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Entendida como um agenciamento coletivo de enunciação,
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a literatura,
embora trabalhada por agentes singulares, expressa um delírio coletivo. Daí seu
caráter abrangente. A menina de lá, denominada Nhinhinha, vive por detrás da serra
do Mim, é uma criança a infantilizar paisagens e gentes. Tanto Nhinhinha quanto o
menino dão voz a uma região, a modos de vida distintos, a histórias universais.
Estes personagens inventados são a invenção de um povo, uma possibilidade de
vida. Escrever é, neste caso, escrever por esse povo que falta...
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Guimarães Rosa
não toma o lugar da menina ou do menino, mas fala por eles. Em intenção deles,
revela o jeito sertanejo de ser, o jeito exilado da criança, o modo singular do louco. É
deste modo que, em seus arranjos especiais de palavras, no som, no ritmo e na
cadência da escrita, a arte literária parece apresentar os elementos necessários para
que outro conceito de infância tenha lugar. Não mais o interesse em aclarar o
mistério da infância, senão aprofundá-lo na forma de um enigma. No enigma da
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O termo ‘agenciamento coletivo de enunciação’, conforme Deleuze, refere-se a algo que aciona,
que coloca em movimento enunciados que tendem ao agenciamento de uma enunciação coletiva. É
Deleuze quem afirma: “É que o enunciado jamais remete a um sujeito. Ele não remete também a um
duplo, isto é, a dois sujeitos dos quais um agiria como causa ou sujeito de enunciação e o outro como
função ou sujeito de enunciado.” E, em seguida, esclarece: “E não basta dizer que o agenciamento
produz o enunciado, tal como o faria um sujeito; ele é em si mesmo agenciamento de enunciação em
um processo que não dá lugar a um sujeito qualquer determinável, mas que permite tanto mais
marcar a natureza e a função dos enunciados, já que estes só existem como engrenagens desse
agenciamento ( não como efeitos nem como produtos). In DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix.
KAFKA: Por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago editora, 1977, p. 121-2.
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Deleuze reforça o caráter político da literatura enquanto agenciamento coletivo de enunciação e a
contrapõe a um estado doentio que inibe o devir: “Fim último da literatura: pôr em evidência no delírio
essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, isto é, uma possibilidade de vida.
Escrever por esse povo que falta... (.‘por’ significa ‘em intenção de’ e não ‘em lugar de’).” In:
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997, p.15. Deleuze, referindo-se a Paul Klee,
a respeito da obra artística comenta: “[...] o artista começa por olhar em torno de si, em todos os
meios, mas para captar o rastro da criação no criado... diz que este mundo teve diferentes aspectos,
que ainda terá outros, e que já tem outros em outros planetas; enfim, ele se abre ao Cosmo para
captar suas forças numa ‘obra’[...] e, para tal obra é preciso meios muito simples, muito puros, quase
infantis, mas é preciso também as forças de um povo, e é isto o que falta ainda...” In: DELEUZE,
Gilles; GUATTARI, FELIX. Mil Platôs. Vol.4. São Paulo: Ed. 34, 1997, p.152.