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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE FILOSOFIA, ARTES E CULTURA
Programa de Pós-Graduação em Estética e Filosofia da Arte
SIGNIFICAÇÃO ONTOLÓGICA DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA:
a contribuição de Mikel Dufrenne
José Carlos Henriques
Ouro Preto
2008
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José Carlos Henriques
SIGNIFICAÇÃO ONTOLÓGICA DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA:
a contribuição de Mikel Dufrenne
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Filosofia junto ao
Programa de Pós-Graduação em Estética e Filosofia
da Arte da Universidade Federal de Ouro Preto
Área de concentração: Estética e Fenomenologia
Orientador: Prof. Doutor José Luiz Furtado
Ouro Preto
2008
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José Carlos Henriques
Significação ontológica da experiência estética: a contribuição de Mikel Dufrenne
Trabalho apresentado junto ao Programa de Pós-Graduação em Estética e Filosofia da Arte do
Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto,
Ouro Preto, 2008.
________________________________________________
Dr. José Luiz Furtado (Orientador) - UFOP
__________________________________________________
Dr. Sebastião Trogo - UFMG
___________________________________________________
Drª. Imaculada Kangussu - UFOP
Ficha catalográfica
Henriques, José Carlos
Significação ontológica da experiência estética: a contribuição
de Mikel Dufrenne /JoCarlos Henriques; Orientador: Prof. Dr.
José Luiz Furtado. - Ouro Preto: UFOP, Instituto de Filosofia,
Artes e Cultura, 2008.
174 f. ; 30cm
Dissertação (mestrado) Universidade Federal de Ouro Preto,
Instituto de Filosofia, Artes e Cultura IFAC, Programa de Pós-
Graduação em Estética e Filosofia da Arte.
Inclui referências bibliográficas
1. Filosofia Dissertação. 2. Filosofia Contemporânea. 3.
Fenomenologia e Estética. 4. Mikel Dufrenne. I. Furtado, José
Luiz. II. Universidade Federal de Ouro Preto, Instituto de
Filosofia, Artes e Cultura. III. Título.
Para Marcela e Carla,
meus bons motivos para viver e sorrir
Agradecimentos
A meus familiares, em especial à Carla, pelo apoio e carinho com que acolheram minha
presença ausente, sem a qual este trabalho não conheceria fim.
Ao Prof. Doutor José Luiz Furtado, pela atenção que me dispensou como orientador,
minimizando minhas derivas e acompanhando, pacientemente, a elaboração do texto.
Aos professores do IFAC, em especial, Olímpio Pimenta, Romero Freitas e Imaculada
Kangussu, por terem confirmado, com suas aulas, que a filosofia é mesmo uma paixão sem
fim.
Ao Prof. Doutor Antônio da Silva, pela amizade e pelo diligente trabalho que me facultou
ter acesso a obras presentes na Biblioteca da Universidade de Coimbra.
Ao Prof. Doutor Sebastião Trogo, por ter me apresentado a obra de M. Dufrenne, pela leitura
de meus textos e pela philia que nos reúne nos caminhos da filosofia.
Ao Prof. Doutor Nuno Manuel Morgadinho dos Santos Coelho, pelas palavras de incentivo,
pela amizade e por colaborar para a conclusão desta pesquisa, adiando outros trabalhos que
temos em comum.
Aos colegas do mestrado do IFAC/UFOP, com os quais muito aprendi, em especial ao
Francesco, que partilha comigo o interesse pela fenomenologia.
A todos que trabalham na biblioteca do IFAC, por me receberem sempre tão gentilmente.
“Pode-se dizer, pois, que a experiência estética é, ao
mesmo tempo, mais e menos que a experiência
amorosa. Menos porque ela não comporta a
experiência, ao mesmo tempo, dolorosa e jovial do
desejo e da união, que ela não confere ao homem
o poder que ele tem de se transcender, doando-se.
Mais porque, menos exigente, ela é mais facilmente
satisfeita, pois é mais propensa à serenidade, que
além da distância que se mantém do objeto ao
sujeito, permanece no interior do fervor uma
garantia de pureza.”
Mikel Dufrenne, Phénoménologie de l’expérience
esthétique, p. 536.
RESUMO
O presente trabalho visa apresentar o caminho percorrido por Mikel Dufrenne, em sua obra-
prima Phénoménologie de l’expérience esthétique, em defesa da significação ontológica da
experiência estética. Após situar o pensamento do autor no contexto geral do movimento
fenomenológico, investiga-se a releitura que este faz do conceito de intencionalidade, ponto
de partida que lança nova luz sobre as relações que, na experiência, se travam entre sujeito e
objeto. Em seguida, apresenta-se a análise da percepção estética em seus três momentos
constitutivos - presença, representação e sentimento -, descobrindo-se este último como ponto
culminante de toda a experiência estética e como anúncio hipotético de sua significação
ontológica. Por fim, apresentam-se os argumentos que garantem a plausibilidade à hipótese
ontológica, firmando-se a idéia de que esta não autorizaria a construção de uma ontologia
justificante. No final do último capítulo, como abertura de horizontes da pesquisa, são
descritos os desenvolvimentos posteriores da hipótese que, sempre mais, direcionaram o
pensamento de Dufrenne rumo à tentativa de esboçar uma filosofia da Natureza.
Palavras-chave: Experiência estética; fenomenologia; percepção; significação ontológica;
filosofia da Natureza.
ABSTRACT
The work seeks to present the road traveled by Mikel Dufrenne, in his masterpiece,
Phénoménologie de l'expérience esthétique, in defense of the ontological signification of the
aesthetic experience. After placing the author's thought in the general context of the
phenomenological movement, is investigated the new interpretation that this does of the
intentionality concept, starting point that throws new light about the relationships that, in the
experience, they are locked between subject and object. Soon afterwards, he comes the
analysis of the aesthetic perception in their three constituent moments - presence,
representation and sentiment -, discovered this last one as summit of all the aesthetic
experience and as hypothetical announcement of her ontological sense. Finally, they come the
arguments that guarantee the plausibility to the ontological hypothesis, establishing the idea
that this would not authorize the construction of an ontology. In the end of the last chapter, as
opening of horizons of the research, they are described the subsequent developments of the
hypothesis that, always plus, they addressed the Dufrenne’s thought heading for the attempt of
sketching a philosophy of the Nature.
Words-
key: Aesthetic experience; phenomenology; perception; ontological sense;
philosophy of the Nature.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 12
2 MIKEL DUFRENNE E A INTERPRETAÇÃO FENOMENOLÓGICA
DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ......................................................................... 16
2.1 O encontro com a fenomenologia ...................................................................... 22
2.2 O diálogo com o pensamento de I. Kant, B. Espinosa e M. Heidegger ......... 33
3 RELEITURA DA IDÉIA DE INTENCIONALIDADE, NO HORIZONTE
DE UMA FENOMENOLOGIA DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA .................. 44
3.1 Preferência concedida à experiência do espectador: a transmutação
da obra de arte em objeto estético ................................................................... 46
3.2 Elementos de inteligibilidade da experiência estética: obra de
arte e objeto estético ....................................................................................... 54
3.2.1 Obra de arte: legitimação pela tradição ........................................................ 55
3.2.2 Objeto estético: consagração da obra de arte pelo espectador ..................... 57
3.3 A idéia de intencionalidade e a tentativa de superação do
paradigma dicotômico: anúncio da hipótese ontológica ............................... 62
3.4 Abertura ontológica de sentido a partir de uma fenomenologia
da percepção ..................................................................................................... 74
4 DESCRIÇÃO FENOMENOLÓGICA DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA
E SUA CULMINÂNCIA NO SENTIMENTO, COMO ANÚNCIO DE
UMA SIGNIFICAÇÃO ONTOLÓGICA ........................................................ 80
4.1 Primado da percepção e a tarefa de uma descrição fenome-
nológica da experiência estética .................................................................... 81
4.2 Unidade real da percepção estética realizada em seus três
momentos constitutivos ................................................................................. 86
4.3 Momento da presença: raiz corporal do sentido ......................................... 88
4.4 Momento da representação: papel mediador da imaginação ..................... 96
4.5 Momento do sentimento: culminância da experiência estética
e anúncio de sua significação ontológica .............................................................. 105
5 A HIPÓTESE DA SIGNIFICAÇÃO ONTOLÓGICA COMO COROLÁRIO
DE UMA CRÍTICA DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA ................................................ 123
5.1 Do transcendental ao ontológico: a hipótese da significação ontológica
no contexto da procura por uma anterioridade radical .................................. 124
5.2 Os a priori da afetividade enquanto condição de possibilidade da
experiência estética: para além do formalismo kantiano .............................. 129
5.3 O Lugar da hipótese ontológica na economia da obra de Dufrenne ............. 137
5.4 A hipótese ontológica na Phénoménologie: justificação antropológica
e cosmológica da experiência estética .............................................................. 143
5.4.1 Justificação antropológica da verdade estética ............................................... 146
5.4.2 Perspectiva metafísica ...................................................................................... 151
5.5 Nova direção dada à hipótese ontológica nos escritos posteriores
à Phénoménologie: esboço de uma filosofia da Natureza ............................... 159
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 165
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................. 171
12
1 INTRODUÇÃO
O principal objetivo desta pesquisa é seguir os passos que conduziram Dufrenne, sobretudo
em sua obra-prima Phénoménologie de l’expérience esthétique,
1
publicada em 1953, à
conclusão de que a análise fenomenológica aponta, ao final, para uma significação ontológica
da experiência estética, direção de sentido que, segundo ele, deve ser resgatada.
Na tentativa de melhor compreender o horizonte filosófico no qual se move Dufrenne, no
primeiro capítulo, seu pensamento será situado no contexto geral do movimento
fenomenológico, além de serem apontados alguns de seus principais compromissos com a
tradição filosófica ocidental. Ali serão apuradas as influências gerais que teriam contribuído
para a gestação e o desenvolvimento do pensamento de Dufrenne, descobrindo-se a
fenomenologia francesa, tal como pensada por Sartre e Merleau-Ponty, como sua moldura e
principal referência.
Porque se trata de um pensamento construído sob os auspícios da tradição fenomenológica e
porque um dos conceitos mais relevantes para esta tradição é o de intencionalidade, o segundo
capítulo tentará dar conta dos novos contornos que este conceito teria assumido por obra de
Dufrenne, aparecendo então como fio condutor de seu grande desafio: construir um
pensamento capaz de dizer algo sobre aquilo que antecede e funda o acordo essencial
existente entre sujeito e objeto, acordo do qual a experiência estética é cabal e exemplar
testemunha. Neste capítulo, será defendida a idéia de que Dufrenne opera uma verdadeira
releitura do conceito de intencionalidade repensando, a partir de um novo horizonte, as
1
Doravante, nas referências a esta obra, será usada uma forma abreviada: Phénoménologie.
13
relações travadas entre sujeito e objeto, homem e mundo. Esta releitura, será dito, firma-se
como ponto de apoio para a hipótese de uma significação ontológica. Além disto, será
elucidada a distinção entre obra de arte e objeto estético, uma tese cara a Dufrenne e que se
presta a mostrar aquilo que a experiência estética tem de peculiar.
Para Dufrenne, uma fenomenologia da experiência estética deve se desenvolver em três
momentos a descrição, a análise transcendental e a tentativa de resgatar seu sentido
ontológico. No terceiro capítulo, aparecerão os passos dados por ele para o cumprimento da
tarefa de compreender os dois primeiros momentos: descrição e análise transcendental da
experiência estética. A terceira tarefa, o resgate da significação ontológica, aqui aparece
anunciada. De fato, o sentimento, ponto culminante da experiência estética, aparecerá como
instância capaz de apontar para ela um sentido que deve ser encontrado aquém da cisão entre
sujeito e objeto, tornando possível, precisamente por isto, o encontro, o pacto verificado entre
os dois.
Por fim, após percorrer os passos dados por Dufrenne até a análise transcendental, se verá
como a crítica da experiência estética, pelo menos como hipótese, tende para uma ontologia
que, no entanto se mostra impossível. Assim, outra alternativa não resta senão procurar para a
hipótese ontológica uma justificação antropológica. Mas, como a perspectiva metafísica
parece resistir, pelo menos como provocação, ou como uma abertura de horizontes, nasce a
exigência de se esboçar uma filosofia da Natureza que, vencendo os limites do discurso
fundado no logos e abrindo-se para o dizer poético, venha preencher o lugar vazio deixado
pela ausência de uma ontologia, reconhecidamente impossível. É no quarto e último capítulo
que tais passos serão dados. Aqui se conhecerão as conseqüências da hipótese ontológica, os
limites do discurso filosófico e a necessidade, ainda assim, de se elaborar uma filosofia da
14
Natureza. Neste passo, será ensaiada uma direção interpretativa: a afirmação de que, nos
escritos posteriores à Phénomenologie, certa mudança de rumo no pensamento de
Dufrenne, muito embora nele permaneçam algumas importantes continuidades.
Algumas advertências são necessárias. A primeira: a obra de Dufrenne é relativamente vasta -
contam-se mais de 15 livros e algumas dezenas de artigos importantes, muitas vezes extensos,
publicados ao longo de mais de 40 anos de pesquisa filosófica. O presente trabalho elege
como ponto de referência uma obra: a Phénoménologie de l’expérience esthétique. Contudo,
considerando que os escritos posteriores a esta obra, em grande parte, propositadamente,
retomam questões ventiladas na Phénoménologie, a eles se recorrerá sempre que
necessário: para esclarecer conceitos, acompanhando os desdobramentos de idéias já contidas
na obra-prima ou, ainda, para verificar alguma nova direção alcançada pela filosofia de
Dufrenne. Neste último caso, o passo será apenas indicativo. De fato, um trabalho apto a dar
conta da passagem de uma ontologia impossível a uma esboçada filosofia da Natureza, que
parece ser o movimento tentado por Dufrenne, exigiria um esforço desproporcional aos
objetivos traçados para esta pesquisa permanecendo, contudo, como horizonte a ser
futuramente explorado.
Segunda advertência: ao longo do texto, serão referenciados pensadores com os quais
Dufrenne dialoga. Assim, em determinados contextos, aparecerão citações de Husserl,
Heidegger, Sartre e, em maior medida, de Merleau-Ponty, dentre outros. Tais citações serão
feitas nos limites da leitura que delas faz Dufrenne, isto é, não se apura a legitimidade daquela
leitura, parte-se dela como fato. A apuração desta legitimidade, mais uma vez, extrapolaria
nossos objetivos, podendo vir a ser tema de um trabalho posterior.
15
Terceira advertência: ao construir uma fenomenologia da experiência estética, Dufrenne o faz
de forma geral, não se ocupando, pormenorizadamente, de uma ou outra forma de experiência
suscitada por algum tipo especial de manifestação artística. Assim, sua argumentação é
povoada por exemplos retirados tanto das artes por ele chamadas visuais (pintura, escultura)
quanto das artes ditas da linguagem (literatura e, em especial, a poesia) ou, ainda, das artes
ditas compósitas (teatro, dança). O discurso de Dufrenne, de algum modo, é imerso, isto é,
constrói-se com os olhos voltados para as manifestações artísticas concretas, mas sem com
isto se dedicar a alguma delas, com exclusão das demais. Enfim, muito embora em maior
número apareçam referências à pintura, ao teatro e à literatura, a imersão no campo das artes
não desvia o discurso de seu caminho: pensar a experiência estética como gênero. Deste
modo, os exemplos incorporados ao texto, aqui e ali, têm um caráter ilustrativo, não
representam incursões profundas na tentativa de compreender alguma espécie de experiência
estética. É com este espírito que Dufrenne os invoca e, por isto, da mesma forma, aqui o
seguimos.
Enfim, vale dizer que o pensamento de Dufrenne, tão diversificado e provocador, merece
entre nós melhor sorte. Para tanto, por meio deste trabalho, embora com amplo
reconhecimento de seus limites, almejamos colaborar, isto é: ele pode ser um primeiro
convite.
16
2 MIKEL DUFRENNE E INTERPRETAÇÃO FENOMENOLÓGICA DA
EXPERIÊNCIA ESTÉTICA
Neste primeiro capítulo, interessa-nos, por um lado, situar o pensamento de Dufrenne no
contexto geral do movimento fenomenológico e, por outro, dar conta dos pressupostos e
escolhas metodológicas que subjazem às construções estético-filosóficas dufrennianas.
Elucidar estas duas ordens de problemas se mostra necessário para que a temática principal da
pesquisa seja enfrentada. Isto é, apropriar-se de um paradigma geral de interpretação dos
problemas estéticos adotado por Dufrenne, situando suas escolhas e pressupostos no seio do
movimento fenomenológico, conduzirá a uma adequada compreensão da hipótese segundo a
qual a experiência estética comporta uma significação ontológica.
A história da estética fenomenológica
1
não pode ser reconstruída sem que a Dufrenne nela se
conceda lugar de destaque. De fato, no interior do movimento fenomenológico, muitos se
dedicaram à reflexão estética, pelo que é possível dizer que uma escola estético-
fenomenológica. Mas é com Dufrenne que a estética vem a ocupar, no contexto daquele
1
Os primeiros autores que se dedicaram à construção de uma estética fenomenológica, de forma mais elaborada,
foram Moritz Geiger e Roman Ingarden. O primeiro adotou uma direção investigativa que passou a dominar a
reflexão estética intentada no âmbito do movimento fenomenológico, inclusive repercutindo no pensamento de
Dufrenne: o privilégio concedido à experiência do espectador. O Segundo, partindo das contribuições da
fenomenologia, dedicou-se à construção de uma estética voltada para a interpretação da obra de arte literária.
Ambos contribuíram para fundar uma renovada direção da pesquisa estética ganhando corpo, em suas obras, o
especial intento de, fenomenologicamente, buscar compreender o mundo da arte. Moritz Geiger é autor de obras
de grande importância em que, seguindo a orientação realista da fenomenologia, busca situar a experiência
estética fora da tese psicologista, pensando ainda sobre o tema do prazer estético, sem recair no vício
sentimentalista, tudo a partir da experiência do espectador. Entre nós, desde 1958, circulou um opúsculo de sua
autoria que, embora não seja sua mais importante obra, tem o mérito de lançar um olhar geral sobre os temas
estéticos apontando, no final, uma direção fecunda: a possibilidade de uma construção fenomenológica da
estética. Referimo-nos à seguinte obra: GEIGER, Moritz. Problemática da Estética e a estética fenomenológica.
Tradução de Nelson de Araújo. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1958.
17
movimento, o lugar central, firmando-se como local de instauração e desenvolvimento de toda
a reflexão filosófica.
Em suma, no contexto do movimento fenomenológico, denominação consagrada por
Spiegelberg
2
, no que diz respeito à estética, foi Dufrenne quem produziu a obra mais extensa e
que, decididamente, encontrou na reflexão sobre o fenômeno estético seu centro gravitacional
permanente. A construção de uma reflexão filosófica orientada pela perspectiva estética,
perpassa todo o itinerário intelectual de Dufrenne. Acompanha-o até mesmo em sua última
fase, quando então teria se dedicado a pensar temas ligados à ética e à política, promovendo
uma verdadeira politização da estética, no sentido de uma “tomada de consciência e de uma
reflexão sobre o que acontece no terreno próprio da arte.”
3
O movimento fenomenológico, segundo Spiegelberg, passou por fases distintas, sendo
claramente identificáveis ao menos duas de grande relevância: a fase alemã primigênia que,
posteriormente, comportou ainda variados desenvolvimentos, e a fase francesa, construída a
partir de uma especial releitura do pensamento husserliano.
Já G. Funke distinguiu naquele movimento cinco grandes círculos: de Göttingen, de Munique,
de Fribourg-en-brisgau, de colônia e de Marburgo. Muitos e importantes autores são citados
por ele como integrantes de cada um dos mencionados círculos. Segundo Funke, no contexto
2
SPIEGELBERG, Herbert. The Phenomenological Movement a historical introduction. London: Martinus
Nijhoff the Hague/Bonton, 1982.
3
Acompanhamos aqui Roberto C. Figurelli. Muito especialmente: FIGURELLI. Roberto Caparelli. Mikel
Dufrenne et Martin Heidegger essai de confrontation. Dissertation presentée pour l´obtention du grade de
Docteur en Philosophie et Lettres. Université de Liège. 1981-1982. pp. 97-99.
18
geral do movimento fenomenológico, Dufrenne ocuparia um modesto lugar na continuidade
da fase francesa da fenomenologia.
4
As apresentações gerais do movimento pecam por não expressar, acerca de Dufrenne, um
juízo de valor correspondente à real importância de seu pensamento para a constituição e
desenvolvimento da estética fenomenológica. De fato, em muitos passos, a sua originalidade
nos parece clara. Ao longo deste trabalho, embora não seja este seu principal objetivo, será
ressaltado o caráter inédito de muitas soluções e problemas aventados por Dufrenne. Uma
perspectiva por ele adotada será a responsável, em grande medida, pela originalidade de seu
pensamento: trata-se de pensar toda a filosofia a partir da reflexão sobre a estética. Isto é,
firma-se a convicção de que os resultados da fenomenologia da experiência estética podem ser
fundamento geral para o pensamento filosófico.
Isto porque, um liame intrínseco entre o pensar estético e o filosofar. Após reconhecer a
prioridade histórica do que chamou arte espontânea sobre a construção de conceitos ou
máquinas, Dufrenne aponta para o fato de que este tipo primevo de manifestação artística
(criar mitos e pintar imagens) “exprime o liame do homem com a Natureza.” E continua, “é
nisto que a estética vai meditar: ao considerar uma experiência original, ela reconduz o
pensamento e, talvez, a consciência à origem. Nisto consiste sua principal contribuição à
4
Como interpretação geral do movimento fenomenológico, com ampla contextualização histórica, a obra de
Spiegelberg segue sendo um clássico. Ali Dufrenne é alinhado ao lado de autores que se encarregaram da
releitura francesa de Husserl. Quanto à classificação do movimento em círculos esta é devida a G. Funke, em
uma obra que também se tornou referência relevante, para uma visão geral do desenvolvimento da
fenomenologia. Referimo-nos à seguinte obra: FUNKE, G. Phänomenologie Metafisik oder Methode? Bonn:
H. Bouvier Co. Verlag, 1966. À obra de Spiegelberg, já citada nota número 2 -, tivemos acesso direto. Ao
conteúdo da obra de Funke tivemos acesso por meio das citações feitas por Roberto C. Figurelli, em sua tese de
doutorado, defendida junto à Faculté de Philosophie et Letres, na Universidade de Liège, França. Esta tese,
segundo sabemos, infelizmente não foi publicada. Consultamos cópia de um original presente na biblioteca da
Universidade Federal do Paraná. A obra foi referenciada em nota anterior, número 3. A descrição dos inícios da
estética fenomenológica e do lugar que ocuparam seus autores no contexto geral do movimento é apresentada,
nesta tese, entre as páginas 24-29, no capítulo intitulado L´esthétique phénomenologique. Sobre a fase inicial da
estética fenomenológica, consulte-se ainda: SCARAMUZZA, G. Le origini dell’estetica fenomenologica.
Padova: Antenore, 1976.
19
filosofia.”
5
A arte dá a pensar o originário e, com isto, conduz a filosofia nos caminhos da
procura por uma experiência originária.
Assim, a estética é sempre essencialmente filosofia. Suas maiores tarefas, o esforço de
descrição da experiência estética, a apreensão daquilo que a fundamenta e o que ela
fundamenta, não podem ser cumpridas, a contento, a não ser no contexto de uma reflexão
filosófica. Portanto, em Dufrenne, a instauração da filosofia se no espaço de reflexão
aberto pela experiência estética.
6
Aqui, se descobre o homem reconduzido a um seu modo de
ser próprio, como ser-no-mundo, ligado a um fundo originário, a Natureza.
Por isto mesmo, estética e filosofia se unem visceralmente. Tanto o empenho por descrever a
experiência estética quanto aquele dirigido a sua crítica (apreender o seu sentido, seu
fundamento e sua possível significação ontológica) são tarefas essencialmente filosóficas e,
neste sentido, estética é desde sempre filosofia. Como bem salientou Roberto Figurelli, na
introdução à edição brasileira do primeiro volume de Esthétique et philosophie, o próprio
título escolhido para a coletânea foi “estética e filosofia porque a estética só pode ser realizada
no âmbito de uma filosofia e porque a estética é uma via privilegiada para a filosofia.”
7
5
DUFRENNE, Mikel, Estética e filosofia. Tradução de Roberto Figurelli. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.
p. 23-24.
6
Esta perspectiva nos parece incontroversa. Partindo do estético, mais exatamente, do espaço de reflexão aberto
por este fenômeno, ganham corpo as contribuições filosóficas de Dufrenne, que extrapolam o campo da
meditação sobre a arte, chegando mesmo à ontologia, não ainda sem deixar suas marcas no campo da reflexão
antropológica. No mesmo sentido, dedicando integralmente toda uma parte de seu trabalho à tentativa de
demonstrar “a instauração da filosofia no espaço da experiência estética”, ver PITA, António Pedro. Mikel
Dufrenne: a experiência estética como experiência do mundo ou uma ética demonstrada à maneira dos estetas.
Dissertação de doutoramento em Filosofia apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Coimbra: Faculdade de Letras, 1995. Muito especialmente a quinta parte deste trabalho, pp. 395-556.
7
FIGURELLI, Roberto. Introdução à edição brasileira. In: DUFRENNE, Mikel. Estética e filosofia. São Paulo:
editora Perspectiva, 1972. p. 13. Grifamos.
20
Ligando-se, especialmente, à vertente francesa do movimento fenomenológico, mas não sem
intentar diálogo com outros importantes segmentos da tradição filosófica, Dufrenne conduz
sua reflexão sempre voltada para temas estéticos. O propósito deste primeiro capítulo é situar
o leitor no contexto de relações no qual se movimentou o pensamento de Dufrenne.
Não se trata de reconstruir geneticamente a história da evolução intelectual do autor, isto seria
aqui uma pretensão desmedida. Inobstante, partimos dos seguintes pressupostos: é possível
falar de um movimento evolutivo no pensamento de Dufrenne, movimento que o conduziu,
sempre mais, de uma meditação sobre a estética à tentativa de elaborar uma filosofia da
Natureza ou de, pelo menos, deixar entrever a necessidade e oportunidade desta elaboração.
Deste modo, tanto a descrição do fenômeno estético, quanto sua análise transcendental,
comparecem como antecedentes necessários de um possível movimento final do pensamento:
a descoberta da significação metafísica da experiência estética. Portanto, pensar a experiência
estética, buscando sua especificidade, seu fundamento e o que ela fundamenta, longe de ser
apenas mais uma temática do pensamento dufrenniano, é mesmo o cerne de sua meditação
fenomenológica sobre a arte.
8
Interessa, portanto, verificar, ainda que sucintamente, os compromissos teóricos que Dufrenne
manteve com a tradição filosófica para, como objetivo central da pesquisa, dar conta da
extensão e do sentido que possa comportar, no contexto geral de sua obra, a hesitante
afirmação de que a experiência estética comporta um sentido ontológico.
8
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I L’objet esthétique. Paris: Presses
Universitaires de France, 1953. passim e, especialmente, pp. 1-3.
21
Dufrenne, por vezes, acerca do emprego dos termos ‘metafísico’, ‘ontológico’ e ‘ôntico’, se
mostra refratário à precisão terminológica introduzida por Heidegger e, em geral, seguida na
tradição pós-heideggeriana que, firmada na diferença ontológica existente entre ente e Ser,
vale-se do vocábulo ‘ôntico’, para se referir ao primeiro e do vocábulo ‘ontológico’, para
referir-se ao segundo, fazendo pesar sobre o adjetivo ‘metafísico’ o equívoco, verificado no
curso da história da filosofia ocidental, de pensar o ser a partir do ser do ente, esquecendo-se a
questão fundamental ‘do ser enquanto ser’.
Dufrenne nem sempre adota esta precisão lingüística. Uma indicação disto é o fato de que ele
ora usa o adjetivo ‘metafísico’, ora se serve do termo ‘ontológico’, segundo pensamos, nos
dois casos, para se referir a algo que transcende o ente, indicando, apontando em direção ao
ser. Portanto, comparecerá, em Dufrenne, ora a afirmação de que a experiência estética
comporta um ‘sentido metafísico’, ora a de que possui uma ‘significação ontológica’. Em
qualquer caso, inobstante a imprecisão terminológica, que nos parece proposital, firma-se a
idéia de que um tipo específico de experiência nos remete para além do ente e,
nostalgicamente, indicia a presença do ser.
9
A nostalgia estaria precisamente no fato de que a
experiência estética deixa entrever um acordo originário entre homem e mundo, acordo que
resta afrontado pela polarização que vem a diferenciar sujeito e objeto.
Feita esta advertência, vejamos agora os principais compromissos que Dufrenne teria
assumido com a tradição filosófica.
9
o fizemos um inventário completo do uso das expressões aqui ventiladas, o que exigiria empenho além de
nosso propósito. Porém, a simples consulta à obra principal de Dufrenne, a já amplamente referenciada
Phénoménologie de l’expérience esthétique, pode confirmar a tese de que ali comparece certa indiferenciação, e
mesmo certa sinonímia entre os termos metafísico’ e ‘ontológico’, portanto, sem que se distingam o dizer
metafísico sobre o ser daquele dizer sobre o ente.
22
2.1 O encontro com a fenomenologia francesa: Sartre e Merleau-Ponty
Em texto publicado quando desenvolvera, em grande medida, seu projeto filosófico,
portanto, com a amplitude de visão que o conjunto da obra editada até então permitia,
confessa Dufrenne:
Nossa geração, primeiramente, recolheu a herança do racionalismo clássico; através do
ensinamento de Brunschivicg e de Alain e, a partir daí, iniciou-se o debate entre o
dogmatismo espinosista e o criticismo kantiano.
10
Esta auto-análise, embora indique algumas direções e influências efetivamente presentes em
seu pensamento, omite uma das decisões mais fundamentais de Dufrenne: a adoção do
método fenomenológico e de alguns dos desdobramentos da herança husserliana.
11
Insistamos
nesta direção.
No início de sua formação intelectual, em estreito contato e colaboração com Paul Ricoeur
12
,
Dufrenne escreve com ele uma obra sobre o pensamento de Karl Jaspers. Não
desapareceriam, doravante, as marcas deste primeiro encontro com as filosofias da
existência.
13
Com este encontro, teria germinado ou despertado o gosto pela reflexão estética.
10
DUFRENNE, Mikel. Jalons. La Haye: Martinus Nijhoff, 1966. p. 2.
11
É consensual, entre os intérpretes de Dufrenne, a afirmação de que este aderiu à fase realista da pesquisa
husserliana, rejeitando os desdobramentos de sua fase final: o idealismo transcendental. Que a herança do
pensamento de Husserl se tenha diferenciado entre aqueles que seguiram uma ou outra daquelas fases parece,
igualmente, uma afirmação apta a alcançar consenso. Deste modo, Dufrenne de aderir à fenomenologia,
construindo seu próprio caminho a partir dela, por exemplo, aproximando-se mais da releitura francesa da
herança husserliana do que do próprio Husserl, como se verá, em seguida. A propósito do modo de compreensão
da fenomenologia adotado por Dufrenne, bem como acerca de suas relações com os luminares do movimento
fenomenológico em geral, podem ser consultadas, dentre outras, a obra de António Pedro Pita, de Eunice Pinho e
Roberto Caparelli Figurelli, todas referenciadas na bibliografia final e amplamente citadas ao longo deste
trabalho.
12
Por ocasião do segundo conflito mundial, Dufrenne e Ricouer foram juntos mantidos como prisioneiros e,
durante este período, dedicaram-se ao estudo da obra de Karl Jaspers. Fruto deste estudo conjunto, publicaram a
seguinte obra: DUFRENNE, Mikel; RICOUER, Paul. Karl Jaspers et la philosophie de l’existence. Paris: Seuil,
1947. Sabe-se que, durante aquele período do encarceramento, Dufrenne já mantinha seus primeiros contatos
com a obra de Espinosa.
13
A referência às filosofias da existência, neste contexto, é devida a António Pedro Pita. De fato, o movimento
existencialista comportou variações, justificando o uso da expressão no plural.
23
Desde então, se anuncia a tarefa de ‘elaborar a noção de existência no interior da categoria da
experiência’, intento que teria colocado o pensamento de Dufrenne no trilho de sua
problemática filosófica específica, na feliz expressão de Antônio Pedro Pita,
14
ou seja, nos
trilhos da reflexão sobre a experiência estética.
A leitura de Jaspers teve o condão de indicar a Dufrenne a possibilidade de se alcançar o
anúncio do “mundo como fundo de todos os fundos”, apontando para a necessidade de se
investigar um tipo de experiência que pudesse manifestar o “acordo do homem com o real”
indiciado naquela possibilidade.
15
Este recorte especial, esta modalidade exemplar, cedo se
mostrou ser a experiência estética. Compreende-se, por isto, a centralidade ocupada pela
noção de experiência. Um passo posterior enriqueceria a compreensão desta categoria
essencial: o encontro com a fenomenologia.
Contudo, este encontro foi, também ele, mediado. Situar a noção de existência no contexto
mais amplo de uma reflexão sobre a experiência, articulando contributos alcançados pela
releitura de Jaspers, somente se mostrará possível pela incorporação daquela tarefa no
contexto da reflexão fenomenológica.
Neste sentido, foi importante o encontro com Georges Gurvitch. Este via na fenomenologia
promessas filosóficas ainda não cumpridas. Para ele, uma direção indicada pela
fenomenologia se mostrava particularmente fecunda: a atenção devotada à experiência. Eis o
que chamou a atenção de Dufrenne. Embora reconhecesse limites no pensamento de Scheler e
14
PITA, António Pedro. Mikel Dufrenne: a experiência estética como experiência do mundo. Coimbra:
Faculdade de Letras, 1995. p. 63.
15
As expressões em destaque foram lançadas por Dufrenne e Ricouer: DUFRENNE, Mikel; RICOUER, Paul.
Karl Jaspers et la philosophie de l’existence. Paris: Seuil, 1947. p. 201 e p. 677, respectivamente. Quanto ao
papel que a leitura da obra de Jaspers teria representado para a formação do projeto filosófico dufrenniano,
muito especialmente, ver o capítulo II, pp.39-54, da obra de António Pedro Pita, referenciada na nota anterior.
24
Husserl, Gurvitch sustentou que a fenomenologia possibilitava, acerca da temática da
experiência, a superação da oposição entre o empirismo e o racionalismo. Este o mérito da
fenomenologia que indiciava sua importância no cenário da filosofia ocidental. A este valor
do pensamento fenomenológico, ele pretendeu acrescentar sua própria contribuição:
demonstrar que ‘toda experiência individual é plural e social’.
Assim, pelas mãos de Gurvitch
16
, estabelece-se, para Dufrenne, a mediação necessária que
possibilitaria a ligação de suas reflexões iniciais sobre a filosofia da existência à essencial
categoria de experiência. Neste contexto, encontrava-se em gestação uma problemática fértil e
cujo destino marcaria toda a obra dufrenniana: os primeiros lampejos de uma compreensão da
estética a partir da categoria de experiência. Mais: do contato com Gurvitch permaneceria a
convicção da historicidade radical e cultural do homem, firmando-se a idéia de que a
consciência individual é, a um só tempo, radicalmente histórica e social.
Por isto, não resta dúvida quanto à fecundidade do encontro mediador com Georges Gurvitch.
De fato, sabe-se que as primeiras publicações
17
feitas por Mikel Dufrenne, ambas em 1946,
em forma de artigos, ligavam-se diretamente a temas comumente enfrentados também por
Gurvitch. Aliás, um dos artigos exibia a clara pretensão de encontrar um terreno comum, um
contexto de fundo, que pudesse sustentar o enlace entre existencialismo e sociologia, tarefa
cumprida, por certo, à sombra de Gurvitch. Neste sentido, bem conclui Antônio Pedro Pita, ao
afirmar que “o artigo Existencialisme et sociologie constitui o primeiro momento da
16
Sobre os contatos de Dufrenne com o horizonte aberto pela reflexão de Gurvitch, resultando na gestação de
idéias que permanecerão influenciando suas futuras elaborações teóricas, podem ser consultadas passagens
esclarecedoras em: PITA, António Pedro. Mikel Dufrenne: a experiência estética como experiência do mundo.
Coimbra: Faculdade de Letras, 1995. pp. 60-76.
17
Referimo-nos aos seguintes artigos: Études critiques – existencialisme et sociologie. Cahiers Internationaux de
Sociologie. 1946 (1). p. 161-171 e Georges Gurvitch: la déclaration des droits sociaux. Esprit. Outubro. 1946. p.
513-517. O conteúdo destes artigos nos foi dado conhecer por intermédio de citações feitas por António Pedro
Pita, na obra anteriormente referenciada, obra que reputamos fundamental para a compreensão de todo o
pensamento de Mikel Dufrenne sendo, a este respeito, a mais completa existente em língua portuguesa.
25
elaboração do existencialismo dufrenniano: consiste em elaborar a noção de existência no
interior da categoria de experiência, tal como esta fora concebida por Gurvitch.”
18
É importante ressaltar, mais uma vez, que o encontro com Gurvitch se no começo da
formação intelectual de Dufrenne, ou pelo menos no início da publicação de seus primeiros
trabalhos, portanto, antes do amadurecimento total de seu principal projeto filosófico: a
consecução de uma fenomenologia da experiência estética. Neste sentido, importa pensar este
encontro como fundamental em pelo menos dois aspectos: que a releitura da categoria da
experiência se faz no contexto mais amplo das filosofias da existência e que esta releitura
logo se tornará mais rica e completa, mesmo central, a partir do encontro de Dufrenne com as
contribuições do movimento fenomenológico.
Possível afirmar, então que, por amalgamar as reflexões suscitadas pelas filosofias da
existência àquelas advindas do pensamento de Gurvitch, deste herdando, principalmente, as
aquisições acerca da temática da experiência, a existência se apresentou a Dufrenne como
experiência do mundo e é neste contexto que a adesão à fenomenologia se torna significativa.
Desde os primeiros encontros com a fenomenologia, insistimos, no pensamento de Dufrenne,
a reflexão sobre a experiência estética passará a ocupar um lugar de indiscutível centralidade.
Por isto, constitui objeto específico de sua principal obra sistemática, a Phénoménologie de
l’expérience esthétique
19
, texto da tese principal de seu doutoramento de estado, alcançado em
1953, vindo a lume neste mesmo ano.
18
PITA, António Pedro. Mikel Dufrenne: a experiência estética como experiência do mundo. Coimbra:
Faculdade de Letras, 1995. p. 76. Grifos em negrito, no original. Seguimos até aqui, e continuaremos seguindo,
as indicações deste autor sobre a gestação da problemática filosófica que alimentaria as futuras reflexões de
Dufrenne sobre a experiência estética.
19
Originalmente, a obra foi publicada em dois volumes. Uma edição mais recente, publicada pela PUF, em 2004,
reuniu a obra em um único volume. As referências a esta obra, neste texto, serão feitas a partir da edição
original. DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I L’objet esthétique. Paris:
26
Como sugere o próprio título da obra, a perspectiva filosófica adotada por Dufrenne pode ser
situada no contexto geral do movimento fenomenológico. De fato, não poderia faltar neste
movimento, à época tão consistente, uma reflexão relevante sobre a temática especial da
estética. Dufrenne concretiza esta demanda, sabendo-se que foi antecedido e secundado por
outros, empenhando-se todos estes em pensar a estética seguindo a direção fenomenológica
que orientaria, doravante, sua pesquisa.
Contudo, diferentemente dos demais integrantes da estética fenomenológica,
20
em Dufrenne, a
estética encontra-se situada na origem e deve orientar o desenvolvimento de toda a reflexão
filosófica, comparecendo como “uma via privilegiada para a filosofia.”
21
Um traço original,
de recorte dufrenniano, se anuncia: o vislumbre de que é a partir da especificidade da
experiência estética, da apropriação de suas peculiaridades, que melhor pode ser
compreendida a experiência como um todo, ou seja, afirma-se o caráter exemplar daquela
especial forma de experiência que é capaz de revelar o acordo essencial, mesmo a co-
substancialidade, existente entre homem e mundo.
22
Presses Universitaires de France, 1953. e DUFRENNE, Mikel. Phenomenologie de l’expérience esthétique. V. 2
- la perception esthetique. Paris: Presses Universitaires de France, 1953.
20
O ponto de partida para a elaboração de uma estética fenomenológica foi a obra de Edmund Husserl, embora
este não tenha escrito propriamente uma estética. Isto porque, sendo a estética um campo tradicional da
investigação filosófica, cedo houve tentativas de pensá-la a partir de uma orientação fenomenológica. Dentre os
vários autores que seguiram esta orientação, mais próximos de Dufrenne no tempo, podem-se contar: Moritz
Geiger, W. Conrad, Roman Ingarden, Nicolai Hartman, na Alemanha; Banfi e seus seguidores, na Itália e, em
França, Jean Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty. Acertadamente, concluiu Figurelli que, em meio à influência
destes autores, teria surgido a figura filosófica de M. Dufrenne. Pode-se acrescentar, contudo, que a configuração
total da obra dufrenniana se ressente do encontro de seu autor também com outras tradições, é o que pretende
demonstrar este capítulo. A respeito, conferir FIGURELLI, Roberto. Introdução à edição brasileira. In:
DUFRENNE, Mikel. Estética e filosofia. São Paulo: ed. Perspectiva, 1972. Ver, especialmente pp. 7-8 e passim.
21
FIGURELLI, Roberto. Introdução à edição brasileira. In: DUFRENNE. Mikel. Estética e filosofia. São
Paulo: ed. Perspectiva, 1972. p. 13.
22
No capítulo terceiro deste trabalho, voltaremos a falar do modo de ser próprio da experiência estética,
manifestando-se esta como uma via de acesso fecunda e um campo de compreensão privilegiado da experiência
em geral.
27
É preciso pontuar como Dufrenne entendia a fenomenologia, que a história da recepção da
obra de Edmund Husserl é acidentada. De fato, o legado hursseliano suscitou interpretações
muito variadas. O próprio Husserl, fruto de sua inquietação, espírito incessante e
insistentemente crítico, viu mover-se seu pensamento em diversas direções. A eleição de uma
ou outra das direções assumidas pelo pensamento de Husserl conformou a recepção de suas
contribuições, em diversos países, por autores, também eles, de diferentes orientações.
