizam que
não querem o nome do pai na certidão de nascimento de seu filho. Falam assim:
“Depois ela está crescidinha e ele aparece e diz: “Ah, minha filhinha”. Eu não
quero isso. Eu criei sozinha”; Ou então: “Só botar o nome? Não precisa, eu
mesma faço”; E aInda: “Ele disse que quando ela fizer 15 anos ele vinha pegar
ela. Safado, ainda bem que morreu”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
131
Aparece de certa forma, a idéia da mulher como vítima de um homem
safado que não assume as conseqüências dos seus atos e o fato de que acaba
sobrando para a mulher toda a responsabilidade em relação ao filho.
A espera da mulher também está ligada ao fato do homem duvidar de que
a criança seja seu filho. No questionário, essa questão apareceu em 02 casos.
Valquíria, 22 anos, não trabalha, é moradora da Baixada Fluminense, e
teve seu filho iternado no HECC em 2001. Vive com seu companheiro há 07 anos.
Ela diz:
“Meu filho não foi registrado porque tive complicações nos pontos depois
do parto. Também porque o pai fica enrolando, é acomodado e trabalha o dia
todo. O pai dele diz que o filho não é dele. Ficamos separados um tempo, e
quando eu voltei para ele eu estava menstruada. Ele sabe disso, mas diz que não
acredita.”
Está entristecida e raivosa, pelo fato dele desconfiar dela, não quer vê-lo e
deseja se separar. Diz:
“Vou registrar meu filho só no meu nome. Tem muita mulher que faz
assim”. Mais tarde, um pouco mais calma Valquíria conta que: “Eu não sei
andar na rua sozinha. É melhor ligar para ele”.
A pedido de Valquiria, ligo para seu companheiro, Marcos Paulo, como
assistente social do HECC, e deixo um recado. No dia seguinte, ele retorna a
ligação. Diz que já foi a dois cartórios e que o mandaram para outros. No dia
seguinte ele vai ao HECC com a certidão da criança que foi registrada como
Marcos Daniel. Marcos, como o pai, que acha que o filho não é dele. Diz, irritado,
que lhe cobraram uma taxa e que era o dinheiro da passagem dele da semana. A
dúvida do homem que se outorga esse direito é historicamente fator gerador do
sub-registro de nascimento.
Cardoso (2003), em pesquisa recente sobre o município de Centro Novo
do Maranhão, localizado no estado do Maranhão, onde o índice de sub-registro de
nascimento e de óbitos é elevado, informa que os principais motivos encontrados
para o não registro foram a “falta de interesse dos pais”, “o pai não reconheceu a
paternidade” e a falta de documentos dos pais.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
132
Entra em cena, a clássica dúvida quanto à paternidade e a certeza da
maternidade que sempre funcionaram como o suposto fundamento “natural” que
servia de pretexto a costumes, pactos familiares e relações de gênero que
estruturaram a família durante tanto tempo (Sarti, 2002).
Subjacente a essa questão está a idéia herdada do direito romano de que na
verdade, o homem só pode ter certeza de que de fato é pai do filho de uma mulher
se tiver exclusividade sexual sobre ela. Exclusividade suposta e protegida no
casamento legal. Enquanto “a mãe é sempre certa”, “o pai é sempre presumido” e
deve ser legalmente reconhecido como tal. Daí a importância do casamento legal
para a definição de filiação e parentesco e, por conseguinte, para as questões de
herança e sucessão (Bilac, 1999).
Esperar pelo homem parece ser de certa forma, o lugar reservado à mulher,
pela legislação brasileira ao definir que, com exceção de pais casados, a filiação
paterna somente pode ser transmitida pelo próprio pai. Trata-se segundo Verucci
(2002), da ideologia da mentira presumida da mulher, permeando leis e
jurisprudência no país relativamente à paternidade dos filhos.
Segundo Thurler (2004), isso faz com que recaia sobre a mulher o ônus de
provar essa paternidade, sem o que ela permanece desautorizada a declará-la em
qualquer instância, para que sejam produzidos documentos de suas crianças.
A autora prossegue dizendo que a partir dos anos noventa com os
progressos da genética para a investigação da paternidade e a possibilidade da
mãe indicar em separado o nome do pai, já na oportunidade de lavrar o Registro
Civil de Nascimento, as suspeitas pairando sobre a mulher foram relativizadas,
mas as relações sociais de sexo mantiveram sua dinâmica com a cuidadosa
preservação da superioridade legal dos homens.
Durante a primeira metade do último século, filhos “naturais”, frutos
ilegítimos de uniões consensuais ou de casais cuja relação não estivesse
legalmente oficializada, haviam conquistado certo terreno – no que diz respeito ao
direito de reconhecimento da paternidade e da reivindicação dos direitos de
herança. No entanto, foi somente a partir de 1949 que a Lei 883 permitiu a um
homem casado reconhecer a criança nascida de uma relação extraconjugal e,
mesmo então, apenas depois da dissolução legal (desquite) do seu casamento. Esta
lei permitiu à criança nascida de uma relação adúltera mover uma ação de
reconhecimento da paternidade contra o seu reputado pai. Contudo, mesmo após o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
133
reconhecimento oficial de um vínculo de parentesco, a criança de uma relação
extraconjugal (assim como a criança adotada) somente poderia reivindicar bens e
valores que não ultrapassassem a metade do montante normal de um herdeiro
“legítimo”. Esta forma de discriminação contra os filhos de relações extra-
matrimoniais esvaeceu com a lei do divórcio de 1977. Esta assegurava que, uma
vez reconhecido em testamento fechado, o vínculo filial era irrevogável, e tal filho
teria plenos direitos de herança. Contudo, foi apenas com a Constituição de 1988
que o princípio da igualdade entre todas as crianças se tornou imperativo. Hoje é
absolutamente irrelevante sob quais condições um casal concebeu um bebê. Em
qualquer caso, a criança terá direitos iguais àqueles de qualquer progenitora
“legítima” nascida desta mãe ou daquele pai. Além disso, desde 1992 a Lei 8560
reforça a igualdade de direitos das crianças nascidas de relações extra-
matrimoniais, decretando a assistência pública para investigações no caso de pais
relutantes e proibindo a menção discriminatória de “legítimo” ou “ilegítimo” na
certidão de nascimento de uma pessoa (Fonseca, 2005).
Com a difusão do exame de DNA que permite a identificação da
paternidade, o processo de mudanças familiares ganha novo impulso: a certeza da
maternidade e a dúvida da paternidade deixaram, em princípio, de ser esse suposto
fundamento natural. O exame de DNA, essa nova intervenção tecnológica, diz
respeito ao homem em seu lugar de pai e introduz tensões no lugar masculino
dentro da família que até então continuava razoavelmente preservado nas suas
bases patriarcais (Sarti, 2004, p. 24).
Como expressa Bilac (1999 p.19,): “Da perspectiva do direito, os homens
nunca foram tão responsáveis por sua reprodução biológica como no presente
momento da história”.
A forma como a lei e a tecnologia chegam às pessoas e grupos varia
conforme o contexto e as circunstâncias produzindo impacto e significados
diferentes. No processo de trabalho de campo, percebi que muitas pessoas
desconheciam a Lei da Gratuidade do Registro Civil, a Lei da Paternidade e várias
pareciam não saber o que era o exame de DNA.
Hilda Helena, 24 anos, que teve sua filha Grazieli de 01 mês internada no
HECC no ano de 2000, quando indagada por mim sobre se chegou a pensar em
mover uma ação de reconhecimento de paternidade, diz que:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
134
“Eu não pensei em botar ele na justiça. Eu não quero a justiça, nem esse
negócio de DNA. Porque quando ele fez o filho, na hora lá ele não precisou da
justiça e nem provar nada. Safado, ainda bem que morreu”.
Diante da recusa do pai em registrar, Hilda Helena o fez só em seu nome.
Hilda Helena parece nos dizer que se não for pelo vínculo com ela e com o
filho, por vontade própria, ela não precisa desse homem. Para ela valeria mais a
intimidade do casal em produzir a sua verdade. Recusa uma interferência externa,
um agente do Estado regulando essa relação e a definição de quem é o pai pela
ciência. Até porque, como ela diz: “Ele não valia muito”. Mais do que um papel,
um documento, a certidão fala do significado da concepção e gestação da criança
e da qualidade da relação entre seus pais.
Já Priscilla, 22 anos, vendedora, que teve sua filha Letícia de 03 meses
internada no HECC em 2002, traz uma outra dimensão do teste de DNA. Ela
conta que ainda não havido registrado sua filha porque:
“Ela não foi registrada porque eu tinha perdido o pai dela, com sete
meses de gravidez e eu queria registrar no nome do pai. Eu queria registrar no
nome do pai, eu queria porque eu queria, pelo menos queria que a minha filha
tivesse o nome do pai, mas como ele era filho adotivo, entendeu e ele não era
registrado
no nome da mãe dele, era registrado no nome da mãe verdadeira,
não da mãe que adotou ele entendeu, que pegou a guarda provisória dele até
vinte e um anos. Aí eu não tinha como porque ele já tava morto, aí não tinha....
Pra mim poder registrar tinha que fazer a exumação do corpo dele e a exumação
foi feita agora, depois de três anos, só que a mãe dele falou: - Deixa pra lá, eu
sei que é mInha neta, é a cara dele mesmo, e você sabe que é filha dele, ele já
registrou, deixa pra lá que isso vai dar problema, ficar puxando o passado”.
Priscilla via no teste do DNA o caminho para que sua filha tivesse o nome
do pai que tanto queria essa criança e nem chegou a vê-la, mas diante dos
conselhos da sogra acabou não fazendo. Também é Priscilla quem traz a
perspectiva do exame de DNA ser usado pelas mulheres quando o pai demora a
registrar ou não registra a criança. Ela aconselha as mulheres a registrarem seus
filhos no nome delas para, depois, entrarem na justiça, e correrem atrás do nome
do pai.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
135
A comprovação da paternidade é aqui reivindicada. A justiça e o exame de
DNA aparecem assim como uma forma de proteção da criança e da mulher.
Priscilla aponta um caminho para que a mulher não deixe de registrar seus filhos,
não os faça ter só o nome da mãe na certidão e não fique esperando o pai.
Fonseca (2005) estuda questões ligadas à paternidade brasileira no
contexto dos testes de DNA. A autora realiza uma etnografia na cidade de Porto
Alegre onde acompanhou processos legais de paternidade. No espaço do Juizado,
esperando pelas audiências, encontrou filhos de pais desconhecidos, recém-
nascidos no colo, bebês engatinhando e também adolescentes. Encontrou mães
que tentam arrancar de seus ex-companheiros e pais o cumprimento de seus
direitos familiares. A autora relata que se deparou durante a pesquisa com, “...
uma grande variedade de situações: disputas envolvendo jovens solteiras e suas
namoradas, homens casados e suas amantes, homens “amigados” que renegavam
em registrar seus recém-nascidos, ex-maridos que queriam evitar pagar pensão
alimentícia (p: 05)”.
Assinala que todos os casos apontam para o caráter essencialmente social e
não biológico do sentimento paterno, pois passam, antes de qualquer coisa, pela
relação que o homem tem com a mãe da criança:
“O sangue conta, sim – tanto que a paternidade “social”
na maioria dos casos, se calça na crença de uma relação
biológica. No entanto, há homens que, por não ter
afinidades com a mulher, rejeitam qualquer relação com
o filho; e, contrariamente, existem homens (em particular
padrastos) que assumem o status paterno, mesmo
sabendo que não existe fundamento biológico nenhum
para essa relação. Ao que tudo indica a biologia nunca
foi o sine qua non da paternidade – certamente não da
perspectiva dos homens (p: 5)”.
A questão da espera pelo pai também explicita uma outra questão:
diferenças na fratria. Há pais que registram alguns filhos e outros não. Encontrei
essa realidade por diferentes motivos: perda de documentos, pai acha que o filho
não é dele, pai que sabe que a filha é fruto de uma traição da mulher e a registra e
não registra as suas biológicas, porque na época os pais estão brigados, pai que era
casado com outra mulher e não podia registrar um filho tido como ilegítimo
anteriormente e ainda porque no momento o pai conseguiu um emprego e ficou
sem tempo disponível.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
136
Miriam, 30 anos, não trabalha. Teve seu filho de dois meses internado no
HECC no ano de 2000 e conta que:
“Estou esperando que o pai apareça e registre em seu nome como fez com
os outros quatro”.
Ela está separada do pai das crianças e ele vive com outra mulher. Ela
continua na casa em que moravam no terreno do ex-sogro. Está aflita para ir para
casa ver os filhos porque não tem quem os olhe. Pediu à vizinha para “passar a
vista”. Cinco dias depois, Miriam registrou e trouxe a certidão: Lavínia Évora.
Algumas mulheres sinalizam que registrar uma criança é obrigação,
responsabilidade do homem e da mulher, do pai e da mãe, mas que é uma tarefa
dos homens. Eles deveriam ir ao cartório, porque elas estão na maternidade, de
resguardo, cuidando do bebê e amamentando. O que vai ao encontro dos padrões
sociais dominantes da nossa sociedade, do modelo de família tido como correto.
Esperar o homem para que ele registre, pode ser entendido como uma
forma de forçá-lo a corresponder à expectativa que a mulher tem e a assumir o que
se espera dele, que ele faça a parte dele: o estabelecimento de relações com o
mundo da rua - ir ao cartório e efetivar o registro de nascimento. Trata-se de uma
maneira das mulheres se resguardarem, ao não terem que tomar para si mais esse
papel, o da relação com o mundo externo. Explicita uma vulnerabilidade da
mulher, em ter a sua relação com o mundo externo mediada pelo homem, o que
reproduz as diferenciações de gênero. Algumas mulheres não sabem andar pelos
lugares, têm vergonha de não saber ler e escrever, vergonha do filho ainda não ser
registrado, receio de serem tratadas mal nos espaços públicos, não são do Rio de
Janeiro e estão na cidade há pouco tempo ou mudaram de bairro recentemente.
Para outras, isso não faz a menor diferença, pois estão acostumadas a trabalhar, a
circular pela cidade e a se virar desde cedo. No entanto, ainda assim, muitas
esperam para que o homem faça o registro da criança. Terá essa questão alguma
relação com a identificação do homem enquanto uma dimensão de autoridade
moral pela mulher?
Essa realidade remete aos estudos de Fonseca (2002). Para esta autora,
haveria no universo simbólico dos pobres uma divisão complementar de
autoridades entre o homem e a mulher na família, que corresponde à diferenciação
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
137
que fazem entre casa e família. A casa é identificada com a mulher, e a família
com o homem. Casa e família, como mulher e homem é percebido como um par
complementar, mas hierárquico.
“Em consonância com a precedência do homem sobre a
mulher e da família sobre a casa, o homem é considerado
o chefe da família e a mulher, a chefe da casa. O homem
corporifica a idéia de autoridade, como uma mediação da
família com o mundo externo. Ele é a autoridade moral,
responsável pela respeitabilidade familiar. À mulher
cabe outra importante dimensão da autoridade: manter a
unidade do grupo. Ela é quem cuida de todos e zela para
que tudo esteja em seu lugar (p 28)”.
No entanto, assinala a autora, estão em jogo papéis e expectativas
femininas e masculinas que nem sempre podem ser atendidas devido às
dificuldades enfrentadas, como o desemprego e as uniões instáveis. Em relação à
freqüência das rupturas das uniões instáveis, a autora considera que se devam às
dificuldades de atualizar o padrão conjugal por conta da vulnerabilidade da
família pobre.
Em relação à incerteza do trabalho, a autoridade masculina é seguramente
abalada se o homem não garante o teto e o alimento dos seus. Nesse sentido, o
homem pode se sentir fracassado, pois não é fácil desempenhar o papel de
provedor. A desmoralização ocorrida pela perda de autoridade, abalando a base de
respeito que lhe devem seus familiares, significa uma perda para a família que
tenderá a buscar uma substituição. Desencadeiam-se, assim, arranjos que
envolvem a rede de parentesco como um todo, a fim de viabilizar a existência da
família.
No universo que pesquisei, os empregos são incertos, em sua maioria, e
também as relações instáveis, o que concorre para naufragar sonhos e projetos,
provocando um rebatimento claro na questão do registro de nascimento das
crianças. A fala de Monique é uma evidência nesta direção. Ela só foi registrada
em 2007, aos 26 anos, e teve seu filho Jair de 02 anos internado recorrentemente
no HECC, sem certidão de nascimento.
Estando no plantão no HECC como assistente social, Monique vem até
minha sala porque está sem documento e o guarda não a deixa ir até a cantina e
depois retornar para a Enfermaria. Visivelmente cansada e chateada, meio indócil,
me diz a queima roupa.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
138
Monique - “A única coisa que eu tenho inveja na vida é de quem tem uma
família certinha. A minha não é”.
Tula - “Como assim”?
Monique – “Não é como eu sonhei. Uma família certinha, o homem que vem
ver a família, o filho doente no hospital, um homem que registra o filho”.
Tula – “O Alex não veio aqui”?
Monique – “Não veio dia nenhum. Estou com a mesma roupa desde sexta-
feira. Ninguém veio aqui ver. Tem que ir lá no Conselho Tutelar buscar o papel
pra registrar. Como eu vou?”.
Tula – “Vocês não foram ao Conselho?”.
Monique- “Não tem mais jeito. Eu quero que ele saia de casa. Ele fica
empatando eu. Eu poderia dar o meu jeito pra me virar sem ele”.
Tula – “Que jeito?”.
Monique- “Tem um coroa lá em cima, lá perto, que quer me ajudar”
(Registro pessoal - 2007).
Vemos assim, tal como aponta Sarti (2004), que os planos da mulher de
melhoras pelo casamento se vão. No caso de Monique, o que ela enxerga de
caminho na vida fora da relação em que se encontra há 12 anos é uma espécie de
prostituição. Caminho já adotado por Eliana, outra informante e também adulta
sem certidão. Há ainda um processo de sofrimento por não ter uma família e um
homem que correspondam às suas expectativas. Isto remete às idéias de Sarti
(2004). A autora afirma que as mudanças na família são difíceis por que:
“As experiências vividas e simbolizadas na família têm
como referência a respeito de si própria as definições
cristalizadas que são socialmente instituídas pelos
dispositivos jurídicos, médicos, psicológicos, religiosos e
pedagógicos, enfim, pelos dispositivos disciplinares
existentes em nossa sociedade, os quais têm nos meios
de comunicação um veículo fundamental, além de suas
instituições específicas. Essas referências constituem os
“modelos” do que é e como deve ser a família, ancorados
numa visão que a considera como uma unidade biológica
constituída segundo leis da “natureza”, poderosa força
simbólica (p.23)”.
Quando o homem posterga o registro e a mulher espera por ele, muitas
vezes, a mulher fica de frente com o fato de que, para diferentes pessoas, às vezes
para ela própria, o pai de seus filhos é tido como um homem “acomodado,
preguiçoso, encostado, relaxado, descansado, safado, irresponsável, que fica
dizendo que vai, mas não vai e que vive adiando as coisas, deixando para
amanhã”. É a constatação de que a sua família não corresponde ao modelo
veiculado como ideal, tido como padrão social. Como indica Sarti (1996), a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
139
literatura sobre famílias pobres no Brasil confirma a possibilidade de estabelecer
uma relação entre as condições sócio-econômicas e a estabilidade familiar,
mostrando uma relação entre pobreza e chefia feminina. O que para a autora
significa dizer que as famílias desfeitas são mais pobres e, num círculo vicioso, as
famílias mais pobres desfazem-se mais facilmente.
A partir do trabalho de campo no HECC, podemos falar de cinco tipos de
homens que não registram os filhos: aquele que desaparece, aquele que a mulher
sabe de seu paradeiro, mas ele não assume, aquele que é companheiro da mulher e
mora com ela, aquele que é casado com outra mulher e ainda o que é casado com
a própria mulher. Por que esse homem demora a registrar ou se omite? Fonseca
(2005) indica que os homens se dão o tempo de não registrarem imediatamente
como uma espécie de margem de manobra, para decidirem se vão ou não assumir
a criança e se irão oficializar esse vínculo.
Ao mesmo tempo, nem sempre não registrar a criança significa que aquele
homem não seja um bom pai aos olhos daquela mãe. Algumas dizem que apesar
de não registrar, ele é bom pai, não deixa faltar nada. Mas, não registra.
Thurler (2004) mostra, em sua pesquisa, depoimento de uma liderança de
Pernambuco que relata que tem encontrado inúmeras mães que não registram seus
filhos à espera da disposição paterna em reconhecer sua criança. A autora
investiga a incidência de não reconhecimento da paternidade nos registros civis de
crianças nascidas no Brasil anualmente. Analisou dados de dez cartórios do
Distrito Federal e acompanhou as experiências de busca do pai realizadas pelo
Ministério Público da Bahia, na cidade de Simões Filho e pelo Ministério Público
no Distrito Federal.
Para ela, o fenômeno sociológico da deserção da paternidade seria fator
importante no quadro brasileiro de sub-registro e de registros tardios de
nascimento. Acredita que apesar de naturalizado, é socialmente construído pela
via jurídica, histórica, política, cultural e envolve questões de cidadania e de
democracia, além de questões de desigualdade nas relações sociais entre os sexos.
Articula-se a formas de sociabilidade masculina e feminina e a dadas relações
sociais entre os sexos.
Por isso, a autora crê que é possível também socialmente, desconstruir a
naturalização do não reconhecimento paterno e construir o que chama de uma
ética do reconhecimento.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
140
Quando não se espera pelo homem ou se desiste de esperar, o que ocorre?
Muitas mulheres acabam desistindo de esperar e registram a criança somente em
seu nome, uma formalização da relação já existente de crianças sem o
reconhecimento paterno. Algumas na esperança de que mais tarde eles possam
querer incluir seu nome, como uma mãe me perguntou uma vez: “Estou pensando
em registrar só no meu nome. Eu posso fazer isso? Depois o pai pode mudar?”
Ou ainda, como uma decisão tomada: “Vou registrar só no meu nome. Tem
mulher que faz assim”.
Maria Paula diz que ainda não registrou seu filho Adriel de 04 meses
porque:
“O pai não foi providenciar. Vou registrar só no meu nome”.
Já Ana, 21 anos, moradora do Morro da Fé na Penha, bairro da zona norte
da cidade do Rio de Janeiro, que teve seu filho de 03 meses internado no HECC
com bronquite e pneumonia, traz outra dimensão dessa atitude da mulher ao
registrar somente em seu nome. Indagada por mim, enquanto assistente social do
HECC, o porquê não registrou seu filho, ela diz:
“Eu ainda não registrei porque não quero registrar no nome do pai. Ele é
muito violento. Vou registrar só no meu nome”.
No ano de 2007, conversei com outra mãe que estava com seu filho no
HECC e ela também mostrou o mesmo receio de Ana, o medo de registrar o filho
no nome do pai da criança já que ele era agressivo. Nesses dois casos poderíamos
pensar o ato de não registrar, em alguma medida, como uma forma de proteção à
criança.
Para algumas mulheres o momento do registro da criança é vivido muitas
vezes como abandono. Sentem-se fragilizadas, choram e destilam a raiva dos
homens. Certa ocasião no ano de 2004, como assistente social do HECC,
acompanhei junto com outra assistente social da equipe, uma mãe, Selma, que iria
registrar seu filho que estava internado no HECC, mas que precisava de duas
testemunhas. Um pouco por dificuldade de compreensão e muito por desejo, ainda
no ato do registro no cartório, ela queria colocar o nome do pai da criança, por
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
141
mais que tivéssemos explicado para ela. Ele morava com ela. Aproveitou e
registrou sua outra filha: Bruna de10 anos.
