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Eloiza Dias Neves
ENTRE O “QUINTAL”, A “CASA” E A “RUA”,
O OFÍCIO DOCENTE EM CONTEXTO RURAL
um estudo de caso
Tese de doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação do
Departamento de Educação da PUC-Rio como parte dos requisitos
parciais para obtenção do título de Doutora em Ciências Humanas
Educação
Orientadora: Isabel Oswald Monteiro Lelis
Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510358/CA
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Eloiza Dias Neves
Entre o “quintal”, a “casa” e a “rua”, o ofício docente em
contexto rural um estudo de caso
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação do
Departamento de Educação da PUC-Rio como parte dos requisitos
parciais para obtenção do título de Doutora em Ciências Humanas
Educação. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Prof. Isabel Alice Oswald Lelis
Orientadora
Prof. Tânia Dauster
PUC-Rio
Prof. Menga Lüdke
PUC-Rio
Prof. Ana Maria Monteiro
UFRJ
Prof. Pedro Benjamin Carvalho e Silva Garcia
UCP
Prof. Paulo Fernando C. de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas - PUC-Rio
Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 2008
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510358/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem a autorização da
universidade, da autora e da orientadora.
Eloiza Dias Neves
Graduou-se e licenciou-se em Letras (português-
inglês) pela U.F.R.J. em 1984, a partir de quando
trabalha no ensino fundamental da rede particular.
Atuou como lexicógrafa do Instituto Antônio Houaiss
e desde 2001 vem trabalhando com o tema da
formação de professores, seja na perspectiva da
formação em serviço, nos âmbitos do sistema
particular de ensino na cidade do Rio de Janeiro
(Cândido Mendes e PUC-Rio) e de uma organização
não governamental, seja na perspectiva da formação
inicial, no âmbito dos cursos de Pedagogia e outras
licenciaturas na Universidade Federal do Rio de
Janeiro.
Ficha Catalográfica
CDD: 370
Neves, Eloiza Dias
Entre o quintal”, a “casa” e a “rua”, o ofício
docente em contexto rural: um estudo de caso /
Eloiza Dias Neves; orientadora: Isabel Lelis.
2008.
260 f. ; 30 cm
Tese (Doutorado em Educação)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2008.
Inclui bibliografia
1. Educação Teses. 2. Educação rural. 3.
Escola rural. 4. Ofício docente. 5. Identidade
profissional. 6. Estilos de ensinar. I. Lelis, Isabel.
II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Educação. III. Título.
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Dedico este estudo a todas as pessoas que acreditam que a mudança é necessária e
possível. E que ela depende da participação de cada um de nós.
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Agradecimentos
Agradeço a meus pais, Abel e Nazareth, pelo incentivo aos estudos que deram a mim
e a meu irmão, Abelzinho (in memoriam). Ao meu pai devo o esforço e o trabalho
que me permitiram desenvolver minha vida acadêmica. Minha mãe foi quem me
ensinou que nós, humanos, nascemos especialmente para saber.
Aos meus filhos, Ana e Nino, pelo amor.
À minha orientadora Isabel Alice O. Lelis, pelo estímulo e parceria.
Às professoras doutoras Menga Ludke, Zaia Brandão, Sonia Kramer, Tânia Dauster e
Alicia Bonamino, pelo compartilhamento de seus saberes acadêmicos.
À professora doutora Ana Maria Monteiro (UFRJ) e ao professor doutor Pedro Silva
Garcia (UCP), pela participação na banca de defesa .
À professora doutora Hedy Silva Ramos de Vasconcelos, pela amizade em todas as
horas.
Às colegas de turma Ana Lúcia Vaz, Marcela Fernandez, Solange Rocha, Maria
Cristina Galvão e Lobélia Faceira, que me ajudaram com sua imensa alegria e
cumplicidade.
A todos os professores da escola-da-dona-Clair, pela disponibilidade no acesso ao
exercício de seu ofício.
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A todos os estudantes da escola-da-dona-Clair, em especial a Simone, Edilane, Jeani
e Bárbara, pela preciosa ajuda na aplicação dos questionários aos colegas.
Ao professor doutor Rui Canário, da Universidade de Lisboa, pelo compartilhamento
de seus saberes sociológicos quando da estruturação da tese.
À professora doutora Zeila Demartini, pelos preciosos contatos com a produção
brasileira sobre educação rural.
À professora doutora Maria Regina Clivati Capelo, da Universidade Estadual de
Londrina (PR), pela generosa interlocução sobre o tema da educação rural.
Ao professor doutor Anderson Tibau, que compartilhou comigo seu imenso saber
sobre “a casa, a rua e o outro mundo”.
À ex-aluna na U.F.R.J. e agora colega de doutorado Roberta Teixeira, pelo exemplo
de coragem e persistência.
Às colegas Elisangela Bernado e Fernanda Pedrosa, pela paciência e conhecimentos
compartilhados especialmente na elaboração e tabulação dos questionários. À Alice
Pereira Xavier, pela ajuda com o tratamento das entrevistas. E ao amigo Marcos
Roberto Carmona, pela ajuda na formatação final da tese.
Aos colegas José Ângelo Gariglio e Maria das Graças do Nascimento, pela
interlocução pertinente.
Às amigas Branca Falabela Fabrício e Fernanda Schnoor, pelo apoio em diversos
momentos.
Ao CNPq e à PUC-Rio, pela ajuda financeira.
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Resumo
Neves, Eloiza Dias; Lelis, Isabel Alice Oswald Monteiro. Entre o “quintal”, a
“casa” e a “rua, o ofício docente em contexto rural: um estudo de caso. Rio
de Janeiro, 2008. 260 p. Tese de doutorado – Departamento de Educação.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A escola no meio rural é um tema periférico no meio acadêmico educacional
brasileiro. Conhecer quem são os professores brasileiros que atuam em contexto rural
constitui condição essencial para que se possam efetivar as expectativas ligadas à
profissão e à valorização deste trabalhador. A presente investigação se situa no
universo das pesquisas sobre o trabalho dos profissionais docentes, sua formação e o
exercício do seu ofício. Filia-se aos estudos que privilegiam, por um lado, a
importância dos contextos e organizações escolares, e, por outro, o realce da
singularidade dos sujeitos. O objetivo foi conhecer os modos de exercício do ofício
de professores que lecionam várias disciplinas, em todas as ries, mais de dez
anos, em uma escola pública situada no meio rural fluminense, cujos estudantes têm
tido o melhor desempenho regional no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). O
estudo de caso de base etnográfica fez uso de técnicas associadas à etnografia
(observação participante, análise de documentos e entrevista biográfica), além de
questionário, e procurou compreender quais os sentidos os professores dão àquela
escola, qual a imagem que têm de si e de sua profissão, assim como quais os estilos
de ensinar desenvolvem. Para a interpretação dos dados, a interlocução foi feita com
autores da sociologia e da antropologia, como Dubar, Dubet, Canário, Tardif, Geertz
e Roberto DaMatta. O grupo docente parece ter elevada auto-estima, sendo a escola
percebida pelo menos por três modos: uma “escola-família”; um espaço de se
ensinar-aprender; e, ainda, o “quintal da casa (baseada em categorização de
DaMatta, 1997). Os estilos de ensinar variam de acordo com estas representações
anteriores tanto sobre a escola como sobre os estudantes.
Palavras-chaves
Educação rural; escola rural; ofício docente; identidade profissional; estilos de
ensinar
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Abstract
Neves, Eloiza Dias; Lelis, Isabel Alice Oswald Monteiro. The ‘backyard’, the
‘house’ and the street’ - teaching in rural regions: a case study. Rio de
Janeiro, 2008. 260 p. Doctor’s degree thesis – Departamento de Educação.
Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro.
Rural schooling is a peripheral issue in Brazilian Schools of Education. In order
to meet teachers’ expectations and to value those from schools in the countryside, it is
a crucial condition to know what type of professionals they are. The present research
is on teachers’ training and performance. It is part of several studies that, on one
hand, emphasize the importance of school context and organization and, on the other
hand, emphasize the uniqueness of each research subject. It aims at understanding the
procedures of teachers who, for more than ten years, have been teaching different
subjects to primary and secondary school students at a public school in Rio de Janeiro
agricultural area. These students have had the best regional performance at ENEM -
Exame Nacional do Ensino dio (Brazilian National Exam of Secondary
Education). The present ethnographically-based case study made use of ethnographic
techniques (participative observation, document analysis and biographic interviews)
and questionnaires, so that we could understand teachers’ views of the school they
work at, the image they have of themselves and of their profession, as well as the type
of teaching they develop. The analysis of the data was based on sociologists and
anthropologists, such as Dubar, Dubet, Canário, Tardif, Geertz and Roberto DaMatta.
The teaching staff we studied seem to have high self-esteem and see their school in at
least one of three perspectives: the ‘family-school’, the teaching-learning
environment and the ‘backyard’ (based on 1997 DaMatta’s category). Their different
teaching styles vary according to these representations of school and students.
Keywords:
Rural Education; rural schools; teaching; professional identity; teaching styles
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Sumário
1. Introdução 11
2. Profissão docente e mutações da escola 17
2.1. Escola 18
2.1.1 A escola como objeto de estudo 19
2.1.2 Mudanças na organização escolar 23
2.1.3 A cultura e a organização escolar 27
2.1.4 O urbano e o rural: uma primeira aproximação 29
2.2. Professores 36
2.2.1 Os estudos 36
2.2.2 O estatuto social 39
2.2.3 A formação 45
3. As escolhas metodológicas 50
3.1 Questionários 55
3.2. Abordagem biográfica: elementos metodológicos,
vantagens e limitações 59
3.2.1 Entrevistas biográficas 61
4. A escola-da-dona-Clair 66
4.1 A escola e o contexto local 66
4.1.1 Vista Alegre 67
4.1.2 Caracterização social dos pais 69
4.2. Caracterização da escola 73
4.2.1. Espaços e equipamentos 73
4.2.2. Histórico 76
4.2.3 População discente 80
4.2.4. População docente e pessoal auxiliar 87
4.3. Funcionamento e modos de interação coletiva 90
5. As identidades dos professores da escola-da-dona-Clair 99
5.1 O processo de negociação identitária 100
5.1.1 A identidade para o outro: “os professores
dessa escola são ótimos” 104
5.1.2 A identidade biográfica para si 107
5.1.2.1 Um grupo docente “espetacular” 107
5.1.2.2 A escolha profissional possível 110
5.1.2.3 A formação na prática 112
5.1.3 A identidade “relacional” para si: entre a escola como a casa
e o pai ausente 117
6. Ofício docente: entre a “casa”, a “rua” e o “quintal”, modos de
perceber o mundo, de ser e de fazer
125
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6.1 No “mundo da casa”: efeitos de disposição 127
6.1.1 A força das experiências familiares 129
6.1.2 A força da formação escolar 135
6.1.2.1 As escolas freqüentadas e a escola-da-dona-Clair 135
6.1.2.2 As primeiras relações professor-aluno vividas 137
6.2 No “mundo da rua”: efeitos de posição 143
6.2.1A força das experiências anteriores à da escola-da-dona-Clair 144
6.2.2 A força da escola-da-dona-Clair 151
6.2.2.1 Na escola como na “casa” 152
6.2.2.2 Na escola como na “rua” 157
6.2.2.3 Na escola como no “quintal” da casa 164
7. Conclusão 173
8. Referências bibliográficas 180
9. Anexos 191
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1
Introdução
Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende.
(Guimarães Rosa, 1967)
O trabalho do professor tem sido considerado um dos principais vetores de
transformação da organização das sociedades atuais, embora, paradoxalmente, esteja
sofrendo um processo de desvalorização, desde o último quartel do século XX. Essa
ambigüidade está presente no estatuto social e econômico dos professores,
considerado um eixo estruturante da profissão por António Nóvoa (1991a). Se o
professor tinha grande prestígio social e situação econômica digna até o meio do
século passado, o mesmo não se pode falar nos dias de hoje, ainda que o ensino em
ambiente escolar represente uma das esferas fundamentais da sociedade moderna na
atualidade, integrando cada vez mais a cultura, a economia e a política e sendo
responsável pela instrução dos seres humanos em suas mais diversas profissões.
Além do valor da profissão e dessa ambigüidade, também os números
impressionam: no Brasil, existem 2,64 milhões de profissionais docentes, trabalhando
em Creche, Pré-Escola, Classe de Alfabetização, Ensino Fundamental e Ensino
Médio, para um total de 52,9 milhões de estudantes matriculados em 198,5 mil
estabelecimentos de ensino, dos quais 82,6% são públicos e 17,4%, privados (INEP,
2007). Conhecer quem são os professores brasileiros constitui condição essencial para
que se possam efetivar as expectativas ligadas à profissão, e, da mesma forma, para
que se concretizem as iniciativas voltadas à valorização dos docentes.
Por sua vez, os números oficiais sobre a profissão docente em meio rural
confundem. Os estudos Estatística dos Professores no Brasil (INEP, 2004) e O Perfil
dos Professores Brasileiros (UNESCO, 2004) não revelam o número exato de
professores que atuam no meio rural, embora o primeiro documento, como adianta o
título, provê as estatísticas: 61,6% dos professores brasileiros atuam no interior
(considerado o que não é capital e suas periferias)
1
, dos quais 56,6% são homens e
1
A questão da classificação rural e urbano será abordada à frente, mas por hora deve-se considerar
que interior se refere aos espaços não-urbanos, mas também nos pequenos centros urbanos do interior,
considerados todos como espaços de ruralidades.
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62,8%, mulheres. 45,3% deles, aqui no Sudeste. Felizmente, a última produção do
INEP (2006), denominada A Educação no Brasil Rural, diminui a confusão: há
354.316 professores atuando na educação básica do campo (contra 2.065.269
trabalhadores das áreas urbanas), que representam 15% dos profissionais em
exercício no país (INEP, 2006, p. 41). São, em sua grande maioria, os menos
qualificados e os que recebem os menores salários.
Nas últimas décadas, analisar o trabalho dos professores tem sido objetivo
crescente de estudos realizados no âmbito das ciências da educação, estudos esses que
procuram investigar a materialidade das práticas de ensino desenvolvidas pelos
docentes em seus diversos e singulares locais de trabalho. O tema da formação de
professores cresceu a partir da década de 1980 no Brasil e o assunto dos saberes e das
práticas pedagógicas tem ocupado um lugar central nas pesquisas sobre o ensino em
vários países da Europa, no Canadá e nos Estados Unidos, já a partir da década de
1990.
Tais estudos desenvolvem-se a partir de questões como Quais são os saberes
necessários para ensinar e como esses saberes são construídos e mobilizados?
Tratam-se de rotinas, intuição, dom, conhecimentos e/ou competências? Como se
constituem as identidades profissionais dos professores e como elas são criadas?
Estudar e produzir academicamente sobre a profissão docente é uma tarefa a
qual venho me dedicando nos últimos oito anos. A pesquisa de mestrado refletiu
sobre a construção e a mobilização dos saberes dos professores que trabalham na
perspectiva da Educação Ambiental (Neves, 2002). Aprendi neste estudo que as
fontes dos saberes dos professores advém da história de vida, da cultura pessoal (com
ênfase na cultura escolar), dos conhecimentos disciplinares e pedagógicos adquiridos
na formação inicial e continuada, e, ainda, pela prática cotidiana nas escolas, ou seja,
no exercício do ofício. Descobri que uma grande fonte de conhecimento dos
professores é a experiência diária vivida na escola (que inclui, além da relação com os
estudantes, os pares e os pais, o contato com o currículo, os programas e manuais),
conclusão que corroborou estudos anteriores feitos por vários autores, dentre os quais
destaco Tardif (2000).
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Vale dizer que sou professora do ensino fundamental desde 1981, e que há sete
anos venho trabalhando com o tema da formação de professores, seja na perspectiva
da formação em serviço, nos âmbitos do sistema particular de ensino na cidade do
Rio de Janeiro e de uma organização não governamental, seja na perspectiva da
formação inicial, no âmbito dos cursos de Pedagogia e outras licenciaturas na
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Como integrante do grupo de pesquisa Profissão Docente: entre o estatuto
profissional e o exercício do ofício, desenvolvida no Departamento de Educação da
PUC-Rio e coordenado pela professora Isabel Alice Lelis, tive a oportunidade de
compartilhar de uma série de reflexões acerca da profissão docente
2
.
A presente investigação pretende se situar no universo das pesquisas
contemporâneas sobre o ensino, mais particularmente dos estudos que se interessam
pelo trabalho dos profissionais docentes, sua formação e o exercício do ofício. Filia-
se aos estudos que têm como linha de investigação privilegiar, por um lado, a
importância dos contextos e organizações escolares, e, por outro, o realce da
singularidade individual dos sujeitos.
Trata-se de um estudo de caso realizado numa escola pública brasileira, criada
nos anos de 1950, pertencente à rede estadual de ensino e situada no meio rural de um
pequeno município no interior do Estado do Rio de Janeiro, local onde nasci e vivi
até os 18 anos, quando vim para a cidade grande cursar a faculdade
3
.
O que atraiu a minha curiosidade para o local foi a informação de que os
estudantes daquela escola do meio rural têm tido nos últimos anos o melhor
desempenho municipal no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). O objetivo
2 Diferentes fontes de referencial teórico sobre o tema foram nos colocando em contato com a
produção bibliográfica recente (documentos oficiais, artigos, livros, dissertações e teses), antes de
partirmos para a empiria, esta realizada via entrevistas com gestores, diretores de sindicatos docentes e,
ainda, na forma de questionários com professores das séries iniciais da rede municipal pública e
privada da cidade do Rio de Janeiro. A pesquisa visava estudar a profissão docente na atualidade a
partir da divisão entre o estatuto profissional (o que é definido pelo sistema de ensino), e o exercício
real do ofício (como os professores pensam o trabalho que realizam no cotidiano escolar).
3 A escola foi escolhida após a realização de um exercício etnográfico, na disciplina Antropologia e
Educação, ministrada pela professora Tânia Dauster, como parte da minha formação no doutorado. O
trabalho, intitulado Uma escola em que o horário de estudar é o “horário de descanso”, foi realizado
durante o primeiro semestre de 2005.
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daquela primeira aproximação foi conhecer a cultura daquela escola, assim como o
sentido da instituição para as pessoas da região, o que poderia a me ajudar a
compreender o desempenho acadêmico dos estudantes (anexo 1).
A pouca pesquisa acadêmica em escolas rurais do Brasil já seria motivo
suficiente para este trabalho, de difícil realização, especialmente pelo fato de eu
morar atualmente a 190 km de distância da escola. André (2000) chega a dizer que
esse tema é “silenciado” entre os pesquisadores da educação. A pesquisa sobre
educação rural teve uma larga produção especialmente entre 1930 a 1960, a partir de
quando os estudos passaram a se concentrar, predominantemente, na escola urbana.
Ela reapareceu no cenário acadêmico e político no primeiro quartel dos anos 1990,
com o aumento dos movimentos sociais, principalmente com o Movimento dos Sem
Terra. Mesmo assim, segundo Beserra e Damasceno (2004), a proporção média é de
doze trabalhos na área de educação rural para mil nas outras áreas da educação, entre
1980 e 1990, mesmo havendo neste período um aumento do número de programas de
pós-graduação no país.
O primeiro contato com essa escola revelou-me a existência de uma cultura
organizacional (Nóvoa, 1992a) peculiar e diferenciada. Tomo cultura como uma “teia
de significado” social, que segundo Geertz (1978) interfere na definição da identidade
da escola. Por conseguinte, tais culturas específicas afetam as identidades das pessoas
que nelas trabalham e estudam, identidades estas que, concomitantemente, ajudam a
construir essa identidade institucional.
O objetivo deste estudo é analisar como os professores de diversas disciplinas
de uma escola situada no meio rural (re) constroem o exercício do ofício docente,
discursivamente. Para isso, busca-se conhecer
1) quais sentidos os professores atribuem à escola e aos estudantes;
2) quais sentidos atribuem a si e a seu trabalho; e
3) quais sentidos atribuem à prática cotidiana em sala de aula.
Desta maneira, o primeiro capítulo desta tese fornecerá alguns dados sobre os
professores brasileiros, os estudos sobre o ofício e o estatuto docente, assim como sua
formação. Em segundo segmento do capítulo, dei especial importância à escola e à
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15
cultura organizacional como aspectos fundamentais no exercício do ofício docente,
assim como o fato de que “os alunos representam a comunidade dentro da escola”.
Por fim, a polêmica questão dos conceitos rural e urbano será abordada.
Após o primeiro exercício etnográfico, ainda em 2005, o desejo de conhecer
quais seriam as características daquela experiência pedagógica responsáveis pelo
“sucesso” dos estudantes foi o que me levou a estudar o ofício dos professores.
Durante a realização deste ato cógnito de “olhar” e ouvir”, para, depois, “escrever”
(Oliveira, 1998), outras escolhas metodológicas foram sendo feitas, o que será
apresentado no capítulo 3. Trata-se de um relato de cunho etnográfico, fruto de três
anos de contato quinzenal com a escola e a comunidade. Fiz uso de todas as técnicas
associadas à etnografia: a observação participante, a análise de documentos e a
entrevista intensiva. No intuito de obter dados contextuais do meu universo de
pesquisa, realizei um levantamento de dados sobre as famílias, que a escola não
possuía, fazendo uso de um instrumento de mensuração típico de pesquisas ditas
quantitativas: o questionário. Vale destacar que, além disso, me utilizei de
questionários para obter os mesmos tipos de dados acerca dos professores envolvidos
na pesquisa.
Ademais, uma vez que meu objetivo era descrever o ofício docente e estava
referenciada na singularidade individual dos sujeitos e nos processos de apropriação
das oportunidades formativas, realizei entrevistas na linha de histórias de vida, outra
escolha que também será analisada, junto com os critérios de seleção dos sujeitos
pesquisados. Por fim, cabe lembrar que, ao optar pelo estudo de caso de base
etnográfica, tive que conhecer a importância e os limites da escolha.
No capítulo 4, apresento a “escola-da-dona-Clair”
4
, o “caso” deste estudo,
quando faço uma descrição da cultura organizacional da escola. A organização do
trabalho na escola é uma construção social originada das atividades dos diversos
atores individuais e coletivos, que, por razões pessoais, atuam na mesma organização.
Apresento o contexto local, Vista Alegre, e forneço, ainda, uma caracterização social
4
Como é de praxe no meio acadêmico, todos os nomes dos locais e dos sujeitos dessa pesquisa foram
trocados para preservar ao anonimato, o que, desde o início, prometi a todos os sujeitos. Além desse
nome, pelo qual é mais conhecido, o estabelecimento é nomeado Colégio VIOLA sigla do nome do
proprietário que doou o terreno para a construção do colégio e que também serve para a identificação
do mesmo: colégio Vinícius. Ou, ainda, Escola de Vista Alegre.
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16
dos pais, a caracterização da escola, seus espaços e equipamentos, a população
docente, o pessoal auxiliar e os estudantes, mostrando o histórico daquele
estabelecimento escolar, seu funcionamento e os modos de interação coletiva.
O capítulo 5 aborda o ofício docente, mas com base no confronto entre a teoria
apresentada anteriormente e o campo empírico. Assim, ele será apresentado em sua
dimensão biográfica e contextual. O que quer dizer que as histórias de vida dos
professores estudados serão comparadas, buscando-se estabelecer semelhanças e
especificidades entre os sentidos que dão à escola e a seus estudantes, à sua pessoa e,
ainda, à prática docente cotidiana. Isso será feito com base na técnica de análise do
conteúdo e num sistema de categorias que surgiu do campo empírico. Discuto aqui a
questão identitária dos professores, numa perspectiva pública e privada, usando para
tal, principalmente, as lentes de Dubar (2005, 2006).
A partir das categorias centrais que emergiram das histórias de vida e do
contexto de trabalho, no capítulo 6 aprofundo a problematização teórica do estudo,
através do alargamento e da consolidação da base bibliográfica. Analiso, a partir das
muitas disposições construídas durante a vida e as posições diversas tomadas pelos
professores no contexto de trabalho (Boudon, 1989), os múltiplos modos de exercer o
ofício hoje. Baseada na categorização dual de Roberto DaMatta (1997), no mundo da
“casa” e da “rua”, analiso os modos de ser, sentir e viver a docência pelos
professores. Encontro em Tardif (2002, 2005) e Perrenoud (1993, 1995, 2001) outros
interlocutores privilegiados para esta interpretação.
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2
Profissão docente e mutações da escola
A educação no Brasil vive um momento especialmente paradoxal e contraditório
neste início de século. Por um lado, a enorme expansão do sistema educacional nas
últimas décadas, acompanhada do discurso oficial apresentando a educação como a
grande responsável pela modernização de nossas sociedades, pelas possibilidades de
integração ao mundo globalizado e à sociedade do conhecimento, que demandam o
domínio de habilidades de caráter cognitivo, científico e tecnológico, altos níveis de
competência, além do desenvolvimento da capacidade de interação em grupos,
criatividade e iniciativa. Por outro lado, persistem os altos índices de analfabetismo,
evasão, repetência e desigualdades de oportunidades educacionais. A título de
exemplo, a precariedade extrema do aproveitamento escolar dos alunos brasileiros,
revelada nas avaliações do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB). Nas
três séries regularmente avaliadas (quarta e oitava-série, terceiro ano do ensino
médio), um desempenho médio nunca atinge a 10% dos alunos, e vem piorando
desde a implantação da avaliação, há 12 anos (SAEB, 2005, pp. 7 e 8).
Todos sabem que é grave a crise da escola pública e crescente a diferenciação
do sistema de ensino, pois, de um lado, os mais pobres só têm acesso a escolas
públicas, e, de outro, faixas de população com maior poder aquisitivo frequentam as
escassas boas escolas públicas e as escolas particulares de excelência. Tal realidade
torna visível a tendência a inserção da educação na lógica do mercado, como um
produto de consumo que se compra, segundo as possibilidades econômicas de cada
um.
Nesta perspectiva, a tendência dominante é a primazia dos conteúdos
curriculares e, no que se refere aos profissionais da educação, é notória a
desvalorização da experiência teórica e prática acumulada pelos professores e
pesquisadores da área de educação. No entanto, não se pode ignorar que existem
também inúmeras experiências e buscas que se situam em outras perspectivas, que
reconhecem a importância dos professores na educação básica do Brasil.
O presente capítulo pretende apresentar o referencial teórico no qual me apóio a
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fim de desenvolver o estudo sobre o ofício docente em uma escola situada no meio
rural. Como já afirmado na introdução, a idéia de partida é de que o trabalho docente
é o resultado do cruzamento da trajetória pessoal dos professores e o contexto onde
exercem seu ofício. Desta forma, a aprendizagem e exercício da profissão se tornam
inseparáveis da identidade dos sujeitos envolvidos, e as identidades profissionais não
são consideradas categorias adquiridas para sempre, porque, como as demais
identidades humanas, elas se constroem nas e pelas interações ao longo da vida
(Dubar, 2005).
Como a escola é o ambiente cuja contingência pesa enormemente sobre as
condições de trabalho dos professores (Tardif e Lessard, 2005), inicio a apresentação
discutindo a instituição escolar e as mudanças que sofreu desde sua criação, além de
abordar a interligação entre a escola e comunidade em que ela está inserida, no caso,
no meio rural, cujo conceito também será revisto. Para isso, tenho como referencial
teórico principal autores como António Nóvoa, François Dubet, Rui Canário, Vera
Candeau, Maria José Carneiro, Zeila Demartini, Jadir Pessoa. A seguir, disserto sobre
a cultura da organização escolar na atualidade, quando me apóio em Nóvoa, Walo
Huchmaker, Forquin e Geertz, principalmente.
Num segundo momento do capítulo, discuto como as mutações na instituição
escolar causaram mudanças no ofício e no estatuto do professor, e, ainda, explicito
alguns estudos sobre o trabalho docente e sua formação no Brasil. Nesta parte,
fundamental a ajuda de António Nóvoa, Isabel Lelis, Perrenoud, Mauricio Tardif,
Claude Lessard, Miguel Arroyo, entre outros.
2.1
Escola
Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de
alguns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração. Não é que eu esteja analfabeto.
Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mestre (...), decorei gramática, as
operações, regras-de-três, até geografia e estudo pátrio (...) Inda hoje, apreceio um bom livro,
despaçado.
(Guimarães Rosa)
A escola é, neste início de século XXI, uma instituição tão comum e rotineira
que costuma ser encarada como um objeto natural. Desta maneira, não se estranha
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frequentemente a sua pertinência e muito menos seu papel de reprodutora e de
produtora de normas e cultura. Apesar de a situação atual apontar cada vez mais para
a necessidade de construção de ecossistemas educativos alternativos (Candau, 2000)
ou mesmo de uma “sociedade sem escolas”, a instituição tem sido o espaço formal e
privilegiado para o exercício do ato educativo nos últimos três séculos (Nóvoa,
1991a; Canário, 2005).
Escola é uma invenção histórica, contemporânea da revolução industrial e
liberal do início da modernidade, que traz como novidades principais a separação
entre o aprender e o fazer, a criação de uma relação social inédita, a relação
pedagógica na sala de aula, e, ainda, uma nova socialização (a escolar) que tornar-se,
com o tempo, hegemônica (Canário, 2005; Tardif e Lessard, 2005).
No plano pessoal, a escola sempre foi um local de muita curiosidade e desejo,
pois nasci em frente a uma grande e pública, onde estudei durante muitos anos de
minha vida e para onde quis ir todos os dias por cinco anos, até ter idade suficiente
para tal. Chego a acreditar que os diversos barulhos dessa “fonte do meu desejo de
saber” (o hino nacional cantado à entrada, as cirandas do recreio, os silêncios pelas
mortes, o alvoroço da saída) tenham embalado meu sono de bebê e despertado minha
curiosidade e “disposição” para ser professora.
Não é, portanto, de modo espontâneo e natural, que me coloco na posição de
encarar a escola como um objeto social e científico. De “fonte do meu desejo de
saber” à realização: a escola passou a fazer parte do meu objeto de estudo, dentro de
campos de conhecimentos científicos definidos: a Sociologia e a Antropologia da
Educação.
2.1.1
A escola como objeto de estudo
Os estudos sobre a escola iniciaram-se em fins de 1960, na Inglaterra e EUA,
como resultado da necessidade de se entenderem melhor as relações entre a
desigualdades sociais nas sociedades e o desempenho escolar de alunos de diferentes
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origens socioculturais. Os estudos levaram à conclusão de que os estabelecimentos de
ensino têm uma identidade própria, um ethos escolar.
Para Canário (2005,
p.64),
A construção de uma sociologia da escola implica reconhecer a especificidade
do estabelecimento de ensino, enquanto realidade organizacional que, sendo
produzida pelos comportamentos e interacções de seus membros, não pode ser
definida da forma redutora, nem como território delimitado por fronteiras físicas, nem
como um agregado biológico.
Os estabelecimentos de ensino fazem parte das organizações do tipo
burocrático, por causa de seu modo de regulação e de exercício do poder. As
características típicas dessas organizações são basicamente duas, segundo Hutmacher
(1992). A primeira é que o fluxo de tarefas e de ações está em conformidade com
regras e leis, que antecipam a resposta legítima aos acontecimentos e situações. Nas
escolas, isso acontece na criação de categorias de classificação dos alunos (por idade,
nível, etc), ou, ainda, na determinação de horários e locais rígidos de trabalho, nos
tipos de saberes a serem ensinados, nos métodos de avaliação etc. A segunda
característica da organização burocrática presente nas escolas é que a legitimidade do
poder se funda na crença comum de que é justo obedecer a regras e leis conhecidas de
todos, previsíveis e de legitimidade controlável.
Mas, segundo Canário (2005), a escola pode ser analisada, além de como uma
organização, como uma forma, e, também, como uma instituição. Na forma escolar, a
concepção da aprendizagem deixa de ser por continuidade da experiência individual e
social e pela imersão social, para ser baseada na revelação (o mestre sabe e ensina ao
aluno ignorante), na cumulatividade (a aprendizagem está ligada ao acúmulo de
informações) e na exterioridade relativamente aos sujeitos, cujas experiências são
desvalorizadas: “Na escola, as crianças deixam de fazer perguntas e passam a dar as
respostas que lhes são ensinadas” (idem, p.69). A segunda perspectiva de análise do
autor sobre estabelecimento consiste em considerar a escola como uma instituição
que funciona como uma “fábrica de cidadãos”, historicamente promovendo a
unificação cultural, linguística e política, e tendo sido instrumento fundamental da
construção dos Estados Nacionais modernos.
A partir dos anos de 1980, um continuum de estudos revela o estabelecimento
de ensino como um novo objeto científico, no qual as ações docentes são
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mediatizadas e definidas menos simples e diretamente pelas políticas macro e mais
pelo estabelecimento escolar (abordagem denominada meso e micro, em detrimento
da macro-análise). Este deixa de ser entendido apenas como uma unidade da
administração central e passa a ser considerado como uma organização social dotada
de autonomia e características próprias.
A primeira consequência dessa tendência foi a redefinição na forma como as
ciências da educação se articulam com as ciências sociais, e o paradigma
funcionalista cedeu lugar ao interacionista. Na França e na Inglaterra, o foco de
análise dos estudos sobre os estabelecimentos escolares passou ser centrado no
sujeito, em suas ações, suas trajetórias, práticas e éticas. (Van Zanten, 1999). Nesse
movimento, valorizaram-se o cotidiano escolar, as práticas dos chamados “agentes de
base” (professores) e as teorias de médio e curto alcance. É o fenômeno de
“descoberta da escola” (Derouet, citado por Canário, 2005), que tem algumas outras
consequências imediatas: o enriquecimento e a diversificação dos procedimentos
metodológicos, com a valorização das abordagens qualitativas de natureza
etnográfica; e, ainda, o estabelecimento de uma maior articulação da produção de
conhecimento com a formação e a ação. Apresenta-se uma nova concepção de escola,
definida assim por Canário (2005, p.55):
uma organização social, inserida e articulada com um contexto local singular, com
identidade e cultura próprias, produzindo modos de funcionamento e resultados
educativos muito diferenciados. Deste ponto de vista, o estabelecimento de ensino
emerge como uma construção social cuja configuração e funcionamento têm como
elementos decisivos a acção e a interacção dos diferentes actores sociais em presença.
Além dessa perspectiva centrada nos atores, os estudos atuais, voltados para o
que se denomina cultura organizacional, reúnem, ainda, uma visão de sistema. A
questão fundamental a ser extraída da teoria dos sistemas é uma valorização maior do
comportamento coletivo em relação à atuação independente dos sujeitos que
compõem um determinado sistema. Desta forma, busca-se compreender a estrutura
organizacional e as conexões interiores e exteriores entre o objeto de estudo e o
ambiente do qual ele faz parte.
Deste ponto de vista, uma abordagem sociológica interacionista, a escola é
considerada um sistema de ação que comporta uma dimensão coletiva e outra
individual, o que significa que há uma articulação entre os atores e o sistema social. A
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perspectiva do sistema e do ator “são co-constitutivas, estruturam-se e reestruturam-
se mutuamente” (Canário, 1996, p.132), numa conexão entre “constrangimentos
sistêmicos” e “comportamentos estratégicos dos atores”, de uma forma tão original
que torna a escola uma “totalidade singular” (idem, p.133).
Nesta visão, “as instituições escolares adquirem uma dimensão própria,
enquanto espaço organizacional onde também se tomam importantes decisões
educativas, curriculares e pedagógicas” (Nóvoa, 1992a, p. 14). Do ponto de vista
pedagógico, há um processo de aprendizagem coletivo, entre professores, alunos e
pais, e a interação com a comunidade pode induzir uma outra forma de encarar o
aluno, de valorizar a sua experiência, os seus saberes, encarando-o como uma
“comunidade dentro da escola” (Canário, 2005, p.157). Também para Tardif e
Lessard (2005), a solidariedade e a convergência da gestão de classe, da escola e do
contexto social são fatores muito importantes para o trabalho docente.
Concluindo, esta nova perspectiva de investigação permite que se estudem as
políticas educativas globais no plano local, articulando as dimensões organizacional e
pessoal, e que se encare a formação na lógica do reconhecimento da organização
como um local de interação de atores que buscam coletivamente a aprendizagem.
Sendo assim, a tendência atual é o reconhecimento da ineficácia da formação dos
professores com tempos e espaços diversos da ação, concomitante ao favorecimento
da formação docente centrada no estabelecimento de ensino.
Ao transformarem “o meu objeto de desejo” em objeto de estudo, os
pesquisadores das ciências da educação constataram, entre outras coisas, que a crise
mundial da educação nos países industrializados, a partir dos anos 70, deve ser
entendida como uma “crise da escola”, ápice de diversas modificações que sofreu, o
que não é um fenômeno novo, já que vem desde finais do século XIX (Nóvoa, 2002).
Contudo, há uma piada no meio escolar que diz que, se uma pessoa
hipoteticamente congelada na época do Renascimento acordasse nos dias de hoje, a
única instituição que ela reconheceria, além da Igreja, seria a escola. Embora se
reconheça que a escola seja o lugar da tradição, como nos lembrou Hannah Arendt
(1972), ou, ainda, uma organização “estável e estacionária”, nas palavras de
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Hutmacher (1992), sabe-se também que ela sofreu muitas mudanças desde a sua
criação.
E não se pode pensar no ofício do professor sem analisar as transformações que
se operaram na escola. Para diversos autores (Nóvoa, 1992a; Esteve, 1995; Canário,
1996 e 2005; Tardif e Lessard, 2005), o significado e os problemas atuais da função e
da profissão docentes só podem ser entendidos se os situamos no processo de
transformação do sistema educativo nos últimos anos.
2.1.2
Mudanças na organização escolar
A escola de hoje não é a do princípio do século nem sequer a escola da ‘reprodução’ descrita por
Bourdieu. A escola sofreu mutações que engendram as contradições estruturais e os paradoxos em que
hoje se move. (Canário)
Para o autor português, a chamada “crise da escola” remete a mudanças de
caráter estrutural e não apenas conjuntural. Daí, ele preferir se remeter ao conceito de
“mutações da escola”. Segundo ele, o problema central da escola na atualidade é seu
déficit de legitimidade e o principal requisito para ela ser eficaz é a construção de
sentido positivo para o trabalho escolar de professores e estudantes. Como essa perda
de legitimidade aconteceu é o que apresento agora.
Nóvoa, ainda em 1991, afirma que a idéia de escola como a conhecemos hoje
nasce com o homem burguês, portador de uma nova perspectiva de mudança e de
uma nova relação com o mundo, aquele que introduz noção de um mundo
transformável em relação à natureza e ao ser humano. Este autor atesta a existência de
dois momentos distintos da nova instituição. Um primeiro, a escola ficou sob o
domínio da Igreja, até a segunda metade do século XVIII, a partir de quando os
Estados Nacionais tomaram a sua tutela.
A análise diacrônica de Canário (2005) revela que a escola como instituição
moderna teve três períodos distintos. No primeiro, o período da “escola das certezas”,
que vai do século XVIII até a Segunda Guerra Mundial, a escola aparece como
promotora de uma nova ordem política, social e econômica. Do ponto de vista
político, a criação de sistemas nacionais de escolas significou a subtração da Igreja à
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tutela sobre o ensino. A escola desse “tempo” pode ser definida prioritariamente
como instituição, pois visa a formar cidadãos com princípios morais, formados na
prática da liberdade e da autonomia.
A escola como instituição funciona dentro do que Dubet (2002) chama de
“programa institucional”, entendido como “um processo social que transforma
valores e princípios em ação e em subjetividade através de um trabalho profissional
específico e organizado” (Dubet, 2002, p. 24). Este processo prevê, portanto, uma
ação socializadora deliberada, que acontece em um espaço separado do mundo. A
instauração da “forma escolar” cria a hegemonia de uma nova forma de aprender, a
partir de uma relação social inédita, a relação pedagógica entre um professor e vários
alunos. A coordenação da ação fica a cargo de profissionais que, além de
competência técnica e legitimidade, devem aderir a um sistema de valores,
incorporados à própria identidade profissional. Para o autor, a escola é um templo da
República, um “santuário” da ciência, da cultura e do mérito, e os docentes são os
sacerdotes.
Do ponto de vista social, a hegemonia da cultura escolar contribui para acelerar
a transferência da população do campo para a cidade e sua proletarização, dentro da
dinâmica da urbanização. Do ponto de vista econômico, a “escola do tempo das
certezas” participa da construção da sociedade industrial, na medida em que é uma
organização de educação moral, produtora de uma força de trabalho disciplinada.
Sabe-se que este modelo de organização foi usado pela Igreja medieval para pacificar
mosteiros, antes de assegurar a viabilidade das escolas a partir do século XVI e de se
impor como modelo dominante de regulação de organizações como o exército,
hospitais, empresas etc (Hutmacher, 1992).
Desta maneira, Canário (2005) conclui que, neste tempo, a escola tem uma
dupla coerência: em termos externos, ela está conforme a nova ordem política, social
e econômica; no plano interno, encoraja condutas conformistas e de pouca
negociação entre a escola e os públicos, pois tal modo de funcionamento dificulta a
criatividade e a participação.
Após a Segunda Guerra e até a metade da década de 1970, com o fenômeno da
“explosão escolar”, a escola deixa de ser elitista para se tornar de massa. É o “tempo
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25
das promessas”: de desenvolvimento, de mobilidade social e de igualdade,
fundamentado e referenciado na teoria do capital humano. Os princípios reguladores
da escola desse período são os mesmos da produção econômica: produção em massa,
com ganhos de produtividade, via inovação tecnológica.
O último período, o da “escola das incertezas”, começa com a crise de energia
do início dos anos 70 (que marca o fim da ilusão do crescimento sem fim), e o
declínio dos Estados Nacionais (que significa o fim do bem-estar social, com
implicações nos países periféricos, como o Brasil), quando as expectativas da oferta
escolar e educativa se frustram, passando a escola a ser vista como reprodutora social
das desigualdades, produtora da injustiça e formadora de um exército de
desempregados.
Novas formas de regulação baseadas nos resultados marcam a escola das
incertezas e elas têm como traço comum o fato de considerarem o estabelecimento de
ensino como a unidade crucial de gestão do sistema, atrelada a políticas de autonomia
e descentralização. Atualmente várias políticas educativas, como na Suécia, França,
Grã-bretanha, EUA e Japão, têm concebido o estabelecimento de ensino como um
agrupamento orgânico de profissionais e de alunos, com uma maior atribuição de
responsabilidades às coletividades locais e aos profissionais no contexto de trabalho
(Hutmacher, 1992).
Da mesma forma, um estudo comparativo realizado ao nível europeu
confirmou a convergência entre novas modalidades de regulação dos sistemas
escolares, a saber: uma crescente autonomia dos estabelecimentos de ensino, com
uma também crescente erosão da autonomia profissional, individual e coletiva dos
professores (Maroy, 2006). De qualquer maneira, para Tedesco e Fanfani (2002), a
situação de autonomia dos estabelecimentos ainda não é e dificilmente será a
realidade das escolas públicas da América Latina, em que pese o fato de este ser um
dos problemas mais importantes que se apresentam para a política educacional atual,
no que se refere à administração e à gestão.
A implicação básica das mudanças desse período no campo da educação é que
os Estados modernos são referentes principais da identidade e missão da escola
enquanto instituição. Numa perspectiva globalizada, as funções escolares de
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reprodutora de cultura e de formadora de força de trabalho não fazem sentido. É o
fenômeno chamado de “desinstitucionalização” da escola, para Dubet (2002), a crise
do “programa institucional”, a dispersão do modelo educativo. A consequência mais
importante dessa mutação é a de colocar como central o trabalho de construção do
sentido do trabalho realizado por professores e estudantes nas escolas. Dubet (1994)
prefere falar em “experiência social” privada, quando não íntima, como detalho mais
à frente.
Para Canário (2005), o aspecto central da mutação sofrida pela escola está na
abertura a novos públicos e na mudança operada nos modos de seleção, que deixou de
ser percebida como ligada à classe social (portanto, anterior à escola) para ser
predominantemente escolar, o que deslocou a competição para dentro da escola,
criando, assim, a exclusão dos piores. A democratização do acesso provocou uma
desvalorização dos diplomas e uma translação das desigualdades para dentro das
escolas, principalmente, para os níveis secundário e superior (Cunha, 1991; Bourdieu,
2004).
Em relação ao fato de que os docentes encontram hoje nas aulas novos alunos,
que possuem características socioculturais novas, cabe trazer a reflexão de Tedesco e
Fanfani (2002) para quem há de se pensar sobre a mudança nas relações de
autoridade entre professores, diretores e alunos, que passam a demandar mais
equanimidade, e, ainda, que os “novos alunos” são portadoras de uma nova cultura,
com novos saberes e valores, que impacta sobremaneira o trabalho docente. A
explicação, de uma maneira simples, é que os alunos, além de terem cada vez mais
acesso a outras formas de aprendizagem fora da escola, trazem uma predisposição ao
uso de uma visão predominantemente imagética para o acesso aos conteúdos
culturais, o que facilita o desenvolvimento de uma linguagem não-proposicional,
oposta, portanto, à linguagem proposicional típica da cultura escolar.
Se atualmente o problema central da escola é o de déficit de legitimidade e a
principal condição para ela ser eficaz é a construção de sentido para o trabalho
escolar de professores e estudantes, é preciso conhecer os significados que uma
escola pode ter para os sujeitos que nela trabalham, o que demanda o conhecimento
da cultura organizacional da escola.
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27
2.1.3
A cultura e a organização escolar
A cultura escolar tende a curricularizar, gradear, disciplinar e normatizar saberes sociais,
relações e até ciclos de desenvolvimento.
(Miguel Arroyo)
O livro que primeiro impactou o estudo sobre as organizações escolares no
Brasil foi o homônimo organizado por António Nóvoa e publicado em 1992. É dele
que trago as primeiras contribuições para a pesquisa, algumas das quais já apresentei
acima, como é o caso do trabalho de Hutmacher, para quem a escola possui apenas
três componentes típicos de uma organização: o centro operacional (composto pelos
professores e alunos, que tem lugar preponderante e mobiliza o essencial dos recursos
de trabalho); o topo estratégico (a direção, representante local das autoridades, que
supervisiona o conjunto de recursos humanos e assegura que a missão da instituição
seja cumprida); e os suportes logísticos, que apóiam o funcionamento do conjunto
(cantina, manutenção das instalações etc).
Por sua vez, ao apresentar as características organizacionais de uma escola,
Nóvoa (1992a) lembra que estas se constroem com base em três áreas: a estrutura
física, a estrutura administrativa e a estrutura social. Essa última, além de conter as
relações entre os atores e o clima, guarda a cultura organizacional.
Para o autor (idem) a cultura organizacional da escola é “composta por
elementos vários, que condicionam tanto a configuração interna, como o estilo de
interacções que estabelece com a comunidade” (idem, p.30) e integram aspectos de
ordem histórica, ideológica, sociológica e psicológica.
Muitos são os autores que reconhecem que a relação entre cultura e escola é
antiga e que as questões culturais sempre estiveram presentes em debates sobre a
escola, até porque uma função primordial da escola tal qual se conhece hoje tem sido
a de transmissora de cultura. Com a produção e extensão dos sistemas de ensino
moderno, o processo de seleção e hierarquização dos saberes a serem transmitidos na
escola esteve baseado num estatuto científico que os coloca em ruptura com os
saberes práticos das instâncias tradicionais de socialização, como a família, as
corporações medievais ou outros espaços de sociabilidade (Correia, 1991).
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Atualmente, quem primeiro revelou a existência de uma “relação íntima,
orgânica” entre educação e cultura foi Forquin (1997), que considera a escola como
um “mundo social” de características e vida próprias, nomeado de cultura de escola.
Mais recentemente, Pérez Gómez (2001, p. 131) traz que A escola, como
qualquer outra instituição social, desenvolve e reproduz sua própria cultura
específica, denominada cultura institucional, sendo esta definida como o conjunto de
significados e comportamentos que ela cria
1
. De maneira similar, Mafra (2003)
afirma que os estabelecimentos de ensino têm uma identidade própria, um ethos
escolar, um “conjunto de valores, atitudes e comportamentos que dão identidade
particular à escola” (Mafra, 2003, p.113). Finalmente, para Nóvoa (1992a), essa
cultura institucional é a cultura interna, parte integrante, junto com a cultura externa,
da cultura organizacional da escola.
Nesta pesquisa, toma-se o conceito semiótico de cultura, uma prática social,
uma teia de significados, segundo Geertz (1978). Para o etnógrafo americano, essa
teia de significados, que é pública, pode ser interpretada quando se confere a devida
importância às ações do sujeitos, que são sempre simbólicas. A cultura não é algo ao
qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os
comportamentos, as instituições ou os processos, mas, sim, um contexto, dentro do
qual tais comportamentos, fatos, processos ou instituições podem ser descritos de
forma inteligível, ou seja, com “densidade”. Então, busca-se “traçar a curva de um
discurso social”, fixando-o numa “forma inspecionável” (Geertz, 1978, p.13). Nas
palavras de Geertz:
Acreditando como Max Weber que o homem é um animal amarrado a teias de
significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias, e a sua
1
O autor identifica a escola como um espaço de cruzamento de culturas, que lhe dão identidade,
relativa autonomia e a finalidade de mediar, de forma reflexiva, os múltiplos conhecimentos que
chegam, a saber:
as propostas da cultura crítica, alojada nas disciplinas científicas, artísticas e filosóficas; as
determinações da cultura acadêmica refletida nas definições que constituem o currículo; os
influxos da cultura social, constituída pelos valores hegemônicos do cenário social; as pressões
do cotidiano da cultura institucional, presente nos papéis, nas normas, nas rotinas e nos ritos
próprios da escola como instituição específica; e as características da cultura experencial,
adquirida individualmente pelo aluno através da experiência nos intercâmbios espontâneos com
o meio (Pérez Gómez, 2001, p.17).
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análise, portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas uma
ciência interpretativa à procura de significados. É justamente uma explicação o que
procuro, interpretando expressões sociais que são enigmáticas em sua superfície (idem,
p.15)
O que se pretende é fazer uma “descrição densa” dessa cultura organizacional
da escola, buscando entender como acontece a interação entre seus membros, o que
significa para eles, especialmente os estudantes e professores, essa instituição
moderna denominada escola, e, principalmente, como esta cultura organizacional
influencia (e é influenciada pelas) as identidades profissionais dos professores. Uma
vez que a escola pesquisada está situada em meio rural, é necessário conhecer o
conceito de rural.
2.1.4
O urbano e o rural: uma primeira aproximação
O sertão é do tamanho do mundo.
(Guimarães Rosa)
Para o senso comum, há uma dicotomia entre o meio rural e o urbano, com as
características do primeiro geralmente apresentadas em oposição ao segundo, e
aquele sendo frequentemente abordado como que subordinado a este. O tema,
presente marcadamente em novelas e noticiários da mídia nacional brasileira, é
geralmente marcado por duas posições: a primeira tem uma visão idealizadora, já que
rural é considerado o espaço bucólico, o guardião das tradições e das relações
solidárias. A cidade, por oposição, é um local poluído, destruidor de tradições e
composto de relações pouco solidárias; a segunda visão é depreciativa, pois considera
o rural como o espaço da pobreza, do atraso e da ignorância, contrapondo-se à cidade
moderna, sábia e rica.
Para iniciar este estudo acadêmico, caminhei em direção a autores do campo da
Sociologia e da Antropologia. A primeira constatação é que muitos estudiosos têm
salientado a impossibilidade de se falar de campo e cidade como realidades definidas,
estáticas, acabadas.
Já nos anos de 1950, tentava-se definir o que é rural e o professor Robert Hall,
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30
então visitante do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), afirmava que
“‘Área rural’ é essencialmente uma área geográfica definida por uma comunidade de
interesses da população que ali reside, com base em características demográficas,
econômicas e culturais” (Hall, 1950, p. 17). Para o autor, a população rural é
moradora de área fracamente povoada, com alta taxa de natalidade e cujos jovens
migram frequentemente para as cidades. Quanto ao aspecto econômico, trata-se de
região com produção predominantemente agrária, relativa falta de energia, pouco
nível de mecanização, baixa renda per capita e dificuldades no transporte e na
comunicação. No âmbito social, segundo o autor, havia dois padrões básicos: a)
grandes propriedades com rendeiros; b) pequenos proprietários com investimento de
capital. Que, culturalmente, compunham uma população conservadora e tradicional,
cujos membros se ajudam mutuamente e mantêm relativamente pouco contato com os
centros urbanos. A sociedade está organizada em grupos de famílias estreitos, o que
significa que quase todos os serviços sociais são prestados dentro do lar.
A pesquisadora argentina Mastrángelo (2000), ao estudar sobre uma
comunidade rural no interior de seu país, numa revisão histórica, destaca que a
oposição conceitual entre rural e urbano foi apenas (mais) um produto da urbanização
associada à industrialização, que ocorreu nos séculos XIX e XX, com a expansão do
capitalismo, em toda a América Latina.
Para a antropóloga Maria José Carneiro, o rural é frequentemente definido e
tratado a partir da ótica do seu par oposto, a sociedade urbano-industrial, por um
processo de exclusão. O rural é tudo aquilo que está fora desses referenciais urbanos.
No entanto, para a autora, é possível encontrar uma ruralidade também no interior da
sociedade que se pretende apenas urbano-industrial.
Demartini (1988) acredita que trabalhar com essa problemática se deve mais à
necessidade de acabar com o preconceito na forma que sociólogos e educadores têm
tratado do tema do que às possíveis diferenças entre o meio rural e urbano. Embora
ela tenha realizado seus estudos no interior do estado de São Paulo, podemos trazer
para o interior fluminense muitas de suas observações, especialmente porque, para
esta autora, o rural é definido segundo a natureza do trabalho, o que quer dizer que as
formas de relação de trabalho que se estabelecem no campo é que caracterizarão as
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31
diferentes categorias de profissionais rurais e, consequentemente, a identidade social
e econômica da comunidade. Então, para a autora, rurais são “aqueles grupos da
sociedade que estão diretamente ligados à produção agropecuária, considerando-se
também as diferenciações existentes entre as categorias de agricultores em função da
posse ou não dos meios de produção e, de maneira especial, da terra, assim como a
posição ocupada no sistema de relações sociais de produção” (Demartini, 1988, p.25).
Nesse sentido, cabe lembrar que há três situações sócio-econômicas
estruturalmente diferentes no campo, a saber: os proprietários rurais são os
produtores que detêm a posse dos meios de produção; os arrendatários e parceiros
têm o poder de usar os meios de produção que não possuem e, desta forma, pagam
pelo uso da terra, os primeiros desembolsando uma quantia fixa pela utilização, e os
segundos, uma porcentagem pela produção; finalmente, os assalariados, permanentes
ou temporários, que não têm os meios de produção e vendem sua força de trabalho.
Outra observação pertinente a este respeito dos aspectos sociais e econômicos
ligados ao conceito de rural vem de Pessoa (2003), que lembra que existe,
atualmente, na área rural, por um lado, a presença forte da agroindústria, eletrificação
rural, estradas asfaltadas e, por outro lado, um grande contingente de sua população
que, antes de ter acesso a esses benefícios, fora para a cidade, porque já havia perdido
as condições de aí permanecer. Ainda, há uma pequena parcela da população que
permaneceu na condição de população “rural”, mas que vive um vínculo muito mais
efetivo com a cidade do que com o campo, pela dependência de serviços de educação,
saúde, comercialização dos seus produtos. E, finalmente, há uma cidade, composta
por uma população vinda diretamente das regiões rurais ou de pequenas cidades. O
que faz o autor concluir que “O campo está na cidade e a cidade está no campo”. Ou,
como diria Guimarães Rosa (1967, p.9), “O sertão está em toda parte”.
Ao terminar essa análise, Pessoa (2003) conclui que é melhor analisar o rural
levando-se em conta os seguintes aspectos: a) a categoria geográfica específica; b) a
produção agrícola ou agropecuária; c) a representação social e simbólica, sendo que
esta é uma concepção de mundo, ou seja, um modo como as pessoas e os grupos
organizam suas relações sociais e produtivas. Conclusão muito próxima da
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32
conceituação de Hall (1950), em que pesem as diferenças de contexto trazidas com as
mais de cinco décadas passadas.
Desta forma, penso ser importante abrir um novo espaço de observação, como
faz Mastrángelo (2000), que, em sua pesquisa sobre uma comunidade do interior,
conclui que o se deve buscar é uma articulação social capaz de nos permitir
compreender a relação entre unidades sociais menores (rurais e periféricas) e maiores
(o estado, a região, o Estado nacional e os capitais transnacionais), uma vez que a
expansão do capitalismo e a descentralização da produção industrial colocam
tradições diferentes em contato numa mesma realidade e, portanto, articulam o nível
local (o distrital, o municipal, o estadual) com o nacional e o transnacional, numa
nova formação social específica, a ser conhecida.
Idéia compartilhada por Carneiro (1998, p. 59), para quem
Nesse sentido, importa mais do que tentarmos redefinir as fronteiras entre o “rural” e
o “urbano”, ou simplesmente ignorar as diferenças culturais contidas nessas
representações sociais, buscar, a partir do ponto de vista dos agentes sociais, os
significados das práticas sociais que operacionalizam essa interação e que proliferam
tanto no campo como nos grandes centros urbanos (....).
A pesquisa sobre educação rural teve uma larga produção especialmente entre
1930 a 1960, a partir de quando se passou a estudar principalmente a educação
urbana, com raras exceções, como é o caso da pesquisadora Zeila Demartini, cujas
referências são, contudo, localizadas no estado de São Paulo. Com o golpe militar de
1964 e o modelo econômico adotado a seguir, que aguçou os processos de
concentração fundiária e do êxodo rural, o setor rural brasileiro e, dentro dele a escola
rural, cai numa espécie de exílio. Mas, de fato, com o fim da ditadura militar e o
retorno dos movimentos sociais no campo, as questões referentes às condições de
vida e trabalho de quem vive ou trabalha no meio rural voltaram ao centro das
atenções.
Assim, os estudos sobre escolas em meio rural reaparecem no cenário
acadêmico e político nos anos de 1990, primordialmente com o Movimento dos Sem
Terra (MST), que, com suas propostas escolares e educativas, inaugurou um
momento de se refletir sobre a diversidade que existe no campo (via estudos, ainda
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incipientes, sobre os quilombolas, ribeirinhos, bóias-frias, mulheres do campo, índios
etc).
Contudo, também devo lembrar que há outras formas escolares diversas, ainda
que sejam de matriz burguesa, acontecendo nesse meio. Embora as pesquisas sobre a
educação e escola rural sejam raras, no Brasil de hoje, a área rural concentra mais de
50% dos estabelecimentos de ensino de educação básica (107.432 para 106.756
escolas em área urbana), mas, aproximadamente, apenas 14,9% da população em
idade escolar para o ensino fundamental (Brasil, 2006, p.24).
A idéia do sentido da escola para a comunidade rural merece algumas
considerações. Demartini (1988) recolhe histórias de vida de velhos mestres que
lecionaram para populações rurais paulistanas no início do século passado, para
conhecer a visão que a população rural tinha sobre a escola. Ela nos relata que, mais
do que simplesmente valorizar, a população rural procurava literalmente pela escola,
uma vez que estava sob a influência dos mesmos valores que agiam sobre os demais
setores da sociedade global, os ideais de igualdade e fraternidade, da educação para
todos, naquela época da “escola do tempo das certezas”. O que fez com que os
sitiantes se interessarem pelos conhecimentos de leitura e cálculo. Ainda, no plano
político, a leitura e a escrita eram considerados elementos importantes na obtenção de
favores dos políticos e a escola era considerada um trunfo que as forças locais
buscavam barganhar com seus eleitores. Desta maneira, de acordo com a narrativa
dos professores da pesquisa citada, a constante dominação política, administrativa e
cultural do urbano sobre o rural se manifestava também no plano educacional,
fazendo com que os habitantes desejassem adquirir os valores urbanos, mais
oportunidades educacionais, aspirações que correspondiam, também, aos valores
dominantes da sociedade global.
Da mesma forma, ao buscar reconstruir um cenário histórico da atuação de
professores de Matemática no interior do estado de São Paulo, Garnica (2005) faz um
bom apanhado das pesquisas locais sobre os discursos docentes que revelam
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dificuldades de articulação do trabalho com as diferenças da comunidade e, ainda,
uma tendência à “urbanização do caipira
2
”. Em suas palavras,
A história da educação escolar caipira, constituída nos vãos da história oficial da
educação brasileira, vai, pois, trilhando caminhos distintos daqueles trilhados pelos
alunos e professores dos grandes centros. Citadinos, cosmopolitas, elegantes, finos e
sofisticados, segundo os dicionários, servem de antônimo à ‘caipira’. (
Garnica, 2005,
p.131).
Essa idéia vai ao encontro de outra descrição de estudo, dessa vez em Minas
Gerais, nos anos de 1990. Rocha & Soares (2002) investigaram as representações
sociais de 113 professores das séries iniciais do ensino fundamental, sobre a escola do
espaço rural, de 40 escolas, em 13 municípios. Os dados revelaram que para noventa
por cento das professoras entrevistadas a escola deve ser um espaço para ensinar o
caminho da cidade. Para quatro por cento, a escola deve ensinar o amor ao campo, já
que este é empobrecido e não oferece perspectivas para melhoria de vida. E seis por
cento da professoras não tem o meio rural como conteúdo de trabalho.
Para os pesquisadores, os professores brasileiros em geral não têm tido em sua
formação (tanto inicial como continuada) a oportunidade de vivenciar ou sequer
discutir as especificidades em relação ao ensino rural, sendo que, na literatura
pedagógica, o tema aparece de forma superficial. Ainda, parece que entre os
professores há uma valorização de profissões urbanas em detrimento de profissões
rurais, o que faz com que eles raramente vinculem os conhecimentos rurais ao
trabalho escolar. A exceção fica por conta das escolas localizadas em assentamentos
do MST ou, ainda, de algumas experiências escolares fruto de movimentos sociais,
como as Escolas Família Agrícola, as Casas Familiares Rurais e a Escola Ativa, em
que há uma defesa de que os conteúdos dessas escolas reflitam a cultura, as
necessidades e os valores dos trabalhadores do campo (Arroyo, Caldart e Molina,
2004; Brasil, 2006).
Ainda, Garnica & Martins (2005) percebem nos relatos dos professores de
Matemática uma hipervalorização dos conhecimentos sistematizados por alunos
urbanos que têm mais facilidades de acesso a certas informações, pela melhor
2
O autor usa esse termo para se referir aos “habitantes do interior do estado de São Paulo, ainda que
haja algumas indicações que estendam o termo para as comunidades do sul de Minas Gerais e parte da
região centro-oeste brasileira.”(p.131) Na região estudada nesta pesquisa, os moradores usam o termo
“roceiro”, mas geralmente o fazem de maneira pejorativa.
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comunicação e a frequência a cursos pré-primários, inexistentes na vida do homem do
campo. Esta atitude acontece concomitantemente a uma certa negligência em relação
aos conhecimentos cotidianos prévios do aluno rural. Os autores concluem:
Os relatos revelam o quão dependente dos conhecimentos detidos pelos professores
(urbanos) está a população rural, até mesmo para que estes possam sair da condição
de vida proporcionada por sua profissão e atingir “cargos urbanos” mais
valorizados, denunciando que o parâmetro de comparação está sempre na zona
urbana, o que nos remete a uma possível contribuição dada pela escola no processo
da perda de identidade do homem rural. (Garnica & Martins, 2005, p.17-18)
Vale ressaltar que essa tendência vai de encontro aos muitos discursos oficiais,
que, através dos tempos, reconhecem o problema e afirmam promover a fixação do
homem no campo, como percebemos inclusive nos documentos atuais:
De uma maneira geral os dados mostram que, de fato, há muito que se avançar para
melhorar as condições de ensino oferecidas à população rural. É tarefa de difícil
solução e que demanda diferentes estratégias. De qualquer forma, melhorar a
qualificação dos docentes que atuam nessas áreas tem como fator limitador à
disponibilidade de mão-de-obra qualificada nessas localidades. Formação
continuada para os profissionais que já atuam na zona rural e políticas de formação
e melhoria das condições profissionais são tarefas que podem ser fomentadas e
implantadas pelo poder público para diminuir a distância entre o meio urbano e o
rural. (Brasil, 2003; Brasil, 2006)
Em resumo, esses estudos parecem revelar que a escola rural tem
desempenhado papel mais intenso na valorização do urbano.
Antes de discutir o trabalho docente e as mudanças que o mesmo sofreu com as
mutações da instituição escolar, vale uma última consideração, para além da
discussão acerca da organização escolar no mundo contemporâneo e de sua
incontestável influência no trabalho docente: analisar uma escola em meio rural
significa reconhecer que ela se inscreve numa questão mais ampla, que diz respeito
ao futuro do mundo rural, e, consequentemente, à configuração global da sociedade
(Canário, 2000); e, ainda, que
A escola não é o princípio da transformação das coisas. Ela faz parte de uma rede
complexa de instituições e das práticas culturais. Não vale mais, nem menos, do que a
sociedade em que está inserida. A condição de sua mudança não reside num apelo à
grandiosidade de sua missão, mas antes na criação de condições que permitam um
trabalho diário, profissionalmente qualificado e apoiado do ponto de vista social. A
metáfora do continente (os grandes sistemas de ensino) não convém à escola do século
XXI. É na imagem do arquipélago (a ligação entre pequenas ilhas) que melhor
identificamos o esforço que importa realizar. (Nóvoa, 2002, p. 244-245).
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2. 2
Professores
Neste segmento, dou continuidade à tese que as mutações na instituição escolar
causaram mudanças no ofício e no estatuto do professor, quando explicito alguns
estudos sobre o trabalho docente e sua formação no Brasil.
2. 2. 1
Os estudos
O desafio é estudar a profissão docente do lugar da pesquisadora que é, antes de
tudo, uma professora que concebe a profissão de modo ambíguo: a docência é uma
vocação, mas também meu ganha-pão, numa clara referência aos dois paradigmas da
profissão levantados por Fernandes (1998): 1) o “socrático-platônico”, para o qual a
docência é uma vocação e o docente um “mestre de vida e de pensamento”, capaz de
instigar os discípulos a procurar e encontrar dentro de si um saber que antes ignorava,
sendo o amor pelo saber mais importante que a remuneração; 2) o do sofista, um
profissional remunerado por seu trabalho de transmissor de um saber definido e útil.
Este último modelo é tido por Tedesco e Fanfani (2002) como dois distintos,
caracterizados como professor-trabalhador (funcionário público) e profissional
(alguém com saber esotérico para exercício do ofício).
O mapeamento da problemática do exercício do ofício docente e da formação de
professores revelou uma produção heterogênea nas últimas décadas, tanto no que se
refere aos recortes do objeto de estudo como aos referenciais teórico-metodológicos.
Para Catani (2000), a produção sobre o tema é muito pequena e o que se encontra de
mais significativo são estudos de períodos mais recentes, com foco na organização da
categoria profissional e suas relações com o Estado. Ainda, a produção acadêmica no
Brasil sobre o tema é dispersa e sem continuidade.
Se nos anos 70 havia o entendimento da docência como um fazer técnico,
sustentado unicamente nos conhecimentos científicos, e, se na década de 80, as
palavras “professor” e “técnico” foram substituídas por “educador”, a partir dos anos
90, os adjetivos ligados à palavra professor passaram a ser “profissional”,
“pesquisador”, “reflexivo”. Contudo, do que fica da literatura desse último período
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são as contribuições sobre os saberes da docência e que acabam por delinear
conhecimentos para a compreensão de uma epistemologia da prática docente.
Com forte penetração nos EUA e Canadá e mais recentemente no Brasil, a
revalorização dos saberes da experiência do professores é um tema que tem sido
muito estudado (Tardif, Lessard & Lahaye, 1991; Tardif, 2002). Essa perspectiva
toma a noção de saber como conhecimentos, competências, habilidades, promovendo
uma crítica ao papel desempenhado pela universidade na tarefa de formar os
professores, na medida em que se apóia em um modelo aplicacionista do
conhecimento. Trata-se de um modelo através do qual se pretendem educar as escolas
e os professores de modo semelhante ao que a escola tradicional procura educar as
crianças. A chamada “epistemologia da prática” propõe relativizar o lugar da teoria
na formação de professores e a própria concepção acerca do papel dos conteúdos de
ensino (Lelis, 2001a). Uma das críticas centrais a ela está na desvalorização do
conhecimento teórico, acadêmico, científico (Duarte, 2003), conhecimento este que,
segundo outras pesquisas sobre os saberes docentes, impacta o exercício do ofício
(Borges, 2002; Monteiro, 2002). O que não parece ter afetado o número de pesquisas
que buscam conhecer a construção dos saberes dos professores (saberes estes
considerados plurais, heterogêneos, provenientes de várias fontes), dentre as quais se
situa a pesquisa que resultou em minha dissertação de mestrado (Neves, 2002).
Quanto ao exercício da docência, as pesquisas vêm apontando uma crise da
competência profissional, esta expressa nos conhecimentos e estratégias por meio dos
quais os professores procuram resolver os dilemas do trabalho cotidiano. Estes
estudos procuram discutir questões relativas às características do trabalho docente,
aos perfis dos profissionais, às imagens que têm da profissão, ao tipo de participação
em movimentos sociais e/ou sindicatos de trabalhadores, ao pensarem o professor
enquanto trabalhador cultural e intelectual reflexivo (Hypolito et all, 2003; Gariglio,
2004; Nascimento, 2005; Vicentini, 2005).
Para Nóvoa (1995a), esta crise de competência profissional está intimamente
ligada à crise de legitimidade do magistério, abordada em outras pesquisas, que
ressaltam uma crise do poder do professor e de confiança que o público deposita nele,
ligada ao fenômeno do “mal-estar docente”.