23
É assim que Dufrenne se aproxima da fenomenologia, de forma livre, filiando-se, sobretudo, à
recepção francesa de Husserl, em especial à conformação dada à fenomenologia, em França,
por parte de Sartre e de Merleau-Ponty. Mais, colhendo frutos do emprego do método
fenomenológico, as contribuições de Dufrenne foram mais decisivas no campo da reflexão
estética. Destacando-se dentre os fenomenólogos estetas, foi por obra sua que a estética foi
elevada ao lugar de caminho privilegiado de acesso à reflexão filosófica.
Pelo menos em duas ocasiões, o próprio Dufrenne confessa suas ligações como o movimento
fenomenológico. Sabendo-se que as duas se distanciam no tempo, uma data de 1953 e a outra
de 1981, é possível perceber que a influência do pensamento fenomenológico foi uma
constante na evolução intelectual de Dufrenne, mantendo-se sempre como fio condutor de
suas pesquisas estéticas.
23
Não nos é possível, por certo, tomar aqui como tarefa a exposição do pensamento Husserliano, caracterizando
suas múltiplas direções, o que constituiria, por si só, um intento desmedido para um único e especial trabalho de
pesquisa. Por isto, como pressuposto, adotamos a idéia de que a fenomenologia se apresenta tanto como método
de investigação quanto como corpo de resultados filosóficos, alcançados como fruto da aplicação daquele
método. A releitura que fizeram de Husserl seus diferentes interlocutores, cada um a seu modo, se apropriando
tanto do método quanto dos resultados filosóficos propiciados por sua aplicação, nos importa aqui na exata
medida em que contribuir para a compreensão dos temas centrais da problemática estética, tal como foi pensada
por Dufrenne. É assim que, ao longo deste trabalho, nos reportaremos à idéia de uma fenomenologia aclimatada
à reflexão filosófica desenvolvida em França, sobretudo por obra de dois autores, Jean Paul Sartre e Maurice
Merleau-Ponty, seguindo também aqui, mais uma vez, a trilha indicada pelo próprio Dufrenne.
28
Com efeito, em 1953, ano em que foi publicada a Phénoménologie de l´expérience
esthétique, Dufrenne fez questão de registrar o modo como se aproximava da fenomenologia
e a forma como assumia com ela seu particular compromisso. Neste sentido, esclarecendo sua
tomada de posição, afirmou, in verbis:
Não nos sujeitamos a seguir a letra de Husserl. Entendemos fenomenologia no sentido em
que Sartre e Merleau-Ponty aclimataram este termo em França: descrição que visa uma
essência, ela mesma definida como significação imanente ao fenômeno e dada com ele. A
essência está por descobrir, mas por um desvelamento e não por puro salto do conhecido
no desconhecido. A fenomenologia se aplica em primeiro lugar ao humano porque a
consciência é consciência de si: é que reside o modelo do fenômeno, o aparecer como
aparecer do sentido a si próprio.”
24
Isto é, a releitura dos contributos de Husserl, feita por Sartre e Merleau-Ponty, foi o ponto de
ligação de Dufrenne com a tradição fenomenológica, mas não sem outras mediações, é o que
sustentamos. De fato, parece acertado afirmar que o encontro com as filosofias da existência
significou também, para o pensamento de Dufrenne, um novo desenvolvimento possível da
fenomenologia e que, por intermédio da recepção francesa de Husserl, ele mesmo se manteve
presente neste “processo de transformação dos fundamentos da fenomenologia em premissas
da filosofia de existência.”
25
Em outra oportunidade, desta feita em 1981, portanto quando muito amadurecido e, em
grande parte, concretizado seu projeto filosófico, em obra que se ocupou de uma de suas
temáticas preferidas e decisivas, o inventário dos a priori, mais uma vez, é confessada a
24
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I l’objet esthétique. Paris: Presses
Universitaires de France, 1953. pp. 4-5.
25
A noção de intencionalidade, central para a fenomenologia, foi reapropriada por Merleau-Ponty que fez da
percepção seu centro gravitacional, Sartre foi conduzido a uma original tentativa de construir uma ontologia
fenomenológica. Ambas as direções seduziram Dufrenne, mas seu pensamento não perdeu de vista outros
encontros com a tradição. A este respeito ver as judiciosas ponderações de António Pedro Pita, para quem o
encontro com a obra de Espinosa e de Jaspers significou, para Dufrenne, um novo esforço no sentido de repensar
a fenomenologia. Sobre os conteúdos desta nota, ver: PITA, António Pedro. Mikel Dufrenne. A experiência
estética como experiência do mundo. Coimbra: Faculdade de Letras, 1995. pp. 99 ss.
29
adesão à fenomenologia. Dufrenne ali esclarece: “seguimos muito livremente a via aberta
pela fenomenologia."
26
Isto é, desde os primeiros e decisivos contatos, o arcabouço interpretativo, a direção do olhar,
para Dufrenne, permaneceu sendo a fenomenologia, livremente seguida, nas pegadas abertas
por Sartre e Merleau-Ponty. A perspectiva, o fundo no qual se inseriram e se movimentaram
as construções dufrennianas foi, portanto, a chamada fenomenologia francesa.
Apesar das vibrantes diferenças, frise-se que, em pelo menos uma direção, o trabalho de
Dufrenne se aproximou do pensamento dos dois luminares responsáveis pela “aclimatação da
fenomenologia em França”, ou seja, Sartre e Merleau-Ponty: oposição aos possíveis
resultados idealistas da fenomenologia husserliana. Mais: Dufrenne não fez escolha entre o
pensamento de Sartre ou o de Merleau-Ponty, preferia conjugá-los, aderindo às teses que
melhor se prestassem à compreensão adequada da arquitetônica da experiência estética. Foi o
que ocorreu, por exemplo, a respeito da interpretação dada a um conceito central para todo o
movimento fenomenológico: o de intencionalidade.
A noção de intencionalidade, fundamental para Sartre e traduzida, em Merleau-Ponty, como
percepção será, também para Dufrenne, um conceito fundante.
27
Relembre-se que o primado
da percepção e suas conseqüências filosóficas, na esteira de Merleau-Ponty, recebe tratamento
próprio, no pensamento de Dufrenne, quando a este mesmo primado se reconhece o estatuto
26
DUFRENNE, Mikel. L´inventaire des “a prori”. Paris: Christiain Bourgois, 1981. p. 26.
27
Em um escrito tardio, publicado apenas quatro anos antes de seu desaparecimento, Dufrenne registrou: “a
percepção é para mim a pátria de toda a verdade”. Quanto a este primado da percepção, para nós clara adesão à
tese defendida por Merleau-Ponty, ver DUFRENNE Mikel. oeil et l´oreille. Paris: Jean-Michel Place Editeur,
1991. pp. 72ss.
30
de ponto de partida e solo fértil para a construção de uma fenomenologia da experiência
estética.
28
Em suma, Dufrenne parece transitar livremente entre o pensamento de Sartre e Merleau-
Ponty, conjugando-os, em muitos casos, sem acolher com exclusividade o pensamento de
qualquer deles, mas sendo-lhes solidário quanto à adoção de uma perspectiva, decididamente
fenomenológica. É, aliás, o que se pode colher de uma afirmação esclarecedora, a este
respeito:
Conjugo aqui, como em outros lugares, Merleau-Ponty e Sartre. Entre os dois, recuso-me
a uma escolha radical. Merleau-Ponty tem razão ao reconduzir-nos á proximidade da
origem e ao convidar-nos a pensar o monismo. Sartre tem razão ao considerar-nos no
presente e ao convidar-nos a pensar o dualismo. Não podemos ser ao mesmo tempo
poetas da origem e artesãos da história, assumindo esse estatuto ambíguo de um ser que
pertence à Natureza e que a Natureza quer separado?
29
Como se vê, o pensamento de Dufrenne se constrói aderindo e, a um tempo, confrontando-
se com seus interlocutores, sendo resguardado assim amplo espaço para seus
desenvolvimentos originais.
Seria cita uma indagação: o que Dufrenne quer dizer quando afirma, como acima fizemos
notar, que entende a fenomenologia no sentido em que Sartre e Merleau-Ponty aclimataram
este termo em França? Esta questão é bem respondida por Antônio Pedro Pita, com quem nos
colocamos de acordo:
A interpretação deste passo, citado, pode ser uma: a rejeição da redução como
momento essencial do programa fenomenológico constitui o eixo em torno do qual se
28
Para uma visão mais detalhada dos pontos de contato do pensamento de Dufrenne com as construções de
Sartre e Merleau-Ponty, ver o capítulo IV, da obra já citada de A. P. Pita, intitulado a intencionalidade e o
mundo dos artistas. Também podem ser encontradas referências, no mesmo sentido, em artigo publicado pelo
mesmo autor, com o mesmo título, na Revista Filosófica de Coimbra, no qual foram apresentadas, com nova
roupagem, idéias já contidas em suas pesquisas para o doutoramento. PITA, António Pedro. A intencionalidade e
o mundo dos artistas Mikel Dufrenne na fenomenologia francesa. Revista Filosófica de Coimbra. Número 9.
1996. pp. 75-90. Citou-se conforme indicações do autor.
29
DUFRENNE, Mikel. Pour l´homme. Paris: Ed. Seuil, 1968. p. 149.
31
organiza a ‘fenomenologia francesa’. Dufrenne, como Sartre e Merleau-Ponty, entende
que, para o desenvolvimento da intuição central da fenomenologia, que é a
intencionalidade, a redução não só é desnecessária como nociva.
30
E, continua, denotando sua convicção de que há originalidades no pensamento dufrenniano,
convicção que com ele compartilhamos:
É neste sentido que Dufrenne entende a fenomenologia no (mesmo) sentido em que Sartre
e Merleau-Ponty. Mas só neste: as conclusões extraídas por Dufrenne não coincidem
nem com um nem com outro dos respectivos desenvolvimentos.
31
O pensamento de Dufrenne se constrói a partir da releitura da noção-chave de
intencionalidade, ou seja, remeditadando-a a partir da experiência estética.
nos referimos, mais de uma vez, à fenomenologia francesa. É que, para uma compreensão
global do movimento fenomenológico, subscrevemos o ponto de vista adotado por Herbert
Spiegelberg, autor de clássica e amplamente divulgada introdução histórica à fenomenologia,
intitulada The phenomelogical movement.
32
As expressões “movimento fenomenológico”,
“fenomenologia francesa”, que fartamente utilizamos, dentre outras, se tornaram célebres
após a publicação desta obra essencial.
30
Em apoio a esta sua tese Pita invoca uma passagem de Sartre, para ele, como para nós, esclarecedora:
“suponho que a redução possível seja possível o que falta provar ela colocar-nos-ia perante objetos postos
entre parênteses, como puros correlatos de actos posicionais, mas não de resíduos de impressões” (J.-P. Sartre.
L´Être et le Néant. p. 363, subl. nosso). Conservamos a citação tal como lançada in: Pita, op. cit. p. 120. No
mesmo sentido, com o mesmo propósito, ou seja, na tentativa de mostrar que, na fenomenologia francesa, é
desprestigiada a redução, aquele autor cita, apropriadamente, a seguinte passagem, desta feita, de Merleau-
Ponty: “o maior ensinamento da redução é a impossibilidade de uma redução completa. Eis porque Husserl se
interroga sempre de novo sobre a possibilidade da redução. Se nós fôssemos espírito absoluto, a redução não
seria problemática. Mas uma vez que, ao contrário, nós estamos no mundo, uma vez que as nossas reflexões
tomam lugar no fluxo temporal que procuram captar (...) não há pensamento que abarque todo o nosso
pensamento.” O passo foi citado exatamente como consta da nota de rodapé acostada ao texto e foi colhida in:
Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, p. VIII-IX. Conservamos, novamente, a citação como
lançada, bem assim a forma de registro da nota, ou seja, com a grafia e o seguimento das normas, à época,
vigentes em Portugal.
31
PITA, António Pedro. Mikel Dufrenne: a experiência estética como experiência do mundo. Coimbra:
Faculdade de Letras, 1995. p. 121. Conservamos, como lançada, a citação. Porém, acrescentamos entre
parênteses, um termo que acreditamos ali faltante. O destaque em negrito, consta do original.
32
SPIEGELBERG, Herbert. The Phenomenological Movement a historical introduction. London: Martinus
Nijhoff the Hague/Bonton, 1982.
32
O período áureo do movimento fenomenológico, em França, denominado fenomenologia
francesa, distinto de uma fase alemã primigênia, se situaria, segundo H. Spiegelberg, entre os
anos 1943 e 1953.
De fato, em 1943, aparecia O ser e o nada (L´Être et le néant), de Jean Paul Sartre podendo,
com justiça, ser considerado o marco inicial de um período intelectualmente rico que veria
nascer, em 1945, um seu momento também capital, com a publicação de Fenomenologia da
percepção (Phénoménologie de la perception), de Maurice Merleau-Ponty. Não deve ser
esquecida a tradução das Idéias (Ideen), de Edmund Husserl, publicada em 1950,
empreendimento relevante intentado por Paul Ricoeur.
Neste contexto, a publicação, em 1953, de Phénoménologie de l´expérience esthétique, de
Mikel Dufrenne, seria o fecho de um ciclo amplamente produtivo configurando-se,
juntamente com as obras e fatos já citados, o quadro geral da chamada fenomenologia
francesa.
Ao se referir a Mikel Dufrenne, Spiegelberg afirma que, nas obras tardias deste, a
fenomenologia cede lugar a uma ontologia da natureza. O que, segundo defendemos, indica o
reconhecimento de que Dufrenne teria desenvolvido pensamento original, precisamente ao
repensar a fenomenologia sob nova perspectiva, elaborando uma releitura de suas categorias a
partir da reflexão sobre a experiência estética.
O mesmo autor aponta para a proximidade que existiu entre o pensar dufrenniano e aquele
desenvolvido por Paul Ricoeur, seja por força do destino comum de que foram vítimas,
encarcerados durante o segundo grande conflito mundial, seja pela sedução da similar
33
problemática filosófica por eles enfrentada.
33
Porém, é de se ponderar que, embora a
proximidade com Ricoeur possa ter fornecido a Dufrenne incentivos para devotar-se à
pesquisa fenomenológica, é em Sartre e Merleau-Ponty que ele encontrará a que, para ele, se
tornou a correta interpretação do legado de Husserl. Fato, aliás, não descurado por Spiegelber.
Em suma, afora o diálogo empreendido com outros grandes nomes da tradição filosófica
ocidental, devendo ser citados Kant, Hegel e Espinosa, foi no movimento fenomenológico,
como um todo, e na sua versão francesa, em especial, que Dufrenne buscou os marcos de sua
problemática estético-filosófica, desenvolvendo um pensamento original, pelo menos no que
diz respeito a uma interpretação fenomenológica da experiência estética, seu tema central e
predileto. Sabendo-se que, na condução de suas reflexões estéticas, Dufrenne seguiu a direção
anti-idealista que ganhou corpo na fenomenologia francesa.
2.2 O diálogo com Kant, Espinosa e Heidegger
Como foi dito, o diálogo construtivo empreendido por Dufrenne com a tradição filosófica
ocidental, por certo, não se restringiu a seu encontro com a fenomenologia francesa, muito
embora, tenha sido esta sua escolha mais decisiva.
No pensamento de Dufrenne, outros autores, além dos fenomenólogos franceses, deixaram
suas marcas, integrando um campo de interlocução permanente, mas sabendo-se que todo
33
SPIEGELBERG, Herbert. The Phenomenological Movement a historical introduction. London: Martinus
Nijhoff the Hague/Bonton, 1982. p. 585.
34
diálogo intentado com outros elementos da tradição filosófica foi sempre mediado pela
perspectiva decididamente fenomenológica, verdadeiro leimotiv de toda a pesquisa
dufrenniana. Não pode ser esquecida a tradição romântica sabendo-se que, neste contexto,
Dufrenne teria elegido Schelling como seu interlocutor predileto, dele herdando a idéia de
fundo. Contudo, dentre outros
34
com os quais teria dialogado, seja pelo lugar de destaque
ocupado no cenário filosófico ocidental, seja porque emprestaram a Dufrenne direções
fundamentais do pensamento, merecem menção especial: Kant, Espinosa e Heidegger.
Na tentativa de compreender o sentido da experiência estética, Dufrenne invoca
explicitamente o patrocínio de Kant. Sobretudo uma direção do pensamento kantiano, cujos
resultados repercutiram também na estética, lhe interessava: a crítica. Para apreender o
fundamental da estética não bastaria a mera descrição da experiência por ela suscitada, mas a
pesquisa deveria “orientar a crítica para uma fenomenologia e, depois, para uma ontologia.”
35
A tese de um possível sentido ontológico da experiência estética que, de forma hesitante,
ainda seafirmada por Dufrenne, deverá ter como ponto de partida o problema crítico, ou
seja, a apreensão das condições específicas de possibilidade da experiência estética ou, em
outros termos, a descoberta e o inventário dos a priori afetivos que lhe dão suporte e, por fim,
a procura pelo a priori destes a priori, manifestando-se como necessária, neste passo, a
elaboração de uma filosofia da Natureza.
34
Renato Figurelli menciona entre os interlocutores de Dufrenne, além de Sartre e Merleau-Ponty: Kant, Hegel,
Espinosa, Wittgenstein, Heidegger, Bachelar e Alain. A referência se encontra na introdução elaborada por
Figurelli para a edição brasileira de Estética e filosofia, publicada em 1972. Na época, Dufrenne se encontrava
em plena atividade publicando, posteriormente, obras de relevo, mormente L´inventaire des “a priori”, em 1981.
Contudo, não vemos razão para acrescentar àquela lista outros nomes que tenham sido decisivos para a
elaboração do pensamento dufrenniano. Parece-nos que, mesmo a partir daquela data, os autores citados por
Figurelli seguiram sendo os interlocutores privilegiados de Dufrenne, mediando seu diálogo com a tradição.
35
DUFRENNE. Mikel. Estética e filosofia. São Paulo: ed. Perspectiva, 1972. p 24.
35
O caminho percorrido em direção ao sentido da experiência estética, até se atingir sua
significação última e a direção metafísica nela indicada; a temática da procura pelos a priori
que tornam possível percorrer este mesmo caminho, tudo, parece-nos, decorre de uma livre
apropriação, por parte de Dufrenne, do pensamento kantiano.
Há, pois, uma inspiração kantiana no enfrentamento de questões relevantes, como acima foi
exposto. Contudo, a adesão a Kant não se dá a não ser, mais uma vez, de forma livre, isto é,
sem que o pensamento de Kant seja seguido sem variações. Por exemplo, quanto à temática
dos a priori, Dufrenne pretende ir além de Kant procurando encontrar, como suporte da
experiência estética, os a priori da afetividade, provocando uma distensão do conceito
kantiano de a priori e inventariando, no interior deste conceito distendido, o número dos a
priori de maior significância para a compreensão da estética.
36
Sobre seu diálogo com Espinosa, em 1966, consignou Dufrenne a seguinte indagação:
Ousarei dizer que tentei seguir Espinosa à minha maneira, substituindo o conhecimento
do terceiro gênero pela experiência estética e a consciência de estar unido a Deus na
clareza de um pensamento lógico pela consciência, como diz Hölderlin, de habitar
poeticamente o mundo?
37
36
Em pelo menos duas obras Dufrenne desenvolveu a temática capital dos a priori. Por certo que em
Phénoménologie de l´expérience esthétique se encontram presentes os elementos que autorizariam um juízo
afirmativo sobre a importância do tema. Contudo, a reflexão sobre ele se aprofundaria com a publicação, em
1959, de La notion d´a priori e, em 1981, com o aparecimento da obra L´inventaire des “a priori”. Por certo,
perpassa a reflexão dufrenniana sobre este tema clara inspiração de matriz kantiana. Quanto ao pensamento de
Kant sobre a temática dos a priori, somos tributários da pesquisa levada a cabo por Jean Grondin. Referimo-nos,
em especial, ao tratamento que este autor dispensou ao estudo da temática dos a priori, em uma obra
fundamental: GRONDIN, Jean. Kant et le problème de la philosophie: l’ “a priori”. Paris: librairie
philosophique J. Vrin, 1989. Voltaremos a tratar da temática dos a priori no capítulo 4 desta dissertação.
37
DUFRENNE, Mikel. Jalons. La Haye: Martinus Nijhoff, 1966. p. 26. Seguindo os passos de Espinosa na
Ética, sobretudo os livros II e V, cremos poder afirmar algo sobre os gêneros de conhecimento: o primeiro firma-
se como conhecimento baseado em ‘experiências vagas’ e por ‘ouvir dizer’, é, portanto, opinião; o segundo é
conhecimento racional verdadeiro, ao qual pertencem as idéias adequadas; o terceiro, que Dufrenne teria
pretendido substituir pela experiência estética, é a ‘ciência intuitiva’, sabendo-se que deste nasce o ‘amor
intelectual de Deus’. Não é possível prosseguir o estudo sobre cada um dos gêneros, importa salientar que
Dufrenne herda de Espinosa uma direção fundamental: por meio das coisas singulares se pode ler, intuir, o
caráter transbordante do ser. É uma reapropriação de Espinosa para quem a alma pode ler Deus nas coisas
singulares. Sobre os gêneros de conhecimento devem ser consultados, em especial, os livros II e V da Ética.
Servimo-nos, para tanto, do volume XVII da coleção Os pensadores: ESPINOSA, Baruch de. Ética. In: Os
pensadores. Volume XVII. São Paulo: Abril S. A. Cultura e Industrial, 1973. pp. 77-307. Para uma visão geral
36
Seguindo as pistas deixadas pelo próprio Dufrenne, à interrogação acima devemos responder
afirmativamente. De fato, o entendimento da Natureza como um fundo originário em que se
encontraria inserido o homem, como seu conatural, (co-substancialidade entre homem e
Natureza); a compreensão de que as coisas têm uma essência singular, sendo o acesso a esta
singularidade garantido, exemplarmente, pela experiência estética, constituindo-se o objeto
estético como uma mediação da poeticidade da Natureza; bem assim a convicção de que “a
obra exprime uma essência singular” e de que “a obra de arte é esta essência singular que,
porque vai ao fundo da sua singularidade, atinge o universal”, todas estas teses foram
subscritas por Dufrenne, com apelo explícito à interseção de Espinosa.
38
Nos escritos posteriores à Phénoménologie, emerge uma maior cumplicidade de Mikel
Dufrenne com o pensamento de Espinosa sabendo-se que, sobretudo em uma obra específica,
L´oeil e l´oreille
39
, o primeiro teria deixado transparecer traços indicativos do intenso e
significativo diálogo existente entre os dois.
Sobre uma temática, em especial, a influência de Espinosa teria sido decisiva: a afirmação de
que uma mútua pertença entre homem e mundo, sendo possível surpreender um estado de
indivisão, marca desta intrínseca pertença, sabendo-se que, pelo sentir, se revela esta
anunciada indivisão. Daí a crucial importância de que se reveste, para Dufrenne, o sentimento,
da reapropriação dufrenniana de Espinosa ver: DUFRENNE. Mikel. Dieu et l’homme dans la philosophie de
Spinoza. In: Jalons. La Haye: Martinus Nijhoff, 1966. pp. 28-69.
38
As duas citações encontram-se literalmente lançadas In: DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience
esthétique. Vol II. pp. 591-592. Para uma visão mais abrangente da possível influência que Espinosa teria
exercido sobre o projeto filosófico de Dufrenne, deve ser consultado um capítulo da obra de António P. Pita que
a tanto se dedica, intitulado, precisamente, Um pensamento do singular: a releitura de Espinosa. A respeito, ver:
PITA, António Pedro. Mikel Dufrenne: a experiência estética como experiência do mundo. Coimbra: Faculdade
de Letras, 1995. pp. 123-136.
39
DUFRENNE, Mikel. L’Oeil et l’oreille. Montréal: Éditions de l’Hexagone, 1987. Há, ainda, uma segunda
edição desta obra - DUFRENNE, Mikel. L’Oeil et l’oreille. Paris: Jean Michel Place Éditeur, 1991.
37
apresentando-se mesmo como uma das categorias fundamentais da experiência estética.
Firmando a influência de Espinosa, nesta direção, advoga Antônio Pedro Pita:
O problema não é o homem: o problema é o sentir e sentir designa uma anterioridade da
divisão entre o homem e o mundo: é, em si mesmo, a marca de uma pertença mútua, uma
situação-limite e uma nostalgia, o fantasma utópico que a experiência estética reactiva.
40
É a partir de Espinosa que Dufrenne repensa um novo lugar e estatuto para o sujeito, em
franca crítica à modernidade, que se pautou pela distinção radical entre sujeito e objeto. Por
fim, embora a idéia já se deixasse entrever na Phénoménologie de l’expérience esthétique, nos
últimos escritos, mormente em L´inventaire des a priori, Dufrenne dará o passo, sempre
latente, mas agora explicitado: encontrar a Natureza como um a priori de todo a priori,
denunciando a mútua pertença entre a Natureza e o homem, pertença paradigmaticamente
manifestada pela experiência estética, privilegiando-se nesta o modo de ser próprio do
espectador.
Quanto a uma possível relação de Dufrenne com o pensamento de Heidegger, dois aspectos
devem ser considerados: por um lado, parece se verificar uma hesitação de Dufrenne quanto a
se aproximar de Heidegger, hesitação que o conduz, na maioria dos casos, ao afastamento; por
outro lado, apesar de, explicitamente, tentar pontuar as diferenças, o pensamento de Dufrenne
parece seguir a direção geral indicada por Heidegger.
Deste modo, a relação que se estabeleceu entre o pensamento de Heidegger e aquele
construído por Dufrenne sempre se manteve tensa. Como esclarece Roberto Caparelli
Figurelli, com a autoridade de quem levou a cabo um ensaio de confrontação entre os dois
autores:
40
PITA, António Pedro. Mikel Dufrenne: a experiência estética como experiência do mundo. Coimbra:
Faculdade de Letras, 1995. p. 136.
38
À primeira vista, Dufrenne parece refratário a toda e qualquer influência de Heidegger.
Ora atraído, ora repelido pelo pensamento do autor de Ser e Tempo, o esteta francês
chegou a confessar sua ambição de substituir a noção ‘generosa e fugidia’ do ser
heideggeriano pela idéia de Natureza ou, em outras palavras, substituir uma filosofia do
ser por uma filosofia ou ontologia da Natureza.
41
De modo geral, apesar da tensão sempre presente no encontro de Dufrenne com o pensamento
de Heidegger, importantes direções heideggerianas foram adotadas pelo primeiro, sendo estas
decisivas para a conformação geral de sua maneira de pensar a estética e, por ela, toda a
filosofia.
Dufrenne é tributário de Heidegger em pelo menos três aspectos fundamentais: a adoção da
tese segundo a qual um profundo acordo entre homem e mundo, convicção que teria
nascido também por força de seu contato como o pensamento de Espinosa; a defesa da idéia
de que seria possível a construção de uma ontologia fundamental, tomando como ponto de
partida o Dasein, ente que se interroga sobre a questão fundamental do ser e, por fim, o
caminhar de Dufrenne sempre mais em direção a uma filosofia da Natureza sugere a tentativa
de empreender uma ousada substituição da idéia de Ser por aquela de Natureza, com
aproveitamento das intuições de Heidegger.
Se, por um lado, entre Heidegger e Dufrenne certa consonância a respeito de relevantes
aspectos, por outro, sempre permanece entre os dois, durante todo o tempo, uma tensão
produtiva nunca debelada. Vejamos.
Para Dufrenne, conduzido o homem, pela percepção estética, a um fundo originário, sendo
este a Natureza, haveria, então, a convergência para uma ontologia ou filosofia da Natureza
41
FIGURELLI. Roberto Caparelli. A estética de Mikel Dufrenne. In: Revista Veritas. V. 45. Porto Alegre: junho
2000. pp. 195-204. A citação encontra-se na página 197.
39
que, compreendendo este fundo de todos os fundos, elucidaria a co-substancialidade existente
entre homem e mundo.
para Heidegger, a questão fundamental do ser, esquecida na tradição do Ocidente, em um
primeiro momento, poderia ser evidenciada, arrancada do velamento, por meio da elucidação
do ente que se interroga sobre o Ser, aclarando-se a incontornável diferença ontológica. Esta é
a direção do primeiro Heidegger que, apesar das diferenças, muito interessou a Dufrenne.
Posteriormente, a pretensão de se construir uma ontologia fundamental, nestes moldes, para
Heidegger, se revelou insuficiente. O Ser, após a famosa Kehre, se deixaria evidenciar como
clareira, sendo o homem seu pastor. Também esta última direção heideggeriana dada à
questão do ser encontrou acolhimento no pensamento de Dufrenne. De fato, Dufrenne parece
se remeter à idéia de Natureza, senão em substituição, pelo menos em confronto com a idéia
heideggeriana de Ser, ao menos aquela adotada pelo último Heidegger.
Enfim, é possível pensar que Dufrenne tenha acompanhado o desenvolvimento do
pensamento de Heidegger, durante todo o seu percurso, reagindo aos apelos que dali
emanavam e, a cada passo, tenha buscado explicitar as diferenças que o distanciavam das
teses heideggerianas, mas não sem aderir livremente às direções fundamentais alcançadas
pelo pensamento de Heidegger.
42
42
A obra de Dufrenne, no seu conjunto, exibe muitas referências a Heidegger. Citam-se os textos escritos por
Heidegger durante todo o percurso de seu desenvolvimento intelectual. Desde a Phénoménologie de l’expérience
esthétique até os últimos escritos de Dufrenne, Heidegger é consideravelmente referenciado. quem discuta se
o percurso cumprido pelo pensamento de Heidegger apresentou ou não uma reviravolta. É a temática famosa da
Kehre. Gadamer, por exemplo, insiste em afirmar que, apesar das inflexões variadas, o pensamento de
Heidegger, durante todo o seu itinerário, se mostrou direcionado por uma questão sempre fundamental: a questão
do ser. Neste sentido, as diversas inflexões adviriam das variadas respostas dadas sempre a uma mesma questão,
portanto autorizando a pensar que teria havido mais continuidade que ruptura na eventual passagem de um
primeiro para um segundo Heidegger. Para nós, sem adentrar neste acirrado debate, interessa perceber que
Dufrenne foi sensível às alterações de direção pensadas por Heidegger, variações que foram necessárias como
tentativas de apresentar respostas à fundamental questão sobre o ser. Para uma compreensão da interpretação
40
A distância em relação a Heidegger parece, mais uma vez, se evidenciar, mas ao mesmo
tempo, permitindo uma reaproximação por outra via: mantém-se intacto o estado de tensão,
sem que este emperre o diálogo. Parece que Dufrenne se sentia desafiado pelo pensamento de
Heidegger e, ao dar respostas às intrincadas interrogações que este suscitava, se afasta das
soluções propostas pelo primeiro, mas vez por outra, a elas retorna, por outros caminhos.
Quanto à existência de certos acordos entre Heidegger e Dufrenne, mais uma vez, pode ser
recordada a lição de R. C. Figurelli, que reputamos ter bem compreendido o estado de
permanente desafio e tensão existentes na relação entre os dois:
A idéia heideggeriana do homem como ser-no-mundo é recebida de braços abertos por
Dufrenne, porque a fenomenologia não cessa de nos instruir acerca de nossa presença no
mundo. É na experiência estética que se manifesta a relação mais profunda do homem
com o mundo. A percepção estética reconduz o homem ao originário. Ora, l’ originaire,
em Dufrenne, se identifica com a Natureza. Tudo converge para uma ontologia ou
filosofia da Natureza.
43
De novo, é de forma livre que Dufrenne dialoga com Heidegger como, de resto, o faz com
toda a tradição filosófica ocidental. Nos espaços de tensão e de reencontro com a tradição,
Dufrenne construiu seu pensamento, resguardando-o da mera repetição ou da adesão ingênua
e limitada, direcionando-o rumo a uma originalidade, sem dúvida identificável no conjunto de
sua obra.
A maior parte dos contributos originais de Dufrenne passa pela aceitação inconteste e
amplamente justificada da centralidade da reflexão estética. Assim, na esteira da interpretação
francesa da fenomenologia, não nos deve estranhar o fato de que Dufrenne tenha elegido
como ponto central, do qual irradia sua filosofia, a reflexão sobre a experiência estética.
gadameriana da Kehre, ver a obra recentemente lançada no Brasil GADAMER, Hans G. Hermenêutica em
perspectiva – Heidegger em retrospectiva. São Paulo: ed. Vozes, 2007. passim.
43
FIGURELLI. Roberto Caparelli. A estética de Mikel Dufrenne. In: Revista Veritas. V. 45. Porto Alegre: junho
2000. p. 203
41
Acompanhar o caminho percorrido por Dufrenne no desenvolvimento desta reflexão para, ao
final, com ele concluir sobre seu sentido ontológico é o propósito que nos move e que
encontrará a seguir um esforço específico de elucidação.
As principais idéias de Dufrenne sobre a experiência estética nasceram com sua obra capital
Phénoménologie de l’expérience esthétique. Algumas delas, em gérmen, já presentes ali,
sofreram revisões ou aprofundaram suas raízes na tentativa, sempre inconclusa, de se elaborar
uma filosofia da Natureza. Interessa-nos aqui, preferencialmente, explicitar as idéias contidas
na obra principal, sem deixar de articulá-las com alguns de seus desenvolvimentos
posteriores, na estreita medida em que este procedimento se mostrar útil para o
esclarecimento da hipótese principal de que nos ocupamos: a evidenciação do sentido
ontológico da experiência estética.
Por fim, uma palavra ainda sobre o tratamento dispensado a Dufrenne por parte de
historiadores da filosofia e pesquisadores atuais.
Nas obras gerais de história da filosofia é ausente, ou sempre muito modesto, o tratamento
dispensado a Dufrenne. Esta ausência, ou o pouco valor dado às contribuições filosóficas
deste autor, quiçá tenha dupla motivação: a insuficiente compreensão do pensamento
dufrenniano e o fato de ser ele um autor cuja originalidade não poderia, na verdade, ser
comparada à produção dos grandes luminares do movimento fenomenológico. Ou seja,
interessados preferencialmente nos protagonistas daquele movimento, os historiadores da
filosofia, quase sempre, não se voltam para Dufrenne. Mas, seguramente, pelo menos no que
diz respeito à estética, é injusto conceder a ele apenas um papel de coadjuvante.
42
De fato, o pensamento de Dufrenne é o mais volumoso e compreensivo consagrado à estética
no interior do movimento fenomenológico e, embora outros nomes do movimento devam ser
lembrados também neste campo, para nenhum deles a temática da experiência estética se
firmou como tema quase exclusivo de uma investigação exaustiva o que, por si, constitui uma
inegável novidade: possibilitar o acesso à filosofia pela fecunda via da estética, isto é, permitir
que reflexão filosófica se coloque e se desenvolva a partir do fértil solo revelado pela
experiência estética.
44
Embora o quase esquecimento
45
do trabalho de Dufrenne tenha sido, até agora, a regra, este
fato não impede, aliás, impulsiona um outro juízo, desta feita positivo, acerca das
contribuições estético-filosóficas alcançadas por uma exaustiva análise da categoria da
experiência estética, levada a cabo por aquele autor, sobretudo a partir da publicação da
Phénoménologie de l’expérience esthétique.
46
Neste capítulo, nosso propósito, que esperamos ter cumprido, foi sintetizar o conjunto dos
compromissos teóricos que, aurido por Dufrenne do livre diálogo mantido com a tradição
44
O próprio Spiegelber, embora em geral não seja tão entusiástico quanto a uma possível originalidade do
pensamento de Dufrenne, reconhece o valor da profunda e exaustiva reflexão sobre a experiência estética levada
a cabo por este pensador, chegando mesmo a creditar-lhe, no campo da estética, a posição de maior destaque
dentro do movimento fenomenológico. Conferir: SPIEGELBERG, Herbert. The Phenomenological Movement
a historical introduction. London: Martinus Nijhoff the Hague/Bonton, 1982. pp. 600/601.
45
Como exemplo do modesto tratamento dispensado a Dufrenne por parte de historiadores da filosofia, veja-se a,
entre nós, famosa obra geral de história da filosofia, de autoria dos italianos Giovanni Reale e Dario Antiseri.
Nesta obra, a única referência a Dufrenne é indireta, isto é, é citado apenas como um autor que denunciou o anti-
humanismo dos estruturalistas. Nada se diz sobre o pensamento de Dufrenne, não comparece ele nem mesmo
encartado no movimento fenomenológico, o que nos parece falha inegável, que a pretensão da obra, a dar
créditos aos próprios autores, é apresentar o desenvolvimento histórico da filosofia no Ocidente, de forma
abrangente. Por certo Dufrenne merece melhor juízo que não o esquecimento. Referimo-nos à obra:
GIOVANNI, Reale; ANTISERI, Dario. História da filosofia – do romantismo até nossos dias. Vol. III. Tradução
de Álvaro Cunha. São Paulo: edições paulinas, 1991.
46
Atualmente, na Sorbonne, unidade Paris-Nanterre, existe um centro de pesquisa que tem dedicado alguma
atenção à estética fenomenológica. Ali leciona Maryvone Saison que tem se dedicado, em parte, ao estudo da
obra de Dufrenne. Também na Itália, na Universidade de Milão, pensadores interessados na pesquisa estética
e que têm se voltado para o estudo da estética fenomenológica, sendo também contemplado o pensamento de M.
Dufrenne. Uma apresentação do contexto geral em que se inseriu a produção dufrenniana sem, contudo, emitir
um juízo detalhado quanto à sua originalidade, encontra-se em: AA.VV. A companion to aesthetics edited by
David Cooper. Oxford: blackell publishing, 1992. pp. 124-126.
43
filosófica ocidental, presidiu tanto a gestação quanto o desenvolvimento de seu projeto
filosófico maior: elaborar uma fenomenologia da experiência estética. Este primeiro passo é
importante uma vez que, conhecendo as bases filosóficas e os pressupostos metodológicos
adotados por Dufrenne, se tornará mais seguro nosso juízo sobre a temática principal da
pesquisa, isto é: a elucidação do sentido ontológico da experiência estética, sentido último
alcançado sob os auspícios da perspectiva crítico-fenomenológica, que somente se deixa
melhor compreender quando situamos esta ousada hipótese
47
no contexto do diálogo
empreendido pelo seu autor com toda a tradição. Aqui, com esta explícita intenção, pensamos
ter apresentado os passos mais significativos deste diálogo.
47
A significação ontológica da experiência estética, como se verá adiante, mormente no capítulo 4 deste
trabalho, é de formulação claramente hipotética. Isto é, depende sempre de um “se”, da admissão de certos
pressupostos que não podem ser inteiramente justificados. Por isto, evitou-se a designação tese, substituindo-se
esta por hipótese, para resguardar o desafio representado pela hipótese ontológica, perspectiva constantemente à
procura de sua própria afirmação, de sua plausibilidade.
44
3 RELEITURA DA IDÉIA DE INTENCIONALIDADE, NO HORIZONTE DE UMA
FENOMENOLOGIA DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA.
Uma palavra sobre a importância do tema tratado neste capítulo, articulando seus resultados
com o interesse principal da pesquisa, ou seja, compreender a hipótese segundo a qual há uma
significação ontológica descortinada na experiência estética. É no contexto de uma releitura
da idéia de intencionalidade que Dufrenne pretende lançar um novo olhar sobre o dualismo
entre sujeito e objeto. Com a tentativa de superação desta dualidade - afirmando-se não a
confusão ou o reducionismo monista a um dos termos da relação, mas a necessária
correlação ou reenvio de um a outro daqueles termos -, evidencia-se o sentido ontológico da
experiência estética: há nela a evidenciação de uma transcendência. Descortinar este horizonte
de sentido é tarefa que conduzirá à compreensão da significação ontológica da experiência
estética justificando-se, então, o esforço empreendido neste capítulo: dar conta da releitura
dufrenniana da idéia de intencionalidade, como leitmotiv do caminho que conduz à descoberta
daquela mesma significação.
No contexto mais amplo de uma reflexão sobre a experiência estética, garantida a
exemplaridade deste modo peculiar de experienciar, Dufrenne articula seu discurso de
tentativa de superação do dualismo radical, tradicionalmente afirmado no pensamento
ocidental. Portanto, esta dualidade, exatamente por se mostrar insubsistente na paradigmática
experiência estética, deve ser vencida também na experiência em geral, ou seja, há um
horizonte indiviso entre homem e mundo, em que se interpenetram sujeito e objeto,
subsistindo estes como elementos que reciprocamente se implicam na experiência. entre
eles um co-pertencimento unificador, uma relação de necessário reenvio entre sujeito e objeto,
45
o que induz a afirmação de que não se reduzem um ao outro, tanto que mutuamente se
implicam, sem se confundirem; mas também faz pensar que, se um elemento transcende o
outro, no sentido de que cada um indica a presença necessária do outro na relação, poderia
haver um terreno comum que suportasse este mútuo remetimento, este co-pertencimento.
Neste contexto, o mote principal do discurso de superação do dualismo gira em torno de um
objetivo bem definido, para nós, colocado em marcha desde a publicação da Phénoménologie
de l’expérience esthétique: explicitar a distinção existente entre obra de arte e objeto estético.
Ao descrever o objeto estético como correlato
1
específico de um tipo peculiar de experiência,
Dufrenne intenta demonstrar que, naquela exemplar forma de experienciar, fica vencida a
dicotomia que, habitualmente, opõe o sujeito ao objeto. Ora, sendo a experiência estética um
paradigma
2
compreensivo de toda forma de experiência, então a erradicação da dicotomia
sujeito-objeto, alcançada naquele contexto paradigmático, deve ser afirmada como
característica pertencente a toda forma de experienciar. Aqui, mais uma vez, a estética cede
seus préstimos à reflexão filosófica geral.