Aproveitamos a ida à Madureira, bairro da zona norte da cidade do Rio de
Janeiro, próximo ao HECC e passeamos um pouco com Selma e suas crianças.
Nesse dia, ela andou em uma escada rolante pela primeira vez.
O não reconhecimento da paternidade, a espera pelo pai biológico para que
ele registre, leva algumas mulheres a registrarem seus filhos no nome do novo
companheiro. Prática corrente, sabida como crime, muitas vezes com o próprio
filho sabendo, é vivida muitas vezes como a concretização de uma relação já
existente, é o companheiro quem cria a criança.
Alice, 30 anos de idade, é mãe de Leonardo, de dois anos, internado no
HECC com pneumonia e que não está registrado. Possui mais dois filhos, um de
05 anos (que mora com a avó paterna), do seu antigo companheiro e pai de
Leonardo também e um bebê, filho de seu atual companheiro. Moram numa casa
emprestada da igreja, ela trabalha como doméstica e ele como serviços gerais em
Ipanema. Alice diz que ainda não registrou Leonardo porque:
“Eu passei o documento de nascido vivo para o pai e ele não registrou. Ele
disse que perdeu o papel do hospital e que não vai registrar. Agora eu não tenho
mais contato com ele. Vou registrar no nome do meu companheiro. Eu quero e ele
também, porque é ele quem cria o menino”.
Vemos assim que muitos homens assumem a paternidade de crianças que
não são seus filhos biológicos, sem adotá-los. No vácuo deixado pela ausência da
figura do pai, tios, avós, novos companheiros, desejam e muitas vezes assumem a
paternidade de seus sobrinhos, netos e enteados. Seja registrando-os, seja
assumindo os cuidados com eles.
Há homens que relutam em assumir a paternidade, outros já assumiram a
paternidade de filhos de suas companheiras na prática e outros, inclusive, já os
registraram e há ainda aqueles que gostariam de fazê-lo.
De certa forma, no vácuo deixado pelo pai da criança, seja no registro, seja
na efetivação dos cuidados e na sobrevivência, uma nova figura vai assumir esse
papel. Seja a própria mãe, outras mulheres, um novo companheiro ou o irmão da
mãe. Ressurge assim, como aponta Sarti (2004), a clássica figura entre os pobres
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
142
urbanos do irmão da mãe. Ele vai mediar a relação com o mundo externo,
garantindo a respeitabilidade de seus consangüíneos. Configurando uma espécie
de substituto do marido quando a mulher é abandonada.
Essa situação foi encontrada no relato de Priscilla, 22 anos de idade,
vendedora, mãe de Letícia de 03 meses. Em entrevista em sua casa, ela conta que
seu irmão, logo após a morte de seu companheiro, queria registrar sua filha.
Priscilla teve medo que, depois, ele pegasse a filha dela para ele. Ao mesmo
tempo dizia sentir um incômodo com essa situação, porque seu irmão não é o pai
de sua filha, apesar de saber que queria ajudá-la.
Seria possível também indagar se a espera da mulher pelo homem fala de
permanências e mudanças nos padrões da relação entre homens e mulheres, entre
mães e pais, que se relacionam com ambigüidades da própria sociedade brasileira.
Nessa perspectiva, no conjunto de 29 responsáveis que responderam ao
questionário, 20 apontaram o fato de que estavam esperando o pai para registrar o
filho. Interessa acrescentar que dessas 20 mulheres que estavam esperando o pai,
em 10 casos as crianças foram registradas no nome dos pais, em 06 casos foram
registradas no nome da mãe, 03 crianças ainda permanecem sem registro e em 01
caso não tenho a informação. Assim, do ponto de vista de alcançar o objetivo de
que o pai registrasse a criança em seu nome, poderíamos perguntar: essa espera
por parte da mulher valeu a pena? Já que das 20 mulheres, 10, de certa forma,
alcançaram, ao menos em parte, o que buscavam?
Podemos pensar, então, essa espera, não somente como submissão, mas
também como persuasão, atitude? Configura como uma forma de luta e em alguns
casos de conquista, pelo direito ao nome do pai, mesmo num contexto onde tantos
direitos são negados?
Penso em permanências no sentido de que essa espera, como já indicado,
diz de certa forma, de uma relação marcada por uma forte hierarquia entre o
homem e a mulher que remete aos padrões patriarcais, nos termos de Sarti (1996).
Esta autora chama de patriarcais as relações que reiteram a hierarquia entre o
homem e a mulher, os adultos e as crianças e reafirmam essas fronteiras a cada
gesto que mostram convenções tradicionais.
Como permanência, ainda que com mudanças, a legislação brasileira
relativa ao registro civil de nascimento, reserva à mulher que não é casada
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
143
legalmente, um lugar de compasso de espera já que, como assinalei, ela não pode
registrar o filho em nome do pai.
Também instrumentos da área da saúde, como a DN que não coletam
dados relativos ao pai contribuem para o reforço de relações hierarquizadas
(Thurler, 2004).
Mas, tento buscar também o que poderia considerar como sendo alguma
mudança, ou diferença nessas relações. Penso se a empiria, em algum aspecto,
não aponta fissuras no modelo de família considerada nuclear ao mostrar
diferentes configurações familiares, laços esgarçados, conflitos e um homem em
vários momentos enfraquecido na sua função de provedor diante de um quadro
econômico e social adverso. O próprio ato de registro civil da criança, como visto
na presente tese, já aponta para essa desnaturalização da família ao mostrar que é
passível de indagações e negociações e que há distintas formas na sociedade
brasileira de viver esse ritual. Nesse sentido, há mulheres que não esperam pelo
pai, elas próprias registram os filhos em seu nome.
O exame de DNA, ainda que embrionariamente, aparece como uma
possibilidade, um instrumento de luta da mulher para fazer valer seus direitos e de
seus filhos.
A espera pela mãe para que o pai registre a criança guarda uma relação
com a questão dos documentos, na medida em que muitas vezes o homem
também adia a ida ao cartório por conta de problemas com os documentos
4.1. 2
O mundo dos documentos
O segundo motivo para o não registro das crianças, que aparece com maior
recorrência (caso de 14 pessoas) nos dados do questionário, diz respeito à questão
dos documentos:
“Eu sou mãe e ainda não fui registrada. Não posso registrar
meu filho”;
Eu só fui registrada com o primeiro nome porque morava num
orfanato”;
“Não tenho documento, só a certidão”;
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
144
“Eu perdi meus documentos e não tirei outros”;
“Eu só tenho o título”;
“Meus documentos estão com outra pessoa”;
“Meus documentos estão em outro estado”;
“Meus documentos estão manchados por causa da enchente”;
“Deu rato lá em casa e está tudo rasgado”;
“O papel da maternidade veio trocado”;
”O nome da mãe veio escrito de forma errada”.
“Eu perdi o papel da maternidade”;
“Meu marido rasgou meus documentos”;
”Meu marido rasgou e queimou os meus documentos e de meus
filhos”. ·
“Minha sogra não devolve meus documentos”;
“Eu estava preso e fiquei sem documentos. Agora vou tirar tudo
de novo”.
Betânia, 35 anos, trabalha como empregada doméstica e possui 05 filhos,
dos quais três não são registrados. Um de 14 anos, um de 13 anos e o que está
internado no HECC com crise de bronquite de 02 anos de idade. Segundo ela, o
pequeno ainda não foi registrado porque:
“Eu perdi a minha certidão e não tenho nenhum outro documento”.
Somos assim levados a indagar sobre a necessidade dos documentos para
essas pessoas. No cotidiano, o que faz do documento algo necessário, já que boa
parte destas pessoas não está inserida no mercado de trabalho formal, não possui
conta no banco, não estudou, não faz compra a crédito ou o faz no nome de outras
pessoas da família e não viaja em transportes que solicitam documentos? A
perspectiva de que venham a usá-lo são pequenas, pois a vulnerabilidade em que
vivem é grande.
Parece existir uma espécie de vácuo entre o fato dos informantes
considerarem a certidão de nascimento um documento importante, em muitos
casos modelando a própria subjetividade como condição de existência e
demorarem a “tirar” ou não “tirarem” a certidão do filho ou a própria, no caso dos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
145
adultos sem certidão de nascimento. Será que, somada à questão da espera da
mulher pelo homem, das dificuldades das pessoas em permanecerem com
documentos em dia, um dos fatores que leva ao sub-registro de nascimento, não é
o fato de que para os pobres a individualidade não é um valor forte. Isto é o que
aponta Cynthia Sarti (1996), acrescentando que neste contexto as relações são
movidas pela precedência do todo, da família. Registrar uma criança é um ato de
investidura na constituição do indivíduo. Seria essa questão uma ambigüidade?
Para a autora, a família como valor viabiliza e molda os modos de vida dos
pobres, sendo o parâmetro simbólico que estrutura sua explicação do mundo,
entendendo que a família pobre não se constitui como um núcleo, mas em rede, o
que dificulta sua individualização, ao passo que viabiliza sua existência.
Ao mesmo tempo o grupo pesquisado na presente tese encontra-se exposto
a variadas formas de individualização, que o consumo, o mundo do trabalho e a
vida na cidade impõem.
Nesse contexto, há indícios de que a oferta do Programa Bolsa Família do
Governo Federal, na área do HECC, ampliou o número de pessoas com
documentos.
Suzana, 25 anos, mãe de Larissa de dois anos de idade conta que ainda não
registrou sua filha por que:
“No documento do hospital a minha filha foi colocada como menino. Ela
nasceu em casa e duas testemunhas foram ao hospital e falaram o sexo errado.
Eu já tentei registrar e não consegui. Me mandaram para a maternidade. Eu já
fui lá, mas só atendem na quInta-feira. É como se a minha filha não existisse
para o mundo”.
Ao longo da internação de Larissa, em que ela esteve gravemente doente,
Suzana demonstrou uma grande preocupação em dizer que a filha era sua. Ficou
estressada com o processo de internação e de ainda ter que pensar sobre a questão
da certidão de nascimento. Quando trouxe a certidão, se disse aliviada de ter
resolvido isso. Registrou Larissa somente no seu nome.
Junto com o fato de não terem o documento ou terem perdido, muitos
informantes apontam diferentes dificuldades para obtê-lo como um aspecto que
retarda a realização do registro da criança, seja porque demora e não podem
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
146
esperar por conta do trabalho ou dos filhos que estão em casa, seja porque dá
trabalho, é cansativo e nem sempre se resolve de imediato. Tirar documentos
implica também em ter algum dinheiro, nem que seja para a passagem. Vemos
que falar de documentos traz implícita uma complexa burocracia. Burocracia que
se transformou numa estratégia de poder. A dificuldade em obter uma
documentação de forma rápida, sem ônus, gera o aparecimento de despachantes e
instituições que mediam o acesso aos órgãos públicos.
Rosalina, 27 anos, teve sua filha internada no HECC, disse que ainda não a
registrou porque:
“Estou esperando o pai fazer, eu lhe entreguei o papel amarelo da
maternidade e fiquei esperando. Agora ele disse que perdeu. Queria que ela fosse
registrada no nome dele, mas vou acabar registrando só no meu nome”.
Rosalina pegou na maternidade uma segunda via da DN, mas não
conseguiu registra-la só com sua certidão de nascimento. Ficou de tirar sua
carteira de trabalho, porém sua filha teve alta e foram embora.
A situação acima é recorrente. A mãe deixa a DN com o pai da criança,
algumas vezes também seu próprio documento a fim de que ele providencie o
registro e o pai demora a fazê-lo, não o faz, e por vezes ocorre de acabar perdendo
os documentos da mãe. Tamm é muito comum as pessoas tentarem registrar as
crianças somente com a certidão de nascimento. Apesar de não ser permitido pela
legislação, há pessoas que conseguem.
Vera, 38 anos, ainda não registrou seu filho de 05 meses porque:
“Quando eu saí da maternidade, eu saí a revelia porque meus filhos
estavam em casa sozinhos e não peguei o papel. Eu também perdi meus
documentos num incêndio”.
Indagada sobre como se sentia, diz que:
“Eu me sinto mal. É chato. Todo mundo ser registrado, todas as crianças
e o meu filho não. Parece que ele não existe. Por isso fui ao cartório de
Madureira pedir uma segunda via da minha certidão”.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
147
Aline nos conta que:
“Meu filho não foi registrado porque o pai morreu assassinado. Eu nem vi
o corpo. E meus documentos estavam com a avó dele. Agora que ela devolveu vou
registrar”.
Aline teve que tirar a carteira de trabalho, pois só tinha a sua certidão.
Quando volta do cartório ela está sentada na Enfermaria, com o bebê no colo e a
certidão na mão. Pergunto se tirou a certidão. Ela diz que sim e me mostra.
Convido-a para uma foto. No instante em que olho no visor, ela imediatamente se
transforma, abre um sorriso e empunha a certidão como um troféu. Curiosamente
a certidão tampa o bebê e aparece em primeiro plano, como se nos dissesse que
nesse momento a certidão é o próprio bebê e não apenas a sua representação.
A forma e o local onde os documentos são guardados; às vezes expostos à
chuva, inundações, incêndios, perdas em mudanças, ou destruição por bichos. Por
outro lado, emerge a certidão enquanto objeto de disputa em brigas conjugais.
Ocorre com freqüência das pessoas guardarem seus documentos na casa de outras
pessoas, como um recurso de segurança, por exemplo, em relação à enchentes,
goteiras e para que os maridos não os peguem e as crianças não os rasguem. Há
também relatos de mulheres afirmando que os companheiros às vezes rasgam os
documentos delas e dos filhos em situações de briga, como uma maneira de torná-
las reféns. Por tudo isso, há pessoas com documentos manchados, rasgados ou
ilegíveis.
Outras questões percebidas no trabalho de campo revelam a importância
que as pessoas atribuem à certidão de nascimento: o extremo zelo com que é
guardada, de forma recorrente em pastas de cartolina com motivos infantis
(muitas tendo sido plastificadas), junto com outros documentos como cartão de
vacina, matrícula na escola, certidão dos pais, etc.
Em função da violência, vem se tornando comum andar nas ruas com a
xerox dos documentos devido ao medo de perdê-los, ou de assaltos. Também há
pessoas que andam com documentos por medo de serem presos e não poderem
provar quem são. Isto que remete à atitude do policial, típica da virada do século
XIX, que prende o sujeito sem carteira de trabalho, numa oposição entre
trabalhador e vadio que identifica nos pobres o mal social, como se ser pobre
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
148
tornasse o indivíduo automaticamente perigoso à sociedade ( Sarti, 1996;
DaMatta, 2002, Peirano, 2006).
Há ainda pessoas que chegam ao HECC sem documento, pois não
consideram importante andar com ele ou porque não sabiam que era preciso. Boa
parte das mães anda com o cartão de vacina e não com a certidão da criança.
Mostrando o cartão de vacina em sua materialidade, como uma evidência de sua
importância indicam que ali tem tudo que precisa: nome, nome dos pais, endereço
e mais a situação das vacInas. Assim, de certa forma, parece ser mais importante
que a certidão. Algumas sinalizam que a certidão é muito grande para carregar,
incômoda e que podem perdê-la.
Helena, 22 anos, me conta que seu filho de 10 meses de idade ainda não
foi registrado porque:
“Ele não foi registrado porque o meu registro é provisório. Só tem no
lugar do meu nome escrito Helena. Foi feito quando eu morava num orfanato
com meus dois irmãos e minha mãe estava presa. O registro deles também foi
feito da mesma maneira. Só com o primeiro nome. Depois a minha mãe não
consertou”.
Helena disse que sua mãe está providenciando os seus próprios
documentos para depois ver os dos filhos. Seu filho teve alta médica e foram
embora. Dias depois, Helena retornou ao Serviço Social do HECC interessada em
ver a questão de sua certidão.
Esta história remete à questão dos adolescentes, adultos e idosos que nunca
foram registrados. Muitas dessas pessoas serão registradas tardiamente mediante
autorização da justiça, através de um processo de registro tardio. Um dos motivos
pelos quais as crianças ainda não foram registradas, diz respeito ao fato de que a
própria mãe ainda não o foi, conforme aparece nas respostas do questionário, no
caso de 02 pessoas.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
149
4.1.3
Adultos sem certidão de nascimento
Desenvolvo esse aspecto pela riqueza de significados e por considerar um
absurdo a existência em nosso país de várias gerações vivendo sem a sua certidão,
o que configura um tipo de reprodução de uma lógica social e cultural na linha da
construção da identidade, da filiação e do parentesco, ainda que haja
ambigüidades e diferentes formas de lidar com essa questão entre as pessoas.
Conforme gráfico abaixo, ao longo dos anos de 1999 a 2007, 12 adultos
sem certidão de nascimento tiveram seus filhos internados no HECC, no entanto,
somente consegui aplicar o questionário e entrevistar dois deles: Monique e Rute.
No Projeto Cidadania, tive contato com 04 adultos sem certidão de nascimento e
entrevistei 02 deles: Eliana e Sandra. Apliquei o questionário à mãe de um deles –
Rodrigo. Por fim, entrevistei Andréia e acompanhei vários momentos de sua
maratona junto às instituições no desenrolar do seu processo de registro tardio,
através do trabalho da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e também em alguns
momentos na condição de pesquisadora. Os dados que se seguem referem-se a 06
adultos.
ADULTOS SEM CERTIO DE NASCIMENTO
6
4
222
1
0
1
2
3
4
5
6
7
ENTREVISTA
REALIZADA
FORA DA
ÁREA DO
HECC
SEM
ENDEREÇO
VÁRIAS
TENTATIVAS
PESSOA NÃO
LOCALIZADA
NO
ENDEREÇO
ÁREA DE
RISCO
Sobre o tema dos registros tardios entrevistei o Defensor Félix Dutra,
coordenador da Defensoria Pública de Anchieta, onde correm os processos de
registro tardio de Monique, Eliana e Andréia. Entrevistei também o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
150
Desembargador Siro Darlan, em função do seu Projeto Quem sou Eu? que
objetiva erradicar o sub-registro de nascimento no Estado do Rio de Janeiro.
A existência de adultos sem certidão de nascimento relaciona-se ao quadro
de registros tardios no nosso país, conforme já assinalado no Capítulo II.
Trago a seguir, alguns dados que ajudam a compor um perfil dos 06
adultos sem certidão de nascimento: Eliana, Monique, Rute, Andréia, Sandra e
Rodrigo. Como vemos, 05 são do sexo femInIno e apenas um do sexo masculIno.
Como visto no Capítulo I, em relação às crianças a variável sexo não é
significativa. No entanto, quando adultas, estarão as mulheres mais vulneráveis à
situação do sub-registro?
Ao longo do trabalho de campo e da minha atuação como assistente social
no HECC, não tive contato com nenhum homem que não fosse registrado. Através
de Sandra, sem certidão, soube que quatro de seus irmãos não seriam registrados.
No HECC, durante o trabalho de campo, mantive uma conversa com o pai de Luís
Felipe em 2006, que foi internado no HECC e não era registrado. Ele me contou
que fora registrado aos 28 anos de idade porque seu pai não ligava para isso.
Em termos da cor, temos por definição dos próprios adultos, 02 brancos,
02 negros e 02 pardos.
Chama atenção o fato de 04 terem nascido na cidade do Rio de Janeiro e
nesta cidade sempre terem vivido. Os outros dois nasceram na região da Baixada
FlumInense/RJ. Apesar dos maiores índices de sub-registro de nascimento se
localizarem no norte e nordeste do Brasil, encontramos em plena metrópole
carioca pessoas numa condição social indigna.
Desses 04 adultos, 02 nasceram em casa: Andréia e Eliana. Nenhum
familiar ou conhecido dirigiu-se até um hospital a fim de declarar o nascimento, o
que torna mais difícil o processo de registro tardio, já que não há um documento
comprovando o nascimento da pessoa.
Em termos da idade desses 06 adultos temos o seguinte:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
151
2
1
1
1
1
0
0,5
1
1,5
2
32
ANOS
29
ANOS
26
ANOS
23
ANOS
19
ANOS
IDADE
Em termos da escolaridade desses 06 adultos o quadro é adverso:
3
3
0
1
2
3
NÃO
ALFABETIZADO
ENSINO
FUNDAMENTAL
INCOM PLETO
ESCO LARI DADE
Além dos três não alfabetizados, os outros 03 que estão classificados como
ensIno fundamental incompleto, tal como a maior parte dos pais das crianças sem
certidão que o questionário foi aplicado, não passaram da primeira série. Tal
condição remete também à relação com o trabalho em que se desenha o seguinte
panorama:
4
2
01234
O
SIM
QUANTOS TEM OCUPAÇÃO
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
152
Os dois adultos que disseram desempenhar alguma função são Rute e
Monique, ambas como biscate de faxIna ocasionalmente.
Em termos dos filhos desses 06 adultos, temos o seguinte.
NÚMERO DE FILHOS
2
3
5
0123456
DOIS
DOIS
UM
ADULTOS
FILHOS
As 05 mulheres teriam uma média de 03 filhos por cada. Temos um adulto
que não possui filhos, o rapaz de 19 anos de idade. Nenhuma delas conseguiu
fazer pré-natal de nenhum filho, apenas Monique fez algumas consultas com
autorização do Conselho Tutelar.
Desses 15 filhos, temos conforme gráfico abaixo 06 que são registrados e
09 não o são.
QUANTOS FILHOS SÃO
REGISTRADOS?
SIM; 6
O; 9
Importa assinalar que desses 06 filhos que são registrados, são 02 da
Sandra, 02 da Andréia e 02 da Eliana. Todos eles possuem o nome da mãe em sua
certidão de nascimento, apesar delas próprias nunca terem sido registradas.
Esses 06 adultos sem certidão de nascimento moram, conforme gráfico
abaixo, com as seguintes pessoas:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
153
COM QUEM MORA?
1
11
3
0
0,5
1
1,5
2
2,5
3
3,5
COMPANHEIRO E
FILHOS
FILHOS PAIS, FILHOS,
IRMÃ E
SOBRINHOS
NA CASA DA
MÃE BIOLÓGICA
E NA CASA DA
E DE
CRIAÇÃO
As três adultas que moram com seus companheiros, estão com eles há uma
média de 10 anos.
A seguir, situo alguns aspectos da história de cada um dos seis adultos.
Eliana tem 26 anos, moradora do bairro de Costa Barros, região da zona
norte da cidade do Rio de Janeiro, é negra, não trabalha, nunca estudou e possui
05 filhos, cada um de um pai. Dois deles estão registrados em seu nome e no
nome do pai. Eu a conheci através do Projeto Cidadania realizado em 2006, em
um CIEP de Costa Barros, onde me encontrava na condição de pesquisadora. No
dia desse evento não falei com ela, pois o Defensor que a atendeu não a
encaminhou para mim. Encontrei-a dias depois por acaso, já que não tinha seu
endereço. Ao andar em Costa Barros, procurando outras pessoas que conheci
nesse evento, pedi informação a uma moça na rua. “Você conhece alguma Eliana
que mora por aqui? E ela disse: “Eu sou Eliana”. E era a Eliana que eu
procurava.
Ela mora numa casa próxima à sua mãe, Mara, de 52 anos, que também
nunca foi registrada.
Nos últimos tempos, Eliana se relacionava com um homem mais velho,
um “coroa”, como ela diz, que lhe ajudava e que queria registrar seus filhos.