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Este é definido como “o conjunto de reacções dos professores como grupo
profissional desajustado à mudança social.” (Esteve, 1995, p.97). Mais do que
reações, ele pode ser reconhecido como um processo de crise identitária dos
professores, descrita como, além da visão social negativa da profissão, uma
desvalorização do estatuto social, uma proletarização do ofício do professor (a quem
escapa o controle do exercício de seu trabalho, devido à emergência de novas formas
de regulação das organizações escolares), além da colocação aos professores de
problemas novos e de difícil solução, com a chegada de novos e heterogêneos
públicos.
Em pesquisa com professores que pediram exoneração em São Paulo entre
1990 e 1995, Lapo e Bueno (2003) revelam que o “mal estar” que antecedeu o
abandono é provocado pela sobrecarga de trabalho, falta de apoio dos pais, baixos
salários, concorrência com outros meios de transmissão da informação, má qualidade
das relações no ambiente de trabalho, e, ainda, aspectos ligados à burocracia
institucional e ao controle sobre o trabalho do professor, à escassez de recursos
materiais, à falta de apoio técnico-pedagógico e de incentivo ao aprimoramento
profissional. O movimento penoso de desligamento acontece pouco a pouco através
de pedidos de licença não remunerada, remoções de escolas e faltas ao trabalho. O
abandono real da profissão docente acontece ao final, expressando a vivência de
percursos profissionais carregados de insatisfações.
Ainda na última década, passou-se a investigar as histórias e trajetórias de vida
profissional de professores, realçando a figura do professor como “pessoa”, portador
de uma subjetividade, e não somente como profissional. Bueno et all (2006)
apresentam uma revisão de trabalhos na área de Educação, dos anos de 1985 até
2003, que fizeram uso das histórias de vida e dos estudos autobiográficos como
metodologia de investigação científica no Brasil. As análises levaram a concluir que o
uso das abordagens cresceu muito no país, mas que foram usadas muito mais como
fonte de dados de pesquisa do que como ferramenta de formação docente. E, ainda,
que a grande emergência de textos publicados em Portugal (reunindo colaborações de
portugueses, franceses suíços e italianos), com teorias e investigações acerca do
método autobiográfico como recurso metodológico e como fonte de pesquisa, foi um
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dos aspectos definidores do cenário brasileiro de pesquisa durante os anos de 1990.
Também ficou evidente, com a intensificação dessas metodologias, o afloramento de
temáticas e questões novas, tais como a profissão, a profissionalização e identidades
docentes.
Este contexto só foi possível porque, nos últimos trinta anos, as transformações
do modelo social têm sido acompanhadas de formas de socialização em que
processos de individualização e subjetivação encontram cada vez mais lugar. Ao
retornar à cena sociológica, a questão do sujeito é desenvolvida numa teoria do ator
social que constrói o sentido de sua experiência e se faz sujeito de sua ação (Charlot,
2000; Dubet, 1994 e 2002).
Por último, se a revisão bibliográfica sobre educação e escola rural mostra que
os estudos são parcos, não é difícil deduzir o pouco conhecimento levantado acerca
dos professores que exercem sua profissão nas áreas rurais. Demartini, ainda em
1988, manifestava sua preocupação com o fato de a maioria dos estudos sobre a
educação escolar focar aspectos relacionados ao sistema educacional e sua expansão,
com poucas referências ao desempenho dos professores ou aos sujeitos e agentes da
educação envolvidos no processo educativo. Assim mesmo, as pesquisas se limitam
às séries iniciais do ensino fundamental (Rocha & Soares, 2002; Cavalcante, 2003),
com exceção da já citada pesquisa de Garnica e Martins (2005) cujos sujeitos são
professores de matemática.
2. 2. 2
O estatuto social
Profissão impossível, dizia Freud a respeito da educação; certo, mas ensinar é também a mais bela
profissão do mundo.
(Tardif e Lessard)
O estatuto social e econômico é uma das chaves para o estudo dos professores e
da sua profissão (Nóvoa, 1995a). Embora o discurso genérico sobre o professor esteja
cheio de perigos, a primeira impressão é que a imagem social e a condição
socioeconômica do professor na atualidade se encontram em estado de degradação,
em que pese o fato de seu trabalho representar a realização da instrução formal de
todos os humanos em suas mais diversas profissões. Aliás, esse grande porte da
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missão é um dos responsáveis pela dificuldade na melhoria do estatuto
socioeconômico, uma vez que os professores se constituem em um dos mais
numerosos grupos profissionais da sociedade contemporânea.
Esse paradoxo é um dos muitos aspectos do trabalho docente, dentre os quais se
destacam, ainda, a ambiguidade , heterogeneidade e a polissemia (Lelis, 1996). Para a
pesquisadora, o caráter polissêmico do trabalho e da profissão docente adviria das
condições objetivas de produção dos docentes, sob as quais construíram formas de
perceber, classificar e agir na escola e no mundo.
É mais uma vez António Nóvoa (1991a, 1995a) quem fornece um “modelo de
análise da profissão” que vem sendo usado pela maioria dos pesquisadores do ofício
docente no Brasil nos últimos anos e que pode nos ajudar a entender a imagem social
da profissão e a atual condição socioeconômica dos professores.
Lembrando, o modelo divide o processo histórico de profissionalização em
quatro etapas, desde a gênese da profissão, a partir do século XVII, até os dias atuais.
Um primeiro momento importante, já no início do século XVIII, foi quando o
professorado começou a exercer a profissão em tempo integral e deixou, portanto, de
considerá-la como uma atividade passageira. Ao aderirem ao projeto estatal de
funcionarização, os professores instauram um segundo momento, e confirmam sua
condição de “profissionais do ensino”, ao mesmo tempo, defendidos e controlados
pelo Estado, que posteriormente cuida de criar instituições específicas para a
formação especializada e relativamente longa do professor, período este já
considerado a terceira etapa do processo de profissionalização docente. A quarta é
quando os professores se organizam em associações profissionais, o que tem papel
fundamental no desenvolvimento de um espírito de corpo e na defesa de seus
interesses profissionais.
No século XVIII e início do XIX
3
, com a produção de um sistema complexo de
ensino estatal e a expulsão dos jesuítas dos domínios portugueses, inicia-se um
3
De fato, a intervenção na organização do ensino só se legalizará em 1827, com a Lei Geral do
Ensino, no Primeiro Império, que cria os sistemas de ensino primário e secundário, e a formação
docente, havendo, ainda, o início de um processo de homogeneização, unificação e hierarquização do
trabalho anterior. Na verdade, a efetivação dessa realidade só ocorreu em 1834, com o Ato Adicional
que transferiu para as províncias a responsabilidade pela formação dos docentes, ato este baseado no
princípio de descentralização administrativa, embora com forte centralização política (Villela, 2000).
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processo de secularização da instrução com a vinda de professores régios para o
Brasil. O professor régio, categoria criada como parte das reformas que o Ministro
Pombal promoveu em todo o domínio do reino português a partir de 1759, seria o
agente da mudança do ideário jesuítico para o ideário iluminista, da disseminação das
conquistas da ciência, da consolidação da idéia dos Estados nacionais e da unificação
linguística, legitimando a identidade do Estado português. Era a época da “escola das
certezas”, quando a instituição funcionava como uma “fábrica de cidadãos”.
No Ato adicional de 1834, lê-se que “Os professores régios gozavam, ainda, do
Privilégio de Homenagem em razão da nobreza de seu Emprego (...)” (pesquisado por
Cardoso, 2002, p.251), o que significava que não podiam ser presos sumariamente,
tinham isenção do serviço e de taxas militares, aposentadoria passiva (não podiam
ser despejados arbitrariamente por seu senhorio), entre outras regalias destinadas à
nobreza (Fernandes, 1998). Tinham, portanto, grande valor e dignidade.
Por outro lado, embora imbuídos de tão nobre missão, uma hierarquização das
categorias docentes já podia ser observada, pois os professores régios recebiam
tratamento diferenciado, diverso e contraditório, de acordo com o nível que
ensinavam, para não falar da oscilação dos privilégios de acordo com o local em que
trabalhavam. Assim, os “mestres das primeiras letras” tinham remuneração mais
baixa, atrasos no pagamento, dureza no estatuto disciplinar, sem direito a
aposentadoria. Os “professores de Gramática Latina, de Retórica, de Grego e de
Filosofia” eram mais valorizados do ponto de vista social. Para Vicentini (2005),
essa separação foi a grande responsável pela “heterogeneidade da categoria”, presente
até hoje entre os professores das primeiras séries do ensino fundamental, por um lado,
e os professores do segundo segmento do ensino fundamental e os do ensino médio,
por outro.
Devo lembrar que a escola como instituição formadora de cidadãos funciona
dentro do “programa institucional” (Dubet, 2002), que previa uma ação socializadora
deliberada, cuja coordenação ficava a cargo de profissionais que tinham competência
técnica e legitimidade, além de aderirem a um sistema de valores que acabam
incorporados à própria identidade profissional. Os professores são agentes a serviço
da instituição escolar. Nas palavras de Nóvoa (1991ª,
p.123 e 124):
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Isso os coloca no cruzamento de interesses e aspirações sócio-econômicas
frequentemente contraditórias: funcionários do Estado e agentes de reprodução da
ordem social dominante, eles também personificam as esperanças de mobilidade social
de diferentes camadas da população. Aqui reside toda a ambiguidade e toda a
importância da profissão docente: agentes culturais, eles são também, inevitavelmente,
agentes políticos”.
Assim, sua tarefa era resultante de uma vocação, assemelhando-se ao
sacerdócio. É, então, nesta época, que é radicada a imagem do professor
“missionário”, dotado de forte autoridade e prestígio, e que permanece no imaginário
coletivo dos professores e da sociedade em geral até os dias de hoje
4
.
A essa imagem do professor como missionário, durante o século XX, é
acrescentada a do professor como um trabalhador que precisa ser formado (Tedesco e
Fanfani, 2002), pois até então se aceitava a idéia de que qualquer indivíduo bem
letrado, de boa índole e de reconhecimento na comunidade, poderia exercer este
ofício.
Ao estudar o trabalho sobre o outro, Dubet (2002) traz uma alternativa para
pensar o exercício da profissão de professor, vivendo entre seu estatuto profissional e
seu métier, isto é, entre o lugar que lhe é atribuído no sistema, no plano coletivo, e a
maneira como representa o seu trabalho, na esfera individual. Ele considera que, após
os anos 60, a profissionalização deixa de estar estava ligada à vocação e ao
desenvolvimento do trabalho e passa a ser fundada em uma legitimidade racional, na
eficácia (nos resultados, portanto) e nas competências estabelecidas por processos
legais. Em outras palavras, o registro vocacional e individual dá lugar ao técnico e
coletivo, nascendo, assim, a cultura da avaliação e do controle, o que aponta para uma
mudança na legitimidade e no trabalho, pois passa a existir uma valorização dos
resultados em detrimento dos trabalhadores. Os professores passam a ser experts, que
estão no centro da formação, esta capaz de garantir que eles fossem ser membros
eficazes, com técnicas e competências para trabalhar na organização. Esta perspectiva
anula a possibilidade de o professor ter uma compreensão ampla da sociedade, das
4
Para Dubet (2002), a lógica da ação dos agentes é a do controle social, pois as expectativas eram de
que os agentes cumprissem seus papéis, sendo que eles tendiam a ser considerados a encarnação da
instituição. O agente seria a sua função de controlador, para que a lei fosse aplicada a todos os
cidadãos, que eram iguais.
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instituições, das relações de poder, e o torna incapaz de situar sua profissão no
contexto geral de uma sociedade como a brasileira.
O movimento atingiu o ápice nos anos de 1970, época da “explosão escolar”,
do processo de democratização do acesso à escola. Contudo, com a entrada da escola
no “período das incertezas”, as instituições perderam seus monopólios, houve uma
desestabilização das imagens institucionais e os atores sociais nas escolas passaram
de uma lógica do desempenho de papéis para a lógica da construção da experiência
escolar (Dubet, 2002). A consequência mais importante dessa mutação é a de colocar
como central o trabalho de construção do sentido do trabalho realizado por
professores e estudantes nas escolas.
Com a explosão escolar, os professores tornaram-se o grupo profissional mais
numeroso e com maior visibilidade social. E atravessado pela ambiguidade
fundamental. A situação profissional dos professores mistura elementos de afirmação
profissional com lógicas de desvalorização e de controle autoritário da profissão, o
que faz a imagem da profissão oscilar entre “a mais bela profissão do mundo” até
uma profissão desgastante e perigosa (Nóvoa, 1995a), considerada até mesmo como
uma semiprofissão.
A profissão docente é tomada como uma semiprofissão (Enguita, 1991;
Sacristán, 1999), por um lado, porque foi historicamente se formando com orientação
política externa e, por outro, porque há condicionamento do trabalho ao sistema e às
instituições escolares. Os professores são assalariados e submetidos à autoridade de
seus empregadores, mas lutam por uma autonomia profissional.
Daí, algumas discussões acerca da proletarização do trabalho docente ganharem
força. Algumas teorias críticas sobre a educação argumentam que a escola não
somente se presta a reproduzir as desigualdades sociais, mas também funciona como
um local de trabalho capitalista, ou seja, de trabalho alienado, com o trabalho manual
separado do mental. Os argumentos básicos são que as profissionais do ensino
vendem as suas forças de trabalho, que há uma cisão entre os professores e a
organização do processo, e, ainda, que existe uma intensificação e uma fragmentação
do trabalho, assim como a apropriação do saber do professor (Enguita, 1991; Silva,
1992; Sacristán, 1999).
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Contudo, Nóvoa (1991b) lembra que esse processo de desprofissionalização do
professorado não é compatível com a complexidade atual do ensino e com a
necessidade de o ofício docente se basear em sólidas básicas científicas. Neste último
sentido, o que falta, garante Perrenoud (2001, p.139), é uma “redefinição bastante
radical da natureza das competências que estão na base de uma prática pedagógica
eficaz”. A isso somada a idéia de que a prioridade do ofício docente é resgatar o
sentido do trabalho na escola.
Em relação à ultima etapa do processo de profissionalização dos professores,
quando eles se organizam em associações profissionais, no Brasil, algumas condições
históricas, analisadas por Vicentini (2005), apontam para a heterogeneidade da
categoria, que, ao conceber a profissão de modos distintos, organizou práticas
associativas com estratégias diferentes em cada estado brasileiro, no que se refere à
melhoria do estatuto. Os fatos históricos ligados a esse fenômeno são os seguintes: a
descentralização instituída no Ato Adicional de 1834 separou a educação primária e a
profissional (incluindo a Escola Normal), que ficou a cargo dos estados, do ensino
secundário e superior, sob a tutela da União; as diferenças socioeconômicas em cada
estado do país; assim como o serviço público brasileiro, o magistério oficial foi
proibido de se sindicalizar até 1988; apesar de a atual Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional ter nivelado a formação docente, a distinção identitária entre os
professores do ensino secundário e os das séries iniciais do ensino fundamental
permanece, movida pelas diferenças de público, de formação inicial, nas variações na
forma de organizar as aulas, no tempo de trabalho, na natureza das relações
estabelecidas com os alunos, do tipo de remuneração.
Vicentini (idem) realiza um levantamento histórico sobre as associações
docentes cariocas em jornais e informa que a primeira foi criada em 1931, nos “anos
de ouro” do magistério nacional, pelo magistério secundário particular. A UPP-DF
(União dos professores Primários do Distrito Federal) atual SEPE-Rio (Sindicato da
Educação Estadual), teve vários nomes, mas, em 1979, dividiu-se também em Centro
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Estadual dos Professores do Rio de Janeiro (CEP-RJ), comandou uma greve histórica
e entrou para a clandestinidade
5
.
Por último, a mesma autora (idem) estuda três grandes greves que marcaram a
profissão e difundiram novas imagens docentes, dando visibilidade a diferentes
concepções da profissão e ao movimento docente. A primeira, em 1956, no Rio de
Janeiro, o magistério particular lutava contra a “indústria do ensino”, momento em
que os professores secundários de escolas particulares pararam para denunciar a
exploração que sofriam dos proprietários de escolas. Em 1963, também em São
Paulo, as professoras primárias lutaram por melhores salários, na primeira greve geral
do professorado, quando, muito bem vestidas, disciplinadas e ordeiras (para se
diferenciarem dos operários), caminhavam, com um sorriso no rosto, contra a
desvalorização salarial, consolidando a imagem dos docentes como profissionais que
precisavam ser bem remunerados. Finalmente, em 1978, os então emergentes
“trabalhadores do ensino” deflagraram, em São Paulo, uma greve à revelia das
principais organizações docentes. Esta greve gerou opiniões contraditórias a respeito
das mudanças, pois registra a emergência de um novo modelo de professor-barbudo,
cabelos compridos e vestidos de calça jeans, que rompia totalmente com a imagem
tradicional da profissão, e que se insurgiu contra a precariedade de sua situação
funcional, simbolizando a expansão desordenada do ensino médio.
Para concluir, devo lembrar que ambiguidade , contradição e paradoxo, fatores
que marcam negativamente a situação profissional dos professores, são indissociáveis
dos processos de mutação dos sistemas escolares, que configuram, não um problema
de eficácia, mas, sim, um problema de legitimidade, articulando de forma necessária
a crise da escola com uma crise da identidade profissional (Canário, 2005).
2. 2. 3
A formação
Parece-me fecundo pensar na formação de professores, antes de mais, como preparação para uma
profissão complexa, ou mesmo, segundo Freud, para uma profissão impossível (Perrenoud)
5
Segundo a autora, foram os seguintes os nomes: União dos Professores Primários do Distrito Federal,
União dos Professores Primários do Estado da Guanabara, União dos Professores Primários do Rio de
Janeiro.
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46
Às etapas da profissionalização apontadas antes, Nóvoa (1991a) adiciona duas
dimensões de análise, ligadas originalmente ao momento em que é instituída uma
licença para se ensinar, dada pelo Estado. A primeira dimensão refere-se a um
conjunto de conhecimentos e técnicas necessários ao exercício da profissão, e a
segunda, a elaboração de um corpo de normas e valores muito influenciados por
atitudes morais e religiosas. Embora essas normas e esses valores tenham sofrido
mudanças através dos tempos, elas sempre tiveram sob a tutela alheia, primeiro da
Igreja, depois do Estado. Isto fez com que os docentes absorvessem o discurso oficial
como seu, o que certamente impacta a identidade do grupo.
Correia (1991), ao questionar as práticas e os sistemas de formação de
professores, articulando-as com a problemática da identidade profissional e com a
mudança educacional, mostra que a produção histórica do grupo profissional está
intimamente ligada à produção dos Estados Modernos, estes, por sua vez, frutos da
fábrica moderna e da ciência positivista. A ciência cria as condições sociais,
epistemológicas e simbólicas necessárias ao reconhecimento social da especificidade
da “função” docente.
Mas, ao contrário de quando estavam submetidos à Igreja (que parecia perceber
melhor a sua função estratégica), os “novos funcionários públicos” passam a ser
formados em Escolas Normais somente na segunda metade do século XIX, sendo que
a formação dos primeiros professores régios vai acontecendo pela prática docente,
pelos exames de admissão e pela leitura dos compêndios (Mendonça, 2005).
Nóvoa (1995a) e Villela (2000) revelam que as Escolas Normais, mais do que
somente elaborarem conhecimentos pedagógicos no âmbito individual, também
produziram coletivamente a profissão. As Escolas Normais no Brasil do século XIX
criam a “nova” professora do ensino primário, em substituição ao “velho” mestre-
escola, formada e preparada para a atividade docente. Embora o Brasil tenha sido
pioneiro na criação das Escolas Normais, essa formação sofrerá avanços e
retrocessos, reformas, extinções de escolas, durante todo o século XIX.
No início do século XX, ainda na época da “escola das certezas”, na “época de
ouro das escolas”, a formação dos professores adquire importância crucial, com
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47
reorganização das Escolas Normais; os primeiros cursos de licenciatura do Brasil
passaram a acontecer nas Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, com a
introdução de disciplinas de formação pedagógica nos currículos. O texto do
Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova apresenta, de forma enfática,
preocupações acerca da profissionalidade do professor dos diferentes graus da escola
brasileira.
Além de dominar os saberes da tradição filosófica, científica e religiosa, para
ser um bom mestre passou a ser preciso o conhecimento e utilização de outros saberes
que garantissem uma boa transmissão desses saberes aos alunos. Era preciso entender
os mecanismos de sua transmissão e de sua apropriação pelos estudantes. Seriam,
então, as Ciências da Educação que dariam o suporte para esse entendimento e
formariam, portanto, o professor.
Ao analisar a formação docente, Ludke (1996) lembra dos conhecimentos
específicos do professor, e procura mostrar que, apesar de o conceito de profissão
docente ser bastante vulnerável, o professor é um profissional crítico, reflexivo,
questionador, que possui um saber esotérico, especializado, típico de seu grupo. O
saber pedagógico é o legitimador do exercício da atividade docente enquanto uma
atividade especializada.
O campo de estudos sobre os conhecimentos e das práticas dos professores teve
um desenvolvimento fulgurante, nos últimos 20 anos, no âmbito qualitativo e
quantitativo, na América e nos países anglo-saxões. Apesar do pouco tempo de
pesquisas, já há, por exemplo, uma enorme diversidade de formas de se delimitar o
que é o termo saber docente, assim como uma certa confusão conceitual, dentro de
uma variedade de correntes alternativas de pesquisas, algumas convergentes, outras,
divergentes.
A partir dos anos de 80, com a expansão do sistema escolar no Brasil, a questão
da formação docente vai ocupar um lugar central nas políticas educativas,
concomitante com a promoção da inovação educativa. A formação inicial e
continuada é vista como uma panacéia para os problemas que afetam os sistemas
escolares. Aquela é baseada na racionalidade técnica e segue a “forma escolar”, cujo
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um modelo é basicamente que a universidade fornece a teoria, os métodos e as
habilidades, a escola constitui o campo prático para este conhecimento, e os
professores entram o esforço individual para aplicar tal conhecimento.
A formação continuada, por sua vez, não se constitui em um domínio
privilegiado de intervenção nem como um espaço de reflexão, mas, sim, tem sido
encarada como uma extensão da formação inicial visando adaptar os professores às
mudanças planejadas, o que se configurou em um conjunto de ações de reciclagem
com objetivo de diminuir a resistência dos professores à “inovação” instituída
(Correa, 1991).
Na verdade, trata-se de mais um reforço à idéia paradoxal que se tem sobre o
trabalho docente: as elevadas expectativas sobre sua ação têm simetria com uma
visão de incompetência para o exercício do ofício.
Ainda sobre a temática da formação docente, vale lembrar a já citada tendência
atual é o reconhecimento da ineficácia da formação dos professores com tempos e
espaços diversos da ação, concomitante ao favorecimento da formação docente
centrada no estabelecimento de ensino. A capacidade de exercício do ofício docente,
além da formação inicial, constitui-se pela autonomia que exerce na escola, diante de
seu trabalho, pela responsabilidade de sua formação permanente, pela capacidade de
aprender e refletir sobre sua ação (Schön, 1995).
Também para Nóvoa (1991b e 1995b), a formação deve estimular uma
perspectiva crítico-reflexiva sobre as práticas, para que o professor possa desenvolver
um pensamento autônomo e (re) construir permanentemente sua identidade pessoal,
porque esta “produz-se num jogo de poderes e de contra-poderes entre imagens que
são portadoras de visões distintas da profissão”. Ainda, ela articula dimensões
individuais, que pertencem à própria pessoa do professor, com outras dimensões
coletivas, estas inscritas na história e nos projetos do coletivo docente (Nóvoa, 2000).
Sendo assim, é fundamental o investimento na pessoa do professor e prioritário dar
estatuto ao saber da experiência.
Nessa perspectiva, compreende-se que as dimensões do ofício docente podem
ser explicitadas tanto do ponto de vista da formação do professor como de sua
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atuação profissional. Não se pode mais pensar na formação docente deslocada de
espaços reais onde se efetivam as trocas entre ensinar e aprender, seja esses espaços
da escola ou outros espaços educativos. Em outros termos, o saber profissional dos
professores é essencialmente produzido nas escolas, a partir de um processo de
socialização que combina processos de conhecimento simbólico com processos de
conhecimentos da experiência (Canário, 2007). Basicamente porque
O professor é uma pessoa. E uma parte importante da pessoa é o professor (Nias,
1991). Urge por isso (re)encontrar espaços de interacção entre as dimensões pessoais e
profissionais, permitindo aos professores apropriar-se dos seus processos de formação
e dar-lhes um sentido no quadro das suas histórias de vida. (Nóvoa, 1995b, p.25)
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3
As escolhas metodológicas
(...) o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.
(Guimarães Rosa, 1967, p. 52)
Os modos de se realizar uma investigação, as técnicas de coleta e tratamento de
dados, fazem parte do processo de construção do objeto de estudo, ao mesmo tempo
em que deste se originam. Depois de passar cerca de um ano freqüentando
quinzenalmente, às quintas e sextas-feiras, o colégio Viola, para procurar entender o
desempenho diferenciado de seus alunos e o valor da escola para a comunidade de
Vista Alegre, decidi realizar um estudo de caso para conhecer os modos como os
professores (re)constroem o seu ofício e como vivem essa experiência, num contexto
organizacional específico. O meu caso é a escola da dona Clair e sua cultura
organizacional singular.
O termo "estudo de caso" vem de uma tradição de pesquisa médica e refere-se a
uma análise detalhada de um caso individual que explica a dinâmica e a patologia de
uma doença dada. O método supõe que se pode adquirir conhecimento do fenômeno
adequadamente a partir da exploração intensa de um único caso. Adaptado da
tradição médica, o estudo de caso tornou-se uma das principais modalidades de
análise das ciências sociais, sendo que o caso estudado é tipicamente não o de um
indivíduo, mas sim de uma organização ou comunidade (Becker, 1999).
Como já adiantei, este estudo de caso é de base etnográfica. Em termos simples,
uma etnografia é a descrição das práticas, hábitos, crenças, valores, linguagens,
significados de um grupo social (André, 2005). O estudo de caso etnográfico é, como
sugere o nome, a aplicação da abordagem etnográfica ao estudo de caso (André,
2005, p.30), quando se busca compreender uma unidade e as suas (inter-) relações
com o contexto global. A escolha de um caso se dá pelo fato de ele ser uma instância
de uma classe ou porque ele é interessante por si só, que é a situação da presente
pesquisa. A busca de resultados humanistas e de diferenças culturais costuma ser uma
boa razão para a escolha da metodologia de estudo de caso etnográfico, mas aqui o
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51
fator que mais contou foi mesmo a singularidade do contexto da escola em meio
rural.
No estudo de caso, busca-se conhecer complexa e completamente a instância
escolhida, sendo que há um interesse maior pelo processo do que pelos resultados,
uma vez que se querem descobrir novas relações, hipóteses, conceitos, e retratar o
dinamismo de uma situação em sua forma cotidiana.
As vantagens dessa última característica (descobertas de novas relações em uma
situação cotidiana) vêm junto com uma desvantagem, pois há o risco de o estudioso
se perder em descrições infinitas e realizar uma análise superficial e inconsistente, ao
acreditar muitas vezes que sua posição é neutra (Fonseca, 1999; André, 2005).
Exatamente por fazer parte do problema, como ressaltou Marcel Mauss, no distante
ano de 1921 (Mauss, 1979), o pesquisador usa seus próprios talentos e habilidades
pessoais, para não falar no conteúdo ético apresentado em suas seleções e descrições
do campo.
Já no final da década de 1970, evidencia-se o interesse dos pesquisadores em
educação pela etnografia, enquanto opção metodológica de pesquisa, e, mais
especificamente, nos estudos do dia-a-dia da sala de aula e da avaliação do currículo
escolar. Como já salientei no capítulo 2, somente a partir dos anos de 1980 o eixo de
análise da instituição escolar deixa de ser macro-estrutural (embalado, de um lado,
pelas “teorias funcionalistas”, e, de outro, pelas “teorias da reprodução”) para se
basear nas ações dos sujeitos em relação às estruturas sociais (Ezpeleta & Rockwell,
1986).
Essas últimas autoras desenvolvem uma análise em que pensam a escola como
um espaço sócio-cultural próprio, no qual há uma trama resultante de um confronto
de interesses. Lembrando, a escola, por um lado, é uma organização oficial do
sistema escolar, com suas características típicas, que definem idealmente as relações
sociais: fluxo de tarefas e de ações em conformidade com regras e leis, e legitimidade
do poder fundada na crença comum de que é justo obedecê-las (Hutmacher, 1992).
Por outro lado, a escola é um processo permanente de construção social, processo este
vivido pelos sujeitos (alunos, professores, funcionários) cotidianamente.
As técnicas associadas à etnografia são a observação participante, a entrevista
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intensiva e a análise de documentos (Ezpeleta & Rockwell, 1986; André, 2005). Na
observação participante, o pesquisador é o principal instrumento de coleta e análise
de dados e tem uma constante interação com a situação estudada, tocando-a e sendo
tocado por ela. Neste período, ao buscar “documentar o não-documentado”, tive
contato direto e prolongado com as pessoas todas que freqüentam a escola, seja na
forma de conversas pelos corredores, pátio e espaços fechados (salas de aula,
secretaria, cozinha, biblioteca), seja na forma de entrevistas individuais ou com
grupos focais (especialmente com os estudantes)
1
, ou, ainda, com aplicação de
perguntas diretas às turmas e aos professores, diretora, coordenadores, pessoal da
cozinha e da limpeza, a ex-professores, a ex-alunos, a pais de alunos e ex-alunos.
Durante minha estadia, fui considerada uma nova professora da escola, pela já
conhecida carência de profissionais numa escola situada fora de centro urbano.
Depois, uma amiga pessoal de uma professora que além de sujeito atuou como minha
Doc
2
(nos termos de Foote-White, 1980). Até que me identificaram apenas como
professora e pesquisadora, mesmo porque eu havia sido colega de escola, por dois
anos, quando adolescente, de duas das professoras estudadas.
Nesse período, exerci várias funções, como dar aula de português, aplicar e
tomar conta de prova de Geografia, fotografar palestra, levar aluno mordido por
cachorro para atendimento no posto médico, ajudar na organização de festas,
acompanhar professoras em pesquisa de campo
3
.
No entanto, participar do cotidiano da escola, ouvir e ver inúmeras situações de
interação entre as pessoas, não significava que eu fazia parte daquela cultura. Pelo
1
Pedi aos estudantes que respondessem às seguintes perguntas: 1) Qual o valor do colégio Viola na
sua vida?; 2) Levante os pontos positivos e negativos de sua escola e explique por quê; 3) A que vocês
atribuem o bom desempenho dos alunos dessa escola no ENEM? Dos 74 alunos do ensino médio no
ano de 2005, 52 o responderam. A todos os professores foram feitas as mesmas perguntas. Em um
segundo momento, adicionei às anteriores uma pergunta acerca da construção das fábricas na
redondeza, porque queria saber se isso afetava de alguma modo a visão de escola que eles tinham.
Quase todos os respondentes (estudantes e professores) viam com bons olhos a novidade, sendo que
alguns professores se mostravam assustados com tamanha mudança na ordem econômica local e com a
chegada de novos moradores à vila.
2
O “Doc” seria um colaborador da pesquisa proveniente do meio pesquisado; no caso, a professora
Sofia, também psicóloga, e com quem tinha uma relação anterior e fora da escola.
3
Atividade esta que me fez conhecer lugares inusitados, como o cartório e o pequeno cemitério local,
pesquisados pelas professoras na busca de informações históricas sobre a comunidade, que completava
100 anos em 2006.
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53
contrário, na busca das significações do outro, muitas vezes tive que empreender uma
busca para entender as lógicas vividas, quase sempre diferentes das minhas, e, ainda,
conceber a existência de um mundo tão “familiar”, uma escola, mas, ao mesmo, tão
diferente do meu atual. Foi preciso “estranhar o familiar” (Velho, 1981) e ultrapassar
meus próprios valores.
O que nem sempre foi fácil, porque se sabe que no estudo etnográfico o
pesquisador carrega consigo para o campo sua subjetividade, que é também um
componente essencial da análise (Fonseca, 1999). Devo citar, por exemplo, que tive
um certo preconceito com a religiosidade presente na escola, realidade que me levou
a uma breve discussão, no ano que iniciei o trabalho, com a professora de religião,
que no corredor tentava convencer um grupo de jovens a participar de uma discussão
acerca do aborto e, ao mesmo tempo, a mim que sua postura era imparcial, de
fornecer apenas informação “neutra”. A pesquisadora arrependeu-se pela intromissão
de imediato, porque cabia a mim “ver” e “ouvir”, mais do que falar, embora devo
confessar que minha “pessoa” saiu dali aliviada.
Além desse “conflito cultural” (explícito, no caso) entre o olhar da
“estrangeira” e da professora de religião, tive que reconhecer a existência de
diferentes grupos dentro da própria escola, entre estudantes e professores e entre os
próprios professores. Dentre estes, há uma visão da escola como o espaço de trabalho
e de disputas pelo poder, por um lado, e uma outra concepção clara da escola como
uma continuação de sua casa, de sua família de origem. Por sua vez, para os
estudantes, a escola está ligada à possibilidade de um futuro melhor e, no presente,
configura-se no espaço do encontro e na possibilidade do lazer. Como mostro
detalhadamente nos próximos capítulos.
Constatar a complexidade desse contexto e saber situar os grupos foi
fundamental para a continuação do trabalho, que, em termos metodológicos, teve dois
períodos distintos. Em primeiro momento, realizei entrevistas com informantes
“privilegiados”, analisei documentos e apliquei um questionário a todos os alunos e
aos professores. Num segundo tempo da empiria, a partir do terceiro ano de pesquisa,
foram realizadas as entrevistas na linha de histórias de vida, a mais importante fonte
dos meus dados.
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54
As primeiras entrevistas foram realizadas de diversas formas (breves entrevistas
individuais ou em grupo, aplicação de perguntas dirigidas a todos os alunos do ensino
médio), com diversos sujeitos (estudantes e ex-estudantes, professores e ex-
professores, pessoal de apoio, direção, presidente da Associação de Moradores local).
Depois, optei por aplicar um questionário a todos os alunos e professores, a fim de
conhecer suas realidades sociais, econômicas e culturais. Isso porque a escola não
dispunha desses dados, fato que tomei ciência quando iniciei a análise dos
documentos escolares, a saber: o censo escolar, o projeto político pedagógico e suas
atualizações, as avaliações do Programa Nova Escola, além de inúmeros ofícios
enviados à burocracia estadual e federal.
Um mês depois da aplicação dos questionários, o que aconteceu em março de
2007
4
, realizei três entrevistas com a direção/coordenação: uma entrevista
aprofundada com dona Clair, para conhecer sua trajetória de vida, seu exercício da
gestão da escola e a imagem que tem de seus professores; outra, na mesma linha, com
sua filha, que além de professora de Geografia e sujeito da pesquisa, desempenha a
função, oficiosamente, de vice-diretora e atualmente de diretora; finalmente,
entrevistei por e-mail a coordenadora pedagógica, a fim de entender melhor os
seguintes aspectos: a equipe técnica, a visão que tem dos resultados escolares, das
metas e objetivos pedagógicos do colégio, da organização escolar; o perfil do quadro
docente e das estratégias de orientação pedagógico-educacional, além do
relacionamento interpessoal entre os professores; as expectativas sobre o desempenho
dos estudantes e de suas aprendizagens; e, finalmente, do relacionamento escola,
família e comunidade.
A seguir, explicito o caminho percorrido para elaboração, aplicação e
tratamento dos dados dos questionários, e, depois, discuto a escolha da abordagem
biográfica como técnica privilegiada. Mas antes, devo apresentar, aqui, para
completar a minha linha de orientação de estudo, a idéia de Geertz, para quem
4
Por rigor, devo dizer que no planejamento inicial esta aplicação dos questionários estava prevista
para o fim do segundo ano de trabalho de campo, em novembro de 2006, mas teve que ser atrasada por
quatro meses, porque sofri um acidente de carro a caminho da escola, período que coincidiu,
felizmente, com parte das férias escolares.
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55
O locus do estudo não é o objeto do estudo. Os antropólogos não estudam as aldeias
(tribos, cidades, vizinhanças...), eles estudam nas aldeias. Você pode estudar coisas em
diferentes locais, e algumas coisas (...) podem ser melhor estudadas em localidades
isoladas. Isso não faz do lugar o que você está estudando.
(Geertz, 1978, p.16).
3. 1
Questionários
A construção de um questionário (anexo 2) é um processo longo, mas que
explicito brevemente. Em um primeiro momento, deve-se ter clareza sobre os
conceitos que se quer conhecer (Babbie, 1999), e isso eu já tinha. Para estudar as
práticas docentes, sabia que também precisava conhecer mais claramente também a
vida dos alunos, seus capitais culturais e econômicos, além de obter uma razoável
caracterização sociodemográfica dos sujeitos. Isto por estar convicta de que não se
pode pensar de modo dissociado o trabalho de professores e os alunos (Perrenoud,
1995), porque é na escola, com os alunos, que os professores aprendem a sua
profissão, idéia que aparece na forma escrita pela primeira vez com Guimarães Rosa,
em 1967, é retomada por Paulo Freire em 1997, e que serve de inspiração para se
pensar o ofício docente na atualidade.
Depois, sabe-se que os conceitos são baseados em referências teóricas ou
empíricas pré-determinadas, que ajudam a clarear o sentido de alguns conceitos tidos
como pressupostos. É isso o que se pretendia entender com a aplicação de
questionários, uma vez que tais conceitos podem ser observáveis e operacionalizados
na forma de um questionário. Acontece que há conceitos nas ciências sociais que nem
sempre podem ser acessados diretamente, uma vez que podem evocar diversas
imagens e noções para diferentes pesquisadores; por isto, são classificados como
latentes. O pesquisador precisa, então, especificar as imagens, ou seja, as
manifestações evocadas pelos conceitos, mas principalmente ter clareza de que está
medindo um conceito oculto.
Nesta pesquisa, algumas manifestações latentes de conceitos foram observadas
e/ou colhidas na forma de breves entrevistas com os estudantes, durante três meses,
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antes da definição final do instrumento. Concomitantemente, os questionários do
SAEB 2001 (Brasil, 2001) e do GERES (PUC-
RIO/UFMG/UFJF/UFBA/UNICAMP/UEMS, 2005) foram sendo estudados e
serviram de inspiração para a confecção do instrumento (o anexo 3 apresenta um
quadro com os conceitos pesquisados e a sua operacionalização com os itens dos
questionários dos alunos e dos professores).
Para conhecer o status socioeconômico da comunidade escolar, tomei por base
alguns conceitos sugeridos nessas obras. O primeiro que interessava para esta
pesquisa era o de capital cultural, conceito este incorporado aos estudos na área da
educação a partir dos trabalhos de Bourdieu
5
. Este tipo de capital se relaciona aos
valores, aos modos de comunicação e às vantagens culturais e sociais que indivíduos
ou famílias possuem. Possuir capital cultural significa ter competência social e
lingüística para traduzir os códigos culturais de mais alto nível. Embora não haja
consenso sobre a melhor forma de conhecê-lo, sabemos que ele se manifesta através
dos hábitos culturais, sejam os de leitura, de freqüência a cinema, de assiduidade na
assistência à televisão ou à escuta de música, práticas que definem um ambiente mais
favorável ou não para as realizações educativas. Os itens do questionário buscavam
essas práticas culturais observáveis, além do apoio familiar às mesmas, medidas
também pela escolaridade dos pais, incluindo aquelas mais latentes, como a
disponibilidade de recursos educacionais e culturais em casa (livros, CDs, local
apropriado para a feitura do dever de casa).
Outro conceito presente nesta área é o de capital econômico, freqüentemente
medido por meio da renda ou riqueza familiar, assim como pela situação de bem-estar
material dos domicílios expressa pelas condições de moradia. As perguntas versavam
sobre a existência dos seguintes itens: banheiro separado de quarto, rádio, televisão,
videocassete ou DVD, computador, máquina de lavar roupa, automóvel, antena
parabólica, telefone celular (o item telefone foi omitido, pois é sabido que são raros
os aparelhos disponíveis na região).
5
Para Bourdieu (2004), o capital cultural, que pode variar em volume e estrutura, encontra-se em três
estados, a saber: incorporado na pessoa (inculcado e assimilado como um bronzeado no corpo);
objetivado em suportes materiais (como escritos, pinturas, monumentos etc); ainda, institucionalizado
em diplomas.
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Seguindo o trabalho proposto pelo SAEB 2001, o item do questionário dos
estudantes relacionado a outro conceito pesquisado, o capital social, foi medido por
questão relativa ao número de vezes que o mesmo já mudou de escola, pois isso
indica vínculo social estabelecido com a comunidade escolar. Ainda para medir essa
quantidade de vínculos estabelecidos com o local em que o aluno vive, uma pergunta
sobre a freqüência a igrejas.
O último aspecto analisado foi a caracterização sociodemográfica e os
discriminantes individuais considerados nesta pesquisa foram o sexo, a idade e a
composição familiar (com quem mora).
Após a definição desses conceitos, passou-se à formulação dos itens do
questionário, cuja primeira versão foi validada na realização de um pré-teste com
dezessete responsáveis da escola. Depois, uma série de ajustes no tocante à
formulação, à organização das questões e mesmo ao conteúdo foi empreendida,
confirmando a idéia de Babbie (2005), para quem a pré-testagem pode garantir a
criação de dados úteis, além de detectar falhas na estrutura, ou, ainda, linguagem
difícil, questões supérfluas ou que causam constrangimento ao respondente. A fase
em que este mesmo autor chama de validação de face (uma avaliação conceitual do
instrumento) foi realizada com a ajuda de duas colegas da pós-graduação,
especialistas em pesquisas quantitativas, que também sugeriram algumas mudanças
tanto no conteúdo como na forma de apresentação das perguntas.
Em relação a esta última questão, a formatação de um questionário é tão
importante quanto a natureza e a redação das perguntas. Tive cuidado com a
distribuição equilibrada das questões, e maximizei o “espaço em branco”. Para
Babbie (idem), “Pesquisadores inexperientes tendem a temer que seus questionários
possam parecer muito longos e, por isto, apertam várias perguntas na mesma linha,
abreviam perguntas, tentam usar o menor número de páginas possível. Tudo isto é
desaconselhável e mesmo perigoso” (Babbie, idem, p.199). Isso sem esquecer, ainda
seguindo orientação do autor, de buscar tornar os itens mais claros, objetivos e
concisos. Da mesma forma, os itens foram aleatoriamente ordenados e os que
buscavam conhecer o perfil sociodemográfico dos alunos ocuparam a primeira
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página, para garantir uma familiaridade com as questões, mas antes incluí uma breve
mensagem de convite à participação.
Uma vez que todos os estudantes da escola eram respondentes e que a direção
tinha interesse em conhecer tais dados, ficou combinado que a aplicação do
questionário aconteceria durante o horário de aula. Para minimizar os transtornos da
interrupção dos trabalhos, elas foram agendadas antes com o/a professor/a. O trabalho
começou com as turmas de 5ª. a 8ª. série e do ensino médio e os alunos mais velhos
foram convidados a ajudar na aplicação aos mais novos, da educação infantil e dos
primeiros segmentos do ensino fundamental, ajuda esta que foi fundamental para a
conclusão da tarefa a contento, pois sem as quatro voluntárias o mesmo teria se
arrastado por um longo tempo. Houve um total de 309 estudantes respondentes.
Em relação aos professores, apliquei o questionário em forma de perguntas que
fazia diretamente antes de iniciar as entrevistas. Acredito que minha presença tenha
sido fundamental em todo o processo de operacionalização da aplicação dos
questionários, tanto dos estudantes como dos professores, reduzindo a quantidade de
dados faltantes, além de evitar confusões ou mal entendidos em relação aos itens e
diminuindo eventuais perdas dos dados. Outro aspecto diz respeito à sensibilização,
muitas vezes necessária, para que o respondente se sentisse motivado e seguro no
preenchimento do questionário (Babbie, idem).
Com a finalização do trabalho de campo com os questionários, os mesmos
foram tabulados, e análises estatísticas dos dados foram sendo geradas. Devo lembrar,
ainda, que embora teoricamente se saiba que os múltiplos fenômenos revelados pelas
observações do investigador devam ser todos incorporados ao seu relato do grupo e
depois receber atribuição de relevância teórica, considerei utópico ver, descrever e
descobrir a relevância teórica de tudo, e terminei me concentrando em alguns
aspectos, quando estes se relacionavam ao trabalho docente naquela escola.
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59
3.2
Abordagem biográfica: elementos metodológicos, vantagens e
limitações
A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e
sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo
sendo as coisas de rasas importâncias. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar,
cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa.
(Guimarães Rosa)
Uma vez mais considero, com Guimarães Rosa lá no início do capítulo, para
quem o caminho se faz no caminhar, que os procedimentos metodológicos de uma
pesquisa, ao mesmo tempo em que são construídos junto com a mesma, também dela
decorrem. Para compreender as diversas maneiras de se (re)construir o ofício docente
em um contexto rural, considerei a abordagem biográfica como a estratégia
metodológica mais apropriada, uma vez que ela é capaz de fornecer uma
interpretação do social, resguardando, ao mesmo tempo, a especificidade de cada
pessoa.
De fato, a história de vida vem sendo considerada como um procedimento de
investigação promissor para se penetrar de forma mais profunda e significativamente
nos processos de constituição de identidades profissionais. No processo de “produção
de si” (Bourdieu, 2005) dos professores, há certamente muitos elementos que
contribuem para a compreensão dos processos de
construção/desconstrução/reconstrução de identidades profissionais, tanto em sua
singularidade como em sua generalidade.
Ao estudar vidas de professores, Nóvoa (1992b) lançou mão da relação entre a
pessoa do professor e sua profissão para compreender os significados do trabalho
docente em trajetórias individuais, nas quais notou a impossibilidade de separação
entre o eu pessoal e o eu profissional, numa profissão muito impregnada de valores e
ideais e exigente no que se refere ao empenhamento e à relação humana. Desta forma,
verificou que as histórias de vida dos professores compõem um todo orgânico que
une a instância pessoal com a dimensão profissional.
Assim também, para Queiroz (1988, p.36), “A história de vida é, portanto,
técnica que capta o que sucede na encruzilhada da vida individual com o social”. As
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60
histórias de vida “se colocam justamente no ponto de intersecção das relações entre o
que é exterior ao indivíduo e o que ele traz em seu íntimo” (idem, ibidem, p. 40).
No entanto, o recurso do método biográfico foi uma perspectiva metodológica
pouco usada no século XX pelos teóricos das ciências sociais, com exceção dos
poloneses e dos sociólogos da Escola de Chicago, portanto, nos anos de 1920 e 1930
(Bueno, 2002). No Brasil, ele surgiu nos anos 1940 e início de 1950, mas depois
desapareceu, retomando após os anos de 1980 (Queiroz, 1988; Bueno, 2002). A
chegada tardia das histórias de vida no discurso sociológico foi referida por Bourdieu
(2005, p.74) como “(...) uma dessas noções do senso comum que entraram de
contrabando no universo do saber”.
A entrada do método como “contrabando” se deveu basicamente a dois fatores
ligados ao mau uso do mesmo. O primeiro fator foi que, na tentativa que se fez em
transformá-lo em método científico, adaptado, portanto, aos métodos tradicionais das
ciências sociais, buscava-se estabelecer hipóteses prévias e quantificar os seus
produtos, o que, em última análise, mostrava uma total incompreensão do valor do
conhecimento que o método atribui à subjetividade. Outro uso equivocado do método
era o de tomar uma biografia não como fonte possível para novos conhecimentos,
mas apenas como exemplo para ilustrar as hipóteses levantadas e os problemas
estudados (Ferrarotti, 1988).
Embora a história de vida seja um procedimento de grande utilidade para
levantamento de questões de um tema sobre o qual se têm poucos conhecimentos,
como é o caso desse estudo, ela demanda longo tempo e, às vezes, vários encontros, o
que nem sempre é possível em uma pesquisa com prazo certo para terminar. Diante
disso, apesar de usar material biográfico primário, recolhido, portanto, através de
entrevistas gravadas, optei por narrativas na linha de história de vida.
A narrativa de vida não corresponde à própria vida, mas apenas a uma
reestruturação que a pessoa faz da sua vida, como nos alerta o personagem Riobaldo,
de Grande Sertão: Veredas, no início desse segmento. As lógicas de narração de
cada “vivimento” da pessoa pertencem a diferentes pessoas. Assim, o narrador
seleciona e privilegia os elementos que lhe parecem ter mais sentido, ou até mesmo
que acredita interessar ao entrevistador. Afinal, quem conta uma história o faz para
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61
alguém, o que requer um posicionamento em relação ao outro, mas também a si
mesmo e com relação àquilo que está sendo narrado.
Para Ferrarotii (1998), a narrativa é uma micro-relação social completa (com
papéis, expectativas, normas e valores) e o entrevistador deve assumi-la como uma
interação natural, uma comunicação. Idéia explicitada assim pelo grande narrador
Riobaldo: “Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me
ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim é como conto. Antes conto as
coisas que formaram passado para mim com mais pertença” (Rosa, 1967, p. 79).
Narrar seria, desta forma, um processo instaurador de realidades sociais.
Segundo Bruner (1997, p.64), “a narrativa não é simplesmente uma forma de texto,
mas é um modo de pensamento”, que revela um saber. E que se realiza numa prática
dialógica, criadora de sentidos para a vida social, que envolve conhecimentos de
convenções retóricas e interacionais por parte de uma comunidade. A entrevista é um
exemplo desta prática.
Das diversas “micro-relações” sociais que estabeleci com os diferentes sujeitos
do contexto estudado, descrevo, a seguir, a escolha, realização e tratamentos dos
dados das entrevistas biográficas.
3.2.1
Entrevistas biográficas
Os relatos dos professores foram colhidos através de entrevista biográfica,
considerada a forma mais antiga e conhecida de coleta de depoimentos. Tem sido
considerada a técnica, pois ela permite a identificação dos momentos-chave, a partir
dos quais se pode determinar o que foi relevante para a construção das identidades
profissionais.
Por outro lado, cuidado especial deve-se dar ao fato de ela ser também
potencialmente disvirtuadora dos relatos (Queiroz, 1988). Tal opção metodológica
ainda traz outros problemas, que levanto de forma esquemática: 1) a questão da
subjetividade exacerbada pela história pessoal, o que pode levar à perda dos aspectos
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62
políticos e sociais (Goodson, 2003); 2) a questão ética de identificação dos depoentes,
o que deve ocupar lugar central na investigação (idem); 3) o texto escrito, a ser
analisado, não corresponde à memória falada, por mais que se seja cuidadoso na
transcrição (Lelis, 1996).
Sobre a questão da subjetividade, além do que já foi apresentado anteriormente
em relação aos cuidados que deve ter o pesquisador no uso da biografia, cabe trazer
mais uma vez Ferrarotti (1988, p.26), para quem “O nosso sistema social encontra-se
integralmente em cada um dos nossos atos, em cada um dos nossos sonhos, delírios,
obras, comportamentos. E a história deste sistema está contida por inteiro na história
da nossa vida individual”. Assim, para o autor, a questão de como a subjetividade
contida nas narrativas pode vir a se tornar objeto de conhecimento científico é
absolutamente destituída de sentido.
O segundo problema levantado acerca da utilização de entrevistas biográficas,
ou seja, a questão ética da identificação, o cuidado refere-se à manutenção do
contrato realizado com os sujeitos na preservação da confidencialidade e do
anonimato. Nesta pesquisa este problema se coloca e procurei minimizá-lo dando
nomes fictícios aos entrevistados, à escola e ao espaço geográfico de sua localização.
No que se refere à transcrição, tentei ser fiel às falas dos professores, incluindo
um parêntesis em caso de interrupção de uma frase, e, ainda, marcando os silêncios,
uma vez que “é tão importante o que dizem como o que omitem” (Canário, 2007b).
Entretanto, optei por retirar repetições e interjeições repetitivas, comumente usadas
no discurso oral. Por outro lado, mantive algumas repetições que considerei
significativas, como, por exemplo, uma entrevista em que a professora repetiu
centenas de vezes o meu nome, o que conclui tratar-se de uma busca de intimidade e
de simetria. Ao final, uma cópia da transcrição foi dada a todos os professores a quem
foi pedida uma conferência em relação à entrevista dada.
Bourdieu (2003) alerta para a dissimetria da situação de entrevista, uma vez que
o pesquisador ocupa uma posição superior a do pesquisado, ele inicia o jogo e
estabelece as suas regras, os objetivos e os hábitos. O autor nos alerta aqui para uma
hierarquia dos diferentes tipos de capital, principalmente do capital cultural. Sugere
que a diminuição dessa dissimetria (ligada à distância social entre pesquisador e
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63
pesquisado) pode acontecer com um “exercício espiritual” de ser capaz de se colocar
no lugar do outro no pensamento. Concluindo, a entrevista, para Bourdieu (2003),
pode se transformar em um “discurso extraordinário” se convertida numa forma de
(...) exercício espiritual, visando a obter, pelo esquecimento de si, uma verdadeira
conversão do olhar que lançamos sobre os outros nas circunstâncias comuns da vida.
A disposição acolhedora que inclina a fazer seus os problemas do pesquisado, a
aptidão a aceitá-lo e a compreendê-lo tal como é, na sua necessidade singular é uma
espécie de amor intelectual (...)” (Bourdieu, 2003, p.704)
Ainda em relação aos necessários cuidados na atitude do pesquisador durante a
entrevista, quero lembrar do respeito ao entrevistado, sugerido por Sennet (2004,
p.55), traduzido na habilidade “(...) em calibrar distâncias sociais sem deixar o
entrevistado se sentir um inseto sob o microscópio”. E, ainda, na atenção ao
etnocentrismo: “Um entrevistador deve usar sua experiência para compreender os
outros, em vez de ouvir os ecos de sua própria vida (...) A lição parece ser: se você os
respeita, não se projete neles”.
Aprendidas as lições de amor intelectual e de respeito, dediquei-me aos
cuidados necessários para realizar as entrevistas de uma maneira bem informada. Para
isso, li vários estudos, mas usei como maior referência o Manual da História Oral
(Alberti, 2005), que traz sugestões de ordem prática acerca da preparação de uma
entrevista, da elaboração de um roteiro, da realização (local, material, presença de
outras pessoas, a melhor forma de conduzir), do encerramento e, finalmente, do
tratamento do acervo.
Para a entrevista, confeccionei um roteiro cujas questões versam acerca das
trajetórias familiares, escolares e profissionais dos professores (anexo 4). A fim de
economizar tempo, optei por aplicar o questionário de levantamento de dados sócio-
econômico e culturais aos professores, que, como já comentei, tem forma e
fundamentação teórica similares ao dos estudantes. O que variou foi a introdução de
algumas perguntas típicas do ofício, como o tempo da experiência docente e o tipo de
escola em que lecionam (anexo 5).
O critério da escolha da amostra foi baseado no tempo de um mínimo de 10
anos de experiência docente na escola, situado, portanto, dentro do período
caracterizado por Huberman (1992) como o de total integração dos docentes no
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64
estabelecimento (lembro que considerado elemento central na construção do ofício
docente), assim como por uma independência e domínio de conteúdos e métodos.
Um total de 15 professores compõe a amostra, o que corresponde a 62,5% do
quadro de docentes do colégio Viola. São 75% de mulheres e 25% de homens que
lecionam nos níveis a seguir estas matérias: na primeira, segunda e terceira-série
iniciais e numa turma de aceleração; ciências, matemática, português e artes, para
quinta e sexta séries; educação física, inglês, história, geografia para todas as turmas a
partir da quinta-série; língua portuguesa para ensino médio; filosofia e sociologia,
ensino médio.
As entrevistas foram objeto de uma análise uma a uma, com o objetivo de se
identificarem a sua estrutura e o seu sentido, para, a partir daí, buscar captar o modo
como se articulam a dimensão biográfica e a dimensão contextual para cada um dos
profissionais.
Assim, num primeiro momento fez-se uma leitura flutuante das
narrativas, quando foram identificados os momentos e acontecimentos chave da vida
dos professores e os temas abordados, o que permitiu a definição dos temas para a
análise do conteúdo, a partir de sua articulação com os objetivos da pesquisa.
Desta forma, explicito os sentidos que os professoreso a si mesmos, ou seja,
as imagens que têm de si. Depois, busco mostrar que sentidos eles dão para a escola e
para seus estudantes, momento a partir do qual passo a operar com a gramática dos
espaços de Roberto DaMatta (1997). Assim, os sentidos eles dão às suas práticas
cotidianas na sala de aula são cotejados numa perspectiva tanto “da casa”, como “da
rua”, como “do quintal”, ou seja, numa perspectiva pessoal e profissional.
A análise de conteúdo usada permite a identificação das variações individuais e
as recorrências entre as várias entrevistas, o que auxilia nas descrições das
semelhanças e especificidades das identidades dos professores. Vale ressaltar que
privilegiei um estilo narrativo também durante a análise.
As entrevistas foram agendadas pessoalmente ou por telefone, quando lhes
explicava que, de fato, não estava pesquisando a escola da dona Clair, mas os
professores que atuavam há mais tempo lá, momento em que brincava dizendo que
“queria descobrir qual o segredo deles que justificasse o bom desempenho no
ENEM”. Acredito que esta abordagem foi bem recebida por todos. Apenas duas
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65
entrevistadas pareceram claramente resistentes à entrevista, pois alegavam sempre
falta de tempo, resistências que foram vencidas de duas formas: aceitando realizar a
conversa na escola mesmo, durante um intervalo de aulas vagas (chamadas por eles
de “caixote”) e, no outro caso, esperando até as férias de julho.
Onze das quinze entrevistas foram realizadas nas casas dos próprios
professores, duas em minha casa de sítio, uma na própria escola e uma em um
restaurante situado em uma fazenda, no período de abril a julho de 2007. Tentei, de
início, realizar as entrevistas nas casas dos professores, pois queria ter um tempo mais
alargado para a conversa e, ainda, conhecer um espaço pessoal deles.
Antes de começar a gravar, tive o cuidado de explicar a pesquisa e falar da
importância do depoimento da pessoa para ela, além de lembrar da liberdade de se
responder àquilo que quisesse e/ou se pedir para desligar o computador, o que
aconteceu durante duas entrevistas. Por último, tocava na questão da privacidade das
informações dadas, o que começava pela mudança nos nomes, momento em que
pedia uma sugestão de um nome para o entrevistado (com pedido de justificativa pela
escolha), o que foi atendido por dez deles.
A transcrição das entrevistas foi feita pessoalmente por mim, porque não gostei
do resultado de uma única tentativa de pedir a alguém que me ajudasse. Apesar do
enorme trabalho, que durou três meses, penso que ele foi muito frutuoso, porque me
ajudou a iniciar a análise dos dados e a modificar a forma de realizar as entrevistas
seguintes, quando algumas perguntas geradoras de depoimento foram mudadas e
outras trocadas de lugar. Foram cerca de 25 horas de gravação, que totalizaram 193
páginas transcritas.
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4
A Escola-da-dona-Clair
Quando dona Clair não está lá parece que ela está lá. Às vezes eu chego: gente dona
Clair não está aí? Parece que eu tinha visto dona Clair. Juro! Isso aconteceu comigo mil
vezes, porque ela é uma presença tão marcante na escola! A escola de dona Clair. (professora
Tarsila– séries iniciais)
Neste capítulo, faço uma “pública” descrição “inspecionável” da “teia de
significados” (Geertz, 1978) da escola.
4.1
A escola e o contexto local
Imagine-se de repente saindo de um carro, braços ocupados pelo material de
trabalho (caderno e máquina fotográfica), só, num pequeno lugarejo cujo ar cheira a
flor e a fumaça de fogão de lenha, de rua única, com algumas poucas casas e lojas,
uma igrejinha católica em reforma, mais de uma igreja protestante e uma escola. A
escola de Vista Alegre tinha, em abril de 2005, quando lá cheguei pela primeira vez,
suas paredes brancas salpicadas de muitos desenhos coloridos que, descubro depois,
foram feitos por todos os estudantes e professores no ano de 2004. Em 2006, por
ocasião da comemoração do centenário do distrito de Vista Alegre, o muro da escola
foi coberto por uma tinta branca, e em 2007, um projeto da professora de desenho
pretendia integrar os jovens da localidade e grafiteiros do Rio de Janeiro que iriam
pintá-lo.
O muro é o limite entre o “mundo da escola” e o “mundo de fora” e marca um
novo cenário que eu estava prestes a conhecer. A primeira impressão é que a escola
estava vazia, tal o silêncio ao meu redor. Toquei a campainha ao lado do portão azul
trancado e esperei ansiosa, preocupada em me ajeitar depois da longa viagem, ajustar-
me e ser aceita
1
.
1
Inicio esta descrição inspirada em Malinowski (1980).
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67
4.1.1
Vista Alegre: uma localidade em franca expansão
Vista Alegre é um distrito centenário de um pequeno município do interior do
estado do Rio de Janeiro, com 22.857 habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE, 2007), que vivem principalmente da agropecuária,
embora desde 2006 nada menos do que quatro indústrias (embalagens e potes
plásticos, ração, fralda descartável) foram criadas na região
2
, somando-se a algumas
pequenas e caseiras confecções de moda íntima.
No distrito vivem cerca de três mil pessoas, a maioria das quais pequenos
agricultores familiares descendentes de colonizadores portugueses, suíços e alemães,
que começaram a chegar à região em meados do século XIX. A cultura cafeeira foi a
principal atividade agrícola e perdurou por muito tempo, até entrar em declínio e ser
complementada pela chamada “lavoura branca” (cultivo de inhame, batatas,
hortaliças etc), comercializada nos centros urbanos do sul do estado do Rio. Os
pequenos e médios proprietários cultivam, ainda, as lavouras de subsistência, como o
arroz, feijão e frutas.
É cada vez menos comum as pessoas da vila se reunirem à frente das casas, ao
fim do dia, para conversarem, “como uma grande família”, o que era uma prática
cotidiana até uns cinco anos atrás, segundo lembram alguns moradores. Neste
momento, trocavam-se as notícias do mundo e planejavam-se as próximas festas,
geralmente ligadas a uma igreja. As festas são de devoção a santos, às vezes, com
danças, como a apresentação da Quadrilha Pé de Fogo, formadas por adultos e jovens
do lugar e redondezas, dentre os quais duas das professoras estudadas na presente
pesquisa. Elas costumam ser aproveitadas para arrecadação de fundos em favor de
alguma instituição, como a escola ou a igreja católica, por exemplo. Ainda existe um
“calendário de pedir”, acordado entre os moradores mais antigos, para que cada
2
As indústrias foram criadas por incentivo do atual prefeito, que tenta modificar a economia
predominantemente rural da região a todo custo, mesmo que isso signifique isenção de impostos
municipais e sufocação de uma tendência natural da região ao turismo e à produção agrícola familiar.
Ainda não foi possível avaliar o impacto desse fato na vida dos moradores, mas os estudantes e
professores estavam divididos entre a aceitação com esperança de emprego nas fábricas e o repúdio,
sendo que a primeira tendência era da maioria.
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68
instituição tenha a vez na realização de almoços beneficentes, brechós etc: “a gente
pede, vende, anuncia, implora” , afirma uma moradora.
Há cinco anos, o fazendeiro dono das terras ao redor da centenária vila criou um
loteamento, sem nenhuma infra-estrutura básica, como água, esgoto e luz, para o qual
se mudaram 180 famílias, o que causou um forte impacto na vida social e econômica
do lugar, pois chegaram muitas “pessoas diferentes” segundo os moradores mais
antigos.
Em agosto de 1997, foi criada a Associação de Moradores, Produtores Rurais e
Artesãos de Vista Alegre, por iniciativa de um grupo de moradores que tentava
diminuir a quantidade de incêndios indiscriminados e incontroláveis, atividade muito
comum entre os agricultores da região para limpeza do terreno antes do plantio. Além
disso, no início de sua existência, a Associação lutava pelo asfaltamento da estrada
principal do lugar que o liga ao centro urbano e pela reativação do posto de saúde
comunitário, fechado há anos. Trata-se de um fórum aberto de discussões de questões
gerais da comunidade, que são encaminhadas aos poderes constituídos e às
instituições privadas (como a empresa de luz, por exemplo). As reuniões acontecem
uma vez por mês e a escola é um dos locais usados pelos moradores para buscar
apoio a ações também relacionadas às manifestações culturais locais e pela melhoria
da educação. O asfalto chegou há sete anos e o posto foi reaberto, com a implantação
do Programa Médico de Família. Mesmo assim, passados onze anos, o problema dos
incêndios continua, pois em agosto de 2007, um dia depois de uma grande festa
comunitária, durante a qual houve a criação de um circuito turístico, o fogo destruiu
toda a vegetação do lugar, o que desencadeou uma nova campanha da Associação
junto aos moradores, no sentido de sensibilizar, informar e cobrar compromisso por
escrito de mudança na prática.
Apesar dos problemas, a infra-estrutura da comunidade é boa quando
comparada a outras regiões do país, pois há energia elétrica em muitas propriedades
rurais, as estradas de acesso são trafegáveis durante o ano todo, com raras exceções.
A comunidade tem sofrido com a enorme queda da produção agrícola e a dificuldade
na comercialização dos produtos, o que faz com que muitos jovens busquem outras
opções nos centros urbanos. Como grandes problemas sociais locais, a falta de
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69
emprego para os jovens e o alcoolismo podem ser citados, ambos aparentemente
relacionados entre si.
Segundo os últimos dados do IBGE, 55,3% da população brasileira era rural em
1960 e diminuiu para 18% em 2002. No entanto, acredita-se que esses dados estão
subestimados, porque a definição de rural utilizada pelo IBGE não incorpora com
fidedignidade a ruralidade discutida anteriormente e existente no Brasil. Segundo
Veiga (2002), os censos demográficos obrigam os municípios a indicar sua zona
urbana e rural, chegando-se a uma contagem como urbana de toda a população de
pequenos municípios com baixa densidade populacional, valores e cultura
essencialmente rurais. A estratificação proposta por Veiga (na qual ele utiliza-se de
critérios usados internacionalmente para a localização dos municípios, densidade
demográfica e tamanho de sua população) indica um total de 4.490 municípios que
deveriam ser classificados como rurais e a população essencialmente urbana em 58%.
Embora a escola de Vista Alegre seja catalogada pela Secretaria Estadual de
Educação como urbana, por estar localizada dentro da vila, a região é marcadamente
rural, um conceito, como mostrei, bastante controverso. A decisão adotada neste
estudo é a do IBGE: educação rural é definida como a educação de alunos que
residem em áreas rurais, aquelas que são externas ao perímetro urbano. Como
apontou Carneiro (1998), rural acaba sendo considerado aquilo que está fora dos
referenciais urbanos. Mas a opção se deu porque a maioria dos estudos e das
estatísticas governamentais sobre educação rural faz uso dela, o que facilitou o acesso
aos dados. Por outro lado, cuidado foi tomado na análise do censo escolar, em que ela
aparecia com a qualificação urbana.
4.1.2
Caracterização social dos pais
Mais da metade dos estudantes da escola de Vista Alegre (55,2%) é filho (a) de
pequenos sitiantes e trabalhadores assalariados de fazendas ou sítios. Outro grande
número de estudantes (cerca de 44,3%) é de “moradores de beira-de-rua”
(classificação sugerida pela professora Iara – ciências), filhos de comerciantes,
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70
pedreiros, funcionários públicos, trabalhadores de confecções, aposentados,
serventes, motoristas, mecânicos, professores e “sacoleiros”, que moram em sítios ou
no novo loteamento, situado próximo à escola. Apenas seis pais de estudantes da
escola trabalham nas novas indústrias.
Quanto às atividades das mães, a grande maioria é de donas de casa (51,6%),
seguida de empregadas domésticas (14,6) e de outras profissões (14,3), como
professoras, secretária, merendeiras, aposentadas, costureiras, babás, comerciantes,
artesãs, manicuras.
Nos Quadros 1, 2, 3 e 4 a seguir apresento os dados referentes às ocupações,
seguidos dos níveis de escolaridade dos pais.
Quadro 1
Distribuição segundo ocupação principal do pai ou responsável
Freqüência Percentagem válida
Percentagem
acumulada
Válidos Lavoura própria
63 20,6 20,6
lavoura a meia
52 17,0 37,6
Empregado
mensalista
56 18,3 55,9
Pedreiro
40 13,1 69,0
Comércio
18 5,9 74,8
Motorista
15 4,9 79,7
Aposentado
5 1,6 81,4
Fábrica
6 2,0 83,3
Mecânico
7 2,3 85,6
Funcionário
público
4 1,3 86,9
Sacoleiro
4 1,3 88,2
Outros*
36 11,8 100,0
Total
306 100,0
N/R
3
Total
309
*empresário, militar, coveiro, político, empreiteiro, professor universitário, criador de escargot, granjeiro,
boiadeiro, despachante, garçom, policial, madeireiro, cobrador de ônibus.
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Quadro 2
Distribuição segundo ocupação principal da mãe ou responsável
Freqüência Percentagem válida Percentagem acumulada
Válidos Dona-de-
casa
159 51,6 51,6
Doméstica
45 14,6 66,2
Confecção
29 9,4 75,6
Lavradora
27 8,8 84,4
Professora
14 4,5 89,0
Outras*
33 10,7 100,0
Total
308 100,0
N/R
1 ,3
Total
309
*merendeira, funcionária pública, aposentada, costureira, babá, comerciante, dona de rádio, caseira,
faxineira.