1
O termo correlato é empregado por Dufrenne, ao longo de sua obra, para indicar que, na experiência, um
remetimento recíproco e necessário entre sujeito e objeto e, por isto, o conservamos. O termo parece ser eficaz
para firmar a idéia segundo a qual, na experiência, sujeito e objeto se empenham sem se reduzirem um ao outro,
sem se confundirem: sempre uma transcendência de um em relação ao outro. Transcendência no sentido de
que um elemento, sujeito ou objeto, supõe e aponta em direção ao outro havendo, então, entre eles uma
correlação necessária, porque inafastável. Resta lembrar que o termo é recorrente em toda a obra de Dufrenne:
comparece tanto na Phénoménologie de l’expérience esthétique, quanto nos escritos a ela posteriores. A primeira
aparição deste termo, na Phénoménologie, se precisamente no contexto da descrição do objeto estético, em
que este comparece como correlato específico da experiência estética. A este respeito, ver, em especial:
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 4.
2
Dufrenne sempre se refere à exemplaridade da experiência estética. Outro termo possível, no mesmo sentido, é
paradigma. As referências a esta idéia perpassam toda a obra dufrenniana. De forma oportuna, Antônio Pedro
Pita, se serve do termo prefiguração para esclarecer o caráter exemplar da experiência estética. Vale conferir um
passo importante a este respeito: “... sempre que condições para percepcionar um objecto, desligando a sua
captação das condições mundanas nas quais ele ocorre para que a sua profundidade se manifeste,
desenvolvemos uma percepção formalmente idêntica à percepção estética embora não solicitada por uma obra de
arte. (...) uma experiência possível da profundidade do mundo que não requer a mediação da obra de arte. A
experiência estética é aqui tomada na sua exacta qualidade de prefiguração.” (PITA, Antônio Pedro. Mikel
Dufrenne: a experiência estética como experiência do mundo. Coimbra: Faculdade de Letras, 1995. pp. 205-206.
Conservamos o original, inclusive a expressão grifada). Para uma compreensão mais ampla das repercussões da
tese da exemplaridade no contexto total da obra de Dufrenne, pode ser consultada a obra citada, mormente a sua
terceira parte, pp. 205ss.
46
Seguindo os passos dados por Dufrenne para bem compreender, no contexto da interpretação
fenomenológica, o sentido da experiência estética (sentido finalmente revelado como
ontológico), seria necessário percorrer, em linhas gerais, as seções de sua obra capital,
apresentando seus resultados. De fato, a hipótese de que se anuncia uma significação
ontológica na experiência estética, na economia da Phénoménologie de l’expérience
esthétique, comparece como um passo último, afirmação alcançada como resultado de todo o
percurso crítico-descritivo, desenvolvido no curso de toda a obra.
Os passos referentes à descrição e à crítica da experiência estética serão dados posteriormente,
nos capítulos 3 e 4 deste trabalho. Neste capítulo, convém elucidar o porquê do privilégio
concedido à experiência do espectador, perspectiva explicitamente tematizada como um
recorte metodológico, desde o início, necessário. Por comprometer os rumos de toda a
pesquisa fenomenológica, constituindo-se como uma direção permanente imposta ao olhar
investigativo, aquele recorte metodológico deve ser analisado em primeiro lugar.
3.1 Preferência concedida à experiência do espectador: a transmutação da obra de arte
em objeto estético
Uma completa análise da experiência estética comportaria, ao menos, duas possibilidades
direcionais: investigar o fenômeno da criação ou o da recepção da obra criada.
47
No primeiro caso, a investigação, voltando-se para a elaboração de um pensar sobre a criação,
privilegiaria o artista ou seu fazer próprio, elaborando-se uma estética do gênio ou mesmo da
técnica empenhada no ato de criar.
No segundo, a investigação, inclinando-se em direção à experiência do espectador,
privilegiaria sua ação ou passividade diante da obra de arte (já criada), elaborando-se uma
estética da contemplação, da recepção.
Como digressão necessária, uma distinção deve ser feita. São conhecidos os movimentos, em
grande parte ligados à teoria literária, que a tradição consagrou com a denominação Estética
da Recepção que, a partir do final da década de 1960, em primeiro lugar na Alemanha e mais
tarde nos Estados Unidos, tiveram em comum a defesa da soberania do leitor na recepção
crítica da obra de arte. Na Alemanha, tomou o nome de Rezeptionästhetik; no mundo anglo-
americano, adotou-se a expressão reader-response criticism, em português, talvez por força
da dificuldade de tradução literal da expressão inglesa, tem-se preferido a tradução estrita do
original alemão adotando-se, então, a denominação estética da recepção.
nuances distintas entre as duas correntes e mesmo no interior de cada uma delas, não
sendo este o espaço apropriado para aprofundá-las. Interessa, para os fins deste trabalho, frisar
apenas que o enfoque que marca a pesquisa estética, conduzida naqueles movimentos, liga-se
a certas temáticas específicas, sendo uma delas a afirmação da importância do receptor do
texto para a determinação de seu sentido; ao contrário da tradição que, em geral, toma o texto
como uma entidade que recolhe na sua natureza o seu próprio sentido, deixando para o
leitor crítico a tarefa de identificá-lo.
48
Ainda uma outra temática específica, presente na pesquisa desenvolvida pelos representantes
da chamada estética da recepção, é a compreensão do fenômeno da perpetuação do texto na
tradição, fruto do papel central do público, seu natural destinatário. Aqui, trava-se franca
polêmica em relação à teoria literária marxista, que procurava demonstrar o sentido da
literatura como retrato da realidade social. A polêmica se estende em direção da chamada
escola formalista, que compreendia a literatura como uma sucessão de sistemas estético-
formais sem relação com o processo geral da história. Em qualquer dos casos, o público, o
leitor destinatário, via diminuído seu real papel de produtor crítico do sentido da obra.
A escola marxista tende a tratar o leitor do mesmo modo como trata o autor, identificando o
sentido que empresta à obra em razão da pertença a uma certa classe social. A escola
formalista, como faz ver a própria denominação, utiliza a noção de leitor como sujeito de uma
recepção formalizada, cabendo-lhe desvendar o sentido do texto através de conhecimentos
especializados, enfrentando-se com ele, servindo-se a da filologia. A proposta de Hans
Hobert Jaus, por exemplo, é tratar o texto como objeto histórico, superando-se assim a
clássica separação entre história da literatura e estética. Para Jaus, a permanência de uma obra
no tempo se dá em função da atuação do público, criadora do sentido dessa mesma obra, e não
em função da obra por si, como se contivesse valores eternos e imutáveis.
3
O pensamento de Jauss, no sentido de uma estética da recepção, pretende ultrapassar o estudo
das condições de produção da obra e a identificação do contexto histórico de seu autor.
3
Para Jaus, é preciso reconhecer os limites das teorias literárias que se esquecem ou diminuem o papel do
público, já que “texto algum foi escrito para ser lido e interpretado filologicamente por filólogos ... ou
historicamente por historiadores". E, acrescenta aquele autor, frisando o decisivo papel do leitor "a escola
marxista iguala a experiência espontânea do leitor ao interesse científico do materialismo histórico, que deseja
desvendar na obra literária as relações entre a superestrutura e a base.... Ambos os métodos, o formalista e o
marxista, ignoram o leitor em seu papel genuíno, imprescindível tanto para o conhecimento estético quanto para
o histórico: o papel do destinatário a quem, primordialmente, a obra literária visa (...).” Conferir: JAUS, Hans
Robert. Pour une esthétique de la réception. Paris: Gallimard, 1978. pp. 24ss.
49
Assim, restaria superada a inconveniente ruptura entre história da literatura e estética, como
ele mesmo faz notar:
Se se olhar a História da literatura no horizonte do diálogo entre obra e público, diálogo
responsável pela construção de uma continuidade, deixará de existir uma oposição entre
aspectos históricos e aspectos estéticos, e poderá restabelecer-se a ligação entre as obras
do passado e a experiência literária de hoje que o historicismo rompeu.
4
Por certo, não é a mesma a perspectiva adotada pelos estetas fenomenólogos e aquela
subscrita pelos autores da chamada estética da recepção. De forma geral, embora também aqui
existam nuances diversas a considerar, os estetas fenomenólogos dedicam-se a pensar a
experiência estética do espectador no âmbito próprio da pesquisa fenomenológica: descrição e
crítica desta forma específica de experienciar. Cumprem estas tarefas com a utilização dos
instrumentos metodológicos auridos da fenomenologia, movimentando-se os conceitos no
âmbito da terminologia e da problemática próprias da escola fenomenológica.
Não é a recepção, pensada em termos da relação arte e sociedade, que interessa primeiramente
ao fenomenólogo e sim a apropriação dos elementos que compõem a trama da experiência
estética, em seu mais amplo sentido. Isto é, o sentido que preside o interesse do fenomenólogo
pela recepção é outro: liga-se à tarefa de pensar o papel desempenhado pelo espectador em
qualquer experiência estética e, por vezes, como faz Dufrenne, verificar a repercussão de seus
resultados para uma teoria geral da percepção. Por tudo, mesmo que se interessem,
preferencialmente, pelo fenômeno da recepção, os críticos da chamada Estética da Recepção e
os estetas fenomenólogos alimentam propósitos distintos, bem como adotam métodos
diversos, situados estes em contextos bem específicos, como se mencionou.
4
JAUS, Hans Robert. Pour une esthétique de la réception. Paris: Gallimard, 1978. pp. 57-58.
50
Assim advertidos, sigamos os passos de Dufrenne. Ele admite que uma análise total da
experiência estética não poderia renunciar a nenhuma das direções ou possibilidades da
investigação, ou seja, deveria reunir o esforço compreensivo tanto da criação quanto da
recepção.
Mas, como recorte metodológico, de saída, o olhar dufrenniano se volta para o segundo
modelo de análise, endereçando-se ao espectador. A opção se sem negar a possibilidade e
mesmo a importância de uma estética da criação. Contudo, o reconhecimento do valor deste
paradigma investigativo, não impede sejam apontados os riscos a que estaria sujeita uma
estética assim elaborada.
5
Aliás, a identificação dos riscos de uma estética do gênio, da criação, parece conduzir
Dufrenne, sempre mais, em direção à construção de uma estética voltada para o espectador
reconhecendo, entretanto, como foi afirmado, que “um estudo exaustivo da experiência
estética deveria, de qualquer maneira, reunir os dois enfoques.”
6
Eis um breve inventário dos principais perigos a que estaria exposta a construção de uma
estética voltada para o artista e para o seu fazer criador: não ofereceria garantia absoluta
contra o psicologismo e poderia se aferrar à evocação da conjuntura histórica da criação como
elemento determinante da produção da obra, como se as condições histórico-sociológicas,
vigentes ao tempo do aparecimento da obra de arte, não pudessem ser superadas pelo ato
criador.
5
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 2.
6
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 2.
51
Quanto à ameaça do psicologismo, constante alvo de combate dos fenomenólogos, esta não
poderia deixar de ser enfrentada também no campo da reflexão estética. Aliás, foi a doutrina
psicologista contraponto e opositor constante do pensamento de Husserl. Enfim, a
fenomenologia nasce no contexto de uma acirrada polêmica contra o psicologismo, nele
identificando limitações que deveriam ser evitadas e superadas pela investigação
fenomenológica.
7
No âmbito da reflexão estética, ocupar-se, unicamente, da atividade criadora, do fazer
artístico, mede forças com o risco de não escapar da inútil tentativa de penetrar os meandros
da atividade do gênio, reduzindo todo o fenômeno estético à atividade psicológica do autor da
obra de arte. Erro de perspectiva, tendencialmente psicologista, a ser evitado, pois estreita as
possibilidades da investigação, lançando-a no turbilhão das tentativas de se apoderar das
intenções da obra, presentes na psique do autor.
7
Husserl polemizou, vivamente, contra uma tendência teórica por ele denominada psicologismo. Foi no contexto
do movimento de superação dos limites da corrente psicologista e, de algum modo, sempre em confronto com
estes limites, que floresceram as bases que conduziram Husserl à elaboração das Idéias. Esclarece J. F. Lyotard
que “o psicologismo contra o qual Husserl luta identifica sujeito do conhecimento e sujeito psicológico.”
(LYOTARD, Jean-François. A fenomenologia. São Paulo: Difusão Européia do Libro, 1967. p.13). Assim, sob a
denominação psicologismo, na verdade, poderiam ser encartadas diversas tendências intelectuais que, embora
distintas, guardam em comum as mesmas limitações: tais são o relativismo, o ceticismo e o subjetivismo. Todos
têm uma tendência a considerar a razão dependente, de algum modo, de algo não-racional. Em sua época, pelo
menos na leitura de Husserl, a psicologia, entendida como fonte de estudo de motivação não-racional, tendia a
relativizar a razão ou a torná-la dependente de algo distinto de si mesma. Assim, se compreende que o
psicologismo representasse mais uma tendência do que, propriamente, um tipo específico de teoria. Para usar
certas expressões husserlianas, seria conveniente pensar que, por exemplo, qualquer concepção que fizesse
dependentes “as categorias” de um estado de desenvolvimento humano” ou da “constituição psico-física da
espécie homo mereceria ser dita psicologista. Husserl defende que não se pode fazer confusão entre o ato
mental e a intenção deste mesmo ato. Aqui a chave da polêmica. Não podemos prosseguir indicando a solução
husserliana. Interessa registrar que a idéia de intencionalidade, herdada da freqüência de Husserl a Brentano,
aliada a um controle rígido das fontes do erro psicologista, conduzem Husserl à defesa da “filosofia como
ciência de rigor” e à tentativa de construção de uma “lógica transcendental”. Com isto, estariam superadas as
ameaças psicologistas. Como bem esclareceu José Luiz Furtado, trata-se de uma tentativa de combater a
“inconsistência do ceticismo psicologista”. Assim, continua, “compreendemos porque o primeiro tomo das
‘Investigações’ será dedicado a precisar a noção de essência em conexão com o ideal de rigor que anima a
investigação fenomenológica nascente” (FURTADO, José Luiz. Introdução à fenomenologia de Husserl.
Apostila destinada ao uso dos alunos do mestrado em estética e filosofia da arte, Universidade Federal de Ouro
Preto, 2006. p. 9) e, talvez, acrescentaríamos, perdurando estas aquisições como verdadeiras armas de combate
às constantes investidas da vertente psicologista. Por tudo, interessa aqui marcar o contexto em que emerge a
noção de intencionalidade, cuja releitura, levada a cabo por Dufrenne, na esteira da fenomenologia francesa,
forneceria os fundamentos para a defesa da hipótese segundo a qual a experiência estética comporta uma
significação ontológica.
52
Outro risco a ser evitado: a perspectiva sociologista. Esta poderia conduzir à afirmação de um
determinismo histórico-sociológico sobre a atividade do criador fazendo do artista, criador da
obra, uma mera longa manus executora de desígnios pré-existentes no horizonte histórico da
cultura. Assim, o artista se tornaria um reprodutor de situações existentes no contexto cultural,
sem mais, a mimesis restaria aprisionada no espelhamento. A atividade do autor não se
exerceria na liberdade para criar, seria imitação determinada por indicadores sócio-culturais.
Aqui, desapareceria ou seria minimizado o gênio do artista, que sua obra, seu fazer, em
essência, se acomodaria aos modelos de expressão artística ditados de fora, impostas pelo
contexto em que se encontrasse inserido o seu reprodutor.
Muito embora se reconheçam seus perigos, se imunizada a reflexão contra os possíveis
indesejados efeitos, voltar-se para a criação é uma direção também útil para a integral
compreensão da experiência estética, esta a advertência de Dufrenne. Por exemplo, sabe-se
que o artista se move em um horizonte de condicionantes históricas, mas não é por elas
determinado, restando para ele um espaço próprio de intervenção criadora na gestação da obra
de arte.
Assim, se por um lado, deve ser reconhecida a inadequação da perspectiva sociologista,
redutora dos méritos do artista, precisamente porque tende a nulificar a atividade do gênio,
por outro lado, a compreensão do contexto de produção da obra pode, por certo, esclarecer o
universo único no qual foi esta gestada, possibilitando uma adequada compreensão do autor
que se revela na obra. Frise-se, ainda, uma vantagem inegável que a análise do fazer estético
poderia comportar: daria a conhecer a realidade histórica da obra e colocaria em foco
53
importantes problemas relativos às relações possivelmente existentes entra técnica e produção
da obra de arte.
Enfim, a opção feita por Dufrenne, construir uma estética a partir da experiência do
espectador é, como ele mesmo confessa, presidida por uma intenção claramente
metodológica, sem pretender seja a única escolha apta a promover a compreensão total do
fenômeno estético. Nas palavras de Dufrenne:
Ao contrário, nos parece que a reflexão sobre a experiência estética se orienta, de
preferência, em direção à contemplação, pelo espectador, do objeto estético e, doravante,
nós chamaremos experiência estética a experiência do espectador, ainda uma vez mais
sem pretender que seja ela a única.
8
Aliás, de algum modo, a experiência estética do espectador invoca o autor da obra, seja
porque reconheça seu ato criador, seja porque o sabe primeiro espectador da própria obra,
havendo uma comunicação necessária entre espectador e artista, como afirma Dufrenne: “se é
verdade que a arte supõe a iniciativa do artista, é também verdade que ela espera a
consagração de um público.” E, mais adiante, esclarecendo o sentido do incontornável
encontro entre criador e espectador, prossegue afirmando que:
A experiência do criador e aquela do espectador não são sem comunicação: porque o
artista se faz espectador de sua obra à medida que ele a cria, e o espectador se associa ao
artista quando ele reconhece o ato sobre a obra. Assim, nos limitando à experiência do
espectador, teremos que invocar também o autor (...).
9
A opção por direcionar o olhar investigativo para o espectador se justifica porque, dentre
outras razões, a sua experiência é singular e decisiva, vez que tem o espectador a
responsabilidade de consagrar a obra de arte enquanto tal, ou seja, a obra produzida pelo
artista encontra-se à espera de uma consagração como objeto estético. A passagem da obra de
arte ao objeto estético, correlato exclusivo da experiência estética, se precisamente por
8
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 4.
9
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 2.
54
atividade do espectador, ainda que este espectador seja o próprio criador da obra, ou seja, a
atividade do criador enquanto espectador de sua própria obra já produzida.
10
Em suma, a reflexão sobre a arte, do ponto de vista sociológico, antropológico ou como
categoria do espírito, à maneira de Hegel, deveria se orientar em direção à atividade criadora.
Por sua vez, a análise da experiência estética, para dar seus melhores frutos, deve se voltar
para o espectador, precisamente porque é ele que propicia o trâmite da obra de arte ao objeto
estético, sem o que a obra de arte não se diferenciaria dos demais objetos do mundo. Portanto,
reconhecida a complementariedade e mesmo a mútua relação existente entre as duas direções
constitutivas de uma integral construção filosófica sobre o fenômeno estético, o privilégio
deve caber à experiência estética realizada pelo espectador, que está destinada a consagrar a
obra de arte, tornando-a objeto propriamente estético. A experiência do espectador da obra de
arte é o caminho privilegiado de acesso à compreensão da essência da experiência estética,
tarefa abraçada por uma fenomenologia da experiência estética.
3.2 Elementos de inteligibilidade da experiência estética: obra de arte e objeto estético
Justificada a opção metodológica, um próximo passo será útil na tentativa de compreender o
intento de ver superado o dualismo entre sujeito e objeto: esclarecer dois conceitos
fundamentais, obra de arte e objeto estético, verificando como um e outro comparecem na
experiência estética do espectador.
10
passagens em que Dufrenne confronta a atividade do autor da obra enquanto seu criador, com a atividade
do mesmo autor enquanto primeiro espectador da obra já realizada, defendendo que é esta atividade que, em
última instância, consagra a obra, vez que esta se encontra sempre à espera de consagração por um público.
Conferir: DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. passim.
55
Presença, representação e sentimento se mostram como as categorias de inteligibilidade da
experiência estética, nela se entrelaçando como momentos solidários do todo daquela
experiência.
11
A experiência que o espectador faz da obra de arte, a transmuta em objeto estético. Ou seja, o
espectador retira a obra de arte do conjunto dos objetos comuns, percebendo-a em sua
especificidade estética. É neste sentido que a obra de arte encontra-se à espera de sua
consagração como objeto estético. Inexistente o espectador, a obra de arte jazeria como objeto
comum, dentre tantos outros, sem ver reconhecida a especificidade a que aspira por destino,
frustrando-se os desígnios que presidiram sua criação.
A análise da consagração da obra de arte como objeto estético é, para Dufrenne, o eixo central
de uma fenomenologia da experiência estética. E, para melhor compreensão deste cleo da
pesquisa fenomenológica, se faz útil uma aproximação preparatória que conta, em
separado, dos elementos nela envolvidos. Ou seja, deve ser explicitado, de um lado, o
conceito de obra de arte e, de outro, o conceito de objeto estético.
3.2.1 Obra de arte: legitimação pela tradição
Se o objeto estético emerge a partir do encontro entre obra de arte e espectador, um primeiro
problema se anuncia: saber o que seja uma obra de arte. A resposta a esta indagação é
11
Alcançar as categorias que permitam compreender o processo da experiência estética é missão precípua da
Phénoménologie de Dufrenne. Fala-se de processo vez que, na experiência estética, podem ser vislumbrados ao
menos três momentos distintos sem, contudo, perder de vista a unidade substancial que os reúne. Quanto ao
elenco das categorias e ao modo de compreendê-las, seguimos estritamente as indicações de Dufrenne.
56
decisiva, posto que a experiência estética se realiza no contexto de uma relação de reenvio
constante entre a obra de arte e a atividade/passividade do espectador que a experimenta.
Dufrenne pretende evitar um risco: na tentativa de buscar definir o que seja uma obra de arte,
perder-se em intermináveis discussões sobre o que constituiria a esteticidade de uma obra.
Para escapar deste incômodo, se deve partir de um fato: obras de arte, assim reconhecidas
pela tradição. Deste modo, para Dufrenne, obra de arte é aquela legitimada como tal pela
tradição. Entenda-se, a tradição dos melhores, sedimentada na cultura, é a instância
legitimadora da esteticidade de uma obra de arte. Importa, pois, salientar que o juízo da
tradição, válido para a legitimação da obra, não é o juízo da cultura em geral, mas da alta
cultura, dos aristoi, à moda aristotélica.
Uma reflexão sobre a experiência estética deve partir deste ponto assentado: a obra de arte
é posta e legitimada, na tradição, pelo juízo dos melhores. A razão é que, passando ao largo da
decisão sobre a esteticidade da obra, outra questão filosófica de maior relevo se impõe:
partindo de obras legitimadas pela cultura como obras de arte, alcançar a percepção destas
enquanto objeto estético, ou seja, construir uma fenomenologia da experiência estética do
espectador. Este é, precisamente, o declarado propósito de Dufrenne.
A este respeito, é exemplar o seguinte texto dufrenniano:
Levaremos o empirismo até o fim, como faz Aristóteles para a definição das virtudes:
juntar-nos-emos à opinião dos melhores, que é também finalmente a opinião comum, a
opinião de todos aqueles que m opinião. É obra de arte tudo o que é reconhecido como
tal e proposto como tal ao nosso assentimento. O empirismo fornece-nos aqui o meio de
não permanecer no empírico; aceitando os juízos e as escolhas que faz a nossa cultura,
não nos demoramos a procurar o que cada cultura prefere ou consagra, não nos deixamos
seduzir pelo relativismo estético: somos livres para procurar o que é a obra de arte e como
que ela provoca a experiência estética sem discutir indefinidamente sobre a escolha
dessas obras; basta-nos pôr do nosso lado todas as oportunidades que uma tradição
57
venerável oferece: são as obras de arte unanimemente consagradas que mais seguramente
nos conduzirão ao objeto estético e à experiência estética.
12
Em trabalho posterior à Phénomenologie, escrito para a Encyclopédie Universalis, intitulado
Oeuvre d’art, mais uma vez, fica claro o critério metodológico seguido por Dufrenne para o
reconhecimento de uma obra de arte. Colhe-se do mencionado trabalho:
A obra de arte autêntica é aquela que é reconhecia como tal e que merece que o seu
criador seja reconhecido como artista. Reconhecidos, um e outro, pela opinião geral, ela
própria orientada pelo juízo daqueles que Aristóteles chamava os experts.”
13
Em suma, ao serem aceitos como obras de arte aqueles objetos configurados como tal pela
tradição e, desta forma, transmitidos pela história, nos tornamos livres para uma tarefa mais
intensamente filosófica: intentar construir uma fenomenologia da experiência estética, sem
nos obrigarmos ao demorado trabalho de pensar a esteticidade da obra que a suscita.
3.2.2 Objeto estético: consagração da obra de arte pelo espectador
O correlato específico da experiência estética do espectador é o objeto estético. uma
estrutura de reenvio constante, e mesmo diríamos, circular entre o objeto estético e a
experiência estética que nele se fundamenta.
A obra de arte, como coisa no mundo e do mundo, mantém-se aberta a uma possibilidade
negativa: não ser percebida esteticamente, permanecendo apenas como um objeto empírico
comum, entre outros tantos. Enquanto mera coisa no mundo e do mundo, a obra de arte pode
suscitar várias experiências possíveis, não se mostrando, portanto, como correlato exclusivo
da experiência estética.
12
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. pp. 16-17.
13
DUFRENNE, Mikel. Oeuvre d’art. In: Encyclopédie Universalis. p. 416. apud PITA, Antônio Pedro. Mikel
Dufrenne. A experiência estética como experiência do mundo. Coimbra: Faculdade de Letras, 1995. p. 152.
58
Tanto assim é que remanesce sempre a possibilidade de que uma obra de arte, embora
legitimada como tal pela tradição, seja percebida, tão somente, como uma coisa entre as tantas
existentes no mundo. Apenas a percepção estética faz justiça à obra de arte. Em outras
palavras, somente a percepção estética da obra de arte faz emergir, para o espectador, o objeto
estético.
A percepção estética do espectador consagra a obra de arte em sua possibilidade mais própria,
que a percepção não estética da obra não faria jus a sua específica destinação. De fato,
contribuiria talvez para a compreensão daquela obra como um documento de época, um
exemplo concreto de utilização de certa técnica, um objeto de compra e venda, mas não a
consagraria enquanto obra de arte. Enfim, a obra de arte nasce à espera de sua consagração
como objeto estético, o que somente se opera pela experiência estética do espectador. A obra
de arte será, então, “aquilo que permanece do objeto estético quando não é percebido, o objeto
estético no estado de possibilidade, à espera da própria epifania.”
14
Situa-se aqui um ponto fundamental a que conduz a investigação fenomenológica da
experiência estética: o reconhecimento de que há uma clara distinção entre obra de arte e
objeto estético. Nas palavras de Dufrenne:
A diferença entre a obra de arte e o objeto estético reside em que a obra de arte pode ser
considerada como uma coisa vulgar, quer dizer objeto de uma percepção e de uma
reflexão que a distinguem das outras coisas sem lhe dar um tratamento especial: mas, ao
mesmo tempo, ela pode ser objeto de uma percepção estética, a única que lhe presta
justiça.
15
Em suma, o suporte empírico do objeto estético segue sendo a obra de arte, mas o objeto
estético com ela não se confunde, precisamente, porque lhe faz justiça, que o espectador,
14
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 63-64.
15
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 26.
59
experienciando a obra de forma peculiar, a consagra, fazendo emergir sua mais própria
realização.
Fica claro, então, que a experiência estética do espectador e não a discussão sobre a
esteticidade da obra, ou seja, a decisão sobre os fatores que promoveriam sua legitimação
enquanto obra de arte, deva ser o ponto crucial da investigação estética, numa perspectiva
fenomenológica. Neste contexto, não compareceria a obra de arte como real e o objeto
estético como ideal, são reais um e outro, como esclarece Dufrenne:
Objeto estético e obra de arte são distintos no aspecto em que à obra de arte deve juntar-
se a percepção estética para que o objeto estético apareça: mas isto não significa que a
primeira seja real e o segundo seja ideal, que a primeira exista como uma coisa no mundo
e o segundo como uma representação ou uma significação na consciência.
16
Com isto, Dufrenne pretende escapar de reducionismos: o objeto estético é fruto não somente
de uma passividade do espectador, mas também de uma sua atividade, não é mera
representação da obra de arte. O objeto estético também não é construção absoluta do sujeito
(espectador), possível conclusão de uma posição idealista. Nem tampouco é apenas
representação ou presentificação de um certo objeto - obra de arte -, na consciência. É, afinal,
resultado de uma experiência singular e exemplar do espectador que arranca à obra de arte seu
ser específico, essencial, percebendo-a esteticamente. Compreende-se, então, porque
Dufrenne teria enunciado que “a finalidade de uma obra é a percepção estética.”
17
Voltemos a um ponto importante: uma circularidade, ou melhor, uma estrutura de reenvio
sempre reatualizada entre objeto estético e experiência estética: a obra de arte, sendo
percebida esteticamente, torna evento o conteúdo próprio da experiência estética. Apropriar-
16
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 26.
17
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 32.
60
se deste conteúdo e das mediações que o sustentam são tarefas essenciais de uma
fenomenologia do objeto estético e de uma fenomenologia da percepção estética.
Ora, é pela releitura muito peculiar da noção de intencionalidade, idéia tão cara à
fenomenologia, que Dufrenne recolhe os melhores frutos para a integral compreensão da
estética. É, ainda, neste mesmo horizonte que se situa a tentativa de superação do dualismo
tradicional entre sujeito e objeto e, precisamente ao vencer este dualismo limitado, se deixa
entrever uma significação ontológica para a experiência estética.
na introdução do primeiro volume da Phénomenologie indicando, portanto, desde o início,
uma dificuldade particular a que conduz sua opção metodológica pelo espectador, Dufrenne
reconhece a circularidade existente entre objeto estético e experiência estética. Fácil perceber
que, de fato, o conceito de objeto estético, na medida em que reclama a percepção estética do
espectador como instância que consagra a obra de arte, supõe uma sua definição pela
experiência estética levada a cabo por este mesmo espectador. Ou, mais precisamente, o
objeto estético não invoca a obra de arte enquanto identificável à atividade do artista. Ao
contrário, supõe o espectador que, experimentando esteticamente a obra de arte, a consagra
precisamente enquanto obra de arte, arrancando-a de suas possibilidades comuns, como objeto
no mundo, e conduzindo-a à realização de sua possibilidade específica. Por tudo, “é preciso
definir a experiência estética pelo objeto estético do qual ele (o espectador) faz experiência e
que nós denominaremos objeto estético.”
18
Assim, o próprio Dufrenne, é levado a formular a questão: “não estamos, então, presos em um
círculo? Será necessário definir o objeto estético pela experiência estética e a experiência
18
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 4.
61
estética pelo objeto estético”.
19
Mas, apesar de se apresentar como dificuldade particular, é
no reconhecimento deste círculo que, reapropriando-se da noção de intencionalidade, não a
partir de Husserl, mas da apropriação daquele conceito, levada a cabo pela fenomenologia
francesa, é que Dufrenne vislumbra as vantagens do que, a princípio, poderia ser um resíduo
incômodo de sua opção metodológica. Ou seja, reconhece-se que “é neste círculo que se
resume todo o problema da relação sujeito-objeto.”
20
Esta conclusão conduz a outra, também de grande relevância: “entre a coisa e quem a percebe
um acordo prévio, anterior a qualquer logos.”
21
Mas, é preciso vencer este círculo para
prosseguir. Daí que, novamente, exige-se uma escolha como ponto de partida e esta, desta
feita, dever recair sobre o objeto estético. Enfim, é uma definição precisa do objeto estético
que deve conduzir a uma também precisa noção do que seja a experiência estética. A
precisão do conceito de objeto estético, para Dufrenne, seria alcançada “subordinando a
experiência ao objeto ao invés de subordinar o objeto à experiência, definindo aquele objeto a
partir da obra de arte.”
22
Justificar este ponto de partida e alcançar seus desenvolvimentos são, doravante, os desafios.
Seria preciso retornar à idéia de intencionalidade para, adequadamente, repensar as relações
que se travam entre sujeito e objeto. É o que Dufrenne pretendeu fazer. Sustentamos que é
neste contexto, isto é, na via de reapropriação da noção de intencionalidade que deve ser
situada a promessa dufrenniana de justificar a significação ontológica da experiência
estética, promessa, aliás, sempre recorrente e inconclusa, entendida mais como uma indicação
de caminhos a seguir, sem trilhá-los até o fim. Insistamos neste passo decisivo.
19
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 4.
20
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 4.
21
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 5.
22
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 8.
62
3.3 A idéia de intencionalidade e a tentativa de superação do paradigma dicotômico:
anúncio da hipótese ontológica
23
Um problema recorrente no pensamento dufrenniano é a tentativa de reconhecer, sempre
mais, os limites da modernidade, para ele, essencialmente fundada no dualismo sujeito-
objeto.
24
Evidencia-se, aqui, um dos temas mais caros a Dufrenne: a tentativa de superação
do paradigma dicotômico que, ao longo da história da filosofia, veio a opor, ou pelo menos a
separar em demasia, os dois pólos - sujeito e objeto.
Tanto para Dufrenne, quanto para a fenomenologia francesa, ou seja, para os dois
responsáveis, em França, pela aclimatação da fenomenologia, Sartre e Merleau-Ponty, a
noção de intencionalidade se encarta no rol das principais contribuições de Husserl para a
filosofia.
É a partir desta noção fundamental que Dufrenne pensará não mais a distância, mas a
proximidade, e mesmo a co-substancialidade existente entre homem e mundo, entre sujeito e
objeto. Quanto à relevância filosófica da noção de intencionalidade e ao fato de dever ser
atribuído a Husserl o rito de -la tematizado adequadamente, escreve Dufrenne: “Husserl
colocou a noção de intencionalidade no centro da reflexão filosófica, renovando por ela o
problema tradicional das relações entre o sujeito e o objeto.”
25
23
No capítulo 1, já foi assentado o sentido da expressão hipótese ontológica. Lembramos: trata-se, aqui, da
hipótese segundo a qual a experiência estética comporta uma significação ontológica, sabendo-se ser esta uma
promessa de sentido que força os limites do logos, permanecendo como uma provocação incessante.
24
DUFRENNE, Mikel. Jalons. La Haye: Martinus Nijhoff, 1966. p. 16.
25
DUFRENNE, Mikel. Esthétique et philosophie. Vol. I. Paris: Editions Klincksieck, 1967. p. 53.
63
De fato, a noção de intencionalidade, pensada por F. Brentano, foi revisitada por Husserl,
para quem se apresentou como achado inspirador, em muito colaborando para configurar sua
nova postura filosófica diante do problema da relação entre subjetividade e objetividade. Para
ele, “a palavra intencionalidade nada significa senão essa particularidade fundamental e geral
que a consciência tem de ser consciência de alguma coisa, de portar, em sua qualidade de
cogito, seu cogitatum em si mesma.
26
A noção de intencionalidade, para Dufrenne, induz a superação do paradigma dicotômico,
que há no sujeito um projetar-se do objeto. Entre sujeito e objeto recíproca solidariedade e
mútua transcendência. Eis uma passagem a este respeito esclarecedora:
A análise do cogito revela, por um lado, que o sujeito é transcendência, quer dizer,
projeto do objeto: a análise do intencional revela, por outro lado, que o aparecer do objeto
é sempre solidário da intenção que visa este objeto.
27
Contudo, esta constatação ainda é insuficiente. Reconhecida a pluralidade das possíveis
interpretações, seria ainda necessário pensar em que direção deveria ser interpretada a noção
de intencionalidade. Dufrenne esclarece que a direção cultivada por Heidegger conduziu a
fenomenologia, pelo menos em um primeiro momento, nas trilhas da elaboração de uma
ontologia. Quanto a esta direção e a seus resultados mantém Dufrenne uma atitude de franca
polêmica e mesmo de aberta resistência.
26
HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas: introdução à fenomenologia. Trad. de Frank de Oliveira. São
Paulo: Madras, 2001. p.51. Grifos do original. A passagem citada encontra-se no famoso parágrafo 14 das
Meditações que trata da corrente das cogitaciones cogito e cogitatum. Não podemos prosseguir inventariando
as passagens nas quais Husserl trata da noção de intencionalidade, nem tampouco podemos seguir perseguindo a
interpretação husserliana deste fundamental conceito. Isto exigiria, por si só, um trabalho específico e árduo.
Apenas colhemos em Husserl a referência à noção de intencionalidade para buscar na fonte uma idéia que, na
fenomenologia francesa, receberá tratamento algo diverso de sua origem. Interessa-nos seguir aqui a via por
meio da qual Dufrenne teria se reapropriado daquela noção.
27
DUFRENNE, Mikel. Esthétique et philosophie. Vol. I. Paris: Editions Klincksieck, 1967. p. 53.
64
nos referimos
28
à tensão nunca superada, sempre provocadora, em que se teria mantido o
diálogo de Dufrenne com o pensamento de Heidegger. Assim, apesar da atitude crítica, acerca
destes e de outros tantos aspectos, também de grande importância,
29
parece que a direção da
interpretação da idéia de intencionalidade cultivada por Heidegger, no sentido de resolver-se a
fenomenologia em uma ontologia, sempre provocou e mesmo teria seduzido Dufrenne. Neste
particular, não que Dufrenne tenha, explicitamente, admitido o acerto dos rumos seguidos por
Heidegger. Pelo contrário, adota-se aqui uma atitude de franca polêmica. Senão vejamos.
A juízo de Dufrenne, a interpretação ontológica da idéia de intencionalidade, tal como
conduzida por Heidegger, não se sustentaria vez que, por esta via, “extenua-se a ontologia no
seu esforço de ida ao fundamento.” A este respeito, deve ser considerado passo esclarecedor
de um pequeno texto, publicado no terceiro volume da coletânea Esthétique et philosophie,
intitulado Brève note sur l’ontologie. Eis a passagem:
A analítica do Dasein é, em Sein und Zeit, a ontologia fundamental. Esta ontologia não
atinge o Ser senão no mistério da sua relação com o Dasein. Mas não capta o próprio Ser,
porque não se identifica com essa relação como Hegel a identifica à mediação, pretende-
se captada por ele. Nada pode dizer do Ser senão que o Ser se diz. Perdido o conteúdo
tradicional, recusado o conteúdo hegeliano, a apoteose da ontologia parece ser a sua
morte por inanição. E não seria sem interesse confrontar o seu destino com o da arte
contemporânea, que um mesmo desejo de pureza e de autenticidade coloca na via da
abstração onde ela se arrisca a perecer pensando realizar-se; porque a ontologia extenua-
se no seu esforço de ‘ida ao fundamento’: ela não pode senão afirmar a sua própria
possibilidade.
30
O tom polêmico é evidente em relação à hipótese da direção ontológica dada à interpretação
da fenomenologia. Com efeito, fala-se de extenuação da ontologia, resolvendo-se esta na
simples afirmação de sua própria possibilidade, não podendo prosseguir rumo à sua
28
Quanto à relação tensa existente entre o pensamento de Dufrenne e Heidegger ver, nesta dissertação, a última
parte do capítulo primeiro.
29
Não é nosso objetivo elencar as diversas críticas dirigidas por Dufrenne ao pensamento de Heidegger. Esta
temática, por si só, constituiria objeto de um extenso e hercúleo trabalho. Remetemos o leitor à excelente tese de
doutorado da lavra de Roberto Caparelli Figurelli, que pretendeu confrontar as propostas fenomenológicas de
Dufrenne e de Heidegger, comparando os desenvolvimentos alcançados por um e outro acerca dos mais
relevantes temas comuns. A tese encontra-se referenciada na bibliografia final, tendo sido citada em várias notas
anteriores.
65
constituição, permanecendo como uma espécie de promessa que, embora anunciada, somente
se mostrasse como possível, sem decidir dizer mais, ou sem poder fazê-lo.
Certo, porém, é que o horizonte ontológico de interpretação não desapareceu do pensamento
dufrenniano, ao menos como possibilidade. Isto é facilmente demonstrado pelo tema de que
ora nos ocupamos, ou seja, a defesa da hipótese de que a experiência estética comporta uma
significação ontológica. É fato que esta hipótese padece, em Dufrenne, de uma mais vasta
justificação, que não deixasse dúvidas quanto a seu sentido e alcance. Neste sentido, Dufrenne
incorre na reprimenda que fizera a Heidegger: o anúncio da hipótese ontológica esgota-se em
seu esforço de ida ao fundamento. Mais: não consegue sequer firmar sua possibilidade,
contentando-se em ser uma promessa de sentido, uma abertura de horizontes.
De fato, nos referimos à hesitação de que é acometido o pensamento de Dufrenne acerca
desta espécie de promessa de sentido ontológico de que seria dotada a experiência estética.
Aqui, ele se mostra cauteloso, mas não desiste de buscar uma justificação antropo-
cosmológica para aquela anunciada promessa. Em certo sentido, neste particular, pode ser
ouvido o eco de uma perpétua e ameaçadora hesitação, de resto, presente no interior do
próprio pensamento de Dufrenne: a afirmação da possibilidade de um sentido ontológico,
mais do que a real tentativa de construir uma ontologia a partir da experiência estética.
É no capítulo final de Phénomenologie de l’expérience esthétique, obra que conteria, pelo
menos em gérmen, os futuros desenvolvimentos do pensamento de Dufrenne, que colhemos a
afirmação do sentido ontológico da experiência estética. Expressamente, este sentido é
30
DUFRENNE. Mikel. Brève note sur l’ontologie. In: Esthétique et philosophie. Vol. III. Paris: Editions
Klincksieck, 1976. p. 41.
66
afirmado como abertura de horizonte, como um descortinar de novas possibilidades de
compreensão daquela experiência.
Por certo, é possível identificar aqui não um simples retorno a Heidegger, no sentido de
pensar desdobramentos ontológicos da fenomenologia. Porém, alimentamos a convicção de
que a posterior dedicação de Dufrenne à progressiva elaboração, ou pelo menos esboço, de
uma filosofia da Natureza, ao menos como possibilidade, também para Dufrenne, não
descartaria a hipótese segundo a qual a interpretação da fenomenologia poderia conduzir a
uma ontologia. Enfim, permanece sempre uma tensão, que parece querer conduzir o
pensamento para além de suas próprias fronteiras: afirma-se a possibilidade de uma
ontologia, mas esbarra-se na mudez acerca de seus elementos constitutivos ou, mais uma vez
no dizer de Dufrenne, extenua-se a ontologia na ida ao fundamento.
A este respeito, Antônio Pedro Pita, pensa de forma algo diversa. Com efeito, tendo
submetido a uma detida análise os artigos publicados, dispersamente, após o advento da
Phénomenologie de l’expérience esthétique, concluiu que, para Dufrenne, “é possível à
fenomenologia desenvolver-se sem que devenha um idealismo ou uma ontologia.”