Sandra tem 30 anos, moradora de Costa Barros, é parda, não trabalha e
freqüentou a primeira série. Quem me apresentou a ela foi Eliana, já que são
vizInhas. Possui 02 filhos, ambos registrados em seu nome e no do pai. Seu
companheiro teria conversado com um rapaz do cartório que fez os registros
incluindo o nome da Sandra, apesar de ela não existir legalmente. Ela mora com
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
154
seu companheiro, pai de seus filhos. Seu companheiro trabalha. Sua mãe, de 40
anos, também não foi registrada.
Rodrigo tem 19 anos, é pardo, não trabalha e não estuda. Eu o conheci no
Projeto da Cidadania. Quem o levou lá foi Maria Lucia, que era vizinha de sua
mãe e que o cria desde pequeno. Rodrigo desde pequeno “circula” entre a casa de
sua mãe biológica e a de Maria Lucia.
Monique tem 26 anos, é branca, mora no bairro de Anchieta, zona norte da
cidade do Rio de Janeiro, numa rua próxima a da sua mãe e seu avô.
Eventualmente faz alguma faxIna e não passou da primeira série. Eu a conheci no
HECC. Possui 03 filhos e mora com seu companheiro, que é pai de 02 deles, há
12 anos. Seu registro civil ficou pronto em fIns de 2007, após o período do
trabalho de campo, depois de uma longa caminhada dela e de seu avô que como
ela própria diz, assumiu o lugar de pai em sua vida. Quando a entrevistei em 2006,
ela estava ansiosa a espera da sua certidão. Monique fala de seu avô de uma
maneira apaixonada, como um herói, de certa forma. Relata também que ele
tentou registrá-la quando criança e que sua mãe não deixou, mas também não a
registrou.
O Serviço Social do HECC já enviou duas notificações ao Conselho
Tutelar sobre o caso de Monique e também encaminhou o caso para o MInistério
Publico.
Andréia tem 32 anos, é branca, não trabalha e nunca estudou. Eu a conheci
através do trabalho na Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Mora com seu
companheiro e seus dois filhos há 10 anos, em Guadalupe, bairro da zona norte da
cidade do Rio de Janeiro. Desde abril de 2007, acompanha seu processo de
registro tardio ainda sem solução.
Rute tem 32 anos, é negra, nunca estudou, mora com seus pais no bairro de
Oswaldo Cruz, zona norte da cidade do Rio de Janeiro e eventualmente trabalha
como faxineira. Eu a conheci no HECC. Possui 03 filhos, nenhum registrado.
A seguir trago os motivos declarados pelos 05 adultos para que não
tenham sido registrados ao longo de suas vidas através da entrevista que me
concederam e o que me relatou a mãe de Rodrigo, já que ele mesmo não consegui
entrevistar, pois ele não comparecia às entrevistas ou desmarcava. Alegava que
não podia transitar nos bairros por causa do tráfico, que estava na casa da sua mãe
que era em São João do Meriti.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
155
A mãe de Rodrigo, Joana, 51 anos, que viveu 22 anos de sua vida com o
pai de Rodrigo me disse que não o registrou, porque:
“Ficou esperando o pai botar o nome na criança. E ai o tempo foi
passando, diz que registra, hoje, amanhã”.
Joana possui mais 08 filhos, registrados somente no seu nome e uma de 18
anos que, tal como Rodrigo, não é registrada. Na verdade, seu companheiro não
registrou nenhum dos filhos que teve com ela.
No dia em que entrevistei Rute, ela diz que não sabe nem explicar porque
seus pais não a registraram e algumas de suas irmãs e que eles não falam desse
assunto. Ela pergunta e sua mãe fica quieta. Nesse mesmo dia, tive também a
possibilidade de conversar um pouco com sua mãe. Ela traz uma série de questões
para explicar porque sua filha Rute, assim como mais três de suas sete filhas, não
são registradas: a espera pelo pai, o fato do pai não a deixar registrar só em seu
nome, brigas e separações de seu marido, diferentes doenças na família. Tamm
deixa entrever que há outras questões mais íntimas, sobre as quais não deseja
falar. Apesar de se dizer separada de seu marido, ele mora com ela.
Sinaliza que já foi ao cartório tentar resolver, mas que a encaminharam
para o Juizado de Campinho, bairro próximo à sua residência e ela ainda não pode
ir. Também Rute não se mostra muito animada e decidida em correr atrás de seu
registro. Indico-lhe que por já ser adulta ela própria poderia abrir um processo de
registro tardio, mas sinto que isto não parece aparentemente ter um rebatimento
nela. Parece continuar esperando que seus pais, ainda vivos e que moram com ela,
tomem a iniciativa de registrá-la. Acrescenta que precisa esperar seus pais porque
precisa do documento deles.
Rute diz:
Nunca corri atrás, mas tem que ter os documentos da mãe pra poder tirar
o da gente, como é que eu ia fazer? Eu gostaria que eles tivessem feito isso.
Sua mãe, apenas recentemente conseguiu a segunda via de sua certidão de
nascimento que era de outra cidade do Estado do Rio de Janeiro.
Monique diz que não foi registrada porque:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
156
“Minha mãe nunca se interessou, ela era pipa avoada. Teve quase 30
filhos e deu tudo, nunca se interessou por filho nenhum, entendeu? Minha avó é
que me pegou e meus irmãos para criar”.
Acrescenta que sua mãe nunca deixou seu avô registrá-la porque tinha
medo que a tomassem dela. Tal como no caso de Rute, esse assunto não é
conversado entre Monique e sua mãe, apesar de conviverem e morarem próximas.
Eliana diz que não sabe dizer o porquê não foi registrada. Diz que sua mãe
fala que não tirou a certidão porque não quis. Fala que se ela quiser, que tire
sozinha. Afirma que tirou a certidão de seus outros dois filhos porque tinha um
conhecido que trabalhava em um cartório e fez sem cobrar, colocando no nome da
mãe. Por outro lado, ela não sabe dizer como ocorreu, já que Mara também nunca
foi registrada. Essa diferença na fratria é tão forte para Eliana que a leva a
suspeitar, por esse fato, que ela não seja filha de sua mãe, Mara. Acrescenta a essa
suspeita a idéia de que: “Uma mãe não deveria fazer isso”. Inclusive os outros
irmãos de Mara também foram registrados e somente ela não o foi. A diferença na
fratria, nesse caso, é uma herança. No entanto, para Eliana sua mãe “já podia ter
corrido atrás do registro”, mas não o fez porque nunca resolve tirar seus
documentos.
Andréia conta que não foi registrada porque seus pais eram alcoólatras e
não davam importância “para essas coisas, nem de ir para hospital, nem nada”.
E acrescenta: “O meu pai falou que se dependesse dele ele nunca ia me registrar.
E que quando eu crescesse, eu que me registrasse sozinha”.
Importa destacar que o pai de Andréia registrou em seu nome apenas a
filha de sua mulher, que ela já tinha quando ele a conheceu, mas as duas filhas que
teve com ela posteriormente, não registrou
52
.
Sandra diz que não foi registrada porque sua mãe também não o foi. No
entanto, sua avó afirma que a registrou. A mãe de Sandra já teria ido a todos os
cartórios da cidade do Rio de Janeiro e não teriam localizado seu registro. Em sua
família essa é uma questão polêmica, fonte de brigas. Rindo, Sandra diz que sua
mãe nunca correu atrás de tirar a certidão dela porque é preguiçosa. Mas que
agora Sandra acha que ela abriu um processo de registro tardio em razão da
52
“Essa situação me remete mais uma vez, ao já citado filme ‘Eu, Tu, Eles” de Andrucha
Waddington em que o personagem interpretado por Lima Duarte, num ato autoritário, registra em
seu nome os filhos de sua esposa, sendo que nenhum deles era seu filho.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
157
pressão dos filhos que querem ser registrados. Em relação a seu pai, diz que sua
avó materna nunca gostou dele e que não deixava ele se aproximar. A avó,
inclusive uma ocasião, tentou registrar todos seus netos em seu nome e acabou
sendo presa.
Sandra acrescenta que às vezes desconfia que sua mãe tenha medo de ser
presa ao tirar seus documentos. Porque acha que ela já fugiu de delegacia e teve
envolvimento com traficante.
Sandra diz que já foi a vários locais pra tentar tirar sua certidão, mas não
consegue. Diz que todos falam a mesma coisa: que ou ela tem que levar
documentos da mãe ou só se a mãe fosse morta e ela tivesse a certidão de óbito
dela. Diz que às vezes pensa que não vai conseguir e não vai ter mais forças para
andar.
Trago a seguir uma figura
53
, denominada de Caso Sandra, que mostra as
relações da mãe de Sandra, com 06 homens diferentes ao longo de sua vida e com
os quais teve filhos.
53
Esta figura corresponde a um heredograma, método utilizado pela genética para representar as
relações de parentesco entre gerações relacionadas a uma determinada característica (Thompson,
1970).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
158
?
?
?
VI)
I)
II)
V)
Sandra
?
?
?
IV)
III)
Mãe da Sandra
Pessoas sem certidão de nascimento
Pessoas com certidão de nascimento em nome de um dos pais
? Não há Informação sobre a existência de certidão de nascimento
Pessoas com certidão de nascimento em nome dos pais
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
159
Como conta Sandra, sua mãe não foi registrada e não registrou nenhum
filho. No primeiro relacionamento, a mãe de Sandra teve dois filhos: a própria
Sandra, 29 anos e Renato, 28 anos. Sandra uniu-se ao Rogério, com o qual teve 02
filhos que são registrados no nome dela e do pai, como já assinalado.
Rafael teve 04 filhos com sua companheira que são registrados somente no
nome da mãe. Segundo Sandra, seu sobrinho mais velho expressa muitas vezes
sua tristeza por não ter o nome do pai.
No segundo relacionamento da mãe de Sandra, ela teve uma filha, a Célia,
24 anos. Esta teve 02 filhos com seu companheiro, que são registrados, tais como
os de Sandra, no nome dela e do pai.
Do terceiro relacionamento nasceu Fábio que morreu aos 21 anos de idade,
assassinado pela polícia em Costa Barros. Fábio, como muitos brasileiros, só se
tornou cidadão legalmente por ocasião de sua morte. Sua avó materna o registrou
como se fosse filho dela. Fábio teve uma filha registrada somente no nome da mãe
que deu a filha para uma pessoa criar.
No quarto relacionamento, nasceu Diogo, 17 anos e que mora com ela. No
quinto relacionamento, ela teve a Ruane, 11 anos que é registrada no nome do pai
e tem em sua certidão de nascimento, como mãe, uma irmã por parte de pai. E
por fim, no sexto relacionamento, a mãe de Sandra teve a Rayssa de 08 anos que
está abrigada por decisão judicial e nunca havia freqüentado a escola.
O que há de comum nessas histórias? Um aspecto que de saída me chamou
atenção foi o fato de que todos os 06 adultos foram criados por outras pessoas da
rede familiar (avós, tios, irmãos), além de seus pais, durante a maior parte de suas
vidas. No caso de Andréia, ela relata situação em que vivia como uma empregada
doméstica da tia aos 10 anos de idade. Entretanto, em relação aos filhos desses
adultos, somente os de Eliana já começam a experimentar uma espécie de
“circulação” entre a mãe e a avó.
Essa situação remete ao debate sobre “circulação de crianças”, prática
popular que se inscreve dentro da lógica de obrigações morais que caracteriza a
rede de parentesco entre os pobres. Isto se configura quando as crianças, ao longo
de suas trajetórias, são criadas por diferentes pessoas da rede de sociabilidade da
família, não sendo formalmente adotadas. Para Fonseca (2004), tal prática reitera
o primado dos costumes sobre a lei para os pobres, o que nos leva a afirmar que o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
160
ato de não registrar o filho, muitas vezes, pode estar ligado a outras dificuldades
do exercício da maternidade e paternidade.
Estarão esses adultos tentando imprimir novas práticas junto aos seus
filhos?
Sandra conta que sua mãe não parava em casa.
“Minha mãe ficava pelo mundo aí. Ela só ia pra casa quando
engravidava, aí ela ia pra casa, aí ela tinha o neném e deixava lá e ia embora”.
Dessa forma, Sandra foi criada durante muito tempo pela avó materna,
que batia nela e em seus irmãos e, às vezes, trancava-os em casa. Quando bebia,
colocava as crianças para fora de casa, dormindo na rua. Uma ocasião em que sua
avó ficou doente, ela diz que: “encontrei minha mãe e fui embora com ela”.
Disse que passou por várias escolas, mas só ficava uns dias. Transitava
pela casa dos outros e fugia de sua casa, andava pela rua até que desistiu de
estudar.
Também, formas de “adoção a brasileira” se mostram, quando, por
exemplo, o “coroa” com quem Eliana se relaciona quer registrar todos os filhos
dela e ela resiste, pois tem medo de perdê-los. Por outro lado, acha bom, pois
acredita que quando os filhos crescerem vão perguntar por que eles não têm o
nome do pai. Já o “coroa”, que não é pai de nenhum de seus filhos, quer com isso,
segundo Eliana, evitar diferenças entre as crianças e fazer com que todos tenham
um pai.
Alguns vivem situações de diferença na fratria, em relação ao registro
civil, como por exemplo, é o caso de Andréia, Rute, Eliana e Rodrigo. Somente na
família de Sandra e Monique nenhum dos irmãos é registrado.
A tristeza nos olhos de Monique, Andréia, Sandra, Rodrigo, Eliana e Rute,
por vezes, é desconcertante. Uns mais, outros um pouco menos, pareceram-me
carregar o olhar distante, constantemente molhado e frágil. Como suportar tanta
desigualdade? Como viver sem poder provar quem se é?
Junto com essa tristeza, senti também certa anestesia neles, como se o
mundo rodasse numa rotação mais lenta. Parece ser muito peso para uma só
pessoa agüentar, para uma pessoa elaborar sozinha e decretar que vai ser diferente
dali em diante. Inclusive, Sandra rasgou todos os papéis que tinha das tentativas
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
161
de conseguir o registro, porque ficou com raiva. Sandra assinala ainda que está
esperando pra ver o que Deus faz, está esperando sua mãe, está esperando o Juiz.
Mas acha que quem vai resolver isso é Deus e diz:
“Eu peço tanto a Deus que resolva isso logo, não agüento mais não ter
documento”.
Também o Defensor Félix Dutra relata percepção semelhante ao contar
que atendera naquele dia dois casos de registro tardio:
“Hoje nós atendemos aqui dois casos de registro tardio e a gente teve que
entusiasmar as pessoas para que elas pudessem registrar também os seus filhos.
Porque a gente vê aquela apatia e a gente está numa luta também contra isso. A
gente tenta entusiasmar essas pessoas porque elas vivem de uma forma e o Estado
está destratando os meios de vida delas, que elas terem uma certidão de
nascimento pra elas não serve de nada e isso é que é lamentável nessa conclusão,
sabia? Isso deve ser um desânimo na vida dessas pessoas, sair para procurar
porque elas não têm muita alternativa, não têm oportunidades”.
Rute diz que nem sabe o que sente em relação a sua mãe. Diz apenas que
se sente triste e como se fosse ninguém por não ter documento. Já Sandra diz que
sente raiva da mãe, por ela não ter tirado a certidão desde seu nascimento.
Monique diz que nem sabe explicar o que sente porque não conviveu com a mãe,
que elas nunca compartilharam nada.
Já Eliana assInala que sente ódio, raiva da mãe, muita mágoa, por ela ter
sido a única dos filhos que não foi registrada, a única filha mulher. Relata que se
sente mal e chora. Em relação ao pai, diz que como não o conheceu, não sente nada.
Andréia diz que, apesar de tudo, sente saudades dos pais, porque eram seus pais.
Os planos para o futuro, para quando tiverem uma certidão de nascimento,
passam por: “dar um futuro melhor para o filho”; “ser alguém na vida, pois vai
poder estudar”; trabalhar; trabalhar com carteira assinada; fazer um cartão; fazer
um negócio; entrar de dependente no plano de saúde do companheiro; receber
herança; tirar seus próprios documentos; registrar os filhos; colocar os filhos na
escola; fazer tratamento em hospital; pegar a DN na maternidade; fazer melhorias
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
162
na casa; “comprar algumas coisas”; “usufruir de benefícios, como PBF, BPC –
Benefício de Prestação ContInuada e Rio Card”
54.
E ainda, algumas falam desse dia como: “Vai ser o dia mais feliz da vida”.
(Sandra); ‘’É quando vou comemorar meu aniversário” (Andréia).
A certidão passa de um objeto quase inatingível a uma vitória: a vitória
sobre a burocracia, sobre anos de abandono do Estado, dos pais e que precisa ser
comemorada.
Parece haver por parte desses adultos sem certidão um desejo de
interromper algo que vem de uma geração para outra, com uma carga negativa
muito forte que é a ausência de registro civil. Nos 02 casos (Eliana e Sandra), a
própria mãe da adulta não foi registrada, ou seja, a situação atravessa três
gerações. Eliana e Sandra parecem querer romper com essa herança que se torna
um peso. Como se houvesse uma necessidade de distanciamento de suas mães.
Nos outros 04 casos, o sub-registro permeia duas gerações. Em todos os casos,
parece haver uma necessidade de distinguir-se para cima, diferenciando-se das
mães e proporcionando uma história diferente para seus filhos.
Rute diz que o que há de comum entre ela e seus filhos é que não possuem
a certidão de nascimento. Sandra diz que não pegou o destino da mãe, porque não
usa drogas. Mas que um irmão seu veio com o destino da mãe e usa drogas.
Há um explícito desejo de interromper a recorrência inter-geracional do
sub-registro de nascimento, estancando essa forma de repetição cultural.
Em conversas com mães e pais ao longo do trabalho de campo no HECC e
também como assistente social, vários deles sinalizam que estão a fazer com seus
filhos o que seus pais fizeram com eles, registrando-os tardiamente ou não os
registrando.
Em 2002, também no HECC, duas outras mães, que ainda não tinham
registrado seus filhos, relataram em conversas comigo como assistente social, que
estavam a reproduzir com eles o mesmo que seus pais tinham feito com elas e
com seus irmãos. Diziam também que o pai de seus filhos estava a fazer o mesmo,
54
O BPC – Benefício de Prestação Continuada é um direito garantido pela Constituição Federal de
1988 e consiste no pagamento de 01 Salário Mínimo mensal a pessoas com 65 anos ou mais e a
pessoas com deficiência incapacitante para a vida independente e para o trabalho, onde em ambos
os casos a renda per capta familiar seja inferior a ¼ do Salário Mínimo. (
www.mds.gov,br).
O RIOCARD é o sistema de bilhetagem eletrônica de todo o estado do Rio de Janeiro, para
transporte rodoviário (
www.vt.fetranspor.com.br).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
163
ou seja, não registrar os filhos. Vemos assim que o anonimato e a transmissão
apenas do nome da mãe pode se configurar como uma herança para essas pessoas.
Importa pensar que, a partir da realidade pesquisada, constatei a existência
de padrões de recorrência, como uma espécie de repetição cultural que, no
entanto, mostra no decorrer das gerações alguma diferença eventual. Se há
repetição de padrões sociais, há também uma dimensão de produção, inovação,
invenções sociais.
Dessa forma, no interior do grupo pesquisado, há pessoas que se
relacionam com a questão da certidão de nascimento de forma distinta de gerações
anteriores. Como por exemplo, quando encontrei crianças filhas de mães não
registradas, mas que mesmo sem certidão de nascimento estão na creche ou na
escola. Ainda, adultos que estão realizando seu processo de registro tardio, mas
conseguem atendimento regular para seus filhos no posto de saúde.
A burocracia, a vergonha e o ser mau tratado nos espaços públicos
parecem ser dimensões relacionadas ao esqueleto hierárquico e histórico da
sociedade brasileira que atravessa gerações. Também a espera pelo pai e as
dificuldades para obter documentos aparecem nas diferentes gerações dos adultos
sem certidão de nascimento.
Enfim, como aspectos que estão a compor uma teia de recorrências em
torno da questão do sub-registro de nascimento constatei: o próprio sub-registro
de nascimento atravessando gerações; o sub-registro de nascimento guardando
uma relação com diferenças na fratria; a baixa ou nenhuma escolaridade nas
diferentes gerações em caso de não possuírem certidão de nascimento. Também o
exercício de funções subalternas se repete, assim como o desemprego e o não
trabalhar. Uma certa forma de prostituição aparece no caso de um adulta sem
certidão de nascimento de uma geração para outra.
O desejo de constituir um comportamento que se distinga da geração
anterior nem sempre ganha corpo, mesmo quando a pessoa abre um processo de
registro tardio ou realiza todas as etapas exigidas para tal. Percebi que é muito
difícil a própria pessoa sozinha cumprir todas as exigências de um processo de
registro tardio, que são inúmeras. Será uma espécie de repetição cultural, o adulto
sem certidão de nascimento considerar esse documento muito importante e não
conseguir, por diferentes motivos, manter-se mobilizado para consegui-lo?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
164
No caso de Monique, por exemplo, ela diz que só foi resolver essa questão
da certidão por conta do Conselho Tutelar que a convocou em função de uma
notificação de maus tratos feita pelo Serviço Social do HECC; do contrário, ela
não iria.
Eliana e sua mãe, Dona Mara, já abriram duas vezes o processo de registro
tardio. Da primeira vez perderam os prazos da ida aos 14 cartórios. Abriram o
processo novamente, mas em nosso último contato em abril de 2007 ainda não
tinham retomado as buscas nos cartórios. Eliana diz que já pensou várias vezes
em desistir e nessas horas quem lhe dá forças são os colegas.
Monique, enfim, conseguiu depois de mais de um ano a sua certidão de
nascimento e poucos meses depois, já havia perdido. Quem a ajudou em sua
peregrinação foi seu avô materno, que para ela assumiu o lugar de pai, seja no dia
a dia, seja efetivamente em seu registro. Seu último filho recebeu o nome do avô
como uma homenagem: Jair. Monique foi registrada apenas com o sobrenome
paterno, tendo seu avô no lugar de pai e os bisavós no lugar de avós.
Rute, Sandra, e Rodrigo nunca abriram um processo de registro tardio.
Andréia, quando a conheci, em abril de 2007, havia acabado de abrir o
processo de registro tardio, mas estava desestimulada, querendo desistir, porque
não sabia ir ao Detran no centro da cidade do Rio de Janeiro. Foi encaminhada até
a mim, enquanto assistente social da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, pelas
profissionais do Pólo de Atendimento Extra Escolar da Sexta CRE
55
que atendiam
seu filho e sabiam que ela nunca fora registrada.
Em termos da legislação do sistema de registro civil, registro tardio é
aquele efetuado fora do prazo legal, ou seja, após 15 dias do nascimento. Para
pessoas a partir de 12 anos, o registro civil somente poderá se dar mediante um
processo de registro tardio, já que deve haver uma decisão judicial.
Andréia já havia ido à Defensoria Pública de Anchieta
56
e aberto seu
processo em março de 2007. O próximo passo era ir até o Detran, para através de
uma investigação datiloscópica saber se ela era registrada em outro local. Mas,
Andréia não sabia andar no centro da cidade e dizia não ter quem pudesse
acompanhá-la, já que seu marido trabalhava como açougueiro. Ora como
55
Pólo da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro que oferece atendimento especializado à crianças
com dificuldades de aprendizagem.