Quadro 3
Distribuição dos pais ou responsáveis segundo escolaridade
Freqüência Percentagem válida
Percentagem
acumulada
Válidos Não estudou
36 11,7 11,7
Até a quarta-série
138 45,0 56,7
Da quinta à oitava
23 7,5 64,2
Ensino médio
16 5,2 69,4
Faculdade
5 1,6 71,0
Não sabe
89 29 100,0
Total
307 100,0
N/R
2
Total
309
Quadro 4
Distribuição das mães ou responsáveis segundo escolaridade
Freqüência Percentagem válida
Percentagem
acumulada
Válidos Não estudou
39 12,6 12,6
Até a quarta-série
153 49,5 62,1
Da quinta à oitava
34 11,0 73,1
Ensino médio
16 5,2 78,3
Faculdade
9 2,9 81,2
Não sabe
58 18,8
100,0
Total
309 100,0
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72
Do ponto de vista da escolaridade, verifica-se uma certa homogeneidade entre
os pais e mães, pois ambos estudaram, em sua maioria (45% e 49,5%,
respectivamente), até a quarta série do ensino fundamental e, ainda, os números dos
pais e mães analfabetos é de 11,7% e 12,6%, respectivamente.
Por outro lado, embora seja mínima a quantidade de pessoas que cursaram a
faculdade, o número de mães é o dobro do de pais. A maioria delas é de professoras,
algumas das quais lecionam na própria escola.
Outro dado que chama a atenção é que 29% dos estudantes não conhecem a
escolaridade do pai, enquanto 18,8% deles ignoram a da mãe.
Trago tais dados porque para compor a medida de capital cultural a
escolaridade dos pais ou responsáveis costuma ser usada, junto com a quantidade de
livros disponíveis em casa, materiais de leitura (jornal, revista, livros etc.), hábitos de
leitura, freqüência ao cinema e ao teatro, assiduidade na frente da televisão – ainda
que majoritariamente em pesquisas quantitativas. Todas estas variáveis ajudam a
definir um ambiente mais favorável ou não para a realização das tarefas educativas.
O apoio familiar é um dos principais fatores do processo de aprendizagem do
aluno (SAEB, 2001). Mesmo apresentando baixa escolaridade, os pais valorizam e
buscam a escola de Vista Alegre, na esperança de um futuro melhor a seus filhos,
talvez até fora da lavoura, realidade coincidente com a encontrada pela já citada
pesquisa de Demartini (1988) sobre as escolas do meio rural paulista do início do
século passado. Por outro lado, como mostro à frente, a grande maioria das crianças
ajuda sua família no trabalho diário e também acontece de os pais acharem que os
filhos “não dão para o estudo” e dizerem que eles ganham mais ajudando em casa. De
fato, a escola tem duas turmas de quintas e sextas séries, mas apenas uma turma
desses níveis em diante, devido à evasão dos estudos. À necessidade de trabalho para
ajudar a família, somam-se a dificuldade de aprendizagem e a ausência de cursos
noturnos. Esta realidade coincide com a descrição etnográfica feita por Brandão
(1990) sobre a cultura camponesa e a escola rural em Catuaçaba, interior de São
Paulo.
Em que pese a valorização do trabalho escolar e talvez pelo nível de
escolaridade dos pais, estes mantêm muito pouco contato com a realidade do lado de
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73
dentro do muro da escola. Uma situação referida por Dubet (2002) como comum às
famílias menos favorecidas, cujos pais confiam muito nos professores e parecem
desinteressar-se pelos estudos dos filhos, não sendo capazes de ajudá-los. De fato,
aqui a comunicação entre os dois mundos é precária, segundo a maioria dos
professores da escola, o que não parece atrapalhar o trabalho de alguns deles, mas que
é referido como um aspecto que aumenta a solidão do trabalho, por outros.
Ao levantar as pesquisas anglo-saxãs e francesas, entre os anos de 1970 e 1990,
em relação ao efeito que a escola tem sobre o bom desempenho dos estudantes,
Bressoux (2003, p.54) cita um trabalho empírico que conclui que as escolas eficazes
desfavorecidas parecem fechadas à influência dos pais . A presença de pais na escola
se faz em apenas duas reuniões anuais convocadas pela direção, que alega que eles
não têm tempo, porque trabalham muito, além de que moram longe. Fora nas festas
(juninas, de comemoração do centenário do distrito, por exemplo), em que a presença
de todos é maciça, presenciei, neste três anos, apenas poucos responsáveis por
crianças entrando pelo portão onde termina o muro em frente ao qual eu esperava
para entrar na escola. E estavam lá porque haviam sido chamados para tratar de
problemas de mau desempenho, evasão por gravidez precoce e por desinteresse nos
estudos.
4.2
Caracterização da escola
Exponho nesta seção os espaços e equipamento escolar, traço uma descrição
histórica da escola, assim como apresento a população docente, a discente e o pessoal
auxiliar.
4.2.1
Espaços e equipamentos
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74
O grande muro colorido à minha frente é a parte mais bonita da escola. Seu
portão azul separa a rua única de um largo corredor acimentado e descoberto por
onde todos entram e que dá acesso aos espaços escolares. Ele contrasta com o
pequeno espaço interno da escola, cujas paredes e móveis são velhos e gastos pelo
tempo
3
. O final do corredor de salas de aula termina na parte mais antiga da escola:
um hall a partir do qual há três salas de aula, a cozinha, a sala da direção. De frente
para este amplo corredor está o pátio de chão batido, muito freqüentado durante o
recreio, para brincadeiras como jogos com bola, bola de gude, piques. Há um grande
pé de nêspera, cujos frutos mal têm tempo de amadurecer e já “desaparecem”, e no
fundo, fica a quadra de esportes, descoberta, com alambrado quebrado, que faz limite
com um rio poluído, no qual é jogado todo o esgoto da vila. Esse pátio é pouco usado
pela maioria dos professores para os trabalhos acadêmicos (fora o professor de
educação física que ministra 99% das aulas ali, vi apenas quatro aulas acontecendo
sob a árvore), mas para os alunos ele representa o local do encontro, junto com o
corredor, onde se brinca, conversa, come, canta, namora.
No seu conjunto, o espaço físico é rústico e pequeno, precário. Ao sair de lá
naquele primeiro dia do ano de 2005, anotei em meu diário de campo:
“impressionante a falta de espaço interno num local com tanto espaço físico! E
localizado em uma comunidade em clara expansão demográfica e econômica”.
A característica da precariedade do espaço físico foi citada por todos os sujeitos
como um dos aspectos mais negativos da escola: falta espaço para determinados
ambientes, como sala de professores, quadra de esportes coberta, banheiros em
número suficiente (existe um banheiro para os funcionários e outros dois para todos
os alunos), refeitório, o que fazia com que os estudantes comessem as refeições
sentados no chão ou em pé, com o prato quente à mão
4
, no ano que lá cheguei .
3
A última reforma aconteceu em 1998, e, embora rápidas pinturas tenham sido feitas, a verba para
manutenção costuma ser usada para obras estruturais, como a reforma da rede de esgoto, por exemplo.
4
Uma nota publicada em famosa coluna de jornal de grande circulação no estado do Rio, em abril de
2006, com fotos que mostravam essa situação, fez com que a escola ganhasse mesas e cadeiras usadas
de uma empresa carioca. O poder público estadual limitou-se a ligar para a direção, proibi-la de dar
qualquer entrevista e mandar um engenheiro para verificar o local. Até dezembro de 2007, o refeitório
ainda não havia sido construído, o que mantinha a situação anterior: quando chovia, os estudantes não
podiam sentar-se para comer, porque o mobiliário estava molhado; quando o dia estava claro, eles
igualmente não o utilizavam por não agüentarem ficar muito tempo expostos ao sol. O ano letivo de
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75
O espaço reservado à biblioteca é uma sala de não mais do que seis metros
quadrados, onde as estantes dividem espaço com duas pequenas mesas com cadeiras,
usadas pelos alunos em pesquisas. Este espaço também é re-significado pelos
professores que costumam preparar aulas, se reunir na hora do recreio, conversar e
fazer as refeições ali, juntos. Vi vários avisos da direção e de colegas de turno e/ou
dia diferentes para os professores colados no tampo das mesas.
Outros espaços, tais como a cozinha, a secretaria e muitas das salas de aula,
também são exíguos e insuficientes para a realização do trabalho, tanto que muitas
vezes os estudantes de quinta e sexta séries assistem a aulas sentados no corredor, ou,
então, o professor é obrigado a dividir a turma em dois grupos e dar aula em dois
tempos, quando vão ao laboratório de informática. Ou quando vão à biblioteca. No
total, são sete salas de aula. Entretanto, por mais que a infra-estrutura do
estabelecimento não esteja adequada ao funcionamento das atividades desenvolvidas
e ao atendimento dos estudantes, a escola está entre os 6% das brasileiras localizadas
em meio rural que possuem mais de cinco salas de aula. (Brasil, 2006).
Em todas as salas há crucifixos nas paredes, nos corredores, podem-se encontrar
murais com referências ao catolicismo, e a maioria dos professores costuma rezar um
“Pai Nosso”, “a reza universal” segundo alguns deles, antes das aulas
5
.
Em termos de equipamentos e recursos educativos, fora os livros estocados na
“biblioteca”, há pouco material de apoio específico para as disciplinas que compõem
o currículo. No caso das aulas de Educação Física, elas se realizam em uma quadra de
esportes descoberta, com alambrado arrebentado pelo tempo, e cujo material único é
uma bola.
Em contraste, há outros recursos materiais da escola em maior variedade e
quantidade. São três videocassetes e três televisões, duas antenas parabólicas, uma
Internet a cabo, duas impressoras, um mimeógrafo (ainda muito usado), um fax, dois
aparelhos de som, três bebedouros, dezoito ventiladores e vinte e três computadores,
2008 iniciou-se com as mesas e cadeiras (já velhas) protegidas por um grande varandão construído
pela Secretaria Estadual de Educação.
5
O que acaba virando motivo de gozação entre os estudantes, que comentaram com o professor de
inglês que ele deve “rezar mais de um terço por dia”.
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76
dentre os quais dois são usados pela administração e dez ainda aguardam dentro das
caixas um local para serem disponibilizados aos estudantes.
4.2.2
Histórico
A “escola-da-dona-Clair”, como ela é chamada pelos pais dos estudantes, é
conhecida em toda a região e atende a mais de trezentas crianças, em dois turnos: pela
manhã, freqüentam a escola os estudantes do primeiro ao quinto ano, e à tarde,
adolescentes estudantes do sexto ano do ensino fundamental até o terceiro ano do
ensino médio. O número significa que ela está entre as apenas 2,8% das escolas
brasileiras situadas em zona rural com mais de 300 alunos (Brasil, 2006).
Pelo menos duas observações merecem destaques aqui: primeiro, a escola está
entre os 4,45% de estabelecimentos do Brasil rural que oferecem o ensino médio
(Brasil, 2006); segundo, no ano de 2005, o atendimento abrangia desde o maternal até
o quarto ano Normal, o que quer dizer que o Estado vem comendo pelas beiradas a
oferta de vagas à comunidade. Um caminho inverso ao da história da escola, que nos
últimos 51 anos mobilizou esforços para expandir sua oferta de serviço público,
história que se confunde com a história da dona Clair, diretora do colégio há 51 anos.
A escola-da-dona-Clair foi criada em 1950, em terreno doado por pequenos
proprietários rurais e políticos, que buscavam oferecer estudo aos filhos dos muitos
colonos que trabalhavam nas lavouras de café e fixá-los na região. Lembro que o
período posterior ao da Segunda Guerra Mundial, fundamentado e referenciado na
teoria do capital humano, é marcado pelo grande crescimento da oferta de serviço
escolar, período este denominado por Canário (2005) de “a escola num ‘tempo de
promessas’”, quando as despesas com a educação escolar eram vistas como de
retorno certo. Das atividades escolares em Vista Alegre, desde o início, já
participavam cerca de 40 alunos, em turmas multisseriadas.
O ensino regular em áreas rurais brasileiras surgiu com o advento da
monocultura cafeeira e com o fim da escravidão, quando a agricultura passou a
necessitar de mão-de-obra especializada, ou seja, seu desenvolvimento no Brasil
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77
reflete as necessidades socioagrárias. Embora nascido no fim do 2º. Império, o ensino
escolar somente se implantou amplamente na primeira metade do século XX
(Calazans, 1993).
A partir da década de 1930, há uma grande defesa da educação rural no Brasil,
na busca de se promover a fixação do ser humano no campo, integrada a
preocupações sanitaristas (Maia, 1982). Em que pesem as missões rurais pelo interior
(nas quais ofereciam-se cursos de formação para professores das áreas rurais, por
exemplo) poucas foram as medidas significativas que propiciaram melhorias
quantitativas ou qualitativas. A escola de Vista Alegre já nasceu com problemas de
infra-estrutura e de falta de professores e, como mostro a seguir, a contratação de uma
professora nativa formada na escola Normal, em 1957, foi uma tentativa (muito bem
sucedida) do Estado de resolver tais problemas.
Dona Clair é uma senhora baixinha, mãe de cinco filhos, católica fervorosa,
calma (“a maneira de ela tratar é que até quando ela está aborrecida ela está calma”,
diz um professor), de olhinhos muito vivos, nos seus 70 anos. Em 1957, então com 19
anos, assumiu o colégio de Vista Alegre, local onde vivia desde criança (e no qual seu
pai, “comerciante do tempo antigo, vendia de tudo, do pano de cueiro até pano de
caixão”), fato que se recorda assim: “Eu cheguei na escola, muito animada no
primeiro dia, querendo conhecer tudo. Não tinha servente. Não tinha ninguém. Eu
mesma limpei tudo. Trouxe a empregada lá de casa para me ajudar a arrumar [risos].
Para começar a aula no dia seguinte”.
Essa diluição de fronteiras entre o trabalho docente e a casa parece ser uma
realidade do profissional que atua no meio rural, como analisou Capelo (2008) em
relação às professoras de áreas rurais cafeicultoras paranaenses, de 1940 a 1960: “(...)
no passado, ser professora rural implicava em muito mais do que exercer uma
profissão. Tratava-se de atuar em uma dimensão que não se enquadrava tão somente
no espaço público do mundo do trabalho, ligando-se, ao mesmo tempo, no espaço
privado e íntimo das vidas pessoais. O mundo privado da casa e o mundo público da
profissão docente são representados de forma inseparável” (p.6) .
A mulher professora fazia parte de um contexto caracterizado pela dominação
masculina e a imagem feminina era marcada por missionarismo e moralidade
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78
religiosa. Dona Clair rompe com a restrição da mulher ao mundo doméstico e, na
condição de professora, passa a desempenhar a função de “educar” hábitos infantis
por meio de técnicas e procedimentos científicos. Entretanto, sua imagem de
missionária permaneceu a mesma até os dias de hoje, assim como a diluição das
fronteiras entre sua casa e seu trabalho. Certa vez, indaguei a dona Clair qual o papel
daquela escola na sua vida, ela abriu um grande sorriso e disse: “Esse é o meu
trabalho, a minha vida. Para essa comunidade, ela é a única esperança de futuro”. Em
2008, ela prolongou sua obra ao ver sua filha, a professora Mariana, eleita a nova
diretora da escola.
Ainda nos anos de 1950, a “professora-diretora-servente” Clair dava aulas para
os filhos dos lavradores de café matriculados em todas as séries em uma sala única,
com quadro pequeno. Os deveres eram corrigidos em casa, mas durante o dia, pois
não havia luz elétrica na região. O desafio enfrentado nesse começo é descrito desta
forma por ela: “Os [estudantes] que já sabiam ler copiavam o exercício do livro,
alguns copiavam do quadro e outros copiavam do caderno que eu passava em casa
para eles. Os mais adiantados iam me ajudando a ensinar os mais atrasados. E todo
mundo aprendia. Saia todo mundo aprendendo. Era um desafio!”.
Depois de três anos, outras professoras chegaram para ajudar (contratadas que
trabalhavam o ano inteiro para receberem seus salários apenas no fim do ano) e a
escola foi deixando de ser multisseriada. Mas somente nos anos de 1980 começou a
oferecer da quinta até a oitava séries, depois da visita do então governador do estado,
em campanha eleitoral, a uma recém nascida exposição agropecuária local. Decretada
a criação da expansão da escola, restou à direção e ao núcleo educacional local
arrumar os meios para execução, e vários “jeitinhos” foram sendo dados (como, por
exemplo, a contratação de apenas uma professora para a quinta série, que tinha,
portanto, que ministrar todas as matérias). Até que, em 1985, com a duplicação do
número de matrículas do pré-escolar até a sétima série, o estado liberou a construção
de novas salas, e, a partir de um documento assinado por cerca de 300 pessoas,
conseguiu-se a criação do ensino médio com formação de professores, em 1987, um
ano depois de a primeira turma já ter concluído o então primeiro grau (Faria, 1992).
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79
É interessante o comentário de uma ex-professora de História (com 27 anos de
magistério, 10 dos quais na escola-da-dona-Clair) sobre a escola naquela época: “Ela
tinha um grupo de alunos excelentes, muito interessados, para quem a escola era a
primeira opção em suas vidas. Os professores eram sensacionais. Nós decidíamos
tudo no churrasco semanal, do qual participavam também os alunos. Nós criamos
muitos laços. Até hoje, quando encontro meus ex-alunos de lá, eles falam dos pés de
jabuticaba lotados de frutos, porque sabem que adoro jabuticaba”.
Além da demanda por estudo, da organização e luta da comunidade, e da
dedicação exclusiva da dona Clair ao seu trabalho, outros fatores contribuíram para a
transformação da escola em colégio. O primeiro foi que alguns professores
provenientes do Rio de Janeiro e de outras cidades maiores compraram sítios na
região e passaram a se interessar pelo lugar, lecionando lá matérias como
Matemática, Física e Química, para as quais tradicionalmente há poucos professores
(principalmente no meio rural). Além disso, esses professores interferiram
politicamente na gestão estadual da educação, durante o governo de Leonel Brizola
6
.
Um segundo fator é que o país vivia a expansão do ensino público básico, e o Estado
passava a contratar professores e a aumentar o número de vagas nas escolas, aquele
tempo da escola denominado por Canário (2005) e já referido anteriormente como
“tempo das promessas”.
Depois de quase duas décadas de lutas e improvisações (como por exemplo, o
fato de que, durante um ano, a turma do então pré-escolar estudou no necrotério
local), a escola, reconhecida como “nem sempre obediente” em dissertação de
mestrado no Departamento de Educação da Fundação Getúlio Vargas (Faria, 1992),
consolidou seu trabalho atendendo desde a pré-escola até o ensino médio, com
formação de professores, oferta que acabou no final de 2005. Devo lembrar que, em
2006, a escola deixou de oferecer o quarto ano Normal e, em 2007, a educação
infantil.
6
Um desses professores era casado com uma auxiliar direta do professor Darcy Ribeiro, então
Secretário Estadual de Educação, e lutou bravamente pela transformação. Segundo uma professora da
época, o professor dizia que, lá na escola-da-dona-Clair, ele não se sentia “o marido da auxiliar do
professor Darcy”, mas apenas o professor. Contudo, para o bem da escola, atuou nos bastidores como
“o marido”.
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80
4.2.3
População discente: quem são, o que buscam na escola e qual o
sentido da instituição
São 7 horas da manhã, faz frio, e a neblina cobre boa parte das montanhas ao redor da
escola. Dona Clair bate o sinal sonoro para o turno da manhã, abre o portão azul e as
crianças entram, silenciosas, em grupos, pares ou sozinhas, uniformizadas com uma
blusa cinza do colégio, calça comprida ou short, e carregando suas mochilas ou bolsas.
Alguns vieram a pé, pois moram nas redondezas. Outro grupo saiu de casa há mais de
uma hora e foi transportado até a escola pela condução oferecida pela prefeitura
municipal. Todos se dirigem às salas de aula, onde ficam até às 9h30, quando bate
novamente o sinal para o recreio e o almoço. Nesta hora, há um certo alvoroço na
corrida até a fila da refeição, servida por três serventes (as mesmas que a cozinharam)
em pratos individuais. O cardápio de hoje é arroz com frango desfiado e feijão. As
crianças sentam-se, com o prato à mão, no chão do corredor cimentado que dá de
frente para o amplo pátio de chão de terra onde depois brincarão exaustivamente até o
fim do horário do recreio.
Agora já são 11 h e pela terceira vez nesta manhã o sinal sonoro é acionado, agora
pela coordenadora Claudia. É o final do turno. Enquanto as crianças se apressam a sair
pelo portão azul e entrar nas Kombis, vejo algumas mães pegando algumas crianças
pelas mãos e saindo andando a pé. A escola cai num silêncio absoluto, só
interrompido pelo cantar dos pássaros e pelo arrastar da vassoura das serventes, que
têm menos de uma hora para limpar todo o ambiente para o turno da tarde.
Aproveito o tempo para conversar com dona Clair, que só vai almoçar com o turno da
tarde (descubro depois que a cozinheira da tarde é favorita de todos). Ela é quem toca
o sinal e abre o portão azul anunciando o novo turno. Muitas crianças e adolescentes,
também uniformizados, aparentando idades que variam de 10 a 18 anos, esperaram
por esse momento sentados no meio-fio ou em pé do lado de fora do muro colorido,
conversando animadamente em grupos. Também chegaram, em sua maioria, de
condução, muitos vindos de longe, numa jornada que muitas vezes começou às 10h da
manhã e que termina agora, às 11h45. O silêncio do local é transmutado num intenso
arrastar de carteiras, que descubro ser um rearranjo personalizado que os grupos de
estudantes mais velhos fazem antes de se iniciarem as aulas.
A instituição escolar tende a reduzir todos estes sujeitos à categoria aluno,
independentemente do turno, idade, sexo, origem social. A essa homogeneização dos
sujeitos como alunos, corresponde uma homogeneização dos sentidos e objetivos da
instituição escolar. O que também reverbera no processo de ensino-aprendizagem,
uma vez que este acontece numa homogeneidade de ritmos, estratégias e propostas
educativas, na chamada “forma escolar” da instituição (Canário, 2005).
Para Dayrell (1996), por outro lado, estes sujeitos podem ser percebidos em
suas diferenças, nas visões de mundo que têm, sentimentos, nas lógicas de
comportamentos e hábitos. E deve ser pensado como possuindo o que Perrenoud
(1995) designa por “currículo oculto”: “(...) conjunto da experiência do aluno, tudo o
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81
que lhe acontece na escola e que (...) gera aprendizagens: a aquisição de
conhecimentos, o saber-fazer e o saber-ser, a formação de atitudes” (p.172). A escola
é apenas uma parte do projeto do aluno e ela costuma ser polissêmica para ele,
adquirindo uma multiplicidade de sentidos, que nos cabe buscar conhecer.
No Quadro 5 a seguir está a freqüência da distribuição dos 309 alunos
respondentes ao questionário, divididos por turmas.
Quadro 5
Distribuição de alunos por turmas em 2007
Freqüência Percentagem válida
Percentagem
acumulada
Válidos 101
20 7,0 7,0
201
24 8,4 15,4
301
16 5,6 21,0
401
21 7,3 28,3
501
32 11,2 39,5
502
26 9,1 48,6
601
20 7,0 55,6
602
20 7,0 62,6
701
30 10,5 73,1
801
9 3,1 76,2
802
11 3,8 80,1
1001
17 5,9 86,0
2001
17 5,9 92,0
3001
23 8,0 100,0
Total
286 100,0
N/R
23
Total
309
A partir da observação desses dados, pode-se perceber que é grande a taxa de
evasão escolar no segundo segmento do ensino fundamental, pois do total de
estudantes matriculados na quinta-série (atual sexto ano), 65,5% não chegam à oitava
série (atual nono ano). Já da quinta-série para a sétima-série há uma queda
considerável (cinqüenta e oito e trinta alunos, respectivamente), o que pode ser
explicado, como já observei, pela necessidade de ajuda em casa, além da dificuldade
de adaptação à cultura escolar. A taxa decrescente tem se mantido durante o ensino
médio, com exceção do ano de 2007, em que o número de alunos do terceiro ano foi
recorde em toda a história da escola: 23 estudantes.
Em relação ao primeiro segmento do ensino fundamental, pelo quadro não se
pode analisar muita coisa. Sabe-se que os critérios e regras que regem a promoção
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82
desses estudantes são os da Secretaria Estadual de Educação. Desta maneira, no
primeiro segmento é realizado um relatório qualitativo de competências e habilidades,
com promoção automática do primeiro, segundo e quarto ano (antigos CA, primeira e
terceira séries), enquanto do segundo segmento em diante são realizadas avaliações
do desempenho dos alunos, que são promovidos ou retidos nas séries. Contrariando
as ordens de aprovação automática do Estado, na escola-da-dona-Clair o estudante
costuma ser retido na série em que não teve bom desempenho, embora oficialmente
apareça na série seguinte
7
. Assim, é dada a ele a chance de aprender a “ler, escrever e
contar” durante pelo menos quatro anos.
A escola tem procurado minimizar estes problemas de mau desempenho e
também da evasão de diferentes maneiras: chama os pais individualmente para
conversar, explica a importância e o dever de seus filhos freqüentarem a escola
(quando comunica que vai “avisar” ao Conselho Tutelar); a direção cria turmas
especiais de recuperação que acontecem durante todo o ano, para a qual contrata, com
verba desviada de outras rubricas, um professor que trabalha basicamente com leitura,
interpretação e produção de textos, e solução de problemas matemáticos.
Mais da metade dos alunos matriculados em 2007 (52,1%) nunca repetiu o ano
escolar, mas 31,6% já o fizeram uma vez. Outros 12,4% foram reprovados duas vezes
e 3,9% dos respondentes afirmam ter repetido de ano três ou mais vezes. Ainda em
relação ao valor da escola e dos estudos, cabe dizer que 94,1% dos estudantes nunca
abandonaram a escola e o restante da amostra o fez por até um ano.
Segundo a coordenadora pedagógica da escola, o desempenho das tarefas de
casa pelos alunos é dificultado pela falta de escolaridade dos pais, embora 82,8% dos
estudantes declarem possuir um local calmo, com mesa, para realizarem os deveres
de casa, o que é considerado um indicador do envolvimento dos pais. Muitos
professores tendem a não incluir o dever de casa em suas práticas, alegando que a
tendência é que ele não seja feito. Por outro lado, 27,5% dos estudantes da escola não
possuem sequer um livro em casa, 59,5% deles possuem até vinte livros, e somente
3,2% afirmam ter mais de cem (Quadro 6).
7
Situação que causa uma certa confusão durante os Conselhos de Classe, porque os professores
passam um bom tempo formalizando as avaliações nos diários dos colegas.
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Quadro 6
Distribuição da quantidade de livros não-escolares presentes nas residências
Freqüência Percentagem válida
Percentagem
acumulada
válidos Nenhum
85 27,5 27,5
1 a 20
184 59,5 87,1
21 a 100
30 9,7 96,8
mais de
100
10 3,2 100,0
Total
309 100,0
Para completar, cabe trazer a leitura de material não-escolar realizada no ano de
2006 pelos estudantes (Quadro 7). É flagrante a pouca leitura, e comparado ao quadro
anterior, pode-se deduzir que a maioria dela foi feita na escola, único local da
comunidade a possuir livros. O incentivo à leitura pelos professores pode ser mais
observado durante o turno da manhã, em que, além de escolher e levar para a sala de
aulas livros, a maioria das professoras realiza diariamente uma leitura, coletiva ou
individual, silenciosa ou em voz alta.
Quadro 7
Distribuição de quantidade de leitura realizada pelos alunos no ano de 2006
Revistas em
quadrinhos ou
de humor
Livros de
ficção ou
romance
Jornais Revistas
semanais
Livros
religiosos
Não leu 54,8 69,8 70,1 79,1 74,1
Leu 45,2 29,9 29,6 20,9 25,9
N/R 2,6 0,3 0,3 - -
Ainda no que se referem às práticas culturais, mais da metade (53,7%) dos
estudantes daquele meio rural nunca foi ao cinema, mas 78,9% deles dizem assistir
muito à televisão nos fins de semana, sendo que mais da metade dos alunos tem um
aparelho em casa (34,8% dos estudantes afirmam possuir dois ou mais televisores).
75,8% das casas dos estudantes de Vista Alegre têm antena parabólica. Os estudantes
também afirmam gostar de música e 64% a ouvem freqüentemente. Outra atividade
realizada nos fins de semana são os jogos de futebol, praticados ou assistidos por
36% do alunado. Por fim, 33,3% dos estudantes dizem ir à igreja católica aos
domingos, seguidos de outras igrejas protestantes, como Assembléia de Deus (4,8%),
presbiteriana (2,6%) e evangélica (1,3%).
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Dos estudantes, 91,6% moram junto com as mães e 73,5% têm a presença
paterna sob o mesmo teto. Ainda, 79,4 % dos estudantes ajudam seus pais no trabalho
de casa (32,4% deles inclusive nos fins de semana), sendo que, destes, 20,9%
trabalham na roça. Mesmo os estudantes de apenas sete anos de idade “capinam”,
“roçam”, “colocam as mudinhas na cova”, além de participarem em outras tarefas,
como ordenhar vacas, carregar terra no carrinho, lavar roupa, cuidar do irmão, da avó;
enfim, “brincam de trabalhar com o pai e a mãe”, resposta dada prontamente por um
menino quando perguntado sobre do que eles brincam em casa (Quadro 8).
Quadro 8
Distribuição de alunos por trabalho realizado fora da escola
Freqüência Percentagem válida
Percentagem
acumulada
Válidos Não trabalha
21 8,0 8,0
Ajuda mãe em
casa
140 53,2 61,2
Trabalha na roça
55 20,9 82,1
Diarista
12 4,6 86,7
Babá
5 1,9 88,6
Outros*
30 11,4 100,0
Total
263 100,0
N/R
46
Total
309
balconista, confecção, lanterneiro, borracheiro, jardineiro, manicure.
Ligado ao aspecto sócio-econômico, valem ressaltar as expectativas de futuro
dos estudantes. Dos vinte e três estudantes cursando o último ano do ensino médio
em 2007, poucos tinham planos de continuar seus estudos no nível superior, pois os
pais não têm condições financeiras de sustentá-los numa faculdade particular (perto
de casa), nem numa da rede pública (longe de casa, o que requer gastos com estadia e
alimentação, além do material)
8
. A seguir, os Quadros 9 e 10 mostram os sonhos
daqueles estudantes.
8
Em relação a isso, cabe trazer que, no início do ano de 2007, fui procurada por duas estudantes do
terceiro ano do ensino médio, que queriam aconselhamento e ajuda na elaboração de um projeto para
financiamento de seus estudos numa universidade pública federal fluminense. Cerca de cinco
estudantes garantiriam a vaga, e o poder público, o transporte e a estadia no alojamento. Embora tenha
me parecido brilhante, a idéia não vingou porque eram muitos os empecilhos.
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85
Quadro 9
Distribuição de expectativas dos estudantes para 2 anos
Freqüência
Percentagem
válida
Percentagem acumulada
Válidos Somente
estudando
120 39,5 39,5
Somente
trabalhando
15 4,9 44,4
Estudando e
trabalhando
108 35,5 79,9
Não sabe
59 19,4 99,3
Outra situação
2 ,7 100,0
Total
304 100,0
N/R
5
Total
309
Quadro 10
Distribuição de expectativas dos estudantes para 10 anos
Freqüência Percentagem válida
Percentagem
acumulada
Válidos Somente
estudando
25 8,2 8,2
Somente
trabalhando
90 29,5 37,7
Estudando e
trabalhando
99 32,5 70,2
Não sabe
83 27,2 97,4
Outra situação*
8 2,6 100,0
Total
305 100,0
N/R
4
Total
309
*servindo à Marinha, viajando e “viajando pelo mundo de caminhão”.
Nota-se que a taxa daqueles que estudam e trabalham mantém-se relativamente
estável na casa dos 30%, independentemente do tempo futuro. Observa-se, ainda, que
em dois anos, 4,9% dos estudantes estarão apenas trabalhando, número que sobe para
29,5% em 10 anos.
A escola-da-dona-Clair representa para a grande maioria destes estudantes uma
possibilidade de um futuro melhor, com um emprego, muitas vezes, fora da lavoura.
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86
A sala de aula é o local privilegiado para a realização desse objetivo. Nela, formam-
se grupos e subgrupos pelas afinidades, localidade de origem (Santo Antônio,
Distrito, Palmeirinha, Boa Vista, São Sebastião), dedicação aos estudos e aos
trabalhos escolares, entre outras categorias. Alguns estudantes ainda dizem que vão à
escola comer e, para alguns jovens dos cursos mais avançados, a escola é o local de
se “aprender a ler, escrever e a questionar as injustiças”.
Concomitantemente, a escola-da-dona-Clair é considerada como o “maior
espaço de convívio social” daqueles estudantes. O horário do recreio é um momento
do encontro e da alimentação. Depois de enfrentarem a longa fila e comerem, os
estudantes espalham-se por todos os espaços dentro e fora das salas de aula,
conversam, brincam de bola, de roda, de dar piruetas, de subir em árvores, de cantar,
de imitar passarinhos, de tocar violão em rodas, até de namorar (embora isso seja
proibido dentro da escola) A escola-da-dona-Clair é o referencial de lazer daqueles
meninos e meninas que trabalham muito, quando não estão na escola. Segundo um
deles, por isso, “o estudo flui muito melhor”. A escola é o espaço do encontro e do
lúdico, da “sociabilidade pura” na fala de Simmel (1978), em que a interação se dá
entre iguais: “A sociabilidade é o jogo no qual se ‘faz de conta’ que são todos iguais
e, ao mesmo tempo, se faz de conta que cada um é reverenciado em particular; e
‘fazer de conta’ não é mentira mais do que o jogo e a arte não são mentiras devido ao
seu desvio da realidade” (p.173).
Outrossim, na escola, tanto dentro da sala de aula como fora dela, é possível a
convivência com a diferença de um modo distinto da família e do trabalho,
qualitativamente. Os estudantes lidam com suas subjetividades, falam de si, trocam
experiências, idéias, vivências. E, ao mesmo tempo, têm acesso aos códigos culturais
dominantes que podem lhes garantir um espaço no mercado de trabalho.
A valorização da escola pode ser sentida em outros momentos. É muito comum
encontrar estudantes do turno da tarde chegando às 8 horas da manhã na instituição,
onde passam o dia para fazerem seus trabalhos escolares. A escola é o único lugar
daquela comunidade em que há livros para pesquisa, além dos computadores e da
Internet, usados por alguns professores, estudantes e ex-estudantes. E a escola é
citada como a “fonte do conhecimento” local, “essencial para a vida”, “um lugar que
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87
status freqüentar”. Cheguei a ouvir de uma mãe, de uma maneira bem
emocionada: “tudo o que meu filho sabe ele aprendeu aqui”
9
. Concluindo, ela parece
manter o monopólio do saber local.
Junto com o empenho da maioria dos professores, a vontade de aprender e o
interesse dos alunos foram citados por praticamente toda a comunidade como os
fatores que justificavam o bom desempenho no ENEM. “A escola é o meu horário de
descanso”, disse-me um aluno do ensino médio. Talvez com certo exagero.
4.2.4
População docente e pessoal auxiliar
São 1150h e entro (depois do professor) na turma 501 a convite do professor Aquiles,
de educação física, com quem já havia conversado anteriormente sobre a escola. Ele
trabalha freqüentemente na quadra de esportes e esta é uma das poucas aulas que
ministra em sala de aula. Trinta alunos estão presentes e é grande a excitação, pois o
professor explica seu sistema de avaliação, que consiste em uma avaliação prática, uma
avaliação escrita e uma avaliação diária. Nesta, avalia comportamento em grupo e
participação, um objetivo de seu trabalho: “Vocês têm necessidade de movimento”. A
avaliação prática é sobre aplicação de regras do esporte, técnicas, coordenação motora
e aprendizagem de táticas de jogo. A avaliação escrita versa sobre alguns esportes e
tem um peso menor que as outras. Os alunos estão muito atentos à explicação e alguns
emitem comentários. O clima é muito alegre, com piadas (como “vocês escutam o galo
cantar e não sabem em qual terreiro” sobre uma afirmação equivocada de um
estudante), e algumas vezes, durante uma risada geral, ouço (e custo a acreditar)
imitações de cantos de passarinho!
Três alunos de outra turma assistiam à aula pela janela e foram convidados (e
aceitaram) a entrar. Aquiles introduz o tema da aula: futsal. Desenrola um engraçado
“pergaminho”, composto por um rolo de papel preso em uma caneta, onde está o texto
teórico que vai lendo, comentando e copiando no quadro. Silêncio. Os alunos copiam
muito atentos.
Eloiza: conta para mim um dia de aula?
Iracema: eu chego e tenho o hábito de passar um exercício para casa, porque
português (eu tenho consciência de meu trabalho) é muito conteúdo. Essas crianças
têm muita dificuldade na escrita, até na caligrafia mesmo. Têm uns que não lêem o
que escrevem! Eu gosto de trabalhar um texto uma vez por semana. Infelizmente,
9
Aliás, essa foi outra surpresa, a “mãe-aluna” da quarta-série da escola-da-dona-Clair. Rosely, 26
anos, é mãe de Thiago, 9, hemofílico (precisando, portanto, de cuidados especiais), e, ao mesmo
tempo, aluna. Foi convidada a voltar a estudar pela diretora, que não se conformou de vê-la esperando
pelo filho à porta da sala e a levou para dentro, proporcionando “uma das maiores emoções” de sua
vida, que foi o reencontro com os estudos, abandonados na segunda série do ensino fundamental.
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88
sigo muito o livro didático, porque não tenho condições de xerocar e a escola não dá.
(..) Você pede um jornal, uma revista, o aluno não leva. (...) São setenta e tantos
alunos. Sigo o livro (...). Texto didático não é muito bom realmente, você sabe disso,
mas o conteúdo é um dos melhores que vi até agora. Uso muito o livro, porque acho
que ali tem muita coisa boa e o que não acho interessante deixo de lado. O tempo é
muito pouco e são muitos alunos. Gosto de ver o exercício que passo todos os dias.
Eu falo: “se for para eu passar para eu fazer não vou passar”. Se não fazem, eu anoto
mesmo; senão, não fazem. Passo o dever e olho se fizeram. Se está certo ou errado
não olho. Mas que eu passo nas mesas, olhando e anotando, eu passo. Eu sempre
adotei a postura de se não fizerem o exercício vão fazer uma cópia de castigo. Eles
preferem fazer o exercício. (...) Eles estão acostumados com minha postura. Eu cobro
mesmo. Eu dou para eles aquilo que acho o máximo. Eles mereciam muito mais, mas
o tempo não dá. A turma é grande, sempre tem aluno em aula vaga do lado de fora
fazendo um auê. (...) Aí corrijo. (...) Eu não saio de sala de aula e deixo aluno
sozinho. Eu tenho medo que aconteça alguma coisa.
Em que pese o fato de que na instituição escolar haja um conjunto de tempos e
espaços ritualizados, e os processos sejam parecidos e tudo leva a se ensinar uma
matéria, há, por trás, uma complexa e dinâmica rede de relações entre os professores
e seus estudantes. Esta rede de relações reflete o modo de ser dos sujeitos, como
convivem com as diversidades de valores e visões de mundo e o(s) “clima” (s) que
criam na sala de aula.
Um aspecto primordial das visões de mundo diz respeito à crença que os
professores da escola têm nos objetivos do seu trabalho e nas finalidades da
educação, porque estes nortearão todo o processo de ensino-aprendizagem. Fiz esta
pergunta a muitos deles e as respostas, além do acima citado objetivo comum de
ensinar um conteúdo, são as seguintes: estimular os alunos ao estudo; mudar
comportamento; criar laços de afetividade e de cumplicidade; acompanhar o
crescimento; formar o ser humano quase na totalidade; formar espiritualmente;
preparar para vida social; ainda, lapidar informações e trocar conhecimento com os
estudantes.
Formar cidadãos foi a resposta mais recorrente, sendo cidadão definido como
“pessoa que tenha direitos e deveres e uma vida digna”, “cada um do seu jeito, mas
que saiba se comportar em sociedade e ser solidário”; “aquele que sabe dos seus
direitos, que sabe que vive em uma sociedade injusta e que vai lutar, dentro do
contexto democrático, para transformar essa sociedade”. Assim, se tínhamos
anteriormente crenças bem variadas, decorrentes das diferentes visões que eles têm de
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89
seu trabalho, neste caso a situação revela uma opinião corrente no campo
educacional, em sintonia com o que pensam 72,2% dos professores brasileiros
(UNESCO, 2004, p.109), que consideram que a maior finalidade a ser alcançada pela
educação é “formar cidadãos”
10
.
O mundo dos estudantes, por sua vez, tem uma dinâmica própria e diversa do
mundo do professor, sua matéria, seu discurso, seus objetivos e práticas. Estes
mundos são separados, embora por vezes se cruzem. Tanto o professor como o aluno
produz um discurso e um comportamento que classifica, hierarquiza, (des)valoriza, e
eles acabam criando “tipos” de alunos e de professores. Isso para não falar da direção.
Na escola, os tipos de alunos citados pelos professores são “estudiosos”,
“médios” e “preguiçosos”, “humildes”, “inteligentes”. Entretanto, todos os
professores consideram os alunos da escola-da-dona-Clair “os seus alunos mais
interessados”. Os estudantes, por sua vez, consideram os professores “sérios”,
“dedicados”, “excelentes”, mas também “exigentes demais” e “chatos”.
Dona Clair classifica seus professores em dois tipos: “aqueles que se interessam
por tudo da escola (desenvolvimento do currículo, funcionamento burocrático)”, a
maioria; e “aqueles que só se interessam pela aula”.
Ao todo, são quarenta e quatro funcionários na escola, dentre os quais vinte e
quatro são professores concursados e seis trabalham em regime de contrato
temporário. Há sete profissionais extraclasse, outros sete funcionários de apoio,
responsáveis pela limpeza e pela cozinha. Se, por um lado, houve uma expansão da
escola e do público escolar nos últimos anos, paradoxalmente, o número de
professores tem se mantido o mesmo e sabe-se da enorme dificuldade de se
encontrarem professores para o meio rural.
A maioria dos professores reside em área urbana: vinte e quatro ao total.
Também há uma grande estabilidade no quadro docente da escola: quinze dos trinta
professores estão lá há mais de dez anos e outros tantos há mais de cinco. A
permanência por vários anos seguidos na escola por mais da metade do corpo docente
e ao mesmo tempo a residência próxima à escola de vários deles, incluindo dona
10
Em segundo lugar, com 60,5%, aparece “Desenvolver a criatividade e o espírito crítico”, seguido de
“Transmitir conhecimento” (com apenas 16,7%). Em pesquisa sobre a escola primária francesa, citada
por Dubet (2002, p.109), estes números são 8% e 6%, respectivamente.
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90
Clair, que ainda mora em sua fazenda de café (situada à cerca de dois quilômetros da
escola), podem ser alguns dos fatos explicativos da criação de um ambiente positivo,
de forte ligação entre os sujeitos, professores e estudantes.
Quanto à formação acadêmica, três professoras do primeiro segmento do ensino
fundamental têm apenas o curso Normal, e uma está fazendo o curso de Pedagogia à
distância. Três professoras que lecionam Ciências, Matemática e Português até a
sétima série estudaram no curso Normal e mais dois anos de um curso Adicional. Os
outros vinte e três professores possuem graduação em diversas áreas, alguns dos
quais com até mais de uma pós-graduação. Os professores de Matemática e Física do
ensino médio também são professores de uma universidade particular em município
vizinho, sendo que um deles é sobrinho de dona Clair e ex-aluno da escola, e o outro
tem sítio nas redondezas.
Além da precariedade física e da falta de suportes logísticos (Hutmacher, 1992),
na escola também falta pessoal do setor administrativo (diretor-adjunto, coordenador
do segundo turno, agente de pessoal) e verbas, o que presenciei no período em que lá
estive, mas que também aparece no Projeto Político Pedagógico. Tal situação
demanda freqüentemente um trabalho árduo de gestão, pois a diretora, a secretária, a
auxiliar de secretaria e a encarregada de serviços gerais (apelidada, não por acaso, de
“pau para toda obra” e “faz-tudo”) têm que fazer grandes esforços para darem conta
da burocracia, da supervisão do conjunto de recursos humanos e assegurarem o
funcionamento da escola.
4.3
Funcionamento da escola e os modos de interação coletiva
Um aspecto que define a identidade de uma escola é o modo como os sujeitos
que nela trabalham se organizam e fazem funcionar as normas escolares. A forma de
organização do trabalho escolar na escola-da-dona-Clair parece mais próxima a um
modelo anárquico de organização do que ao modelo burocrático (March, Firestone e
Herriockt, citados por Tardif & Lessard, 2005), como mostro nesta seção.
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91
De qualquer maneira, esta organização sofre variação do primeiro para o
segundo turno. Além do público diferenciado (crianças e adolescentes,
respectivamente) e dos professores, a existência de uma coordenação pedagógica no
primeiro turno proporciona um “clima acadêmico” (Bonamino, 2005) diferente. Já
havia notado que as professoras do primeiro turno são mais parceiras, fazem mais
pesquisas juntas e trocam constantemente experiências sobre formas de resolução de
problemas, até porque elas se encontram diariamente. Senti a diferença também no
segundo Conselho de Classe a que assisti, pois a coordenadora pedagógica Claudia
marcava posição sobre a importância de se levantarem os problemas, mas também se
encaminharem soluções, por exemplo.
A coordenadora confirma essa primeira impressão em entrevista, quando diz
que “os professores de primeira à quarta são mais receptivos, lideram projetos e
festas, e estão sempre presentes em reuniões e eventos”. Ainda, ela tem procurado
realizar reuniões pedagógicas com as professoras (sobre as quais todas as professoras
entrevistadas falaram com grande entusiasmo), para, juntas, encaminharem soluções
àqueles problemas levantados nos Conselhos e percebidos no dia-a-dia, dentre os
quais se destacam a busca pela diminuição da repetência e da evasão e a melhoria na
leitura e no desempenho dos estudantes. Um outro objetivo educacional da
coordenação é “tornar a escola um local mais prazeroso para todos”.
Os projetos coletivos da escola e especialmente do turno da tarde são criados
por alguns professores que se encontram na hora do recreio, como ocorre com a
professora de Literatura, que trabalha junto com o de História e a de Artes. Os
encontros ocorrem mais intensamente quando é um projeto da escola, como, por
exemplo, a comemoração do centenário de fundação do Distrito (segundo semestre de
2006), ou, ainda, o projeto “Meio Ambiente, crises e perspectivas” (primeiro semestre
de 2007). Mesmo assim, a interação é feita por bilhetes deixados na secretaria ou
colados à mesa da biblioteca, que, lembro, funciona também como sala dos
professores.
Tendendo mais para o “tipo ideal” anárquico do que para o burocrático, a
articulação das tarefas se realiza com grandes dificuldades na escola e a tendência é a
independência máxima entre os professores, cujas ações geralmente fogem ao
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92
controle da direção. Na última reunião de professores que presenciei, dona Clair
pediu a eles que a avisassem quando planejassem faltar, porque, às vezes, eram os
alunos que o faziam: “e eu fico com cara de boba”, completou ela. Por outro lado, há
uma clara relação de confiança baseada na legitimidade da maioria dos professores,
por parte da direção, declarada em vários momentos.
Ela costuma, ainda, ser muito complacente com seus professores,
freqüentemente abonando faltas que ela considera justas e não economizando em
“jeitinhos” para dar conta de gerir satisfatoriamente uma escola pública e estadual, o
que, diga-se de passagem, faz parte da cultura local, como já vimos anteriormente.
Numa primeira análise genérica, devo dizer que dona Clair é considerada a
grande “mãe” daquela família, que é a sua escola, a “escola-da-dona-Clair”. Ela é
tida, ainda, como o “elo de união dos professores”, a mãe que leva doce de leite
caseiro para compartilhar com os professores no Conselho de Classe. Participei de
duas dessas reuniões, porque queria conhecer como acontecem as interações entre os
professores fora do horário escolar. Há Conselhos de Classe quatro vezes ao ano, uma
reunião por turno, o que significa que os professores mantêm-se separados por
segmentos (com exceção da última do ano, em que há uma integração de todos).
Passado o mal estar inicial com a presença da pesquisadora, eles me pareceram à
vontade e percebi que os Conselhos se resumem a uma exposição de problemas das
turmas e/ou de estudantes.
Entretanto, alguns professores celebram a diminuição nos Conselhos da
“malhação de alunos” e a inclusão de momentos de elaboração de novos projetos, de
busca de ação efetiva para resolver problemas, além de afirmarem ser este um
momento produtivo, em que os professores podem entrar em contato com cada turma
e pensar juntos sobre as questões da escola. Por outro lado, outros professores
concebem os Conselhos como “desnecessários”, porque se perde o “espírito de
visualizar o todo” para se “falar apenas em nota”, o que fez outra professora expressar
sua opinião desta maneira: “Conselho de Classe para mim é só para encontrar os
colegas, porque não vejo resultado naquilo não! Você vai lá e fala: ‘a turma é isso, a
turma é aquilo.’ No bimestre que vem, você fala: ‘a turma é isso, a turma é aquilo’. E
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93
no final do ano você está falando a mesma coisa e não aconteceu nada!” (professora
Iracema).
Ainda em relação às reuniões, no início de 2007, havia um embate interno,
porque as professoras pediam que elas se realizassem pelo menos por bimestre, com
suspensão do dia letivo. Tal medida contraria ordem da Secretaria Estadual e de dona
Clair de que os professores se reúnam uma vez por semana, por duas horas, para
realizarem o planejamento coletivo, medida que não parece ser viável em uma escola
situada distante da maioria das moradias dos professores, que, em sua maioria,
trabalha em outras escolas públicas ou privadas.
Dona Clair é parente e/ou foi a primeira professora de muitos dos atuais
professores e professoras da instituição, uma das quais literalmente nasceu na escola,
pois seu pai era o zelador de lá, há mais de 40 anos, e a professora Pilar veio ao
mundo na sala onde hoje funciona a biblioteca. Mesmo sem terem “o umbigo
enterrado aqui”, como se referiu a si mesma, orgulhosamente, a professora Pilar,
muitos ex-estudantes querem, depois de cursar a faculdade, voltar à escola para
trabalhar. Ouvi de um recente ex-aluno, atualmente cursando a faculdade de
Administração em município vizinho (com notas 75, na parte discursiva, e 85, na
objetiva, do ENEM), seu desejo de “ser professor aqui, pois a gente fica com os laços
muito juntos”.
A idéia da grande mãe e da escola como uma grande família apareceu nas falas
da maioria dos professores, ex-professores e dos estudantes, das quais destaco a
seguinte: “Nosso colégio tem um diferencial que o torna único: somos uma
verdadeira família! De fato, temos laços de parentesco e amizade que nos unem em
nossa luta por uma educação de qualidade. Estamos todos implicados no processo
educativo, pois não formamos apenas alunos, mas filhos, sobrinhos, primos, netos...
(professora Sofia)
Por outro lado, aparece uma repetida e geral reclamação à “mãe”, a quem “falta
pulso forte para punir indisciplinas” ou que “não é de tomar muito as rédeas da
escola”. Achei curioso que essa crítica parta também dos estudantes, a quem
teoricamente caberia um pedido de mais tolerância, mas o fato é que parece que dona
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94
Clair está cansada, cansaço que foi citado por muitos professores como negativo,
junto ao continuísmo, que é “sempre ruim”, segundo muitos deles.
Este aspecto encontra eco na fala de outros professores, que, ao contrário de
“mãe”, a consideram uma “monarca”, a “dona da escola” que acha que não precisa
dar satisfações aos pais, ou, ainda, que não se atualiza mais (“a maioria dos
professores tem formação maior que ela e, embora tenham muito para dar, não
conseguem”), “recolhe-se muito na parte burocrática”, “embarga projetos novos dos
professores”, e, ao mesmo tempo, não aceita sugestões de mudanças. Este grupo de
professores lembra também que ela lida com a escola como “a patroa, a dona da
fazenda”, que faz política em detrimento da instituição. A coordenadora Claudia
confessa que se sente impotente frente a estes embates, mas suaviza as críticas, ao
comentar que “ela reclama, esperneia, mas depois libera” os projetos dos professores.
Penso que essa postura se configura em um terceiro posicionamento em relação à
gestão: alguns professores não se alinham com a visão de “mãe”, nem com a de
“dona de fazenda”, mas buscam uma conciliação. Todas estas visões serão
cuidadosamente analisadas e interpretadas nos capítulos 5 e 6.
Uma outra característica do modelo anárquico de organização, segundo Tardif e
Lessard (2005), é a falta de definição dos objetivos gerais da instituição, o que
ocasiona uma multiplicidade de preferências sem muita coordenação. A escola até os
tem escritos no Projeto Político Pedagógico, mas o mesmo é produção individual da
professora Maria (sociologia e filosofia), com quem tive muito pouco contato e que
não se mostrou muito disponível para compartilhá-lo. Na verdade, ele foi concebido
pela maioria dos professores mais antigos, quando a demanda da Secretaria Estadual
de Educação surgiu, há alguns anos atrás, mas configura-se como uma formalidade
vazia na escola (Demo, 2006).
Ainda em relação ao funcionamento da escola, cabe ressaltar a crescente
responsabilização da Secretaria Estadual de Educação sobre a gestão da escola e o
trabalho dos professores. Mesmo que a Secretaria Estadual de Educação sequer tenha
um projeto para a educação no campo, as demandas e ordens são quase que diárias.
Não foram poucas as vezes que assisti a direção, a secretária e a auxiliar de secretaria
tentando entender e resolver uma nova determinação da Secretaria. Assim, por
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95
exemplo, depois de dois anos possuindo onze computadores que ganhou em uma
parceria com uma instituição americana e tendo conseguido acesso à Internet por via
federal, o colégio perdeu, no início de 2007, as duas professoras que atuavam como
orientadoras tecnológicas (OT), com a extinção do cargo pela Secretaria Estadual de
Educação, impossibilitando que as crianças tivesse acesso à nova tecnologia.
Esse fato desencadeou um protesto da professora Sofia, que enviou uma carta
ao diretor de departamento de infra-estrutura tecnológica, do Ministério da Educação,
denunciando a arbitrariedade
11
. Mas essa foi a única vez nesses anos que presenciei o
envolvimento direto de algum professor com as questões burocráticas da escola.
Penso que um dado muito importante da identidade dessa escola e que merece
destaque é a enorme capacidade de dona Clair gerir o colégio, com suas auxiliares
formais (auxiliares de secretaria) ou informal (Ninice, a servente “faz-tudo”). O que,
associado a uma não-intromissão no trabalho dos professores, como já foi levantado,
garante a estes uma grande autonomia para exercerem seu ofício.
Pode-se dizer que a presença do Estado na escola está mais pela ausência e
acontece, majoritariamente via avaliação dos resultados, com o Programa Nova
11
Aqui, um fragmento da carta que ela escreveu ao diretor de departamento de infra-estrutura
tecnológica, do Ministério da Educação, para a qual nunca obteve resposta:
(...) estamos empenhados em elaborar projetos de Inclusão Digital. Nosso Laboratório de
Informática funciona desde o ano passado. Nossa preocupação em melhorar as condições de
vida do homem no campo se expressa na implementação de projetos na área de Informática
Educativa e Preservação Ambiental.
Nossa clientela não se resume aos alunos e professores, mas todos os moradores de Vista
Alegre. Temos atendido também a ex-alunos que agora fazem faculdade. Um sonho que sequer
cogitavam em sua dura realidade. Abre-se um leque de possibilidades infinitas àqueles que antes
não imaginavam ser possível um futuro melhor e mais dignidade em suas vidas. Podemos
avaliar o que significa para um lavrador semi-analfabeto ter um filho na faculdade? Escutamos
suas histórias de vida, as árduas tarefas que desempenham para garantir a sobrevivência da
família e ficamos comovidos ao perceber o orgulho que sentem por sua prole que agora pode
alcançar o nível superior de ensino.
(...) Na semana que passou foi instalada a Internet através da antena Gesac do Governo Federal.
A vibração foi ao auge, mas logo em seguida tivemos a má notícia: a retirada dos O.T.s dos
LIEDs. Uma mistura de incredulidade, frustração e revolta aprofundou uma ferida em nossos
corações e mentes. Pobres de nós! Nosso sonho durou pouco... Que fazer? Não fomos sequer
consultados sobre essa medida tão injustificada. (...)
Por fim, gostaria de pedir que me deixassem continuar como O.T. Eu amo meu trabalho! Tenho
amor por nossa gente, por essa terra abençoada, paraíso ecológico que meus ancestrais
escolheram para a família dar continuidade aos seus ideais. Os frutos serão colhidos nas futuras
gerações. Sei que estou no meu lugar de direito, com a missão sagrada de dar o melhor de mim,
o mel de meu espírito para aqueles que não tiveram o privilégio (como eu) de procurar nos
grandes centros a formação necessária para se tornar um profissional competente e de
primeiríssima linha.
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Escola
12
. Uma política pública baseada no sistema de resultados, teoricamente, faz
com que os professores passem a assumir mais a responsabilidade pela aprendizagem
dos estudantes, o que certamente transforma a escola e a sala de aula, e, ainda, o
modo como os professores vêem a profissão e a si mesmos. Do mesmo modo, nesta
política, os fracassos dos estudantes passam a ser atribuídos muito mais aos
programas e às práticas docentes do que ao histórico e às características individuais
dos alunos.
Para Dubet (2002), a “indústria da avaliação” transforma as condições do
trabalho sobre o outro porque o trabalhador passa a ser imputado menos por sua ética
e sua conformidade à instituição burocrática e mais pelos resultados de uma ação
coletiva. Dos quinze professores estudados nesta pesquisa apenas três admitiram que
a avaliação mudou sua maneira de trabalhar. Uma, que mudou para pior.
Brooke (2006) lembra que o principal mecanismo de operacionalização do
Programa Nova Escola é o Sistema de Avaliação Permanente das Escolas Públicas,
planejado para aferir tanto a gestão quanto os processos educativos de cada escola. O
autor percebe que as inúmeras mudanças nesse sistema e no próprio Programa Nova
Escola desde sua criação dão uma idéia, já de saída, da dificuldade de se chegar a um
consenso em torno dos objetivos e métodos de um programa de responsabilização
13
.
12
O Programa Nova Escola, instituído pelo Decreto estadual 25959 de 12 de janeiro de 2000, é um
programa que visa melhorar a gestão das escolas estaduais e responsabilizar seus diretores e
funcionários pelos resultados dos alunos. Para Anderson (2005), o grande volume de recursos que tem
sido destinado à educação, nos últimas décadas, levanta questões relativas à eficácia dos investimentos
neste setor, num mercado global cada vez mais competitivo, e impõe uma aferição mais detalhada da
qualidade da educação oferecida. Por conta da busca de se conhecerem os resultados, políticas de
responsabilização (accountability policies, no original) têm sido implementadas, através das quais se
obtêm informações sobre o trabalho das escolas e nas quais se consideram os gestores e outros
membros da equipe escolar como co-responsáveis pelo nível de desempenho alcançado pela
instituição.
O programa tem atualmente os seguintes objetivos: 1) fornecer subsídios para a formulação e
monitoramento das políticas educacionais nas instâncias central, regional e nas escolas; 2) criar
mecanismos de incentivo para adoção de um processo permanente de questionamento quanto às
práticas pedagógica e administrativa correntes, no âmbito das escolas; e 3) conferir gratificação por
desempenho aos servidores lotados nas unidades escolares (professores e demais profissionais).
13
Em 2000, iniciou-se um estudo longitudinal, que permitisse separar os efeitos do nível
socioeconômico e da aprendizagem anterior dos alunos e os efeitos da escola propriamente dita, e
avaliou-se o desempenho dos alunos da 3ª e 6ª séries do ensino fundamental e do 1º ano do ensino
médio. Logo, em 2001 foram testadas as 4ª e 7ª séries e o 2º ano do ensino médio. Mas, em 2002 não
houve coleta de dados, e em 2003, o estudo longitudinal foi abandonado e, nesse ano, foram avaliados
180 mil alunos de 4ª e 8ª séries e do 3º ano do ensino médio por aplicadores externos. O avanço é que
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97
Para além das condenações de caráter ideológico, que discordam do Programa
por ele instituir a competição entre as escolas e por refletir valores neoliberais
voltados para o mercado, ele enfrenta muitas críticas, principalmente dos professores.
No colégio Viola, a maioria dos professores e a direção concordam que é importante
que haja uma avaliação, porque, às vezes, ela até ajuda a melhorar tanto o trabalho de
sala como a administração, numa concordância com um dos objetivos do Programa
que é
criar mecanismos de incentivo para adoção de um processo permanente de
questionamento quanto às práticas pedagógica e administrativa correntes
, no âmbito
das escolas..
Por outro lado, todos os sujeitos discordam quanto à forma de concessão da
gratificação por desempenho, que é “injusta”, além de que “o significado dos testes é
confuso”, crítica esta endossada por Brooke (2006). O autor ainda enumera mais duas
críticas ao Programa, também de ordem técnica: a primeira fala do caráter normativo
da classificação de escolas; outra se refere ao uso de dados de desempenho do ano
anterior ao da gratificação: devido à freqüentemente alta rotatividade de professores e
a conseqüente volatilidade no desempenho das escolas (o que não é o caso do Colégio
Viola), o melhor seria avaliar e gratificar durante o mesmo período escolar. A
professora Tarsila, que foi muito afetada com corte de salário porque ganhou um
bebê, juntou-se a outros professores e, com apoio do Sindicato Estadual dos
Professores, move uma ação contra o Estado, relativa à questão da gratificação.
Concordo com a idéia de Brooke (2006), para quem as mudanças implantadas
com o Programa, por gerarem tanta animosidade, acabam por ofuscar o propósito da
avaliação, que é oferecer informação aos membros da equipe escolar e permitir um
diagnóstico do funcionamento da escola.
Encerro o capítulo com este quadro sobre o grupo de professores pesquisados:
neste ano foram criados os índices de Gestão Escolar, de Eficiência Escolar e de Aprendizagem, e se
estabeleceram grupos de referência pela média das notas padronizadas de cada índice a fim de evitar
comparações entre escolas com alunos de nível socioeconômico muito diferente. Foram criados cinco
grupos de referência de acordo com a renda familiar dos alunos, a fim de se comparar escolas que
tivessem um nível socioeconômico similar. Mas em 2004 transferiu-se o contrato de gestão para o
Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (Caed), de Minas Gerais, e o programa foi
reformulado para se concentrar na avaliação das escolas por desempenho, fluxo e gestão escolar. Os
grupos de referência foram abandonados, e as 1.830 escolas avaliadas foram distribuídas em cinco
níveis de qualidade com base nas notas atribuídas pelas três áreas de atuação.
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98
Nome
Idade
Anos de
magistério/
na escola
Série ou
matéria
lecionada
Moradia Religião Formação
acadêmica
Enquadra
mento
14
Sofia 52 19/17 Todas as
séries
Vista
Alegre
católica Psicologia,
Normal e
especialização
IIA
Tarsila 37 17/17 1ª. à quarta
séries
Vista
Alegre
católica Normal IIA
Carmela 42 19/14 1ª. à quarta
séries
Vista
Alegre
católica Normal/
faculdade de
pedagogia em
curso
IIB
Iara 38 17/17 Ciências,
quinta e
sexta séries
Vista
Alegre
católica Normal e
adicional em
Ciências
IIB
Isaura 42 22/18 Português e
literatura
(ensino
médio)
Centro do
município
católica Normal e
Letras
I
Bel 48 29/11 1ª. à quarta
séries
Centro do
município
católica Normal II A
Aquiles 52 24/21 Educação
Física,
quinta série
em diante
Centro do
município
católica Educação
Física e
especialização
I
William 42 15/10 História,
sétima série
em diante
Vila
próxima à
Vista
Alegre
Católico
praticant
e
Normal,
História e
especialização
em História do
Brasil
I
Jéferso
n
51 30/17 História,
quinta e
sexta séries
Centro do
município
católica Normal,
História e
especialização
em História
Geral
IIC
Henriqu
e
46 22/15 Inglês,
quinta série
em diante
Centro do
município
católica Normal e
Letras
IIB
Maísa 39 18/10 Artes,
quinta e
sexta série
Centro do
município
católica Artes e
especialização
em Artes
IIB
Pilar 46 25/15 Matemática
quinta e
sexta séries
Centro do
município
católica Normal e
adicional em
Matemática
IIB
Iracema 47 25/12 Português,
quinta e
sexta séries
Centro do
município
católica Normal e
adicional em
Português e
Matemática
IIB
Mariana 46 20/17 Geografia,
sétima-série
em diante
Vista
Alegre
católica Normal e
Ciências
Sociais
IIC
Maria 39 17/16 Sociologia e
filosofia
Centro do
município
católica Normal,
Pedagogia e
especialização
IIC
14
Chave: I: professor com curso Superior; IIA: professor com curso Normal; IIB: professor com curso
Normal e curso Adicional; IIC: professor com curso Normal e curso Superior. Para o Estado, D é o
professor com curso Superior e Especialização. Dentro do grupo estudado, 6 professores têm os cursos,
mas não conseguem enquadramento.
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5
As identidades dos professores da escola-da-dona-Clair
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinqüenta, mas um dia afinal eu toparei comigo.
(Mário de Andrade)
Neste capítulo, apresento os principais eixos que emergiram das histórias da
vida profissional dos professores da escola-da-dona-Clair a partir de uma discussão
acerca das identidades profissionais.
Comecei por realizar uma abordagem exploratória das entrevistas, cujo objetivo
principal foi o de recuperar as trajetórias de vida de cada um. As narrativas de vida
estão em anexo (6), mas sobre elas devo comentar dois pontos aqui. O primeiro é que
a narrativa por mim produzida é uma reconstrução das histórias de vida contadas nas
entrevistas, que por sua vez já se tratavam de uma reconstrução dos professores sobre
suas trajetórias pessoais. Para diminuir a distância (e possível distorção) tive o
cuidado de manter o máximo possível das frases e palavras usadas pelos professores.
Outro aspecto importante consiste no fato de que todas as histórias de vida em
algum momento cruzam com a minha própria história, de maneira mais ou menos
direta, uma vez que nasci e vivi por 18 anos na região. Sabe-se que uma investigação
é um processo antes de tudo pessoal de construção de um objeto de estudo e envolve,
de início, um desejo de compreender um fenômeno social instigante tanto do ponto de
vista intelectual quanto emocional. Além disso, ouvir, transcrever e narrar essas
biografias foi um exercício diário de desconstrução de idéias estáveis e naturalizadas
sobre o ofício docente.
Neste caso, sinto-me acompanhada de Boaventura Souza Santos (2002), para
quem “saber viver” conecta-se à compreensão íntima do ser humano de que há uma
união entre ele e o objeto alvo de estudo. Este passa a ser, portanto, uma própria
extensão do sujeito, implicando que em uma pesquisa seja adquirido conhecimento
sobre o objeto, diretamente, e sobre o próprio sujeito, indiretamente.
Pensar o ofício docente em sua dimensão biográfica e contextual significa
discutir as ocorrências principais, semelhanças e especificidades das identidades dos
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100
professores da escola-da-dona-Clair, levando em conta a força das histórias de vida e
a força do contexto de trabalho. Frente ao desafio, decido usar como referencial
teórico, entre outros, as reflexões de Hall (2003) e Bakhtin (1992), mas encontro em
Claude Dubar (2005, 2006) um interlocutor que fundamentalmente ajuda a investigar
a dinâmica questão das identidades em uma escola, pois ele traz a possibilidade de
pensar a dimensão biográfica junto com a perspectiva institucional.
Devo dizer, ainda, que se concordo com a tese de Dubar sobre a centralidade do
trabalho na vida pessoal e sobre a eminência das identificações profissionais na vida
social, preciso levar em consideração a cultura da escola onde os professores
trabalham e, no âmbito macro, considerá-la uma instituição que, como outras da
contemporaneidade, sofreu mutações em seu programa institucional (Dubet, 2002).
5.1
O processo de negociação identitária
Tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em minha consciência,
vem-me do mundo exterior, da boca dos outros (da mãe), etc. e me é dado com a entonação,
com o tom emotivo dos valores deles. Tomo consciência de mim, originalmente, através dos
outros: deles recebo a palavra, a forma e o tom que servirão à formação original da
representação que terei de mim mesmo. (Bakhtin)
Diversos discursos contemporâneos falam em transformações profundas e
complexas em todas as áreas – social, cultural, política, econômica. Esses discursos
tentam de alguma maneira dar forma e nome a experiências cada vez mais fluidas,
imprecisas, fugazes, vividas por um sujeito cuja identidade não é mais considerada
fixa, essencial ou permanente.
Várias são as razões para o estudo da identidade dos professores ter passado a
ocupar um lugar importante nas ciências sociais. Para Lawn (2001), a identidade
docente é um componente essencial do sistema educacional, pois simboliza o sistema
e a nação que o criou, e sua gestão é crucial para a compreensão dos sistemas
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101
educativos tanto democráticos quanto totalitários. Mas, aqui neste estudo, o foco é
dado nos sujeitos e nos sentidos que dão a sua existência e a seu trabalho. Para isso,
alinho-me a autores que consideram que o amplo processo de transformações
ocorrido na atualidade faça com que os parâmetros tradicionais de estabilidade dêem
lugar à dúvida, à incerteza, à fluidez e ao constante deslocamento.
O confronto com a multiplicidade desconcertante de opções e estilos de vida ou
a velocidade com que os discursos e as imagens circulam e desaparecem globalmente
nos leva a um esforço contínuo de reconstrução da vida cotidiana em termos de
interação do local e do global, e a uma dificuldade de registro na memória (Hall,
2003). Ainda, viver uma situação de ambivalência devido à perda dos monopólios das
instituições e a uma crescente desestabilização das imagens institucionais e das
funções e papéis profissionais (Dubet, 2002) ocasionam a propalada crise identitária e
fragmentação do indivíduo moderno.
Desta forma, a procura da identidade na “sociedade da modernidade fluida”
(Bauman, 2000, p.31) é a busca incessante de deter ou tornar mais lento o fluxo, de
solidificar o líquido, de dar forma ao disforme. Para o autor polonês, as identidades
contemporâneas, embora pareçam ser fixas e sólidas quando olhadas de relance e
vistas de fora, são, na verdade, voláteis e instáveis.
Entre as diferentes abordagens teórico-metodológicas sobre o tema identidade,
também é grande a diversidade terminológica dos autores: “eu”, “self, “sujeito”,
“subjetividade”, “face”, “imagem”, “papel”. O que parece evidenciar a dificuldade de
uma explicação definitiva à pergunta “quem somos nós?”, dificuldade esta que pode
ser justificada pela complexidade do processo de identificação dos seres humanos
neste início do século XXI. Se pudessem se encontrar, Hall (2003) teria dito ao poeta
Mário de Andrade, cuja frase abre este capítulo, que uma identidade completa,
unificada e coerente é apenas fruto de “uma cômoda estória sobre nós mesmos ou
uma confortadora ‘narrativa do eu’” (Hall, 2003, p.13) e deve ser vista como uma
fantasia cultural.
Entretanto, em meio a essas diferentes perspectivas, uma comum merece
destaque e será adotada neste estudo, que é o repúdio a uma concepção cartesiana e
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102
essencialista da identidade, na qual os processos são individuais e internos, herdados
no nascimento. É a adoção da idéia de processos sociais intersubjetivos como ponto
de partida. Segundo este ponto de vista, a identidade passa a ser vista como uma
construção social, cultural, criada no contexto, não podendo ser definida por fatores
biológicos.
Deste modo, a identidade do “sujeito sociológico” (Hall, 2003) é formada na
mediação com o ambiente em que ele habita, sendo construída e modificada no
diálogo ininterrupto com as outras identidades do mundo social. Nesta construção da
subjetividade a partir do outro, mais um aspecto crucial é dado por Bakhtin (1992),
para quem todo discurso evoca outros discursos e outras práticas discursivas, o que
realça o caráter polifônico do “eu” e a noção de alteridade, como aparece no excerto
que inicia este segmento. Não há, nesta perspectiva, identidade sem alteridade, como
disse Dubar em 2006 (p.9), e a construção da identidade é um processo contínuo de
articulação do individual com o intersubjetivo, do “eu” (ou “eus”) com os “outros”,
no qual as instâncias privada e pública se encontram em um constante diálogo.
Analisando a formação e a crise das identidades profissionais, Dubar (2005,
2006) se interessa especialmente pela intersecção das esferas pública e privada em
contextos de trabalho, por compreender que estes dois domínios estão em jogo no
processo de construção de identidades profissionais, formas identitárias definidas
como configurações Eu-Nós. Nas “lógicas dos atores na organização”, há o encontro
de dois processos heterogêneos: um processo social de atribuição da identidade pelos
outros agentes e pela instituição, que pode ser analisado neste sistema de ação; um
outro processo, privado, vivido pelo próprio indivíduo que incorpora sua identidade
durante sua trajetória de vida (“interiorização ativa”, na qual há uma transação
subjetiva entre as identidades herdadas e as visadas, entre o passado e o futuro).
Para Dubar (2005, p.136), a identidade é o resultado dos diversos processos de
socialização (ao mesmo tempo, estável/provisório, individual/coletivo,
subjetivo/objetivo, biográfico/estrutural) que, em conjunto, constroem os indivíduos e
definem as instituições. Com essa definição, ele busca introduzir a dimensão do
sujeito na análise sociológica, porque acredita que ocorre um movimento subjetivo
(“identidade para si”), ou seja, qual identidade eu reivindico para mim frente ao
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103
outro, e um outro movimento, intersubjetivo (“identidade para o outro”), ou seja,
como o outro me percebe.
Este movimento intersubjetivo (nomeado “transação objetiva”) diz respeito à
trajetória pelo mundo público e envolve uma série de atribuições - como nome,
números, classe social, gênero, profissão, etnia, raça, senhas, conta bancária, acesso
ou não à Internet, perfil em comunidades virtuais -, que nos diferenciam,
categorizam, posicionam. Nota-se, assim, que nesta esfera do público ocorrem
relações de força e de poder, além da possibilidade de discriminação e todo tipo de
estereótipos. Este movimento de “transação objetiva” dialoga todo o tempo (nem
sempre de acordo), com as “identidades herdadas e visadas”, construídas com base
em nossas trajetórias vividas, que fazem parte de nossa biografia (“transação
subjetiva”). Este diálogo entre os movimentos é chamado de negociação identitária,
“um processo comunicativo complexo, irredutível a uma ‘rotulagem’ autoritária de
identidades predefinidas com base em trajetórias individuais” (Dubar, 2005, p.141).
Este autor vê na intersecção dessas duas transações a chave da dinâmica
constitutiva das identidades sociais e apresenta-as discriminando suas categorias de
análise, o que adapto aqui para efeito de meu estudo
1
:
“Processo relacional”
Processo social público (institucional)
“Processo biográfico”
Processo social privado (individual)
“Identidade para o outro” “Identidade para si”
“Atos de atribuição”
(como os outros me percebem)
“Atos de pertencimento”
(como digo que sou/quero ser percebido)
Identidade atribuída
(nome, classe social, gênero, profissão, etnia etc)
“Identidade predicativa”
(pertença reivindicada)
“Transação objetiva” (intersubjetiva)
(entre identidades atribuídas e identidades assumidas)
Transação subjetiva
(entre identidades já construídas e identidades visadas)
Experiência relacional e social de poder
Experiência de estratificações, discriminações e
desigualdades sociais
1
A linha pontilhada entre os dois processos apresentados no quadro é uma tentativa formal de
explicitar que há uma total integração entre as duas dimensões, divididas aqui para efeito didático.
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104
Com base neste referencial, descrevo e analiso, a seguir, os processos sociais
constituintes das identidades profissionais dos quinze professores, tanto em seu
âmbito público quanto no privado, assim como em sua relação: a identidade para o
outro, a identidade biográfica e as identidades relacionais, que comportam as
experiências sociais de poder.
5.1.1
A identidade para o outro: “os professores dessa escola são ótimos”
Eu valorizo muitos os professores daqui. Os professores dessa escola são ótimos! Pouquíssimos
deixam a desejar. (dona Clair - diretora)
Esta frase da diretora do colégio Viola por 50 anos resume um aspecto
fundamental da identidade para o outro do grupo pesquisado: os professores são
considerados “muito sérios”, “responsáveis” e dedicados, tanto em suas atuações
dentro quanto fora da sala de aula, qualidade esta que é destacada pelos outros
profissionais da instituição, por ex-professores, membros da comunidade, dentre os
quais a atual Secretária Municipal da Educação, além dos próprios professores
quando falam do grupo de colegas
2
. Tal valorização dos professores pode ser notada
também no discurso espontâneo da maioria dos alunos mais adiantados da escola com
quem conversei, para quem muitos docentes são “perfeitos”, “excelentes”, “altamente
capacitados”, “eficientes”, “dedicados”, “amigos”, “explicam bem a matéria e cobram
o que ensinam”.
Os professores da escola não somente desfrutam de um bom status social como
têm autonomia em seu processo de trabalho na escola-da-dona-Clair
3
, apesar de a
própria dona Clair reconhecer que ser professor já foi mais “compensador”, pois se
2
Vale dizer que os que “deixam a desejar” foram citados até nominalmente por outras pessoas, mas
eles não fazem parte do grupo pesquisado, cujos professores, lembro, trabalham há mais tempo no
colégio.
3
Como mostro no capítulo 4.
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105
tinha um plano de carreira, um maior salário, um melhor estatuto social: “era a
professora”. De qualquer maneira, a diretora sempre buscou escolher seu corpo
docente e ainda hoje procura se “informar nas escolas anteriores” antes de aceitar
4
.
Ela os percebe respeitando seus alunos, tendo compromisso com a função docente,
procurando “dar o máximo de si”, e, como dito antes, classifica-os da seguinte
maneira: 1) a maioria, que se interessa por tudo da escola (desenvolvimento do
currículo, funcionamento burocrático); 2) aqueles que só se ocupam da aula.
Uma realidade que contrasta com a atual imagem docente presente nas
pesquisas sobre o exercício do ofício (Hypolito et al, 2003; Gariglio, 2004; Vicentini,
2005; Nascimento, 2005), que aponta para uma crise identitária dos professores,
descrita tanto como uma visão social negativa da profissão, como uma desvalorização
do estatuto social e uma proletarização do ofício – idéia esta muito discutida no meio
educacional desde o texto de Enguita em 1991.
Outro aspecto da identidade para o outro comum ao grupo de professores
pesquisados, independentemente da série e da disciplina ensinada, é expresso na
seguinte fala do professor William, de História: “O fundamental é o bom
relacionamento com os alunos. O aluno pode até não gostar de sua matéria, (...) pode
não gostar de História, tudo bem, mas não gostar de você é um problema sério”.
Cerca de treze dos quinze professores falam espontaneamente de como valorizam a
boa imagem que os estudantes têm deles como uma característica fundamental para o
exercício do ofício. O ato de atribuição é expresso como ter “respeito ao aluno”,
“preocupação com o aluno”, “amizade para que ele goste daquele momento”, “amor
ao trabalho” e “envolvimento emocional”.
Tal atribuição alinha-os a uma identidade tradicional do antigo professor
primário e revela uma lógica identitária de construção da experiência docente baseada
na relação pessoal e afetiva com os estudantes. Este perfil da identidade para o outro
deste grupo provavelmente ganha força por um aspecto da identidade construída
dentro do processo biográfico, pois, devo lembrar, treze docentes foram professores
primários em escolas rurais no início de suas carreiras.
4
Em sua entrevista, o professor Henrique, de inglês, contou-me como foi abordado por dona Clair na
porta da padaria da cidade, ainda quando estudante da faculdade de Letras, e convidado a trabalhar no
Viola.
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106
A valorização do conhecimento da disciplina a ser ensinada é outra
característica do processo social público do grupo. O domínio de um conteúdo e a
formação disciplinar são lembrados como fundamentais para o bom exercício do
ofício por mais da metade dos docentes, mesmo por aqueles que não têm uma sólida
formação acadêmica, só estudaram no curso Normal e trabalham com as séries
iniciais do ensino fundamental. Essa característica aproxima os professores da escola-
da-dona-Clair do perfil dos professores secundários da escola dos outros tempos
(“das certezas” e “das promessas” na nomenclatura de Canário, 2005)
5
, quando a
vocação estava menos ligada à pedagogia e mais à disciplina a ser ensinada
(Perrenoud, 1993; Dubet, 2002).
Para Dubet (2002), essa defesa da disciplina a ser ensinada está ligada a uma
parte da identidade dos professores secundários, que, realizando sua experiência entre
o estatuto (o lugar que lhe atribui o sistema) e o ofício (o modo de realizar seu
trabalho), defendem o estatuto como uma maneira de inscreverem sua identidade
individual em uma identidade coletiva.
A disciplina ensinada como fator fundamental da afirmação da identidade
profissional é idéia defendida por vários pesquisadores, como Monteiro (2002) e
Borges (2002). Para esta última pesquisadora, os conhecimentos disciplinares, assim
como os da experiência do professor, compõem o conhecimento pedagógico da
matéria e, ao mesmo tempo, igualam-se a ele em importância. E esses conhecimentos
disciplinares são reinterpretados por cada professor a seu próprio modo, a partir do
arcabouço da sua história de vida e na lida diária, na relação com seus estudantes.
Formando, desta maneira, a chamada “identidade para si” de que fala Dubar (2005).
Atividade que faz lembrar uma outra qualidade apontada como inerente à
identidade docente e que aparece em vários trabalhos acadêmicos: a identidade
mediadora no processo ensino-aprendizagem, que pode chegar a constituir-se em o
professor ser tomado como um ator social que transita entre vários contextos
socioculturais e que estabelece comunicação entre diferentes grupos sociais, podendo
até mesmo ser agente de transformação (Loureiro, 2004; Arroyo, 2007; Pimenta,
1997).
5
Como apresento no capítulo 2.
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107
Tradicionalmente, os saberes a serem transmitidos na escola são baseados em
um estatuto científico que os coloca em ruptura com os saberes práticos das instâncias
tradicionais de socialização (família ou outros espaços de sociabilidade). Em um
estudo como este, em uma escola rural, pode-se dizer que a grande ponte construída
pelos professores é entre a cultura social rural de referência dos estudantes e a cultura
escolar, marcadamente “urbana” e estranha ao cotidiano dos estudantes, que deve ser
por eles conhecida e interiorizada. No Brasil, a perspectiva política da modernização
do início do século XX significou industrializar e urbanizar, e a escola rural tem se
apresentado desde então como uma mediação entre a mentalidade urbana e a rural,
servindo para “civilizar” os rudes homens, crianças e mulheres do campo (Capelo,
2004).
5.1.2
A identidade biográfica para si
Analiso nesta seção os “atos de pertencimento” do grupo. Trata-se de como os
professores dizem que são e querem ser percebidos.
5.1.2.1
Um grupo docente “espetacular”
E o corpo docente é muito bom! (...) Já aconteceu de chegarmos e não ter ninguém da direção. Nós
cumprimos o horário normal, sem problema nenhum. (...) Podemos reclamar, mas no trabalho somos
muito sérios. Mas muito sérios mesmo! O pessoal é espetacular! (professor Aquiles – educação física).
Sou daqueles que ainda querem (...), contra tudo e contra todos, uma escola séria. Que ensine,
que cobra e que forma. Que dá o mesmo conteúdo de uma escola particular (professor Jéferson -
história)
Porque durante as aulas... não sou de sair de sala toda hora, quero que o aluno possa contar
comigo. Faço um trabalho de sala e quero que o aluno não leve dúvida para casa. (professor Henrique -
língua inglesa)
Essas falas dos professores são emblemáticas do grupo, que tem uma elevada
auto-estima, em que pesem as reclamações à desvalorização da profissão pelo Estado,
por alguns (poucos) “novos” alunos, pelo individualismo característico do
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108
profissional, problemas estes levantados pelos professores em suas narrativas. Todos
demonstram um forte compromisso com a educação para a promoção de mudança;
seriedade no exercício da profissão; uma manifesta disponibilidade ao trabalho
escolar dentro e fora de sala de aula; sentimento de respeito por parte do alunado. Em
resumo, naquele contexto, os professores se vêem como profissionais
compromissados, sérios, disponíveis à relação pedagógica e respeitados. Como
mostram essas declarações dos professores de história, artes, língua portuguesa e
ciências:
Eu geralmente não tenho problema disciplinar não. Eu intimido muito, porque sou
muito quieto. Não tenho problemas com os alunos. Eles me respeitam bastante. Mas
acho que a disciplina vem pelo seguinte: o que eu combino no primeiro dia de aula vou
cumprindo item a item. Eu combino e cumpro. Na escola pública, está muito fácil de
trabalhar para quem não quer trabalhar. Se você não quiser fazer, não faz nada. Eu
combino na escola pública as mesmas regras que tenho na escola particular. (William-
história)
Sou exigente no sentido que não gosto de muita conversa em sala de aula.(...)Eu quero
que eles tenham o máximo, que façam os trabalhos da melhor forma possível. Tem
aluno que desenha e pinta muito melhor do que eu. (Maísa-artes)
Eles estão acostumados com minha postura. Eu cobro mesmo. Eu dou para eles aquilo
que acho o máximo. Eles mereciam muito mais, mas o tempo não dá. (Iracema-
matemática)
Hoje mesmo disse para meus alunos: ‘Sabem por que eu faço isso? Porque amo vocês.
Se eu não gostasse, eu deixava a vaca ir para o brejo. Eu quero fazer com vocês o que
espero que os professores de meu filho façam quando ele crescer’. (Iara-ciências)
A relação entre a pessoa do professor e sua profissão tem sido usada para
compreender os significados do trabalho docente em trajetórias individuais desde que
Nóvoa (1992b) apontou a imbricação entre o pessoal e o profissional numa profissão
impregnada de valores e ideais e exigente do ponto de vista da relação humana, como
apareceu na análise sobre o processo social institucional da escola-da-dona-Clair.
As imagens dos professores são explicitadas por eles próprios durante as
narrativas de vida (anexo 6) com os seguintes atributos: Sofia (todas as séries), a
doce, amorosa e subversiva mestra-amiga; Tarsila (séries iniciais), a pintora guerreira
e inquieta; Carmela (séries iniciais), a professora-mãezona, pau-para-toda-obra; Iara
(ciências), a cientista curiosa; Isaura (língua portuguesa e literatura), a profissional
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109
séria (mas brincalhona) e encantada (mas desestimulada); Bel (séries iniciais), a
pesquisadora franca e necessária, apesar de extremista, temperamental e brava;
Aquiles (educação física), o inesquecível personagem individualista; William
(história), o comunicador tímido; Jéferson (história), um rigoroso na contra-mão;
Henrique (língua inglesa), o amigo sério e organizado; Maísa (artes), a professora
enérgica e carinhosa; Pilar (matemática), a tranqüila tia, cujo umbigo está enterrado
na escola; Iracema (língua portuguesa), a nostálgica sistemática; Mariana (geografia),
a dinâmica professora-diretora; Maria (filosofia e sociologia), a que tem preocupação
com o ser humano.
Apesar de considerar que as histórias de vida dos professores compõem um todo
orgânico que une a dimensão pessoal com a dimensão profissional, analiso aqui o
processo biográfico em suas características comuns a todos (ou a maioria dos) os
professores, procurando entender como se foi dando o processo de identificação dos
docentes estudados a ponto de eles se tornarem professores. Isto sempre tentando não
esquecer da heterogeneidade típica do ofício, e, conseqüentemente, das identidades,
especialmente pela dificuldade em se retratar o singular e pessoal, as pertenças
reivindicadas por cada professor individualmente. Trata-se, assim, de discutir a
escolha do ofício, como se constrói o saber profissional e como se produzem
princípios éticos comuns.
As marcas deixadas pela família de origem iniciam a análise. Sabe-se que
quatorze dos quinze professores estudados são nativos da região rural. Sete deles
dizem pertencer à classe média, cinco à classe média-baixa, um à média-baixíssima e
uma à pobre. Entretanto, sabe-se também que Sofia, Mariana e Maria pertencem de
fato à classe alta, pois seus pais e avós eram proprietários rurais que detêm a posse
dos meios de produção. Seis outros professores (Tarsila, Iara, Pilar, Iracema, Jéferson
e Bel) provêm de famílias de pequenos proprietários rurais, além do que Maísa e
William são filhos de lavradores assalariados. Henrique, Isaura e Aquiles pertencem a
famílias moradoras do centro urbano, o pai do primeiro era motorista e a mãe, dona
de casa, a mãe de Isaura era uma lavadeira, e a de Aquiles, costureira. Alguns desses
professores (nomeadamente Tarsila, Isaura, Bel e Maísa) acumulam tarefas
profissionais com as domésticas e maternais, situação esta vivida como de sobrecarga
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110
de trabalho para Tarsila, William, Jéferson, Maísa e Iracema, que têm filhos pequenos
ou se dizem cansados do exercício do ofício.
Todos os docentes se dizem católicos, sendo que Aquiles se qualifica como
“católico ABC” (freqüenta Aniversários, Batizados e Casamentos). Afirmam gostar
muito de ler e estudar, o que fazem nos fins de semana, principalmente. Dois deles se
descrevem como escritores (Sofia e William), duas como pintoras (Tarsila e Bel) e
um como atleta, nas horas vagas. Eles se autoclassificam como pertencentes ao grupo
étnico branco, menos Aquiles, que é pardo, Isaura, “negra, com certeza!” e William,
“produto da mistura de uma negra com um loiro”.
5.1.2.2
A escolha profissional possível
Se os membros das classes populares e médias tomam a realidade por seus desejos, é que, nesse
terreno como nos outros, as aspirações e as exigências são definidas, em sua forma e conteúdo, pelas
condições objetivas, que excluem a possibilidade de desejar o impossível (Bourdieu)
Pelos relatos de vida dos professores pode-se perceber que os primeiros traços
de suas personalidades, os valores e até o dever moral foram sendo aprendidos com as
mães, avôs e avós, no processo de socialização que Arroyo (2007) curiosamente
chama de “estágio-contágio entre humanos”. Embora concorde com este autor que
tanto o gênero feminino como a origem de classe influenciam na escolha e na
identificação da profissão docente e que é um “fato social” que o magistério tem sido
uma opção possível para as mulheres das camadas médias baixas, tendo a relevar
outro “fato”: os professores do grupo pesquisado foram incorporando valores e estilos
de ser professor também por falta de opção de outros cursos de formação profissional
e/ou de espaço de trabalho no meio rural
6
. Não escolheram a profissão que
desejavam, mas a que foi possível, menos pela condição de classe ou de gênero e
mais pelo local em que nasceram e moram. Apenas duas professoras falam de seu
6
Tarsila queria ser pintora; sua irmã, Iara, bióloga ou enfermeira; Aquiles, atleta; Isaura, jornalista;
William, repórter; Maísa, nutricionista; Iracema, dona de loja; Henrique, comissário de bordo; Pilar,
secretária; Mariana, assistente social; Maria, psicóloga; mesmo a psicóloga Sofia tornou-se professora.
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111
desejo desde jovem de ser professora, o que fazia com que uma “brincasse de
escolinha” e a outra se oferecesse para substituir professores ainda no curso Normal
7
.
Para Bourdieu (2004), os grupos sociais vão construindo um conhecimento
prático (não totalmente consciente) relativo ao que é possível ou não de ser alcançado
pelos seus membros dentro da realidade social concreta na qual eles agem, e sobre as
formas mais adequadas de fazê-lo. O fenômeno de interiorização das oportunidades
objetivas, até que elas se encontrem transformadas em esperanças e desesperanças
subjetivas, foi descrito e denominado por ele de “a escolha do destino” (Bourdieu,
2004, p.46), e desenvolvido por Lelis em sua tese de doutorado (1996), para quem a
escolha da profissão é, na verdade, “a escolha na não-escolha”.
Em que pese a falta de opção, a grande maioria dos professores conta em suas
narrativas como foi gostando, achando que “tinha queda pela profissão”, como ficou
“encantada”; enfim, foi se identificando com a atividade do magistério: “Parece que
eu tinha nascido para aquilo: adorei! De imediato, adorei.” narra Henrique,
atualmente professor de inglês da escola, mas que também lecionou como professor
de todas as séries em escolas rurais multisseriadas. A grande maioria dos professores
demonstra certa satisfação com a profissão, mesmo a “desanimada” Isaura, para quem
o trabalho docente é também encantador e que traz satisfação, quando bem feito. O
trabalho é gratificante para a “subversiva” Sofia, porque ele forma pessoas capazes de
transformar o mundo. William diz que é bom ser professor porque é a sala é um dos
poucos lugares em que ele se “solta mesmo”. Para Tarsila, o exercício do ofício é
uma oportunidade de pesquisar “uma forma mais feliz de ensinar”. Bel gosta dos
alunos, com os quais se identifica e para quem ela se sente “necessária”. Carmela se
diz realizada e satisfeita por poder entender mais das outras pessoas e fazer diferença
na vida delas. Aquiles crê ter encontrado a sua platéia. Iara se emociona ao imaginar
que o aluno reconhece que foi com ela que ele aprendeu muitos assuntos, passou boa
parte da infância ou juventude e que, juntos, aprenderam; o professor Jéferson pode
realizar sua missão cristã de formar espiritualmente os seres humanos, seres eternos;
Henrique e Maísa gostam do contato diário e do retorno às atividades propostas; Pilar
7
Devo lembrar de Aquiles que diz: “a profissão me escolheu”, mas que, entre todos, foi o único que
era da cidade e “escolheu” se formar professor e ir morar na zona rural.
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112
acha bom o “leva-e-traz de aprendizagens”; para Maria, é gostoso conhecer as
pessoas e ajudarem-nas a se auto-conhecerem; Mariana não soube responder a esta
pergunta.
5.1.2.3
A formação na prática
O saber do professor traz em si mesmo as marcas de seu trabalho, (...) ele não é somente utilizado
como um meio de trabalho, mas é produzido e modelado no e pelo trabalho. (Tardif & Lessard)
Dentre os vários condicionantes da biografia às identidades profissionais,
destaque especial para as muitas e inesquecíveis experiências escolares, como
estudantes e como professores formados. Sobre os percursos escolares, as imagens de
antigos professores estão na memória e são reveladas durante a narrativa. Falam de
como aprenderam com os antigos mestres a ser professor: conteúdos, técnicas de
trabalho, atitudes diante dos estudantes, traços seculares do ofício docente. Se com a
família dizem ter aprendido valores éticos, com os antigos professores passaram a
criar competências profissionais, que, segundo pesquisas, são duradouras através dos
tempos e pouco transformadas pela formação acadêmica (Tardif, 2002).
Por outro lado, a maioria dos docentes tem consciência que o maior aprendizado
do jeito de ser professor foi feito mesmo dentro da escola, mas quando eles já
exerciam o ofício. Todos os professores são concursados duas vezes e reivindicam
para si uma identidade de experientes e seguros no exercício do ofício atualmente.
Por este caminho, problematizo a idéia de identidade em perspectiva semelhante à de
Tardif (2002), para quem os docentes são quem são de tanto fazer o que fazem.
Com exceção de Maísa (artes), os professores do estudo afirmam ter um estilo
pessoal de exercer a profissão. Os estilos de trabalhar são pessoais e singulares, no
que se refere à abordagem de um conteúdo novo, nas formas de gerir a turma, de
planejar e avaliar. Para lembrar, a título de exemplo, Sofia (todas as séries) realiza as
atividades de aula sempre buscando trabalhar nas três vertentes, a sensibilização (feita
através da música e do desenho), o desenvolvimento do raciocínio (com
questionamentos) e da expressão, oral e escrita. Carmela (séries iniciais), por sua vez,
é uma mãe para seus alunos, apresentando-se para eles sempre disposta a dar-lhes
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113
prazer. Tarsila (séries iniciais) aborda os conteúdos a partir do convívio com os
alunos, de quem recolhe e considera as múltiplas diferenças. Bel (séries iniciais)
também acredita nas perguntas curiosas como ponto de partida para o trabalho de
pesquisa, que começa com o diagnóstico da turma e as necessidades dos alunos, a
partir de onde ela inicia o trabalho coletivo de pesquisa. Essas duas professoras têm
um jeito parecido de trabalhar no que se refere à pesquisa e a uma preocupação maior
com o processo de ensino-aprendizagem do que com os resultados em si. Assim
também, Isaura (língua portuguesa e literatura) e Iara (ciências) parecem ter uma
semelhança no modo de introduzir um conteúdo, que é a preocupação de partir do já
conhecido, de afirmar junto aos estudantes um saber do grupo, antes de colocar o
novo. E somente depois de sistematizarem o conteúdo junto com os estudantes, elas
partem para a leitura de textos de livros. As duas também acreditam na
individualização do trabalho de sala, como forma de atrair todos. Isaura fala, ainda,
de como se ocupa de explicar a função social da língua, como uma forma de garantir
o interesse dos estudantes. Interesse dos estudantes também é uma preocupação de
Aquiles (educação física), para quem o aluno deve gostar da matéria e do professor.
Para tanto, ele capricha nos “jogos de cena”, mas insiste na importância do
planejamento, sabendo desde o início do ano para onde quer ir e como vai fazer para
lá chegar. William (história) diz acreditar na troca de informações entre o professor e
seus estudantes, quando busca estabelecer relações temporais da história e levá-los à
reflexão. E assim por diante.
Embora os estilos de trabalhar sejam únicos, há algumas características comuns
ao grupo. Uma característica do trabalho docente é condicionar os estudantes à
cultura escolar (cultura estranha ao seu cotidiano), fazer com que eles a interiorizem,
conheçam-na e até mesmo se reconheçam nela, tornando-se alunos, uma categoria
escolar (Tardif & Lessard, 2005). Um modo de vencer este desafio usado pela
maioria dos professores da escola tem sido dar sentido ao trabalho escolar. O que
acontece na prática de buscar “entrar no mundo dos alunos” (William); emparelhar a
cultura cotidiana à cultura escolar; dar exemplos da vida cotidiana ou usar nomes e
fatos conhecidos; oferecer um tratamento individualizado, uma atenção particular;
estabelecer uma relação carinhosa; relacionar o passado com o presente; ou mostrar a
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114
aplicabilidade daquele conhecimento para a vida cotidiana. Sempre se “buscando
atrair a atenção dos alunos para o assunto” (Iara). Esta professora, Bel e Tarsila
também dizem valorizar o saber do aluno e trazê-lo antes de abordar um conteúdo
novo.
Sobre a introdução de assuntos novos, uma prática que emergiu foi a revisão
cotidiana de conteúdo, usada tanto para localizar os alunos e o professor na matéria,
como para averiguar o aprendido. Outra igualmente importante é o valor do
planejamento, mesmo que se tenham muitos anos de exercício do ofício.
Os professores pesquisados revelam, em maior ou menor grau, um rigor no
estabelecimento de critérios de avaliação de seus alunos, estes geralmente colocados
às turmas no início do ano e seguidos. Contudo, eles parecem estar mais preocupados
em garantir um acompanhamento e uma participação sistemática nas atividades do
que aferir conhecimento adquirido.
Em relação à força da experiência no exercício do ofício, uma palavra acerca
das representações que os professores têm dos seus estudantes da escola-da-dona-
Clair, pois estes são sujeitos privilegiados quando se trata de uma profissão de
relação. Doze professores estudados afirmam que houve uma mudança no perfil do
alunado nos últimos anos e que ficou mais difícil trabalhar, porque há menos
integração, disciplina e interesse pela escola por parte dos estudantes. Ainda assim,
todos os quinze professores têm uma visão extremamente positiva dos estudantes, que
são qualificados como “brilhantes”, “muito interessados”, “orgulhosos da escola”,
“tranqüilos”, “simples”, “muito bons”. Este aspecto parece ser o fator que mais pesa
para que os professores, mesmo os que moram distante, continuem vencendo os
quilômetros que separam suas casas da escola, há pelo menos dez anos.
Além dessa disposição, outra tendência da percepção que os professores têm
dos estudantes pode ser observada. Alguns consideram os estudantes como
“coitadinhos”, “pobres” e “carentes”, enquanto outros acreditam trabalhar com
pessoas que estão ser tornando autônomas, possuidoras de uma cultura interessante e
atraente.
Ainda em relação a seus processos sociais privados (Dubar, 2005), devo lembrar
das comuns histórias do grupo sobre as difíceis experiências iniciais em escolas rurais
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115
distantes, nas quais exerciam múltiplas funções, desde a de professor unidocente até
gestor da verba pública e do processo pedagógico. Experiências que os fazem
reivindicar uma identidade de autonomia e de luta neste período, percebida em frases
como “tive que correr atrás”, “procurei conselhos com professores mais experientes”,
“não tinha sido formado para isso”.
8
Afora terem vivido experiências com turmas multisseriadas e/ou terem atuado
como diretor e/ou coordenador, alguns professores deram aulas de todas as
disciplinas no meio rural
9
. Estas vivências parecem ter-lhes oferecido uma
experiência pedagógica singular, tornando-os professores generalistas e possuidores
de uma visão sistêmica da escola e do trabalho em sala de aula.
Dentro do processo biográfico e mais especificamente na transação subjetiva
entre essas identidades herdadas durante as histórias pessoais e as identidades
visadas, notam-se dois traços diversos, mas comuns, a dois grupos de professores.
O primeiro traço é que, apesar do longo tempo de exercício do ofício, onze
professores ainda estão investindo na profissão e desejam apenas ter um pouco mais
de tempo para realizarem outras atividades favoritas, como ler, escrever, pintar e
viajar. Inspirada em Huberman (1992), encorajo-me a dizer que esse grupo apresenta
uma sensação de confiança e serenidade em situação de sala e uma maturidade afetiva
nas relações com os alunos. Esta característica pode significar um distanciamento
afetivo (como é o caso de Iara que quer ser identificada como carinhosa, mas sempre
como professora) ou uma aproximação (realidade de Sofia, que diz estar mais
carinhosa com o passar do tempo)
10
. Outro traço é que Iracema (25 anos de
magistério), Isaura (22), Maísa (18) e Jéferson (30 anos de magistério) estão cansados
e desejam intensamente a aposentadoria, para, então, poderem realizar suas atividades
8
A questão da distância entre o trabalho prescrito na formação e o trabalho real é uma realidade
transnacional do trabalho do professor e tem sido levantada por muitos estudiosos da formação
docente. Entretanto, concordo com Dubet (2002), para quem tal recorrência não significa
necessariamente que se deva concluir que a formação não serve para nada.
9
Com exceção de William, cuja experiência é no centro urbano.
10
Esta análise foi inspirada nos ciclos de vida de Huberman (1992) em cujo estudo, entretanto, não me
aprofundei. O autor chama este ciclo de “serenidade e distanciamento afetivo”. Eu o chamaria de
“serenidade e maturidade afetiva”, que não necessariamente envolve afastamento.
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116
favoritas. Segundo Huberman (1992), o “desinvestimento” acontece no final da
carreira profissional, quando são freqüentes tanto uma libertação progressiva do
investimento no trabalho como uma maior consagração de tempo a interesses
exteriores à escola, o que acontece claramente com Jéferson (que gosta de cuidar do
sítio, de consertar aparelhos eletrônicos, além de ler).
Este movimento pode ser vivido pelos professores de forma positiva ou
negativa, correspondendo, assim, a um “desinvestimento sereno” (caso de Isaura) ou
a um “desinvestimento amargo”, claramente observado na história de Iracema. No
discurso desta professora, são observadas características descritas por Huberman
(1992) sobre o momento do ciclo de vida anterior ao do desinvestimento, não por
acaso denominado “conservadorismo e lamentações”, quando se percebem uma
maior rigidez e dogmatismo, uma resistência maior às inovações, uma nostalgia do
passado, manifestados nas queixas em relação à evolução negativa dos alunos
(considerando-os mais indisciplinados, menos motivados, menos bem preparados e
mais frios na relação), à falta de condições básicas de trabalho, à atitude negativa
(sem direção clara) em relação ao ensino e política educacional.
Deve-se atentar para o fato de que, na transação objetiva da identidade dos
professores da escola-da-dona-Clair, no geral, há uma equivalência entre as
identidades atribuídas ao grupo e as identidades assumidas pelos professores da
escola. Entretanto, poderia colocar lentes de aumento e melhorar estes esboços de
formas identitárias no âmbito do processo institucional da escola-da-dona Clair e
dizer que alguns aspectos das identidades atribuídas pelo grupo (direção e estudantes)
às professoras Bel e Tarsila e ao professor Jéferson, por exemplo, são
reconhecidamente conflitantes com as atribuídas a si mesmos por eles, situação esta
que parece causar um certo desconforto aos mesmos. Isso para lembrar que no
processo social público de construção das identidades há peculiaridades dos atos de
pertencimento (portanto, da esfera privada) que entram na transação objetiva entre as
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117
identidades atribuídas e as assumidas, mas que não são reconhecidas pelos sujeitos e,
por isso, causam conflitos
11
.
5.1.3
A identidade “relacional” para si: na escola como “a casa”, “a rua” e “o
quintal”
Eu tenho muito carinho com eles [os professores] e acho que eles também têm comigo.
(dona Clair)
Eu queria viver num país onde o cara [o Estado] que te pagasse te cobrasse.
(professor Jéferson - história)
Mostrei no capítulo 4 como o colégio Viola representa para dona Clair e para
muitos professores uma continuação de suas casas (nomeadamente para Sofia,
Mariana, Maria, Iracema, Tarsila, Carmela, Pilar e Iara), ocorrendo uma diluição
entre as fronteiras do trabalho docente e da casa, uma inseparabilidade entre o mundo
privado da casa e o mundo público da profissão docente. Ao caracterizar a escola
como uma “escola-família”, a professora Sofia ajuda a revelar uma visão recorrente
do colégio, tida a partir “da casa”, na ótica de Roberto DaMatta (1997), uma das
categorias sociológicas usadas pelo autor para compreender a sociedade brasileira
12
.
Grosso modo, a casa é o espaço das relações calorosas, onde há lugar para todos, em
distinção à rua, local do público e do estranho. Como também pode ser observado nos
depoimentos a seguir:
Eu gosto de sítio, adoro essa realidade! A gente tem contato com a natureza, vou para
Vista Alegre passeando. Acho gostoso pegar o carro e ir até lá. Estar com as
pessoas.(...)Lá é tipo uma grande família. (Maria-filosofia e sociologia)
Acho que a gente procura trabalhar com seriedade, fazer o trabalho sério. Eu vejo
professor dizendo que enrola, mas a gente não. A gente faz sério, um bom trabalho!
Isso você encontra lá no Viola. A gente se sente bem dentro da escola. (...) Acho que
11
Bel e Tarsila são vistas como “escandalosa” e “cri-cri”, mas se consideram “necessária” e
“inquieta”, respectivamente. Jéferson tem uma imagem pública de professor sério e rígido, mas se
considera “sério e carinhoso”.
12
Na íntegra: “Por isso, eu caracterizo nossa escola como uma escola-família. Muitos professores têm
seus filhos, sobrinhos, netos. A clientela básica é de filhos de agricultores”. (Sofia).
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118
aquilo lá tem uma química. (...) não sei se é porque a gente trabalha na simplicidade
nossa ali, sem se preocupar muito com as outras escolas. Ou se as pessoas confiam
muito em mamãe. (Mariana-geografia)
Mas eu nunca quis sair daqui, porque aqui ainda mantém essa coisa de escola de zona
rural. Ao mesmo tempo em que há alunos que já têm contato com toda essa tecnologia,
(...), eles ainda têm um pouquinho mais de respeito, alguns alunos ainda se interessam.
Eloiza: o que é bom nessa escola, além dos alunos mais interessados?
Maísa: os amigos, os professores. (...) A gente quase não se encontra, só no final e meio
do ano, em festa. Mas, quando a gente se encontra, a gente conversa, tem
assunto.(Maísa-artes)
Acho que sou mãezonha [risos]. Sempre. Eu não vejo os meus alunos crianças
distantes de mim. Os meus alunos são como se fossem da minha família: filho,
sobrinho. Às vezes eu até peco porque dizem que eu passo muito a mão [riso]. Mas
procuro tratar os meus alunos como trato os meus filhos. (Carmela-séries iniciais)
Resumindo, a “grande família” tem uma “química”, a simplicidade da grande
mãe, que passa confiança e, como uma verdadeira família brasileira, encontra-se,
sempre tendo assuntos para conversar, com intimidade. E trata os estudantes como se
eles fossem membros da família.
Mesmo para aqueles professores que não usaram explicitamente a comparação
com a família ou com a casa, como Aquiles, Isaura, Henrique, William e Jéferson, a
escola é considerada um espaço de convívio agradável e amigo, embora profissional:
Mas muito sério mesmo! O pessoal é espetacular. Uma coisa engraçada: a gente só se
relaciona lá. (...) Nós não falamos de problemas pessoais, do dia-a-dia. Só de trabalho.
(Aquiles-educação física)
Eu gosto muito da escola. Gosto muito, muito, muito de lá. (...) gosto do aluno, da
comunidade em si. (...) a escola é um lugar importante para eles. Um lugar em que eles
se encontram, fazem amigos, arrumam namoradinhos e namoradinhas. E acho isso
tudo muito legal, porque o aluno passa a dar muita importância...No Viola não, eles
não têm outra opção (...) apesar da distância, eu vou para lá muito satisfeito: eu gosto
muito do corpo docente e discente da escola. Acho um pessoal muito comprometido,
que pensa como eu, faz a coisa com seriedade.(...) Eu faço a minha parte e não sou de
ficar olhando o que o outro faz. Mas eu percebo que nosso professor tem esse perfil da
tranquilidade de dona Clair de estar sempre lá. Eu vejo histórias de professores fora de
lá que faltam muito. Lá a coisa funciona direitinho. Lá uma vez ou outra falta
professor. (Henrique-inglês)
Nestes casos, a sensação prazerosa do espaço de trabalho está mais ligada ao
convívio com todos, incluindo especialmente a comunidade escolar.
Ainda que marcada pelo missionarismo e pela moralidade religiosa, vimos
como dona Clair deixa de ser apenas a dona de casa da fazenda e passa a
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desempenhar também a função de “educar” crianças, há 50 anos. E leva para o
colégio sua vocação e funções maternas, que não poucas vezes se confundiram na
nova “missão”. Uma das relações estruturantes das identidades dos professores é
estabelecida, portanto, com uma figura materna que costuma dar poucos limites aos
filhos e escolher (ainda que disfarçadamente) os favoritos. No geral, a relação que os
professores estabelecem é de confiança e de afeto, além de respeito. Embora alguns
professores sintam-se preteridos pela mãe e se digam injustiçados.
Por outro lado, um grupo menor de docentes considera dona Clair “a dona da
fazenda”, a aristocrata distante que faz política em detrimento da instituição. Para
esses profissionais, a identificação está menos ligada ao afeto e ao parentesco e mais
relacionada a experiências de poder, como nesta fala de uma professora:
Eu falei que ela é a patroa, a dona da fazenda. E ela lida na escola assim. E perdemos
(a escola, a comunidade) o pré-escolar por causa disso, porque, nesse ano, a política
municipal é favorável a ela. Para dar asas ao prefeito e ela ficar bem, a Secretária
[Municipal de Educação] abriu uma escola perto da nossa e para não bater de frente ela
fechou o pré. E nós temos professores, ambiente (a sala, a mobília). A gente perde
muito com perder o pré-escolar. Porque ano que vem o número de alunos da
alfabetização é menor. Isso é um efeito cascata. E como o Estado quer acabar de
primeira à quarta, nós estamos “colaborando” dessa maneira. Isso me irrita.
Desse ponto de vista, escola é o “mundo da rua”, lugar perigoso, “local de
individualização, de luta e de maladragem. Zona onde cada um deve zelar por si,
enquanto Deus olha por todos (...)” (DaMatta, 1997, p.55). O espaço percebido desta
maneira tem, para o antropólogo, “(...) um ponto de vista autoritário, impositivo,
falho, fundado no descaso e na linguagem da lei que, igualando, subordina e explora.”
(idem, p.59).
Alguns desses professores revelam em suas narrativas uma falta de apoio aos
seus projetos profissionais e a percepção que dona Clair, pelo tempo de serviço e por
ser a “dona da escola”, atrapalha, pois permite pouca inovação: “A escola de dona
Clair. Minha tia foi aluna de dona Clair, meu tio foi, meu marido foi. E está lá dona
Clair. Mamãe morou na escola, a tia Pilar nasceu na escola. A escola da dona Clair.
Mamãe se aposentou na escola da dona Clair e está dona Clair lá. Só que a escola
perde por esse lado”. (Tarsila). Ou ainda, neste depoimento de Isaura:
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Têm outras dificuldades que fazem com que as coisas estejam mudando lá. O colégio
não está evoluindo junto com essa evolução dos alunos. Você devia ter outros recursos
até para chamar a atenção para sua aula, algo mais agradável... O recurso pode
melhorar um pouco a sua aula, mas é claro que eu posso dar uma boa aula sem o
retorprojetor. Eu acho que para o aluno ficaria mais interessante, porque hoje a gente
tem que lutar contra muita coisa. Você para dar uma boa aula você tem que fazer com
que o aluno esteja motivado para sua aula, porque ele se desliga com muita facilidade.
(...) Nada é pior do que aquelas mesas e carteiras quebradas. O aluno que tem que ir ao
vizinho ver se tem cadeira sobrando, porque o número é insuficiente. Essa questão,
junto com uma reforma geral do espaço físico, é fundamental. Mas acho que o que
realmente precisa é uma ação mais enérgica para cobrar essas coisas. (...) Vista Alegre
está precisando de sangue novo, não desmerecendo o trabalho de dona Clair, pois ele é
muito bom. Dona Clair é uma mãe e não uma diretora. (...) Tem que haver uma
reestruturação, porque o colégio vem caindo, caindo, caindo, de uns anos para cá.
(Isaura – língua portuguesa)
Eu acho que já não há tanta integração como antes. Antes era mais familiar, tinham
pessoas que ficavam mais tempo, tinha menos rodízio. (Jéferson - história)
Na fala de Jéferson aparece um fato social de grande importância: a mudança
ocorrida na comunidade com a pavimentação da estrada que a liga ao centro do
município e o loteamento recente, que trouxeram novos e mais alunos, fatos
lembrados por outros professores como um desafio ao trabalho docente.
A realidade parece causar um certo desânimo frente ao que Dubet (2002) chama
de “decadência do programa institucional”, quando o trabalho específico e organizado
de transformação de valores e de princípios em ação e subjetividade começa a não
mais acontecer do modo planejado e a ser transplantado por uma lógica do mercado e
do consumo, uma lógica do “cada um por si”. Mesmo dona Clair acreditando que ser
professor é uma vocação, que ele tem que respeitar o aluno e ser compromissado com
a função de transmitir conteúdos, ela percebe que os tempos são outros e fala com
saudades de quando se “tinha que cumprir o programa, senão o aluno não tinha
condição de fazer a prova que vinha pronta da Secretaria. (...) A gente cumpria o
dever. Tinha responsabilidade” (dona Clair).
A esta altura devo lembrar que o “programa” da escola-de-dona-Clair tem mais
características de uma instituição anárquica do que burocrática, uma vez que há
independência máxima entre os professores, que buscam realizar objetivos pessoais e
múltiplos e articulam tarefas freqüentemente com dificuldades. Muitas destas
definidas pelo Estado, o mentor do programa institucional nos termos de Dubet
(2002), que, nesta metáfora da escola-família, pode ser considerado um pai omisso,
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do tipo que concebe seus filhos, mas não os cria com cuidado, aparecendo quando em
vez para “responsabilizar”, como acontece com o Programa Nova Escola.
Analisar o ofício docente na perspectiva do sistema e do ator é buscar a conexão
entre os “constrangimentos sistêmicos” e os “comportamentos estratégicos dos
atores” (Canário, 1996, p.132), Sobre este assunto, todos os professores da escola, de
um modo ou de outro, falam dessa omissão do “patrão”, em relação não somente ao
salário, mas também à (ausência de) formação continuada e até a uma real avaliação
do trabalho, para muitos uma atitude que pode ser encorajadora:
A gente, que trabalha há bastante tempo e gosta do que faz.... Me sinto valorizado
pelos meus alunos e seus pais, mas não me sinto valorizado pelo patrão. Isso não me
incomoda, mas acho que não faz bem. No Estado eu estou com um processo de
enquadramento, desde 1997, que não saiu até hoje. E a gente está sem aumento. O
compromisso, a dedicação, tudo isso é sempre o mesmo. Mas pela gente. Por eles, eles
não estão nem aí. (Henrique – língua inglesa)
Eu comecei a dar aula a gente estava no regime militar. Eu achava que de uma forma
ou de outra a nossa profissão ia melhorar. Fazendo uma análise fria, se eu pudesse
voltar a 30 anos atrás, não digo com certeza, mas talvez eu não tivesse optado pela
profissão. Primeiro, pela questão da desvalorização da educação no sentido da
formação, não digo nem salarial. Eles querem que você não seja bom, que você não
seja trabalhador, que você não seja competente. Toda essa questão do aluno que me vê
com muito rigor faz parte desse esquema de pauperização do processo de educação.
Você vê a educação caminhando cada vez mais para uma maior penúria, de pouco
investimento, de não se saber o que se fazer na escola. Eu falo para o meu aluno: ‘eu
fecho a porta aqui e eu posso fazer o que eu quiser, até brincar de roda com vocês’.
(Jéferson - história)
Aliás, ainda não comecei a receber isso ainda, pois o Estado é muito moroso na hora de
pagar, embora seja rápido na hora de cobrar. Com o salário do Estado, eu não poderia
me locomover e não daria aula em Vista Alegre, porque preciso da moto em que vou
trabalhar. Aí eu tenho que ter outra matrícula. O ideal é que eu fosse o professor de
História ou do Viola ou do colégio João Brasil. O desencanto tem a ver com a
desvalorização profissional e o corre-corre para se ter um salário melhor. Tem dia que
o corpo não está mais obedecendo e você tem que... Eu não sou de me entregar à toa,
então, eu vou, mesmo sem ter condição estou trabalhando, não sou de faltar. Isso
atrapalha muito. O ideal seria ter salário razoável para trabalhar em uma escola só,
porque aí até o envolvimento seria maior. (William - história)
Eu boto todos os déficits por conta do Estado. O pessoal lá é muito bacana. Querem
que a coisa aconteça. Mas do jeito que está! A gente conta com um grupo muito bom
de trabalho lá, sabia? Eu acho que a gente conta com um grupo muito bom! Eu acho
que a gente conta com um grupo muito bom, que faz das tripas coração para fazer a
coisa acontecer. O grande vilão lá é o Estado. (...) Eu trabalho, com a profissão que eu
tenho, pelo amor aos meus alunos. Eu não penso no que eu recebo nem para quem eu
trabalho. Porque, se eu pensar, eu vou ser uma péssima profissional! (Maria-
sociologia e filosofia)
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A questão do salário é muito enjoada. Dá um pouco de frustração. Não é só questão de
salário. Porque o que ganho morando aqui na roça é uma coisa. (...) Eu saio daqui de
casa dez minutos antes, para ir à escola, não pego nenhum engarrafamento. Venho à
minha casa almoçar. Não preciso me arrumar para ir para a escola, com a roupinha que
tem em casa, você vai. Não têm essas exigências. A questão do salário...se o professor
quer fazer um curso fora, não faz, porque o salário de professor não permite. E o
mundo é cada vez mais exigente. (Mariana - geografia)
Justamente porque nosso trabalho é um trabalho subversivo, a gente está sempre com
pedreira na nossa frente. Sempre batalhando contra o sistema, contra tudo e todos. São
leis e resoluções equivocadas que nos atingem. Todo tempo tem que estar engolindo
sapo e fazendo de tudo para não ser afetado e continuar nossa luta. E o salário? (Sofia)
E dona Clair, por sua vez, reclama da falta de autonomia para decidir:
Eu tenho que obedecer às ordens que vêm da Secretaria. Eu acho isso um desafio,
porque a responsabilidade fica na minha mão e o diretor não tem autonomia para
decidir. Se falta um professor, eu não tenho autonomia para contratar um professor. Eu
tenho que esperar que a Secretaria autorize. Esse regime de GLP, a gente tem até a
oportunidade de escolher um pouco esse professor, mas ao mesmo tempo se a
Secretaria não autorizar, eu não posso admitir o professor. Às vezes, fica turma um
tempo sem aula, porque não tem professor e a Secretaria não autorizou. E a parte
financeira da escola, que a gente tem que administrar? As verbas vêm destinadas para
determinada coisa. A merenda é da merenda e a gente não pode mexer. Tem da
manutenção e às vezes você precisa comprar um livro didático. Porque a Secretaria
manda os livros, mas às vezes não dá e você tem que recorrer, telefona; aí, até resolver
o ano já acabou. E a escola não pode tirar dinheiro da manutenção para comprar livro.
Todos esses são desafios... (dona Clair)
Dá para perceber que o Estado apenas cria instrumentos de gestão e de
regulação, o que faz com que os professores tenham construído seus ofícios e dona
Clair, sua própria gestão (Dubet, 2002). Assim:
Eu procuro, eu procuro ir ajeitando a escola dentro da necessidade, com os recursos
que temos, para não ficarem defasadas as coisas. (...) Eu sei que a própria
Coordenadoria estadual não tem autonomia, que a autonomia é da Secretaria, mas eu
tenho que cobrar da Coordenadoria, quem está acima de mim. Esse é o maior desafio
da diretora. (dona Clair)
Por fim, vale destacar que alguns dos professores que percebem a escola,
majoritariamente, como o “mundo da rua” levantam críticas à instituição escolar, que
tem sido o espaço formal e privilegiado para o exercício do ato educativo nos últimos
três séculos (Nóvoa, 1991a; Canário, 2005). Vejam o que falam sobre o seu sentido e
pertinência na atualidade, assim como no excesso de funções e atribuições para as
quais eles não se sentem preparados:
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123
Eu sinto a responsabilidade mesmo da formação de caráter, de encaminhar esse aluno
para a vida. Porque antes nossa função era somente ensinar conteúdos que o livro traz
lá. Como na época talvez da minha mãe, a preocupação dos professores era
exclusivamente essa: ensinar que está no livro, para a profissão dele lá. Hoje
infelizmente ou felizmente, não sei se isso cabe à escola, que está tão desestruturada
para assumir tanta responsabilidade. Hoje, não é só isso não. (...) A família está
falhando e a escola está assumindo uma responsabilidade que não está preparada para
assumir. A escola tem que mudar e rápido, porque se não mudar, é uma instituição
falida, falida! Não vamos daqui a pouco ensinar nem o que os livros trazem, nem para
a vida. Porque está muito difícil fazer! Muito difícil! (Isaura – língua portuguesa e
literatura)
A escola não consegue mostrar o aqui, o agora e o futuro. É um pecado nosso. Por isso
planejamento é tudo: tem que saber onde sai e onde chega. (Aquiles – educação física)
Realidade semelhante à encontrada por Canário (2005) em seus estudos sobre a
escola em Portugal, de onde concluiu que o problema central da instituição escolar na
atualidade é seu déficit de legitimidade e o principal requisito para ela ser eficaz é a
construção de sentido positivo para o trabalho escolar de professores e estudantes.
De qualquer modo, parece que a construção das identidades dos professores na
escola ainda está até certo ponto pautada no programa institucional, nos termos de
Dubet (2002). Lembro que, embora muitos alunos sejam novos, têm algum acesso a
outras formas de aprendizagem fora da escola, e, pelo uso dos computadores na
escola, estão podendo desenvolver uma linguagem não-proposicional (oposta, à
linguagem proposicional da cultura escolar)
13
, a escola ainda se mantém com o
monopólio do saber local e com uma imagem institucional relativamente estável,
como lembra o professor William:
Para a maioria, a escola é uma maneira de se comunicar com o mundo, porque o
mundo deles é muito fechado: a pequena comunidade, a casa distante das outras. A
gente recebe aluno de Santo Antonio, de Boa Vista, de Santa Rosa, de lugares em que
não se tem muito que fazer. Na escola, ele tem esse espaço para se comunicar com o
mundo. Onde ele teria contato com o computador, se não fosse lá? Onde ele teria
contato, alguns, com filme (não os de massa, que passam na TV)? (William - história)
Um último grupo de professoras, ex-alunas, traz igualmente a percepção da
escola como um local familiar, mas com um dado a mais:
13
Como nos lembram Tedesco e Fanfani (2002).
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124
Sei que a gente andava descalça, ia para a escola descalça. Mas a gente gostava dessa
amizade, era tudo junto. (...) ah, minha mãe trabalhava de merendeira, tinha dona Clair.
Me sentia em casa. Sempre me senti em casa lá. Apesar de tudo, dessa revolta com a
situação de trabalho, lá me considero em casa, entendeu? Eu tive oportunidade de sair
de lá, mas eu gosto, eu gosto. (Iracema – língua portuguesa)
Só estudei um ano fora do Viola. Aprendi a ler no Viola (...).Na escola, a gente
brincava muito! (Iara – ciências)
A escola era o quintal de casa, porque era desse tamaninho [mostra polegar e indicador
próximos]. E os colegas de turma eram todos daqui. Era como se estivesse em casa. O
prédio era menor, todo mundo daqui, era como se a gente tivesse em casa. (...) Essa
escola é o quintal da minha casa. Eu conheço cada palmo. (Tarsila – séries iniciais)
Em que pese o fato de que as representações sobre a escola de Iara e de Tarsila
estejam carregadas de familiaridade com o local, elas trazem o espaço do “quintal”,
um lugar intermediário entre “a casa”, e “a rua”, pois nele acontecem situações que
fogem totalmente do controle da “mãe” e do “pai” e que são ligadas ao prazer, ao
lazer e ao encontro
14
. Lembro que, na escola-da-dona-Clair, este é o local da
“sociabilidade pura” (Simmel, 1978), da fruição de afetividades, preferido para a
interação entre os estudantes, onde eles mais lidam com suas subjetividades, falam de
si, trocam experiências, idéias, vivências.
Parece que o programa evoluiu e se diversificou, sem romper com sua lógica de
homogeneizar, e as funções escolares de reprodutora de cultura e de formadora de
força de trabalho ainda fazem algum sentido. No “mundo da casa”, os professores
ainda estão muito determinados por papéis. Por outro lado, há os que atuam no
mundo do “quintal” e que conseguem realizar um trabalho considerado como uma
realização de si próprios, resultado de sua autonomia e da relação desenvolvida com
seus estudantes. A grande maioria coloca como central o trabalho de construção do
sentido do trabalho escolar. Tanto no “mundo da casa” como no “mundo do quintal”.
É o que discuto no próximo capítulo.
14
Como comecei a mostrar no capítulo 4 e desenvolvo no próximo.
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6
Ofício docente: entre a “casa”, a “rua” e o “quintal”, modos
de perceber o mundo, de ser e de fazer
Carregamos a lenta aprendizagem de nosso ofício de educadores, aprendido em múltiplos espaços e
tempos, em múltiplas vivências.
(Miguel Arroyo)
Depois de ter apresentado e analisado a identidade da escola-da-dona-Clair e as
dos seus professores com “mais tempo de casa”, discuto neste capítulo o ofício
docente, ou seja, as maneiras como os professores realizam seu trabalho neste local,
destacando a força da dimensão pessoal (do privado, das histórias singulares) e da
dimensão profissional (do público, do contexto comum).
Frente ao ethos da escola-da-dona-Clair, sigo guiada pela gramática de espaços
e tempos da sociedade brasileira concebida por Roberto DaMatta (1997, p. 48), para
quem “qualquer evento pode ser lido (ou interpretado) por meio do código da casa e
da família (que é avesso à mudança e à história, à economia, ao individualismo e ao
progresso), pelo código da rua (que está aberto ao legalismo jurídico, ao mercado, à
história linear e ao progresso individualista) e por um código do outro mundo (que
focaliza a idéia de renúncia do mundo com suas dores e ilusões e, assim fazendo,
tenta sintetizar os outros dois)”.
Lembro que a idéia básica deste estudo é a de que o trabalho docente realiza-se
no cruzamento da trajetória pessoal dos professores, caracterizada como o “mundo da
casa”, com o contexto onde exercem seu ofício, o “mundo da rua”. Nesta perspectiva,
as disposições profissionais dos professores são uma síntese viva (Lelis, 2001b) de
um conjunto de experiências familiares, de processos de formação escolar, e também
das marcas das culturas das organizações escolares nas quais construíram (e ainda
constroem) uma forma de ser professor, singular, intransferível, porque pessoal. A
síntese seria, neste caso de pesquisa, resultado das vivências nos espaços entre “a
casa” e “a rua”.
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126
Com o intuito de analisar modos de exercício do trabalho docente, dialogo
muitas vezes com Tardif (2002, 2005), que me propõe constituir “um discurso em
favor de uma racionalidade limitada e concreta, enraizada nas práticas cotidianas dos
atores, racionalidade aberta, contingente, instável, alimentada por saberes lacunares,
humanos, baseados na vivência, na experiência, na vida” (Tardif, 2002, p.224).
1
A natureza do denominado “saber pedagógico” tem sido o tema de muitos
estudos e questionamentos, constituindo mesmo “um dos capítulos mais apaixonantes
e importantes da história da profissão docente”, percepção de Nóvoa (1991a) que
compartilho.
Uma vez que quero interpretar os modos de trabalhar dos docentes, parto da
crença de que há no cotidiano da organização escolar uma diferença entre as maneiras
de olhar dos distintos atores, quando engajados na ação. Nesse sentido, concordo com
Boudon (1989), quando ele afirma que a racionalidade da ação dos atores
institucionais é o produto de uma tensão conjunta de efeitos de situação, que
compreendem os efeitos de posição e de disposição.
Começo o capítulo por determinar o “mundo da casa” dos docentes, na
categorização de DaMatta (1997), suas vivências particulares, pessoais e que tenham
influenciado suas maneiras de pensar, sentir e agir como professores. O que será
analisado neste segmento são os efeitos de disposição dos professores, experiência
vivida antes do exercício da profissão, exercício este considerado o “mundo da rua” e
abordado num segundo momento.
Por efeitos de disposição Boudon (1989, p. 134) entende “o conjunto de uma
experiência e de um saber anteriormente adquiridos, mobilizados pelo agente na
interpretação de todo e qualquer fenômeno social”. Eles dependem das disposições
mentais, cognitivas e afetivas desse ator, e que são sempre, em parte, pré-formadas
por uma socialização passada. Isto quer dizer que os agentes sociais estão socialmente
situados, ou seja, que possuem papéis sociais e, em razão de processos de
1
Tendo realizado inúmeras pesquisas nos últimos anos no Canadá acerca do saber dos professores, o
autor fornece muitos elementos para uma “epistemologia da prática profissional” da categoria, muito
pertinente a este estudo. Como ele, acredito no dever do pesquisador sobre o ensino-aprendizagem
registrar o ponto de vista dos professores, além dos conhecimentos e o saber-fazer por eles criados e
mobilizados na ação cotidiana. Considero o professor como um sujeito que assume uma prática a partir
dos significados que ele mesmo dá. Significados que importa conhecer.
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127
socialização, interiorizam um certo número de saberes e representações. O que os faz,
assim, sujeitos a efeitos de situação (idem, ibidem, p.123).
Os efeitos de posição, apresentados na seqüência do capítulo, dependem da
posição que um ator ocupa num contexto determinado, e condicionam seu acesso a
informações pertinentes. Vimos que há professores que atuam mais no espaço da
“casa”, outros, no da “rua”, e ainda alguns que vêem a escola majoritariamente com a
perspectiva de quem está no espaço do “quintal”. A posição social do agente implica
em efeitos de perspectiva, quando "um objeto pode ser percebido de vários pontos de
vista diferentes e quando as imagens correspondentes a estes diferentes pontos de
vista são, elas mesmas, diferentes" (Boudon, 1989, p.128). Por sua vez, os efeitos de
perspectiva estabelecem uma nova série de efeitos, chamados de efeitos de distância,
medidos pelo distanciamento entre o agente e o objeto de interação. Quanto mais
longínquo o objeto estiver do agente, menos inteligível parecerá o seu
comportamento.
6.1
No “mundo da casa”: efeitos de disposição
Mas posso garantir que é uma ampla e acolhedora morada, onde espero receber com honradez e
carinho, revelando a fonte de cada peça e procurando iluminar de melhor modo possível seus
corredores e porões. (Roberto DaMatta)
Para Boudon (1989), o social em que estão inseridos os atores não os produz
(como acreditava Bourdieu), mas, sim, influencia seus modos de pensar e agir,
através do processo de aprendizagem formal e informal a que são submetidos desde o
nascimento
2
. As disposições, assim, parecem ser compreendidas através dos efeitos
2
Reconheço que a sociologia da educação de Bourdieu constitui, ainda hoje, um dos mais importantes
paradigmas usados na interpretação sociológica da educação. Embora faça uso de parte dela neste
estudo, discordo das suas críticas às abordagens “subjetivistas” e do excessivo viés funcionalista de
suas idéias. Neste sentido tendo a concordar com Boudon (1989), para quem as disposições não
produzem o agente, mas são, antes, situações mobilizadas à compreensão do objeto com que se
interage. Desta maneira, não transforma o ator em sonâmbulo (p.282-83), mas em detentor de saberes
sociais que indicam caminhos à apreensão, trabalhados ou não pelo agente através da reflexão que
processa a sua ação.
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do processo de cognição, os quais dispõem o ator a um saber prévio que intermedeia
a ação e lhe indicam um caminho de perceber e compreender. O ator, deste modo,
pode construir sua ação pela reflexão, sendo, então, criador e recriado a cada ato,
porque está sempre em movimento entre os recursos cognitivos à sua disposição e a
uma possível reflexão. Os resultados da ação seriam produtos de escolhas racionais
do ator a cada ação ou grupo de ação e, neste sentido, são sempre indeterminados.
Seus atos são produtos de escolhas compreensíveis e racionais e levam a saberes.
Não há um consenso em relação à natureza desses saberes dos professores
3
,
adquiridos durante a socialização pré-profissional, segundo Tardif (2002), mas o
autor os define como desempenhos e capacidades sociais e culturais dos indivíduos:
A idéia de base é que esses ‘saberes’ (esquemas, regras, hábitos, procedimentos,
tipos, categorias, etc) não são inatos, mas produzidos pela socialização, isto é, através
da imersão dos indivíduos nos diversos mundos socializados (famílias, grupos, amigos,
escolas, etc), nos quais eles constroem, em interação com os outros, sua identidade
pessoal e social (Tardif, 2002, p.71).
Tais conhecimentos, competências, crenças e valores, interiorizados pela
convivência inicial, estruturam não somente a personalidade, mas também as relações
com as pessoas, e são reatualizados e reutilizados na prática do ofício docente.
3
Fala-se em saber prático (Elba, 1994) saber prático e pessoal (Fenstermacher:1994, apud Tardif,
2002), saber em ação (Schön, 1995), saber do conteúdo pedagógico (Shulman,1986), saber profissional
(Wideen,1996), saber da experiência (Tardif et al,1991; Tardif, 2002), entre outras, para se descrever
este reservatório de saber comum, fruto da socialização dos professores. Destaco, de Shulman, o
conhecimento do conteúdo pedagógico, capaz de dar respostas às seguintes perguntas: “De onde vêm
as explicações dos professores? Como os professores decidem o que ensinar e como representar este
conteúdo, como questionam os alunos sobre isso, e como lidam com o problema da falta de
compreensão?” (Shulman,1986, p.8). Também dele, o conhecimento estratégico, fruto da reflexão do
professor sobre sua prática, reflexão esta que lhe proporcionará a capacidade de entender sua profissão
e comunicar às pessoas as razões de suas decisões e ações. O conhecimento pedagógico da matéria
ensinada está além dos conhecimentos disciplinares, chegando à dimensão do conteúdo da matéria
para ensinar.
Perrenoud (2001), por sua vez, traz a idéia de que as competências profissionais exigem muito mais
que saberes, e na frente do debate está a separação entre saberes eruditos ou saberes construídos na
experiência. Para o autor, no conjunto das competências de um profissional, há saberes ou
conhecimento, mas “Ao contrário dos conhecimentos, que são representações organizadas da realidade
ou do modo de transformá-las, as competências são capacidades de ação” (Perrenoud, 2001, p.139).
Resolvi me esquivar de trazer este debate para o centro do estudo e considerar os saberes dos
professores como suas capacidades de buscar, encontrar e aplicar respostas apropriadas a cada
contexto.
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129
A literatura mais recente sobre a construção das disposições profissionais dos
professores aponta para, como já disse no início deste capítulo e baseada em Lelis
(2001b), a existência de uma síntese viva de, entre outras, um conjunto de
experiências familiares e de processos de formação escolar. Ou o “mundo da casa”.
6.1.1
A força das experiências familiares
Mamãe era professora, na época chamada primária, de uma escolinha municipal, com quarenta e
poucos alunos (...)E não eram crianças como a gente vê hoje, era tudo mais marmanjo. Era do lado da
minha casa. Aquilo ali era o nosso metier, era o ambiente em que a gente vivia. A escola era mamãe!
(professora Bel - séries iniciais)
Minha mãe era praticamente semi-analfabeta. Mal sabia escrever o nome. Mas meus irmãos todos
tiveram oportunidade de estudar. Todos que quiseram estudaram, até se formar. Só não foi quem não
quis. (professora Isaura- língua portuguesa e literatura)
O espaço social da família constitui uma matriz poderosa de percepção,
apreciação e de aprendizagem de ações, especialmente porque é o meio responsável
por inserir o indivíduo no grupo social do qual ele faz parte. A família é o primeiro
mundo exterior com o qual mantemos contato e, como disse Bakhtin (1992, p.278),
de onde vem “tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em
minha consciência”.
Devo recordar que as origens sociais e econômicas da maioria dos professores
eram de famílias dedicadas à produção rural. Três como grandes produtores de café e
líderes políticos da região, a grande maioria como pequenos produtores (cinco) e três
como trabalhadores agrícolas assalariados. Embora saiba que as famílias e as pessoas
não se reduzem à sua posição de classe social
4
e que são muitos os aspectos e as
4
Idéia esta que contrasta com a de Bourdieu, para quem o peso da origem social sobre os destinos
escolares se daria via volume e estrutura do capital econômico (em termos dos bens e serviços a que
ele dá acesso), mas também do capital social (o conjunto de relacionamentos sociais influentes
mantidos pela família), além do capital cultural institucionalizado, formado basicamente por títulos
escolares. A bagagem transmitida pela família inclui, ainda, certos componentes que passam a fazer
parte da própria subjetividade do indivíduo, sobretudo, o capital cultural na sua forma “incorporada”,
este sendo o elemento da bagagem familiar de maior impacto na definição do destino escolar
(Bourdieu, 2004).
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influências sociais que se inserem nessa discussão (os hábitos culturais e étnicos, a
região geográfica, a produção econômica, entre outros), considero que tal distinção
ajuda na compreensão do exercício do magistério na escola-da-dona-Clair, uma vez
que o modo como acontece a ligação do professor com a cultura “rural” vai modificar
a maneira de ele ocupar as posições dentro da escola, em especial suas relações com
os estudantes e com a direção.
No que se referem aos vestígios dos processos de socialização pré-profissionais,
numa perspectiva mais geral sobre o grupo estudado, posso dizer que emergiu a força
dos investimentos de suas famílias na escolarização dos professores, de uma maneira
mais ou menos direta, seja no abrigo de professoras que moravam distantes na sua
própria residência (Pilar e Iracema) ou de seus avós (Tarsila e Iara), seja na avó-leiga
que montou uma escolinha rural (William), ou, ainda, na história de Jéferson e de sua
“maravilhosa” mãe, mulher culta, que falava francês fluentemente, professora em
Vista Alegre, com quem ele “angariou” tudo que tem de bom, toda a sua formação
moral e ética, “dignidade, honradez, verdade, ser justo”.
No caso de Bel, penso que a mãe ganhou do pai, fazendeiro e político influente,
uma “escola da fazenda”, descrita por Demartini (1988) como comum no interior
brasileiro desde o início do século XX e sofrendo pressões externas diretas da
unidade econômica e social, o que a fazia mudar, por exemplo, o calendário, em
função da colheita, ou até mesmo funcionando somente quando o fazendeiro queria.
Entretanto, aprofundando um pouco mais a análise, como mostram as falas das
professoras Bel e Isaura que iniciam este segmento, observa-se que há no grupo de
professores estudados pelo menos dois tipos de influência familiar: além da
professora Bel, sete outros professores têm diretamente vivências em famílias cujas
mães, tias e irmãs foram professoras, duas delas leigas, como é o caso de Jéferson e
de William; Isaura, Aquiles, Carmela e Maísa provêm de famílias com pouco ou
nenhum acesso à escola.
Isto implica dizer que a educação escolar, no caso do primeiro grupo de
professores, oriundos de meios culturalmente favorecidos, seria uma espécie de
continuação da educação familiar, como pode ser obviamente deduzido da história de
Mariana, filha de dona Clair: “Mamãe sempre foi professora e a gente vivia muito
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dentro da escola. Nem sei se isso influencia. Sei que convivi muito dentro da escola.
Mamãe sempre trabalhou, levava a gente quando éramos pequenos, porque não tinha
com quem deixar”.
Outro exemplo desta influência familiar vem de Tarsila, cuja tia Pilar
5
costumava acompanhar, a passeio, quando menina, ao trabalho docente em uma
escola multisseriada longínqua, e sobre quem declara que “costumava se abaixar pra
ouvir a criança que estava falando com ela”, mostrando sua importância, o que
“levanta a auto-estima da criança”. Hoje, Tarsila senta na carteira de seus alunos para
juntos fazerem as leituras. Sobre aquele tempo de menina, ela comenta que adorava o
passeio, que “tinha fissura por aquilo”, pois “parecia que já sabia fazer”. Recorda que
gostava do convívio com as crianças cujos cadernos tinham figurinhas
6
.
A força da família pode ser percebida igualmente na história de Bel. Ela conta
de como aprendeu a ler em casa, dentro da fazenda do avô, onde ficava a sala de aula
da mãe, que fazia em casa o chamado sabão de barrela, e embalava-os em pedaços de
jornal já velhos, que Bel cortava em quatro e ia lhes entregando para embrulhar:
Lá era muito frio, ventava, tinha garoa e eu me lembro como se fosse hoje. Estava em
cima da mesa, arrumando o sabão com mamãe e eu li num pedaço de jornal velho que
era o homem pisando na lua. Eu me lembro direitinho que eu li lua e que não sabia ler
homem. Nisso, meu avô materno estava chegando e ficou ‘me dando corda’ e eu fui
lendo várias palavrinhas do jornal. Pronto. Não tive dificuldades com letras. A gente
não aprendia o alfabeto primeiro. Nem sei te contar como aquilo aconteceu. (Bel –
séries iniciais)
Embora não consiga precisar como aconteceu aquela aprendizagem, a
professora teve certamente sua postura pedagógica modificada com essa vivência
neste metier. Hoje ela conta de como faz a introdução de um conteúdo disciplinar
novo, com o uso de gravuras de jornais, em forma de desafio, como que “dando
corda” para os estudantes, como fez seu avô com a menina Bel:
5
Lembro que Pilar também é sujeito desta pesquisa.
6
Interessante observar que, quando cheguei à escola e conheci Tarsila, ela pediu-me para arrumar-lhe
figurinhas diferentes para ela colar nos cadernos e trabalhar a escrita de palavras diversas com seus
estudantes.
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Primeiro eu faço um levantamento de hipóteses sobre qualquer assunto. Geralmente eu
uso muito jornal, porque é uma coisa diferente. (...) Eu acho que desequilibro aquilo
que é muito certinho nele. Quando eu me proponho a esse tipo de desequilíbrio, eu
quero uma resposta sobre que caminho eu vou seguir. Ali eu vejo muitas dúvidas deles.
(Bel - séries iniciais)
Outra disposição percebida na lembrança de Bel, mas que também aparece
claramente na história de Iara, sua irmã Tarsila e tias Iracema e Pilar, está ligada à
leitura no meio familiar. Ela conta como os primeiros livros infantis que eu leu foram
emprestados por Iara
7
, uma das professoras que moravam na casa (“grande e
financeiramente organizada”) de seus avós:
Só lembro que Iara era uma mulher grande para mim (talvez naquela época), com
cabelo compridão, preto, super brilhoso, que eu admirava demais! E aqueles livros
dentro de uma bolsa de palha, que ela usava na escola. Quando ela ia para a família,
trazia cheia de livros: Chapeuzinho Vermelho, Peter Pan. Foi dali, naquela época, que
ganhei meu primeiro livro de história, que ainda tenho: Os Irmãos Bichanos. Uma
turma de gatinhos e a vida deles. Inclusive, tem a minha letra quando eu estava
aprendendo a escrever meu nome e tentando escrever os dos meus irmãos.
Sempre a-do-rei. Os de ciências, principalmente. Eu tinha uma curiosidade de saber
sobre o corpo humano, as doenças, como evitá-las. O que eu podia fazer para me
proteger e ter cuidado com a natureza. Adorava isso. E o meu filho gosta disso. A
escola fez uma arrumação e deu alguns livros para as crianças levarem para casa. Meu
filho escolheu um livro de ciências e todo dia quer que eu leia um pouco com ele. Ele
fala: “mãe, me dá aula de ciências?” Eu me lembro demais de mim nessa época! (Iara -
ciências)
Ao tentar explicar o sucesso escolar nos meios populares franceses, buscando
as razões do improvável, movimento similar ao que empreendi quando do início desta
pesquisa de doutorado, Lahire (1997) conclui que uma relação íntima com a cultura
escrita constitui um dos fatores que podem favorecer o sucesso escolar nos meios
populares, uma vez que afeto e livros não são duas instâncias separadas, mas que
estão associadas.
Iara e Bel parecem comprovar esta perspectiva, pois, além de percursos
escolares brilhantes, têm no incentivo à leitura um forte instrumento de trabalho hoje.
Bel diz que faz leituras diárias, e justifica a prática deste modo:
Quando eu leio todos os dias, estou deixando com eles uma série de arquivos e numa
hora que ele vai precisar escrever ele vai buscar nesses arquivos. Pela minha
7
E que, como já disse nas narrativas, inspirou a escolha do nome-fictício da professora estudada.
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experiência, sei que ele melhora muito na escrita. Ele começa a ter assuntos. (Bel –
séries iniciais)
Iara revela como ao abordar um conteúdo novo procura reunir e sistematizar os
saberes dos estudantes, a partir de comparações com o já conhecido. Depois dessa
prática, ela costuma conduzi-los à leitura coletiva do livro didático, pois considera
“muito interessante ver como o autor se refere àquilo, as palavras, os termos que usa”.
Ao preparar as aulas, procura ler livros para depois “colocar para eles a experiência
sobre uma coisa que vi, que sei como funciona”.
Por outro lado, para o segundo grupo de professores citados, a educação
escolar significava, em princípio, algo estranho e distante ao meio familiar. Acontece
que, contrariando a crença de Bourdieu (2004), para quem os membros das classes
populares, pobres em capital econômico e cultural, tenderiam a investir de modo
moderado no sistema de ensino, porque as chances de sucesso seriam reduzidas
(faltariam os recursos econômicos, sociais e, sobretudo, culturais necessários para um
bom desempenho escolar), as famílias de Isaura, Carmela, Aquiles e Maísa apostaram
em seus filhos e netos. Provavelmente como uma maneira de eles mudarem o destino
econômico e social da família, passando a “ser alguém na vida”, como relata Isaura
sobre sua avó:
Ela era uma pessoa muito importante na minha vida. Era uma grande mulher, uma
mulher muito forte, muito sábia, muito inteligente, apesar de praticamente não ter
tido nenhum estudo na vida. Eu acho que a minha formação moral mesmo, até
mesmo profissional..., mesmo ela não tendo nenhum tipo de formação ela foi muito
importante. Importantíssima. Teve muita influência na minha vida. (...) Por ela não
ter tido a chance de estudar, de se formar, e minha mãe também não, ela sempre
achou que estudar era muito importante. (...) tinha que ter uma profissão, tinha que
estudar, me formar em alguma coisa. (Isaura – língua portuguesa e literatura)
Além de Isaura, Aquiles, Carmela e Maísa são as únicas pessoas de suas
famílias que dizem ter escolhido e conseguido avançar no processo de escolarização,
a ponto de chegar à universidade. Para Nogueira e Nogueira (2002, p.6), isso
significa que “os membros de cada grupo social tenderão a investir uma parcela
maior ou menor de seus esforços – medidos em termos de tempo, dedicação e
recursos financeiros – na carreira escolar dos seus filhos, conforme percebam serem
maiores ou menores as probabilidades de êxito”. Todos os professores entrevistados
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134
se referiram a um certo investimento feito por suas famílias para que pudessem
avançar na escolarização, mas as estratégias utilizadas foram muito diferenciadas.
Entretanto, há de comum nas histórias uma certa influência dos membros
familiares na formação moral e ética dos professores, como evidenciam as falas
anteriores de Isaura, de Jéferson, mas que também aparece nas histórias de Sofia e de
Mariana sobre seus avós e pai, respectivamente. Mariana ainda releva a influência do
pai na sua personalidade e esta no exercício do ofício:
(...) a relação com meu pai e minha mãe, eles fizeram o meu jeito de ser assim. Meu
pai foi sempre uma pessoa muito verdadeira, (...) muito positivo! Eu aprendi isso muito
com ele. (...) assim, por exemplo, tem dia que a pessoa chega e diz: “Mariana, vamos
fazer isso assim, assim” Eu digo: “Isso não vai dar certo não!” (...) Dizer aquilo que
pensa, (...) é ser verdadeiro. Verdadeiro naquilo que você pensa, naquele momento.
Mas depois eu até posso dizer: “não, gente, eu pensei diferente e aquilo pode dar
certo”. (...) Papai era muito assim, de dar uns ‘de-repentes’. Lá em casa se falava que
deu ‘olavite’(...), estar muito bem e dar vontade de ir embora [risos]. Ou tem que
resolver e tem que ser naquela hora. Isso é muito papai também. Mamãe é assim mais
calma. (...) De mamãe, herdei [silêncio]. O que eu herdei de mamãe? Eu falo tanto que
sou igual a ela!!! [silêncio] O jeito, o jeito de ser. [silêncio] Fisicamente também sou
igual a ela. Às vezes, eu faço assim com mão e até eu mesmo acho igualzinho a dela.
(Mariana - Geografia)
Ainda que em contexto diferente, o fato coincide com revelações de pesquisas
sobre a importância da história de vida dos professores feitas por Lessard e Tardif
(1996), Tardif e Lessard (2000), Raymond et alii (1993)
8
, que apontam que o saber-
ensinar tem suas origens na história de vida familiar e escolar dos professores de
profissão, na medida em que este saber exige conhecimentos de vida que dependem
da personalidade dos atores.
O certo é que a vida familiar e as pessoas significativas na família aparecem nas
pesquisas como uma fonte de influência muito importante que modela a postura do
professor em relação ao ensino (Tardif, 2002). Nesta mesma obra, o autor cita
trabalhos em que os professores falaram da “origem infantil de sua paixão e de sua
opção pelo ofício de professor” (Tardif, 2002, p.75). Como introduzi no capítulo 5,
dentre os quinze professores estudados, o desejo de se tornar professor, desde criança,
foi apenas de Bel e de Carmela. Esta conta de suas brincadeiras infantis, no quintal de
sua casa, onde funcionava a “escolinha da professora Carmela”. E se recorda que a
8
Citadas por Tardif (2002).
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135
mãe, costureira analfabeta, contava de como os antigos falavam que de acordo com o
que se faz com seu umbigo vem a sua profissão, e que Carmela tinha o umbigo
enterrado com uma letra A, porque sempre que a perguntavam o que ela queria ser
quando crescer, ela respondia: “professora”.
Para vários estudiosos do ofício docente, há mais continuidades que rupturas
entre o conhecimento profissional do professor e as experiências ditas pré-
profissionais, aquelas que, inspirada em Roberto DaMatta, estou nomeando de
experiências do “mundo da casa” dos professores, sua existência privada, particular,
que se estendem, para além da família, aos processos de formação na escola.
6.1.2
A força da formação escolar
Antes mesmo de ensinarem, os futuros professores vivem nas salas de aula e nas escolas-e, portanto,
em seu futuro local de trabalho- durante aproximadamente 16 anos. Ora, tal imersão é necessariamente
formadora. (Maurice Tardif)
Tendo considerado durante toda a pesquisa a escola como um lugar
privilegiado, uma forte referência na vida dos professores, procurei, durante as
entrevistas, abordar as lembranças que eles têm de suas escolas, de seus professores e
de suas experiências enquanto alunos.
A literatura informa que boa parte do que os professores sabem sobre o ensino
provém de sua socialização enquanto estudantes e que esse legado permanece forte e
estável através do tempo (Tardif, 2002). Portanto, busco identificar vestígios dessa
experiência nas identidades e nos estilos de trabalhar, especialmente com as pessoas
dos professores que tiveram. Que tipo de escola freqüentaram e quais modelos de
professores marcaram, de modo positivo ou negativo, suas concepções de professor e
de ensinar são as perguntas de saída.
6.1.2.1
As escolas freqüentadas e a escola-da-dona-Clair
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136
Treze dos quinze professores pesquisados estudaram os primeiros anos do
ensino fundamental em escolas públicas na região de Vista Alegre, numa época em
que a escola pública ainda era considerada de boa qualidade e que a oferta de ensino
particular era menor e destinada majoritariamente ao atual ensino médio. Uma
exceção é Maria, cuja vida escolar foi toda vivida em escolas particulares. Outra é
Aquiles, que estudou na periferia do munipio do Rio de Janeiro, nos anos de 1960.
Também treze professores freqüentaram o curso Normal, particular, menos
Aquiles, professor de educação física e William, de História, que cursaram apenas a
faculdade e um curso de especialização em suas áreas disciplinares. Dos treze, sete
terminaram os estudos universitários e Carmela faz atualmente uma faculdade de
Pedagogia a distância, sendo que apenas Sofia freqüentou uma universidade pública
na cidade de Niterói. Lembro que tal realidade tem menos a ver com a condição
econômica ou de gênero do que com a existência de oferta de estudos na região,
dentro do quadro analisado como “a escolha da não-escolha” (Lelis, 1996)
9
, e bem
ilustrado nesta fala de Iara: “se tivesse faculdade por aqui, queria ser enfermeira.
Nunca pensei em ser médica, porque não sou muito de sonhar com o impossível não”.
Um dado do percurso escolar muito marcante do grupo pesquisado é que seis
professores são ex-alunos da escola-da-dona-Clair, sendo que, destes, quatro são ex-
alunos da própria dona Clair, por quem foram alfabetizados, fato que impacta as
concepções atuais sobre a escola e o ofício. Como relatei no capítulo anterior, Iara,
Tarsila, Iracema e Pilar lembram de como a escola era um local de encontro, de
brincadeiras, uma continuação de suas casas. Sofia, por sua vez, fala, demonstrando o
que parece um certo orgulho, de como considerava o ensino de qualidade:
Eu estudava no Viola. E minha primeira professora foi tia Clair
10
. Fui muito bem
alfabetizada por sinal. Porque quando fui para outro colégio, na cidade, já na segunda
série, eu lembro que logo no início a professora já achou diferença em mim, porque eu
era a única que sabia ler, escrever e fazer conta com a maior facilidade. Enquanto os
outros alunos tinham dúvidas, eu já estava bem alfabetizada, bem encaminhada. Já
naquela época, a nossa escola era uma boa escola. (Sofia)
9
Confronte capítulo 5.
10
A professora Sofia é sobrinha de dona Clair.
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137
Em sua história de vida, esta professora mostra, ainda, uma grande disposição
para o estudo, característica narrada espontaneamente por outros seis professores,
muitos dos quais desejam voltar a estudar no futuro. Isaura, Jéferson, Pilar, Bel,
Mariana e Isaura tiveram como característica comum no percurso escolar serem
curiosos, adiantados nos estudos e/ou gostarem de conhecer vários assuntos, como
mostro nestas falas pinçadas entre as histórias:
Sempre gostei de várias áreas. Essa foi até uma dificuldade, quando fiz vestibular,
escolher uma determinada área. Eu fiz para Matemática. Quando eu passei e fui fazer a
matrícula, eu me matriculei em História. No primeiro dia de aula, eu mudei para
Letras. Eu não estava indecisa, mas é que gostava de todas as áreas. (Isaura- língua
portuguesa e literatura)
Se não fosse professor, com toda sinceridade, sem falsa modéstia, eu não sei o que
seria, mas qualquer que fosse eu seria dedicado e coerente naquilo que eu teria
escolhido. (Jéferson - história)
(...) sinto falta da cultura, do conhecimento. E eu me propus a voltar para a cultura
geral, que vou ler, procurar. É assim que eu penso em voltar a estudar. (Bel – séries
iniciais)
6.1.2.2
As primeiras relações professor-aluno vividas
Como trouxe no capítulo anterior, as imagens de antigos professores estão na
memória e são reveladas nas narrativas sobre os percursos escolares, confirmando a
tese da “centralidade da influência de determinadas mestras nas disposições para se
tornarem professoras” (Lelis, 1996, p.85). Eles falam de como aprenderam com os
antigos mestres a ser professor: conteúdos, técnicas de trabalho, atitudes diante dos
estudantes, traços seculares do ofício docente. As suas experiências escolares mais
significativas, desde os primeiros anos até a faculdade, são fontes de convicções,
crenças e representações.
Os antigos professores são descritos de múltiplas formas, claramente
identificadas com o estilo pessoal de cada pesquisado. Assim, por exemplo, Carmela
lembra de sua primeira professora, por quem “tinha adoração”, pois era “muito
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138
humana, muito mãezona”, o “jeito Carmela” de ser professora hoje: “passa muito a
mão na cabeça” dos estudantes, acredita na leitura diária como fonte de prazer e gosta
de ensinar com jogos, porque cativa os estudantes.
A identificação é assunto de reflexão por Isaura ao se recordar de uma mestra:
Eu me identificava muito com o jeito dela trabalhar. Ela era muito amiga, muito aberta,
ela brincava, ria, ensinava o português de uma maneira que você não via o português
como aquela coisa maçante e difícil. A gente acabava aprendendo com muita
facilidade. A gente gostava muito dela e, então, conseguia aprender a matéria com
facilidade. Eu acho muito importante essa identificação do aluno com o professor, para
ele ter mais vontade e facilidade para aprender a disciplina. Quando você não vai com
a fisionomia do professor, e também com o jeito de o professor trabalhar, tudo fica
mais difícil. Eu acho que aprendi muito nesse período porque eu tive muitos bons
professores. (Isaura- língua portuguesa e literatura)
Esta idéia da importância da “identificação do aluno com o professor” é
igualmente compartilhada e explicitada por Aquiles, William, Mariana e Sofia.
Os antigos (e bons
11
) mestres são lembrados pelos saberes e competências
oriundos tanto do jeito de ser, como de um fazer pessoal. Todos se recordam
detalhadamente de professores que foram afetuosos, pacientes, amigos, confidentes
ou confiáveis, mas também porque sabiam o conteúdo e ensinavam bem. As
características, freqüentemente associadas à imagem das professoras do antigo
primário e do secundário, separadamente, foram encontradas indiscriminadamente,
em todos os momentos dos períodos escolares. Por exemplo, Aquiles (educação
física) se recorda da professora de língua portuguesa do antigo ginásio:
parava escutando ela falar, ela recitar poemas. Para meu mundo de garoto de Baixada
que andava descalço e jogava pelada era um choque, eu achava lindo: o tom, a
entonação, a métrica, a impostação. O jeito de falar. O professor é um personagem
importantíssimo em qualquer lugar...Por mais que queiram trocá-lo pelo computador,
ele vai sempre existir. Porque desde a Grécia antiga, o pedagogo, que era quem
conduzia a criança para a instrução, talvez fosse mais importante para a criança que os
pais. Tudo bem que foi minha mãe quem me criou, mas foram os professores que me
ajudaram a me moldar. (Aquiles – educação física)
11
Apenas Sofia traz à memória uma professora primária que chegou a maltratá-la fisicamente, e que
ela usa como o antiexemplo da professora.
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139
Ou Tarsila, que lembra da professora de história, a professora que ela diz ter
querido ser, a “professora padrão”:
Ela era nota 10, para ensinar e para escutar a gente. Tinha dia que a aula não acontecia,
porque (...) a gente era mocinha... muita coisa que a gente não podia conversar em
casa, conversava com a Jô. Aí no outro dia, ela ia às forras porque naquele dia, a gente
quase não fez nada. Entendeu? A gente tinha uma relação com ela muito estreita. Até
hoje eu me lembro do perfume que ela usava. (...) Eu tinha uma admiração muito
especial. Eu lembro do livro de História, lembro das observações que ela fazia (...) Eu
lembro até da expressão da boca dela falando que Dom Pedro comeu galinha à
cabidela. Uma coisa muito marcante. O sorriso, o jeito de ela chegar, de sentar, de
considerar uma bobeira que a gente fazia (...) E a gente contava coisa de namorado,
podia confiar nela. (...) Aquela professora que considerava cada aluno como um. Eu
era, para ela, a Tarsila. (...) Ela tratava cada aluno como se fosse único. E eu faço isso
com meus alunos. Cada um é um. Cada aluno. Cada aluno deve ser tratado como
único. Não ser tratado como boi. Boi tem um monte lá. (Tarsila – séries iniciais)
Cabe lembrar que o tratamento individualizado foi aprendido com a tia Pilar,
como já mostrado, mas devo adicionar, ainda, a maneira como a professora pensa a
sua profissão hoje: “Trabalhar com gente é assim: eu tinha um aluno filho de um
psicanalista e tinha um filho de um lavrador que não sabia nem ler e escrever. E aí, e
agora? (...) Eu tento primeiro valorizar todo mundo. Porque aquela criança lavradora
sabe muita coisa”.
Essa escuta que valoriza a todos e, concomitantemente, voltada para cada
estudante, “como se fosse único”, foi uma prática relatada por outros professores
como sendo um efeito de disposição criado no percurso escolar e creditado como
muito efetivo no processo de ensino-aprendizagem. Tarsila e Iara viveram a
experiência enquanto estudantes da escola-da-dona-Clair e sendo alunas de Isaura.
Esta recorda de uma professora de literatura portuguesa da faculdade, que “amava seu
trabalho” e se preocupava com a escrita de cada aluno, com quem sentava
individualmente: “líamos com ela as nossas respostas erradas, ela perguntava o que a
gente tinha querido dizer quando escreveu aquilo ali, e sugeria que nós
reescrevêssemos, de maneira que a gente colocasse no papel o que a gente queria
dizer”.
Isaura reconhece o atendimento quase individualizado que ainda pode dar
(embora cada vez menos) aos alunos do Viola, e acredita que o bom desempenho dos
estudantes da escola passa pelo número reduzido de alunos por turma, especialmente
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140
no início de seu trabalho: “A gente reescrevia tudo, ia pesquisar, abria dicionário, era
aula individual. E até hoje eu ainda tenho oportunidade de fazer isso com algumas
turmas, porque elas não são muito grandes não. Aqui na cidade é impossível”.
Iara também adquiriu esta crença na importância da individualização durante o
processo de ensino-aprendizagem, tanto da ex-professora e agora colega Isaura, como
de um antigo professor de Matemática. A perspectiva coincide com as considerações
de Perrenoud (1993), para quem um dos eixos da profissão docente deveria ser
aprender a tratar do aluno no singular e a enfrentar as diferenças. Veja como a
professora pensa porque o trabalho funciona:
Você se dirigir ao aluno considerando cada um como um indivíduo mesmo. Porque
naquele dia que a gente não está muito a fim (sabe, aquele que você chega e fala no
geral?), eu vejo que não funciona. Quando eu falo de mim, de você, de você, pergunto
ao aluno pelo nome (“e você, o que acha disso, já ouviu falar nisso?”), eu vejo que eles
ficam mais presos no que está acontecendo ali no momento. (Iara - ciências)
Ainda sobre as crenças no sucesso do trabalho construídas a partir das
influências dos professores antigos, há o caso de Sofia, que viveu uma experiência
escolar muito positiva, de muito afeto, elogios e preferências:
Elas tinham essa coisa do afeto. E acreditavam em mim. A coisa da fé. Elas também
me achavam brilhante, elogiavam. Eu sempre fui muito boa em redação e muito
caprichosa. Elas pegavam minha redação, liam para a turma. Durante o primário, eu
compensava a minha timidez tentando sobressair através das notas. Eu me aplicava
muito nos estudos porque gostava de ser elogiada. E com isso as professoras gostavam
muito de mim. (Sofia)
E que atualmente tem uma postura diante de seus estudantes de construir afetos
e ter fé, acreditar que é possível. Sobre uma turma de alunos repetentes, de 2007, e,
portanto, com problemas de aprendizagem, ela conta que quando foi pegá-los nas
suas turmas, eles “pareciam que estavam indo para a forca” e diziam que estavam
com ela porque eram burros e não aprendiam. Ao que ela retrucou: “Não! Vocês
estão comigo porque foram escolhidos!” [risos]. Agora eles falam: ‘eu sou
escolhido!’.
Sofia também diz ter aprendido com tia Clair a rezar antes de iniciar as aulas e
de escrever um cabeçalho no quadro-negro, com o nome do colégio, espaço para o
nome do aluno e da professora, o local e o dia. Justifica esta prática dizendo que ela
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141
acha que deu certo porque os alunos se situam. Cabe lembrar a análise de Dubet
(2002) na qual os métodos tradicionais seguem formando o núcleo das práticas
docentes. Idéia compartilhada pela professora Tarsila: “Tinha muita coisa que eu
fazia [no início da carreira] e faço até hoje e que funciona, que eu provo que
funciona. Como por exemplo, existem atividades repetitivas...uma cópia funciona.
Um ditado é muito rico, dependendo do jeito que ele é apresentado. (...) Se ele es
dentro do contexto. Se faz sentido”.
E, ainda, por William, que costuma começar o ano e as aulas fazendo a “boa e
velha” revisão de conteúdo, como mostra o trecho da narrativa no qual ele revela
inclusive a fonte deste saber:
Ele [o estudante] sabe o que vai acontecer o ano todo. Coloco também o programa. Eu
começo o ano fazendo uma revisão. Eu tenho lá um gráfico que eu montei e começo o
ano fazendo uma revisão em cima daquele gráfico. Vejo tudo o que já vimos até chegar
no ponto em que temos que continuar. Geralmente passo um mês e meio fazendo
revisão. Também tenho o hábito de começar a aula fazendo uma revisão da aula
anterior. Nunca entro e começo a falar do nada (...) Isso acho que vem da minha
experiência escolar, porque, às vezes, eu não sabia do que o professor estava falando,
porque ele já começava a aula direto. Nem todos. O professor que fazia isso eu
conseguia me situar. Só começo a aula lembrando da anterior: “Vimos isso, isso, isso.
Vamos começar desse ponto que é onde paramos”. Ás vezes, não rola, porque tem
gente que não entendeu a aula anterior e tenho que dar a aula de novo. Mas, na maioria
das vezes, não. (William - história)
Das falas desses dois professores, Tarsila e William, pode-se depreender uma
característica comum do estilo de trabalhar da maioria dos docentes estudados: a
busca do sentido do trabalho escolar para os estudantes, uma questão que tem sido
pensada por vários estudiosos da escola e do ofício docente (Tardif & Lessard, 2005;
Dubet, 1996, 1998 e 2002; Perrenoud, 1995; Canário, 2005), que concordam com a
idéia de que a eficácia da escola na atualidade passa especialmente pela construção de
sentido positivo para o trabalho escolar de professores e estudantes.
Tal característica, segundo o depoimento de William, nasceu de sua experiência
enquanto aluno. Ao refletir sobre o assunto para o aluno no nível secundário francês
(colégios e liceus), Dubet (1998, p.30) afirma que se trata de um ator confrontado
com uma grande diversidade de orientações, muitas vezes antagônicas, e que (...) “ele
é obrigado a construir por si mesmo o sentido da experiência. Como dizem os alunos,
a grande dificuldade é se motivar, conseguir dar sentido aos estudos”.
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142
Perrenoud (1995) concorda que é inerente à forma escolar o afastamento de
uma prática do saber como recurso para resolver verdadeiros problemas e se
atingirem verdadeiros objetivos. Na escola, o saber aparece descontextualizado,
fragmentado, como um valor em si mesmo, um investimento ou um meio de estar de
acordo com as expectativas dos adultos, “codificado de acordo com uma lógica na
qual os imperativos da gestão das tarefas e dos percursos a realizar pesam bem mais
que a preocupação em se compreender o mundo” (p.213)
12
. E completa que “Para
sobreviver na escola (...), é preciso tornar-se dissidente ou dissimulador, salvaguardar
as aparências para ter paz, sabendo que ‘a vida está para além disso’, nos interstícios,
nos momentos em que escapa a vigilância, ao controlo, à ordem escolar.” (Perrenoud,
1995, p.213)
A vida pode estar também no fato de se terem professores que saibam da
grande distância existente entre os saberes ensinados aos saberes adquiridos pelos
alunos, ou seja, entre o “currículo real” e a aprendizagem efetiva. Distância que os
professores da escola-da-dona-Clair buscam vencer de diferentes maneiras,
relacionadas não somente aos efeitos de disposição, mas também aos de posição,
como acredita Perrenoud (1995), para quem o sentido não é dado, mas, sim,
construído a partir de uma cultura, de um conjunto de valores e de representações,
mas também em situação, numa interação e numa relação. Por este motivo, será do
ponto de vista dos professores que são hoje que continuarei expondo e discutindo, à
frente, as maneiras que alguns deles buscam construir um sentido para os seus
trabalhos e de seus estudantes.
Muitas foram as experiências recordadas por estes professores e vividas no
“mundo da casa” e destaquei apenas as consideradas como de maior influência nos
estilos de ensinar. Todavia, o tempo de aprendizagem do trabalho docente não se
limita ao espaço “da casa”, e inclui também a duração da vida profissional, período
em que os professores assumem posições diversas e que são fontes de conhecimento e
12
E cria a seguinte metáfora: “O saber está para os alunos como o dinheiro para os empregados
bancários: passa-lhes muito pelas mãos, mas no fim do dia enriqueceram? Ou compreenderam melhor
de onde vinha e para onde ia?” (Perrenoud, 1995, p.213)
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143
aprendizagem. Isso me leva a considerar a construção desses saberes profissionais no
decorrer da carreira profissional, ou seja, no “mundo da rua”.
6.2
No “mundo da rua”: efeitos de posição
A escola: o lugar onde os professores aprendem (Rui Canário)
A profissão é um momento de troca permanente, é o maior aprendizado que eu tenho. É a minha
faculdade. Me faltam conhecimentos teóricos, porque eu só fiz segundo grau (na época era formação
de professores). Mas o que eu aprendo trocando com meus alunos, o que eu tenho que aprender para
dar, para passar, às vezes, lapidar alguma informação que eles me trazem! (Bel – séries iniciais)
Assim como acreditam o pesquisador português e a professora Bel, a maioria
dos professores participantes deste estudo, cujas formações acadêmicas foram básicas
(ou quase), reconhece que as experiências de trabalho na escola constituem as
principais fontes de seu saber de professor, tanto no que se refere ao conteúdo a ser
exposto como à forma de fazê-lo.
Em polêmico artigo no qual faz um panorama histórico acerca dos “idiomas
pedagógicos” que tiveram impacto na formação dos educadores nos últimos 20 anos,
Lelis (2001a) verifica a mudança de uma pedagogia marcadamente conteudista para
uma ótica que aponta a epistemologia da prática (que traz os conhecimentos
incorporados e atualizados pelos professores em seus processos de vida, de trabalho e
de formação). E conclui que essa produção efetuou a “curvatura da vara” com a
antiga latitude do conhecimento científico originando-se da universidade.
Além da crítica contundente feita por Newton Duarte (2003) à tendência à
desvalorização do conhecimento científico, teórico, acadêmico, também Tardif
(2002), pelo lado da valorização da prática, alerta-nos que esta resulta em questões
difíceis, algumas das qual sigo tentando responder: qual é a natureza desse saber
específico dos práticos? O exercício da profissão docente é suficiente para garantir a
competência?
Os saberes historicamente construídos pelos professores durante o exercício da
profissão são o foco desta seção. Inicio pelas experiências docentes anteriores ao
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144
trabalho na escola-da-dona-Clair e completo com as diversas perspectivas fornecidas
pelas diferentes posições ocupadas por eles na escola, buscando explicitar sempre os
estilos de trabalhar a partir de cada uma dessas posições.
6.2.1
A força das experiências anteriores à da escola-da-dona-Clair
As fases iniciais da carreira docente têm sido objeto de diversos estudos, que
terminam por definir diferentes etapas do processo
13
. Peculiaridades à parte, as
pesquisas têm em comum o reconhecimento de que o início da carreira é uma fase
crítica, chamada não por acaso de “choque de realidade”, noção que remete ao
confronto inicial do professor com a complexa realidade do ofício. Durante este
tempo, o docente vai do idealismo à realidade, vivendo um período de exploração do
sistema normativo informal e da descoberta dos alunos reais, terminando por se
estabilizar e consolidar suas práticas.
Para Tardif (2002), as bases dos saberes profissionais parecem construir-se
entre três e cinco anos de trabalho, quando a estruturação do saber experencial é mais
forte e importante, pois os docentes vão adquirindo certezas em relação ao contexto
de trabalho, à escola ou à sala de aula. É quando confirmam a sua capacidade de
ensinar.
Podem-se depreender pelo menos duas trajetórias nos primeiros anos das
carreiras dos professores estudados: muitos trabalharam como unidocentes e/ou
multisseriados em escolas rurais; alguns exerce(ra)m funções múltiplas nas escolas,
como direção, vice-direção, coordenação de disciplina, o “extra-classe” na fala de
Aquiles. Essas experiências ofereceram-lhes sentidos de posição múltiplos e
singulares.
13
Pesquisas maiores, citadas por Tardif (2002, pp. 92-86), dividem o processo em três (Eddy, 1971) ou
duas fases (Lortie, 1975; Gold, 1996; Zeichner & Gore, 1990).
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145
Dos quinze professores estudados, dez iniciaram sua carreira em escolas rurais,
todas muito longe de suas casas e para as quais o acesso foi motivo de muitas
histórias de sacrifícios, como contam Henrique e Carmela:
Além da locomoção pela estrada de chão e a subida a pé, eu tinha muito medo de
cobra. Tinha um atalho para passar que eu morria de medo. Diziam que era bom rezar
para são Bento, botar alho no bolso. Fazia uma oração para são Bento e subia. E ouvia
histórias de pessoas que tinham matado cobra, as crianças contavam que tinham visto
cobras. Aí, me falaram que o alho no bolso tinha que ser sempre, porque o dia em que
eu não tivesse o alho a cobra ia me achar. Alho no bolso, nem pensar. Essa foi a
dificuldade toda. (Henrique – língua inglesa)
Passei muito perrengue, muito aperto: não tinha condução, minha família não tinha
carro (porque a gente vivia no aperto, no sufoco), não tinha ônibus; então, eu saía da
casa da minha mãe às cinco e meia da manhã, a pé, para chegar na escola às 7h15 mais
ou menos. Ia e voltava a pé. Emagreci 8 quilos em 30 dias! [risos] (Carmela – séries
iniciais)
Se o acesso físico a todas as escolas foi descrito como muito difícil, as
primeiras experiências “no chão da escola” foram vividas de modo diferente.
Henrique, por exemplo, completa suas lembranças anteriores dizendo assim: “Achei o
máximo, apesar de toda a dificuldade (...) Era a melhor coisa que eu podia estar
fazendo. Tudo era bom: o contato com as crianças todos os dias, aquela coisa, não
sei”. Também para Maísa foi “aquela empolgação, uma turma maravilhosa, uma
gracinha os alunos! No início a gente fica cheia de sonhos!”. E Carmela se recorda:
“A primeira turma que eu tive foi multisseriada: trabalhei com segunda, terça e
quarta-série. Mas eu tive uma turma muito, mas muito boa mesmo. Minha primeira
turma foi 10!”. Iracema, unidocente, diz: “Era eu, a merendeira e só. Tudo numa sala,
dois banheirinhos. Acho que tinham uns 20 alunos. Era igual uma casinha de boneca.
Eu adorava aquelas crianças!”.
Contudo, dentre esses professores, nem todos experimentaram a mesma
“empolgação de início”, porque dizem que não se sentiam formados para enfrentar as
condições de trabalho tão difíceis, notadamente em relação ao exercício das funções
docentes, mas também à multiplicidade dessas funções. A maioria dos professores
que leciona em escolas rurais multisseriadas e unidocentes tem que encarar o desafio
de alfabetizar - considerada pelos professores como a tarefa mais importante e
igualmente mais difícil de ser realizada, especialmente por professores iniciantes- e,
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146
ao mesmo tempo, acompanhar os estudantes pelas outras séries do ensino
fundamental.
Todavia, a carga de trabalho não parava por aí, pois eles também exerciam a
função de diretores e tinham que realizar a gestão da escola, confeccionar “mapa de
merenda, diário, organizar toda a escola, dar aula, lidar com o pai que vinha
chegando, do aluno que nunca tinha visto nada junto com outro que já estava lá”,
descreve Bel, sobre aquilo que o professor Jéferson denominou de “a inexperiência da
questão funcional da escola: a gente era jogado assim direto. Sobrou para mim o
mapa de merenda. E, pior, naquela época tinham dois. A gente, é claro, contou com a
ajuda de pessoas amigas, experientes, que ajudavam nessa parte burocrática”.
Na solução referida por Jéferson (que, cabe trazer, viveu a experiência de
professor multisseriado e unidocente), percebe-se uma das fontes comuns de
aprendizagem do trabalho do professor: o aconselhamento dos outros, dos pares e
colegas mais experientes (Ludke, 1996; Tardif, 2002). E ela foi dada por todos os
outros docentes, seja no exercício do ofício de diretor, seja em sala de aula.
Outros professores, além deste recurso, lançaram mão de pesquisas em livros
(Henrique), ou, ainda, experimentaram várias estratégias de formação dos grupos, do
uso do tempo e das técnicas. Em outros termos, submeteram-se à experiência no
cotidiano:
Menina, às vezes, eu me pergunto como a gente dá conta! Não sei! Eu gostava, ia,
trabalhava com uma merendeira muito boa. Gostava a beça! Às vezes eu fazia uma
experiência de colocar terceira e quarta juntas numa sala, e Classe de Alfabetização,
primeira e segunda-série, na outra. Depois, eu achava melhor não. Ficava com medo de
acontecer alguma coisa numa turma enquanto eu estava na outra. Então, colocava
todos numa sala só e dividia: para um eu dava exercício mimeografado, para outro
dava atividade no quadro. E a hora passava tão rápido, porque você tinha que se
desdobrar! E as turmas não eram pequenas (...) tinham quarenta e tantos alunos. Mas
eu dava conta, fiz muita amizade com os alunos e hoje já sou professora dos filhos
desses meus alunos. (Pilar - matemática)
Do mesmo modo, na história de Bel também confirma de algum modo a teoria
da epistemologia da prática, pois a mesma narra de que depois de ver tantas
atribuições e achar que não ia dar conta, pediu ajuda a uma colega mais experiente
sobre a alfabetização (“resolvi começar do começo”, lembra ela), separou os alunos
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por série e adotou uma cartilha (“como se aquilo fosse tudo que eu precisava para
formar um aluno, um leitor”). Em novembro daquele ano, “meu pára-quedas
arrebentou e bati de bunda no chão”, fala ela, ao ler um aluno escrever “Xico,
xiscondeu o xinelo. Assim mesmo: tudo com x”. E continua recordando a
experiência:
Como eu achava que não tinha dado nada certo, eu mudei tudo! Comecei a brincar de
pique bandeira, comecei a integrar a escola, porque eram duas realidades que eu havia
criado no primeiro ano, e sofri para diluir aquilo. Botei tudo numa sala só e comecei a
trabalhar dentro do meu instinto. Nem sei se usei a formação ou as colegas! Só sei que
comecei a trabalhar em cima do que eles queriam. Sabe o que um pai falou para mim?
“Dona Bel, quero que meu filho aprenda é ler, escrever e fazer conta”. Eu falei: “É por
aí que eu vou!”. Aquele depoimento daquele pai me fala alto até hoje, porque ele
queria muito e eu achei que era pouco (ler, escrever e fazer conta). Hoje é que eu vejo
a dimensão que aquilo teve, tinha e tem. Fiz disso o meu objetivo de trabalho.
Perguntei como ele queria que ele fizesse isso e ele: ‘ó, nós lida com lista de compra,
com caixa de mercadoria, com pranta. Nós tem que saber quanto vai ganhá no dia’. Até
hoje eu sigo essa linha. É o lado prático da vida. Quando o aluno traz a informação de
que matou a cobra e que saíram duas cobrinhas da barriga, a gente vai para os livros
estudar que são ovíparos, o que é isso, como fazem.... Mas eu não larguei essa linha.
Foi um pai analfabeto que me deu e vou por aí. Não fico só nessa. Incrementei levando
meu aluno a pensar, porque não posso fazer tudo sozinha com ele, porque é muita
coisa. Agora, se questiono, levo-o a raciocinar, a ver outras formas, se quero uma outra
solução dentro do 3x2, estou ganhando muito.(...) Eu aprendi uma palavra chamada
“fio-condutor”, que era uma palavra bonita. Toda a matéria que eu dava na quarta eu ia
até a alfabetização. Com o mesmo tema. Isso surgiu efeito. (Bel – séries iniciais)
A realidade desses professores faz lembrar que a aprendizagem do professor
está no fato de ele estar “condenado a reconstruir no dia a dia, à sua escala, de
maneira mais ou menos intuitiva: a) uma política de educação; b) uma ética da
relação; c) uma epistemologia dos saberes; d) uma transposição didáctica; e) um
contrato pedagógico; f) uma teoria da aprendizagem” (Perrenoud, 1993, p.178).
Ainda, a fala de Bel revela vários aspectos do estilo da professora unidocente.
Primeiro, ela mostra sua aprendizagem do ofício no próprio exercício, em novas
tentativas de realizá-lo de uma maneira nova e mais eficaz, podendo ser percebida
como uma professora que é “prática”, mas também que busca “incrementar” e “levar
os alunos a pensar”. Outro efeito de posição é de alguém que conhece e considera os
saberes acadêmicos (refiro-me à “bonita palavra” “fio-condutor”), mas que sabe usá-
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148
los na prática (lembro que a professora nunca freqüentou uma faculdade), trabalhando
em forma de projetos, “em cima do que eles queriam”, e integrando a escola.
Esta maneira de exercício do ofício docente implica em reconhecer a docência
como uma profissão complexa, em que os saberes do cotidiano são
competências que permitem articular constantemente a análise e a acção, a razão e os
valores, as finalidades e os constrangimentos da situação. Reflectir, antecipar,
planificar, avaliar, decidir no momento, no stress, na incerteza, na ambigüidade ,
navegar à vista sem perder o norte, ter o outro em conta conservando uma identidade,
são práticas, (...). Mas em todos os casos, trata-se de fazer, de empregar esquemas de
acção no sentido amplo, incluindo a decisão, a avaliação, a planificação, o julgamento,
a realização de um projecto, a negociação, a comunicação, etc (Perrenoud, 1993,
p.178)
Por último e igualmente importante, chamo a atenção também para o fato que a
professora Bel constrói um perfil de escuta para a demanda das famílias de seus
estudantes, ao receber de um pai a indicação do caminho a seguir.
O que nos faz admitir que alguns professores aprendem o seu ofício com seus
estudantes e pais, levando a cultura escolar para fora dos limites da escola e trazendo
sua cultura cotidiana (e extra-escolar) para dentro dela. Este é um efeito de posição de
outros professores estudados, como esta fala de Jéferson sobre suas experiências
iniciais revela:
Porque aquilo lá se formou uma comunidade muito integrada na escola rural de
primeira à quarta. Naquela época era assim: eles te olham com uma certa desconfiança;
depois que vêem que você é uma pessoa que tem integridade, que quer trabalhar, eles
te dão todo o apoio. Águas Claras passou a ser um segmento da minha casa. Eu
consegui fazer um grupo de alunos, assim... às vezes saía para jogar bola com as
crianças e deixava minha carteira sobre a mesa e ninguém mexia. Eu acabei com as
brigas de rua, na estrada, que eram muito comuns. Virou realmente uma parte de
minha vida. (Jéferson - história)
Cabe observar que também impregnam estas experiências docentes o
comprometimento dos professores e uma relação de afeto entre eles, estudantes e
famílias:
No final das contas eles [seus estudantes] vinham dormir aqui em casa aos finais de
semana! [risos] E quando foram embora, foram chorando e eu fiquei chorando.(...)
uma coisa é certa: eu sempre fui muito carinhosa com meus alunos, sempre muito
próxima deles! (Iara – ciências)
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Fiz amizade, nunca tive problema com pai de aluno, nem com aluno. Sempre procurei
fazer da melhor maneira possível. Eu não era professora de faltar, de chegar atrasada,
de sair cedo. Eu podia fazer isso, porque trabalhava sozinha. Mas sempre tive muita
preocupação com a responsabilidade de fazer as coisas direitinhas. (Pilar - matemática)
Aqueles docentes que, mesmo sem terem lecionado em escolas rurais,
exerce(ra)m cargos ligados à gestão escolar ou à coordenação de disciplina (história e
educação física), nomeadamente William, Aquiles e Isaura (esta também atuou como
professora de escola multisseriada), igualmente contam da “tragédia” no início da
carreira e os modos que usaram para irem se aprimorando, que não foram muito
diferentes daqueles encontrados pelos outros professores: o estudo do conteúdo a
partir do currículo escolar e a experimentação no cotidiano, também a partir da
relação com os estudantes, como é o caso de Aquiles, para quem “Você aprende
muito com os alunos. Eu me escorei muito neles. (...) E até hoje é assim: você tem
que sentir os alunos para poder trabalhar. Só que naquela época eu não tinha a
experiência de 24 anos!”.
Mas o que quero ressaltar aqui é que o aprendizado da profissão para eles
também se deu quando assumiram as posições do que Aquiles nomeou de
“extraclasse”:
Aí eu vi um outro lado do magistério que ainda não tinha visto. Normalmente, o
professor critica o extra-classe, mas este é tão necessário quanto o professor. E o
Estado não valoriza nem um nem outro. O lado burocrático, de cumprimento de
obrigações, de cobrar dos colegas. Saí da direção e fiquei 2 anos fazendo a orientação
pedagógica da disciplina. De 1983 a 1990 houve muito crescimento profissional
porque eu fui atrás de pesquisar, de ler, principalmente a parte pedagógica. (Aquiles –
educação física)
E a escola, quando passei pela direção, nós mudamos muita coisa (...), a nível
pedagógico e físico, (...) foi o período em que eu mais acreditei na educação, que as
coisas iam realmente mudar. (Isaura – língua portuguesa e literatura)
Uma formação prática que, como para o outro grupo de professores
pesquisados, envolve a vivência e o aprendizado da complexidade da instituição
escolar, da possibilidade real de recriação no cotidiano de uma política educacional,
de uma ética da relação, de uma epistemologia dos saberes, tendo que refazer
igualmente o contrato pedagógico e criar teoria(s) da aprendizagem, como analisa
Perrenoud (1993).
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150
William assumiu há quatorze anos a disciplina de história de um colégio
particular, substituindo um professor antigo e muito respeitado na cidade, e lembra de
esta experiência o fez aprender muito mais do que quando estava na faculdade:
Sem dúvida nenhuma. Na faculdade, os conhecimentos são muitos específicos. Fui
aprender coisas que nem de perto alguém mencionou na faculdade. Na faculdade você
trabalha autores, textos, mas você não tem uma panorâmica geral da História não. Eu
só tive essa panorâmica porque fui trabalhar da quinta ao terceiro ano. Pega todo o
conteúdo! Aprendi na prática mesmo, pegando os livros, metendo a cara nos livros.
(William - história)
A “visão panorâmica” a que se refere o professor foi uma perspectiva também
tida por Sofia, de uma maneira ampliada, uma vez que a professora atuou como
formadora de professores em uma escola Normal particular antes de ir trabalhar na
escola-da-dona-Clair e viver a experiência de ministrar aula de todas as disciplinas
(“menos religião”), em todos os níveis.
Acredito que tal vivência na complexidade da escola faça esses docentes serem
cada vez mais capazes de adequar as estratégias de ensino à especificidade dos seus
alunos. Um perfil generalista do ofício pode lhes dar a competência de adotarem
mecanismos de diferenciação pedagógica. E tal flexibilidade permite atender às
diferenças individuais.
Esta análise da complexidade e da flexibilidade do ofício docente, presente na
literatura sobre o magistério, fez-me lembrar da entrevista com Isaura (língua
portuguesa e literatura). Quando lhe perguntei o que de sua vida ela considerava
fundamental para ter o estilo de ensinar que tem hoje, ela respondeu sem duvidar:
Tive boas influências, bons professores (...).a seriedade de fazer o trabalho, de querer
realmente que o aluno entenda qual é o objetivo (...), a importância que aquilo vai ter
para a vida dele. (...) Não que isso tenha sido a coisa mais importante, porque seu estilo
você vai moldando de acordo com a situação, de acordo com sua experiência, de
acordo com aquilo que o ambiente te oferece. Você acaba tendo um estilo de trabalhar,
um jogo de cintura para fazer a coisa. (Isaura – língua portuguesa e literatura)
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151
6.2.2
A força da escola-da-dona-Clair
Gosto muito dessa coisa de história: eu gosto de falar que aprendi a ler no Viola, que me formei
no Viola, que trabalho no Viola, que meu filho estuda no Viola. Eu gosto desse ambiente, dessa
história, desse contexto (Iara - ciências)
Ao analisar as identidades do professores da escola-da-dona-Clair, conclui que,
naquela escola, há professores que atuam mais freqüentemente no espaço da “casa”,
outros, no da “rua”, e ainda alguns que vêem a escola com a perspectiva de quem está
no espaço do “quintal”. Essas diferentes posições condicionam o acesso a diversas
informações e diferentes efeitos de perspectiva, com pontos de vista múltiplos. E
estes parecem modificar os modos de trabalhar.
Para um primeiro grupo de professores, a escola representa uma continuação de
sua casa, dona Clair é considerada a mãe, e o estudante, um membro da família. Nesta
perspectiva, o pai apresenta-se como o Estado-patrão, omisso e responsabilizador
14
.
Outro grupo de professores não usou a comparação da escola com a casa e a
família ao se referir à escola-da-dona-Clair, mas fala de seu local de trabalho como
um espaço de convívio agradável, cujo “pessoal é espetacular”, mas “só se relaciona
naquele local”, onde “não se fala de problemas pessoais, apenas de trabalho”, nas
palavras de Aquiles. Isso me fez levantar a hipótese de que estes professores
trabalham majoritariamente como se a escola fosse o espaço do público, ou seja, do
trabalho profissional, do “mundo da rua”.
Por fim, um terceiro conjunto de professoras vive a profissão na escola-da-
dona-Clair mais como uma realização de experiências no “quintal” da casa, de um
espaço intermediário entre a casa e a rua, entre o privado e o público.
Acontece que o professor penetra em um ambiente de trabalho constituído de
interações humanas, sendo estas consideradas o núcleo do trabalho docente, e, assim,
determinam a própria natureza dos procedimentos (Tardif, 2002). Por este motivo,
balizo minha análise fundamentalmente na relação entre professores e estudantes, e
nas posições que aqueles assumem frente a estes.
14
Como desenvolvido no capítulo 5.
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152
Desnecessário dizer que estas não são categorias estáticas e que os professores
“circulam” de um espaço para o outro. Sofia, por exemplo, tem um pé na “casa” e
outro na “rua”. Busco desenvolver aqui apenas as diversas posições que ocupam
majoritariamente e como narram seu jeito de trabalhar, quando estão em um ou em
outro “mundo”.
6.2.2.1
Na escola como na “casa”
Professor tem que gostar, tem que vibrar com aquilo que seu aluno faz. Tem dia que a gente fica
igual a um bobo: ‘Ah, fulano fez isso! Foi tão engraçadinho!’ (Mariana - geografia)
No meio rural brasileiro, o espaço privado da casa, o espaço doméstico, sempre
coube à mulher, uma espécie de gestora e também executora do lar. Para dona Clair,
exercer a função docente nesses cinqüenta anos significou menos se enquadrar no
espaço público do mundo do trabalho e mais no espaço privado e íntimo das vidas
das pessoas da comunidade de Vista Alegre.
Neste período, o mundo privado da casa e o mundo público da profissão docente
têm sido representados de modo inseparável, para ela, sua filha Mariana, mas também
para a professora (e sobrinha) Sofia (todas as séries e disciplinas) e ainda para as
professoras Maria (sociologia e filosofia), Carmela (séries iniciais), Iracema (língua
portuguesa) e Pilar (matemática). Devo recordar que para esta última professora a
posição de alguém que está “em casa” foi sendo criada desde que nasceu,
literalmente. E contar de como ela se emocionou e chorou durante nossa conversa, ao
lembrar do possível afastamento da “mãe”, com a aposentadoria de dona Clair.
Essas professoras dizem que consideram seus alunos como filhos ou parentes,
sendo que sentem por eles orgulho (percebido na fala de Mariana que inicia este
segmento), carinho e até pena:
Faz um carinho, passa a mão na cabeça, valoriza ele, porque às vezes ele está
precisando é de ser valorizado. Eu acho que funciona muito o carinho, a atenção
particular, eles perceberem que você está fazendo, procurando fazer uma coisa legal,
que você não está ali preenchendo o tempo. (Maria- sociologia e filosofia)
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153
Eu gosto dos meus alunos, tenho carinho por eles, tenho pena deles, pela situação de
uma escola pública, na roça. (Iracema - língua portuguesa)
Fica, assim, explicitado que a profissão é realizada com muito afeto e emoção.
Um modo de exercício do ofício até certo ponto ligado a uma idéia do desempenho de
uma missão, como fala Maria, que se considera uma “mãe amorosa e exigente” para
seus alunos e que diz gostar de dar aulas porque “é bom trabalhar com as pessoas,
conversar, estar com as pessoas e procurar ajudá-las”.
Ou, igualmente, para Mariana, que afirma que seu objetivo é “de formar o ser
humano quase na totalidade”. Por isso, “não adianta ser um excelente professor de
matemática, saber ensinar aos alunos todas as operações, se não conversar com ele
sobre ser ético, ser cidadão”. Ou seja, oferecer uma formação moral. E religiosa.
Todas as professoras do grupo rezam antes de iniciarem as aulas.
Para essas professoras, a função da escola também é de ensinar conteúdos.
Embora a crença na “missão” muitas vezes se confunda com a função materna,
Carmela e Mariana dizem ter cuidado para tentar separar as funções:
Meu dia começa com “Bom dia!”, porque “bom dia” levanta todo mundo! Cara feia na
minha sala não existe. Se eu tenho algum tipo de problema, isso não chega lá na
escola; aliás, acho que nem sai daqui da minha porta.
(Carmela – séries iniciais)
Mamãe
15
sempre falou isso e acho que ela tem razão: você procurar, na escola, não
levar problema de casa. Apesar de ser um ser humano, se você vai para a escola, seu
aluno não tem nada a ver se você brigou com seu marido, se brigou com seu filho, ou
que você está sem dinheiro, se está ganhando pouco. Ele não tem nada com isso não,
coitado. Ele está ali para aprender. Eu acho que ser bom professor é procurar não levar
os problemas de casa. (Mariana - geografia)
Mas logo a seguir, Mariana confessa que
a gente é ser humano, mas, quando pensa que está fazendo isso, tem que dar uma
segurada, dar uma avaliada. E também sou assim: quando eu brigo demais, eu peço
desculpas (‘ih, gente, fui mal. Hoje não estou muito bem!’). Ou aviso logo: ‘gente,
hoje estou meio aborrecida! Não esquentem muito minha cabeça não!’. Porque a gente
se sabe humano e nem sempre chega lá ‘livre, leve e solta’. (Mariana - geografia)
15
Lembro que a mãe é a dona Clair.
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154
Deste modo, apesar de estas professoras serem uma espécie de encarnação da
instituição escolar, enquanto imbricação escola-família, exercendo as funções de
homogeneizar e tratar a todos os “filhos” igualmente, os modos como as docentes se
relacionam e se comunicam pedagogicamente não podem ser separados de suas
personalidades.
Em outras palavras, tais atitudes maternais desse conjunto de professoras diante
do aluno e de sua profissão impactam o contrato pedagógico que estabelecem com
seus estudantes, o denominado clima da sala de aula por Perrenoud (2001), para quem
uma maior ou menor adesão dos alunos às tarefas propostas, o uso do tempo, a
tomada da palavra, em resumo, a construção de um clima propício às aprendizagens
depende diretamente do tipo de comunicação instaurada em sala de aula.
E, a fim de cumprirem sua missão com este grupo de pessoas com as quais
estão tão vinculadas socialmente, as professoras criam situações didáticas que vão
desde o uso majoritário de computadores e da Internet até um estilo de aula mais
tradicional. Porque, frente a este modo de se relacionarem com seus estudantes e
apesar de terem um estoque homogêneo de identidades e valores (um ou mais papéis
e uma função na instituição), elas criam suas próprias estratégias.
Para Carmela, o exercício do ofício demanda, além do respeito ao aluno,
planejamento e flexibilidade:
Não adianta querer impor se não é aquilo que eles estão querendo. Às vezes a gente
resolve levar um filme em que eu vou trabalhar isso, assim, assim, assado. Aí, depois
de assistir ao filme, não era aquilo que as crianças estavam esperando ver. O que você
faz? Você pega aquele filme sobre o qual você havia construído todo o seu
planejamento, dá uma pincelada e decide deixar para uma outra oportunidade, para
quando o interesse retornar para aquilo ali. Parte muito do interesse. Se o aluno não
estiver interessado no que você fez, não dá. (Carmela – séries iniciais)
Esta importância do interesse do aluno também é valorizada por Maria, que
busca trabalhar com um conteúdo próximo, “nada distante que ele tenha que decorar,
fazer prova e nunca mais. Pelo menos eu tento fazer esse elo de ligação, tento trazer
para o dia a dia deles. Esbarrar com aquela realidade e parar para refletir”. E tudo
acontece no laboratório de informática, sua sala de aula atualmente:
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Eu não consigo mais trabalhar da maneira que eu trabalhava antes. (...) Eu acho
interessante para eles. (...) Eles vão ler sites, são obrigados a ler de uma forma
diferente, manuseando o computador, é uma leitura diferente. E têm que jogar em outra
linguagem, por exemplo, em powerpoint. O caminho para chegarem onde eu quero é
um aprendizado. (...) é um recurso a mais. Mas que a gente usa com excelência. Mas
não deixa de abrir mão dos outros recursos, entendeu? A gente traz a revista para
trabalhar no computador. (...) A gente procura abranger ao máximo (...) Você amplia o
universo. É uma ida sem volta. Eles têm que ser inseridos nessa era digital, melhor
ainda na escola. Eu sinto que eles gostam, sabe? Eles ficam encantados. A gente vai
mostrando os recursos e eles ficam super interessados, entendeu? Acho muito bom,
muito bom! Melhorou muito a qualidade do trabalho da gente. (...) Eu não descanso
um minuto! Porque eu estou ensinando como eles vão fazer o que eu quero. Eu abro as
páginas, dou os caminhos para eles (já deixo tudo engatilhado. É só eles darem um
clique) e dou atendimento individual, ou em dupla. Computador por computador, o
tempo todo. Eu vou dando dicas (‘Faz assim. O que você acha? Está errado!’). Na hora
de escrever eles têm muitos erros. É o tempo todo junto, em cima, com eles. Não dá
para liberar não. Porque é o tipo de trabalho que, como eu procuro ampliar, a gente
sempre cobra mais um pouco. Aquele que foi pode sempre ir mais além. Sem conteúdo
fechado. (Maria – sociologia e filosofia)
Maria procura, assim, ampliar o espaço da sala de aula para o ciberespaço, este
espaço e tempo nem sempre possível de ser claramente definido. Ao adotar essa nova
maneira de trabalhar, percebe que propicia a seus estudantes a oportunidade de “ler
de uma forma diferente”. De fato, a linguagem audiovisual é uma perfeita mixagem
entre sons, imagens, movimentos. Nela, segundo Pierre Levy, misturam-se as funções
de leitura e escrita, pois, com o hipertexto, “o navegador participa da redação do texto
que lê” (apud Kensky, 2000, p.134), de modo original: “uma ida sem volta”, nas
palavras da professora Maria. E, nas palavras da especialista: “Linguagem muito
distante do discurso linear e seqüenciado presente nos textos escolares, na
organização didática das aulas, na lógica que preside a organização das disciplinas e
da maioria das atividades vivenciadas no espaço escolar” (Kenski, 2000, p.131).
Outra professora especialista em informática escolar é Sofia, que também faz
uso sistemático da sala de computadores da escola. Mas o que ela acha que realmente
funciona no processo ensino-aprendizagem é procurar sempre trabalhar o aluno nas
três vertentes: a sensibilização, o raciocínio lógico e a expressão. Em suas palavras:
(...) a sensibilização, que é você sensibilizá-lo, torná-lo uma pessoa receptiva, capaz de
observar tudo, de aumentar a capacidade de absorver as coisas todas do mundo; em
segundo lugar, o raciocínio lógico, que é ele ter pensamento, fazer ele indagar (...) É
perguntar, não é buscar respostas, mas perguntar: “quem sou eu?” “para onde vou?”. É
o pensamento, fazer com que o aluno saiba pensar, da própria cabeça, questionar os
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valores, a formação dele como pessoa; e, por último, expressão, que é você se
comunicar com o outro, mostrar o que aprendeu, você se doar. Toda a ação sua é você
fazendo alguma coisa com o que você conhece, lidando com seu próprio
conhecimento. (Sofia)
Por sua vez, Mariana diz buscar variar constantemente, mas admite não
conseguir ficar longe do tradicional (“até porque os alunos não gostam!”). Alterna
leitura e exercícios em livros, discussão com mapas, DVDs, seminários em que os
alunos estudam e apresentam o assunto, pesquisas na Internet. Ela define assim o seu
jeito de ser e de trabalhar:
Eu não sou muito carrasca, muito exigente demais. Acho que ‘cada um tem seu cada
um’, e eu procuro respeitar isso no aluno. Mas eu tenho pavio meio curto. Tem hora
que eu brinco sem necessidade e depois me arrependo. (...) depois, eu descasco. (...) Eu
não faço nada de extraordinário dentro daquilo que eu tenho que trabalhar. Mas eu
procuro ser bem organizada na sala, dinâmica naquilo que eu faço. (...) Eu não sou
muito de enrolar. Tem gente que fica com um assunto toda vida. Eu sou prática nessas
coisas. Minhas aulas têm muita praticidade. (...) Muito dentro dos parâmetros normais.
Não faço nada diferente não! Todo mundo sentadinho, normal. Faço, às vezes, umas
aulas em círculo. (Mariana - geografia)
As irmãs Pilar (matemática) e Iracema (língua portuguesa), que estudaram
juntas toda a vida, descrevem seus estilos de trabalhar como tradicionais: usam
quadro negro, cópias, exercícios mimeografados, além de seguirem um livro didático
e gostarem de silêncio e concentração. A diferença pode ser observada apenas na
relação com os estudantes, pois, em que pese o fato de que ambas os considerem
alguém da família, Iracema se considera uma professora “muito exigente”, “brava”,
“meio tradicional”, e que acredita ser vista por seus estudantes como uma professora
“muito chata”, “que não gosta de barulho”. Confessa, ainda, ameaçar os estudantes
com castigos, como a cópia. Sua irmã Pilar, por sua vez, se considera uma “mãe”
mais tranqüila, calma, pontual e séria. Gosta de explicar a matéria no quadro-negro
antes de chegar ao livro. Vai introduzindo o assunto novo e escrevendo exercícios no
quadro aos poucos, sempre procurando “fazer tudo com eles”. Ela acredita na
necessidade de mostrar aos estudantes a importância do aprendizado da matemática,
“mesmo para quem vai fazer uma coisa muito simples, como tirar uma carteira de
motorista”. Uma “mãe” que, diante de estudantes de escola rural (alguns vindos de
locais mais distantes, para os quais tudo é novo), diz que “costuma explicar sobre as
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disciplinas que vão ter, que são vários professores, pessoas diferentes, que eles têm
que aprender a conviver com cada um e seu jeito de ser, de trabalhar, de cobrar”.
Postas essas práticas docentes, uma das conclusões a que se pode chegar a
respeito dos tipos de ação dessas professoras é que trata-se de uma “esfera de ações
(Tardif, 2002): elas agem conforme as normas, conforme os afetos, conforme os
papéis, conforme os fatos. Em outras palavras, as posições estão pautadas nas
tradições do ofício, nas afeições, nos comportamentos de seus alunos, na interação
com eles. Neste sentido, ainda segundo este autor, a personalidade do professor passa
a ser um elemento evidente de seu trabalho: “cada um tem seu cada um”, como disse
a professora Mariana.
6.2.2.2
Na escola como na “rua”
Eu sou rigoroso porque eu não acho que meu aluno seja um coitadinho, mas alguém que está ali para
aprender. (Jéferson - História)
A fala acima do professor é ilustrativa do modo predominante como este grupo
concebe os seus alunos: eles são aprendentes na escola e trabalhadores em casa, a
maioria, filhos de lavradores. E são encarados mais como alunos e menos como
crianças ou adolescentes. E tidos como “respeitosos, com uma educação mais
religiosa e controlada” típica da criança de roça (Aquiles – educação física),
“disciplinados” (Henrique – língua inglesa), “obedientes e muito interessados”
(Isaura - língua portuguesa e literatura brasileira).
Neste grupo estão todos os homens participantes da pesquisa (William, Aquiles,
Jéferson e Henrique) e duas mulheres (Isaura e Maísa), além de Sofia
16
. Eles
assumem uma perspectiva de ser a escola-da-dona-Clair um local de trabalho,
majoritariamente, ainda que acolhedor e amigável. Se o espaço privado está associado
16
A lógica do exercício da profissão de Sofia é a mais polissêmica. Embora ela assuma uma posição
clara de escola como “casa” (foi ela quem cunhou a expressão “escola-família”), ela faz a crítica à
gestão e ao sistema, e concebe seus alunos como aprendentes “brilhantes”.
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158
ao individual, à intimidade, à afetividade, à casa, do mesmo modo, em oposição, o
público tem a ver com os negócios, com a liberdade, com a rua (DaMatta, 1997).
17
O mundo público é entendido como o próprio mundo, a rua. O espaço público é
o social. E a escola, como instituição moderna, é o lugar organizado e especialmente
preparado para realização do processo de aprendizagem das crianças e adolescentes.
Ela tem a função primordial de socializar e instruir, de oferecer uma educação distinta
da familiar e comunitária (Canário, 2005; Tardif & Lessard, 2005).
Para esse grupo de professores que se posicionam mais da perspectiva “da rua”,
dona Clair é representada como uma senhora “maravilhosa”, “admirável”, “calma”,
mas, antes e acima de tudo, uma diretora, que “tem dificuldade de se impor” e “trata
os professores com diferenças”, que “se recolhe na parte burocrática”, que “parece
cansada” e “desanimada”, e que “não está tão mais presente como antes”. Uma
gestora, uma profissional.
Dentro deste ponto de vista, o ofício docente estaria mais ligado a um
desempenho de função e adesão a valores e a papéis específicos. O trabalho de
ensinar conteúdos, de moralizar e de promover a socialização escolar é feito através
de um sistema de práticas codificado (exercícios, repetições, deveres, provas),
endereçado à coletividade e com caráter impessoal e regulamentar, a denominada
“forma escolar” (Canário, 2005). E tais práticas prescrevem diversas atitudes e
comportamentos tanto dos estudantes como dos professores.
Esse grupo docente acredita (e realiza seu ofício) no planejamento, na
disciplina e no exercício da autoridade, características básicas para a existência da
sala de aula, “um dos ambientes sociais mais controlados de todos” (Tardif &
Lessard, 2005, p.64). Aquiles (educação física) considera o planejamento o item mais
importante de um trabalho docente bem sucedido: “você tem que saber quando
começa, para onde vai e como chegar. Eu tenho planejamento”, por ano, bimestre e
mês.
17
Lembro que tais condições não são exclusivas desses espaços e que tudo é relacional. Deste modo,
embora concebam a escola como um espaço do trabalho (do público, em princípio, portanto, no
“mundo da rua”), por outro lado eles sentem este local como familiar, de “brincadeiras entre os
colegas” onde há “professores espetaculares e sérios”, “comprometidos”, “integrados” etc. Ou seja,
uma vivência na perspectiva do “mundo da casa”. Para efeito desta análise, foco minha interpretação
no que é mais determinante na visão do grupo.
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159
Idéia que coincide com uma reflexão de Perrenoud (1993), para quem o
planejamento docente tem como objetivos primeiros não perder tempo e avançar no
programa, e manter a ordem, favorável à comunicação e ao trabalho. Aquiles procura
também
mostrar que há regras, um ritual, uma hierarquia, uma técnica a ser aprendida,
exigência, cobrança. Não tenho 100% de sucesso. Educação é assim mesmo. Mas a
grande maioria sabe do ritual, da escolha do time, da prova escrita, que é com pesquisa
(brinco com eles com aquela história de quem não cola não sai da escola é verdade),
porque ao pesquisar eles estão aprendendo. (Aquiles – educação física)
Jéferson precisa de silêncio para dar aula de história (caso contrário tem dor de
cabeça) e diz que se o aluno quiser bagunçar, ele não consegue porque “ele o tira do
sério fácil”. Além disso, tem um planejamento anual de avaliação, descrito assim:
Eu faço prova por objetivos formulados por mim. A correção é mais difícil. Eu
cheguei ao cúmulo de fazer um mapão com todos os objetivos que o aluno acertou ou
errou e, ao final do ano, eu fazia uma prova individual de recuperação anual. Coisa de
louco, não é? Depois, fazia uma prova só, mas pesquisava no mapão de objetivos
bimestrais e liberava o aluno de responder às questões cujos objetivos ele já tinha
atingido. (Jéferson – história)
Uma vez que reconhece que a língua estrangeira é muito diferente para seus
estudantes do meio rural, Henrique tem um ritual metódico de apresentação de textos
em inglês: geralmente ele faz uma contextualização (para “buscar as informações que
eles têm”), depois uma pré-leitura (com a “identificação de palavras transparentes”), a
partir de quando os estudantes discutem o tema com os colegas e terminam o trabalho
com uma fase escrita. Já a gramática normativa é “trabalhada do modo tradicional”,
ou seja, uma apresentação seguida de exercícios individuais de fixação, com
autonomia, segundo ele: o aluno deve “mostrar para ele mesmo que está sabendo
fazer, sem ajuda de ninguém”.
Importante destacar que uma especificidade da instituição escolar é a presença
de um docente para ensinar a mesma coisa no mesmo tempo e da mesma forma a um
grupo de alunos (Canário, 2005; Tardif & Lessard, 2005). Henrique parece cumprir
essa função instituída, pois ressalta a sua presença constante para mediar a
aprendizagem: “durante as aulas não sou de sair de sala toda hora, pois quero que o
aluno possa contar comigo e não levar dúvida para casa. ‘Vamos entender agora o
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160
que estamos fazendo’. Minhas aulas rendem muito”, o que significa que elas
“correspondem ao planejamento, feito uma vez por semana”, para todas as turmas da
escola-da-dona-Clair.
Outra atitude que reflete o estilo de trabalhar comum ao grupo é a crença na
seriedade e no cumprimento da palavra dada. Esses professores dizem que combinam
no início do ano regras de disciplina e de avaliação, e que vão cumprindo item por
item, sem hesitação. Uma prática que se alinha ao fato que, historicamente, os
professores tendiam a manter uma autoridade de modo a lhes garantir o poder de
impedir a diversidade, a possível contestação, o conflito e a incerteza.
Como as relações entre as gerações mudaram e trouxeram uma diversificação
de valores, formas de viver e de pensar na família e na escola, o professor tem cada
vez mais dificuldades de dispor de meios de coerção e se vê obrigado a conviver com
incertezas e dúvidas (Perrenoud, 1993 e 2001; Dubet, 2002).
O fenômeno do “mal-estar docente”
18
aparece em maior ou menor grau entre
todos professores deste grupo (menos na narrativa de Henrique). Lembro que ele se
manifesta como uma crise do poder do professor, além de uma visão social negativa
da profissão, uma desvalorização do estatuto social (Nóvoa, 1995a). Na verdade, uma
crise de identidade profissional, expressa deste modo:
(...).Eu acreditava realmente que as coisas podiam melhorar, que alguém tinha que
levar a educação a sério. Mas estou vendo que cada governo que passa as coisas não
mudam, mas, pelo contrário, pioram. (...)Estou desestimulada? Estou! Gostaria de estar
fora da sala de aula? Gostaria! Não pelo aluno e pela função de ensinar, mas pela
engrenagem toda que temos vivido na escola: desvalorização, falta de material, de
incentivo, de reciclagem, de tudo que a gente gostaria de poder fazer e não tem
condições de fazer, até porque o salário não permite. (Isaura – língua portuguesa e
literatura)
Você tem que ser responsável por tudo: educação ambiental, sexual, tem que falar
sobre drogas, educação de trânsito. Tudo é você! Tudo é a escola! A escola é que tem
que cumprir esse papel. E a principal função, que é de ensinar o conteúdo, está se
perdendo, porque a gente fica com pouco tempo para isso. (Maísa – artes)
18
Trago no capítulo 2 que o fenômeno é definido como “o conjunto de reacções dos professores como
grupo profissional desajustado à mudança social.” (Esteve, 1995, p.97). Entretanto, mais do que apenas
reações, ele pode ser reconhecido como um processo de crise identitária dos professores.
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161
Maísa se refere ao excesso de culpabilização e complexificação de tarefas do
professor, a que se soma o fato de que estão tirando o direito de ele exercer sua
autoridade, pois, segundo a professora, ela “recebe alunos totalmente sem educação e
não pode fazer nada, (...) não pode mais tirar o aluno de sala de aula”. E a professora
Maísa continua: “eu acho isso ruim, porque nós não estamos preparados para isso. A
minha escola não me preparou para isso. E, ao mesmo tempo, eles jogam as coisas
assim e a gente tem que dar conta disso. E se não vai bem a culpa é do professor”.
Esta última opinião é compartilhada por Perrenoud (1993), para quem quase todas as
críticas ao sistema escolar toma o professor e sua formação como bode expiatório,
esta considerada curta, inadequada, inadaptada, insuficiente, antiquada.
Para a professora Maísa, o problema aumenta pelo fato de artes ser uma matéria
que não reprova, o que faz com que ela tenha que mostrar a importância do estudo,
pois, caso contrário, “os estudantes não fazem nada, acham que estão na hora do
recreio”. Ela diz que alterna momentos de teoria sobre as artes em geral com
atividades práticas, quando os alunos têm que produzir uma “obra”.
Segundo a professora Sofia, os momentos de desencanto com a profissãoo
muitos e os professores “todo tempo têm que estar engolindo sapo e fazendo de tudo
para não serem afetados e continuar nossa luta”. No âmbito interno, Sofia reclama da
classe docente, já “que cada um quer se livrar o melhor que puder para sobreviver”,
“fica querendo dar um jeitinho na vida”, sem pensar no coletivo, o que enfraquece a
luta por melhores condições de trabalho.
Vale ressaltar que é dentro deste grupo de professores que se posiciona mais
freqüentemente no “mundo da rua” que se encontra a percepção de que estão frente a
problemas inéditos e de difícil solução, com a chegada de novos e heterogêneos
públicos, como apresentam Tedesco e Fanfani (2002). Ainda que os estudantes da
escola-da-dona Clair sejam considerados os mais interessados e disciplinados que
têm
19
, esses professores percebem que eles são cada vez menores e em mais
quantidade por turma (Aquiles); mais “ligados e por dentro das coisas” (Henrique);
cada vez menos interessados em aprender (Isaura, Sofia, Jéferson e Maísa).
19
Como apresentado no capítulo 5.
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162
Sofia lembra que também o que muito afeta negativamente o trabalho docente é
a falta de sentido e praticidade para os estudantes dos conteúdos trabalhados pela
escola, como ficar por quatro horas sentado diante de um professor, ouvindo falar
sobre a Europa. Segundo ela, o aluno perde a motivação e tende a estudar para fazer
uma boa prova e passar de ano. Lembro que tal constatação vai ao encontro da idéia
de Canário (2005) da falta de sentido e de legitimidade da instituição escolar na
atualidade. Para minimizar essa realidade, ela gosta de trabalhar em projetos e trazer
novidades, para aumentar a curiosidade, embora acredite que “para a criança do meio
rural qualquer coisa é o máximo”.
Uma outra saída que esses profissionais da sala de aula buscam é revelar o
sentido para a sua atividade junto aos alunos, um critério de eficácia para o trabalho
escolar de professores e estudantes, segundo Canário (2005). Ao dar aulas de língua
portuguesa e literatura, Isaura diz que procura fazer o aluno “ter consciência de que
ele está estudando a sua própria língua” e que, “tendo domínio, se ele quiser, vai ser
um profissional bem sucedido”. Em outras palavras, trata-se de ter “uma preocupação
de fazer com que o professor atenda não só a língua, a matéria em si, mas que ele
ajude o estudante a se formar para a vida mesmo”. O segredo, continua ela, é que
“quando você mostra para o aluno o por quê daquilo ali que ele está aprendendo, a
aplicabilidade que aquilo vai ter na vida dele, ele vai ter mais vontade de aprender,
ele dá mais importância àquilo que ele está aprendendo”
20
.
Para Perrenoud (1995), dentro do sistema educacional obrigatório, com poucas
possibilidades de escolha, no qual os alunos estão fadados a utilizarem estratégias de
“atores dominados”, a quem se impõem muitas e impressionantes “coisas absurdas,
incompreensíveis ou penosas que não correspondem, de uma maneira geral, aos
desejos do momento”, o professor pode tentar facilitar este trabalho, concedendo ao
20
Por isso, Isaura, ao abordar um novo conteúdo, procura começar por alguma coisa fácil de os
estudantes entenderem, usando exemplos próximos da realidade deles. Deste modo, se tiver que
construir uma frase ou oração para ensinar determinado assunto, ela costuma usar os nomes dos
alunos, uma situação que aconteceu na escola, alguma coisa vivida por eles. Dali, ela parte para a
explicação da matéria em si, de modo simplificado, geralmente no quadro, por falta de outros recursos
(o que lamenta profundamente). Não gosta de ficar lendo direto em livro didático, porque acha que não
se aprende assim, embora o use como apoio, já que aproveita os textos cujas xeroxes seriam caríssimas
e, portanto, inviáveis.
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163
aluno um “espaço de iniciativa, de autonomia, de negociação, de indecisão, de sonho”
(Perrenoud, 1995, p.191).
A atividade de estímulo à autonomia e à iniciativa é uma forte característica da
prática docente de William (história), que costuma “abrir para o debate”, para o qual
pede que os alunos do ensino médio leiam um texto de antemão. Isso porque acredita
que, para aprender, o aluno “tem que saber relacionar o que ele está vivendo agora
com coisas que já aconteceram no passado. (...) E através dessa relação eu gosto que
o aluno reflita. Fico buscando a participação dele na aula, querendo que eles falem,
(...). Eu preparo, entro e relaciono” (William – história). E, a fim de atingir o objetivo
de explicar o sentido da História, ele completa dizendo: “Eu tento entrar no mundo
dos alunos, (...) busco relacionar, porque a televisão está muito presente na vida deles.
Passou na televisão, eu procuro jogar na aula também, para fazê-los relacionar com
alguma coisa que estou ensinando”
21
.
Fica entendido, assim, que embora haja uma realidade da estrutura
organizacional que é estável (e até certo ponto externa ao professor) em relação à
“natureza” da ordem na sala de aula, o que impõe uma prática mais rigorosa e
planejada (do “mundo da rua”), há também uma outra realidade sistemática do
docente, que exige dele uma intervenção constante, e que, de certo modo, está mais
ligada à pessoa do professor (do “mundo da casa”).
Nesta posição, esses professores atuam tanto numa lógica do ator que
desempenha papéis, como na lógica do sujeito, que possui reflexividade, que é capaz
de fazer a crítica e perceber as mutações da instituição escolar e de seu trabalho,
sendo este também uma realização pessoal (Dubet, 2002).
Do ponto de vista da subjetividade dos atores em atividade, o “professor de
profissão” não somente usa conhecimento produzido por outros, mas é alguém que
assume sua prática a partir dos significados que ele mesmo constrói e mobiliza no
fazer cotidiano (Tardif, 2002). Desta maneira, em que pese o fato de ser um professor
rigoroso, que busca seguir um estatuto de quem “quer uma escola pública de
21
Para entrar no mundo dos alunos, William diz ver “Malhação (enquanto anda em uma esteira de
caminhada que eu preciso fazer): “Na aula, eu posso puxar um assunto que estava lá e eles viram e
jogar aquilo para a aula. Relacionar. Não vejo sempre, mas vejo novela também”.
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qualidade”, Jéferson (história) tenta criar um “ambiente de concórdia e brincadeira”,
porque acredita que está “formando seres eternos, para quem a vida tem um sentido
especial” e que, por isso, têm que ser sérios e saber pesquisar a história (como ele
próprio). Esta função doente faz lembrar de outra, esta sugerida por Gilberto Freyre,
ainda em 1957, que ao se dirigir aos professores rurais nordestinos afirmou que
“Tanto quanto o padre, eles têm que lidar com almas” (Freyre, 1957, p. 43).
Assim também, apesar de valorizar o planejamento, Aquiles reconhece da
mesma forma que “a aula nunca é a mesma. Só o conteúdo. Não há estabilidade”. Por
isso, adota um estilo de ensinar teatral, com as seguintes palavras: “eles são a minha
platéia!”
22
. Este estilo também é adotado por Sofia, para quem o professor tem
sempre que encarnar um personagem, do autoritário ao afetuoso. A personagem Sofia
(adotada para este estudo) foi definida assim:
(...) muito de minha mãe e outro tanto de mim mesma. É doce, mas sabe colocar
limites. É criativa, (...) tem sempre uma atitude ecológica, pois não tolera desperdício.
Ama seus alunos, se desdobra para fazer o melhor (...). Tem preocupação com o social,
sem cair na cilada do assistencialismo ou demagogia. Respeita seus alunos (...). Enfim,
reconhece que para educar é preciso amor, fé e confiança (Sofia).
Volto a lembrar da “esfera de ações” proposta por Tardif (2002), a partir de
quando acredito que os professores desse grupo têm majoritariamente uma prática
tradicional, normativa, instrucional e estratégica. Mas também vivem seu trabalho
como uma atividade dramatúrgica, comunicacional, expressiva de si mesmos e
afetiva. Mais no “mundo da rua”, mas também no “mundo da casa”.
6.2.2.3
Na escola como no “quintal” da casa
Eu gosto de livro, porque acho que o aluno precisa ver como o autor explica, como aquilo vem
registrado, além do eu tento passar para ele e do que ele passa para mim. Porque o pessoal da
roça sabe muita coisa! (Iara – ciências)
22
Lembro que a justificativa para o nome escolhido pelo professor nesta pesquisa é porque ele
significa “o que quer ser lembrado por gerações e gerações, apesar da morte”.
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165
Eles [os estudantes] têm muitos conhecimentos que o povo da cidade maior banaliza. E são
coisas com que eu me identifico. (Bel – séries iniciais)
Uma atividade apontada como inerente à identidade docente é a ação mediadora
no processo ensino-aprendizagem, quando o professor é tomado como um ator social
que circula entre vários contextos socioculturais e que estabelece comunicação entre
diferentes grupos sociais (Loureiro, 2004; Arroyo, 2007; Pimenta, 1997). Como já
trouxe no capítulo anterior, em uma escola situada em meio rural, como a escola-da-
dona-Clair (“espaço para se comunicar com o mundo”, segundo o professor William,
de história), a grande ponte construída pelos professores é entre a cultura social rural
de referência dos estudantes e a cultura escolar, “urbana” e estranha ao cotidiano dos
estudantes, mas valorizada como a que deve ser por eles conhecida e interiorizada,
como apontam pesquisas sobre a escola rural.
Retomo a questão porque, ao contrário, para um último grupo de professoras da
escola-da-dona Clair, nomeadamente Bel (séries iniciais), Tarsila (séries iniciais) e
Iara (ciências), essa ponte parece edificada entre duas culturas tidas por elas como
equânimes, o que fica explicitado nas falas que abrem esta seção, e que não aparecem
nas narrativas do outros professores (embora alguns até dizem gostar deste trabalho,
pelo “contato com a natureza”).
Do ponto de vista dessas professoras, o exercício do ofício parece implicado
com uma relação próxima e íntima com seus estudantes, de muitas trocas de
experiência. Sabemos que parte importante do sucesso escolar vem do domínio da
distância cultural, o que acontece via comunicação (verbal ou não-verbal), aceitação
do outro, afetividade, afinidades de gostos e de modo de vida, a fim de que o aluno
encontre seu lugar na aula e entre em contato com o professor (Perrenoud, 1993).
Desta forma, embora reconheça que seus alunos são “pessoas humildes, que,
por uma questão cultural, costumam baixar a cabeça”, Tarsila (séries iniciais) também
acredita que todos eles devam ser valorizados e respeitados em suas particularidades,
porque todos são diferentes e todos sabem algo, desde o filho do lavrador até o filho
do médico:
Tem até uma história de Chico Bento que fala isso: a professora sabia tudo, tudo, tudo.
E ele achava que ele não sabia nada. Só tirava zero, zero, zero. Quando a professora
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começou a perguntar para ele sobre galinha, horta, essas coisas, ele só tirava 100, 100,
100. Claro, era o que ele tinha para dar. E a professora do Chico Bento naquela história
valorizou isso. Eu lembro disso direitinho, eu recortei e guardei (Tarsila – séries
iniciais).
Idéia semelhante a de Gilberto Freyre que (no já citado discurso) afirma:
Os velhos, as mulheres, os analfabetos rurais, todos guardam conhecimentos folclóricos
sobre aspectos regionais de natureza e de vida, que, quando gerais, antigos e persistentes,
nunca devem ser sistematicamente desprezados, mas cuidadosamente examinados por
agrônomos, zootécnicos, veterinários, médicos, professores rurais, farmacêuticos,
sacerdotes que cheguem a um meio rural, com a sua ciência em flor adquirida em
academias ou escolas apenas urbanas (Freyre, 1957, p. 44).
Como já colocado, as representações sobre a escola desta professora e de sua
irmã Iara apresentam-se carregadas de familiaridade, uma vez que ambas são ex-
alunas e a escola era o local de trabalho com que elas sonhavam desde o curso
Normal
23
. Tarsila foi quem criou a categoria “quintal”, um lugar intermediário entre
“a casa”, e “a rua”, onde acontecem situações que fogem do controle da “mãe” e do
“pai” e que são ligadas ao prazer, ao lazer e ao encontro:
Olha, a escola era uma coisa interessante. Não sei como a gente conseguiu aprender
(...) minha tia morava perto da escola e você sabe que eu saía da sala de aula, ia à casa
de minha tia, com minha prima, fazia suco, cozinhávamos ovo, comíamos e
voltávamos para a escola? [risos]. (...) íamos na casa da outra ver a casinha de boneca
dela e voltar (...) A escola era o point: era na escola que eu encontrava as pessoas, na
escola que a gente via de quem a gente gostava na época(...) Brincava de tudo quanto é
coisa. Não tinha eletricidade: nós nem a escola tinha geladeira. Às vezes, a gente
levava suco em garrafa, fazia um buraco no chão e fechava. Nem sei se refrescava, mas
a gente colocava. Depois desenterrava na hora do recreio. Era muito bom, muito
bom![risos] (Iara – ciências)
(...) Eu morava em frente à escola. Aí no dia que acabou a obra, eu levei a Isabela [a
filha mais velha] lá, as merendeiras lavando, eu fui ajudar a lavar, porque ia começar a
usar o prédio. Todo mundo descalço, com a calça arregaçada. Eu tirei um retrato da
Isabela brincando naquela água, entendeu? É por isso que é bom. Aquela escola é
como se fosse minha também. (Tarsila – séries iniciais)
As narrativas apontam para a existência de um espaço da sociabilidade, a
“forma lúdica da socialização”, “o mais puro, transparente, atraente, tipo de
interação”, forma esta que depende totalmente das personalidades entre as quais
23 Nas palavras de Iara: “tudo o que eu queria era vir! Eu sonhava, no segundo grau, em dar aula
naquela escola. Para mim, a referência de escola que funcionava com mais alunos, a mais interessante,
no centro, era essa. Queria dar aula aqui”.
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ocorre (Simmel, 1978, p.169). E que na escola-da-dona-Clair acontece explícita,
majoritária e diariamente durante o recreio e em algumas aulas, no pátio.
Esta última professora conta sobre suas atividades docentes nesse local,
atualmente:
Eles [os estudantes] gostam de ir lá para fora, brincar um pouco, pegar sol. Essa
semana a gente fez bolha de sabão. Levamos detergente, cano, copo. Brincaram... (..),
depois, cada um escreveu sobre aquilo. Fizeram desenho e tal. Aí, por um acaso, (...)
abro um livro e está um poema de Cecília Meireles, ‘As bolhas’. Mais um recurso. Aí
estudamos o lh, entendeu? Aparece. Engraçado, toma curso!”. (Tarsila -séries iniciais)
Vale destacar que aquilo que “toma curso” é mais um projeto de trabalho da
professora, que apresenta um modo de exercer o ofício que se aproxima da chamada
pedagogia ativa. O que aconteceu apesar da resistência inicial dos pais e de dona
Clair, que queriam cadernos escritos e desconfiavam da professora que fazia bolos de
chocolate e construía petecas com seus alunos: "mas fulano hoje não levou dever para
casa, não sabe a palavra bola ainda e já está escrevendo a palavra chocolate, farinha,
trigo"!!! Quando todos começaram “a aprender a ler e escrever, felizes”, “isso foi
ficando bem aceito e entendido por todo mundo”, narra Tarsila. Que completa
lembrando que, para aliviar a angústia do início da carreira, às vezes “enganava todo
mundo” e reservava uma parte da aula para escrever o que “os mais velhos queriam
nos cadernos, quando também passava um dever de casa”.
Apesar de esse fato revelar um aspecto transgressor, de quem atua no “mundo
do quintal”, Tarsila também crê que funcionam algumas práticas mais tradicionais,
como cópias e ditados, dependendo do jeito que são feitos: “tudo depende do
contexto e tem que fazer sentido para as crianças”, além de que “o assunto tem que
ser interessante todo dia e o eixo do interesse tem que partir do convívio”.
A crença na importância do sentido do trabalho diário se realiza na forma de
projetos que nascem na sala de aula e a professora vai adaptando os conteúdos
curriculares àquilo que os estudantes criam. Ela cita o desenho que um aluno fez no
dia da nossa entrevista, uma árvore e um passarinho, tema de onde saiu uma história
coletiva, o trabalho de diferenciação dos tipos de letras (cursiva, manuscrita e caixa
alta), as características típicas dos ovíparos (que passou a ser assunto da pesquisa),
sua alimentação básica de frutas (que veio a ser tema gerador do próximo estudo
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168
sobre as principais vitaminas). E “o que estava planejado para o dia ficou de lado”,
porque ela acredita que o professor tem que ter essa flexibilidade. E nesta parte da
narrativa aparece mais uma transgressão, porque ela confessa que, apesar de ser
obrigada, não consegue separar os cadernos de português, matemática, ciências e
estudos sociais.
Isso implica em pelo menos três observações acerca dos modos de trabalhar
desse grupo. A primeira é que elas trabalham na resolução de problemas e por
projetos, concebendo, adaptando e regulando situações de aprendizagem, ao modo de
um bricoleur. Esta caracterização foi adaptada de Lévi-Strauss por Perrenoud (1993),
que, transpondo-a para a escola, concebe o professor como alguém que cria
atividades, situações de aprendizagem, jogos, problemas, projetos etc., usando, para
isso, os materiais disponíveis (alunos, textos, equipamentos técnicos, o meio
ambiente humano e material, a atualidade e as informações), somados ao desejo de
inventar, ao desafio de encontrar o bom tom entre uma atividade vaga e uma
totalmente estruturada, à opção de partir de propostas e interesses dos alunos, de suas
vivências, o mais freqüentemente possível (Perrenoud, 1993, p.48).
Outrossim, Bel (séries iniciais) acredita nas perguntas curiosas como ponto de
partida para o trabalho de pesquisa, que começa com o diagnóstico da turma e as
necessidades dos alunos, a partir de onde ela inicia o trabalho coletivo de
investigação: “antes que eu fique uma semana com os alunos, eu não tenho
planejamento.(...). Eu preciso saber com quem eu vou trabalhar”. No início do ano,
ela passa um tempo fazendo um diagnóstico da turma, no que se refere aos modos de
comportamento, às habilidades e aos conhecimentos disciplinares que têm (em
relação à língua portuguesa, à matemática, aos chamados estudos sociais, e a
ciências). Só depois ela traça metas de trabalho e faz os “combinados” de boa
convivência com a turma
24
.
24
Aqui vai uma parte de seu longo relato sobre o início do ano letivo de 2007:
Nesse ano, a primeira semana de aula ficou muito à la vonté e eu fiquei contando até mil para
permitir a coisa muito solta. Porque eu queria que eles vissem o que incomoda. ‘Ah, não pode
conversar!’ generaliza uma regra. Eu quero conversa! O que não posso permitir são conversas
paralelas sobre um assunto que não estamos tratando (porque se forem sobre o assunto é para
crescer, é para enriquecer. Ou é uma dúvida, ou é para onde eu tenho que ir). Pela experiência
dos anos anteriores, eu resolvi não fazer uma lista do que pode ou não pode. Porque o não pode
virar demais e a gente acaba se perdendo (igual castigo de um mês) e o negócio vira bagunça.
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A segunda observação acerca da prática das professoras desse grupo refere-se à
existência de uma atitude interdisciplinar e generalista em relação aos conteúdos
disciplinares. Uma prática docente interdisciplinar é descrita por Fazenda (1994,
p.85) como baseada na parceria com os estudantes, com os teóricos, com outros
professores, “na tentativa da construção de um conhecimento mais elaborado”. Além
disso, o professor interdisciplinar é transgressor, promove uma nova ordem e um
novo rigor ao “contrato pedagógico”, e sua autoridade é conquistada junto a seus
estudantes. E, ainda, que “o professor interdisciplinar traz em si um gosto especial
por conhecer e pesquisar, possui um grau de comprometimento diferenciado para
com seus alunos, ousa novas técnicas e procedimentos de ensino, porém, antes,
analisa-os e dosa-os convenientemente”. (idem, p.31). Este comprometimento
diferenciado possibilita a consolidação da intersubjetividade, de que um pensar venha
a se complementar no outro.
O que pode ser verificado igualmente no estilo de trabalhar de Iara, que, ao
abordar um conteúdo, procura reunir e sistematizar os saberes dos estudantes, a partir
de comparações com o já conhecido. Só depois dessa prática é que a professora
costuma conduzi-los à leitura coletiva do livro didático. Ademais, ela busca se dirigir
ao aluno considerando cada um deles como um indivíduo, mesmo. Ela acredita que
não funciona quando ela “fala no geral”:
Quando eu falo de mim, de você, pergunto ao aluno pelo nome (‘e você, o que acha
disso, já ouviu falar nisso?’), eu vejo que eles ficam mais presos no que está
acontecendo ali no momento. Vou dar um exemplo: a gente está falando sobre a
composição do ar. Daí, eu pergunto: ‘do que vocês acham que o ar é feito?’ Eles já
sabem alguma coisa, (...) Daí, eu falo: ‘o que mais pode ser encontrado?’ (...) Eles não
sabem, pois não dá para ver. Aí, eu dou mais uma dica, o outro fala mais alguma coisa
e eu vou anotando aquilo. Quando vemos, já está pronto. Uma coisa que eles me
ajudaram. (Iara – ciências)
Para Iara, esta produção conjunta de conhecimento e completada com a crença
de que uma importante função do professor é transmitir conhecimento, porque, às
vezes, o estudante não o tem em nenhum outro lugar (caso da comunidade de Vista
Então, colocamos sobre a arrumação da sala. Todo dia tem que arrumar, pois eu não sei
trabalhar com cadeira para um lado e para o outro, de modo que você não possa passar, ou o
aluno tem dificuldade de levantar. (...) Ninguém precisa fazer xixi dentro da sala, só que não sai
10 vezes para ir ao banheiro. A gente tem que educar o corpo.
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Alegre), e, assim, pode comparar com outros conhecimentos que tem: “É ajudar a
construir e a expressar esse saber, a conviver com outras pessoas, respeitar o limite,
respeitar a posição de aluno e de professor”. Ela acha interessante “deixar uma marca
positiva no aluno”. E vibra quando imagina que ele pensa assim: “foi com ela que eu
aprendi isso. Ou com quem eu passei a raciocinar dessa forma. Ou com quem passei
boa parte da minha infância ou juventude. E que me ensinou isso. Junto aprendemos
aquilo”.
Tanto para Dubet (2002) como para Tardif e Lessard (2005), é nesse trabalho
com/sobre/para o outro que reside, em grande parte, a complexidade do trabalho
docente. A existência de um “objeto humano” modifica profundamente a própria
natureza do trabalho e a atividade do trabalhador, nesse caso, o professor. O trabalho
interativo que caracteriza o magistério transforma dialeticamente não apenas o
estudante, mas igualmente o professor. Ele levanta as questões complexas de poder,
afetividade e de ética, que são inerentes à interação humana, à relação com o outro,
relação esta que se torna elemento estruturante da profissão docente e sobrepõe os
próprios conteúdos ensinados
25
. Ela implica em mediações lingüísticas e simbólicas
entre as pessoas e exige dos trabalhadores competências reflexivas de alto nível e
capacidades profissionais para gerir melhor as interações humanas na medida em que
vão se realizando.
A última observação a ser destacada do modo de ensinar dessas professoras é a
presença da alteridade. Elas realizam seu trabalho especialmente a partir do contato
com seus estudantes, e com suas diferenças, estas tidas, simultaneamente, como a
base da vida social e fonte permanente de tensão e conflito, por Gilberto Velho
(2003). A noção de interação está calcada no reconhecimento do outro como alguém
que possui perspectivas, interesses e valores, implicando o fato de que a realidade
tenha que ser constantemente negociada.
O foco na relação professor-aluno aparece claramente na visão que Bel tem
sobre a avaliação. Para ela, embora saiba que “tem que avaliar o conteúdo”, “o
objetivo mais importante é a relação”, é perceber como aquele ser social é no dia a
dia, porque ela procura “ver como ele vai crescer, como ele vai viver, o que pensa,
25
Como destaca Boing (2008) em sua recente tese de doutorado.
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mesmo na terceira série”, completa ela. Acredita, também, que, ao avaliar que não
houve um aprendizado desejado, o melhor caminho é voltar e recomeçar por outro,
mesmo que mais longo e que possa parecer “aos olhos de quem está fora de minha
sala” perda de tempo: “Uma coisa é que aprendi a refletir e aprendi a avaliar. E a
avaliação que faço do meu trabalho só pertence a mim.(...) ela serve para eu trabalhar
melhor no ano que vem, para eu sofrer mais. Porque vou ter que procurar mais,
conviver mais com o novo. (...) não tenho nada pronto” .
Uma forma de avaliar que se alinha com algumas idéias de estudiosos como
Perrenoud (1999) e Esteban (2001). Num capítulo nomeado “Não mexa na minha
avaliação! Uma abordagem sistêmica da mudança”
26
, o autor francês desenvolve o
conceito de “avaliação formativa”, uma avaliação “a serviço das aprendizagens e da
regulação das ações pedagógicas”, ou seja, que resulta numa transformação do
ensino, da gestão da turma e da regulação individualizada das aprendizagens. Deste
modo e ao buscar uma abordagem sistêmica, a avaliação formativa coloca à
disposição do professor informações mais precisas e amplas sobre os processos de
aprendizagens de seus estudantes.
Para a pesquisadora brasileira, a avaliação deve ser uma “prática de
investigação” típica de professores comprometidos com uma escola democrática, que
consideram seus alunos como parceiros e que prevê a interrogação constante: “uma
investigação capaz de dialogar com a complexidade do real, com a multiplicidade de
conhecimentos, com as particularidades dos sujeitos, com a dinâmica
individual/coletivo, com a diversidade de lógicas, dentro de um processo costurado
pelos múltiplos papéis, valores e vozes sociais, perpassado pelo confronto de
interesses individuais e coletivos (...)”. (Esteban, 2001, p.25).
Bel acredita que o que realmente faz seu trabalho funcionar, em suas palavras,
“é que eu tenho muita vontade que eles sequem as asas lá na minha sala. Sabe a
borboletinha, que vai secar a asa para voar?”. Um trabalho voltado para a construção
da autonomia dos estudantes, que parece reconhecer que “não há docência sem
discência” e que “ensinar não é transferir conhecimento”, como nos trouxe Paulo
26
Publicado simultaneamente em PERRENOUD, P. Avaliação. Porto Alegre: ARTMED, 1999 e em
NÒVOA, A. & ESTRELA, A. Avaliações em Educação: novas perspectivas. Porto: Porto Editora,
1999.
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172
Freire (1997) em sua Pedagogia da Autonomia.
Concluindo, pode-se dizer que no “mundo do quintal” daquela escola, os
professores se relacionam com seus estudantes majoritariamente do lugar da
possibilidade real de troca com eles. Esta interação inspira uma outra forma de ver o
aluno, de valorizar a sua experiência, os seus saberes, encarando-o como uma
“comunidade dentro da escola” (Canário, 2005).
Implica, ainda, na existência de um processo de aprendizagem coletivo, em que
o poder da fala do professor é substituído pela troca de conhecimento e pela
colaboração grupal, a fim de se garantir a aprendizagem. Fortalece-se o diálogo e as
trocas de informações, quando as aprendizagens e o desenvolvimento do pensamento
lógico e científico realizam-se através da interação comunicativa, o que possibilita a
construção social do conhecimento, ao modo das idéias de Vygotsky (1988).
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7
Conclusão
Somos indivíduos mortais, criaturas finitas, realidades singulares fugazes. Será que, no
entanto, algo de nós (algo do que nós fazemos) pode se incorporar a um movimento coletivo e
ter, assim, uma continuação, um prosseguimento na história? (Leandro Konder, 1996)
O propósito do estudo de caso que agora concluo foi conhecer o exercício do
ofício de professores que atuam em meio rural brasileiro, mais especificamente em
uma “escola feliz”, “bem plantada, bem centrada junto a uma ‘comunidade’ rural”
(Lüdke, 2006) ou em uma escola eficaz
1
. Com ele, procurei compreender quais os
sentidos os professores dão àquela escola, qual a imagem que têm de si e de sua
profissão, assim como quais os estilos de ensinar desenvolvem. A leitura que procurei
fazer aqui privilegia a dimensão política da rede escolar, vista sob uma ótica menos da
eficácia e mais de sua eficiência e do sentido do trabalho escolar, a fim de não
acentuar o caráter interno da escola e omitir a sua dimensão social.
Instigada por tal realidade, parti da idéia de Rui Canário de que o ofício docente
é o resultado do cruzamento da história pessoal com o contexto de trabalho,
articulando, assim, as dimensões organizacional e pessoal. Apesar dessa idéia
estrutural, assumi no estudo uma lógica da descoberta, sem, portanto, ter hipótese
anteriormente assumida, ou querer provar alguma teoria pré-estabelecida.
Optei por uma abordagem sistêmica da escola, o que implicou na valorização
também dos atores e de suas subjetividades. Acredito que tanto a pesquisa acadêmica
como, principalmente, a formação docente devam ser encaradas na lógica do
reconhecimento da organização como um local de interação de sujeitos que buscam
1
Os estudos que buscam os fatores escolares que podem equacionar o efeito dos resultados dos alunos
estão situados no âmbito da perspectiva das escolas eficazes. Embora tenham crescido na última
década, tais estudos ainda são incipientes, e não foram discutidos nesta pesquisa, embora minha
motivação maior inicial para sua realização tenha sido o sucesso dos estudantes. Ressalto apenas os
seguintes fatores que, de forma integrada, deveriam ser encontrados numa boa escola, segundo Soares
(2007), apenas dois dos quais não pareceram presentes na escola-da-dona-Clair (estes são um ensino
estruturado com base num projeto político pedagógico sólido e o envolvimento dos pais no
aprendizado dos filhos): legitimidade e participação da direção; visão e metas compartilhadas pela
comunidade escolar; ambiente de aprendizagem; concentração no processo de ensino/aprendizagem;
altas expectativas sobre todos os agentes escolares; reforço positivo; monitoramento e avaliação da
escola; direitos e responsabilidades dos alunos; organização voltada para a aprendizagem.
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174
coletivamente a aprendizagem. Em outras palavras, trata-se da percepção da
ineficácia da formação dos professores com tempos e espaços diferentes da prática
cotidiana e, concomitante, do favorecimento da formação docente centrada no
estabelecimento escolar e na singularidade das histórias dos sujeitos docentes. E, nas
palavras de Perrenoud (1993, p.180), “fazer face à complexidade e à relação exige,
pois, muito mais que representações e esquemas.(...) A formação de professores é,
portanto, necessariamente uma formação global da pessoa.”.
Nessa perspectiva, entende-se que as dimensões do ofício docente podem ser
explicitadas tanto do ponto de vista da formação do professor como de sua atuação
profissional. Concordo com os estudiosos que acreditam que o saber profissional dos
professores é essencialmente produzido nas escolas, a partir de um processo de
socialização que combina processos de conhecimento simbólico com processos de
conhecimentos da experiência.
De todos os aspectos explicitados neste estudo que definem a identidade da
escola-da-dona-Clair, destaco alguns que considero melhores indicadores do bom
funcionamento da escola, “as razões do improvável” (Lahire, 1997), todos ligados
entre si:
Por considerarem a escola como o espaço da sociabilidade e do encontro
(além de acesso à cultura acadêmica), os estudantes gostam e as faltas
são raras, em que pesem os aspectos penosos do trabalho escolar;
Os professores respeitam e/ou valorizam o mundo rural, consideram o
ambiente bom e o público escolar interessado, e esta visão positiva
motiva-os ao trabalho;
O quadro de professores mantém-se estável, apesar da distância da
escola em relação às residências;
A direção gere a escola pública como se ela fosse particular (com
diluição das fronteiras entre a casa e a escola), não economizando
esforços e “jeitinhos”. De fato, a escola está situada em duas dimensões
simultaneamente: no mundo público, enquanto espaço de socialização, e
no mundo privado, enquanto espaço de sociabilidade. Ademais, a
direção transgride o regime burocrático da organização escolar,
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175
aproximando-o de um modelo anárquico de organização, o que, por sua
vez, libera os professores, que têm autonomia para realizarem seu ofício.
No processo social público, os professores, independentemente da série
lecionada, têm perfil tanto de professores das séries iniciais como do secundário.
Além de gozarem de certa autonomia para exercerem o ofício, desfrutam de um bom
status social, dizem respeitar seus estudantes e procurar dar o máximo de si para o
trabalho. A atribuição revela uma lógica identitária de construção da experiência
docente baseada na relação pessoal e afetiva com os estudantes, o que os alinha a uma
identidade tradicional do antigo professor primário. Por outro lado, outra
característica do processo social público do grupo é a valorização do conhecimento
da disciplina a ser ensinada, o que os aproxima os professores do perfil dos
professores secundários.
Três características identitárias marcam o processo social privado dos docentes
da escola. Apesar da consciência dos problemas profissionais, o grupo desfruta de
alta auto-estima, fez a escolha profissional possível (mais por uma questão de
localização de moradia do que em decorrência do gênero ou classe social) e tem uma
formação na prática iniciada majoritariamente em escolas rurais unidocentes ou
multisseriadas e continuada em experiências múltiplas nas escolas em que trabalham.
Importante destacar que, além de uma visão positiva de seus estudantes, os
professores percebem a escola-da-dona-Clair como “a casa”, “a rua” e o “quintal”,
respectivamente, como uma família, como um local de trabalho e como um espaço de
criação, este situado entre a “casa” e a “rua”.
A análise das posições dos docentes, isto é, dos modos diversos que os
professores percebem seu trabalho e concebem a escola e o seu estudante revela que
também há estilos diferentes de trabalhar. Foram observados pelo menos três
diferentes tipos de estilos de trabalho, que resumo ao modo de um esboço, pois não
tenho a pretensão neste momento de elaborar tipos-ideais de professores, ao modo de
Max Weber, já que sei que uma análise tipológica requer uma interpretação
macrossociológica ou histórica (Schnapper, 2000)
2
.
2
O que demandaria um novo estudo.
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176
Para um primeiro grupo de professores, a escola é uma continuação de suas
casas, uma família, e ela tem como missão menos ensinar conteúdos escolares e mais
formar seres humanos moral e religiosamente. Essas professoras tomam seus
estudantes como filhos ou parentes, e, apesar da certa uniformidade da sua “missão”,
criam estratégias didáticas múltiplas e pessoais, desde o uso de computadores com
Internet até um estilo de aula mais tradicional (uso de quadro negro, cópias, exercícios
mimeografados, adoção de livro didático, exigência de silêncio e concentração). As
ações destes docentes estão pautadas nas tradições do ofício, mas também nas
afeições, nos comportamentos de seus alunos, na interação com eles. Com este grupo,
pode-se perceber a personalidade do professor como elemento evidente de seu
trabalho
3
.
O grupo de professores que concebe os estudantes prioritariamente como
aprendentes e a escola-da-dona-Clair como um espaço de trabalho público atua numa
dinâmica mais ligada a um desempenho de função e a adesão a valores e a papéis
específicos. O mundo público é entendido como “a rua” e a escola, uma instituição
moderna, é o lugar destinado à realização do processo de ensino-aprendizagem das
crianças e adolescentes. Ensinar conteúdos, moralizar e promover a socialização
escolar (distinta da familiar e comunitária) a um coletivo (até certo ponto) impessoal
requer um sistema de práticas codificado (exercícios, repetições, deveres, provas).
Deste modo, esse grupo realiza seu ofício no planejamento, na disciplina e no
exercício da autoridade, assim como no cumprimento de um plano de trabalho.
Por tudo isso e frente às mutações da instituição escolar
4
, os professores que
atuam “na rua” sentem o fenômeno do mal-estar docente, ou seja, têm uma visão
negativa da profissão e notam uma desvalorização do estatuto social. Também se
encontram no grupo os docentes que percebem que, apesar de serem os melhores que
3
A descrição e interpretação da lógica de ação deste grupo encontram-se no capítulo 6 (6.2.2.1 Na
escola como na “casa”).
4
O fenômeno foi detalhado no capítulo 2.
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177
têm, os estudantes da escola-da-dona-Clair estão mudados, menos interessados nas
aulas
5
.
Entretanto, a maior parte dos professores estudados não tem a sensação de uma
crise do ofício, porque de algum modo reconhecem o seu trabalho como sua própria
obra (Dubet, 2002). Com a experiência e os materiais disponíveis, construíram seus
próprios métodos, seus modos pessoais de atuar e de fazer funcionar.
Um último grupo de professoras percebe a escola como o “quintal” e atua ao
modo de um bricoleur, alguém que (re)constrói cotidianamente o seu saber
profissional, com especial disposição em considerar seus estudantes como parceiros a
quem buscam ajudar a construir atitudes autônomas. Elas apresentam uma atitude
interdisciplinar (Fazenda, 1994) e generalista em relação aos conteúdos
disciplinares
6
.
Tais práticas educativas afirmam a escola como uma instituição de produção e
comunicação de saberes significativos para os estudantes, promovendo a cultura local
e o desenvolvimento comunitário: “comecei a me colocar no lugar dos alunos e dos
pais. Comecei a enxergar de fora da escola. E a colocar aquilo como objetivo dentro
da escola”, disse a professora Bel em seu relato. Ao fazer o estudo dessas práticas,
lembrei das antigas, embora atuais, palavras de Gilberto Freyre (no já citado discurso)
dirigidas às professoras rurais nordestinas em 1957:
Para sermos nós mesmos, os brasileiros, como cultura, como civilização, como
conjunto de valores em que os elementos intelectuais, artísticos, éticos não se tornem
insignificâncias ao lado dos técnicos, materiais, mecânicos - vários deles
simplesmente importados do estrangeiro - temos que procurar valorizar o que é entre
nós esforço vindo da terra, da gente telúrica, do trabalho cotidiano em circunstâncias
peculiares ao Brasil - trabalho em grande parte rural - das grandes inteligências e das
grandes sensibilidades que têm sabido interpretar essa terra e essa gente ou procuram
resolver problemas peculiares ao Brasil dentro das condições brasileiras de espírito e
de ambiente; dentro da diversidade regional brasileira; e não arbitrariamente, ou
favorecendo-se uma região contra as demais; protegendo-se uma atividade - no
momento a indústria urbana - contra as outras. (Freyre , 1957, p.47)
5
A descrição e interpretação da lógica de ação deste grupo encontram-se no capítulo 6 (6.2.2.2 Na
escola como na “rua”).
6
A descrição e interpretação da lógica de ação deste grupo encontram-se no capítulo 6 (6.2.2.3 Na
escola como no “quintal”).
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Bel, Tarsila e Iara trabalham por projetos que defendem o que resta do
“ambiente” rural tradicional fluminense. Mais do que somente respeitar a cultura de
seus estudantes, elas valorizam e mobilizam seu trabalho com esse “espírito” rural.
Será que ao trabalharem desta forma não oferecem um contraponto à sociedade
industrial e do mercado, contrariando uma visão determinista de que só há um futuro
possível ?
Seria também pertinente interpretar o conjunto da experiência profissional dos
professores da escola-da-dona-Clair sob a ótica de Dubet (1994), para quem a ação
social não tem unidade e a identidade é fruto de uma construção, de uma experiência
7
.
E, desta forma, dizer que eles trabalham ora como numa comunidade familiar (dentro
da nomeada “lógica da integração”), ora como numa hierarquia concorrencial (na
“lógica da concorrência”) e, ainda, tomam a escola como o lugar do encontro e da
(re)invenção de diferentes papéis do professor (na perspectiva da subjetivação).
O certo é que deixei de lado não somente várias interpretações, mas também
temas e problemas do ofício docente, como, por exemplo, a influência da
considerável femilização do magistério na desvalorização profissional da categoria.
Ou, ainda, a questão da profissionalização e do profissionalismo docentes. As notas
dos estudantes da escola continuam melhorando e me pergunto se não haveria uma
ligação entre este fato e as mudanças nas percepções dos professores sobre os novos
alunos e/ou a chegada de inovações, como os computadores e a Internet à escola.
Depois desta compreensão e descrão do trabalho desses professores, arrisco
dizer que o ofício docente na escola-da-dona-Clair pode ser definido como o
resultado dos modos de ser e fazer, difusos, entre o âmbito da “casa”, da “rua” e do
“quintal”, este entendido como um espaço entre os outros dois. Admito, desta
maneira, que o ofício docente supõe a coexistência de combinações variáveis destes
três elementos.
7 Para Dubet (1994, p. 107), a experiência é “uma combinação de lógicas de acção, lógicas que ligam o
actor a cada uma das dimensões de um sistema.”. A subjetividade do ator e sua refletividade são
constituídas pela dinâmica de articulação dessas lógicas diferentes de ação, cada uma ligada a um
sistema: o primeiro sistema é o da integração, quando o ator é definido pelos seus vínculos na
comunidade; o segundo, da competição, em que o ator é definido por seus interesses num mercado; e o
terceiro, o da criatividade humana, no qual o ator passa a um sujeito crítico frente a uma sistemática de
produção/dominação, de alienação.
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E lembro que a longa história do ofício docente é povoada por imagens, como a
do socrático-platônico ou a do sofista (Fernandes, 1998), ou a do mestre-sacerdote-
apóstolo, o do trabalhador-militante, o do mestre-profissional (Tedesco e Fanfani,
2004)
8
. Mas, segundo Lelis et al (2008), na definição do ofício de professor, hoje,
combinações variadas desses elementos podem ser encontradas. No caso desta
pesquisa, foram.
De todos estes modos, por ser um profissional das relações entre pessoas e
saberes, o professor (re)constrói constantemente seu saber profissional e busca criar
sentido para as ações educativas que empreende. Ademais, acredito, como Canário
(1998), que a função do professor também é a de um analista simbólico, que
equaciona e resolve problemas.
Em que pese o fato de que as análises feitas neste trabalho não sejam passíveis
de generalizações, uma vez que se trata de um estudo de caso, desejo que ele possa
1) ajudar a compreender melhor a dinâmica da construção do conhecimento
profissional de professores e de suas identidades sociais;
2) alargar o entendimento sobre o conhecimento educacional brasileiro,
especialmente no meio rural;
3) trazer elementos para novos questionamentos, para a teoria social,
suscetíveis de aprofundar a reflexão sobre o exercício do ofício docente no Brasil.
Afinal, como escreveu Guimarães Rosa, ainda em Grande Sertão: Veredas,
“Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores
perguntas” (Rosa, 1967, p.312).
8
Como discutido no capítulo 2.
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191
9
Anexos
ANEXO 1
Distribuição das notas de desempenho dos estudantes do Viola, do
município e do Brasil
Anos 2005 2007
Brasil UF Município
COLËGIO
VIOLA
Brasil UF Município
COLËGIO
VIOLA
Média da
Prova
Objetiva
32,151 33,046 39,415
39.68
43,919
44,278
57,510
60.88
Média Total
(redação e
prova
objetiva)
41,424 41,364 50,720
52.92
48,162
47,975
59,200
60.08
Média da
Prova
Objetiva
com
correção de
participação
31,608 32,553 39,140
39.67
43,333
43,686
57,275
60.41
Média Total
(redação e
prova
objetiva)
com
correção de
participação
39,809 39,779 48,975
51.57
47,731
47,547
59,050
59.78
Fonte: INEP (Brasília, 2006, 2007, 2008)
Obs: em 2006 a escola não atingiu o mínimo de estudantes para obter conceito no ENEM, o que parece mostrar a
realidade de que poucos estudantes conseguem chegar ao final do processo.
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ANEXO 2
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193
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ANEXO 3
Quadro com os conceitos pesquisados e a sua operacionalização
com os itens do questionário dos alunos
Conceito Especificação Operacionalização com o item
de questionário (I)
Capital cultural Recursos culturais disponíveis
e/ou incorporados
I.9; I. 10; I.11; I.14; I.15
Capital econômico Indicadores de renda I.5; I.13
Capital social Envolvimento da família com a
escola
I.17
Idade I.2;
Escolaridade dos pais e dos
responsáveis
I.8; I.9
Composição familiar I.6; I.7;
Caracterização
sociodemográfica
Gênero I.3
Trajetória escolar I.1; I.4; I.16; I.18; I.19
Práticas de estudo Dever de casa I.12
I: item do questionário
Quadro com os conceitos pesquisados e a sua operacionalização
com os itens do questionário dos professores
Conceito Especificação Operacionalização com o item
de questionário (I)
Recursos culturais disponíveis
e/ou incorporados
I.13; I.14; I.15; I.16; I.17; I.18;
I.19
Capital cultural
Religião I. 4
Capital econômico Indicadores de renda I.5; I.8; I.9; I.10; I.23
Capital social Envolvimento com a escola I. 21
Idade I.2;
Composição familiar I.6; I.7
Gênero I.3
Classificação social I. 11
Caracterização
sociodemográfica
Classificação étnica I.12
Trajetória escolar/profissional I.16; I.20; I.21; I.22
I: item do questionário
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ANEXO 4
Roteiro de entrevista com os professores
Trajetória familiar
Fale um pouco de sua família de origem: onde você nasceu?
1) Onde morava na infância?
2) Que faziam seus pais e avós?
3) Durante a sua infância e juventude, que experiências em sua vida familiar foram
importantes para a escolha da profissão?
4) Houve influência de pessoas chaves para essa escolha da profissão?
5) Algum professor na família?
6) E fora da vida familiar, que outras experiências foram importantes? Por quê?
Formação/ trajetória escolar
Fale um pouco de sua trajetória escolar:
1) Em que escolas estudou? Como era a escola?
2) Ao longo de sua escolarização básica há fatos, situações e pessoas que 2.1)
influenciaram sua escolha profissional ou 2.2) marcaram o seu jeito de ser professor?
3) Normal ou faculdade (Onde e quando se graduou? Pública ou privada?) Como era
o curso?O que foi mais positivo e mais negativo?
4) Dessa experiência de formação, o que você acha que mais marcou a sua prática
profissional?
5) Pós-graduação? Cursos de formação continuada? (quais? Onde? Periodicidade)
Experiência/ trajetória profissional
1) Disciplinas que leciona
2) Regime de trabalho: Carga horária (aula/ outras atividades)
3) Há quanto tempo leciona?
4) Trabalha em outras escolas? (Quais?)
CICLOS DE VIDA: fale um pouco do atual momento de sua carreira. Como se
sente?
1) E o início?
2) Considera que em algum momento de sua vida houve mudanças na trajetória
profissional?
3) Houve momentos de maior investimento pessoal na carreira? Se sim, quando?
4) Algum momento se pôs em questão, achou monótona a vida cotidiana da sala? Ou
sentiu-se desencantado (a) frente a momentos difíceis?
INTEGRAÇÃO NA ESCOLA COMO ORGANIZAÇÃO: Por que trabalha no
Colégio Viola? Como se deu a sua entrada?
1) Que dificuldades enfrentou?
2) Quanto tempo trabalha aqui?
3) Você conhece/participou da criação do Projeto Político Pedagógico? (se sim,
como?)
4) Quais são os aspectos positivos e negativos da escola?
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5) Como é a direção/ coordenação. Ela interfere em seu trabalho? (se sim, como?) Há
diferenças desde a sua chegada?
6) Há oportunidades de interação com os demais profissionais da educação (conselho
de classe, reuniões)? Como são? Qual a freqüência?
MODOS DE ORGANIZAÇÃO E PLANEJAMENTO DO TRABALHO: Conte-me
um dia de seu trabalho.
1) Você acha que tem um estilo próprio de ensinar?
2) O que você acha que foi fundamental para seu estilo de docência?
3) Como acontece a comunicação com os alunos (deslocamentos freqüentes, olhar
para todos, intervém imediatamente frente a problemas disciplinares, dá
claramente instruções, acompanha as mudanças de atividades): Na comunicação
com os alunos, o que você acredita que faz funcionar?
4) Quais são as estratégias para motivar os alunos em relação à aprendizagem de
saberes: na transposição didática, aparece a preocupação com a motivação, o
nível, a heterogeneidade dos alunos etc?
5) A gestão de classe: como estabelece rotinas, define regras de convívio coletivo,
expectativas, como são as formas de trabalho (em grupo, individual etc);
6) Como tem lidado com a novidade da sala de computadores? E com a chegada da
Internet à escola?
7) Fale um pouco do impacto do Programa Nova Escola no desenvolvimento do
trabalho (expectativas, preocupações e reações)
8) Como avalia?
9) Como é um bom professor?
PERSPECTIVAS SOBRE A EDUCAÇÃO E SOBRE A PROFISSÃO DE
PROFESSOR
1) Por que educamos em escolas? Qual a finalidade da educação neste início de
século?
2) Como se vê com relação ao trabalho que realiza? Como crê que é visto pelos
outros (colegas, direção, alunos e pais)?
3) Acha que há diferenças entre os professores de 1ª. À 4ª e de 5ª. À 8ª.? Quais são?
4) Quais são os aspectos positivos do trabalho docente? E os negativos?
5) Dificuldades e desafios: quais são e como você tem tentado resolvê-los?
6) Como concilia a vida profissional com a profissão? Um interfere na outra?
Leva trabalhos para casa?
7) Sente-se sobrecarregado de trabalho?
8) O que você acha que estará fazendo daqui a 10 anos?
9) Quais são os teus sonhos?
10) Se não fosse professor(a), qual seria a sua profissão?
RELAÇÃO COM OS ALUNOS E REPRESENTAÇÕES SOBRE OS ALUNOS
1) Como vê o seu aluno? (do ponto de vista econômico, social, cultural, do
desempenho na aprendizagem etc)
2) Quais relações estabelecem com eles? (satisfações, dificuldades e
expectativas).
3) Sente alguma diferença na forma que se relaciona com eles, com o passar do
tempo? (ciclo de vida)
4) Que significa formar/instruir gente?
Quais são 5.1) as exigências e 5.2) as características inerentes a um trabalho que tem
esse objetivo e esse “objeto”?
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ANEXO 5
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199
ANEXO 6
Histórias: quinze percursos de formação, quinze trajetórias
profissionais
A primeira história a ser narrada é a de Sofia, que tem dupla identidade na
pesquisa, pois, além de sujeito, atuou como minha colaboradora
1
, “abrindo” as portas
da escola para a pesquisa, dando-me dicas e servindo de ponte entre mim e os sujeitos
estudados. Depois desta narrativa, a ordem de apresentação das histórias segue a
mesma da realização das entrevistas.
Sofia: a doce, amorosa e subversiva mestra-amiga
Sofia
2
nasceu no centro urbano da região de Vista Alegre, em 1955, e é
professora há dezenove anos, dos quais 17 completados na escola-da-dona-Clair.
Mora sozinha (é viúva há quatro anos e sua filha única realiza estudos superiores em
Niterói) na fazenda de café que pertenceu aos admirados avós maternos, e onde o avô
dividia seu tempo entre a política e o ofício de “tratador”, nome dado ao paramédico
do lugar. Morou com eles até os 9 anos de idade, porque a mãe, professora casada
com um comerciante da cidade e com muitos filhos, foi deixando-a na fazenda
“passar dias, que viraram anos”.
Sofia estudou no colégio Viola e teve dona Clair, sua tia, como primeira
professora. Destaca como foi bem alfabetizada, pois, ao voltar na segunda série para a
cidade, era a única da turma que sabia ler, escrever e fazer conta com facilidade.
Daquela época, lembra do hábito de rezarem o Pai Nosso, “que é universal”, antes de
começar as aulas, atividade que faz com seus alunos atualmente.
Sofia tem lembranças boas de suas professoras primárias que diz ter amado e a
1
Tínhamos um contato anterior quando ela era tesoureira da Associação de Moradores, Produtores
Rurais e Artesãos de Vista Alegre. Esta Associação participava de um trabalho comunitário em
parceria com a Organização Não Governamental da qual eu fui coordenadora geral de 1999 até 2005.
2
Encontrei-a para a entrevista me esperando na varanda da enorme casa de fazenda onde mora
atualmente sozinha. Impressionei-me com o silêncio do lugar cujo adjetivo anotado no caderno de
anotações foi simplesmente “total”. Éramos nós e os bichos. Sofia comenta que tem um casal de preás
que mora no teto da antiga casa, seus “inquilinos”, que apareceram algumas vezes durante nossa
conversa.
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quem credita uma grande influência no exercício do ofício, porque eram pacientes,
afetuosas e, mais importante, porque uma delas escolheu sua turma para trabalhar por
causa de sua presença nela, uma aluna “brilhante”. Nomeia Silvia, com quem
aprendeu a encapar os cadernos dos alunos com papel de revistas velhas. Há apenas
uma lembrança negativa de uma professora que a beliscou injustamente e a humilhou,
e que usa como o “antiexemplo”. Sofia diz que compensava a timidez com o
empenho nos estudos, que ocuparam grande tempo de sua vida, pois, depois de parte
do curso primário no Viola, foi para a cidade, onde fez o antigo segundo grau (em
escolas particulares) e, então, faculdade de Psicologia na Universidade Federal
Fluminense, seguida de uma especialização em Psicanálise e uma capacitação em
tecnologia educacional.
Ao terminar a faculdade e voltar para a terra natal, em 1982, a psicóloga Sofia
deparou-se com a falta de emprego, e resolveu fazer o então curso Normal e virar
professora. Começou como formadora de professores em um colégio particular,
dando aulas de psicologia, antes de fazer o concurso público e ir trabalhar no Viola.
Ela atualmente trabalha como professora primária, mas já deu aulas de todas as
matérias, menos religião (“Mas eu acho que daria conta!”, disse ela entre risos), para
todas as séries, pois sempre que a “tia Clair” tinha problemas de falta de professor
apelava para a sobrinha: “era a ‘professora tapa buraco’. Faltava professor, bota a
Sofia!”.
Além disso, Sofia agora atende em consultório particular e faz um trabalho de
“melhoria da auto-estima” com um grupo de pessoas carentes da terceira idade. Sobre
essa clara e assumida dupla identidade profissional, ela diz que não saberia dizer qual
a preferida, porque todas a gratificam muito, pois elas “formam pessoas” para
transformar o mundo
3
.
A maioria dos estudantes do Viola é considerada como brilhante (alguns dos
quais “ficariam muito bem numa universidade”), muito interessada, tem orgulho da
escola, valoriza, junto com as famílias, os diplomas recebidos, pois sabe que eles
3
Em suas palavras:
Aí é que a Educação se encontra com a Psicanálise, pois ambas têm como ferramenta
primordial provocar o questionamento que propicia a mudança. Tanto o aluno quanto o analisando
são convidados à reflexão sob uma nova forma de olhar o mundo e a si mesmo, numa relação
sempre dialética com o conhecimento.
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representam uma melhoria na qualidade de suas vidas, mesmo que continuem na
lavoura. Sobre a atual turma, de alunos repetentes, e, portanto, com problemas de
aprendizagem, ela diz: “quando eu fui pegá-los nas suas turmas, eles pareciam que
estavam indo para a forca. Falavam na hora do recreio: “estou aqui porque sou burro
e não aprendo”. Depois falaram: “tia, explica para ela, porque ela disse que estamos
com você porque somos burros”. Eu disse; “Não! Vocês estão comigo porque foram
escolhidos!” [risos]. Agora eles falam: ‘eu sou escolhido!’”.
Essa capacidade de subverter a ordem foi citada por ela como uma das
exigências para o exercício do ofício docente na atualidade, porque “a gente quer que
o indivíduo tenha mecanismos de dar um sentido pessoal à sua vida, enquanto a
sociedade está pedindo para a gente formar massa produtiva, que produz, consome e
não questiona. A gente está querendo o indivíduo, o sujeito, que ele tenha
instrumentos dentro dele para dizer não a essa loucura do mundo”. Outra exigência
do trabalho docente é acreditar. Acreditar que se pode realmente ajudar o outro.
Sofia rejeita a forma “tia” comumente dada pelos alunos mais novos, afirmando
que tem muitos sobrinhos, os filhos dos irmãos, mas que ali é professora, como pede
para ser chamada. Essa distinção é curiosa, porque a professora considera o colégio
Viola como uma família, em que funcionários e alunos, têm um parentesco real ou
então intimidade pelo longo tempo de conhecimento, o que propicia muito respeito e
afetividade. Ela exalta o fato de a escola não ter casos de agressão e, embora “uma
vez ou outra tenha alguma confusão, de uma maneira geral nossas crianças brincam e
não têm problemas”.
A professora tem interesses pessoais variados: gosta de atividades como
costurar, ver filmes na TV, viajar, ler livros (principalmente científicos,de Psicologia
e Pedagogia) e escrever. Em 2007, lançou o primeiro de sua autoria sobre a
intimidade de algumas mulheres de sua família, na Bienal do Livro, no Rio de
Janeiro, realizando, assim, um dos três sonhos que disse ter na vida. Os outros dois
são ter um neto e encontrar um novo amor.
Como nos anos de 1980 o colégio Viola estava vivendo o seu momento de
expansão de oferta de vagas, havia uma demanda de professores de todas as áreas e a
“professora tapa-buraco” foi desviada de função, passando a dar aulas de várias
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matérias de quinta-série em diante, o que diz ter feito com grande prazer. Havia,
também, nesta mudança, algumas vantagens externas, porque ela passou a trabalhar
apenas três dias na semana, o que era um duplo alívio para a mãe de uma criança
pequena e para quem tinha que vencer 23 km de estrada de chão empoeirada por dia,
pois na época, morava na cidade.
Em 2007, Sofia fez “uma volta na carreira”, já que recomeçou a trabalhar com
uma série inicial, dando aulas diariamente, o que é mais fácil porque ela agora mora
perto da escola. Ela reconhece duas diferenças importantes nas duas experiências: a
primeira é que com o professor das séries iniciais o “relacionamento aluno-professor
é mais estreito, por conta de estar no dia a dia”; depois, as crianças são mais afetivas e
sinceras que os adolescentes, o que facilita muito o trabalho segundo ela. Pergunto
sobre o conteúdo disciplinar e a forma de transmiti-lo, mas ela responde que não é
isto que determina mudanças no jeito de trabalhar.
A “volta na carreira” se deveu a um fato de ordem externa: depois de terminar
um curso de capacitação em Orientação Tecnológica (OT), o que a permitiu trabalhar
com os estudantes na sala de computadores e fazer muitos planos para a inclusão
digital da comunidade, a Secretaria Estadual de Educação extinguiu o cargo de
orientador tecnológico em março, uma semana depois de o governo federal ter
instalado a internet na escola (como relatei no capítulo 4).
Peço-lhe que me conte um dia típico de trabalho. Depois de rezar, ela começa a
aula escrevendo no quadro o cabeçalho, com o nome do colégio, espaço para o nome
do aluno e da professora, o local e o dia, mesmo “sem saber se isto está certo de
acordo com Emília Ferreiro”, mas que a tia Clair fazia e ela acha que deu certo para
ela e porque os alunos se situam. Em seguida, ela pede para ver e corrige o dever de
casa, coloca uma música (geralmente clássica)
4
, faz uma revisão dos conteúdos dados
e inicia um novo, numa proposta escrita, a partir da qual ela passa o dever de casa. A
partir daí, ela lê uma história para eles e inicia um segundo momento em que diz
trabalhar a expressão de cada um, através da arte (desenho, pintura, recorte, colagem,
4
Sofia considera a música, ouvida e cantada (individual e coletivamente), como uma “forma muito
interessante” de sensibilizar, além das cores dos desenhos da versão de cada aluno. Ela diz que eles
“ficam doidos” para chegar a “hora da expressão”.
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dobradura, massinha, teatro de fantoches etc...). Ao final da aula, quando dá tempo,
oferece um momento de recreação, seguido de uma música de relaxamento.
A avaliação do trabalho acontece no dia a dia, com alguns pontos reservados ao
comportamento
5
, assiduidade, compromisso com os trabalhos. Mas para medir o
conhecimento aplica mesmo a tradicional prova, “sempre buscando valorizar o que o
aluno faz”.
Por último, Sofia revela que depois de dar aula de todas as matérias para todos
os grupos, a sua forma de se relacionar com os alunos mudou e que agora ela está
mais afetuosa: “estou aprendendo a ser mais, a me dar mais nesse relacionamento de
corpo-a-corpo”. Porque a sala de aula é um teatro e o professor tem sempre que
encarnar um personagem, do autoritário ao afetuoso. Para a pesquisa, ela encarnou a
personagem “Sofia”, que definiu como “(...) muito de minha mãe e outro tanto de
mim mesma. É doce, mas sabe colocar limites. É criativa, (...) tem sempre uma
atitude ecológica, pois não tolera desperdício. Ama seus alunos, se desdobra para
fazer o melhor (...). Tem preocupação com o social, sem cair na cilada do
assistencialismo ou demagogia. Respeita seus alunos (...). Enfim, reconhece que para
educar é preciso amor, fé e confiança”.
Tarsila: a pintora guerreira e inquieta
Tarsila
6
tem três filhos, uma adolescente de 17 anos, uma menina de 12, e um
bebê de um ano, que amamentou uma vez durante nossa longa conversa, de duas
horas e meia, período em que Tarsila se emocionou, chorou e riu várias vezes. Nasceu
em Vista Alegre há 37 anos, é neta de portugueses e alemães, sendo que seus avós
maternos tinham grande poder aquisitivo, pois o avô era escrivão de cartório, e o
casamento da mãe, servente da escola-da-dona-Clair, com um caminhoneiro parece
5
Em relação ao comportamento, Sofia costuma usar a seguinte técnica: todos os estudantes começam a
semana com cinco estrelas que vão perdendo caso desrespeitem as regras combinadas, e, na sexta-
feira, quem tiver mais estrelas tem direito a escolher primeiro as prendas (como livros, motos,
carrinhos, vaquinhas, cavalinhos, boneco do Chico Bento).
6
O nome Tarsila foi escolhido junto com ela, que tem, como atividade predileta, nas horas vagas,
pintar a óleo, e adoração pela pintora modernista. Se não fosse professora, ela gostaria de ter sido uma
pintora.
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ter ocasionado um declínio no status econômico da família. Esta situação não foi
colocada explicitamente como ela fez em relação a sua própria realidade financeira,
pois se declara de classe média baixa, conta que morou na casa da sogra até sete anos
atrás e que o curso de pintura teve que ser interrompido pela chegada dos filhos e pela
obra da construção da casa nova, onde ainda “falta um monte de coisa que eu não
consegui comprar”, em suas palavras.
Tarsila é professora há 17 anos, 16 dos quais trabalha nas séries iniciais no
colégio Viola, onde se formou e estudou por toda a sua vida, só se ausentando
durante a quinta-série, porque o segundo segmento do ensino fundamental só foi
implantado no ano seguinte. Foi aluna da Lúcia, aquela professora que, durante a
expansão do colégio, assumiu todas as disciplinas da quinta-série, e que Tarsila
considera “uma guerreira”, uma professora muito exigente, com quem aprendeu
muito
7
.
O colégio era “o quintal de minha casa. Eu conheço cada palmo”, razão
primeira citada quando perguntei a ela sobre os aspectos positivos da escola-da-dona-
Clair, como ela chama o colégio, quando não usa o termo “nossa escola”. Ela se
preocupa com as torneiras vazando, com o desperdício dos alimentos pelas
merendeiras, conhece e participou de cada obra realizada na escola, tem fotos da filha
pequena brincando na água com que ela e as serventes lavavam a escola depois de
uma obra de expansão, nos anos de 1980. E completa: “É por isso que é bom. Aquela
escola é como se fosse minha também”. Diz que mesmo que tivesse dinheiro não
colocaria seus filhos em escolas particulares porque “é a nossa escola e acho que a
gente tem que lutar por ela”.
8
7
Também Tarsila é uma “guerreira”, pois concilia a maternidade com o trabalho escolar e atualmente
não conta com a ajuda de uma empregada doméstica todo o dia. Logo, tem que se virar (e/ou “deixar
rolar”) para cuidar de um bebê, limpar a casa e cozinhar para as filhas. Costuma trazer trabalho da
escola para casa e, às vezes, tem que deixar para fazê-lo no fim de semana. Nas suas palavras:
Eu me sinto sobrecarregada e muito. Tem dia que eu vou deitar e parece que... parece que só
minha cabeça está funcionando, que o corpo não obedece. Você já sentiu isso? Aí você deita e
você não consegue dormir. O braço dói, a coxa, a carne parece que está doendo. Já aconteceu de
deitar e não conseguir dormir, ter que me levantar e tomar um remédio para dor. E de acordar de
madrugada e deixar tudo ajeitado antes de sair para o trabalho.
8
E Tarsila tem consciência da qualidade de algumas escolas particulares do município, tanto que pede
os cadernos dos filhos da secretária emprestados para conferir se os conteúdos trabalhados por ela na
escola-da-dona-Clair estão a contento.
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Além do forte afeto com a escola, Tarsila comenta que sempre se relacionou
muito bem com os professores, mas que tinha uma admiração especialíssima por uma
professora de História
9
, “a professora que eu tinha vontade de ser”, a “professora
padrão”, porque ensinava bem os conteúdos, mas sabia escutar as jovens (“a gente era
mocinha e muita coisa a gente não podia conversar em casa. Aí, no outro dia, ela ia às
forras” com o conteúdo). Tarsila se recorda do cheiro fresco do seu perfume, do
sorriso, do seu jeito de chegar, de sentar, de como relevava as bobeiras das
adolescentes; enfim, de como era alguém em que se podia confiar. E completa,
admirada, a lembrança da professora com quem percebe, durante a entrevista, ter
aprendido um pouco o seu ofício, afirmando que ela “tratava cada aluno como se fosse
único. E eu faço isso com meus alunos. Cada aluno deve ser tratado como único. Não
ser tratado como boi. Boi tem um monte lá”.
Mas essa característica a professora aprendeu também com sua tia Pilar
10
, que
costumava acompanhar, a passeio, ainda quando menina, ao trabalho docente em uma
escola multisseriada longínqua, e sobre quem declara que “costumava se abaixar pra
ouvir a criança que estava falando com ela”, mostrando sua importância, o que
“levanta a auto-estima da criança”. Hoje, Tarsila senta na carteira de seus alunos para
juntos fazerem as leituras. Sobre aquele tempo de menina, ela comenta que adorava o
passeio, que “tinha fissura por aquilo”, pois “parecia que já sabia fazer”. Recorda que
gostava do convívio com as crianças cujos cadernos tinham figurinhas
11
.
Sobre o percurso de estudante, Tarsila se recorda de mais um professor, o
Roberto, que “não deixava a peteca cair” e que também tinha uma relação muito
pessoal com seus alunos: um “companheiro, que não era de dar aula e ir embora”
12
.
9
Entrevistei a agora ex-professora da escola, a mesma que aparece referida no capítulo “A escola-da-
dona-Clair”.
10
A professora é sujeito desta pesquisa.
11
Interessante observar que, quando cheguei à escola e conheci Tarsila, ela pediu-me para arrumar-lhe
figurinhas diferentes para ela colar nos cadernos e trabalhar a escrita de palavras diversas com seus
estudantes.
12
Este professor levou seus alunos para conhecerem o Rio de Janeiro e o mar, visitar seu apartamento
na Avenida Atlântica e seus filhos, que matriculou anos depois na escola. Era presente em vários
momentos da comunidade, chegando a comparecer ao enterro do pai de Tarsila. Devo lembrar que foi
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Apesar de acreditar que sua formação acadêmica tenha tido muitas limitações,
pois só fez o curso Normal (ela gostaria de ter feito faculdade de Biologia, mas era
longe), Tarsila reconhece que aproveitou ao máximo, até porque as turmas naquela
época eram bem menores e ela foi colega de turma e de profissão, durante toda a sua
vida, de sua irmã Iara, outra professora participante desta pesquisa. Associado a isso,
nos primeiros anos de formada, ela fez todos os curso de alfabetização que
apareceram na região. Durante 16 anos, Tarsila trabalhou com alfabetização, turma
que “ninguém gosta, ninguém quer, porque é muito difícil”. No primeiro ano, antes
de fazer o concurso para professora do estado e escolher a escola-da-dona-Clair,
lecionou como professora contratada da prefeitura, em uma escola rural
multisseriada, período “dramático” em que teve “que se virar em duas”, professora da
classe de alfabetização e da primeira série, em uma escola onde só tinha giz e papel.
É com lágrimas nos olhos que conta do sofrimento dos cinco anos iniciais na
escola-da-dona-Clair, que ela credita ao choque entre a formação tradicional e a
novidade da introdução do construtivismo na prática pedagógica. Mas que traz
implícita uma mudança radical de identidade, uma vez que a até então estudante
Tarsila voltava àquele espaço agora como professora. E tinha que (se a) provar, mais
uma vez. Era “abraçar a causa, enfrentar o problema e correr atrás ou desistir”.
Ela estudou muito, procurou todas as pessoas de fora que poderiam ajudar, e
hoje ela diz que se sente “mais segura e mais questionadora”, procurando aprofundar
mais nas questões cotidianas
13
.
Por outro lado, a professora procura manter uma rotina diária, que começa com
uma reza do Pai Nosso, da Ave Maria ou de improviso (um pedido para que tenham
graças a ele que o professor Darcy Ribeiro, então Secretário Estadual de Educação, concedeu
autorização para o funcionamento do segundo grau no colégio.
13
Entretanto, percebo que ainda há uma certa mágoa em relação à dona Clair, referida como alguém
que “não evoluiu” e que discrimina sobremaneira alguns professores, dentre as quais ela e sua irmã
Iara. O maior ressentimento aparece em relação ao fato de que Tarsila perdeu, no ano passado, a
gratificação que recebia do Programa Nova Escola porque engravidou do último filho e tirou licença
maternidade, como relato no capítulo 4. Isso aconteceu e ela não foi avisada pela direção de que corria
este risco, o que transtornou a sua vida financeira e causou um efeito negativo no seu ofício, pois ela
reconhece que “não conseguia nem olhar para seus alunos” e que realizou um péssimo trabalho, fator
que mudou a sua carreira, pois a fez pedir para não mais trabalhar com a alfabetização no ano corrente
e que foi aceito a custo pela direção.
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uma boa aula). Depois, ela escreve a data no quadro e faz a leitura da história do dia,
selecionada no início do ano e compilada numa lista a que todos têm acesso. A seguir,
apresenta a proposta do planejamento curricular do dia, e compartilha com eles a
responsabilidade de cumpri-lo, depois da qual eles podem ir lá fora tomar sol, correr
no pátio, brincar.
Seus alunos, ela considera pessoas humildes, que, “por uma questão cultural,
costumam baixar a cabeça”. Por isso, ela se preocupa em formar pessoas atuantes na
sociedade, que saibam respeitar os direitos dos outros, mas que também saibam
reivindicar os seus. Para isso, acredita que todos os estudantes devam ser valorizados
e respeitados em suas particularidades, porque todos são diferentes. Contudo, todos
sabem alguma coisa, desde o filho do lavrador até o filho do médico e esses
conhecimentos têm que estar a serviço da turma. Ela acredita que os estudantes a
consideram uma professora exigente, pois ela não deixa de cobrar os trabalhos
acadêmicos.
Quando lhe perguntei como ela acha que exerce seu ofício, ela pediu
autorização para tecer um elogio a sua própria pessoa e respondeu: “eu me inquieto
com as coisas. Questiono e corro atrás, estudo, procuro e tento acertar. Eu não me
acomodei de fazer só o que eu sabia. Eu quero fazer mais, para mim e para quem está
passando por mim”.
Mas reconhece que essa qualidade de questionadora é muitas vezes percebida
como uma “chatice”, especialmente pela direção, porque ela questiona e critica, por
exemplo, a forma de avaliação imposta pelo Estado, que instituiu o item Não
adquiriu: “Como a criança não adquiriu uma coisa? Ou não foi dada, ou ainda está
adquirindo, é o mínimo. (...) O que você não aprendeu na sua vida? Não existe uma
coisa que você não tenha aprendido. Você não desenha tão bem. Eu pinto melhor que
você. (...). É uma questão de oportunidade, de habilidade”.
Ainda no que diz respeito à avaliação das crianças, a professora aproveita o erro
e dá importância ao processo de aprendizagem, mais do que ao resultado. Assim:
“Conheço a letra deles. E quando a criança erra, eu analiso o erro. Qual foi o caminho
que essa criança percorreu, para botar 8 mais 3 igual a 15? Porque, às vezes, você
percorrendo o erro, você acha a saída. Aí, ‘vamos fazer de novo, para você perceber o
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que fez de errado?’ (...) Eu sou muito cri-cri com isso, sabe? Eu gosto do erro, eu
acho que o erro abre portas. Você não acha que o erro abre portas? Abre portas”.
Para terminar, Tarsila fala de seus sonhos: quer continuar trabalhando como
professora, mas também fazer uma faculdade e pintar quadros a óleo com o tema
principal marinas, uma paixão. Para quem mora na região serrana, ela vai ter que “se
inquietar” muito.
Carmela: a professora-mãezona, pau-para-toda-obra
Carmela é uma mulher de 42 anos, bem apessoada e cuidada: está sempre de
unhas pintadas, longo cabelo penteado, salto alto e roupas elegantes. Nasceu em Vista
Alegre e atualmente mora na parte mais alta do loteamento próximo à escola, em uma
casa ampla e tão arrumada como sua dona
14
. Ela tinha um irmão que se suicidou, é
filha de uma costureira e um peão, ambos analfabetos. Morou no município vizinho
com a mãe até os 21 anos quando voltou para Vista Alegre, já separada do primeiro
marido, e grávida do primeiro filho. Desde os 15 anos trabalhava fora para se
sustentar, primeiro como office girl, depois como secretária de um dentista, antes de
ser professora
A professora entende que “desde muito cedo aprendeu a se virar com pouca
coisa”, como no tempo da escola Normal, única vez na vida em que estudou em uma
escola particular, freqüentada à noite. Ela diz que “faltava tempo e dinheiro” e a
futura professora preparou uma aula-prova sobre sinônimos e antônimos no intervalo
de recepção de um cliente e outro, com recortes de revista. Tirou nota 10 na aula e
ouviu o seguinte comentário do professor-formador: “a sua aula foi uma das melhores
que tive. Professor ganha pouco. Você está fazendo o trabalho que vai fazer aí fora.”.
Embora ainda trabalhe muito, a vida melhorou. Carmela é casada com um
comerciante de gado e tem duas matrículas como professora, uma no estado e outra
no município, ambas conquistadas por concursos prestados apenas alguns meses
depois de formada no Curso Normal, e recém mãe, aos 22 anos. Além do Normal, fez
dois cursos adicionais que a habilitavam a dar aulas até a sexta-série de ciências, mas
14
Realizamos a entrevista na sala de estar e, embora um de seus três filhos (19, 12 e 10 anos) estivesse
em casa, não fomos incomodadas por ele.
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ela nunca quis sair das séries iniciais. Atualmente, cursa o quinto período de
Pedagogia em uma faculdade particular via satélite de Palmas, no Tocantins.
Dos professores antigos, Carmela se recorda de Carmela, a primeira, por quem
“tinha adoração”: ela era “muito humana, muito mãezona”, o “jeito Carmela” de ser
professora. Ela não vê ou trata seus alunos como crianças quaisquer, mas, sim como
se fossem da família. Por isso, “dizem que eu passo muito a mão (...). Mas (...) se eu
tiver que dar uma bronca eu dou, se passar na rua e estiver aprontando eu dou uma
bronca (não interessa que não é meu filho, não é meu parente)”.
Carmela “sempre quis ser professora”. Sua mãe brincava dizendo os antigos
falavam que de acordo com o que se faz com seu umbigo vem a sua profissão e que
Carmela tinha o umbigo enterrado com uma letra A: “desde que eu me entendo por
gente, quando falavam ‘o que você vai ser quando crescer?’, eu respondia:
‘professora’”.
A atividade fazia parte de suas brincadeiras infantis, e no quintal de sua casa
funcionava a “escolinha da professora Carmela”: “Não tinha muito material e a gente
escrevia no chão, na areia.(...). Caderno e lápis nunca tiveram sobrando, (...). Eu era a
professora, quem ensinava...”
Quando assumiu uma turma de estudantes de verdade, aos 23 anos, Carmela
não teve problema algum. Era uma turma multisseriada de segunda à quarta-série,
“muito boa mesmo, nota 10”, na qual havia muita colaboração: as meninas da quarta
ajudavam-na com os estudantes menores, muito interessados, e todos aprendiam e
ensinavam juntos. Desta experiência, além da satisfação, a constatação de que no
começo se “acha que vai fazer tudo o que planejou (...). E depois, esbarra de lá e de
cá, e começa a se podar aquilo que sonhou e procurar novos sonhos. Porque a gente
tem que sonhar com outras coisas”.
Mas se o início de carreira foi satisfatório, o mesmo não se pode dizer quanto às
condições de transporte para chegar às escolas, situadas muito distantes uma das
outras e, na maioria dos percursos, sem meio de condução além dos próprios pés
15
.
15
Carmela conta que andava das 5h30 da manhã até às 7h15, de casa até a primeira escola, voltava e
pegava um ônibus até metade do caminho para a outra, e seguia a pé. E foi assim que emagreceu oito
quilos em um mês. E que ela teve que mentir ao médico do Estado que fazia o exame de admissão, ao
ser perguntada se “ela tinha um helicóptero para trabalhar”, ao que ela mentiu que tinha carro.
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Por ser mais perto de casa, há quatorze anos atrás, Carmela escolheu trabalhar na
escola-da-dona-Clair, com quem tem uma postura conciliadora. Entretanto, conta que
nos dois primeiros anos teve problemas de ordem pessoal com ela, e virou “joguete
na escola: escolhia uma turma, mas se faltasse professor eu era tirada e jogada em
outra. Eu era o “tapa-buraco” na escola”. Até que teve um confronto direto com a
diretora, reclamou de uma nova mudança e, desde então, tudo mudou, e ela passou a
se sentir mais segura, acreditando, hoje, que a direção da escola confia em seu
trabalho.
Outra experiência importante foi com uma comunidade da periferia do centro
urbano onde trabalha, pois as crianças e suas famílias eram muito pobres, com
problemas de saúde e higiene, a escola era localizada na parte baixa de um morro e
considerada o quintal das casas das crianças; portanto, tudo que acontecia na escola
era acompanhado pelas mães, que gritavam de casa mesmo. Para Carmela, o maior
desafio foi conquistar aquelas mães e a comunidade, ao fazer com que a escola
ficasse mais agradável para os alunos, mas também para os pais. Então, conseguiu
introduzir um curso de alfabetização para os pais à noite, no qual passou também a
dar aulas.
Mas essa foi a única experiência como alfabetizadora, pois Carmela só escolhe
as turmas a partir da segunda série, porque “não tem paciência”. A imagem
profissional que Carmela tem de si mesma é, além de “mãe”, da “amiga” (como
acredita que os pais a vêem) e de pau-para-toda-obra. Ela chega a verbalizar que não
acha “que os alunos a vêem como professora”. E sobre a função social da profissão,
acredita que é “tornar o aluno um ser pensante, questionador, embora a maioria não
seja”, pois lembra que “têm muitas crianças que engolem aquilo que o professor deu,
digere, aquilo vai embora e acabou”.
Para formar um “ser pensante”, Carmela crê que o professor deve ter respeito
ao seu aluno, domínio do que faz, precisa estudar para dar a aula, sem esquecer de
fazer um planejamento, mas já estando preparado para o “extra” que pode acontecer.
E que “sempre acontece”, porque ela busca trabalhar de acordo com o interesse de
seu aluno: “não adianta querer impor se não é aquilo que eles estão querendo hoje,
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pois sem o interesse do aluno nada funciona”.
A professora, que afirma que nunca “chega de cara feia na escola”, conta de
uma atividade que não falta na sua sala: a hora da leitura da história, que acontece
logo à chegada, com o objetivo de relaxar e, ao mesmo, tempo, concentrar os alunos
para o trabalho escolar. Carmela diz usar várias estratégias durante essa leitura, como
alterar a voz, andar pela sala, contar e mostrar, apagar a luz, fechar a porta, como
forma de manter a atenção das crianças.
Carmela acha que daqui a dez anos estará “em sala de aula”, embora tenha
problemas nas cordas vocais e varizes. Pensa que a profissão a ajuda a “entender um
pouco mais das outras pessoas e fazer diferença nas suas vidas”. Entretanto, embora
afirme que seu maior sonho é ter uma boa aposentadoria, quando lhe perguntei o que
ela considerava como fundamental para ter esse modo de trabalhar, ela respondeu que
apesar da insatisfação com seu salário ela se sente realizada no que faz: “Eu não me
vejo fora da escola”, diz ela.
Iara: a cientista curiosa
Iara mora em Vista Alegre, onde nasceu em 1971
16
. Traz muitas lembranças de
seus avós maternos, ainda vivos. O avô, atualmente com 90 anos, é português
“legítimo” que imigrou para trabalhar na lavoura de café e que mais tarde virou o
escrivão do lugar. Moravam numa casa grande, uma das poucas com telefone, na qual
albergavam as professoras de fora que chegavam para dar aula na escola. Iara se
recorda que foi através dessas professoras que teve os primeiros contatos com livros
infantis. Uma delas, chamada Iara, de longos e admirados cabelos negros, trazia,
ainda, uma bolsa de palha “maravilhosa”, cheia de livros de histórias e de ciências.
Foi quem lhe deu o primeiro que teve na vida, e que guarda até hoje, Os Irmãos
Bichanos, onde ela escreveu pela primeira vez o seu nome. Mas os livros de ciências
eram os mais admirados, pois ela sempre teve curiosidade sobre o corpo humano, as
16
Iara mora perto da escola-da-dona-Clair, numa ampla casa com muitas plantas e um grande lago à
frente, situada dentro do mesmo sítio em que reside sua mãe e sua irmã Tarsila. Nossa entrevista foi
realizada na sala de jantar e seu filho de 6 anos esteve por perto, tomando banho, brincando de
carrinho, jantando e depois dormindo ao colo da mãe, cansado, pois nossa conversa aconteceu das 18h
às 2030h.
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doenças, como se proteger e evitá-las, o cuidado com a natureza.
A atual professora de ciências das quintas e sextas séries lembra que quando
entrou para estudar na escola-da-dona-Clair, aos cinco anos e meio de idade, já sabia
escrever o nome de todos da família, e que, no início, achou a escola “um pouco
chata”, porque não tinha desafios. Mas fala emocionada da primeira professora,
Auxiliadora, que contava com a ajuda da nova estudante para ajudar os outros alunos
na aprendizagem. Iara afirma que até hoje gosta de desafios e novidades, e que “Se
chegar num lugar e perceber que já sei sobre aquilo, (...)eu fico para baixo. Eu gosto
de crescer. Eu não assisto à novela repetida, não assisto a filme duas vezes, eu não
leio duas vezes o mesmo livro. Jamais. Eu não me ocupo com o que eu já sei”.
Iara continuou adiantada no percurso escolar, pois aos 8 anos e meio tinha
terminado as séries iniciais do ensino fundamental e teve que ir fazer a quinta série no
centro urbano mais perto, no ano em que o colégio Viola ainda não tinha a série, que
foi implantada no seguinte. Sobre a escola-da-dona-Clair naquela época, onde
estudou toda a vida, ela narra com alegria como brincava muito e de tudo, e como a
escola era interessante: “Não sei como a gente conseguiu aprender, porque lembro
que a gente saía da escola, (...) ia à casa de minha tia, com minha prima, fazia suco,
cozinhávamos ovo, comíamos e voltávamos para a escola [risos]. (...) íamos na casa
da outra ver a casinha de boneca dela e voltar (...). A escola era o point: era na escola
que eu encontrava as pessoas, na escola que a gente via de quem a gente gostava na
época (que achava que namorava, paquerava). (...) Era muito bom, muito
bom![risos]”.
Iara se lembra de dois professores: Roberto e Jô. Aquele, de matemática,
porque a desafiava, acreditava no potencial dos alunos e dominava os assuntos que
ensinava, o que fazia Iara sentir segurança. Esta porque era “apaixonada e profunda
conhecedora de História”, fazendo com que os estudantes também gostassem do
conteúdo. Como se não bastasse, ela sentia que o professor gostava muito de seus
alunos. É assim que Iara diz se sentir na escola hoje, pois afirma, várias vezes durante
sua narrativa, amar seus alunos. Por isso, é muito exigente com o desempenho
acadêmico, acompanhando-os sempre: “se não gostasse, deixava a vaca ir para o
brejo”.
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Como o antigo professor, Iara costuma dialogar com os trabalhos de seus
estudantes, deixando bilhetinhos, uma forma de deixarem explícitos seus critérios de
avaliação e ajudar o estudante a se conscientizar de seu desempenho. A atitude é
conhecida em toda a escola, pois ela se lembra que uma colega ironizou recentemente
durante um Conselho de Classe que se o aluno “ficou com azul” com ela significa que
vai passar com o resto: “Porque eu realmente sou exigente, e o aluno só vai tirar azul
comigo se ele mostrou conhecimento e se expressou bem”.
Ainda sobre os dois ex-professores, Iara diz ter aprendido um modo essencial
de exercer o ofício, que é buscar se dirigir ao aluno considerando cada um deles como
um indivíduo mesmo.
Se com dezessete anos de profissão ela concebe como “algo natural ter domínio
sobre aquilo que está falando”, também lembra, com honestidade, que a prática veio
mesmo com o tempo. No início da carreira, “chegava, mandava abrir livro, ler o
texto, de onde tirava perguntas para o aluno responder”. Atualmente, ela procura ler
livros, “colocar para eles a experiência sobre uma coisa que vi, que sei como
funciona”. Atitude de quem tem um saber.
Antes de fazer concurso para o estado (e ser “muito bem colocada”) e trabalhar
no colégio Viola, há dezesseis anos, e, portanto, tornar-se colega de trabalho dos
queridos ex-professores referidos antes, Iara trabalhou em uma escola municipal
distante (para onde ia de carona em caminhão de leite e depois seguia a pé), como
diretora e única professora de três alunos filhos de lavradores imigrantes nordestinos.
Recebeu de presente o contrato de trabalho do então prefeito municipal no dia de sua
formatura
17
. Iara ainda lecionou em outra escola multisseriada por uns meses,
enquanto esperava por uma vaga no Viola, onde desde o Normal sonhou em
trabalhar: “a referência de escola que funcionava com mais alunos, a mais
interessante”. Lembra de como tinha vergonha de ter uma aula ouvida pelas “outras
17
O papel de diretora ela considera que foi “o fim da picada”, porque “queria dar aula” e não sabia
sequer como fazer o “mapa da merenda”. Como professora, o desafio foi conquistar os alunos, porque
ela foi considerada por eles, no início, como uma “estrangeira”. Desafio vencido desta forma: “Uma
coisa é certa: eu sempre fui muito carinhosa com meus alunos, sempre muito próxima deles! Acho que
essa coisa de o professor morar no lugar é muito bom, porque quem faz para o lugar faz por amor, faz
para quem conhece, de quem gosta. Acho isso muito interessante”.
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professoras mais velhas, que sabiam mais” e de como custou a aprender a fazer e a se
situar.
Para ajudar, começou a fazer vários cursos adicionais, de português, inglês,
estudos sociais e matemática, aproveitando o momento de recém-casada e sem filhos.
Com eles, além de “apreender demais”, teve muito prazer e que, portanto, “nunca
faltava às aulas”. E que depois voltou para a escola “cheia de idéias”
18
, que costuma
transformar em projetos.
Sobre isso, Iara afirma que se ressente de não ter atualmente apoio da direção
para tocar seus projetos, pois dona Clair parece não dar importância a eles, “não
contribuindo nem no aspecto material”
19
. Acredita que ela até que gosta do seu jeito
de trabalhar, “porque levo a sério, porque não falto, porque tenho domínio sobre
minha turma e nunca levo aluno para a secretaria, nunca expulso”.
E a crítica à direção se estende a outros aspectos. Apesar de considerar “a
importância fundamental de dona Clair para o Viola”, Iara reclama do jeito que ela e
a filha, a professora Mariana
20
, tratam com desrespeito os alunos com problemas de
aprendizagem, com “pouco caso os pais dos alunos, às vezes nem os recebendo”, de
como dão tratamento diferente aos funcionários mais humildes, lanches diferenciados
aos professores dos dois turnos em dia de Conselho de Classe (com melhores lanches
para os do turno da tarde, ao qual Iara pertence, deve-se dizer). E resume: “o jeito de
falar é cheio de autoritarismo, aquela coisa de donos de fazenda e de cafezal,
acostumados a mandar nos empregados”. “E quanto mais humilde, menos respeito
têm”.
18
A primeira vez que ouvi falar da professora Iara foi antes de começar a pesquisa e ela me foi referida
como “a professora dos projetos”. Ela participa de todos, inclusive do Projeto Político Pedagógico, que
sabemos, não conta com a participação do coletivo da escola. Iara alega que “professor de ciências tem
mais facilidade para tocar projetos”, mas, embora eu concorde com esta opinião, considero que a
prontidão está para além da disciplina e tem a ver também com uma atitude pessoal de gostar de
desafios, de estudar e pesquisar.
19
E relata a última tentativa, no ano passado, de realizar um projeto em parceria com a Petrobrás para
a criação de uma mini-estação de tratamento de água na escola, que se constitui como um problema
local, e que serviria como tema gerador dos trabalhos escolares. Sobre tal projeto dona Clair comentou
que precisavam “amadurecer a idéia” e que Iara completa: “E a idéia está amadurecendo até hoje”.
20
Que tem duas matrículas no estado, atuando na escola como professora de Geografia e sujeito desta
pesquisa, e, ainda, como auxiliar de secretaria, uma espécie de vice-diretora de fato.
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O momento atual, iniciado em 2000, quando seu filho nasceu, é considerado o
melhor. Antes, durante dez anos, Iara trabalhou “dobrado” no Viola e em outra
escola, porque precisava de dinheiro: “meu pai tinha morrido há pouco tempo, e as
roupas, os sapatos, tudo que eu sempre quis ter na minha juventude, eu via ali essa
possibilidade”
21
. Outra tentativa de melhorar o poder aquisitivo foi a abertura de uma
confecção de moda íntima, que durou um ano. Iara percebeu que estava atrapalhando
seu trabalho na escola e diminuindo demais seu tempo com o filho.
Iara nunca pensou em sair do Viola, mesmo quando morou em uma cidade
situada a 50 Km de Vista Alegre. Também não gostaria de trabalhar em escola
particular, porque gosta de pessoas simples, humildes, “dessa coisa tranqüila, rural”.
Acredita que o melhor é que a maioria das crianças tem o mesmo estilo que ela, é
mais tranqüila e simples. Para esses “alunos da roça”, a escola continua sendo o point,
pois eles são pessoas “que ficam mais isoladas, filhos de lavradores, crianças que
andam muito a pé”, “vivem no seu mundinho silencioso”. Depois de trabalharem
diariamente na roça de segunda a sábado, eles dedicam os domingos ao ócio, andam à
toa, de bicicleta ou a cavalo, visitam amigos e parentes, e, ainda, revêem os cadernos
e livros escolares. Apesar deste aparente interesse pelo estudo, para Iara, eles acabam
“dando mais trabalho para se expressar, colocar a opinião, desenvolver uma resposta
àquilo que você quer”.
Entretanto, Iara reconhece que há novos alunos chegando à escola
22
, gosta de
todos os tipos (“eu gosto da emoção, do calor do aluno”), embora afirme preferir os
“falantes”, que participam e que contestam uma afirmação de conteúdo ou até uma
nota baixa. Acredita que eles a vêem como uma amiga (muitos costumam ir a sua
21
A experiência foi uma decepção em todos os sentidos, porque além de o salário de regime de
contrato ser pior que o de professor concursado, a escola tinha uma péssima direção, os alunos,
péssimo desempenho, e alguns professores discriminaram a professora Iara, “porque cheguei querendo
trabalhar”, diz ela.
22
Como escrevi no capítulo sobre a escola-da-dona-Clair, a professora nos fornece uma classificação e
descrição para ele, o aluno de “beira-de-rua”:
mora no loteamento, a mãe trabalha fora o dia todo e ele fica sozinho até a hora de ir para o
colégio, e só vão se ver à noite. Esse aluno anda à vontade, não tem muito compromisso, chega
com atividade sem fazer, tenta colocar o estojo em cima e tenta dar uma desculpa. Por outro
lado, ele tem uma cultura geral (entre aspas) maior um pouco, porque vem mais à quadra de
esporte, vai mais à igreja, lida com pessoas de fora que se mudaram para o loteamento, ele se
mistura com pessoas diferentes, de diferentes lugares, vê mais televisão, faz mais pipoca, come
mais hambúrguer no “Toninho”, sai mais final de semana na rua, anda mais de bicicleta.
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casa tirar dúvidas de várias matérias, enquanto ela está lavando roupa pela manhã),
embora “não faça questão disso”, uma vez que acha “interessante essa coisa de
professor e aluno”, que cada um tenha sua postura.
Iara desejava ter feito faculdade de Biologia ou Enfermagem, mas “não queria
sair de Vista Alegre nem podia financeiramente”. Sobre o exercício da profissão que
afirma ter “escolhido” por falta de opção, ela diz: “tem que gostar, ter segurança e um
carisma que faça com que os alunos gostem daquele momento e sintam que aquele
momento está fazendo crescer, está trazendo novidade. Não vou repetir aquilo que se
ele for procurar no livro ele vai encontrar sozinho”.
Há um lamento sobre o modo de exercer o ofício dos professores do sexto ano
em diante que é que o professor interfere menos na vida dos (pré)-adolescentes do
que faz com crianças: “Eu não consigo (...) fazer cada um ir andando no seu tempo,
respeitando a etapa de cada um. (...) Eu tenho o tempo curto, duas vezes por semana,
e um certo programa que eu acho até interessante (...)Eu paro e penso: ‘muita gente
ainda não conseguiu. Aí, paro e dou aquela explicada. Tento fazer de uma forma
diferente, mas com todo mundo, adiantando quem já conseguiu.”
Para finalizar, destaco duas características da professora Iara, expressas em
duas falas: “Eu tenho muita sinceridade com meus alunos”; e “gosto muito dessa
coisa de história: eu gosto de falar que aprendi a ler no Viola, que me formei no
Viola, que trabalho no Viola, que meu filho estuda no Viola. Eu gosto desse
ambiente, dessa história, desse contexto”.
Isaura: a profissional séria (mas brincalhona) e encantada (mas
desestimulada)
A professora de língua portuguesa e literatura do colégio desde 1988 me
recebeu em sua simples casa, onde nasceu há 42 anos, situada em um bairro pobre na
zona urbana central do município
23
.
Isaura é filha de uma mulher negra, semi-analfabeta e mãe de oito filhos, que
23
A principio, com uma certa cerimônia, sugeriu que ficássemos na pequena sala de estar, mas logo
mudou de idéia e nos transferimos para a cozinha, por podermos ficar sentadas em uma mesa e
acomodar melhor o gravador.
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enviuvou grávida de 4 meses da professora, e que teve que lavar roupa para fora a fim
de sustentar todos, pois a pensão deixada pelo marido, funcionário da extinta Rede
Ferroviária Federal, nos anos de 1960, não bastava. Todos os irmãos tiveram acesso
ao estudo e só não se formou em escola “quem não quis”.
A avó materna, com quem, ao contrário do pai que nunca conheceu, Isaura teve
uma longa convivência, pois morreu com quase 100 anos, era uma “grande mulher,
muito forte, muito sábia, muito inteligente, apesar de praticamente não ter tido
nenhum estudo na vida”. Ela ajudou Isaura na sua formação moral e profissional, pois
insistia, junto com a mãe, para que ela estudasse, que “fosse alguma coisa na vida”.
Isaura sempre gostou de estudar e de várias disciplinas, tanto que na hora de
escolher o curso na universidade particular em uma cidade próxima fez vestibular
para Matemática, matriculou-se em História e, com uma semana de aula, transferiu-se
para o Departamento de Letras. A escolha final se deveu ao fato de ter sempre tido
ótimas professoras de português. Mas este foi o único curso que fez em uma escola
particular, pois freqüentou a vida inteira as (na época) boas escolas públicas da
cidade, numa das quais eu mesma estudei até a quinta-série.
Já antes de cursar a faculdade, Isaura, que desde adolescente sonhava em ser
repórter de televisão, percebeu que a formação na escola Normal poderia garantir-lhe
um trabalho em curto prazo. Foi quando Isaura descobriu que “acompanhar o
crescimento de uma criança é uma “coisa que encanta” e que muito a satisfaz. O
professor pode “promover mudanças no aluno, na pessoa. A pessoa não sabia nada e
de repente começa a saber um monte de coisa. Esse conhecimento. Acho isso
maravilhoso!”, relata ela emocionada.
Por outro lado, a professora, que leciona a partir da quinta série até o curso
Normal, também na escola pública onde nós estudamos, vive um momento de
desencanto com a profissão, porque acreditava “realmente que as coisas podiam
melhorar, que alguém ia levar a educação a sério. Mas estou vendo que cada governo
que passa as coisas não mudam; mas, pelo contrário, pioram”. Apesar do desânimo,
Isaura conta que tem dia que eu sai de casa
(...) bem desanimada para dar aula, mas eu consigo fazer uma coisa bem feita, vejo que
o aluno acompanhou bem (...) o que me propus a fazer. E volto para casa tão satisfeita!
(...)Achei que com 22 anos eu já ia empurrar com a barriga. Mas eu não consigo ainda.
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Estou desestimulada? Estou. Não pelo aluno e pela função de ensinar, mas pela
engrenagem toda que temos vivido na escola: desvalorização, falta de material, de
incentivo, de reciclagem, de tudo que a gente gostaria de poder fazer e não tem
condições de fazer, até porque o salário não permite.
O momento é de pouco investimento no ofício, mas nem sempre foi assim. A
longa carreira se iniciou em uma escola rural multisseriada, como unidocente.
Lembra que quase ficou “doida”, mas que, embora desgastante, foi uma experiência
interessante, porque o professor primário tem a responsabilidade de “ensinar ao aluno
a decodificar, a ler, a escrever, a aprender a sua língua realmente”. Hoje, como
professora das séries mais adiantadas, ela só tem que “lapidar” o que foi trabalhado.
Além de longa, a carreira de Isaura é rica, pois já exerceu, ainda, durante cinco
anos, o cargo de vice-diretora na outra escola em que trabalha, período em que diz
“mais ter acreditado na educação” e, ainda, o único em que esteve afastada do colégio
Viola.
Das antigas professoras lembradas, uma com quem se “identificava muito com
o jeito de trabalhar”, muito amiga, muito aberta, que “brincava, ria, ensinava de uma
maneira que você não via o português como aquela coisa maçante, difícil (...) Eu acho
muito importante essa identificação do aluno com o professor, para ele ter mais
vontade e facilidade para aprender a disciplina”.
Embora seja aberta e brincalhona com seus alunos, Isaura é tida como uma
profissional séria (“não sou do tipo que enrola, que vai para lá bater papo” diz ela).
Acha que os alunos a consideram “linha dura”, reclamam que ela não passa nenhum
filme, ao que ela responde: “ filme só se for de acordo com a matéria. Se não, vamos
ao cinema juntos no sábado”. Atividade, aliás, que ela gosta muito de fazer, além de
ler, bater papo com os amigos, viajar pelo Brasil e conhecer pessoas novas, atividades
que pretende fazer quando aposentada.
Ao falar da faculdade, lembra-se de uma professora de literatura portuguesa, “o
exemplo de professora” que tentou imitar, que “amava o que fazia”, preocupava-se
com a escrita do aluno, com quem sentava individualmente. Contudo, a faculdade é
considerada a “instituição onde mais se decepcionou em relação à aprendizagem”,
embora reconheça que o período abriu seus caminhos.
Isaura costuma dizer que aprendeu português ao começar a dar aula, ainda na
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faculdade, no colégio Viola. Teve as professoras Tarsila e Iara como as primeiras
alunas, numa turma pequena, de alunos muito bons, a quem podia dar um
atendimento individualizado
24
. Ela se recorda que “(...) pegava o conteúdo que eu
tinha que trabalhar no dia seguinte, chegava na faculdade fazia as perguntas que não
sabia como abordar, e estudava”. Aprendeu não somente a abordar o conteúdo, mas
o próprio conteúdo.
Quando lhe perguntei o que de sua vida ela considerava fundamental para ter o
estilo de ensinar que tem hoje ela respondeu que teve “boas influências, bons
professores (...).a seriedade de fazer o trabalho, de querer realmente que o aluno
entenda qual é o objetivo (...), a importância que aquilo vai ter para a vida dele. (...)
Não que isso tenha sido a coisa mais importante, porque seu estilo você vai
moldando de acordo com a situação, de acordo com sua experiência, de acordo com
aquilo que o ambiente te oferece. Você acaba tendo um estilo de trabalhar, um jogo
de cintura para fazer a coisa”.
Mais do que estudiosos, os estudantes do Viola são vistos como “muito
interessados” pelo trabalho escolar, e, portanto, disciplinados, que não causam
problema. Até porque Isaura estabelece os limites da convivência logo no primeiro
dia de aula e os segue com rigor. E fala com orgulho da atual turma do terceiro ano
do ensino médio, e também de como dentre os 50 alunos do ensino médio que atende
neste ano apenas 5 são difíceis de lidar, pois “têm as notas muito baixas, não fazem
quase nunca as tarefas e você tem que ficar em cima cobrando”.
Entretanto, Isaura atesta que a realidade do Viola mudou de uns cinco anos para
cá, em vários aspectos, inclusive no que se refere ao alunado, agora em maior
número, mais disperso e desinteressado, ainda que continue sendo o melhor que ela
tem, tanto que não se incomoda em viajar mais de 50 km, duas vezes por semana,
para lecionar lá. Essa atual realidade, associada à miserabilidade de recursos da
escola pública, faz com que o professor também tenha que mudar:
Porque se você precisar fazer dessa maneira e o colégio onde você trabalha não te dá
essas possibilidades e você insistir que quer dessa maneira você não vai a lugar
nenhum. Tem que ter jogo de cintura, saber que pode no futuro ultrapassar, mas que
24
Segundo ela, este tratamento que faziam com os alunos do ensino médio (todos os professores) fez
com que o colégio tivesse um rendimento bom, que os alunos tivessem um bom desempenho nas
avaliações externas.
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nesse momento não dá. Tem que ter essa maneira de rever a situação. Com certeza a
preocupação maior ainda tem que ser o aluno. Tem gente que diz: “não esquenta a
cabeça, não. Não quer, não quer”. Eu acho que a gente tem que buscar uma maneira de
fazer ele querer!
Para ela, falta material e uma gestão mais atuante no colégio: “os professores
têm sentido dificuldade, porque as salas são pequenas e vivem sujas, o mobiliário não
é adequado (as carteiras são duplas, e não permitem um trabalho individual)”, não há
material visual (como fotos, retroprojetor) para enriquecer e estimular, por exemplo,
as aulas de literatura. Isaura exalta a chegada dos computadores à escola. Conta que
para os estudantes foi maravilhoso, porque ela começou a desenvolver aulas com
redação, redação comercial, ofício, currículo etc. e que planejou, com a internet neste
ano, fazer um trabalho com mais pesquisa. Mas aí faltou o orientador tecnológico.
E conclui que o que falta principalmente é direção, pois se ela, com vinte e dois
anos está desestimulada, o que dizer da dona Clair?: “Vista Alegre está precisando de
sangue novo, não desmerecendo o trabalho dela, pois ele é muito bom. Dona Clair é
uma mãe e não uma diretora. (...). Tem que haver uma reestruturação (espaço físico,
pedagógico, direção, servente), porque o colégio vem caindo”
Isaura ainda atesta o excesso de funções da escola hoje, o que traz para o
professor a responsabilidade da formação de caráter, de encaminhamento do aluno
para a vida, além de ensinar conteúdos. E diagnostica, com muito discernimento, que
a escola “está desestruturada para assumir tanta responsabilidade”. Ao final da nossa
entrevista, a professora, que acredita “já ter sido muito melhor que hoje”, alerta: “A
escola tem que mudar e rápido, porque, se não mudar, é uma instituição falida,
falida! Não vamos daqui a pouco ensinar nem o que os livros trazem, nem para a
vida. Porque está muito difícil fazer! Muito difícil!”.
Bel: a pesquisadora franca e necessária
Bel tem 47, três filhos (23, 19 e 16 anos) e é casada com um caminhoneiro, que
ela considera “um parceiro”, pois respeita seu espaço
25
. Nasceu em Santo Antônio,
25
A conversa com a professora aconteceu no mês de abril de 2007, na varanda da casa do sítio dos
meus pais, situado no mesmo município e próximo à zona urbana, local escolhido por ela em
detrimento de sua casa, que alegou estar com hóspedes. Começou às 9 e meia da manhã e durou até às
11h40, com um pequeno intervalo de vinte minutos.
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lugarejo perto de Vista Alegre. A família é de agricultores que moram até hoje nas
terras que possuem desde o início do século passado, embora Bel resida desde que se
casou no centro urbano. O avô materno é lembrado como “uma pessoa
empreendedora”, muito “avançado” e “ousado” para sua época, tendo introduzido,
por exemplo, a lavoura de tomate na região. No entanto, ele “não era um bom
administrador, administrava com o coração”, característica pessoal com a qual ela
parece se identificar, pois tece o mesmo comentário sobre si quando fala sobre as
finanças, que parecem ser, contudo, boas.
O pai, além de lavrador, era motorista, produzia e vendia os alimentos na feira,
trazendo produtos da cidade para comercializar numa vendinha próxima de casa. A
mãe de Bel, “que tinha sido uma excelente aluna numa escola de Vista Alegre,
conseguiu, por coisa política, dar aula”, pois era filha do então prefeito municipal,
que montou uma pequena escola em um dos muitos cômodos de sua antiga casa de
fazenda: “A escola era mamãe”diz ela. E ficava ao lado da casa onde moravam seus
pais, dentro da fazenda do avô, atendia a mais de 40 estudantes, a maioria
“marmanjos”: “aquilo ali era o nosso metier, era o ambiente em que a gente vivia”,
reflete ela.
E foi no dia-a-dia desse ambiente “família-escola” que ela diz ter sido
alfabetizada. Na época de ir para uma escola, a mãe quis que ela tivesse outro
professor e mandou-a para uma distante, para onde ia de bicicleta. Estudou sempre
em escolas públicas até o curso Normal, que teve que ser pago, mas Bel já trabalhava
como comerciante na cidade quando fez magistério, escolhido, em primeiro
momento, pela facilidade em arrumar trabalho. Contudo, cursando o magistério, ela
descobriu que se identificava mais com outro trabalho, “com a criança, mais voltado
para a criança”. E completa: “eu achei que por ali eu ia ser feliz e que aquilo ia me
satisfazer”.
Ao final, anotei no diário de campo que Bel “sabe propor uma conversa franca”, frase produzida
por ela durante a entrevista, em relação ao seu trabalho. Escrevi, ainda, que a nossa conversa pareceu-
me “catártica”, pois ela por diversas vezes se questionou, assim: “Como é que eu nunca parei para
pensar como eu me sentia como professora? Por que eu nunca questionei isso?”. Além de ter rido e
chorado várias vezes. Por fim, observei que ela parece ter se sentido muito íntima de mim, assumindo
uma posição de simetria durante a entrevista, uma vez que repetia, quase em cada frase, meu nome e
parecia muito à vontade.
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Iniciou imediatamente sua carreira docente, colocando-se à disposição para
“quebrar um galho” e substituir as professoras na escola pública estadual, onde havia
estudado, a mesma onde eu e Isaura estudamos. Do curso Normal, as professoras
lembradas são Leilá e Isabel, a primeira porque não ficava só no conteúdo, mas “tinha
uma visão de que o seu aluno seria um professor amanhã”, e, com quem aprendeu a
organizar seu pensamento, pois ela cobrava que se registrassem e sistematizassem as
idéias. Isabel, considerada “um espelho”, ensinou-lhe o jeito de dar o conteúdo, como
cumprir o currículo, mas principalmente a ouvir o que o aluno tinha de necessidade.
Ainda, ela lamenta de não ter dado mais importância aos estudos quando menina, e
seu desejo é poder voltar a estudar, que espera acontecer quando se aposentar,
momento em que planeja, ainda, viajar
26
.
Embora reconheça a importância dos aprendizados acadêmicos, que foram
acontecendo de acordo com as necessidades do ofício
27
, Bel acredita que o exercício
da profissão, por 28 anos, seja o maior aprendizado que tem tido: “é a minha
faculdade”, diz ela. Se lhe faltam os conhecimentos teóricos, a compensação vem na
troca com seus alunos, no saber fruto da lapidação das informações que os estudantes
trazem e desejam aprender.
Este é o principal motivo que levou Bel a ir trabalhar na escola-da-dona-Clair,
distante 23 Km de sua casa, como professora das séries iniciais, há 11 anos atrás:
“Por isso é que não quero sair da escola, porque quanto mais você trabalha com esse
povo mais afastado da cidade... Eu acho o ambiente muito mais rico, porque eles são
26
Ela recorda de como aprecia um passeio que costuma fazer uma vez ao ano à cidade do Rio, quando
viaja para “outro mundo” e toma “um banho de civilização”: vai ao cinema, teatro, visita galerias de
pinturas (a professora pinta nas horas vagas), levada por uma amiga carioca, com quem aprendeu
também a andar de elevador.
27
Assim, quando foi chamada para trabalhar em uma escola municipal com uma turma de alunos
especiais e repetentes, a professora começou a freqüentar oficiosamente um grupo de estudo de casos
oferecido pela Secretaria de Educação de Darcy Ribeiro em uma cidade próxima, e ministrado pela
UFF. Foi quando voltou a estudar e “quando criei força”, nas suas palavras. Nesta época, com 10 anos
de profissão, conheceu (e se encantou com) o trabalho de Heloisa Villas Boas, que a orientou por um
tempo, chegando a receber Bel em sua casa por cinco vezes, e cujo livro ainda é uma “guia de trabalho
até hoje”, mais “porque a presença dele ali me faz voltar atrás e ver como eu sofri, acho que muito por
falta de estudo”, lembra ela.
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voltados para as raízes. (...)Eles têm muitos conhecimentos que o povo da cidade
maior banaliza. E são coisas com que eu me identifico”
28
.
Se ela percebe que “as formas de vida dos alunos a enriquecem”, também
lamenta que “os alunos estão cada vez mais urbanos”, pois as famílias, por falta de
incentivo, estão largando a lavoura própria e se empregando como assalariados, cujo
retorno é pequeno, mas certo
29
. Dos conteúdos trazidos pelo alunado do meio rural,
ela reconhece que “muita coisa é crendice que passa de pai para filho”, mas que ela
aproveita para trabalhar os conteúdos acadêmicos. Ela ouve as histórias e, então, os
convida a “procurar, a fazer pesquisa, a descobrir, por exemplo, como a cobra vive,
do que ela se alimenta, como se reproduz, se anda em par realmente...”. Ao ser
perguntada como faz pesquisa com os tão poucos recursos da escola, Bel afirma que
vai à biblioteca, agora aos computadores, mas costuma muito ir à vizinhança
30
.
Em relação ao dever de casa, aparece o maior problema citado pela professora,
pois ela reclama da falta de troca entre a escola e os pais, a maioria analfabeta. E
conta de um menino que nunca acerta os deveres de casa: “A mãe no outro dia esteve
na escola e eu pedi ajuda para acompanhar. Mas ela não tem condições. A
28
E narra, a título de exemplificação, a história de um alimento comum na região, a farinha de
cachorro: “Você conhece? Aquilo é um alimento super nutritivo. A avó de um aluno me contou que os
pais e avós torravam o fubá, (...) misturam com o amendoim, para saírem para as caçadas. Aprenderam
com os índios. Isso me identifica, eu gosto. Aí, eu tenho vontade de sair, de procurar, de saber o por
quê, o por quê. Eu com a criança”.
29
Em suas palavras:
a cada ano é um aluno que deixa cada vez mais a raiz dele para vir para o mais fácil, que é o
Arraial. A mesma história de quem sai daqui para a cidade grande. Eu acho que isso é uma
pena: vivem na roça, mas não vivem da roça! Enquanto um agricultor que se preocupa em
plantar (fazer uma lavoura de aipim, de inhame, de feijão, de banana, de abobrinha, tem sempre
o milho em volta de casa, tem muita criação de galinha e porco) fortalece o lado econômico e
complementa de uma maneira mais saudável, esse que vive na lavoura e vive do salário mínimo
come super mal. Neste ano, por exemplo, dos meus doze estudantes, apenas três trabalham a
terra e assim mesmo dois são produtores de flores, usando uma quantidade tão grande de
veneno, que chega a arder a garganta. Os pais dos outros alunos trabalham em confecção, no
comércio local, e um outro “tira madeira no mato, que eu falo que é o inimigo da natureza”,
brinca ela.
30
E traz um exemplo de uma recente realizada sobre o lixo produzido:
Eles levam para casa uma série de perguntas para fazer aos vizinhos: onde põem o lixo quando
mata uma galinha, descasca uma banana, vai tudo misturado com o papel higiênico?
Perguntinhas bem “inocentes”. Vem as respostinhas, que a gente vai tabelando em forma de
gráfico. Tem gente que joga lixo no meio de um pedregulho, dizendo que lá não mora ninguém.
(...) E a gente começa a questionar a duração dos lixos. Eu trabalho muito em cima de linha do
tempo, Eloiza.(...) A gente começa nesse meio e eu vou por aí.
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matemática que ela aprendeu não dá. Ela só decorou que 3x2=6, e eu quero levá-lo a
pensar que também pode ser 1+1+1+1+1+1=6. E não decorar apenas. Todos os
deveres que ele levou essa semana estavam errados!”. A isso se acrescenta que
muitos pais têm pouco tempo de comparecer à escola, neste sentido, assumindo uma
postura meio “toma que meu filho é teu”.
Sobre a escola-da-dona-Clair, onde já atuou em todas as séries iniciais e
também por meses como vice-diretora, Bel queixa-se da direção, que, segundo ela
vem piorando, pois dona Clair “é muito mãezona e não cobra”, mas depois vira a
carrasca. Ainda, ela se diz irritada com o fato de dona Clair lidar com a escola como
“a patroa, a dona da fazenda”, que faz política em detrimento da escola, citando para
justificar o fato que ela deixou que o estado retirasse o pré-escolar neste ano para
favorecer a entrada de uma nova escola municipal nas redondezas, para “dar asas ao
prefeito”, seu aliado. “Como o Estado quer acabar com nosso ensino de primeira à
quarta, nós estamos ‘colaborando’ dessa maneira”, diz ela. E completa: “isso é um
efeito cascata e, no ano que vem, o número de alunos da alfabetização é menor”.
Bel também reclama da falta de oportunidades formais de planejamento
coletivo, porque este pode dar a visão do todo da escola, promover a integração e
ajudar a resolver os problemas dos alunos. Ela exalta a coordenação pedagógica e a
insistência da mesma em realizar planos de trabalho com metas semestrais do grupo
de professores. Sobre o Projeto Político Pedagógico, ela comenta que até se discute,
mas apenas para cumprir uma ordem.
Ainda sobre a “faculdade” da professora Bel, aos 21 anos de idade assumiu
uma escola rural como a única professora e diretora numa comunidade próxima de
onde nasceu. Reconhece que sua “formação não ajudou nada naquele momento”, pois
era tudo “muito adverso”. “Comecei a ver que eram tantas as minhas atribuições que
eu não ia dar conta: era mapa de merenda, diário, organizar toda a escola, dar aula,
lidar com o pai que vinha chegando, com o aluno que nunca tinha visto nada junto
com outro que já estava lá”, relata ela. Após o período inicial em que dizia “Eu vou
morrer”, Bel pediu ajuda a uma colega mais experiente sobre a alfabetização (“resolvi
começar do começo”, lembra ela), separou os alunos por série e adotou uma cartilha
(“como se aquilo fosse tudo que eu precisava para formar um aluno, um leitor”). Em
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novembro daquele ano, “meu pára-quedas arrebentou e bati de bunda no chão”, fala
ela, ao ler um aluno escrever “Xico, xiscondeu o xinelo. Assim mesmo: tudo com x”.
Ela acha que se “saiu dessa” pelo sofrimento, pessoal e dos alunos, mas
acredito que uma outra razão esteja nestas palavras que seguem o relato anterior:
“Como eu achava que não tinha dado nada certo, eu mudei tudo! Comecei a brincar
de pique bandeira, comecei a integrar a escola, porque eram duas realidades que eu
havia criado no primeiro ano, e sofri para diluir aquilo. Botei tudo numa sala só e
comecei a trabalhar dentro do meu instinto.”
Indispensável, já nesta época, também a ajuda dos alunos e, mais uma vez, o
sentido do trabalho escolar em suas vidas, como ela relata:
Eles [os alunos] eram muito compromissados, já eram maiores do que hoje (eles estão a
cada ano mais novos), os de terceira me ajudavam com os de segunda e os de quarta me
ajudavam com os de segunda e terceira. Os de alfabetização limpavam, varriam e eu era
uma professora de dar muita coisa no quadro. Mas eu me afinei com a comunidade com
um jogo de pique bandeira, porque eles ficaram mais espertos, mais atentos. Viram que
a brincadeira tinha sentido, que a gente jogava e fazia registro com ela, o que tinha
problema na perna marcava o tempo. Aquilo ali foi minha bola 7: eu marquei todos os
pontos! Deu certo!
Bel tem consciência que “deu certo” basicamente, em suas palavras, “porque eu
comecei a me colocar no lugar dos alunos e dos pais. Comecei a enxergar de fora da
escola. E a colocar aquilo como objetivo dentro da escola”.
Depois de lecionar para mais de mil alunos (cujos nomes estão em uma lista),
era de se esperar que Bel estivesse cansada. Mas ela diz que não, e que nunca sentiu
monotonia, mesmo depois de 28 anos no exercício da profissão. Acredita que seus
colegas de escola e os alunos a consideram brava, mas ela se tem, principalmente,
como franca e honesta: “mesmo sendo brava, enérgica, eu sinto, eu percebo, eu me
aborreço, eu me entristeço, eu fico feliz. Eu não me sinto anormal na escola”. Ela se
diz, ainda, “necessária”, pois dá limites e nunca nega aos seus alunos uma
informação, mesmo que isso possa lhe causar algum problema com a direção, com os
colegas ou com as famílias: “Eu não minto, eu não minto”. E se defende
argumentando que em sua sala “não é tudo permitido, nem tudo é proibido”, mas que
apenas sempre busca cumprir o que planejou com seus alunos.
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Bel tem uma rotina de trabalho que começa com uma conversa informal de dez
minutos sobre o que eles fizeram no dia anterior ou no fim de semana. Ela escreve no
quadro uma agenda das atividades planejadas, mas logo emenda que às vezes começa
a rotina do fim para o começo, outras do meio, porque sua proposta não é fechada e
todos, coletivamente, podem mexer. A seguir, há sempre uma leitura de uma história,
curta ou mais longa (esta empreendida em capítulos diários), feita até o meio do ano
por ela, e a partir do segundo semestre, pelos alunos, individualmente ou em par,
atividade que eles prepararam em casa, com antecedência. Para ela, ler diariamente
tem dois objetivos: funcionar como um pano de fundo para o trabalho; e, também,
melhorar a escrita, pois ela vai “deixando com eles uma série de arquivos e numa
hora que ele vai precisar escrever ele vai buscar nesses arquivos”. À atividade de
leitura, segue-se um momento de interpretação com comentários dos alunos, e,
depois, ela lê o título da história ou capítulo a ser abordado no dia seguinte, porque
gosta de “levantar as possibilidades do que eles acham que pode acontecer”. Em
seguida, a professora corrige individualmente os deveres de casa, porque acha
importante descobrir “os caminhos pessoais percorridos por cada um para chegar às
respostas dos problemas”. Para isso, ela faz uma atividade paralela com os outros
alunos, que trabalham em grupo ou em pares, um ajudando ao outro.
A introdução de um conteúdo disciplinar novo é feita com gravuras (“sempre
algo bem ilustrativo”, diz ela), mas em forma de desafio: “primeiro eu faço um
levantamento de hipóteses sobre qualquer assunto. Geralmente eu uso muito jornal,
porque é uma coisa diferente. (...) Eu acho que desequilibro aquilo que é muito
certinho nele. Quando eu me proponho a esse tipo de desequilíbrio, eu quero uma
resposta sobre que caminho eu vou seguir. Ali eu vejo muitas dúvidas deles”.
A estratégia de motivação comumente usada por ela é a do “por exemplo”. E os
exemplos são sempre assuntos ligados diretamente à vida das crianças, têm, portanto,
um sentido. Entretanto, Bel acredita que o que realmente faz seu trabalho funcionar,
em suas palavras, “é que eu tenho muita vontade que eles sequem as asas lá na minha
sala. Sabe a borboletinha, que vai secar a asa para voar?”.
Quando lhe perguntei o que ela considera fundamental para seu estilo de
ensinar, ela respondeu com outra pergunta: “Tem certeza que já não respondi isso?”
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Mas gentilmente, completa: “Uma coisa é que aprendi a refletir e aprendi a avaliar
(...).ela serve para eu trabalhar melhor no ano que vem (...) sou muito ansiosa e não
tenho nada pronto. Até viver, me angustia e não me dá prazer. Só quando eu vejo que
a coisa está acontecendo me dá prazer.”
Aquiles, o personagem corredor, inesquecível e individualista
Aquiles é professor de educação física há 24 anos, sendo que há vinte e dois
trabalha na “escola da Clair”, como ele se refere ao colégio
31
. Tem 52 anos e é o
único dos professores que não nasceu na região. Ele é baiano de Feira de Santana e
foi trazido para a periferia da cidade do Rio bebê, pela mãe costureira que fugia da
pobreza, que era tanta que outros dois irmãos foram entregues à antiga FUNABEM,
atual Fundação da Infância e da Adolescência (FIA).
Aquiles viveu quando garoto na Baixada Fluminense, “andando descalço,
jogando pelada” e, é claro, estudando, sempre em escola pública. Ao terminar o
antigo segundo grau, serviu à Marinha, mas, por ser atleta, ganhou uma bolsa de
estudos e foi fazer faculdade particular, na Gama Filho, onde se formou professor em
1980, quando descobriu “que professor ganha muito mal”. Assim, aos 25 anos,
resolveu ser marítimo e viajou durante dois anos pelo mundo como taipeiro, sua
segunda profissão.
Dos tempos de estudante, Aquiles se lembra do professor de inglês,
“espetacular”, pois conseguia despertar o interesse, e, assim, fazer com que o aluno
gostasse da matéria: “porque é uma troca, você tem que gostar do professor e da
matéria. Se você não consegue chegar ao aluno, nem você nem a matéria vão dar
certo”. Outra professora inesquecível era uma de português, que o fazia parar para
ouvi-la “recitar poemas”, o que ele achava “lindo”: “o tom, a entonação, a métrica, a
impostação. O jeito de falar”. E completa: “o professor é um personagem
importantíssimo em qualquer lugar e, por mais que queiram trocá-lo pelo
computador, ele vai sempre existir. Tudo bem que foi minha mãe quem me criou, mas
foram os professores que me ajudaram a me moldar”.
31
Nossa longa conversa, de mais de duas horas, ocorreu na casa do sítio dos meus pais, situado
próximo à residência do professor, que, no entanto, preferiu ir se encontrar comigo.
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Se hoje reconhece que esses antigos professores
32
, mas também o “sargentão”
da Marinha, influenciam no seu jeito de dar aula hoje, lembra que acabou se tornando
professor por ser atleta, esta escolha influenciada por outro professor, que era
corredor. Foi quando “descobriu a corrida que tem uma vantagem: todos são
vencedores, quando conseguem completar. Três meses depois eu estava ganhando a
competição da escola e daí não parei mais”, afirma ele.
A última grande aprendizagem como aprendiz de corredor, na faculdade, foi a
técnica da competição, cuja base é a “sensibilidade de saber o momento de
incentivar”. E hoje, quando leva seus alunos do meio rural para jogarem na cidade,
ele diz ter que “usar a tática para saber como vamos jogar, já que estamos vindo de
um lugar longe, e quando chegamos na cidade somos discriminados: é ‘chuchu’ para
lá e ‘inhame’ para cá. E a gente tem que superar isso”, ensina ele.
Outro ingrediente de sua experiência que considera fundamental ao ofício
docente é a participação em competições, pois estas lhe “mostraram que você sempre
tem algo a melhorar e se superar”. Além de reconhecer os limites, o que só chegou
em um curso de especialização em fisiologia do esforço, quando percebeu que ele não
era o modelo de atleta, mas apenas “um esforçadinho”. Contudo, reconhece “que fez
a sua parte” e chegou a ser o campeão brasileiro nos jogos estudantis
33
.
Aquiles não escolheu a profissão, ela que o escolheu. Formado em educação
física, mudou-se para o interior por ter passado em concurso para magistério do
estado. Estava trabalhando como marítimo, e, entre uma viagem e outra, numa parada
no porto do Rio, recebeu o telegrama de chamada ao trabalho. De estalo, resolveu
largar o ofício de taifeiro e a possibilidade de ser técnico de corrida para “virar
professor”. Mudou-se, gostou do clima agradável, “de correr pelos campos”, e, então,
conheceu a Maria. Mas ainda hoje se sente mexido ao pensar que poderia estar
morando na cidade grande e trabalhando como técnico. Por outro lado, ao perguntar-
32
Nesta escola, havia um programa especial extracurricular de teoria musical, canto orfeônico e
educação física. Aquiles se recorda que, apesar de não ter habilidade nenhuma, ele se metia a aprender
tudo, porque gostava de participar. Por não ter voz para cantar (“ainda mais naquela época da voz
trocando”, lembra ele), e ter achado a leitura de partitura muito difícil, acabou “descobrindo a corrida”.
33
Este curso de especialização foi escolhido porque ele queria compreender melhor a corrida (“penso
em corrida 90% do meu tempo”, confessa ele) e, neste momento da conversa, percebo um único sinal
de dúvida sobre a escolha profissional e de vida.
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lhe o que vai fazer daqui a cinco anos, quando irá se aposentar, Aquiles responde que
vai continuar a estudar e a “ser professor, sempre”.
Apesar da segurança atual, o início da carreira foi “uma tragédia”, já que ele não
possuía preparação, nem condições mínimas de trabalho, “porque o estado só dá os
diários, as turmas e, quiçá, uma bola”. Para dar conta do conteúdo, recorreu aos
cadernos da faculdade, mas diz que quem lhe ensinou o ofício foi “por incrível que
pareça, os alunos. Você aprende muito com os alunos. Eu me escorei muito neles (...).
E até hoje é assim: você tem que sentir os alunos para poder trabalhar. Só que naquela
época eu não tinha a experiência de vinte e quatro anos”.
Um período de grande investimento foi quando se tornou, além de professor
(jamais largou as turmas), diretor de escola e atuou, depois, como orientador
pedagógico de disciplina, quando viveu “um outro lado do magistério”, época de
grande crescimento, o extraclasse, “tão criticado pelos professores, mas tão
necessário”, porque teve que pesquisar, ler, “principalmente a parte pedagógica”.
Aquiles foi convidado por dona Clair para dar aula no Viola, de onde nunca
mais saiu (apesar de morar no centro da cidade, e, portanto, longe da escola), porque
se sente muito bem no ambiente e considera os professores excelentes profissionais e
ótimos colegas. Os seus alunos são “pessoas esforçadas, religiosas, que valorizam
muito a escola, por ser este o único local de convívio social que têm fora da igreja”.
O professor tem uma avaliação muito ampla de seus alunos. Além dos anos de
convívio, Aquiles realizou para a monografia da especialização um estudo fisiológico
dos estudantes da escola-da-dona-Clair
34
. E diz considerar todos esses fatores na
avaliação acadêmica dos alunos, que consiste em uma avaliação prática, uma
avaliação escrita e uma avaliação diária
35
.
34
E conta como eles, por iniciarem o trabalho de educação física apenas a partir da quinta-série (“pois
o estado não cumpre a lei e fornece esse ensino antes”), não recebendo, assim, uma formação de base
(“o rolamento, a cambalhota, a preensão, o passar a bola, aprender a receber, alongamento,
flexibilidade”), têm dificuldades com a coordenação fina (“a apreensão, o toque e até dificuldade para
escrever”). Além desse déficit escolar, a maioria das crianças trabalha desde cedo (alguns com “foice,
enxada, facão”): dos 94 que responderam ao seu questionário, apenas cinco não têm outra atividade
fora da escola e 70% deles trabalha na lavoura. Nesse total, ele verificou que as crianças de Vista
Alegre estão “muito fora do padrão”, pois apresentam uma defasagem grande entre o peso e a altura,
com a existência de “muitos nanicos e peso-leves. Se der um vento, carrega”, brinca ele.
35
Tive acesso a esses critérios de avaliação ainda em 2005 quando fui convidada por Aquiles para
assistir a uma aula, uma das poucas ministradas por ano dentro da sala de aula, e confesso que me
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Aquiles se considera uma pessoa “individualista”, “um chato”, característica
pessoal aprendida, segundo ele, com a corrida, que o “ensinou a fazer sozinho”.
Comenta “que não sabe como a Maria e os colegas o agüentam”. Estes, aliás,
costumam brincar muito com Aquiles, pois o acham responsável, mas, ao mesmo
tempo, engraçado
36
.
Paradoxalmente, Aquiles critica a direção “da Clair” por ela se “recolher muito
na parte burocrática da escola” e não acompanhar o trabalho dos professores,
deixando-os com muita autonomia: “prefiro uma direção que me guie”, declara a
mesma pessoa que acabou de afirmar que gosta de trabalhar sozinho. Ele lamenta,
ainda, o pouco espaço e tempo de interação entre os colegas professores, e afirma
categoricamente ter participado da elaboração do Projeto Político Pedagógico da
escola, que diz seguir até hoje, ainda que sozinho.
Contradições à parte, e apesar de ter intimidade, “muito carinho, respeito,
admiração e reconhecimento ao longo trabalho da Clair pela educação”, Aquiles é
incisivo ao qualificar o trabalho da direção como “fraquíssimo”: “A escola funciona,
mas principalmente por causa dos professores. (...). E o corpo docente é muito bom!
Acho que o grande mérito é dos professores. Podemos reclamar, mas no trabalho
somos muito sérios! Mas muito sério mesmo! O pessoal é espetacular”.
Aquiles crê que “a mudança de comportamento e a transmissão da cultura dos
mais velhos para os mais jovens” é a finalidade da educação e da escola, mas também
reconhece que a educação não está atingindo a todos. Por isso, ele se diz “fã do
Programa Especial de educação do Brizola e do Darcy, porque foi a primeira vez que
se pensou em um programa geral de mudança de comportamento da classe pobre (...).
diverti muito, como relato no capítulo IV. Assisti a mais duas aulas de Aquiles, sempre convidada. Na
última, em outubro de 2006, dividi a cadeira na quadra com uma estagiária de Educação Física em uma
universidade da cidade próxima que se preparava para filmar e que, ao ser perguntada por que estava
fazendo estágio tão longe de casa, respondeu que ele era um professor de Educação Física “muito bem
conceituado no meio, porque sabe unir a teoria com a prática”, não deixa ninguém sem jogar (por
coincidência, uma aluna grávida e sem um braço assistia interessada à aula), tem (e impõe) respeito a
seus alunos; enfim, “parece gostar muito do que faz”.
36
Ele se recorda, durante a entrevista, de uma gozação que costumam fazer com ele (e que eu mesma
presenciei) sobre o fato de ele sempre “andar com uma bolinha debaixo do braço” e usar um “chapéu
emprestado da Maria”, para protegê-lo do sol quente (já que a escola não possui quadra de esportes
coberta).
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Enquanto isso não for resolvido, o problema socioeconômico não terá solução”.
Embora credite à educação um papel de motor das mudanças necessárias a uma
sociedade mais informada, e, portanto, mais igualitária, Aquiles reconhece que
muitos de seus alunos “não vêem objetivo na escola. A escola não consegue mostrar o
aqui, o agora e o futuro. É um pecado nosso. Por isso planejamento é tudo: tem que
saber onde sai e onde chega. Muitos não sabem onde vão chegar. Aquele universo é
uma reprodução do status quo: nasceu pobre vai morrer pobre”. Ele considera o
planejamento o item mais importante de um trabalho docente bem sucedido: “vo
tem que saber quando começa, para onde vai e como chegar. Eu tenho planejamento”,
por ano, bimestre e mês.
Apesar disso, também reconhece que “a aula nunca é a mesma. Só o conteúdo.
Não há estabilidade”. Por isso, adota um estilo de ensinar teatral: “eles são a minha
platéia!”, afirma Aquiles, cuja justificativa para o nome escolhido nesta pesquisa é
porque ele significa “o que quer ser lembrado por gerações e gerações, apesar da
morte”.
William: o comunicador tímido
William tem dois filhos, de 4 e 14 anos, e é casado com uma professora
37
. Mora
numa região rural próxima de Vista Alegre, local onde nasceu há 42 anos. Escolheu
se chamar William como uma homenagem ao personagem do frade franciscano, do
livro O Nome Da Rosa, de Umberto Eco. Este personagem da Idade Média “usa a
razão e a lógica”, como o professor, que se qualifica como “curioso”, tanto que se
tivesse tido a chance de escolher livremente, gostaria de ter sido jornalista
investigativo: “eu gosto de investigar e de escrever”.
Apesar do uso da razão, paradoxalmente, William se emocionou várias vezes
durante a entrevista, ao falar de sua relação com os alunos e de se lembrar da mãe,
uma professora leiga do meio rural nos anos de 1940
38
. Também a avó materna foi
37
A conversa com o professor de História William aconteceu no restaurante de uma fazenda, num
domingo de manhã. O local era silencioso e só fomos interrompidos por sua filha Lara, de 4 anos, que
às vezes vinha até onde estávamos sentados e falava com o pai.
38
A cerca de hora e meia em que durou nossa conversa parece ter sido um período de revelações
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professora leiga em uma região rural “onde quem sabia ler ensinava”. O pai era
lavrador e analfabeto, e um sério problema de saúde o impediu de trabalhar, o que
forçou a família a vender suas terras e migrar para uma cidade maior, na busca de
emprego, época em que sua mãe trabalhou de empregada doméstica e William, de
ajudante de açougueiro e operário de fábrica. Ele, filho mais novo entre seis irmãos,
conta como viviam mal em uma casa de dois cômodos que abrigava oito pessoas.
William sempre estudou em escolas públicas e parou no ensino médio
39
. Ao ser
questionado pela namorada, atual mulher, por que uma pessoa tão inteligente como
ele não continuava estudando, lembrou-se do conselho para que fizesse História, dado
por um antigo professor de cultura religiosa, em cujas aulas, apesar de ser muito
tímido, ele “se soltava muito porque o professor abria para discussão”.
Da faculdade, particular, cursada no município vizinho onde morava, em 1980,
William se recorda dos tempos difíceis iniciais, quando quase desistiu, pela timidez e
pela linguagem, “muito complicada”. Mudou porque gostou de política e do debate.
E, ainda, porque se envolveu nos protestos de rua dos anos de 1980, ao final da
ditadura, de quando ficou a “idéia de que se a gente não sair para conquistar a gente
não vai conquistar. Os tempos são outros e a maneira de protestar é diferente. Mas
isso marcou bastante”.
O professor se recorda também de dois ex-professores do ensino médio, que
“abriam para o debate” e que cobravam trabalho, como influências marcantes no seu
modo de ser hoje professor. A professora de literatura levava músicas, uma paixão, e
Arcadismo nunca foi esquecido porque ela levou a música da Rita Lee que falava ‘se
Deus quiser, um dia quero ser índio (...).
E o professor conta como gosta de trabalhar com música e “abrir para o
pessoais. Ao final, William confessou:
agora é que eu parei para pensar nisso: a única coisa que acho interessante nessa trajetória, já
que você me lembrou de coisas nas quais eu não pensava há muito tempo, é que acho curioso
(isso já é um lado mais sentimental) o fato de eu ter optado pelo magistério, com a história de
minha avó e minha mãe. Foi curioso. E é claro que a maior incentivadora foi minha mãe, que
conseguiu bolsa, que me incentivou a entrar na faculdade. Acho que ela talvez já soubesse
disso, já tivesse isso na cabeça, com relação à educação. Eu sou o mais novo e o único formado
no ensino superior.
39
Apenas no primeiro ano do ensino médio sua mãe arranjou-lhe uma bolsa de estudos em uma escola
particular, que repetiu, “por falta de vergonha na cara, pois caí na farra e não ia à aula, que era à noite”,
lembra ele.
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debate”, para o qual pede que os alunos leiam um texto de antemão, o que
infelizmente a maioria não faz. Acredita que, para aprender, o aluno “tem que saber
relacionar o que ele está vivendo agora com coisas que já aconteceram no passado”.
Em suas palavras: “Eu entro na aula destacando questões fundamentais que envolvem
o assunto e o que faço muito é relacionar. (...). Seja lá na Idade Média com o que es
acontecendo agora. (...). E através dessa relação eu gosto que o aluno reflita. Fico
buscando a participação dele na aula, querendo que eles falem, (...). Eu preparo, entro
e relaciono”.
O professor parece valorizar a importância de o aluno entender o sentido da
História no seu presente, e gosta de “trabalhar com a idéia de que a História não é
matéria do passado”, mas que é “o estudo do passado para entender o mundo à nossa
volta, para melhorar o futuro”.
William afirma não ter nenhum problema de indisciplina, pois seus alunos o
respeitam, uma vez que ele intimida muito, porque é quieto, além de que o que
combina no primeiro dia de aula vai cumprindo item a item: “Na escola pública, está
muito fácil de trabalhar para quem não quer trabalhar. Se você não quiser fazer, não
faz nada. Eu combino na escola pública as mesmas regras que tenho na escola
particular”, conclui ele.
Além das regras de disciplina, o professor “combina” um programa de
conteúdo e as formas de avaliação. Estas consistem em três instrumentos, a saber:
uma prova individual, escrita, discursiva; uma outra, objetiva (“estilo vestibular”); e
um trabalho em grupo, que ele considera “fundamental, porque acha que é “a hora
que vou ouvi-los melhor”, um trabalho de “apresentação”, quando todos se reúnem
em um círculo e ele “abre para o debate”, como diz gostar muito de fazer. Ainda
sobre este último, ele afirma, solidário com os alunos: “valorizo mais quando o aluno
se preparou mesmo. No trabalho em grupo, não dou nota vermelha, porque eu estou
forçando a barra com ele para falar e sei como é ser tímido”.
William tem, também, um outro modo de trabalhar herdado da época de
estudante: começa o ano fazendo uma revisão do conteúdo do ano anterior, revisão
esta que dura geralmente um mês e meio e para o qual usa um “gráfico-mapa” criado
por ele. Do mesmo modo, começa toda aula fazendo uma revisão da anterior. Isto
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porque acha importante os alunos se situarem sobre o assunto, embora aconteça de
durante essa revisão ele perceber que muitos não entenderam e ele tem “que dar a
aula de novo”.
William diz que é bom ser professor porque é a sala é um dos poucos lugares
em que ele se “solta mesmo”, “às vezes, até demais”:
eu ando para cá e para lá, não fico parado não. Vou lá no meio, falo alto. Paro. Eu sou
tímido, mas dando aula eu falo bastante. Conto piada. Estou sempre provocando os
alunos para ver se eles participam. Às vezes, ele não está nem atento e eu pergunto: “o
que acabei de dizer?” Fico provocando e, às vezes, falo uma besteira no meio da aula
para ver se alguém percebeu . Quando ninguém percebe, eu brinco: “então, podia ter
mandado todo mundo sentar a cabeça na parede do lado de lá que todo mundo ia”.
Faço essas coisas assim.
E completa, entusiasmado: “Eu gosto do contato direto com o aluno. (...) Quando
você pega uma turma que se envolve, é muito bom!”. Trabalho dinâmico, nada
repetitivo, bem diferente, recorda-se ele, do antigo trabalho monótono na fábrica.
Mas nem sempre foi fácil assim. Dois anos depois de formado, foi convidado
para assumir todas as turmas de História de um colégio particular na zona urbana,
onde está até hoje (além de ter três matrículas no estado). A dificuldade inicial esteve
relacionada à timidez, e ele “lia quatro ou cinco vezes a mesma coisa antes de dar
aula, à noite, em casa”. E reconhece que foi nessa época que aprendeu todo o
conteúdo de História, que “aprendi muito mais dando aula que na faculdade. (...) Na
faculdade os conhecimentos são muitos específicos. Fui aprender coisas que nem de
perto alguém mencionou na faculdade”, reflete o professor. Na faculdade, segundo
ele, “você trabalha autores, textos, mas você não tem uma panorâmica geral da
História não”.
Isso no que se refere ao conteúdo, mas também à metodologia, embora esta ele
acredita ter aprendido também consultando a mulher: “na verdade, foi a questão
prática mesmo. Eu comecei a dar aula de um jeito, fui me adaptando, tentando
melhorar, porque acharam que não estava bom. Na escola particular tem muita
pressão dos pais. Eu fui mudando”.
Com cinco anos de formado, William diz ter aprendido muito de história do
Brasil, em um curso de pós-graduação oferecido pela UFF na cidade vizinha, quando
“pessoas que eu tinha como ídolos, os autores, vieram e eu pude conhecê-los de
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perto” recorda-se emocionado, ao concluir que esta foi a época de maior investimento
na carreira docente. Do orientador da monografia ganhou, além de uma boa nota,
também o conselho para que fizesse mestrado, um sonho que hoje acompanha sua
vida de professor. Além deste, o professor deseja poder um dia ministrar apenas aula
sobre história do Brasil para ensino médio.
Atualmente, ele se sente sobrecarregado, com catorze turmas a partir da quinta
série. E acha “massacrante” quando tem que falar a mesma coisa em três quintas
séries seguidas, ou, ainda, quando dá aulas das 7 da manhã às 5 da tarde: “em pé o dia
inteiro e falando. Às vezes, atrapalha, e a cabeça da gente dá aquele nó”, desabafa
William.
Entretanto, o pior da profissão é citado como extraclasse, mas, na continuação
da reflexão, William faz uso da “estratégia do relacionar”, e conclui que:
O desencanto tem a ver com a desvalorização profissional e o corre-corre para se ter um
salário melhor. Tem dia que o corpo não está mais obedecendo e você tem que...eu não
sou de me entregar à toa, então, eu vou, mesmo sem ter condição estou trabalhando,
não sou de faltar. (...) O ideal seria ter salário razoável para trabalhar em uma escola só,
porque aí até o envolvimento seria maior. Aí, eu já não acharia tão chato ir às reuniões,
ter que trabalhar numa festa (porque eu acho chato). (...) Se eu trabalhasse numa escola
só, era uma festa só, uma reunião só.
William foi trabalhar no colégio Viola com as turmas a partir da sétima série,
dez anos atrás, por indicação de sua mulher, então professora lá. Afirma ter uma
relação muito boa com seus colegas, que o consideram “caxias” (sempre ele cumpre
horários e regras), e também com dona Clair, por (e de) quem sente muito respeito,
apesar de achá-la muito desanimada nos últimos anos, uma vez que sempre que os
professores sugerem alguma coisa ela diz: “não, meu filho, é assim mesmo.”.
William lembra que a maioria dos seus alunos são pobres, filhos de
agricultores, com quem eles pouco conversam sobre a escola, pois “o homem do
campo, o homem rural, tem dificuldade de ser expressar emocionalmente, de viver a
afetividade”, o que torna a comunicação da escola com os pais “muito precária”. O
professor, ainda, crê que os alunos o consideram exigente, têm-lhe muito respeito e,
alguns, simpatia “porque consigo entrar mais no mundo deles”. E completa que “ (...)
a garotada de lá é muito boa, porque o Viola tem uma coisa que outras escolas não
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têm: a escola é o ponto de encontro deles. Por causa das distâncias, eles não têm
muita diversão. Aquela escola parada, para eles é uma monotonia. É o ponto de
encontro e (...) eles respeitam mais a escola. E conseqüentemente o professor”.
Além do lugar do encontro, o Viola aparece, para a maioria dos alunos, como o
“espaço para se comunicar com o mundo”, pois eles vivem numa pequena
comunidade, em casas distantes, e onde não se tem muito que fazer, além de
trabalhar: “Onde ele teria contato com o computador, se não fosse lá? Onde alguns
teriam contato com filme (não os de massa, que passam na TV)?”, conclui ele.
Entretanto, pensa que o perfil do alunado está mudando, pois eles estão
passando a descumprir regras essenciais para o funcionamento da escola,
apresentando alguns problemas de indisciplina. Sem citar nomes, William
responsabiliza alguns professores que não cumprem com seus alunos o que foi
tratado. A mudança se refere, ainda, à quantidade cada vez maior de alunos, mesmo
nas séries finais do Viola, e o professor diz ter dificuldade em lidar e “entrar no
mundo” de pessoas muito diferentes.
Para William, a finalidade principal da escola e do professor, mais do que
ensinar conteúdos é formar cidadão, este um ser humano com valores éticos e
religiosos, um comportamento de solidariedade com as outras pessoas, porque “num
país como o nosso se não for solidário...”.
Ao exercitar a memória, William se lembrou de uma lenda existente na região
de Vista Alegre, que é a história da Chica Cebola, uma andarilha do início do século
passado, que enlouqueceu após o parto de sua filha, e vivia pelas pedreiras da região
carregando a criança num balaio. Atualmente, quando os pais querem assustar uma
criança dizem: “se você aprontar, a Chica Cebola vem te pegar”. William descobriu,
depois de muito “usar a razão e a lógica”, que a criança do balaio, criada depois da
morte de Chica Cebola por uma família do local onde ele nasceu e mora atualmente,
era a sua avó. E é com lágrimas nos olhos que me conta, com orgulho, que costuma
se apresentar às crianças do colégio Viola como “o bisneto da Chica Cebola”. E
finaliza a nossa conversa dizendo: “Tenho esse vínculo com Vista Alegre, essa
história da Chica Cebola”.
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Jéferson: um rigoroso na contra-mão
Jéferson tem 52 anos, é professor há trinta, metade dos quais na escola-da-
dona-Clair
40
. Embora tenha nascido no centro urbano do município em uma família
de classe média, ele morou em um sítio em Vista Alegre, depois que o irmão gêmeo
morreu atropelado aos 4 anos de idade, em frente à casa onde ainda mora. A mãe, que
Jéferson também perdeu aos 13 anos, é considerada uma “pessoa maravilhosa”, de
quem ele “angariou” tudo que tem de bom, toda a sua formação moral e ética:
“dignidade, honradez, verdade, ser justo”. Além disso, é descrita como uma pessoa
muito culta, que falava francês fluentemente, e que trabalhou por um ano como
professora em Vista Alegre, ainda que, por problemas financeiros, tenha tido que
“aprender a ser dona de casa, cozinhar e a cuidar dos filhos pequenos”.
Foi também por problemas financeiros que Jéferson resolveu ser professor,
porque, ao terminar o ginásio, não sabia o que estudar e fez o curso Normal, como
algo provisório, porque o magistério era uma “profissão que era vista naquela época
como uma profissão feminina. O homem destoava neste aspecto, principalmente de
primeira à quarta”, narra ele. Entretanto, ao se iniciarem as aulas práticas, ele
conseguiu “manter a turma em silêncio, sob controle”, quando, então, descobriu que
“tinha alguma queda para a profissão”. Usou naquele dia “a tática do Pedrinho, um
professor de Matemática que era competente, mas tinha um controle de classe que era
uma coisa fantástica”.
Com essa experiência, Jéferson viu “que era capaz”, e “por essa capacidade eu
passei a ter gosto, porque a gente só gosta daquilo que sabe fazer”, reflete ele. O
professor revela de cara o “estilo Jéferson” de ensinar, pois até hoje diz precisar de
silêncio para dar aulas e só permite conversas entre os alunos sobre a matéria. E
continua a narrar que o “professor-espelho” tinha “ (...) a questão da autoridade.
Competência em administrar a aula e controle da classe que ele possuía de saber o
que estava acontecendo e não deixar que houvesse tumulto, conversa paralela.
Conseguia manter a atenção, porque ao mesmo tempo em que ele era carinhoso ele
40
O professor Jéferson me recebeu na sala de estar de sua antiga e silenciosa casa de muitos cômodos
no centro da cidade, construída no início do século passado, onde morou com seus pais e irmãos toda a
vida, e onde reside atualmente sozinho com sua mulher, a professora Pilar, tia das professoras Tarsila e
Iara.
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não deixava a coisa partir para alguma coisa que estivesse fora daquele contexto que
ele estava ensinando. Isso me influenciou muito”.
Mas o estilo de ensinar foi adquirido em várias “sínteses” durante a longa
carreira de professor (“é uma coisa curiosa: a gente é uma síntese de tudo que vai
passando”, reflete ele), iniciada após concurso público, em uma escola rural distante
(cujo transporte de acesso tomava metade de seu salário), na qual dividia com mais
uma professora as turmas mutisseriadas e a direção.
Ao ser “jogado na escola” com tantas funções para as quais não estava
preparado, Jéferson fala da óbvia dificuldade inicial, de como a comunidade rural era
“muito integrada à escola”, mas “desconfiada” no início da relação, tendo passado a
lhe dar apoio quando percebeu que ele era uma “pessoa com muita integridade e que
queria trabalhar”. E essa escola rural “tornou-se um segmento de casa”, um ambiente
que se transformou em “uma parte de minha vida”, conta ele. Aqui, mais um
ingrediente pessoal se mistura, que é o fato de Jéferson ter se casado com a professora
Pilar, que levou para trabalhar na escola quando a outra professora se aposentou:
“ficou uma coisa muito boa, porque além de ter a integração com a comunidade,
houve uma integração óbvia e clara entre os professores”, comenta ele, entre risos.
Uma experiência que durou até Jéferson terminar a faculdade de História
41
e ir
trabalhar com o segundo segmento do ensino fundamental, na escola-da-dona-Clair.
A carreira profissional corre paralela à formação acadêmica. Já trabalhando na
primeira escola, ele resolveu fazer a faculdade, porque “desde cedo tinha uma queda
para a História”, disciplina em que sempre teve as melhores notas. Aliás, ter boas
notas foi uma realidade da sua vida escolar: conta, orgulhoso, como passou em
primeiro lugar no vestibular, para o qual se preparou cursando todo o antigo científico
novamente.
Além da faculdade, iniciada aos 28 anos, Jéferson passou em um segundo
concurso para o magistério estadual e assumiu uma nova matrícula em outra escola
também rural, muito mais distante de sua casa
42
. Conseguiu conciliar porque fez a
41
Na mesma instituição particular onde Isaura e William se formaram.
42
A rotina deste período era descrita como de muito sacrifício, pois ele ia de ônibus e a pé para uma
localidade durante a manhã, onde almoçava, de onde partia para a outra escola de condução paga,
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faculdade devagar e, mais, porque não tem preguiça, o que costuma sempre contar
aos seus alunos, com orgulho. Há dois anos, cursou, ainda, uma especialização em
História numa outra faculdade particular do centro norte fluminense, que, entretanto,
deixou muito a desejar não somente em termos acadêmicos, mas também porque a
hoje o Estado não incorporou a subida de nível ao salário do professor (“o Estado é
muito moroso na hora de pagar, embora seja rápido na hora de descontar”, comenta o
professor).
Jéferson chegou ao colégio Viola para ser colega da (já conhecida da pesquisa)
professora Jô, de História, que lecionava às turmas mais adiantadas. Depois que esta
saiu da escola, ele assumiu todas as turmas até a chegada do professor William, com
quem faz uma dobradinha atualmente também em outra escola pública
43
. Jéferson
prefere dar aulas para as turmas de sétima e oitava, preferência para a qual tem duas
justificativas. A primeira tem a ver com um jeito “rigoroso” de ser, que dificulta o
relacionamento inicial com alguns alunos (“passo mais a idéia de meu rigor do que de
minha amizade”). A segunda relaciona-se com o despreparo acadêmico dos alunos de
quinta e sexta-série para lerem e interpretarem a História, cujo conteúdo é história
antiga, medieval e brasileira (até a colonização): “como vão aprender História, se
História é interpretação? Não é ‘decoreba’. É você estudar o fato e ter uma análise
crítica sobre aquilo que estudou”, acredita ele.
Jéferson já usa a sala dos computadores para realizar pesquisas na internet e
costuma buscar fazer o aluno entender como “a História é uma matéria muito
dinâmica e atual, que está sempre em evolução”, pois um fato antigo pode ser
transportado, em uma circunstância diferente, para a atualidade.
Apesar de acreditar que é “uma síntese de tudo que vai passando” pela vida,
contraditória e complementarmente, Jéferson também afirma que, desde adolescente,
aonde chegava “a tempo de colocar as crianças para dentro” e dar mais 4 horas de aula. Ao fim do dia,
voltava para a cidade, de onde pegava um ônibus para uma outra cidade a fim de cursar a faculdade.
43
Neste período, fez novo concurso para o magistério estadual e, por ter sido “muito bem colocado,
modéstia à parte, o terceiro lugar na região serrana”, pode transformar a matrícula mais nova em
professor I, e, ainda, escolher onde ia trabalhar, quando optou por dar aula de quinta à oitava também
nessa outra escola. Ele diz que não queria ter que fazer planejamento de quinta até segundo grau, como
estava fazendo em Vista Alegre com a saída da professora Jô. Atualmente, leciona às quintas e sextas
séries na escola-da-dona-Clair, e de quinta à oitava na outra escola.
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foi fazendo as suas opções por si mesmo: “sempre fui uma pessoa muito fechada, de
poucos amigos, adoro ficar sozinho, em casa”. Ele se autodefine como “sério,
exigente e rigoroso”, mas que também sabe criar um “ambiente amigável, de
concórdia” na sala. Resumindo, “eu brinco, mas na hora de falar sério, vamos falar
sério”.
E ele fala a sério de como é “daqueles que ainda querem (...), contra tudo e
contra todos, uma escola séria. Que ensine, que cobra e que forma. Que dá o mesmo
conteúdo de uma escola particular”, em que pese o fato de que “o Estado tenha
perdido a vontade de fazer uma escola pública de qualidade”. E se sente na
“contramão do ensino atual” e pensa que aqueles colegas de trabalho que procuram
passar o aluno independente do conhecimento não lhe vêem com bons olhos. Acredita
que está formando pesquisadores de História e diz usar freqüentemente com os
estudantes mais avançados o antagonismo da sua própria figura (sério e amigo), para
fazer-lhes entender a importância de “ouvir várias fontes”, “analisar a particularidade
de opiniões”, antes de se formar uma idéia.
A escola tem como função formar o cidadão, “aquele que sabe dos seus
direitos, que sabe que vive em uma sociedade injusta e que vai lutar, dentro do
contexto democrático, para transformar essa sociedade. Esse é meu ideal do projeto
de formação de cidadania.”. Além da possibilidade de formar cidadãos, para ele é
bom ser professor porque pode aproveitar sua profissão “para formar espiritualmente
a pessoa”. E completa: “eu não estou querendo que ele seja o católico apostólico
romano. Eu quero que ele dê valor, no sentido que a vida dele vai continuar (...). Eu
quero tirar da criança a visão materialista, de que o mundo foi, o mundo acabou.
Porque eu creio na ressurreição”.
E diz crer, ainda, que a importância de ser professor é exatamente porque ele
“lida com seres humanos, seres eternos, que são os mais importantes da face da
Terra”. Assim, a exigência do trabalho é grande e está diretamente relacionada aos
valores que o professor tem. Os seus próprios, alguns dos quais aprendidos com a
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mãe e já citados no início, passam pela honestidade no trato com os alunos e no
cumprimento dos deveres, este adquirido na relação com o pai, segundo ele
44
.
E é esta pessoa inteira que entra para dar aula. E que afirma não conseguir
deixar despercebida a falta de atenção ou de respeito de um aluno: “se o aluno quiser
bagunçar, ele não consegue porque ele me tira do sério fácil, fácil”. E adiciona que,
embora cobre do seu aluno, que ele considera não um coitadinho, mas alguém pronto
a aprender, ele procura “fazer a coisa direita”. E completa: “no magistério, você sabe,
quando se faz com dedicação, se perde muito tempo, se trabalha muito”.
Por isso, ele se sente sobrecarregado de trabalho, embora lembre que já foi pior,
porque já esteve mais rigoroso
45
, quando queria mostrar aos alunos que pode exigir
porque faz a sua parte: “Têm até pessoas que não cobram dento do magistério, porque
não têm o que cobrar. O meu rigor da cobrança é justificado pelo meu empenho”.
Jéferson faz três avaliações diferentes, prova escrita, teste, debates, e acredita
que “o aluno que estuda para pelo menos duas avaliações vai se sair bem". Diz
valorizar o trabalho em grupo, mas acredita que a avaliação tem que ser individual, e
que se “conhece pela prática que a gente tem quem é bom e quem não é, quem estuda
e quem não estuda”. E também é pela prática que “você vê até o que gosta de você e
o que não gosta”. Ainda em relação à avaliação dos seus estudantes enquanto pessoas
e às maneiras de sua socialização, o professor crê que o aluno “é forjado na escola,
mas principalmente em casa” e que é raro se ter o ideal de aprender quando a família
não valoriza.
O professor fala de como Vista Alegre “é uma comunidade muito fácil de se
trabalhar, coesa, pequena”, mas destaca uma mudança no perfil do alunado e da
comunidade, ocorrida “com o progresso”. Quando chegou na escola, há 15 anos atrás,
Vista Alegre tinha luz, mas a estrada não era asfaltada e as pessoas que moravam na
vilazinha costumavam se visitar à noite. Com a chegada do asfalto, em 1998, e,
44
Ainda sobre a influência dos pais em sua formação ética, Jéferson afirma: “sou uma pessoa por parte
de pai (...) e por parte de mãe (...). Meu temperamento tem essas duas características: ao mesmo tempo
em que tenho tranqüilidade, também tenho pavio curto. Eu sou muito explosivo”.
45
Ele lembra que chegou “ao cúmulo de fazer um mapão com todos os objetivos que o aluno acertou
ou errou e, ao final do ano, fazia uma prova individual de recuperação anual”, liberando o aluno de
responder às questões cujos objetivos ele já tinha atingido. Agora já não há mais essa prova cumulativa
do ano inteiro, que ele reconhece ter sido “uma coisa de louco”.
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depois, com o loteamento, vieram muitas pessoas de fora, o que muda a “mentalidade
da formação da própria escola”: “antes era mais fácil, mais prático”, pois havia mais
integração, disciplina e coesão” entre alunos e professores segundo ele.
Jéferson reclama que dona Clair “devia ter procurado manter a integridade e a
união”, mas que ela “não é de tomar muito as rédeas da escola”, não consegue manter
a disciplina, embora a escola “seja fácil em termos de disciplina”: quando há aulas
vagas, os estudantes ficam do lado de fora fazendo barulho, o que atrapalha muitas
vezes sua aula e lhe dá dor de cabeça. Embora o professor acredite que não é “o tipo
ideal para ela, porque ela vê o aluno como um coitadinho que tem que ser aprovado”,
pensa que dona Clair o considera uma pessoa séria, um professor que raramente falta
ao trabalho. O professor admira a calma da diretora, uma pessoa “que nunca fica
preocupada se tem muita coisa para fazer e sempre mantém sua autoridade”.
Quanto ao momento atual da carreira, Jéferson se sente desencantado, pois “vê
a educação caminhando cada vez mais para uma maior penúria, com pouco
investimento, de não se saber o que se fazer na escola (...)a gente quando começa
sonha que um dia vai melhorar. Eu comecei a dar aula a gente estava no regime
militar. Eu achava que de uma forma ou de outra a nossa profissão ia melhorar”.
Ele não se refere apenas ao salário, mas principalmente à formação do
professor, ao acompanhamento e à avaliação pelo Estado. Sobre esta, critica a falta de
critérios do Programa Nova Escola e comenta: “Eu falo para o meu aluno: ‘eu fecho a
porta aqui e eu posso fazer o que eu quiser, até brincar de roda com vocês’. Eloiza, eu
queria viver num país onde o cara que te pagasse te cobrasse”.
Em relação à formação, Jéferson lembra que “a profissão é injusta”, uma vez
que até para ler o professor tem pouco tempo, porque a preparação de aulas tira um
tempo de investimento na própria formação. Por isso, ele diz que “lê em partes: levo
muito tempo para ler um livro. Jornal, eu não tenho assinatura (...) mas meu irmão
tem. Eu chego lá, dou uma folheada e já acabou o tempo. (...) E na época de prova,
nada de sítio”, cuja visita (para “mexer com mato”, fazer atividade física,
“extravasar”) é atividade favorita. Ele também gosta de ler e de “mexer com
máquinas antigas”: “eu sou metido a consertar as coisas”, revela ele.
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Apesar do desânimo, o professor revela: “queria, aos 30 anos de profissão, é
estar aposentado de uma matrícula e ficar com uma só. Seria muito mais prazeroso,
eu investiria muito mais na formação, poderia me aplicar mais, além de fazer as
outras coisas que eu gosto”.
Termino com uma idéia recorrente na narrativa de Jéferson: a afirmação de que
investe diariamente no pensamento de que está fazendo um trabalho que está cada vez
mais em desuso, mas que ele está fazendo o que acha justo.
Henrique: o amigo sério e organizado
Henrique é o nome de batismo do professor de inglês de todas as turmas a partir
do sexto ano da escola, conhecido por todas as pessoas por um apelido, o que o fez
escolher apresentar-se na pesquisa “simplesmente pelo nome de batismo”. Nasceu e
mora no centro urbano do município há 46 anos, foi contador da prefeitura municipal
por sete anos antes de se tornar professor, há 22 anos, 16 dos quais completados na
escola-da-dona-Clair. Apesar da distância, o professor diz que vai para Vista Alegre
muito satisfeito, pois sente muito carinho por dona Clair, uma pessoa muito
conciliadora (e que acredita vê-lo como um filho) e gosta muito do corpo docente e
discente da escola, que considera muito comprometido, porque faz a coisa com
seriedade: “nosso professor tem esse perfil da tranqüilidade de dona Clair, de estar
sempre lá. Eu vejo histórias de professores fora que faltam muito. Lá a coisa funciona
direitinho. Lá uma vez ou outra falta professor”. Só reclama um pouco das reuniões
dos professores da escola, porque, embora reconheça a importância desses momentos
de interação para a visualização do todo, acha que eles acabam sendo desnecessários,
já que “a gente perde esse espírito e acaba falando muito em nota”, reflete ele.
Henrique afirma nunca ter sentido monotonia durante o exercício do ofício e
reconhece ainda estar investindo na profissão. Não se sente sobrecarregado de
trabalho, pois vive atualmente com sua mãe viúva, uma senhora idosa que saiu da
roça para trabalhar como empregada doméstica na zona urbana, onde se casou com
um motorista do supermercado da cidade, e virou dona de casa. Ambos os pais
estudaram até a terceira-série primária. A infância foi “super tranqüila”, e o professor
dividia as brincadeiras na rua (“não tinha essa de ficar em casa, não tinha televisão e
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o que tinha que se fazer era brincar muito, de manhã, de tarde, de noite” recorda-se
ele), com os estudos, feitos até a oitava série em escolas públicas e completados com
a freqüência a escolas particulares, tanto no curso de contabilidade, como no Normal
e, depois, na faculdade de Letras.
Henrique conta que detestava Matemática e Física, motivo que dá para
justificar não ter passado para o vestibular de Medicina, momento a partir do qual
começou a trabalhar e a sustentar seus estudos, inclusive de línguas (inglês, francês,
espanhol e alemão), pois tinha esperanças de ser comissário de bordo, desejo que
acalentava desde menino, para poder “viajar, conhecer outras pessoas, outras
culturas”, lembra ele. Nesta época, embora já formado no curso Normal, costumava
dizer que não queria ser professor. Entretanto, ao perceber que a carreira de
comissário era inviável para um rapaz do interior que tinha que trabalhar para se
sustentar, resolveu abandonar o emprego de contador, com um bom salário, e passou
dois anos dando aulas particulares. Até que fez o concurso público para o magistério
municipal, em 1989, e foi trabalhar no colégio Viola, como professor de terceira e
quarta-séries, conveniado com o estado. Em suas palavras:
Parece que eu tinha nascido para aquilo: adorei! De imediato, adorei. (...)Tudo era bom:
o contato com as crianças todos os dias, aquela coisa. (...) Eu não fiz o concurso como o
sonho de minha vida. Eu fui gostar do magistério depois que comecei a trabalhar. (...) O
que me encanta até hoje em ser professor é o fato de você ter o contato com o aluno
diário e você saber que um dia é diferente do outro. E você ter o retorno: você sentar,
preparar um exercício, uma prova, uma atividade, pensando naquela sua turminha,
naquele seu aluno. Você pensa nele, faz pensando neles, e o retorno é imediato. Você
fez e voltou satisfeito. Foi bom e valeu a pena ter ficado preparando isso.
Um ano depois, já transferido para uma outra escola rural municipal nas
imediações de Vista Alegre, Henrique conta da dificuldade de acesso (uma hora de
caminhão de leite em estrada de chão, somada a hora e meia de subida a pé) e do
medo que tinha de cobras (diariamente, “fazia uma oração para são Bento e subia”,
lembra ele emocionado). Mas o maior desafio foi assumir nove alunos em uma turma
multisseriada de alfabetização e primeira série, vencido com a “busca de livros e
aconselhamento de outros colegas de fora”.
Dois anos mais tarde, e com mais uma aprovação em concurso público para o
magistério estadual, Henrique estava de volta ao Viola, chamado pessoalmente por
dona Clair, desta vez como professor de Inglês, pois já estava cursando a faculdade.
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Lembra que mesmo antes de trabalhar lá tinha ouvido falar que os “alunos eram
diferentes, mais interessados, mais prontos para receber informação. Disciplinados
até”. Acha que, com o passar do tempo, “alguma coisa mudou”, pois eles “estão
chegando na quinta série mais novos” e é “como se já estivessem na escola há um
tempão”, o que os fazem menos “retraídos”. Percebe também mais uma mudança no
alunado, que “está mais crítico, mais ligado, mais por dentro das coisas”. Entretanto,
apesar das mudanças, eles “estão sempre interessados, prontos. Tudo que se propõe
eles fazem, numa boa. Gostam do que fazem. Você não vê expressão de desagrado”,
reconhece ele.
Isso porque a escola é um local importante para a maioria dos estudantes, “um
lugar em que eles se encontram, fazem amigos, arrumam namoradinhos e
namoradinhas. (...) Eles não têm outra opção: ‘estou aqui e é aqui que quero estar’.
(...) Acho muito bonitinho ver nosso aluno do ensino médio chegando quinze para
meio dia (...) todo arrumadinho, de uniforme direitinho”, completa Henrique.
Acredita que os estudantes o reparam muito e o consideram bastante
organizado. Ele se reputa, ainda, “muito metódico” (sempre cobra prova assinada
pelos responsáveis) e “muito bem humorado”, características que reconhece ter
herdado de alguns “ótimos professores” que teve durante seu percurso escolar, muito
exigentes, com quem aprendeu muito e “que pareciam gostar muito do que faziam”.
Henrique sempre começa a aula dando uma volta pela sala e arrumando-a (não gosta
de aluno encostado na parede, nem de quadro sujo, e gosta de trazê-los o mais para
frente possível), momento em que também cumprimenta os estudantes e faz
brincadeirinhas. Depois, reza uma oração, o que o fez ouvir a brincadeira do
estudante de que “reza um terço por dia”.
Uma vez que reconhece que a língua estrangeira é muito diferente para seus
estudantes, Henrique tem diversos métodos de abordagem do conteúdo: trabalha
“muito com texto, com vocabulário e com autoditado para os mais novos”;
geralmente faz uma contextualização (para “buscar as informações que eles têm”),
depois uma pré-leitura (com a “identificação de palavras transparentes”), a partir de
quando os estudantes discutem o tema com os colegas e terminam o trabalho com
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uma fase escrita; a gramática normativa é trabalhada do modo tradicional, com
apresentação e exercícios individuais de fixação com autonomia.
Henrique ressalta a sua presença constante para mediar a aprendizagem:
“durante as aulas não sou de sair de sala toda hora, pois quero que o aluno possa
contar comigo e não levar dúvida para casa. ‘Vamos entender agora o que estamos
fazendo’. Minhas aulas rendem muito”. Pergunto-lhe o que isto significa ao que ele
responde que sente que a aula rende quando corresponde ao planejamento, feito uma
vez por semana, para todas as turmas da escola-da-dona-Clair, para a outra escola
estadual e para a escola particular em que também leciona.
Quanto à avaliação, o professor afirma buscar aferir “a questão do estar
aprendendo, sabendo fazer” e levar seus alunos a viverem o “momento prova” da
forma mais agradável possível. Para isso, proporciona várias oportunidades de
encontro com a língua, antes de realizar um exercício valendo nota.
O cuidado na relação com os estudantes é explicitado em outros momentos,
especialmente quando ele fala dos laços de amizade e de afetividade que cria com
seus alunos, mais fortes do que os que tem com muitos parentes. Porque se não
podemos escolher os parentes, os estudantes, ao contrário, são pessoas com as quais
nos identificamos no convívio diário, que passam a se conhecer e de quem nos
tornamos amigos: “essa é a satisfação de ser professor, de estar no magistério. Gosto
demais!”.
Adiciona, também, que embora o professor tenha uma formação acadêmica,
um. plano de curso a cumprir, toda a burocracia de escola, ele cria laços de
afetividade e de cumplicidade com a turma, o que o faz entrar na sala com sua
matéria e com o seu jeito de ser. Segundo Henrique, as exigências do exercício do
ofício são “acima de tudo, a verdade, a transparência, nunca mentir para o aluno. Ser
você mesmo”. E ser capaz de “sacar o aluno”, saber o que ele está sentindo e
precisando. Ele lembra que os antigos alunos primários dos anos de 1980 eram mais
dóceis e recebiam como o máximo qualquer atividade proposta. Atualmente, com os
estudantes mais velhos, o professor tem prazer em contar suas experiências, e que o
adolescente gosta de ouvi-las: “você vê que o aluno ainda te vê como aquele que está
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ali te ensinado uma coisa, que ele pode perguntar, que na medida do possível a gente
pode bater um papo legal”.
Se diz se sentir valorizado pelos alunos e seus pais, afirma também não sentir o
mesmo em relação ao “patrão”, o que não chega a incomodar, mas que reconhece
“que não faz bem”. Além de um processo de enquadramento profissional que se
arrasta por dez anos na Secretaria Estadual de Educação, Henrique reclama da falta
de reajuste salarial e da injustiça da comparação entre colegas professores promovida
pelo Programa Nova Escola, embora acredite que este não teve nenhum impacto no
seu trabalho:“acho que não é uma avaliação tão séria a ponto de eu me preocupar com
essas notas”.
Henrique vê o papel do professor na atualidade de modo duplo. Por um lado, há
o trabalho acadêmico, o cumprimento o programa, a passagem de informações dentro
da área do conhecimento. Mas, embora ele mesmo considere “meio utópico”, pensa
que o “papel principal é justamente este aspecto humano, de ser um formador de
pessoas dignas”. E exemplifica desta forma: “Eu sou o tipo do professor que se o
aluno vê um erro de correção meu na prova eu dou o ponto para ele. E se ele vê que
eu corrigi errado e é para diminuir eu não diminuo, porque o que vale é a
honestidade”.
Maísa: a professora enérgica e carinhosa
A professora Maísa tem 39 anos, dezoito de profissão, dez dos quais exercidos
na escola-da-dona-Clair, onde já ministrou aulas de Artes para todo o segundo
segmento do ensino fundamental até o ensino médio. Como é professora de nível II e
estava desviada de função, perdeu a vaga para uma professora concursada que chegou
há alguns anos, e atualmente dá aula de Artes apenas para o sexto e sétimo anos do
ensino fundamental na escola
46
.
Maísa começa me contando sobre sua infância vivida no centro da cidade e em
46
Nossa conversa aconteceu durante uma aula vaga da professora, no pátio da escola, longe de todos.
Apesar da condição meio improvisada, considero que foi muito proveitosa, pois Maísa foi se soltando
durante a entrevista, passou a rir e a alargar suas memórias, além de que fez comentários sobre as
perguntas formuladas (“tuas perguntas são muito difíceis!” ou “que pergunta, hein? Você é muito
esperta!”).
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um sítio próximo, onde seu pai trabalhava como lavrador, e sua mãe, como dona de
casa. Ambos estudaram muito pouco, assim como seus irmãos, que cedo
abandonaram os estudos. Ela é a única pessoa da família que cursou até a faculdade.
Revela que sempre desejou estudar, porque é uma atividade de que gosta muito, e se
recorda dos antigos professores com muito carinho. Depois de completar o ensino
médio e o curso Normal em uma escola pública, ficou um tempo sem freqüentar
escola até optar por cursar a Faculdade de Artes, em uma universidade particular aos
fins de semana, em Niterói, seguida de uma pós-graduação em artes plásticas, esta
feita “apenas para constar”. A faculdade, por outro lado, “ajudou muito” no acesso
aos materiais de trabalho, livros, e esta época é considerada como de maior
investimento na carreira. Entretanto, ela acredita que o curso não tenha contribuído
muito para a sua prática na sala de aula, experiência que Maísa tem desde os 18 anos
de idade.
A entrada na profissão se deu por falta de opção e porque Maísa precisava
ganhar dinheiro. Se pudesse escolher, teria sido nutricionista, já que diz que “a
alimentação é tudo nesta vida”. Começou dando aulas na escola-da-dona-Clair, para
uma “maravilhosa turma de alunos gracinhas” de segunda série. Depois, já
concursada e com uma segunda matrícula, trabalhou em outras escolas rurais. Fala
com empolgação de como era cheia de sonhos com melhores condições de trabalho
docente. E completa, frustrada, sobre o atual momento da carreira: “com o tempo,
com a desvalorização, a gente vai perdendo o encanto. (...)A gente vê que o
profissional que faz não tem valor, o que não faz também não tem. A gente acaba
desanimando. Eu ainda não desanimei de trabalhar ainda não”.
Das professoras que teve, lembra-se especialmente de duas, com quem se
identificou pelo “modo enérgico”, mas ao mesmo tempo amigo dos alunos; pelo
“jeitinho organizado e calmo”, de que nunca se esqueceu. E completa que acha que às
vezes é exigente até demais, mas que é uma forma de valorizar o que trabalha, porque
Artes é matéria que não reprova e se não insistir e mostrar a importância, os
estudantes não fazem nada, “acham que estão na hora do recreio”. Ao mesmo tempo,
afirma ser carinhosa e acolhedora com seus estudantes, que considera, entretanto,
muito mudados nos últimos cinco anos. Para ela, que está na escola há muito tempo e
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que já foi professora de todos eles, “agora, eles não têm mais empolgação”, “fazem
de qualquer jeito”. Segundo ele, “os [alunos] de antigamente te encontravam na rua
(...) A relação que existia era de amizade mesmo: eles te cumprimentavam,
valorizavam o professor. Hoje isso não acontece, porque há coisas muito mais
interessantes do que vir à escola. Antes, a escola era um ponto de encontro. Acho que
isso não está acontecendo mais. Vir à escola está sendo uma coisa chata, enjoada”.
“Enjoada” para todos os sujeitos envolvidos no processo educacional, pois
Maísa considera que “a escola está assoberbada” e que sua principal função, que é de
ensinar conteúdos, está se perdendo: “Você tem que ser responsável por tudo:
educação ambiental, sexual, tem que falar sobre drogas, educação de trânsito”. Isso
para não falar da falta de autoridade do professor, que não pode sequer tirar um aluno
inconveniente da sala.
O quadro desanimador se completa com as condições atuais da escola-da-dona-
Clair, referida como desorganizada e largada, sem material suficiente para o trabalho
escolar. Maísa diz “respeitar dona Clair”, mas se sente injustiçada e sem apoio por
parte da direção, que escolhe alguns professores e passa a mão na cabeça dos
estudantes. Este é o motivo que ela dá para o aumento da falta de respeito e de
disciplina por parte do alunado, que parece pensar: “eu posso fazer o que quiser, que
não vai acontecer nada comigo”, reflete ela.
Por outro lado, Maísa gosta de trabalhar na escola de Vista Alegre, situada a
mais de 20 km de sua casa, porque seus estudantes ainda são os mais interessados que
ela tem e porque os professores são amigos, se preocupam um com o outro, ou seja,
mantêm entre si uma relação “muito diferente das outras escolas” em que ela trabalha.
A professora não considera ter um estilo pessoal e único de ensinar. Mas dá
algumas dicas de como se preocupa em fazer do ensino das Artes algo sério, que tem
um conteúdo importante, que vale ser conhecido. Para isso, é exigente nas avaliações
(produções artísticas dos estudantes), tenta atrair a atenção com muitas fotos de obras
de artes, procura dar atenção a todos durante as tarefas práticas, que são mescladas ao
conteúdo mais teórico.
Maísa revela durante a entrevista que desenha com lápis e que, no futuro, quer
estudar pintura a óleo. Sente-se muitas vezes realizada com as produções de seus
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alunos do Viola, elemento, aliás, destacado entre outros como a parte boa do ofício
docente, cuja narração termina assim: “o lado bom de ser professor é esse contato
com o aluno, de você sentir o seu trabalho ali. Você saber que está levando alguma
coisa de novo para ele. Coisa que ele nunca (ainda mais esses daqui, que têm menos
acesso), nunca poderia imaginar que você está ali para mostrar isso. Isso é bom!”.
Pilar: a comportada, cujo umbigo está enterrado na escola
A professora Pilar
47
se apresenta como a pessoa que “tem o umbigo enterrado
na escola-da-dona-Clair”, já que nasceu no cômodo onde hoje é a cozinha da escola,
em 1962, época em que seus pais eram zeladores da instituição e lá moravam. É
professora há vinte e cinco anos, quinze dos quais trabalhados na escola de dona
Clair. Depois desta, é a funcionária que mais tem vínculos familiares com os outros
professores da escola: é tia e ex-professora das professoras Iara e Tarsila, irmã da
professora Iracema e mulher do professor Jéferson.
Além disso, é ex-aluna da escola, onde estudou até a quarta-série, a última que
a escola oferecia no início dos anos de 1970. Lembra com emoção de como foi para
lá aos 5 anos, ainda “como ouvinte”, acompanhando uma das professoras que
moravam na sua casa
48
. De como já sabia escrever o aeiou e de como gostava muito
de estudar: “Tinha paixão! Fui para escola feliz da vida. No primeiro dia, tinham até
umas visitas lá em casa, mas eu nem quis saber delas. Quis saber de ir para a escola”.
Da época de estudante, recorda-se da dona Clair ensinando-lhe contas de dividir e de
uma professora de Geografia, carinhosa, mas exigente no comportamento. E ela diz
ter sido sempre “uma aluna comportada, que gostava muito de estudar”.
A menina, que queria ter estudado Direito “porque achava bonito”, mudou-se
com a mãe e a irmã para o centro da cidade, onde completou seus estudos até o curso
Normal na única escola particular então existente. Conta com orgulho de como sua
turma era coesa, “muito boa e elogiada pelos professores” e foi pioneira no ensino
47
Pilar me recebeu na copa da casa em que mora com o marido, o professor Jéferson, no centro do
município, para uma conserva de hora e meia.
48
Nesta época, o pai já era escrivão da localidade e puderam comprar uma casa, onde abrigavam as
professoras vindas de fora, fato já narrado pelas professoras Iara e Tarsila sobre a casa dos avós.
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médio da escola, ocupando o andar mais alto do prédio novo. No ano de formatura no
magistério, foi chamada pelo diretor para dar aulas para a turma da quarta-série da
escola, quando passou para o concurso público estadual e foi destacada para uma
escola na roça, ainda no final do ano, época em que se recorda ter sido obrigada a
“tirar a única licença de toda sua carreira profissional”, pois teve catapora.
No ano seguinte, lecionava às tardes na escola particular, no centro da cidade, e
ia dormir na casa de um morador de uma localidade na roça, onde era a diretora e
única professora de mais de quarenta crianças da escola local. Recorda-se de ter feito
várias experiências, separando e unindo as mais diversas turmas da escolinha e até
hoje não sabe muito bem como “deu conta”, mas credita o sucesso ao fato de gostar
daquele trabalho e de ser jovem. Logo depois, emenda que sua “preocupação com a
responsabilidade de fazer as coisas direitinhas, da melhor maneira possível” também
ajudou neste processo, além de que o professor deve “acreditar no que está fazendo e
fazer”.
Ainda esteve em outras escolas rurais com turmas muiltisseriadas e direção, às
vezes dividindo as turmas com outros professores, inclusive com o já então marido, o
professor Jéferson. Com “6 ou 7 anos de exercício”, considera que se sentiu
“aprovada”, pois ganhou uma turma única de vinte e dois alunos na classe de
alfabetização, que acompanhou até a segunda série com 100% de aprovação.
Em 1992, foi trabalhar na escola-da-dona-Clair, como professora de matemática
das quintas e sextas séries, por ter feito um curso adicional, o que aliviou sua carga
horária, em que pese a distância entre a escola e sua casa. Pensa que o clima de
trabalho da escola é muito agradável, que “todo mundo é legal com todos. (...) todos
se respeitam”. Ainda, acha o alunado da escola bom, com crianças “educadas”, que
não lhes dão problemas com comportamento e com quem se consegue “trabalhar
bem”. Confessa procurar ver seus alunos como se fossem os filhos (que ela não teve)
e que, apesar da responsabilidade de lidar com pessoas, percebe a experiência docente
como boa, porque “a gente leva e traz” conhecimento intelectual e humano. Acredita
que os estudantes a acham tranqüila e calma, e a direção, pontual e assídua ao
trabalho. Por sua vez, ela sente dona Clair como “parte da família” e emenda, aos
prantos, que não consegue ver o Viola sem dona Clair, pois “vai ficar um vazio muito
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grande” com sua aposentadoria em 2008.
Ao ser pedida a comparar a docência de um e outro segmento, Pilar afirma que,
além da carga horária mais intensa, o trabalho como professora primária era mais
difícil, especialmente com as crianças da zona rural, que vêm para a escola sem saber
sequer pegar no lápis.
Atualmente, Pilar acumula duas matrículas, uma delas como secretária, função
que diz dar-lhe grande satisfação. Embora não se sinta sobrecarregada de trabalho, ela
confessa um certo cansaço da sala de aula: “É uma coisa psicológica, pois, com 25
anos com turma, só tirei aqueles 15 dias de licença da catapora”, justifica.
A professora acredita na necessidade de mostrar aos estudantes a importância
do aprendizado da matemática, “mesmo para quem vai fazer uma coisa muito
simples, como tirar uma carteira de motorista”. Ela inicia suas aulas “rezando um Pai
Nosso, a reza universal”, vê individualmente quem fez o dever de casa e os corrige
coletivamente. Gosta de explicar a matéria antes de chegar ao livro, o que geralmente
faz no quadro negro. Vai introduzindo o assunto novo e fazendo exercícios no quadro
aos poucos. Resume seu trabalho mais ou menos assim: “procuro sempre fazer tudo
com eles”.
E dá a receita do bom professor: dedicação ao trabalho (que significa fazer da
melhor maneira possível), honestidade, planejamento das aulas (mesmo com 25 anos
de exercício docente), assiduidade e amor ao trabalho.
Iracema: a professora nostálgica e sistemática
Iracema nasceu em Vista Alegre, tem 47 anos, vinte e cinco de profissão, sendo
que doze deles exercidos na escola-da-dona-Clair
49
. Atualmente divide seu tempo
como secretária de uma escola estadual numa comunidade rural próxima de Vista
Alegre. Tem uma filha de 19 anos, universitária, com quem diz gastar todo o seu
49
Cheguei à casa de Iracema, onde conversamos na sala de estar, pouco depois de terminar a
entrevista com sua irmã Pilar, pois elas moram na mesma rua no centro da cidade. O clima de
nostalgia de um passado glorioso e de valorização da profissão docente pode ser sentido durante todos
os minutos das quase duas horas de nossa conversa. Anotei no diário de campo que perdi a conta da
quantidade de vezes que Iracema repetiu “estou cansada. Tenho que me aposentar”. Ela me pareceu
desesperada e terminou com essas palavras nossa conversa: “Em educação, nada você vê resultado. Só
pedem nossa opinião, mas não a respeitam”.
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salário. Julga pertencer à classe pobre e faz questão de colocar que nunca conseguiu
ter nada com os ganhos provenientes do magistério, lembrando que o carro, a casa e o
sítio que possui foram presentes de seus pais.
Apesar de considerar desnecessário contar os fatos da sua infância por ela ser
irmã da professora Pilar, vou narrar as impressões por ela destacadas. Ela tem poucas
lembranças cognitivas da infância e apenas conta que “gostava muito de hospedar as
professoras em sua casa”, o que não faria hoje, porque é “muito sistemática”. Sobre
estudar no Viola, recorda-se que ia descalça para a escola e lembra com saudades da
professora Clair, por quem tem muito “respeito e carinho” e que é considerada como
alguém da família. Iracema conta, rindo, como dona Clair uma vez “deu uns tapas”
para disciplinar seu filho, colega de turma de Iracema, e de como costuma brincar
dizendo : “dona Clair batia em aluno na sala de aula!”
A carreira profissional iniciou-se aos 20 anos, já casada com um administrador
de sítio e motorista, unidocente e diretora em uma escola rural de sala única e dois
banheiros, “igual a uma casinha de boneca”, com cerca de vinte alunos, sobre os
quais ela comenta: “Eu adorava aquelas crianças.” Trabalhou como professora
primária em várias escolas rurais por treze anos até ser chamada por dona Clair para
dar aula de língua portuguesa no Viola para todas as turmas de quinta e sexta série,
por ter feito um curso adicional.
Sobre este novo momento, Iracema afirma: “Me senti em casa. Sempre me senti
em casa lá. Apesar de tudo, dessa revolta com a situação de trabalho, lá me considero
em casa, entendeu? Eu tive oportunidade de sair de lá, mas eu gosto, eu gosto”. Isso
porque “lá eu conheço todo mundo. Os funcionários da escola, mais antigos, é tudo
gente minha. Tem minha irmã que trabalhou de servente e se aposentou, meu irmão
que morou lá, as minhas sobrinhas estudaram e trabalham lá. Têm os alunos. Já dei
aula para os pais dos alunos. Tenho muita raiz, muita ligação. Eu não gosto que falem
mal da escola”.
Em relação aos alunos, por quem ela diz ter paixão e carinho, ela afirma estar
achando-os “mais frios na relação” (“durante o período que dou aula para eles não.
Mas quando estão na oitava [série], eles não se lembram mais de você”), “cada vez
pior”, “menos interessados em estudar e menos competentes, apresentando cada vez
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mais problemas de leitura e interpretação. Ela credita este fato à falta de perspectiva
de futuro, pois os alunos comentam: ‘os pais da gente nunca estudaram e estão
melhores que a gente. Então, para que estudar?’”.
Se, por um lado, percebe que a maioria dos estudantes vê a escola “como o
momento de lazer” e vão até lá para encontrar os amigos, por outro lado Iracema se
considera uma professora “muito exigente”, “brava”, “meio tradicional”, que tem
compromisso de que seus alunos saibam “pelo menos ler e interpretar mais ou
menos”. Portanto, os estudantes a vêem como uma professora “muito chata”, “que
não gosta de barulho”.
As práticas usadas na sala de aula são condizentes com os objetivos e seu jeito
pessoal, pois Iracema costuma usar muito o quadro negro e cópia, e exercícios
mimeografados, além de seguir um livro didático (ainda que preferisse usar textos
avulsos, cujas cópias a escola não dispõe). Na hora de disciplinar, estabelece no início
do ano as regras e segue-as à risca. Confessa, ainda, ameaçar os estudantes com
castigos, como a cópia. E lembra que esse jeito “funcionou todo esse tempo”.
Mariana: a dinâmica professora-diretora
Mariana é a professora de Geografia do Viola, como se refere à escola, onde
acumula, com a segunda matrícula que possui no estado, a função oficiosa de vice-
diretora, auxiliando diretamente sua mãe, dona Clair, nos trabalhos de gestão. Em
2008, com a aposentadoria de dona Clair, assumiu a direção da escola. Deseja,
quando aposentada, fazer uma faculdade de gastronomia e abrir um restaurante
50
.
Mariana nasceu há 46 anos na casa onde atualmente mora sua mãe e que antes
pertencia ao avô paterno, um dono de cafezal que era “tratador” (cuidava da saúde
das pessoas) e que gostava de fazer hortas. Dispensável dizer que Mariana foi muito
influenciada pela mãe Clair na “escolha profissional pela área humana”. Tentou
cursar Serviço Social (“porque gosto de lidar com as pessoas”) antes de não passar
no vestibular e resolver fazer Ciências Sociais, pois “tinha uma carência muito grande
50
Nossa conversa, de hora e meia, aconteceu na sala de estar de sua ampla casa de fazenda, onde mora
com o marido, empresário e sócio, e atual Secretário Municipal de Meio Ambiente, e com dois dos três
filhos de 20, 19 e 15 anos (a filha mais velha cursa faculdade de relações internacionais em Niterói).
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de professor de Geografia e quem fazia Ciências Sociais tinha direito a dar aula de
Geografia”. E completa a influência da escolha: “Mamãe sempre professora e a gente
vivia muito dentro de escola. Nem sei se isso influencia. Sei que convivi muito dentro
de escola. Mamãe sempre trabalhou, levava a gente quando éramos pequenos, porque
não tinha com quem deixar”.
Do Viola, onde estudou até a quarta-série e foi colega de turma da professora
Pilar, recorda-se de como a escola era bem menor, de como se “brincava muito,
pulava muita corda, essas brincadeiras, futebol”. Lembra da professora Dora Beatriz,
que “era muito boa, e que vinha arrumada para a escola, era muito dinâmica,
explicava muito a matéria, gostava de brincar com a gente. E ela fazia Odontologia.
Eu achava aquilo o máximo”.
O percurso escolar foi completado em escolas particulares no centro da cidade e
na cidade mais próxima, onde terminou o ensino médio e freqüentou a mesma
faculdade particular que os professores William, Jéferson, Henrique e Isaura. Dessa
época, lembra-se do professor Eraldo, “muito amigo, companheiro”, “mas com muita
facilidade de passar os conteúdos e se expressar”, além de ser exigente. E, ainda, da
Susi, de Sociologia, “pessoa atualizada” que possuía muito um material didático
“antigo, tradicional. Material bom”. Por fim, cita João, professor de História no
ensino médio e na faculdade, “ótimo no conteúdo e pessoa alegre”, cujo modo de
introduzir o conteúdo parece ter influenciado muito Mariana, ainda que ela não
tivesse consciência disso, o que foi percebido por mim, que também fui aluna deste
professor por três anos durante o ensino médio: ambos fazem um resumo no quadro
com os principais pontos a serem abordados e vão desenvolvendo-os em conversas
com os estudantes.
Além dessa estratégia, Mariana diz variar constantemente, fazendo leitura e
exercícios em livros, discussão com mapas, DVDs, seminários em que os alunos
estudam e apresentam o assunto, pesquisas na Internet. Ela define assim o seu jeito de
ser e de trabalhar:
Eu não sou muito carrasca, muito exigente demais. Acho que ‘cada um tem seu cada
um’, e eu procuro respeitar isso no aluno. Mas eu tenho pavio meio curto. Tem hora
que eu brinco sem necessidade e depois me arrependo. (...) depois, eu descasco. (...) Eu
não faço nada de extraordinário dentro daquilo que eu tenho que trabalhar. Mas eu
procuro ser bem organizada na sala, dinâmica naquilo que eu faço. (...) Eu não sou
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muito de enrolar. Tem gente que fica com um assunto toda vida. Eu sou prática nessas
coisas. Minhas aulas têm muita praticidade. (...) Muito dentro dos parâmetros normais.
Não faço nada diferente não! Todo mundo sentadinho, normal. Faço, às vezes, umas
aulas em círculo.
Acredita que “não consegue ficar muito longe do tradicional”, até porque “o
aluno não gosta muito”. Para diminuir a distância dos alunos a certos conteúdos,
Mariana faz estudos dirigidos, pois também os obriga a ler, além de que “depois retira
dos textos as coisas mais importantes e vai explicando”.
Com toda a sua carreira construída no Viola (trabalhou apenas alguns meses em
uma outra escola da redondeza e em uma particular no centro da cidade), afirma que a
profissão docente não é sacerdócio e pensa que o bom professor tem que ser bem
informado, ter carisma, gostar da profissão e “vibrar com o que o aluno faz”, “se
envolver emocionalmente”, além de “procurar, na escola, não levar problema de
casa”, como lhe ensinou sua mãe. Mas também tem que ser ético, com boa conduta
(não ser alcoólatra, drogado, nem prostituta, nem corrupto), e um cidadão, “aquele
que tem direitos e deveres”: comida, emprego, lazer, bens materiais, uma vida digna.
Mariana crê que tem uma relação de amizade com seus alunos (“nada de mãe
ou tia não”), que a vêem entre “boazinha” e, contrariamente, “muito ruim, ignorante,
estúpida, brigona”, imagem esta possivelmente mais ligada à de diretora. Por um
lado, os colegas consideram-na “meio diretora” e ela faz questão de passar uma
imagem de uma “diretora mais participativa”, “que não tenta impor as coisas”,
embora em outro momento reconheça que “nem sempre muita democracia resolve
não e nem sempre a propaganda é a alma do negócio”, quando contou que
“convocou” e não “convidou” os estudantes para uma atividade de fim de semana na
escola e, também, que a decisão de agendar uma palestra com um convidado de fora
da escola durante o horário de aula fora tomada sem comunicação prévia aos
professores do dia, porque “não ia dar tempo”. Por outro lado, ela crê que eles a
acham brincalhona e muito franca.
A identidade diretora pensa que trabalha “do mesmo jeito que mamãe trabalha:
com seriedade, sem enrolar”. O que faz com que todos se sintam “bem dentro da
escola”, que segundo ela, “tem uma química difícil de descrever”, mas tentada assim:
“não sei se é porque a gente trabalha na simplicidade nossa ali, sem se preocupar
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muito com as outras escolas. (...) Ou se as pessoas confiam muito em mamãe(...).
Para Mariana, a química está no modo como dona Clair administra “o contato com
ser humano”, feito sem desconfianças : “as pessoas confiam nela (...), de muitos
anos, muitos já foram alunos dela”. Apenas uma reclamação é feita à gestão da mãe,
que “precisava exigir mais dos professores”, “convocar mais todos da escola”,
completa ela meio chateada.
Mariana acredita que a função da escola é dar suporte à família na formação das
crianças para que elas sejam felizes. Para os estudantes do Viola, “alunos de grande
conteúdo”, a escola é “o momento de eles saírem um pouco de casa, descansar do
trabalho, se aprontar para ir para lá (...). Eles nunca estão sujos. E se a gente não
bater o pé eles não querem ir de uniforme não. E vão sempre arrumados”.
Tirando a questão do salário, “que é meio enjoada” e “dá frustração”, Mariana
afirma gostar muito de dar aulas, que se sente “sempre melhorando” e compara o
dinamismo do magistério com a própria vida, que muda muito, o que lhe dá prazer.
Diz gostar também porque “gosto muito de lidar com gente (apesar de, de vez em
quando, aborrecer). Você sempre conhece muitas pessoas, muitas novas pessoas”.
O jeito de exercer o ofício ela diz ter aprendido com a criação que teve dos pais,
que a fizeram a pessoa que é hoje. Com o pai, aprendeu a ser verdadeira (fala o que
pensa e sente) e impetuosa (“estar muito bem e dar vontade de ir embora”). Com a
mãe, não consegue descrever o que aprendeu e se indaga: “O que eu herdei de
mamãe? Eu falo tanto que sou igual a ela! [silêncio] O jeito, o jeito de ser”, completa.
Maria: a que tem preocupação com o ser humano
Maria é filha do maior produtor de café do estado do Rio, é formada em
Pedagogia, tem 39 anos, dezessete de profissão dos quais dezesseis exercidos na
escola de Vista Alegre, sua única matrícula no magistério
51
.
51
Maria, cuja justificativa do nome escolhido é “a que tem preocupação, amor ao ser humano”, foi
minha última entrevistada, pois manifestou pouca disponibilidade para o encontro, chegando a
desmarcar um primeiro agendamento. Fui recebida numa das muitas salas de estar de sua cobertura
duplex localizada no centro da cidade, onde mora com o marido, empresário e fazendeiro do café, e
três filhos, de 17, 16 e 11 anos, que nos interromperam algumas vezes. Ela era uma das professoras por
quem cultivava especial curiosidade em conhecer a história pessoal, por ela pertencer à classe alta e ser
professora numa escola pública rural afastada de sua residência.
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Maria me conta que queria se psicóloga, mas que seu pai, muito severo, não
permitia que as filhas saíssem do interior para estudar na cidade grande, onde havia a
faculdade. O desejo era porque ela gosta “muito de trabalhar com as pessoas, de
conversar, de estar com as pessoas e procurar ajudá-las”, o que ela acaba fazendo
hoje no magistério e no “movimento de igreja”, às vezes, até “alcançando um maior
número de pessoas dentro daquilo que me proponho” do que se tivesse feito
psicologia. Ela diz que “compreende o erro, passa por cima do erro, pelo zelo” do pai
e que em sua casa sempre “teve muito carinho, muito amor”.
O percurso escolar inclui o curso Normal e a faculdade de Pedagogia, com uma
pós-graduação em informática educativa, e foi todo feito em escolas particulares.
Dele, Maria se lembra de uma professora de biologia do ensino médio que parecia
preocupada com o que o aluno estava vivendo, não se ocupava só com a matéria, mas
ensinava também valores humanos, que o aluno pudesse aplicar na vida dele. Esta
formação humana é reconhecida como fundamental para o jeito pessoal de ser da
professora Maria hoje.
Assim que se formou, trabalhou alguns meses em uma escola rural, mas logo
escolheu trabalhar no Viola, porque se identifica com as pessoas que lá trabalham,
pois elas “têm essa coisa de querer fazer o melhor que pode”. Em suas palavras: “eu
me identifico com a realidade rural. Eu gosto de sítio, adoro essa realidade! A gente
tem contato com a natureza, vou para Vista Alegre passeando. Acho gostoso pegar o
carro e ir até lá estar com as pessoas. (...) Lá é tipo uma grande família”.
Acredita que dona Clair a vê como “uma pessoa com quem ela pode sempre
contar” e que seus colegas a percebem como “uma pessoa responsável, que procura,
dentro do que pode, fazer mais do que deveria”. Isto, entre outras coisas, se deve ao
fato de que Maria é a autora do Projeto Político Pedagógico da escola e de suas
atualizações nos últimos anos. Ainda, se pensa como uma profissional que tem
preocupação com sua formação acadêmica (“nunca parei de estudar”, diz ela) e com o
aluno, procurando diversificar sua prática, “porque o mundo hoje está muito
dinâmico e se a gente não procurar passar esse dinamismo o aluno não agüenta, nós
não agüentamos mais”. Os estudantes do Viola a consideram “amorosa, carinhosa e
exigente”, e é assim que ela busca estabelecer a relação com eles, uma “profissional
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carinhosa e preocupada”.
E eles são vistos por Maria como pessoas “mais humildes em termos de posses”,
que “ainda têm aquela coisa da roça, são alunos mais educados”, para quem “a escola
é tudo, é o momento em que eles param de trabalhar (...). É uma tentativa de melhorar
a sua situação social. É o momento de estar com os amigos, porque não tem programa
lá, é o momento de sair um pouquinho da realidade deles”.
Maria reluta um pouco a levantar os dados negativos relativos à escola (“eu não
sou de olhar aspecto negativo (...) O que é negativo eu jogo para trás”), mas depois
lembra do ambiente físico precário, da falta de boa formação do professor, e, por
último, declara que a realidade pública brasileira, como a falta de respeito e
consideração com os professores por parte do Estado, é desestimulante: “Eu não
penso no que eu recebo nem para quem eu trabalho. Porque, se eu pensar, eu vou ser
uma péssima profissional!”, arremata ela. Maria era, junto com Sofia, uma
orientadora tecnológica da escola que perdeu seu cargo no início de 2007
52
. Deu um
jeito e, apesar de ministrar oficialmente as matérias de Sociologia e Filosofia, além de
Atividades Complementares, continua trabalhando no laboratório de informática, “um
recurso a mais. Mas que a gente usa com excelência”, “sem abrir mão dos outros”:
trabalha pesquisa, a parte artística, com português na produção de resumos, por
exemplo.
O dia de trabalho continua sendo planejado aula por aula e descrito como
“intenso, para dar conta de tudo: eu não descanso um minuto!”. Ela começa abrindo
as páginas da Internet previamente selecionadas para a navegação, de acordo com o
assunto estudado (“mas sem conteúdo fechado”), e vai orientando individualmente ou
em par, procurando “ampliar e cobrar mais daqueles que podem ir além”, embora
reconheça que “gosta de ter o domínio total, de estar todo mundo junto”. Quanto à
avaliação, os critérios escolhidos são “o trabalho realizado, o interesse e a
participação”.
Maria diz que é bom ser professora (“muito gostoso!”) , porque é “a
oportunidade que a gente tem de conhecer o outro, de fazer o outro se conhecer. É a
hora de botar um ponto de pergunta na cabeça do aluno”. Acredita que a finalidade do
52
Como detalhadamente retratado no capítulo sobre a escola e na história de Sofia.
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trabalho do professor na atualidade seja a de “formar um cidadão melhor, consciente.
Tentar prepará-lo para esse mundão”. O cidadão é definido como aquele que tem um
sentido na vida: “Ele tem que saber o que ele quer como pessoa, ter conhecimento da
realidade em que ele vive, para não ser levado de qualquer jeito com as amizades,
com os ambientes. Ele tem que saber o que quer da vida, mesmo que não saiba tudo”.
Em outras palavras, o professor deve “ajudar o aluno nesse processo de auto-
conhecimento. Porque conhecimento não é só fora. (...). Quando ele se conhece, ele
pode fazer melhor as escolhas. Ajudar não no sentido de direcionar, mas de
percepção, respeito próprio, com o outro. Auto-conhecimento”.
Pergunto-lhe se com seus anos de experiência ela não acha que é muita tarefa
para um professor, ao que ela responde que sim, mas que ele acredita que “se todo
mundo tentar, todo mundo puxar um pouquinho, a coisa acontece”. Ainda segundo
ela, o segredo do professor é ter carinho pelo aluno e valorizá-lo, dando-lhe uma
atenção particular e fazendo com que ele reconheça “que a gente está procurando
fazer um trabalho legal”.
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