31
Deste ponto de vista nos distanciamos, em parte. De fato, para Dufrenne, considerando os
desenvolvimentos posteriores à publicação de sua obra principal, a fenomenologia, fruto de
uma peculiar interpretação dada à idéia de intencionalidade, não necessariamente deveria
desaguar na elaboração de uma ontologia. Enquanto afirmação e tentativa de demonstração da
possibilidade deste desenvolvimento, estamos de acordo.
31
PITA, Antônio Pedro. Mikel Dufrenne: a experiência estética como experiência do mundo. Coimbra:
Faculdade de Letras, 1995. p. 114.
67
Mas, ao contrário, embora reconhecendo os méritos da tentativa, nos batemos pela hipótese
segundo a qual, pelo menos como horizonte de abertura de sentido, a ontologia é ainda o
terreno de chegada do pensamento dufrenniano. Ou, pelo menos, permanece como horizonte
que sempre solicita e seduz a direção de seu pensar.
A discordância é apenas parcial em relação à leitura feita por Antônio P. Pita porque, na
verdade, também aceitamos que Dufrenne não teria resvalado para o idealismo. Por outro
lado, embora ponderando que, em Dufrenne, parece comparecer um esforço no sentido de
demonstrar que a fenomenologia pode não se resolver em uma ontologia, não se deve
negligenciar um fato contundente e, para nós, perfeitamente compatível com a falência deste
esforço: a análise do pensamento de Dufrenne, considerando os textos que se seguiram à
publicação de sua obra capital, nos autoriza afirmar que a necessidade da elaboração de uma
filosofia da Natureza, mote principal de muitos destes escritos, resultaria na possibilidade de
que tal tarefa se cumprisse, ao menos como possibilidade, no seio de uma ontologia da
Natureza.
De novo, eis-nos reconduzidos ao começo: afirma-se a possibilidade de uma ontologia,
renuncia-se à sua elaboração e, como sucedâneo desta renúncia, comparece a convicção de
que uma filosofia da Natureza, mais atenta ao dizer poético, poderia suprir a extenuação da
ontologia na sua ida ao fundamento. Permanece a sedução da direção ontológica dada à
interpretação da fenomenologia, tudo começando pela forma de compreender a idéia de
intencionalidade.
68
Para firmar esta direção interpretativa, voltemos a um ponto decisivo: a leitura que Dufrenne
faz da apropriação heideggeriana da idéia de intencionalidade. A respeito, veja-se a seguinte
passagem, em que comparece expressa referência a Heidegger:
A intencionalidade significa no fundo a intenção do Ser que se revela e que não é outra
coisa senão a sua revelação – e que suscita o sujeito e o objeto e o objeto para se revelar.
O objeto e o sujeito, que não existem senão no seio de uma mediação que os junta, são
assim as condições do advento de um sentido, os instrumentos de um Logos. Heidegger,
se bem que sem integrar a dialética na ontologia, identifica este Logos ao Ser.
32
Para Dufrenne, a identificação promovida por Heidegger entre Logos e Ser, não se sustentaria.
Neste ponto, portanto, Dufrenne se afasta de Heidegger. Contudo, o mesmo não se pode dizer
a respeito da solidariedade existente entre sujeito e objeto, solidariedade que, no pensamento
dufrenniano, resulta na afirmação de que um fundo que congrega estes dois elementos de
forma intrínseca, implicando na tentativa de alcançar este fundo comum, possivelmente
ontológico.
Entendemos que, para Dufrenne, esta tarefa é adequadamente cumprida a partir da reflexão
sobre a experiência estética e se resolveria na sempre decantada necessidade de se elaborar
uma filosofia da Natureza. Necessidade sempre muito indicada mas da qual, apesar dos
esforços, não se teria desincumbido suficientemente Dufrenne, que se limitou a firmar sua
convicção no sentido de que seriam possíveis certas formulações da filosofia da Natureza,
passando ao largo de considerações de ordem ontológica, via indicada apenas como possível.
A menção da possibilidade de uma filosofia da Natureza livre de ingerências ontológicas
permaneceu, em Dufrenne, assim como nasceu: como mera indicação. Na verdade, apesar das
mudanças na terminologia, a sedução veiculada pela promessa de uma ontologia, posto que
32
DUFRENNE, Mikel. Estética e filosofia. Trad. de Roberto Figurelli. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. p.
79.
69
afirmada possível, se perpetuou durante o longo percurso intelectual de Dufrenne. Neste
sentido, alguns intérpretes vão além, afirmando que Dufrenne teria substituído, ou pelo menos
era tentado pela idéia de “substituir uma filosofia do ser por uma filosofia ou ontologia da
natureza.”
33
Esta parece ser a mesma direção adotada pela autora de recente e valiosa tese de doutorado
que, no título, expressa a tentação que não abandonou Dufrenne: assumir como sua a
direção apontada pela interpretação ontológica da fenomenologia. Eis o sugestivo título:
“desejo do ser e palavra poética – da tentativa fenomenológica à tentação metafísica.”
34
Por certo, este excelente trabalho se movimenta em um horizonte mais amplo, promovendo a
releitura do pensamento dufrenniano a partir de uma categoria essencial: o poético. Mas, sem
adentrar nos meandros de eventuais méritos ou deméritos daquela pesquisa, uma utilidade é
inegável: sugestivamente, fez notar que a adoção da categoria do “poético” e, em última
instância, o reconhecimento dos limites do logos são conclusões comuns, sustentadas tanto
por Heidegger quanto por Dufrenne. Seria coincidência apenas? Ou seria resultado da eterna
provocação: passar da tentativa fenomenológica à tentação metafísica? De forma acertada, a
autora da mencionada pesquisa ousou afastar o acaso e respondeu afirmativamente.
Após esta necessária digressão, voltemos à temática da superação do paradigma dicotômico,
em cujo contexto se anuncia a abertura para o sentido ontológico da experiência estética.
33
Por todos, FIGURELLI, Roberto Caparelli. A estética de Mikel Dufrenne. Veritas. Porto Alegre: Vol. 45. N. 2.
Junho 2000. pp. 195-204. Citação conforme recomendação do editor. A filosofia do ser referida pelo autor, por
certo, seria aquela construída à maneira de Heidegger.
34
ROOSE, Marie-Clotilde. Désir d’être et parole poétique de la tentative phénoménologique à la tentation
méthaphysique. Thèse pour obtenir le grade de docteur de l’Université de Lyon 3. Faculté de Philosophie.
Presentée et soutenue publiquement le 19 juin 2006. Muito especialmente, ver o capítulo 4, intulado L’origine de
la parole poétique selon Mikel Dufrenne.
70
Para Dufrenne, de forma exemplar, a experiência estética demonstra que há uma solidariedade
entre o aparecer do objeto e a intenção que visa este mesmo objeto. Por isto, não se deve,
então, falar de momentos subjetivos e objetivos na experiência estética, como se fosse ela
constituída por elementos estanques reunidos por justaposição, encadeamento ou outra forma
menos co-substancial. A experiência estética, aliás, comparece como paradigma, estampando
a exemplaridade da falência do modelo dualista que costuma insistir na separação de seus
elementos, sujeito e objeto, seja ora destacando um deles, subordinando-lhe o outro seja,
ainda, buscando a superação da dicotomia, porém sem sucesso.
um traço característico da experiência estética, isto é, a estrutura de reenvio recíproco
entre sujeito e objeto, que se presta como paradigma para uma fenomenologia da percepção
em geral, e nisto reside seu caráter exemplar. Daí que uma fenomenologia da experiência
estética não alcance resultados apenas no campo do pensamento sobre estética, transbordando
a validade daqueles resultados para uma análise total do fenômeno da percepção.
Intenso é o esforço de Dufrenne rumo à superação da dicotomia sujeito objeto, esforço que
se concretiza sempre em regime de tensão, lutando contra os riscos seja do idealismo, seja do
empirismo. Assim, o objeto estético não é uma coisa ideal, não é também a mera apreensão da
objetividade de um objeto (obra). Na experiência estética, há uma perdição do espectador na
obra e, precisamente por isto, o objeto estético leva a obra a cumprir sua mais própria
destinação.
Na experiência estética, o espectador completa a obra, realizando sua finalidade, tornando-se,
de algum modo, um agente por meio do qual esta se consagra. Mas no seu modo de ser
algo de passividade, na medida em que recebe os apelos advindos da obra que consagra. O
71
espectador não é receptor, mera passividade, não é receptáculo à espera do conteúdo objetivo
da obra. Para falar com Antônio Pedro Pita, “a metamorfose da obra de arte em objeto estético
é correlativa dessa transformação do espectador em activa passividade.”
35
Em suma, é a percepção, esteticamente direcionada, o lugar privilegiado de consagração da
obra de arte, transmutando-a em objeto estético e quem realiza este papel ativo-passivo é o
espectador. Como atesta Dufrenne, “o objeto estético se realiza na percepção, uma
percepção que esteja atenta a lhe fazer justiça: diante do beócio, que lhe concede um olhar
indiferente, a obra de arte ainda não existe como objeto estético.”
36
É possível falar de passividade-atividade do espectador porque ele, ao perceber esteticamente
a obra de arte, consagrando-a como objeto estético, não a recria, mas a recepciona como tal,
fazendo assim coincidir seu aparecer com seu ser. O espectador não ultrapassa o aparecer da
obra, pela intelecção ou imaginação. O que ocorre, como assevera Dufrenne, é que o
espectador:
Expande a aparência para tornar idênticos o aparecer e o ser: o ser do objeto estético é
aparecer graças ao espectador; a obra de arte, diferentemente do simples objeto que
apela tanto para o gesto , quanto para o conceito, somente solicita – imperiosamente, se é
válida - a percepção.
37
Deste modo, ao contrário do que poderia parecer, à primeira vista, não resvala Dufrenne para
o idealismo estético. O espectador, mesmo exercendo papel decisivo, não incorpora elementos
outros que não tenham sido manifestados pela obra de arte. O fenômeno obra de arte irrompe
35
PITA, Antônio Pedro. Mikel Dufrenne: a experiência estética como experiência do mundo. Coimbra:
Faculdade de Letras, 1995. p. 157. Embora com nuances diversas, aqui, a perspectiva de Dufrenne se avizinha
daquela defendida por outros pensadores da estética fenomenológica, na medida em que comete ao espectador
um papel ativo. A respeito de algumas posições da chamada estética da recepção, apontando possíveis ligações
com a vertente fenomenológica, conferir, muito especialmente, INGARDEN, Roman; WARNING, Rainer.
Estética de la recepción. Traducción de Ricardo Sánchez Ortiz de Urbina. Madrid : Visor, 1989.
36
DUFRENNE, Mikel. Estética e filosofia. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 82.
37
DUFRENNE, Mikel. Estética e filosofia. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 82.
72
para o espectador como uma apoteose do sensível exigindo, neste passo, a sua passividade.
Neste sentido, Dufrenne fala até mesmo em “docilidade”
38
do espectador.
Contudo, a passividade exigida do espectador não é total, não é completa alienação de si em
direção à obra. De algum modo, a passividade diante da apoteose da obra torna-se, ela mesma,
ativa, e o faz na medida em que cria a condição de possibilidade para a emergência do objeto
estético. Mas, a atividade do espectador não pode ser alheamento da obra. atividade na
medida em que se cria a condição de possibilidade do objeto estético, cujo advento requer um
sujeito a quem se revele e, ainda, na medida em que o espectador está voluntariamente
fechado a tudo o que não provenha da própria obra. Daí o misto de atividade e passividade na
experiência do espectador.
De fato, não se pode falar de uma construção/criação do objeto estético pelo espectador,
posição idealista, mas sim de um empenho que este faz em abrir-se ao sensível que, pela obra,
se manifesta. A abertura do espectador à percepção estética da obra é ativa e se mostra como a
condição de possibilidade da emergência da obra de arte como objeto estético. A obra de arte
fulgura o sensível que, pela percepção estética, ganha sentido e se completa.
Pode-se, ainda, ir além: para Dufrenne, a experiência estética revela que há em toda
experiência um amálgama de objetividade e de subjetividade. A obra de arte permanece como
irredutível referência objetiva, mas liga-se duplamente à subjetividade: àquela do espectador,
“da qual solicita a percepção para sua epifania e àquela do criador, “da qual solicitou a
38
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 53.
73
atividade para sua criação e que nele se exprime, mesmo e sobretudo se ele não o quis
expressamente.”
39
Na experiência estética, a afinidade do sujeito com o objeto é tão intensa que nos obrigaria
pensar na necessidade de se “modificar a idéia de sujeito que não mais pode se identificar
inteiramente com o sujeito transcendental.”
40
Interpretamos esta passagem como uma
oposição radical contra a tese da dicotomia sujeito-objeto vez que, percebendo esteticamente a
obra de arte, o sujeito concreto se empenharia em dar-lhe epifania, fazendo coincidir assim
seu ser com seu aparecer. Isto ocorreria tanto por obra do sujeito quanto por força da
existência de um certo objeto (a obra de arte), distinto mas conectado, até as entranhas, com o
empenho epifânico levado a cabo pelo sujeito.
Deve ser relembrado que a obra de arte, na experiência estética, não comparece como mera
objetividade. De fato, ela se apresenta como obra de uma subjetividade criadora. Se é
verdade que a obra de arte não pode dar a conhecer, por completo, o autor que historicamente
a produziu, é também verdade que, por ela, se pode conhecer pelo menos o autor que a obra
revela. Por tudo, há uma subjetividade imersa na obra de arte, motivo pelo qual uma completa
compreensão da experiência estética não poderia prescindir de uma análise da criação
artística.
Afirmada a existência de um elemento de subjetividade presente na obra de arte, neste
passo, comparece uma das mais intrincadas teses sustentadas por Dufrenne: a noção de obra
39
As expressões destacadas são do próprio Dufrenne e manifestam, explicitamente, a convicção que ele
alimentava no sentido da existência de um mundo próprio ao objeto estético, fruto dos impulsos de criação da
obra de arte, impulsos incorporados à obra pelo criador e que, por obra do espectador podem vir à epifania.
Quanto às expressões, bem assim quanto à temática específica do mundo que é o objeto estético ver, de
preferência: DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. pp.
84ss.
40
Conferir: DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 85.
74
de arte como um quase-sujeito. Este conceito é suficiente para exigir um tratamento mais
desenvolvido, tarefa futura, bastando no momento ligá-lo à afirmação de que, na obra de arte,
de imediato, encontra-se talhada dupla face da subjetividade: aquela que cria a obra (o artista)
e aquela que se encontra na condição de primeiro espectador da obra criada (o mesmo
artista). Ainda, mais, a obra de arte clama por uma terceira intervenção da subjetividade, desta
feita, restando à espera de um público que esteticamente a consagre.
3.4 Abertura ontológica de sentido a partir de uma fenomenologia da percepção
Em polêmica com Heidegger, Dufrenne se apropriou, com clara inovação, da interpretação
dada por Merleau-Ponty à idéia de intencionalidade. De fato, assim como para Merleau-
Ponty, a noção de percepção se mostrou, também para Dufrenne, como um modo de
realização e de inteligibilidade da intencionalidade. um campo pré-reflexivo, que se deixa
apreender no sensível, no qual não pode ser sustentada uma distinção absoluta entre sujeito e
objeto.
Assim, Dufrenne pôde sustentar que a intencionalidade “exprime sempre a solidariedade do
sujeito e do objeto, mas sem que o sujeito e o objeto sejam subordinados a uma instância
superior nem reabsorvidos na relação que os une.”
41
A reflexão sobre a percepção que, em
virtude da recusa da redução (pelo menos da redução absoluta), teria impulsionado o
pensamento de Meleau-Ponty, permitiu a Dufrenne colocar o problema da relação entre
sujeito e objeto, sob nova perspectiva. Deste modo, para ele, “há um pacto que une sujeito e
41
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 411.
75
objeto para aquém de toda reflexão, no plano da percepção, que é um modo originário da
intencionalidade.”
42
Sobre este ponto crucial, vale transcrever a lúcida conclusão a que chegou Antônio Pedro
Pitta:
Em suma, a rejeição da redução fenomenológica implica a valorização da percepção
como modo originário da intencionalidade, porque é na percepção que melhor se
esclarece ‘a reciprocidade específica do sujeito e do objeto implicada na
intencionalidade’. Dufrenne acompanha Merlau-Ponty até esta conclusão.
43
A novidade de recorte claramente dufrenniano pode ser notada, justamente, a partir deste
ponto fundamental. Trata-se da afirmação do caráter exemplar da experiência estética. Aliás,
para Dufrenne, a construção de uma fenomenologia da percepção, tarefa central para
Merleau-Ponty,
44
deveria partir da percepção estética, que esta se distancia da percepção
comum na medida em que evita os arbítrios ou a sedução da imaginação e da intelecção,
permanecendo no campo do sensível e de sua mostração, portanto sem ultrapassar o campo
perceptivo. Enfim, nas palavras de Dufrenne, a percepção estética “procura a verdade do
objeto, tal como ela é imediatamente dada no sensível.”
45
E, continua, “sem se deixar seduzir
42
A interpretação da percepção como campo originário da intencionalidade, como terreno no qual mostrar-se-ia
a mútua referência entre sujeito e objeto, fazendo aparecer a estrutura de reenvio necessário existente entre eles,
pode ser colhida, sobretudo, em: DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris:
PUF, 1953. pp. 53ss. Ali se encontram, dentre outras, as citações que ora incorporamos ao texto e, ainda, uma
em especial, que merece ser transcrita: “são irredutíveis a exterioridade do objeto, se bem que só haja objeto para
um sujeito, e a ipseidade do cogito; e a transcendência não é senão o movimento pelo qual o sujeito se constitui
como sujeito voltando-se para o objeto.”
43
PITA, Antônio Pedro. Mikel Dufrenne: a experiência estética como experiência do mundo. Coimbra:
Faculdade de Letras, 1995. p. 116.
44
Em 1945, apareceu a Phénoménologie de la perception, de Merleau-Ponty. Esta obra, seguramente, exerceu
sobre o pensamento de Dufrenne uma decisiva influência. De fato, o primado da percepção sempre foi defendido
por Dufrenne desde a Phénoménologie e, mais tarde, em 1991, quando seu projeto filosófico já tinha atingido,
em boa medida, o máximo de seu amadurecimento, continuará a confessar que “a percepção é, para mim, a
pátria de toda verdade.” Esta confissão encontra-se em: DUFRENNE Mikel. L´oeil et l´oreille. Paris: Jean-
Michel Place Editeur, 1991. p. 72. publicação, no Brasil, da obra de Merleau-Ponty MERLEAU-PONTY,
Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
45
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 55.
76
pela imaginação, que convida a vagabundear em torno do objeto presente, nem pelo
entendimento que convida a reduzi-lo, para o dominar, a determinações conceptuais.”
46
Neste sentido, a experiência estética conduz à afirmação da co-substancialidade
47
entre sujeito
e objeto, mostra a necessária correlação existente entre eles, bem como desanima pensar numa
cisão que fosse capaz de justificar a prevalência de um pólo sobre outro nesta relação. um
pacto que os distingue mas, ao mesmo tempo, mantém sujeito e objeto numa reciprocidade
permanentemente reavivada. Aliás, segundo se depreende de uma célebre passagem, entre
sujeito e objeto, é precisamente a reciprocidade, o reenvio de um a outro que permite pensar
qualquer distinção entre eles possível. A este respeito, ouçamos o próprio Dufrenne:
O ser ambíguo e, contudo, irrefutável do fenômeno atesta que o sujeito como visada e o
objeto como fenômeno são, ao mesmo tempo, distintos e correlativos, porquanto o objeto
existe ao mesmo tempo pelo sujeito e perante o sujeito.
48
A experiência estética, exemplarmente, aponta para o fato de que sujeito e objeto, em toda
forma de experiência, se reúnem sob o signo de uma transcendência, isto é, estabelece-se
entre eles uma relação de reenvio, de um a outro pólo, sem que se confundam e sem que se
reduzam um ao outro. A este respeito, bem pontuou Antônio Pedro Pita, marcando a decisiva
contribuição que a meditação de Jaspers teria trazido para o pensamento de Dufrenne:
A experiência estética não é simplesmente subjectiva: é a experiência de um cruzamento
(ia escrever de um encontro) entre um sujeito e um objecto sob o signo de uma
transcendência que desloca o sujeito para as possibilidades do objecto e o objecto para as
expectativas do sujeito. aqui um excesso de oferta que é o próprio sinal da
transcendência: nem o sujeito esgota o objecto nem o objecto preenche o sujeito (por isso
as releituras, os recomeços, são sempre possíveis). Mas é este excesso que põe em
movimento a tarefa da existência – para utilizarmos a terminologia de Jaspers. E é
também ele que, para Dufrenne, designa o carácter exemplar da experiência estética.
49
46
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 54.
47
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 57.
48
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 57.
49
PITA, Antônio Pedro. Mikel Dufrenne: a experiência estética como experiência do mundo. Coimbra:
Faculdade de Letras, 1995. p. 54. Conservamos o texto como lançado no original, inclusive a expressão grifada.
77
Por tudo, a afirmação da co-substancialidade existente entre sujeito bem como a defesa da
exemplaridade da experiência estética apontam em uma dupla direção. Uma: autoriza afirmar
que a experiência estética, remeditando a noção de intencionalidade, comporta um sentido
ontológico. Outra: induz a pensar que o sentido ontológico descoberto não autoriza a
construção de uma ontologia, já que a transcendência, para a qual aponta a experiência
estética, se liga à reciprocidade entre os próprios pólos constitutivos da relação
(sujeito/objeto), sem implicar na idéia de algo que, sendo superior, (ou anterior) os reunisse
ou do qual, tanto sujeito quanto objeto, fossem apenas epifenômenos. Enfim, não somos aqui
remetidos necessariamente à idéia de Ser, como instância transcendente aos pólos da relação
travada entre sujeito e objeto.
50
É neste sentido que se esforçará Dufrenne por construir uma
filosofia da Natureza, ou pelo menos por indicar a necessidade desta construção, sem resvalar
para a ontologia, ou seja, para a tentativa de dizer o ser. A filosofia da Natureza, assim
entendida, se constitui ao pensar a relação sujeito e objeto, num contexto de remetimento
mútuo e necessário, buscando estabelecer a Natureza como pressuposto e fundo justificante
daquela mesma relação.
Lado outro, relembre-se, a tensão em que esta possível construção se daria. A insistência de
Dufrenne quanto à necessidade de se construir uma filosofia da Natureza que, de algum
modo, pudesse pensar a “mesma raça da qual são o homem e o mundo”, se nos apresenta,
ainda que de forma temperada, como uma tentativa de recompor o quadro de significação que
emoldura a relação sujeito/objeto, encontrando o sentido desta mesma relação e dos elementos
nela envolvidos em algo que lhes antecede sendo, de algum modo, o fundamento da raça de
ambos e, por isto, mesmo, capaz de reuní-los. Ora, apesar do eufemismo terminológico
introduzido por Dufrenne, neste caso, não seria do ser que, então, nos ocuparíamos? Não
50
A este respeito conferir: DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF,
1953. pp. 60/61.
78
parece haver um mútuo remetimento - senão uma substituição entre as idéias de ser e de
Natureza?
Enfim, permanece uma tensão no pensamento de Dufrenne: descobrindo um sentido
ontológico da experiência estética evitar que esta descoberta se resolva na construção de uma
ontologia, à maneira da tradição.
Nesta tensão, que pensamos presente na Phénomenologie de l’expérience esthétique,
permaneceu o pensamento de Dufrenne até os últimos escritos, em que a problemática
continuou, de forma insistente, a desafiá-lo.
Verifica-se uma insistente oscilação. Por vezes, se firma a convicção de que, uma
fenomenologia da experiência estética, conduziria à descoberta do sentido ontológico desta
exemplar forma de experienciar, mas não autorizaria a construção, a partir desta descoberta,
de uma ontologia que reunisse, sob o signo de uma categoria anterior, o ser, os pólos
relacionais nela reciprocamente implicados.
Outras tantas vezes, sobretudo quando Dufrenne insiste na necessidade de se elaborar uma
filosofia da Natureza, parece que ouvimos o eco nostálgico da possibilidade de uma ontologia,
possibilidade apenas indicada, não podendo encontrar desenvolvimento.
Permanece, no pensamento dufrenniano, uma tentação insistente: passar da tentativa
fenomenológica à construção metafísica. Eis o seu sentido: na experiência estética e, por ela, é
possível saber que o mesmo ocorre em toda forma de experienciar, comparece o anúncio de
que a relação entre sujeito e objeto se dá numa reciprocidade inarredável, restando decidir que
79
direção seguir para a compreensão desta relação - procurar a transcendência nos próprios
elementos envolvidos na relação, sustentando seja esta a única ou buscá-la em algo diverso
destes elementos, neste caso, abrindo caminho para a introdução da idéia de ser.
Esta pesquisa, após constatar a presença desta irremediável tensão, deve agora se ocupar da
afirmação da hipótese ontológica em seu nascedouro, ou seja, deve se dedicar a pensar as
mediações que teriam conduzido Dufrenne, na Phénomenologie de l’expérience esthétique, a
proclamar uma significação ontológica que se deixa mostrar na experiência estética.
Como abertura para novos e ainda inexplorados horizontes, nos limites desta pesquisa, na
parte final do último capítulo, voltaremos à afirmação do núcleo de sentido daquela tensão,
desta vez, a partir de alguns dos escritos publicados por Dufrenne após o advento de sua obra-
prima.
80
4 DESCRIÇÃO FENOMENOLÓGICA DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E SUA
CULMINÂNCIA NO SENTIMENTO, COMO ANÚNCIO DE UMA SIGNIFICAÇÃO
ONTOLÓGICA
Dufrenne segue uma lição fundamental: para ele, a construção de uma fenomenologia da
experiência estética, deve iniciar-se pela descrição desta exemplar forma de experienciar.
Como bem lembra Sebastião Trogo, “a lição fundamental que a fenomenologia nos deixou foi
a de que uma grande construção teórica começa pela identificação e descrição de uma
experiência exemplar.”
1
Como primeira tarefa, portanto, importa descrever a experiência
estética, atentando para todos os seus momentos constitutivos. Como fruto deste esforço
descritivo, compreendida a experiência estética em seus diversos níveis, ao final, será lançada
uma luz sobre seu possível sentido ontológico.
De início se verifica que uma mútua referência entre objeto estético e percepção estética,
pelo que a descrição de ambos se inter-relaciona indeclinavelmente.
O objeto estético é, essencialmente, um objeto percebido.
2
Por isto, a construção de uma
fenomenologia do objeto estético supõe, necessariamente, o cumprimento de uma outra tarefa:
1
TROGO, Sebastião. Olhar: uma herança da fenomenologia. In: Cadernos ABESS. n. 2. Belo Horizonte:
PUC/Minas, 1982. p. 18. Citou-se conforme indicação do autor.
2
Sobre a necessidade da elaboração de uma fenomenologia da percepção estética, em estreita relação com uma
fenomenologia do objeto estético, em especial, ver a introdução ao segundo volume da Phénoménologie de
l’expérience esthétique, dedicado ao estudo específico da percepção estética. Deve ser lembrado, contudo que as
referências à percepção, como adverte Dufrenne, se encontram dispersas por toda a obra, mormente no
tratamento dispensado ao objeto estético, tema de todo o primeiro volume: isto porque um e outro objeto e
percepção - se encontram em mútua referência, gerando um necessário paralelismo entre aquelas duas vias de
compreensão da experiência estética. Assim, a distinção entre os três momentos sucessivos da percepção estética
presença, representação e reflexão, nas palavras de Dufrenne, ditas ainda na introdução ao já citado segundo
volume, recorda sensivelmente os três aspectos que distinguimos no objeto estético: o sensível, o objeto
representado e o mundo expresso.” Quanto aos temas citados nesta nota, sobretudo acerca da necessidade e da
tarefa de uma fenomenologia da percepção estética, conferir DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de
l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. pp. 419-420.
81
a elaboração de uma fenomenologia da percepção estética, como seu fundamento. Na
experiência estética, o fim específico da percepção é o aparecer de um certo objeto obra de
arte - a um determinado sujeito, o espectador: é pela percepção que o objeto estético se
completa. Este o ponto de partida necessário: o reconhecimento de uma inter-relação
estrutural entre percepção e objeto estético. À percepção, portanto, deve ser reconhecido
inegável primado para uma adequada compreensão da experiência estética.
4.1 Primado da percepção e a tarefa de uma descrição fenomenológica da experiência
estética
Seguindo, uma vez mais, o legado de Merleau-Ponty
3
, Dufrenne atribui à percepção um
essencial primado, sabendo-se ser o sensível lugar onde cintila o sentido, de cuja entrega a
experiência estética é privilegiado exemplar.
3
A eleição da percepção como motivo filosófico principal tem, no pensamento de Merleau-Ponty, razões que,
por si mesmas, exigiriam uma compreensão total de seu modo de filosofar, isto é, do modo como se teria ele
apropriado dos achados fenomenológicos, a partir de Husserl e para além de Husserl. Não podemos aqui fazer
esta digressão, na tentativa de traçar o itinerário filosófico merleau-pontiano. Nos limites do interesse que nos
move, salientamos que o primado da percepção é, para Merleau-Ponty, assentado desde sua obra capital
Phénoménologie de la perception, tese principal de seu doutorado, publicada em 1943. O texto da exposição do
trabalho perante a Sociedade Francesa de Filosofia, na sessão de 23 de novembro de 1946, seguido da discussão
foi publicado, no Brasil: MERLEAU-PONTY, Maurice. Do primado da percepção e suas conseqüências
filosóficas. Campinas: Papirus, 1990. Ora, como está a sugerir o próprio título deste último escrito, para ele, a
percepção precede necessariamente o saber sobre o mundo e as coisas, sendo o fundo de toda referência que a
eles se faça. Dufrenne assume o primado da percepção, direcionando a investigação rumo ao encontro de suas
conseqüências estéticas. Aqui, como também em Merleau-Ponty, encontramos o corpo como lugar de
entrelaçamento dos sentidos na percepção, é ele que possibilita a unidade do objeto estético. O sentido deste se
anuncia para o corpo e, somente então, ultrapassa-o, atingindo outros planos. É o que se pode colher desta
passagem significativa: “não podemos fazer permanecer toda a percepção sensível no vel do pré-reflexivo. É
preciso passar do vivido ao pensado, da presença à representação.” (DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de
l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 432).
82
Assim, para a compreensão do estético, firma-se uma exigência definitiva: descrever os
diversos momentos da percepção estética presença, representação e reflexão - atentando-se,
ainda, para as funções exercidas, em cada um deles, pela imaginação e pelo entendimento.
Quanto ao privilégio concedido à percepção, isto se deve ao fato de que o sensível torna o
mundo presente. Assim, deve ser revalorizada a percepção como lugar de origem e de
sustentação do sentido, é por ela que o sensível se nos entrega. É pela percepção que se acolhe
o sentido, já presente no sensível. Que o sensível seja o começo, e suas espécies, o modo pelo
qual o mundo se faz originariamente presente ao sujeito, é expressão literal de Dufrenne:
Tangível, audível, visível, é sempre sob as espécies do sensível que o mundo me é
presente. Jamais como um em-si intocável, jamais ainda como aquilo a que o saber o
reduzirá: as qualidades primeiras não se dão senão através das qualidades segundas. Tudo
começa com o sensível. Tanto pior para uma certa filosofia que se interdita de falar do
começo.
4
A revalorização do sensível, portanto, implica num retorno à força da percepção, na defesa de
seu primado. Aqui se estreitam os laços que unem Dufrenne a Merleau-Ponty, para quem a
percepção é um fundo necessário, um ponto de ancoragem do conhecimento e do sentido. De
fato, ele havia afirmado que “a percepção não é uma ciência do mundo, não é um ato, uma
tomada de posição deliberada, ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e é
pressuposta por eles”.
5
Assim, compreende-se que, na experiência estética, a percepção seja a fonte originária e
irrenunciável da conversão da obra de arte em objeto estético. Se o sentido é imanente ao
sensível, é na percepção estética que este mesmo sentido se consagra e se por manifesto.
Rompe-se a dualidade, realidade e irrealidade: o “objeto estético é apreendido como real sem
4
DUFRENNE, L’oeil et l’oreille. Paris: Edition Jean-Michel Place, 1991. p. 70.
5
MERLEAU-PONTY, Maurice. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1987. p. V. Eis a citação,
no original: “la perception n’est pas une science du monde, ce n’est pas même un acte, une prise de position
deliberée, elle est le fond sur lequel tous les actes se détachent et elle est présupposé par eux.”
83
reenviar ao real”, é o “sensível em sua glória”. A este respeito, pode ser citada exemplar
passagem que, servindo-se da referência ao teatro, acrescenta a temática da redução à tese da
imanência do sentido no sensível:
O que é real, o que “me prende”, é justamente o “fenômeno”, que a redução
fenomenológica pretende atingir: o objeto estético dado na presença e reduzido ao
sensível, aqui a sonoridade do verbo combinada com os gestos dos atores e o encanto do
décor, a que a atenção se entrega totalmente para preservar a pureza e a integridade, sem
jamais evocar a dualidade do percebido e do real; o objeto estético é apreendido como
real sem reenviar ao real, quer dizer, a uma causa do seu aparecer, ao quadro como tela, à
música como barulho de instrumentos, ao corpo como bailarino como organismo: não é
outra coisa senão o sensível na sua glória, cuja forma, que o constitui, manifesta a
plenitude e a necessidade, que traz em si e dá de imediato o sentido que o anima.
6
A afirmação de que o objeto estético é essencialmente percebido e de que, ainda, “manifesta o
sensível em sua glória” está também presente na Phénoménologie, como se no seguinte
excerto: “o objeto estético é essencialmente percebido: para a sua epifania, por vezes a
execução, a testemunha ou o público sempre, são necessários; ele manifesta o sensível em sua
glória.”
7
Mas a dependência do objeto estético da percepção não deve conduzir à afirmação de que seja
redutível à consciência que o apreende, ele é simultaneamente um em-si para-nós,
8
enfim, “na
aparência é mais do que aparência”, aponta para o mundo singular que traz em si, deixando
entrever a percepção como tarefa infinita.
Este passo é fundamental para a compreensão da temática desta pesquisa. Na
Phénoménologie, a afirmação de que o objeto estético, em seu aparecer, revela a verdade,
conduz a outra, a saber: o sentido, que lhe é imanente, pode comportar uma significação
6
DUFRENNE, Mikel. Intentionalité et esthétique. In Esthétique e philosophie. Vol. I. Paris: Editions
Klincksieck, 1976. p. 55.
7
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 286.
8
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 287. Conferir,
ainda, DUFRENNE. Mikel. Intentionalité et esthétique. In Esthétique et philosophie. Vol. I. Paris: Editions
Klincksieck, 1976. p. 56.
84
ontológica, isto é, pode ser uma abertura que sugere a existência de uma co-substancialidade
entre o homem e o mundo. Nos escritos posteriores à Phénoménologie, aparecerá a Natureza,
como instância comum e fundamento que reúne sujeito e objeto estético.
Quanto à importância da percepção para desvelar o sentido do objeto estético, bem como
acerca de sua abertura em direção ao mundo singular que traz em si e para o qual sempre nos
remete, destaque-se a seguinte passagem da Phénoménologie:
O objeto estético não é exterior ou transcendente às suas aparições, pois não se realiza
senão nelas, diferentemente do objeto vulgar para o qual é indiferente ser bem ou mal
percebido (...). Não se deixa reduzir a suas aparências, pois pode, por si mesmo,
denunciá-las, pois o próprio quadro nos adverte que a iluminação é deficiente ou a nossa
percepção desfavorável, a música que o movimento está mal regulado ou que não
estamos em forma para escutar e o próprio monumento que o meio circundante o trai ou
que o tempo manchou a pedra (...). O objeto estético o é senão aparência, mas na
aparência é mais do que aparência: seu ser é o do aparecer, mas algo se revela no aparecer
que é a verdade e que obriga o espectador a prestar-se à revelação.”
9
na percepção estética um mútuo envolvimento daquele que sente e do sentido,
denunciando a existência de um entrelaçamento entre sujeito e objeto que, por sua vez, nos
remete a um espaço originário anterior à cisão, ou para Dufrenne, à diferença. Reconduzir o
pensamento ou mesmo a consciência a este espaço originário é tarefa da estética e, com isto,
ela presta seus melhores préstimos à reflexão filosófica.
10
Em suma, uma fenomenologia da percepção estética se faz necessária na medida em que deve
cumprir uma especial tarefa: dar conta dos momentos que, articulados, assistem à emergência
do objeto estético e de seu sentido.
9
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. pp. 288-289.
10
DUFRENNE, Mikel. L’apport de l’esthétique à la philosophie. In Esthétique et philosophie. Vol. I. Paris:
Editions Klincksieck, 1967. p. 9.
85
Para Dufrenne, a análise do objeto estético demonstra que seu aparecer se dá sob três aspectos
distintos: como sensível, como objeto representado e como objeto expresso.
11
Muito embora,
o objeto estético seja uno e una também a percepção, pode-se falar de três momentos da
percepção estética que fazem paralelo com as três formas do objeto estético: presença,
representação e reflexão. Isto significa que a pluralidade, seja dos aspectos sob os quais se
apresenta o objeto estético seja dos momentos da percepção estética, indicam um
aprofundamento da compreensão, não cindindo realmente um e outro, mantendo-se íntegra a
unidade seja do objeto estético seja da percepção estética.
12
Descrever os momentos da percepção estética, articulando-os, em paralelo, com as diversas
formas de apresentação do objeto estético: esta a tarefa de uma fenomenologia da percepção
estética.
Segue-se aqui o caminho percorrido por Dufrenne: partir da descrição fenomenológica da
percepção estética para, no final, concluir em favor da abertura ontológica que ela comporta.
11
Todo o primeiro volume da Phénoménologie é dedicado à fenomenologia do objeto estético. Os três aspectos
sob os quais ele se apresenta são ali longamente tratados. Os limites desta pesquisa, contudo, não recomendam
uma digressão sobre cada um deles. Algo sobre os diferentes aspectos de apresentação do objeto estético será
dito, no decorrer do texto, à medida que isto se fizer necessário para a compreensão do paralelismo estabelecido
por Dufrenne entre aqueles aspectos e os três momentos da percepção estética. Quanto ao noticiado paralelismo,
conferir, sobretudo DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953.
p. 419.
12
Sobre a unidade real da percepção estética, ver DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience
esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 420.
86
4.2 Unidade real da percepção estética realizada em seus três momentos constitutivos
Posto que a finalidade de uma obra de arte é a percepção estética”
13
e que “a obra de arte e
o objeto estético reenviam-se um ao outro e compreendem-se um pelo outro”,
14
constitui
relevante tarefa de uma descrição fenomenológica ocupar-se da percepção, apropriando-se das
categorias que regem, neste nível, aquele encontro entre o espectador e a obra. Encontro
decisivo que transmuta a obra de arte em objeto estético, fazendo-lhe justiça.
Para Dufrenne, a percepção estética se funda em três categorias: presença, representação e
sentimento. Pela presença, estabelece-se entre a obra de arte e o espectador uma relação
imediata, sem distância: o espectador se envolve com a obra, com ela se compromete,
tendendo a nela se perder.
15
Saliente-se que o espectador é um corpo e é como tal que a obra
de arte se lhe apresenta, à espera de “sua consagração e de seu remate.”
16
Na representação, não é revogado o plano da presença: nela comparecerá a herança do que foi
experimentado pelo corpo.
17
Contudo, neste momento da percepção estética, havendo uma
“conversão do dado em inteligível”
18
é cindida a unidade imediata anterior, aquela existente
no plano da presença. Precisamente porque não conta da unidade da experiência estética, a
13
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 26.
14
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 46.
15
Quanto à alienação do espectador na obra, é explícito Dufrenne ao afirmar que o espectador encontra-se
“perante a obra mas é preciso dizer: na sua presença, onde estou como perdido nela”, conferir especialmente
DUFRENNE, Mikel. Esthétique et philosophie. Vol. II. Paris: Editions Klincksieck, 1976. p. 98. Perder-se na
presença da obra, por certo, não implica numa alienação total, mas num deslocar-se do sujeito até um plano de
imediatidade, no qual não há mediação entre ele e a obra.
16
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 82.
17
A este respeito conferir DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF,
1953. p. 82s bem como, ainda, DUFRENNE, Mikel. Esthétique et philosophie. Vol. II. Paris: Editions
Klincksieck, 1976. p. 98s.
18
A expressão, embora seu sentido se faça presente na Phénoménologie, comparece como lançada em escrito
posterior. Conferir: DUFRENNE, Mikel. Esthétique et philosophie. Vol. II. Paris: Editions Klincksieck, 1976. p.
468.
87
representação não pode ser seu ponto de chegada, devendo haver outra categoria que
recomponha a unidade cindida. Isto é, ao converter o dado em inteligível, no plano da
representação, introduz-se a dualidade entre sujeito e objeto. Superar esta dualidade, será
possível no plano do sentimento recuperando, agora em outro nível, a imediatidade antes
evidenciada na presença. Esta a terceira categoria que compõe a experiência estética e que
recupera sua unidade, superando tanto a presença pré-reflexiva quanto a representação, já que
“o sentimento é um imediato que superou a mediação.”
19
As três categorias de inteligibilidade da experiência estética – presença, representação e
sentimento -, devem ser compreendidas como momentos solidários de um acontecimento
unitário, que é a percepção do espectador. A referência aos três momentos da percepção
estética não implica numa real cisão do evento uno que ela é, mas indica a remissão da
percepção à profundidade
20
do objeto estético que nela se anuncia. Quanto à unidade da tanto
do objeto estético quanto da percepção estética, escreveu Dufrenne:
Todavia, é necessário não esquecer que, para além da pluralidade dos aspectos que a
análise nele distingue, o objeto estético é uno. Ele o é enquanto percebido e a própria
percepção é também una, tanto como unificante: os momentos que nós vamos nela
distinguir não a dividem realmente e, antes que uma gênese cronológica, eles indicam o
aprofundamento que ela pode conhecer, precisamente porque ela se faz percepção
estética.
21
O tratamento específico dispensado a cada um dos momentos da percepção estética se presta a
uma melhor compreensão dos mesmos permitindo que, a par das distinções, se vislumbre,
19
Esta fórmula lapidar, em gérmen na Phénoménologie, comparece em DUFRENNE, Mikel. Esthétique et
philosophie. Vol. II. Paris: Editions Klincksieck, 1976. p. 471.
20
Dufrenne sempre se refere à profundidade do objeto estético, isto é, ao apelo que este dirige ao espectador, na
intensidade da presença. A manifestação da interioridade do objeto aponta para um fundo no qual ela se
encontra: a Natureza. Esta interioridade quer exteriorizar-se para ser, então, percebida pelo espectador. Por isto,
a experiência estética do espectador pode se dizer também profunda, isto é: provocada pela intensa presença da
interioridade do objeto estético, pelo sentimento, o espectador se deixa tocar por ela, também de forma intensa,
profunda, comprometida, nela se perdendo, sempre mais, ao vislumbrar que também ele pertence ao fundo
originário que, na interioridade do objeto, se deixa ver. Quanto à profondeur do objeto estético ver, em especial,
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. pp. 481-526. Trata-
se do capítulo intitulado Le sentiment et la profondeur de l’objet esthétique.
21
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 420.
88
com maior acuidade, a articulação entre eles existente. Deste modo, a distinção entre os
momentos não é real, mas estratégia metodológica para, desarticulando a percepção, se
apropriar de seus meandros, sem perder de vista sua unidade. Assim advertidos, seguindo a
via indicada por Dufrenne, tratemos em separado os diversos momentos.
4.3 Momento da presença: raiz corporal do sentido
Mais uma vez seguindo, de perto, Merleau-Ponty, Dufrenne propõe a questão da emergência
do sentido, reconhecendo a existência de um fundo irrefletido
22
, acessível imediatamente ao
corpo. Ali a razão ainda não se impõe, o sensível fulgura, emergindo assim um sentido para o
corpo, denotando assim a inegável raiz corpórea do sentido.
O corpo, ao captar o sentido de uma presença, demonstra não haver uma distância
intransponível ou uma opacidade inarredável das coisas, aliás, aqui se torna evidente que as
coisas “são da mesma raça que nós”
23
, é ao corpo que as coisas se mostram.
22
A este respeito, ou seja, quanto à existência, na percepção, de um fundo irrefletido, sobre o qual se fundará o
pensamento tético, eis uma passagem significativa: “é na experiência da coisa que se fundará o ideal reflexivo do
pensamento tético. A reflexão não apreende, ela mesma, o seu sentido pleno senão na condição de mencionar o
fundo irrefletido que pressupõe, a partir do qual se desenvolve e que constitui para ela como que um passado
original, um passado que nunca foi presente.” (Cf. MERLEAU-PONTY, Maurice. Phénoménologie de la
perception. Paris: Gallimard, 1987. pp. 279-280). Insiste-se na idéia de cogito corporal, indicando que, no nível
da presença, o corpo animado não supõe seja a percepção pertencente ao domínio da consciência. A este
respeito, citando uma passagem de Merleau-Ponty, colhida na obra Structure du comportement, Dufrenne
formula instigante interrogação: “enquanto substitui ao cogito reflexivo um cogito corporal, segundo o qual a
relação com o mundo não é o ato de uma consciência constituinte, mas o trabalho de uma existência, se se
admitir enfim que ‘a consciência pode viver nas coisas existentes sem reflexão, abandonar-se à sua estrutura
concreta que ainda não foi convertida em significação exprimível’ pode então fingir-se que a percepção seja
verdadeiramente consciente?
23
DUFRENNE, Mikel. Esthétique et philosophie. Vol. II. Paris: Editions Klincksieck, 1976. p. 423. Grifado no
original.
89
Enfim, uma significação primitiva, captada pelo corpo no vel do vivido, sobre a qual se
fundarão os demais momentos da percepção: há um fundo originário de sentido, sempre
recorrente e acessível ao corpo. Nesta direção, insistiu Dufrenne ao escrever:
O sentido não é, primeiramente, qualquer coisa que penso com distanciamento, mas algo
que me concerne e determina, que ecoa em mim e me comove; a significação que
contemplo sem a ela aderir será antecipada sobre esta significação primitiva, que me
convence porque me envolve, em que o sentido é uma somatização à qual respondo com
o meu corpo.
24
Sobre o fundamento corpóreo do acesso às coisas, Dufrenne subscreve as lições de Merleau-
Ponty para quem “o meu corpo é a textura comum de todos os objetos e é, pelo menos em
relação ao mundo percebido, o instrumento geral da minha compreensão.”
25
Como bem observa Eunice Pinho, aqui “não se trata e Dufrenne adverte-o - de propor um
mergulho na noite dos tempos’, de fazer a apologia do irracional, antes da própria
possibilidade de pensar a emergência do sentido”, procurando a marca do originário, em que
há um mútuo envolvimento daquele que sente e do sentido, “num estado em que a consciência
faz corpo com o mundo, em que sujeito e objeto se encontrem entrelaçados sem vislumbre de
cisão.”
26
O corpo garante que o objeto estético seja percebido em sua unidade. Na percepção estética, o
objeto exerce sobre o corpo um poder de sedução: o corpo deve se oferecer para que a obra de
arte faça, enquanto tal, sua aparição. Em virtude do entrelaçamento dos sentidos, garantido
pelo corpo, que é uma unidade sinergética da intercomunicação dos sentidos, realiza-se a
unidade do objeto estético.
24
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 422.
25
MERLEAU-PONTY, Maurice. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1987. pp. 272.
26
PINHO, Eunice. A arte ou a paixão da origem: uma leitura da estética de Mikel Dufrenne. Dissertação de
mestrado em filosofia contemporânea realizado sob a orientação do Professor Doutor Miguel Baptista Pereira.
Coimbra – 1993. pp. 23-24. A citação da obra foi feita de acordo com a indicação da autora, apenas adaptando a
ortografia à norma culta do português do Brasil.
90
Enfim, a multiplicidade dos sentidos, sempre reunida em um sistema pelo corpo, permite que
o objeto estético se apresente em sua unidade. Saliente-se, novamente, a importância do corpo
não apenas para permitir o acesso a uma significação primordial, pré-reflexiva, fundamento
primevo de toda significação; mas também para reunir a diversidade do sensível, garantindo a
intercomunicação entre os vários sentidos e, com isto, conduzindo a percepção estética nos
caminhos da unidade do objeto estético. Em suma, a presença do objeto estético ao corpo é
una, apesar da diversidade do sensível, e isto se em razão de ser o corpo um sistema
estabelecido de equivalências intersensoriais. Ou, nas palavras de Dufrenne:
É pelo corpo que uma unidade do objeto estético, e particularmente das obras
compósitas como a ópera ou o ballet, que fazem apelo a diversos sentidos ao mesmo
tempo. (...) a unidade de sua expressão (referindo-se ao objeto estético) não poderá ser
compreendida senão sob a condição de que a diversidade do sensível esteja
primeiramente unida num sensorium commune: o corpo é o sistema sempre
estabelecido de equivalências e transposições intersensoriais, é por ele que há uma
unidade dada antes que a diversidade.
27
No nível da presença, o espectador colabora para a emergência do objeto estético. Numa dócil
atividade, o espectador se deixa seduzir pela fulguração, pela apoteose do sensível, fazendo
justiça à obra de arte, percebendo-a esteticamente, transmutando-a em objeto estético. Aqui
comparece um dos temas centrais de uma fenomenologia da experiência estética voltada para
o espectador: a sua alienação na obra.
A este respeito, vale transcrever significativa passagem, em que Dufrenne, servindo-se do
exemplo da música, tematiza o necessário comprometimento do espectador com a obra,
induzindo a conclusão de uma necessária posse recíproca entre obra e sujeito (espectador),
sustentando que o estatuto do objeto estético é o de um quase-sujeito:
27
DUFRENNE, Mikel. Esthétique et philosophie. Vol. II. Paris: Editions Klincksieck, 1976. p. 426. Quanto ao
corpo, enquanto sistema unitário de intercomunicação, permitindo uma operação concordante entre os diversos
sentidos, a referência a Merleau-Ponty nos parece evidente. A este respeito conferir, dentre outros passos,
MERLEAU-PONTY, Maurice. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1987. pp. 270ss)
91
Tal como a percepção não se resolve no esquema que pode dar-se de um objeto e de um
sujeito exteriores um ao outro, como são exteriores para o físico o estímulo e o órgão
sensorial, a presença da testemunha perante a obra não se reduz a esta presença física. É
necessário penetrar na intimidade da obra. A música nos ensina isto; no concerto, estou
perante a orquestra, mas estou dentro da sinfonia; assim como poderíamos dizer: a
sinfonia está em mim para designar esta posse recíproca; mas para evitar todo
subjetivismo, é antes de uma alienação do espectador no objeto diz-se algumas vezes
um feitiço que é necessário falar; a presença ao objeto tem qualquer coisa de absoluto,
de modo nenhum o absoluto de um cogito transcendental que seria exterior ao jogo mas o
absoluto de uma consciência inteiramente aberta e como que possuída pelo que ela
projeta: a testemunha não é um espectador puro mas um espectador comprometido na
própria obra.
28
Quanto à passagem para o plano da representação, ultrapassando o plano do vivido sem,
contudo, perder o sentido dado no sensível, afirma Dufrenne:
Tal é o plano da presença. Uma teoria da percepção não pode permanecer e deve abrir
a passagem da compreensão vivida pelo corpo à intelecção consciente operada no plano
da representação. Mas permanece que a percepção começa . E precisamente a
experiência estética é primeiramente a apoteose do sensível, todo o seu sentido é dado no
sensível: é preciso que o sensível seja acolhido pelo corpo. Assim o objeto estético se
anuncia primeiramente ao corpo e o convida, muito insistentemente, a estar
imediatamente de partida.
29
Interpretando esta capital passagem, Antônio Pedro Pita, advoga que “neste passo, o menos
importante é a sugestão de que a inteligibilidade da experiência estética deve alhear-se do
modelo de saber moderno.” E, continua, “é mais importante a idéia da alienação do
espectador na obra: uma alienação que a obra quer que seja absoluta”.
30
Na verdade, uma e outra idéia são importantes. Isto é, o tema da alienação do espectador na
obra, que aponta para uma fusão, ou antes, para a existência de um horizonte ainda não
cindido entre sujeito e objeto, é o locus fecundo de um discurso que valoriza a percepção,
buscando seu fundo irrefletido e, com isto, apontando para os limites da modernidade que
28
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. pp. 92-93.
29
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 425.
30
PITA. Antônio Pedro. A experiência estética como experiência do mundo. Coimbra: Faculdade de Letras,
1995. p. 158.
92
aprendeu salientar o dualismo entre sujeito e objeto ou a supervalorizar o racional, sem
procurar-lhe as raízes nos vários momentos da percepção.
Dufrenne insiste em valorizar a presença como momento da percepção: esta imediatidade na
qual se sustentam seus outros momentos sucessivos. Imediatidade que contém o que é dado
pela fulguração do sensível, manifestando o acordo, ou a co-substancialidade/familiaridade,
do homem como o mundo, sabendo-se que “é assim que estamos no mundo, formando uma
totalidade sujeito-objeto, na qual o objeto e o sujeito são ainda indiscerníveis.”
31
A presença é plena, imediata, o corpo é capaz de intelecção – Dufrenne dirá “pode-se falar de
uma intelecção corporal”. Isto porque “o corpo enquanto vivente e meu é capaz de
conhecimento, e isto é um escândalo para aqueles que consideram o corpo objetivo, e não
como corpo animado.” E, continua, esclarecendo em que sentido deve ser interpretado o
conhecimento, no nível da presença, “no plano da presença, tudo é dado, nada é conhecido;
ou se se quiser, conheço as coisas da mesma maneira que elas me conhecem, sem as
reconhecer.”
32
A presença então é recíproca: na experiência estética, no primeiro nível da
percepção, sujeito e objeto (obra de arte) se fazem presentes um ao outro, sabendo-se ser esta
a raiz dos demais momentos perceptivos, a instância originária do sentido.
Destaque-se que a percepção consciente herdará da intelecção corporal a impressão de
plenitude, intelecção que se no nível da presença devendo, contudo, acrescentar-lhe o
poder de ver, quer dizer de se destacar. Neste sentido, esclarece ainda Dufrenne:
Aqui a significação é experimentada pelo corpo na sua conivência com o mundo. O
objeto visto diz qualquer coisa, como um certo peso do ar diz a tempestade ou como uma
entoação mais viva diz a cólera; mas, por um lado, di-lo por ele próprio sem sugerir a
31
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 425.
32
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. pp. 424-425.
93
representação de outra coisa e, por outro, di-lo ao meu corpo sem despertar ainda, pelo
que seria uma representação, uma outra inteligência que não a do corpo.
33
Para os fins desta pesquisa deve ser fixada que uma significação ontológica da experiência
estética encontraria aqui seu apelo originário, sua fonte primária ou sua raiz: no acordo
fundamental entre e homem e mundo, entre sujeito e objeto, entre irrefletido e pensado e, por
ser desta ordem, conservaria um quê de inefabilidade, vez que o discurso racional encontra-se
aqui medindo-se com seus próprios limites. Por isto, na Phénoménologie, uma tal
significação, ao invés de conduzir à elaboração de uma ontologia, indicaria apenas um sentido
ontológico da experiência estética ou, ainda, uma perspectiva metafísica. Em escritos
posteriores, Dufrenne insisti na necessidade de esboçar uma filosofia da Natureza,
exatamente na tentativa de ver preenchido o espaço vazio deixado pela ausência de uma
ontologia, dita impossível. Contudo, esta necessidade, assim postada, enquanto tentativa de
retorno ao originário, ao estado em que seria possível identificar uma junção entre sujeito e
objeto, se mostra como um desafio infindável, uma tarefa infinita que, com maior clareza,
apenas é capaz de afirmar-se como necessária, sem talvez dispor dos meios para construir-
se. Como adiante se verá, é pelo sentimento que se torna possível uma espécie de retorno à
imediatidade alcançada na presença, mas qual a expressão para uma construção discursiva
assim fundada? Aqui o pensamento defronta-se com suas limitações, é a lição da experiência
estética.
Por ora, importa salientar que, na percepção, a sucessão dos momentos não implica em
superação absoluta, mas na conservação do adquirido no momento anterior, pelo que a raiz de
todo saber que sobre ela se funda é, e será sempre, corporal.
33
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 425.
94
Não se trata de vencer o dualismo de forma cabal, ou de inverter as posições entre corpo e
espírito, trata-se de matizá-lo, mostrando que sim entre eles uma diferença a considerar,
mas deve ser delimitado o alcance desta diferença: há um ponto de encontro em que se tornam
indiscerníveis sujeito e objeto, sabendo-se que o corpo é órgão do pensamento. Sobre este
ponto crucial, ouçamos o próprio Dufrenne:
Os olhos do espírito são os olhos de que o espírito tem necessidade para o seu advento, os
olhos do corpo. Se a metaforização é uma sublimação, é no sentido em que a entende
Adorno: uma sublimação que conserva o que ela ultrapassa. Mas se os olhos do espírito
são ainda os olhos do corpo, em contrapartida, os olhos do corpo não são simplesmente
máquinas registradoras, o corpo não é simplesmente uma coisa entre as coisas, ele é
órgão do pensamento. Dito de outro modo, quando se invoca o espírito e quando se lhe
atribui qualquer operação, o corpo está sempre implicado. O que a filosofia
contemporânea diz naturalmente da linguagem, que o pensamento a habita e permanece
nela, é preciso dizê-lo, a partir agora do corpo, deste corpo que fala e que é também um
corpo que vê e (...), um corpo que escuta.
34
Assim, é possível transcender o irrefletido, passando ao plano da representação ou ao da
expressão, mas é fato que esta passagem não se dá por supressão de nenhum daqueles
momentos, mas por uma superação que conserva o que é ultrapassado. Contudo, não se trata
de uma passagem dialética: não há nela necessidade interna sendo possível, inclusive, saltar
de uma a outra direção da percepção. Isto fica claro, sobretudo, quando Dufrenne, ao analisar
o sentimento esclarece:
Entretanto, é sempre possível aceder ao sentimento sem passar pela etapa da
representação e da reflexão. Como ainda há pouco, para a passagem da presença à
representação, a passagem da representação ao sentimento não é dialética. O sentimento é
uma outra direção na qual pode se engajar a percepção: nós oscilamos da percepção ao
sentimento segundo a espontaneidade da consciência, e sem que o movimento seja
constrangido por uma necessidade dialética.
35
Deste modo, não uma renúncia à presença e nem ao que foi alcançado naquele momento
primeiro, que pode haver uma oscilação permanente entre os momentos da percepção.
Melhor dito: na experiência estética, é pressuposta uma oscilação perpétua entre o irrefletido-
34
DUFRENNE, Mikel. L’oeil e l’oreille. Paris: Editions Jean-Michel Place, 1991. pp. 45-46.
35
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 470.
95
vivido da presença e o refletido-concebido da representação e do sentimento, como assentou
Dufrenne:
A teoria desta passagem será possível? Sem dúvida, o podemos deduzir o espírito
senão ao mesmo tempo que o corpo, mas podemos pelo menos constatar e descrever a
oscilação perpétua, de que a experiência estética nos fornecerá o melhor exemplo, do
irrefletido ao refletido, do vivido ao concebido.
36
No plano da presença, é festivamente que o espectador ativo recebe a obra de arte,
transmutando-a em objeto estético e, como bem sublinha António Pedro Pita, “ao existir como
experiência do objeto estético para levar a obra à sua própria finalidade, a experiência estética
é a perdição do espectador na obra”.
37
uma espécie de euforia no encontro com a apoteose do sensível manifestada pela obra de
arte, a consciência como que participa de uma festa, abrindo-se à obra para consagrá-la, para
realizar-lhe a finalidade: ser esteticamente percebida, transmutando-se em objeto estético.
No plano da presença, a substância mesma da obra se entrega, provocando no espectador uma
passividade ativa. Ele participa do espetáculo, como participaria de uma festa. Acerca do
modelo da festa, como paradigma de leitura da experiência estética, ouçamos Dufrenne:
Eis porque vim à ópera esta noite, e não como as arrumadoras que colocam os
espectadores ou como o administrador que avalia a multidão e calcula os benefícios, nem
como o encenador que distribui os atores aos quais assinala as imperícias ou
desobediências, ou como o engenheiro da rádio que transmite o som como um barulho.
Vim para me abrir à obra, para assistir a este rebentamento (déferlement) sonoro
sustentado por acordes plásticos, pictóricos e quase coreográficos, a esta apoteose do
sensível. São as minhas orelhas e os meus olhos que são convocados à festa, ainda que,
evidentemente, eu aí esteja inteiramente presente: em mim, a consciência que dá e exige o
sentido não poderia ser deixada no vestiário, faz parte do espetáculo.
38
36
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 432.
37
PITA. António Pedro. Presença, representação e sentimento configuração da experiência estética segundo
Mikel Dufrenne. In: Revista filosófica de Coimbra, número 7, volume 4 (1995). p. 135. O grifo consta do
original. A citação foi registrada conforme indicação do autor.
38
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 41.
96
Denotando a raiz corpórea do sentido, no nível da presença, portanto, o objeto estético se
manifesta ao corpo, sendo por ele captado, em sua unidade. Mas, o sentido aqui está ainda no
nível do pré-reflexivo, do vivido, permanecendo como um sentido para o corpo. E, como
esclarece Dufrenne, “não podemos fazer permanecer toda a percepção sensível no nível do
pré-reflexivo. É preciso passar do vivido ao pensado, da presença à representação.”
39
Daí
existir um segundo momento da percepção estética: a representação.
Advertidos quanto a o haver um trânsito definitivo da presença à representação ou ao
sentimento, mas uma possível oscilação permanente entre todos aqueles momentos da
percepção, tratemos agora, em separado, da representação.
4.4 Momento da representação: papel mediador da imaginação
No nível da presença, sujeito e objeto formam uma totalidade, sem rupturas ou cisões, pelo
que não é possível então falar de pensamento. O trânsito do vivido ao pensado se torna
possível pela mediação da imaginação.
O objeto deve, antes, se tornar representado, gerando-se a distância necessária para que,
vencida a imediatidade bruta da presença, se torne um objeto para o pensamento. Cabe, então,
à imaginação o papel de mediar a passagem da presença à representação fazendo, de alguma
forma, a ligação entre o espírito e o corpo: ela é poder de fazer ver ou de fazer pensar em que
se enraíza no corpo, portanto, não se abdicando mas, ao contrário, se alimentando do vivido
pelo corpo. Por isto, pode-se afirmar que, na representação, enquanto esta é um plano
39
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 432
97
superior da percepção, o corpo não está ausente, já que aqui se herda o que ele
experimentou. Na verdade, enquanto lugar de indeterminação, o corpo esboça por si mesmo o
movimento que nos faz passar a outro plano superior: o da presença do objeto enquanto
representado.
40
Quanto ao estatuto da imagem, representação do objeto mediada pela imaginação, escreve
Dufrenne “a imagem, que é ela própria um metaxu entre a presença bruta, em que o objeto é
sentido, e o pensamento, em que ele se torna idéia, permite ao objeto aparecer, quer dizer
estar presente enquanto representado”.
41
Ao atribuir papel desta ordem à imaginação,
afirmando-a como instância mediadora entre o vivido e o pensado, Dufrenne se posta ao lado
de uma longa tradição filosófica.
42
Muito embora existam sob a forma da unidade, podem ser identificados na imaginação um
duplo aspecto: o empírico e o transcendental. A imaginação, como um todo, é poder de
visibilidade. Em seu aspecto transcendental a imaginação abre um campo em que um dado
pode aparecer”. Em seu aspecto empírico, escreve Dufrenne:
A imaginação povoa esse campo, sem multiplicar o dado, mas suscitando imagens suas
que são um quase-dado, que não é propriamente visível mas que nos põem no caminho do
visível e que não deixam de apelar à própria percepção para dela receber uma
confirmação decisiva.
43
40
As expressões grifadas são utilizadas por Dufrenne. Como se vê, a representação abre espaço para o
distanciamento necessário entre sujeito e objeto, isto é, cria condições para que possa surgir uma relação
intencional. Este espaço, na verdade, é preparado pelo próprio corpo que, como sugestivamente se expressa
Dufrenne, “mima as condições sob as quais o objeto pode ser pensado e situado em um mundo.” Acerca das
idéias e expressões objeto desta nota ver, muito especialmente, DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de
l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. pp. 432-433 e passim.
41
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 432.
42
Sobre a tese subscrita por Dufrenne, segundo a qual cabe à imaginação ser uma instância mediadora, bem
como sobre a longa tradição filosófica na qual, ao assim proceder, o autor se insere, ver o bem elaborado artigo
escrito por Casey, que apareceu em uma coletânea de textos publicada em homenagem a Dufrenne: CASEY, Ed.
L’imagination comme intermédiaire. In: AA.VV. Vers une esthétique sans entraves Mélanges offerts à Mikel
Dufrenne. Paris: Union Génerale d’Éditions, 1975. pp. 93-113.
43
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 436.
98
Enfim, a imaginação, vista em seu aspecto transcendental, faz com que um dado se torne
possível e, empiricamente, faz com que o dado tenha um sentido, enriquecendo-o com seus
possíveis. Contudo, o enriquecimento empiricamente veiculado pela imaginação não se
distancia do dado, é um quase-dado, tem sua raiz no nível da presença, da percepção pré-
reflexiva, devendo ser por ela confirmado.
Sobre o relacionamento que se verifica entre os dois aspectos da imaginação, explicitamente
denotando os compromissos assumidos com a tradição filosófica, mormente com Kant e
Heidegger, afirmou Dufrenne:
É com o surgimento do espaço e do tempo que se produz o evento da representação. De
acordo com Kant, e segundo a lição de Heidegger, nós o atribuímos à imaginação
transcendental. Quanto à imaginação empírica, ela prolonga este processo e converte a
aparência em objeto. O transcendental prefigura e torna possível o empírico: ele exprime
a possibilidade que tem certa representação de ser significante e de se integrar à
representação de um mundo.
44
Permanece o corpo como raiz da imaginação, como condição de possibilidade da
representação e do pensar. Neste aspecto, é retomada a lição de Hume, corrigindo-se o “pré-
juízo sensualista que o inspira” já que, continua Dufrenne, é preciso dar:
Todo seu sentido ao hábito, fazendo dele não o meio de associar mecanicamente as
idéias, mas o órgão de uma intimidade e, de acordo com a etimologia, a matriz do objeto
ainda corporal. Assim, a imaginação mobiliza os saberes, o de modo a tomar a
iniciativa de uma evocação da qual poderia sempre assombrar-se com a oportunidade, é
seguindo o fio de uma experiência anterior que foi feita pelo corpo, por sua própria conta,
no plano da presença. De forma que a função essencial da imaginação é converter o
adquirido em visível, de o conduzir à representação.
45
A evocação de saberes anteriores, mediada pela imaginação, não comparece na percepção
como suplemento de informação que se acopla, de fora, ao percebido, nem “como uma glosa
acrescentada ao texto, eles estão ali como o sentido mesmo do objeto percebido, dados com
ele, nele. É esta proximidade do saber que nós atribuímos à imaginação, porque o saber assim
44
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 435.
45
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 436.
99
integrado deve ser chamado imagem.”
46
E, para exemplificar o papel da imaginação,
enquanto instância que, na percepção, promove a atualização de experiências anteriores,
prossegue Dufrenne:
Eu sei que a neve é fria, isto é, que eu posso atualizar a lembrança da experiência que fiz
daquela frialdade, mas quando eu vejo a neve, ele me aparece fria sem que eu opere esta
atualização. Isto quer dizer primeiramente que o frio não é conhecido por alguma
inferência que lembraria o saber do frio, e que ele tampouco é sentido como, por
exemplo, a brancura é vista (...). Esta espécie de presença imediata, não conceitual e,
portanto, não sensível, é a “imagem” do frio que escolta a percepção da neve e a torna
eloqüente: o saber é convertido em uma presença abstrata e, no entanto, real do sensível
que se anuncia sem se entregar.
47
Deste modo, como bem observou António Pedro Pita, “a imagem partilha uma dupla
condição: não é sensível, porque consiste numa atualização de experiências anteriores, mas
também não é conceitual, porque traduz um saber que não é colhido numa tematização do
próprio objeto.”
48
A imagem não se distancia totalmente do dado, sendo sua atualização
abstrata, é um quase-dado. Contudo, ela também não é da ordem do conceito, não é uma mera
idéia do objeto que representa. Está a meio termo entre o sensível, herança da vivida pelo
corpo no nível da presença e o pensado, fruto da ação do entendimento.
O que torna possível o desempenho da tarefa da imaginação é o a priori da sensibilidade, “em
que o objeto poderá tomar forma”. Nasce uma distância, que permite pensar o objeto, quando
se sai da imediatidade da presença, colocando-o diante de si, o que só é possível se se
considerar a existência de um vazio, que permite a separação do que é imediatamente vivido
daquilo que é pensado. Tal necessária distância tem como condição de possibilidade o espaço
e o tempo, a priori da sensibilidade. Aqui, nota-se, uma vez mais, a ressonância da leitura
46
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 437.
47
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 437.
48
PITA. Antônio Pedro. A experiência estética como experiência do mundo. Coimbra: Faculdade de Letras,
1995. p. 171.
100
dufrenniana de Kant. Aliás, releitura crítica, que Dufrenne inovará ao defender a existência
também dos a priori, da afetividade, tema ao qual, mais adiante, voltaremos.
Convém citar, embora longa, uma passagem da Phénoménologie que se refere a este ponto
crucial, ou seja, ao vazio aberto pelo a priori da sensibilidade, tornando possível a construção
de uma distância garantidora do trânsito para o pensamento, precisamente ao permitir que a
opacidade da presença imediata seja vencida, em favor de um outro nível superior da
percepção. Sobretudo, aqui, ressoa a influência de Kant, vez que também Dufrenne atribui à
imaginação transcendental o surgimento do espaço e do tempo. Eis a passagem:
O espaço é contemporâneo do tempo. Simboliza-o imediatamente: esta abertura que cria
o recuo, define o espaço; o espaço é este meio onde o outro pode aparecer logo que me
retiro para mim mesmo, e é por isto que qualquer alusão à alteridade recorrerá a
metáforas espaciais. A temporalidade não constitui ainda senão a relação de si a si
constitutiva de um eu, e é com o favor do espaço que a aparência pode aparecer, e que
alguma coisa como o ver é possível: toda imagem está sobre o fundo do espaço; eu
contemplo do seio do passado o que está no espaço, e se eu posso a partir daí seguir o
movimento do tempo, estar à espera do futuro e antecipá-lo, é porque o espaço contém
em si, de algum modo, este futuro: está sempre aí e este sempre, inscrito em si, compensa
o não mais ou o ainda não da temporalidade; e se ele é a condição, ou antes a
característica de todo o representado enquanto dado, atesta também que o dado é sempre
aparência, e que ele está sempre imperfeitamente dado, e que resta sempre um algures
ou um além. O espaço nascido do movimento para o passado faz apelo ao futuro. E na
dialética do espaço e do tempo desenha-se a dialética do objeto e do sujeito.
49
Conclui-se, então que a imaginação representa a antinomia da condição humana, postando-se,
a um só tempo, como próxima ao vivido pelo corpo – devendo a ele se reportar para
confirmar as possibilidades que aventa para o objeto bem assim apresenta-se como próxima
ao pensado pela ação do entendimento, mas que ainda não é uma reflexão totalmente acabada
vez que “a reflexão que pode então se instituir sobre o objeto percebido pode tender para o
sentimento, segundo um movimento que será característico da experiência estética.”
50
A
imagem é isto: algo representado, a meio caminho entre natureza e espírito, ou, como
49
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. pp. 434-435.
50
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 461.
101
magistralmente concluiu Eunice Pinho, “fica assim situada a meio termo entre a presença
bruta em que o objeto é experimentado e o pensamento onde se forma a idéia o objeto está
presente não na sua carnalidade, embora a experiência desta, longe de a apagar, seja a
herança que entretece a representação”.
51
Embora deva ser admitida uma distinção entre imaginação e percepção esta não poderá ser
levada a extremos, vez que a imaginação mantém suas raízes no dado, antecipando o real,
vislumbrando seus possíveis. Não é, como para Sartre um poder negativo de irrealização,
uma irrealização do real que pode ser vista como uma sua antecipação, como um retorno ao
dado, em uma de suas maneiras possíveis. Salientando estas diferenças, o que implica na
formulação de críticas à concepção sartreana da imaginação, escreve Dufrenne:
A irrealização é somente uma função parcial, e Sartre toma a parte pelo todo. Imaginar é
antes de tudo abrir os possíveis que, além do mais, nem sempre vão se realizar em
imagens. Sem dúvida a imaginação se distingue da percepção, mas como se distinguem o
possível e o dado, e não o real e o irreal: a imaginação não produz senão a possibilidade
de um dado, ela reproduz; ela não fornece o conteúdo enquanto percebido, mas ela faz
com que certa coisa apareça. Seu correlato é o possível, e é precisamente por isto que ela
pode sempre exceder: no reino do possível tudo é possível.
52
Assim como em seu funcionamento normal, no caso da experiência estética, esta
possibilidade que sempre ameaça a imaginação, no sentido de exceder, de se deixar levar, de
derivar para longe do dado, deve ser contida. Deste modo, quando a imaginação “funciona
normalmente e, sobretudo, quando opera esteticamente, o possível constitui um pré-real, não
51
PINHO, Eunice. A arte ou a paixão da origem: uma leitura da estética de Mikel Dufrenne. Coimbra:
Faculdade de Letras,1993. p. 29. Citação registrada de acordo com a indicação da autora. Adaptou-se a
ortografia à norma culta do português do Brasil. Os grifos foram conservados tal como aparecem no texto
original.
52
Na passagem comparece a expressão s’émballer, em referência à possibilidade de que a imaginação se deixe
tomar pelo entusiasmo, prefigurando o real de forma menos fiel ao dado. Preferiu-se a tradução daquela
expressão por exceder, por nos parecer mais apropriada para significar o risco que sempre corre a imaginação de
derivar para lugares distante do dado. Recorde-se apenas que a variação aqui seria, por assim dizer, de grau, vez
que à imaginação sempre resta como possibilidade arriscada inventar “um mundo inédito que a experiência
desmentirá”. Conferir DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF,
1953. p. 446.
102
cessando a imaginação de ir ao encontro do real, e de ultrapassar o dado em direção a seu
sentido”.
53
Vê-se que, na percepção estética, o papel da imaginação é menos importante. Aliás, seu
estatuto aí se altera, em outras palavras, conserva-se sua função transcendental, pois ela cria a
possibilidade da instauração de uma distância que vence a proximidade da presença. Contudo,
a exigência da fidelidade à obra, bem como ao mundo que ela é, requer que a imaginação não
os enriqueça com elementos que lhe sejam externos, embora possíveis, devendo ser
minimizado o aspecto empírico da imaginação, aquele que povoa o campo aberto das
possibilidades perceptivas.
Comparando as diferentes funções desempenhadas pela imaginação, uma na percepção
ordinária, outra diversa na percepção estética, Dufrenne esclarece:
Parece que a imaginação empírica, que completa e anima a percepção ordinária, seja mais
reprimida que suscitada na percepção estética e que, desta maneira, seus desvios são ali
evitados. Por quê? Em uma palavra, porque o espetáculo dado pelo objeto estético basta a
si mesmo e não tem necessidade de ser reforçado; a imaginação pode suscitar a
percepção, ela não deve enriquecê-la. Primeiro, com efeito, o objeto estético alcança seu
sentido antes daquilo que ele representa, isto é, de um real que, enquanto tal, não tem
necessidade de ser comentado pela imaginação.
54
Embora se observe, no início desta citação, certa cautela, ou moderação nas afirmações com
efeito, diz-se parece que ... – Dufrenne sempre insistirá neste fato: “o objeto representado pela
arte não reenvia a nada de exterior: ele não está em um mundo, ele constitui um mundo, e este
mundo lhe é interior”.
55
Eis porque, na percepção estética, a imaginação empírica, longe de
ser incentivada, deve ser contida, vez que aqui não se faz necessário qualquer aporte externo
que pudesse vir a acrescentar possibilidades ao objeto estético. Ele já traz consigo – Dufrenne
53
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 446-447.
54
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. pp. 448-449.
55
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 449.
103
diz constitui um mundo que se basta. O espectador deve, para fazer justiça à obra,
transmutando-a em objeto estético, ser fiel à fulguração que brota do sensível, controlando os
riscos de desvios que a imaginação comporta.
A aparição do objeto estético não deve ser completada, a obra quer, como se falou, que o
espectador nela se perca, comprometendo-se com o mundo que ela porta. Na percepção
estética, temos que perceber somente aquilo que nós percebemos, sem inserções,
modificações, correções... De forma esclarecedora, continua Dufrenne:
Se Cézane coloca a garrafa de forma oblíqua, não temos que a endireitar; se Renoir faz
‘desaparecer’ os cabelos de uma mulher no fundo do quadro, a ponto de as fronteiras se
tornarem indiscerníveis, não temos de as traçar, como se tivéssemos de pintar o retrato.
(...) Toda a tarefa da imaginação é então de apreender este objeto na aparência, mas sem
lhe substituir por um objeto imaginário mais verdadeiro, de que seria o analogon.
56
Por ser um quase-sujeito, o objeto estético se exprime, faz aparecer de si o que lhe é interior e
o constitui enquanto tal, não é exigida do espectador qualquer ação que devesse ser
direcionada, em seus possíveis, pela imaginação.
Em fim, na percepção estética, é recusado um papel mais efetivo à imaginação, pelo menos
em seu aspecto empírico e, que não é possível eliminar a imaginação
57
deve ser esta
vigilantemente controlada para que não derive, distanciando-se do mundo do objeto estético,
nele inserindo contextos exteriores e portanto, não lhe pertencem. É neste sentido que
Dufrenne anuncia que “o objeto estético é tanto mais respeitável quanto o seja um pretexto
para imaginar.”
58
56
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953 p. 458.
57
Sobre ser a imaginação uma espontaneidade anterior ao conhecimento, resolvendo-se como um saber corporal,
ver os desenvolvimentos contidos no artigo La sensibilité géneratrice, em DUFRENNE, Mikel. Esthétique et
philosophie. Vol. I. Paris: Editions Klincksieck, 1976. pp. 66s.
58
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p.
104
Por condensar, de forma clara e precisa, as razões que conduziram Dufrenne a esta
compreensão do papel da imaginação na experiência estética, merece ser lembrada uma
passagem da obra de António Pedro Pita:
A imaginação abre o campo de possíveis, alarga o real. Mas não é necessária na
percepção estética. É-lhe mesmo prejudicial: o objeto estético não remete para o exterior
de si e, portanto, ao contrário da percepção vulgar para a qual compreender um objeto é
integrá-lo no mundo de objetos a que pertence, a percepção estética responde unicamente
à unicidade do mundo que o objeto estético lhe propõe. A percepção estética reprime o
exercício da imaginação acerca do objeto estético: para que, precisamente, a necessidade
deste mundo não seja confrontada e relativizada com a emergência de outros mundos
possíveis.
59
Por fim, analisando o tratamento concedido à imaginação que, na Phénoménologie, conserva
sempre um papel de intermediário entre o corpo e o espírito, o vivido e o pensado, bem assim
a recusa, na percepção estética, de seu caráter empreendedor sobretudo esta recusa –
comparece como acertada a conclusão de Eunice Pinho para quem nesta recusa “está
imbricada a crítica a uma concepção de arte como representação ou mimética da realidade.”
60
Para disciplinar – Dufrenne dirá corrigir – a imaginação é necessária a intervenção do
entendimento, este poder de regras pelo qual o objeto representado torna-se objeto para um
eu penso.”
61
Mais, é pelo sentimento que a imediatidade da presença haverá de ser
recuperada na percepção estética, não agora como uma presença pura, bruta, do objeto
estético, mas aquela que atravessou a mediação da expressão.
Vejamos, então, o momento da percepção estética que envolve a reflexão e o sentimento, com
o que se completa a análise dos três momentos nela implicados.
59
PITA. Antônio Pedro. A experiência estética como experiência do mundo. Coimbra: Faculdade de Letras,
1995. pp. 176-177.
60
PINHO. Eunice. A estética de Dufrenne ou a procura da origem. In: Revista Filosófica de Coimbra. 6 -
1994 (pp. 361-396). p. 372. Artigo referenciado conforme indicação da autora.
61
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 464.
105
4.5 Momento do sentimento: culminância da experiência estética e anúncio de sua
significação ontológica
No nível da presença, a união entre sujeito e objeto é dada na imediatidade. A proximidade de
um e outro faz com que haja aqui uma opacidade, onde não há ruptura, não há distanciamento
e, por conseguinte, não pode haver algo mais que o dar-se da presença. A experiência estética
não tem aqui seu ponto final. Exige-se, ainda, o trânsito do vivido ao pensado, o que não se dá
a não ser em outro nível: a representação.
No nível da representação, por força da imaginação - que comparece como um poder de
visibilidade, vencendo a opacidade da presença -, se transpõem os limites do dado, do vivido,
abrindo-se a distância necessária para que o objeto se deixe representar, se mostre como
imagem. Contudo, ao contrário do que ocorre na experiência ordinária, em que a função
empírica da imaginação permite o enriquecimento da percepção – ao abri-lhe vários possíveis,
enquanto antecipação do real - na experiência estética, a imaginação comporta maiores riscos
de deriva de sentido, vez que o objeto estético é um espetáculo que se quer pronto, visível por
si mesmo, em que o espectador tem apenas que se engajar, ou melhor, perder-se, alienar-se. A
obra de arte quer do espectador uma percepção fiel a seu mundo.
Isto não significa que a imaginação possa ser banida da experiência estética, ela é uma
espontaneidade intransponível. Aqui sua função transcendental permanece íntegra: é por ela
que se constitui a percepção da obra no tempo e no espaço. O distanciamento por ela aberto
consiste nisto: criar as condições de possibilidade de representação no tempo e no espaço.
106
Mas a percepção estética não tem na representação sua última palavra, isto porque “é a obra
que solicita ... uma reflexão sobre o que ela significa: ela é uma aparência da qual é preciso se
dar conta, ela tem um assunto que quer ser compreendido.” E, continua, Dufrenne, propondo
que a pergunta – o que quer dizer? - sempre se anuncia na obra:
Que quer dizer o deus grego, com este sorriso distante que exprime menos a alegria
daquele que venceu os Titans do que a apreensão daquele que pressente, no horizonte da
história, a vinda de Cristo? Que quer dizer tal poema em que as palavras são tão simples,
tão límpidas, tão acolhedoras, palavras cotidianas e que, bruscamente, se tornam
insólitas? (...) Que quer dizer este amarelo que retumba como uma fanfarra em um quadro
de Van Gogh?
62
Na experiência estética, o sentido - que se de forma opaca na presença e deve transpor a
representação tem seu último acesso garantido pelo sentimento, mas nele não se pode
engajar, verdadeiramente, antes de ter atravessado a prova da reflexão.
É preciso, contudo, uma especial cautela: o sentido se anuncia na obra, a reflexão deve
coibir qualquer procura de sentido que lhe seja exterior. O objeto estético, isto é a obra
esteticamente percebida, não pode reenviar para um sentido que não lhe seja congênito, que
não nasça com o seu advento: a obra não se reduz a suas circunstâncias exteriores, nem
necessita de tradução em uma outra linguagem, diz de si o que efetivamente quer dizer. Isto
porque, como esclarece Dufrenne:
A obra, traduzida em uma outra linguagem, reduzida a suas circunstâncias exteriores, é
negada naquilo que ela tem de específico. Ela foi abandonada, e não é mais possível
reencontrá-la a partir do que não é mais ela; ela não é mais que um objeto natural, que
não tem um sentido em si mesmo, mas uma história da qual ela é o produto. É preciso
orientar de forma diversa a reflexão para reencontrá-la e lhe conceder, de novo, o
privilégio essencial de se bastar a si mesma e de trazer em si seu sentido.
63
Explicitamente se referindo a Kant sobretudo ao fato de ter ele pensado uma distinção entre
juízos determinantes e reflexionantes - Dufrenne aponta a existência de duas formas de
62
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 485.
63
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 488.
107
reflexão: uma que separa, outra que adere. Separa ou adere o sentido da obra à própria obra,
percebendo-a ou não esteticamente, conforme o caso.
Isto é, a primeira forma, na medida em que busca o sentido da obra fora dela - na história que
envolve sua realização ou, de qualquer modo, em circunstâncias que lhe são exteriores,
separa o espectador da obra e de seu sentido estético. Em outras palavras, torna a obra um
objeto qualquer, submetendo-a a uma reflexão objetivante.
Ao contrário, a segunda forma, que conduz à compreensão do sentido estético da obra, é uma
reflexão em que se adota uma nova atitude acerca do objeto. Não aqui objetivação ou
pensamento dominador, que submeteria a obra aos ditames inflexíveis do sujeito. Isto porque:
Pela reflexão que adere, eu me submeto à obra em lugar de a submeter a mim, eu a deixo
depositar seu sentido em mim. Eu não a considero mais, inteiramente, como uma coisa
que é preciso conhecer através da aparência, de forma que a aparência jamais valeria ou
significaria por si mesma, segundo a atitude da reflexão crítica; mas, ao contrário, como
uma coisa espontânea e diretamente significante, mesmo que eu não possa cercar esta
significação: um quase-sujeito. E é porque ele se refere assim, em segredo, à expressão
que nós veremos a reflexão simpática culminar no sentimento.
64
A distinção entre as duas formas de reflexão, a que separa e aquela que adere, esta última
também chamada reflexão simpática, portanto, se funda em uma diferença de atitude. A
primeira não guarda fidelidade à obra ao indagar sobre seu sentido partindo do que lhe é
exterior, ao contrário na segunda, fidelidade ao que a obra diz de si mesma, que “tudo
que eu digo da obra, digo-o na tentativa de lhe ser fiel, procurando nela a razão do que ela é.
Assim, se eu penso ainda em uma gênese, é agora como auto-gênese: compreender a obra não
é mais descobrir o que a produz, mas como ela mesma se produz e desdobra.”
65
64
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 488.
65
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 488.
108
Em razão da noção de quase-sujeito, que se aplica ao objeto estético, compreender
esteticamente a obra, é um analogon da compreensão da alteridade.
66
Pela reflexão simpática
reconhece-se a proximidade - a familiaridade, a co-substancialidade existente entre sujeito e
objeto, permitindo-se o acesso ao sentido por meio da participação, isto é, “à condição de que
muito nos indentifiquemos com o objeto, para reencontrar em nós este movimento pelo qual
ele é ele mesmo.”
67
Acima, ainda neste tópico, foi dito que a reflexão simpática culmina no sentimento, sendo por
ele inspirada.
68
Resta explicitar de que ordem seria este sentimento, se se identificaria com a
emoção provocada pela obra, se escaparia ou não a um subjetivismo de raiz, enfim, como ele
se presta a revelar o sentido do objeto estético.
Antes é preciso retomar alguns pontos acerca do papel do entendimento. A percepção estética
reprime a imaginação e também a percepção ordinária se coloca em guarda contra os
possíveis desvios que esta comporta. A quem caberia a tarefa de disciplinar, num e noutro
caso, a imaginação, corrigindo-a, controlando sua capacidade de desarranjar? Por certo, o
entendimento.
69
Assim, o caminho da percepção, passando da presença à representação e
66
Neste passo, ou seja, acerca do modo de ser da compreensão da alteridade, Dufrenne faz referência à temática
da assimilação do outro, tal como pensada por Husserl e, ainda, à lição, segundo ele, trazida pela
Fenomenologia de Hegel e pela Dinâmica Social de Comte, segundo a qual “eu resumo e trago em mim a
humanidade.” Assim, compreender seria uma espécie de lembrar de ter sido, seguir o objeto para reencontrá-lo.
Embora se esforce para gizar as diferenças, com isto, Dufrenne adere ao que de essencial nas lições a que se
refere: na compreensão deve ser suposta uma semelhança, um parentesco, entre o ser daquele que compreende e
aquele do compreendido. Dito de outro modo, agora pelo próprio Dufrenne: “mas este engajamento do eu no
conhecimento do outro não deve talvez se compreendido somente nas perspectivas transcendentais da
intencionalidade: o outro não existe apenas ao termo de uma modificação intencional de minha visada, mas ao
termo de uma conversão de meu ser.” Enfim, sujeito e objeto, na percepção estética, mutuamente se imbricam,
sabendo-se que nela o sujeito coloca-se também em questão. Então, a relação entre sujeito e objeto deve ser
pensada a partir de uma co-substancialidade entre os dois existente. Acerca de tudo quanto foi dito nesta nota,
inclusive como fonte das citações literais do texto de Dufrenne ver, em especial, DUFRENNE, Mikel.
Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. pp. 489-492.
67
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 488.
68
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 523.
69
Acerca do papel do entendimento ver, em especial, a seção primeira do terceiro capítulo - DUFRENNE,
Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. pp.462s.
109
desta à reflexão é permeado pelas ameaças a ele trazidas pela imaginação, contra as quais o
entendimento deve se colocar em estado de alerta.
Partindo de Kant
70
, é nos juízos ditos reflexivos ou reflexionantes que Dufrenne verá a
possibilidade de construção de juízos estéticos que, efetivamente, levem a cabo a reflexão
simpática, isto é, aquela que se detém no objeto para nele encontrar seu sentido, o que
somente se se a relação entre sujeito e objeto for pensada como se entre eles houvesse uma
profunda co-substancialidade. Convém, sobre este ponto crucial, ouvir o próprio Dufrenne:
Segundo o juízo reflexivo, estabeleço com o objeto uma relação mais íntima do que no
juízo determinante; o me contento em ordenar as aparências ou em registrar as
significações que me são propostas pela imaginação, verifico este ‘acordo da natureza
com a nossa faculdade de conhecer’, que Kant exprime pelo princípio da finalidade. Esta
afinidade, que se manifesta entre a natureza e o eu, não é somente compreendida por
reflexão, é experienciada, particularmente, na experiência estética, numa espécie de
comunhão entre o objeto e eu. E esta comunhão é uma via de acesso ao sentimento.
71
Como se vê, a co-substancialidade entre sujeito e objeto, este acordo entre um e outro, esta
comunhão dá acesso ao sentimento, em que culmina a experiência estética, vez que “a
conversão do dado em inteligível não pode necessariamente ser a última palavra”.
72
um
70
É explícita a referência de Dufrenne a Kant. Embora não sejam citados muitos textos kantianos, o nome de
Kant sempre é referenciado, numa clara reapropriação. Sobre o papel do entendimento a herança kantiana aceita
por Dufrenne é aquela trazida pela Crítica da Faculdade do Juízo, em que se colhe a significativa distinção entre
juízo determinante e juízo reflexionante. Apenas para recapitular estas noções, eis uma passagem desta obra em
que comparece a distinção sob comento: “a faculdade do juízo em geral é a faculdade de pensar o particular
como contido no universal. (...) A faculdade do juízo determinante, sob leis transcendentais universais dadas
pelo entendimento, somente subssume; a lei lhe é indicada a priori e, por isto, não sente necessidade de pensar
uma lei para si mesma. (...) que existem tantas formas múltiplas da natureza, como se fossem outras tantas
modificações dos conceitos da natureza universais e transcendentais, que serão deixados indeterminados por
aquelas leis dadas a priori pelo entendimento puro (...), que para tal multiplicidade têm de existir leis, as quais na
verdade, enquanto empíricas, podem ser contingentes, segundo a nosso perspiciência intelectual. Porém se
merecem o nome de leis (...) têm de ser consideradas necessárias e provenientes de um princípio de unidade do
múltiplo, ainda que desconhecido. A faculdade do juízo reflexiva, que tem a obrigação de elevar-se do particular
na natureza ao universal necessita, por isto, de um princípio que ela não pode tirar da experiência. (...) Por isto,
a faculdade do juízo reflexiva pode dar a si mesma um tal princípio como lei e não retirá-lo de outro lugar.”
(KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1992. pp. 60-62). Um
aspecto do pensamento kantiano, em particular, muito interessou a Dufrenne: a pressuposição de uma ordem
reconhecível na natureza, ou da conformidade entre esta e nossas faculdades de conhecimento.
71
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 468.
72
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953 p. 468.
110
saber que não é da ordem do domínio, do ter
73
, mas da ordem da comunhão do acordo, da
cumplicidade entre o dado e o pensado, a experiência estética se insere neste diapasão.
Deste modo, o conhecimento estético não é objetivante
74
, antes indica, e mesmo supõe como
sua condição de possibilidade, um acordo originário entre homem e mundo, alimenta-se deste
acordo essencial, culminando no sentimento, sabendo-se que este tem também uma função
noética. É este acordo que torna possível falar de uma dimensão metafísica. E aqui chegamos
a um ponto a ser salientado, tendo em vista os objetivos desta pesquisa.
Para Dufrenne, a percepção não deve se dirigir ou se comprometer com “o campo das
significações puramente objetivas que consagram o nosso poder e a nossa indiferença”.
75
Antes, evitando este campo, pode a percepção se engajar em outra via e, pelo sentimento, seu
ápice, ter acesso a uma realidade e sentido sobre os quais não temos domínio, e nisto
consistirá seu caráter ontológico.
Se é verdade que, no nível da representação, a percepção tende ao ter, ao domínio, à
objetivação, não é menos verdade que ela pode escapar destes desenvolvimentos vez que,
enraizando-se sempre na experiência da presença, é possível, então, que ela para ali retorne,
alimentando-se de um novo e distinto imediato, que já não é o imediato da presença. Tal novo
imediato é o sentimento.
73
Refere-se Dufrenne a este vocábulo tomando-o na acepção a ele conferida por G. Marcel e, citando este autor,
registra, ainda que, pode-se dificilmente contestar que, no nível da representação, o conhecimento não tenda a
se inscrever no registro do ter: este movimento de ‘deslocamento, ruptura provisória e reconhecida como espécie
de uma certa aderência’. Conferir DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II.
Paris: PUF, 1953. pp. 468-469.
74
Em linhas gerais, contudo sem referência explícita, parece ressoar aqui a lição heideggeriana que aponta para
os limites do conhecimento desta ordem, objetivante. Isto porque, para Dufrenne, a percepção não deve se dirigir
para ou se comprometer com o campo das significações puramente objetivas.
75
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 471.
111
Assim, antes de traçar o estatuto do sentimento, deve ficar assentado: é por ele, esta forma de
conhecimento em que culmina da experiência estética, que se abre uma via de acesso à
significação profunda que esta comporta ou, se se quiser, abre-se uma via de acesso a sua
significação ontológica. Sabe-se que este acesso é restrito, indicado, tarefa infinita, vislumbre
que não se vê pronto, promessa de sentido, que poderia ser sempre mais esclarecido à luz de
uma filosofia da Natureza. Esta sim poderia dar conta da afinidade, melhor da co-
substancialidade entre homem e mundo. Esta perspectiva funda a possibilidade de se falar em
uma significação ontológica da experiência estética e, porque ela é exemplar, abre-se também
a possibilidade de se afirmar a mesma significação ontológica para qualquer encontro do
homem como o mundo, que lhe é co-substancial.
Alcançado o lugar do sentimento como culminância da experiência estética, é preciso, agora,
ver mais de perto o seu estatuto, apontando em que medida ele exerce uma função noética,
como se distingue da emoção e, ainda, como recupera a imediatidade, sem ser simples retorno
à presença.
O sentimento transforma o ver sem o anular, inaugura uma nova relação com o ser que, em
absoluto, não suprime a representação e tampouco volta pura e simplesmente à presença: é um
novo imediato.
76
três razões que justificam a distinção entre o imediato da presença e este novo imediato
que é o sentimento.
Em primeiro lugar, porque num e noutro caso, o objeto é diverso, já que o sentimento:
76
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 469.
112
Revela uma interioridade, ele nos introduz em uma nova dimensão do dado. Ele o é
somente um estado ou um modo de ser do sujeito; é um modo de ser do sujeito que
responde a um modo de ser do objeto, está em mim como o correlato de uma certa
qualidade do objeto, pela qual o objeto manifesta sua intimidade - talvez fosse melhor
dizer: a ressonância em mim (...). Ele revela o ser não somente como realidade mas como
profundidade.
77
Comentando esta importante passagem, bem observa Eunice Pinho:
Não deixa de ser significativo que Dufrenne mostre, ainda que o faça entre parêntesis,
uma certa desconfiança face ao termo “correlato”- pela sua conotação idealista e o
pretenda substituir por ressonância. É que a relação que se estabelece entre sujeito e
objeto é algo diverso de uma relação de domínio do primeiro relativamente ao segundo; o
sujeito da experiência estética não é o sujeito constituinte da fenomenologia na sua
vertente idealista a linguagem da intencionalidade aplicada ao sentimento enfraquece
talvez o que precisamente há nele de sofrido’.
78
Assim, a imediatidade da presença é bruta, opaca, sem visibilidade. Na representação, por
obra da imaginação, se introduz a distância que permite ver o dado que se entrega no nível da
presença. Fundando-se no que pretende superar, o sentimento abre a interioridade do dado, a
imediatidade aqui é outra: atinge o dado para torná-lo interiormente visível. Isto é possível em
razão do acordo entre o modo de ser do sujeito e o modo de ser do objeto, acordo revelado
pelo sentimento.
Em segundo lugar, o sentimento implica uma nova atitude do sujeito, colocando-o também
em questão. Isto porque, “com aquilo que ele me revela é necessário que eu me coloque de
acordo, respondendo à profundidade pela profundidade, porque não é mais questão de ampliar
meu ver, mas de ouvir uma mensagem.” Então, concluirá Dufrenne, “sentir é, de algum modo,
transcender.”
79
O sujeito, ao tentar ouvir uma mensagem, precisamente aquela manifestada
pelo objeto estético, coloca à prova sua capacidade de fazê-lo, comprometendo-se a julgar a
autenticidade daquilo que sente.
77
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. pp. 469-470.
78
PINHO, Eunice. A arte ou a paixão da origem: uma leitura da estética de Mikel Dufrenne. Coimbra:
Faculdade de Letras, 1993. p. 47. Os grifos constam do original.
79
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 470.
113
Por uma terceira razão o sentimento se distingue da presença, sabendo-se que não é dialética a
passagem de um estágio a outro da percepção. Não é preciso que a percepção siga uma única
via, suprassumindo necessariamente o que lhe foi dado em cada um de seus estágios. Eis
porque, “o sentimento é uma outra direção na qual pode se engajar a percepção: nós
oscilamos da percepção ao sentimento segundo a espontaneidade da consciência, e sem que o
movimento seja constrangido por uma necessidade dialética.”
80
A oscilação a que Dufrenne
se refere é aquela possível da presença ao sentimento, que o sentimento é, ele também, um
nível da percepção.
A distinção entre o imediato do sentimento e o imediato de presença aparece, ainda, em razão
de aquele exigir duas condições para, plenamente, se realizar.
A primeira destas condições nos remete a uma certa renúncia ao domínio da aparência, que
conduziria ao conhecimento da profundidade, com isto renunciando-se a um conhecimento de
tipo objetivante, à jurisdição sobre a aparência. De fato, este conhecimento apenas se resolve
no nosso poder ou na nossa indiferença, enfim não nos toca em profundidade. Como explica
Dufrenne:
A imaginação, enquanto ela nos instala e nos mantém apenas no plano horizontal da
representação, deve ser reprimida, o que não significa outra coisa senão que seria preciso
renunciar a perceber a aparência, mas somente que a imaginação e mesmo o
entendimento o devem de forma alguma nos arrebatar no campo das significações
puramente objetivas.
81
A segunda condição para que o sentimento se realize plenamente nos coloca no cerne de um
movimento que deveríamos chamar ontológico. Aqui uma aquisição importante para os fins
desta pesquisa. É preciso, então, ouvir o próprio Dufrenne:
80
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 470.
81
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 470-471.
114
Na medida em que renunciamos a uma jurisdição sobre a aparência, nos abrimos a uma
outra realidade que deve ser experimentada do fundo de nós mesmos, em um movimento
que será preciso chamar ontológico. E a experiência estética nos mostrará que o
sentimento, em sua forma mais elevada, é um imediato que atravessou uma mediação,
não somente porque ele toca o plano da representação, mas porque também uma
reflexão sobre o sentimento pela qual o sentimento se completa e que, de alguma
maneira, está para o sentimento assim como a representação está para a presença. O
imediato do sentimento que é paralelo, embora não idêntico, ao imediato da presença, não
é todo o sentimento. O sentimento autêntico é um novo imediato.
82
Em suma: pelo sentimento se abre a possibilidade de acesso à intimidade do objeto estético.
Intimidade que, então, se apresenta como imediata, mas tendo suplantado uma mediação: a
representação. Isto é, o sentimento não é um imediato ingênuo, comporta uma reflexão sobre
si mesmo, o que é possível porque na representação se se manifestou uma cisão, uma
distância como potência de visibilidade.
O sentimento autoriza a afirmação de que uma significação ontológica da experiência
estética, senão por outra razão, pelo menos porque deixa entrever que um acordo
fundamental entre homem e natureza, sujeito e objeto, acordo que somente pode ser pensado
como um prius de toda experiência, de toda reflexão simpática. Este acordo deve apontar,
ainda, para um antecedente que o possibilita, um fundo de todos os fundos, que reuniria então
os componentes envolvidos nesta relação: homem e natureza.
Mas pensar o fundo é modo de dizer. O sentimento é da ordem do pathos, embora seja
também ele conhecimento. Ao logos se torna inacessível a construção de uma ontologia
precisamente por isto: é o sentimento que nos conduz apenas à afirmação de sua
possibilidade. Mas, ao mesmo tempo, impõe o reconhecimento de um limite: sendo um
82
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 471. O original
não contém os grifos.
115
imediato como traduzir, como mediatizar, o que o sentimento nos revela? Seria o logos hábil
para tanto, para expressar algo dele tão diverso? Levanta-se o problema da linguagem.
Salienta Eunice Pinho, o que nos parece acertado, que “colocada nestes termos, encontrando a
sua realização no sentimento, a experiência estética parece ter algo em comum com o modo
como Heidegger e Gadamer concebem a experiência em geral. Dir-se-ía existir nela um
‘pathos’ constitutivo, ou seja, o estigma da própria finitude do conhecer.”
83
Evidentemente, que a aproximação de Dufrenne, em relação a Heidegger é muito maior, mas
não deixa de ter algo em comum com a posição sustentada por Gadamer na medida em que,
para este, a historicidade é a marca de toda a experiência, sabendo-se que “a verdadeira
experiência é aquela na qual o homem se torna consciente de sua finitude. Nela, a capacidade
de fazer e a autoconsciência de uma razão planificadora encontram seu limite. (...) A
verdadeira experiência é assim experiência da própria historicidade.”
84
Também, para Dufrenne, é preciso reconhecer que a experiência não se inscreve nos limites
de um conhecimento objetivante, fruto exaurido de uma razão que a tudo planificaria, numa
relação de domínio.
A aproximação é ainda maior em relação a Heidegger. Muito embora, neste particular, ou
seja, em relação ao conceito de experiência, não compareçam no texto dufrenniano expressas
referências ao pensamento de Heidegger, em vários pontos importantes com ele converge
83
PINHO, Eunice. A arte ou a paixão da origem: uma leitura da estética de Mikel Dufrenne. Coimbra:
Faculdade de Letras, 1993. p. 48.
84
GADAMER. Hans-Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução
de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 467.
116
Dufrenne, indo na mesma direção. Por certo, esta convergência se com o último
Heidegger.
Fala-se, aqui, de um último Heidegger sem, contudo, adentrar na longa disputa travada na
historiografia filosófica sobre a existência, no pensamento heideggeriano, de uma virada. Seja
como for, mesmo que em gérmen nos primeiros escritos - aqueles gestados até o início da
década de 1930 -, nos escritos posteriores a este período, Heidegger enfatiza que, em atenção
à pergunta fundamental sobre o ser, cabe ao Dasein uma atitude de escuta, de acolhimento e,
no máximo, de tentar dizer poeticamente o que acolhe, ou melhor, deixar que o ser se diga na
linguagem. Esta a posição que nos parece essencial para Dufrenne: na experiência estética
um anúncio que precisa ser autenticamente acolhido, nela a Natureza se anuncia como fundo
originário mas, na medida mesmo em que refoge ao domínio do logos, pois é pelo sentimento
que a ela assentimos, não poderá ser por ele dita: apenas a palavra poética poderia deixar falar
a Natureza.
Na primeira das três famosas conferências, - aliás passagem também lembrada por Eunice
Pinho
85
– Heidegger esclarece o que entende por experiência:
Fazer uma experiência com o que quer que seja, uma coisa, um ser humano, um deus,
isso quer dizer: o deixar vir até nós, deixar que nos atinja, nos sobrevenha, nos derrube e
nos transforme. Nesta acepção ‘fazer’ não significa precisamente que nós efetuamos por
nós mesmos a experiência, fazer quer dizer aqui, (...), passar por, sofrer até ao extremo,
suportar, acolher o que nos atinge, submetendo-nos.
86
Acerca do conceito de experiência, eis os pontos de convergência mais explícitos entre o
pensamento de Heidegger e o de Dufrenne: experienciar não se resolve em e nem mesmo
implica numa relação de domínio; comporta uma abertura do sujeito, no sentido de deixar-se
85
PINHO, Eunice. A arte ou a paixão da origem. uma leitura da estética de Mikel Dufrenne. Coimbra:
Faculdade de Letras, 1993. p. 48.
86
HEIDEGGER, Martin. Acheminement vers la parole. Paris: Gallimard, 1990. p. 143. Grifos do autor.
117
atingir, deixar vir a si, acolher aquilo que procede do outro pólo da relação e, ainda, um
pathos envolvido na experiência, já que fazer uma experiência é sofrer.
Ainda mais, para os dois, comparece na experiência uma atitude do objeto que nela se oferta,
uma sua entrega, diante da qual cabe ao sujeito uma outra atitude, de acolhimento. Heidegger
fala na condição do Dasein, enquanto pastor do ser. Dufrenne, fala em um acordo essencial
entre homem e mundo, o que denota a existência de um fundo de todos os fundos: a Natureza.
Ela se anuncia na experiência, somente podendo ser captada pelo sentimento, isto é, vencida a
pretensão do logos, planificadora, dominadora. A expressão desta experiência, por isto,
somente pode ser dita pela palavra poética que acolhe a entrega feita pela natureza.
87
Por tudo, se se afirma uma significação ontológica da experiência estética é porque o
sentimento assim o deixa entrever, mas ele se esgota no esforço de ir ao fundamento. Somente
uma linguagem outra, a poética - capaz de vencer a rigidez do domínio do logos - poderia dar
conta não de dizer o fundo dos fundos, esta espécie de fundamento último do acordo entre
homem e natureza, mas de deixar que, por ela, este fundo se diga. Esta a significação
ontológica ou a perspectiva metafísica, indicada pela análise da experiência estética.
Como se vê, o anúncio de uma significação ontológica, não autoriza a elaboração de uma
ontologia, nos limites do logos. Daí que Dufrenne, embora este intento possa ser
identificado na Phénoménologie, sempre mais, se ocupará de traçar as coordenadas em
87
As noções de fundo e de Natureza comparecem, na Phénoménologie, ganhando força, cada vez mais
intensa, nos escritos que a ela se seguiram. É inegável, neste particular, ou seja, como sustentação e herança
histórica destes conceitos, a influência muito pronunciada de Spinosa e algo menor dos românticos, sobretudo de
Schelling. A maior aquisição de Dufrenne se dá exatamente quanto ele alia um conceito a outro, isto é,
progressivamente, compreenderá que a Natureza é o fundo originário do qual promanam sujeito e objeto, antes
de qualquer polarização, antes de qualquer cisão entre eles, deixando assim entrever que podem, novamente, ser
reunidos.
118
direção a uma filosofia da Natureza, desta feita não ignorando, ao contrário, partindo da via
aberta, na experiência estética, pelo sentimento.
88
Ainda é preciso insistir em uma direção: “em todos os casos, este sentimento em que se
remata a percepção não é emoção, é conhecimento.”
89
Sentimento e emoção se distinguem.
Por isto, “a emoção do medo não é o sentimento do horrível: ela é uma certa maneira de reagir
ao horrível (...). A alegria não é o sentimento do cômico, mas a maneira pela qual nós
penetramos no mundo do cômico e nele nos conduzimos”. Ainda na tentativa de esclarecer a
aquela diferença essencial, prossegue Dufrenne: “...o terror ou a piedade não são o sentimento
do trágico, mas reações (...). Medo, alegria, piedade, designam movimentos do sujeito, em um
sentido amplo de emoções (...)”.
90
Ao contrário, o sentimento não é um modo de reagir, um forma de comentar o mundo é, ele
mesmo, conhecimento que revela um mundo e nisto consiste sua função noética.
91
Dufrenne
diz ser o sentimento um conhecimento-relâmpago, connaissance-éclair,
92
e, para dar conta do
modo como ele se implementa, fala de uma aurora, que torna visível o conteúdo do objeto
estético. O mundo que a obra de arte institui, não pode ser dito na linguagem comum, mas é
capaz de despertar um sentimento que “tem as dimensões de um mundo, dimensões que
desafiam a medida, não porque há sempre mais a medir, mas porque não se pode ainda medir:
88
É na tentativa de cumprir esta tarefa que Dufrenne, após a publicação da Phénoménologie, em vários escritos,
se ocupará de pensar, em especial, dois problemas fundamentais: a necessidade de se elaborar uma filosofia da
Natureza e a questão dos a priori afetivos, enquanto condição de possibilidade desta elaboração. Podem ser
citados como mais importantes tentativas, nesta dupla direção, os seguintes escritos: La notion d’ “a priori”,
publicada em 1959; Le poétique, publicação de 1963 e, ainda, L’inventaire des “a priori”, cuja publicação se
deu em 1981. Isto sem considerar outros textos menores, dispersos em revistas, que também trataram daqueles
temas axiais. Menores no que diz respeito à extensão, mas não em relação ao alcance do conteúdo. Dentre estes,
citem-se aqueles que foram reunidos nos três volumes de Esthétique e philosophie, o primeiro publicado em
1967, o segundo em 1976 e o terceiro em 1981, todos pela Klincksieck.
89
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 471.
90
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 471.
91
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 472.
92
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 471.
119
este mundo não está povoado de objetos, ele precede-os, é como a aurora onde eles se
revelam e em que se revelam todos os que são sensíveis a esta luz, todos os que podem
desabrochar nesta atmosfera.
93
Apesar dos reconhecidos limites da linguagem para expressar a interioridade do objeto
estético que, pelo sentimento, se revela como exterioridade e, ainda, de o sentimento provocar
uma adesão imediata ao sentido, “a reflexão não apenas prepara o sentimento, mas também o
ratifica. Porque o sentimento pode, por sua vez, fazer-se objeto de uma reflexão que se
esforça por explicá-lo e justificá-lo.”
94
Possível, então, uma atitude crítica diante do mundo da obra, sabendo-se que a reflexão, neste
caso, se deixa conduzir pelo sentimento que a inspira e justifica: “a tarefa não é mais conhecer
as técnicas e a história que explicam a produção da obra, mas compreender como a obra é
expressiva.”
95
Estamos, então, no âmbito da reflexão simpática que se esforça para apoderar-se da obra de
dentro e não de fora, compreendendo o que, de certa forma, já está compreendido, apurando
aquilo que é dado em bloco no sentimento. Por isto, a reflexão simpática é, sem dúvida,
inspirada pelo sentimento, aqui “a atenção está voltada em direção ao sentimento e em direção
do objeto, enquanto este suscita aquele sentimento.”
96
Diz-se compreender o que estava
compreendido uma vez que, de alguma maneira, pelo sentimento, o sentido se entrega;
elucidá-lo, justificá-lo será, então, apenas uma tarefa necessária para sua melhor
compreensão.
93
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 240.
94
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 522.
95
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 523.
96
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 523.
120
A passagem da atitude crítica à atitude sentimental não se faz por mera oscilação, mas um
mútuo envolvimento destas atitudes, isto porque, a reflexão prepara o sentimento,
esclarecendo-o e, inversamente, o sentimento faz apelo à reflexão, dirigindo-a. É assim que
“a alternância da reflexão e do sentimento desenha um progresso dialético em direção a uma
compreensão cada vez mais plena do objeto estético.”
97
uma reflexão que segue e outra que antecede o sentimento. Elas são diversas: enquanto
esta enriquece o sentimento, abrindo certa distância em relação ao objeto – espaço que
precisamente permite refletir sobre ele -; aquela reconduz a reflexão ao objeto, do qual ela é
tentada a se distanciar, por obra da imaginação. Enfim, a reflexão que antecede o sentimento,
ou a atitude sentimental, enriquece a percepção do objeto estético; a que lhe segue organiza,
sem distanciar, aquele enriquecimento. “É, então, que a obra é enfim compreendida por ela
mesma, que o objeto estético nela aparece, cada uma de suas partes colaborando para a
expressão e concorrendo para o efeito total que resume a sua qualidade afetiva.”
98
A experiência estética culmina no sentimento sem poder abster-se da reflexão: ela se situa na
interferência dos dois. Uma pergunta se impõe: como é possível passar de uma percepção
refletida e metódica a uma percepção que consente e arrebatada? Esta passagem se torna
possível por duas razões: o objeto estético sempre dirige seu apelo a um e outro
conjuntamente - e, ainda, porque aqui uma espontaneidade da consciência, sem a qual não
haveria a percepção do todo, exigida na experiência estética.
99
Deste modo, se o papel da
reflexão, enquanto reflexão simpática, “se definiu, primeiramente, pela tarefa de preparar e
clarificar o sentimento, libertando-o assim da queda no irrefletido, numa segunda fase, o
97
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 524.
98
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 525.
99
A este respeito conferir, em especial, DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol.
II. Paris: PUF, 1953. pp. 521-526.
121
percurso como que se inflete, a reflexão é dirigida pelo próprio sentimento, abrindo o espaço a
uma experiência mais íntima do objeto estético.”
100
Tanto a presença quanto a representação não são, ainda, sentimento. Contudo, o sentimento,
normalmente, se edifica a partir do que foi adquirido naqueles níveis da percepção. O
sentimento é um imediato mas que, paradoxalmente, tem necessidade de condições: é
suscitado a partir do dado e de sua representação. Eis porque o sentimento não pode dispensar
o que o fundamenta: já que ele:
É imediato quando o objeto nos é dado e estamos disponíveis, mas é ainda preciso que o
objeto nos seja dado. (...) É porque somos capazes de assumir corporalmente o sorriso,
que o sorriso de uma mãe é, aos nossos olhos, a ternura e é quando temos alguma
cumplicidade com os gestos do amor que as atitudes da bailarina exprimem a nossos
olhos a emoção amorosa.
101
Eis nossas aquisições neste capítulo: o esforço fenomenológico de descrição da experiência
estética mostra que seu ponto culminante é o sentimento; o sentimento exerce uma função
noética, já que é uma leitura da expressão, com isto, dando a conhecer o que se sente, afinal
pode ser sentido aquilo que, de algum modo, é antes conhecido; ao abrir a interioridade do
objeto estético, o sentimento capta sua profundidade, isto é, deixa entrever que o mundo do
objeto estético aponta para um fundo, a Natureza. Ora, resta investigar as condições de
possibilidade sob as quais a Natureza se deixa apreender pelo sentimento. Dufrenne
introduzirá aqui a discussão sobre os a priori afetivos. São estes que, a um tempo,
constituem o sujeito e o objeto, possibilitando o encontro entre os dois. A Natureza será,
então, o fundo de todos os fundos, o a priori de todo a priori, a condição primeira e originária
da co-substancialidade entre homem e mundo. O sentimento, portanto, anuncia uma
100
PINHO, Eunice. A arte ou a paixão da origem. uma leitura da estética de Mikel Dufrenne. Coimbra:
Faculdade de Letras, 1993. pp. 62-63. Adaptou-se a ortografia à norma culta do português do Brasil.
101
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. pp. 516-517.
122
perspectiva metafísica, descortinar esta perspectiva, apoderando-se de suas condições de
possibilidade é tarefa para uma crítica da experiência estética como, a seguir, se verá.
123
5 A HIPÓTESE DA SIGNIFICAÇÃO ONTOLÓGICA COMO COROLÁRIO DE
UMA CRÍTICA DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA
Acerca da experiência estética, o problema crítico pode ser assim enunciado: trata-se de
empreender uma procura por suas condições de possibilidade, à maneira kantiana - processo
de identificação e delimitação do campo dos a priori -, verificando em que medida tais
condições podem ser realizáveis - processo de identificação dos limites da experiência
estética.
Na tematização dos limites da experiência estética, ainda como parte da crítica, comparecerá
também a questão da linguagem: qual discurso seria apto para dar expressão aos a priori. Para
Dufrenne, se na experiência estética é pela via do a priori afetivo que saltamos para o
ontológico, seria o logos instância apta à constituição de um discurso neste campo? Se
afirmativa a resposta, por certo, esta aptidão seria limitada. Quais seriam, então, estes limites?
Que outro tipo de linguagem poderia suprir as falhas existentes? Estas e outras decisivas
questões, muito embora esta última não seja tematizada tão explicitamente na
Phénoménologie, movimentam o universo da procura dufrenniana por um fundamento radical
da experiência. É neste contexto que aparecerá, como corolário da crítica da experiência
estética, a hipótese de sua significação ontológica. Significação que deve ser estendida a toda
forma de experiência, tendo em vista o caráter exemplar, paradigmático da experiência
estética.
Ao final da Phénoménologie, algumas respostas virão: descobertos os a priori afetivos como
condição de possibilidade do acordo originário entre sujeito e objeto do qual a experiência
124
estética é exemplar testemunha somos introduzidos em uma direção ontológica. Isto porque
a experiência estética demonstra que um acordo, um pacto essencial entre sujeito e objeto.
Esta familiaridade só é possível porque há entre eles uma co-substancialidade. O ponto
comum, a condição de possibilidade daquele acordo são os a priori afetivos. Ora, o a priori
não poderia pertencer, a um tempo, ao sujeito e ao objeto a não ser que se fosse entendido
como uma propriedade do ser que este, antecedendo um e outro, não se identificaria nem
com um nem com o outro, sendo uma instância originária. Portanto, ao fundar no a priori da
afetividade o acordo entre sujeito e objeto, a condição de possibilidade da experiência
transforma-se em propriedade do ser: eis o salto do transcendental ao ontológico, que é
preciso explicitar.
5.1 Do transcendental ao ontológico: a hipótese da significação ontológica no contexto da
procura por uma anterioridade radical
No segundo capítulo deste trabalho, já nos referimos ao fato de Dufrenne, apesar de ser atento
leitor de Heidegger, usar os termos metafísico e ontológico indistintamente. De fato, por
exemplo, na introdução à Phénoménologie, logo de início, como um dos objetivos da obra,
comparece a tentativa de resgatar a “significação metafísica”
1
da experiência estética e, mais
além, fala-se em encontrar para o ato do gênio “um valor exemplar e, por vezes, um sentido
metafísico,”
2
e, ainda, que “passaremos do fenomenológico ao transcendental, e o mesmo
transcendental desembocará na metafísica.”
3
1
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 1.
2
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 3.
3
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 27.
125
De outro lado, ainda na mesma introdução, comparecem referências a uma ontologia
justificante
4
, a uma “ontologia da arte que nos limitaremos, aliás, a evocar ao final,”
5
ao
“problema ontológico que coloca o objeto estético,”
6
a uma “exegese ontológica da
experiência estética”
7
e, agora já no segundo volume da obra, fala-se de uma “significação
ontológica da experiência estética.”
8
No contexto de uma leitura crítica da história da metafísica, levada a cabo por Heidegger, o
termo ‘metafísica’ liga-se ao modo peculiar como se teria dado o desenvolvimento histórico
da pergunta sobre o ser na tradição ocidental, isto é, como onto-teologia. Em outras palavras,
na história da metafísica ocidental um esquecimento da questão fundamental, da pergunta
sobre o ser e, com isto, do próprio ser. O termo então carrega consigo o peso da tradição, que
consagrou o esquecimento do ser, refere-se a uma metafísica pré-crítica, isto é, para a qual
passa ao lado a questão do ser, na verdade, aquela que mais importaria pensar. Por sua vez, o
adjetivo ontológico se ligaria a um pensamento sobre o ser, desta feita, conduzido na direção
correta. Isto é, destruída a história da metafísica, enquanto onto-teologia, ressurgiria dos
escombros a genuína questão do ser, tematizada agora explicitamente, escapando do anterior
esquecimento de que padecia.
9
Convém, por tudo, situar o horizonte em que se move Dufrenne ao falar de sentido metafísico
ou ontológico, já que ele vislumbra na experiência estética uma possível manifestação daquele
4
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 5.
5
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. pp. 12-13.
6
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 26.
7
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 28.
8
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. pp. 657ss. Este,
aliás, o título do último capítulo da obra, em que é mais utilizado o vocábulo ontológico. Mas, no entanto,
também neste capítulo final, não desaparece o uso do adjetivo metafísico como, por exemplo, se pode ver na
página 665.
9
Acerca desta e de outras relevantes críticas dirigidas por Heidegger à história da metafísica, enquanto onto-
teologia e da defesa da necessidade de uma explícita repetição da questão do ser, conferir, dentre tantas outras
fontes, HEIDEGGER. Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1989. pp. 27ss.
126
sentido. Ao dar resposta à interrogação sobre a possibilidade de a reflexão filosófica “procurar
uma verdade na beleza,”
10
Dufrenne oferece a via de compreensão do que, para ele, seria uma
resposta metafísica, esclarecendo qual a natureza do que chamou “verdades metafísicas”. Vale
registrar esta passagem decisiva:
As verdades metafísicas, em sentido mais amplo que, de uma parte, não se resolvem em
saberes rigorosos e universalmente válidos – já que elas não têm seu mais pleno sentido a
não ser para mim e que, de outra parte, apelam para mim e são tanto uma vocação
quanto um constrangimento; que são, portanto, ao mesmo tempo distintas de mim e
interiores a mim, estas verdades procedem de uma atitude que não é sem afinidade com a
atitude estética, e são elas e não as verdades estritamente lógicas, que se poderiam
encontrar envolvidas na experiência estética. A isto voltaremos mais tarde.
11
Eis, portanto, o horizonte em que se move Dufrenne, na Phénoménologie, ao se servir dos
termos metafísico ou ontológico: uma forma de saber constituída mediante uma atitude
similar àquela envolvida na experiência estética e, por isto mesmo, escapando à gica estrita,
colocando em questão o ser daquele que se interroga, num misto de apelo e constrangimento.
Por isto, os termos são tomados um pelo outro. Vislumbramos aqui um matiz específico do
pensamento de Dufrenne: o transcendente, a instância originária indicada pelo acordo entre
homem e mundo, exige uma atitude de abertura para o seu sentido, mas sem garantias de que
este sentido possa ser encontrado ou descrito pela via do logos.
Aliás, o desenvolvimento posterior da temática do a priori, fundamento sobre o qual se
assenta o salto do transcendental ao ontológico, esforço levado a cabo nos escritos que se
seguiram à Phénoménologie, testemunhará a justeza desta interpretação: sempre mais, serão
afirmados os limites do logos e garantido o privilégio expressivo da categoria do poético.
Assim, uma ontologia, construída a partir do logos, é dita impossível, e deveria ceder espaço a
uma filosofia da Natureza, menos lógica leia-se menos limitada ao logos - e mais atenta ao
10
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 531.
11
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. pp. 531-532.
127
dizer poético. A natureza se expressaria na linguagem poética, ao invés de ser dita pelo
discurso lógico, o que não implicaria numa renúncia total ao trabalho do logos, com efeito,
fala-se ainda de filosofia da Natureza. Ora, o discurso filosófico, atendendo à sua origem
histórica, firmou-se exatamente num contexto de superação do dizer mítico. Uma filosofia da
Natureza, entretanto, não deveria tornar definitiva esta superação, mas aliar os dois discursos:
aquele fundado no logos e o poético.
12
Toda a Phénoménologie é perpassada por uma preocupação de caráter ontológico. De fato, é
preciso frisar, comparece como um dos objetivos da obra, firmado desde a introdução,
resgatar a significação ontológica da experiência estética. Ainda mais, durante todo o
percurso, Dufrenne se moverá em torno de uma convicção basilar, chave para uma exegese
ontológica: na experiência estética se manifesta um acordo radical, originário entre sujeito e
objeto o que, pelo menos em tese, exigiria pensar não somente as razões deste acordo mas
também a possibilidade de algo que, antecedendo-o, fosse sua razão de ser. Aqui apareceria o
espaço para a construção de uma ontologia, não fossem os limites do logos.
É neste contexto, o da procura por uma anterioridade radical, justificante do acordo, da
familiaridade, da co-substancialidade entre sujeito e objeto - de que é testemunha a
experiência estética - que ganha foros de legitimidade a exegese ontológica. Em outras
palavras, é no contexto da análise das condições de possibilidade da própria experiência
estética – análise transcendental – que se descobrem os a priori afetivos que, a um só tempo, a
tornam possível e nos remetem para um fundo originário, uma radical anterioridade em que
não há cisão, mas uma totalidade constituída por sujeito e objeto.
Duas são as exegeses possíveis para a experiência estética: a antropológica e a ontológica.
Naquela, a revelação trazida pela obra de arte é atribuída somente à iniciativa do artista.
12
Esta direção adotada por Dufrenne fica mais evidenciada em Le Poétique.
128
Nesta, comparece o artista como ocasião ou instrumento daquela revelação, que é atribuída
ao próprio ser.
13
No final da Phénoménologie, privilegia-se a exegese ontológica, mas
Dufrenne se contenta em justificar antropologicamente este privilégio. Enfim, não pretende
construir uma ontologia, contenta-se em justificar antropologicamente a perspectiva
metafísica descortinada a partir da crítica da experiência estética.
Trata-se de um salto do transcendental ao ontológico, salto que não é dado sem hesitações,
aliás, realiza-se com o explícito reconhecimento de que sobre ele “talvez a última palavra é
que não última palavra”.
14
Por isto, falamos aqui de hipótese da significação ontológica.
Com isto, pensamos fazer jus a uma preocupação de Dufrenne: evitar que esta promessa de
sentido fosse entendida como um achado dogmático.
A procura por um fundamento último do pacto que une sujeito e objeto, denotando a co-
substancialidade entre eles existente, tem na retomada da noção de a priori seu ponto
culminante. De fato, é a partir da re-introdução da noção de a priori que será possível, em
primeiro lugar, justificar que “o homem não é somente parte do dado e produto do dado, mas
correlato do dado (...) vem ao mundo como igual ao mundo” e, ainda, em segundo lugar,
encontrar uma anterioridade radical que conferiria sentido, vez que “qualquer coisa é sempre
conhecida, não gênese total do sentido, o a priori é precisamente aquilo de que não
gênese.”
15
13
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. pp. 27-28.
14
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 677. Esta a
última frase de todo o livro.
15
A primeira citação contida neste parágrafo aparece em DUFRENNE, Mikel. La notion d’ “a priori”. Paris:
PUF, 1959. p. 54. A segunda aparece em DUFRENNE, Mikel. L’inventaire des “a priori”: recherche de
l’originaire. Paris: Christian Bourgois Editeur, 1981. p. 10. na Phénoménologie comparecem as duas idéias,
ou seja, a afirmação de que homem e mundo são da mesma raça e de que deve haver um a priori cuja gênese não
seria possível dizer. Aqui, preferimos citar passagens de escritos posteriores à Phénoménologie, primeiro porque
são lapidares e, ainda, porque denotam que, entre estes e aquela, certa continuidade da investigação sobre a
temática dos a priori. As obras citadas, na verdade, trataram de explicitar, mas também de aprofundar a
afirmação dos a priori como anterioridade radical, em uma constante procura pelo originário.
129
A retomada da noção de a priori se faz com expressa referência a sua matriz kantiana, mas
Dufrenne pretende dar àquela noção um sentido novo: a experiência estética radica em um
novo tipo de a priori, pertencente ao campo da afetividade. Vejamos.
5.2 Os a priori da afetividade enquanto condição de possibilidade da experiência
estética: para além do formalismo kantiano
Com a leitura que o sentimento faz da expressão chega-se ao momento mais alto e
significante da experiência estética,
16
sendo crucial uma tarefa: saber quais são os a priori
colocados em jogo nesta leitura, o que implica numa passagem da fenomenologia à crítica, ou
seja, trata-se de investigar as condições de possibilidade sob as quais algo pode ser sentido.
17
Assim, Dufrenne recoloca em discussão a temática do a priori mas, embora se refira à sua
matriz inegavelmente kantiana,
18
pensa-a sob novas bases: trata-se de descobrir os a priori da
16
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 536.
17
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 539.
18
Por certo, não podemos fazer aqui uma longa digressão sobre a temática do apriorismo, nem mesmo nos
limitando à matriz kantiana. O tema, por si mesmo, demandaria um trabalho específico e, confessamos, muito
árduo, refugindo inteiramente dos objetivos que animam a presente pesquisa. Por isto, para a compreensão da
questão dos a priori, nos moldes kantianos, nos servimos de uma obra que bem a esclarece, além de ter o mérito
de apontar as direções que a questão assumiu na tradição pós-kantiana. Trata-se de uma obra de Jean Grondin:
GRONDIN. Jean. Kant et le problème da la philosophie: l’ “a priori”. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin,
1989. Infelizmente, nesta obra, não são numerosas as referências a Dufrenne e, por incrível que pareça, nem é
ressaltada a originalidade da interpretação que este trouxe para a noção de a priori. As poucas citações de
Dufrenne constam nas seguintes ginas: 30 (no contexto de referência à incredulidade de Hume diante da
questão do a priori); 131-132 ( no contexto de uma tentativa de compreensão das razões que teriam conduzido,
no idealismo alemão sobretudo em Hegel ao desprestígio da questão do a priori. Ali o texto de Dufrenne
que aparece em La notion de l’ “a priori”, p. 46 - suporte à interpretação segundo a qual a noção de a priori
“implica um dualismo, fatal para a filosofia.” Com propriedade se esclarece, neste contexto, que “o a priori é um
conceito relativo, em oposição a uma esfera a posteriori, portanto subtraída à jurisdição imediata da filosofia e
da razão pura. Se a razão pura se abstrai de toda a esfera empírica, ela tolera a seu lado um mundo não racional
que vem, desta maneira, limitar, ou colocar em cheque, a pretendida infinitude da razão. Se a razão é racional,
ela deverá penetrar também o suposto mundo empírico ou a posteriori.” E continua Grondin, então “inútil, a
130
afetividade, aqueles que figurariam como condição de possibilidade do sentimento, e mais:
não seriam eles meramente formais, abstratos, mas se ligariam a um sujeito concreto, inserido
em uma história circundante. Eis, neste sentido, uma passagem esclarecedora:
Para melhor compreender que a experiência estética culmina no sentimento como leitura
da expressão, nós queremos agora mostrar que ele coloca em jogo verdadeiros a priori da
afetividade, no sentido mesmo em que Kant fala de a priori da sensibilidade e do
entendimento: tal como os a priori kantianos são as condições sob as quais um objeto é
dado ou pensado, são aqui as condições sob as quais um mundo pode ser sentido, não por
um sujeito impessoal ao qual Kant se refere e que os pós-kantianos poderão identificar
com a história -, mas por um sujeito concreto, capaz de manter uma relação viva com o
mundo, este sujeito tanto pode ser o artista, que se exprime por este mundo, quanto o
espectador que, lendo esta expressão, se associa ao artista.
19
Portanto, no tocante à noção de a priori, ao mesmo tempo que confessa a inspiração kantiana
de seu pensamento, Dufrenne demarca-se de Kant, ao pretender uma superação do
formalismo. Vale lembrar que Dufrenne faz uma leitura muito particular e crítica de Kant.
Para ele o a priori kantiano “é a forma que o processo de conhecimento imprime ao
conhecido, o reflexo no objeto dos atos transcendentais do sujeito”.
20
O a priori, assim
entendido, figuraria como estrutura transcendental do sujeito, não pertenceria, de nenhum
modo, ao objeto.
Em outra direção vai o pensamento de Dufrenne: o objeto estético tem um poder de, por sua
expressividade, revelar um mundo o que, na experiência estética, apela para a noção de a
noção de a priori perderá toda pertinência sistemática para os epígonos de Fichte, sobretudo para Hegel); 144
(no contexto da tentativa de investigar como, para Hegel, se colocaria a idéia de síntese a priori. Aqui, apoiando-
se em Dufrenne, é considerado acertado que Hegel teria sempre rejeitado a distinção e, por conseguinte, o
dualismo entre a priori e a posteriori); 155-156 (nesta passagem, Jean Grondin elogia a interpretação de
Dufrenne segundo a qual, em Husserl, “a proliferação do a priori, responde a uma tentativa de reencontrar o
caminho de uma ciência autêntica.” a passagem citada por Grondin encontra-se em La notion d’ “a
priori”,obra citada, p. 67. Sobretudo porque, voltar-se para as coisas mesmas, implicaria para a filosofia em
poder “deixar de considerar a metodologia das ciências como seu objeto principal e que ela pode voltar a ser, de
pleno direito, uma teoria dos fenômenos fundamentais e de sua constituição sobre o sol de um ego
transcendental.”) Como se vê, Jean Grondin, quando cita Dufrenne, toma-o como um bom intérprete da histórica
noção de a priori inclusive se socorre, em pontos decisivos, das interpretações por ele oferecidas - contudo
deixa de reservar-lhe um merecido lugar como criador original nesta temática. Isto nos parece um lamentável
limite, haja vista a novidade dos chamados a priori afetivos, de claro matiz dufrenniano. Para uma compreensão
mais abrangente de toda a questão dos a priori, na história do pensamento ocidental, seria suficiente consultar as
indicações bibliográficas apresentas por Jean Grondin no final de sua obra, já referenciada nesta nota.
19
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 539.
131
priori, devendo ser reconhecido que “uma certa qualidade afetiva está no princípio do mundo
do objeto.”
21
Por isto, o a priori não pertence, com exclusividade, ao sujeito, é também constitutivo do
objeto, aliás, um mesmo a priori comporta aspectos subjetivos e objetivos. Assim o a priori
funda a experiência, sendo sua origem. Neste sentido ele possibilita como que uma
antecipação da experiência como mais tarde, em L’inventaire des a priori, esclarecerá
Dufrenne: “certamente, ela (a consciência) tem tudo para aprender, mas não aprende senão
porque previamente compreende; a experiência que adquire supõe uma experiência que não é
adquirida, um saber virtual que funda toda a experiência.”
22
Dufrenne reconhece que, ao evitar a interpretação idealista do kantismo, defendendo que o a
priori liga-se a um sujeito concreto, historicamente situado, corre-se o risco de regressar ao
empirismo. Para escapar deste limite, reafirma-se a anterioridade e a irredutibilidade de um
princípio que funda a experiência, já que “o homem não é somente parte do dado e produto do
dado, mas correlato do dado (...) vem ao mundo como igual ao mundo.”
23
Por isto, o
problema da gênese do a priori, não pode se resolver em favor de um dos pólos da relação
travada entre sujeito e objeto. Isto porque “a verdadeira gênese seria precisamente uma gênese
do transcendental, que faria aparecer, ao mesmo tempo, o mundo como campo transcendental
e o sujeito transcendental como correlato deste mundo.”
24
20
DUFRENNE, Mikel. La notion d’ “a priori”. Paris: PUF, 1959. pp. 4-5.
21
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. pp. 539-541.
22
DUFRENNE, Mikel. L’inventaire des “a priori”: recherche de l’originaire. Paris: Christian Bourgois Editeur,
1981. p. 8.
23
DUFRENNE, Mikel. L’inventaire des “a priori”: recherche de l’originaire. Paris: Christian Bourgois Editeur,
1981. p. 10.
24
DUFRENNE, Mikel. L’inventaire des “a priori”: recherche de l’originaire. Paris: Christian Bourgois Editeur,
1981. p. 10.
132
Assim, a revitalização da noção de a priori liga-se, estreitamente, a um tema muito caro a
Merleau-Ponty, para quem há um entrelaçamento entre nós e o mundo, ou seja, o mundo e nós
somos da mesma carne. A este respeito, nos parece correta a interpretação de Eunice Pinho
quando esta afirma:
Só a noção de a priori, tornada fecunda na filosofia de Dufrenne, poderá oferecer-nos um
vislumbre – em ato – daquilo que nos antecede, mas também simultaneamente nos
constitui: estamos abertos ao mundo; o mundo tem um sentido próprio que podemos
apreender porque, virtualmente, ele está em nós e requer essa mesma abertura de que
falamos.
25
Reconhece-se a dificuldade de delimitação do campo dos a priori, ou seja de deles fazer um
completo inventário. Neste sentido, sabe-se que Dufrenne esforçou-se para evitar a dissolução
do a priori no a posteriori. É como tentativa de enfrentar estas e outras questões relevantes
que Dufrenne escreverá, após, a Phénoménologie, duas obras consideráveis: La notion d’ “a
priori” e L’inventaire des “a priori”: recherche de l’originaire. Nos limites de nossos
objetivos seguiremos o quanto foi dito sobre os a priori na Phénoménologie.
Após explicitar os fundamentos de sua leitura crítica da tradição, dissentindo da interpretação
oferecida por Heidegger, Dufrenne afirma o caráter existencial do a priori, com o que se
afasta também de Kant.
26
Para ele, o a priori possui dupla face, qualifica a um tempo
sujeito e objeto, sendo necessário partir daqui para bem compreender sua função. Esclarece
Dufrenne:
Se nós partirmos, portanto, do a priori como caráter do objeto do conhecimento, e não do
próprio conhecimento, nós obteremos esta tríplice determinação: o a priori está
primeiramente no objeto, o que o constitui como objeto, ele é então constituinte. Ele está,
em seguida, no sujeito como um certo poder de se abrir ao objeto e de predeterminar sua
apreensão, poder que constitui o sujeito como sujeito; ele é portanto existencial. Enfim,
ele pode se fazer objeto de um conhecimento que também é a priori.
27
25
PINHO, Eunice. A arte ou a paixão da origem: uma leitura da estética de Mikel Dufrenne. Coimbra:
Faculdade de Letras, 1993. p. 65.
26
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. pp. 545-546.
27
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 546.
133
O a priori afetivo é isto: certo modo de o sujeito se abrir ao objeto ele é, então, “singular e
procede de uma intuição direta do sujeito”
28
é existencial porque se liga a um sujeito histórico
concreto, não ao sujeito transcendental.
29
Inspirando-se na filosofia dos valores de Max Scheler, para quem os valores são qualidades
materiais constituindo e unificando os objetos que são bens –, Dufrenne afirma que, do
mesmo modo, o a priori é material. Interpretando esta qualidade intrínseca ao objeto que
aparece como um bem, inspirando-se em Scheler, Dufrenne afirma:
Parece, portanto, que o valor seja como que uma forma que cria seu próprio conteúdo: o
bem não resulta de um valor que se acrescenta a uma coisa pré-existente, mas o valor se
encarna em uma coisa e constitui esta coisa como bem ao nela se encarnar.
Paralelamente, o mundo do objeto estético está ordenado por uma qualidade afetiva que é
para ele um a priori.
30
O mundo do objeto estético, enquanto ordenado por uma qualidade afetiva, é acessível
somente ao sentimento. De fato, na obra de arte incorpora-se a expressão de uma
subjetividade - a do artista - com a qual se encontrará, de um certo modo, portanto
afetivamente, o espectador –. É pelo sentimento que se estabelece uma relação do espectador
com a obra, exprimindo-a o espectador pelo gosto que ele nutre pela maneira que esta é
adotada e integrada em seu mundo. Por isto:
Entre o artista e o espectador, existe mesmo uma diferença insuperável já que um faz e o
outro vê; mas, se se considera a obra por si mesma sem evocar o ato histórico de sua
criação, se o autor é somente aquele que a obra testemunha e se a criação não é mais que
um signo de uma afinidade espiritual, pode-se dizer que esta afinidade que se revela entre
a obra e o autor é a mesma que se revela entre o espectador e a obra que ele é capaz de
sentir e de reconhecer.
31
28
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 551.
29
Dufrenne invoca um apadrinhamento histórico para a noção de a priori afetivo: a essência singular de
Espinosa. A respeito, ver DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF,
1953. p. 551. A referência consta na nota de rodapé número I.
30
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 550.
31
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 553.
134
É, portanto, o sentimento que abre o acesso ao a priori, enquanto qualidade afetiva, é ele que
possibilita o necessário encontro entre espectador e obra de arte, encontro que torna evento o
objeto estético.
32
Ainda um outro aspecto do a priori, o cosmológico, se mostra sobremaneira importante para a
compreensão do tema desta pesquisa. De fato, para Dufrenne, os a priori afetivos apresentam
um duplo aspecto: a priori existencial, assim chamado aquele pertencente ao sujeito e a priori
cosmológico, aquele que se refere a certa qualidade do objeto.
33
Não é, todavia, possível falar
de um a priori existencial sem a ele se juntar o a priori cosmológico, isto é, sem pensar que
um e outro são apenas aspectos de uma única aprioridade afetiva. Enfim, no contexto da
crítica ao idealismo, que não admite a autonomia do objeto estético, se apresenta uma nova
relação entre os aspectos cosmológico e existencial de um mesmo a priori, sem admitir entre
eles qualquer subordinação. Isto porque, “a qualidade afetiva à qual pertencem estes dois
aspectos é anterior, ao mesmo tempo, ao sujeito e ao objeto, com o que ela constitui todos os
dois.
34
Eis aqui o ponto central para a compreensão de como se a passagem do
transcendental ao ontológico, mediada pela noção de a priori. Insistamos nesta direção.
Antes é preciso assentar que é possível determinar o a priori a partir das formas de relação do
sujeito com o objeto. Dufrenne esclarece que isto poderia ser explicitado nos três patamares
identificados na experiência estética - presença, representação e sentimento nos quais cada
um dos aspectos do objeto - vivido, representado e sentido responderia a uma atitude do
32
Sobre esta função do a priori verificar, em especial: DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience
esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. pp. 554-558.
33
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 672.
34
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 558.
135
sujeito vivente, pensante ou que sente.
35
Fica evidenciado o caráter afetivo dos a priori,
sem que estes pertençam somente ao sujeito.
De fato, o a priori, deixa de ser uma qualidade de ambos os pólos envolvidos na relação
travada entre sujeito e objeto e é visto agora como uma propriedade do ser. Vale, neste
sentido, transcrever um passo fundamental da Phénoménologie:
Vê-se aqui que nossa reflexão toma uma direção ontológica e que o sentido lógico do a
priori recai no ontológico, a condição de possibilidade se torna uma propriedade do ser: o
a priori não pode ser, ao mesmo tempo, uma determinação do objeto e uma determinação
do sujeito a não ser que ele seja uma propriedade do ser anterior, ao mesmo tempo, a um
e outro e, ainda, que ele torne possível a afinidade do sujeito e do objeto.
36
Deste modo, isto é, tomando o a priori como propriedade do ser, seria possível escapar dos
perigos tanto do idealismo que, “subordinando o objeto ao sujeito, confere ao a priori um
sentido puramente lógico,” quanto dos riscos do realismo que “subordinando o sujeito ao
objeto, perde o sentido mesmo do a priori”.
37
Ainda mais, à solidariedade existente entre o sujeito e o objeto, descortinada no âmbito da
experiência estética, deve ser concedido “o seu sentido mais pleno”, denotando também um
acordo essencial entre o homem e o real. Assim, a experiência estética se apresenta como a
ocasião para se refletir sobre aquele acordo, o que tem conseqüências que nos impulsionam,
mais uma vez, em direção de uma via ontológica. Como explicita Dufrenne:
Em outros termos, quando falamos de identidade do existencial e do cosmológico, é
preciso talvez conferir ao cosmológico toda a sua densidade de sentido e, portanto, ao
aspecto cosmológico do a priori como constituinte: a qualidade afetiva não constitui
somente o mundo da obra, que é o mundo do autor, ela está sustentada sobre o real; de
forma que a identidade do cosmológico e do existencial não designa apenas o estatuto do
mundo estético, mas coloca, a partir da experiência estética, o problema do ser, isto é da
possibilidade de um sentido (aqui afetivo) que o homem (aqui o artista e o espectador)
descobre, exprime e, portanto, não funda.
38
35
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. pp. 546-547.
36
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 561.
37
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 561.
38
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. pp. 561-562.
136
Em suma, estes os passos dados para sustentar a hipótese de uma significação ontológica da
experiência estética: o mundo do objeto estético, por si mesmo capaz de expressão, vem ao
encontro do espectador, que o percebe pelo sentimento. O encontro possível e desta
possibilidade é testemunha a experiência estética - entre um e outro, entre sujeito e objeto,
posto que há um acordo essencial entre eles, denota uma co-substancialidade que lhes é
própria e deve ser anterior, ao mesmo tempo, a um e outro dos pólos da relação. A afirmação
desta co-substancialidade ganha sentido porque os a priori afetivos - condição de
possibilidade do acordo e, com isto, do pacto entre sujeito e objeto estético -, se tornam
propriedade do ser. Com isto, sujeito e objeto remetem a uma instância que lhes é anterior e
que não é fundada pelo homem, o que deságua no problema do ser. E, então, somos
conduzidos do transcendental ao ontológico. E, porque a experiência estética é uma forma
exemplar de toda experiência, deve ser afirmado, outrossim, que a co-substancialidade - que
ela deixa entrever entre sujeito e objeto - deve se estender sendo afirmada existente entre o
homem e o real, isto é, presente em toda e qualquer forma de experiência. Com isto, amplia-
se a direção ontológica indicada na experiência estética. Restaria, ainda, uma indagação: a
descoberta da direção ontológica, a partir de uma teoria dos a priori,
39
autorizaria a
elaboração de uma ontologia? Em que medida? A resposta é, fundamentalmente, negativa.
Mas há detalhes a considerar.
De fato, àquela indagação cremos poder afirmar que Dufrenne tenha respondido de duas
maneiras, embora não haja propriamente uma descontinuidade entre elas: uma, na
Phénoménologie, insistindo na hipótese ontológica, mas sem fazer desaguar, necessariamente,
a análise fenomenológica na constituição de uma ontologia; outra, nos escritos posteriores,
39
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 562.
137
em geral, indicando que a existência de um a priori de todos os a priori nos impulsionaria
rumo à elaboração de uma filosofia da Natureza. Devemos insistir nesta diferença.
5.3 O Lugar da hipótese ontológica na economia da obra
40
de Dufrenne.
A obra-prima de Dufrenne é, sem dúvida, a Phénoménologie de l’expérience esthétique,
publicada em 1953. Antes ele havia publicado alguns poucos artigos, em revistas diversas e,
em colaboração com Paul Ricoeur, em 1947, publicara uma obra sobre Karl Jaspers, intitulada
Karl Jaspers et la philosophie de l’existence. Nestes primeiros estudos, ao menos em parte,
são indicados alguns dos problemas de que se ocuparia Dufrenne em sua obra máxima. Após
a publicação desta, ele teria continuado a pensar sobre os problemas nela gestados, muito
embora o tenha feito de forma livre, sem se prender aos resultados ali alcançados.
Deste modo, a trajetória intelectual de Dufrenne deve ter como marco divisório a
Phénoménologie: antes dela, seus escritos e estudos a prepararam; após, procuraram
desenvolver, ratificar, explicitar ou até mesmo dar nova direção aos problemas nela
anunciados.
41
É neste sentido que a Phénoménologie é um marco fundante: nela foram
40
Não é nosso propósito inventariar todas as obras de Dufrenne, mesmo porque, nesta pesquisa, não nos
ocupamos de todas elas. Como anunciado, o eixo central da presente investigação gira em torno da
Phénoménologie de l’expérience esthétique, sendo complementares as referências feitas aos escritos a ela
posteriores. Para uma visão bastante completa do conjunto da obra de Dufrenne, com indicação dos títulos de
livros e artigos, acompanhada de referência às datas em que foram publicados, ver BOVAR, Lise. Bibliografie
de Mikel Dufrenne. In: AA.VV. Vers une esthétique sans entrave mélanges offerts à Mikel Dufrenne. Paris:
Union Génerale d’Editons, 1975. pp. 143-146. Para uma visão geral do itinerário intelectual de Dufrenne ver, na
mesma obra, CAUQUELIN, Anne. Mikel Dufrenne: portrait chinois. pp. 21-32.
41
Ainda para uma visão geral da trajetória intelectual de Dufrenne, contemplando as obras publicadas até 1982
ver, em especial, o parágrafo intitulado itinerário filosófico de Mikel Dufrenne, em: FIGURELLI, Roberto
Caparelli. Mikel Dufrenne et Martin Heidegger essai de confrontation. Dissertation presentée pour l´obtention
du grade de Docteur en Philosophie et Letres. Liége: Université de Liège, 1981-1982. pp. 90-99.
138
aventados os problemas filosóficos do quais continuaria Dufrenne a se ocupar sem, contudo,
se aferrar às soluções nela encontradas.
As publicações posteriores à Phénoménologie não são homogêneas: apresentam uma enorme
variação temática, abarcando quase todos os grandes temas da estética, em dezenas de artigos
e alguns livros.
De fato, de um lado, apareceram muitos artigos, publicados em diversas revistas, obras
coletivas e enciclopédias: em sua maior parte, têm como eixo o desenvolvimento de temáticas
aventadas na Phénoménologie. Boa parte destes textos - menores na extensão, mas densos
no conteúdo -, foram reunidos em duas coletâneas: em três volumes, a coletânea denominada
Esthétique et philosophie e, em um volume, a denominada Jalons.
De outro lado, apareceram também algumas publicações maiores: livros. Destes convém falar
em dois blocos. O primeiro composto, principalmente, por La notion d’ “a priori(1959), Le
poétique (1963), L’inventaire des “a priori” (1981), obras em que se evidenciam duas ordens
de problemas: a questão dos a priori, enquanto tentativa de fundamentação última de um
acordo entre homem e natureza e a questão do discurso hábil a manifestar este acordo. O
segundo bloco, composto pelas demais obras, contém escritos que se ocuparam de
desenvolver problemas específicos apenas anunciados na Phénoménologie, ou ainda, obras
que se dedicaram a pensar as implicações ético-políticas da estética. A este último grupo de
escritos, como denunciam os títulos que receberam, pertencem Art et politique (1974) e
Subversion, perversion (1977).
139
Possível concluir que, durante todo seu itinerário intelectual, Dufrenne se manteve interessado
por uma imensa gama de problemas; a maior parte deles pensados, pela primeira vez, na
Phénoménologie.
Então, em relação ao tema desta pesquisa, é preciso seguir um duplo caminho: elucidar e
justificar o aparecimento da hipótese ontológica na Phénoménologie e, após, acompanhar o
seu evolver nos escritos posteriores. Cumprindo estes propósitos a primeira tarefa será a mais
importante, a segunda será desenvolvida de forma apenas indicativa, permanecendo talvez
como provocação para um futuro trabalho.
Logo de início, na Phénoménologie, Dufrenne esclarece seus três grandes propósitos, que o
acompanhariam durante todo seu itinerário intelectual: descrição da experiência estética, sua
análise transcendental e o resgate de sua significação ontológica.
42
Assim, é possível afirmar que, na Phénoménologie, a hipótese segundo a qual a experiência
estética comporta uma significação ontológica é vislumbrada desde o início, sendo um
propósito explícito da obra contribuir para o resgate desta significação. É preciso lembrar,
uma vez mais: trata-se de uma hipótese porque não é sem hesitações que tal significação
ontológica é afirmada. Mais ainda, tal hipótese aparece como um novo ponto de chegada, em
torno do qual não é dita (estabelecida) uma última palavra.
43
Durante a maior parte da Phénoménologie Dufrenne se ocupa da tarefa de descrever: todo o
primeiro volume, o mais extenso - com mais de quatrocentas páginas - é dedicado à
fenomenologia do objeto estético (primeira parte) e à análise da obra de arte (segunda parte).
42
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. I. Paris: PUF, 1953. p. 1.
43
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 677.
140
Ali comparece uma das mais peculiares teses dufrennianas: o objeto estético é a obra de arte
percebida enquanto tal, o que importa no reconhecimento do papel decisivo do espectador na
experiência estética, vez que a obra reclama ser por ele completada: é ele que faz justiça à
obra ao percebê-la esteticamente, e este é o motivo que preside sua criação, que toda obra
de arte se destina à percepção estética.
O segundo volume é dedicado à fenomenologia da percepção estética (terceira parte da obra)
e à crítica da experiência estética (quarta e última parte da obra). A terceira parte é, ainda,
predominantemente descritiva: ali são descritos os três momentos da percepção estética e, em
seguida, são descritas as especificidades da experiência estética, comparando-se esta com
outras formas de experiência, mormente com a amorosa. Na quarta parte, tenta-se uma análise
transcendental ou crítica, isto é, são investigadas as condições de possibilidade da experiência
estética e, indo além desta exemplar forma de experiência, teorizam-se as condições gerais
sob as quais pode um objeto ser sentido. Nesta parte, comparecem as maiores originalidades
do pensamento dufrenniano, sendo uma delas a retomada da discussão sobre a temática dos a
priori, em diálogo com a tradição kantiana, mas sem a ela se aferrar tentando aliás, uma sua
complementação.
Como se vê, a obra aparece dividida em quatro partes. Casey, considerando a estrutura interna
da obra e os propósitos do autor, propôs para ela uma divisão tripartida: 1. objeto estético; 2. o
sujeito da percepção; 3. a reconciliação entre sujeito e objeto.
44
Também Roberto Caparelli
Figurelli manifesta seu acordo em relação a uma divisão tripartida da obra, muito embora
manifeste sua discordância em relação às partes propostas por Casey. Para ele, as partes da
obra seriam: descrição fenomenológica, análise transcendental e significação ontológica da
44
CASEY. E.S. Translator’s Foreword. In The phenomenology of aesthetic experience. Trad. E.S. Casey, A.
Anderson, W. Domingo e L. Jacobson. Evanston: Northwestern University Press, 1973. p. XXII.
141
experiência estética. Concordamos: esta divisão parece ser, de fato, a que mais corresponde
aos objetivos da obra e pode “servir de fio condutor não apenas para uma aproximação da
Phénoménologie, mas também para a compreensão de um itinerário de pensamento que se
prolonga para além do livro”.
45
É a mais apropriada divisão da obra porque melhor
corresponde às três ordens temáticas a que se dedica Dufrenne: descrição fenomenológica do
objeto estético e análise da obra de arte; a procura pelas condições de possibilidade da
percepção estética e o resgate da significação ontológica da experiência estética.
Na verdade, a hipótese da significação ontológica aparece no contexto mais amplo da crítica
da experiência estética, denotando que a sua justificação tem a ver com as condições de
possibilidade daquela forma de experienciar.
Assim, embora durante todo o percurso da obra se anuncie a hipótese de uma significação
ontológica da experiência estética tendo em vista o pressuposto de que uma co-
substancialidade essencial entre homem e mundo - no contexto da Phénoménologie, é apenas
no último capítulo da sua última parte, que esta hipótese é, explicitamente, enfrentada. Parece
que toda a obra tem nesta hipótese seu ponto culminante. Isto porque, se um acordo
essencial entre homem e mundo acordo que indica a existência de um antecedente, algo
anterior à cisão entre sujeito e objeto torna-se necessário encontrar para este pressuposto
uma justificação.
Com este propósito firma-se a hipótese da significação ontológica: a experiência estética,
dando a conhecer, de forma exemplar, o acordo substancial, a familiaridade entre homem e
mundo, induz a afirmação de que esta familiaridade deva apontar para um sentido que se
45
A respeito da divisão proposta por R. C. Figurelli, aqui referida, ver: FIGURELLI. Roberto Caparelli. Mikel
Dufrenne et Martin Heidegger – essai de confrontation. Liège: Université de Liège. 1981-1982. pp. 93-94.
142
prolonga em direção a um fundo comum, a algo anterior à cisão homem e mundo, enfim
aponte para algo que os reúna antes da separação, da polarização. Se, de um lado, a
experiência estética denuncia este acordo fundante entre homem e mundo, de outro é preciso
que este acordo seja justificado. No contexto de um discurso justificante daquele acordo,
aparece a hipótese ontológica como ponto culminante de toda a obra.
Em suma, a hipótese pode ser assim anunciada: a arte, a experiência estética nos conduz ao
começo, ao originário – a um ponto anterior à cisão entre homem e mundo e, por isto mesmo,
assume uma significação ontológica na medida em que o espectador descobre que o
existencial, que ele é, e o cosmológico, que constitui o mundo, são um, descoberta que
também precisa ser justificada.
46
Deste modo, se a hipótese ontológica é um ponto de chegada, para o qual parece se dirigir
toda a obra, é também um novo ponto de partida, exigindo uma nova justificação. Talvez por
isto, na Phénoménologie, a hipótese apareça no final da obra, com a indicação explícita de
que ali não fôra dita uma última palavra.
47
Por este motivo, na tentativa de dizer mais sobre a hipótese, em muitos escritos posteriores à
Phénoménologie, Dufrenne se dedicaria a justificar, sempre com novos esforços de
aprofundamento, dois pontos importantes que, em alguma medida, encontram-se presentes
em sua obra máxima: a fundação do sentido ontológico a partir da questão dos a priori e a
necessidade de se elaborar uma filosofia da Natureza, capaz de dar conta de dizer a Natureza
enquanto fundo originário, raiz do acordo essencial entre homem e mundo, a priori de todo a
46
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. pp. 661-667. e
passim.
47
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 677.
143
priori. E, se é verdade que a experiência estética é uma forma exemplar em que se
descortinam estas tarefas, convém que ela seja firmada como um anseio pelo originário e que,
de resto, toda forma de experiência seja cúmplice deste anseio por uma anterioridade radical.
Pensamos ter percorrido os principais argumentos que, no pensamento de Dufrenne,
sustentam a hipótese ontológica, pensada a partir da experiência estética. Mas, como tentativa
de acompanhar, ainda que suscintamente, o movimento do pensamento de Dufrenne a respeito
da questão, justifica-se a sistematização que agora propomos: tratar, em seguida, da
apresentação da hipótese na Phénoménologie e, após, dos desenvolvimentos que a hipótese
teria assumido nos escritos a ela posteriores.
5.4 A hipótese ontológica na Phénoménologie: justificação antropológica e cosmológica
da experiência estética
A significação ontológica é afirmada a partir de um “se”, como um discurso condicional, isto
é, pressupondo aquilo mesmo que a experiência estética revela: o acordo entre sujeito e objeto
estético, mediado pelos a priori afetivos. Por isto, não se encontrariam para ela justificações
cabais. Em razão da exemplaridade da experiência estética este acordo deve se estender para
toda e qualquer outra forma de experienciar, denunciando então um acordo essencial entre o
homem e o real, em geral. Mas, pensar o fundamento deste pacto, desta familiaridade, desta
co-substancialidade tornada evento na experiência estética parece desafiar os limites da
filosofia. Então, Dufrenne hesita em construir uma ontologia. Por um lado, hesita até mesmo
em afirmar sua possibilidade. Mas, por outro lado, não se cansa de anunciá-la, pelo menos
144
como um desafio aos limites do pensamento, do logos, que a experiência estética deixa
entrever algo que exige ser pensado aquém da cisão entre sujeito e do objeto, o que nos
remeteria ao vetusto problema do ser.
A hipótese, portanto, deixa em aberto sempre uma condição, como uma interrogação
incessante: possível dizer o ser? Ele se diz na linguagem, ou esta dele não é capaz? Enfim, o
logos pode dar conta da construção de uma ontologia, que diga algo sobre o ‘fundo de todos
os fundos’? A resposta de Dufrenne é múltipla, hesitante: na Phénoménologie, embora insista
na identificação de seus limites, comparece uma tentativa de justificar a hipótese ontológica;
após, nos escritos que se seguiram, os limites se avultam e, então, passa-se a falar na
necessidade de uma filosofia da Natureza. De qualquer modo, para nós, todos os esforços
convergem em uma direção: tentar assentar que não é possível não se deixar desafiar pelo
originário, por aquilo que está antes de qualquer cisão entre homem e mundo, mesmo que se
reconheçam os limites que esta provocação nos impõe, ou seja, mesmo que estes limites
sejam tamanhos a ponto de nos fazer hesitar em pensar o fundamento, o ser.
Acompanhemos, com maior vagar a solução apresentada na Phénoménologie e, em seguida,
apenas como ensaio para futuros estudos, será apresentado o movimento que permitiu a
Dufrenne negar a possibilidade de uma ontologia em favor do necessário esboço de uma
filosofia da Natureza.
Na Phénoménologie, no mesmo momento em que se formula a hipótese, formulam-se
também sérias dúvidas quanto à possibilidade de sua sustentação, concluindo-se que até o
presente momento, em todo caso, estamos preparados para encontrar para a verdade estética
apenas uma justificação antropológica.” Para Dufrenne, a justificação da hipótese ontológica
145
deve contar com a resolução do problema da verdade estética. Trata-se de investigar em que
medida a arte e o real se relacionam. Mas, para tanto, contamos apenas com uma possível
justificação antropológica.
Na formulação da hipótese, o ser é entendido como fundamento dos dois aspectos do a priori,
o existencial e o cosmológico e, sendo portador de um sentido, ao mesmo tempo que o
imprimiria no real, forçaria o homem a testemunhá-lo. Eis a passagem fundamental:
Atribuir uma significação ontológica à experiência estética é admitir que os dois aspectos
do a priori afetivo, cosmológico e existencial, são fundados no ser, isto é, que o ser é
portador do sentido que, de um lado, ele imprime no real e que, de outro lado, ele força o
homem a proferir: a experiência estética ilumina o real porque o real é como o contrário
do ser, do qual o homem é, por sua vez, testemunha: de maneira que se a arte diz o real é
porque, ambos, o real e a arte são subordinados ao ser. É preciso, então, recusar ao
homem a iniciativa da experiência estética para confiá-la, de alguma maneira, ao ser.
48
Está formulada a hipótese e, a dar crédito à possibilidade de seu desenvolvimento filosófico,
deveríamos fazer desaguar a crítica da experiência estética em uma ontologia. Mais
precisamente, ao transformar a condição de possibilidade da experiência estética, a saber, os
a priori afetivos, em propriedade do ser, isto porque nele têm seu fundamento, não haveria
melhor via de compreensão da própria experiência senão aquela fundada em uma construção
ontológica. Enfim, uma fenomenologia da experiência estética, como seu fundamento,
exigiria uma ontologia justificante.
Mas, tão logo a hipótese ontológica é aventada, sobrelevam-se as dúvidas quanto à sua
sustentabilidade: seria mesmo possível subordinar a experiência estética, não à iniciativa do
homem, mas a uma atividade do ser? As interrogações, que colocam em cheque a hipótese,
não param: “o sentido não vem às coisas pelo homem? Poderíamos falar de um ser do sentido
identificando o sentido com o ser do qual o homem seja o servidor e o real a
48
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 657.
146
manifestação?”
49
Diante destas colossais interrogações que, de algum modo, já colocam o
pensamento na via do problema do ser, Dufrenne hesita: até o momento, para a hipótese
ontológica, seria apenas possível uma justificação antropológica. Mas, com isto, a perspectiva
metafísica
50
não está, de todo, abortada, permanecerá como um desafio ao pensamento. Este
desafio será, doravante, o principal mote do pensamento de Dufrenne e, de forma velada ou
na maioria das vezes explícita, acompanha suas soluções futuras para a hipótese ontológica.
É preciso agora acompanhar a justificação antropológica, aquela que, até o presente,
51
é
possível oferecer como base de sustentação para a hipótese ontológica.
5.4.1 Justificação antropológica da verdade estética
Justificar antropologicamente significa verificar como o homem, pela experiência, tem acesso
à verdade estética e, por ela, ao sentido do real, apreendendo o real como mundo.
Ao problema da verdade estética, ou seja, “ao problema de saber como o objeto estético,
revelando um mundo, poderia nos instruir sobre o real”, Dufrenne diz ter “respondido por
49
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 667.
50
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. pp. 665-667.
51
Sustentamos que ao dizer, até o presente, Dufrenne antevia, ainda que não completamente, seus esforços
futuros no sentido de submeter a reexame a questão, isto é, pensava se dedicar posteriormente a repensar a
possibilidade de uma justificação, desta feita, ontológica para a experiência estética. Esta tese, cremos, se
anuncia claramente quando Dufrenne, em uma nota de rodapé, busca relacionar ao problema do ser o sentido do
real, concluindo que o sentido pode se tornar natureza. Eis o texto: “isto não implica que o real seja idêntico ao
sentido: ele é, como na dialética hegeliana, o outro do sentido; e assim ele é o que transborda, o inesgotável, o
não-sentido. Mas o que é não-sentido em relação ao homem é, ainda, sentido em relação ao ser: é o sentido que
se tornou natureza.” Ora, a noção de natureza, como a priori de todos os a priori, portanto, enquanto instância
originária que confere sentido ao real, ao sujeito e ao objeto, será um dos grandes achados do pensamento
Dufrenniano posterior à Phénoménologie. Isto denota certa continuidade do pensamento de Dufrenne: insinua-se
na Phénoménologie o seu posterior apelo para a noção de natureza, como fundamento originário. Então
passará a escrever Natureza, com “N” maiúsculo, para indicar este achado. A descontinuidade ficaria por conta
de uma mudança de posição da questão do ser: agora, nos escritos posteriores à Phénoménologie, não se trata de
pensar o ser, mas a Natureza como fundamento dos a priori afetivos e fonte de sustentação da co-
substancialidade entre homem e mundo, acordo este descortinado exemplarmente na experiência estética. A nota
a que nos referimos encontra-se em: DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II.
Paris: PUF, 1953. p. 657.
147
meio de um argumento ad hominem, mostrando que o real não é absolutamente juiz do mundo
estético, que ele tem necessidade deste mundo para aparecer como real.”. Por isto, foi
possível concluir que “o objeto estético é verdadeiro naquilo que ele nos induz a completar o
movimento constitutivo de uma verdade.” Não se trata aqui de uma verdade do fato, mas de
uma “verdade mais fundamental segundo a qual, antes de toda objetivação, um mundo é
possível.” Assim, justifica-se a verdade estética - aquela que nos induz a pensar que, antes de
qualquer objetivação, há um mundo porque “a experiência estética prefigura a démarche de
toda consciência: ela coloca em jogo os a priori, o que pressupõe a apreensão do real como
mundo. (...) (estes a priori) são a condição da experiência e, ao mesmo tempo, constituem o
sujeito como sujeito que faz experiência do real.”. Enfim, “o a priori é, a um tempo, um a
priori em relação ao real e um a priori que eu sou. Sem ele, não há sujeito e não há mundo.”
52
Estão delimitados os pontos essenciais para uma justificação antropológica da verdade
estética: o objeto estético revela um mundo; para que o sujeito se empenhe em apreender este
mundo, nele alienando-se, deve haver algo que funcione como um saber virtual, permitindo o
encontro entre ele e o mundo do objeto estético; este algo que une e constitui, a um tempo,
sujeito e objeto é o a priori; os a priori afetivos constituem um fundo originário: fundam o
real e o sujeito, enquanto sujeito que os percebe. Ainda, não se está aqui, segundo Dufrenne,
nos domínios da ontologia, mas foi alcançada uma justificação antropológica – isto é partindo
do papel do sujeito para a hipótese ontológica: sustenta-se que a experiência estética exige
um a priori fundante, a um tempo, do objeto e do sujeito. Dizer mais sobre este a priori
seria ultrapassar os limites de uma justificação antropológica e adentrar o campo próprio de
um discurso ontológico, mas é diante disto que se hesita, pelo que devem ser respeitados os
limites daquela justificação.
52
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 658. Todas as
citações estão contidas na página citada.
148
Pela arte o real se torna expressivo, mas sua expressão somente pode ser lida por um sujeito,
no qual se realiza o a priori existencial que é, ao mesmo tempo, um a priori cosmológico: é
isto que possibilita o encontro de um e outro. A função da arte é, então, colocar em marcha
esta verdade dada antes do real, o mundo como sentido dado antes do objeto, isto é possível
porque ela coloca em jogo os a priori e, com isto, consegue, pelo sentimento, ler a expressão
do real. Dufrenne dirá que a experiência estética tem uma função propedêutica: ilumina uma
via de acesso à leitura da expressão do real.
53
A verdade estética, portanto, não está em copiar um real visto, “é pela arte que o ver
reencontra seu frescor e seu poder de persuasão; a arte nos reconduz ao começo. (...) A arte
não copia, porque não um real dado numa percepção prévia, a que a percepção estética
teria que se igualar. Por pouco diríamos que é com a arte que começa a percepção.”
54
Aqui
vislumbramos clara crítica à mimesis, se esta for entendida como tarefa da arte no sentido de
reproduzir um real já previamente dado, antes de qualquer uma sua expressão.
É preciso, ainda, lembrar que o caráter existencial do a priori afetivo se revela já na gênese da
obra de arte, como abertura para o sentido histórico do real. O artista ao produzir a obra, nela
empenha sua condição histórica. De fato, ela “é obra de um homem engajado no real, do qual
a autenticidade se mede pelo empenho neste engajamento.” Então, “a obra não atesta apenas a
personalidade de seu autor, mas a natureza do mundo real em que ele viveu.” Assim, “mesmo
quando a obra não se proponha a representar a realidade contemporânea à sua criação, (ainda
assim) pela criação, ela a testemunha, e o que ela exprime é também expressão do real.”
53
Sobre a função propedêutica da arte, conferir, muito especialmente, DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de
l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. pp. 661-662.
54
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 661-662.
149
Contudo, a realidade histórica contemporânea da arte é culturalmente limitada no espaço e no
tempo e, “talvez o mundo que a obra revela seja mais vasto, capaz de acolher uma realidade
mais diversificada.”
55
Por isto, nem mesmo considerando o mundo da subjetividade
empenhado na criação da obra seria conveniente falar em reprodução, cópia do real pela arte.
Deste modo, é preciso superar a visão da imitação enquanto cópia, a arte deixa suas marcas no
real e, também, é por ele atingida. Assim, a experiência estética é exemplar, inspirando nossa
apreensão do real, que não é sua mera reprodução. De fato, “nossa apreensão do real é nutrida
pela experiência estética; ela, ao mesmo tempo, imita esta experiência e nela se inspira. Mas,
inversamente, o real imita a arte: ele se estetiza ao mesmo tempo que se humaniza.”
56
Então,
faz sentido uma justificação antropológica da verdade estética: algo de natural que reúne o
real e arte, são os a priori afetivos que a experiência estética coloca em jogo e, precisamente,
ao assim proceder ela aponta para um fundo que pode ser encontrado como a priori de todos
os a priori. Com isto, a experiência estética se endereça a uma perspectiva ontológica, mas
para a qual se pode oferecer, por ora, apenas uma justificação antropológica.
A arte contribui para a elaboração do real, que pode nos dar as chaves de sua compreensão,
pelo menos de seus aspectos afetivos. Ela se aplica ao real porque este é, de alguma maneira,
obra sua: a afinidade descende de uma filiação.
57
Não um real previamente dado a ser
meramente descoberto: o olhar humano transforma a natureza. Isto é, o real, enquanto
Natureza é, ainda, obra humana, e quase obra de arte
58
: ele é, da mesma forma que o objeto
55
Todas as citações encontram-se em DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II.
Paris: PUF, 1953. pp. 663-664.
56
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 662.
57
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 665.
58
Para Dufrenne, objeto estético natural, seja porque a natureza se humaniza pelo olhar do homem seja
porque o objeto estético, em geral, contém sempre algo de natural. Este tema, já presente na Phénoménologie,
foi especificamente tratado, dentre outros estudos, em um artigo em 1995 e incorporado ao primeiro volume de
Esthétique e philosophie. Deste primeiro volume tradução publicada no Brasil: DUFRENNE, Mikel. Estética
e filosofia. Tradução de Roberto Figurelli. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. Nesta publicação, o artigo
150
estético, a Sache selbst que Hegel opõe à Ding: o objeto civilizado que reenvia ao homem sua
própria imagem e em que se realiza, deste modo, tanto a afinidade da arte e do real quanto a
unidade do cosmológico e do existencial.
59
E é precisamente a reflexão sobre o objeto estético natural que suscita novas interrogações
que, ultrapassando uma possível justificação antropológica, de novo, apontam para uma
perspectiva metafísica.
60
A justificação antropológica aproxima a estética do humano: aquilo
que o homem descobre no real é, de algum modo, obra sua, fruto de uma humanização
realizada por sua iniciativa, seja por sua ação ou, pelo menos, por seu olhar. Mas, quanto ao
objeto estético natural, seria o homem capaz de imprimir-lhe a expressividade ou seria
necessário supor a existência de um sentido que por ele se quer dizer? Enfim: “não é o artista
movido por uma força e dedicado a um tarefa que lhe ultrapassa? Este sentido, se ele aparece
como um sentido do real, longe de ser imposto ao real por uma iniciativa humana não é, ao
contrário, chamado pelo próprio real? Não é o ser mesmo que convoca o homem a dizer e ler
o sentido do real?”
61
Fácil notar que, responder a estas indagações, implica em extrapolar o campo da justificação
antropológica da verdade estética, adentrando o campo metafísico, isto é, aquele em que se
movimentam nossas possíveis repostas ao problema do ser. Assim, a justificação
antropológica da experiência estética é insuficiente e, por isto, novamente nos remete a uma
perspectiva metafísica.
mencionado aparece entre as páginas 60 e 77. Destaque-se deste artigo uma passagem, contida na página 69, em
que, com apoio em Alain, Dufrenne afirma: “talvez seja o sublime um elemento de toda experiência estética e,
em todo caso, é o momento principal da experiência estética que se realiza perante a natureza. E é precisamente
quando a natureza parece sublime que ela se impõe como natureza.”
59
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 665.
60
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 665.
61
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 665.
151
5.4.2 Perspectiva metafísica
Ao final de uma justificação antropológica da verdade estética, vislumbram-se dois caminhos:
continuar atribuindo ao homem toda iniciativa estetizante, produtora do sentido do real – seria
então o homem, em termos estéticos, como para o velho Protágoras, a medida de todas as
coisas -; ou, ainda, renunciando à ação exclusiva do homem, poderia ser pensado que o
sentido aporta no real advindo de algo que lhe ultrapassa, o ser. Desta maneira, neste último
caso, somos reenviados à hipótese ontológica. Trata-se de uma hipótese, como se afirmou,
que se abre uma perspectiva metafísica, mas a elaboração de uma ontologia, que diria a
última palavra sobre a origem do sentido do real, resolvendo o problema do ser, é colocada
em dúvida. “Talvez a última palavra seja que não há última palavra”.
62
Entre os dois caminhos, quase que devemos escolher, já que as justificações não são cabais. A
formulação hipotética é evidente, como se vê nesta passagem decisiva:
Se se recusa em dizer que o homem porta o sentido e, ele mesmo, transfere ao real o
sentido afetivo que a experiência estética descobre, é preciso dizer: 1. Que o real não
obtém do homem este sentido; e 2. Que o ser provoca homem para ser a testemunha e não
o iniciador deste sentido. Esbocemos estes dois pontos arriscando uma visada ontológica
sobre a arte.
63
Trata-se então de arriscar uma incursão ontológica. Com este espírito, prevenido quanto à
atitude de risco, isto é, percorrendo um caminho acidentado e que pode conduzir a lugar
algum, Dufrenne adentra o campo metafísico. Acompanhemos seus passos.
A questão fundamental é saber se o sentido, tal como se encontra no real, está no princípio
(origem) mesmo da natureza e do homem, ao invés de ser projetado pelo homem na natureza,
62
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 677.
63
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. pp. 665-666.
152
sendo assim missão do homem dizer aquele sentido e não criá-lo, inventá-lo.
64
Segundo a
leitura de Dufrenne, Heidegger teria concedido prioridade ao ser, enquanto fonte do sentido,
cabendo ao homem, ao poeta, tentar enunciá-lo.
65
Em uma passagem esclarecedora Dufrenne estabelece as premissas de sua tentativa,
reconhecidamente arriscada:
Trata-se de tentar compreender a insuficiência da exegese antropológica, segundo a qual
o sentido encarnado no a priori é inventado pelo sujeito e conferido por ele às coisas, pois
o real é a imagem do homem e especialmente da arte que o homem o percebe ou o faz
à sua imagem. Recusar ao homem o privilégio de fundar o verdadeiro para fundar o
homem no verdadeiro, é dar a palavra ao ser, sendo o ser aqui o próprio sentido ou, como
nós sugerimos, aquele a priori, anterior a suas especificações existencial e cosmológica, e
que parece fundar, ao mesmo tempo, o sujeito e o objeto, o homem e o mundo.
66
Mas, se a prioridade ontológica cabe ao ser, que papel restaria para o homem? Convida-se a
admitir um ser do sentido o sentido sendo o ser ao mesmo tempo, anterior ao objeto em
que ele se manifesta e ao sujeito a quem ele se manifesta, e que o convoca a completar esta
solidariedade do objeto e do sujeito.
67
Deste modo o problema colocado pela experiência
estética seria querido pelo próprio ser, procederia da dialética do ser.
68
Mas, aqui os sinais de
alerta soam: “cedo nos perguntamos se isto pode ser pensado.”
69
Embora os limites do discurso se anunciem, ou pelo menos se vislumbrem as marcas do
indizível, “em todo caso, é preciso, então, admitir que o homem é um episódio da dialética
(do ser): ele não cria o sentido. Entretanto, (...) o homem prevenido e instruído pela
64
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 666.
65
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 666.
66
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 666.
67
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 666.
68
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 666.
69
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 666.
153
experiência estética é capaz de reconhecer este sentido e de o subsumir sob a categoria
afetiva.”
70
Não sendo colocado em questão o acordo existente entre o homem e o real, mas defendendo-
se que os dois, real e homem, pertencem ao ser, o que seria o ser de que aqui se fala?
Dufrenne assim responde: “o ser é precisamente esta identidade do sentido, tal como o
homem o pode ler, e do real, tal como nele o sentido pode se inscrever.”
71
Agora uma outra
indagação se impõe: qual o papel do homem, posto que afirmada a dialética do ser, isto é, a
que momento desta dialética ele pertenceria? A esta crucial indagação, assim responde
Dufrenne:
O humano não é desqualificado por isto (privilégio ontológico do ser): o sentido passa
pelo homem, se ele não é constituído por ele; o a priori não deixa de ser comum ao objeto
e ao sujeito; ele permanece existencial, e também constituinte, se bem que a constituição
não seja mais feito do homem, mas do ser através do homem.
72
Há uma solidariedade estrutural
73
do existencial e do cosmológico, fundada esta na descoberta
dos a priori afetivos, e isto requer o homem, senão como aquele que constitui o sentido, ao
menos como aquele que o atesta, daí que o homem passe a ser um momento essencial e
indispensável na dialética do ser. Afirma Dufrenne que “o homem é um momento do ser,
momento em que o sentido se concentra e o surgimento de um pour-soi não é uma aventura
absurda se ele é requerido pelo sentido, ao invés de fundá-lo.”
74
70
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 667.
71
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 667.
72
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 667.
73
Neste passo, isto é, em apoio à tese segundo a qual uma solidariedade estrutural entre o físico e o cósmico
ou, na linguagem de Dufrenne, preferencialmente, entre o existencial e cosmológico, são citadas passagens da
obra Vers une cosmologie, de autoria do psiquiatra de inspiração fenomenológica Eugen Minkowski. Todas as
passagens referenciadas, segundo a leitura feita por Dufrenne, apontam para o “parentesco estrutural entre o
humano e o mundo”, sabendo-se “ser o homem solidário da natureza”. Eis a referência: MINKOWSKI, Eugen.
Vers une cosmologie: fragments philosophiques. Paris: Fernand Aubier, 1936.
74
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 669.
154
Em relação à estética, a subordinação do homem ao ser tem duas implicações. A primeira: a
arte não imita o real, como sugere o realismo estético, ao contrário, o real espera algo da arte:
“espera que seu sentido seja dito.”
75
Continua Dufrenne, apontando uma vez mais a função
da arte:
que a arte tem a missão de exprimir este sentido bem entendido, no que diz respeito
ao sentido afetivo é preciso dizer que o real ou a natureza quer a arte. (...) O objeto
estético é este objeto que faz jus à dimensão humana do real; e o artista é este lugar de
eleição em que o real aquiesce à consciência naquilo que ele tem de mais secreto e,
portanto de mais visível: sua humanidade.
76
A segunda implicação vai mais longe, o que deve fazer soar mais intensamente os sinais de
alerta, lembrando que se trata de uma hipótese, que poderia ser assim formulada: “talvez não
baste dizer que a natureza é dita pelo artista e seja necessário dizer antes que a natureza
procure se dizer por meio dele: a arte se torna uma astúcia e o artista um instrumento para a
natureza em busca de expressão.”
77
O artista liberaria a significação mais escondida da
natureza, cumprindo um desígnio que lhe ultrapassaria, seria um instrumento da dialética do
ser, isto é, “do desenrolar do sentido, que se aliena na natureza e se reflete no homem.”
78
Agora o alerta é máximo e devemos nos perguntar se esta afirmação metafísica - ou seja,
aquela de que a natureza se serve da arte para, por meio dela, dizer seu próprio sentido -, não
se trata de uma afirmação que não podemos, absolutamente, justificar. Com as devidas
cautelas, conferir alguma plausibilidade àquela afirmação seria viável de dois modos:
“aproximando-a de outras afirmações ao menos parcialmente justificáveis ou encontrando
seus antecedentes e ecos na empiria.”
79
75
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 670.
76
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 669.
77
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 670.
78
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 670.
79
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 670.
155
Qualquer dos dois procedimentos poderia tornar plausível a hipótese, não sendo para ela uma
justificação cabal. Nesta tentativa, Dufrenne retomará os principais argumentos delineados
ao longo da Phénoménologie e procurará, comparativamente, ligá-los a outras posições
filosóficas pelas quais eles também foram aceitos.
O primeiro ponto a ser firmado é que “o homem é necessário à natureza para que o sentido
desta desabroche”, idéia que Dufrenne diz ser ratificada também pela filosofia crítica, à
medida que esta proclama a revolução copernicana.
80
De fato, ao tornar a relação entre
sujeito e objeto dependente de estruturas transcendentais do sujeito, de algum modo, para que
a natureza se expresse, isto é, para que apareça seu sentido, ela dependerá do homem.
Outro ponto importante liga-se à convicção de que a natureza queira se expressar por meio do
homem. Desta idéia seria possível aproximar, por um outro viés, “considerando que talvez a
história da matéria culmine com a vida e a história da vida com a aparição do homem.” O
ponto de apoio paralelo para garantir a plausibilidade desta idéia, segundo Dufrenne, se
encontraria nas concepções finalistas para as quais “se o homem é a obra-prima da natureza,
inversamente, a natureza tem necessidade do homem que, ao mesmo tempo, a governa e
justifica.”
81
Talvez este finalismo seja herdeiro “dos velhos mitos que narram a passagem do
caos ao cosmos e que, à sua maneira, dizem como o real se ordena, tornando-se mundo pela
operação da consciência.”
82
Enfim, como sustentam os finalistas, se o élan vital se completa
no homem, “não seria proibido pensar que, em recompensa, o homem incorpore algo a esta
natureza da qual ele é descendente.”
83
80
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 670.
81
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 670.
82
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 670-671. A
citação consta na nota de rodapé número (I), que se inicia na página 670.
83
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 670.
156
Quanto à necessidade que o real teria do artista para se exprimir na obra, a analogia poderia
ser encontrada na dialética hegeliana da vida e da tomada de consciência da vida. Se a vida
parece ter necessidade de se refletir no homem, não seria absurdo estender a todo o real esta
necessidade, de forma que a arte se tornaria algo de essencial para a natureza, isto porque “se
o vital tende a se completar na consciência, da mesma forma o afetivo, a dimensão humana do
real (tenderia a se completar) na arte.”
84
Estas as aproximações que poderiam ser feitas demonstrando que, na história do pensamento
ocidental, a hipótese ontológica encontra plausibilidade, na medida em que aparece como
análoga a algumas teses aceitas seja pela filosofia crítica, seja pelas doutrinas finalistas seja,
ainda, corroborada pela idéia hegeliana da dialética da vida.
O segundo procedimento do qual poderíamos nos servir para conferir plausibilidade à
hipótese, ou seja, a procura por seus “antecedentes ou ecos na empiria”, é marcado pela
rememoração dos principais argumentos apresentados por Dufrenne ao longo da
Phénoménologie e que, inclusive, são os mesmos que o teriam conduzido à indicação de uma
“perspectiva metafísica” no final daquela obra.
Novamente, retornam como apoio à hipótese os argumentos que seguem. O a priori afetivo,
do qual nos conta a experiência estética, exige o surgimento de um sujeito, tornando-se
então o que ele realmente é: “uma determinação do ser, um sentido que a natureza reflete e
que se refletiu no homem.”
85
O sentido precede o homem e, “assim se prolonga a idéia de
que a arte é querida pela natureza” (...) sabendo-se que a arte “é um serviço que a natureza
espera do homem”, e que o homem participa da dialética do ser como um seu momento
84
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 671.
85
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 672.
157
importante, sendo o ser “o devir mesmo do sentido”, reclamando então a participação do
homem, por meio de quem toma consciência de si enquanto sentido. Ainda é recordado que o
homem e o real “são da mesma raça, na medida em que um mesmo a priori neles se realiza e
os aclara com uma mesma luz,”
86
por isto, o objeto estético aparece por iniciativa de um
espectador, que reconhece e acaba a obra de arte.
Como se vê, são retomados os argumentos fenomenológicos
87
que teriam conduzido Dufrenne
a formular a hipótese ontológica, agora como possível sustentáculo, em bloco, para aquela
mesma hipótese, numa espécie de petição de princípio.
Contudo, ao final, os resultados que teriam sido alcançados por uma “ontologia da experiência
estética”
88
, mais uma vez, são colocados em cheque ao serem submetidos a interrogações das
quais, aliás, nunca se viram livres. Trata-se de reconhecer os limites daqueles mesmos
argumentos, sobre os quais sempre paira a suspeita de que não seriam suficientes para
justificar a hipótese ontológica, mas apenas para indicá-la. Eis o rol das indagações que
abalam os argumentos, retirando-lhes o poder de justificar:
Mas esta ontologia pode ser aceita sem reserva? Este retorno ao humano, à condição do
artista e do espectador, que a ilustra e parece justificá-la, não a coloca também em perigo?
Logo que, de novo, se invoca o homem, poderia ele fazer sua parte? E a ontologia não
nos conduz, novamente, ao antropológico e, por ele, ao empírico? Não nos deveríamos
nos contentar, modestamente, com a justificação empírica que primeiramente foi
proposta?
89
Por isto a desconfiança e depois a convicção de que uma exegese antropológica da
experiência estética é sempre possível não sendo, contudo, necessário que a sua crítica
devenha ontologia. Isto é, não poderia ser dita uma última palavra que, resolvendo o problema
86
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 676.
87
Dufrenne mesmo o admite, como se vê em: DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique.
Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 676.
88
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 676.
89
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 676.
158
do ser, exigência de uma ontologia, conseguisse dar conta da direção de sentido descortinada
na experiência estética, uma experiência exemplar que atesta o acordo (a co-substancialidade)
entre homem e mundo, mas que deve ainda reconhecer seus limites para pensar aquele mesmo
acordo.
Entende-se, então, porque que a experiência estética possa apenas nos convidar a admitir um
acordo entre o homem e o real; acordo que se manifestaria, em primeiro lugar, no objeto
estético que é um em-si e um para-nós e, ainda, na significação deste objeto, que não
apenas exprime seu autor, revelando também um rosto do real.
90
Quanto a aceitar ou não o
convite uma coisa é certa: não devemos esperar motivos que, ontologicamente, justifiquem
firmemente nossa escolha. Mas se não é possível uma ontologia justificante e se, apesar disto,
continua a experiência estética a formular aquele convite, existiria outra instância de
pensamento que melhor nos habilitasse a uma decisão? Esta a interrogação que, a nosso juízo,
orientou todo o pensamento elaborado por Dufrenne após a publicação da Phénoménologie.
A resposta? Esta, aqui, somente podemos indicar a estrutura óssea, sem preencher dela todo o
corpo. Vejamos.
5.5 Nova direção dada à hipótese ontológica nos escritos posteriores à Phénoménologie:
esboço de uma filosofia da Natureza
Vimos que é sempre possível uma justificação antropológica da verdade estética, isto é, da
estreita relação entre o homem e o real, sendo a arte lugar privilegiado de leitura do pacto
90
DUFRENNE, Mikel. Phénoménologie de l’expérience esthétique. Vol. II. Paris: PUF, 1953. p. 677.
159
existente entre estes pólos co-substanciais. A justificação antropológica, por sua vez, remete a
uma perspectiva metafísica, numa espécie de reconhecimento de sua insuficiência. Contudo,
nesta perspectiva, somente é possível tatear; impossibilitando-se sua justificação, procuram-se
razões de plausibilidade para os achados filosóficos. Por isto, uma crítica da experiência
estética, embora aponte para uma perspectiva metafísica, não pode tornar-se uma ontologia,
porque, para tanto, não reúne condições.
Nos escritos posteriores à Phénoménologie, Dufrenne insistirá nesta direção e, mais uma vez,
se servindo de um conceito advindo de Merleau-Ponty, se torna uma convicção o fato de que
“a descrição do ‘ser selvagem’ é uma ontologia impossível.”
91
Aliás, em um artigo
importante, publicado apenas um ano após a Phénoménologie, portanto em 1954, Dufrenne
apontava nesta mesma direção. De fato, com expressa referência a Merleau-Ponty, após
considerar acertada a posição segundo a qual é mesmo impossível uma redução
fenomenológica completa e, em apoio a esta tese, Dufrenne procura retirar-lhe as
conseqüências para uma adequada compreensão da idéia de intencionalidade. Ele registra:
“então a intencionalidade não tem mais caução no Ser; ela exprime sempre a solidariedade
entre o objeto e o sujeito, mas sem que sujeito e objeto estejam subordinados a uma instância
superior, nem sejam reabsorvidos na relação que os une.”
92
Ora, aqui, comparece uma
desistência explícita: não mais, como na Phénoménologie se pensava, poderá ser fundado o
acordo existente entre sujeito e objeto numa instância deles diversa e a eles anterior, o ser
portanto.
91
DUFRENNE, Mikel. “A priori” et philosophie de la Nature. In: Filosofia, supplément n. 4. 1967. p. 726.
92
DUFRENNE, Mikel. Estética e filosofia. Tradução de Roberto Figurelli. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.
pp. 79-80.
160
Mas, com isto, teria então desaparecido a perspectiva metafísica? A experiência estética não
mais apontaria para algo anterior ao sujeito e ao objeto, fundamento do pacto entre eles
existente, pacto que ela mesma sempre revela? Não, a provocação metafísica continua, o
desafio é dizê-la.
Por isto, o pensamento de Dufrenne assumiu dupla direção: 1. explorando a noção de a priori,
esforçar-se por encontrar um ponto de apoio, um antecedente, que viesse justificar a co-
substancialidade entre sujeito e objeto, entre homem e mundo; 2. verificar os limites e a
possibilidade de se elaborar uma filosofia que fosse capaz de dizer aquele algo que, ao mesmo
tempo, antecede e funda o acordo essencial entre sujeito e o objeto.
Doravante, estas macro direções perpassarão as construções dufrennianas, ao lado de outras
complementares como, por exemplo, a semiologia da arte, o problema da linguagem estética,
das relações entre crítica literária e fenomenologia, além de tentativas de compreender o
sentido da arte de seu tempo. Interessa frisar o programa investigativo daquelas macro
direções.
Quanto à primeira direção, temos dois movimentos. O primeiro: na tentativa de melhor
compreender a noção de a priori, dela deduzindo conseqüências que eventualmente pudessem
responder à provocação metafísica descortinada na experiência estética, Dufrenne publica, em
1959, La notion d’ “a priori”. Na avaliação de Paul Ricoeur - que também dirigiu-lhe
críticas, levadas a sério por Dufrenne o livro propõe o desdobramento da noção de a priori
tornando-o, por um lado, uma estrutura pertencente também ao objeto e, por outro, um saber
virtual desta estrutura, situado no sujeito. Para ele, “por meio desta dupla reforma da filosofia
161
transcendental, Dufrenne transmite um pensamento muito original que procede de certo
número de temas ou, melhor ainda, de experiências vivas, cujo alcance é considerável.”
93
O segundo movimento: a tentativa de melhor delimitar o alcance da noção de a priori,
cumpriu-se, de forma sistemática, apenas em 1981, com a publicação de Les inventaire des “a
priori”: recherche de l’originaire, muito embora a temática do livro fosse recorrente em
outros escritos menores e também no livro Le poétique, que apareceu em 1963. Como o título
da primeira obra permite deduzir, trata-se de um esforço de delimitação do campo dos a
priori, sobressaindo-se a procura pelo a priori de todo a priori, pelo originário. A Natureza
comparecerá, como se tinha anunciado em Le poétique, como o a priori originário. Esta
orientação parece claramente retomar uma temática cara a Merleau-Ponty quando este se
refere ao “ser selvagem”, mas relida agora à luz de Espinosa. É em Le poétique que Dufrenne
diz ter “esboçado finalmente uma filosofia da Natureza.”
94
A Natureza naturante, conceito
que Dufrenne, com peculiaridades, toma de empréstimo a Espinosa, é aqui concebida como
origem de todo a priori, vislumbrando-se como o fundo de todos os fundos. Aqui se faz
sentir, outrossim, a influência dos românticos mas sobretudo de Schelling, de quem Dufrenne
adotará a noção de “fundo”.
A preocupação de Dufrenne, sempre decantada, no sentido de investigar a possibilidade de
dizer o originário, esta não pode ser dita pertencente a uma obra em especial, na verdade,
perpassa todo o seu itinerário posterior à Phénoménologie. Aliás, esta preocupação já se
delineia nesta obra, contudo se torna central mais tarde, em Le poétique.
93
RICOUER, Paul. A noção de “a priori” segundo Mikel Dufrenne. In: Leituras 2: a região dos filósofos.
Tradução de Marcelo Perine e Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Edições Loyola, 1996. p. 250.
94
DUFRENNE, Mikel. Le poétique. Paris: PUF, 1963. p. 4. tradução desta obra: DUFRENNE, Mikel. O
poético. Tradução de Luiz Arthur Nunes e Reasylvia Kroeff de Souza. Porto Alegre: Editora Globo, 1979.
162
A procura pelo originário, pelo incondicionado, por um fundamento último inclui, ainda, o
problema do discurso adequado para sua compreensão. Contudo, parece que o pensamento
sempre quer ir além do fundamento, experimentando seus limites. A idéia de Natureza
comparece como um conceito-limite. O “N” maiúsculo “indica não somente a exterioridade,
mas a anterioridade do mundo em relação ao sujeito, e significa também a energia do ser.”
95
Ora, se a Natureza, enquanto lugar de emergência de todo a priori, se situa aquém de toda a
correlação com um olhar ou um ato humano, nenhum discurso seria dela capaz já que, o
mundo que não é ainda o Eu, nem a fortiori, para Mim, é o mundo antes do homem que
produz o homem em vez de ser constituído por ele.
96
A Linguagem poética aparecerá, então,
como a mais apta para tentar dizer a Natureza, reconhecidamente inefável. Muito embora o
poeta entenda seu mister, cabe à Natureza a iniciativa de dizer-se por ele uma vez que, “pelo
poeta a Natureza vem à consciência como o outro da consciência; é por isto ela quer o poeta e
o poeta se quer como poeta. Ser poeta é ser disponível ao que da Natureza vem.
97
Aqui, clara confluência com o pensamento de Heidegger, do último Heidegger, para quem
“o homem não fala senão na medida em que corresponde à palavra. A palavra é falante. O seu
falar fala para nós onde foi falado: no poema.”
98
diferenças, é certo: para Heidegger é
o ser que se diz na linguagem, para Dufrenne é a Natureza, enquanto raiz de todo a priori.
Dufrenne mesmo cuida de estabelecer aquelas diferenças mas, ao fazê-lo, parece ressaltar
ainda mais as aproximações, sobretudo uma: a compreensão da poesia como discurso mais
capaz de dar conta do originário.
95
DUFRENNE, Mikel. L’inventaire des “a priori”. Paris: FUF, 1981. p. 164.
96
DUFRENNE, Mikel. L’inventaire des “a priori”. Paris: PUF, 1981. p. 165.
97
Quanto ao tema da disponibilidade, da abertura do poeta àquilo que a Natureza quer dizer, ver especialmente:
DUFRENNE, Mikel. Le poétique. Paris: PUF, 1963. pp. 226-229.
98
HEIDEGGER, Martin. La parole. In: Acheminemet vers la parole. Paris: Gallimard, 1990. p. 37.
163
Além disto, aqui Dufrenne parece se aproximar, uma vez mais, de Merleau-Ponty pelo menos
das idéias que comparecem em seus últimos trabalhos, mormente em O filósofo e sua sombra
e O visível e o invisível. Nestes escritos, Merleau-Ponty se aproxima da temática de uma
natureza observada “no seu movimento em direção ao homem, ao mesmo tempo percebido e
percipiente, experimentando-se no homem e através dele.”
99
Por certo, Dufrenne pretendeu
ir além, sobretudo quando diz ter faltado a Merleau-Ponty “ligar a idéia de Natureza à idéia de
fundamento, como o a priori de todo a priori e colher o nascimento do dualismo e
metamorfose do homem e do mundo na raiz mesmo do monismo.”
100
Por tudo, em suma, é possível afirmar que, nos escritos posteriores à Phénoménologie, a
hipótese da significação ontológica da experiência estética, ganhou nova configuração:
sempre mais se dirigiu rumo à elaboração de uma filosofia da Natureza, posto que
reconhecida a impossibilidade de uma ontologia que pudesse justificar a perspectiva
metafísica aberta pela crítica da experiência estética; sempre mais se firmou a poesia como
discurso adequado, aquele mais capaz de corresponder à escuta da Natureza; minimizou-se o
privilégio concedido ao espectador na análise da experiência estética em favor de uma maior
atenção dirigida ao artista, isto porque ele seria agora o instrumento do dizer da Natureza.
Se é verdade que estas direções são suficientes para uma nova configuração do problema, não
é menos verdade que existam, também, continuidades: a idéia de Natureza enquanto fundo de
todos os fundos, enquanto origem de todo a priori, comparece na Phénoménologie, embora
envolta em uma névoa que o pensamento posterior de Dufrenne cuidaria de remover; da
mesma forma, também o problema da insuficiência do discurso produzido pelo logos é tema
99
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 140. O mencionado
ensaio o filósofo e sua sombra, aparece publicado em: MERLEAU-PONTY, Maurice. Signos. São Paulo:
Martins fontes, 1989.
100
DUFRENNE, Mikel. Jalons. La Haye: Nijhoff, 1966. p. 217.
164
que se anunciava na Phénoménologie e que, posteriormente, recrudesceu até chegar à
solução da linguagem poética como forma mais adequada de expressão da Natureza.
Contudo, verificar como Dufrenne teria esboçado uma filosofia da Natureza, apurando seus
eventuais compromissos com a tradição, é tarefa que ultrapassa, aqui, nossos propósitos,
devendo ser cometida a um outro futuro trabalho.
165
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O pensamento de Dufrenne dialoga com grandes vultos da tradição filosófica ocidental e
promove entre eles um encontro rico e inédito. Dentre os nomes com os quais, em maior
medida, interage Dufrenne devem ser citados Husserl, Merleau-Ponty, Sartre, Heidegger,
Baruch de Espinosa e, ainda, Kant e Hegel. Em menor medida, mas também com certa
importância, aparece o diálogo travado por Dufrenne com R. Ingarden, G. Bachelar, H.
Bergson e com os frankfurtianos, sobretudo com H. Marcuse e T.Adorno. O diálogo com este
amplo rol de luminares da filosofia no Ocidente não se dá de forma acrítica, ou descuidada.
Ao contrário, Dufrenne é um leitor atento e perspicaz da tradição filosófica, criando um
pensamento dotado, em muitos aspetos, de originalidade, exatamente porque construído nos
espaços em que ele identifica as falhas e os erros daquela mesma tradição com a qual mantém
um diálogo aberto. Permanece, ainda assim, um ilustre desconhecido ou, pelo menos entre
nós, não suficientemente lido e valorizado.
A originalidade mais visível é garantida pela inegável orientação estética dada a todo o
pensamento de Dufrenne. Na verdade, Dufrenne pensou instaurar todo um programa
investigativo-filosófico a partir da reflexão sobre a experiência estética. No âmbito do
movimento fenomenológico, de fato, é a Dufrenne que devemos atribuir uma dedicação
central e quase exclusiva aos problemas suscitados pela estética. Neste sentido, é a partir da
experiência estética, entendida como experiência exemplar, que Dufrenne diz ser possível, por
exemplo, uma teoria geral da percepção. Assim, a descrição da experiência estética e, da
mesma forma, sua análise transcendental são realizadas com acuidade, conduzindo a
resultados filosoficamente significativos, não somente para o campo da estética, mas para a
filosofia como um todo. Ao final da Phénoménologie, comparece o desenvolvimento de um
166
de seus mais ambiciosos objetivos, como corolário de todo seu esforço de compreensão da
experiência estética como gênero: resgatar sua significação ontológica. Os termos
‘ontológico’ e ‘metafísico’ são tomados um pelo outro, indicando os dois a mesma direção:
apontam para um fundo originário que, a um tempo, antecede e fundamenta a co-
substancialidade existente entre homem e mundo, entre sujeito e objeto, entre o homem e o
real. Mas é como hipótese que a experiência estética deixa entrever uma sua significação
ontológica, ou aponta para uma perspectiva metafísica, que para ela não seria possível
encontrar uma justificação completa, conduzida nos caminhos de uma ontologia.
A hipótese de uma significação ontológica é pensada por Dufrenne como conseqüência da
investigação crítica. Para ele, a elaboração de uma fenomenologia da experiência estética
deve percorrer três momentos: a descrição, a análise transcendental e, por fim, a tentativa de
resgatar sua significação ontológica. É a análise transcendental que, como uma abertura de
horizontes, indica um sentido metafísico. Assim, opera-se um salto do transcendental ao
metafísico. Par este salto pode ser encontrada não mais que uma justificação antropológica.
Portanto, trata-se de uma hipótese, antes de tudo, porque são reconhecidos seus limites de
justificação, isto é, não é possível a construção de uma ontologia que, dizendo uma última
palavra sobre o ser, pudesse também explicar o ser que se revela na experiência estética.
Na Phénomenologie, o caminho percorrido por Dufrenne para tentar uma justificação da
hipótese da significação ontológica é sinuoso e hesitante. A todo tempo insinua-se a
necessidade de uma ontologia, mas logo o discurso se atenua em favor agora da admissão de
uma apenas possível justificação antropológica do sentido metafísico. Contudo, esta
justificação permanece insuficiente retornando, por isto, como provocação, a perspectiva
167
metafísica, para a qual se procura uma plausibilidade. Esta pode ser encontrada de dois
modos: analogicamente, identificando teses comuns admitidas também pela tradição
filosófica ocidental ou, ainda, procurando para ela uma justificação, pelo menos em parte,
aceitável. Sabe-se, contudo que não é possível justificar completamente a hipótese, ou seja,
dizer uma última palavra, capaz de tornar inteligível todo o resto.
De um lado, a percepção estética demonstra que os a priori afetivos são a condição de
possibilidade do acordo originário, que torna visível a co-substancialidade entre homem e
mundo, mas por outro lado, faz calar a voz aí, precisamente quando deveríamos ir além. No
entanto, antropologicamente, é possível ver que os a priori que fundamentam aquela co-
substancialidade, pertencem, a um só tempo e do mesmo modo, ao objeto e ao sujeito, não são
meros esquemas formais presentes no sujeito. Construir uma fenomenologia da experiência
estética objetivando verificar a possibilidade de se pensarem os fundamentos deste acordo
essencial: este o desafio.
No final de seu esforço de compreensão fenomenológica, Dufrenne concluirá que a
significação ontológica da experiência estética, apesar de não autorizar uma ontologia, deixa
entrever que um fundo originário, que deve ser pensado como fundamento do encontro
sempre possível entre sujeito e objeto, homem e real. Como isto seria possível? Dufrenne
procurou, em escritos posteriores à Phénoménologie, dar respostas, no plural, a esta
indagação.
Uma leitura crítica da Phénoménologie deixa entrever certas tensões das quais não consegue
escapar o pensamento de Dufrenne. Estas tensões jogam o discurso contra as fronteiras do
possível, da expressão, da linguagem. Nem por isto dão origem a incongruências. Contudo,
168
permanecem certas hesitações, o que é próprio de um pensamento que se mantém tenso
durante todo o percurso. Isto é claramente identificável na afirmação da hipótese ontológica:
ela aponta para a exigência de uma ontologia justificante, mas, ao mesmo tempo, antevê sua
impossibilidade. É esta tensão, que constantemente previne Dufrenne acerca dos resultados
alcançados.
Neste sentido, uma releitura da hipótese ontológica nos escritos publicados após o advento
da Phénomenologie. A uma ontologia, reconhecidamente impossível, deve suceder uma
filosofia da Natureza, ainda que esta possa apenas ser esboçada. Talvez fosse possível tão
somente esboçar uma tal filosofia porque são amplamente reconhecidos os limites do logos
para pensar a Natureza, enquanto esta sendo a origem de todo a priori estaria, portanto,
aquém do humano, num recuo para antes da cisão existente entre sujeito e objeto, restando
assim inefável.
Por isto, a linguagem mais apropriada para a expressão capaz, ao menos em parte, de dar voz
à Natureza, será a poética: por ela melhor se pode ouvir o que a Natureza tem a dizer ao
homem, por meio do poeta. Contudo, ainda se fala de filosofia da Natureza, não havendo
renúncia total ao discurso fundado no logos. Esta a questão: como é possível a um discurso
filosófico dizer o que poderia ser dito pela poesia, em que maior iniciativa cabe à Natureza
ciosa por manifestar-se - e não ao dizer do poeta? Talvez por isto, a decantada filosofia da
Natureza somente possa mesmo ser esboçada.
Possível, então, falar de um primeiro Dufrenne, o da Phénomenologie, e de um segundo,
aquele dos escritos a ela posteriores? Uma resposta coerente exigiria um duplo movimento.
169
Por um lado, é preciso identificar as continuidades isto porque na Phénoménologie se
insinuam os principais problemas de que se ocuparão os escritos a ela posteriores:
impossibilidade de uma ontologia; limites do discurso sustentado pelo logos; necessidade de,
ainda assim, prosseguir na investigação do originário, da “harmonia pré-estabelecida” que
garante o encontro sempre possível entre sujeito e objeto. Além disto, aparecem na
Phénoménologie explícitas referências ao conceito de natureza que, posteriormente, se
tornaria central para Dufrenne. Na verdade, são referências incipientes, mas que indicam
uma direção de pensamento. Direção esta que se aprofundou na mesma proporção em que
Dufrenne se deixou influenciar, mais fortemente, pelo pensamento de Baruch de Espinosa e
dos românticos, mormente de Schelling.
Por outro lado, é preciso verificar as descontinuidades: os problemas colocados por uma
fenomenologia da experiência estética, mesmo que antevistos, quase todos, na
Phénoménologie, inegavelmente receberam uma nova luz nos escritos posteriores. De fato, é
amplamente minimizado o discurso sobre a possível significação metafísica, em favor da
necessidade do “esboço de uma filosofia da Natureza.” Reconhecida a falência ou, pelo
menos, os incuráveis limites do logos, ganha importância a linguagem poética, como
instrumento de que se serve a Natureza para expressar-se. Ainda mais, ao realizar ações não
conformistas, que procuram “o naturante sob o naturado” o homem testemunha um retorno ao
originário, alimenta seu desejo pelo novo, por uma nova história, por uma utopia: libertando-
se o homem e a arte das incrustações sociais, intervindo o imaginário para “renaturar” o real,
devolvendo a ele aquilo de que é espoliado pela representação: a força da presença. Assim,
esta nova perspectiva conduz à conclusão de que “uma filosofia da ação apela para uma
filosofia da Natureza.”
1
Eis porque o pensamento do último Dufrenne desaguaria, então, na
1
DUFRENNE, Mikel. L’inventaire des “a priori”. Paris: PUF, 1981. p. 317.
170
ética e na política,. um dever, uma direção otimizada para as ações humanas: reabsorver
ou pelo menos se alimentar do originário, do incondicionado. A utopia, a procura do novo,
que ainda não é, a não ser como possível, tem também implicações políticas inegáveis.
Enfim, com as devidas cautelas, uma vez identificadas importantes continuidades, sim um
primeiro e um segundo Dufrenne. Neste último comparece não a mera suspeita, mas a
consagração da tese segundo a qual, sendo impossível uma ontologia, a via alternativa para
suprir esta ausência é esboço de uma filosofia da Natureza, mais atento ao dizer poético. Além
disto, Dufrenne conferirá maior importância a uma estética da criação: agora é o poeta que se
coloca a serviço da Natureza à procura de expressão. O espectador não perderia seu status,
como aquele que acaba a obra. Contudo, reconhece-se que uma fenomenologia da experiência
estética deve também se ocupar, com a mesma intensidade, do fenômeno da criação.
Minimizam-se assim as desconfianças de que voltar a atenção para o criador e para o fruto de
sua tarefa redundaria em grandes perigos visão que, na Phénoménologie, teria orientado a
opção metodológica de Dufrenne por elaborar uma estética voltada para o espectador, quase
que exclusivamente. Mais, no último Dufrenne ganha corpo a afirmação do caráter ético-
político da arte, enquanto esta comparece como uma instância que, procurando pelo
originário, pode e deve ser lugar de crítica ao status quo, derrotando toda forma de
conformismo, em nome do resgate do valor da utopia, no indivíduo, pela ética, e no corpo
social, pela política.
Ao seguir os passos que conduziram Dufrenne, na Phénoménologie, à afirmação da hipótese
da significação ontológica da experiência estética pensamos ter cumprido os objetivos deste
trabalho. Por fim, acompanhar, em detalhes, o desenvolvimento da hipótese nos escritos
publicados após 1953, somente será possível em investigações que creditamos ao futuro.
171
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