56
Segundo o Defensor Félix Dutra da Defensoria de Anchieta, são abertos em média 15 processos
de registro tardio mensalmente só na Defensoria de Anchieta.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
165
pesquisadora, ora como assistente social, fui com ela ao Detran, e depois, em
alguns dos 14 cartórios da zona oeste a zona sul da cidade, onde também deveria
ser feita a busca do registro de nascimento. Em outros cartórios ela foi com seu
marido, com um vizInho e com o cunhado. Vale dizer que nos cartórios o pedido
de busca de registro deve ser entregue pela própria pessoa. Segundo o Defensor
Félix Dutra, a busca nos cartórios de registro civil é uma exigência do Poder
Judiciário, dos juízes. Antigamente, as respostas do “nada consta” eram fornecidas
pela Corregedoria de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que por sua vez
encaminhava aos cartórios.
Não há um sistema informatizado entre os cartórios, ou um sistema de
correspondência que possa não sobrecarregar a pessoa que solicita.
Como o resultado da investigação datiloscópica não foi satisfatório,
Andréia teve que retornar depois de 04 meses ao Detran e fazer outra.
Encerrada a busca nos 14 cartórios, o que envolveu duas idas a cada um
deles, para entregar o pedido e pegar o resultado, Andréia retornou à Defensoria
de Anchieta que elaborou uma petição inicial dirigida ao Poder Judiciário tratando
da pretensão de ter seu registro tardio. Remeteu seu processo ao Cartório de
Registro Civil de Pessoas Naturais da Circunscrição de Madureira, bairro da zona
norte da cidade do Rio de Janeiro, onde existe um Tribunal de Justiça que
designou um Juiz. Neste cartório, o processo de Andréia foi aberto e como parte
dos procedimentos, o Ministério Público fez uma série de exigências.
De fato, seu processo caiu numa série de exigências, pois os pais de
Andréia são falecidos e ela não possui nenhum documento deles, apenas uma
cópia da certidão de óbito de seu pai. Uma prima e uma tia prestaram depoimentos
ao Cartório para justificar que conhecem Andréia e a reconhecem como parente.
Andréia também levou uma foto sua com seu pai. Os documentos do pai estão
com uma de suas irmãs que também não é registrada e acredita ter direito a
alguma pensão, já que ele era da Marinha. Essa irmã não quer dar os documentos
para Andréia e já estaria sendo orientada por um advogado a conseguir a pensão.
No atual momento, Andréia está aguardando decisão do Ministério Público
para saber em que termos será feita a sua certidão de nascimento. Se poderá
receber o sobrenome de sua mãe e/ou pai, ou não; se será registrada somente
como Andréia. Essa questão inclusive passa também pelo seu consentimento, pois
ela tem o direito de não aceitar que em sua certidão de nascimento conste apenas o
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
166
seu prenome. Ocorrendo isso, restará abrir um processo de investigação de
paternidade e maternidade.
Por essa história ficam claras algumas questões que envolvem o processo
de registro tardio: a presença da burocracia é muita grande, a pessoa é duplamente
penalizada – nunca foi registrada e ainda tem que ela própria percorrer 14
cartórios e responder uma série de exigências para provar que não é registrada; o
tempo de tramitação do processo é longo, há um gasto com passagens,
alimentação na rua, xerox que a pessoa não tem como arcar; exige uma circulação
por diferentes espaços da cidade que muitas vezes as pessoas nunca fizeram. No
caso de Andréia, a primeira vez que ela andou de metrô e comeu em um
restaurante foi comigo nas muitas andanças ao longo do seu processo. Nesse dia,
encontramo-nos no Shopping Guadalupe para irmos a algum cartório e convidei-a
para almoçar comigo na pequena praça de alimentação. Emocionada, ela disse que
era o dia mais feliz da vida dela, porque nunca tinha comido num restaurante. O
Shopping onde eu e meus colegas de trabalho da Prefeitura já não agüentamos
mais nos alimentar, representou uma novidade; por outro lado, o acesso a um tipo
de consumo que ela não pode desfrutar.
Como diz Andréia, “parece que tudo isso é feito para a pessoa desistir”.
Sábias palavras, pois, na verdade, assim, mantém-se a estrutura hierárquica da
sociedade brasileira intacta. Fica difícil aceitar diante de tanta adversidade, os
argumentos de que essas exigências do Poder Judiciário se destinam a evitar que
as pessoas tenham dupla identificação, intencionalmente ou não, conforme me
explicaram em entrevista o Defensor Félix Dutra e o Doutor Siro Darlan.
Além de toda essa caminhada para conseguir a certidão de nascimento,
muita luta e história ainda está por vir na vida de Andréia e de tantos brasileiros
na mesma condição. Na verdade, esse é só um passo, para que se continue a lutar
por cidadania.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
5
Conclusão – os horizontes constrangidos da escolaridade:
considerações finais
A partir das histórias de constrangimento e limite dos casos analisados no
decorrer desta investigação, agora, cabe demonstrar os efeitos perversos da
ausência de certidão de nascimento, tanto para o segmento de crianças e famílias
nesta condição, quanto para a sociedade brasileira.
O que emerge dos dados da pesquisa? O que emerge das análises e
interpretações?
Este trabalho significou um mergulho em profundidade: ir ao fundo do
poço da sociedade para conhecer um dos setores da população mais
constrangidos e mais necessitados de políticas públicas e atenção governamental.
O que demonstram estes casos é que se trata de um dos segmentos
populacionais mais atingidos nos seus direitos, até quando esses direitos são
simultaneamente facultados “oficialmente” e limitados. Por exemplo, quando as
portas do sistema escolar são entreabertas, mas com constrangimentos, como
será relatado a seguir.
Através das análises efetuadas foi possível perceber limites de acesso,
permanência, conclusão e certificação para as crianças que chegam a “bater” nas
portas da escola sem certidão de nascimento.
Quais são as estratégias que observei? O que ocorre nestas camadas, face
aos desejos ambíguos por escolaridade? Como as escolas reagem? O que pode
fazer a escola nesse jogo tenso, face ao limite imposto pela lei? O que o
professor pode fazer? O que a população demanda em face a esse limite? O que
tem sido proposto em termos de políticas públicas e o que falta em se tratando de
um problema vital?
Como indicado desde o início, a literatura existente sobre o sub-registro de
nascimento é pequena e na Interface com a educação, não localizei nenhuma
pesquisa. Nesse sentido, permito-me levantar algumas hipóteses sobre o
fenômeno. As idéias que trago a seguir são conclusões que abrem alguns
caminhos para que seja possível entender de maneira mais ampla essa temática.
Parti da suposição inicial de que a criança sem certidão de nascimento está
excluída do acesso aos serviços e pude, em parte, problematizar esta idéia. Uma
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
168
vez que encontrei situações no campo que relativizam essa perspectiva e,
portanto, trazem nuances a serem exploradas. O material que emergiu do campo
em termos da relação das crianças e adultos sem certidão de nascimento com a
escola aponta para uma heterogeneidade de situações no interior da situação da
criança sem certidão de nascimento. Há alijamento, exclusão e, ao mesmo
tempo, outras estratégias, outras formas de se relacionar dentro da sociedade, e
de alguma maneira precária, ter acesso aos direitos sociais, como a leitura e a
escrita.
Das 29 crianças, cujos pais responderam ao questionário, temos três em
idade escolar: Danilo de 11 anos e Natália de 06 anos que estavam fora da escola
e Rodrigo, de 06 anos que também não tinha certidão de nascimento, embora
freqüentasse uma escola pública.
Os pais de Natália são: Simony, 32 anos, com ensino fundamental
incompleto, não trabalhando e Anselmo, 50 anos, não alfabetizado, vendedor de
coco; possuem mais três filhos, que também não são registrados. Somente a mais
velha, filha de outro homem, Taís de 07 anos, possuía certidão de nascimento,
sendo registrada somente no nome de sua mãe. Em conversa no HECC ao longo
do trabalho de campo, em setembro de 2006, ouvi de Simony que não sabia que
estava grávida de Tais, pois continuou menstruando. Quando soube da gravidez,
não fez questão de falar para o pai, pois achava que ele não ia ser um bom pai,
porque para ela rapaz novo não tem responsabilidade. Assim, começou a se
relacionar com Anselmo, porque era mais velho que ela.
Em relação à escola das crianças, Simony diz que não colocou a Tais na
escola porque:
“Eu não botei a Taís na escola porque ia dar diferença para a Natália, de
uma ser da escola e outra não. Não ia dar certo. A Natália ia se sentir rejeitada.
E o Anselmo ia achar que eu dava preferência para a Taís, porque ele é bruto”.
Simony diz que Anselmo não quer registrar os filhos para que eles não
possam ir à escola. Para ela, ele não quer que os filhos estudem e diz que só pode
ser por causa de trauma de Infância:
“Ele tem revolta por não ter estudado. Revolta dele mesmo, porque ele
teve de trabalhar desde cedo e não foi para a escola, mas é bom de matemática.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
169
É por isso que ele não quer que nenhum filho dele estude. Ele diz: escola para
quê”?
Nesse caso, a negativa de fazer o registro da criança torna a cena mais
complexa e ambígua. A certidão de nascimento foi negada porque permitiria o
acesso à escola. Nesse caso, a escola seria um espaço, em função da história do
pai, privado de estudar por conta do trabalho desde a Infância, do qual se pode
prescindir?
A mãe de Danilo, Lia, 32 anos, portadora do vírus HIV, faz biscate com
faxina e mora numa área de invasão recente de Costa Barros, chamada Belíssima
que é formada por barracos e não possui nenhuma Infra-estrutura. Ela diz que
nunca tentou matricular Danilo na escola porque sabe que a escola irá exigir a
certidão e ele não a tem. Acrescenta que está para ir à Sexta CRE, com o
objetivo de pedir uma vaga, mas que ainda não o fez porque não sabe chegar ao
local. Tampouco procurou o Conselho Tutelar, mas provavelmente receberá uma
convocatória desta instituição, pois o HECC fez uma notificação de maus tratos
quando da internação de Danilo. Trata-se de prática rotineira do Conselho
Tutelar quando recebe uma notificação de maus tratos.
Para complicar mais a situação, Danilo estava para completar 12 anos de
idade, o que significa que somente poderá ser registrado mediante abertura de
processo judicial de registro tardio.
Rodrigo, de 06 anos não tem certidão de nascimento porque sua mãe Rute
nunca foi registrada. Em entrevista em sua casa em 2008, eu pergunto a Rute
como conseguiu fazer a matrícula na escola pública sem a certidão de Rodrigo e
ela diz que:
”Ah, eu consegui ali porque a diretora quebrou o meu galho, até eu tirar o
meu documento pra ele não ficar sem estudo. Disse que ele ia ficar lá até eu
tirar o meu documento, depois que eu tirar ele vai ficar ali de vez”.
Vale a pena relatar este exemplo e gerar algumas hipóteses a respeito.
Nesse caso, são acionados mecanismos de favor e de relações pessoais? Ou a
escola estará se baseando em princípios constitucionais que falam do direito da
criança à educação? O que está em cena, a dimensão do indivíduo, cidadão,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
170
portador de direitos ou as tradicionais relações pessoais, de amizade e
conhecimento? Ou ainda, trata-se de um misto dessas duas dimensões?
Estes procedimentos permitem que Rodrigo e seu irmão Willian de 10
anos que estudam no mesmo local há anos, não fiquem excluídos da escola.
Assim, podem ter acesso a uma experiência escolar e ao aprendizado da leitura e
da escrita. Por outro lado, esta situação revela ambigüidades. A inclusão é
constrangida na medida em que a escola matricula, segundo informação de uma
funcionária da Sexta CRE, na categoria “matrícula sem documento” e dá um
prazo de 45 dias para a família regularizar. Caso isto não ocorra, não é possível
formalizar a certificação correspondente. Se Rodrigo e William se mudarem e
tiverem que ir para uma escola de outra região, outro estado, a escola não poderá
emitir seu histórico escolar, muito menos certificado de conclusão, de crianças
sem documentação oficial. A instituição concede a vaga, mas não oficializa a
situação. A escola não contribui para que a mãe e o pai da criança resolvam essa
questão, principalmente em um caso em que as crianças ainda não foram
registradas porque a mãe também não o é. Neste caso, como fica o papel da
escola de contribuir para a formação de cidadãos? A ação da escola se limita à
concessão da vaga.
Rute se sente constantemente ameaçada, pois tem medo de seus dois filhos
serem expulsos da escola. É uma espécie de acesso à escola em suspenso, como
ela afirma:
“A diretora falou para eu correr, correr o mais rápido possível se não eles
vão perder a vaga na escola”.
Caberia indagar acerca das providências que a escola deveria tomar em
casos como estes, até porque, segundo informações de uma funcionária da Sexta
CRE, esse não é um caso isolado, uma exceção. A ação da escola deve se limitar
a conceder a vaga? Concedendo ou não, deveria procurar conhecer mais essa
família e acionar a rede de serviços locais, como a Assistência Social, o
Conselho Tutelar ou a Defensoria Pública? Como fica o papel da CRE de cada
região da Cidade do Rio de Janeiro? Será isso extrapolar o papel da escola? O
papel de professor? Ou será este um sinal de uma escola sintonizada com a
realidade e comprometida com seus alunos? Esses acontecimentos remetem ao
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
171
debate da função da escola nos dias de hoje, a forma pela qual as questões
sociais atravessam e marcam a ação dos professores e gestores. Num outro
plano, remete também à maneira como os diferentes sujeitos na comunidade
escolar se vêem, Interagem e constroem a admInistração escolar de forma mais
ou menos democrática.
É fala corrente entre os professores que eles não sabem o que fazer diante
das dificuldades de vida de seus alunos e do comportamento deles, que se sentem
fazendo tarefas que consideram atribuição da família e sufocados devido às
adversas condições de trabalho. De forma freqüente também assinalam que não
têm como dar conta de tudo, e que cuidar das questões sociais não cabe a eles,
extrapola suas funções pedagógicas.
Em paralelo a essas falas, vêm à tona lembranças das condições de vida
dos adolescentes da Turma de Projeto
57
do ano de 2007, da Escola Municipal
Lúcio de Mendonça, localizada no bairro de Anchieta. Nesta ocasião, visitei a
casa deles, como assistente social da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, a
fim de conhecer um pouco mais de suas vidas. Não é preciso ir muito adiante
para entender a relação deles com a leitura e escrita: as situações, as relações
familiares e o contexto são extremos e dramáticos.
Ao analisar os dados dos questionários, percebi a presença de irmãos das
crianças que foram internadas no HECC e que também não tinham certidão. É o
caso de Natália já citada acima, que tinha mais três irmãos que também não eram
registrados, de Ana Beatriz que também tinha mais três irmãos sem certidão,
Luiz Felipe que tInha uma irmã de 10 anos que inclusive freqüenta uma escola
pública. Segundo sua mãe, Karla, a escola conhece suas tentativas para registrar
a filha e por isso deixou-a freqüentar a escola. De acordo com suas palavras,
ficou na expectativa de que o pai registrasse a criança. O tempo passou e ao
decidir registrar, não conseguiu a segunda via da DN na maternidade.
Posteriormente, ela pediu ajuda ao Conselho Tutelar.
Eliana tem cinco filhos. Como no seu próprio caso, dois de seus filhos não
possuem certidão de nascimento, mesmo assim, estão em uma creche pública. Os
outros dois foram registrados pelos respectivos pais, inclusive no seu nome
também, como já assinalado anteriormente. Ela conta que:
57
Turma de Projeto foi o nome dado no ano de 2007 para as antigas Turmas de Progressão,
formadas por alunos que não estão alfabetizados na Sexta CRE.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
172
“As crianças estão na creche sem documentos. Vai a CRE, vai um montão
de coisa lá e eles não têm documentos, vão acabar perdendo a creche, porque
não podem ficar sem documentos na creche”.
Examinando estes casos, é possível constatar que o fato de não ter a
certidão de nascimento nem sempre representa impedimento para a criança ter
acesso a uma creche pública e à escola. Contudo, Eliana diz que tentou estudar
num CIEP próximo à sua casa, mas lhe foi negada esta possibilidade porque não
tinha documento. Observo que na mesma prefeitura, na mesma região, em
diferentes segmentos educacionais, constatam-se procedimentos distintos em
relação à questão do documento como condição para a matrícula escolar.
Estas constatações remetem à questão da escolaridade dos 06 adultos sem
certidão de nascimento, conforme já assinalado no Capítulo III, que mostra que
03 adultos não estão alfabetizados Andréia, Eliana, e Rute nunca foram à escola.
Já 03 outros iniciaram a primeira série do ensino fundamental: Rodrigo, Sandra e
Monique tiveram algumas passagens pela escola, entrecortadas e descontínuas.
Além de intermitentes, essas passagens pela escola foram pequenas, nenhum
deles chegou sequer a concluir a primeira série do ensino fundamental.
Para todos eles, a escola aparece como um desejo, algo que gostariam de
realizar se um dia conseguissem ter a certidão de nascimento. Eliana fala que:
“Ah, trabalhar, eu quero trabalhar, a primeira coisa que eu vou fazer é
trabalhar e estudar, trabalhar de dia e estudar à noite. Tem que estudar, não sei
fazer nada, não sei fazer o meu nome, não sei ler. Tem que trabalhar e estudar.”
Eliana marca o fato de nunca ter estudado e de não saber ler como uma
semelhança entre a vida dela e a de sua mãe, já que sua mãe, como ela diz:
também não sabe ler, é a mesma coisa minha”. Marca ainda uma diferença
entre a vida de sua mãe e a dela própria, com a dos seus filhos, já que diz:
“Porque meus filhos vão estudar, eu não sei não, mas eu quero o melhor
para eles, quero que eles estudem direitinho”.
Já Monique ao ser questionada sobre como é viver sem certidão, diz:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
173
“Ah, é horrível “né”, “pra” eu explicar porque não tem documento, para
escola tem que ter documento. Eu não sei como eu aprendi a ler, porque toda
vez que a minha avó me botava no colégio, eu tinha que sair por causa da
certidão, então fica difícil para qualquer coisa, para estudar então é horrível!
Você querer dar o melhor para seus filhos e você não poder. O meu filho já tem
cinco anos e está fora da escola. Não foi por causa do registro e aí fica uma
coisa difícil”.
Monique diz que sua avó colocou-a na “escola paga”. Pergunto-lhe como
isto foi possível.
“Dava não, quer dizer, dava e não dava porque o meu avô conversou e
eles deixaram, mas teve certo ponto que tive que sair porque pediram a certidão
e não tinha como dar a certidão”.
Sandra diz que quando ela foi para a escola ela:
“Eu estava com uns sete..., eu estava com sete anos. Depois fiquei até
certa idade e eu saí, porque a minha avó ficava batendo nos outros quando
bebia, aí botava a gente para fora, para dormir na rua e aí eu fiquei pela rua”.
Acrescenta que chegou a estudar com uma pessoa em casa, mas que depois
a moça parou de vir e ela desistiu.
Seus filhos estão na escola e estão registrados no nome dela e do pai. Tal
como ocorreu com Eliana, o pai dos filhos de Sandra conseguiu fazer o registro
civil em cartório, sem o documento dela, sem pagar nada, segundo ela informa.
Isto idica a presença de crianças matriculadas na rede pública de educação
da Cidade do Rio de Janeiro, que possuem certidão de nascimento com filiação
materna e paterna estabelecidas, cuja mãe nunca foi registrada, como é o caso de
Andréia e Eliana. Isso mostra que para a efetivação da matrícula da criança na
escola pública da Cidade do Rio de Janeiro não é necessária a apresentação de
documentos dos responsáveis pela criança.
Em janeiro de 2008, participei como assistente social da Prefeitura da
Cidade do Rio de Janeiro, durante três dias, do processo de matrícula das
crianças para a escola pública na região da Sexta CRE, em um dos Pólos de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
174
Matrícula
58
. O objetivo era atender casos de pessoas sem documentos, situações
de criança que não morassem com os responsáveis, e ainda, fornecer alguma
informação sobre o PBF. Nessa ocasião houve a presença de um assistente social
em 08 Pólos de Matrícula da região da Sexta CRE.
Uma das questões que pude constatar é que não se solicita a apresentação
de documentos dos responsáveis para a matrícula da criança. Basta a certidão de
nascimento original da criança. Considero ser importante pedir os documentos
dos responsáveis que vêm fazer a matricula, como forma de conhecer as
famílias. Por outro lado, é uma maneira de mobilizá-las para obter seus
documentos, principalmente em função da penetração da escola nesses bairros,
pois é um dos poucos, se não o único, serviço público que atinge um grande
número de famílias.
Nesse sentido, no ato da efetivação da matrícula observei a presença
majoritária da mãe, seguida do pai. Também irmãos menores de idade, vizinhos,
conhecidos, pessoa que toma conta da criança para a mãe trabalhar que não
puderam fazer a matricula. Tios, avós e irmãos maiores de idade foram muito
presentes e realizaram a matrícula da criança sem problemas, como de costume.
Entretanto, estes últimos, neste ano de 2008, passaram primeiro por uma
conversa com o assistente social.
No meu caso, como assistente social da Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro, o contato com essas pessoas no momento da matrícula das crianças, foi
no sentido de conhecer com quem a criança vive, qual o tipo de relação que
estabelece e qual o vínculo que mantém com a mãe e o pai. Por outro lado,
também tinha como objetivo refletir com o encarregado de fazer a matrícula
sobre a legalização dessa relação, sob a forma de guarda. Neste momento houve
um debate melindroso. É um desafio saber mediar as dimensões do controle, da
educação e da proteção dos direitos da criança presentes nesse contexto, sem
burocratizar. É necessário estar atento tanto às distintas e legítimas formas de
criação dos filhos, como já assinalado ao longo da tese, como aos possíveis casos
de maus tratos das crianças que estejam numa situação de grande vulnerabilidade
social.
58
A matrícula na rede pública de ensino na cidade do Rio de Janeiro está organizada através de
Pólos de Matricula. Possuem a base física em uma escola que congrega a matrícula para um
conjunto de escolas próximas.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
175
Neste contexto, algumas pessoas já tinham dado entrada em pedido de
guarda, outras consideravam desnecessário e ainda outras ficaram de refletir
sobre o assunto com sua família.
No Pólo de Matrícula em que estive, apenas uma mãe, Rosana, de 31 anos,
que não trabalha e que tem 04 filhos não registrados, veio fazer a matrícula
deles. Os filhos tinham 10, 09, 08 e 06 anos e estavam fora da escola. Foram
encaminhados, por mim e pela funcionária da Sexta CRE, para o cartório e
orientados a retornar no dia seguinte para fazer a matrícula, o que não ocorreu.
Esta situação aponta que, a priori, a matrícula na escola pública esteve
condicionada à apresentação da certidão de nascimento original da criança.
No entanto, segundo uma funcionária da Sexta CRE, as prefeituras não
podem negar a matrícula das crianças que não têm certidão de nascimento, pois
devem garantir a educação como um direito de todos, conforme preconiza a
Constituição Federal a Lei de Diretrizes e Bases - LDB e o ECA. Ela comenta
também as portarias da própria Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro que vão
normatizar o que a legislação prevê.
No entanto, percebi ser corrente, entre as mães com as quais conversei a
idéia de que sem certidão de nascimento a pessoa, a criança, não pode estudar.
De onde virá essa percepção? Possivelmente da fala das instituições educativas,
como na Cidade do Rio de Janeiro, onde dizem que para fazer a matrícula é
necessária a apresentação da certidão. E ainda, da rede de relações entre
vizinhos. Mostra-se, assim, certa ambigüidade, pois, formalmente a matrícula
não pode ser negada nestas circunstâncias, mas ela não é feita automaticamente,
como mostrei através da história de Rosana. Depreendo que o discurso de que se
faz necessária a apresentação da certidão, pode estar afastando da escola aqueles
que não a possuem.
Os dados que apresentei também questionam a idéia de que o acesso à
escola pública na cidade já está resolvido. Essa idéia é corrente na área da
educação pública na Cidade do Rio de Janeiro. Mas, emergiram situações do
campo desta pesquisa que questionam essa posição: a presença de crianças em
idade escolar, com e sem certidão de nascimento, fora da escola.
Retomando os índices de sub-registro de nascimento para o Brasil, citados
no Capítulo I, levanto a seguinte hipótese: já que os mais altos índices se
localizam no norte e nordeste do Brasil, tal fato pode guardar uma relação com a
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
176
realidade de famílias em que a escola se faz menos presente. Esta constatação abre
uma perspectiva de investigação no campo das relações entre o acesso à certidão
de nascimento e a escolaridade. Como venho demonstrando, os dados encontrados
no campo desta pesquisa atestam que o sub-registro de nascimento relaciona-se
com baixa escolaridade, exercício de funções subalternas, parto normal e
multiparidade.
Através da minha experiência como professora no Curso de Extensão em
Educação Infantil da SME da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro em parceria
com a PUC - Rio, e mais recentemente, como assistente social da Prefeitura da
Cidade do Rio de Janeiro, trabalhando com escolas, conforme já citado, tenho
visto que muitas creches, pré-escolas ou escolas do ensino fundamental realizam
a prática de comemorar o aniversário das crianças como uma forma de contribuir
para a construção da identidade das crianças, acreditando que esse é um valor
importante. Também nestas instituições a certidão de nascimento da criança
funciona como uma comprovação legal de sua existência, e irá, junto com outros
documentos e papéis, compor o seu histórico institucional.
No interior de muitas escolas, a certidão se constitui como um instrumento
do trabalho pedagógico, utilizado em projetos que versam sobre família,
identidade, nome, nascimento, história de vida, documentos, diversidade e
construção de árvores genealógicas. Este documento pode ser compreendido
como um objeto cultural de conhecimento que remete à idéia de criação de
contextos de aprendizagem significativa, podendo integrar e fazer avançar
conhecimentos já Iniciados além de disparar outros.
Além disso, a certidão é também suporte de leitura. Coloca-se como
ampliação de conhecimentos, de várias maneiras. A presença de diferenças nas
certidões pode ser problematizada com as crianças (como a ausência do nome do
pai, ausência do nome do pai e da mãe, registro tardio, nome dos avôs como pais,
carimbo de gratuidade, certidões pagas), colocando em cena questionamentos
sobre o modelo de família nuclear típico da cultura burguesa como padrão de
conduta, trazendo à tona para o debate as diferenças que marcam as crianças,
suas famílias e a sociedade brasileira.
Conforme indicado pela pesquisa do IBGE (2005), dois picos foram
constatados, em termos de registro tardio no Brasil, no sétimo ano após o
nascimento e no décimo oitavo ano. Esses momentos se expliiam pela necessidade
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
177
de inscrição no ensino fundamental, a obrigatoriedade de inscrição no serviço
militar e a procura por trabalho formal ao se atingir a maioridade. Também
Fonseca (no prelo), reforça esses dados ao Indicar que no Rio Grande do Sul ainda
existem famílias em que os filhos são declarados apenas quando algum órgão
burocrático exige para matrícula na escola ou para inscrição no exército.
Isto indica, assim como esta pesquisa mostrou, que há uma variedade de
formas de se viver o processo do registro civil de nascimento na sociedade
brasileira. Por um lado, em termos do momento da vida da criança e do adulto em
que é feito, questionando a idéia da certidão ser “tirada” nos primeiros dias de
vida. Por outro lado, em termos de quem é o declarante, podendo ser os pais, a
mãe, o pai, o Estado e ainda, o próprio adulto sem certidão. Através deste estudo,
percebi ainda uma diversidade em termos de filiação: só a mãe, só o pai, os pais,
casos de avós como os pais legalmente, avó como mãe, irmã como mãe e ainda
pessoas sem nenhuma filiação estabelecida na certidão de nascimento.
Até aqui abordei a problemática relativa à situação escolar desse grupo.
Passo agora a pontuar alguns aspectos observados da relação com a área da saúde.
Em termos da relação com as instituições ligadas aos serviços de saúde, à
princípio, as crianças ficariam dependentes dos serviços de emergência, não
possuIndo assim um médico, um pediatra de referência. No entanto, aqui também
encontrei uma variedade de situações. Em termos dos postos de saúde, por
exemplo, constatei que as crianças recebem vacinação sem nenhum
constrangimento. O mesmo já não vale para a consulta periódica com o pediatra
ou com médicos de outras especialidades. Há postos de saúde que não pedem a
certidão da criança para marcar consultas, outros pedem, mas não condicionam,
outros só atendem mediante a apresentação da certidão. Encontrei ainda uma
variedade de procedimentos dentro da mesma unidade de saúde (“ficou com pena
da criança e encaixou”), ou mesmo a diferença de condutas entre plantões
diferentes. Nenhuma das mães, às quais o atendimento ao seu filho foi negado em
posto de saúde, foi encaminhada para falar com a assistente social da unidade.
As mulheres sem certidão, quando grávidas, estão impossibilitadas de
fazer pré-natal. Aquelas que tentaram, não conseguiram. Outras, já na segunda ou
terceira gravidez, nem tentaram, pois sabem que não conseguiriam. Relatam que
apenas podem ir para a maternidade na hora de ter o bebê. Uma dessas mulheres,
Monique, disse que durante a gravidez de uma de suas filhas, conseguiu fazer uma
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
178
consulta do pré-natal, já no fInal da gestação, com a autorização do Conselho
Tutelar. Eliana relatou, com pesar, que perdeu a possibilidade de fazer uma
ligadura de trompas que um deputado conseguira, já que não tinha sua certidão.
Existem outras dificuldades, por exemplo, a saída da maternidade com o
bebê, já que algumas Maternidades, só entregam a DN mediante apresentação de
documento da mãe, como nos contou Monique. Essa parece ser uma prática que
aos poucos vai sendo adotada pelas maternidades, pelo que ouvi das mães.
Os serviços de saúde que realizam pré-natal, não fazem da certidão de
nascimento uma questão a ser trabalhada. Das 29 mães que responderam ao
questionário, 21 fizeram pré-natal e disseram que nas consultas nenhum
profissional abordou o tema da certidão de nascimento, Inclusive a Maternidade
Alexander Fleming não toma providências neste sentido.
No conjunto de 29 pessoas as quais o questionário foi aplicado, 06
possuíam o PBF. Não houve nem um caso de pessoa que tivesse o benefício e
em casa alguém não tivesse certidão de nascimento. Apenas a mãe de Rodrigo,
adulto sem certidão de nascimento, recebe o PBF. No entanto, Rodrigo fica
muito pouco tempo em sua casa, já que transita entre a casa dela e a de Maria
Lúcia, vizinha que lhe cria desde pequeno. Durante as conversas e entrevistas
com as mães no HECC e ao longo da aplicação do questionário, quem não
possuía o PBF, dizia de forma quase unânime que nem ia tentar, pois sabia que
sem a certidão da criança não podia.
Para finalizar, vou levantar alguns pontos que me parecem relevantes a
partir deste trabalho e que podem ser discutidos pela sociedade, pelos
profissionais e setores ligados a essa problemática, colaborando para a redução do
sub-registro de nascimento.
Como já assinalado, percebi que não se trata apenas de “tirar” a certidão. É
preciso que os diferentes órgãos públicos, no atendimento a esses setores,
dediquem também atenção aos aspectos subjetivos e culturais que atravessam a
questão do sub-registro de nascimento, para que suas ações possam ter efeitos
mais profundos e de mais longo prazo, contribuindo na construção dos indivíduos
e pessoas.
Nesse sentido, as Campanhas de Mobilização vindas de diferentes níveis,
federal, estadual e municipal, para obter documentos são importantes, mas não
devem ser pensadas isoladamente de todo um conjunto de ações permanentes e
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
179
que envolvam distintos setores da sociedade. Como a pesquisa demonstrou, as
crianças e adultos sem certidão de nascimento, apesar de terem um trânsito
limitado na sociedade, têm acesso a instituições, tais como: hospital de
emergência, posto de saúde, maternidade, escola, conselho tutelar, escola,
mutirões de documentos, igrejas, Defensorias Públicas, universidades, órgãos de
assistência buscando Informação sobre PBF, dentre outros. Essas instituições
precisam em conjunto encarar a questão do sub-registro, reforçando os esforços
federais feitos nessa área.
Para tal, caberia pensar num processo de formação dos profissionais dessas
diferentes Instituições para lidar com essa temática, seja em termos informativos,
seja em termos de postura metodológica que problematize a dimensão do controle
e a dimensão da educação junto à população, pois é um tema que facilmente
resvala para o preconceito e o senso comum.
Nessa linha, reforçar a divulgação que vem sendo feito na mídia, incluindo
informações referentes a legislações: Lei da Gratuidade – 9534 de 1997, Lei da
Paternidade – 8560 de 1992.
Uma ação possível seria a elaboração de uma ficha de notificação de casos
de crianças e adultos sem certidão de nascimento, com fins estatísticos, de
produção de dados sobre esse fenômeno e de localização dessas pessoas que
poderia ser organizada pela SES/RJ.
Isto nos leva a pensar que é necessário localizar essas crianças e adultos, o
que num primeiro momento poderia ser feito através de diferentes Instituições que
já atendem, de alguma forma, esses grupos.
Também sugiro ações no interior das maternidades, como a Inclusão desse
tema nas consultas de pré-natal; além disso, facultar o pré-natal às mães que não
possuem documentos com o acompanhamento do Serviço Social nas unidades de
saúde; o planejamento de um trabalho com as DN que não são buscadas pelas
famílias, dentre outras ações.
Em termos da DN, seria importante que ela Incorporasse dados sobre o pai
da criança e não apenas da mãe. Cabe ao Ministério da Saúde essa atribuição. Isto
nos leva aos denominados Mutirões da Paternidade, que vêm sendo realizados por
diferentes órgãos, em distIntas cidades brasileiras, com o objetivo de estabelecer a
paternidade na certidão de nascimento das crianças, quando as mães assim
desejam.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
180
Essas práticas são complexas, exigindo muitos cuidados, seja em termos
concretos, para não produzir melindres ou mesmo exposição das famílias, seja em
termos ideológicos, já que caberia Indagar: com que modelo de família essa
prática trabalha? Basta o nome de um pai na certidão de nascimento, para resolver
os problemas da família brasileira e da pobreza?
Há que se pensar também em como o IBGE pode Inserir-se nesse
processo, seja ao coletar dados sobre o pai brasileiro, seja ao solicitar os
documentos das pessoas que entra em contato nas suas investigações de
amostragem.
Em termos do sistema de registro civil brasileiro, caberia promover um
debate com a sociedade brasileira sobre a legislação que impede a mulher que não
é casada legalmente de registrar sozinha o filho no nome do pai, para que a
palavra da mulher quanto à declaração da paternidade seja respeitada.
A existência de crianças e adultos sem registro civil e sem certidão de
nascimento expressa a permanência de estruturas hierárquicas na sociedade
brasileira, fazendo com que esses setores ocupem um papel de Inferioridade
social. A democracia e a cidadania igualitária que os documentos podem
representar continuam sendo um sonho a ser perseguido.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
6
Referências Bibliográficas
ALENCASTRO, Luiz Felipe. Vida privada e ordem privada no Império In:
NOVAIS, Fernando A; ALENCASTRO, Luiz Felipe (org). História da Vida
Privada no Brasil, volume 2, São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
ALMEIDA, Maura Maria Guimarães. Subregistro de nascimentos em
Salvador: fatores que podem condicionar a deficiência do registro de
nascimento. Salvador: Dissertação de Mestrado em Saúde Coletiva,
UFBA, 1978, mimeo.
ARIÈS, Phillipe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro:
Guanabara, 1986.
ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges. História da Vida Privada, volume 2,
São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
AURÉLIO, Buarque de Holanda Ferreira. Novo Dicionário Aurélio da
Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986.
BAUMAM, Zygmunt. Globalização e conseqüências humanas. Rio de
Janeiro: Editora Zahar, 1999.
BAZÍLIO, Luiz Cavalieri, KRAMER, Sonia. Infância, Educação e Direitos
humanos. São Paulo: Editora Cortez, 2003.
BILAC, Elisabete Dória. Mãe certa, pai Incerto: da construção social à
normatização jurídica da paternidade e da filiação. Trabalho apresentado
no GT Família e Sociedade da XX ANPOCS, 1999.
BORGES, Paulo Humberto Porto. Sonhos e Nomes: As Crianças Guarani.
Campinas: Cadernos Cedes, ano XXII, n.56. Abril/2002.
BORTOLI, Dejane Luiza. O documento eletrônico no ofício de registro civil
de pessoas naturais. Florianópolis: Dissertação de mestrado em ciências
da computação, UFSC, 2002, mimeo.
BOTELHO, Lúcio José. Declaração de nascidos vivos valor preditivo para
a mortalidade Infantil. Florianópolis: Dissertação de Mestrado em Saúde
Pública, UFSC, 2003, mimeo.
BRASILEIRO, Tula Vieira. Pode entrar que a creche é sua. Rio de
Janeiro: Dissertação de mestrado em Educação, PUC- Rio, 2001, mimeo.
BRASILEIRO, Tula Vieira. Projeto Registre sua Criança. Rio de Janeiro:
Hospital Estadual Carlos Chagas, 2001, mimeo.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
182
BRASILEIRO, Tula Vieira. Filho de: um dos muitos nomes da Infância
brasileira. Rio de Janeiro: 10º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais
– CD Room, 2001.
BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas sobre a Teoria da Ação. Campinas:
Papirus, 1996.
BUJES, Maria Isabel Edelweiss. Infância e Maquinarias. Rio de Janeiro:
DP&A, 2002.
CABRAL, João de Pina. O limiar dos afetos: algumas considerações
sobre nomeação e a constituição social de pessoas. Lisboa, 2005, mimeo.
CAMPOS, Izaura Maria Moura. Comunidade, Escola e Desenvolvimento
Local: estudo no âmbito da comunidade urbana do distrito de Anhanduí,
município de Campo Grande. Dom Bosco: Dissertação de Mestrado em
Desenvolvimento Local, 2002, mimeo.
CARDOSO, Adilson Lopes, FERNANDES, Maria Idalina Marques, SILVA,
Antônio Augusto Moura da, ARAGÃO, Vânia Maria de Farias, SILVA,
Raimundo Antonio da. Subregistro de nascimentos no município de
Centro Novo do Maranhão. Rev. Brasileira de Epidemiologia, vol. 6, nº 3,
São Paulo, set. 2003.
CASTANHEL, Márcia Sueli Del. Registro de nascimentos vivos em
Florianópolis – SC, uma questão de cidadania. Santa Catarina:
Dissertação de mestrado em Saúde Pública, UFSC, 2003, mimeo.
CASTRO, Hebe M. Mattos de In: NOVAIS, Fernando A; ALENCASTRO,
Luiz Felipe. História da Vida Privada no Brasil, volume 2, São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.
CHARTIER, Roger. As práticas da escrita In: ARIÈS, Phillipe; DUBY,
Georges. História da Vida Privada, volume 3, São Paulo: Companhia das
letras, 1991.
CIPRIANO, Emília Maria Bezerra. Especialista e alfabetizador a
construção da práxis pedagógica pelo diálogo. São Paulo: Dissertação de
Mestrado em Psicologia da Educação, PUC- São Paulo, 1991, mimeo.
COHN, Clarice. A criança, o aprendizado e a socialização na antropologia
In: SILVA, Aracy Lopes (org.) Crianças Indígenas – Ensaios
Antropológicos. São Paulo: Editora Global, 2002.
COHN, Clarice. Antropologia da Criança. Rio de Janeiro: Editora Zahar,
2005.
COSTA, Ozanira Ferreira da. Com os pés no chão das ruas e praças:
uma análise da prática educativa das ONGs de Educação. Brasília:
Dissertação de Mestrado em Política Social, UNB, 1999, mimeo.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
183
CUNHA, Valdenice Fernandes da. O Subregistro de nascimento e os
aspectos administrativos do problema. São Paulo: Tese de Doutorado,
USP, 1993, mimeo.
CUNHA, Estela Maria Garcia Pinto. Condicionantes da mortalidade Infantil
segundo raça/cor no estado de São Paulo. Campinas, Tese de
Doutorado em Saúde Coletiva, Unicamp: 2001, mimeo.
DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Rio de Janeiro:
Editora Rocco, 1997a.
DAMATTA, Roberto. A casa e a rua. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1997.
DAMATTA, Roberto. A mão visível do Estado: notas sobre o significado
cultural dos documentos. Anuário Antropológico, número 99. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.
DANTAS, Laurentino Augusto. ECN: protocolo criptográfico para emissão
de certidão de nascimento na internet. Florianópolis: Dissertação de
Mestrado em Ciências da Computação, UFSC, 2001, mimeo.
DAUSTER, Tania. O lugar da mãe In: Comunicações do ISER Ano 2, n.7,
Rio de janeiro: ISER, 1983.
DAUSTER, Tania. Nome de família: maternidade fora do casamento e o
princípio de filiação patrilinear, Tese de doutorado em Educação, Rio de
Janeiro: PUC-Rio, 1987.
DAUSTER, Tania. Um outro olhar – entre a antropologia e a educação.
Cadernos de Educação PUC- Rio,1996.
DAUSTER, Tania. O Campo Simbólico da Universidade – os professores,
a diversidade cultural e a excelência acadêmica. Projeto de pesquisa,
PUC- Rio, 2002.
FARIAS, Eliane Pessoa. Como você se chama? Considerações sobre o
nome próprio. Boletim científico da Sociedade Brasileira de Psicanálise do
Rio de Janeiro, nº2, 2003.
FERRAREZ, Mônica. A garantia dos direitos das crianças e dos
adolescentes: uma análise a partir das notificações de maus tratos do
HECC/RJ. Dissertação de Mestrado em Serviço Social, Rio de Janeiro:
UERJ, 2005, mimeo.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
FONSECA, Claudia. Paternidade brasileira na era do DNA: a certeza que
pariu a dúvida. 2005 consultado em
www.icantropologia.org/quaderns.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
184
FONSECA, Claudia. Ritos de Recepção: nomes, batismos, e certidões
como formas de Inscrição da criança no mundo social. IN SOUSA, Sonia
M. Gomes. (org.) Infância e Adolescência: múltiplos olhares. Goiânia:
Editora da UFG, no prelo.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Editora Graal,
1979.
FOUCAULT, Michel. Resumo dos Cursos do Collège de France. Rio de
Janeiro: Zahar, 1997.
FREIRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Recife: companhia editora de
Pernambuco, 1970
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros
Técnicos e Científicos, 1989.
GEERTZ, Clifford. Obras e vidas. O antropólogo como autor. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 2002.
GENNEP, Arnold Van. Os Ritos de passagem. Petrópolis: Editora vozes,
1978.
GERMINARI, Geyso Dongley. O uso metodológico de documentos em
estado de arquivo familiar no ensIno de história na escola fundamental.
Paraná: Dissertação de Mestrado em Educação, UFPR, 2001, mimeo.
IBGE. Estatísticas do Registro Civil - 2004.
www.ibge.gov.br
IBGE. Estatísticas do Registro Civil - 2005.
www.ibge.gov.br
IBGE. Estatísticas do Registro Civil - 2006.
www.ibge.gov.br
JORGE, Maria Helena P. de Mello, GOTLIEB, Sabina Léa Davidson e
ANDRADE, Selma Maffei de. Análise dos registros de nascimentos vivos
em localidade urbana no Sul do Brasil. Rev. Saúde Pública, fev. 1997,
vol.31, no 1, p:78-89. ISSN 0034-8910.
JUNIOR, Rodolpho Telarolli. A secularização do registro dos eventos
vitais no Estado de São Paulo. São Paulo, Rev. Brasileira Estudos
Populacionais, 1993, vol. 10, p:145-159.
KANT, Immanuel. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
KUMAR, Krishan. Da Sociedade Pós-Industrial à Pós-Moderna, Rio de
Janeiro: Zahar, 1997.
LAPLANTINE. François. Aprender antropologia. São Paulo: Editora
Brasiliense, 2003.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
185
LOUREIRO, Ana Maria Bastos. Professor: identidade mediadora. São
Paulo: Loyola, 2004.
MAIA, A. C. Maria. Caracterização dos nascidos vivos hospitalares no
primeiro ano de implantação do Subsistema de Informação sobre
Nascidos Vivos em município de Minas Gerais, Brasil. 1996. Revista de
Saúde Pública, vol.31, no.6, São Paulo, 1997.
MAGRO, Viviane M. de Mendonça. Espelho em Negativo: a identidade do
outro e a identidade etária. In: GUSMAO, Neusa Maria Mendes (org.).
Infância e Velhice. Campinas: Editora Alínea, 2003.
MAKRAKIS, Solange. O registro civil no Brasil. Dissertação de Mestrado
em Administração, Rio de Janeiro: FGV, 2000, mimeo.
MARTINS, Francisco. O nome próprio. Brasília: UNB, 1991.
MELO, Aparecida Vieira; RODRIGUES, Eliana Monteiro; FERREIRA,
Angela Lenzi Azzi; PERDIGÃO, Magaly de Losso. Registros de
nascimentos com pais ignorados no município de São Paulo. Texto
apresentado no XI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, São
Paulo: 1998.
ODALIA, Nilo. Revolução Francesa: A liberdade como meta coletiva In:
PINSKY, Jaime & PINSKY, Carla. História da Cidadania: São Paulo,
Contexto, 2003.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir e
escrever. Rev. de Antropologia, vol.39, no.1, 1996, p:13-37.
OLIVEIRA, Maria Coleta. A família brasileira no limiar do ano 2000. São
Paulo: Rev. Estudos Feministas, vol.55, no 1, 1996.
PAIS, M. S. El registro de nascimiento el direcho a tener derechos. In:
Innocenti Digest. Centro e Invesgaticiones Innocenti de Unicef, no. 9,
marzo/ 2002.
PASSOS, Instituto Pereira. Desenvolvimento Humano e condições de vida
na cidade do Rio de Janeiro e seus bairros. Coleção Estudos da Cidade.
Rio de Janeiro: Instituto Pereira Passos, 2001.
PEIRANO, Mariza. Sem lenço e sem documento: reflexões sobre a
cidadania no Brasil. Sociedade e Estado, 1(1), p: 49-64, 1986.
PEIRANO, Mariza. A Teoria Vivida e outros ensaios de antropologia. Rio
de Janeiro: Editora Zahar, 2006.
PERES, Ana Paula Ariston Barion. Transexualismo: o direito à uma nova
identidade sexual. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em Direito,
UERJ, 1999, mimeo.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
186
PINSKY, Jaime. Introdução In: História da Cidadania. São Paulo:
Contexto, 2003.
PORTELA, Maria Helena de Rezende Brito. Subregistro de nascimentos
vivos em localidades do Estado do Piauí, Brasil. Rev. Saúde Pública, Dez.
1989, vol. 23,no 6, p:.493-501. ISSN 0034-8910
RABINOVICH, Elaine Pedreira. Atribuição de nomes próprios e seu papel
no desenvolvimento segundo relato dos nomeados. Revista Brasileira
Crescimento e Desenvolvimento Humano, ano 3, São Paulo, 1993.
REIS, Elisa Pereira. Processos e Escolhas. Estudos de Sociologia
Política. Typographos. Contracapa, 1986.
RODRIGUES, Eliana Monteiro. Estimativas de risco de mortalidade
neonatal a partir dos dados das declarações de óbito. São Paulo: Tese de
Doutorado em Nutrição. USP, 2002, mimeo.
SANTOS, Alba Lúcia dos. História de perdas fetais contadas por
mulheres. São Paulo: Dissertação de Mestrado em Saúde Pública, USP,
2000, mimeo.
SARAMAGO, José. Todos os nomes. São Paulo: Planeta De Agostini,
2003.
SARTI, Cynthia Andersen. A família como espelho: um estudo sobre a
moral dos pobres. CampInas: Editora Autores Associados, 1996.
SARTI, Cynthia Andersen. Famílias enredadas In: Família: redes, laços e
políticas públicas. São Paulo: IEE/ PUC- São Paulo, 2004.
SCLIAR, Moacyr. O nascimento de um cidadão In: PINSKY, Jaime &
PINSKY, Carla. História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003.
SCOCHI, Carmen Gracinda Silvan, COSTA, Isabel Aparecida Ribeiro,
ROCHA, Semiramis Melani Melo, LEITE, Adriana Moraes, NASCIMENTO,
Lucila Castanheira. Intervalo entre o nascimento e o registro civil: situação
no município de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. Rev. Brasileira de
Saúde Materno Infantil, vol. 4, no.2, abr/jun, 2004.
SIMÕES, Celso Cardoso da Silva. Estimativas da mortalidade Infantil por
microregiões e municípios. Brasília: Ministério da Saúde, 1999.
SIMÕES, Celso Cardoso da Silva. As estatísticas do registro civil e
estatísticas vitais. Seu histórico e situação atual. Rio de Janeiro, IBGE,
2002.
SOUZA, Regina K. Tanno de, GOTLIEB, Sabina L. D. Subregistro de
nascimentos vivos hospitalares em área urbana da região sul do Brasil,
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
187
em 1989. Rev. Saúde Pública, jun. 1993, vol. 27, nº 3, p:177-184. ISSN
0034 – 8910.
STOER, Stephen R., MAGALHÃES, Antonio M., RODRIGUES, David. Os
lugares da exclusão social. Um dispositivo de diferenciação pedagógica.
São Paulo: Editora Cortez, 2004.
THURLER, Ana Liési. Paternidade e Deserção. Crianças sem
reconhecimento, maternidades penalizadas pelo sexismo. Brasília: Tese
de Doutorado em Sociologia, UNB, 2004, mimeo.
UNICEF. The rights start to life.
http://www.unicef.org/ 2005
UNICEF. Situação Mundial da Infância 2006.
www.unicef.org.br
UNICEF. À Margem da cidadania.
www.unicef.org.br. 2006
VELHO, Gilberto. O antropólogo pesquisando em sua cidade: sobre
conhecimento e heresia In: O desafio da cidade. Rio de Janeiro: Campus,
1980.
VELHO, Gilberto. Desvio e Divergência. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura. Rio de Janeiro: Zahar,1987.
VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
VELHO, Gilberto. Mediação, Cultura e Política. Rio de Janeiro: Aeroplano,
2001.
ZATTAR, Neuza Benedita da Silva. Os sentidos da liberdade dos
escravos na constituição do sujeito da enunciação sustentada nos
instrumentos de alforria. Campinas: Dissertação de Mestrado em
Lingüística, Unicamp, 2000, mimeo.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
188
ANEXOS
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
189
ANEXO I
ROTEIRO ENTREVISTAS ADULTOS
1- Quantos anos você tem? Você sabe a data do seu aniversário? Você
comemora seu aniversário? Onde você nasceu? Você mora com quem?
2- Você sabe por que você não foi registrado?
3- Quem lhe contou essa história?
4- Você sabe por que seu pai/mãe não lhe registrou?
5- Você sabe quem escolheu e como escolheu seu nome? Como você é
chamada? Como é ser chamada por um nome e, na verdade, não ter
esse nome legalmente?
6- Você estudou? Como fez?
7- Em que situações você já precisou da sua certidão? Que dificuldades já
teve? Alguma situação do dia a dia? Como fez?
8- Como você se sente não tendo sido registrado? Como é viver sem ter
certidão de nascimento?
9- O que é uma certidão de nascimento para você?
10- Que tentativas você já fez para tentar tirar a certidão? Como foi isso?
11- Você trabalha? Já trabalhou?
12- E seus irmãos, houve alguma diferença em relação às certidões? Por
quê?
13- O que você acha do que sua mãe fez? E o seu pai?
14- Como está sendo com seus filhos? Ou como pensa em fazer com seus
filhos?
15- Como se sente com o fato de estar resolvendo isso agora?
16- Como pensa sua vida para frente? Tem algum plano? Desejos?
17- Percebe alguma diferença ou semelhança entre a sua vida e a de sua
mãe, e a de seus filhos pelo fato de vocês não terem certidão?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
190
ANEXO II
Questionário
Dados da Criança e do Nascimento
1- Nome da criança:
2 - Data de nascimento:
3- Situação da vacInação
4- Está na creche, escola? E o posto de saúde?
5 - Fez pré-natal? Onde?
6 - No pré-natal falaram da certidão de nascimento?
7 - Onde nasceu?(cidade e hospital ou casa?)
8 - Tipo de parto?
9 - Tinha posto de cartório onde nasceu? Se sim, porque não registrou na
maternidade?
10 - Quem estava com a mãe quando a criança nasceu? O pai foi lá em algum
momento?
11 - Você já pensava na questão da certidão antes da criança nascer?
Ficha Social
1 - A criança mora com quem?
2 – Trabalho do pai e da mãe e salário
3 – Escolaridade dos pais
4 - Recebe benefícios?
5- Condições da casa?
Ficha de identificação pessoal (pai e mãe)
1 - Nome do pai:
2- Data de nascimento:
3- Nasceu em que cidade:
4 - Endereço:
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
191
5 - Etnia:
6 - Estado civil:
7- Número de filhos e idades:
8 - Esses filhos são registrados?
9 – O pai / mãe está registrado no nome de quem?
só da mãe só do pai da mãe e do pai
10 - Na sua família como foi essa questão do registro de nascimento? Com seus
irmãos, avós.
10 - Possui quais documentos? Porque tem esses? Porque não tem os outros?
11- Como você guarda seus documentos em casa?
12- Como você anda com eles na rua?
Questões sobre o nome
1 - Por que escolheu esse nome?
2 - Quem escolheu o nome da criança?
3- Como escolheu esse nome?
Problematizando algumas questões
1 - Porque ainda não registrou?
2 - O que é a certidão de nascimento para você?
3 - Já precisou alguma vez da certidão? Como fez nesse caso?
4 - Como faz com a saúde, escola e programas de assistência? (eles pedem a
certidão?)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
192
ANEXO III
Transcrição da entrevista com Sandra
Tula: Hoje é dia 06 de novembro e eu estou aqui com a Sandra em Costa Barros
e a gente vai conversar um pouquinho. Sandra quantos anos você tem?
Sandra: Vinte e nove.
Tula: Vinte e nove. Você sabe a data do seu aniversário?
Sandra: Dia 1° de maio.
Tula: Você sabe o ano que você nasceu?
Sandra: Em 78.
(A fita é interrompida)
Tula: Quem te deu essas informações da data do seu aniversário?
Sandra: Minha avó.
Tula: A sua avó materna?
Sandra: É!
Tula: Qual o nome dela?
Sandra: Regina.
Tula: Você comemora o seu aniversário Sandra?
Sandra: Não.
Tula: Nunca comemorou?
Sandra: Não.
Tula: Por que você nunca comemorou?
Sandra: Eu não gosto não.
Tula: Por que você não gosta?
Sandra: Eu gostava, mas depois que eu perdi o meu irmão eu não “coiso” mais
não.
Tula: Antes de você perder o seu irmão você chegou a comemorar alguma vez?
Sandra: Já.
Tula: Você perdeu o seu irmão há quanto tempo?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
193
Sandra: Tem quatro anos.
Tula: E ele morreu como?
Sandra: A polícia foi quem matou.
Tula: Aqui mesmo em Costa Barros?
Sandra: Não, lá em Madureira.
Tula: Você sabe onde você nasceu?
Sandra: Em São Cristóvão.
Tula: Rio de Janeiro né? Atualmente você mora com quem?
Sandra: Eu e meu marido e dois filhos.
Tula: Qual o nome do seu marido e das suas crianças?
Sandra: Rogério, Kaylane e Wallace.
Tula: Como é que a sua avó te conta, te passou essas informações da data de
aniversário, da sua data de nascimento: foi falando, escrevendo, como é que é
isso?
Sandra: Não, ela só falou pra mim a data que eu nasci, aonde eu nasci. Não
falam muita coisa, ela e a minha mãe só vivem na guerra ainda.
Tula: Ela te contou por conta própria ou foi você que perguntou?
Sandra: Não, ela mesmo conta.
Tula: Sandra você sabe dizer por que você não foi registrada, por que você não
tem a sua certidão de nascimento?
Sandra: Porque a minha mãe não tem a dela.
Tula: A sua mãe também não tem a dela?
Sandra: O juiz vai tirar a da minha mãe agora, pra minha mãe poder tirar a
nossa.
Tula: Mas por que a sua mãe não tem a dela?
Sandra: Porque a minha avó não registrou, a minha avó falava que registrou,
mas só que ela foi nos cartórios e não consta, aí agora ela foi pro juiz e agora ela
está esperando resolver lá pro juiz poder liberar a dela.
Tula: E a sua avó diz que não registrou a sua mãe por quê?
Sandra: Ela fala que registrou, a minha mãe não acha a certidão, só que a minha
mãe já rodou os catorze cartórios e consta que ela não foi registrada.
Tula: E aí já está então quase na hora de sair a da tua mãe?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
194
Sandra: A da minha já.
Tula: A sua mãe está com quantos anos?
Sandra: A minha mãe está com quarenta, quarenta e poucos, é isso mesmo.
Tula: E por que só agora a sua mãe resolveu tirar a dela?
Sandra: Porque ela era preguiçosa, é preguiçosa ainda (risos)
(A fita é interrompida)
Tula: Bem, eu estava te perguntando por que só agora a sua mãe correu atrás
da dela, agora que ela está com quarenta anos? Aí você estava dizendo que...
Sandra: E porque a minha irmã ficou dando em cima dela e fui lá também e falei
com ela e meu padrasto está correndo com ela pra resolver isso, mas já tem um
tempo que eu não vou lá, tenho até que ir lá pra ver se ela já resolveu alguma
coisa.
Tula: Mas por que você acha agora a sua mãe resolveu tirar e por que antes ela
não tirou?
Sandra: Ela não fala o porquê, ela não criou a gente quem criou foi a mInha avó.
Agora que ela parou mais um pouco e ficou em casa, que a mInha mãe não
ficava em casa.
Tula: E por que a sua avó dizia que tinha registrado a sua mãe e não tinha?
Vocês conversaram isso com ela?
Sandra: Ela fala que registrou, ela morre dizendo que registrou, parece que a
mInha foi e não tem nada, não encontrou nada, aí agora o juiz vai tirar a dela,
outra. Pela primeira vez porque ela não tem aí vai ser a primeira pra ela poder
“registrar eu”, meu irmão, meus irmãos, os outros irmãos que não tem.
Tula: Você tem dois filhos. Qual o nome e a idade deles?
Sandra: O Wallace tem seis e a Kaylane tem quatro.
Tula: E como é que foi a história da certidão deles? Quem fez? Fez no nome de
quem? Como é que foi isso?
Sandra: No nome meu e do pai deles, o pai deles foi lá em Madureira e
conversou com um rapaz e aí o rapaz foi e tirou pra ele.
Tula: O rapaz do cartório?
Sandra: É!
Tula: O que ele conversou com o cartório para as crianças virem com o seu
nome?
Sandra: Que eu não tinha documento, aí ele queria botar no meu nome e no
dele, aí o rapaz foi e fez pra ele.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
195
Tula: Você sabe dizer se ele pagou alguma coisa?
Sandra: Não, fez de graça os dois.
Tula: Essa certidão deles é desde bebê ou foi maiorzinhos?
Sandra: Desde bebezinhos, desde bebê ele já tirou a certidão deles.
Tula: Você tem quantos irmãos Sandra?
Sandra: Eu tenho seis.
Tula: Você e mais seis?
Sandra: Não, tem eu, Rafael, Célia,Diogo, Rayssa e Ruane.
Tula: Algum desses cinco é registrado?
Sandra: A minha irmã Ruane é. No nome do pai.
Tula: Só no nome do pai?
Sandra: Do pai e da irmã dela que ajudou ela.
Tula: Sua irmã também?
Sandra: (...)
59
tem, fez doze anos agora.
Tula: A Ruane tem doze anos? Então deixa ver se eu entendi: na certidão de
nascimento da Ruane que hoje tem doze anos, entrou como pai o pai dela
mesmo...
Sandra: ... o pai dela.
Tula: ... o pai biológico né e como mãe ...?
Sandra: ...a irmã dela.
Tula: Que é a sua irmã também?
Sandra: Não.
Tula: Não? Ah, uma irmã por parte do pai.
Sandra: Do pai dela, é.
Tula: Uma filha do pai, é isso? Uma irmã dela como mãe?
Sandra: Isso!
Tula: Por que ela tinha documentos?
Sandra: Tinha.
59
Esse símbolo significa que não consegui compreender o trecho falado
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
196
Tula: E o pai biológico dela também?
Sandra: É, o pai dela também.
Tula: Então o nome da sua mãe não entrou na certidão da Ruane?
Sandra: Não, não, não, não entrou não.
Tula: Ela não tem lá na filiação nem no sobrenome?
Sandra: Não.
Tula: E ela sabe disso, a Ruane?
Sandra: Sabe, o pai dela já falou pra ela.
Tula: E a Ruane hoje mora com quem?
Sandra: Com o pai.
Tula: E é aonde?
Sandra: Lá no Largo do Tanque, em Jacarepaguá.
Tula: Então além da Ruane, você tem mais quatro irmãos, é isso?
Sandra: É!
Tula: E esses quatro nunca foram registrados?
Sandra: Não.
Tula: Então me dá o nome e a idade deles, aonde cada um mora, o que eles
estão fazendo da vida.
Sandra: O Rafael está com ..., eu estou com vinte e nove, o Rafael está com
vinte e oito.
Tula: É um ano mais novo que você?
Sandra: É.
Tula: Você é a mais velha?
Sandra: Eu sou a mais velha. Tem a Célia, a Célia está com..., não sei é vinte e
quatro, por aí. Tem a Rayssa que tem oito e o Pelé que fez dezessete.
Tula: E nenhum deles está registrado?
Sandra: Não.
Tula: Onde cada um deles mora?
Sandra: A Célia mora em Jacarepaguá, lá no Largo do Tanque também.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
197
Tula: Com quem?
Sandra: Com o marido dela e os filhos, agora está separada, está morando
sozinha só ela e os filhos.
Tula: A Célia tem quantos filhos?
Sandra: Dois.
Tula: Eles estão registrados?
Sandra: Estão também.
Tula: Você sabe no nome de quem eles estão registrados?
Sandra: Do pai e do dela.
Tula: E como é que eles fizeram?
Sandra: Ele foi também foi no cartório e conversou com um rapaz também e aí
foi e fez a certidão no nome deles, lá em Nova Iguaçu, que ela morava lá em
Nova Iguaçu e agora ela mudou pra lá. E o meu irmão tem quatro só que não é
registrado no nome dele, porque não pode porque ele não tem documento, só
esses que estão no nome da minha cunhada.
Tula: Os quatro são dele com essa sua cunhada?
Sandra: É, não leva o nome dele só da minha cunhada, entendeu?
Tula: Entendi.
Sandra: Fábio da Silva Moura que é só no nome da minha cunhada que é o
nome do meu marido também e ele fica falando: “-Poxa, os meus primos tem
tudo o nome de pai, mãe e eu só tenho o nome da senhora, eu não tenho o
nome do meu pai na minha certidão!” e aí a minha cunhada fala: “- Porque o seu
pai não tem, mas o dia que o seu pai tirar vai entrar o nome dele na certidão de
vocês!”, dos quatro dela pequenos.
Tula: Seu marido é irmão dela, é isso?
Sandra: É, é, é irmão dela.
Tula: E seu outro irmão?
Sandra: O Pelé? O Diogo?
Tula: É faltam dois, não é isso? Falta falar de dois.
Sandra: É o Diogo e a Rayssa.
(Alguém fala: “- O Fabio.”)
Sandra: O Fabio já morreu!
Tula: O Diogo está com quantos anos?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
198
Sandra: Dezessete.
Tula: E ele não está registrado?
Sandra: Não.
Tula: Onde ele está morando?
Sandra: Com a minha mãe.
Tula: Esse mora com a sua mãe?
(Breve silêncio como se tivesse respondido a pergunta balançando a cabeça)
Tula: Ele tem filhos?
Sandra: Não, tem não.
Tula: E o outro irmão ou irmã, quem é?
Sandra: É a Rayssa.
Tula: está com quantos anos?
Sandra: está com oito.
Tula: A Rayssa, eu acho que ela morava com você, não era?
Sandra: É!
Tula: Uma vez que eu vim na sua casa!
Sandra: É aquela mesma, só que agora ela está no colégio interno lá em
Vargem Pequena que a minha mãe botou ela, aí ela vai sair agora no fInal do
ano. Também o juiz de lá também apertou a mInha mãe pra a minha mãe correr
atrás da certidão senão ela ia perder ela pra ele, ela ia pra adoção, aí agora a
minha mãe está correndo atrás.
Tula: Então a Rayssa ainda não tem a certidão?
Sandra: Não, ninguém ainda tem.
Tula: A decisão de colocar ela nesse colégio interno foi de quem?
Sandra: Da minha mãe.
Tula: Você sabe o porquê? Como é que foi?
Sandra: Ah, porque ela tava aprontando muito, muito levada, fazendo coisa que
não devia, aí minha mãe botou ela lá.
Tula: Como era mesmo o nome do seu irmão que faleceu?
Sandra: Fabio.
Tula: Fabio. O Fabio quando morreu tinha a certidão?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
199
Sandra: Não.
Tula: Eu lembro que vocês comentaram alguma história da morte dele, dessa
questão da papelada, da documentação, conta pra mim como é que foi?
Sandra: Ele deixou uma filha que está com sete anos.
Tula: Vive com quem?
Sandra: A mãe dela deu ela pra uma moça criar lá no Quitondo.
Tula: E chegou a registrá-la antes de dar?
Sandra: É registrada no nome dela, da mãe dela, que é a minha cunhada, que é
irmã do meu esposo.
Tula: Só no nome dela?
Sandra: Só no nome dela.
Tula: E quando o seu irmão faleceu, como é que vocês resolveram essa questão
da papelada?
Sandra: A minha avó.
Tula: Me conta como é que foi?
Sandra: A minha avó registrou ele no nome dela, como se fosse filho dela pra
poder enterrar ele.
Tula: Quando ele morreu?
Sandra: É.
Tula: Você lembra em que cartório ela foi? Como foi que ela fez?
Sandra: Ah, ela fez tudo lá na cidade mesmo, lá perto do IML, pra lá, que era pra
reconhecer o corpo, pra enterrar, essas coisas, aí lá mesmo ela resolveu tudo.
Tula: Sua avó está morando onde agora?
Sandra: Na Cidade de Deus.
Tula: Junto com a sua mãe?
Sandra: Não, ela mora separado, ela mora de aluguel.
Tula: Então essa história de você não ter sido registrada, seus irmãos, quem é
que conta essas histórias pra vocês?
Sandra: A mInha avó fala que a gente não foi registrada, porque a minha mãe
não queria, que não sei o quê. A minha mãe já conta outra história diferente que
não registrou porque ela não tinha documento, que não sei o quê, aí fica nessa
história. A minha mãe não registrou, o meu pai não registrou, aí ficou assim.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
200
Tula: Vocês cinco são de cinco pais diferentes?
Sandra: É. Eu e meu irmão Rafael somos do mesmo pai, meu pai é o mesmo do
dele. Agora a Célia é de um, meu falecido irmão era de outro, o Pelé de um, a
Rayssa é de outro e essa minha irmã que é registrada é desse pai que está lá
com ela até hoje, cada um é de um pai.
Tula: E por que o seu pai não te registrou, você sabe?
Sandra: Porque a minha avó nunca deixou ele se aproximar da gente.
Tula: Ele não morava com a sua mãe?
Sandra: Não.
Tula: E por que a sua avó não deixou?
Sandra: Porque a minha avó não gostava da família dele e aí não deixava ele se
aproximar.
Tula: Mas ela achava que a família dele o que é que tinha?
Sandra: Ah, a minha avó acha que ninguém presta, aí ela não gostava da minha
avó, dos meus tios, aí não deixava eles “vê” a gente, meu pai “vê” a gente, a
minha avó nunca deixou. Ele morreu eu tava com nove anos, mas ele nunca me
via, assim, via às vezes quando eu saía com a minha avó, mas era muito difícil
também, porque a minha avó deixava a gente “tudo trancado”.
Tula: Você tem alguma lembrança dele?
Sandra: Eu lembro que o meu pai era moreno, assim, alto, tinha olho de gato, é
só isso assim porque “eu vi ele” muito pouco também, a minha avó nunca deixou
a gente se aproximar dele.
Tula: Ele não chegou a pegar vocês pra passear um dia?
Sandra: Não, a minha avó nunca deixou. Ele morreu sem ter contato com a
gente.
Tula: Você sabe quem escolheu o seu nome?
Sandra: Minha tia.
Tula: Qual tia?
Sandra: A tia RegIna.
Tula: É por parte de pai ou de mãe?
Sandra: De mãe, é irmã da minha mãe.
Tula: E porque ela escolheu esse nome, você sabe?
Sandra: Ah, porque ela achava esse nome bonito, aí foi e escolheu.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
201
Tula: De onde ela tirou?
Sandra: Ela não fala não.
Tula: Como que você é chamada pelos outros? As pessoas te chamam como?
Sandra: Sandra.
Tula: Sandra. Você tem apedidos?
Sandra: Não.
Tula: Nenhum?
Sandra: Nenhum.
Tula: Sandra você chegou a estudar?
Sandra: Até a primeira série, mas depois eu saí, não quis mais não.
Tula: Por quê?
Sandra: Ah, porque eu ficava pela casa dos outros, aí minha avó batia em mim e
nos meus irmãos, aí eu fugia de casa, ficava pela rua aí não quis estudar mais
não.
Tula: Na época que você estudou, você morava com quem?
Sandra: Com a minha avó.
Tula: Você lembra a escola em que você estudou?
Sandra: Ah, eu estudei em tanta escola por aí, eu nem me lembro mais.
Tula: Você estudou em tanta escola, mas só estudou até a primeira série?
Sandra: É, eu entrava e ficava dois, três dias e depois saía fora e não voltava
mais.
Tula: Você lembra com quantos anos você foi pra primeira escola?
Sandra: Eu estava com uns sete..., eu tava com sete anos, aí depois eu fiquei
até uma certa idade e aí depois eu peguei e saí, porque a minha avó ficava
batendo nos outros quando bebia, aí botava a gente pra fora, pra dormir na rua e
aí eu falei: “-Ah, eu não vou estudar mais não, vou ficar pela rua!” e aí eu fiquei
pela rua.
Tula: E isso era aonde, em que bairro?
Sandra: Eu morava lá na Mangueira.
Tula: Você nasceu em São Cristóvão e aí foi morar aonde?
Sandra: Eu morava em Ramos, eu me criei em Ramos.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
202
Tula: Aí depois morou um tempo na Mangueira?
Sandra: Foi, aí eu fui pra Mangueira e de lá fui morar direto na Cidade de Deus
com a minha mãe, foi quando eu encontrei a minha mãe e fui embora pra lá com
a minha mãe.
Tula: Como assim: encontrou sua mãe?
Sandra: Eu encontrei a minha mãe, porque assim, a minha avó tinha ficado
internada, que ela teve um derrame, aí ficamos morando com a minha tia e aí a
minha tia judiava muito dos meus irmãos, aí eu pedi a minha prima pra me levar
a gente pra achar a minha mãe, aí minha prima levou a gente de carro, aí eu
achei a minha mãe e aí eu fui embora morar com a minha mãe.
Tula: E quando você veio pra Costa Barros?
Sandra: Ah, eu vim pra Costa Barros quando a gente morava lá no Magarça, a
gente morava lá no Magarça, a gente morava lá no Largo do Tanque, em
Jacarepaguá, a gente morava lá numa invasão, aí a invasão saiu, aí “a gente
fomos” pra lá e aí ficamos morando lá e depois “a gente ganhamos” essas casas
aqui e aí depois viemos pra cá.
Tula: Você sabe dizer quem foi que te matriculou na escola? Nas escolas?
(A fita é interrompida)
Tula: Você sabe quem te matriculou nas escolas? Quem ia lá, via vaga?
Sandra: Minha avó, ela ia e via e eu estudava e aí depois ela “coisava” de novo e
aí eu fugia da escola de novo.
Tula: Sua mãe não morava com vocês?
Sandra: Não, minha mãe ficava pelo mundo aí. Ela saía ia pra casa quando
engravidava, aí ela ia pra casa, aí ela tinha o neném e deixava lá e ia embora.
Tula: Então era a sua avó que ia nas escolas. Você sabe dizer, se a sua avó
comentava alguma coisa, o que ela falava pra escola pra conseguir a sua vaga
sem a sua certidão?
Sandra: Ela não fala não.
Tula: Você chegou a aprender a ler, a escrever nesse tempo que você ficou?
Sandra: Um pouquinho, eu não sei quase nada.
Tula: Você escreve o seu nome?
Sandra: É muito difícil.
Tula: Você nunca chegou a pensar em estudar em casa ou que alguém te
ensInasse?
Sandra: Já!
Tula: Chegou a fazer isso?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
203
Sandra: Cheguei a estudar com uma moça, aí depois a moça falou que não ia
poder mais vir, aí ela pegou e não veio mais e aí eu peguei e não estudei mais
não.
Tula: Desanimou?
(Breve silêncio, como se tivesse respondido a pergunta balançando a cabeça)
Tula: Sandra, em que situações do dia a dia na sua vida você já precisou da sua
certidão de nascimento?
Sandra: Ah, muitas vezes.
Tula: Por exemplo?
Sandra: Ah, negócio de trabalho, pra mim ir ter neném, fazer o pré-natal, não
tem certidão e aí eles falam: “-Cadê o documento?” e aí eu falo: “- Não tenho!” e
aí eles: “- Ah, você não pode fazer!”
Tula: Você fez pré-natal de algum deles?
Sandra: Nenhum dos dois.
Tula: Você tentou fazer?
Sandra: Tentei, fui no posto fazer exame, aí acusou e me deram o papel e aí eu
peguei e fui, mas aí a moça falou que eu não podia porque eu não tinha o
documento.
Tula: Eles só falavam isso? Eles não te mandavam pra Assistente Social, não
faziam nada?
Sandra: Não mandavam não. Eu pedi pra me encamInhar porque aí eu
conversava com a Assistente Social e aí eles falavam: “-Ah, não pode, que não
sei o quê, você tem que ter um documento!” Várias coisas a minha certidão faz
faltas, várias coisas.
Tula: Você falou de trabalho: como é que é isso?
Sandra: Ah, às vezes eu quero trabalhar de carteira assinada assim e não tem
como, como é que eu vou trabalhar sem ter um documento pra provar que sou
eu.
Tula: Você já chegou a trabalhar?
Sandra: Ah, eu trabalhei assim, em casa de família que não pede documento,
mas sempre tem umas que pedem né e aí fico de arrumar e aí a mulher
perguntando: “- Cadê o documento?” e aí eu falar: “- Ah, eu não tenho!” e aí me
faz muita falta o documento, agora me faz muita falta.
Tula: Aí você falou do pré-natal, do trabalho, da escola, alguma outra situação?
Sandra: Ah, tem várias situações que pedem o documento.
Tula: Por exemplo?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
204
Sandra: Ah, pra tudo! Fazer um cartão, fazer um negócio e pede documento e
você não tem, meu marido trabalha de carteira assinada assim, quer fazer
negócio de plano de saúde e eu não posso entrar porque eu não tenho
documento, ele fazer um cartão pra mim às vezes e não pode porque eu não
tenho documento, muita coisa. Ele fala: “-Sandra vai agir o teu documento, você
precisa do teu documento!”, mas eu preciso esperar pela minha mãe.
Tula: Como é que você se sente com tudo isso Sandra?
Sandra: Ah, às vezes eu até choro, às vezes eu choro porque é muito ruim você
não ter um documento, muito ruim mesmo. Eu, minha irmã também, meu
sobrInho é doente e pra agir as coisas dele lá também não pode porque não tem
documento. Era pra ele ter passe livre, ela, mas não tem porque ela não tem
documento pra “coisar” ele, ele perde vários tratamentos por causa de
documentos também, muita coisa. Meu irmão tem quatro filhos e não pode
arrumar um emprego de carteira assInada porque não tem documento.
Tula: E nesses momentos em que você chora, como é que é esse choro? O que
você sente?
Sandra: Ah, eu vejo todo mundo ter documento assim, e só eu que não tenho né,
é muito ruim. Às vezes o meu sogro, a mInha sogra “fala”:- Poxa Sandra, vai agir
os teus documentos, às vezes você tem um trabalho, quer arrumar alguma coisa
e não pode, porque não tem o documento pra falar quem é você. Ah, você fala,
meu nome é Sandra, mas existem várias por aí, e não tem um documento pra
provar que você é você!” Isso é muito horrível e eu falo isso até pra mInha mãe,
quando eu vou lá, eu falo pra ela e aí ela: “- Não, eu já tô tirando!”, mas nunca
vem o documento, e eu não tô indo lá na minha mãe, tem um tempão que eu
não vou lá.
Tula: Se a gente combinar de ir lá você me leva até a sua mãe?
Sandra: Levo.
Tula: O que você sente em relação a sua mãe por ela não ter te registrado?
Sandra: Ah, às vezes eu fico com raiva dela, por não ter tirado a minha certidão
desde que eu nasci, porque eu falo pra ela: “- Eu nunca vi a pessoa ter filho, sair
da maternidade sem registrar!” e aí ela fala: “- Mas eu tive oportunidade, que eu
não sei o quê!”. A minha avó fala uma coisa, ela fala outra e fica as duas no jogo
de empurra, até hoje
Tula: Então o sentimento que te vem mais forte é a raiva?
Sandra: É!
Tula: E você fala isso pra ela?
Sandra: Falo. Eu, meus irmãos “fala” tudo isso pra ela, o meu irmão que morreu
também falava, porque ele tinha a filha dele, porque ele queria trabalhar, pra dar
uma moral, uma ajuda pra garota e não tinha como, tanto que ele se revoltou,
virou bandido, virou ladrão, morreu roubando por causa disso, porque ele não
tInha o documento dele.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
205
Tula: E você sabe dizer como é que a sua mãe se sente não tendo registrada
pela sua avó?
Sandra: Ah, ela fala: “-Ah, a minha mãe diz que ela me registrou, agora chega na
hora e a mInha mãe não me registrou, que não sei o quê...” e aí fica no jogo de
empurra: a minha avó fala que registrou, ela fala que a mInha avó não registrou
ela, que nos cartórios que ela correu consta que ela não é registrada e aí fica
nesse jogo de empurra, pra baixo e pra cima. E aí ela anda pra lá e pra cá e diz
que o juiz ficou agora de dar os documentos dela, dar a certidão dela agora, aí
eu não sei porque eu não tô indo mais lá e a minha irmã também não está vindo
aqui.
Tula: E em relação ao seu pai, o que você sente? Por que ele também não te
registrou né?
Sandra: Mas porque tipo, a mInha avó nunca deixou a família dele chegar perto
da gente, entendeu? Ter aquela aproximação: eu era a filha dele, O Rafael era
filho dele, ele dava as coisas a gente e a minha avó jogava fora, entendeu? Aí eu
não sei lá, eu não sinto raiva dele porque eu acho que tudo veio da minha avó.
Eu tenho uma tia e ela mora aqui na Kelson, ela pede sempre “pra mim” ir na
casa dela, é irmã do meu pai, ma saí eu nem vou...
Tula: Você nunca teve contato com ela? Por que agora você já é adulta né?
Sandra: Ela sabe que eu tenho dois filhos e ela pediu pra eu levar as crianças
pra ela conhecer, mas eu nunca fui lá não. Eu não tenho contato com ela, ela
não tem contato comigo, ela sabe que eu existo porque tem um moço que mora
aqui na outra rua que o irmão dele é marido da minha tia, aí ela sabe como é
que eu vivo, mas eu não pretendo ir lá não, porque eu acho que eles quisessem
alguma coisa assim, eles me procurariam, e aí não procuro eles também não.
Tula: Sandra o que é certidão de nascimento pra você?
Sandra: Ah, pra mim a certidão é tudo, você sem uma certidão de nascimento
não é nada, sem ela não é nada, nada, nada. Eu queria muito ter a minha na
minha mão , mas vou esperar pra ver o que Deus faz, a minha mãe disse que o
juiz falou que ia dar a dela né e eu tô esperando, pra ver como é que vai ficar.
Tula: Você acha que é Deus que vai resolver?
Sandra: Ah, eu acho. Eu peço tanto a Deus que resolva isso logo, não agüento
mais não ter documento. Eu quero trabalhar, quero ter as mInhas coisas assim,
e eu não tenho condições de agir nada, porque assim, o meu marido trabalha e
se acontecer alguma coisa com ele eu não tenho direito a nada porque eu não
tenho documento que prove nada, eu posso até correr não pra mim, mas pelos
meus filhos eu não posso.
Tula: Você disse que a certidão de nascimento é tudo. Como assim tudo?
Sandra: Ah, porque com ela era pra eu está com os meus documentos na mão,
ter a mInha vida, trabalhar, aí tirar um cartão, tirar mInhas coisas pra dentro de
casa e eu não posso porque eu não tenho, aí tenho de esperar tudo por ele.
Tula: Sandra, você já fez alguma tentativa pra tentar tirar a sua certidão de
nascimento?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
206
Sandra: Já, já andei pra caramba.
Tula: Me conta essa história?
Sandra: Ah, já mandaram eu ir ali em Acari, eu fui também e não consegui. Fui lá
na cidade não consegui nada, só com a minha mãe, aí eles falaram: “-Só com a
mãe!”, aí fui lá pra casa da minha sogra lá em Sepetiba fui com a mInha cunhada
num negócio que tava tendo lá pra tirar a certidão, aí fui e aí eles falaram que só
com a mInha mãe que eu podia tirar. Aí eu falei: “-Ah, eu não vou mais não!” A
minha irmã também andou pra caramba, grávida do meu sobrInho pra tirar e não
conseguiu.
Tula: Seus irmãos já tentaram tirar?
Sandra: Já, todo mundo já andou, minha cunhada já andou com o meu irmão
mas não consegue, eles falam que pra gente ter a certidão só se a minha mãe
fosse morta e a gente tivesse atestado de óbito dela.
Tula: Mas você já é adulta, você própria já pode tirar a sua certidão?
Sandra: Eu já fui, mas eles falam: “-Você tem que ter um documento da sua mãe
para provar alguma coisa, que assim não pode, que não sei o quê...” e aí
começa a falar um montão de coisas e aí eu me irrito e vou embora e volto mais
lá.
Tula: E por que você acha que é tão complicado assim, pra conseguir tirar, vai
num lugar, vai em outro, demora? Por que você acha que é assim?
Sandra: Não sei. Sempre passa falando: “- Ah, quem não tem a certidão vai lá e
tira pela primeira vez e que não sei o quê...” e quando você vai não é nada
daquilo que eles falam, você nunca consegue tirar. Eu já andei, já andei, andei
sozInha, já andei com a minha cunhada e não consegui nada.
Tula: E aí depois de andar, andar, andar e não conseguir nada...
(A fita é interrompida. Ouvem-se gritos de criança ao fundo)
Tula: Bem, a gente tava falando depois de andar, andar e não resolver, o que
você sente, o que você pensa?
Sandra: Ai, eu penso que às vezes eu não vou conseguir tirar porque eu já andei
tanto, andei grávida dela, primeiro andei grávida dele aí não consegui, aí andei
grávida dela também e não consegui nada. A mInha irmã também andou
grávida, com o maior barrigão, Inchada e não conseguiu. O meu irmão também,
tadInho, ele é doido pra trabalhar de carteira assInada e não pode. A gente às
vezes fica até pressionando ela e às vezes ela fala: “-Vocês me pressionam
muito!”, mas a gente também quer ter o nosso documento, ela eu sei lá, eu acho
que ela não se preocupa em ter o dela, não sei. Pensa que se um dia ela for tirar
o documento ela vai ser presa, eu não sei, porque ela já aprontou tanto nessa
vida aí. Mas eu já falei pra ela: “-Eu quero o meu!”. Minha irmã também
pressiona ela, ela tem que tirar né. Entra ano, sai ano e ela não age nada, não
age nada! Esse ano ela falou que ia agir, vamos ver. Tem um tempão que eu
não vou na casa dela pra saber.
Tula: Um tempão é quanto tempo?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
207
Sandra: Ah, eu não vou lá desde julho “ver ela”, desde julho que ela não me vê,
nem eu e nem as crianças.
Tula: Você falou dessa história que de repente que ela já aprontou muito e tem
medo até de ser presa. Fala um pouco disso?
Sandra: Ah, porque ela andava aí no mundo das drogas, se envolvendo com os
bandidos, aí já foi presa e aí eu acho que ela tem medo de ser presa né, de na
hora de tirar os documentos, a impressão digital dela constar alguma coisa, eu
acho que é por isso que ela tem medo de tirar os documentos. Agora eu falei pra
ela: “-Isso aí não tem nada haver não!” A gente não pode pagar por um erro que
ela já cometeu na vida dela né.
Tula: Mas ela fala isso? Ela tem esse medo?
Sandra: Não, ela não fala, mas às vezes a gente desconfia porque ela tem medo
de agir as coisas assim, aí eu falo: ela deve ter medo de ser presa, dela ter
aprontado tanto, ter fugido de delegacia que ela aprontou quando ela ficava com
o pai do meu irmão que morreu que é traficante pelo mundo a fora, aí eu acho
que ela tem medo é disso.
Tula: Uma vez que a gente conversou, vocês contaram que a sua avó também
tentou registrar algum de vocês e deu algum problema. Como é que foi essa
história?
Sandra: É, ela foi registrar a gente como se fosse filho dela, mas aí ela foi presa
porque não podia.
Tula: Nessa hora ela tinha ido registrar todos vocês?
Sandra: Nós quatro. MInha mãe só tInha quatro filhos nessa época que era eu, a
Célia, o Rafael e o falecido Fabio.
Tula: Mas como é que no cartório souberam que ela não era a mãe? Você sabe?
Sandra: Ah, ela já era velha pra ter aqueles filhos todos, aí meu tio foi lá e soltou
ela, porque o meu tio é delegado de polícia, aí foi e soltou ela.
Tula: Você percebe alguma coisa parecida, alguma semelhança ou alguma
diferença entre a sua vida e a vida da sua mãe? Pelo fato de você não ter a
certidão e ela não ter tido também, você acha que tem alguma coisa em comum
ou não? Você acha que são histórias diferentes pelo fato de não ter a certidão?
Sandra: Eu acho que sei lá..., a mInha mãe que não quis agir, porque se a mInha
mãe quisesse agir isso há muito tempo a mInha mãe já tInha agido, entendeu?
Porque a pessoa quer alguma coisa, a pessoa persiste até conseguir, mas a
minha mãe vivia pelo mundo, tinha filhos e largava, ia embora, ficava nos
pagodes pela vida em Madureira e não queria saber de nada. O último filho dela
ela largou neném, que era o meu irmão que morreu e que eu ajudei a mInha avó
a criar. A minha mãe foi embora com os peitos cheios de leite e largou o meu
irmão recém-nascido na mão da mInha avó.
Tula: E aí comparando essa história com a sua?
Sandra: Ah, eu acho que mInha mãe sei lá..., a mInha mãe não..., eu às vezes
falo pra ela que ela não tem amor de mãe, não gosta dos filhos, porque eu acho
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
208
que a pessoa que gosta dos filhos quer dar o nome dos filhos né? Porque um dia
ele tem crescer, tem que estudar, tem que ter a sua vida, igual a gente “a gente
crescemos” cada um tem a sua vida, cada um foi pro seu lado e não tem
documento, não tem nada, aí fica um..., tipo que o meu irmão já tem quatro
filhos, eu tenho dois, a mInha irmã tem dois, meu irmão morreu e deixou uma, às
vezes o meu irmão está parado e aí tem que ajudar, eu ajudo entendeu? A
mInha avó ajuda dá uma coisInha, outro dá outra, a mInha sogra também ajuda,
porque se ele tivesse o documento dele com certeza ele não precisaria da ajuda
de míngüem, porque estava trabalhando e teria o dInheiro dele ali. Aí às vezes a
gente fica com raiva da mInha mãe por isso.
Tula: Você acha que ter o nome da mãe é uma coisa importante?
Sandra: É! Mesmo que não tenha o do meu pai, mas tendo o dela né, já é
alguma, mas ela não se preocupa. Ela acha que a vida é assim normal e pra ela
mesma fica difícil porque ela não tem documento e não pode arrumar um
emprego, agora ela está doente, depois que o meu irmão morreu ela teve
derrame aí ficou com a mão esquecida e aí vive dependendo do meu padrasto e
aí às vezes o meu padrasto se separa dela e ela fica passando necessidade e aí
eu falo pra ela: “- Agora se você tivesse os seus documentos e recebia um
dInheiro que o Estado paga pra pessoas deficientes né ela não tem como fazer
nada, fica de pé e mão atado porque não tem documento.
Tula: Você acha então que dar o nome é uma forma de mostrar amor pelos
filhos?
Sandra: Eu acho que sim, eu acho. Porque é assim: eu tenho dois filhos, eles
nascessem e eu não ligasse de registrar eles, eu acho que quando eles
crescessem eles iam cobrar de mim né, porque eles não tem o documento: “-Ah,
mãe porque você não tirou o meu documento?” e o que eu ia falar pra eles: “-Ah,
porque eu não tenho o meu, vocês também não tem o de vocês!” E isso porque
eu e a mInha irmã arrumamos um homem até bom, a mInha irmã arrumou um
que registrou os dela, o meu registrou os meus e se eles também não quisessem
registrar? Aí ficava uma coisa bem difícil né?
Tula: Você tava falando que essa coisa de dar o nome é uma certa maneira de
vocês se identificarem entre vocês, criarem um vínculo?
Sandra: É! Também.
Tula: Fala um pouco mais disso?
(A fita é Interrompida)
Tula: Você tava falando dessa coisa do documento como se ajudasse na
formação de um grupo né?
Sandra: É!
Tula: Como é que é isso?
Sandra: A cada um tem o seu documento, cada um tem a sua vida e cada um já
tem a sua vida, mas fica alguma coisa assim, às vezes a mInha irmã também
passa dificuldades com os filhos dela porque ela se separou do marido, não tem
um documento pra correr atrás de nada, o filho tem direito as coisas também não
pode porque ela não tem os documentos pra “coisar”, igual o negócio do Bolsa-
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
209
Família quem fez foi a sogra pra ela receber. Eu se for eles assim de caso, não
sei se eu posso, ele não pode receber porque trabalha de carteira assInada,
ganha bem e não tem como receber pra mim e aí sou eu que tenho que receber
e como é que eu vou receber? Tem várias coisas assim que a gente pára pra
pensar, a gente conversa com a mInha mãe e aí ela fala: ”-Ah, a gente já está
agIndo, não sei o que...”, mas que nunca chega essa certidão.
Tula: A gente tava fazendo uma comparação entre a sua vida e a vida da sua
mãe. Sua mãe estudou, trabalhou?
Sandra: Nunca!
Tula: Nunca estudou?
(Breve silêncio como se tivesse respondido a pergunta balançando a cabeça)
Tula: A sua avó nunca colocou ela na escola?
Sandra: Botou, só que ela pegou..., a mInha avó botou ela até na escola paga, a
mInha avó botou ela e aí foi e ela foi e enfiou o lápis no cú do ganso, aí foi
expulsa da escola, aí depois não quis mais estudar, aí ficou dormIndo pela rua,
ficou se misturando, aí dali ela foi crescendo, crescendo e foi tendo filho e o
mesmo destIno que ela teve ela quis dar pros filhos.
Tula: E esse destIno está sendo o mesmo?
Sandra: Não, eu não segui o destIno dela entendeu? Eu não uso drogas, eu não
gosto, mas meu irmão usava, a mInha irmã usa, o filho dela é até doente por
causa de drogas do pai e dela, dela e do menIno que usa drogas também, o meu
irmão também não usa o outro, esse que mora lá na Cidade de Deus, o Rafael,
o Pelé também não, o Pelé bebe mas não usa drogas. Aí os meus irmãos “veio”
com o destIno da mInha mãe, a gente já veio mais “coisa”, eu acho que o
destIno que a mInha teve é o destIno que os meus irmãos estão tendo também.
Aí ela fala: “- Ah, não sei quem eles puxaram!” Eu acho que puxaram ela né?
Tula: E você sabe se eles têm consciência disso, se eles param pra pensar
nisso?
Sandra: Ah, meu irmão falou que não larga a droga, só quando morrer, o meu
irmão falava também que não ia largar e termInou morrendo e aí largou mesmo,
mas a irmã eu não si qual será o destIno dela mesmo. (...) é doente e também
não..., cheira, fuma, faz tudo, fez tudo o que tudo o que a mInha mãe fez na vida:
roubou, traficou, fez tudo, foi o destIno que a mInha mãe teve.
Tula: (...) os seus filhos estão registrados?
Sandra: está.
Tula: Mas ela não tem o documento?
Sandra: Ela não.
Tula: Sandra, quando você pensa assim, que um dia você pode vir a ter a sua
certidão de nascimento, que ela pode chegar e tal, um dia nas suas mãos,como
é que você pensaria, como é que você imagIna esse dia, esse momento e o que
você pensaria da sua vida daí em diante?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
210
Sandra: Ah, eu penso que vai ser o dia mais feliz da mInha vida, ter a mInha
certidão.
Tula: Por que?
Sandra: Ah, porque tem tentos anos que eu venho lutando pra ter e nunca tenho,
vai ser é o melhor dia pra mim.
Tula: E daí em diante: o que você sonha, imagIna, faz de conta...?
Sandra: Eu quero trabalhar! Eu quero trabalhar, ter as mInhas coisas, poder ter
os meus documentos na mInha mão, tomara que esse dia “chega”
Tula: E o que você acha que precisa pra ela chegar?
Sandra: Eu tô precisando é só da mInha mãe agora, pra ela correr atrás e ir lá
pra ver se está tudo “coisa” porque ela já foi no cartório e a mulher falou que
agora só depende do juiz pra tirar o dela.
Tula: Deixa ver se eu entendi: por que você como adulta, você própria pode tirar
a sua certidão, eles iriam convocar a sua mãe em algum momento, já que ela é
viva né? Você não tomou esse camInho de você própria ir lá tentar tirar e a
Justiça convocar a sua mãe, ou você está querendo que a sua mãe tenha essa
atitude de ir lá e te registrar?
Sandra: Não, já fui, já conversei lá, aí eles falam que tem que ter a mInha mãe,
porque a mInha mãe ainda não tirou a certidão da gente até agora, porque agora
a gente “somos” todo mundo de maior, o único de menor lá é o Pelé e a Rayssa
que é de menor; e eu, o Rafael, a Célia, tudo de maior tudo não tem os
documentos? Aí eu falo: “- Porque a mInha mãe não registrou, porque não sei o
que...” Aí eles falam: “-Não, é sua mãe que tem que registrar voces, não tem
condições de vocês tirarem uma certidão “sozInha”, teria sim se ela tivesse
morrido e se vocês tivessem o atestado de óbito dela.”
Tula: Quem te falou isso mesmo?
Sandra: Lá cidade, é que eu já fui lá na cidade, em todo lugar que os outros
anda eu ir porque vai tirar e aí eu vou e aí todo mundo fala a mesma coisa pra
mim. Aí fui em Sepetiba, conversei até com um advogado que tem lá, e aí ele
falou a mesma coisa pra mim: “-Só tiro se a mInha mãe tirar a mInha! E aí é já
mais um camInho aberto já tirar a dela e me dar pra tirar a mInha, aí pra mim se
torna mais fácil, porque eu teria prioridade se a mInha mãe fosse morta, se eu
tivesse atestado de óbito dela, mas a mInha mãe é viva, prova que ela é viva e
eu não posso tirar. Porque no caso se eu tirar, depois ela tirar a dela dá até
cadeia, porque eu tô..., ele me explicou lá né. Como é que eu vou tirar uma
certidão com a pessoa viva e assim, aí eu expliquei pra ele que a mInha mãe
tava tentando tirar a dela e tal, aí ele falou: “-Agora mesmo que você não pode
tirar, porque ela já mexeu no caso, então tem que deixar ela ir até o fim. Pra ela
poder ter a dela, dar pra você, pra você ir tirar a sua.”
Tula: Ele falou algo tipo falsidade ideológica...?
Sandra: É!Isso mesmo!
Tula:...Falso testemunho...?
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
211
Sandra: Isso mesmo, que eu fui com a mInha cunhada e aí a mInha cunhada
também conversou com ele e ele falou que não pode. Tem que esperar ela
mesma tirar a dela, pra gente poder ir tirar a nossa.
Tula: Então, quando sim você conseguir a sua, a sua mãe tendo tirado a dela,
você acha que vai ter algum sentido pra você assim de que alguma forma é a
sua mãe que vai está te registrando?
Sandra: É!
Tula: Que ela deveria, poderia ter feito isso?
Sandra: Ter feito isso quando a gente era pequeno né. Agora depois de grande
todo mundo já tem filho é que ela veio agir com isso.
Tula: Ela tem quantos anos?
Sandra: MInha mãe tem quarenta, não sei se é quarenta e sete, é um negócio
assim que a mInha mãe tem.
Tula: Ela é nova!
Sandra: É, a mInha mãe é nova.
Tula: Então ela teve seis filhos, é isso? Ou ela teve mais outros?
Sandra: No caso, eu era gêmea só que o meu irmão morreu e só ficou eu.
Tula: Morreu bebê?
Sandra: Morreu bebê, aí ficou só eu. A mInha mãe era pra te muito mais filhos
ainda, só que a mInha avó “fazia ela” fazer aborto, ela também tirava, aí no caso
só ficou sete. No caso ela só tinha quatro, aí depois ela arrumou o Pelé, a
Andreza que morreu também com um ano, ela tInha um anInho, morreu de
verme, aí depois ela engravidou do Pelé, aí veio o Pelé, aí depois ela largou..., o
pai do Pelé morreu, aí ela arrumou essa mInha irmã que tem doze anos hoje, a
Ruane, aí depois ela foi e arrumou esse pai da mInha irmã que é a Rayssa, que
é a mais nova, lá de casa. Agora ela ligou se não também ela tava com mais
filho por aí, aí no caso só tem seis mesmo.
Tula: Você tem algum lugar na sua casa que vocês guardam os documentos que
vocês têm? Os das crianças, ou alguma papelada dessa sua aí de tirar a
certidão, tem alguma pasta, alguma coisa assim que você guarde?
Sandra: De papel meu eu até rasguei, fiquei com tanta raiva que eu até rasguei.
Tula: Como é que foi isso?
Sandra: Ah, porque tenta tirar e a gente não consegue e aí eu falei: “- Ah, não
vou correr mais nada não!” aí eu fui e rasguei “os papel”. Mas a certidão das
crianças eu guardo, eu guardo ali. Eu vou até comprar uma pastazInha “pra mim”
botar.
Tula: Posso ver a certidão das crianças?
(A fita é interrompida)
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
212
Tula: Quem escolheu esse nome Wallace?
Sandra: O pai dele.
Tula: De onde ele tirou você sabe?
(Breve silêncio)
Tula: Como é o nome do seu marido?
Sandra: Rogério.
Tula: O Catarino é da sua....?
Sandra: É da mInha avó.
Tula: E o da Silva é do Rogério?
Sandra: É o da Silva é do Rogério.
Tula: Aí tem avó materna: Andréia CatarIna...
Sandra: É mInha mãe.
Tula: Sua mãe?
Sandra: É!
Tula: E a Kailane, como é que você escolheu esse nome?
Sandra: Foi ele também que escolheu.
Tula: Quem escolhe os nomes é o Rogério?
Sandra: É! Ele que escolhe.
Tula: Por que?
Sandra: Ele gosta de escolher nomes.
Tula: Você não?
Sandra: Não, eu ia botar o nome dela de Monique, ele não quis, aí botou
Kailane.
Tula: A palavra fInal é dele?
Sandra: (Risos)
Tula: A Kailane foi registrada com uma diferença maior né?
Sandra: Foi.
Tula: Ela já tava com mais de dois anos não é isso?
Sandra: É!
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
213
Tula: O Wallace não, o Wallace é de 19 de dezembro de 2000, 26 de dezembro
de 2000. Ela nasceu em 04 de agosto de 2003 e foi registrada em 07 de
novembro de 2005. O que aconteceu que deu essa distância de dois anos?
Sandra: Porque ele ficou com medo de ir por causa dos meus documentos e não
ter os meus documentos pra registrar e o cara não fazer pra ele. Aí o meu
compadre ficou InsistIndo: “-Vai lá, vai lá! Pra ver se consegue!”, aí ele pegou e
foi e conseguiu.
Tula: Ela nasceu no Rocha Faria. Esse cartório aqui é em Madureira, o outro
também foi em Madureira também, o mesmo cartório, ok. Sandra, pra encerrar, o
que você teria a dizer, o que você teria a perguntar?
Sandra: Como assim?
Tula: A gente está encerrando né esse primeiro papo nosso, as perguntas que
eu tinha pra fazer, conversar com você eu fiz aqui. Então pra fechar essa nossa
conversa gravada de hoje, se tem..., quer deixar mais algum depoimento, quer
falar alguma coisa?
Sandra: Não.
Tula: Nada? Não quer acrescentar nada? Uma frase, um sentimento, uma...?
Sandra: Ah, meu sentimento é só ter a mInha certidão, queria muito ter, antes do
Natal, mas tô vendo que não vai dar.
Tula: Você queria esse presente de Natal esse ano?
Sandra: Queria minha certidão.
Tula: Mesmo que não saia esse ano, você acredita dentro do fundInho do seu
coração que você vai conseguir um dia?
Sandra: Eu tenho. Eu tenho muita fé em Deus que eu vou conseguir e apertar a
mInha mãe também é claro, até ela tomar atitude dela mesma ir lá, porque ela
falou que está esperando o juiz, então vamos ver.
Tula: Ela já mostrou algum papel pra você disso?
Sandra: Ela está com as papeladas na mão.
Tula: Você viu?
Sandra: Vi tudInho.
Tula: Ela de fato está fazendo o que está fanlando?
Sandra: está! Já foi lá no DETRAN “pra coisar” as impressões digitais dela e
agora só falta a autorização do juiz pra ela pegar a certidão dela.
Tula: Ela já correu cartório?
Sandra: Já, ela já fez tudo, só falta isso.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
214
Tula: Sandra, tem muita gente diz que a certidão de nascimento tem haver com
a pessoa ser cidadão, ter a cidadania. Você acha que tem haver alguma coisa
com a outra: a certidão de nascimento e a cidadania? Ser cidadão?
Sandra: Eu acho que sem certidão não é.
Tula: Não é o quê?
Sandra: Não consta pro mundo que você existe.
Tula: Então você acha que certidão de nascimento e cidadão tem alguma
relação?
Sandra: Tem.
Tula: E qual seria essa relação pra você?
Sandra: Ah, porque hoje em dia você sem certidão você não é nada sem
documento.
Tula: está. Você quer acrescentar mais alguma coisa?
Sandra: Não.
Tula: Então, Sandra, muito obrigada.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
215
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
216
6
a
Circunscrição da 3
a
Zona do Rio de Janeiro
Dilson Neves Chagas
Oficiol
RegisTrodor
l2] Rua Teofilo Otoni nO
188,
Centro- tel:
(021) 22232461
ou
22232479
Registro Civil das Pessoas Naturais
CERTIDÃO DE NASCIMENTO
TRASLADO
ordem
13907,
CERTIFICO que a fls. 114 do livro n° 35 AE sob o número de
foi
lavrado
hoje
o assentamento de
Lucas
Henrique Vieira Brasileiro, nascido no dia 25 de junho de
1999, às 12:00 horas, no(a).Rio de Janeiro, do sexo masculino,
filho de Tula Vieira Brasileiro, sendo avós maternos: Jota
Brasileiro e Norma Vieira. Foi declarante Tula Vieira Brasileiro.
Dispensadas as testemunhas/na forma do artigo 529 da Consolidação
Normativa da C.G.J. Observações: Art.46 da Lei 6015/73.-*--*--*-
Eu
O~ana
(jerrwutiUi\
TJII 01/16414
extraí.
.~, escrevente autorizado, a
referido é verdade e dou fé.
Rio de Janeiro, 14 de setembro de 2004
/ L~
~~LI
?
Oficial j1óRegistro Civil
Tab. 03,11 R$ 10,3: Tab. 01,09 R$ 1.82 FETJ 20% R$ 2.43
Sem Emolumento - LS
OfJana qembatiu{
TJII 01/16414
RFM37893
111111111 \\11 \11111 111 IIII! 111I111111111111111 IU\
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
217
ANEXO VI
ALGUNS FRAGMENTOS DA HISTÓRIA DE CONSTITUIÇÃO DO REGISTRO
CIVIL
O que sabemos sobre a história do registro civil? Como será que o direito
ao registro civil veio se configurando na realidade brasileira?
O estudo do registro civil nos remete a era da Antiguidade. Nas primeiras
épocas da história da humanidade, em decorrência da simplicidade das
estruturas sociais e jurídicas, se atribuía pouca importância ao estado civil das
pessoas, as mesmas não tinham a necessidade de pré constituir prova de seu
estado civil e tão pouco da sua publicidade. Assim sendo, tais registros tinham
somente finalidades militares e tributárias (Laurenti et al In Castanhel, 2003).
Na Grécia Antiga e no Império Romano, as Informações sobre
nascimentos e casamentos eram comunicadas pelos chefes das famílias
(Altmann e Ferreira, 1981).
Em Atenas, o pai requeria a Inscrição num registro próprio destInado aos
cidadãos livres após ter prestado juramento da legitimidade do filho nascido vivo.
Num segundo momento, ao completar 18 anos, quando atIngia a maioridade o
cidadão ateniense era novamente registrado, completando seu nome civil. Por
fim, aos 21 anos era feito um novo registro, momento da plenitude de seus
direitos privados e públicos. Esses registros dificilmente poderiam ser
consultados, sendo mantidos selados, em poder de funcionário próprio (Almeida
In Makrakis, 2000).
Segundo Hakkert (1996), data do segundo século antes de Cristo o
primeiro sistema sobre registro civil na China.
Nas obras dos séculos IV e V de São Gregório de Nissa e Santo
Agostinho que tratam de épocas bem anteriores, a existência dos registros de
batismo remonta aos tempos mais antigos da Igreja (Júdice In Makrakis, 2000).
O costume dos registros eclesiásticos perdurará e se estenderá aos casamentos
e óbitos.
Na Roma Antiga, segundo Almeida (In Makrakis, 2000) a existência das
“tabulae albi professionum liberorum natorum” eram criadas pelas “lex aelia
sentia” no ano 4 DC e no ano 9 DC as “lex papia”. A autora conclui que era
estendido a todo Império a escrituração de livros por funcionários municipais,
onde se registravam os nascimentos, emancipações, casamentos, divórcios e
mortes. Indica que esses registros não eram obrigatórios e sim de Interesse dos
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
218
próprios cidadãos que forneciam dados relativos a seus nomes, filiações e datas
dos eventos em função do efeito prático na ocorrência do fato (In Makrakis,
2000).
Em relação aos registros eclesiásticos será somente na Idade Média,
segundo Júdice In Makrakis, que se poderá perceber os primeiros sInais do uso
do registro religioso par fIns civis (2000).
Segundo Almeida, até essa época a utilização do registro se resumia à
prova do matrimônio, mas de forma deficiente, além da Inexistência das listas de
falecimento e anotações de batismos. Não havia nessas práticas publicidade e
grande segurança da prova do estado civil das pessoas. Eram anotações de
cunho religioso, não havendo a idéia de que poderiam ser Interessantes do
ponto de vista civil. Havia dados imperfeitos e outros essenciais que eram
omitidos.
Os batismos, por exemplo, ligavam-se à data do sacramento e não à data
do nascimento, os nomes anotados eram os dos padrinhos e não os dos pais.
Nos registros de falecimento assinalava-se a data do enterro e não a da morte
(In Makrakis, 2000).
Segundo Castanhel (2003), os autores Laurenti et al (1985), Lopes
(1960), Telarollli Junior(1993) e Hakkert(1996),
“... esta sistemática de registros não era confiável sob o
ponto de vista quantitativo e qualitativo. Pois, como os
párocos não tinham critérios pré-estabelecidos, a forma
de Inscrever os registros atrelava-se ao livre arbítrio de
cada um. Além do mais, tais registros eram restritos aos
adeptos da religião católica. Um outro problema
encontrado era que esses registros eram pagos, de
forma que quando uma pessoa não dispunha de
dinheiro para tal fim, o mesmo não era realizado” (pg,
9).
Em 1536, se regulamentou em Portugal a idade dos nubentes aptos para
o casamento, assim como a necessidade de registro dos casamentos celebrados
pela Igreja em livro especial por tabelião. Nesse mesmo ano, já se previa o
registro paroquial dos batismos realizados na igreja lisboense (Júdice In
Makrakis, 2000).
Com base nesses fragmentos da história, percebe-se, como relata
Telallori Junior (1993), que os primeiros registros dos eventos vitais em moldes
próximos aos atuais foram os registros eclesiásticos. Estes foram normatizados
e generalizados pelo concílio de Trento, no século XVI, que determinou para
todos os párocos dos países católicos a obrigatoriedade do estabelecimento de
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
219
arquivos paroquiais. Nestes deveria haver o registro dos batismos, nascimentos,
casamentos e óbitos, que até então eram facultativos (Makrakis, 2000; Lopes In
Castanhel, 2003).
Segundo Makrakis, é nesse período que o registro civil laico vai sendo
Introduzido, acabando o caráter essencialmente religioso e, ao mesmo tempo
surge a figura do escrivão, responsável pelos registros e assentos (2000).
Um dos mais antigos sistemas de registro de nascimentos e óbito, a
cargo de autoridades civis foi o estabelecido pelos Incas no Peru, no século XVI
(Telallori Junior, 1993). Os Incas registravam seus nascimentos e óbitos usando
cordões coloridos e com nós que chamavam de “quipus”. Estes eram
anualmente apresentados ao governo para conhecimento e controle da
população (Prescott apud Laurenti et al In Castanhel 2003).
A Revolução Francesa será um marco quando torna lei a publicidade do
estado civil das pessoas. Com o Código Napoleônico regulamenta-se o Registro
Civil que determinava a responsabilidade de sua Inscrição, que foi transferida
para o Estado. Também se criou um fluxo dos fatos vitais e uma forma
sistematizada do registro. Estas medidas, características da modernidade,
Influenciaram os sistemas de Inscrição dos fatos vitais na Europa (Silveira e
Lobbol (1973); Lopes (1960); Laurenti et al(1985) In Castanhel, 2003).
É importante salientar e Makrakis Indica isto, que não é recente a idéia da
necessidade de se dar conhecimento dos atos jurídicos privados. Aparece com
maior ou menor força, dependendo da época e situação. O desenvolvimento
histórico dos registros e suas formas de publicidade não se deram de forma
lInear, nem de sucessivo progresso, nem igual em todos os lugares. Diferentes
sistemas conviveram, às vezes nas mesmas localidades, podendo ser
determinada pelo Interesse da administração pública, ou por Interesse privado
de terceiros. (2000).
Na América Latina, a legislação regulamentada do registro civil data da
segunda metade do século XIX. O primeiro país a adotá-la foi o Peru, em 1852,
uma herança, talvez da tradição Inca, seguido do México (1859), Venezuela
(1863) e por último a Colômbia (1939), segundo Telallori Junior (1993).
No Brasil, no tempo do Império, em função das relações entre a Igreja e o
Estado, os registros paroquiais eram revestidos de todo o valor probante,
desconhecendo-se outra forma de registro que não o religioso, e perduraram por
quase um século como forma de registro civil (Lopes In Castanhel, 2003;
Makrakis, 2002).
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
220
Remonta ao período Colonial a preocupação com a caracterização
demográfica da população e o objetivo, a prIncípio, era militar.
Em 1776 foi realizado o primeiro Censo pelas autoridades civis e
religiosas, com Informações vindas das capitanias. Durante o século XIX,
houve tentativas de elaboração de estatísticas vitais a partir dos registros
eclesiásticos (Balhana, 1986; Pereira, 1982 In Telarolli Junior, 1993).
No Brasil Colônia, a Igreja exerceu atribuições de natureza administrativa
importantes, o registro de nascimento era feito no momento do batismo, assim
como os registros de óbitos e casamentos que eram denominados Registros
Eclesiásticos, além de encarregar-se do ensino e da assistência social (Telallori
Junior, 1993; Alencastro, 1997). Mesmo após a Constituição de 1824, temos
uma realidade em que:
“[...] a continuidade da união entre a Igreja e o Estado
imperial e o reconhecimento do catolicismo como
religião oficial dispensariam por quase todo o século a
adoção do registro civil como forma de identificação
legal do cidadão brasileiro e de garantia de seus direitos
civis... Dessa maneira manteve-se a prática dos livros
eclesiásticos, em que desde o período colonial,
assinalavam-se nascimentos, casamentos e óbitos em
volumes distintos, de acordo com a condição livre ou
cativa dos indivíduos registrados” [...] (Castro, 1997, p:
339).
A adoção do catolicismo como religião oficial, implicando a exclusão dos
não-católicos dos empregos públicos e do exercício de cargos de representação
popular, como deputado e senador, foi criticada pelo pensamento liberal e
republicano (Telallori Junior, 1993).
Para Luz, (1994), a história do registro civil no Brasil prendeu-se à
problemática da imigração que se Intensificou a partir do século XIX, trazendo
pessoas que tinham outra religião que não a católica, então oficial no país.
Fazia-se necessário à Instituição do registro civil de casamentos, nascimentos e
óbitos e o seu reconhecimento jurídico diante das Instituições do estado, pois, as
únicas fontes de registro civis na época eram os registros eclesiásticos. Luz
entendia que o ser cidadão naquela época passava necessariamente pelo ser
católico.
Os registros eclesiásticos dos eventos vitais apresentavam, contudo,
certas limitações Inerentes à sua natureza, entre elas a íntima relação entre sua
Integridade e o empenho dos párocos nessa atividade, a Inclusão apenas dos
católicos, a falta de padronização na coleta de informações nas diferentes
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
221
paróquias, e o fato de registrarem não os eventos vitais e suas datas, mas as
cerimônias a ele relacionadas (Silveira e Laurenti, 1973 In Telarolli Junior,
1993).
Durante todo o período Imperial, a única fonte de dados para as
estatísticas vitais era a Igreja Católica. As poucas tentativas de criação de um
sistema laico de registros mostraram-se Infrutíferas.
O registro civil brasileiro foi finalmente criado nos últimos anos do
Império. Dada a grande resistência das autoridades eclesiásticas, porém, só
seria implantado, e com modificações, no período Republicano (Telallori, 1993).
A prática de registro civil de nascimento tornou-se, então, uma ação do
Estado a partir da Proclamação da República, com a criação do Código Civil em
1889, assim como o casamento civil e o registro de óbito. Assistimos a
separação entre Estado e Igreja quando a igreja católica deixa de controlar uma
série de atividades ligadas ao domínio público de todos os brasileiros, como a
vida e a morte das pessoas (Melo et alli, 1998; Simões, 2002)
A República regulamentou a separação entre Estado e Igreja na
Constituição Federal de 1891 e assegurou a todos os indivíduos o livre exercício
de culto religioso, o reconhecimento pelo Estado somente do casamento civil e a
secularização dos cemitérios, que passaram a ser administrados pelas câmaras
municipais (Oliveira, 1990 In Telallori Junior, 1993), além de garantir o ensino
laico nos estabelecimentos públicos.
Porém, nem tudo foi tranqüilo nesse processo. Houve resistência do
clero, seus agentes criavam toda espécie de dificuldades à implantação do novo
sistema, muitas vezes também por parte da admInistração pública que mostrava
uma certa Indisposição com a Igreja e da população, em forma de
desobediência civil. O casamento religioso, o batismo e o registro eclesiástico de
óbito contInuaram por muito tempo tendo a preferência da população. Situação
mais acentuada nos primeiros quInze anos, mas que deixaria conseqüências. No
entanto, cInqüenta anos depois de sua secularização, o registro civil tornou-se
uma prática comum entre os brasileiros, embora o subregistro fosse ainda muito
acentuado em diversas regiões do país. Num levantamento de 1947 foram
encontrados em vários municípios do Interior de MInas Gerais e do Espírito
Santo índices de subregistro de até 70% do total de nascimentos; e de quase
40%em Vitória (Telallori Junior, 1993). Percebemos assim que o subregistro de
nascimentos existe não é de hoje, atravessando os tempos desde a República.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0410361/CA
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo