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Marcelo Gustavo Andrade de Souza
TOLERAR É POUCO?
Por uma filosofia da educação
a partir do conceito de tolerância
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação
em Educação como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas
(Educação).
Orientador: Leandro Konder
Rio de Janeiro, 26 de Setembro de 2006.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212116/CA
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MARCELO GUSTAVO ANDRADE DE SOUZA
TOLERAR É POUCO? POR UMA FILOSOFIA DA
EDUCAÇÃO A PARTIR DO CONCEITO DE TOLERÂNCIA
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-
graduação em Educação do Departamento de
Educação do Centro de Teologia e Ciências
Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.
Prof. Leandro Augusto Marques Coelho Konder
Orientador
PUC-Rio
Profª. Vera Maria Ferrão Candau
Presidente
PUC-Rio
Prof. Eduardo Jardim de Moraes
PUC-Rio
Profª. Roseli Fischmann
USP
Prof. Jovino Pizzi
UCP
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de Teologia e
Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 26 de Setembro de 2006.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212116/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem a autorização da universidade, do autor
e do orientador.
Marcelo Gustavo Andrade de Souza
Marcelo Andrade é Licenciado e Bacharel em Filosofia,
Mestre em Educação e Doutor em Ciências Humanas pela
PUC-Rio. Foi bolsista do CNPq nas modalidades de
Aperfeiçoamento em Pesquisa, Mestrado e Doutorado. Foi
bolsista de Desempenho Acadêmico da CAPES durante o
doutorado. Entre 1996 e 2002, integrou o Grupo de Estudos
sobre Cotidiano Escolar e Culturas (GECEC) sob a
coordenação da Profª. Vera Candau (PUC-Rio). Nos anos de
2001 e 2002, trabalhou como professor na disciplina Filosofia
da Educação junto ao Prof. Leandro Konder (PUC-Rio). Desde
1996 é membro do Programa Direitos Humanos, Educação e
Cidadania, da Novamerica, organização não-governamental
destinada a programas de educação para os direitos humanos.
Em 2005, cumpriu o programa de Doutorado no Exterior
(SWE), como bolsista do CNPq, na Universidade de Valencia,
Espanha, sob a orientação da Profª. Adela Cortina. Atualmente,
é professor associado na área de Fundamentos da Educação na
Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Tem
trabalhado como educador popular e professor de ensino
fundamental, médio e superior, tecendo e mantendo relações
entre os movimentos sociais, a escola e o mundo acadêmico.
Ficha Catalográfica
Souza, Marcelo Gustavo Andrade de
Tolerar é pouco? Por uma filosofia da educação
a partir do conceito de tolerância / Marcelo Gustavo
Andrade de Souza ; orientador: Leandro Konder. –
2006.
315 f. ; 30 cm
Tese (Doutorado em Ciências Humanas -
Educação) – Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
Inclui bibliografia.
1. Educação Teses. 2. Tolerância. 3.
Banalidade do mal. 4. Ética de mínimos. 5. Educar
para a tolerância. I. Konder, Leandro. II. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Educação. III. Título.
CDD: 370
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AGRADECIMENTOS
Quisera agradecer a muitas pessoas que direta ou indiretamente me ajudaram
na realização deste trabalho, principalmente àqueles e àquelas que me ensinaram a
conviver e respeitar as diferenças que dignamente nos constituem como seres
humanos.
Em primeiro lugar agradeço à minha família, que tem sido um suporte em
diferentes níveis: afetivo, existencial, financeiro e intelectual. Meu mais sincero
obrigado à minha esposa, Eliana, pelo companheirismo e cumplicidade durante
esta minha trajetória de pesquisa. De fato, foi ela quem amorosamente mais me
tolerou nos momentos de incertezas e ansiedades. Minha eterna gratidão aos meus
irmãos e familiares que me impulsionaram e acolheram de muitas maneiras. Ao
César e à Karina, pelo apoio estratégico para sair e chegar ao Rio de Janeiro
durantes minhas andanças em terras ibéricas. Pelo incentivo, o pensamento
positivo, a torcida e o acompanhamento fraterno, agradeço profundamente a
Graça, Gerusa, Grasiela, Batista e Gilvânia. A todos os meus quatorze sobrinhos e
aos/às cunhados/as, o meu muito obrigado pela grande torcida. Quisera também
dizer muito obrigado à minha mãe, que me viu começar este doutoramento e,
creio eu, acompanha agora de outra maneira este fim de processo. O mesmo eu
diria a meu irmão Geraldo.
Agradeço também aos professores e professoras do Departamento de
Educação que não só me ajudaram a me formar como pesquisador e professor,
mas também me introduziram na arte da convivência das diversas teorias, do
pluralismo acadêmico, das diferentes olhares e práticas. Em especial, à Profª Vera
Candau, o meu muito obrigado pelas inúmeras oportunidades criadas, pelo
incentivo sempre amoroso e vigoroso e por partilhar os sonhos de uma cidadania
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ativa e comprometida. Ao Profº Leandro Konder, pelo apoio delicado e
incondicional, pela acuidade intelectual e generosidade como orientador, e, no
grande que é, por fazer-me sentir um locutor válido em suas aulas e durante todo o
desenvolvimento da pesquisa. Não posso deixar de citar a amizade de Ana
Waleska e Rosália Duarte, o empenho de Zaia Brandão, Alicia Bonamino e Sonia
Kramer como coordenadoras da pós-graduação durante estes anos de meu
doutoramento e a disponibilidade de Ralph Bannell para ler este trabalho.
Agradeço aos membros da banca examinadora. Ao Profº Eduardo Jardim,
um antigo mestre que sempre me impressionou pelo vigor com que pensa. A ele
agradeço ainda pela tarefa de iniciar-me na leitura da obra de Hannah Arendt, há
quase 15 anos. Agradeço a disponibilidade da Profª Roseli Fischmann, do Profº
Jovino Pizzi e da Profª Carmen Teresa Gabriel, que com admirável presteza
acolheram o convite para compor a banca. Nesta oportunidade agradeço também à
Profª Adela Cortina que me acolheu e orientou durante um ano na Universidade
de Valencia, bem como o Profº Juan Carlos Siurana e o Profº Jesús Conill.
Por vezes o doutoramento parece uma tarefa solitária, ainda mais numa
pesquisa teórica, com dias inteiros de intensas leituras e difíceis exercícios de
síntese e escrita. No entanto, alguns companheiros na aventura da pós-graduação
ajudaram este sentimento ser um pouco mais brando. Assim, agradeço a Adélia
Koff, Mônica Almeida, Stela Guedes Caputo, Augusto Lima, Maria das Graças
Nascimento, Cláudia Miranda, Rosa Neves, Tereza Cavalcanti, Artur Motta,
Cláudia Fernandes, Patrícia Lacerda, Rose Reis, Cláudia Hernandez, entre
outros/as.
Aos companheiros da Novamerica, o meu muito obrigado pelo incentivo,
amizade e compreensão que facilitaram profundamente a realização deste trabalho
principalmente o tempo que estive em além-mar. Agradeço à Susana Sacavino,
Maria da Consolação Lucinda, Gilda Batista, Sandra Marcelino, Marilena
Guersola, Laura Mello, Iliana Paulo, Cinthia Araujo, Rosaline Silva, Rogério
Cardoso, Alexandre Firmino, Rafael França, Zélia Mediano, Cleonice Biró-
Loquê, Veridiana Soares, Marcelo Felipe e Verônica Mendes.
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Um agradecimento especial a Cecília Botana e suas dedicadíssimas aulas de
castelhano. Gracias, maestra!
Agradeço aos amigos do Movimento Ética na Política de Volta Redonda, em
especial a José Maria da Silva, Maria Castro, Goretti Donato, Fátima Pinta,
Rosimere Mudesto e Maria Perpétua Bragança, entre tantos outros/as que seguem
firmes na luta pela conquista de direitos e cidadania.
A experiência de estudante e de estrangeiro em Valencia e as dificuldades
daquele difícil ano de 2005 não teriam sido toleráveis, humana e afetivamente,
sem o apoio de Amparo Bellver, Pau Bellver, Cres Berta, Estrella Somoano,
Isabel Marcoros, Ciça Andrade e Benito Sanchéz. Agradeço os instigantes debates
com Lelis Toledo, Albert Sansano, Martín Urquijo, Sandra Morales, Pablo Ayala,
Daniela García, María José López, Paolo Stellino, Daniela Gallegos, Karla
Inzunza e Carmen Marti.
Um agradecimento especial aos amigos e amigas Lourena Rocha, Caroline
Rocha, José Luís Luz, Daniel Aloise, Ary Medino, Parham Salehiam, Márcia
Felipe, Sidney e Vanessa Mendes, Beto Chocolate, Rosemary Fernandes, Nete
Nascimento, Jussara Alves e Helena Araújo.
Agradeço o pensamento positivo, as energias do bem, as orações de muitas
pessoas, mas, em especial, dos amigos da Comunidade Eclesial Santa Teresa de
Ávila, em Volta Redonda. Meu muito obrigado à Antonieta Martins, Graça
Ferreira, Sueli e Luiz Carlos Gama, Nietti e Hosano Chaves, Cláudia Pamponet,
Isabel Martins, Marilene Pereira, José Geraldo Fernandes, Eliana Duca, Venício
Oliveira, Edir Moreira entre muitos outros/as.
Agradeço ainda o apoio financeiro que, efetivamente, possibilitou a minha
dedicação a esta pesquisa. Agradeço à CAPES e ao CNPq pelas bolsas
concedidas.
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RESUMO
Souza, Marcelo Gustavo Andrade de ; Konder, Leandro. Tolerar é pouco?
Por uma filosofia da Educação a partir do conceito de tolerância, Rio de
Janeiro, 2006. 315p. Tese de Doutorado – Departamento de Educação,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A tolerância, às vezes, é considerada uma atitude antipática de quem não
quer aceitar e muito menos amar o outro, mas apenas suportar ou permitir, como
um favor de condescendência, que o outro exista. Não é esta a perspectiva
assumida nesta pesquisa. O conceito de tolerância se coloca cada vez mais na
pauta de discussão porque a intolerância com a diferença tem sido uma realidade
recorrente em nossas sociedades. Inegavelmente estamos caracterizados pela
diferença e, não obstante, parece que não sabemos tratá-la. A humanidade –
marcada dolorosamente pela escravidão dos negros, pelas guerras religiosas, pelo
genocídio dos povos ameríndios, pelo holocausto dos judeus, pela aversão à
homossexualidade e pela submissão das mulheres – busca não mais permitir as
manifestações de intolerância com o diferente, pois a intolerância não é apenas
questão de não aceitar as opiniões divergentes; ela é agressiva e com freqüência
assassina em seu ódio à diversidade alheia. Neste sentido, a educação tem um
papel fundamental a desempenhar no embate por sociedades menos intolerantes e
mais abertas às diferenças que dignamente nos constituem enquanto humanos.
Porém, não se trata de uma educação qualquer. É imperativo que seja um projeto
educacional capaz de entender e incorporar em sua prática pedagógica o valor da
tolerância, que precisa ser fundamentado e consolidado. Minha pesquisa visa
contribuir com esta demanda. Para isso, busquei refazer o desenvolvimento do
conceito de tolerância, desde a Renascença até os tempos atuais, destacando o
embate histórico entre intolerância e tolerância. Para explorar o conceito de
intolerância utilizei o referencial teórico de Hannah Arendt, em especial o
conceito de banalidade do mal. Para fundamentar o conceito de tolerância recorri
ao pensamento de Adela Cortina sobre uma ética de mínimos. Meu trabalho, em
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última instância, sustenta que tolerar não é pouco, mas, ao contrário, trata-se de
um valor-atitude basilar, tanto no campo das normas éticas quanto no campo
educacional. Tolerância é um mínimo moralmente exigível, aquele pouco que nos
revela o fundamental. E o que é fundamental, na verdade, não é pouco, é sim o
imprescindível, o valioso, o essencial, aquilo que em hipótese nenhuma pode
faltar em nossas relações sociais e muito menos na prática educativa.
PALAVRAS-CHAVE
Tolerância / Intolerância / Banalidade do Mal / Ética de Mínimos / Educar para a
Tolerância.
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ABSTRACT
Souza, Marcelo Gustavo Andrade de ; Konder, Leandro. Is to tolerate a
little? For a philosophy of the education starting from the concept of
tolerance, Rio de Janeiro, 2006. 315p. Doctorate Dissertation –
Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
Tolerance is sometimes considered the negative attitude of one who does not
accept, much less love, another human being but is willing to put up with, or
allow for, the existence of others by being condescending. The concept of
tolerance has become a key debate topic since intolerance towards diversity is a
recurring situation in society. Undoubtedly, diversity reflects our real identities
but at the same time we seem unable to handle it. Humanity – painfully stained
by black slavery, religious wars, native Indian genocide, the Jewish holocaust, and
prejudice against homosexuality and against women – is no longer willing to
allow for intolerance of diversity. Intolerance is not just a question of not
accepting diverging opinions: hate is an aggressive perspective that is responsible
for destroying diversity. Thus, education has an important role to play in the battle
between less tolerant societies and those that are more open to human diversity.
However, not just any kind of education will suffice. It is important to select an
education project approach that offers a comprehensive definition of tolerance
based on facts. My research study aims to fulfill that role. Therefore, I tried to
offer a background on the concept of tolerance, from the Renaissance period until
recent times, highlighting the historical battle between intolerance and tolerance.
To further expand on the concept of intolerance I used as reference Hannah
Arendt´s research work, specifically selecting the concept of banality of evil. To
further support this thesis
, I referred to Adela Cortina´s theories on ethics of
minimum requirements. Ultimately, my paper states the thesis that tolerance
represents a big step. It represents the basic belief-system both in the field of
ethics and education. Tolerance is a moral minimum requirement, the basic
building block which reveals what is fundamental. However, the definition of
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fundamental is actually not what constitutes minimum requirement but, instead,
what is considered invaluable, essential, and cannot be lacking in social
interactions, much less in education.
KEYWORDS
Tolerance / Intolerance / Banality of Evil / Ethics of Minimum Requirements /
Tolerance Education.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
15
1 Trajetória: para entender opções e deserções.
15
2 Justificativas.
18
2.1 – Um injusto rechaço.
18
2.2 – Tolerância e os ideários fundacionais do ocidente.
20
2.3 – Por que tolerância?
22
2.4 – Tolerância: entre a urgência e a necessidade.
24
2.5 – Tolerância: indiferença ou valorização da diferença?
27
3 Hipótese.
29
4 Objetivos.
30
5 Metodologia.
31
CAPÍTULO 1
INTOLERÂNCIA E TOLERÂNCIA:
EMBATES AO LONGO DA HISTÓRIA DA FILOSOFIA
33
1.1
Tolerância: da Renascença à Ilustração.
35
1.1.1 – Erasmo de Rotterdam: combater pelo testemunho.
37
1.1.2 – Thomas More: a tolerância utópica.
38
1.1.3 – Sebastián Castellion: entre Roma e Genebra.
39
1.1.4 – Dirck Coornhert: de volta ao refúgio holandês.
41
1.2
Locke: princípios de liberalismo político.
45
1.2.1 – Carta ou cartas?
46
1.2.2 – Várias cartas. Um destino certo.
48
1.2.3 – Uma coisa é a Igreja, outra a comunidade.
49
1.2.4 – Tolerância significa aceitação de tudo?
53
1.2.5 – Tolerância, indiferença e diversidade.
55
1.3
Voltaire: a Ilustração militante.
57
1.3.1 – Intolerância: o caso Jean Calas.
58
1.3.2 – Tolerância: casos exemplares.
60
1.3.3 – Seria o cristianismo fundamentalmente intolerante?
62
1.3.4 – Por uma fé secular.
64
1.3.5 – O que não pode ser tolerado?
66
1.3.6 – Entre a Carta e o Tratado.
68
1.4
Igualdade e liberdade: heranças modernas.
71
1.4.1 – Graco Babeuf: a santa e perfeita igualdade.
72
1.4.2 – Stuart Mill: amálgama entre liberdade e individualidade.
76
1.5
Retomando o mapa: para onde sigo?
81
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CAPÍTULO 2
TOLERÂNCIA: NOTAS CONTEMPORÂNEAS
83
2.1
Tolerância ressignificada.
84
2.1.1 – Karl Popper: uma certeza indefinida.
84
2.1.2 – John Rawls: a retomada da tolerância liberal.
90
2.1.3 – Norberto Bobbio: tolerância como serenidade.
95
2.1.4 – Michael Walzer: igualitarismo e pluralismo.
104
2.2
A tolerância em questão.
112
2.2.1 – A ONU e uma tradição tolerante.
113
(a) Declaração de Princípios Sobre a Tolerância (1995).
116
(b) Declaração de Durban (2001).
121
2.2.2 – A filosofia discute a tolerância: parecer de um congressista em Lima.
127
(a) O que é a tolerância?
130
(b) A intolerância e sua superação.
136
(c) Pluralismo, diferença e tolerância.
139
(d) Tolerância: entre limitações e críticas.
144
2.3
De novo com o mapa nas mãos.
148
CAPÍTULO 3
PARA PENSAR A INTOLERÂNCIA:
HANNAH ARENDT E A BANALIDADE DO MAL
151
3.1
A companhia de uma senhora ou uma senhora companhia?
153
3.2
A banalidade do mal e o vazio do pensamento.
157
3.2.1 – Um livro e muitas polêmicas.
158
3.2.2 – O julgamento: entre os limites do inédito.
160
3.2.3 – O homem na cabine de vidro: monstro ou palhaço?
164
3.2.4 – O mal sem motivos.
168
3.2.5 – A banalidade e suas implicações morais.
173
3.2.6 – Com um fenômeno nas mãos...
181
3.3
Pensamento e considerações morais.
182
3.3.1 – A irreflexão como causa da banalidade do mal.
182
3.3.2 – Superar a Tradição e a Ilustração.
185
3.3.3 – Kant: limites entre conhecimento e pensamento.
187
3.3.4 – Pensamento: possibilidades e significados.
191
3.3.5 – O mundo das aparências.
193
3.3.6 – Invisibilidade e retirada do mundo.
197
3.3.7 – O não-lugar do pensamento.
200
3.3.8 – Sócrates e o diálogo interno.
204
3.4
Educar na perspectiva do pensamento: contribuições arendtianas.
211
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CAPÍTULO 4
PARA PENSAR A TOLERÂNCIA:
UMA APROXIMAÇÃO À ESCOLA DE VALENCIA
217
4.1
Para fundamentar a moral e a ética.
218
4.1.1 – Ética e moral: similitudes e distinções.
218
4.1.2 – Da aplicabilidade da ética.
221
4.2
Ética do discurso: uma opção.
223
4.2.1 – Seres absolutamente valiosos.
224
4.2.2 – Por que uma ética de camelo?
226
4.2.3 – Diálogo: a lógica intersubjetiva como centro do dever.
229
4.2.4 – Por um diálogo em condições ideais.
231
4.2.5 – Por uma busca justa de satisfação de interesses.
233
4.2.6 – Dever, diálogo e educação.
235
4.3
Ética Cívica: entre a justiça e a felicidade.
238
4.3.1 – Ética Cívica: do monismo moral ao pluralismo axiológico.
238
4.3.2 – Ética Cívica: entre mínimos e máximos.
242
4.3.3 – Ética Mínima: esclarecimentos de percurso.
245
4.3.4 – Entre o justo e o bom.
246
4.3.5 – A justiça e seus mandados.
248
(a) O contratualismo liberal de John Rawls.
249
(b) A igualdade complexa de Michael Walzer.
251
(c) A ética do discurso de Habermas e Apel.
254
4.3.6 – A felicidade como possibilidade do ir além.
259
4.3.7 – O jogo cooperativo entre mínimos e máximos.
262
4.4
Ética cívica e tolerância.
266
4.5
Ética cívica e a tarefa educativa.
272
CONSIDERAÇÕES FINAIS
279
1
Tolerar não é pouco: igualdade, liberdade e diferença.
279
2 Por uma filosofia da educação a partir do conceito de
tolerância.
285
ANEXOS
291
I Notas históricas sobre o conceito de justiça.
291
II Notas históricas sobre o conceito de felicidade.
295
BIBLIOGRAFIA
303
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Ser tolerante não é ser conivente com o intolerável,
não é acobertar o desrespeito, não é amaciar o
agressor, disfarçá-lo. A tolerância é a virtude que
nos ensina a viver com o diferente. A aprender com
o diferente, a respeitar o diferente. (...) Nós somos
tão diferentes que tivemos que criar o valor da
igualdade. E sem tolerância não se faz isso, quer
dizer, tolerância enquanto essa capacidade que a
gente tem e que inclusive cria. Ninguém é tolerante
porque nasceu tolerante. A gente se torna tolerante
ou a gente se torna intolerante. Daí a possibilidade
pedagógica para trabalhar a tolerância.
Paulo Freire
A Tolerância na Educação
Rio de Janeiro, IFCS, 12/09/1994.
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INTRODUÇÃO.
1
TRAJETÓRIA: PARA ENTENDER OPÇÕES E DESERÇÕES.
Esta pesquisa de doutoramento confirma e avança a minha trajetória
profissional tanto no campo da filosofia como no da educação. Desde que postulei
a possibilidade de entrada no doutorado percebi muito claramente que a temática
de investigação deveria responder ao meu intuito de entender os processos de
discriminação e preconceito em sociedades plurais, tal como entendo que seja a
sociedade brasileira.
Ao iniciar o doutorado percebi que tanto na pesquisa sobre diversidade
cultural que desenvolvi no mestrado em educação quanto na aproximação que
realizei ao pensamento de Hannah Arendt na graduação em filosofia, eu havia
mantido um eixo comum. Depois do afastamento de alguns anos observei que o
pano de fundo motivador dos dois trabalhos era a tentativa de entender a nossa
dificuldade – tão humana e tão bizarra – de não aceitação das diferenças que nos
constituem como humanos.
Desde diferentes abordagens, uma mais filosófica e outra mais sócio-
antropológica e pedagógica, eu já havia me debruçado sobre questões que me
incomodavam e me despertavam a necessidade de entendimento: como e por que
em nossas sociedades, ainda que sejam plurais, mantêm-se valores, posturas e
processos que, direta ou indiretamente, visam eliminar a diferença? Por que
rechaçar a diferença como possibilidade de existência, subjugá-la em sua
dignidade legítima, ridicularizá-la em sua dissonância daquilo que é supostamente
o padrão? De onde vem, efetivamente, nossa dificuldade de pensar a diferença e
de agir com tolerância em contextos plurais ou multiculturais? Por que a diferença
que nos constitui é eclipsada em sua riqueza e alimenta e se retro-alimenta de
processos de desigualdades sociais? Por que o lugar social de inferioridade,
desprezo e estigma para negros, homossexuais, mulheres, deficientes físicos,
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Introdução 16
indígenas, obesos, nordestinos e todos e todas que não correspondam ao ideal
eurocêntrico, branco, cristão, heterossexual, magro e bronzeado, escolarizado,
autonomamente individualizado e de classe média ávida pelo consumo?
A estes questionamentos se poderiam encaminhar distintas pesquisas. As
que parecem mais evidentes são aquelas que se relacionam à nossa constituição
histórica e às condições sócio-econômicas. A colonização, a escravidão, as
desigualdades sociais e o modo de produção capitalista, sem dúvida alguma,
ajudam a explicar tais fenômenos. Porém, só parcialmente. Claro está, então, que
ao pensamento histórico, social, político e econômico devem se somar outras
abordagens, tais como nos cabe na filosofia e na educação. Esta foi e tem sido a
minha aposta.
Sendo assim, durante a graduação em filosofia, aproximei-me do
pensamento de Hannah Arendt, através de uma pesquisa bibliográfica orientada
para a elaboração da monografia de bacharelado. Ainda que tenha sido um estudo
modesto e com os limites daquele processo formativo, percebo que as questões
com as quais tive contato naquele momento me acompanham até hoje. Afinal, o
que é o pensamento? Qual é o seu estatuto? Qual a relação entre a ausência do
pensar e a banalidade do mal? Podemos relacionar a nossa maneira de pensar com
o horror de nossas posturas diante da diferença? A incapacidade de estar atento às
exigências do pensamento seria uma possível explicação para a nossa apatia
diante de discriminações tão vis, violências tão extremas e desigualdades tão
profundas? Estas questões, de motivação arendtiana, suscitaram-me mais tarde
refletir sobre a relação do pensamento com a educação. Seria possível educar para
o pensamento?
Já na pesquisa que realizei para o mestrado, busquei entender as relações
entre diversidade cultural e educação escolar, a partir da análise da proposta
político-pedagógica Escola Plural, desenvolvida no município de Belo Horizonte,
MG. Optei em aproximar-me do multiculturalismo como referencial teórico e
busquei entender na pesquisa de campo como uma proposta política e pedagógica
encaminhava os conflitos referentes ao desrespeito à diferença ocorridos no
cotidiano escolar. Ao concluir o mestrado, pude chegar a algumas conclusões. No
entanto, mantinha ainda alguns questionamentos, relacionados principalmente
com a problemática das reivindicações pelo direito à diferença, sua articulação
com os direitos de igualdade e os conflitos aí inerentes. Além da pesquisa de
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Introdução 17
mestrado, não posso deixar de citar que durante seis anos, do término da
graduação ao início do doutoramento, participei do Grupo de Estudos sobre
Cotidiano Escolar e Cultura (GECEC), coordenado pela Profª Vera Candau, o que
me propiciou um profundo mergulho nas questões sobre multiculturalismo e
interculturalidade. Dessa forma, tanto a pesquisa de formação inicial quanto a
pesquisa do mestrado e a participação no GECEC me aproximaram da discussão
sobre tolerância e intolerância, que este trabalho tem o objetivo de aprofundar.
Respostas às questões sobre a contradição da não aceitação da diferença em
sociedades marcadamente plurais apresentam um campo bastante amplo e
complexo. O tema tem sido motivador de um considerável número de pesquisas
em diferentes áreas das ciências humanas e sociais e que costumam ser abreviadas
no que mais recentemente se chama de estudos culturais. Referências como Stuart
Hall, Homi Baba, Will Kymlicka, Charles Taylor, Julia Kristeva, Boaventura
Souza Santos e Nestor Garcia Canclini são hoje portas obrigatórias de entrada, e
não necessariamente de saída, para estes estudos.
A minha própria trajetória durante o doutoramento, no entanto, levou-me a
outras opções. Sem desconhecer ou desconsiderar as contribuições dos estudos
culturais, minha opção como pesquisador foi de retornar às origens, ou seja,
revisitar o pensamento de Hannah Arendt e buscar uma fundamentação filosófica
para a compreensão da relação central proposta como objeto de pesquisa,
tolerância e educação. Essa opção me levou diretamente aos estudos sobre
filosofia política e ética aplicada. Nesta perspectiva, entre tantas alternativas
possíveis, optei também por uma aproximação ao pensamento de Adela Cortina,
representante do que virei a chamar neste trabalho de “Escola de Valencia”.
Ainda que pareça remar contra a corrente majoritária, estas opções
obedeceram simplesmente ao critério de dar-me os suportes necessários para
compreender o conceito de tolerância como um “valor-atitude” legítimo para uma
proposta de agenda ética numa sociedade plural e como fundamento válido para
refletir sobre uma prática pedagógica que se queira respeitosa das diferenças que
nos constituem dignamente enquanto humanos.
De certa forma, reconheço uma deserção – ainda que temporária – do campo
dos estudos culturais para realizar, a meu juízo, um retorno necessário a um dos
fundamentos da educação, a filosofia. Esta pesquisa se insere, dessa maneira,
como uma investigação por uma filosofia da educação, privilegiando neste
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Introdução 18
diálogo a ética e a filosofia política e optando por uma análise conceitual que tem
como eixo articulador, mas não exclusivo, a tolerância.
Há, no entanto, que fazer mais alguns esclarecimentos ou explicitar melhor
alguns recortes, para que o leitor não crie expectativas que não serão cumpridas,
ora por incapacidade minha, ora pela própria inviabilidade de tempo que um
processo de doutoramento inerentemente apresenta. Neste sentido, não buscarei
aqui justificar explicitamente a relação entre filosofia e educação, mas, ao
contrário, tomá-la-ei como algo já posto, aceito e amplamente consolidado entre
nós. Esta pesquisa visa tão somente contribuir para uma fundamentação crítica e
sistemática de toda e qualquer ação educativa que se queira respeitosa das
diferenças que dignamente nos constituem, apresentando, assim, o conceito de
tolerância tanto como valor quanto como atitude.
Sendo assim, o mote dessa discussão tentará demonstrar que “tolerar não é
pouco”. A fim de apresentar o roteiro de viagem que me levou a esta convicção,
parto para os itens: justificativas, objetivos, hipóteses e metodologia, que
introduzirão o leitor na tarefa por mim assumida.
2
JUSTIFICATIVAS.
2.1. Um injusto rechaço.
Durante a realização desta pesquisa, em congressos, seminários e aulas, na
discussão do projeto ou mesmo em conversas informais, escutei de diferentes
pessoas afirmações do tipo: Não gosto da palavra tolerância porque lhe falta
utopia, proposta; Tolerância é uma atitude antipática, pois revela indiferença
com o outro; ou ainda: Parece atitude de gente que se sente superior e permite a
presença do outro. Assim, antes de qualquer justificativa tenho que reconhecer
que muitos rejeitam o conceito de tolerância por considerar que ele representa
“uma atitude neutra de quem não quer aceitar e muito menos amar o outro, mas
apenas ‘tolerar’, permitir, como um favor de condescendência, que ele exista”.
(MENEZES, 1997:40).
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Introdução 19
Ora, esta objeção ao conceito de tolerância de tão presente, no discurso
acadêmico e mesmo em falas cotidianas, acabou por me chamar a atenção, pois
em minhas reflexões sempre considerei que se ao menos nos tolerássemos de
verdade, isso já seria muita coisa. Um ganho tremendo! No entanto, os
argumentos contra a tolerância não eram – e ainda não são – poucos e nem de
fácil resposta. Necessitava, então, fazer um percurso de compreensão mais
profundo para publicamente sustentar justificativas racionáveis e suficientes em
sua defesa. De certa forma, esta pesquisa responde a certo enamoramento que
sempre tive com o conceito e à minha percepção de um injusto rechaço ao seu
significado.
Creio que se tenho algum mérito nesta pesquisa foi o fato de manter-me
firme num tema que a princípio e ao longo do doutoramento me parecia maldito.
Na verdade, fui descobrindo que se tratava de um tema polêmico e em disputa.
Isso de certa forma me motivou a entrar na arena e a me posicionar em defesa do
maldito e malvisto – e por que não, mal-compreendido – conceito.
As críticas mais comuns, e com a devida pertinência, são de que tolerância
remete-se a uma proposta que marca a falta de utopias, ou seja, uma proposta
destituída de projetos. Essas críticas geralmente se baseiam na idéia de que a
tolerância é um valor menor no campo da ética e das relações sociais. Parecem
crer que a tolerância é uma atitude simples demais, quase um favor que se faz ao
outro, mas que na verdade não o aceita. Em resumo, acredita-se que a tolerância é
pouco. E assim, os críticos da tolerância reclamam atitudes éticas mais
“musculosas”, tais como: solidariedade, amor ao próximo, fraternidade,
igualdade, respeito, compreensão, entre outras, e não apenas a “mirrada”
tolerância, essa atitude “anêmica”, pois cheia de indiferença. Alega-se, nesse
raciocínio, que no campo da ética devemos ser mais ousados, impulsionar sonhos
e projetos que nos mobilizem, que nos dêem sentidos e sentimentos mais amplos,
nunca restritos. Ou seja, reclama-se uma dimensão mais propositiva, ausente da
temática da tolerância e, sendo assim, supostamente mais necessária que ela.
O que tentarei sustentar aqui é que tolerar não é pouca coisa, ainda que
assim comumente nos pareça num primeiro momento. Tentarei situar a
importância desse “valor-atitude” frente às práticas sociais intransigentes e
também no campo educacional.
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Introdução 20
2.2. Tolerância e os ideários fundacionais do ocidente.
O primeiro aspecto que me vejo obrigado a examinar, ainda que de maneira
breve e preliminar como pede uma introdução, é esta oposição tão nítida e segura
ao conceito de tolerância. Por que, afinal, para nós tolerar é pouco? Acredito que
muito se explica se tomarmos como ponto de partida a nossa maneira ocidental de
pensar e agir, que tem por fundamentos os ideários judaico-cristão e iluminista.
Do ideário judaico-cristão herdamos com grande força a máxima que
devemos nos amar, pois somos todos filhos de Deus. A concepção de mundo
ocidental e a concepção de mundo judaico-cristã, apesar de algumas lacunas
evidentes, possuem uma relação estreita e profunda; funcionam como vasos
comunicantes que se retro-alimentam, principalmente no campo das normas
éticas. Crescemos todos e todas, direta ou indiretamente, sobre o paradigma do
decálogo de Moisés e das máximas de Jesus:o roubar, não matar, não levantar
falso testemunho e, numa postulação muito mais ousada e propositiva, amar ao
próximo como a si mesmo. Estou ciente que há diferenças significativas entre o
decálogo e o sermão da montanha, mas os tomo aqui como ideários éticos que se
amalgamaram em nosso imaginário coletivo acerca da convivência social e que
fundamentalmente argumentam pela aceitação e pelo respeito ao outro a partir de
um sentimento de pertencimento que supostamente nos faz iguais, ou seja, a
crença de que somos todos filhos de Deus e irmãos em Cristo. É essencialmente
dessa profissão de fé que se derivou no ocidente a idéia de que devemos nos
respeitar e amar mutuamente como uma obrigação moral.
Do ideário iluminista, herdamos também com um grande peso o discurso
acerca da igualdade. Acredita-se que somos todos iguais em dignidade e direitos
porque estamos dotados de razão e consciência e daí devemos agir em relação uns
aos outros com espírito de fraternidade. Este imaginário ilustrado nos informa que
somos todos iguais. Mas, iguais em quê? Em direitos e dignidade. E por que
somos iguais em direitos e dignidade? Porque somos todos dotados de razão e
consciência, responderia um iluminista típico. E, então, que compromisso moral
daí decorre? Bem, se o que nos define é a razão, então devemos – racionalmente –
optar por um comportamento moral justificável, devemos todos nos respeitar com
espírito de fraternidade. Igualdade e razão, valores e ao mesmo tempo
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Introdução 21
características indiscutíveis do iluminismo, estão na base de nosso ideário
ocidental, principalmente no campo ético.
Sem dúvida, a igualdade é um valor fundamental de nossa sociedade e da
qual não estamos dispostos a abrir mão. No entanto, tem crescido entre nós a
consciência de que o discurso sobre a igualdade nem sempre expressa plenamente
a nossa condição humana, que é marcada fundamentalmente pela diversidade.
Estamos descobrindo com mais força que não somos apenas iguais, mas também
diferentes. E afirmar a igualdade não significa, em hipótese nenhuma, negar as
diferenças que nos caracterizam. Hoje, mais do que nunca, vivemos num espaço e
tempo marcados pela efervescência das questões trazidas pela diferença.
Diferença de gênero, de raça, de classe social, de orientação sexual, de
identidades, de origens, de pertencimentos, de geração, de capacidade física e
mental etc. Diferença que enquanto direito ficou, até bem pouco tempo, ocultada
pela força do discurso sobre o direito à igualdade. O nosso mundo é
compreendido, cada vez mais, como multicultural, plural e diversificado. Neste
sentido, a temática da diferença tem suscitado novas questões para o campo ético
e elas não podem ser ignoradas ou minimizadas. É evidente que o direito à
diferença não pode ser visto como algo que se opõe ao direito à igualdade, mas
também não se pode negar que afirmar o direito à diferença traz novos desafios
para esta temática.
É importante chamar a atenção para o fato de que o ocidente tem cultivado
um ideário de paz entre os povos baseado principalmente na igualdade e na
fraternidade, segundo a tradição judaico-cristã e iluminista. A verdade é que os
ideais de igualdade e fraternidade do mundo ocidental, cristão e ilustrado,
tornaram-se ousado demais e exigiram de nós um sonho, tão bonito quanto
impossível. Além disso, não deveríamos deixar cair no esquecimento os diferentes
processos de homogeneização aniquiladores da diferença que no ocidente se
tornaram uma verdadeira empreitada etnocêntrica. E isso tem sido demonstrado
tanto nas nossas tragédias ao longo dos tempos quanto no clima tenso de guerra de
nossos dias. Lembremos aqui da escravidão dos negros, do holocausto dos judeus,
da submissão das mulheres, da criminalização da homossexualidade, da
perseguição aos ciganos, entre outros casos.
Segundo o sonho judaico-cristão e iluminista, a paz e a concórdia
dominariam corações piedosos pelo amor fraterno e mentes ilustradas pela razão;
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Introdução 22
e viveríamos todos irmanados, respeitando-nos e, por isso, felizes. Infelizmente,
não é assim. Pelo menos não tem sido assim. Concordo que seria mais fácil e
agradável se assim o fosse, mas não o é. A igualdade não será conseqüência de
iguais que se congregam por temer a Deus ou por tributar a razão, mas tão
somente uma condição de dignidade entre os tantos diferentes que somos
enquanto humanos.
Recuso-me aqui a posturas pessimistas ou derrotistas. Destaco ainda que o
problema não se encontre especificamente nos sonhos de igualdade e fraternidade,
mas na maneira, um tanto inocente e ousada, como nós historicamente os
formulamos e cotidianamente os reafirmamos. A igualdade desvinculada, quase
de costas para o direito à diferença, já apresentou seus limites. Nesta pesquisa,
estou partindo do pressuposto de que para além do ideal da igualdade fraterna –
máxima de inegável valor – devemos buscar estratégias de ação que nos permitam
respostas mais adequadas e possíveis para a nossa prática cotidiana a cerca da
garantia da dignidade daqueles que são diferentes.
2.3. Por que tolerância?
Esclarecidas, ainda que brevemente, as resistências ao conceito, uma
pergunta se impõe: por que a tolerância como “valor-atitude” basilar de uma
proposta ética e educativa para se garantir a convivência entre os diferentes e para
se valorar a diferença como riqueza? A essa questão respondo: porque a
intolerância tornou-se uma prática comum diante da diferença. Em sociedades
multiculturais e marcadas pelo preconceito e pela discriminação de vários tipos –
racismo, sexismo, xenofobia, homofobia etc. – a tolerância com o diferente
apresenta-se como uma agenda mínima, urgente e extremamente necessária.
Segundo AUGRAS (1997:78), “quando se fala de tolerância é, na verdade, da
intolerância que se trata”.
O conceito de tolerância se coloca cada vez mais na pauta de discussão
porque a intolerância com a diferença tem sido recorrente na história da
humanidade e ainda hoje em nossas sociedades. Inegavelmente estamos
caracterizados pela diferença e, no entanto, parece que não sabemos tratá-la. A
humanidade – marcada dolorosamente pela escravidão dos negros, pelas guerras
religiosas, pelo genocídio dos povos ameríndios, pelo holocausto dos judeus, pela
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Introdução 23
perseguição aos ciganos, pela aversão à homossexualidade, pela submissão das
mulheres – deveria não mais permitir nenhuma manifestação de intolerância com
o diferente, pois “a intolerância não é apenas questão de não tolerar as opiniões
divergentes; ela é agressiva e com freqüência assassina, no seu ódio à
diversidade alheia” (MENEZES 1997:46).
MENEZES (1997:41) afirma que o termo tolerância aparece pela primeira
vez entre os iluministas. O nascimento do conceito se deu no rescaldo das lutas
religiosas, dos massacres recíprocos de protestantes e católicos. Os livres-
pensadores, adeptos à Ilustração, viam-se discriminados e perseguidos por todos
os fanatismos. E foram eles que mobilizaram a opinião pública contra os horrores
da intolerância, proclamando o sagrado direito de discordar.
O conceito de intolerância tem de ser colocado em sua perspectiva histórica para
ganhar o seu relevo próprio. Na verdade a tolerância surgiu historicamente como
uma luta contra a intolerância, e, como as lutas contra as discriminações que vieram
depois – o movimento negro, o movimento feminista etc. – tem uma atitude clara
de militância, não é uma atitude primeira. É, antes, uma reação contra uma situação
dada; contra a intolerância; é a defesa de um direito humano dos mais sagrados; o
direito à diferença. Equivale a declarar que o intolerável mesmo é a intolerância. É
uma reafirmação, uma reposição do sujeito diante da intolerância que quer negá-lo;
ao afirmar-se contra sua negação, afirma-se como um direito de ser o que ele é; e
nega ao intolerante o direito de negá-lo (MENEZES, 1997:42).
O conceito de tolerância surge como resposta contra a intolerância à
diferença. Para além de um jogo de palavras, a bandeira da tolerância é a luta por
negar a possibilidade de negar a diferença. Sendo assim, é fundamental que ao
tratarmos de tolerância, pensemos na natureza, nas causas e nas conseqüências da
intolerância. MENEZES (1997:45) afirma que “a intolerância não rejeita só as
opiniões alheias, mas também sua existência, ou ao menos o que faz o que valha a
pena viver: a dignidade e a liberdade da pessoa”. A intolerância diante do
diferente tem imposto uma quantidade de maus-tratos e massacres impiedosos a
grupos que sustentam um estigma, um suposto sinal vergonhoso e socialmente
rejeitado. Cumpre destacar também o que MENEZES (1997:47) apresenta como
ódio cego pela diferença, a ponto do intolerante “não ver no discriminado um ser
humano concreto, mas algo abstrato, ou seja, o ‘estigma’, ou a diferença
hipostasiada. Assim, é comum referir-se a ele unicamente por sua diferença: um
negro, um índio, um velho, uma mulher”. A diferença substancializada incomoda
ante qualquer nível de argumentação racional sobre a dignidade humana ou de
nossa fraternidade enquanto espécie comum.
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Introdução 24
Seria o ódio ao diferente algo racionável e passível de argumentação? Seria
possível apelar para algum sentimento de irmandade ou de amor para evitá-lo?
Para ECO (2001:114), em geral, a intolerância é algo selvagem, sem nenhuma
razão explícita ou doutrina que a sustente:
A intolerância coloca-se antes de qualquer doutrina. Nesse sentido, a intolerância
tem raízes ideológicas, manifesta-se entre os animais como territorialidade, baseia-
se em relações emotivas muitas vezes superficiais – não suportamos os que são
diferentes de nós porque têm a pele de cor diferente, porque falam uma língua que
não compreendemos, porque comem rãs, cães, macacos, porcos, alho, ou porque se
fazem tatuar...
Segundo ECO (2001), os estudiosos ocupam-se com freqüência das
doutrinas da diferença, mas não o suficiente da intolerância selvagem, pois esta
foge de qualquer possibilidade de discussão e de crítica, pois não está colocada
num nível racional, mas no nível visceral. Ora, a intolerância é, em geral, raivosa,
descontrolada, inexplicável e impulsiva. “A intolerância mais perigosa é
exatamente aquela que surge na ausência de qualquer doutrina, acionada por
pulsões elementares” (ECO, 2001:116). Se a intolerância é um fenômeno que se
coloca num nível de irracionalidade como argumentar contra ela? Como difundir
o amor fraterno em situações nas quais a razão se ausenta e o que impera é o ódio
visceral contra o outro pelo simples fato de ser outro? Nesta perspectiva, será
fundamental, nesta pesquisa, a contribuição de Hannah Arendt com seu conceito
de banalidade do mal, forjado justamente a partir de uma arguta análise de um
dos mais exemplares casos de intolerância da história da humanidade: o
holocausto. Creio que seja possível aprender de um caso exemplar para, com os
necessários acondicionamentos práticos e teóricos, compreender outros casos
exemplares. Eichmann e sua incapacidade de pensar não são episódios isolados,
mas um caso com o qual se pode aprender.
2.4. Tolerância: entre a urgência e a necessidade.
Analisar a temática pelo seu anteposto, ou seja, dar razões suficientes para
uma pesquisa sobre a tolerância tomando a intolerância como ponto de partida, de
certa forma, é justificar a pesquisa a partir dos argumentos de uma situação de
urgência e de necessidade. O que quero dizer é que a busca por entender e evitar
os fenômenos intolerantes tem se imposto como algo urgente e necessário em
nossos dias. Seja através do acompanhamento dos noticiários, dos dados revelados
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Introdução 25
em pesquisas sobre racismo, sexismo e homofobia ou da observação de nosso
cotidiano, percebo o quanto a intolerância com a diferença – que se expressa
claramente em forma de preconceito, discriminação e violência – tem se tornado
recorrente em nossas sociedades. Assim, parece-me bastante evidente e
justificável a urgência e a necessidade de se entender o conceito de tolerância
como virtude e atitude moralmente exigíveis em nosso tempo.
Assim, tentarei ressaltar, tanto no contexto internacional quanto nacional,
como o preconceito e a discriminação se expressam violentamente contra as
diferenças que nos constituem dignamente enquanto humanos.
Iniciamos o século XXI marcados pelo terrorismo cruel e por guerras
injustificáveis. Os atentados a Nova Iorque (2001), as guerras do Afeganistão
(2002) e do Iraque (2003), os ataques terroristas aos trens de Madrid (2004) e aos
ônibus de Londres (2005), demonstram como o clima tenso de choque de
civilizações
1
está orientado pelo desconhecimento total do outro, pela não
aceitação de outras possibilidades de organizar a sociedade, a política, a religião
etc. No mundo, hoje, estão em curso dezenas de conflitos armados que direta ou
indiretamente envolvem a intolerância com a diversidade cultural. E para ficar no
exemplo mais recente de nossos noticiários indico o conflito envolvendo o Estado
de Israel e o grupo guerrilheiro Herzbollah, no sul do Líbano (2006).
Esta dimensão da conjuntura mundial – guerra, terrorismo, confronto de
culturas, intolerância com o diferente, medo generalizado – convida a uma
reflexão sobre se um novo mundo é possível. Seria o sonho de um mundo
irmanado e em paz algo impossível de ser realizado? A fraternidade entre os seres
humanos é apenas uma ilusão? Ora, o confronto, o conflito, a disputa, a guerra
entre nações e grupos – e mesmo dentro de uma mesma nação ou grupo – sempre
estiveram presentes na história da humanidade. No entanto, sempre cultivamos
também um ideário de paz, concórdia e irmandade entre os povos. Afinal,
segundo a melhor tradição ocidental (judaico-cristã e iluminista), somos todos
iguais, somos todos seres humanos, somos todos filhos de Deus e irmãos em
Cristo. E sendo assim, dotados que somos de razão e consciência, deveríamos
todos nos amar e conviver fraternalmente. Como já afirmei, não creio que dvamos
abrir mão do sonho de igualdade e fraternidade, mas sim devemos nos perguntar:
1
Para utilizar uma expressão de Samuel Huntington.
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Introdução 26
por que este sonho humano não se viabiliza como tanto desejamos? E por que ele
não garante a paz e a concórdia entre os povos? Quais são, afinal, as estratégias
mais condizentes e capazes de melhor engendrar uma convivência harmoniosa ou
ao menos pacífica?
O contexto nacional também não tem sido alentador no que se relaciona ao
respeito à diferença. Exemplos de preconceitos e discriminações pontuam o nosso
cotidiano. Aqui poderia lembrar ao leitor acontecimentos recentes da agenda
jornalística dos últimos anos, tais como: o adestrador de cães assassinado a golpes
de socos e pontapés por dezenove jovens em São Paulo porque passeava de mãos
dadas com seu namorado numa praça; o dentista negro que foi “confundido” com
um assaltante e assassinado a tiros pela polícia antes mesmo da possibilidade de
responder a qualquer pergunta; a jovem que teve que ser retirada de um campus
universitário com escolta policial, pois os estudantes queriam linchá-la porque ela
praticara sexo com dois rapazes ao mesmo tempo; o jogador de futebol carioca
que ao ser expulso de um jogo em Recife referiu-se aos jogadores adversários, à
torcida e ao juiz como uns paraíbas, entre outros casos.
Estes exemplos talvez possam ser considerados casos de mau gosto retirados
da imprensa sensacionalista. Sendo assim, cabe uma postura crítica em relação
aos acontecimentos levantados. Seriam fatos isolados? Seriam cenas bizarras que
ganham a grande mídia por seus aspectos grotescos e chocantes? Ora, por um
lado, sei que a mídia vive também do espetáculo de horrores. Mas, por outro lado,
também reconheço o quão dolorosas têm sido, na sociedade brasileira, as
temáticas do racismo contra o negro, da perseguição aos homossexuais, da
violência contra as mulheres, do genocídio dos povos indígenas e da
discriminação contra os nordestinos em cidades como Rio e São Paulo. Senão, o
que dizer dos alarmantes índices de violência doméstica que indicam que a cada
15 segundos uma mulher é espancada no Brasil? Como explicar que a maior
situação de risco de vida no Brasil hoje é a condição de ser negro entre 18 e 25
anos? Que justificativas a dar aos espancamentos de homossexuais nas praias
cariocas ou às situações vexatórias em shoppings paulistanos?
Esses exemplos nos revelam o quanto o tema da diferença tem sido caro
para a sociedade brasileira. Diferença de gênero, de raça, de classe social, de
orientação sexual, de identidades, de origens, de pertencimentos, de geração etc.
O Brasil da democracia racial, da liberação sexual e da integração nacional
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Introdução 27
também é o Brasil do racismo nada sutil, da perseguição aberta aos homossexuais,
dos óbitos de mulheres assassinadas por seus companheiros ou ex-companheiros e
da humilhação pública dos nordestinos ou de setores pobres da população. O
nosso noticiário jornalístico, as pesquisas sobre violência realizadas no Brasil e a
simples observação do entorno social me impulsionam e me levam a afirmar que
há muito que entender sobre os fenômenos intolerantes na sociedade brasileira.
Neste sentido, urge a busca de alternativas no campo educacional para a
construção de uma proposta pedagógica que vise formar sujeitos comprometidos
com o valor da tolerância.
2.5. Tolerância: indiferença ou valorização da diferença?
Ao apresentar aqui um recorrido de exemplos do fenômeno da intolerância
não quero pintar um quadro sombrio ou pessimista. Só constatar que qualquer um,
diante desses contextos, ficaria escandalizado. Ficaria?! A questão mais grave
talvez resida exatamente aí: muitas pessoas não se escandalizam mais com fatos
desse gênero. Tudo parece normal. O trágico dessa realidade é que se está
acostumando cotidianamente com o horror intolerante. Parece que foi perdida a
capacidade de se indignar, de se revoltar com tudo isso. É verdade também que,
aqui e acolá, os assuntos surgiam com alguma indignação, mas a indiferença tem
sido a mais recorrente e pior resposta.
O que percebo como mais contraditório é que a defesa da tolerância é
facilmente acusada de acomodação e de indiferença com o outro. Ora, todo o
contrário. A defesa da tolerância é resposta indignada à intolerância cotidiana, que
vem sendo pouco a pouco naturalizada, como algo comum, normal, corriqueiro.
Se há apatia e indiferença não é naqueles que defendem que minimamente se
respeite às diferenças através de uma postura tolerante. Assim, reafirmo: tolerar
não é ser indiferente, mas sim levantar com indignação a bandeira da valorização
da diferença e da sua não eliminação. Defender a tolerância é combater a
intolerância e, mais do que isso, é também uma tentativa de superar o clima de
apatia e acomodação diante da violência racista, sexista, homofóbica e classista
presente na sociedade brasileira.
Mais uma vez o pensamento de Hannah Arendt será fundamental, pois ela
nos oferece uma pista bastante interessante ao levantar a hipótese de que a
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Introdução 28
ausência da atividade de pensar nos torna desatentos, indiferentes, apáticos diante
da significação do mundo, propiciando assim um ambiente privilegiado para o
fracasso moral. Ao acompanhar o julgamento do carrasco nazista Adolf
Eichmann, Hannah Arendt teria se impressionado com uma característica do réu:
a sua superficialidade. Hannah Arendt não viu naquele homem nenhuma
monstruosidade ou o mal substancializado, mas uma inacreditável incapacidade
para a reflexão. O alto oficial nazista era um homem comum, superficial, que
vivia num mundo de clichês. É a esse fenômeno que ela chama de banalidade do
mal.
Neste sentido, esta pesquisa tem um desafio a mais, pois visa demonstrar
que a tolerância não é bela indiferença com o outro, mas, todo o contrário, é um
convite para a saída da indiferença, do desinteresse, da apatia. No entanto, há que
se questionar: uma abordagem do conceito de tolerância pode, de fato, ajudar a
nos retirar de tal imobilismo ou poderia fornecer munição à situação que se visa
combater? Esta foi uma questão que durante a pesquisa busquei não fugir nem
esquecer.
Ficam ainda algumas perguntas que justificam uma investigação do conceito
de tolerância como um fundamento para a prática pedagógica. Afinal, o que se
pode fazer no campo educacional a fim de superar a falta de indignação diante dos
fatos intolerantes? E mais: pode a educação contribuir para que esses fatos não
ocorram? Sendo assim, esta pesquisa também se justifica como tentativa de
oferecer fundamentos éticos e epistemológicos para uma educação contra a apatia
imobilizante, tão premente em nosso tempo.
Enfim, estas são, em linhas gerais, as questões e as temáticas que me
impulsionaram na pesquisa e, a meu juízo, justificam-na como uma investigação
válida. A partir delas formulei a hipótese de pesquisa e os objetivos que serão
apresentados a seguir. Hipótese e objetivos que busquei responder através de uma
pesquisa teórica, tal como elucidado no item sobre a metodologia.
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Introdução 29
3
HIPÓTESE.
A educação tem um papel fundamental a desempenhar no embate por
sociedades menos intolerantes e mais abertas às diferenças que dignamente nos
constituem enquanto humanos. No entanto, não se trata de uma educação
qualquer. É imperativo que seja um projeto educacional capaz de entender e
incorporar em sua prática pedagógica o valor da tolerância, que, neste sentido,
precisa ser fundamentado e consolidado.
Minha hipótese de investigação parte da convicção de que para se entender
os fenômenos intolerantes, tais como eles se apresentam em nossa sociedade hoje,
os conceitos banalidade do mal e estatuto do pensamento formulados por Hannah
Arendt são de importância capital. Sendo assim, postulo que entender a
intolerância como banalidade do mal e propor o estatuto do pensamento como
uma possibilidade de se evitar o fracasso moral devam ser tarefas de uma
educação que se pretenda eticamente comprometida com o respeito à diferença.
Ainda como hipótese de trabalho, proponho o entendimento da tolerância
como requisito mínimo e moralmente exigível para a convivência social, bem
como princípio fundamental para uma educação que busque trilhar caminhos que
forneçam um ambiente social e pedagógico favorável à atividade do pensamento e
conseqüentemente desfavorável para a banalidade do mal intolerante. Postulo,
então, a compreensão dos conceitos de justiça e de felicidade como basilares para
a distinção entre éticas de mínimos e éticas de máximos, recorrendo sobretudo ao
pensamento de Adela Cortina para fundamentar a hipótese da tolerância como um
“valor-atitude” de uma ética mínima, urgente e necessária. Tal agenda mínima no
campo da ética será compreendida e inter-relacionada com uma postura educativa
que seja respeitosa das diferenças que dignamente nos constituem.
Minha hipótese de trabalho, em última instância, visa sustentar que tolerar
não é pouco, mas, ao contrário, trata-se de um “valor-atitude” fundamental,
basilar, tanto no campo das normas éticas quanto no campo educacional.
Tolerância, a meu juízo, é um mínimo moralmente exigível, ou seja, aquele pouco
que revela o fundamental. E o que é fundamental, na verdade, não é pouco, é sim
o mais importante.
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Introdução 30
4
OBJETIVOS.
O objetivo mais amplo desta pesquisa é buscar entender quais são as
relações entre as reivindicações pela diferença e as garantias de igualdade, suas
conseqüentes implicações com o conceito de tolerância e as possibilidades da
educação diante destas temáticas. Mais especificamente, a pesquisa visa mapear e
entender o conceito de tolerância, num contexto de urgência e necessidade,
relacionando-o com a realidade dos fenômenos de intolerância e fundamentando-o
a partir da concepção de uma ética mínima e moralmente exigível a todos e todas
que queiram se comportar com justiça em relação às diferenças que dignamente
nos constituem enquanto humanos.
A partir das justificativas apresentadas anteriormente e a fim de comprovar a
hipótese de investigação, os objetivos específicos se desdobram da seguinte
maneira:
1. Analisar a gênese e a construção histórica do conceito de tolerância nos
âmbitos da filosofia política e da ética, privilegiando uma abordagem
crítica e contextualizada das contribuições realizadas ao longo da história
da filosofia, bem como do debate contemporâneo sobre o conceito.
2. Fundamentar e precisar a definição do conceito de tolerância enquanto
virtude e atitude fundamentais e moralmente exigíveis, a partir do conceito
de ética de mínimos e ética de máximos, tendo em vista a fundamentação
de uma proposta educacional que pretenda responder aos atuais desafios
em tempos de preconceitos, discriminações e intolerâncias.
3. Examinar o conceito arendtiano banalidade do mal e suas implicações
morais com o estatuto do pensamento, privilegiando o estudo das obras
Eichmann em Jerusalém e A Vida do Espírito, a fim de buscar
contribuições para se entender a prática pedagógica na sua relação com a
formação de sujeitos eticamente comprometidos com o respeito à
diferença.
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Introdução 31
5
METODOLOGIA.
Esta é uma pesquisa teórica. Neste sentido, o caminho – methodos
escolhido é bastante claro: eleição de conceitos chaves, revisão de bibliografia e
sistematização dos conceitos, reinterpretados pela ampliação da bibliografia
estudada. Uma pesquisa teórica pode vir acompanhada de diferentes adjetivos a
fim de identificar o método empregado: analítica, comparativa, sistemática,
transcendental, histórico-crítica, hermenêutica etc. Considero que a presente
pesquisa, tal como a maioria das pesquisas teóricas, corresponda, a sua maneira, a
cada um dos adjetivos apresentados e até a outros. No entanto, a fim de evitar
imprecisões, creio ser conveniente afirmar minha identificação com a
hermenêutica, no sentido de reconhecer na filosofia uma capacidade de
(re)interpretar e (re)significar cada tema ou conceito sempre que este é
(re)visitado por ela. Creio também que cabe a toda e qualquer hermenêutica
apresentar as razões suficientes para as suas interpretações, ou seja, justificar de
maneira racionável os sentidos que encontra ou retira dos conceitos abordados.
Sendo assim, o objeto central dessa investigação hermenêutica é o conceito
de tolerância. Para analisar e construir uma interpretação e significação originais
sobre o conceito central desta pesquisa, escolhi três frentes de trabalho com
diferentes análises que se articulam.
A primeira empreitada responde à análise da gênese e da construção
histórica do conceito de tolerância nos âmbitos da filosofia política e da ética.
Para isso, analisei tanto alguns precedentes renascentistas como alguns pensadores
modernos, tais como: Locke, Voltaire, Graco Babeuf e Stuart Mill (Capítulo 1).
Para algumas notas contemporâneas sobre o conceito, recorri a pensadores e
comentaristas mais recentes: Karl Popper, John Rawls, Norberto Bobbio e
Michael Walzer. Para esta tarefa também busquei uma produção ainda mais
recente, discutida pelos organismos internacionais, tais como a ONU e a Unesco.
Há ainda uma rica produção apresentada no XV Congresso Interamericano de
Filosofia e II Congresso Iberoamericano de Filosofia, ambos celebrados em Lima,
Peru, em Janeiro de 2004 e dedicado especialmente ao tema da tolerância.
(Capítulo 2).
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Introdução 32
A segunda frente de análise é sobre a obra de Hannah Arendt. Entre as obras
da autora, privilegiei especialmente duas: Eichmann em Jerusalém e A Vida do
Espírito, o que em hipótese nenhuma significou a exclusão de outras obras
fundamentais no pensamento arendtiano, tais como: A Condição Humana,
Origens do Totalitarismo e Entre o Passado e o Futuro. Minha intenção nesta
parte do trabalho foi articular a intolerância, enquanto anteposto do conceito
central da pesquisa, com o conceito de banalidade do mal de Hannah Arendt. E
como via alternativa busquei entremear uma proposta de educar para o
pensamento. (Capítulo 3).
A terceira frente de análise é sobre a categorização entre ética de mínimos
(ética de justiça) e ética de máximos (ética de felicidade). Neste terceiro front,
foram privilegiadas as obras de Adela Cortina, eminente pensadora da “Escola de
Valencia”. A ênfase na produção de Adela Cortina justifica-se por ser uma
temática relativamente nova e ainda restrita no campo da filosofia. Poucos são os
pensadores que têm se dedicado a esta temática especificamente. Outra
justificativa para esta ênfase se refere à qualidade e, ao mesmo tempo, à
quantidade de obras e publicações que a autora tem produzido a partir dessas
categorias de análise. (Capítulo 4)
Através de uma hermenêutica crítica e sistemática, espero sinceramente
haver conseguido, com clareza e distinção, oferecer as razões suficientes para
justificar a abordagem do conceito de tolerância como uma pauta pendente de re-
intrepretações e re-signifcados para uma agenda mínima tanto no campo da ética
quanto no campo educacional.
Uma hermenêutica é sempre uma interpretação pessoal, pois também
reconhece que outros caminhos são válidos e possíveis. Neste sentido, uma
hermenêutica apenas é válida se apoiada nos clássicos, na literatura já consolidada
no campo e na capacidade crítica de identificar limites e imprecisões, porém
fundamenta-se também numa determinação firme e não arrogante, pois apresenta
as razões suficientes para afirmar: este é o meu caminho, esta é a minha
interpretação, esta é a minha tentativa de colaborar com um campo que me
constitui e o qual eu ajudo a constituir.
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1
INTOLERÂNCIA E TOLERÂNCIA:
EMBATES AO LONGO DA HISTÓRIA DA FILOSOFIA.
Sendo um dos objetivos deste trabalho entender o conceito de tolerância em
sua construção histórica, cumpre salientar, mais uma vez, que a tolerância surgiu
como uma luta contra a intolerância. Trata-se uma atitude de reação. Não é uma
atitude primeira. A luta pela tolerância é, antes de tudo, uma resistência contra a
intolerância assassina. É a defesa de um direito humano dos mais sagrados: o
direito à diferença, seja diferença de pensamento, de expressão ou de condição
identitária. A tolerância é a defesa da diferença diante da intolerância que quer
negá-la. Ao lutar contra sua negação, os que são diferentes de um determinado
padrão dominante defendem seu pensamento, sua expressão e/ou sua condição de
identidade como um direito e negam aos intolerantes a possibilidade de negá-los.
A tolerância diz respeito ao direito de ser o que se é. O conceito de tolerância é
uma resposta contra a intolerância às diferenças que dignamente nos constituem
enquanto humanos. Esta foi a razão histórica de seu surgimento e segue sendo a
razão de sua argumentação mais profunda.
Insisto na idéia de que a luta em defesa do conceito de tolerância ganha
densidade e se redimensiona sempre quando retoma seu embate histórico, de
ontem e de hoje, contra a intolerância assassina. A intolerância diante do diferente
tem imposto uma quantidade de maus-tratos e massacres impiedosos a grupos que
sustentam um estigma, um suposto sinal vergonhoso e socialmente rejeitado.
Lembremos mais uma vez da escravidão dos negros, do holocausto dos judeus, da
submissão das mulheres, da perseguição aos homossexuais, do genocídio dos
povos ameríndios, entre outros casos. É por acreditar em alternativas viáveis a tais
fenômenos, esses sim vergonhosos e dignos de serem eliminados, é que creio ser
necessário mergulhar nos ideais originários, no surgimento e no desenvolvimento
histórico do conceito de tolerância.
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 34
Ainda que se possa buscar raízes conceituais na Antiguidade Clássica, no
Profetismo Judaico, no Cristianismo Primitivo ou mesmo na Idade Média, o
conceito de tolerância, como tal, aparece pela primeira vez de maneira mais
explícita no pensamento ocidental durante os séculos XVII e XVIII, entremeado
pelas reivindicações do Iluminismo. O surgimento do conceito se deu no tempo
das lutas religiosas. Os filósofos, pintores, escritores, poetas, científicos e artistas
daquela época viam-se perseguidos pelo fanatismo religioso, fosse católico,
protestante ou islâmico. E foram eles, os ilustrados, que se mobilizaram contra os
horrores da intolerância, proclamando o sagrado direito de discordar, ou seja, de
pensar, de entender e de expressar o mundo e a humanidade de modo diferente
daquele imposto pela tradição ou por uma determinada religião.
Buscarei, então, apresentar o embate entre tolerância e intolerância,
sobretudo, a partir do contexto da Modernidade, privilegiando a análise conceitual
dos dois filósofos que abordaram diretamente a temática: Locke, em Carta Acerca
da Tolerância e Voltaire, em Tratado Sobre a Tolerância. No entanto, a ante-sala
das obras de Locke e Voltaire é, sem dúvida, o desenvolvimento do pensamento
humanista durante a Renascença e o clima de injusta perseguição aos dissidentes
da fé dominante, seja nas monarquias católicas ou protestantes. Para o
entendimento da construção histórica do conceito de tolerância é vital ainda a
compreensão de sua relação com outros ideais modernos, em especial a igualdade
e a liberdade. Nesta perspectiva, desde as obras específicas sobre o conceito de
tolerância de Locke e Voltaire, avançarei em direção a dois pensadores que
contribuíram de maneira decisiva na fundamentação e difusão dos ideários da
igualdade e das liberdades individuais: Graco Babeuf e John Stuart Mill.
O percorrido histórico que traçarei aqui não tem a intenção de esgotar a
discussão sobre os avanços e os limites da construção do conceito de tolerância.
Viso tão somente traçar linhas gerais e mais relevantes para situar a discussão que
se segue. Assim, o caminho feito não é o único possível, mas aquele que
considero oferecer uma senda mais rica, para se entender a elaboração e o
desenvolvimento do conceito de tolerância na história da filosofia e nos debates
atuais.
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 35
1.1
TOLERÂNCIA: DA RENASCENÇA À ILUSTRAÇÃO.
A tolerância é filha da Modernidade. No entanto, talvez o termo
Modernidade seja um dos mais complexos no campo das ciências humanas e
sociais. Liberalismo político, mercantilismo econômico, ética individualista,
subjetivismo epistemológico e racionalismo científico são alguns dos tantos
termos que acompanham e definem esta época. O fato é que estes e outros
conjuntos de fenômenos e acontecimentos revolucionaram para sempre a história
da humanidade. Foi um tempo de mudanças que deu um ritmo mais acelerado
para as mudanças futuras.
Na prática, o que se percebia era a dissolução da ordem feudal, a contestação
ao poder temporal da Igreja, um profundo cisma religioso dentro da Cristandade,
o combate à monarquia absolutista e ao Estado centralizado, a intensificação do
comércio, as grandes descobertas marítimas e a ascensão de dois novos sujeitos
coletivos, a burguesia e o proletariado. Este período cheio de revoluções, reformas
e inovações (a Renascença, a Reforma Protestante, a Revolução Industrial, a Nova
Ciência e a Revolução Francesa), em última instância é um período de crise, de
ruptura com a Tradição, com o saber revelado e com uma série de instituições que
se viam desacreditadas após séculos e séculos de pleno domínio.
É óbvio que, por uma necessidade de síntese, estou aqui tentando plasmar
em breves parágrafos o que foram séculos de história. Dos séculos XV e XVI,
com o Renascimento e a Reforma, ao século XIX, quando o modelo de
racionalidade moderna começa, por sua vez, a dar sinais de profunda crise. Deste
longo e complexo período histórico, importa destacar que a Modernidade se refere
essencialmente a uma crise da autoridade dos poderes até então constituídos.
Sem desprezar o campo das mudanças econômicas, artísticas e culturais,
considerarei aqui com mais atenção as mudanças no campo das idéias filosóficas e
suas devidas correlações com a religião e a política, pois é a partir destes âmbitos
da reflexão e da ação humana que o conceito de tolerância surgirá e se
consolidará. Neste sentido, o que me interessa aqui é mais a Ilustração enquanto
movimento de idéias do que a Modernidade enquanto período histórico
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 36
propriamente dito, ainda que seja impossível entender uma sem a outra. A
Ilustração ou Iluminismo foi um movimento do pensamento europeu, mas,
sobretudo um fenômeno francês do século XVIII, o chamado Século das Luzes. A
própria noção de Iluminismo, através da metáfora da luz e da claridade, indicava
uma oposição às trevas, ao obscurantismo, à ignorância, à superstição,
estrategicamente combatidas e denunciadas como características dos tempos
precedentes.
Para a Ilustração, toda e qualquer realidade deveria tornar-se transparente ou
iluminada pelo crivo da razão. Em síntese, trata-se de um movimento que
desencadeou uma crise de autoridade em três âmbitos distintos e relacionados: (1)
crise da fé, e conseqüentemente da religião cristã, para revelar a verdade; (2) crise
do poder monárquico, hereditário e absoluto, como forma de melhor governo e (3)
crise da propriedade privada, da posse da terra e dos bens de produção, em alguns
casos muito específicos como no pensamento de Rousseau e mais tarde o de
Marx.
Os grandes instrumentos da Ilustração foram o conhecimento, a ciência e a
educação, tendo em vista que o movimento tinha como objetivo capital formar a
consciência de maneira livre, autônoma e individual. O projeto da Enciclopédia
2
visava justamente difundir o conhecimento, popularizar a ciência, contribuir com
a educação de todos e todas. Importa não esquecer que o Iluminismo visava
expandir a crítica à tradição, à religião, à monarquia, ao feudalismo e a qualquer
outra autoridade que não pudesse se justificar racionalmente e que necessitasse
recorrer ao medo, à superstição e à força para se impor. Não há dúvidas, então, de
que a Ilustração tinha um projeto educacional e ético declaradamente
emancipador.
Quanto à concepção filosófica de tolerância, no entanto, cumpre retroceder
um pouco mais no tempo histórico e identificar algumas raízes do conceito. Faz-
se necessário ir a Renascença encontrar alguns sinais que já indicavam uma
reflexão sobre o tema, alguns embriões que a partir do humanismo renascentista
ganharão posteriormente com Locke e Voltaire uma forma mais definitiva na
Ilustração.
2
Do grego en kyklios paidéia, que significa o conhecimento completo em ciclos.
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 37
1.1.1
Erasmo de Rotterdam: combater pelo testemunho.
No início do século XVI, quando a Reforma de Lutero iniciava seu longo
trajeto, a Cristandade – diga-se, a Europa papista – ainda tinha como centro de
discórdia o turco (ou mouro), considerado o inimigo, o anti-Cristo. Neste
contexto, aflora o pensamento de Desidério Erasmo (1467-1536). Nascido na
cidade de Rotterdam (Holanda) e tendo viajado por boa parte da Europa, Erasmo
tornou-se um dos mais reconhecidos pensadores humanistas da Renascença,
sistematizando e aprofundando no campo filosófico aquelas idéias que se
distinguiam no campo das artes desde a influência das cidades italianas,
principalmente Florença.
De um modo geral, Erasmo de Rotterdam criticou as guerras e a violência de
sua época. Também atacou os excessos do catolicismo, numa postura que
antecipava a Reforma Protestante, movimento com o qual se decepcionou,
justamente por causa dos conflitos bélicos que envolviam desmandos religiosos.
Permaneceu no catolicismo e fez da hierarquia católica o alvo de suas mais
severas críticas. Acusava o papa e os bispos de declararem guerras injustas,
fazerem cerimônias em demasia e discutirem indefinidamente o mistério divino,
sendo que, segundo ele, o mandamento de Cristo seria apenas a prática da
caridade. Criticava também os teólogos e doutos da Inquisição, pois esses
condenavam, por poucos motivos, muitas pessoas como hereges. Assim, defendeu
um retorno à simplicidade do Cristianismo Primitivo.
Lutero, que estava juntando adeptos a suas pregações, convidou Erasmo a
juntar-se ao movimento da Reforma, mas este permaneceu na Igreja Católica,
criticando aqueles que considerava ser os seus desvirtuadores: os clérigos. Mais
tarde polemizou a favor do livre-arbítrio contra a teoria da predestinação de
Lutero. Assim, definiu-se definitivamente como um humanista católico a favor do
valor da liberdade.
Em sua obra magna Elogio da Loucura (1509) atacou as exibições de
riqueza e as afetações de falsa sabedoria da hierarquia católica, preocupando-se
com a pesquisa e os estudos dos clássicos como sinal de busca do verdadeiro
saber. Sem esta busca, afirmava, até os loucos podiam predicar judiciosamente.
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 38
Chamado de Apóstolo da Paz, Erasmo condenou de maneira sistemática a
concepção de toda e qualquer guerra. Em relação aos mouros ou turcos, que
considerava semi-cristãos e não anti-cristãos, defendeu que mais valia um
combate cristão com o exemplo do que com as armas (EGIDO, 2004:68). Em seu
programa pacifista, exposto na obra A Instituição do Príncipe Cristão (1516)
defendeu, entre outras, as seguintes idéias: desarmar os antagonismos nacionais;
retirar dos príncipes o direito de declarar a guerra; organizar uma arbitragem
supra-nacional e mobilizar todas as forças morais a favor da paz. Ainda que em
Erasmo de Rotterdam não apareça claramente o conceito de tolerância pode-se
perceber uma preocupação com o combate pelo testemunho não violento junto aos
não-cristãos, um rudimentar valor de liberdade individual através da reflexão
sobre o livre-arbítrio e a condenação de toda e qualquer guerra, principalmente a
de motivação religiosa.
1.1.2
Thomas More: a tolerância utópica.
O britânico Thomas More (1478-1535), contemporâneo e amigo de Erasmo
de Rotterdam, dissertou sobre uma incipiente idéia de tolerância religiosa em sua
obra-prima-ficção-projeto Utopia (1516), que por um lado queria ser uma severa
crítica ao sistema social e político inglês e, por outro, uma descrição precisa de
um hipotético Estado ideal. A religião dos habitantes da Ilha Utopia funda-se na
crença de um Deus “único, eterno, imenso, desconhecido, inexplicável” (MORE,
1971:151), que cada um tem a liberdade de adorar mediante o culto de sua
preferência. Na fictícia ilha, o Estado não poderia impor aos habitantes nenhuma
religião, uma vez que a religião se reduziria a um ato da consciência individual e
esta não poderia ser violada.
No entanto, Thomas More descreveu que em Utopia não se tolerava o
ateísmo, pois este negaria todas as bases morais do bom Estado. Tampouco se
tolerava os intolerantes, ou seja, aqueles que predicam contra as religiões alheias
(EGIDO, 2004:68-69). Em sua ficção, um cristão neófito e fervoroso foi detido e
lançado ao cárcere não por pregar com ardor a fé no Deus verdadeiro, mas por
haver ultrajado as religiões alheias, denominando os outros crentes de
profanadores, ímpios, hereges, sacrílegos e merecedores do jogo eterno. Foi
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 39
devido à sua intolerância que este cristão foi desterrado, já que “os utopianos
incluem no número de suas mais antigas instituições a que proíbe prejudicar uma
pessoa por sua religião” (MORE, 1971:153).
Thomas More envolveu-se profundamente na política, iniciando uma prática
que seria comum entre os pensadores ingleses: associar atividade filosófica e
funções políticas. Chegou a ser Conselheiro do Rei e, contraditoriamente à
tolerância da sua ficção sobre o Estado ideal, escreveu importantes tratados e leis
de combate às heresias. Com contundência recomendava aos hereges a pena de
morte e de maneira cruel e exemplar. “De hecho, el Canciller firmó numerosas
ejecuciones de los primeros luteranos ingleses” (EGIDO, 2004:69).
Contradições do destino, o próprio More foi acusado e decapitado como
herege no reinado de Henrique VIII, depois que este abandonou convenientemente
o catolicismo. A lógica intolerante seguiu sendo a mesma: morte aos dissidentes.
O caso de Thomas More inicia, a meu juízo, um paradoxo que será comum para
diferentes ilustrados em toda Modernidade: pregar a tolerância e viver a
intolerância, seja como vítima ou algoz.
O conceito de tolerância religiosa já aparece mais desenvolvido em Utopia e
o enorme êxito de publicação desta obra magna de Thomas More entre os
pouquíssimos leitores à época, sem dúvida, formará a opinião de muitos ilustrados
que estavam por vir. Ainda a fim de remexer nas origens do conceito de tolerância
para o Iluminismo, importa destacar mais dois nomes, a meu ver, pouco ou nada
conhecidos: Sebastián Castellion e Dirck Coornhert.
1.1.3
Sebastián Castellion: entre Roma e Genebra.
Sebastián Castellion nasceu em 1515, em Saint Martin du Fresne, França,
uma região que historicamente produziu muitos hereges. Castellion estudou em
Lyon, tornando-se inicialmente um humanista católico. Buscou, como Erasmo,
um caminho intermediário para a reforma da Igreja. Mas, estando na França, onde
as disputas religiosas foram mais acirradas e a monarquia ainda mais resistente, o
caminho intermediário se fez impossível. Viu-se, então, forçado a escolher entre o
catolicismo ortodoxo e o protestantismo. Castellion tornou-se protestante.
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 40
Temendo os inquisidores católicos, buscou ajuda junto a Calvino, exilando-
se em Estrasburgo. Castellion seguiu com Calvino até Genebra, onde se
refugiavam muitos protestantes franceses. Ainda que não tivesse sido um
calvinista da primeira hora, foi escolhido por Calvino para ser reitor permanente
do Colégio de Genebra. Porém, a amizade entre Calvino e Castellion não durou
muito tempo. Logo divergiram sobre questões doutrinais e sobre o cânone dos
livros sagrados. Castellion teve, então, que abandonar Genebra. Perambulou pela
Europa fugindo de seus perseguidores. Instalou-se na Basiléia, onde se empregou
em trabalhos braçais, até que em 1552 obteve uma cadeira de professor de Grego
que ocupou até sua morte, em 1563.
Além de sua vida de humanista e fugitivo da intolerância, uma vez católica,
outra protestante, Sebastián Castellion se destacou como um dos pioneiros mais
explícitos na defesa da tolerância. Em seu livro Libelo Contra Calvino (1554),
proibido até 50 anos após sua morte, criticou a idéia de predestinação do antigo
protetor, que, segundo Castellion, conduziria a uma visão de um Deus cruel e
vingativo. Defendeu que não se deveria tolerar que se matasse em nome de idéias,
ainda que estas idéias fossem puras e verdadeiras. O que dizer, então, de idéias
errôneas e obscuras? Sua obra foi um combate inédito contra a intolerância
religiosa e um manifesto vigoroso contra a pena de morte (EGIDO, 2004:76).
A defesa da tolerância se tornou ainda mais explícita na obra de Castellion
quando ele se posicionou publicamente contra a sentença dada a Miguel Servet,
médico espanhol, nascido em Aragon, que, como Castellion, havia fugido tanto da
intolerância católica quanto protestante. O médico aragonês ousou escrever uma
enciclopédia compilando todos os tipos de heresias, incluindo as mais desafiantes
e intoleráveis tanto para Roma como para Genebra. Até então, era o médico do
bispo de Viena. Preso e condenado pela Inquisição Católica em Viena, Servet
conseguiu fugir e o fez, inocentemente, para Genebra, onde foi finalmente
queimado em outubro de 1553 por ordem de Calvino.
Castellion, desde a Basiléia, escreveu em defesa de Miguel Servet alegando
que haveria que deixar para Deus o juízo e o castigo contra toda e qualquer
heresia, tal como ensina a parábola que fala da separação do joio e do trigo
3
, tão a
gosto dos intolerantes à época.
3
Evangelho de Mateus, capítulo 13, versículos 24 a 30.
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 41
Castellion argumentava ainda que, segundo os ensinamentos de Cristo,
acima dos erros estaria a caridade, acima das doutrinas estaria a vida das pessoas.
Nada mais claro que suas próprias palavras:
Matar a un hombre no es defender una doctrina, es matar a un hombre. Los
ginebrinos, al matar Servet, no estaban defendiendo una doctrina, estaban matando
a un hombre. No es asunto del magistrado defender una doctrina. ¿Qué tiene que
ver la espada con la doctrina? Eso pertenece a los doctores. Proteger al doctor, sí,
esa es la función del magistrado, al igual que su oficio es el de proteger al artesano,
al labrador, al médico, a todos los ciudadanos si se los ofende. Si Servet hubiera
querido matar a Calvino, el magistrado hubiera tenido que defender a Calvino. Pero
habiendo combatido Servet con escritos y con razones, con razones y con escritos
se le habrían tenido que combatir.
4
Sebastián Castellion estava convencido de que os poderes civis deveriam
permanecer à margem das questões religiosas e nisso ele precederá a John Locke,
como demonstrarei mais adiante. Por outro lado, Castellion defendeu que as
autoridades civis não deveriam usurpar de Deus o direito divino de julgar as
almas, pois esse direito pertenceria somente ao Pai Supremo, tal como também
ironicamente defenderá Voltaire dois séculos mais tarde. Assim, Castellion foi um
importante precursor dos dois maiores apologistas da tolerância na Modernidade.
1.1.4
Dirck Coornhert: de volta ao refúgio holandês.
De volta à nação de Erasmo. Durante quase toda a Modernidade, Holanda
foi a pátria da tolerância. Segundo EGIDO (2004), isso se deu por causa de três
motivos. Primeiro, porque foi para o norte que migraram as minorias religiosas
intoleradas em diferentes rincões da Europa: católicos fugidos da Inglaterra,
calvinistas dissidentes, luteranos e huguenotes perseguidos na França,
antitrinitários expulsos da Polônia, judeus sefarditas banidos da Península Ibérica,
entre outros. Em segundo lugar, porque a revolução da imprensa em Amsterdã foi
tão ou mais intensa que em Londres e Paris, os grandes pólos da intelectualidade
européia à época. Foi em Amsterdã que se publicaram muitos livros sobre
tolerância, a exemplo de Cartas Acerca da Tolerância, de John Locke. Em
terceiro lugar, porque o pequeno principado havia alcançado grande êxito
econômico justamente devido ao fato de ser um refúgio de tolerância. O próprio
Príncipe de Orange se empenhava em convencer a todos de que a liberdade
4
Citado por EGIDO (2004:76).
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 42
religiosa era essencial para prosperidade comercial da Holanda. Quando a
Província de Leyden aderiu em massa a ortodoxia calvinista, foi advertida
administrativamente: “Nadie puede ignorar que la libertad de conciencia o la
tolerancia de las diversas sectas cristianas ha contribuido a acrecentar en estas
provincias, y de forma especial en Leyden, la riqueza y el número de habitantes
(…) Los que son gobernados con métodos diferentes pierden sus habitantes, su
comercio y su prosperidad”
5
.
La tolerancia práctica, en efecto, fue una de las características de Holanda. (…)
Porque la lucha por la tolerancia, como puede deducirse sin dificultad, fue una
empresa ardua, de minorías, en la que el libro y la lectura fueron sus mejores
instrumentos. Y en Holanda se imprimieron los libros decisivos por la tolerancia.
(EGIDO, 2004:81).
É neste contexto que cresceu, formou-se e também influiu Dirck Coornhert
(1522-1590), filho de uma família de comerciantes católicos muito bem sucedida.
De formação humanista e religiosa, Coornhert trabalhava como editor de livros e
ele próprio foi escritor de panfletos em defesa da tolerância religiosa e
organizador de colóquios com sugestivos nomes, tais como: Sobre a Liberdade de
Consciência e Meios Para Reduzir o Sectarismo.
Ainda que o contexto propiciasse um ambiente tolerante, Coornhert não se
viu livre das polêmicas com os intolerantes de plantão. Tal como tantos outros
ilustrados, polemizou com clérigos e magistrados, com católicos e reformados, em
defesa de uma razão emancipadora e contra toda autoridade baseada na obediência
cega a uma doutrina que se quisesse impor pela força e pelo medo. Em seus
debates públicos propôs uma tolerância mais ampla que todas as anteriores e que
tantas posteriores, já que defendia a liberdade de consciência para os ateus, coisa
que nem Locke, no século XVII, e nem Voltaire, no século XVIII, ousaram fazer.
A partir de suas polêmicas e debates escreve O Sínodo da Liberdade de
Consciência (1582), obra na qual reuniu hipoteticamente diferentes personagens
históricos da época para debater sobre o tema em questão. No Sínodo perfilam
Calvino, Beza, Hosio e Cano, reformistas e contra-reformistas. Ao final, Gamaliel
– representante do pensamento do autor – aconselha aos clérigos e magistrados:
No creáis a quienes os aconsejan derramar la sangre a causa de la religión y quieren
convertiros en verdugos. Tened muy en cuenta que estos mismos os aconsejarían de
otra suerte si ellos fueran los perseguidos. Con la espada que Dios os ha dado haced
que reine la paz. Y por lo que toca a la religión, proteged a los hijos de Dios contra
5
Citado por EGIDO (2004:81).
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 43
la violencia de sus enemigos: ésta es vuestra misión. La doctrina de la teología nada
tiene que ver con la espada puesto que, de no ser así, los teólogos os exigirían que
vuestra espada se esgrimiera a favor de sus propias opiniones. (…) Sed sabios,
seguid los consejos de Cristo y no los del anticristo.
6
A maneira como Dirck Coornhert propõe sua concepção de tolerância é um
capítulo a parte, pois não se trata de uma carta ao magistrado (Locke), nem de um
tratado filosófico (Voltaire), nem de uma ficção (More), nem de um comentário a
um processo inquisitório (Castellion; Voltaire). Coornhert escolhe um estilo
diferente. Ele reúne hipoteticamente defensores da tolerância e da intolerância
para um diálogo, um sínodo, um concílio, no qual todos expõem suas razões e
suas crenças, e supostamente, em unidade – como se fossem um para que o mundo
creia
7
– decidem pela tolerância. Do meu ponto de vista, a hipótese de Coornhert
mais do que uma suposição foi uma aposta no diálogo e na possibilidade de
consenso. E nisto, ele foi bastante original.
Erasmo de Rotterdam, Thomas More, Sebastián Castellion e Dirck
Coornhert são pensadores que anteciparam os dois maiores filósofos modernos da
tolerância: Locke e Voltaire. Esses senhores da Renascença, que escreveram ao
longo de todo o século XVI, deixaram uma herança fundamental que marcou os
avanços e os limites da reflexão sobre o conceito de tolerância. Os quatro
possuem alguns traços em comum que perduraram em toda Ilustração. Em
primeiro lugar, o embate contra a intolerância como fonte motivadora de
argumentos e de estudos para a defesa da tolerância. Em segundo lugar, a
delimitação das funções entre o magistrado civil e a autoridade religiosa, tema que
será dissecado por Locke. Em terceiro lugar, a defesa que os ensinamentos do
Cristianismo deveriam levar à tolerância e à caridade com os dissidentes e que o
contrário desta postura seria a verdadeira heresia, temática que será aprofundada
por Voltaire. Em quarto lugar, um posicionamente inequívoco contra a guerra, em
especial na obra de Erasmo de Rotterdam, o Apóstolo da Paz. Por fim, aparecem
de maneira ainda incipiente os temas da liberdade de consciência individual e de
expressão pública dessa consciência. Esse tema só será lançado por Locke e seu
liberalismo político, no século XVII, e aprofundado de maneira mais sistemática
por Stuart Mill, bem mais adiante, no século XIX. A distinção entre os quatro fica
por conta da obra de Dirck Coornhert por dois motivos: a defesa da liberdade de
6
Citado por EGIDO (2003:82-83).
7
Tal como ordenara o Cristo no Evangelho de João, capítulo 17, versículo 21.
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consciência para os ateus e a aposta numa saída mais dialogada e não tanto
catequética para a intolerância.
Enfim, a Renascença fixou as raízes do conceito de tolerância de maneira
profunda e inequívoca. A partir dessas raízes e tendo em vista o objeto central
desta pesquisa, deter-me-ei mais especificamente na teoria política e na concepção
ética dos pensadores que refletiram mais detidamente sobre o conceito de
tolerância: o empirista inglês John Locke e o iluminista francês François-Marie
Arouet, le volontaire.
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 45
1.2
LOCKE: PRINCÍPIOS DE LIBERALISMO POLÍTICO.
John Locke (1632-1704) viveu num período de grandes desordens e
transformações políticas e intelectuais na Europa, e mais ainda na Inglaterra.
Locke esteve no centro de muitas destas transformações. Tornou-se amigo de
cientistas de destaque, entre eles o Pai da Química, Robert Boyle, o eminente
médico Thomas Sydenham e o mais célebre de todos, Isaac Newton. Locke
colaborou diretamente com Sydenham na descoberta da corrente sanguínea e
exerceu ele próprio a medicina.
Locke ocupou cargos de governo no período em que Carlos II foi Rei da
Inglaterra, mas provavelmente – afirmam os seus biógrafos – conspirou contra o
Rei e seu irmão James II. Por causa da suposta conspiração e da perseguição que
se sucedeu, refugiou-se na Holanda entre 1683 e 1688, justamente num período
que o tema da tolerância religiosa estava sendo muito discutido e debatido no país.
Na Holanda, já na maturidade da vida, escreveu suas obras mais importantes e que
só foram publicadas posteriormente: Carta Acerca da Tolerância, Dois Tratados
Sobre o Governo e Ensaio sobre o Entendimento Humano.
Nestas obras centrais, Locke lançou de forma sistemática as bases do que
hoje comumente chamamos de liberalismo político. Liberdades individuais como
direito inquestionável, restrição ao poder coercitivo do Estado, defesa do
pluralismo de opiniões como possibilidade do bom governo e, ainda, a divisão e
independência dos poderes – legislativo, executivo e judiciário – são idéias
centrais do pensamento lockeano, principalmente em Dois Tratados Sobre o
Governo (1689)
Por sua vez, em Ensaio sobre o Entendimento Humano (1690) combateu o
racionalismo cartesiano e a concepção de idéias inatas. Manteve-se, assim, fiel ao
empirismo inglês iniciado por Francis Bacon um século antes. Nesta obra, Locke
defendeu que todas as idéias têm origem na experiência e a partir delas o
entendimento humano é capaz de realizar abstrações. No célebre argumento da
tábula rasa defendeu que a mente humana é inicialmente como uma folha em
branco, um espaço passivo onde se inscrevem experiências e de onde se pode
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 46
criar conceitos. Assim, defendeu que não há nada no intelecto humano que não
tenha passado primeiro pela experiência dos sentidos.
Em Cartas Acerca da Tolerância (1685, 1690, 1692)
8
, Locke defendeu de
maneira até então original o tema das liberdades individuais enquanto elemento
basilar do sistema político, sobretudo, na defesa da liberdade de expressão e culto
como um direito básico do indivíduo e, de acordo com o que destacarei a seguir,
na defesa da separação entre comunidade civil e comunidade religiosa. Esta
proposta de Locke foi fundamental e sistematicamente retomada pelo liberalismo
político na defesa dos limites e articulações entre o direito às crenças individuais
ou de grupos e os deveres públicos que devem ser assumidos por todos e a devida
coerção diante do não cumprimento dos deveres públicos.
1.2.1
Carta ou cartas?
Como afirmei anteriormente, desde a segunda metade do século XVI, a
Holanda havia se tornado um refúgio para muitos que tentavam escapar da
intolerância religiosa e política em outros países europeus. Além do mais, ali se
encontrava um importante grupo de teólogos, conhecidos como arminianos, que
enfatizavam – como Locke iria fazer depois – crenças simples e não dogmáticas,
defendendo assim a pacífica convivência entre diferentes crenças religiosas.
Durante o tempo que viveu na Holanda, Locke tornou-se amigo do teólogo
Philip Limborch, que esteve diretamente envolvido na primeira publicação da
Carta, escrita provavelmente entre 1685 e 1686. Cauteloso e temendo represálias
ainda mais sérias das que já havia sofrido em seu país natal, o autor se manteve no
anonimato. Somente Limborch e Locke sabiam quem era o autor da Carta, que
logo provocou interesse e polêmica entre os intelectuais europeus. Passaram-se
muitos anos antes da autoria de Locke ser descoberta; mesmo então ele recusou-se
a admitir que era o autor, o que só veio a acontecer alguns meses antes de sua
morte, em 1704. Em suas correspondências, Locke e Limborch pareciam se
divertir com as especulações sobre os possíveis autores da Epistola
9
, bem como as
8
A primeira data é o ano em que a Carta foi provavelmente escrita. A segunda é a data da
publicação e das primeiras réplicas que Locke escreveu às críticas que se sucederam. A terceira
é a data das últimas réplicas que, como as primeiras, foram mais tarde incorporadas ao texto
original.
9
Assim era chamado o texto à época, escrito em latim para um público douto.
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 47
polêmicas que ela causava. Além disso, os dois amigos acompanharam as
inúmeras traduções para inglês, francês, holandês e uma segunda edição em latim.
Em 1690, Jonas Proast escreveu uma severa crítica/resposta à Carta. Locke
respondeu, ainda em anonimato, no mesmo ano com a sua Second Letter
Concerning Toleration. Proast replica em 1691. Um ano depois, Locke publica
com ajuda do amigo Limborch a Third Letter for Toleration. Locke chegou a
escrever uma quarta carta sobre o mesmo tema que só foi publicada após a sua
morte. Interessante registrar que a terceira carta – a maior entre as quatro – e a
segunda foram assinadas com o pseudônimo de Philanthropos, o que foi
entendido não só como uma proteção a mais para a sua identidade, mas também
uma maneira de identificar a sua perspectiva muito mais humanista do que
teocêntrica.
Locke foi um pensador influente em seu tempo, especialmente no que tange
à defesa da tolerância. Em uma carta para Limborch, Locke informou ao amigo,
de maneira cautelosa e entusiasta, a respeito do projeto de lei sobre o tema da
tolerância religiosa (Tolerantion Act, 1689) submetido ao parlamento inglês:
Sem dúvida, já tereis ouvido antes de receber esta que a Tolerância foi agora,
finalmente, estabelecida por lei em nosso país. Não, talvez, tão ampla em seu
âmbito quanto poderia ser desejado por vós e todos aqueles que, como vós, são
verdadeiros cristãos e imunes à ambição ou inveja. De todo modo, já é alguma
coisa ter progredido até esse ponto.
10
As quatro cartas, que hoje se encontram publicadas como um único texto,
não formam uma obra extensa. No entanto, elas trazem algumas dificuldades
interpretativas tendo em vista que se trata de um texto sintético e complexo, ainda
que direto e de posicionamentos indubitáveis. Escrita para um público douto, a
Carta se baseia em posicionamentos filosóficos até então pouco consolidados e
recorre, com freqüência, à exegese de textos do Novo Testamento e à
interpretação de liturgias cristãs e pagãs como argumentos para a tolerância, o que
faz do texto não só um registro de reflexões filosóficas, mas também teológicas,
litúrgicas e antropológicas. Outra dificuldade do texto é o fato de ser um conjunto
de argumentos desenvolvidos com diferentes finalidades – provocar, responder e
replicar – e profundamente relacionado a um período histórico e a um contexto
muito específico. Enfim, trata-se de uma carta de cartas.
10
Dicionário Locke, Zahar Editora, página 43.
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 48
1.2.2
Várias cartas. Um destino certo.
Locke esteve na Holanda durante cinco anos numa espécie de auto-exílio a
fim de se proteger. Havia contra ele apenas suspeitas de conspiração na Inglaterra,
nenhuma acusação de fato. Mas, ele sabia que isso seria o suficiente para as
perseguições políticas e religiosas. Talvez, por isso mesmo a tolerância tenha sido
um tópico que lhe interessou tão diretamente durante toda a vida: tolerância entre
governos de práticas e crenças religiosas diferentes, tolerância entre seitas
religiosas diferentes e tolerância para as diferentes interpretações das Sagradas
Escrituras dentro do Cristianismo.
No entanto, cumpre registrar que o texto da Carta deixa muito claro que o
autor tinha grandes dificuldades em tolerar os intolerantes, sobretudo no caso
daqueles prelados cristãos e dignitários eclesiásticos que tentavam impor a outros,
por meio da força, suas doutrinas e dogmas. Em suma, se há um grupo que,
segundo Locke, não deve ser tolerado são os intolerantes. Neste sentido, apesar da
obra ser uma carta aberta a todos, de certa forma, tem destinatários privilegiados:
os que são intolerantes com a diferença alheia em nome da religião.
Se se acredita no Evangelho e nos apóstolos, ninguém pode ser cristão sem
caridade, e sem a fé que age, não pela força, mas pelo amor. Assim sendo, apelo à
consciência dos que perseguem, atormentam, destroem e matam outros homens em
nome da religião, se o fazem por amizade e bondade. (LOCKE, 1980:09).
LOCKE (1980:09) desconfiava, com fina ironia, de que as perseguições, as
torturas e os assassinatos cometidos em nome da religião fossem, como se
afirmava, sinais de zelo por uma suposta religião pura e verdadeira:
Visto que é por caridade, como pretendem, e zelo pelas almas humanas, que os
despojam de sua propriedade, mutilam seus corpos, os torturam em prisões infectas
e afinal até os matam, a fim de convertê-los em crentes e obterem sua salvação; por
que permitem que a fornicação, a fraude, a malícia e outros vícios grassem
desordenadamente entre sua própria gente? Estas, e artimanhas semelhantes, são
mais opostas à glória de Deus, à pureza da Igreja e à salvação das almas, do que
qualquer dissidência consciente, por mais errônea que seja, das decisões
eclesiásticas, ou do afastamento do culto público, embora acompanhados de uma
existência pura.
Num tom bastante cáustico,
LOCKE, (1980:10) perguntava aos destinatários
da Carta sobre o porquê de critérios tão rígidos com outrem e tão brandos consigo
mesmos e com os seus:
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 49
Por que, então este zelo abrasador por Deus, pela Igreja e pela salvação das almas –
realmente abrasador na fogueira – ignora, sem qualquer castigo ou censura, tais
fraquezas e vícios morais, reconhecidos por todos como diametralmente opostos à
confissão do cristianismo, e devota-se inteiramente na aplicação de todas as suas
energias para introduzir cerimônias, ou para a correção das opiniões, as quais em
grande parte dizem respeito a temas sutis que transbordam a compreensão ordinária
dos homens?
Continuando em seus questionamentos e mostrando claramente a quem se
destina a Carta, Locke mostrava a grande contradição entre o que era e o que
deveria ser realmente tolerado; entre o que não era e o que não deveria realmente
ser tolerado:
Mas se alguém age contraditoriamente – pois enquanto é cruel e implacável para
com os que discordam de sua opinião, tolera os pecados e vícios morais que não
condizem com a denominação de cristão –, não obstante toda a sua tagarelice
acerca da Igreja demonstra claramente que seu objetivo é outro, e não o reino de
Deus. (LOCKE, 1980:10).
Apontada as contradições daqueles a quem se destina a Carta, Locke
aconselhava num estilo mais catequético do que filosófico:
Se, como o Comandante de nossa salvação, desejassem sinceramente a salvação das
almas, deveriam caminhar nos seus passos e seguir o perfeito exemplo do Príncipe
da Paz, que enviou seus discípulos para converter nações e agrupá-las sob sua
Igreja, desarmados da espada ou da força, mas providos das lições do Evangelho,
da mensagem da paz e da santidade exemplar de suas condutas. (LOCKE,
1980:10).
1.2.3
Uma coisa é a Igreja, outra a comunidade.
Outro tema a ser destacado da Carta foi o esforço de Locke em indicar qual
deve ser o verdadeiro papel da Igreja. Em poucas palavras: pregar e praticar o
amor e a paz, e – por motivo nenhum – promover perseguição, tortura, pilhagem,
assassinato ou guerra. Nas primeiras linhas da Carta, LOCKE (1980:09) afirma:
“Desde que pergunta minha opinião acerca da mútua tolerância entre os
cristãos, respondo-lhe, com brevidade, que a considero o sinal principal e
distintivo de uma verdadeira Igreja”.
É sabido que a máxima cristã é amar a Deus sobre todas as coisas e o
próximo como a si mesmo. Locke, ao que parece, traduziu esta máxima em algo
mais prático e direto: tolerar o diferente, respeitar a diversidade de crenças
pessoais, conviver com os que pensam diferente e não perseguir os que praticam
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 50
uma religião distinta. A tolerância, segundo o filósofo, não seria algo secundário,
mas, ao contrário, o sinal principal e distintivo da verdadeira Igreja.
Para ele, todas as disputas entre os grupos religiosos eram claros sinais de
que a Igreja estava se afastando do seu derradeiro designo. As disputas, as guerras
e as intolerâncias religiosas “revelam mais propriamente a luta de homens para
alcançar o poder e o domínio do que sinais de Igreja de Cristo” (LOCKE,
1980:09).
Se um indivíduo, segundo LOCKE (1980:09), praticasse todos os cultos e
preceitos religiosos, “mas lhe faltasse caridade, brandura e boa vontade para
com todos os homens, mesmo para com os que não forem cristãos” ele não
poderia ser, verdadeiramente, identificado como cristão. E mais adiante, o autor é
categórico ao identificar a tolerância como o papel fundamental da Igreja de
Cristo: “A tolerância para os defensores de opiniões opostas acerca de temas
religiosos está tão de acordo com o Evangelho e com a razão que parece
monstruoso que os homens sejam cegos diante de uma luz tão clara” (LOCKE,
1980:10).
“Demarcar as verdadeiras fronteiras entre a Igreja e a comunidade”
(LOCKE, 1980:11). Esta foi a idéia mais consistente e insistentemente repetida na
argumentação de Locke durante toda a Carta. Talvez, fosse este o seu principal
objetivo nesta obra. Segundo ele, se esta demarcação não fosse feita não se
poderia delimitar qual é o papel da Igreja enquanto instituição religiosa e qual é o
papel da comunidade enquanto organização civil. Esta demarcação delimitaria
também os poderes das autoridades eclesiásticas e das autoridades civis,
impedindo interferências e influências indevidas entre tais poderes.
Para Locke, “a comunidade é uma sociedade de homens constituída apenas
para a preservação e melhoria dos bens civis de seus membros” (LOCKE,
1980:11). Por bens civis Locke entendia a vida, a liberdade, a saúde física e a
posse de coisas externas (terras, dinheiro, móveis etc). A comunidade, segundo
ele, deveria ser dirigida por um magistrado civil através, principalmente, do poder
da legislação e da coerção. Por sua vez, a Igreja seria “uma sociedade livre, de
homens reunidos entre si por iniciativa própria para o culto público de Deus”
(LOCKE, 1980:12), em suma, uma sociedade livre e voluntária. A Igreja, com
suas autoridades eclesiásticas, cuidaria do culto a Deus e do encaminhamento das
almas que livre e voluntariamente optassem em seguir a sua doutrina.
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 51
O objetivo de Locke parece ser não conferir nenhum tipo de poder mundano
ao encaminhamento dos assuntos religiosos, ou seja, um magistrado civil – que
governasse através da lei e da coerção – não poderia pela força obrigar outrem
seguir esta ou aquela doutrina religiosa. Tampouco poderia uma autoridade
religiosa impor pelo seu poder extra-mundano determinado rito, culto ou prática
religiosa a toda comunidade civil, mas tão somente àqueles que livre e
voluntariamente elegessem seguir a religião a qual comandasse tal autoridade. Na
perspectiva lockeana, mundano e extra-mundano têm âmbitos próprios de
atuação, aconselhamento, legislação e coerção.
Neste sentido, LOCKE (1980:11-12) apresenta três argumentos para negar a
intervenção do uso da força no âmbito da convicção religiosa:
(1) Ninguém crê por imposição. Seria, então, a fé – livre e voluntária – que
daria força e eficácia à verdadeira religião. Além do mais, “não parece que Deus
jamais tenha delegado autoridade a um homem sobre outro para induzir outros
homens a aceitar a sua religião” (LOCKE, 1980:11).
(2) A religião ensina; o magistrado ordena. O cuidado das almas não poderia
ficar sob a jurisdição do magistrado civil porque seu poder consistiria
especialmente na coerção, nas penalidades por desrespeito às normas. Porém, a
religião verdadeira e salvadora consistiria na persuasão interior do espírito. “Uma
coisa é persuadir, outra ordenar; uma coisa insistir por meio de argumentos,
outra por meio de decretos” (LOCKE, 1980:12). Com campos delimitados e
devidamente consensuados não haveria possibilidades de intervenções indevidas.
Tal como o magistrado e o legislador não poderiam coagir em temas de religião
tampouco o pastor de almas estaria habilitado para legislar ou coagir a todos.
(3) Não existe um único caminho para a salvação
11
. Seria errôneo admitir
que só um povo ou religião tivesse a salvação, pois “o caminho mais estreito e o
portão apertado que levam ao céu estariam inevitavelmente abertos a poucos,
pertencentes a um único país: o que salientaria o absurdo de uma inadequada
noção de Deus, pois os homens deveriam sua felicidade eterna ou miséria
simplesmente ao acidente de seu nascimento” (LOCKE, 1980:12). Se houvesse
apenas um caminho à salvação, o acidente do nascimento levaria alguns às
benesses da salvação e eliminaria a muitos do acesso à verdadeira religião por
11
Locke está em direta oposição à famosa e polêmica frase atribuída aos Padres da Igreja: Fora de
Igreja não há salvação.
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 52
estarem condenados à convicção religiosa do magistrado civil ao qual estão
submetidos. Para Locke, este seria um erro que restringiria demasiadamente o
acesso à salvação. Confiante na idéia de um Deus bondoso, misericordioso e
disposto a salvar a todos e todas, Locke não via outra saída senão admitir que não
existe um único caminho para a salvação, mas que Deus se revela e salva através
de outros credos, nações e magistrados, independente da capacidade dos cristãos e
seus mandatários eclesiásticos de entender e aceitar tal fato.
Voltando à delimitação entre comunidade e Igreja, Locke insiste em todo
texto que ao tratar da adesão a uma religião o que estaria em jogo seria a liberdade
de escolha, pois se poderia, muito bem, ser cristão ou mulçumano, papista ou
luterano. No entanto, a inserção numa sociedade civil seria muito mais restrita.
Primeiro, porque o nascimento é um acidente que independe da escolha. Segundo,
porque mesmo que alguém escolhesse deixar seu país e viver segundo as leis de
outro magistrado, ele teria que, ainda assim, submeter-se às normas deste novo
poder coercitivo e não necessariamente ao culto oficial praticado pelo magistrado
ou monarca em seu país de acolhida.
Neste sentido, segundo Locke, no que tange à religião ninguém poderia
impor um legislador a outrem. O único legislador legítimo no âmbito da
convicção religiosa seria aquele que o próprio fiel escolhesse livre e
autonomamente (LOCKE, 1980:13).
O que Locke insistentemente demonstrou foi que a religião seria um dado de
foro íntimo e ela deveria ser respeitada como tal. As divergências deveriam ser
aceitas, pois ninguém tem, em hipótese nenhuma, o direito de impor sua
convicção religiosa aos outros. “Porque cada igreja é ortodoxa para consigo
mesma e errônea e herege para as outras” (LOCKE, 1980:15).
Se alguém professa uma fé coagido, ela não será verdadeiramente uma
convicção, mas sim uma imposição. A fé, para Locke, tem que ser uma adesão
livre e voluntária para ser verdadeira. Por isso ela é íntima, uma experiência
pessoal, independente de nacionalidade ou lugar de moradia.
As idéias de Locke, ainda que hoje nos pareçam óbvias e evidentes, caíram
feito uma bomba para a intelectualidade européia à época. Sua convicção em
separar a noção de comunidade e Igreja foi uma pedra basilar para a noção de
Estado Nação separado da Igreja, que somente séculos mais tarde veio a se
concretizar primeiro na Europa e depois em distintos rincões do mundo. Mas não
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 53
se pode esquecer que tais idéias ainda estão longe de ser unânimes e que Estados
religiosos, ou seja, com credo confessional oficial por imposição legal a todos e
todas, sem ou com pouca convicção voluntária e pessoal, é uma realidade de
nossos dias.
Entre tantas idéias do liberalismo político, baseadas na liberdade individual,
talvez seja a separação entre Igreja e sociedade civil, chamada por Locke à época
de comunidade, a mais amplamente aceita hoje nos países de corte ocidental. No
entanto, ensinamentos tão básicos de liberalismo político parecem estar totalmente
ausentes quando discutimos as polêmicas sobre a proibição dos véus das meninas
mulçumanas nas escolas de Paris ou mesmo o preconceito sobre os patuás usados
por crianças do candomblé nas escolas do Rio de Janeiro. Entre a legislação
intolerante no caso francês e as discriminações nada sutis no caso brasileiro,
percebo que ainda temos muito que caminhar em temas básicos de liberalismo
político, liberdade religiosa e tolerância ao diferente no âmbito da prática
educativa.
1.2.4
Tolerância significa aceitação de tudo?
John Locke diria que não. Como já afirmei, o primeiro caso no qual o dever
de tolerância não se aplica é com os próprios intolerantes. A comunidade não
deveria permitir grupos que perseguem, torturam, roubam, desterram e matam
outros por causa de diferenças religiosas.
Locke também defendeu que nenhuma sociedade religiosa deveria se achar
obrigada, pelo dever de tolerância, a conservar em seu agrupamento uma pessoa
que, mesmo depois de admoestada, continuasse obstinadamente a transgredir as
leis estabelecidas por essa mesma sociedade (LOCKE, 1980:14). Uma vez que o
fiel adere à religião, ele deveria aceitar conscientemente suas regras e seus
legisladores. Se ele desrespeita as normas da Igreja, deveria, então, ser educado e
admoestado sobre o reto caminho segundo aquela religião. Se ele persistir no erro
e não mudar, a Igreja teria o direito de excomungá-lo. No entanto, “a excomunhão
não despoja, nem pode despojar o excomungado de quaisquer de seus bens civis
ou de suas posses” (LOCKE, 1980:14). Ou seja, deixar de professar um credo
religioso não pode destituir o membro da comunidade de nenhum direito civil.
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 54
“Todos os direitos que lhe pertencem como indivíduo, ou como cidadão, são
invioláveis e devem ser-lhe preservado” (LOCKE, 1980:15).
Seguindo o princípio lockeano de que a distinção religiosa não lhe retira
direitos civis, diríamos hoje, numa linguagem mais contemporânea, que os
direitos de cidadania são independentes de qualquer condição religiosa e
acrescentaríamos que também independem de qualquer condição de gênero, etnia,
orientação sexual, pertencimentos, capacidades físicas ou mentais etc.
Ainda que admitisse a excomunhão como possibilidade de medida
repressiva dentro de uma sociedade religiosa, Locke parecia crer que tal sanção só
deveria se dar em casos raríssimos, já que a Igreja deveria “aconselhar toda a
gente” e ela mesma deveria “praticar a caridade, a humildade e a tolerância”
(LOCKE, 1980:17). Excluir um membro errante pode ser um direito da Igreja,
mas, segundo o filósofo da tolerância, “não devemos nos contentar com os
simples critérios da justiça, é preciso juntar-lhes a benevolência e a caridade”
(LOCKE, 1980:15).
Sobre o que deve ou não deve ser tolerado, Locke também defende que só
deveria e poderia ser tolerado nas religiões aquilo que fosse legalizado na vida
privada ou na vida social e que não trouxesse prejuízos a terceiros. Assim, se um
católico acredita ser carne o que os outros chamam de pão e isso em nada fere as
leis e a comunidade, então, esta crença deve ser aceita e respeitada. Neste mesmo
sentido, um jejum pode e deve ser plenamente aceito como um ritual religioso,
mas nunca o sacrifício de vidas humanas (LOCKE, 1980:23;26). Tudo aquilo que
for ilegal para a comunidade também o será para a Igreja. Nenhuma Igreja poderá,
com justificativas de em respeito aos seus ritos ou dogmas, ferir a legislação da
comunidade civil. Uma coisa é a comunidade, outra coisa é a Igreja, mas a
segunda deve agir dentro do marco de legalidade e dignidade traçado pela
primeira.
Por último, e contraditoriamente, LOCKE (1980:29) afirma: “os que negam
a existência de Deus não devem ser de modo algum tolerados”. Apesar de ampla,
a tolerância de Locke apresenta aqui uma grave restrição. LOCKE (1980:29-30)
revela ter algumas razões práticas – ainda que pouco justificáveis e convincentes –
para negar a tolerância aos ateus:
As promessas, os pactos e os juramentos, que são os vínculos da sociedade humana,
para um ateu não podem ter segurança ou santidade, pois a supressão de Deus,
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 55
ainda que apenas em pensamento, dissolve tudo. Além disso, uma pessoa que abala
e destrói por seu ateísmo toda a religião não pode, baseado na religião, reivindicar
para si mesmo o privilégio da tolerância.
A exclusão dos ateus de sua proposta demonstra que a tolerância de Locke é
limitada, justamente por restringir-se ao campo religioso e não expandir-se à
concepção de liberdade de consciência, o que incluiria o ateísmo. Locke parece
não admitir uma comunidade na qual crentes de todos os tipos – convivendo
respeitosamente, segundo sua proposta – possam também conviver com não
crentes. Certamente, esse foi o limite daquele momento histórico. Um limite
grave.
1.2.5
Tolerância, indiferença e diversidade.
Mais dois aspectos ainda merecem destaque no pensamento lockeano acerca
da tolerância. Primeiro, tolerância não significa indiferença. LOCKE (1980:27)
afirma que o fato de tolerar as diferentes religiões não desobriga nenhum crente de
ter um claro posicionamento em defesa da tolerância. Não basta apenas “suportar”
os outros, mas importa defender a tolerância, propagá-la, difundi-la, fazer dela um
princípio de cada religião a fim de se avançar na convivência e se evitar as
perseguições, as torturas, os roubos e os assassinatos em nome de uma fé
supostamente verdadeira. Sendo assim, desde a concepção de Locke, o conceito
de tolerância nunca esteve relacionado com uma atitude de apatia, marasmo ou
insensibilidade. Tolerância não é um deixar fazer irresponsável, mas a
responsabilidade de não deixar que a intolerância negue o direito do diferente a
uma existência digna e livre.
Segundo, a tolerância significa a garantia da diversidade. LOCKE (1980:33)
argumenta a favor da diversidade como um dado de realidade, como algo
inquestionável e, por isso mesmo, plenamente possível de ser aceita:
Não é a diversidade de opiniões (o que não pode ser evitado), mas a recusa de
tolerância para os que têm opinião diversa, o que se poderia admitir, que deu
origem à maioria das disputas e guerras que se têm manifestado no mundo cristão
por causa da religião.
Sendo assim, a intolerância – disputas e guerras – não é fruto das diferenças
que dignamente nos constituem enquanto humanos e que não podem ser evitadas.
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 56
A intolerância nasce da recusa da tolerância, da recusa da não aceitação da
opinião diversa.
A meu juízo, a partir desta defesa de Locke, é possível indicar uma
fundamentação para dois tópicos centrais desta pesquisa: (1) a diversidade é uma
riqueza e não necessariamente a causa de conflitos e (2) não basta apenas
combater os conflitos intolerantes, mas, sobretudo, defender a tolerância como
uma exigência moral. E não só a tolerância entre crenças diferentes, mas também
entre todas as diferenças que compõem a diversidade humana: gênero, etnia,
orientação sexual, nacionalidade, classe social, geração, capacidades físicas e
mentais etc. Tal defesa pode e deve fundamentar, além de uma ação social
concreta, uma prática pedagógica, um processo educativo que tenha a diferença
como riqueza e a tolerância como um valor central e uma atitude possível, tal
como tentarei demonstrar ao longo deste trabalho.
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 57
1.3
VOLTAIRE: A ILUSTRAÇÃO MILITANTE.
Nascido François-Marie Arouet (1694-1778), adotou em 1718, após nove
meses de prisão, o codinome Voltaire. A origem de seu novo nome é
desconhecida, mas a hipótese mais provável é que seja a abreviação de “le
volontaire” (o teimoso)
12
. Voluntarioso, de auto-estima inabalável, polemista
quase compulsivo, propagandista das luzes da razão, orador consagrado e temido,
hábil nas letras e na administração de sua riqueza, íntimo dos monarcas ilustrados
e generoso com os quais acreditava injustiçados, Voltaire foi o iluminista
publicamente mais expressivo do seu tempo. Biógrafos e comentaristas estão de
acordo de que Voltaire seria muito mais um escritor do que propriamente um
filósofo. Segundo GRAY (1999:07), ele “viveu e morreu como um sectário” e
“não há nada mais distante do pensamento de Voltaire que o espírito
investigador”. Daí um possível banimento do rol dos filósofos.
O Iluminismo foi um fenômeno europeu, mas, sobretudo francês. O
Iluminismo foi também uma expressão da Modernidade, mas, sobretudo do século
XVIII. O Iluminismo teve vários e diferentes representantes, mas talvez nenhum
tão militante e fervoroso quanto o filósofo do Tratado Sobre a Tolerância (1763),
O Ensaio Sobre os Costumes (1756) e O Dicionário Filosófico (1764), entre
outras obras.
Como já destaquei, o Século das Luzes foi um período de mudanças e
iniciador de tantas outras. Mudanças que Voltaire tanto queria, mas não chegou a
ver nem no campo da política, nem no campo religioso. Voltaire morreu em 1778,
mas se pode afirmar que suas idéias tiveram profunda influência no Edito de
Tolerância, de 1787, assinado por Luis XVI, na Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, de 1789, proclamada pela Assembléia Nacional, bem como
na Concordata, celebrada em 1801, entre Napoleão Bonaparte e Pio VII,
restabelecendo a paz religiosa na França (CARDOSO, 2003:41-42).
Voltaire esteve também envolvido com o movimento enciclopedista levado
a cabo por D´Alembert e Diderot. A Enciclopédia foi expressão do forte empenho
12
GRAY (1999:14).
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 58
dos ilustrados em difundir o conhecimento. É nesta atividade que Voltaire mais se
destaca. Foi um defensor veemente da divulgação do saber e da razão, contra as
superstições e as crenças infundadas das religiões, especialmente do Cristianismo.
1.3.1
Intolerância: o caso Jean Calas.
Voltaire escreveu o Tratado motivado pelo que acreditava ser uma injustiça
jurídica levada a cabo pela intolerância religiosa. Voltaire tomou conhecimento do
resultado do julgamento de Jean Calas em Toulouse, em 1762. Jean Calas, 64
anos, foi acusado de matar o próprio filho, Marc-Antoine, e foi condenado pelos
juízes de Toulouse a roda dos suplícios. O suposto motivo do parricídio foi a
vontade do filho de abjurar o Cristianismo reformado e confessar o catolicismo.
Jean Calas foi morto, confessando inocência. A manutenção de declaração de
inocência ante as mais cruéis torturas parece ter levado os juízes, por dedução de
inocência, a não conduzirem ao mesmo fim os outros condenados: a esposa de
Jean Calas, seu outro filho, Pierre, e um jovem de sobrenome Lavaisse, amigo da
família e também protestante como os Calas.
Ao que tudo indica e tal como defendeu Voltaire, Marc-Antoine cometeu
suicídio. A motivação seria a frustração de não poder exercer a profissão de
advogado, proibida então aos não católicos. A escolha do jovem Calas foi a forca,
dentro da loja de tecidos de seu pai. “Calas talvez se tenha desgraçado, em parte,
por causa do amor ao filho. Segundo parece, tentou ocultar a causa da morte
para poupar o ente querido do tratamento que se dava aos suicidas em Toulouse
na época: arrastavam seus cadáveres nus pelas ruas” (GRAY, 1999:46). Jean
Calas provavelmente tenha tirado o filho da forca com ajuda da família, mas foi
acusado, igualmente com a ajuda de todos os implicados, a ter posto o filho na
forca, já que um homem de 64 anos sozinho não conseguiria enforcar um homem
mais jovem e mais forte.
Este drama, envolvendo vários pontos e aspectos da intolerância foi o ponto
de partida da obra que é o símbolo da luta libertária de Voltaire. Quando escreveu
o Tratado, aos 69 anos, Voltaire já era um escritor maduro e reconhecido em toda
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 59
Europa. Seu prestígio e sua riqueza
13
foram fundamentais para o êxito da
campanha que detonou para revogar o julgamento de Toulouse, inocentar o nome
de Jean Calas e indenizar a viúva e todos os indiciados.
O caso Calas foi entremeado de intolerância assassina: a não igualdade de
direito no exercício de profissões que leva ao jovem Marc-Antoine a se matar; o
tratamento dado aos suicidas; o infundado argumento de que o jovem viria a
abjurar no dia seguinte; a acusação monstruosa de parricídio; a morte cruel de
Jean Calas na roda dos suplícios; o banimento da Senhora Calas e do filho Pierre
de Toulouse e, por fim e não menos grave, o encaminhamento forçado das filhas
menores para conventos católicos. Os Calas haviam sido, por diferentes
perspectivas, martirizados pela intolerância religiosa.
Todos os indícios da inocência dos Calas estavam no processo, transparentes
às luzes da razão. “Não tinham e não podiam ter nenhuma prova contra a
família; mas a religião enganada fazia as vezes de prova” (VOLTAIRE,
2000:08). Porém, o processo seguiu a linha “investigativa” que quis a opinião
pública tolosana:
Algum fanático da populaça gritou que Jean Calas havia enforcado seu próprio
filho Marc-Antoine. Esse grito, repetido, logo tornou-se unânime; outros
acrescentaram que o morto pretendia fazer abjuração no dia seguinte; que sua
família e o jovem Lavaisse o haviam estrangulado por ódio contra a religião
católica. Um momento depois, ninguém duvidava mais; toda a cidade foi
persuadida de que é um imperativo religioso entre os protestantes que um pai e uma
mãe devem assassinar seu filho tão logo ele queira converter-se (VOLTAIRE,
2000:06)
14
.
Para Voltaire, o caso era símbolo de um contexto, que envolvia Toulouse, a
França e toda Europa. VOLTAIRE (2000:19) referia-se a Toulouse como um
povo “supersticioso e violento”, que “vê como monstros seus irmãos que não são
da mesma religião que ele”:
Esta cidade soleniza ainda todos os anos, por meio de uma procissão e fogos de
festa, o dia em que massacrou quatro mil cidadãos heréticos, dois séculos atrás.
Em vão seis decisões do Conselho proibiram essa odiosa festa, porém os tolosanos
sempre a celebraram como o faziam com os jogos florais. (VOLTAIRE, 2000:19).
13
“Sem a liberdade que o dinheiro lhe assegurava, é duvidoso que Voltaire desfechasse as
justamente celebradas campanhas em apoio a Jean Calas e outras vítimas de desmandos”
(GRAY, 1999:14).
14
Voltaire aqui usa de fina ironia, pois era de conhecimento de toda Toulouse que os Calas já
tinham um filho convertido ao catolicismo, que inclusive recebia um pequeno soldo do pai, tal
como mandava a legislação. Este fato era mais um prova de que não era crível o argumento de
parricídio.
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 60
O contexto francês estava marcado pela revogação do Edito de Nantes
15
, o
que abriu um largo e sangrento período de intolerância religiosa na França durante
todo o século XVIII. A liberdade de culto garantida pelo Edito tornou a ser
proibida e os protestantes voltaram a ser perseguidos ou convertidos à força ao
catolicismo. Os nascimentos e os casamentos protestantes não tinham registro
nem validade civil. Era uma situação de total negação de direitos àqueles que se
mantinham à margem do catolicismo. No contexto europeu, Voltaire também não
via muitas alternativas. Os exemplos de tolerância eram poucos e viam, sobretudo,
da Holanda e da Inglaterra. O clima do Século das Luzes era de tensão, disputa e
muitas perseguições.
Voltaire reconhecia as limitações de seu tempo histórico: “É preciso sempre
partir do ponto em que se está e daquele a que chegaram as nações”
(VOLTAIRE, 2000:31). Neste sentido, reclamou o mínimo de direitos para os
protestantes, tal como os católicos tinham assegurados na Inglaterra à mesma
época: “Não podemos tolerar e admitir calvinistas mais ou menos nas mesmas
condições que os católicos são tolerados em Londres?” (VOLTAIRE, 2000:29).
Assim, acusa a França de atraso e intolerância com suas ferinas perguntas:
“Seremos sempre os últimos a abraçar as opiniões sensatas das outras nações?
Eles se corrigiram; e nós, quando nos corrigiremos?” E mais adiante: “Faz
pouco tempo que praticamos os verdadeiros princípios da agricultura, quando
começaremos a praticar os verdadeiros princípios da humanidade?”
(VOLTAIRE, 2000:59).
1.3.2
Tolerância: casos exemplares.
Para Voltaire, o contexto europeu, especialmente o francês, estava marcado
pelo direito dos tigres, ou seja, a intolerância absurda e bárbara dos mais fortes ou
numericamente mais expressivos contra os diferentes, vistos como fracos e
elimináveis. É a partir deste contexto que ele buscou pensar a intolerância,
buscando na história da humanidade casos exemplares de tolerância.
15
Proclamado em 1598, na cidade de Nantes, por Henrique IV, o Edito legalizou o culto
protestante na França. Os protestantes também passaram a ser reconhecidos com direitos
jurídicos, políticos e militares.
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 61
A busca de exemplos de tolerância a fim de combater a intolerância coloca o
pensamento voltairiano no mesmo dinamismo já indicado anteriormente. Ante a
intolerância assassina com a diferença alheia a reação dos defensores da
tolerância. Os casos de tolerância aparecem no Tratado dentro dessa lógica, como
contraponto para indicar o horror e a irracionalidade da intolerância; e cumprem
duas funções: denunciam a barbárie da intolerância e anunciam a possibilidade da
tolerância como marco de civilidade. É notória no pensamento de Voltaire a
disjunção barbárie versus civilização.
Para Voltaire, o grande exemplo contemporâneo é a Grã-Bretanha, chamada
de ilha da razão. No entanto, não se pode ler sem certo aperto no coração que, na
segunda metade do XVIII, Voltaire registrava que “a Irlanda povoada e
enriquecida não verá mais” católicos e protestantes matarem-se uns aos outros
(VOLTAIRE, 2000:23). Talvez o mais triste para nós hoje no século XXI é saber
que crianças católicas ainda são atacadas ao ir à escola na Irlanda, um tema que
Voltaire acreditava estar resolvido há mais de duzentos anos. Retrocesso? Ou
sinal de que as raízes da intolerância são mais profundas do que os ilustrados de
ontem e de hoje possam perceber?
Voltaire resgata exemplos de todas as partes do mundo, principalmente do
Oriente Próximo: Índia, Pérsia, Tartária. Do Oriente Distante também relata
histórias de sabedoria e de convivência harmoniosa entre diferentes religiões, de
como o Império Chinês, por exemplo, recebeu os cristãos com tolerância e
amabilidade. Sobre uma ferrenha disputa entre um capelão dinamarquês, um
capelão da Batávia e um jesuíta em Pequim, Voltaire conta que um sábio
mandarim deu o seguinte conselho aos três prelados cristãos: “Se quereis que
tolerem aqui vossa doutrina, começai por não serem intolerantes nem
intoleráveis” (VOLTAIRE, 2000:111). Voltaire defende que os japoneses eram o
mais tolerante de todos os povos, pois lá conviviam doze religiões pacíficas até a
chegada dos primeiros jesuítas. Estes, segundo Voltaire, foram os primeiros
intolerantes do Oriente Distante, já que não queriam aceitar a convivência pacífica
com as milenares tradições nipônicas.
Por fim, Voltaire examina o período antes de Cristo. No politeísmo grego e
no paganismo romano, vê sinais de convivência harmoniosa entre diferentes
deuses e costumes. Na Grécia, “havia uma espécie de direito de hospitalidade
entre os deuses como entre os homens” (VOLTAIRE, 2000:35) e os atenienses
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 62
mantinham um altar para os deuses que eles ainda não podiam conhecer. “Os
romanos não professavam todos os cultos, não davam a todos a sanção pública,
mas permitiram todos” (VOLTAIRE, 2000:41). Voltaire retrocede ainda mais no
tempo histórico e com inúmeros exemplos do Antigo Testamento “retoma a
história do judaísmo para eximir esse povo da responsabilidade da intolerância
do catolicismo” (CARDOSO, 2003:42). Voltaire parece induzir o leitor a uma
conclusão ou pelo menos a uma dúvida: seria, então, o Cristianismo, ao contrário
das outras religiões, fundamentalmente intolerante?
1.3.3
Seria o Cristianismo fundamentalmente intolerante?
Voltaire não era um ateu. Como a maioria dos iluministas, era deísta. No
entanto, Voltaire desenvolveu uma crítica radical e, às vezes, zombeteira sobre o
Cristianismo, principalmente sobre a Igreja Católica. Parecia atraído pelo
sentimento religioso, mas demonstrava-se profundamente avesso ao catolicismo.
GRAY (1999:11) registra, de maneira anedótica, porém ilustrativa, que diante das
maravilhas da natureza Voltaire costumava exclamar: “Deus todo-poderoso! Eu
creio!” e em seguida acrescentava: “Quanto ao Senhor seu Filho e a Senhora sua
Mãe, é outra história!”.
No Tratado esta dubiedade diante do sagrado aparece de maneira clara. Ao
mesmo tempo em que Voltaire acusou o Cristianismo de intolerante, também
afirmou que os ensinamentos de Jesus Cristo expressam essencialmente “doçura,
paciência e indulgência” (VOLTAIRE, 2000:86). Sua argumentação parece
indicar um erro de interpretação daqueles que dizem seguir a Jesus Cristo e parece
considerá-lo fora próprio do Cristianismo: “Nascido israelita, viveu
constantemente como israelita” (VOLTAIRE, 2000:88).
A docilidade, paciência e indulgência que Voltaire observou na figura de
Jesus Cristo, ele não as encontrou nos cristãos. Se o Cristo foi doce e indulgente,
os cristãos, para Voltaire, desde o princípio foram intolerantes. A meu juízo, essa
tese é, pouco a pouco, construída ao longo do texto a partir de quatro argumentos.
Primeiramente, partindo do pressuposto que os romanos foram tolerantes,
pois permitiram todos os cultos em seu império, Voltaire levantou uma série de
dúvidas sobre os martírios dos primeiros cristãos. Perguntou-se por qual motivo
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 63
os romanos proibiriam apenas o culto cristão. “Como imaginar que teriam
privado somente os cristãos de uma liberdade que a terra inteira usufruía?”
(VOLTAIRE, 2000:45). O grande problema, segundo Voltaire, foi que os
primeiros cristãos não se contentaram em adorar a seu Deus, mas dedicaram-se a
pregar contra os deuses romanos, acusando-os de falsos deuses e seus adoradores
de idólatras e hereges. Assim, segundo sugere Voltaire, as perseguições que
ocorreram foram um revide à intolerância dos mártires. (VOLTAIRE, 2000:47).
Em segundo lugar, Voltaire desqualifica, de maneira irreverente, muitos
martírios. Voltaire reexaminou uma série de relatos e, a partir das contradições
internas das histórias, acusou-as de fraude piedosa, ou seja, lendas e fábulas
inocentemente imaginadas:
Observe-se ainda que, nos relatos dos martírios, compostos unicamente pelos
próprios cristãos, vemos sempre uma multidão de cristãos vir livremente à prisão
do condenado, acompanhá-lo ao suplício, recolher seu sangue, enterrar seu corpo,
fazer milagres com as relíquias. Se [os romanos] tivessem perseguido apenas a
religião, não teriam imolado esses cristãos declarados que assistiam a seus irmãos
condenados e que eram acusados de fazer encantamentos com os restos dos corpos
martirizados? (VOLTAIRE, 2000:58).
Em terceiro lugar, Voltaire dedicou-se a explicar a origem da palavra
martírio, afirmando que martírio significava inicialmente testemunho e não
suplício. Sendo assim, muitos mártires foram testemunhas do Cristianismo e não
necessariamente torturados, perseguidos ou mortos em nome de sua religião.
Voltaire argumentou que há uma série de registros históricos sobre bispos que
foram amplamente reconhecidos, que realizaram sua ação pastoral por décadas e
que nunca foram perseguidos. Voltaire desconfiou também do suposto furor da
perseguição dos romanos – um império forte e muito bem organizado – e a
capacidade da Igreja Primitiva em realizar 56 Concílios. De duas uma, ou não
aconteceram tantos Concílios ou não houve tanta perseguição. Dessa maneira,
Voltaire retira da concepção de martírio a dimensão de perseguição e de suplício,
e o entende como testemunho.
Em quarto lugar, Voltaire investigou sobre quais ensinamentos de Jesus
Cristo, ou passagens de sua vida, poder-se-iam deduzir uma aprovação à
intolerância. Voltaire descartou que Jesus tenha sido intolerante no episódio da
expulsão dos mercadores do templo. Para ele, Jesus agiu com justiça e rigor diante
de uma contravenção à Lei. Ademais, não houve tortura, pilhagem ou mortes. Ele
examinou também algumas parábolas e entre elas a mais utilizada pelos
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 64
defensores da intolerância. Desprezado por seus convidados a um banquete –
conta Jesus numa parábola
16
– um senhor envia o empregado a sair pelos
caminhos e atalhos com a seguinte orientação: Obrigue todos a entrar. Para
Voltaire, tendo em vista a pregação doce, indulgente e paciente de Jesus, este
obrigue a entrar só pode significar insista, suplique, rogue, exorte e se esforce ao
máximo. Além disso, um único empregado não poderia obrigar, pela força, a
todos que passassem pelo caminho. No capítulo intitulado, Se a intolerância foi
ensinada por Jesus Cristo, VOLTAIRE (2000:90) conclui: “Pergunto, agora, se é
a tolerância ou a intolerância que é de direito divino? Se quereis vos assemelhar
a Jesus Cristo, sede mártires e não carrascos”.
Enfim, Voltaire confirma sua hipótese: “Digo-o com horror, mas com
verdade: nós cristãos é que fomos perseguidores, carrascos, assassinos!”
(VOLTAIRE, 2000:58). No entanto, aquela característica que Voltaire identificou
e tanto combateu no Cristianismo, sua empreitada intolerante porque
desrespeitosa da diferença alheia, é a mesma que se observa no projeto iluminista,
do qual foi veemente defensor. Neste sentido, segundo GRAY (1999:09), o
Iluminismo só pode ser compreendido no contexto do credo que deseja aniquilar.
Ainda que inimigos do Cristianismo, os iluministas traziam a marca indelével da
religião que perseguiam e denunciavam. Três marcas muito fortes o Iluminismo
herdou do Cristianismo: a pretensão da verdade absoluta, a ambição universalista
e a esperança emancipadora para a humanidade (GRAY, 1999:08). Esta
contradição, ou melhor, este movimento de afastar-se e aproximar-se do
Cristianismo, de negá-lo e de assemelhar-se a ele, é o que marca o projeto
iluminista naquilo que é mais próprio do pensamento de Voltaire: a defesa de uma
religião natural e de uma fé secular.
1.3.4
Por uma fé secular.
VOLTAIRE (2000:30) partilhava a esperança iluminista de que o aumento
do conhecimento tornaria os seres humanos menos selvagens no trato com sua
própria espécie:
O grande meio de diminuir o número de maníacos, se restarem, é submeter essa
doença do espírito ao regime da razão, que esclarece lenta, mas infalivelmente, os
16
Evangelho de Lucas, capítulo 14, versículos de 15 a 24.
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 65
homens. Essa razão é suave, humana, inspira a indulgência, abafa a discórdia,
fortalece a virtude, torna agradável a obediência às leis, mais ainda do que a força é
capaz.
Os ilustrados herdaram e aprofundaram a cosmovisão cristã, ou seja,
levaram a diante o projeto moral e político baseado no otimismo, no progresso, no
desenvolvimento, na confiança do universalismo e na esperança emancipadora
através de verdades absolutas. A Modernidade é uma era de confiança no
progresso da humanidade, segundo um projeto de emancipação pela razão.
Ainda que importante, parece ser que a idéia de progresso não é algo tão
indispensável assim ao Iluminismo, pois pensadores como Hume e Bayle não
supunham que a espécie humana fosse alcançar, no futuro, grau maior de
civilização do que já alcançara no passado (GRAY, 1999:30). Neste sentido,
permaneceu durante toda Ilustração o ideal renascentista de retomar a
Antiguidade, que, de fato, deveria ser o grande logro nos novos tempos. O que o
Iluminismo tem, então, como fundamental, mais que a concepção de progresso, é
o ideal de emancipação.
Mas é a fé na emancipação universal e não no progresso que une o Iluminismo ao
Cristianismo. Aceitem ou não os filósofos iluministas uma concepção qualquer de
progresso, são governados pela tese da emancipação da humanidade por intermédio
do acúmulo de saber (GRAY, 1999:26).
Sendo assim, Iluminismo e Cristianismo não estão em total desacordo como
se pode comumente pensar ou pelo menos como parecem crer os próprios
iluministas. O nó da questão é, sem dúvidas, o tema da autoridade. Como já
destaquei, a crise moderna é uma crise de autoridade. O centro da argumentação
iluminista é que a autoridade da Igreja cedesse à da ciência. Nesta perspectiva,
Voltaire nunca supôs que as modernas sociedades ficassem totalmente
desprovidas de sentimento religioso. “Com efeito, quase eclipsada às vezes pela
intensidade de seu ódio ao Cristianismo, boa parte do trabalho de sua vida
consistiu em inventar uma religião para o homem moderno” (GRAY, 1999:31).
Ainda que não o tivesse claro, o projeto de Voltaire era o de uma religião racional,
ou seja, um sentimento religioso cuja autoridade fosse garantida pela razão, uma
religião despida de superstições e fanatismos. “Nessa ‘religião’ não há fé em
revelação divina nem dogmas próprios das seitas particulares, origem das
superstições, do fanatismo que geram a intolerância” (CARDOSO, 2003:41).
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Voltaire sustentou que os seres humanos tendem naturalmente a adorar, de
modo racional, um Ser Supremo (GRAY, 1999:35). O Iluminismo seria, então, a
suposta saída para uma religião não fanática, ainda que, como se sabe, o projeto
iluminista possa ser tão fanático e intolerante quanto à irracionalidade
supersticiosa que visa combater.
Além disso, há que destacar que VOLTAIRE (2000:113) reconheceu uma
função social para a religião e, tal como Locke, acreditava ser intolerável aceitar o
ateísmo:
Tal é a fraqueza do gênero humano e tal sua perversidade, que, para ele, certamente
é preferível ser subjugado por todas as superstições possíveis, contanto que não
sejam mortíferas, do que viver sem religião. O homem sempre teve necessidades de
um freio e, ainda que fosse ridículo fazer sacrifícios aos faunos, aos silvanos, às
náiades, era bem mais útil e razoável adorar essas imagens fantásticas da divindade
do que entregar-se ao ateísmo. Um ateu argumentador, violento e poderoso seria
um flagelo tão funesto quanto um supersticioso sanguinário.
Na verdade, ainda que universalista, Voltaire faz duvidar de que todos os
seres humanos possam ser instruídos pelas verdades da razão. A semelhança de
outros iluministas era tentado pela idéia de mentira nobre, de uma religião para
manter as massas sob controle e, por isso, via com horror o ateísmo. Em um de
suas cartas chegou a afirmar: “À massa ignara pouco importa se lhe damos erros
ou verdades para acreditar, sabedoria ou loucura; ela seguirá uma ou outra
coisa igualmente, pois não passa de uma máquina cega”
17
. Assim, podemos
perceber que, para Voltaire, o ponto a ser combatido não é o sentimento religioso
em si, nem mesmo o supersticioso – contanto que não seja mortífero – mas a
religião fanática e intolerante. O campo de atuação da razão emancipadora seria a
religião intolerante, mais do que a superstição religiosa. Neste sentido, importa
entender, mais uma vez, o que pode e não pode ser tolerado.
1.3.5
O que não pode ser tolerado?
Cabe mais uma vez o questionamento sobre se tolerar significa suportar toda
e qualquer coisa. Para Voltaire, a resposta a esta questão também é um rotundo
não. Seguindo a sugestão de Locke, o iluminista francês rejeitou o ateísmo como
uma possibilidade a ser aceita, confirmando mais uma vez as insuficiências da
17
Citado por GRAY (1999:36).
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 67
tolerância ilustrada. Além de combater o ateísmo como uma possibilidade
perigosa de ausência de freio para a “massa ignara”, Voltaire “defende que a
intolerância é um direito do governo apenas contra os fanáticos, cuja atitude é
considerada crime por perturbar a sociedade” (CARDOSO, 2003:44). Assim,
claro está que a tolerância, segundo Voltaire, não deve tolerar tudo.
Não obstante, cabe a pergunta: então, o que deve ser tolerado? Mais uma vez
recorrendo aos exemplos de intolerâncias ao longo da história da Europa e
especialmente da França, Voltaire indica os absurdos da não aceitação da
diferença por motivos totalmente injustos. Por exemplo, a nacionalidade ou
qualquer outra particularidade dada pelo nascimento: “Esses povos, até então
desconhecidos, eram culpados certamente, de terem nascido valdenses; era sua
única iniqüidade” (VOLTAIRE, 2000:19). Com fina ironia, Voltaire indicou que
as características sobre as quais não se tem controle, como a natalidade, não
poderiam ser consideradas como uma iniqüidade, pois isso sim seria a iniqüidade.
Ora, nada que nos venha da loteria biológica – para utilizar uma expressão de
John Rawls – deveria ser motivo de preconceito, quanto mais de intolerância
assassina. Cumpre acrescentar que nada que nos identifique e nos diferencie
dignamente como humanos deveria ser fonte de preconceitos, discriminações ou
intolerâncias. Nada que nos venha da loteria biológica ou do processo de
construção de identidades e nos diferencie dignamente enquanto humanos:
nacionalidade, gênero, etnia, orientação sexual, identidade cultural e religiosa,
capacidades físicas e intelectuais e, inclusive, classe social.
Voltaire, ao longo do Tratado, relacionou o conceito de tolerância com
várias idéias: aceitação do outro, direito natural, direito divino, indulgência,
doçura, prudência, amabilidade, paciência etc. Ao final do texto e em seus pós-
escritos, ganha maior peso a idéia de igualdade do gênero humano e da
necessidade do empenho de todos para suportar as dificuldades da vida. É sobre
estes dois argumentos que ele finalizou sua campanha libertária, com um tom
apelativo ao sentimento religioso.
Sendo assim, para combater a intolerância, Voltaire recorreu ao mais típico
argumento do Iluminismo, retomado desde a tradição judaico-cristã: a igualdade
pela filiação divina.
Não é preciso uma grande arte, uma eloqüência muito rebuscada, para provar que
os cristãos devem tolerar uns aos outros. Vou mais longe: afirmo que é preciso
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 68
considerar todos os homens como nossos irmãos. O quê! O turco, meu irmão? O
chinês? O judeu? O siamês? Sim, certamente; porventura não somos todos filhos do
mesmo Pai e criaturas do mesmo Deus? (VOLTAIRE, 2000:121).
Por fim, aparece o argumento de que devemos mutuamente nos ajudar a
suportar as dificuldades e os desafios da vida. No capítulo intitulado Oração a
Deus, VOLTAIRE (2000:125) roga:
Que esses erros não venham a ser nossas calamidades. Não nos deste um coração
para odiarmos e mãos para nos matarmos. Faz com que ajudemos mutuamente a
suportar o fardo de uma vida difícil e passageira; que as pequenas diferenças entre
as roupas que cobrem nossos corpos diminutos, entre nossas linguagens
insuficientes, entre nossos costumes ridículos, entre nossas leis imperfeitas, entre
nossas opiniões insensatas, entre nossas condições tão desproporcionadas a nossos
olhos e tão iguais diante de ti; que todas essas pequenas nuances que distinguem os
átomos chamados homens não sejam sinais de ódio e perseguição; (...)
E, no capítulo intitulado Conclusão e Continuação, a voz da natureza, com
um quê de divindade, responde à prece de Voltaire instruindo a todos os seres
humanos: “Já que sois fracos, auxiliai-vos; já que sois ignorantes, instruí-vos e
tolerai-vos (...) que uns ajudem os outros a suportar a vida” (VOLTAIRE,
2000:136).
Se, por um lado, a tolerância é uma virtude do campo semântico da
compaixão, da indulgência, da prudência, da ajuda mútua para suportar o fardo da
vida, por outro, Voltaire tinha claro que ela não era uma virtude primeira e
tampouco sem limites. Seu anteposto, a intolerância assassina, foi uma realidade
histórica daquele tempo que Voltaire empenhou-se em combater. A intolerância,
para o iluminista francês, era um crime de fanatismo que perturbava
profundamente a humanidade. Assim, a recomendação de Voltaire foi que os
seres humanos não fossem fanáticos intolerantes para que pudessem merecer a
tolerância.
1.3.6
Entre a Carta e o Tratado.
Antes de seguir caminho, vale a pena registrar algumas semelhanças e
divergências entre Locke e Voltaire. As similitudes entre os dois filósofos estão
em dois pontos básicos: (a) escrevem desde um contexto de intolerância, no qual
querem intervir em defesa da tolerância, da paz, da concórdia, da coexistência
pacífica entre grupos diferentes e eventualmente opostos e (b) argumentam a favor
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 69
da tolerância em bases filosóficas, mas também teológicas, ou seja, utilizam-se da
tradição cristã e da exegese bíblica para fundamentar alguns de seus argumentos.
As diferenças são de estilo e de conteúdo. Quanto ao estilo, ainda que
escreva uma carta, o que pode parecer algo mais simples, Locke a escreve para
um público douto. Seu objetivo são os magistrados, o alto clero e os intelectuais.
Isso se comprova também pela opção do latim e não de uma língua vernácula para
a difusão do texto. Voltaire escreve um tratado, mas na verdade é um texto mais
simples, destinado a mobilizar a opinião pública européia. Trata-se de uma peça
de campanha, um texto para o grande público, com capítulos curtos, ágeis e
irônicos.
Quanto ao conteúdo, as diferenças estão tanto no arcabouço teórico de fundo
quanto na concepção de uma ética da tolerância. Locke escreve no marco do
liberalismo político, das propostas contratualistas. Sendo assim, a partir de uma
inicial noção de liberdade de consciência, concebe a possibilidade da diversidade
de opiniões, ainda que esta temática só vá ganhar contornos mais definidos com
Stuart Mill. Voltaire, por sua vez, escreve desde uma Ilustração militante com
ataques diretos à Igreja Católica e a partir da defesa das luzes da razão como
símbolo de civilização, contra a autoridade da fé e os argumentos baseados na
força, no medo e na superstição.
Segundo CARDOSO (2003:47), Locke e Voltaire também se diferenciam
quanto a uma “ética da diversidade” e uma “ética da identidade”. Enquanto o
empirista inglês argumenta por uma tolerância baseada na constatação da
diversidade de opiniões, hábitos, costumes e ritos como um direito a ser garantido,
o iluminista francês defende a tolerância a partir do argumento de nossa
identidade enquanto igualmente humanos. Um vê na realidade plural de religiões
e cultos os argumentos mais convincentes para a defesa da tolerância religiosa. O
outro vê na essência humana, também defendida veementemente pelo
Cristianismo. Ainda que um século antes, Locke nos parece mais atual que
Voltaire, por sua argumentação mais próxima do liberalismo político, enquanto o
francês, como já demonstrei, mantém-se fiel ao aspecto mais contraditório do
Iluminismo, ou seja, o movimento de criticar e assemelhar-se à Tradição
Metafísica e ao próprio Cristianismo.
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 70
Não obstante, seria também correto afirmar que tanto uma ética de
diversidade como uma ética da identidade são, nos tempos atuais, igualmente
vigorosas e influentes no pensamento filosófico e educacional.
Em síntese, no contexto iluminista, a tolerância foi tanto justificada como um valor
da ‘ética da diversidade’, quanto como um valor da ‘ética da identidade’. Ou
devemos respeitar nossas diferenças, pois a experiência nos mostra a realidade
humana no plural; ou porque sabemos, pela razão, que somos iguais enquanto
humanidade, apesar de nossa diversidade derivada da cultura, sexo, etnia etc. Nesse
caso, a exigência da tolerância encontra-se justificada em nossa identidade.
(CARDOSO, 2003:47).
Diversidade ou igualdade? O que deve justificar a tolerância? A pluralidade
humana ou a igualdade da natureza entre os humanos? A opção volteiriana pela
igualdade marcou mais profundamente a Modernidade e será preciso esperar pelos
ventos da Pós-Modernidade para se recuperar a inspiração Lockeana pela
diversidade. Aqui fica o registro da diferença entre as respostas moderna e pós-
moderna. No entanto, não é meu objetivo neste trabalho tratá-las a fundo. A
seguir, tentarei explicitar e entender melhor os grandes ideais modernos: a
igualdade e a liberdade.
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 71
1.4
IGUALDADE E LIBERDADE: HERANÇAS MODERNAS.
A Modernidade, em especial a Ilustração, deixou-nos muitas heranças.
Algumas bem evidentes. É o caso, no campo das idéias, dos valores de igualdade
e de liberdade. Essas heranças modernas se relacionam profundamente ao
conceito de tolerância. Buscarei, então, demonstrar a originária relação entre
tolerância, igualdade e liberdade. De fato, a princípio, a defesa de uma
pressupunha as outras. A tolerância veio à tona em meio às discussões sobre a
liberdade individual de consciência e a igualdade de tratamento diante da lei
independente das características individuais. Neste sentido, a concepção de
tolerância foi, e tem sido, a ponte entre os conceitos de liberdade e igualdade, a
partir da constatação das diferenças que nos constituem dignamente enquanto
humanos.
Sem querer dicotomizar, mas também sem negar a história que nos constitui,
não posso deixar de reconhecer, com BOBBIO (1995), que estes valores
estiveram sempre relacionados a diferentes – e opostos – espectros políticos. Por
um lado, a direita liberal, por outro, a esquerda socialista. Por um lado, os
defensores incondicionais da liberdade individual e, por outro, os combatentes
incansáveis da igualdade social.
Opino que o conceito de tolerância, ainda que historicamente identificado
como uma bandeira liberal, possa ser um dos elos possíveis para se pensar a
articulação entre as lutas pela igualdade e pela liberdade, e não como uma
reivindicação exclusiva do liberalismo político. A meu juízo, a defesa da
tolerância traz ainda uma outra vantagem, já que também abre a possibilidade de
discussão sobre as diferenças humanas que dignamente nos constituem, o que não
tem nada a ver com qualquer tentativa de justificar desigualdades de direitos, de
oportunidades ou de representação simbólica.
Nesta perspectiva, buscarei apresentar brevemente a igualdade e a liberdade
como ideais fundacionais da Modernidade e como heranças basilares para as
sociedades que se queiram pluralistas. Para cada conceito apresentarei um
pensador representante, tendo como critério a radicalidade e a profundidade de
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 72
suas idéias. Assim, para a igualdade, o “pai do socialismo moderno”, Graco
Babeuf. Para a liberdade, um dos mais radicais defensores das bandeiras liberais,
John Stuart Mill.
1.4.1
Graco Babeuf: a santa e perfeita igualdade.
Analisar o ideal de igualdade é de fundamental importância para se entender
o conceito de tolerância tanto na Modernidade quanto nos tempos atuais. A opção
de entrar nesta temática pelas vias de Graco Babeuf (1760-1797) se justifica por
distintos motivos. Considerado um pioneiro do socialismo moderno, Babeuf não
só retoma como avança, no contexto dos dias agitados da Revolução Francesa, as
perspectivas de Rousseau, seu grande inspirador.
Talvez um ilustre desconhecido do público leitor de filosofia, Graco Babeuf
concretiza em sua própria história de vida a dimensão que Hannah Arendt tanto
sentia falta na vida e nas obras dos pensadores oficiais: a capacidade de associar
pensar e agir, ou seja, transitar entre o mundo do pensamento e o mundo da ação.
Não quero aqui insinuar que o revolucionário da igualdade tivesse a mesma
desenvoltura que Arendt encontra em Sócrates, mas tão somente destacar, como
demonstrarei adiante, que não se trata de um escritor de gabinete, mas de um
pensador engajado em refletir sobre o mundo e transformá-lo. Sua bandeira: a
igualdade.
Nascido na região da Picardia, em 1760, Babeuf fazia parte de um restrito
grupo de urbanos, se assim podemos chamá-los, já que à época, apenas 25% da
população da França viviam em cidades. Teve vários e diferentes ofícios: operário
na construção de um canal hidrográfico, técnico que calculava o imposto que os
camponeses deveriam pagar ao senhor feudal, notário a serviço de um nobre
tabelião, técnico de medição de terrenos, arquivista etc. Mas, uma coisa iria mudar
a vida pessoal
18
e profissional de Babeuf: a Revolução.
Em 1789, apenas três dias depois da tomada da Bastilha, Babeuf chega a
Paris com o objetivo de publicar aquela que considerava ser a sua contribuição
para uma reforma fiscal, o Cadastre Perpétuel. A partir das suas experiências de
18
Inclusive o seu próprio nome. Ele nasceu François-Noël e, em 1794, adotou o nome Graco, em
referência a um grupo político da Roma Antiga cujos membros eram identificados como
defensores do povo.
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 73
trabalho, ele imaginou um tipo de registro para todas as terras da França que
pudesse ser sempre atualizado, sem a necessidade de substituí-lo e, por isso,
perpétuo. E “enquanto se esforçava por encontrar alguém que se dispusesse a
publicar seu Cadastre Perpétuel, trabalhou como copista e descobriu a profissão
de jornalista” (MOLON, 2002:58-59).
Desde 1770, a França vinha passando por grandes e rápidas mudanças. A
depressão econômica, a alta dos preços dos alimentos, a fome que atingia grande
parte da população, as crescentes tensões políticas e o próprio processo
revolucionário culminado em 1789 solicitavam da imprensa uma função social
cada vez mais importante. A imprensa tinha principalmente a função de registrar e
discutir aquelas rápidas e profundas transformações, amplificando assim as
discussões políticas. E eram variadas as formas como a imprensa se efetivava:
jornais, almanaques, panfletos, cartazes e canções. E cada um desses tipos
impressos era veiculado a partir de diferentes matizes políticas, das mais
conservadoras às mais revolucionárias.
Cumpre registrar a variedade e a quantidade de jornais que circulavam
naqueles anos. Em 1790, foram lançados 335 jornais em Paris. Alguns tinham
tiragem de 12 mil exemplares diários. Outros possuíam mais de 15 mil assinantes
fixos, sendo que muitas assinaturas eram coletivas, de clubes políticos ou cafés,
onde os jornais eram lidos em voz alta para os círculos de discussão.
Foi este contexto que abriu para Babeuf a possibilidade da nova profissão.
No entanto, ele não se deteve simplesmente em registrar os acontecimentos, mas
se envolveu diretamente com eles e fez da nova profissão uma militância política.
As missões de jornalista e a de líder revolucionário se confundem na trajetória de
Graco Babeuf. A imprensa foi sua profissão e sua militância, seu ganha-pão – às
vezes, não muito alentador – e o instrumento de organização de sua utopia.
Muitos seriam os aspectos que poderiam ser destacados da vida de Graco
Babeuf. No entanto, optei em apontar aqui para a significativa mudança que ele
realizou em sua vida ao se deparar com um dos mais marcantes fatos de nossa
História. “A política se tornou acessível ao cidadão comum, tanto por meio de
sua participação em um levante ou em uma discussão em alguma assembléia
secionária, em uma sociedade popular ou em um café” (MOLON, 2002:21). No
caso de Babeuf, um homem jovem que até então havia se dedicado a ofícios
técnicos e burocráticos ligados principalmente ao sistema feudal e que entra para a
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 74
política como um dos protagonistas no processo revolucionário em curso. Ele
havia chegado à Paris com o intuito de propor uma reforma fiscal e descobre-se
no meio de uma revolução, talvez a mais significativa de todos os tempos, e se
envolve inesperadamente numa profissão tipicamente urbana, numa militância
intensa e numa conspiração em nome do ideal de igualdade.
De cidadão comum a militante político, de técnico do sistema feudal a
jornalista, de reformista a líder revolucionário. Trajetória de grandes mudanças,
mas na qual é possível perceber uma característica que permanece na vida e no
pensamento de Babeuf: a igualdade como um ideal a ser conquistado.
A “santa e perfeita igualdade” (MOLON, 2002:80) era o principal norte da
Conspiração dos Iguais, que tinha em Graco Babeuf a sua maior liderança. Por
isso, para entendermos a centralidade do valor da igualdade nesta conspiração é
preciso também entender como ela foi se tornando um valor central no
pensamento e na vida de seu líder.
O primeiro destaque é para a relação de Babeuf com a sua mulher, Marie-
Anne-Victorine Lenglet, e o pensamento que sustentava sobre as mulheres.
“Babeuf defendia um tratamento igualitário para homens e mulheres, dando
muita ênfase ao papel destas na formação e transformação da sociedade”
(MOLON, 2002:50). A igualdade plena de direitos entre homens e mulheres era
um ponto obscuro entre os jacobinos e o continuou sendo por muito tempo no
chamado mundo ocidental, influenciado diretamente pela Revolução de 1789. No
entanto, Babeuf já em 1790 reivindicava para as mulheres a igualdade dos direitos
políticos:
Não imponham mais o silêncio a esse sexo que não merece ser desprezado.
Reergam, ao contrário, a dignidade da parte mais bela de vocês mesmos. Deixem
suas mulheres tomarem parte no interesse da pátria; elas podem fazer mais do que
se pensa para sua prosperidade.
19
O segundo destaque é para o interesse de Babeuf pelo tema da igualdade
social antes mesmo de sua ida a Paris e de seu contato mais direto com a
Revolução Francesa. Isso se faz notar em sua correspondência com o nobre
Dubois de Fosseux. Em uma carta de 1787, Babeuf defende reformas sociais e
econômicas “com o objetivo de se alcançar uma maior igualdade de fato entre os
19
Citado por MOLON (2002:115-116).
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 75
franceses” (MOLON, 2002:53). E ele já se referia ao conceito como “perfeita
igualdade”.
O terceiro destaque é para o teor da introdução que Babeuf faz a sua única
obra escrita, Cadastre Perpétuel. O que poderia parecer uma simples reforma
fiscal traz uma ampla reflexão que aborda inclusive alguns direitos sociais, hoje
comumente chamados de direitos de igualdade. Babeuf é pioneiro em defender a
educação e a saúde como direito de todos e obrigação do Estado:
As reivindicações de Babeuf são: suspensão da venda de bens espirituais da
religião, para que os pobres nada tivessem de gastar com isto; criação de uma caixa
nacional para ajudar na subsistência dos pobres; pagamento do salário dos médicos,
boticários e cirurgiões feito a partir dos fundos públicos, para que a saúde fosse
gratuita; elaboração de um plano de educação nacional para todos os cidadãos; e,
finalmente, justiça gratuita. (MOLON, 2002:60)
.
O último destaque é para a percepção de Babeuf, às vésperas de sua
execução, que a igualdade tinha sido um dos principais valores que balizaram a
sua vida pública. Em carta de despedida à esposa e aos filhos, escreve: “Não
tenho nada para vos legar! Não desejaria sequer vos legar as minhas virtudes
cívicas, meu ódio profundo contra a tirania, minha ardente dedicação à causa da
igualdade e da liberdade, meu vivo amor pelo povo”
20
.
Uma questão que se impõe é sobre como Babeuf entende o conceito de
igualdade. Sua maior influência é o pensamento de Rousseau. Babeuf estudou o
filósofo de Genebra e concordava com ele sobre a percepção que a origem das
desigualdades sociais entre os seres humanos estava na propriedade privada.
“Rousseau apenas diagnostica que foi a propriedade privada que instalou a
desigualdade social entre todos; Babeuf, por sua vez, dedica-se a buscar uma
maneira de reformar essa propriedade ou de superá-la”. (MOLON, 2002:90)
Ao se ocupar do tema da igualdade, Babeuf partiu da resposta de Rousseau,
tomando-a como premissa, procurando descobrir uma maneira de acabar com a
desigualdade ou, em outras palavras, de instaurar o reino da igualdade santa e
perfeita. Assim, ele dava o passo que Rousseau não havia dado, ou seja: descobrir
um meio de restaurar a igualdade perdida.
Babeuf inicialmente propôs a utilização coletiva da propriedade e mais tarde
a abolição da mesma. É justamente a proposta de um programa político que visava
superar a propriedade privada para a obtenção da igualdade social que faz de
20
Citado por MOLON (2002:84).
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 76
Babeuf, segundo Alessandro Molon, o pioneiro do socialismo moderno. Ele não
só identifica na propriedade privada a origem das desigualdades sociais como
propõe, pela primeira vez na Modernidade, a propriedade coletiva como algo a ser
alcançado como fundamento de uma sociedade mais igualitária. Nesta esperança,
a Conspiração dos Iguais visava basicamente dois objetivos: (1) a radicalidade do
valor de igualdade a todos os âmbitos da vida civil e (2) a regulamentação da
propriedade coletiva dos bens superando a propriedade privada.
Graco Babeuf, depois de sete prisões e inúmeras acusações de conspiração
contra o governo constituído, morreu na guilhotina numa manhã de maio de 1797.
Segundo registros da época, Babeuf conduziu-se até a guilhotina com a calma da
inocência. Não houve em Paris nenhuma manifestação contrária à execução.
“Assim, envolto pelo silêncio, morria François-Noël Babeuf, o Tribuno do Povo,
o Graco dos Franceses, o líder da Conspiração dos Iguais” (MOLON, 2002:87).
Sem dúvidas, seus escritos (cartas públicas e privadas, brochuras, panfletos
e dezenas de artigos e editoriais em jornais) não tiveram a sistematicidade de um
filósofo. Por isso mesmo, as idéias de Graco Babeuf não tiveram a mesma
influência que a obra de Rousseau tanto na história do conceito de igualdade
como na confluência do movimento socialista. Porém, resgatar seu pioneirismo,
sua radicalidade e sua originalidade, é, a meu juízo, uma tarefa ainda a ser
cumprida nos estudos históricos e filosóficos sobre o conceito-valor de igualdade.
E aqui deixo a minha simples contribuição para esta tarefa.
1.4.2
Stuart Mill: amálgama entre liberdade e individualidade.
O nome de John Stuart Mill (1806-1873) está profundamente relacionado às
origens da teoria econômica liberal, à ética utilitarista e à defesa da liberdade
individual. Stuart Mill foi um dos mais importantes teóricos da liberdade para a
história da filosofia política, bem como para a sua relação com a tolerância.
Nascido em Londres, de origem escocesa, Stuart Mill foi educado em casa
por seu pai, o filósofo James Mill, e pelo amigo da família, Jeremy Bentham, o
iniciador do utilitarismo moderno. Seu pai tinha como objetivo criar um gênio que
assegurasse a causa do utilitarismo. Com tal propósito, James Mill começou a
ensinar grego ao filho quando este tinha apenas três anos de idade. Aos oito anos,
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 77
o menino lia em grego e começou estudar latim. Aos doze anos, havia realizado a
leitura dos diálogos de Platão e iniciado estudos em lógica e álgebra. Nos anos
seguintes foi tutor de seus irmãos e primos e aos quatorze anos foi à Paris estudar
química, matemática e botânica. Seus estudos seguiriam em história e astronomia.
Aos vinte e três anos, o jovem gênio sofreu um colapso mental, do qual só se
recuperou três anos depois, quando começou a se dedicar às artes e à economia.
Stuart Mill assemelha-se a Graco Babeuf na militância política. Após sua
recuperação, iniciou um período de intensa atividade política, fundando revistas,
círculos de estudos e escrevendo um número exorbitante de artigos e ensaios. Tal
como outros filósofos ingleses – Locke e More – tem uma atuação direta na vida
política da Coroa; foi membro do parlamento inglês e pensador influente em seu
tempo. Ainda em comparação a Babeuf, também defendeu a ampliação dos
direitos políticos das mulheres. Na obra Sobre a Sujeição das Mulheres (1869),
defendeu abertamente o voto feminino, o que motivou o movimento sufragista.
No campo da ética e da teoria do conhecimento, Mill não aporta nenhuma
novidade significativa. Com a obra Utilitarismo (1863), deu continuidade a uma
ética da felicidade, como queria seu pai, e teve um papel importante como difusor
da idéias de Bentham sobre o princípio de utilidade (o melhor bem alcançável
para o maior número possível de pessoas tendo como fim a felicidade). Fiel a este
princípio ético, esteve preocupado com as reformas nas condições de melhoria de
vida dos seres humanos em geral e dos ingleses em particular. Na teoria do
conhecimento, com a obra Sistema de Lógica (1843), soma-se aos demais
representantes do empirismo inglês, tais como Bacon, Berkeley, Locke e Hume.
No campo da economia, tema que não considerarei aqui, destaca-se seu livro
Princípios de Economia Política (1863).
Na obra Sobre a Liberdade (1859), Stuart Mill apresenta sua célebre defesa
à liberdade de pensamento e de expressão, argumentando que o único fim pelo
qual a humanidade está autorizada a interferir na liberdade de ação de qualquer
um dos seus membros é a própria proteção da liberdade. Assim, só se deveria
interferir na liberdade de alguém para defender a liberdade de todos.
Dois princípios básicos defendidos por Stuart Mil tornaram-se, de fato,
verdadeiros preceitos do liberalismo. O primeiro diz respeito à esfera da vida
privada ou pessoal, na qual não pode haver interferência nem da sociedade civil
nem do Estado. A esfera privada é entendida como aquele conjunto de temas que
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 78
só dizem respeito ao indivíduo. O segundo preceito refere-se à garantia de
liberdade coletiva ou social. Um indivíduo ou grupo de indivíduos pode ser
punido se interferir na liberdade de outro indivíduo ou de outro grupo de
indivíduos. Uma ação individual ou coletiva é passível de restrição de liberdade se
for prejudicial ao interesse coletivo (CARDOSO, 2003:54).
Cumpre não esquecer o contexto no qual a reflexão de Stuart Mill se
desenvolveu. A Europa, no século XIX, já se encontrava com dois quadros bem
distintos no que tange à tolerância religiosa. Além da Holanda, a Inglaterra –
influenciada pelas idéias de Locke e chamada de Ilha da Razão por Voltaire –
começava a absorver cada vez mais o ideal de tolerância entre as religiões. Nos
países de maioria católica, em especial a Península Ibérica e a França, os ideais
liberais não alcançavam o mesmo nível de aceitação. Em Portugal e Espanha, a
Ilustração não teve a força que alcançara no restante do continente e as
monarquias católicas se mantinham arraigadas ao poder. Na França, apesar do
Século das Luzes e da Revolução, o clero mostrou-se como um dos mais firmes
núcleos de resistência aos ideais de mudança. Assim, durante o século XIX, a
Inglaterra continuou sendo o epicentro das idéias liberais.
É importante relacionar os argumentos de Mill com o empirismo. Se todas
as nossas idéias são formadas na inteligência a partir dos sentidos e advindas das
experiências; se não há idéias inatas como pretendia o racionalismo cartesiano; se
não há a substancialidade ou a essencialidade nas idéias tal como predicava os
sistemas metafísicos desde Platão; então, não há uma religião, uma lei, uma
cultura ou mesmo uma concepção de liberdade pura, dada, essencial ou natural. A
liberdade de Stuart Mill é uma experiência que se constrói em sociedade. Em
Sobre a Liberdade, o filósofo inglês rompe definitivamente com a idéia de um
livre-arbítrio essencial ou inato aos seres humanos para instaurar o reino das
liberdades civis como construção coletiva.
A relação conflitante entre a liberdade do indivíduo e a autoridade social é a
questão central discutida por Stuart Mill nessa obra. Não se trata, pois, da liberdade
de querer, mas da liberdade civil, ou seja, de estabelecer os limites entre a legítima
interferência do governo e a independência individual. (CARDOSO, 2003:49).
MILL (1991:55) entende que é preciso criar critérios para se determinar as
normas de interferência à liberdade individual: “a parte da vida e da conduta de
uma pessoa que afeta somente a ela”. Criar critérios racionáveis é uma exigência
porque as normas e suas penalidades são resultados de costumes e hábitos e não
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 79
de um direito divino ou natural como se pensava predominantemente. Sem um
direito divino ou natural, importa estabelecer normas racionáveis a partir da
experiência e essa lhe faz crer que o bem mais precioso que os seres humanos
experimentam é a liberdade individual. Daí a liberdade individual ser a sua pedra
basilar para uma proposta política, ética e religiosa.
Stuart Mill apresenta três tipos de liberdade individual: (1) a liberdade de
consciência, o que envolve o pensamento e sua livre expressão em público; (2) a
liberdade de autodeterminação, o que envolve gostos e preferências na condução
de assuntos privados e (3) a liberdade de associação, o que envolve a
possibilidade de integrar-se e retirar-se de qualquer grupo social. Essas liberdades
darão outro rumo à consciência moral da humanidade sobre direitos e deveres,
separando e protegendo definitivamente o cidadão, enquanto indivíduo, das
arbitrariedades das autoridades constituídas, sejam religiosas ou governamentais.
As liberdades civis defendidas por Stuart Mill são fundamentais para dar
arcabouço teórico ao conceito de tolerância. Há uma profunda relação entre o
direito à liberdade de consciência, autodeterminação e associação e a luta pela
tolerância, pois, de acordo com o empirismo, não se pode ter certeza absoluta de
nenhuma opinião, assim, é obrigação da razão garantir a pluralidade de
expressões. O empirismo fundamenta uma ética mais relativa do que absoluta, na
qual importa também a opinião e não se aceita a imposição de uma verdade
inquestionável. Stuart Mill dedicou-se ao estudo de uma história da opinião e
defendeu, como fazia Voltaire, o respeito à opinião alheia de maneira radical: “Se
todos os homens menos um fossem de certa opinião, e um único da opinião
contrária, a humanidade não teria mais direito de impor silêncio a esse um do
que ele a fazer calar a humanidade, se tivesse esse poder” (MILL, 1991:60).
É preciso registrar que Mill não pode ser considerado como defensor de um
relativismo inconseqüente. O fato de não existir uma certeza absoluta não
significa que o indivíduo não possa averiguar o quão adequada está ou não sua
opinião para a condução de aspectos que dizem respeito à sua vida pessoal.
Existe a maior diferença entre presumir a verdade de uma opinião que não foi
refutada, apesar de existirem todas as oportunidades para a contestar, e presumir
a verdade como o propósito de não permitir a sua refutação” (MILL, 1991:64).
A tolerância aparece no pensamento de Stuart Mill como aquela capacidade
de estar aberto às críticas de suas opiniões e de sua conduta, como a sabedoria de
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 80
afastar-se da idéia de verdade absoluta, principalmente no que diz respeito à
condução da vida pessoal, pois só assim se poderá reconhecer uma opinião
falaciosa. “Ter convicções e estar seguro de uma determinada doutrina não é,
pois, arrogar-se infalibilidade” (CARDOSOS, 2003:50). A intolerância estaria na
“ousadia de decidir a questão pelos outros, sem lhes conceder que ouça o que
possa ser dito em contrário” (MILL, 1991:67).
Para Mill, o intolerante é aquele que tem a ilusão da certeza absoluta e isola-se
completamente em suas opiniões, em seu pequeno mundo (partido, religião ou
classe social). E a partir daí julga como falsos ou injustos outros mundos
divergentes. Mal percebe ele que quão acidental é ter nascido nesta ou naquela
cultura, ter esta ou aquela religião ou posição política. A condição da tolerância
depende, pois, de um ‘espírito largo’ que proporcione uma visão ampla da realidade
no tempo e no espaço. Assim, as opiniões serão mais completas pelo diálogo leal
entre posições opostas. (CARDOSO, 2003:56).
Nesta perspectiva, a tolerância ganha uma estrutura teórica baseada na
diversidade do pensamento humano. A liberdade de consciência proposta por
Stuart Mill, desde o empirismo epistemológico, não está fundada na tradição
metafísica que define a verdade como única e universal, mas sim no mundo das
experiências, dos fenômenos, e, por isso mesmo, da diversidade de opiniões,
costumes, hábitos e culturas.
Em Sobre a Liberdade, Stuart Mill esforça-se em superar o abismo
dicotômico entre opinião (doxa) e verdade (episteme), que vinha desde a Grécia
Antiga. Para o filósofo da liberdade, a opinião é tão somente uma visão parcial ou
unilateral da verdade. E dado que sempre é possível o erro no pensamento
humano, o mais prudente é negar à verdade as características de absoluta,
infalível, universal e única. “Assim, o mundo do pensamento é marcado pela
diversidade de posições, sendo a falibilidade a característica do juízo humano”
(CARDOSO, 2003:55). Uma vez que a natureza humana se caracteriza pela
diversidade – de pensamentos, de hábitos, de religiões, de culturas, de línguas etc
– sua existência não pode ser determinada a partir de um só ou de poucos modelos
de moralidade, política, religião, ciência etc. Sendo assim, a tolerância é um dever
moral intrínseco à humanidade a fim dela se preservar tal como ela é, sempre foi e
será, ou seja, plural.
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1.5
RETOMANDO O MAPA: PARA ONDE SIGO?
A fim de orientar o caminho que tenho pela frente e considerando a
trajetória feita até aqui, importa, ao menos, fazer uma breve indicação reflexiva.
Imagino este momento como uma retomada do plano de viagem. Mapa em mãos,
devo relembrar brevemente as trilhas feitas, reconhecer os caminhos não
percorridos, situar-me e apontar em que direção me movimento. É apenas uma
breve parada.
Através dos diferentes autores que até aqui lançaram alguns fundamentos
para o conceito, é possível já perceber uma tessitura entre a tolerância e a defesa
da liberdade de consciência (pensamento, expressão e associação); a luta pela
igualdade (de direitos, de oportunidades e de acesso a bens e serviços básicos para
a garantia e a manutenção da dignidade humana); e, finalmente e não menos
importante, as reivindicações pela diferença (nacionalidade, gênero, etnia,
geração, religião, orientação sexual, capacidades físicas e mentais etc.). É
importante fazer esta breve indicação para apontar que o conceito de tolerância
faz parte da história do pensamento filosófico ocidental, especialmente moderno.
A tolerância não é uma abstração teórica da filosofia política ou da ética em
tempos atuais, mas uma reivindicação que se articula com os valores mais caros e
as bandeiras mais disputadas entre as duas forças políticas mais influentes dos
últimos séculos: o liberalismo político e o movimento socialista. Assim, aposto na
retomada de duas sendas nas quais há riquezas inegáveis e que historicamente
foram apresentadas como totalmente antagônicas, como se todo e qualquer liberal
odiasse a igualdade de direitos e todo e qualquer socialista fosse opositor das
liberdades individuais. Há que conjugar. Muito já se disse que a dicotomia nos
empobrece. Ademais, o conceito de tolerância nos permite ainda entrar num novo
terreno – tão inovador quanto polêmico – que parece ser propriedade privada dos
que são intitulados pós-modernos. Refiro-me ao campo de discussões sobre o
conceito de diferença. É claro que os chamados pensadores da Modernidade
Tardia demonstram sensibilidade com as questões da diversidade que liberais e
socialistas ainda não percebem ou resolvem muito mal. No entanto, arrisco-me na
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Intolerância e tolerância: embates ao longo da História da Filosofia 82
possibilidade de encontrar pontes e mediações entre uma longa história de
pensamento – liberal e socialista – e as inovações que sempre fazem o campo da
abstração teórica e das práticas educativas se enriquecerem e avançarem.
O conceito de tolerância, em minha hipótese, responde tanto aos desafios
novos e urgentes como a reflexão sobre o direito à diferença, quanto remonta as
bandeiras e os ideais de liberdade (1ª geração de direitos humanos) e igualdade (2ª
geração de direitos humanos), que não queremos e, de fato, não podemos
enquanto sociedade, abrir mão; se é que desejamos cumprir uma pauta mínima de
coexistência entre todos/as e entre nós, enquanto humanidade, e o mundo que
habitamos
21
.
Parada feita. Retomo o caminho. É preciso avançar para o pensamento
contemporâneo, considerando os pensadores já clássicos no atual contexto e
garimpando os que despontam como pensadores mais fecundos. Assim, me
direciono para Karl Popper, John Rawls, Norberto Bobbio e Michael Walzer. Em
seguida, considerarei o conceito de tolerância como uma discussão aberta,
retomando, em primeiro lugar, o empenho da ONU e da UNESCO nas últimas
décadas e, em segundo lugar e mais especificamente, o coletivo de pensadores
ibero-americanos que se reuniram em Lima, Peru, em janeiro de 2004.
Sigo o caminho. Ruma às notas contemporâneas sobre a tolerância.
21
E o ideal de solidariedade, a fraternidade da Revolução Francesa e mote da 3ª geração de
direitos humanos, estaria fora desta reflexão ou pauta reivindicativa? Sem dúvida, a
solidariedade, que nos abriria todo um outro caminho reflexivo a percorrer, não está negada ou
esquecida nesta perspectiva. Afinal, haveria sinal mais claro de fraternidade do que acabar com
toda e qualquer tipo de eliminação (física ou simbólica) do outro tão somente porque ele tem a
cor da pela distinta ou pensa diferente de nós ou reza a um Deus que não é o nosso ou come
comidas que para nós são repugnantes ou deseja sexualmente de uma maneira que não é a
predominante em nosso grupo? Não seria sinal claro de solidariedade deixar que o outro viva
como queira e possa viver? E mais do que simplesmente “deixar viver” – se é que tal atitude é
pouca coisa – não seria um sinal evidente de dependência recíproca, como mais recentemente se
entende a solidariedade, valorizar e reconhecer a diversidade humana como uma riqueza que nos
constitui? Ainda que o valor da solidariedade não tenha nestas páginas o mesmo peso que estou
escolhendo dar à igualdade e à liberdade, quero registrar que não é por esquecimento ou
descrédito, mas tão somente por escolhas, por opções, por recortes teóricos que um trabalho
dessa envergadura me leva a fazer, ainda que a contragosto.
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2
TOLERÂNCIA: NOTAS COMTEMPORÂNEAS.
Como já indiquei anteriormente, o conceito de tolerância surge na história
do pensamento ocidental como um contraponto às práticas intolerantes, em
especial durantes os séculos XVI a XVIII no contexto das guerras religiosas e
massacres recíprocos entre católicos e protestantes na Europa. A tolerância foi
reivindicada a princípio, e ainda hoje, como um mecanismo necessário para a
garantia das liberdades individuais, em especial a liberdade de consciência, o que
de certa forma reúne as liberdades de pensamento, culto, expressão e associação.
A tolerância também foi o pano de fundo para as reivindicações pela igualdade de
tratamento perante a lei independente de qualquer condição identitária
(nacionalidade, religião, classe social, etnia, gênero etc.). Assim, na abordagem
que priorizei, a tolerância reuniria pautas consagradas da Modernidade – liberdade
e igualdade – e ainda trairia à tona uma temática relativamente nova, considerada
da Modernidade Tardia, que é o direito à diferença. A diferença como direito
relaciona-se com o conceito de tolerância tendo em vista a intencionalidade de
garantir ao outro, ao diferente, a possibilidade de existência, livre e igual, no
conjunto de uma sociedade pluralista.
Nesta perspectiva, o conceito, por um lado, expressa um embate histórico
entre os intolerantes e os que querem negar a estes a possibilidade de uma prática
efetiva e, por outro lado, congrega e permeia a discussão de valores e atitudes
centrais para a nossa tradição de pensamento político e moral, seja numa vertente
mais liberal ou socialista, seja com questões modernas ou pós-modernas.
Com este capítulo tenho como objetivo concluir a abordagem histórica sobre
a tolerância, destacando, os principais enfoques que o conceito tem ganhado na
contemporaneidade.
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Tolerância: notas contemporâneas 84
2.1
TOLERÂNCIA RESSIGNIFICADA.
O caminho que se apresenta agora é o de uma breve revisão de como o tema
aparece no pensamento contemporâneo, especialmente entre alguns dos mais
destacados pensadores políticos e morais do século XX. Assim, considerarei aqui
quatro pensadores. O primeiro mais relacionado à filosofia da ciência, Karl
Popper. O segundo é considerado o maior pensador liberal de nosso tempo, John
Rawls. Um terceiro, vindo do pensamento socialista, Norberto Bobbio. E o quarto,
antropólogo e historiador, identificado com o pensamento igualitário e
comunitarista, Michael Walzer.
Mais do que uma eleição estratégica para equilibrar forças políticas, a opção
por estes pensadores seguiu o mesmo critério que me guiou no capítulo anterior,
isto é, autores que tenham se dedicado explicitamente ao conceito de tolerância ou
que tenham dado alguma contribuição significativa, ainda que indiretamente,
como é o caso de John Rawls. Talvez, entre os quatro, o mais distante da tradição
política e moral seja Karl Popper. No entanto, suas considerações em filosofia da
ciência sobre a impossibilidade de uma verdade definitiva e a transposição dessas
reflexões para o campo político lhe dão uma autoridade impar para entrar no rol
dos pensadores contemporâneos acerca da tolerância.
2.1.1
Karl Popper: uma certeza indefinida.
Sir Karl Popper (1902-1994) nasceu em Viena e após a ascensão nazista
refugiou-se na Nova Zelândia e posteriormente na Inglaterra. Influenciado
inicialmente pela filosofia do Círculo de Viena, Popper é um dos mais
importantes filósofos no campo da ciência contemporânea. A principal
contribuição do reconhecido professor da Universidade de Londres foi a
formulação da noção de falsificabilidade como critério fundamental para a
demarcação das teorias científicas, apresentada principalmente na obra A Lógica
da Pesquisa Científica (1945).
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Tolerância: notas contemporâneas 85
Para Popper, todo conhecimento é conjetural; sendo impossível o
estabelecimento de uma certeza definitiva. Essa impossibilidade se deve ao fato
de todo conhecimento possuir intrinsecamente uma falsificabilidade, ou seja, toda
hipótese científica – e toda ciência é hipótese – traz em si a possibilidade da
refutação, carrega consigo a probabilidade do erro. E é tão somente por isso que a
ciência se corrige, progride e se aproxima cada vez mais da verdade. Neste
sentido, para o filósofo da ciência, nenhuma teoria científica possui toda a
verdade. Existe um movimento de aproximação à verdade, mas toda e qualquer
doutrina opera e se constrói a partir da impossibilidade de conter uma verdade
definitiva. É preciso frisar que Popper não defende a impossibilidade da verdade,
mas tão somente falta de garantias para que ela se estabeleça definitivamente.
A contribuição de Popper ao conceito de tolerância vem justamente da
relação, ou da transposição, de seus conceitos do âmbito da ciência para o âmbito
da ética. Em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos (1945), fica mais clara a relação
entre lógica e ética no pensamento de Karl Popper. O pensador austríaco relaciona
princípios científicos e morais através de seu conceito de demarcação entre a
ciência e a pseudo-ciência. Como já explicitado, para o filósofo, uma teoria é
científica sempre que é falível, quer dizer, refutável. Se não há possibilidade de
uma teoria ser refutável, o mais provável é que ela não seja científica. Será, de
fato, uma teoria dogmática.
Segundo ARTIGAS (1998:15), o preço que uma teoria deve pagar para
entrar no âmbito do conhecimento científico é a atitude que a leve a procurar
contra-exemplos que possam mostrar seus erros ou refutar suas falsas certezas.
Esta atitude de sempre considerar possível o erro, a falsificabilidade, é o que
garante ao conhecimento científico avançar na procura da verdade. A assimetria
lógica entre verificação e falsificação é a chave do método científico popperiano,
que consiste em uma procura intensa pelo erro, já que nunca se poderia
demonstrar com certeza absoluta que as teorias são definitivamente verdades.
Segundo Popper, a procura por contra-exemplos seria o único caminho que a
ciência possuiria para se aproximar da verdade.
A aplicação destas idéias no âmbito da ética tem a “sociedade aberta” como
resultado (POPPER, 1987; POPPER, 1987
A
). Se, tal como entende Popper, o
conhecimento é essencialmente falível, então, deveríamos cultivar a disposição
para retificar nossas idéias e as examinar de um modo crítico. A sociedade aberta
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Tolerância: notas contemporâneas 86
está baseada na possibilidade da crítica, na rejeição de qualquer tipo de
autoritarismo e de dogmatismo e, sobretudo, na tolerância (POPPER, 1987:185).
Em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Popper expõe sua teoria social,
enfrentando o contexto mundial marcado à época pelo totalitarismo,
especialmente em suas versões nazista, fascista e marxista.
A conexão entre lógica e ética parecem claras e lineares no pensamento
popperiano. Filosofia da ciência e filosofia moral são, em Popper, duas faces da
mesma moeda. Se na ciência empírica nunca se pode demonstrar de um modo
conclusivo a verdade, este princípio também se aplica às teorias metafísicas e
sociais. Estas teorias tampouco poderiam ser demonstradas como verdades
definitivas. Dessa forma, elas também devem ser submetidas à mesma crítica
racional. A utilização de argumentos racionais que, obviamente, não possuem a
força típica dos experimentos científicos empíricos, seria suficiente para submeter
às teorias metafísicas e sociais a um processo de eliminação do erro, análogo ao
que se dá nas ciências empíricas.
POPPER (1987
C
:26-27) apresenta uma interessante síntese de sua teoria da
falsificabilidade científica e metafísica a partir de três princípios: (1) Eu posso
estar errado e você pode ter razão; (2) Conversando racionalmente sobre as
coisas talvez nós possamos corrigir alguns de nossos enganos e (3) Se
discutirmos racionalmente sobre as coisas, talvez ambos possamos ficar mais
próximos à verdade.
Numa conferência intitulada The Knowledge of the Ignorance, por ocasião
do recebimento do título de Doutor Honoris Causa na Universidad Complutense
de Madrid, Karl Popper retoma seus três princípios e declara:
Es extraordinario que esos tres principios sean epistemológicos y, al mismo tiempo
sean también principios éticos. Porque implican, entre otras cosas, tolerancia: si yo
puedo aprender de usted, y si yo quiero aprender en el interés por la búsqueda de la
verdad, no sólo debo tolerarle como persona, sino que debo reconocerle
potencialmente como a un igual. El principio ético que nos guíe deberá ser nuestro
compromiso con la búsqueda de la verdad y la noción de una vía para llegar a la
verdad y un acercamiento a ella. Sobre todo, deberíamos entender que nunca
podremos estar seguros de haber llegado a la verdad; que tenemos que seguir
haciendo críticas, autocríticas, de lo que creemos haber encontrado y, por
consiguiente tenemos que seguir poniéndolo a prueba con espíritu crítico; que
tenemos que esforzarnos mucho en la crítica y que nunca deberíamos llegar a ser
complacientes y dogmáticos. Y también debemos vigilar constantemente nuestra
integridad intelectual, que junto con el conocimiento de nuestra falibilidad nos
llevará a una actitud de autocrítica y de tolerancia.
21
21
Fonte: http://www.revistapolis.cl/conoci.htm. Acessado em 30/06/2006.
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Tolerância: notas contemporâneas 87
A tolerância é, então, uma postura epistemológica e ética, incluindo-se aí a
baliza da responsabilidade intelectual (POPPER, 1987
B
). A tolerância é fruto de
um processo e de uma aposta que nasce desses três princípios: a falibilidade (1º
princípio); o diálogo racional (2º princípio) e a aproximação da verdade pelo
debate (3º princípio).
Estes princípios vêm de uma relação socrática com o conhecimento. Por
ocasião da conferência na Complutense de Madrid, Popper afirmou que a máxima
só sei que nada sei deveria ser a bússola do cientista em busca da verdade. O
cientista deve reconhecer que, de fato, não sabe, supõe. A quase totalidade dos
conhecimentos científicos são suposições. O cientista deve também admitir que a
ignorância é infinita e uma realidade de maior alcance que o conhecimento. O
cientista deve reconhecer que, hoje ainda mais do que no tempo de Sócrates, é
impossível dominar todo o conhecimento acumulado pela humanidade. Não há
indícios de que a memória humana ou a sua capacidade de aprendizagem tenha se
dilatado com os séculos. Hoje, a humanidade tem mais saberes acumulados e há
mais possibilidades de conhecê-los. Não obstante, cada um de nós hoje não tem
maior capacidade de memória ou de aprendizagem do que Sócrates ou do que
outros homens e mulheres dos tempos passados, recentes ou remotos.
Em Toleration and Intellectual Responsibility, POPPER (1987
C
) define
também duas posturas éticas distintas para o cientista ou o intelectual diante da
verdade: uma postura antiga e o que ele chama de nova postura. A postura antiga
está baseada na crença de que é possível obter um conhecimento correto, do qual
se deriva certa autoridade pessoal do intelectual. A nova postura, pretendida por
Popper, deveria admitir que o conhecimento é incerto e por isso objetivamente
desautorizado, no sentido de não conceder subjetivamente autoridade a este ou
aquele profissional (médico, advogado, engenheiro, professor etc).
Sendo assim, o filósofo da impossibilidade da verdade definitiva apresenta
uma série de recomendações para a responsabilidade intelectual, tais como: não há
autoridades pré-estabelecidas nas áreas do saber; nem sempre é possível evitar o
erro, ainda que devamos fazer todo o possível para evitá-lo; os erros devem ser
incessantemente buscados e revelados e nunca ocultados, pois aprendemos com os
nossos erros e com os dos outros; devemos cultivar uma autocrítica franca, aceitar
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Tolerância: notas contemporâneas 88
com gratuidade as críticas alheias e apresentar aos outros as nossas críticas de
maneira objetiva e benevolente. (POPPER, 1987
B
:32-34).
Para Popper, a melhor crítica é a autocrítica, aquela que busca os próprios
erros, aprende com eles e demonstra-os aos outros. Assim, há que reconhecer que
além da autocrítica necessitamos também das críticas alheias. Necessitamos uns
dos outros para a correção dos erros. Essa necessidade é algo que deveria ser
entendido como uma realidade intrínseca de nossa condição mental enquanto
seres inteligentes e intersubjetivos. O reconhecimento de tal necessidade e a
apresentação da crítica objetiva e benevolente
22
aos demais são as condições
essenciais para um estado de tolerância para consigo mesmo e para com os outros.
Karl Popper sublinhou com força o caráter conjetural do conhecimento
humano e a impossibilidade de adquirir demonstrações conclusivas, propondo um
pensamento claramente antidogmático no qual não há nenhum lugar para a certeza
definitiva e indubitável. Mas o “racionalismo crítico popperiano” fundou-se em
uma “fé irracional na razão”, fruto de uma “decisão moral” a favor do
racionalismo (ARTIGAS, 1998:32). De acordo com Popper, a atitude de levar a
sério os argumentos racionais não podia, por sua vez, ser fundamentada por meio
de argumentos racionais e, por este motivo, ele afirmava que, em última instância,
seu racionalismo crítico estava baseado em uma decisão moral irracional.
ARTIGAS (1998) sublinha que o racionalismo crítico de Popper não é uma
doutrina, mas uma atitude. Em outras palavras: Popper não propõe uma tese
filosófica, mas uma argumentação a favor de uma atitude que considera
importante, principalmente por razões éticas. Trata-se de uma atitude de diálogo e
de razoabilidade que favorece a compreensão, a tolerância e a paz, frente a
qualquer tipo de totalitarismo, etnocentrismo e violência.
Popper admite explicitamente, dos seus primeiros escritos até os últimos,
que sua posição científica está baseada sobre um compromisso de tipo ético e ela
faz sentido à luz do conceito de tolerância:
Así, los principios éticos constituyen la base de la ciencia. La idea de verdad como
principio regulador fundamental – el principio que guía nuestra búsqueda – puede
considerarse un principio ético. La búsqueda de la verdad y la idea de aproximación
22
Crítica objetiva e benevolente significa que as objeções ou concordâncias não são dirigidas ao
sujeito, à pessoa do cientista, nem que se baseiam em condições subjetivas, tais como inimizade
ou amizade, simpatia ou antipatia. A crítica objetiva está direcionada às idéias do cientista e é
motivada pela busca da verdade. No entanto, deve ser benevolente, ou seja, apresentada com
generosidade, sem intenção de atingir o sujeito, mas sim as suas idéias.
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Tolerância: notas contemporâneas 89
a la verdad también son principios éticos; como lo son las ideas de integridad
intelectual y falibilidad, que nos conducen a una actitud de autocrítica y de
tolerancia. (POPPER, 1994:255).
A meu juízo, a postura de Popper não é inequívoca e nem está livre de
dificuldades. Pelo contrário, eu acho que a posição popperiana contém alguns
limites que afetam a toda sua filosofia e eles provocam ambigüidades de difícil
solução. Por exemplo, sua negação da possibilidade de certezas definitivas em
qualquer âmbito do conhecimento me parece excessiva. É certo que Popper afirma
a existência de uma verdade objetiva e sublinha que podemos nos aproximar
progressivamente em direção a ela, mas ao mesmo tempo ele insiste em afirmar
que nunca se pode saber que um conhecimento particular é verdadeiro, daí sua
condição de racionalismo irracional.
A análise das raízes éticas da epistemologia de Popper interessa aqui para a
defesa da tolerância porque ela permite notar o núcleo mais autêntico de suas
idéias. De qualquer maneira, cumpre registrar que a posição de Popper contém
alguns aspectos que facilmente dirigem a perplexidades e confusões. Minha
interpretação não pretende eliminar essas dificuldades, mas tão somente destacar
seus aspectos mais importantes para uma reflexão sobre ética e tolerância.
Também é interessante mostrar que Popper inclui os seus três princípios de
falsificabilidade – falibilidade, diálogo racional e aproximação à verdade – como
princípios éticos essenciais. Esta declaração seria bastante para mostrar que a
falsificabilidade não recorre apenas a um assunto meramente lógico, mas que
lógica (científica) e ética (filosófica) se entrelaçam e se retro-alimentam no
pensamento popperiano. Eu ousaria dizer que a suposição básica da filosofia de
Popper está na aposta – um tipo de irracionalidade da razão – no ser humano e em
sua capacidade de ser livre, racionável e tolerante. Popper está fortemente
comprometido com esses valores e todos seus argumentos os supõem.
Quanto às fronteiras da tolerância, Popper reafirma a tradição dos filósofos
modernos de que aos intolerantes não lhes é devida a tolerância. A célebre
formulação de A Sociedade Aberta e Seus Inimigos sobre os limites da tolerância
“Se formos de uma tolerância absoluta, mesmo para com os intolerantes, e se
não defendermos a sociedade tolerante contra seus assaltos, os tolerantes serão
aniquilados, e com eles a própria tolerância” – confirma o histórico embate entre
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Tolerância: notas contemporâneas 90
tolerância e intolerância e é considerado pelos especialistas como “o paradoxo da
tolerância popperiana” (ARTIGAS, 1998:46).
No entanto, tal postura não pode ser vista como uma intolerância para com
os intolerantes, mas como um princípio que visa garantir o direito de existência a
todos e negar ao intolerante a possibilidade de eliminar as diferenças que ele julga
inaceitáveis. O pensamento de Popper se soma à idéia que a tolerância tem limites
e estes devem ser pautados pelas práticas intolerantes que visam eliminar as
diferenças legítimas que nos constituem enquanto humanos.
2.1.2
John Rawls: a retomada da tolerância liberal
23
.
O eminente professor da Universidade de Harvard, o filósofo e jurista John
Rawls (1921-2002) é um dos mais proeminentes pensadores políticos do século
XX. Seu livro A Theory of Justice (1971)
24
já é um clássico e considerado o ponto
de retomada do liberalismo político no campo da filosofia prática contemporânea.
Herdeiro da tradição liberal, que principia com Locke, passando por Kant e Stuart
Mill, Rawls debruçou-se sobre um dos mais espinhosos dilemas da sociedade
democrática: como conciliar direitos iguais numa sociedade desigual? Como
compatibilizar as ambições dos mais talentosos com as necessidades dos menos
favorecidos a fim de se construir uma sociedade mais justa e igualitária?
A obra de Rawls reflete um alentado esforço intelectual para conciliar o
sistema meritocrático norte-americano com a idéia de igualdade tão cara ao
liberalismo. A teoria da justiça rawlsiana é também considerada resultado das
reflexões sobre os ganhos políticos alcançados através do movimento pelos
direitos civis nos EUA. Assim, temas que hoje provocam polêmica, tal como as
cotas para os negros nas universidades e nos cargos públicos, derivam tanto da
pressão política dos movimentos sociais à época quanto da concepção de
sociedade justa estabelecida por Rawls.
Quanto ao tema que me toca neste trabalho, a tolerância, tenho que
reconhecer que Rawls não se preocupa diretamente com ele. Segundo CORREA
23
Veja também o apartado 4.3.5 (a) O contratualismo liberal de John Rawls, páginas 249-251,
deste trabalho.
24
Ainda que exista uma tradução brasileira (Uma Teoria de Justiça, São Paulo: Martins Fontes,
2002), t
rabalharei com a edição em castelhano de 1979 (Teoría de la Justicia, 2ª Reimpressão,
Madrid: FCE, 2002).
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Tolerância: notas contemporâneas 91
(2004:21), o professor de Havard, de fato, nunca explicitou de maneira clara a sua
concepção acerca da tolerância. Assim, o conceito de tolerância no pensamento de
Rawls é tangencial. Sua importância se dá indiretamente, ou seja, pela retomada
das bases conceituais do liberalismo político no âmbito de uma sociedade justa, o
que inclui sem sombra de dúvidas a noção de tolerância.
En este sentido, podemos sostener con toda seguridad que el liberalismo ha
desarrollado en distintas épocas y de forma constante lo que se ha dado en
denominar como una política de la tolerancia. Como uno de los triunfos
fundamentales de esta política liberal podemos mencionar, por ejemplo, que la
tolerancia ha desempeñado un papel decisivo en el reconocimiento de los derechos
subjetivos o las libertades individuales a nivel constitucional, y que son hoy en día
parte esencial del Estado de derecho moderno. (CORREA, 2004:19)
25
.
A preocupação central de John Rawls é descrever uma sociedade justa e as
maneiras de mantê-la e/ou conquistá-la. Sua teoria, com forte ênfase na justiça
distributiva e na igualdade como eqüidade, visa fazer com que a sociedade de bem
estar social seja maximizada em função dos que estão na pior situação social,
garantindo que a extensão dos direitos de cada um seja o mais amplamente
estendida, desde que compatível com a liberdade dos outros.
Se, por um lado, o discurso de Rawls a favor da justiça envolvendo certa
limitação dos benefícios obtidos pelos mais talentosos desagrada a maioria dos
teóricos conservadores, por outro lado, a fórmula na qual a eqüidade se sobrepõe
ao ideal de igualdade fere os princípios dos teóricos progressistas mais radicais.
Ou seja, não é raro que Rawls seja considerado um reformista para os pensadores
socialistas e um radical para os mais conservadores. De fato, Rawls descarta a
possibilidade de haver uma distribuição dos bens de maneira igual para todos e
aposta mais na eficácia da eqüidade para aparar os efeitos negativos da
desigualdade, esvaziando assim o significado original da igualdade e desejado
pelos pensadores socialistas.
É mister notar que por mais que a sociedade liberal tenha proclamado ao
longo dos tempos seu empenho a favor da igualdade de oportunidades para todos,
bem sabemos que na prática isso não acontece. Um simples vislumbre da
paisagem social existente na maioria dos ditos países democráticos e
desenvolvidos confirma que as afirmações a favor da igualdade, alardeadas pelos
liberais em geral, correspondem mais a anseios de retórica do que de efetivação
política. É evidente que se pode superar a desigualdade social – e a história assim
25
Grifos do autor.
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Tolerância: notas contemporâneas 92
o demonstrou – pela aplicação revolucionária de uma igualdade imposta pela
força, na qual todos terão igual acesso às mesmas coisas. Esta realidade, porém,
mostrou-se inviável ou impraticável numa sociedade que se queira realmente
democrática. Além do mais, a igualdade imposta a todos comete, segundo Rawls,
um tipo de injustiça, visto que desconsidera as vantagens legítimas obtidas pelos
mais talentosos e os bem sucedidos em geral.
Diante de tal problemática, John Rawls retoma a velha tradição liberal,
tentando articular dois princípios básicos: (1) as liberdades individuais e (2) a
igualdade de oportunidades. Para esta tarefa, o professor de Harvard toma a
justiça como pressuposto (aquilo que está posto antes de tudo) e como primazia
(aquilo tem prioridade absoluta) sobre todas as virtudes ou ideais políticos e
morais. De certa forma, Rawls mantém a concepção de muitos pensadores morais
e políticos que consideram que há uns valores e atitudes “maiores” e outros
“menores”. A justiça é o valor de primeira grandeza. Assim, em relação à nossa
temática, não importa em primeiro lugar que uma sociedade, em suas leis e
instituições, seja tolerante; o mais importante é que seja justa.
Sin embargo, si es cierto que para Rawls la justicia es la primera virtud social, no
creo que esto niegue de partida el hecho de que nuestro autor no participe al menos
del tradicional interés del liberalismo por la tolerancia. En efecto, esto quiere decir
que la tolerancia no se presenta disputando la primacía de la justicia como virtud
social fundamental, sino que más bien responde en parte a sus exigencias en el
marco de la misma concepción liberal de la justicia. (CORREA, 2004:23).
Para CORREA (2004:23), há uma implicação direta entre justiça e
tolerância em Rawls: “a justiça realiza a tolerância” e a “tolerância realiza a
justiça”, visto que não há como conceber teoricamente um sistema politicamente
liberal sem uma ou outra. Sendo assim, a tolerância está diretamente implicada –
ainda que não explicitada – na concepção de Rawls sobre sociedade justa, o que
significa o mesmo que uma democracia liberal, culturalmente pluralista e
economicamente definida pelo mercado.
O tema da tolerância só vai aparecer com mais clareza no pensamento de
Rawls quando ele se vê obrigado a responder a uma série de críticas sobre a sua
teoria da justiça. Suas réplicas aparecem principalmente em uma série de artigos
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Tolerância: notas contemporâneas 93
posteriormente reunidos em Political Liberalism (1993), bem como no livro The
Law of Peoples (1999)
26
.
Em suas respostas aos críticos, Rawls nos oferece dois diferentes âmbitos
para a compreensão e a aplicação da tolerância: tolerância como uma política
intrínseca às sociedades liberais, a fim de se garantir as liberdades individuais
(Political Liberalism) e tolerância como política exterior das sociedades liberais
para com as outras sociedades não liberais, compreendendo assim um direito
cosmopolita (The Law of Peoples).
A tolerância enquanto característica interna das sociedades liberais surge no
pensamento de Rawls como um mecanismo fundamental para responder a um
tema tão antigo quanto presente nas sociedades atuais: o conflito entre diferentes e
racionáveis doutrinas compreensivas do que venha a ser uma vida feliz e virtuosa,
porém incompatíveis entre si. Num grupamento humano, o mais provável é que
existam diferentes maneiras de se entender o que é bom. Se considerarmos que há
diferentes propostas de bem e que todas podem oferecer justificativas suficientes e
racionalmente válidas, a questão que se apresenta é de como devemos harmonizá-
las numa sociedade liberal, isto é, numa sociedade que prime pela liberdade
individual e pela igualdade de oportunidades.
Neste sentido, a tolerância ganha destaque – ainda que indireto – no
pensamento rawlsiano. Para Rawls, as diferentes doutrinas compreensivas de bem
devem estar articuladas numa concepção moral de justiça para a estrutura básica
de uma sociedade. O bom pode se expressar de diversas maneiras se, e somente
se, articulados com o justo. A justiça, enquanto pressuposto e primazia,
fundamenta e orienta o pluralismo numa sociedade liberal
27
. Assim, Rawls nos
indica tangencialmente a sua concepção de tolerância.
Está claro que a filosofia política de John Rawls fundamenta-se na
prioridade do justo sobre o bom. Nesta perspectiva, a teoria rawlsiana aponta para
duas conclusões distintas e fundamentais para o seu liberalismo político: (1) as
liberdades individuais, embora prioritárias, devem ser complementadas junto aos
26
Veja as versões brasileiras O liberalismo político (São Paulo: Ática) e O direito dos povos (São
Paulo: Martins Fontes).
27
Este ponto do pensamento de John Rawls seretomado mais adiante, articulado à argumentação
de Adela Cortina sobre éticas de justiça (concepção moral de justiça para a estrutura básica de
uma sociedade) e éticas de felicidade (doutrinas compreensivas de bem).
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Tolerância: notas contemporâneas 94
anseios por eqüidade e (2) os princípios da justiça têm de ser independentes de
qualquer concepção particular de vida boa.
A tolerância enquanto política exterior das sociedades liberais para com as
outras sociedades não liberais aparece no pensamento de Rawls como um
mecanismo que amplia a tolerância liberal interna. Assim, a tolerância passa a um
âmbito que, segundo a terminologia kantiana, tratar-se-ia do direito cosmopolita.
Neste âmbito, a tolerância passa a ser o fundamento da pluralidade de
cosmovisões entre os povos, bem como o limite para a relação com sociedades
não liberais, porém justas.
Segundo CORREA (2004:26), a tolerância enquanto política exterior do
liberalismo seria “la abstención de los pueblos liberales para imponer sanciones
coactivas a un pueblo no liberal, con el fin de obligarlo a cambiar de costumbres,
de modo que sea reconocido como miembro igual y de buena fe de la sociedad de
los pueblos, con ciertos derechos y deberes”. Tal afirmação pode parecer hoje
como piada de mau gosto, tendo em vista o contexto marcado pela Guerra do
Iraque. No entanto, podemos perceber o quanto os desmandos das superpotências
anglo-saxônicas no atual contexto se afastam totalmente do que há de melhor na
tradição liberal.
Segundo CORREA (2004:26), podemos destacar no pensamento de Rawls
cinco diferentes considerações sobre a tolerância, que, de fato, correspondem e
confirmam o liberalismo político: (1) tolerância como resultado de uma justa e
igualitária liberdade de consciência e de expressão; (2) tolerância como o mais
adequado método de confronto entre diferentes doutrinas compreensivas de bem
numa sociedade pluralista; (3) tolerância enquanto recurso político de defesa das
liberdades individuais contra um Estado intolerante ou contra grupos intolerantes
dentro de uma sociedade liberal; (4) tolerância como virtude democrática dos
cidadãos no uso da razão pública e na apresentação de argumentos no fórum
político e (5) tolerância enquanto abstenção dos povos liberais de impor à força os
princípios liberais aos povos não liberais.
Como já destaquei a contribuição de John Rawls ao conceito de tolerância é
tangenciada pela sua retomada vigorosa dos princípios do liberalismo político,
principalmente através de sua teoria da justiça distributiva e da igualdade
enquanto eqüidade. Ainda que não tenha tratado explicitamente do conceito em
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Tolerância: notas contemporâneas 95
suas obras, a meu juízo, trata-se de um autor para com o qual um estudo sobre a
tolerância deve o seu tributo.
2.1.3
Norberto Bobbio: tolerância como serenidade.
Não há dúvidas sobre o lugar de destaque que o cientista político italiano
Norberto Bobbio (1909-2004) conquistou no panteão dos pensadores
contemporâneos. No itinerário do conceito de tolerância no pensamento
contemporâneo, é fundamental considerar a obra Elogio Della Mitezza e Altri
Scritti Morali
28
, na qual Bobbio faz importantes distinções sobre a temática da
tolerância e a relaciona com a virtude que pretende defender, la mitezza, que na
tradução brasileira ganhou a versão de serenidade.
Importa começar reconhecendo, com Bobbio, que o tema da tolerância pode
se referir a dois problemas diferentes: o da verdade e o da diversidade.
Uma coisa é o problema da tolerância de crenças ou opiniões diversas, que exige
uma reflexão sobre a compatibilidade teórica e sobretudo prática entre verdades
contrapostas; outra coisa é o problema da tolerância diante daquele que é diverso
por razões físicas ou sociais, que põe em primeiro plano o tema do preconceito e da
conseqüente discriminação. As razões que se podem apresentar em defesa da
tolerância no primeiro significado não são as mesmas que se apresentam para
defendê-la no segundo. Em decorrência, são distintas as razões das duas formas de
intolerância. A primeira deriva da convicção de possuir a verdade; a segunda se
fecunda geralmente num preconceito. (BOBBIO, 2002:19).
Para BOBBIO (2002:19), a intolerância que se baseia na crença da verdade
absoluta é, em geral, de caráter religioso ou político. Neste caso, uma proposta de
tolerância tem como desafio responder à seguinte questão: “Como podem ser
teórica e praticamente compatíveis duas verdades contrapostas?” Já a
intolerância que se baseia em diferentes tipos de preconceitos e discriminações
tem como característica atentar contra a diversidade humana e se constitui em
forma de racismo, sexismo, homofobia, xenofobia etc. Neste segundo caso, uma
proposta de tolerância deve responder a outro desafio: “Como se pode demonstrar
que certas impaciências com respeito a uma minoria de pessoas diversas derivam
de preconceitos inveterados, de formas irracionais, puramente emotivas, de
julgar homens e eventos?” No primeiro caso, a tolerância busca combater o
28
Elogio da serenidade e outros escritos morais (São Paulo: Unesp, 2002).
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Tolerância: notas contemporâneas 96
absolutismo de verdades supostamente indubitáveis, enquanto que no segundo
busca combater o preconceito e a discriminação.
Norberto Bobbio desafia-se, então, a duas tarefas distintas e igualmente
complexas, uma mais epistemológica e outra mais sócio-antropológica. O que, a
meu juízo, não significa afirmar que são tarefas totalmente desarticuladas. De
certa maneira, as duas se entrelaçam. Ainda que a distinção de Bobbio seja muito
esclarecedora, acredito que não devemos desconsiderar que os desafios podem vir
conjuntamente e com tal nível de mescla que seria difícil afirmar até onde vai um
e outro. Seguindo, no entanto, o raciocínio de Norberto Bobbio, importa destacar
os dois problemas.
Quanto ao primeiro caso, a busca de compatibilidade entre verdades
contrapostas, Bobbio faz uma distinção na maneira de se entender a verdade,
separando monistas de pluralistas.
Os monistas são os que acreditam que só há uma concepção de verdade.
Dentro de tal concepção Bobbio distingue quatro posturas. A primeira está
baseada na crença de que a verdade é expansiva, ou seja, se estenderá
necessariamente sobre os erros. Neste sentido, as doutrinas alheias são erros que,
cedo ou tarde, dissipar-se-ão. O pano de fundo é um otimismo histórico no qual o
conhecimento está em franco processo de expansão e a humanidade, por sua vez,
progride necessariamente para formas mais verdadeiras de entendimento. Nesta
primeira postura, a tolerância é totalmente passiva. Trata-se de uma atitude de
espera, de que os outros caiam em si e percebam seu erro. Tolerar é deixar que as
doutrinas errôneas caminhem em direção à verdade.
A segunda postura também acredita que a verdade avançará sobre o erro,
mas não como algo já dado ou pré-determinado. Não existe aqui um otimismo
histórico, mas o reconhecimento da necessidade de empenho na difusão da
verdade. Neste caso, a verdade só superará o erro à custa de muito trabalho e
risco. Assim, a tolerância é a opção pelo recurso da persuasão racional para se
fazer avançar a verdade e a recusa do uso da força para a eliminação dos erros
alheios.
A terceira postura se estabelece por razões utilitárias. Parte-se do
pressuposto que a verdade é única. Não obstante, em determinadas situações, o
melhor talvez seja aceitar o erro alheio. A tolerância aqui é um cálculo pelo mal
menor, ou seja, entre a imposição da verdade e a aceitação do erro, pode-se optar
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Tolerância: notas contemporâneas 97
pela segunda situação como algo menos nocivo do que a primeira. Esta postura
pode ser assumida por diferentes grupos. Pode-se imaginar um grupo dominante e
majoritário que aceite, por astúcia, o erro de um grupo minoritário ou mais fraco,
por considerar que a perseguição pode dar mais notoriedade ao erro do que a sua
simples aceitação. Um grupo dominado e minoritário, por sua vez, pode aceitar o
erro que lhe é imposto pelo mais forte por questões de prudência, pois rebelar-se
contra o erro pode lhe trazer danos maiores, como a eliminação física.
A quarta postura está baseada num personalismo moral (BOBBIO,
2002:142). Aqui a verdade é única, mas está destinada a conviver com o erro. Não
se acredita que a verdade vencerá sempre e nem que um dia se imporá totalmente.
Verdade e erro são como irmãs siamesas, ligadas e obrigadas a conviver lado a
lado. Nesta postura, a tolerância não é uma concessão pragmática, mas a aceitação
do erro em nome do respeito à pessoa humana, daí o personalismo moral.
Segundo seus defensores, não se trata de mera indiferença, mas de superação da
intolerância, e inclusive da reprovação explícita desta, em nome do respeito que se
deve ter à inviolabilidade das consciências individuais. Essa postura faz uma
separação entre razão teórica (ou a lógica da razão) que visa a busca incessante da
verdade e razão prática (ou a lógica do coração) que se guia pela benevolência.
Aqui, tolerância é aceitação do erro alheio em nome da benevolência com a
pessoa humana, apesar do erro no qual ela se encontra.
Todas estas posturas, segundo BOBBIO (2002:137), visam responder ao
desafio de que é possível ser tolerante sem ser cético. A tolerância sempre foi
acusada de abrir as portas para o ceticismo, ou seja, a defesa de que nenhuma
verdade é possível e por isso todas devem ser aceitas. Para Bobbio, é possível
depositar suas crenças numa verdade única e absoluta e, ainda sim, ser tolerante,
de acordo com um dos quatro modelos apresentados acima. É evidente que o
quarto modelo se apresenta como o mais coerente.
No entanto, há uma outra maneira de se relacionar com a verdade, que
segundo BOBBIO (2002:143), é mais própria dos/as amantes da filosofia: “O
filósofo está aberto à dúvida, está sempre em marcha; o porto a que chega é
apenas a etapa de uma viagem sem fim, e é preciso estar sempre pronto para
zarpar de novo”. Assim, a verdade não é exclusiva e sim múltipa. No entanto,
aqui também não cabem as posturas céticas, já que não há negação da
possibilidade da verdade, mas sim a aceitação de que a verdade é plural. Nesta
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Tolerância: notas contemporâneas 98
perspectiva – a verdade enquanto pluralidade – também há quatro posturas
diferentes.
Norberto Bobbio chama a primeira postura de sincrética, reconhecendo que
busca o termo no campo dos estudos sobre a religião. Para esta postura, existem
várias verdades e para se entender a realidade é preciso manipular e fundir
verdades de doutrinas opostas. O sincrético sempre será acusado de fazer misturas
impuras
29
.
A segunda postura é chamada de eclética. Parecida com a anterior, ela se
diferencia pela intenção de criar um novo sistema de verdades a partir de
fragmentos de verdades retirados de diferentes sistemas. Como o sincrético, o
eclético parte do princípio que nenhum sistema de pensamento é totalmente falso
ou totalmente verdadeiro. No entanto, diferente do sincretismo, para o ecletismo
não há fusão de verdades, mas há uma reorganização de teorias, uma
reconciliação de diferentes doutrinas.
Norberto Bobbio denomina a terceira postura de historicismo. Aqui se
acredita que a verdade é sempre válida a partir de um determinado tempo e num
lugar preciso. As verdades possuem tempo histórico e circunscrição geográfica. O
que é verdade hoje não será necessariamente amanhã. E o que é verdade aqui não
é obrigatoriamente acolá. Para Bobbio, esta é a postura mais relativista entre
todas.
A quarta postura pluralista é o personalismo e, a meu juízo, muito se
assemelha à quarta postura monista, por ser uma variação daquela. Trata-se da
crença de que toda verdade é pessoal, ainda que seja comunicável a outros e
transmissível entre grupos e gerações. Num personalismo moral pluralista, as
verdades são infinitas e todas são igualmente dignas de serem, ao menos, ouvidas.
Neste caso, a tolerância é um dever moral e é devida pelo respeito à pessoa
humana, considerada como portadora de verdades, ainda que não compreendidas e
aceitas por todos. A meu ver, a diferença em relação ao personalismo moral
monista é que neste caso se respeita a pessoa humana, mas não lhe confere a esta
uma categoria de possuidora natural de verdades. Para os monistas o respeito é
pela pessoa em sua condição humana, ainda que esta esteja no erro. Para os
29
Quiçá, para nós brasileiros, tão à vontade que estamos com o sincretismo – seja no catolicismo
com missas afros, seja na música eletrônica que mescla bossa nova e funk, seja nos restaurantes
a quilo onde misturamos sushi com feijoada – tal postura não nos assuste tanto no mundo das
teorias.
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Tolerância: notas contemporâneas 99
pluralistas, o respeito é pela dignidade da pessoa humana enquanto portadora de
verdades, que são sempre pessoais e igualmente válidas.
Nas posturas sincrética, eclética e historicista, a tolerância se fundamenta na
impossibilidade de se estabelecer uma justa autoridade para se impor qual a
verdade mais coerente entre as múltiplas verdades. Para BOBBIO (2002:147-148)
uma concepção pluralista de verdade não leva necessariamente à indiferença e
nem à intolerância, mas, ao contrário, o ceticismo sim poderia levar a estas duas
posturas. Se, de acordo com um ceticismo exacerbado, não é possível nenhuma
verdade, cabe o argumento que qualquer uma, indiferentemente, pode ser imposta
como tal. Nesta mesma perspectiva, se não há critérios para ordenar aquilo que é
justo ou verdadeiro, o verdadeiro e o justo será aquilo que for ordenado. Sem
critérios para definir justiça e verdade, abre-se o flanco para que a força faça a vez
destes critérios. Assim, Norberto Bobbio abre um amplo leque para se pensar a
relação entre a afirmação de verdades e a busca da tolerância. Enfim, não é
preciso ser cético para ser tolerante. Bobbio parece evitar o ceticismo por supor
que este abre um espaço de argumentação para a intolerância.
Todavia, cumpre retornar à disjunção feita inicialmente por Norberto
Bobbio, ou seja, a distinção entre a tolerância baseada na problemática da verdade
e a tolerância baseada na problemática da diversidade. A segunda parte desta
disjunção refere-se diretamente ao preconceito e à discriminação. Assim, vale
destacar algumas considerações do pensador italiano sobre tolerância e
diversidade.
Para BOBBIO (2002:103), o preconceito é uma opinião errônea. No entanto,
trata-se de um erro mais tenaz e perigoso do que qualquer outro, pois é um erro
que corresponde a sentimentos e interesses de um grupo em relação a outro.
Assim, o preconceito é uma predisposição em creditar como verdade algo que é
um interesse ou um sentimento irrefletido. A discriminação é uma conseqüência
direta de tal predisposição conceitual. O autor reafirma que discriminar, enquanto
ato de distinguir, não é algo negativo, mas tão somente quando impulsionada por
um preconceito. Assim, a discriminação de fato pode levar ao reconhecimento da
diversidade, ou seja, a conclusão de que somos diferentes. Já a discriminação de
valor leva a posturas etnocêntricas, que são pautadas por três fases: (1)
reconhecimento da diversidade; (2) reconhecimento que dentro da diversidade
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Tolerância: notas contemporâneas 100
pode haver relações desiguais, tais como superior e inferior e (3) uma injusta
conclusão de que os superiores podem explorar os inferiores
30
.
Bobbio considera que a maneira de se entender as desigualdades é
fundamental para a percepção de que se deva ou não lutar contra os preconceitos e
as discriminações. Se as desigualdades são consideradas naturais, então serão
vistas como não superáveis. Mas, se são consideradas sociais serão vistas como
realidades superáveis. Cruzando estas considerações com outra obra do autor,
Destra e Sinistra: Ragioni e Significati di una Distinzione Política
31
, perceber-se-
á que o maior ou menor empenho em buscar a superação das desigualdades é o
que distingue a esquerda, sempre mais igualitária e propensa a considerar as
desigualdades como realidades sociais e por isso elimináveis, da direita, sempre
mais inigualitária e propensa a considerar as desigualdades como realidades
naturais e por isso insuperáveis. BOBBIO (2002:114) é categórico ao afirmar que
preconceitos e discriminações são fenômenos sociais e como tais elimináveis.
Talvez a mais original contribuição de Norberto Bobbio ao conceito por
mim perseguido seja o fato dele oferecer uma metafísica das virtudes elegendo a
mitezza como fundamento para cidadãos democráticos, comprometidos com o
combate ao preconceito e com a prática cotidiana da tolerância. Segundo Bobbio,
somente a língua italiana herdou do latim uma palavra com tantas variações e
ambigüidades como é o caso de mitezza. A tradução brasileira escolheu o
vocábulo serenidade, reconhecendo que era uma opção difícil
32
.
Mitezza pode significar ameno, leve, suave, moderado, temperado. Tal
acepção é mais adequada para fenômenos climáticos: um verão ameno. Mitezza
também pode ser manso, dócil, domesticado, afável. Aqui se percebe uma
referência a características pertencentes ao mundo animal: um cavalo manso. No
entanto, mitezza também pode significar sereno, tranqüilo, benevolente,
complacente, compreensivo, indulgente, paciente. Tais acepções podem, com
30
A novidade é que até a segunda fase, Bobbio não reconhece uma discriminação de cunho
negativo. Para ele, reconhecer que numa relação há superiores e inferiores não há nada de
essencialmente maléfico. O pensador italiano analisa, por exemplo, as relações pai-filho e
professor-educando, considerando que os primeiros são superiores e que, numa relação tão
saudável quanto esperada, não visam explorar os inferiores. A discriminação, assim, estaria na
terceira fase, quando os superiores se consideram no direito de esmagar o inferior. Opino que
esta terceira fase é mais que discriminação, é, de fato, intolerância, quiçá assassina.
31
Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política (São Paulo: Unesp, 1995).
32
Os tradutores da obra para o inglês e o francês, por exemplo, optaram por manter a palavra em
sua língua materna apresentando os vários significados ao largo da obra.
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Tolerância: notas contemporâneas 101
mais facilidade, serem consideradas como uma virtude humana. Entretanto, para
além da moderação, da mansidão e da serenidade, a palavra mitezza deu origem
no italiano ao verbo mitigare (mitigar) com a idéia de suavizar, abrandar, atenuar,
aliviar, tal como na asserção: o castigo foi suavizado. Norberto Bobbio apresenta-
se interessado pela mitezza como virtude humana e como capacidade de fazer
entre todos o mundo mais habitável, mais brando, mais suavizado.
BOBBIO (2002:09) afirma que “optou por incluir” a serenidade no rol das
virtudes fracas” ou “como a mais impolítica das virtudes”. Para ele, não parece
ser um desprestígio afirmar que a serenidade é uma virtude fraca, passiva e
impolítica, pois isso não significaria que a serenidade é a virtude dos fracassados,
tampouco representaria uma fraqueza, mas sim uma fortaleza não-violenta
(BOBBIO, 2002:13). É sim uma virtude dos fracos, no sentido daqueles que não
possuem poder, que são cidadãos normais e correntes, iguais a tantos concidadãos
(BOBBIO, 2002:39).
Para esclarecer sua concepção de virtude fraca e impolítica, BOBBIO
(2002:13-14) traça brevemente duas maneiras de se entender e fazer política. Por
um lado, a concepção de Aristóteles, a política como a ação em busca do bem
comum, a política como a arte do bom governo. Por outro, a concepção de
Maquiavel, a política como a ação estratégica do estadista, a política como a
ciência dos mecanismos de conquistar e manter o poder. A concepção aristotélica
pode ser entendida como virtuosa, ou seja, orientada pela busca do bem comum.
A concepção maquiavélica é amoral, no sentido que política não tem a ver com as
regras morais, não se relaciona com a reflexão sobre o que é certo ou errado, mas
com a disputa e a manutenção do poder. Ora, ainda que proclamemos
discursivamente uma política virtuosa, bem sabemos que na prática do jogo
político a concepção predominante é outra. Pois bem, se a política enquanto
disputa e manutenção do poder exclui a moral, a serenidade é a mais impolítica
das virtudes morais porque ela é totalmente desinteressada do poder.
Se a política exclui a serenidade, será prudente se perguntar se não há outra
maneira de se fazer política, outra maneira de se relacionar com o poder. Neste
sentido, Bobbio trata de relativizar esta exclusão da serenidade da relação com o
poder. Para ele, a serenidade encontra sua força política e conseqüentemente sua
relação com o poder nas práticas da não-violência ativa, teorizada e praticada por
Gandhi. A não-violência é, portanto, o meio pelo qual a serenidade se converte em
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Tolerância: notas contemporâneas 102
força e opera de modo distinto da violência. O não-violento refuta a violência sem
ter por isso que se retirar da política. Ele desmente, com seu agir, a definição da
política como reino exclusivo da força destrutiva e do poder violento (BOBBIO,
2002:11).
Ainda que Bobbio reconheça certa força na serenidade, ele reafirma que ela
não é uma virtude senhorial, dos fortes, dos heróis. A serenidade é típica dos
simples, dos sem poder, dos cidadãos comuns, dos que vivem a história submersa,
dos que só a podem utilizar como força através da não-violência ativa. É na
dimensão política da não-violência ativa que Bobbio introduz a tolerância. Para
isso, é preciso entender a serenidade como virtude do ser humano sereno com ele
mesmo e atitude do cidadão sereno com os outros.
Assim, a serenidade é mais passiva quanto mais se aproxima das atitudes de
tranqüilidade, paciência, complacência e doçura. Aqui serenidade é uma virtude
de âmbito mais doméstico, quiçá mais individual: estou tranqüilo. No entanto, a
serenidade também encontra sua razão suficiente na relação do cidadão sereno
com os outros, pois mitigar o peso da vida requer uma relação com o outro, requer
ser suporte ou dar suporte para o peso que o outro carrega. Aqui tolerar pode ser
suportar (dar suporte a) o peso do outro para aliviar o fardo da vida que se
compartilha.
A serenidade se torna mais ativa e, por isso, mais política quando se
aproxima das atitudes que visam aliviar, suavizar, mitigar a carga da coexistência
e da convivência humana, tornando o mundo mais habitável, mais condicionado
para os seres humanos.
Como modo de ser em relação ao outro, a serenidade resvala o território da
tolerância e do respeito pelas idéias e pelos modos de viver dos outros. No entanto,
se o indivíduo sereno é tolerante e respeitoso, não é apenas isso. A tolerância é
recíproca: para que exista tolerância é preciso que se esteja ao menos em dois. Uma
situação de tolerância existe quando um tolera o outro. Se eu o tolero e você não
me tolera, não há um estado de tolerância mas, ao contrário, de prepotência.
(BOBBIO, 2002:42-43).
Mas que tem a ver serenidade e tolerância como oposição à prepotência?
Bem, esta relação se esclarece quando Bobbio trata de explicar o que não é a
serenidade e como ela se distingue no campo das virtudes fracas. Para Bobbio, a
serenidade se opõe ao abuso do poder, à prepotência, à arrogância, à insolência.
Daí, mais uma vez, ser a mais impolítica das virtudes.
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Tolerância: notas contemporâneas 103
Com relação às outras virtudes fracas, BOBBIO (2002:41-42) procura
distinguir a serenidade das que lhe são semelhantes, mas que, ao contrário desta,
devem ser evitadas. Assim, “serenidade não é submissão”. O submisso renuncia
a luta por resignação ou medo. O sereno refuta à violência pela sua inutilidade
enquanto meio e não à luta e os seus fins. “Serenidade também não é humildade”.
O humilde é aquele que contempla a sua impotência e ainda com certa melancolia.
O sereno, ao contrário, é hílare e confiante que o mundo por ele imaginado será
melhor que o mundo que está obrigado a viver. “A serenidade tampouco é
modéstia”. O modesto é aquele que se avalia menos do que é, por hipocrisia ou
por falta de auto-estima. O sereno em sua dimensão ativa tem sempre uma atitude
em relação ao outro e não em relação consigo mesmo. Assim, enquanto a
humildade se opõe à excessiva aprovação de si mesmo; a submissão se opõe à
insubordinação; a modéstia à capacidade de se auto-avaliar com honestidade, a
serenidade se opõe à prepotência e à arrogância.
Se a serenidade, ainda que semelhante, não é submissão, humildade ou
modéstia, no entanto, segundo BOBBIO (2002:43), ela se relaciona com estreiteza
com outras virtudes fracas, tais como a simplicidade e a misericórdia. A
simplicidade é a capacidade de fugir das complicações inúteis e das posições
ambíguas. Ser simples é ser claro e límpido no campo das idéias e recusar a
simulação e a ambigüidade no campo do agir político. Já a misericórdia é um algo
mais, um acréscimo, um ganho para o sereno. A serenidade pode – mas não tem a
obrigação de – levar à misericórdia, que é a virtude de sentir a miséria alheia no
próprio coração.
A serenidade como recusa a prepotência “é a única suprema potência (...)
que consiste em deixar o outro ser aquilo que é” (BOBBIO, 2002:35). A
serenidade é uma virtude fraca que torna possível entre os concidadãos um acordo
forte: a tolerância (BOBBIO, 2002:43). Por fim, cabe notar quais são os limites da
tolerância para Norberto Bobbio. Neste ponto, Bobbio diverge totalmente dos
outros pensadores até então apresentados, ou seja, para ele, a tolerância deve
tolerar até os intolerantes. “O sereno é, ao contrário, aquele que ‘deixa o outro
ser o que é’, ainda quando o outro é o arrogante, o insolente, o prepotente”
(BOBBIO, 2002:40).
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Tolerância: notas contemporâneas 104
2.1.4
Michael Walzer: igualitarismo e pluralismo
33
.
O historiador e antropólogo norte-americano Michael Walzer é reconhecido
pela dura crítica que apresentou a John Rawls no livro Spheres of Justice: A
Defense of Pluralism and Equality (1983)
34
. As Esferas da Justiça é uma obra
singular na qual Walzer critica o contratualismo de Rawls, dá centralidade ao
conceito de igualdade e abre uma possibilidade de reflexão sobre o direito à
diferença como uma garantia ao pluralismo.
No entanto, tomarei aqui como mais central as considerações do historiador
e antropólogo de Princeton na obra On Tolarance (1997)
35
. Nesta obra, Michael
Walzer tem como objetivo entender o que sustenta uma proposta de tolerância e
como ela pode funcionar. Desde o prefácio, o historiador deixa bem claro a
dinâmica que aqui tenho destacado, ou seja, a tolerância como reação e proteção
para aqueles que são perseguidos pela intolerância assassina: “a tolerância
sustenta a própria vida, porque a perseguição muitas vezes visa à morte”
(WALZER, 1999: xii). Walzer reconhece que “a tolerância torna a diferença
possível” e “a diferença torna a tolerância necessária”.
Para WALZER (1999:04), “a coexistência pacífica de grupos de pessoas
com histórias, culturas e identidades diferentes” é o próprio conceito de
tolerância e, ao mesmo tempo, o que o conceito garante ou visa possibilitar. Neste
sentido, para ele o tema central do conceito é a coexistência pacífica e nem tanto a
diferença:
Uma defesa da tolerância não precisa ser uma defesa da diferença. Pode ser, e
muitas vezes é, apenas uma argumentação que se faz necessária. Mas, escrevo aqui
com uma profunda consideração pela diferença, embora não por todas as suas
ocorrências. Na vida social, política e cultural, prefiro o plural ao singular.
(WALZER, 1999: xii).
Crítico de Rawls e Habermas, Michael Walzer considera que a
argumentação filosófica tem assumido nos últimos tempos procedimentalismos
exagerados (posição original e situação ideal de discurso), que considera
hipotéticas em demasia, desvinculadas das noções de espaço e tempo. Ao revés, a
alternativa escolhida por Walzer é a descrição histórica e contextualizada da
33
Veja também o apartado 4.3.5 (b) A igualdade complexa de Michael Walzer, páginas 251-254,
deste trabalho.
34
Trabalharei com a segunda edição em castelhano de 2001 (2ª Reimpressão, FCE-México, 2004).
35
Trabalharei com a edição brasileira de 1999 (Martins Fontes).
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Tolerância: notas contemporâneas 105
tolerância – como coexistência pacífica entre diferentes – em suas variadas
formas, assumida em exemplos reais e cotidianos e, por isso mesmo, exemplares
em suas possibilidades de efetivação. De certa forma, Walzer escolhe o mesmo
caminho que Voltaire.
Para Walzer, na história da humanidade há diferentes regimes de tolerância e
aparentemente com um princípio comum: a convivência pacífica. O historiador de
Princeton considera que os diferentes modelos de tolerância são históricos e
circunstanciais, mas que se pode, com eles, aprender o que sustenta a tolerância.
Nesta perspectiva, Walzer assume uma postura de caráter nitidamente
relativista, mas contrabalanceada com certa dose de universalidade que deverá ser
garantida pelo princípio da coexistência pacífica. Não obstante, a coexistência
pacífica – a tolerância – e a sustentação dos direitos humanos básicos é, para
Walzer, o princípio moral mais substantivo, seu ponto de inflexão para não se cair
num relativismo irrestrito.
Quanto mais duras forem as escolhas, tanto menor será a probabilidade de que uma
solução, e apenas uma, tenha sua aprovação filosófica garantida. Talvez
devêssemos escolher desse modo aqui e daquele outro ali, desse modo agora e
daquele outro em algum momento futuro. Talvez todas as escolhas devessem ser
provisórias e experimentais, sempre sujeitas a revisão ou até a reversão. A idéia de
que nossas escolhas não são determinadas por um único princípio universal (ou um
conjunto de princípios interligados), e de que a escolha certa aqui talvez não seja
igualmente certa ali, é, rigorosamente falando, uma idéia relativista. O melhor
arranjo político é relativo à história e cultura do povo cujas vidas ele irá arranjar.
Esse ponto me parece óbvio. Mas não estou defendendo um relativismo irrestrito,
pois nenhum arranjo, nenhum traço típico de um arranjo, é uma opção moral se não
oferecer alguma versão de coexistência pacífica (e assim sustentar os direitos
humanos básicos). (WALZER, 1999:08-09).
Michael Walzer esclarece que está tratando da convivência de diferenças
enquanto coletividades e não como indivíduos. A tolerância, segundo o
historiador, diz respeito àquelas diferenças que correm risco de eliminação ou de
exploração e esse é sempre um fenômeno coletivo, tal como o holocausto, a
escravidão dos negros, a submissão das mulheres e o genocídio dos ameríndios.
WALZER (1999:16-17) identifica e classifica diferentes posturas como
tolerância. Assim, encontra quatro possibilidades que são comumente
relacionadas à tolerância: (1) aceitação resignada da diferença; (2) indiferença
bondosa em relação aos outros; (3) reconhecimento dos direitos dos diferentes e
(4) abertura e curiosidade para com a alteridade. Para Walzer, trata-se de um
contínuo que parte da extrema passividade à disposição de ouvir e aprender com a
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Tolerância: notas contemporâneas 106
diferença. Os dois primeiros níveis são mera resignação. Os dois últimos
indicariam uma aproximação mais adequada ao termo tolerância. Para ele, haveria
um outro nível, ainda mais avançado neste contínuo, porém fora dos âmbitos da
tolerância propriamente dita, que seria o endosso entusiástico da diferença.
É importante a distinção que Walzer faz entre disposição pessoal para a
aceitação da diferença e arranjos políticos que visem um regime de tolerância. Um
arranjo político se fundamenta em valores e virtudes, mas não deveria depender
exclusivamente das aptidões pessoais para tanto, já que podem ou não estar mais
desenvolvidas num determinado grupo social. Até porque, como observa Walzer,
por mais dispostas que sejam as pessoas individual ou coletivamente para o
endosso entusiástico da diferença sempre nos deparamos com algum culto,
alguma dieta, alguma prática sexual, alguma organização familiar que será mais
difícil aceitar resignadamente ou que seremos bondosamente indiferentes ou que
relutaremos em reconhecer direitos ou que não nos interessaremos em conhecer
por nenhuma hipótese.
A meu juízo, se a tolerância se restringir aos dois primeiros níveis
apresentados por Walzer ela não cumprirá o seu objetivo enquanto projeto de
convivência ou coexistência pacífica, pois num sistema marcado pela resignação
não há a opção de se aceitar ou não as diferenças como uma riqueza. Num sistema
de resignação, as diferenças são impostas como legítimas e cabe aos diferentes
grupos a mera submissão. Nesta perspectiva, a coexistência pacífica seria a falta
de opção de conviver de outra maneira; não haveria uma opção consciente e
argumentada pela tolerância e, na primeira oportunidade, o grupo que tomasse o
poder partiria para a eliminação daqueles que são diferentes. Os outros dois
níveis, verdadeiramente reveladores do conceito de tolerância, tiram a convivência
pacífica de sua situação de precariedade. A tolerância será sempre precária se ela
se basear em resignação e será substancial se avançar na garantia de direitos e na
abertura às diferenças como riquezas que nos constituem dignamente.
Seguindo, a sugestão de Walzer importa entender os diferentes regimes de
tolerância existentes ao longo da história da humanidade e aprender com eles o
que se faz e o que se aprende quando se tolera uma diferença que supostamente é
indesejada por um grupo que compõe uma sociedade plural. Walzer categoriza
estes regimes em cinco grupos: (1) império multinacional; (2) sociedade
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Tolerância: notas contemporâneas 107
internacional; (3) consociação administrativa; (4) Estado-Nação e (5) sociedade de
imigrantes.
O primeiro grupo, o dos impérios multinacionais, no qual os melhores
exemplos são os impérios antigos – Roma, Pérsia e Egito –, tolerância significa
imparcialidade do centro do poder com os diversos grupos dominados. Aqui, na
verdade, tolerância é uma condescendência administrativa a fim de se evitar
conflitos no interior do império. Esta condescendência do poder central é sempre
em relação aos grupos organizados e com relativo poder dentro das dominações
do império e nunca em relação aos indivíduos. Neste sentido, há uma tolerância
vigiada em relação aos diferentes grupos e dos grupos entre si, mas, quase sempre
há muita intolerância dentro dos grupos, isto é, pouca ou nenhuma liberdade
individual. Segundo Walzer, a União Soviética foi o último caso deste tipo de
regime de tolerância.
A sociedade internacional é o segundo regime e, de certa forma, o que
vigora hoje no mundo sob a égide da ONU. Trata-se de um regime fraco do ponto
de vista do poder de garantia de sua manutenção, pois está baseado em acordos
diplomáticos, tratados internacionais e declarações de intenção. Efetivamente não
há um agente repressor externo ou uma instância judicial supra-nacional, o que
dificulta o julgamento e a sanção àqueles que não cumprem os acordos, ainda que
os Tribunais de Haia venham trazer alguma novidade ao tema. As coerções
previstas neste modelo são, em geral, as sanções econômicas e/ou a guerra
declarada por parte da sociedade internacional contra uma outra parte que
supostamente não aceita as regras celebradas no jogo diplomático. No fundo, este
modelo está pautado no quarto regime, o de Estados-Nações, e sua dinâmica
segue a correlação de forças entre estes. Um Estado-Nação poderoso
economicamente e militarmente forte, como os Estados Unidos hoje, acaba se
constituindo como um poder independente e, por vezes, como um império, a
exemplo da Guerra do Iraque, planejado pelos Estados Unidos e alguns parceiros
e condenada pela maioria da sociedade internacional representada pela ONU.
O terceiro regime é o de consociação administrativa entre diferentes grupos
que necessitam compartilhar e conviver num mesmo território e sob um mesmo
sistema político. Segundo Walzer, são exemplos desse modelo: Bélgica, Suíça,
Chipre e Líbano. A consociação política trata-se de uma aposta numa solução
pacífica numa situação caracterizada por uma correlação de forças equilibrada
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Tolerância: notas contemporâneas 108
entre os grupos que compõe determinado território e que acordam que o melhor
regime é o da confiança mútua ou, na pior das hipóteses, da vigília mútua.
Tolerância aqui significaria uma confiança desconfiada, por isso atenta e vigilante
em relação aos outros grupos que compõem o regime.
O quarto regime, o de Estado-Nação, é o quadro jurídico, político e
administrativo no qual se dão os dois modelos anteriores e também o seguinte. No
entanto, o que caracteriza o modelo de Estado-Nação, segundo Walzer, é o
predomínio de um único grupo que controla o aparato político e reproduz a
cultura nacional ou, pelo menos, aquela que é entendida como tal. Neste sentido,
língua, cultura e religião comuns, ou ao menos predominantes, são fundamentais
na constituição de um Estado-Nação. Os Estados-Nações nasceram com a marca
do liberalismo político, por isso aceitam as diferenças pessoais e respeitam os
direitos dos cidadãos enquanto indivíduos, mas recusam veementemente qualquer
direito que seja entendido como privilégio a grupos minoritários enquanto tais
36
.
Não há, neste regime, o reconhecimento a grupos como figura jurídica com
possibilidade de reivindicação de direitos específicos. Os coletivos com
identidade específica têm escassos ou nenhum direito enquanto sujeitos. Apenas o
indivíduo é sujeito de direitos. Através de legislação que versa sobre a integridade
e a dignidade da pessoa humana, um Estado-Nação se caracteriza em proteger os
indivíduos da tirania de grupos intolerantes, sejam estes grupos estranhos ao
indivíduo ou mesmo o grupo de sua própria identidade cultural. A vantagem desse
regime é garantir a mobilidade dos sujeitos entre os diferentes grupos, já que o
indivíduo de um determinado grupo, minoritário ou majoritário, pode abandonar o
seu próprio grupo e identificar-se com outros ou mesmo com nenhum. Neste
regime a tolerância significa a garantia das liberdades individuais. A desvantagem
está no domínio do grupo hegemônico sobre quase todos os âmbitos da vida social
– língua, cultura, religião, política, moral etc. – e na negação de direitos coletivos
às minorias.
O quinto regime, sociedade de imigrantes, também se dá no marco do
Estado-Nação, mas agora pautado pela agenda da globalização e do
multiculturalismo. A imigração é uma realidade inegável e complicadora para os
36
O caso brasileiro se encaixa perfeitamente neste regime e não só pelo predomínio lingüístico,
religioso, político e cultural de um grupo. Veja também toda polêmica e, de fato, a repulsa da
opinião pública e publicada sobre o sistema de cotas para negros nas universidades.
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Tolerância: notas contemporâneas 109
Estados-Nações centrais ou do Norte. Como no regime anterior, os indivíduos têm
direitos, os grupos não. No entanto, a forte presença imigratória costuma abrir
brechas na legislação dos Estados-Nações que recebem os imigrantes. Assim, nas
sociedades de imigrantes se organizam associações voluntárias de mútua ajuda
tendo como elemento nucleador uma outra identidade nacional, daí as
reivindicações diferencialistas do multiculturalismo estarem mais presentes em
sociedades do Norte (Estados Unidos e Europa). A tolerância neste caso passa
pelo fenômeno de auto-afirmação dos imigrantes enquanto sujeitos de direitos e
de identidade distintas da predominante no Estado-Nação de acolhida. Esta auto-
afirmação, em geral, se dá pelo questionamento à identidade hegemônica como
uma imposição a todos ou pela formação de identidades hifenizadas, tais como:
hispano-americano ou franco-argelino.
No marco desses cinco regimes, Walzer entende que alguns casos são
complicadores de seu próprio esquema. Assim, ele abre um leque de exceções
dentro de seu quadro comparativo. São elas: a França e seu republicanismo laico
exacerbado enquanto identidade nacional; Israel e sua relação militarizada com
seus vizinhos mulçumanos; Canadá e o questionamento interno permanente se
Quebec pode ou não ter privilégios como se fossem direitos e, por fim, a própria
indefinição de em que se desembocará o projeto da União Européia.
Fiel ao seu estilo historiográfico e antropológico, Michael Walzer retira
desses cinco regimes uma série de questões práticas e, finalmente, uma concepção
de tolerância segundo seus próprios critérios. As “questões práticas” (WALZER,
1999:69-107) referem-se a uma série de temas relacionados “a diferença que
torna a tolerância necessária”.
Assim, a primeira questão está relacionada ao fato de que a tolerância pode
ser atravessada pelas relações de poder. Em relações assimétricas a sujeição pode
ser a única estratégia possível para um determinado grupo ser tolerado evitando-se
ao máximo colocar em risco a própria eliminação física. A segunda questão
prática é a polêmica em torno da relação de classe e as práticas de preconceito.
Corroboro Walzer no que tange ao entendimento que os pobres serão sempre os
menos tolerados entre todos os grupos que carregam algum estigma ou suposta
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Tolerância: notas contemporâneas 110
marca socialmente vergonhosa
37
. A terceira questão prática é sobre gênero. No
marco do Estado-Nação, ou seja, de igualdade de direitos, Walzer se pergunta
como tratar uma cultura minoritária que fere o princípio de igualdade entre
homens e mulheres
38
. A quarta questão é sobre religião e é parecida com a
anterior. Como tolerar, no marco das liberdades individuais e da igualdade entre
todos, as religiões que restringem a liberdade individual e estabelecem
desigualdades efetivas entre seus membros? A quinta questão versa sobre a
disputa que se dá no campo educacional sobre o quê e como definir o currículo
escolar. Tem a escola, em nome de um suposto universalismo, o direito de
rivalizar com os valores ensinados às crianças em suas comunidades de origem?
Pode a escola, em nome de um particularismo, fechar ou condenar uma criança a
uma única cultura, ainda que seja a sua cultura originária? A sexta questão prática
é sobre a proposta de uma religião civil. Se toda religião tem como uma de suas
ações o proselitismo, como equilibrar a difusão de valores cívicos sem que se caia
no erro do proselitismo militante e intolerante? A sétima e última questão é uma
velha conhecida neste trabalho: devemos tolerar os intolerantes? Ao defender que
sim devemos tolerar os intolerantes, Walzer tem uma postura radical, bastante
destoante de outros defensores da tolerância e próxima à postura de Norberto
Bobbio. Sua ressalva é assegurar-se que tais grupos nunca terão acesso a
instâncias de poder que lhes permitam exercer tal postura. Em geral, os defensores
da tolerância colocam nos intolerantes o limite do conceito e da própria prática.
Neste sentido, Walzer é distinto e, talvez, mais ousado na extensão de sua
proposta de coexistência pacífica.
Enfim, o historiador e antropólogo desenha uma concepção de tolerância
com o objetivo de assegurar a convivência pacífica aqui e agora, neste tempo e em
cada lugar. Nesta perspectiva, a obra de Walzer ajuda a perceber algumas
distinções importantes entre a tolerância moderna, postulada ao longo da história
da filosofia, e uma tolerância pós-moderna.
A tolerância moderna visava libertar o indivíduo das velhas comunidades
corporativas e estabelecê-lo dentro de um círculo de direitos, principalmente os
37
Na sociedade brasileira, por exemplo, a condição dos negros é de exclusão social, mas a
conjugação da condição de negro e pobre é ainda mais problemática no que tange à
discriminação e ao não acesso aos direitos de cidadania.
38
Penso em determinadas expressões musicais juvenis, típicas das periferias urbanas brasileiras,
que se referem às mulheres como cachorras. Tais expressões musicais deveriam ser toleradas?
Seriam moralmente aceitáveis?
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Tolerância: notas contemporâneas 111
direitos civis. Assim, a tolerância moderna tentava regular a nascente tensão
histórica entre grupos fortes e uniformizadores e a reivindicação de indivíduos
livres como condição de cidadania. O avanço dos direitos individuais, entre eles a
tolerância como liberdade de consciência, garantiu ao indivíduo enquanto sujeito
de direitos a possibilidade de entrar e sair livremente de grupos de referência –
religiosa, política ou cultural.
A tolerância pós-moderna se dá em outro contexto histórico, marcado pela
aceleração dos processos de homogeneização cultural e, conseqüentemente, pela
perda ou enfraquecimento das identidades culturais mais específicas. Assim, na
Modernidade Tardia a tensão entre grupos e indivíduos tornou-se inversamente
proporcional à da Modernidade: grupos fracos e indivíduos exageradamente auto-
centrados. As respostas a esta tensão têm sido variadas, tais como: a defesa da
pluralidade, o surgimento de um multiculuralismo intenso e a retomada de
fundamentalismos intolerantes. Assim, os desafios para uma proposta de
tolerância na Modernidade Tardia são ainda mais difusos. Importa combater a
retomada de um universalismo uniformizante e dos fundamentalismos
intolerantes, bem como evitar um egoísmo subjetivista e os relativismos
inconseqüentes. A proposta pós-moderna, em sua radicalidade, poderia eliminar
qualquer possibilidade de identidade comum, o que para Walzer parece ser um
novo equívoco diante da tensão entre o grupal e o individual. Nesta perspectiva, a
tolerância pode ser uma alternativa a posturas extremadas, pois “o objetivo da
tolerância não é, e nunca foi, o de abolir o ‘nós’ e o ‘eles’ (e com certeza não é o
de abolir o ‘eu’), mas o de garantir a continuidade de sua coexistência e
interação pacíficas” (WALZER, 1999:120).
Sem indivíduos livres e grupos fortes, a convivência entre diferentes não
será pacífica, será oscilante entre o conflito crispado e a apatia. Uma vida social
fragmentada, com grupos fracos e dissociados, segundo o historiador de
Princeton, gera indivíduos retraídos, solitários, passivos, apáticos e a deriva. A
aposta de Michael Walzer é em grupos fortes, de identidades fundamentadas, e de
sujeitos livres, críticos e engajados. Nesta perspectiva, tal aposta deve passar
necessariamente por um sistema político, jurídico e moral que tenham a tolerância
como um de seus fundamentos.
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Tolerância: notas contemporâneas 112
2.2
A TOLERÂNCIA EM QUESTÃO.
Ao finalizar esta etapa histórica sobre o conceito de tolerância, importa
destacar a pauta da atual agenda de discussão sobre as grandes questões morais e
políticas de nosso tempo. A revitalização que se experimenta hoje no campo das
discussões morais e políticas tem a ver, sem dúvida, tanto com o contexto
complexo no qual se encontra a humanidade na travessia do umbral entre o breve
século XX
39
e, o já e o ainda não, do século XXI, quanto com a retomada forçada
que a filosofia política e a ética têm sido chamadas a fazer na produção de
conhecimento diante de tal contexto.
A meu juízo, é nítida a demanda de conceitos, reflexões, precisões teóricas
que áreas como a educação, a sociologia, a comunicação, a medicina, a
antropologia, o direito, entre outras, têm exercido sobre a ética e a filosofia
política. As questões sobre eutanásia, aborto, consumo, corrupção, casamento
entre pessoas do mesmo sexo, mídia e tecnologia, fundamentalismo religioso,
diálogo inter-religioso, educação para a cidadania, pluralismo cultural, realidade
virtual etc. trazem um emaranhado, um tanto confuso e custoso, de temas que
requerem da filosofia prática, mais especificamente da ética, um posicionamento
que é ao mesmo tempo conceitual e militante. Não será raro encontrar num debate
acadêmico ou mesmo num documentário de televisão a palavra do filósofo, do
moralista, do especialista em ética e política sobre este ou aquele tema. Parece
haver uma necessidade de se entender as novidades que nos assaltam a cada dia
através de várias perspectivas e entre elas, com certo lugar de destaque ou
nostalgia, a da filosofia prática. Neste sentido, é inegável que a tolerância faz
parte desta pauta atual de discussão das grandes questões morais e políticas e,
quem sabe, tangencia a maioria delas.
A fim de puxar um fio deste novelo, isto é, de escolher uma entre muitas
possíveis entradas sobre a atualidade do tema neste variado catálogo de
pendências do mundo contemporâneo, escolhi revisitar algumas discussões
encaminhadas pela ONU e que tenham uma relação mais direta com o meu tema
39
Segundo a célebre sugestão de Eric Hobsbawm.
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Tolerância: notas contemporâneas 113
de pesquisa. Assim, trarei à tona algumas declarações, conferências e
proclamações que trataram direta ou indiretamente do conceito de tolerância. A
fim de também precisar a temática no campo mais específico da filosofia,
ensaiarei uma síntese de dois congressos celebrados conjuntamente na cidade de
Lima, Peru, em janeiro de 2004. Tratam-se do XV Congresso Interamericano de
Filosofia e do II Congresso Iberoamericano de Filosofia, que reuniram pensadores
consagrados, pesquisadores, estudiosos e neófitos em filosofia de mais de 26
países diferentes, em especial da América Latina. A partir de uma perspectiva
mais geral, através das declarações e conferências da ONU, e de outra mais
centrada no campo filosófico, através das comunicações dos congressistas de
Lima, meu objetivo é colocar o conceito de tolerância em questão.
2.2.1
A ONU e uma tradição tolerante.
O conceito de tolerância se confunde com a própria origem e
desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (ONU). No documento de
fundação da ONU, a Carta das Nações Unidas, afirma-se que a organização visa,
entre outros objetivos, “a praticar a tolerância” e ajudar as nações a “conviver
como bons vizinhos” (Unesco, 1997:07). Tolerância aparece, então, desde o
princípio como um dos fundamentos para a convivência pacífica entre as nações.
Por outro lado, se considerarmos que a tolerância também visa combater todo e
qualquer tipo de ataque à diversidade humana, importa começar por perceber o
posicionamento anti-discriminatório, ou pró-tolerância, no mais significativo e
emblemático de todos os documentos da ONU, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos
40
(1948).
A expressão “sem distinção de qualquer espécie”
41
aparece explicitamente
em quatro artigos da DUDH e funciona como uma espécie de fórmula anti-
discriminação, ou seja, além do texto proclamar que “todos têm direito” reforça
que a ninguém lhe poderá ser negado tal direito devido a alguma diferença –
religião, nacionalidade, língua, cor, gênero etc. – já que todos devem ter acesso
aos direitos humanos “sem distinção de qualquer espécie”. Tal expressão aparece
no artigo 2º, no qual se afirma que todos os seres humanos têm direito de gozar
40
Doravante DUDH.
41
E suas variações: sem qualquer distinção ou sem qualquer restrição.
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Tolerância: notas contemporâneas 114
das conquistas da DUDH “sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor,
sexo, língua, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social,
riqueza, nascimento ou qualquer outra condição”. Também no artigo 7º, no qual
se afirma que, perante à lei, somos todos iguais “sem qualquer distinção” e,
ademais, temos direito à proteção jurídica contra qualquer discriminação que viole
a DUDH. No artigo 16, afirma-se que “homens e mulheres maior de idade”
podem contrair, manter e dissolver o matrimônio “sem qualquer restrição de
raça, nacionalidade ou religião”
42
. E no artigo 23, sobre o trabalho, afirma-se
que todos, “sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual
trabalho”.
Já o ideal moderno de liberdade perpassa toda declaração, do primeiro artigo
(“todos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”) ao último (“a nenhum
indivíduo ou grupo é dado o direito de atentar contra os direitos e liberdades
aqui estabelecidos”). Não obstante, o ideal mais específico da liberdade de
consciência – enquanto um dos eixos vertebrais do conceito de tolerância –
aparece explicitamente no artigo 18 (“todos os seres humanos têm direito à
liberdade de pensamento, consciência e religião”); no 19 (“todos os seres
humanos têm direito à liberdade de opinião e expressão”) e no 20 (“todos os
seres humanos têm direito à liberdade de reunião e associação pacífica”).
No entanto, a palavra tolerância só parece na DUDH uma única vez e é
justamente no artigo 26, sobre a educação: “a educação promoverá a
compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou
religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção
da paz”. A concepção de educação implícita no artigo já é uma velha conhecida
no campo dos fundamentos da educação. Trata-se da educação como “redenção
social”, como instrumento primordial para resolver os grandes temas que nos
afligem enquanto humanidade. Sobre este tipo de entendimento acerca da
educação retomarei mais adiante, pois será uma constante nos textos e
pronunciamentos dos diferentes organismos da ONU, em especial, da Unesco.
42
A expressão maior de idade impõe uma restrição pouco questionada. Ainda que o texto não seja
claro que o matrimônio deva ser necessariamente entre um homem e uma mulher, esta condição
está mais do que implícita tendo em vista o período histórico no qual a declaração foi
proclamada. É óbvio, então, que estaria explícita uma outra restrição ao direito de constituir,
manter e dissolver o matrimônio: a da orientação sexual.
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Tolerância: notas contemporâneas 115
Filha de uma racionalidade iluminista e de uma retomada emancipadora da
lógica da Modernidade, não é nova a crítica de que a DUDH seria muito mais uma
declaração ocidental e/ou européia dos direitos humanos do que uma declaração
universal. Registro tal crítica e a deixarei por aqui. Não que ela não seja
pertinente, mas é que não me compete neste momento aprofundar ou responder tal
acusação. Simplesmente lembro que a Conferência de Viena (1993) reafirmou que
os direitos humanos são universais e indivisíveis, ou seja, não há como defender
uns e não outros; se um artigo da DUDH é violado, todos os outros também são
dada as suas inter-relações.
Ademais da DUDH, a ONU tem se pronunciado de maneira incessante
contra várias formas de discriminação. Assim, surgiram durante os sessenta anos
de existência da ONU um número significativo de informes, relatórios,
declarações e conferências a fim de tratar, aprofundar e apresentar programas de
ação contra diferentes formas de discriminações. Nesta perspectiva, destacam-se
as quatro conferências pelos direitos das mulheres (México, 1975; Copenhague,
1980; Nairobi, 1985 e Pequim, 1993) e as três conferências contra o racismo
(Genebra, 1978, Genebra, 1983 e Durban, 2001).
Para fins de análise desse trabalho considerarei brevemente dois documentos
da ONU e seus respectivos processos de elaboração. O primeiro é a Declaração
de Princípios sobre a Tolerância (1995), por ser o documento no qual a Unesco,
em consonância com todos os organismos da ONU, explicita uma concepção de
tolerância e lança uma agenda de atuação contra todo e qualquer tipo de
intolerância. O segundo documento é a Declaração de Durban (2001), por ser o
mais recente informe da ONU diretamente relacionado com o meu tema de
pesquisa. Assim, por uma questão de escolhas e recortes, não serão considerados,
por exemplo, documentos históricos como a Declaração Sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Racial (1963), nem os mais recentes como a
Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (2001), tampouco abordarei
os informes das quatro conferências sobre os direitos das mulheres e os das duas
conferências contra o racismo anteriores a Durban. Considero que os dois
documentos analisados aqui são suficientemente representativos para o objetivo
que persigo: destacar o empenho da ONU em conceituar e promover a tolerância,
bem como colocar o conceito na pauta de discussão da agenda política
internacional.
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Tolerância: notas contemporâneas 116
(a) Declaração de Princípios Sobre a Tolerância (1995):
Por solicitação da Unesco ao Conselho Econômico e Social da ONU, a
Assembléia Geral de 1993 proclamou o ano de 1995 como o Ano das Nações
Unidas para a Tolerância. Esta escolha se deu por dois motivos diferentes e
interligados. O primeiro e mais marcante era o próprio contexto histórico, um
tanto funesto, que se desenhava naqueles primeiro anos após a queda do muro de
Berlim e o fim oficial da Guerra Fria. O contexto era de intolerância religiosa e
étnica em diferentes países e o terrorismo fundamentalista era uma realidade que
já se anunciava com premência. Não quero aqui me estender nos exemplos, mas
tão somente realizar um exercício de memória sobre os anos 90. Para isso, recordo
o sangrento conflito entre tutsis e hutus em Ruanda; a ascensão do islamismo
fundamentalista e armado do Herzbollah no Líbano; o combate violento entre
católicos e protestantes na Irlanda; o terrorismo político do ETA na Espanha; os
numerosos e calamitosos massacres na região dos Bálcãs durante toda a década de
90, especialmente a Guerra da Bósnia e a limpeza étnica em Kosovo; a disputa
armada por territórios entre Israel e Palestina; o fim da ocupação da Indonésia no
Timor Leste, deixando um rastro de milhares de mortos; entre muitos outros
exemplos que poderia seguir enumerando. Além do clima de intolerância e
violência em vários pontos do planeta envolvendo questões políticas e econômicas
com questões étnicas, culturais e religiosas, há que se registrar que a “panela de
pressão” da imigração de populações pobres em direção aos países do Norte já
começava a ferver
43
.
O segundo motivo vem de um movimento mais interno da própria ONU.
Preocupada com tal contexto, a Unesco, através de sua Divisão de Filosofia e
Ética, já havia promovido em 1993, na cidade de Moscou, um Congresso Mundial
de Filosofia que foi intitulado A Tolerância, Hoje. O Congresso de Moscou
ofereceu análises da realidade e pistas teóricas que motivaram a Unesco a insistir
no tema (CARDOSO, 2003:107). E o Congresso de Moscou se fez escutar. A
partir da proclamação do Ano Para a Tolerância foi realizada, entre 1994 e 1995,
uma série de encontros nacionais e regionais para debater o tema e preparar uma
declaração de princípios. O ponto de partida foi de que “a compreensão do
43
Parece que tal panela “apitou” mais uma vez em 2005 e 2006 com as queimas de automóveis em
Paris e as greves de trabalhadores latinos em Nova York.
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Tolerância: notas contemporâneas 117
sentido da tolerância não deve ser buscada isoladamente, mas como um
componente fundamental de uma ‘cultura de paz’, fundada nos direitos humanos
e na democracia” (CARDOSO, 2003:108).
Sendo assim, os temas eleitos para os debates foram: multiculturalismo,
diálogo inter-religioso, diversidade cultural, educação intercultural, cultura de paz,
direitos humanos e democracia. Definido os eixos centrais da discussão, foram
realizadas em 1994 sete grandes conferências regionais, a saber: (1) Conferência
Internacional Sobre Democracia e Tolerância, em Seul (Coréia do Sul), com
ênfase na reflexão sobre tolerância, direitos humanos e democracia; (2)
Conferencia Internacional Sobre Tolerância e Lei, em Siena (Itália), na qual se
aprofundou a relação entre Estado civil e religião, retomando principalmente o
debate filosófico iniciado no Velho Mundo por Locke e Voltaire; (3) Conferência
Sobre Ensino da Tolerância na Área Mediterrânea, em Cartago (Tunísia), na qual
se aprofundou o papel dos sistemas de ensino no desenvolvimento da atitude da
tolerância nas novas gerações; (4) Encontro Regional da Ásia e Pacífico Sobre
Tolerância, em Nova Déli (Índia), no qual se aprofundou a interdependência entre
os âmbitos espirituais, pessoais e sociais do ser humano, tratando da tolerância em
sua dimensão de virtude; (5) Conferência Sobre Tolerância, Compreensão Mútua
e Acordo, em Moscou (Rússia), no qual se voltou para os problemas de
intolerâncias étnicas e religiosas surgidos na região após o desmembramento da
União Soviética; (6) Simpósio Sobre Tolerância, em Istambul (Turquia), no qual
se deu especial atenção à liberdade de consciência, pensamento e religião; e,
finalmente, (7) Conferência Sobre Tolerância na América Latina e no Caribe, no
Rio de Janeiro (Brasil), no qual se aprofundou a relação entre processos de
intolerância e desigualdades sociais, dando uma dimensão mais política e social
ao conceito
44
.
Os debates das sete conferências foram sintetizados na Declaração de
Princípios Sobre a Tolerância
45
, que foi proclamada solenemente na 28ª
Conferência Geral da Unesco, celebrada em Paris, em 16 de Novembro de 1995,
data que desde então é celebrada como o Dia Internacional da Tolerância.
Seguindo a tradição dos documentos da ONU, a Declaração reconhece os
documentos, relatórios e informes anteriores que contribuíram para o avanço da
44
Sobre cada conferência e em especial sobre o Encontro do Rio, veja CARDOSO (2003:97-151).
45
Doravante Declaração.
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Tolerância: notas contemporâneas 118
temática. Assim, retoma-se a própria Carta das Nações Unidas, a DUDH e a
Constituição da Unesco. Ademais, reconhece a importância de outros
instrumentos internacionais. Vale destacar os documentos que visam combater as
discriminações raciais, as contra a mulher, as contra minorias nacionais, étnicas,
religiosas e lingüísticas, bem como as sanções a alguns tipos de intolerância, tais
como o genocídio e o apartheid (UNESCO, 1997:07-09).
O documento também reconhece o contexto de intolerância que pauta o
mundo contemporâneo e os Estados Membros se declararam:
A
larmados pela intensificação atual da intolerância, da violência, do terrorismo, da
xenofobia, do nacionalismo agressivo, do racismo, do anti-semitismo, da exclusão,
da marginalização e da discriminação contra minorias nacionais, étnicas, religiosas
e lingüísticas, dos refugiados, dos trabalhadores migrantes, dos imigrantes e dos
grupos vulneráveis da sociedade... (UNESCO, 1997:10).
Ainda no preâmbulo, a Declaração ensaia um significado de tolerância:
“não é somente um princípio relevante mas igualmente uma condição necessária
para a paz e para o progresso econômico e social de todos os povos” (UNESCO,
1997:10-11). A declaração se resume a seis artigos, nos quais, segundo
CARDOSO (2003:118-119), pode-se perceber quatro grandes aspectos de
convergência entre as sete conferências preparatórias: (1) o significado da
tolerância, (2) o papel do Estado, (3) as dimensões sociais e (4) a importância da
educação.
Quanto ao significado da tolerância (UNESCO, 1997:11-12), a meu juízo,
prevalece uma concepção que se aproxima a de Michael Walzer, com forte
conotação na tolerância enquanto convivência pacífica para a garantia de um
marco de diversidade. Assim, “a tolerância é harmonia na diferença”. No
conceito da Unesco também aparecem duas diferentes dimensões, tais como tenho
destacado neste trabalho: tolerância como virtude e como atitude. Além disso, a
tolerância teria uma dimensão ética, de dever moral, e outra política, de
necessidade jurídica. A tolerância também aparece com algumas nesgas
popperianas, tais como: “abertura de espírito” e “rejeição do dogmatismo e do
absolutismo”. Como era de se esperar, o documento está profundamente
influenciado pelo liberalismo político em sua concepção de tolerância:
“tolerância significa que toda pessoa tem livre escolha de suas convicções e
aceita que o outro desfrute da mesma liberdade”. A Declaração concorda ainda
com Bobbio ao defender que tolerância não implica necessariamente posturas
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Tolerância: notas contemporâneas 119
relativistas ou céticas: “praticar a tolerância não significa tolerar injustiça
social, nem renunciar às próprias convicções, nem fazer concessões a respeito”.
Nega-se também ao conceito o entendimento de uma atitude de passividade:
“tolerância não é concessão, condescendência, indulgência” e afirma-se como
uma postura positiva e propositiva: “tolerância é o respeito, a aceitação e o
apreço da riqueza e da diversidade das culturas de nosso mundo” e mais adiante:
“tolerância é o sustentáculo dos direitos humanos, do pluralismo, da democracia
e do Estado de direito”. Quanto a este primeiro aspecto da Declaração, creio não
ser um equívoco afiançar que o conceito de tolerância proposto pela Unesco
confirma e sintetiza tanto a tradição moderna quanto o debate mais atual sobre a
temática, tal como anteriormente apresentado.
Quanto ao segundo aspecto, o papel do Estado (UNESCO, 1997:12-13), a
Declaração considera que a tolerância é, ao mesmo tempo, fundamento e objetivo
de um Estado de direito democrático, plural e justo. Assim, a tolerância exige do
Estado “justiça e imparcialidade”, bem como o compromisso dos Estados
membros com o documento em questão e as convenções internacionais
apresentadas no preâmbulo. No âmbito internacional, a tolerância é fundamento
da convivência pacífica e da garantia da pluralidade: “torna-se essencial que os
indivíduos, as comunidades e as nações aceitem e respeitem o caráter
multicultural da família humana. Sem tolerância não pode haver paz...”. Afirma-
se ainda que o Estado deva ser tolerante e garantir a tolerância interna com
especial atenção aos grupos mais vulneráveis social e economicamente. Nesta
perspectiva, a tolerância “exige também que todos possam desfrutar de
oportunidades econômicas e sociais sem nenhuma discriminação”.
O terceiro aspecto, dimensões sociais (UNESCO, 1997:13-15), retoma de
maneira mais explícita duas temática já presentes nos tópicos anteriores:
diversidade cultural e desigualdades econômicas. A Declaração reafirma a
urgência do tema (“a tolerância é mais necessária do que nunca”); alerta para o
fenômeno da intolerância: (“a intensificação da intolerância e dos confrontos
constitui ameaça potencial para cada região”) e convoca para a importância de
estudos e análises sobre as causas da intolerância e de elaboração dos mecanismos
para evitá-la (“convém realizar estudos científicos apropriados... a fim de apoiar
decisões em matéria de formulação política geral e ação normativa”). A
novidade neste terceiro aspecto é que para além da garantia da pluralidade
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Tolerância: notas contemporâneas 120
cultural, a tolerância também estaria relacionada com a busca da igualdade e da
justiça social.
Para tanto, deve ser dada atenção especial aos grupos vulneráveis social ou
economicamente desfavorecidos, a fim de lhes assegurar a proteção das leis e
regulamentos em vigor, sobretudo em matéria de moradia, de emprego e de saúde,
de respeitar a autenticidade de sua cultura e de seus valores e de facilitar, em
especial pela educação, sua promoção e sua integração social e profissional.
(UNESCO, 1997:14).
Segundo CARDOSO (2003:115-118), a entrada da preocupação com as
desigualdades sociais e o esforço de não desvincular os fenômenos intolerantes
dos processos de exclusão social e econômica foi a contribuição mais específica
dos intelectuais latino-americanos e caribenhos no Encontro do Rio para a
elaboração desta Declaração, confirmando a tradição latino-americana e
revelando ao mundo um pensamento mais atento às desigualdades sociais.
O quarto aspecto, a educação para a tolerância (UNESCO, 1997:15-16), foi
o ponto de maior convergência entre todas as conferências regionais (CARDOSO,
2003:120). Na Declaração, a educação ganha uma dimensão redentora: “a
educação é o meio mais eficaz de prevenir a intolerância”. Ora, a educação como
redenção social é uma perspectiva já muito criticada no campo educacional e
constantemente vigiada para que não se passe, com certa ligeireza, a um utopismo
pedagógico que tende a ver na educação – em especial nos aparatos escolar e
universitário enquanto instrumentos de educação formal – uma panacéia para
todos os nossos males. Ainda que a Declaração pondere a necessidade de
empenho dos Estados no tocante à legislação, às políticas interna e externa e à
superação das desigualdades sociais, a educação é apresentada como “imperativo
prioritário” como se a superação das intolerâncias passasse simplesmente pela
“formação de cidadãos solidários e responsáveis, abertos a outras culturas”.
Ainda que seja o ponto de maior convergência entre intelectuais e educadores de
quase todos os rincões do planeta, é mister relativizar tal força ou capacidade
emancipadora da educação. Há que se pensar com mais cautela sobre a ênfase que
é dada à educação formal (“promover métodos sistemáticos e racionais de ensino
da tolerância”) e aos programas de pesquisa (“apoiar e executar programas de
pesquisa em ciências sociais e de educação para a tolerância”). É óbvio que
minha intenção não é a de desacreditar a tarefa educativa e o papel indiscutível
das investigações, pois tal postura soaria como um tiro no próprio pé, tendo em
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Tolerância: notas contemporâneas 121
vista os objetivos desta pesquisa. O que importa aqui é contemporizar e destacar
que junto à educação, formal e não formal, há outros âmbitos de atuação tão
urgentes e necessários, tais como os aspectos jurídicos, os políticos e, sobretudo,
os econômicos.
Feito o alerta sobre os engodos de uma educação redentora, importa destacar
algumas pistas oferecidas pela Declaração no que tange a uma educação para a
tolerância. O documento reconhece que uma educação com tal finalidade tem
duas entradas distintas e igualmente importantes. Em primeiro lugar, a educação
para a tolerância deve despertar para o conhecimento dos próprios direitos e
liberdades, bem como para a responsabilidade de respeitar e proteger os direitos e
liberdades dos outros. Em segundo lugar, a educação para a tolerância deve partir
das “fontes culturais, sociais, econômicas, políticas e religiosas da intolerância”.
Assim, a educação seguiria a própria lógica e história do conceito de tolerância,
isto é, como embate e resposta ao seu contraposto, a intolerância. Uma educação
para a tolerância também deve “desenvolver a capacidade de exercer um juízo
autônomo, de realizar uma reflexão crítica e de raciocinar em termos éticos”. A
capacidade de se educar para prevenir conflitos e de resolvê-los por meios não
violentos é outra preocupação presente no documento. Além disso, uma educação
para a tolerância combateria a indiferença (a pseudo-tolerância) e reforçaria a
valorização das diferenças enquanto uma riqueza da diversidade humana
(UNESCO, 1997:15-16).
Nesta perspectiva, a Declaração assume alguns compromissos a fim de
aplicar os princípios desenhados. Aqui cabem quatro destaques: (1) a proclamação
do Dia Internacional da Tolerância a fim de fazer ecoar uma mensagem de
concórdia, coexistência e convivência pacífica entre os povos; (2) o compromisso
dos Estados Membros com as convenções internacionais para o combate dos
fenômenos intolerantes; (3) o empenho da própria Unesco junto aos demais
órgãos da ONU a fim de promover a Declaração de Princípios Sobre a
Tolerância e seus objetivos e (4) os programas de pesquisa e ensino sobre os
problemas relacionado à tolerância e ao pluralismo cultural.
(b) Declaração de Durban (2001):
De 30 de Agosto a 08 de Setembro de 2001, a cidade de Durban, na África
do Sul, foi o palco da 3ª Conferência Mundial contra o Racismo promovida pela
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Tolerância: notas contemporâneas 122
ONU. As duas conferências anteriores foram celebradas em Genebra nos anos de
1978 e 1983 e discutiram respectivamente sobre apartheid e sionismo.
Com o extenso nome de Conferência Mundial Contra o Racismo, a
Discriminação Racial, a Xenofobia e Outras Formas de Intolerância Correlata, a
Conferência de Durban foi entremeada de grandes polêmicas. O objetivo era
produzir uma declaração que reconhecesse os danos causados pelas expressões
passadas de racismo e que refletisse uma nova consciência a nível mundial das
formas modernas de racismo e xenofobia. A conferência visava também chegar a
um acordo sobre um programa de ação forte e prático de combate à discriminação
racial e às intolerâncias correlatas. Objetivos ambiciosos e por isso fonte de
muitas polêmicas.
Cinco temas constituíram o núcleo da agenda da Conferência de Durban:
(1) fontes, causas, formas e manifestações contemporâneas de racismo; (2) as
vítimas de racismo e de intolerâncias correlatas; (3) medidas de prevenção,
educação e proteção com vistas à erradicação do racismo, da discriminação racial
e das intolerâncias correlatas; (4) reparações, direito de regresso e compensações
às vítimas de racismo e de intolerâncias correlatas e (5) estratégias para alcançar
uma igualdade plena e efetiva a nível da cooperação internacional.
Antes de considerar a Declaração de Durban
46
propriamente dita, importa
analisar três entre as várias polêmicas que envolveram a conferência. A polêmica
mais simples foi a união dos países mulçumanos e do Estado do Vaticano para
que os coletivos de homossexuais não fossem considerados como vítimas de
intolerância correlata ao racismo. O grupo de discussão sobre as vítimas, liderado
pelo México, não conseguiu incluir a categoria entre aqueles que sofrem os danos
da discriminação. Em declaração à Folha de São Paulo, o então chefe do
Departamento de Direitos Humanos do Itamaraty
47
, Tadeu Valadares, declarou:
“A posição das delegações, até agora, tem sido bastante conservadora. Não há
disposição para criar novas categorias para a definição de vítimas da
discriminação, apenas para falar das categorias tradicionais, como negros e
indígenas. O consenso em andamento é mínimo”
48
. Como o documento precisava
46
Informe da Conferência Mundial Contra Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Outras
Formas de Intolerância Correlata.
47
Veja a posição da comissão brasileira no Relatório do Comitê Nacional para a Conferência de
Durban. [http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/discrim/relatorio.htm] Acesso em 30/05/2006.
48
Folha de São Paulo, 06/09/2001.
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Tolerância: notas contemporâneas 123
ser aprovado por consenso, a opção foi incluir no texto final a expressão “entre
outros” a fim de contemplar os homossexuais e outros grupos, discriminados
inclusive de figurarem como discriminados. A delegada do Paquistão, Mumtaz
Boloch, declarou:“Entendemos que essa é uma conferência sobre racismo. O
tema da orientação sexual, portanto, não tem como ser discutido aqui. Não há
razão para isso”
49
. Assim, as “outras formas de intolerância correlata eram
menos correlatas do que se poderia inicialmente imaginar.
A segunda polêmica foi bem mais difícil de ser resolvida. Antes mesmo da
conferência, nos encontros nacionais e regionais em preparação a Durban, os
países árabes realizaram uma forte pressão para que a expressão “sionismo” fosse
igualada a racismo, devido à ocupação de Israel em territórios palestinos e a
perseguição sofrida pelos árabes naquela região. Devido a tal polêmica, os
Estados Unidos e Israel enviaram delegações sem nenhum peso político,
compostas de funcionários de segundo escalão de suas diplomacias. Ainda assim,
como protesto se retiraram no quarto dia da Conferência, o que foi uma tentativa
de esvaziar e deslegitimar Durban. Com a ameaça da retirada da França, liderando
a retirada de toda União Européia pelo mesmo motivo, os países árabes tiveram
que ceder. A retirada de israelenses e estadunidenses era vista como uma
vantagem. A saída dos europeus seria um fracasso total para Durban. A Alta
Comissária da ONU para os Direitos Humanos e Secretária Geral da Conferência,
Mary Robinson, buscou um tom de conciliação e de reconhecimento da
problemática: “Durban não pode resolver a questão do Oriente Médio, tampouco
ignorá-la. Assim como o sofrimento do povo palestino e o fato de os israelenses
também serem vítimas da violência e da insegurança”
50
. No fim, o documento
condenou dando o “anti-semitismo” como a “islamofobia”. Foi uma tentativa
conciliadora de agradar a gregos e troianos, ou melhor, a árabes e israelenses. De
fato, os dois grupos alardearam declarações de que Durban havia sido um
fracasso, ainda que a ONU e a União Européia se declarassem satisfeitas com os
resultados das negociações.
A terceira polêmica era a mais difícil e complexa a ser enfrentada por
Durban, pois se tratava mesmo do cerne da conferência, isto é, o reconhecimento
das vítimas do racismo e as formas de reparação. Este tema envolvia diretamente
49
Ibidem.
50
Folha de São Paulo, 28/08/2001.
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Tolerância: notas contemporâneas 124
a escravidão negra e a situação atual dos países pobres vitimizados pelo tráfico de
escravos: os países africanos e também os africanos na diáspora, principalmente
nas Américas.
Segundo SANÉ (2002), houve quatro diferentes posturas sobre a reparação
das vítimas durante a Conferência de Durban. A primeira postura, liderada por
Senegal, era contrária às compensações financeiras e a favor da reparação ética e
histórica da memória e da dignidade das vítimas. Segundo tal postura, “seria
indecente pretender avaliar e recompensar monetariamente o sofrimento advindo
com tal tragédia” (SANÉ, 2002:02).
A segunda postura, liderada pela Nigéria, era contra as compensações
financeiras e a favor da reconciliação. Tal postura se preocupava em não reabrir
antigas feridas dos conflitos internos do próprio continente africano e suas
correlações com os africanos em diáspora.
A terceira postura, defendida por Togo, Cabo Verde e Haiti, era a favor da
anulação imediata da dívida externa dos países africanos e um apoio maciço dos
países ricos ao desenvolvimento da África e da América Latina. Tal postura
parecia ter o maior número de adeptos por indicar uma atitude conciliadora e
sensível à situação crítica dos países africanos. Defendeu-se nesta postura que
seria impossível calcular reparações financeiras e considerou-se a dívida externa
africana injusta tendo em vista que seus credores haviam sido beneficiados
historicamente pelo tráfico negreiro. A insistência nesta postura era de
“obrigação moral das nações ricas que se beneficiaram com a escravidão”
(SANÉ, 2002:04).
No entanto, a maioria dos países africanos defendia uma quarta postura: as
reparações materiais e financeiras. O argumento usado era que tal mecanismo já
havia sido empregado historicamente. A República Federal da Alemanha e os
bancos suíços haviam pagado reparações aos judeus. Os Estados Unidos pagaram
reparações aos japoneses e seus descendentes que habitavam o território
americano e foram perseguidos e presos durante a 2ª Guerra Mundial. Nesta
postura, argumentava-se ainda que segundo a maioria dos códigos civis e penais
das diferentes nações há um princípio claro de que qualquer ato que cause dano ao
próximo obriga o agressor a reparar o erro cometido. Esta postura não saiu
vitoriosa. Os países ricos temiam um sem fim de causas em tribunais e pedidos de
afro-descendentes por reparações impagáveis do ponto de vista prático e
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Tolerância: notas contemporâneas 125
financeiro. A União Européia, enquanto representante dos países do Velho
Mundo, estava diretamente envolvida na polêmica e, mais uma vez, conseguiu
impor sua posição. Assim, de acordo com a concessão da União Européia foi
aprovado em Durban um pedido de desculpas pela escravidão, o que de certa
forma foi considerado um avanço. Os países desenvolvidos assumiram
implicitamente uma obrigação moral de apoiar a África, porém não houve um
pedido oficial por parte da Conferência de Durban para que se perdoe a dívida
externa dos países africanos e nem a escravidão negra foi declarada como um
crime contra a humanidade, tal como a ONU já havia declarado o holocausto
51
.
A meu juízo, é fundamental ter presente tais disputas para se entender o
documento proclamado como Declaração de Durban
52
, até porque o informe
final não traz grandes novidades para a definição e/ou a prática da tolerância, mais
bem enfatiza questões tão ambíguas quanto inócuas, típicas de documentos
internacionais que são conseqüência de disputas diplomáticas muito acirradas.
Assim, a polêmica em torno de Durban é bem mais fecunda que o documento.
Um típico caso no qual os ânimos comunicam mais do que a letra morta. Não
obstante, o extenso informe produzido em Durban merece atenção.
A Declaração está dividida em duas grandes partes: (1) Questões Gerais e
(2) Programa de Ação. Ambas se dividem em cada um dos cinco temas centrais
propostos e apresentados anteriormente
53
. Quanto ao texto da Declaração é
importante destacar que ele não apresenta uma definição de tolerância. De fato, a
palavra “tolerância” só aparece quinze vezes entre os 341 parágrafos que
compõem as duas partes do texto. Já a expressão “intolerância correlata” aparece
mais de duas centenas de vezes. De certa forma, o texto revela que Durban foi
muito mais contra a intolerância racista do que a favor da tolerância enquanto
valor e atitude.
A idéia de tolerância perpassa tangencialmente todo documento como um
valor urgente e uma atitude necessária para a convivência pacífica entre os povos
e para a garantia de respeito às liberdades individuais e à igualdade de
oportunidades. Assim, o termo aparece sempre relacionado e listado a uma série
51
Cf. Folha de São Paulo, 07/09/2001.
52
Informe da Conferência Mundial Contra Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Outras
Formas de Intolerância Correlata. Doravante Declaração.
53
Em síntese: (1) origens e fontes do racismo; (2) vítimas de racismo; (3) medidas de prevenção,
educação e proteção; (4) medidas de reparação e (5) estratégias de igualdade.
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Tolerância: notas contemporâneas 126
de outros valores e atitudes, tais como: justiça, igualdade, respeito, diversidade,
direitos humanos, pluralismo, amizade e lealdade
54
.
Nas poucas vezes que o termo tolerância aparece no corpo da Declaração
ele vem sempre relacionado à educação, seja na parte sobre Questões Gerais, seja
no Programa de Ação:
Reconhecemos que a educação em todos os níveis e em todas as idades, inclusive
dentro da família, em particular a educação em direitos humanos, é a chave para a
mudança de atitudes e comportamentos baseados no racismo, discriminação racial,
xenofobia e intolerância correlata e para a promoção da tolerância e do respeito à
diversidade nas sociedades. Ainda afirmamos que tal tipo de educação é um fator
determinante na promoção, disseminação e proteção dos valores democráticos da
justiça e da igualdade, os quais são essenciais para prevenir e combater a difusão do
racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata. (ONU, 2001:
Questões Gerais, § 95).
Assim, a Declaração
Insta os Estados a, se necessário, introduzir e a reforçar os componentes anti-
discriminatórios e anti-racistas nos programas de direitos humanos dos currículos
escolares, desenvolvendo e melhorando o material didático, inclusive os livros de
história e outros livros didáticos, e a assegurar que todos os professores sejam bem
formados e devidamente motivados para moldar atitudes e padrões
comportamentais baseados nos princípios da não-discriminação, respeito e
tolerância mútuos. (ONU, 2001: Programa de Ação, § 129).
Há uma menção no documento que merece destaque com relação ao
conceito de tolerância. No parágrafo 193 do Programa de Ação, afirma-se que o
Alto Comissariado para os Direitos Humanos se empenhará em “promover uma
cultura de tolerância para aumentar o nível de conscientização sobre o flagelo do
racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata”. A expressão
“cultura de tolerância” de certa forma é nova tendo em vista a produção
acadêmica avaliada até este momento do trabalho. De Erasmo de Rotterdam a
Michael Walzer, ela ainda não havia aparecido. Talvez, seja mais uma expressão
que nos permite a linguagem sem maiores significações efetivas. Talvez indique
uma postura mais integradora do valor da tolerância. Talvez indique um conjunto
de valores e atitudes que articulados e interligados criassem uma maneira de
compreender o mundo e de atuar nele que fizesse transparecer a tolerância. Difícil
deduzir uma definição precisa, já que o documento a cita uma única vez e não a
explica.
54
Veja os parágrafos 49, 83, 91 e 92 das Questões Gerais e os parágrafos 30, 58, 74, 117, 121,
126, 129, 132, 144, 193 e 220 do Programa de Ação. (ONU, 2001).
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Tolerância: notas contemporâneas 127
Enfim, creio que não seria honesto afirmar que a Conferência de Durban foi
um fracasso político, tendo em vista o alcance de suas discussões e alguns
avanços efetivos. No caso brasileiro, a maior expressão de Durban foram as
políticas de ação afirmativa, em especial as cotas para negros e indígenas nas
universidades e empresas públicas. A Comissão Brasileira para Durban liderada
pelo Itamaraty foi a Durban com esta proposta, confirmada a nível internacional
como uma possibilidade de reparação às vítimas históricas da discriminação
racista. De 2001 até hoje, ainda que intensamente criticada, a proposta se
consolidou e está em andamento em diferentes universidades públicas brasileiras.
Muito ainda se tem que acompanhar para avaliar o alcance e a eficácia de tais
medidas no contexto brasileiro e certo estou que este não é o meu objetivo neste
trabalho.
Assim, registrada a contribuição da ONU para colocar o conceito e a prática
da tolerância na pauta da agenda política internacional, parto para uma outra
agenda, talvez sem a mesma notoriedade, mas sem dúvida um pouco mais precisa
no trabalho de definir, distinguir e delimitar conceitos. Trata-se da agenda de
discussão dos filósofos ibero-americanos em torno do conceito de tolerância.
2.2.2
A filosofia discute a tolerância: parecer de um congressista em Lima.
Os dois congressos – XV Congresso Interamericano de Filosofia e II
Congresso Ibero-Americano de Filosofia – celebrados conjuntamente na cidade
de Lima, em janeiro de 2004, foram convocados pela Sociedade Interamericana de
Filosofia e a Sociedade da Enciclopédia Ibero-Americana de Filosofia, em
colaboração com as sociedades de filosofia de seus países membros. Os
congressos foram sediados na Pontifícia Universidade Católica do Peru e
receberam durante cinco dias mais de seiscentos participantes de 26 países, com
forte presença de participantes dos países latino-americanos, ainda que a
representatividade entre os convidados não tenha sido correspondente a dos
participantes, como indicarei a seguir.
O Congresso de Lima
55
teve em sua programação basicamente dois tipos de
apresentações: seções simultâneas e mesas plenárias. Para as grandes
55
Doravante tratarei os dois congressos no singular como se tivessem sido um. Como de fato
foram. E os identificarei abreviadamente como Congresso de Lima.
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Tolerância: notas contemporâneas 128
conferências e as mesas de debate, ambas identificadas na programação como
mesa plenária, foram convidados os pensadores mais reconhecidos no campo.
Nestas conferências e debates estavam, por exemplo, Enrique Dussel (México),
Gustavo Gutiérrez (Peru), Ernesto Garzón Valdés (Argentina), Adela Cortina
(Espanha), Gianni Vattimo (Itália), David Crocker (USA) e Martha Nussbaum
(USA), entre outros.
As seções simultâneas reuniram diferentes tipos de comunicações. Havia os
trabalhos submetidos e selecionados pelo comitê científico que foram organizados
em seções temáticas, tais como: Ética, Filosofia Política, Filosofia da Educação,
Filosofia e Literatura, Filosofia da Ciência, Filosofia Latino-Americana, Filosofia
da Libertação entre outras. Nas seções simultâneas também se celebraram
reuniões de associações específicas dentro da área, tais como: Associação Ibero-
Americana de Fenomenologia e Hermenêutica, a Sociedade Internacional de
Platonistas e a Associação Sul-Americana de Filosofia e Teologia Intercultural.
Foram realizados também dentro do espaço das seções simultâneas alguns
simpósios e encontros que se assomaram ao Congresso de Lima como evento
mais amplo e capaz de aglutinar mais participantes. Assim celebraram-se o III
Simpósio Ibero-Americano sobre Republicanismo, o Simpósio Gadamer em
Diálogo e o II Simpósio sobre Ética e Educação em Valores. Além disso, foram
realizadas sessões de lançamento de livros e revistas.
O Congresso de Lima funcionou oficialmente em três línguas: espanhol
56
,
português e inglês. Os dois primeiros idiomas como não podiam deixar de ser
num congresso ibero-americano e o terceiro como língua dominante no mundo e
cada vez mais nos espaços acadêmicos. No entanto, a língua de trânsito no
congresso foi realmente o espanhol (ou castelhano). E para um congressista luso-
falante, como eu, o que causou uma grande estranheza foi um total ocultamento da
minha língua materna, que é indiscutivelmente uma língua ibérica.
Somente com o intuito de exemplificar, reporto-me à distribuição dos
quarenta e quatro convidados para as treze mesas plenárias: dezessete eram
latino-americanos hispano-hablantes (cinco mexicanos, cinco peruanos, três
argentinos, dois chilenos e dois colombianos), treze eram espanhóis, doze eram
56
Estou ciente de que a nomenclatura espanhol ou língua espanhola pode causar certo incômodo e
de que seria mais prudente dizer castelhano, já que se trata da língua original de Castilha e de
que Espanha possui outras três línguas oficiais: galego, euskara e català (incluindo valencià,
ibizenco e mallorquí).
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Tolerância: notas contemporâneas 129
estadunidenses, dois eram do Brasil e nenhum de Portugal. Inclua-se, no entanto,
que um dos convidados do Brasil era um professor croata, naturalizado brasileiro,
com formação na Bélgica e Alemanha e o outro teve sua conferência anunciada
em inglês
57
. Em porcentagens, os convidados estavam lingüisticamente
distribuídos da seguinte forma: espanhol (68%), inglês (29%) e português (3%).
De fato, era no mínimo difícil para um luso-falante sentir-se identificado no
Congresso de Lima, ainda mais se considerando que Espanha e Estados Unidos
foram os países mais presentes com representantes nas mesas plenárias. No
mínimo, há que reconhecer que o Congresso de Lima não refletiu adequadamente
a diversidade existente no contexto ibero-americano, especialmente considerando
a América Latina, e esteve mais yanquizado do que se poderia esperar.
Ainda a título de exemplificação, poderia alegar que a distribuição dos
convidados não correspondia à proporcionalidade lingüística dos trabalhos
aprovados pelo comitê científico para apresentação. Considerando os 385
trabalhos apresentados, 321 foram anunciados em espanhol (83%); 45 em inglês
(12%) e 19 em português (5%). No caso do português, a proporcionalidade se
mantém bem próxima, mas considerando-se o inglês, a proporcionalidade entre os
convidados acresce em 140% em relação ao número de trabalhos apresentados.
No mínimo, estes números nos fazem pensar, mais uma vez, na dependência
intelectual dos pensadores latino-americanos com relação aos estadunidenses e
europeus, neste caso, os espanhóis e curiosamente um total ocultamento do que se
passa em Portugal.
Para além dos aspectos organizacionais e dos aspectos monocórdios e
homogeneizadores, importa, mais do que tudo, buscar identificar a contribuição
específica dos congressistas reunidos em Lima à recontextualização do conceito
de tolerância. O Congresso de Lima, de acordo com sua programação, contou com
429 trabalhos: 44 eram trabalhos de convidados para as mesas plenárias e 385
trabalhos se espalharam entre as seções temáticas, os simpósios e as reuniões das
diferentes associações e sociedades.
Os trabalhos não contavam com resumo (abstract). Sendo assim, foram
levantadas todas as possibilidades de relação com o meu tema de pesquisa a partir
57
Não posso confirmar, no entanto, se tal conferência foi pronunciada em inglês ou português já
que não estive presente na referida mesa plenária e também porque o trabalho deste convidado
brasileiro não foi disponibilizado no CD-ROM do Congresso.
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Tolerância: notas contemporâneas 130
dos títulos para que as chances de obter um material pertinente fossem
aumentadas. No entanto, dentre os 429 trabalhos somente 74 foram inicialmente
identificados como diretamente relacionados com o tema da tolerância ou com
alguns dos interesses desta pesquisa, tais como a educação para a tolerância ou
referências a Voltaire, Bobbio, Popper ou Rawls.
Esta seleção foi necessária tendo em vista que muitos trabalhos não
anunciavam através dos títulos nenhuma referência mais direta com o tema da
tolerância, apesar da temática central do congresso ter sido esta. Dos 74 trabalhos
inicialmente identificados, 51 foram localizados no CD-ROM do Congresso de
Lima. Os demais não estavam disponíveis nem mesmo na página virtual do
congresso
58
. Entre os 51 trabalhos, depois de uma análise mais cuidadosa, através
dos subtítulos e das referências bibliográficas, cheguei ao número de 45 trabalhos
relacionados ao meu interesse de pesquisa. Sendo assim, dos 429 trabalhos
inicialmente anunciados no Congresso de Lima, que estava supostamente
dedicado inteiramente ao tema da tolerância, cheguei a um número – nada
desprezível – de 45 trabalhos, mas que, no entanto, representa pouco mais de 10%
dos trabalhos apresentados inicialmente.
Tomando estes 45 trabalhos como ponto de partida, busquei identificar
algumas categorias orientadas pelo meu interesse de pesquisa, mas também pela
riqueza que se apresentou a partir do próprio material. Neste sentido, cheguei a
quatro categorias, a saber: (a) a definição de tolerância; (b) o embate entre
tolerância e intolerância; (c) a relação entre pluralismo e tolerância e (d) as
limitações da tolerância.
(a) O que é tolerância?
A primeira categoria foi a que surgiu com mais força do material analisado,
além de ser uma temática fundamental para meu objetivo de pesquisa. Seria
bastante ousado afirmar que houve uma grande confluência ou algum consenso
significativo entre os diferentes congressistas sobre o que vem a ser tolerância ou
mesmo que houve algum predomínio na utilização das fontes bibliográficas com o
58
Dentre os 23 trabalhos que não foram localizados, registro aqui especialmente as significativas
ausências dos trabalhos de Adela Cortina (Universidade de Valencia), Victoria Camps
(Universidade Autônoma de Barcelona), Gianni Vattimo (Universidade de Turim) e de Gustavo
Guttiérez (Pontifícia Universidade Católica do Peru) devido a riqueza de suas conferências no
Congresso de Lima e do reconhecimento de tais pensadores para o campo filosófico e latino-
americano.
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Tolerância: notas contemporâneas 131
objetivo de realizar tal tarefa. Neste sentido, o conceito de tolerância aparece
definido com uma diversidade considerável de possibilidades. Isso se deu
principalmente pelo fato de que os congressistas realizaram abordagens a partir de
distintos âmbitos filosóficos, principalmente a ética, a política e a epistemologia, e
também a partir de diálogos com outras áreas de conhecimento, tais como: a
psicanálise, a lingüística, a literatura, a antropologia e a teologia. Essa diversidade
me possibilitou identificar dois traços do Congresso de Lima: (1) a riqueza de
abordagens sobre o tema da tolerância e (2) um caráter um tanto difuso na
construção do conceito.
As referências bibliográficas encontradas também são bem variadas. Os
autores mais recorrentes, dentro do universo de 45 trabalhos, foram Immanuel
Kant e John Rawls, com respectivamente sete e seis trabalhos diretamente
referidos às suas obras. Essa pequena vantagem quantitativa para os dois autores
só me confirmou duas hipóteses que não podem ser vistas como novidades: (1)
Kant continua sendo um referencial básico no campo da filosofia moral e (2) o
conceito de tolerância é tradicionalmente abordado a partir de uma perspectiva
liberal, daí as referências a John Rawls. Dentro dos 45 trabalhos, quatro
congressistas recorreram diretamente ao pensamento de Karl Popper e outros três
ao pensamento de Habermas, marcando também um pequeno predomínio da
filosofia da ciência e da ética discursiva. Além desses, houve referências a
Aristóteles, Locke, Voltaire, Marx, Nietzsche, Heidegger, Arendt, Kuhn, Levinas,
Rorty e Derrida, entre tantos outros. Cumpre registrar que dois convidados
também apareceram com referências bibliográficas de outros trabalhos que não os
seus próprios. Foram os casos de Carlos Thibeaut
59
e Adela Cortina
60
, ambos com
três referências.
É interessante notar que um movimento comum entre alguns trabalhos foi o
esforço de dizer o que não é tolerância. Como o conceito é polissêmico e se presta
a diferentes abordagens, alguns congressistas partiram para um exercício de
afastar do campo de significações do termo algumas costumeiras e equivocadas
interpretações. CORDUA (2004:06), por exemplo, defendeu que a tolerância não
59
Professor da Universidade Carlos III (Madrid) e autor do livro De la tolerancia (Madrid: Visor
Editorial, 1999).
60
Catedrática de Filosofia Moral e Política da Universidade de Valencia. Sobre a autora veja em
especial o item (c) Pluralismo, diferença e tolerância deste apartado e o Capítulo 4 deste
trabalho.
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Tolerância: notas contemporâneas 132
é mera passividade ou omissão. TUBINO (2004:03) e GARZÓN (2004:02)
esforçaram-se por explicar porque a tolerância não pode ser confundida com a
indiferença. Para GARZÓN (2004:10), tolerância também não pode ser vista
como aceitação de tudo, tampouco como ato de suportar algo indesejado. A
tolerância tampouco poderia ser confundida com uma situação de anarquia ou
falta de regras onde tudo pode (GARZÓN, 2004:05; BELLO, 2004:06).
Nesta perspectiva, vale destacar os trabalhos de Carla Cordua e Ernesto
Gárzon, que convergiram em afirmar que suportar significa um tipo de aceitação
passiva de algo indesejado por total falta de possibilidades ou de poder efetivo
para intervir na realidade. A atitude de suportar se dá de forma mais explícita
quando a maneira de viver de um grupo com mais poder (político, econômico ou
social) é agressiva ou ofensiva à concepção de vida de outro grupo com menos ou
nenhum poder e este por sua vez não tem como reagir a tal situação. Quando
alguém ou algum grupo com pouco ou nenhum poder é obrigado a aceitar algo
que lhe é imposto por total impossibilidade de reação isso não pode ser
considerado uma situação de tolerância. De fato, é submissão ou resignação. Pode
ser inclusive a melhor ou a única estratégia possível para um determinado
momento a fim de se garantir a preservação do grupo, pois, como já sabemos, a
intolerância é assassina em seu ódio à diversidade alheia. Sendo assim, a
tolerância se expressaria na opção pela não intervenção na maneira de viver de
outros ainda que tal intervenção fosse uma alternativa efetivamente possível. A
tolerância como não intervenção voluntária se dá devido a uma consciência de que
o outro tem todo direito de viver e se expressar à sua maneira. Nesta perspectiva,
CORDUA (2004) e GÁRZON (2004) estão em sintonia com a definição de
Michael Walzer sobre resignação e sua diferenciação da tolerância
61
.
De acordo com o material levantado, a tolerância pode ser definida
inicialmente num ponto de vista assertivo tanto como virtude (TUBINO, 2004:02)
quanto como uma atitude (DUSSEL, 2004:01). Para Fidel Tubino, a tolerância é a
virtude pública por excelência na construção de democracias multiculturais. A
tolerância enquanto virtude é entendida também como o valor que orienta a ação
política em sociedades plurais e democráticas (TUBINO, 2004:02; CROCKER,
61
Refiro-me às duas primeiras posturas apresentadas por WALZER (1999:16-17) como
interpretações equivocadas sobre a tolerância, a saber: (1) aceitação resignada da diferença e (2)
indiferença bondosa em relação aos outros. Veja página 105, deste trabalho.
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Tolerância: notas contemporâneas 133
2004:05). Já a tolerância enquanto ação é considerada por Enrique Dussel como
uma “atitude mínima” que a humanidade foi aprendendo a desenvolver tanto no
campo político quanto no campo ético.
No entanto, a idéia mais recorrente que aparece na definição do conceito
entre os congressistas de Lima é a de tolerância – seja virtude ou atitude – como
fundamento racionável para uma convivência pacífica numa sociedade plural ou
mesmo dividida por grupos opostos. Assim, para HOYOS (2004:03), a tolerância
se refere a acordos mínimos a fim de se evitar a violência como fruto da
intolerância. Para o autor, a tolerância é uma estratégia pacificadora e mais do que
isso é uma “solução discursiva de conflitos” entre grupos de interesses diferentes
ou opostos (HOYOS, 2004:08).
Nesta mesma linha, MUGUERZA (2004:04) defende que, em sociedades
marcadas pela diversidade, a tolerância é o fundamento para a paz e a harmonia
social. Para o autor, a tolerância regula uma situação de contradição bastante
comum em sociedades plurais que ele denomina de concórdia discorde, ou seja, a
tolerância permite “a los ciudadanos alcanzar un acuerdo razonable sobre una
concepción de lo justo que, por así decirlo, se superponga a las diversas, y
presumiblemente discordantes concepciones civiles del bien privadamente
sustentadas por aquéllos, lo que convierte a tal acuerdo o tal consenso en una
forma de tolerante concórdia discorde”. (MUGUERZA, 2004:02).
Para DUSSEL (2004:04-05), a tolerância se caracteriza por ser um tempo de
espera, um tempo de argumentação, um tempo no qual grupos de concepções
diferentes ou opostas abrem a possibilidade para o diálogo e para o intercâmbio de
concepções sobre a vida, a verdade, o justo e o bem. É o tempo de uma opção
racional, que nega à negação do outro e que propõe o diálogo como saída. É
possível que depois deste tempo de argumentação e espera se instale o tempo da
intolerância, mas a aposta é sempre que venha a harmonia, a convivência pacífica,
ainda que seja a contraditória concórdia discorde apresentada por Javier
Muguerza.
Na mesma perspectiva trabalha HOYOS (2004:11), ao reconhecer que a
tolerância tem duas funções centrais: (1) solucionar racionalmente conflitos de
interesses e (2) buscar bases racionais para se estabelecer o bem comum a partir
de consensos diferenciados ou opostos. Parafraseando Javier Muguerza e
inspirado em Guillermo Hoyos, ousaria dizer que a tolerância também poderia ser
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Tolerância: notas contemporâneas 134
entendida como um consenso de dissensos. Também MIRÓ QUESADA
(2004:10) defende a tolerância como possibilidade e garantida para uma
convivência pacífica, argumentando que a tolerância é a saída racional ou “la
solución a favor de la razón”, tendo em vista as inevitáveis situações conflitivas
vividas por nossas sociedades contemporâneas. Assim, poderia concluir que, para
estes congressistas, a tolerância é uma opção racional de busca pacífica da
convivência, a mais harmoniosa possível, sem, no entanto, negar os conflitos
inevitáveis presentes nesta busca.
TUBINO (2004) afirma que historicamente foi a tolerância, enquanto
argumento racional, que possibilitou a convivência entre grupos diferentes e
opostos, tal como foi o caso de judeus, mulçumanos e cristãos na Península
Ibérica entre os séculos IX a XIII. No entanto, para o autor, a tolerância é mais do
que uma base para a convivência social pacífica, ela é o fundamento da relação
com o outro: “La tolerancia es más que el racional respeto a la diferencia, es el
reconocimiento del otro como ciudadano igual en la diferencia; es, en una
palabra, la condición de posibilidad de la convivência intercultural” (TUBINO,
2004:02). Daí a importância da tolerância como movimento de inclusão do outro,
de abertura ao diferente e não como indiferença condescendente como
equivocadamente se pode imaginar (TUBINO, 2004:03).
Outro consenso entre os congressistas foi em torno da questão
epistemológica. Aqui se encontram os trabalhos que utilizaram Popper como
referencial teórico e outros que sem citá-lo argumentaram a favor da tese da
falsificabilidade. HOYOS (2004:04), por exemplo, defende claramente uma
“epistemologia tolerante”, que buscaria não absolutizar a verdade. TUBINO
(2004:04) alerta para a necessidade de reconhecer o caráter incerto de nossas
próprias crenças e verdades, ainda que científicas.
DUSSEL (2004:02) assume postura parecida com a de Norberto Bobbio,
apresentada anteriormente. Para o professor da Universidade Autônoma do
México (UNAM), é possível defender a tolerância desde uma racionalidade
universal, afastando-se do ceticismo e do relativismo. Para isso, Enrique Dussel
faz uma distinção entre “posse da verdade” e “pretensão da validez”. A primeira
situação marca o dogmatismo e nos leva à intolerância epistemológica. A segunda
foge tanto do dogmatismo quanto do relativismo e do ceticismo, pois não nega a
verdade nem a postula como única e inquestionável. A pretensão de validez busca
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Tolerância: notas contemporâneas 135
uma situação de diálogo e de razão intersubjetiva a fim de fundamentar um
pensamento como válido e não como verdade absoluta que deva ser imposta.
Outras concepções de tolerância também aparecem no material analisado,
mas com menor confluência. LOPARIC (2004:24), por exemplo, defende a
tolerância como expressão da maturidade humana. Em diálogo com a psicanálise,
o autor defende a tolerância numa perspectiva existencial, como a capacidade de
lidar com as dificuldades da vida que surgem ao longo do processo de
amadurecimento. Assim, defende a tolerância das tensões” ou a “tolerância das
contradições” inerentes à vida como um processo que todos vivenciamos no
caminho de nos tornarmos humanos. (LOPARIC, 2004:26-27).
Já GÁRZON (2004:01) apresenta a tolerância como um processo de
flexibilização ou de proibição entre o “sistema normativo básico” e o “sistema
normativo justificante”. O primeiro é o sistema de regras mais simples e
cotidianas, tais como não jogar lixo no chão, não mentir ou não roubar. O
segundo, o justificante, é o que apresenta a motivação do primeiro, ou seja,
justifica-o. Neste sentido, o segundo é mais amplo e funciona como
fundamentação do primeiro. No entanto, quando estes dois sistemas normativos
entram em desconexão é preciso uma “regra de tolerância” para ajustar as
contradições. Por exemplo, posso tolerar que alguém roube se for com a intenção
de salvar uma vida. Assim, a tolerância diria respeito àquilo que não é permitido
no sistema normativo básico, mas que em confrontação com o sistema normativo
justificante deveria ser flexibilizado, tolerado. Isso se dá também com as
proibições. Imaginemos que o sistema normativo básico permita maus-tratos dos
homens sobre as mulheres – realidade não muito estranha e nem totalmente
reprovada ainda hoje em nossa sociedade
62
. Ora, tal realidade pode ser combatida
ou proibida através de um recurso ao sistema normativo justificante a favor da não
violência e do respeito à dignidade humana. Assim, algo que é comumente
tolerado pode ser definitivamente proibido através de um constrangimento moral e
até mesmo da formulação de novas leis com punições jurídicas mais severas aos
agressores. Com esse caso, pode-se perceber como algo até então tolerado passa a
ser considerado como algo intolerável. Para GARZÓN (2004:06), em geral,
podemos ampliar nossa compreensão sobre o que é certo ou errado recorrendo ao
62
A título de ilustração recordo o antigo e recorrente ditado popular Em briga de marido e mulher
ninguém mete a colher, ou seja, arena livre para os agressores.
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Tolerância: notas contemporâneas 136
sistema normativo justificante para flexibilizar ou proibir incorreções do sistema
normativo básico. Assim, a tolerância se amplia através do deslocamento que os
melhores argumentos realizam sobre os piores no que diz respeito à maneira de se
comportar e conviver. Nesta perspectiva e ao contrário de outros congressistas,
GARZÓN (2004:06) defendeu também que não é necessário “colocar-se no lugar
do outro” para buscar a compreensão da tolerância, tampouco relacioná-la com a
temática da aceitação das diferenças. Para o professor argentino, a tolerância deve
basear-se na força de sua razoabilidade, deslocando os argumentos mais fracos
para fora do sistema normativo básico. Assim, por exemplo, no campo político-
ideológico, os diferentes grupos disputam o poder baseados na força dos
argumentos. Um grupo tolera o outro não por pôr-se no lugar de seu adversário ou
por aceitar sua diferença política ou ideológica, mas tão somente por acreditar que
é melhor cada grupo poder expor democraticamente seus pensamentos do que um
grupo impor sua concepção a todos. Assim, a democracia se mantém pela força de
seus argumentos como melhor modelo para se organizar a sociedade e não pelo
fato daqueles que disputam o poder estarem mais ou menos abertos a aceitar as
diferenças de seus adversários. (CROCKER, 2004:07).
A partir do material analisado, poderia recolher ainda outras tantas
definições de tolerância, mas que nos levariam por diferentes caminhos, que no
momento me parecem pouco adequados para o que objetiva esta exposição.
Assim, poderia discutir com Carlos Thiebaut a diferença entre tolerância positiva
e negativa; poderia distinguir com Miguel García-Baró o tema da tolerância como
disposição inata ou construção social; poderia argumentar pela tolerância
enquanto discurso com Juan Ayala ou a partir das diferenças étnicas e de gênero
com José Bermudo e Angela Sierra, entre tantas outras possibilidades, que, desta
vez, não serão exploradas, pelos limites dos objetivos aqui propostos.
(b) A intolerância e sua superação.
A oposição entre tolerância e intolerância também esteve presente entre
vários trabalhos dos congressistas de Lima e se constituiu a segunda categoria
elaborada a partir dos trabalhos analisados. MUGUERZA (2004:01), por
exemplo, inicia sua comunicação reconhecendo que “la tolerancia está de moda”.
Porém, o autor acrescenta: “la intolerancia, ciertamente, también”. De fato,
vários congressistas admitiram que a intolerância é uma realidade premente e
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Tolerância: notas contemporâneas 137
definidora da própria tolerância. Segundo BELLO (2004:04), se tudo fosse
tolerado, a luta pela tolerância e o esforço por conceituá-la não teria sentido. Nesta
perspectiva, é pela intolerância que percebemos mais claramente o sentido e os
limites conceituais do conceito chave discutido no Congresso de Lima
(NUSSBAUM, 2004; RIVERA, 2004; DÍAZ, 2004). Sendo assim, o material
analisado confirma e aprofunda a minha hipótese inicialmente apresentada nas
justificativas desse trabalho, ou seja, a tolerância surge e se desenvolve tanto
como urgência e necessidade quanto como resposta à intolerância assassina.
DUSSEL (2004:01) e LOPARIC (2004:20) concordam em definir
intolerância como a conjugação ou articulação entre dois elementos: (1) teoria
dogmática da verdade e (2) poder político ou econômico capaz de aplicar ou
impor tal teoria. Isso não significa afirmar que todo dogmático é intolerante e nem
tampouco que qualquer um que exerça poder político ou econômico o seja
(NUSSBAUM, 2004:03). Mas, sem a combinação destes dois elementos a
intolerância não seria realizável. O intolerante é aquele que pensa possuir “a”
verdade e se sente impulsionado, pela mesma verdade, a impô-la a outros.
(MATE, 2004:05; MACKENNA, 2004:03; IRIBARNE, 2004:04). Além disso, o
intolerante tem efetivamente poder ou alguma possibilidade de efetuar tal
empreitada.
No entanto, a intolerância não é exatamente um fenômeno de sociedades
mais ou menos homogeneizadas. Ela é um fenômeno uniformizador, eliminador
da diversidade, mas que aflora em ambientes sociais nos quais as diferenças se
manifestam com maior intensidade. A intolerância é sempre um acontecimento
das sociedades multiculturais ou pelo menos tem sido uma realidade mais
presente nestas sociedades (TUBINO, 2004; CORDUA, 2004; BERMUDO,
2004). Por isso, muitos congressistas em Lima convergiram em afirmar que a
tolerância deve ser uma preocupação entre os pensadores e os atores sociais
atuantes no contexto da América Latina, continente marcado tanto pela riqueza
das diferenças culturais quanto pela crueza das desigualdades sociais (GAMPER,
2004; DARGENT, 2004; RIPA, 2004; DÍAZ, 2004; BACIGALUPO, 2004).
É difícil desassociar o tema da intolerância da história das três maiores
religiões monoteístas (LOPARIC, 2004:09). Em diferentes momentos históricos, a
intolerância foi o que pautou as relações entre judeus, cristãos e mulçumanos. É
óbvio que tal fenômeno estava dependente de quão dogmático se manifestasse o
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Tolerância: notas contemporâneas 138
pensamento teológico dessas religiões e de quão poderosas estivessem as
instituições religiosas num ou noutro determinado momento. Dogmatismo e poder
aparecem, mais uma vez, como a base da intolerância religiosa (MATE, 2004;
MIRÓ QUESADA, 2004; ROBLEDO, 2004).
MATE (2004:07) lembra que no caso cristão, especialmente no Medievo e
inícios da Modernidade, a intolerância se dava com mais rigor dentro do próprio
Cristianismo do que na relação com o Islã ou com o Judaísmo. As perseguições
aos hereges ou as guerras entre protestantes e católicos foram mais veementes e
quiçá mais sangrentas que as Cruzadas ou as Guerras da Reconquista. Neste
sentido, tanto THIEBAUT (2004) quanto MIRÓ-QUESADA (2004) argumentam
que a defesa de um espaço público laico ou de um Estado separado da religião é
fundamental para se garantir um ambiente de tolerância dentro das religiões, entre
as diferentes religiões e entre estas e as diferentes expressões de ateísmo. Um
Estado religioso não é, necessariamente, um Estado intolerante. Porém, as
possibilidades de tal fenômeno ocorrer são grandes, já que o Estado é âmbito do
poder e a religião, especialmente as que se baseiam em verdades reveladas, não
costumam historicamente alimentar entre seus pensadores e teólogos uma
epistemologia da tolerância ou ao menos uma epistemologia da falsificabilidade à
maneira de Popper. Assim, mais uma vez, a junção de fé dogmática e poder
político ou econômico aparecem como uma combinação obscura capaz de
propiciar a intolerância religiosa.
Ainda na questão da intolerância religiosa, mas numa perspectiva oposta,
SHIEH (2004) e ROBLEDO (2004) concordam ao indicar que o surgimento da
tolerância enquanto combate à intolerância reuniu dois troncos fundacionais do
ocidente: Israel (fé) e Atenas (razão). A tolerância foi e é baseada em argumentos
morais e políticos que retomam tanto a tradição racionalista quanto fideísta do
ocidente, mas precisamente o racionalismo iluminista e a tradição moral judaico-
cristã. A articulação com um terceiro tronco fundacional do ocidente – Roma
(poder) – pode ter sido, a meu ver, a articulação necessária para que a fé ou a
razão, em seus dogmatismos, se tornassem também intolerantes. No entanto,
foram as raízes iluministas e judaico-cristãs que ofereceram os argumentos mais
sólidos na construção do conceito e na luta pela tolerância (NUSSBAUM, 2004;
MYERS, 2004), como também já demonstrado no capítulo anterior deste trabalho.
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Tolerância: notas contemporâneas 139
No entanto, hoje, nas sociedades latino-americanas, a intolerância se
manifesta muito mais a partir de outras diferenças que não são tão somente as
religiosas. O conflito é pela não homogeneização das identidades, ou seja, pela
defesa ao direito à diferença, que passa por questões de etnia, de gênero, de
orientação sexual, de linguagem, de gerações, de pertencimentos, de classe social
etc. (SIERRA, 2004; AYALA, 2004; BUGALLO, 2004). E sobre tal situação os
congressistas de Lima estiveram especialmente atentos, relacionando, sobretudo,
os conflitos em torno das identidades culturais com a história de colonização, os
processos políticos autoritários e as desigualdades sociais que marcam e
identificam o contexto latino-americano (GONZÁLEZ, 2004; DARGENT, 2004;
RIPA, 2004; DÍAZ, 2004; BACIGALUPO, 2004).
Assim, os fenômenos intolerantes indicariam não só os limites conceituais
da tolerância e sua motivação mais profunda, mas também articularia elementos
políticos, históricos e econômicos. Além dos aspectos conceituais, a intolerância
enquanto fenômeno cobra especial atenção do pensamento latino-americano,
principalmente no que diz respeito à política, à ética e aos processos de construção
de identidades, tema que, de certa forma, se articula e anuncia a próxima categoria
surgida da análise dos trabalhos do Congresso de Lima.
(c) Pluralismo, diferença e tolerância.
A terceira categoria retirada dos trabalhos analisados retoma tanto a luta
contra a intolerância em sua defesa pela riqueza das diferentes identidades
culturais quanto se relaciona ao tema da convivência pacífica, enquanto uma das
definições de tolerância apresentada na primeira categoria. Neste sentido, importa
começar destacando a idéia de “consenso entrecruzado” (TUBINO, 2004:14;
CAMACHO, 2004:09) ou “consenso de mínimos entrecruzados” (HOYOS,
2004:15) como base para a convivência pacífica numa realidade plural.
A meu juízo, a concepção de consenso entrecruzado é uma proposta que
visa atender a realidade de concórdia discorde, ou seja, uma proposta que visa
estabelecer mínimos de consenso para uma convivência humana digna tendo em
vista a pluralidade de projetos de vida e significação do mundo e até a oposição
entre eles. Esta questão será inicialmente indicada aqui, mas melhor aprofundada
no Capítulo 4 deste trabalho, tendo em vista que se trata de um dos cernes da
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Tolerância: notas contemporâneas 140
proposta de Adela Cortina quanto à articulação de éticas de mínimos e éticas de
máximos.
De fato, os congressistas que abordaram tal problemática se basearam,
explícita ou implicitamente, tanto na obra de John Rawls quanto na de Adela
Cortina. A própria filósofa de Valencia, presente em Lima naquele verão de 2004,
reportou-se à temática do pluralismo e à necessidade de se estabelecer um
consenso entrecruzado, ou como ela prefere denominar: uma ética mínima, para
que se possa estabelecer uma convivência justa e digna em sociedades pluralistas.
Por pluralismo se pode reconhecer tanto uma realidade quanto um projeto.
Há sociedades que são multiculturais e desejam ser assim. Não se trata de uma
constatação apenas, mas de uma aposta de como melhor viver. (CAMACHO,
2004). HOYOS (2004:08) afirma que o reconhecimento de um pluralismo
valorativo – pluralismo enquanto projeto – é um dos fundamentos para o conceito
de tolerância e para o estabelecimento de sistemas morais, políticos ou religiosos
tolerantes:
El reconocimiento de que no es razonable ser obligado a compartir determinada
cosmovisión o principio omnicomprensivo porque no es justo obligar a alguien a
creer en lo que no cree, puso de manifiesto la superioridad del principio de
autonomía reconocido recíproca y universalmente.
De fato, o pluralismo pode ser reconhecido como a diversidade de doutrinas
compreensivas de bem – para usar a expressão de John Rawls – mas, há que se
reconhecer que o pluralismo se dá também pela diversidade de identidades, ou
seja, pela diversidade de existir, de estar e ser no mundo e não só de compreendê-
lo. É neste sentido, que alguns congressistas defenderam a superação do
formalismo rawlseano para entender o pluralismo no mundo da vida, da existência
real e concreta de seres humanos plurais (TUBINO, 2004; THIEBAUT, 2004).
Carlos Thiebaut defende, por exemplo, que o pluralismo é uma característica que
se manifesta no espaço público e é no espaço público que somos chamados a ser
tolerantes com a diferença, pois é no espaço público que as diferenças se
entrecruzam em relações desiguais de poder. Assim, os diferentes e despossuídos
de poder se vêem mais ameaçados do que os diferentes – e por vezes minoritários
quantitativamente – mas possuídos de poder. THIEBAUT (2004:05), então,
argumenta a favor do pluralismo em defesa da diferença, não porque esta seja
sempre e necessariamente uma riqueza, mas porque há diferenças que são
vulneráveis. O autor defende que o critério de defesa das diferenças no espaço
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Tolerância: notas contemporâneas 141
público seja a vulnerabilidade que uma diferença sofra e não por ela ser
necessariamente uma riqueza. Afinal, nem toda diferença é riqueza. Poderíamos
compreender o racismo ou o sexismo como uma riqueza? Seriam doutrinas
compreensivas dignas de uma defesa no espaço público?
TUBINO (2004) também argumenta a favor de um espaço público plural e
tolerante. No entanto, baseia-se numa “razón pública” ou no “uso público de la
razón”. Segundo o autor, o equívoco da razão pública numa perspectiva liberal foi
acreditar que o espaço público deveria ser neutral ou necessariamente laico, o que
seria impossível e enganoso, além de intolerante com aqueles que não optassem
ser neutrais ou laicizados. No mesmo sentido, HOYOS (2004:14) defende um
“pluralismo razonable” que seja expressão pública da razão no “reino de las
diferencias” e argumenta que compreender e respeitar as diferenças de outras
culturas não significa que se deva sempre identificar-se com elas, o que traria uma
margem considerável de conflitos. TUBINO (2004:09) defende, por sua vez, que
o uso público da razão deve nos levar a ver e a defender um espaço público plural,
bem como um Estado multicultural. Para o professor peruano, não se trata de
proibir que o espaço público seja dominado por uma cultura em particular – coisa
que nem mesmo a razão liberal no reino das diferenças alcançou fazer – mas de
promover que o espaço público seja plural.
El Estado laico se asemeja al Estado multicultural en tanto que ambos Estados
evitan tomar partido por alguna cultura no pública en particular de la sociedad civil.
Pero se diferencian en que el Estado laico sanciona la manifestación de la
diversidad cultural en la vida pública, mientras que el Estado multicultural la toma
en serio y la promueve. (TUBINO, 2004:09).
Ao tratar de pluralismo, conflito e tolerância, as perguntas que surgem são:
por que o pluralismo seria de alguma forma conflitivo? Que tensão pode haver no
fato de que as pessoas gozem de liberdade para eleger seus fins e suas idéias
acerca da vida e do bem-estar? Por que a simples existência de diferentes etnias,
gerações, classes sociais, orientações sexuais, pertencimentos, enfim, de diferentes
identidades pode ser motivo de embates, conflitos e tensões? Por que a tolerância
é um valor fundamental para sociedades pluralistas? O problema não é que as
pessoas discordem em seus interesses ou que as liberdades ou as identidades
entrem em conflito, senão, com maior profundidade, que as pessoas possam ser
tão diferentes que nem sequer estejam de acordo com os princípios básicos sobre
os quais deve se administrar o pluralismo sobre o qual vivem. Ainda que o
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Tolerância: notas contemporâneas 142
pluralismo seja o que por certo lhes garanta essa liberdade de preferências e
identidades e o que lhes permita entrar em desacordo, é possível que as pessoas
implicadas não entrem em nenhum acordo sobre a necessidade de se defender o
pluralismo. (CAMACHO, 2004:03).
Acontece, então, que a mesma sociedade que configurou as condições de
possibilidade para a existência do pluralismo, vê-se ameaçada pela própria
atividade desse espaço público plural. É nesta perspectiva, que os congressistas de
Lima lançaram seus apelos pela tolerância como urgente e necessária (consensos
entrecruzados), ainda que contraditória (consenso de dissensos ou concórdia
discorde).
Referência bibliográfica obrigatória na temática sobre pluralismo ético e a
busca de consensos mínimos de convivência, Adela Cortina
63
esteve presente no
Congresso de Lima. Sua comunicação também se referiu aos desafios do
pluralismo e considerou mais uma vez que uma possível maneira de responder aos
desafios das sociedades pluralistas era a elaboração de mínimos morais.
CORTINA (1996
A
:17) reconhece que há nas sociedades pluralistas
“discrepâncias insuperáveis”:
Por eso, es muy importante la distinción entre ética de mínimos y éticas de
máximos. Esta distinción resulta, a mi juicio, indispensable para que una sociedad
pueda proceder de manera tolerante. Porque “tolerancia” no significa que cada cual
haga lo que quiera, sino que compartimos ya unos mínimos y desde ahí toleramos
que los demás tengan otra concepción de los máximos. (CORTINA, 1996
A
:21).
Como já informei, as entranhas da argumentação cortiniana sobre os
máximos e os mínimos serão analisados mais adiante. No entanto, importa aqui
tentar encontrar alguma pista para o rechaço público que Adela Cortina expressou
ao conceito de tolerância em sua exposição. Em Lima, a filósofa de Valencia disse
claramente que preferia utilizar a expressão respeito ativo e que era um equívoco
falar em tolerância. De certa forma, foi uma postura ousada, ainda que não tenha
sido a única
64
, tendo em vista que seu comentário expressava implicitamente que
63
Como a comunicação de Adela Cortina não está disponível nem no CD-ROM nem na página
virtual do Congresso de Lima, recorrerei a um trabalho da autora de 1996, intitulado Ética civil y
cultura de la tolerancia, que de certa forma representa a comunicação oral da pensadora em
Lima.
64
Enrique Dussel, outra eminência convidada para o Congresso de Lima, defendeu que deveríamos
ir além da tolerância e deveríamos investir na solidariedade, como demonstrarei na próxima
categoria.
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Tolerância: notas contemporâneas 143
as instituições que haviam organizado um evento de tamanha magnitude haviam
cometido um equívoco.
Acredito que a reprovação de Adela Cortina ao conceito de tolerância se
refere a uma percepção coerente sobre um aspecto que este trabalho procura
responder em profundidade, ou seja, como entender a tolerância para além da
idéia de passividade, indiferença ou omissão. Esta preocupação já se havia
manifestado no artigo de 1996:
La palabra “tolerante” puede resultar engañosa, porque parece que implica
debilidad, dejar hacer: “Haga usted lo que quiera, no moleste, a mi en el fondo me
da lo mismo”. Y, sin embargo, eso no es auténtica tolerancia, es pasividad. Lo que
necesitamos es una tolerancia activa, dispuesta a respetar y reconocer de forma
activa las distintas concepciones que se atengan a los mínimos de justicia, para que
puedan vivir dignamente en una sociedad pluralista. (CORTINA, 1996
A
:23)
Adela Cortina já oferece aqui duas pistas para entender o rechaço que viria
ser mais explícito em 2004. Primeiro: passividade e debilidade não expressam a
autêntica tolerância. Segundo: a tolerância ativa disposta a respeitar e reconhecer
o pluralismo e expressa no artigo de 1996 passa a ser entendida como “respeito
ativo” na exposição de 2004
65
.
A palavra tolerância, ainda que de moda, é polissêmica e se presta a
entendimentos distorcidos. Talvez, no senso comum e para o grande público, a
palavra respeito expresse mais força e coerência do que tolerância. Mas, Adela
Cortina e demais críticos da tolerância terão que reconhecer que o conceito de
tolerância tem uma história, responde a um desafio real, a intolerância assassina, e
expressa uma corrente de pensamento consolidada e coerente, que vem do
Renascimento, passa pelo Iluminismo e se consolida nas atuais teorias morais e
éticas. Pode ser inclusivo defensável optar por uma nova nomenclatura, que
encontre mais ressonância ou tenha mais apelo junto ao grande público. Creio ser
mais defensável ainda que recuperemos a história do conceito e o
ressignifiquemos. Por isso, insistirei – inclusive a partir do referencial teórico
propiciado por Adela Cortina – que tolerar não é pouco. Não obstante, ainda que
não seja pouca coisa, a tolerância tem limites e limitações. E é essa a temática que
envolve a quarta categoria.
65
Sobre as implicações do conceito de tolerância e a proposta de ética mínima de Adela Cortina,
veja também o item 4.4 – Ética cívica e tolerância, páginas 266 a 271, deste trabalho.
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Tolerância: notas contemporâneas 144
(d) Tolerância: entre limitações e críticas.
Nesta quarta categoria, tentarei indicar os limites e limitações da tolerância a
partir das considerações críticas que alguns congressistas apresentaram ao
conceito. De certa forma, retomarei aqui um aspecto da categoria anterior: os
consensos mínimos entrecruzados. Como já apresentei, DUSSEL (2004:01)
pontua que a tolerância é uma atitude mínina. Ora, esta é uma afirmação
inquestionável. No entanto, tal como defendo, o mínimo pode ser o fundamental,
o imprescindível. Se por um lado, alguns congressistas viam neste mínimo a
garantia de um patamar de justiça e dignidade, o que a meu juízo é a perspectiva
mais coerente, para outros este mínimo deveria ser visto como um limite a ser
obrigatoriamente superado.
CORDUA (2004:03), por exemplo, defende que a tolerância envolve um
“cálculo de conveniências”, ou seja, o exercício de esforçar-se em conviver com
realidades que não se gostaria de conviver, porque “ninguém tolera o que gosta”.
Segundo a professora chilena, toleramos sempre o que incomoda, o que é
inconveniente, o que é indesejado. A tolerância, então, é este cálculo racional de
conveniências a fim de garantir a convivência harmoniosa ou a menos conflitiva
possível. Neste ponto de vista, a tolerância é a opção racional de que devemos
conviver com o que nos incomoda porque o outro, o diferente, tem todo o direito
de existir, ainda que incomode (CORDUA, 2004; DARGENT, 2004;
DRUMOND, 2004). Também LOPARIC (2004:10) avisa que a tolerância é um
dever: “dever de tolerância”, que como tal refere-se a uma concepção meramente
pragmática em defesa do pluralismo, um “cálculo de conveniências” em defesa
das diferenças, que são inegáveis. A tolerância, assim, faria parte de uma lista de
valores e comportamentos “politicamente corretos”, porém superficiais e, de fato,
indesejados.
TUBINO (2004:02) também indica que a tolerância é um recurso racional
diante da não aceitação do diferente. Para ele, “não se tolera o igual ou o
semelhante”, pois estes são, em geral, bem aceitos. A tolerância seria, então, sinal
de nossa incapacidade de aceitação plena e irrestrita diante das diferenças. Na
mesma linha, HOYOS (2004:03) afirma que se não fosse o nosso recurso à
violência diante da diferença que nos agride a tolerância seria desnecessária.
Assim, ela é a expressão e a confirmação de nossas debilidades. Para CORDUA
(2004:05), quando se fala da tolerância como virtude também se estaria
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Tolerância: notas contemporâneas 145
implicitamente se referindo a um esforço, a uma dificuldade a ser superada, pois o
virtuoso é aquele que vai contra a própria vontade para cumprir os acordos
valorativos que se assume racionalmente. Assim, a tolerância como virtude é o
sinal claro que a vontade é de não aceitar o diferente, mas que de acordo com as
convenções racionais se opta por algo valorado, porém indesejado.
Como fruto da opção racional pelos melhores argumentos, o que não
implicaria colocar-se no lugar do outro para entendê-lo, a tolerância para
GARZÓN (2004) e MUGUERZA (2004) estaria, por vezes, mais referida a uma
abstração racional do que a uma identificação com o outro, com a alteridade. Na
mesma linha, GARCÍA-BARÓ (2004) e MIRÓ-QUESADA (2004) alertam para a
necessidade de uma “ética da responsabilidade” com o outro, que seria um passo
além da tolerância, uma superação de seus limites mais emblemáticos: a
indiferença e a passividade. A ética da responsabilidade se oporia a uma ética da
liberdade. Ao invés da liberdade de viver e deixar viver, a responsabilidade de
viver e conviver. Essa concepção também implicaria uma diferenciação
qualitativa entre coexistência e convivência. Assim, tolerância implicaria em
acordos mínimos para garantir a coexistência de diferentes e não impulsionaria as
atitudes necessárias para uma convivência plenamente humana, interessada pelas
diferenças que nos constituem (LAMMI, 2004; GONZÁLEZ, 2004).
De todas as críticas ao conceito, a que me pareceu mais coerente foi a de
Enrique Dussel, pois ele não fala de um outro qualquer, de um outro que é
diferente somente, que traz em si uma riqueza por não ser igual ou semelhante.
DUSSEL (2004) fala de um outro que é vulnerável, que é perseguido, que é
vítima. Fiel aos princípios da Filosofia da Libertação, o professor da UNAM
defende que em relação a alguém injustamente agredido em sua dignidade temos
o dever da solidariedade e não da tolerância.
A la víctima no se tolera; se la ayuda a dejar de ser víctima. (…) La intolerancia es
inapropiada como actitud ante la víctima que sufre los efectos negativos del
sistema. En este sentido que la solidaridad con las víctimas está más allá de la
Ilustración y la Modernidad; pero aún está más allá de la posición de los
postmodernos, porque la solidaridad no puede ser meramente fragmentaria, débil,
escéptica, esteticista. La solidaridad es universal, en referencia a todas las
diferencias (a la alteridad de la mujer violada, de las razas discriminadas, las clases
explotadas, los países periféricos poscoloniales, la tercera edad excluidas en los
asilos, las generaciones futuras que recibirán una tierra exterminada). (DUSSEL,
2004:09).
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Tolerância: notas contemporâneas 146
Todas as críticas apresentadas são relevantes. E todas tentarão ser
respondidas ou já foram ao longo desses dois capítulos. No entanto, creio que
cabe aqui um comentário mais detido com relação à problemática levantada por
Enrique Dussel: “uma vítima não se tolera, se ajuda a deixar de ser vítima”.
Estou totalmente de acordo de que uma vítima não reclama tolerância e sim
solidariedade. Acho que inclusive é possível entender a solidariedade como parte
de uma ética de responsabilidade. Não obstante, penso ser aconselhável outro
caminho. Uma ética da responsabilidade pode dar ao compromisso da
solidariedade um caráter de fardo, de peso, de obrigação, de dever. Ainda que
pareça contraditório, acho melhor que a tolerância assuma este papel de fardo. A
meu ver, a tolerância é sim um dever. A solidariedade uma possibilidade, um
convite. A tolerância é uma exigência de justiça e a solidariedade uma
possibilidade de expressar humanamente as convicções últimas sobre que vida
que se acredita valer a pena levar. As relações entre exigências de justiça e
convites sobre convicções últimas serão apresentadas mais adiante
66
, porém desde
já fica aqui minha consideração de que tolerância e solidariedade não são opostas,
mas valores e atitudes diferentes e articulados.
Ouso afirmar ainda que a luta pela tolerância tem muito que dizer ao
processo de vitimização dos diferentes. Na verdade, são os diferentes enquanto
vítimas a razão de ser da luta pela tolerância. Se considerarmos que é a
intolerância o mal maior com relação às diferenças, teremos na defesa da
tolerância um importante front contra o processo gerador de pessoas violadas ou
estigmatizadas por serem diferentes. A tolerância é um dever e funciona como
prevenção da intolerância assassina. A defesa pela tolerância almeja, mais que
tudo, que ninguém seja vitimado, excluído, estigmatizado, discriminado ou
eliminado por trazer consigo, em sua identidade, uma marca diferenciada que é
socialmente rejeitada.
No entanto, diante do inevitável, ou seja, da intolerância já realizada e das
vítimas que ela nos apresenta, entraria, a meu ver, um outro compromisso: a
solidariedade. Assim, a vítima, tal como sugere Enrique Dussel, reclama a
solidariedade. Mas, antes que ela seja vitimada em sua diferença, ela reclama
tolerância, pois – não esqueçamos – a intolerância é assassina em seu ódio à
66
Veja Capítulo 4, páginas 217-278, deste trabalho.
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Tolerância: notas contemporâneas 147
diversidade alheia. Entendo que tolerância e solidariedade correspondem a dois
momentos distintos da mesma luta: a inclusão de todos e a não discriminação dos
diferentes. Porém, na realidade, estes dois momentos vão muito articulados, pois
já sabemos quais são as categorias ou grupos sistematicamente vitimizados em
nossa sociedade por serem diferentes, ou melhor, por não corresponderem ao ideal
padronizado de pessoa humana. Neste sentido, não vejo contradição em lutar por
uma e empunhar a bandeira de outra. Tolerância e solidariedade não rivalizam.
Complementam-se.
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Tolerância: notas contemporâneas 148
2.3
DE NOVO COM O MAPA NAS MÃOS.
Mais uma vez, é preciso levantar o olhar e tentar ver o caminho já percorrido
e o que tenho a percorrer. Numa viagem, às vezes, é preciso abandonar por um
momento os detalhes do caminho para retomar o mapa e indicar para onde se
pretende ir. Chegou o momento de realizar outra breve parada, isto é, retomar o
planejado, analisar o que foi cumprido e orientar-se para prosseguir viagem.
Este segundo capítulo esteve diretamente ligado ao primeiro e junto com
aquele pretendeu cumprir o objetivo de analisar o desenvolvimento histórico do
conceito de tolerância, privilegiando os campos da filosofia política e da ética.
Durante este caminho, procurei realizar uma abordagem crítica e contextualizada,
recorrendo tanto aos pensadores clássicos quanto aos comentaristas mais
reconhecidos e qualificados para o debate.
Neste sentido, a contribuição de Popper ajudou-me a ampliar o conceito para
além da ética e da filosofia política, já que seu pensamento traz fortes elementos
da epistemologia. Creio que o autor pode ser visto como destoante dos objetivos
propostos. Porém, acho que cumpriu a função de me ajudar a entender as
correlações entre epistemologia e ética. John Rawls surge neste debate como
referência obrigatória devido à tradição liberal que impregna o conceito de
tolerância. Sem negar tal influência, mas sem me render a ela, optei em dar maior
atenção a pensadores identificados mais à esquerda do pensamento político.
Assim, Norberto Bobbio e Michael Walzer ganharam, durante o caminho
percorrido, mais espaço e tempo para alguns diálogos que me trouxeram novos
conceitos, novas articulações e, de certa forma, uma perspectiva mais ampla
quanto ao conceito estudado.
Tal como planejado, a partir de elementos do atual contexto retomei o
embate entre tolerância e intolerância. Assim, reconsiderei o conceito pesquisado
a partir de dois atores coletivos que considero extremamente relevantes: a ONU /
Unesco e a comunidade ibero-americana de filosofia. Creio que as contribuições
da ONU / Unesco chamam atenção para alguns aspectos políticos da comunidade
internacional. Primeiro, reafirma a urgência e a necessidade da tolerância para a
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Tolerância: notas contemporâneas 149
convivência pacífica entre os povos. Segundo, sintetiza as principais concepções
históricas e vigentes sobre a tolerância, a saber: tolerância como convivência
pacífica, tolerância como abertura ao outro, tolerância como negação ao
dogmatismo e tolerância como valorização das diferenças que dignamente nos
constitui enquanto humanos.
A comunidade ibero-americana de filosofia, por sua vez, ajudou-me a
confirmar as concepções de tolerância até então analisadas, principalmente a de
convivência pacífica e a de valorização do outro enquanto diferente. No entanto,
avaliando o caminho feito, o mais significativo, a meu ver, estaria na pluralidade
de abordagens para entender o que venha a ser esta convivência pacífica e no
reconhecimento de uma série de limitações que o conceito apresenta tanto no
âmbito da argumentação teórica quanto no mundo da vida, da política, do
confronto no real cotidiano. Entre tantas limitações, chamo a atenção para o
reconhecimento que a tolerância é uma saída possível – ainda que não seja a mais
desejada. Esta saída possível é contraditória em sua essência: uma concórdia
discorde ou um consenso de dissensos. No entanto, é a saída mais racional, mais
moral e, por isso mesmo, mais humana para a convivência pacífica entre
diferentes e opostos. Neste sentido, vale o destaque para a urgência e a
necessidade de se identificar, buscar e construir consensos mínimos
entrecruzados, a fim de se garantir mais que uma convivência pacífica. É preciso
garantir a existência e a possibilidade de sociedades plurais.
Este, creio eu, é o caminho feito. E o que há pela frente? Bem, entendo que
agora é o momento de entrar em dois movimentos distintos e interligados. É
preciso entender a intolerância e há que entender as entranhas do que vem a ser os
mínimos entrecruzados de uma concórdia discorde.
Para o primeiro movimento, optei por uma abordagem possível, ainda que
marginal, do pensamento de Hannah Arendt. O que significa hoje falar de
intolerância? Ou melhor, em que as experiências traumáticas do século XX nos
ajudam a entender os fenômenos intolerantes? Vejo que o conceito arendtiano de
banalidade do mal é iluminador para responder tais desafios. Trata-se de um
conceito nem sempre aceito ou bem entendido, mas, sem dúvida, desbravador de
caminhos novos. Além do mais, ele relaciona a incongruência da intolerância com
a ausência do pensamento. Daí um caminho complexo, que articula ética e
política.
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Tolerância: notas contemporâneas 150
Para o segundo movimento, optei por um mergulho no pensamento de Adela
Cortina, como representante de uma atual e distinta maneira de pensar, que
intitularei imprecisamente de Escola de Valencia. Haveria muitas motivações e
vantagens para justificar tal opção. Neste momento, importa indicar uma: Adela
Cortina argumenta, dialoga e incorpora em seu pensamento as principais
tendências contemporâneas no campo da ética aplicada. Assim, reconhece Rawls,
mas não poderia ser classificada como uma liberal. Dialoga com Dussel e outros
pensadores latino-americanos, mas não seria enquadrada como uma filósofa da
libertação. Identifica-se com Habermas e Apel, mas mantêm uma peculiar postura
diante da ética do discurso. Creio que Adela Cortina e a Escola de Valencia me
ajudarão a pensar de maneira mais aberta, talvez eclética, mas um ecletismo que
estaria longe de ser superficial ou difuso.
Parada feita. Mapa na mão. Caminho identificado. É hora de continuar.
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3
PARA PENSAR A INTOLERÂNCIA:
HANNAH ARENDT E A BANALIDADE DO MAL.
Como defendi nos capítulos anteriores, a tolerância não é uma virtude ou
uma atitude primeira, mas uma reação defensiva e necessária diante da
intolerância, que com freqüência é assassina no seu ódio à diversidade alheia.
Assim, é fundamental entender não só a tolerância, enquanto virtude e atitude,
mas também a intolerância enquanto um fracasso moral, violentamente expresso,
diante da alteridade. É preciso entender a intolerância como fenômeno que rompe
a partir de um sistema de valores que não aceita opiniões divergentes e
identidades diferentes daquelas que lhes são próprias. A intolerância nasce e se
desenvolve a partir de uma visão do mundo na qual o próprio grupo é tomado
como referência e todos os outros grupos são vistos como inferiores ou como
ameaça. Daí, a intolerância se expressar como subjugação ou eliminação dos
diferentes. Lembro, mais uma vez, a escravidão dos negros, o genocídio dos
povos ameríndios, o holocausto dos judeus, a aversão à homossexualidade e a
submissão das mulheres, entre outras tantas formas de intolerâncias.
Para a tarefa de buscar uma maneira de entender a intolerância, escolhi
como companhia privilegiada Hannah Arendt. Tratarei de analisar o conceito
originalmente forjado pela pensadora na obra Eichmann em Jerusalém e
apresentado como banalidade do mal. A banalidade do mal se refere a um tipo de
fracasso moral, que, se não foi o motor dos sistemas totalitários, esteve
intrinsecamente relacionado a eles, enquanto uma das mais devastadoras
expressões da intolerância na história da humanidade.
Fiel à sua filiação filosófica, tanto agostiniana quanto kantiana, Hannah
Arendt busca entender o fenômeno do mal. Ela já havia trabalhado o tema em
Origens do Totalitarismo através do conceito de mal radical para qualificar o
horror produzido pelo nazismo e o stalinismo. Mudar do mal radical kantiano para
a novidade da banalidade do mal foi uma polêmica que Arendt se viu
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
152
forçosamente envolvida. A meu juízo, toda polêmica em torno do conceito tornou-
o ainda mais fecundo, pois obrigada a dar um sem fim de explicações e a rebater
igualmente às inúmeras críticas, Arendt seguiu aprofundando-o. É dele que ela
parte e é a ele que ela pretende responder quando examina o estatuto do
pensamento, as normas da vontade e a faculdade do juízo na obra A Vida do
Espírito. Ouso afirmar que a banalidade do mal foi um dos grandes desafios
conceituais de Hannah Arendt, do qual ela não se furtou. Como tentarei
demonstrar o tema do mal tem centralidade na obra da Hannah Arendt ou, pelo
menos, atravessa algumas de suas obras centrais, tanto em teoria política quanto
na proposta de pensar a filosofia e a sua relação com as considerações morais.
Meu intuito é refazer o caminho do mal na obra de Hannah Arendt, na
medida em que tal fenômeno – seja ele radical ou banal – me interessa
particularmente para entender a intolerância. Julgo que são nítidas as relações
entre a intolerância enquanto ódio à diversidade alheia com a maldade
historicamente datada da qual Hannah Arendt foi vítima e se vê instigada a
entender como uma das origens do totalitarismo e da barbárie que daí se derivou.
Como classificar o holocausto, senão como ódio irracional à diversidade alheia?
Como entender a perseguição e a eliminação por diferenças políticas senão como
intolerância assassina? Como analisar os burocratas dos sistemas totalitários,
senão como assassinos intolerantes incapazes de respeitar minimamente as
diferenças que nos constituem dignamente como humanos? Assim, a companhia
de Hannah Arendt ajuda a cumprir duas tarefas: entender a intolerância como
banalidade do mal e buscar alternativas para superá-la através das reflexões sobre
a natureza do pensamento e suas possibilidades, ainda que indefinidas, como
suspensão e reconciliação com o mundo.
Num primeiro momento, apresentarei as motivações de seguir este caminho
com Hannah Arendt. Em segundo lugar, centrarei a análise no conceito de
banalidade do mal a partir da obra Eichmann em Jerusalém. Em terceiro lugar, me
dedicarei à obra A Vida do Espírito, principalmente no que diz respeito ao estatuto
do pensamento e sua articulação com a banalidade do mal. Por fim, a modo de
conclusão do capítulo, indicarei algumas contribuições arendtianas a fim de se
refletir sobre uma educação na perspectiva do pensamento, abrindo caminho para
pontuar a tolerância como um requisito mínimo para o campo da educação.
Assim, passo a apresentar a minha companhia. Uma senhora companhia.
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
153
3.1
A COMPANHIA DE UMA SENHORA OU UMA SENHORA
COMPANHIA?
Para dar rumo a minha trajetória neste momento da viagem, é inevitável
responder a uma questão primeira: por que a companhia de Hannah Arendt? Pois
bem, esta escolha se deu a partir de quatro motivações básicas. A primeira
motivação corresponde à minha própria trajetória acadêmica. Desde os primeiros
anos de graduação, no curso de Filosofia da PUC-Rio, fiquei impactado pela
força, pela profundidade e pela clareza das análises arendtianas. Isso me levou a
realizar animadamente um estudo sobre o estatuto do pensamento que Hannah
Arendt desenvolveu no livro A Vida do Espírito.
A segunda motivação deriva desta primeira. Trata-se da minha percepção
inicial sobre a preocupação e a busca em entender o horror que marcou o século
XX e seus regimes totalitários, profundamente relacionados, segundo Arendt, com
as sociedades de massa, a perda de interesse pelo espaço público, a organização
burocrática e a dominação através do emprego do terror e da propaganda
ideológica. Ao analisar o totalitarismo e sua maquinaria de destruição, Hannah
Arendt oferece categorias fundamentais para entender a intolerância, ainda que ela
pouco tenha usado ou se referido diretamente à tolerância como um conceito ou
categoria de análise.
A terceira motivação surge de sua condição de judia. Arendt foi perseguida
e deve que fugir da intolerância assassina, primeiro na Alemanha de Hittler e
depois na França em tempos de ocupação nazista. Ela é uma boa companhia para
a tarefa que me proponho não só por sua análise afiada sobre como funcionam os
sistemas totalitários e seus burocratas, intolerantes assassinos com a diversidade
alheia, mas também pelas experiências vividas, num período que os judeus eram
considerados párias e também pelo fato dela ter sido uma refugiada política.
A experiência concreta dos dilemas e problemas da questão judaica foi para
Hannah Arendt, para recorrer à terminologia de Jaspers, uma situação-limite. De
1933, data de sua fuga da Alemanha nazista, depois de ter sido presa por estar
coletando documentação sobre o anti-semitismo, até 1951, quando adquiriu a
cidadania norte-americana, ela foi juridicamente uma apátrida. Neste período
morou na França; dedicou-se à imigração de jovens judeus para a Palestina; com a
derrocada francesa foi internada no campo de Gurs; conseguiu escapar, com o seu
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
154
segundo marido Heinrich Blücher (o que não aconteceu com o seu amigo Walter
Benjamin), via Lisboa, para os Estados Unidos. Viveu, assim, a dura experiência
de refugiada, ou seja, de quem para usar as suas próprias palavras, num artigo de
1973
1
, perdeu o lar e, com ele, a familiaridade da vida cotidiana, perdeu a
profissão e, desta maneira, a segurança de ter alguma utilidade no mundo; perdeu o
uso da língua materna e, com esta privação, a naturalidade das reações e
simplicidade dos gestos e a expressão espontânea dos sentimentos. (LAFER,
2003:160).
Apresento aqui esta terceira motivação mesmo que, no âmbito da academia,
a vida não justifique a obra de um pensador. A uma possível crítica, respondo com
as próprias palavras de Hannah Arendt, que não se considerava uma pensadora
oficial – como ironicamente classificava os filósofos – mas entendia que seu
ofício estava no campo da teoria política, ou seja, no campo daqueles que pensam
a política por dentro, com a vida e a ação, e não apenas de fora, como
observadores externos de uma torre de marfim.
Uma quarta motivação ainda poderia ser apresentada. E esta é uma
motivação bastante acadêmica. Trata-se do argumento de que Hannah Arendt é
um clássico, segundo Norberto Bobbio, ou um gênio, segundo Julia Kristeva. Para
BOBBIO (2000), um clássico se define a partir de três critérios: (1) ser um
intérprete autêntico do seu tempo; (2) instigar leituras e releituras no correr dos
anos e (3) ter elaborado conceitos e categorias que continuam relevantes para a
compreensão da realidade. Sem dúvida, Hannah Arendt cumpre estas
características. O impacto que tiveram, e continuam tendo, obras como Origens
do Totalitarismo e Eichmann em Jerusalém são provas cabais que Hannah Arendt
foi uma intérprete autêntica do seu tempo. Ela leu e interpretou, como poucos, os
regimes totalitários e seus burocratas. A fim de exemplificar o segundo critério de
Bobbio posso citar, para ficar apenas no Brasil, três colóquios dedicados ao
legado de sua obra entre os anos de 2000 e 2002
2
, congregando especialista de
diferentes áreas (filosofia, política, direito, história e sociologia) com a finalidade
de reler e reinterpretar suas obras. O terceiro critério também fica evidente ao
percebermos, nos textos que resultaram destes colóquios, que especialistas e
1
Trata-se do artigo The Jews as Pariah (New York: Grove Press, 1978).
2
Os colóquios foram: (1) Hannah Arendt – 25 anos depois, realizado na Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, entre 8 e 9 de Junho de 2000, que resultou na coletânea organizada
por Eduardo Jardim de Moraes e Newton Bignotto; (2) Origens do Totalitarismo – 50 anos,
realizado na Universidade Federal do Ceará, entre 05 e 06 de Junho de 2001, que resultou na
coletânea organizada por Odílio Alves de Aguiar e (3) A banalização da violência: a atualidade
do pensamento de Hannah Arendt, realizado na Universidade Federal do Paraná, entre 14 e 18 de
Outubro de 2002, que resultou na coletânea organizada por André Duarte.
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155
pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento continuam analisando os
conceitos arendtianos na busca de entender a nossa realidade, o nosso tempo.
Entre tantos conceitos, destaco os seguintes: vida ativa e vida comtemplativa;
totalitarismo, autoridade, poder e força; banalidade do mal e vazio do
pensamento; labor, trabalho e ação, pensar, querer e julgar etc.
Já KRISTEVA (2002:08) afirma que:
Chamamos “gênios” os que nos obrigam a nos contarmos sua história, porque ela é
indissociável de suas invenções lançadas ao desenvolvimento do pensamento e dos
seres, do florescer de questões, de descobertas e de prazeres que eles criaram. Suas
contribuições nos dizem respeito tão intimamente, que não podemos recebê-las
sem enraizá-las na vida de seus autores.
Pelo que já foi apresentado até aqui e pelo simples fato de Julia Kristeva
eleger Hannah Arendt para o Tomo I de sua coleção O Gênio Feminino, estaria
comprovada a genialidade de Hannah Arendt. No entanto, retomo um testemunho
da própria filósofa para mais uma vez vincular experiência vivida e acuidade
intelectual. Em entrevista concedida a Günter Gaus, que educadamente a chamava
de Senhora Arendt, num canal da TV alemã, em 28 e Outubro de 1964
3
, Hannah
Arendt foi questionada sobre como havia reagido à ascensão de Hittler ao poder
em 1933, ao que ela prontamente respondeu:
Antes de mais nada, o que era em geral da ordem do político tornou-se um destino
pessoal, à medida que estávamos abandonando o país. Em segundo lugar, você
sabe o que é alinhar-se! O problema, o problema pessoal não era tanto o que os
nossos inimigos faziam, mas o que faziam os nossos amigos. O que se produzia na
época com essa onda de uniformização – bastante espontânea, por outro lado, e
não resultado do terror – era que, de algum modo, se formava um vazio em torno
de nós. (ARENDT, 1993:132).
E mais adiante, perguntada sobre como havia se envolvido com o
movimento sionista, ela responde:
O aspecto positivo da coisa é o seguinte: cheguei a uma certeza que costumava
formular na época com uma frase que lembro ainda hoje: “Se você é atacado na
qualidade de judeu, é como judeu que deve se defender”. Não como alemão,
cidadão do mundo, em nome dos direitos humanos etc., mas: que posso fazer de
maneira concreta em minha qualidade de judeu? (...) Na época eu formulava isso
em termos de “Eu quero compreender”. Não eram meus próprios problemas com o
judaísmo que eu debatia ali. Pertencer ao judaísmo, porém, tornou-se
manifestamente meu próprio problema, e meu próprio problema era político.
Exclusivamente político. Eu queria engajar-me praticamente em um trabalho e
queria que fosse um trabalho judaico, e foi assim que me dirigi para a França.
(ARENDT, 1993:133).
3
A entrevista, intitulada posteriormente de Só permanece a língua materna, está publicada na
coletânea A Dignidade da Política (ARENDT, 1993:123-143).
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Sendo assim, se pode confirmar a hipótese de Julia Kristeva: a vida de
Hannah Arendt está indissociável dos conceitos que ela criou, suas contribuições
estão enraizadas em sua experiência vivida. Isso pode ser comprovado também na
biografia elaborada por Elizabeth Young-Bruehl, que também revela que a vida é
fundamental para compreender a obra. O livro de Young-Bruehl é um relato
exemplar de como Hannah Arendt lidou com tempos sombrios e, na condição de
judia alemã, atravessou, sobreviveu e pensou as catástrofes políticas, os desastres
morais e os surpreendentes desenvolvimentos das artes e ciências no século XX
(LAFER, 2003:159).
Hannah Arendt será minha companhia privilegiada neste momento da
pesquisa. E sua presença é grandiosa. Trata-se de um clássico ou um gênio.
Acompanhar os desdobramentos de suas análises e as constantes releituras de
biógrafos e especialistas é uma tarefa árdua, tamanho tem sido o volume da
produção. Sendo assim, opções tiveram que ser feitas.
Tendo em vista a finalidade desta pesquisa, optei por acompanhar Hannah
Arendt em duas de suas grandes obras: Eichmann em Jerusalém e A Vida do
Espírito. Estas obras funcionaram como caminhos preferenciais e não como
caminhos exclusivos, pois recorreremos também a alguns artigos da autora,
sobretudo os publicados em A Dignidade da Política e no recém lançado
Responsabilidade e Julgamento. Cumpre registrar que a trajetória escolhida
implicou em, vez por outra, tomar atalhos nos clássicos (ou geniais) Origens do
Totalitarismo e A Condição Humana.
Além das obras de Arendt, também recorri aos comentaristas na medida em
que eles me ajudaram a entender a temática estudada. Foi fundamental o acesso à
produção de alguns estudiosos, pois em alguns casos eles trabalham a partir do
Arquivo Hannah Arendt que está em Nova Iorque, na New School for Social
Research, o que significa que trabalham com textos ainda inéditos e
profundamente esclarecedores sobre a temática que estou pesquisando.
Inicio, assim, o caminho, com a privilegiada companhia de tão digna
senhora, começando por Eichmann em Jerusalém.
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3.2
A BANALIDADE DO MAL E O VAZIO DO PENSAMENTO.
Eichmann em Jerusalém é resultado do relato de Hannah Arendt sobre o
processo e o julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann, realizado na capital
de Israel, em 1961, como correspondente da revista The New Yorker. Acompanhar
este julgamento foi uma proposta dela ao editor da revista. Segundo YOUNG-
BRUEL (1997:295), Hannah Arendt, desde 1960, quando do seqüestro de
Eichmann na Argentina, estava acompanhando o caso com especial atenção e
discutindo, em sua correspondência com Jaspers, os complexos temas legais que
envolviam o processo.
Sob a coordenação de Hannah Arendt, formou-se um quarteto de trabalho.
Ela e o amigo Kurt Blumenfeld trabalhavam em Israel. Blumenfeld encarregava-
se de traduzir do hebraico tudo que saía sobre o caso na imprensa israelense.
Heinrich Blücher, marido de Hannah, transmitia as repercussões do julgamento
nos Estados Unidos. Karl Jaspers acompanhava a imprensa européia e revisava os
resumos dos relatos enviados para a revista nova-iorquina. Segundo YOUNG-
BRUEL (1997:296), Hannah Arendt coordenava e imprimia o ritmo do triângulo
de comunicação que se estabeleceu entre Israel, Nova Iorque e Basiléia.
Dedicar-se a esta empreitada não foi tarefa fácil. Hannah Arendt teve que
redefinir sua agitada agenda. Em correspondência à Fundação Rockefeller
justificando seu atraso em uma bolsa de pesquisa pelo fato de estar acompanhando
o julgamento, ela afirma: “Compreenderão, penso, por que devo cobrir esse
julgamento. Perdi os julgamentos de Nuremberg. Nunca vi estas pessoas em
carne e osso e esta, provavelmente, é minha única oportunidade”. E justificando
sua ausência a um outro compromisso, escreve: “Comparecer a esse julgamento é
de certa forma, sinto em mim, uma obrigação que devo a meu passado”
4
.
4
Citada por YOUNG-BRUEL (1997:296).
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3.2.1
Um livro e muitas polêmicas.
Biógrafos e comentaristas são unânimes ao afirmar que esta foi a obra mais
polêmica de Hannah Arendt. Depois de se tornar célebre com As Origens do
Totalitarismo, Eichmann em Jerusalém foi o motivo de uma total perda de
prestígio junto à intelectualidade e ao establishment judaico tanto de Israel, quanto
da Europa e dos Estados Unidos. Segundo ASSY (2001:156), Eichmann em
Jerusalém foi considerado o livro mais polêmico em língua inglesa da década de
60, levando-se em conta o número “exorbitante” de artigos, debates, réplicas,
tréplicas, defensores e perquiridores que a obra envolveu. O motivo de tanto
alvoroço foi o fato de Hannah Arendt “colocar o dedo numa ferida aberta”, ou
seja, discutir amplamente o papel dos Conselhos de Judeus no holocausto.
Hannah Arendt tentou manter-se afastada de toda esta repercussão sobre seu
livro, que lhe pareceu exagerada e de certa forma uma campanha difamatória
orquestrada por seguimentos conservadores do judaísmo. Na entrevista ao
jornalista Günter Gaus, na TV alemã, em 1968, ao ser perguntada sobre as
acusações de traidora do povo judeu por causa de suas afirmações em Eichmann
em Jerusalém, ela evita a polêmica e responde ao entrevistador: “Antes de mais
nada, quero que note, com todo respeito, que você está sendo, aqui, vítima desta
campanha!” (ARENDT, 1993:137). Ela tinha bons motivos para evitar
polêmicas: o livro havia despertado reações de ódio; ela perdera a amizade de
pessoas muito próximas, como Kurt Blumenfeld, colaborador do livro; além de ter
sido repreendida publicamente por intelectuais que ela admirava.
Seguindo a estratégia de não polemizar, Hannah Arendt respondeu apenas
às críticas de amigos próximos e de intelectuais que verdadeiramente respeitava,
como foram os casos de Karl Jaspers – seu antigo professor, orientador de
doutorado e também colaborador no livro – e Gershom Scholem, historiador que
ela tanto admirava por seu trabalho sobre o misticismo judeu. Scholem era um
intelectual judeu respeitado e publicou uma carta aberta a Hannah Arendt sobre o
livro. Nesta carta, ele afirma: “Na tradição judaica há um conceito, difícil de
definir e mesmo assim concreto o suficiente, que conhecemos como Ahabath
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Israel: ‘Amor pelo povo judeu’. Em você, minha cara Hannah, como em muitos
intelectuais que vieram da esquerda alemã, encontro poucos traços disso”
5
.
Hannah Arendt respondeu a Scholem, de maneira categórica, negando sua
associação com a esquerda alemã: “Se for possível dizer que eu ‘tenha vindo de
algum lugar’, terá sido da tradição da filosofia alemã”. Além disso, ela não nega
sua identidade de judia, mas também não a apresenta como uma condição
especial: “Sempre entendi minha condição de judia como um fato inegável da
minha vida e jamais pretendi mudar isso ou rejeitar tal condição. Nesse sentido,
eu não ‘amo’ os judeus, nem ‘acredito’ neles: simplesmente pertenço ao
judaísmo, naturalmente, para além de qualquer controvérsia ou contestação”
6
.
No entanto, Hannah Arendt afirmou em algumas correspondências que devido a
sua condição de judia, ela avaliava o papel dos líderes judeus colaborando na
destruição de seu próprio povo como “o capítulo mais difícil de toda esta história
sombria”
7
.
LAFER (2003:136) e WATSON (2001:77) concordam que com Eichmann
em Jerusalém Hannah Arendt atacou a todos, ou pelo menos, desagradou a
muitos: o povo judeu, acusado de falta de resistência e passividade; a elite judaica,
acusada de ingenuidade e por isso mesmo de cumplicidade; o povo alemão,
acusado de omissão e conivência; os políticos alemães, acusados de não terem
punidos funcionários da burocracia nazista que ainda trabalhavam em órgãos do
governo no período pós-guerra; a juventude alemã, acusada de teatralizar uma
culpa coletiva, entre outros grupos.
Hannah Arendt negou muitas dessas acusações, apontando certa má vontade
em entender seu texto. Foram necessárias, a partir da 2ª edição, revisões e um pós-
escrito para eliminar algumas passagens mais duras ou mais difíceis de serem
defendidas. Segundo KOHN (2001:15), ela foi “impelida a reconsiderar e
repensar”. Exemplo disso teria sido a retirada da afirmação de que Leo Baeck,
um importante rabino de Berlim do início da década de 30, teria agido como um
Führer Judeu. Segundo WATSON (2001:81), a modificação se deu na segunda
edição do livro sem nenhuma explicação. A afirmação sobre Baeck tinha sido,
5
Citado por WATSON (2001:80).
6
Citada por WATSON (2001:81-82) e por YOUNG-BRUEL (1997:299).
7
Citada por YOUNG-BRUEL (1997:307).
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160
inclusive, uma das críticas que Scholem havia apresentado em sua carta aberta e
que ela, provavelmente, teria reconsiderado
8
.
Registrar aqui toda esta controvérsia tem como finalidade deixar claro que
estamos entrando em uma discussão polêmica, envolvente e, não raro, pontuada
de contradições, de conflitos. No entanto, gostaria de destacar que “Hannah
Arendt não se reduz à ‘banalidade do mal’ e ao ‘processo Eichmann’”
(KRISTEVA, 2002:15) e que a polêmica foi “uma reação típica [e talvez
esperada] dos judeus alemães” (CORREIA, 2004:88), tendo em vista a gravidade
das afirmações de Hannah Arendt e não exatamente algum erro de interpretação
sobre os fatos por ela analisados.
3.2.2
O julgamento: entre os limites do inédito.
Desde o início, o julgamento de Eichmann apresentava uma série de
questões sobre a sua legalidade. Hannah Arendt vinha discutindo estas questões
com Karl Jaspers (BERNSTEIN, 2004:302).
Eichmann foi seqüestrado num subúrbio de Buenos Aires por forças
militares secretas de Israel e levado para Jerusalém. Não houve processo legal de
prisão e nem pedido de extradição. As autoridades de Israel alegaram que de
acordo com as leis argentinas a extradição não seria possível (ARENDT,
1999:287) e que preferiram uma ação audaciosa para que fosse feita justiça, para
que mais um assassino não saísse da (ou entrasse para a) história sem punição.
Para Jaspers, mesmo que o seqüestro fosse politicamente justificável, ele ainda era
ilegal tendo em vista o Direito Internacional (CORREIA, 2004:83). Outra questão
subjacente ao seqüestro é que a Alemanha não reclamara o prisioneiro (ARENDT,
1999:28). Ora, toda nação se considera soberana para julgar seus criminosos,
ainda mais sobre crimes cometidos em território nacional, como era o caso de
Eichmann. Então, a questão para Hannah Arendt era: por que a Alemanha não
pediu a extradição e se comprometeu em julgar Eichmann? Ela não responde
diretamente, mas lembra que criminosos nazistas estavam recebendo “sentenças
fantasticamente brandas” (ARENDT, 1999:25) em julgamentos na Alemanha.
Sobre estas punições brandas, ela afirma: “a atitude do povo alemão quanto a seu
8
As polêmicas em torno das acusações a Leo Baeck também são discutidas por SOUKI (1998:76)
e YOUNG-BRUEL (1997:475).
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161
próprio passado não poderia ter sido demonstrada com mais clareza: as pessoas
não se importavam com o rumo dos acontecimentos e não se incomodavam com a
presença de assassinos à solta no país” (ARENDT, 1999:27). A partir desses
dados, pode-se perceber que Hannah Arendt preferia um julgamento internacional
e que na falta deste, melhor em Israel do que na Alemanha. Sendo assim, Arendt e
Jaspers concordavam em um ponto: se Eichmann estava sendo acusado de crimes
contra a humanidade, o melhor seria entregá-lo a uma corte internacional, de
preferência auspiciada pelas Nações Unidas (CORREIA, 2004:83-84; YOUNG-
BRUEL, 1997:296; BERNSTEIN, 2004:302).
Entretanto, os pontos de divergência entre Arendt e Jaspers eram
basicamente dois. O primeiro era sobre se Israel poderia representar os judeus,
caso o encaminhamento da promotoria fosse de crimes contra o povo judeu.
Jaspers lembrava a Arendt que os crimes de Eichmann foram cometidos na
Europa, especialmente na Alemanha e Polônia, e não em Israel, ademais o Estado
de Israel não existia no período do holocausto e suas leis não poderiam ser
utilizadas para julgar um crime anterior à sua própria existência enquanto Estado.
Hannah Arendt ponderava que o crime era contra a humanidade, mas “perpetrado
no corpo do povo judeu” (ARENDT, 1999:17) e que se Israel não pudesse julgar
Eichmann do ponto de vista jurídico, deveria fazê-lo do ponto de vista político.
Para ela, Israel poderia politicamente representar as vítimas de Eichmann porque
foram significativamente estas vítimas – os judeus europeus – que migraram para
Israel a fim de fundar um Estado.
O segundo ponto de divergência era sobre como classificar o criminoso. Ela
considerava que Eichmann deveria ser enquadrado como um novo tipo de
criminoso, que classificou de hostis humani generis (inimigo do gênero humano)
e, no decorrer do processo, ela constatou que Eichmann era, na verdade, um
homem comum. Jaspers, por sua vez, considerava hostis (inimigo) algo brando
demais, pois um inimigo ainda é alguém. Para ele, Eichmann deveria ser
considerado “menos que uma pessoa, um monstro”. De fato, Jaspers considerava
que havia no julgamento “evidências da brutalidade pessoal de Eichmann” e ele
irá resistir, por muito tempo, às considerações arendtianas sobre a banalidade de
Eichmann (YOUNG-BRUEL, 1997:296).
Outro aspecto crítico levantado por Hannah Arendt era sobre a precariedade
das leis, tanto israelenses quanto internacionais, para julgar os burocratas do
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162
nazismo, especialmente os envolvidos no holocausto. Para ela, o totalitarismo era
um novo tipo de crime. Eichmann, então, representava um novo tipo de
criminoso. Neste sentido, ela recusa a classificação do holocausto como crime de
guerra, como queria o advogado de defesa, pois os crimes cometidos por
Eichmann não tinham nenhuma necessidade militar e eram independentes do
tempo de guerra:
(...) o extermínio de povos inteiros, a ‘limpeza’ de vastas regiões, isto é, não
apenas crimes que ‘nenhum conceito de necessidade militar poderia sustentar’,
mas crimes que eram de fato independentes da guerra e que anunciavam uma
política de assassinato sistemático a ser continuado em tempos de paz.
(ARENDT,1999:279).
Se, para Hannah Arendt, havia certa impossibilidade de julgar o
totalitarismo com leis e conceitos vigentes, ela também estava convencida da
necessidade de realizar um julgamento sem precedentes na história da
humanidade e obviamente na jurisprudência. Neste ponto, ela credita um papel
especial ao bom desempenho dos juízes na corte de Israel, em especial, o juiz
Moshe Landau (ARENDT, 1999:14; 319).
Outro ponto frágil do julgamento foi o encaminhamento feito pela
promotoria. Segundo Arendt, trataram do caso como uma peça teatral. O
procurador-geral, Gideon Hausner, responsável pela acusação, estava totalmente
submetido e obediente às vontades do primeiro-ministro israelense, David Ben-
Gurion, que ela classificava como “diretor de cena do processo” (ARENDT,
1999:15). A teatralidade se deu no denominado pano de fundo traçado pela
promotoria, na qual as testemunhas eram chamadas para narrar seus sofrimentos e
a perseguição nazista ao povo judeu. Eram depoimentos longos e emocionados.
No entanto, estes depoimentos não tinham nada a ver com Eichmann, não diziam
respeito aos seus crimes. As testemunhas, em sua maioria, nunca tinham visto o
réu e nunca estiveram sobre suas ordens ou suas ações militares. Hannah Arendt
observa que os juízes não estavam de acordo com estes depoimentos, mas se
sentiam moralmente obrigados a ouvi-los e não tinham como interromper o teatro
de catarse armado, tendo em vista a legitimidade dos que se sentavam para dizer
ao mundo, através daquele tribunal, o que tinha sido o holocausto. Os
depoimentos seriam mais válidos em outro local, ali se prestavam a um teatro. E
esta teatralidade comprometeu a seriedade e a eficácia do julgamento. Segundo
Hannah Arendt, num julgamento o que deve estar em jogo são os atos criminosos
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163
do réu e o esforço de provar sua responsabilidade. Os sentimentos das vítimas,
ainda que legítimos, não estão em julgamento, nem quando estas se sentem
injustiçadas, nem quando pedem vingança.“Com tal retórica a acusação deu
substância ao argumento principal contra o julgamento: que ele fora instaurado
não a fim de satisfazer as exigências da justiça, mas aplacar o desejo e talvez o
direito de vingança das vítimas” (ARENDT, 1999:283).
Esta teatralidade levou ao questionamento sobre quem, afinal, era o réu,
pois a promotoria afirmou estar julgando a história, o nazismo e “o anti-semitismo
ao longo da história” (ARENDT, 1999:30). Hannah Arendt insistia que o réu era
Eichmann. Por conta disso, foi acusada de “anti-Israel, anti-sionista, uma judia
que se odiava, uma purista legal ou uma moralista kantiana” (YOUNG-BRUEL,
1997:302). As afirmações de Hannah Arendt levam-nos, inevitavelmente, a alguns
questionamentos: vítimas podem julgar os seus carrascos? Se sim, isso seria
justiça ou vingança? Para ela, num julgamento cabem os feitos do criminoso e não
o sofrimento das vítimas ou a história de um povo, e por isso, ela considera que a
linha adotada pela promotoria foi equivocada e teatral.
As irregularidades do julgamento levaram Hannah Arendt a duas
conclusões. A primeira é que as irregularidades legais obscureceram as questões
morais e políticas que o julgamento envolvia:
As irregularidades e anormalidades do julgamento de Jerusalém foram tantas, tão
variadas e de tal complexidade legal que, no decorrer dos trabalhos e depois na
quantidade surpreendentemente pequena de literatura sobre o julgamento,
chegaram a obscurecer os grandes problemas morais e políticos e mesmo legais
que o julgamento inevitavelmente propunha. (ARENDT, 1999:275).
A segunda conclusão é que apesar dos constrangimentos legais
9
que foram
impostos ao julgamento, eles não poderiam servir de justificativas para a não
imputabilidade do criminoso (CORREIA, 2004:85). Isso fica claro, quando ao
final do Epílogo, Hannah Arendt ensaia o seu próprio veredicto, indicando os
limites do julgamento, desconstruindo os argumentos da defesa e, obviamente,
condenando o réu à pena capital (ARENDT, 1999:300-302).
9
Tais como: o seqüestro; a falta de precedentes; a teatralidade da promotoria; a opção em julgar a
história do anti-semitismo e não o réu; a não admissão de testemunhas de defesa; o péssimo
serviço de tradução do hebraico para alemão, dificultando o trabalho do advogado de defesa; o
fato de Eichmann ter sentado no banco dos réus com um julgamento pré-definido, ou seja, ele
desde sempre era considerado culpado; a impossibilidade de recursos à pena dada, entre outros.
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164
3.2.3
O homem na cabine de vidro: monstro ou palhaço?
A personalidade de Adolf Eichmann foi, sem dúvida, um dos pontos mais
controvertidos do livro. Como já afirmado, Hannah Arendt o considerava um
novo tipo de criminoso, um hosti humani generis, participante de um novo tipo de
crime: a burocracia do assassinato em massa num sistema totalitário.
Segundo CORREIA (2004:86), este novo tipo de criminoso só pode ser
entendido a partir de uma nova profissão: o burocrata. Segundo um artigo de
Hannah Arendt, de 1945
10
, os burocratas, estes profissionais de nosso tempo,
quando responsabilizados por uma ação só podem reclamar e se sentir traídos,
pois, para eles, a função que lhes é própria não é de responsabilidade, mas sim de
execução. Daí a famosa afirmação: “Eu só cumpro ordens”.
Esta foi, insistentemente repetida, a alegação de Eichmann. “Não sou o
monstro que fazem de mim. Sou uma vítima da falácia” (ARENDT, 1999:269).
Segundo Arendt, Eichmann não chegou a usar a expressão bode expiatório, mas
todo o tempo ele e seu advogado, Robert Servatius, trabalharam com a hipótese de
que a “sua culpa [de Eichmann] provinha de sua obediência, e a obediência é
louvada como virtude. Sua virtude tinha sido abusada pelos líderes nazistas. Mas
ele não era membro do grupo dominante, ele era uma vítima, e só os líderes
mereciam punição” (ARENDT, 1999:269). Obviamente, nem os juízes, nem a
promotoria, nem a imprensa, nem Hannah Arendt estavam convencidos desse
argumento, mesmo que para muitos, no âmbito do senso comum, ele possa
parecer bastante plausível.
Eichmann tentou como pôde se apresentar como um homem virtuoso –
“minha honra é minha lealdade” (ARENDT, 1999:121) – e que seu único erro
teria sido obedecer às ordens e seguir as leis, pois ele sempre tomou o cuidado de
agir conforme determinações, comprovadas por leis, diretivas ou memorandos de
seus superiores (ARENDT, 1999:109). Eichmann pensava e agia dentro dos
restritos limites que as normas e as leis permitiam e, por isso mesmo, não entendia
porque naquele tribunal era acusado de criminoso. Para ele, tudo não passava de
um golpe de azar, pois ele tinha sido um bom cidadão, porém num Estado
assassino. Sorte teria, em sua bizarra lógica, um bom cidadão num Estado justo.
10
Organized guilt and universal responsability, in: Essays in Understanding (1930-1945), New
York: Harcourt Brace, 1994:160. Citado por CORREIA (2004:93).
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165
De fato, Eichmann era um homem cumpridor de seus deveres e não era um
corrupto. Era um homem supostamente correto que cumpria com eficiência o seu
dever, ou seja, encaminhar milhares de judeus para a morte. Um dos seus
superiores, que fazia da corrupção uma prática, chegou a afirmar que “a única
coisa que atravancava o seu caminho eram criaturas subordinadas de mente
estreita como Eichmann que levavam a sério demais suas funções” (ARENDT,
1999:160). Eichmann só se envolveu em corrupção quando estes negócios já
faziam parte da política oficial, tendo em vista a derrota iminente da Alemanha, e,
sendo assim, nem poderia ser considerada corrupção, ou seja, quebra da norma
para proveito próprio (ARENDT, 1999:161).
Segundo KOHN (2001:14), Hannah Arendt ao enfatizar estas características
do réu procurava demonstrar a construção de uma personalidade condicionada,
fria, sem emoção, sem motivação e, por isso mesmo, capaz de qualquer coisa, até
das maiores barbaridades: “Eichmann (...) realizou o exercício da livre escolha
como se fosse um animal condicionado, não agiu espontaneamente ou tomou
iniciativa, ele evitou a responsabilidade e não julgou. Ele agiu como se fosse
condicionado”.
Para SOUKI (1998:93), outro traço marcante neste personagem era o seu
apego às regras de bom comportamento, mostrando-se envergonhado e
constrangido face à lembrança de pequenos deslizes ou desobediências cometidas
em sua trajetória militar. Mesmo que estas desobediências significassem salvar
vidas humanas, Eichmann ficava visivelmente constrangido em admiti-las.
Estes aspectos da personalidade de Eichmann levaram Hannah Arendt a se
convencer de uma das afirmações do acusado: ele não era um monstro. Ao
contrário, era um homem comum. E o mais assustador: tão comum quanto muitos
outros. “O problema de Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e
muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e
assustadoramente normais” (ARENDT, 1999:299). É esta normalidade que a
assusta, pois há um descompasso entre sua personalidade comum e as dimensões
monstruosas do mal por ele perpetrado. Eichmann não era um monstro, ainda que
os resultados de suas ações fossem monstruosamente macabros.
Segundo psicólogos e sacerdotes que examinaram Eichmann, o seu
comportamento “não é apenas normal, mas inteiramente desejável”, “um homem
de idéias muito positivas” (ARENDT, 1999:37). Esta era outra revelação
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166
inesperada sobre aquele homem na cabine de vidro. Ele não era só normal, mas
um bom pai de família, um filho exemplar e um irmão dedicado.
A idéia de burocratas assassinos como dedicados pais de família era uma
constatação difícil de ser aceita. Hannah Arendt confessou diversas vezes que
ficou perplexa com esta realidade. No entanto, ela preferiu trabalhar com esta
hipótese ao invés de considerá-la infame ou peça de cinismo do réu. Eichmann
poderia muito bem ser apresentado como um burocrata dócil e assassino.
O governo nazista seria uma organização burocrática cuidadosamente estruturada
para absorver a solicitude do pai de família na realização de quaisquer tarefas que
lhe fossem atribuídas, e para dissolver a responsabilidade em procedimentos de
extermínio em que o perpetrador de um assassinato era apenas a extremidade de
um grupo de trabalho. O pai de família, que despertaria em nós admiração e
ternura em sua concentração no interesse dos seus, em sua consagração firme à
mulher e aos filhos, em sua solicitude, preocupado basicamente com a segurança,
teria se tornado um aventureiro no caos econômico do período entre guerras, sem
qualquer possibilidade de se sentir seguro em relação ao dia de amanhã.
(CORREIA, 2004:87).
Filho decadente de uma sólida família de classe média austríaca, Eichmann
havia se agarrado com todas as forças às possibilidades de ascensão social e
financeira que se apresentavam através das fileiras militares naqueles tempos
difíceis de guerra. Fracassado aos olhos do seu grupo social e ambicioso, um
carreirista, Eichmann não era oficial de alta patente, mas cabia-lhe, na labiríntica
estrutura do III Reich, a responsabilidade de dirigir a seção que lidava com os
judeus, então considerados inimigos objetivos do Estado. A tarefa de Eichmann
era organizar as deportações em massa e as evacuações de judeus, inclusive
levando-os diretamente para os campos de concentração. Era conhecido como um
especialista na questão judaica.
O homem Eichmann era o perfeito instrumento para levar a cabo a ‘solução final’:
organizado, regular e eficiente tal qual a empreitada de que ele estava encarregado.
Na sua função de encarregado de transporte, ele era normal e medíocre e, no
entanto, perfeitamente adaptado ao trabalho que consistia em ‘fazer as rodas
deslizarem suavemente’, no sentido literal e figurativo. Sua função era tornar a
‘solução final’ normal. Com sua vaidade e exibicionismo e seus clichês
pretensiosos, ele era ridículo e ordinário. Eichmann representava o melhor
exemplo de um assassino de massa que era, ao mesmo tempo, um perfeito homem
de família. (SOUKI, 1998:92).
Apesar de ser um especialista num tema crucial para o nazismo, ele nunca
deixou de ser tratado pela elite da SS como uma pessoa socialmente inferior e no
julgamento demonstrou todo seu rancor e vergonha por estar numa situação de
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
167
inferioridade na hierarquia militar. Hannah Arendt atribui especial significado à
tríade fracasso-ambição-vaidade que marcava a personalidade do intrigante réu.
Uma outra característica de Eichmann chama atenção de Hannah Arendt: a
sua linguagem, mais especificamente a dificuldade de se expressar
espontaneamente e a facilidade para falar em clichês.
Clichês, frases feitas, adesão a códigos de expressão e conduta convencionais e
padronizados têm função socialmente reconhecida de nos proteger da realidade, ou
seja, da exigência do pensamento feita por todos os fatos e acontecimentos em
virtude de sua mera existência. Se respondêssemos todo tempo a esta exigência,
logo estaríamos exaustos; Eichmann se distinguia do comum dos homens
unicamente porque ele, como ficava evidente, nunca havia tomado conhecimento
de tal exigência. (ARENDT, 1995:06).
Eichmann admitiu suas dificuldades de expressão no julgamento: “Minha
única língua é o oficialês” e Hannah Arendt, ironicamente, registra “a luta
heróica que Eichmann trava com a língua alemã, que invariavelmente o derrota”
(ARENDT, 1999:61). As suas dificuldades com a própria língua também ficavam
claras quando declarou que “sempre relutara em ler toda e qualquer coisa além
de jornais, e que, para desânimo do pai, nunca recorrera aos livros da biblioteca
familiar” (ARENDT, 1999:53). Para a autora, através do caso Eichmann,
aprendemos “a lição da temível banalidade do mal, que desafia as palavras e o
pensamento” (ARENDT, 1999:274).
O oficialês, cheio de códigos e clichês, havia impossibilitado Eichmann
para a fala comum e, no seu repertório de frases feitas, ele se escondia numa
incomunicabilidade com o pensamento alheio. Ele era incapaz de pensar e
entender o ponto de vista do outro (KOHN, 2001:14-15). “Sua mente parecia
repleta de sentenças prontas, baseadas em uma lógica auto-explicativa,
desencadeada em raciocínios dedutivos, mas que todavia, andavam em
descompasso com o percurso da própria realidade” (ASSY, 2001:139).
As dificuldades de Eichmann com a fala revelaram o aspecto tragicômico
de sua personalidade e despertaram a mais ferina ironia de Hannah Arendt:
“Apesar de todos os esforços da promotoria, todo mundo percebia que esse
homem não era um ‘monstro’, mas era difícil não desconfiar que fosse um
palhaço” (ARENDT, 1999:67). “De minha parte, estava efetivamente convencida
de que Eichmann era um palhaço: li com atenção seu interrogatório na polícia,
de 3.600 páginas, e não poderia dizer quantas vezes ri, ri às gargalhadas!”
(ARENDT, 1993:137).
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
168
No entanto, Hannah Arendt estava convencida que “era essencial que ele
fosse levado a sério, o que era muito difícil, a menos que se procurasse a saída
mais fácil para o dilema entre o horror inenarrável dos atos e o inegável absurdo
do homem que os perpetrara, isto é, a menos que se declarasse um mentiroso
esperto, calculista – coisa que evidentemente não era” (ARENDT, 1999:67).
Afinal, quem era o homem na cabine de vidro? Bom cidadão, leal,
obediente, responsável, eficiente, regular, organizado, burocrata, comum, normal,
banal, superficial, incapaz para o pensamento, acrítico, condicionado, desolado,
desagregado, deslocado, fracassado, frio, não-emotivo, calculista, vaidoso,
ambicioso, medíocre, mentiroso, cínico, pervertido, sádico, um novo tipo de
criminoso, inimigo do gênero humano, encarnação do nazismo, assassino ou
monstro? São muitas as características que se pode atribuir a Eichmann.
De um pólo (bom cidadão) a outro (monstro), Hannah Arendt vai enfatizar
as características, marcas de caráter, que se encontram, de uma forma ou de outra,
no ponto mediano deste contraste, isto é: o burocrata, comum, normal, banal,
superficial. A percepção de que Eichmann era um homem comum, de
superficialidade e mediocridade aparentes, deixou Hannah Arendt atônita ao
avaliar a proporção do mal monstruoso por ele cometido: a organização eficiente
das deportações de milhares de judeus encaminhados diretamente para a morte. É
a partir desta percepção que Arendt formulará a expressão banalidade do mal.
3.2.4
O mal sem motivos.
“Arendt não é, geralmente, considerada uma pensadora moral e sim
política, (...) ela é, no entanto, uma pensadora moral original e como usual,
nesses casos, uma pensadora controvertida” (KOHN, 2001:26). A controvérsia
que Hannah Arendt traz para o campo do pensamento moral passa, sem dúvida,
pela sua afirmação de que o mal é algo banal. O tema fica ainda mais complexo
porque ela abandona a formulação kantiana de mal radical, consagrada no campo
e, inclusive, defendida anteriormente por ela:
Hannah Arendt discutiu o ineditismo do problema do mal no século XX em As
Origens do Totalitarismo, em termos do mal radical. Subseqüentemente retomou o
tema do ineditismo do mal na vigência do totalitarismo na sua análise do caso
Eichmann, expondo a sua visão sobre a banalidade do mal. (LAFER, 2003:187).
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
169
Sendo assim, Hannah Arendt não só traz um conceito novo, que ela própria
resiste em reconhecer como tal, como também contraria uma tradição consolidada
no pensamento moral, da qual ela se considera profundamente devedora, ainda
que alguns comentaristas, como LAFER (2003:188) e SOUKI (1998:133),
afirmem que há mais complementaridade do que oposição entre a concepção de
mal radical, discutida em As Origens do Totalitarismo e a novidade da
banalidade do mal, apresentada em Eichmann em Jerusalém. A meu ver, há
evidências que ela abandona realmente a concepção kantiana ainda que recuse
para sua expressão uma condição de teoria ou doutrina. Vejamos a seguir esta
controvérsia nas palavras da própria autora.
Primeiramente, a resistência ou cautela de Hannah Arendt em conceber a
banalidade do mal como uma teoria:
Há alguns anos, em um relato sobre o julgamento de Eichmann em Jerusalém,
mencionei a ‘banalidade do mal’. Não quis, com a expressão, referir-me a teoria ou
doutrina de qualquer espécie, mas antes a algo bastante factual, o fenômeno dos
atos maus, cometidos em proporções gigantescas – atos cuja raiz não iremos
encontrar em uma especial maldade, patologia ou convicção ideológica do agente;
sua personalidade destacava-se unicamente por uma extraordinária
superficialidade. (ARENDT, 1993:145).
Em segundo lugar, a confirmação de que ela abandona uma concepção pela
outra. Isso fica exposto na carta resposta de Hannah Arendt às críticas de Sholem
– que afirmou que esperava mais de Eichmann em Jerusalém, tendo em vista As
Origens do Totalitarismo, e que para ele o conceito de banalidade do mal não
convencia:
É, sim, a minha opinião agora que o mal nunca é radical, que é apenas extremo e
que não tem nem profundidade, nem sequer uma dimensão demoníaca... Apenas o
bem tem profundidade e pode ser radical (...) De fato você tem razão, eu mudei de
opinião e não falo mais de mal radical
11
.
O objetivo aqui ainda não é analisar em profundidade os movimentos que
levaram a esta mudança
12
. O que nos importa por hora é apenas registrar que
Hannah Arendt está convencida que o mal não tem raízes, não tem profundidade.
O mal “é como um fungo, não tem raiz, nem semente” (KOHN, 2001:14), mas se
espalha sobre a superfície, ou seja, sobre a massa de cidadãos inaptos para a
capacidade de pensar, incapazes de dar significado aos acontecimentos e aos
11
Eichmann in Jerusalém: an exchange of letters between Gershom Scholem and Hannah Arendt.
Encounter, January, 1964:53. Citada por WATSON (2001:82) e por SOUKI (1998:101 e 104).
12
Para entender a relação entre o mal radical e a banalidade do mal em Hannah Arendt veja, em
especial, os trabalhos de Richard Bernstein.
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
170
próprios atos (ASSY, 2001:152). Sendo assim, em Eichmann em Jerusalém, o mal
não é radical, mas pode ser extremo; ele é superficial, ainda que suas
conseqüências sejam incalculavelmente desastrosas, monstruosas (SOUKI,
1998:102).
É importante registrar também que Hannah Arendt circunscreve a
banalidade do mal a “algo bastante factual”, ou seja, à personalidade de
Eichmann. Como já afirmado, “ele não era particularmente estúpido, nem
moralmente insano, nem criminosamente motivado, nem ideologicamente anti-
semita, nem em qualquer sentido psicologicamente ‘anormal’” (KOHN,
2001:15). E é justamente isso que intriga: Eichmann não é um assassino convicto
(SOUKI, 1998:99). O mal, encontrado neste homem, é banal porque não tem
explicação convincente, não tem motivação alguma, nem ideológica, nem
patológica, nem demoníaca. Por isso, a filósofa, em A Vida do Espírito, se diz
“vagamente consciente” de que a expressão cunhada por ela “se opunha à nossa
tradição de pensamento – literário, teológico ou filosófico – sobre o fenômeno do
mal” (ARENDT, 1995:05).
A questão do mal, não é, assim, uma questão ontológica, uma vez que não se
apreende uma essência do mal, mas uma questão da ética e da política. (...) O
problema do mal sai, verdadeiramente, dos âmbitos teológico, sociológico e
psicológico e passa a ser focado na sua dimensão política. (SOUKI, 1998:104).
A concepção de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal apresenta um
mal sem inspiração própria, mas não menos monstruoso em suas conseqüências. É
este abismo entre a gravidade dos atos e a superficialidade das motivações que a
leva a cunhar um novo significado para o mal.
LECTHE (2002:206) afirma que a banalidade do mal se tornou uma das
mais famosas conceituações arendtianas porque conseguiu perceber que o
ineditismo do mal efetivado pelo nazismo era, além de monstruoso, banal e
burocrático e, ao mesmo tempo, sistemático e eficiente. ASSY (2001
A
:87-88) e
SOUKI (1998:12) também estão de acordo que diante do mal como fenômeno
surgido a partir da experiência totalitária, burocraticamente eficiente, Hannah
Arendt é levada a pensar sobre um mal sem precedentes, ou seja, inédito e
desconhecido. Para este mal, não há modelos nem padrões – sejam políticos,
históricos ou filosóficos – de entendimento. “Todavia nem sequer temos uma
palavra para o que estamos nos referindo”, registrou Hannah Arendt, em
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
171
manuscritos ainda inéditos, datados em 1966
13
. Já em Eichmann em Jerusalém ela
estava consciente do “desamparo que os juízes experimentaram quando se viram
confrontados com a tarefa de que menos podiam escapar, a tarefa de entender o
criminoso que tinham vindo julgar” (ARENDT, 1999:299).
Hannah Arendt estava diante de um fenômeno inédito e para isso procurou
cunhar um novo modelo de entendimento. O que não significa que todos tenham
compreendido de fato o que ela propôs. Assim, inicia-se, por força de tantas
reações, uma série de justificativas e esclarecimentos que valem a pena aqui
registrar ao menos duas: (1) a banalidade de Eichmann não significa a sua falta de
culpabilidade e (2) banalidade não significa normalidade.
Em primeiro lugar, a expressão banalidade do mal não quer ser uma
justificativa para as monstruosidades de Eichmann, nem significa que a filósofa
negligencie a imputabilidade do réu (ASSY, 2001:141). Como afirmado
anteriormente, Hannah Arendt estava convencida de que Eichmann era
responsável pelos seus crimes e deveria ser punido por eles. Segundo CORREIA
(2004:95), ao descrever Eichmann como banal ela não visava torná-lo menos
imputável, “não estava buscando isentá-lo dos atos ilícitos que efetivamente
cometeu, mas compreender o tipo de mentalidade que poderia contribuir para o
surgimento de indivíduos como ele”. Nesta perspectiva, entender este tipo de
mentalidade é entender o motivo desses assassinos totalitários serem “os mais
perigosos, porque não se importam se estão vivos ou mortos, se jamais viveram
ou se nunca nasceram” (ARENDT, 1989:510). Ela sempre esteve firme em sua
convicção de que esse tipo de assassino – sonâmbulo, vivo-morto, que não pensa,
não reflete, “que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente
impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado” (ARENDT,
1999:299) – deva ser privado do dom de compartilhar a terra com os demais e
enviado para “morrer na forca” (ARENDT, 1999:302). Sendo assim, não há
dúvidas: banalidade não quer abrir precedentes para a não imputabilidade do réu,
mas tão somente entender um fenômeno.
O segundo ponto parece-me ainda mais oportuno de esclarecimentos. Para
Hannah Arendt, banalidade não quer significar algo sem importância, nem tão
pouco algo que possa ser assumido como normal. Em sua carta resposta a Sholem,
13
Citado por ASSY (2001
A
:88).
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
172
ela afirma: “O que é banal não é por conseqüência uma bagatela, nem qualquer
coisa que se produz freqüentemente”
14
. Em outra correspondência, a Samuel
Grafton
15
, Hannah Arendt distingue banal de lugar-comum. Lugar-comum diz
respeito a um fenômeno que é comum, trivial, cotidiano, que acontece com
freqüência, com constância, com regularidade. Banal, por sua vez, “não
pressupõe algo que seja comum, mas algo que esteja ocupando o espaço do que é
comum”. Um ato mal se torna banal não por ser comum, mas por ser vivenciado
como se fosse algo comum, como se fosse normal. A banalidade não é
normalidade, mas se passa por ela, ou seja, ocupa o lugar da normalidade. “O mal
por si nunca é trivial, embora ele possa se manifestar de tal maneira que passe a
ocupar o lugar daquilo que é comum”. Isso esclarece, por exemplo, porque ela se
dedica intensamente a entender o totalitarismo como a burocratização eficiente do
assassinato. Num regime totalitário, o assassinato se torna algo normal porque ele
é burocratizado, trivializado, como se fosse normal, mas, na verdade, o mal é
sempre monstruoso, um escândalo. Para que também não restem dúvidas:
banalidade não é normalidade, mas algo que é apresentado como se fosse uma
normalidade, ainda que não deixe nunca de ser um horror.
Não obstante, vale a pena as seguintes perguntas: mas como o mal pode se
tornar banal? Como o escândalo e a monstruosidade dos assassinatos em massa
puderam se tornar fatos corriqueiros, trivializados, como se fossem normais?
Como o mal pôde ocupar o lugar da normalidade e esconder o seu próprio horror?
Para responder a estas questões, recorro a duas características que Hannah
Arendt aponta na sociedade de massas: a superficialidade e a superfluidade. Ainda
que o tema da superficialidade ou incapacidade para o pensamento será retomado
no próximo capítulo deste trabalho, podemos esclarecer, em breves palavras, que
o mal se torna banal porque os seus agentes são superficiais e suas vítimas são
consideradas supérfluas.“Quanto mais superficial alguém for, mais provável será
que ele ceda ao mal. Uma indicação de tal superficialidade é o uso de clichês e
Eichmann (...) era um exemplo perfeito”, afirmou Hannah Arendt em
correspondência a Grafton
16
. Quanto à superfluidade da vida humana nas
sociedades de massa, Hannah Arendt afirma que este tem sido um fenômeno
14
Citada por SOUKI (1998:103).
15
Citada por ASSY (2001:143-144).
16
Citada por ASSY (2001:145).
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
173
decorrente do extremo sentido prático e utilitário que marcam estas sociedades.
Sobre isto, ela afirma em As Origens do Totalitarismo: “grandes massas de
pessoas constantemente se tornam supérfluas se continuamos a pensar em nosso
mundo em termos utilitários”. E mais: “Os acontecimentos políticos, sociais e
econômicos de toda parte conspiram silenciosamente com os instrumentos
totalitários para tornar os homens supérfluos” (ARENDT, 1989:510).
Sem dúvida, as polêmicas surgidas em torno do conceito de banalidade do
mal indicam uma imprecisão de Hannah Arendt ao lidar com o ineditismo do
fenômeno representado em Eichmann. Seja como for, gostaria, ao encerrar este
tópico, de reconhecer a ousadia da autora e fazer minhas as seguintes palavras de
Nádia Souki:
Na verdade, o ‘conceito’ de banalidade do mal, apesar de todo o seu valor
polêmico, parece não ter sido devidamente delimitado, não deixando, por isso, de
ter valor filosófico. Ele parece estar em uma posição particular na obra da autora e,
por sua fertilidade e valor polêmico, se mostra mais provocador de reflexão e
definidor de questões fundamentais do que propriamente um conceito formalizado.
A nosso ver, esta particularidade não diminui o valor do conceito, mas o ressalta
na sua fecundidade. (SOUKI, 1998:105).
3.2.5
A banalidade e suas implicações morais.
Hannah Arendt estava plenamente consciente que o julgamento de
Eichmann envolvia mais do que constrangimentos jurídicos. A maior polêmica,
sem dúvida, envolvia a capacidade de julgar, isto é, aquela faculdade que nos
permite discernir o certo do errado. Ela demonstrou, mais de uma vez, sua
perplexidade diante do fato de que desastrosamente quase todos os homens em
alta posição pública – e em alguns casos com sólida formação moral, como o papa
Pio XII e o rabino Leo Baeck – tinham fracassado em compreender o verdadeiro
significado do nazismo na Alemanha (ARENDT, 2004:288).
O julgamento de Eichmann, então, não proporcionou a ela somente o
entendimento sobre aquele burocrata banal na cabine de vidro, mas também a
possibilidade de repensar alguns temas relacionados com o que poderíamos
chamar, em filosofia, de temas éticos ou morais, tais como: responsabilidade,
liberdade, escolha, omissão, servilismo, obediência, mentira, cumplicidade, entre
outros.
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
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Creio que em quase toda obra de Hannah Arendt sobre o totalitarismo, em
especial, sobre o nazismo, duas questões são motivadoras e estão sempre
implícitas: (1) Por que aconteceu? (2) Como foi possível acontecer? Cumpre
registrar que estas questões nascem da perplexidade da autora diante do fenômeno
que ela vivenciou e pensou. As respostas a estas questões foram dadas por Hannah
Arendt no campo da economia, da teoria política, das estratégias militares e da
jurisprudência. Interessam-me aqui as repostas formuladas no campo da ética.
Vale a pena, então, destacar algumas reflexões arendtianas sobre o julgamento de
Eichmann que levam a pensar a moralidade, a saber: o comportamento e as
reações do povo alemão e do povo judeu diante do inédito do século XX.
Segundo LECHTE (2002:207), o verdadeiro horror do totalitarismo está
“no profundo servilismo de seus agentes, não em nenhuma explicação
psicológica profunda ou qualquer vontade política vertiginosa”. De fato, o
servilismo, a obediência inquestionável, como um valor supostamente moral foi
constatado por Hannah Arendt não só naquele réu intrigante, mas também como
algo incorporado pelo povo alemão. A obediência como virtude foi a base da
condição verdadeiramente abjeta da possibilidade do nazismo.
Segundo CORREIA (2004:87), Hannah Arendt buscou fugir da
controvérsia sobre se o nazismo fazia ou não parte do “caráter do povo alemão”,
pois ela achava que havia usos abusivos do termo. Dessa forma, é seguro dizer
que ela não atribuía ao caráter de um povo, como um todo, uma característica
específica. No entanto, também é verdade que a ela muito impressionou o
adesismo inquestionável de parcelas significativas da população alemã. Como
afirmado anteriormente, o nazismo foi capaz de captar a solicitude do pai de
família para fins monstruosos, como o extermínio de milhões de inocentes.
Também já foi lembrado o depoimento concedido à TV Alemã, em 1968, no qual
ela declara que os judeus alemães deveriam temer mais os amigos que se
alinhavam ao nazismo do que os próprios inimigos.
A terrível e simples verdade, segundo Hannah Arendt, era que o nacional-
socialismo tinha aprovação absoluta da sociedade alemã: “A situação era tão
simples quanto desesperada: a esmagadora maioria do povo alemão acreditava
em Hitler” (ARENDT, 1999:114). É óbvio que havia oposição a Hitler e à sólida
maioria que o apoiava. Aqueles que eram contra, mesmo em minoria, trocavam
idéias sobre a catástrofe do regime e o fracasso moral da sociedade alemã. No
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175
entanto, para Hannah Arendt, eles não tinham nem plano e nem intenção de
efetivar uma oposição. Aqueles que eram contra o regime, até mesmo quando
perseguidos, assistiram passivamente o horror nazista tomar de assalto a
Alemanha.
No que tange à situação dos judeus, Hannah Arendt ainda é mais crítica
sobre o papel dos oposicionistas do regime:
Muitas vezes se disse que a asfixia dos doentes mentais teve de ser suspensa na
Alemanha por causa dos protestos da população e de uns poucos dignitários
corajosos das Igrejas; no entanto, nenhum protesto desse tipo foi feito quando o
programa voltou-se para a asfixia de judeus, embora alguns centros de extermínio
estivessem localizados no que era então território alemão, cercados por populações
alemãs. (ARENDT, 1999:126).
Ainda sobre o papel da oposição política a Hitler e, mais ao fim da guerra, o
da resistência alemã e dos militares que se organizavam para derrubar o Führer,
Hannah Arendt é categórica: aqueles que se opuseram a Hitler foram corajosos,
mas a coragem deles “não foi inspirada por indignação moral ou por aquilo que
sabiam que outras pessoas tinham sofrido; eles foram motivados quase
exclusivamente por sua certeza da iminente derrota e ruína da Alemanha”
(ARENDT, 1999:116). As divergências com Hitler dentro da Alemanha foram
quase sempre por questões políticas ou militares. Entre os oposicionistas ou entre
os líderes da resistência havia inclusive anti-semitas convictos, que não
discordavam do regime no que diz respeito ao tratamento dispensado aos judeus.
Ainda que se possa constatar que Hannah Arendt esquiva-se do debate
sobre se o servilismo faz parte ou não do caráter do povo alemão, a mesma
condescendência não se observa quando o tema é o apego à mentira e ao auto-
engano. Ela afirma que “a sociedade alemã de 80 milhões de pessoas se protegeu
contra a realidade e os fatos exatamente da mesma maneira, com os mesmos
auto-engano, mentira e estupidez que agora se viam impregnados na mentalidade
de Eichmann”. E mais: “ainda é difícil às vezes não acreditar que a hipocrisia
passou a ser parte integrante do caráter nacional alemão” (ARENDT, 1999:65).
Em um de seus mais famosos discursos, Hitler bradava aos soldados:
“Atrás de nós marcha a Alemanha!” Talvez fosse apenas figura de linguagem a
fim de animar as tropas, mas, segundo Hannah Arendt, tudo leva a crer que se
atrás do Führer não marchavam 80 milhões de soldados, ao menos caminhava
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silenciosa a maioria esmagadora dos alemães. A omissão da boa sociedade foi a
permissão necessária para a marcha nazista.
É tendo em vista esta maioria silenciosa – e não somente os 6 milhões de
judeus assassinados – que Hannah Arendt classifica o holocausto como um crime
de massas:
Pois esses crimes foram cometidos em massa, não só em relação ao número de
vítimas, mas também no que diz respeito ao número daqueles que perpetraram o
crime, e à medida que qualquer dos criminosos estava próximo ou distante do
efetivo assassinato da vítima nada significa no que tange à medida de sua
responsabilidade. (ARENDT, 1999:268).
Vale a pena lembrar que Hannah Arendt considera a massa assassina como
assustadoramente normal e desprovida da capacidade de pensar
17
. Segundo
SOUKI (1998:61), um cidadão torna-se cúmplice da demência totalitária na
medida em que partilha as mentiras do sistema, não por ser enganado, mas por se
recusar a perscrutar a verdade dos fatos. Para LAFER (2003:136), a cumplicidade
da massa “circunstante” foi fundamental para o êxito do nazismo, pois ela
tornava a solução final normal, isto é, os cidadãos alemães conferiam, pela total
omissão, um caráter de normalidade aos assassinatos em massa.
Quanto ao povo judeu, Hannah Arendt apresenta basicamente duas críticas:
(1) a falta de reação contra o mal e (2) a conivência dos Conselhos de Judeus com
as políticas nazistas. Com relação à primeira crítica, ela a considerava
erroneamente tratada no julgamento, pois dava margem a entendimentos de que a
não beligerância das vítimas diminuísse em algo a responsabilidade dos
assassinos. Para Arendt, o tema foi trazido ao tribunal para marcar a diferença
entre o heroísmo israelense e a passividade dos judeus europeus, ou seja, isso
fazia parte da cena armada pelo primeiro ministro israelense.
Quanto à segunda crítica, antes de qualquer coisa, é importante registrar que
havia divisões entre os judeus europeus. Havia pensamentos diferentes e grupos
opostos no que tange a como deveria ser o relacionamento dos judeus com os
gentios na Europa. Entre ortodoxos, sionistas e assimilados, esses últimos eram os
mais desorganizados e discriminados entre os próprios judeus. Os Conselhos de
Judeus, dominados por sionistas e ortodoxos, “acreditavam que se era uma
questão de selecionar judeus para a sobrevivência, os próprios judeus é que
17
Este controvertido conceito arendtiano de crime de massas é um dos temas mais comentados
pela literatura especializada. Veja, por exemplo, CORREIA (2004:94), ASSY (2001
A
:87),
SOUKI (1998:61) e LAFER (2003:136).
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177
deviam fazer a seleção” (ARENDT, 1999:75). De fato, os oficiais do III Reich
deram aos Conselhos a incumbência de organizar as listas de deportação e dos que
deveriam ir para os campos de concentração, organizando inclusive uma polícia
judaica. Para Hannah Arendt, esta situação levou a maioria dos judeus a terem
dois inimigos objetivos: as autoridades nazistas e as autoridades judaicas.
Segundo YOUNG-BRUEL (1997:302), Hannah Arendt não dedica mais de
doze páginas, em cerca de trezentas, para refletir sobre a passividade dos judeus e
as responsabilidades das autoridades judaicas. Mas foram, sem dúvida, estas doze
páginas, mais ou menos, que levaram-na para o meio de um turbilhão de críticas,
ataques e inimizades.
As críticas de Hannah Arendt ao comportamento moral de judeus e
alemães, a meu juízo, tiveram como objetivo desconstruir algumas argumentações
vigentes à época que tentavam explicar o fracasso moral vivenciado na Europa
daqueles tempos sombrios. Dentre tais argumentações, destacarei aqui três: (1) a
teoria da peça de engrenagem, (2) a teoria da culpa coletiva e (3) a teoria da voz
da consciência. Demonstrarei a seguir, ainda que brevemente, cada uma dessas
argumentações e as oposições apresentadas por Hannah Arendt.
A primeira argumentação, a teoria da peça de engrenagem, segundo Hannah
Arendt, foi utilizada tanto pela defesa de Eichmann quanto pela acusação.
Segundo o advogado de defesa, Robert Servatius, Eichmann era apenas uma
pequena engrenagem na maquinaria chamada Solução Final para a questão
judaica. A promotoria, seguindo a mesma lógica, via naquele homem não uma
engrenagem, mas o motor do holocausto. Para Hannah Arendt, aquele homem
tolo, sem iniciativas, de mediocridade e superficialidade aparentes, um oficial
subalterno, que sempre agia ancorado por leis e memorandos, não era motor de
coisa alguma. Ela estava de acordo que para as ciências políticas e sociais era
importante entender que “a essência do governo totalitário, e talvez a natureza
burocrática, seja transformar homens em funcionários e meras engrenagens,
assim os desumanizando” (ARENDT, 1999:312). Não obstante, Hannah Arendt
também estava convencida do fato de Eichmann pertencer a uma estrutura
organizacional e poder ser trocado, como uma peça, por outro burocrata qualquer,
que faria a mesmíssima coisa em seu lugar, pois afinal não se tratava de uma
maldade específica (demoníaca, patológica ou ideológica), mas apenas do
cumprimento de funções. Tal realidade não desresponsabilizava, em hipótese
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178
alguma, esta pequena engrenagem dos atos monstruosos que foram cometidos. Na
medida em que a pequena engrenagem comete crimes, num tribunal sua ação
deve ser julgada como uma ação humana – supostamente criminosa, até que se
prove o contrário – pois Eichmann, como qualquer outro burocrata, tinha sim
responsabilidades, pois tinha a possibilidade de escolha, um dado inerente à sua
condição humana. Ainda que se levasse em conta a teoria da peça de engrenagem,
a tentativa da defesa era estupidamente equivocada, pois, de acordo com o próprio
depoimento de Eichmann, seria difícil, senão impossível, encontrar atenuantes
para os seus crimes, como a teoria levaria a supor. A fidelidade ao trabalho
realizado, tantas vezes declarada pelo réu, era um agravante. Se ele tivesse se
apresentado à corte dizendo que era obrigado a fazer o que fazia, mas que
procurava não cumprir plenamente as ordens recebidas a fim de salvar vidas, ele
ainda assim seria responsável, mas talvez poderia contar com alguns atenuantes.
Porém, Eichmann se dizia um cumpridor fiel das ordens, que seu sonho era
cumprir seu dever e fazer seu trabalho com precisão e eficiência e, ainda mais,
sentia-se envergonhado quando no tribunal era levado a admitir que não cumpria
algumas ordens recebidas, ainda que esta desobediência tivesse significado salvar
centenas de vidas humanas. Segundo CORREIA (2004:94), “a ‘teoria da
engrenagem’, ainda que possa ser útil à ciência política, passa à margem da
questão da responsabilidade pessoal”. E esse era um tema moral central para
Hannah Arendt, pois, para ela, a responsabilidade pessoal não pode ser transferida
para um sistema, ainda que se trabalhe sob uma ditadura (ARENDT, 2004:87).
A segunda argumentação, a teoria da culpa coletiva, surge no julgamento
através da declaração de inocência do acusado, que busca a absolvição jurídica
assumindo publicamente – em forma de clichês, como era de se esperar – suas
supostas falhas morais. Robert Servatius havia declarado à imprensa: “Eichmann
se considera culpado perante Deus, não perante a lei” (ARENDT, 1999:32). No
tribunal, Eichmann declarou-se “inocente no sentido da acusação”, mas também
disposto a “ser enforcado publicamente como exemplo para todos anti-semitas da
Terra” (ARENDT,1999:36). Ora, a vocação de Eichmann para o martírio, um ato
de cena, revelou-se provavelmente depois dele saber que setores da juventude
alemã, motivados possivelmente pela repercussão dos resultados dos julgamentos
de Nuremberg, sentiam-se culpados pelo holocausto, sendo que, dezoito anos
depois do fim da guerra, obviamente, aqueles jovens nada tinham a ver com isso.
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
179
Para CORREIA (2004:93), “é importante distinguir entre culpa e
responsabilidade, tanto porque muitos se sentem culpados sem terem qualquer
envolvimento, como por muitos serem responsáveis sem se sentirem culpados –
enquanto os efetivamente responsáveis que se sentem culpados são muito
poucos”. Para Hannah Arendt a culpabilidade é algo individual, por isso passível
de penalidades jurídicas. Já “a responsabilidade coletiva é mais um termo da
categoria política do que jurídica ou moral”
18
. Arendt faz, então, uma distinção
entre culpa (individual) e responsabilidade (coletiva) por considerar que “onde
todos são culpados, ninguém é”
19
, ou seja, se todos têm culpa, ninguém
efetivamente pode ser julgado. Se ninguém pode ser julgado, ninguém pode ser
imputável pelos crimes. Assim, confirma-se o já discutido aqui, isto é, ela não
negligencia a atribuição de culpabilidade ao réu pelo fato dele não ser o único
responsável por aquilo que fazia. Quanto à responsabilidade coletiva, ela afirma
que ainda faltava ao povo alemão uma definitiva demonstração pública de
responsabilidade pelos crimes cometidos em seu nome. Assumir essa
responsabilidade coletivamente teria efeitos políticos e morais, o que, obviamente,
não poderia ser passível de penalidades jurídicas.
A terceira argumentação, a teoria da voz da consciência, questionava se
Eichmann tinha consciência do que estava fazendo e se podia ouvi-la. Segundo
ARENDT (1999:45), Eichmann “não tinha tempo, e muito menos vontade de se
informar adequadamente, jamais conheceu o programa do Partido [Nacional
Socialista], nunca leu Mein Kampf”. O ponto mais importante não é sobre a
consciência no sentido de ter conhecimento do que efetivamente era o nazismo,
em suas ideologias e programas. O ponto fundamental é se Eichmann podia ouvir
esta voz que chamamos de consciência, se ele podia acessar um conjunto de
valores que lhe informasse sobre o horror do qual ele fazia parte. Se ele era
perturbado por este outro que nos habita, que, às vezes, somos nós mesmos e
outras vezes um outro moralmente significativo que nos fala. Hannah Arendt está
certa que a resposta é sim, tanto é que ele declarou várias vezes que estava com a
consciência tranqüila, pois cumprira seu dever e sabia que era isso que deveria
fazer. Sabe-se que a voz da consciência não é algo dado naturalmente, mas sim
18
Citada por SOUKI (1998:90).
19
Citada por CORREIA (2004:93) e ASSY (2001:141).
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180
algo construído coletiva e intersubjetivamente. Neste sentido, vale a seguinte
observação de ARENDT (1999:143):
Sua consciência ficou efetivamente tranqüila quanto ele viu o zelo e o empenho
com que a ‘boa sociedade’ de todas as partes reagia ao que ele fazia. Ele não
precisava ‘cerrar os ouvidos para voz da consciência’, como diz o preceito, não
porque ele não tivesse nenhuma consciência, mas porque sua consciência falava
com a ‘voz respeitável’, com a voz da sociedade respeitável a sua volta.
A voz respeitável da boa sociedade, além dos líderes dos Conselhos de
Judeus, esteve presente no tribunal na pessoa do pastor Heinrich Grüber, um
ministro protestante que havia conhecido Eichmann e com ele negociado várias
vezes. Segundo ARENDT (1999:146), o pastor Grüber “pertencera ao grupo
numericamente pequeno e politicamente irrelevante de pessoas que se opuseram
a Hitler por princípio, e não por considerações nacionalistas, e cuja posição
[crítica e contrária] na questão judaica era inequívoca”. Convocado como
testemunha de acusação, o pastor Grüber acabou sendo uma peça fundamental
para a defesa. Robert Servatius lhe vez uma pergunta altamente pertinente: “O
senhor tentou influenciá-lo? Tentou, como religioso, apelar para os sentimentos
dele, fazer um sermão para ele, e lhe dizer que sua conduta era contrária à
moralidade?” (ARENDT, 1999:148). As respostas embaraçosas do pastor
indicavam que ele não havia sido uma voz consciente de alerta ou empecilho às
atitudes de Eichmann, mas que tinha sido mais uma voz respeitável com sinais de
cumplicidade. Tão significativo quanto à pergunta do advogado de defesa, foi o
depoimento de Eichmann: “Ninguém veio até mim e me censurou por nada no
desempenho de meus deveres, nem o pastor Grüber disse uma coisa dessas. (...)
Ele veio até mim e pediu alívio para o sofrimento, mas não objetou de fato o
desempenho de meus deveres enquanto tais” (ARENDT, 1999:148). A teoria da
voz da consciência também deve ser rebatida com o argumento apresentado
anteriormente sobre a culpabilidade pessoal e a responsabilidade coletiva. Grüber
era moralmente responsável. Eichmann juridicamente culpado, um criminoso. E,
como ARENDT (1999:302) afirma no seu veredicto sobre o caso, “política não é
jardim de infância”, ou seja, não é o lugar da inocência. Neste sentido, o fato de
Eichmann ter participado ativamente do assassinato de milhares de judeus, ainda
que com a aceitação e a respeitabilidade da boa sociedade, ele era pessoalmente
culpado e por isso devia ser punido.
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3.2.6
Com um fenômeno nas mãos...
O caso Eichmann apresentara um fenômeno novo para Hannah Arendt,
sobre o qual ela se debruçou em várias outras oportunidades. Não só porque ela
foi impelida a repensar o conceito de banalidade do mal, devido às críticas
recebidas, mas pela perplexidade que o tema lhe causara. Talvez, retornar ao caso
Eichmann tivesse duas preocupações centrais: (1) entender a mentalidade de um
novo tipo de criminoso, banal e burocrata e (2) alertar para a possibilidade de
retorno do fenômeno testemunhado como inédito e discutir as possibilidades de
evitá-lo.
A primeira preocupação já foi devidamente explicitada aqui. A segunda nos
empurra a diante, mais precisamente para o livro A Vida do Espírito. Porém, antes
de partir para a análise da segunda obra tomada como central nesta pesquisa, vale
o alerta da autora sobre a possibilidade bastante incômoda, mas inegável, de que
crimes similares possam ser cometidos no futuro:
Faz parte da própria natureza das coisas humanas que cada ato cometido e
registrado pela história da humanidade fique com a humanidade como uma
potencialidade, muito depois da sua efetividade ter se tornado do passado. Nenhum
castigo jamais possuiu poder suficiente para impedir a perpetração de crimes. Ao
contrário, a despeito do castigo, uma vez que um crime específico apareceu pela
primeira vez, sua reaparição é mais provável do que poderia ter sido a sua
emergência inicial. (ARENDT, 1999:295-296).
Se o castigo não pode impedir a banalidade do mal de emergir novamente
em nossa história, o que, então, poderia? A resposta arendtiana é instigante. No
próximo tópico tentarei seguir a hipótese que ela mesma traçou para tentar
responder a esta questão:
Seria possível que a atividade do pensamento como tal – o hábito de examinar o
que quer que aconteça ou chame a atenção independente de resultados e conteúdo
específico – estivesse dentre as condições que levam os homens a se absterem de
fazer o mal, ou mesmo que ela realmente os ‘condicione’ contra ele? (ARENDT,
1995:06).
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
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3.3
PENSAMENTO E CONSIDERAÇÕES MORAIS.
Em primeiro lugar, gostaria de apresentar as motivações de Hannah Arendt.
Elencar as questões e fatos que segundo ela mesma levaram-na a examinar e a
definir o que é o pensamento. Pretendo ser fiel à intenção da autora que sentiu a
necessidade de justificar sua iniciativa ao analisar questões tão específicas e
próprias para os pensadores profissionais.
Quando Hannah Arendt escreveu A Vida do Espírito estava motivada pelo
depoimento de Eichmann em Jerusalém. Ela retoma o relato que havia
apresentado como resultado das suas análises sobre o julgamento de Eichmann, já
analisado no capítulo anterior. Hannah Arendt se deu conta que havia percebido
algo diferente de toda Tradição no que se refere à conceituação do mal. Em seu
relato apresenta o termo banalidade do mal e afirma:
Por trás desta expressão não procurei sustentar nenhuma tese ou doutrina, muito
embora estivesse vagamente consciente de que ela se opunha à nossa tradição de
pensamento – literário, teológico ou filosófico – sobre o fenômeno do mal.
ARENDT (1995:05).
Hannah Arendt, ao apresentar este conceito, quer afastar de sua análise as
tradicionais justificativas para a ação má. Para ela, neste caso, o mal não é
motivado por um demônio – o anjo decaído e orgulhoso que quer ser como Deus
– numa típica abordagem religiosa. O mal também não tem origem em
sentimentos menos nobres, tais como: a inveja – como na história de Caim que
mata Abel; a fraqueza; a cobiça ou o ódio que a pura maldade nutre pelas boas
coisas. O mal não tem, assim, origens demoníacas ou patológicas. O mal como
banalidade origina-se na incapacidade de refletir.
3.3.1
A irreflexão como causa da banalidade do mal.
Para Arendt, todas as barbáries que Eichmann cometeu não se fundamentam
na inveja, no ódio, na cobiça e nem mesmo na estupidez (desconhecimento), mas
na irreflexão. Desde o início de A Vida do Espírito, ela começa a traçar a relação
entre a banalidade do mal e a falta do pensamento. Hannah Arendt confessa que o
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183
que a deixou mais impressionada foi a superficialidade de Eichmann. No
julgamento, aquele homem não se apresentava monstruoso, enfermo ou
demoníaco, nele também não se encontravam grandes convicções ideológicas.
Entre todas as características de Eichmann, a mais determinante para explicar seu
comportamento era a sua incapacidade para o pensar. O que o torna uma
aberração é o fato dele nunca haver experimentado a exigência que o pensamento
cumpre diante da simples existência de fatos e acontecimentos. Experiência tão
comum e inerente à vida. Eichmann demonstrava viver num mundo de clichês,
onde pouco se exige a atenção do pensamento. A questão que a autora se propõe a
analisar é a ausência do pensamento e sua possível relação com os atos maus.
É importante observar que Hannah Arendt busca entender o pensamento, no
entanto a motivação primeira é com a faculdade do juízo. Sua iniciativa está
profundamente marcada por questões relacionadas com o julgar. No artigo
Pensamento e Considerações Morais, ela já se perguntava: “Será que nossa
capacidade de julgar, de distinguir o certo do errado, o belo do feio, depende de
nossa capacidade de pensar?” (ARENDT, 1993:146).
Através destas questões, Hannah Arendt pretende desqualificar as
tradicionais explicações sobre o que motiva o ato mau e apresentar como possível
alternativa a ausência do pensamento. Para ela é preciso examinar a relação entre
pensamento e juízo. A sua hipótese é que a incapacidade de pensar é o ambiente
privilegiado para o fracasso moral. Segundo Hannah Arendt, o ato de pensar
“pode”
20
condicionar o homem a não fazer o mal. Mais adiante analisarei como
Hannah Arendt concede ao pensamento um aspecto destrutivo e como este
aspecto tem um efeito liberador para a faculdade do juízo, podendo contribuir ou
fundamentar o discernimento moral. O pensamento, na concepção arendtiana, traz
em si possibilidades e não garantias. Algumas dessas possibilidades seriam os
efeitos liberadores sobre o juízo e os efeitos preventivos no que se relaciona ao
fenômeno do mal.
Uma segunda fonte de motivações se apresenta a Hannah Arendt pela
própria tradição filosófica. Trata-se de buscar as respostas dadas durante a história
do pensamento para a questão: o que é o pensar? Desde que havia escrito A
Condição Humana, obra na qual analisa especificamente questões relacionadas à
20
Aqui o verbo poder vai entre aspas para reforçar a idéia de possibilidade e afastar a idéia de
condicionamento ou algum tipo de garantia.
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
184
vida ativa, a autora buscava entender como o pensamento – a vida contemplativa
tinha sido compreendido pelas distintas tradições filosóficas. A história da
filosofia nos apresenta uma clara oposição entre o mundo da ação e o mundo do
pensamento. O pensamento sempre foi marcado pela quietude, pela contemplação
e pela passividade. Hannah Arendt reconhece que a Tradição, ao tratar da
passividade do pensamento, aponta para uma importante característica. A
Tradição, mesmo que nebulosamente, toca no polêmico tema da
incompatibilidade entre o agir no mundo e o ato de pensar. Mas para além desta
primeira e mais conhecida visão acerca do ato de pensar, Hannah Arendt quer
estabelecer os limites e investigar o pensamento como atividade, como a mais
pura ação humana, de acordo com a citação que ela mesma apresenta de Catão:
“Nunca um homem está mais ativo do que quando nada faz, nunca está menos só
do que a sós consigo mesmo” (ARENDT, 1995:08).
A filósofa indica uma visão do pensamento como saída do mundo. Isto nada
tem a ver com fuga do mundo e dos seus problemas, até porque este tipo de
interpretação entraria em contradição com as suas concepções em filosofia
política. Esta saída é a capacidade e a possibilidade de romper com o cotidiano, é
uma descontinuidade própria da vida humana, uma parada. E é isso que Eichmann
não tem. Ele vive de clichês. A atividade de pensar significa um rompimento com
o mundo, mas não é trocar este mundo por um melhor, mais puro, mais profundo.
Apesar de romper com a Metafísica, principalmente quando esta ontologiza o
mundo invisível, Hannah Arendt reconhece que os metafísicos descobriram algo
muito importante: pensar é estar fora do mundo. Esta retirada é uma distração
total. Conta a história que Tales de Mileto caiu num poço enquanto andava
pensando. Também temos o exemplo de Sócrates que chega atrasado ao Banquete
porque no caminho distraiu-se enquanto amarrava as sandálias. É como se a
experiência do pensamento se originasse numa sensação de estranhamento,
principalmente com as coisas mais cotidianas.
Se, de acordo com a minha hipótese, os protagonistas dos fenômenos
intolerantes experimentam o fracasso moral diante das diferenças que dignamente
nos constituem enquanto humanos e se esse fracasso se relaciona com a
incapacidade de pensar, então poderia agora me perguntar: poderia a educação ser
propícia ao pensamento? Se o que está em crise é a maneira como
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185
tradicionalmente pensamos e não a nossa capacidade de pensar, então: é provável
que haja um tipo de educação que seja possível para tal empreitada?
Com estas questões de fundo, seguirei a reflexão de Hannah Arendt em
algumas distinções e conceitos. Em sua companhia, meus objetivos serão: revelar
a crise do pensamento metafísico, garantir a autonomia do âmbito do pensamento
enquanto um campo específico da vida do espírito e indicar as possibilidades de
uma educação que se relacione com o pensamento e, quiçá, colabore para um
mundo mais tolerante e aberto às diferenças que dignamente nos constituem
enquanto humanos. Neste sentido, importa começar com a proposta arendtiana de
entender a atividade do pensar para além da tradição metafísica e ilustrada.
3.3.2
Superar a Tradição e a Ilustração.
Há que registrar que a filosofia contemporânea caracteriza-se na descrença
do modelo platônico e no questionamento das certezas da Modernidade. A quebra
da Tradição se dá com a desconfiança do conceito platônico de verdade. Da
Grécia Antiga à Modernidade, a verdade foi conceituada como algo que pode ser
percebido, algo a que se pode ter acesso. O modelo de apreensão da verdade
assemelha-se aos nossos sentidos, como “os olhos do espírito” numa típica
metáfora helênica que privilegia a visão, ou como também na tradição judaico-
cristã com suas metáforas da audição: Deus se revela a Moisés falando. Para os
metafísicos se pode confiar neste aparato sensorial inteligível que vê e ouve a
verdade que não aparece tão facilmente. Daí o esforço da concentração, meditação
ou reflexão para ver ou ouvir a verdade. E o que é percebido pelo espírito é mais
verdadeiro do que é visto pelos sentidos. Assim, a verdade é normativa, vista
pelos olhos do espírito, e reguladora da vida cotidiana.
Platão, no livro VII de A República, discute no Mito da Caverna a estrutura
de tal sistema. O homem na caverna conhecedor só de sombras faz um movimento
ascendente. Abandona a caverna, deixa os particulares para adquirir os universais.
Contempla o Sol (idéia de bem). Faz um movimento de retorno, já como filósofo,
com idéias que agora são padrões, normas de compreensão dos particulares. No
entanto, em outros textos, Platão não mostra o movimento descendente, de retorno
do filósofo. Em O Banquete, por exemplo, só interessa ao pensamento a
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admiração do que é o belo. A filosofia iniciava, assim, sua predileção pelo
abstrato e a desqualificação do que é meramente mundano.
Hannah Arendt reconhece que este movimento de descida – de retorno ao
mundo – traz consigo o ato de submeter a vontade, o juízo e a ação prática ao
novo conhecimento conquistado. O que foi contemplado torna-se regra de
conduta. A teoria – o resultado da contemplação – é aquilo que dá acesso a
padrões que serão aplicados ao âmbito da vontade e do juízo. Platão entende a
filosofia – e em conseqüência o pensamento – como geradora de critérios a serem
aplicados no ato de querer e de julgar. Para Hannah Arendt, isto compromete o
pensamento, pois as atividades do espírito são autônomas e não se hierarquizam.
A maneira grega de se entender a verdade entrou em crise com a Nova
Ciência. A Modernidade introduziu, através das experiências científicas, uma
apreensão do real pelos instrumentos especializados que desmentem os sentidos,
por exemplo, o telescópio. É assim quebrada a confiança das relações imediatas
entre sujeito e objeto por intermédio dos sentidos. Conseqüência disto é que a
contemplação é desqualificada, pois se funda neste mesmo modelo. Descartes
deixa isto claro quando afirma que nunca se deve confiar nos sentidos, pois se os
sentidos nos enganam uma vez eles já não podem ser uma fonte fidedigna para o
conhecimento.
Este dualismo da Metafísica – mundo sensível e mundo inteligível – é tão
falacioso quanto à visão instrumentalista e funcionalista da ciência. Para Hannah
Arendt, não há possibilidade de dar um caráter ontológico ao mundo das coisas
invisíveis, ou seja, o que não aparece não pode ser. Como todo dualismo, o
sistema entra em crise ao ter uma de suas partes questionada, isto é, ao pôr em
descrédito o mundo inteligível, a Nova Ciência gera também uma crise na
compreensão do mundo sensível. Acreditava-se que a metafísica, aquilo que não
aparece, que está além da física, era mais verdadeira, mais valiosa, mais real que a
física, aquilo que nos é dado aos olhos do corpo. Este processo de descrença torna
a compreensão do pensamento algo ainda mais complexo e revela uma nova rede
de relações do pensar com os âmbitos do julgar, do querer e do agir. Arendt
chama esta ruptura no modo de entender o pensamento de crise da tradição.
Neste ambiente teórico, Hannah Arendt desenvolve toda a sua arquitetura
conceitual. É principalmente neste movimento de ruptura que podemos enquadrar
suas obras, em especial A Vida do Espírito. Ela aponta para uma crise do
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187
pensamento metafísico. Não se trata, contudo, de uma crise da nossa capacidade
de pensar, mas do modo como tradicionalmente pensamos. O pensamento, mais
do que nunca, quer ser assegurado. Hannah Arendt quer garantir uma autonomia a
ele, para isso recorre especialmente aos limites da razão segundo a tradição
kantiana, como demostrarei a seguir.
Não obstante, a crise da Tradição também envolve a crise na educação e a
crise na cultura, tal como abordou Hannah Arendt em Entre o Passado e o Futuro.
Não falo aqui da “bancarrota da educação progressiva” (ARENDT, 1997:228),
tal como diagnostica a filósofa numa postura atrelada ao conservadorismo
21
e de
total rechaço ao escolanovismo de Dewey. ARENDT (1997:246) declara, por
exemplo, que a “função da escola é ensinar às crianças como o mundo é, e não
instruí-las na arte de viver”, revelando assim uma visão da educação como
adaptação ao mundo. Postura muito distante da perspectiva de Paulo Freire, a meu
juízo mais coerente, na qual a educação é vista como possibilidade de
transformação do mundo. Quiçá, Paulo Freire diria a Hannah Arendt: O mundo
não é, Hannah, o mundo está sendo. Reconheço, mas não corroboro o
posicionamento de Arendt sobre o papel da educação. Refiro-me, então, à crise da
autoridade da escola e da educação como um todo, enquanto âmbitos
representantes da ilustração dicotomizadora do corpo e espírito, do agir e pensar.
Concordo com Hannah Arendt de que é preciso superar a Tradição e a Ilustração,
mas também é preciso superar a perspectiva de que a escola é meramente um
aparato de adaptação dos chegam às regras de funcionamento do mundo tal como
ele é. A meu juízo, Hannah Arendt ajuda a pensar a educação para além da
dimensão cognitiva, ainda que ela mesma talvez não concorde com tal afirmação.
Neste sentido, importa entender a distinção kantiana, adotada por Hannah Arendt,
sobre os âmbitos específicos do que é conhecer e do que é pensar.
3.3.3
Kant: limites entre conhecimento e pensamento.
As diferenças entre pensar e conhecer são fundamentais para se entender a
perspectiva arendtiana em torno da questão do estatuto do pensamento e para
delimitar uma proposta de educação que tenha como objetivo formar sujeitos mais
21
“A fim de evitar mal-entendidos: parece-me que o conservadorismo, no sentido de conservação,
faz parte da essência da atividade educacional (ARENDT, 1997:242).
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tolerantes. Não posso deixar de recordar que, ainda hoje, a escola valoriza muito
mais o acúmulo de saberes e habilidades, em detrimento de uma educação que
incentive a capacidade de reflexão, esta característica humana que Arendt
identifica como fundamental para se evitar o fracasso moral.
Como uma tentativa de se compreender o estatuto do pensamento segundo
Hannah Arendt, não poderia deixar de abordar a distinção entre vernunft (razão) e
verstand (intelecto). Esta distinção abre a possibilidade de estudar o estatuto do
pensamento sob um prisma mais contemporâneo. A possibilidade de se entender o
pensamento como algo diferente do conhecimento refere-se diretamente à
filosofia kantiana. A autora se debruça com dedicação sobre estes conceitos cujas
diferenças Kant pioneiramente as indicou, e segundo ela, tem como principal
efeito a possibilidade de liberar a atividade do pensar.
Para ir adiante com estas questões ARENDT (1995: 42-51) se pergunta
sobre o verdadeiro propósito do conhecimento e suas implicações com a faculdade
do pensar. Ela reconhece que há uma querela no modo como antigos e modernos
entendem o conhecimento. Para os antigos, o conhecimento tem como objetivo
salvar (assegurar) os fenômenos; já para os outros, o conhecimento deve
descobrir (revelar) o que está por trás de tudo aquilo que aparece. Para os
modernos, o conhecimento não deve se desenvolver para assegurar as aparências e
provar que tudo é tal como se apresenta ao mundo dos sentidos. O conhecimento
serve para revelar o que está oculto, o que está funcionando de forma latente, ou
seja, por trás de tudo aquilo que vemos, ouvimos e tocamos.
Apesar das distinções entre antigos e modernos, podemos perceber algo
muito importante que estas visões têm em comum. Para ambas o conhecimento
tem um fim. O conhecimento cumpre sua finalidade alcançando um resultado, seja
ele qual for, revelador do oculto ou o porto-seguro das aparências. Isto significa
que o conhecimento pertence ao mundo das aparências, seu campo de atuação é o
exame das coisas que a nós se apresentam pelos sentidos, para assegurá-las ou
desvelá-las, seu critério segue sendo sempre a evidência. É neste ponto que o
conhecimento científico se identifica com o senso comum. Ambos se afirmam na
evidência que “a ciência é apenas um prolongamento muito refinado do
raciocínio do senso comum” (ARENDT, 1995:43).
Segundo Hannah Arendt, a maior prova que a ciência e o senso comum
estão no mesmo campo de atuação é o conceito de progresso ilimitado. Assim
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como se desfazem os enganos para o senso comum, a ciência corrige seus erros e
progride ilimitadamente. O erro científico, sua possível superação e o caminho do
progresso ilimitado são as provas que o conhecer não tem fim. O conceito de
progresso ilimitado atingiu em cheio a noção de verdade. Em suma, a verdade não
é alcançável. As verdades são históricas e efêmeras, pois o conhecimento
científico move-se dentro das evidências dadas pelo mundo. É aí que ARENDT
(195:44) apresenta uma primeira distinção do conhecimento em relação ao
pensamento: “O pensamento retira-se – radicalmente e por sua própria conta –
deste mundo e de sua natureza evidencial, ao passo que a ciência se beneficia de
uma possível retirada em função de resultados específicos”.
Em seguida, Hannah Arendt aponta para mais uma diferença entre conhecer
e pensar. Enquanto o primeiro é um produtor de resultados e está sempre
interessado em alcançar um fim, o outro “guarda em si uma forte tendência
autodestruitiva” (ARENDT, 1995:44). Por fim, ela apresenta o centro do seu
pensamento quanto a esta questão: a distinção kantiana entre a faculdade de
pensar, a razão (vernunft) e a faculdade de cognição, o intelecto (verstand). Para
Kant, as atividades da razão desejam compreender, entender o significado das
coisas, enquanto o intelecto busca apreender as percepções que são dadas aos
sentidos. A cognição busca apreender a verdade que é apresentada através da
evidência do mundo. O pensamento não busca a verdade, como o fazem o
conhecimento científico e o senso comum. Ele trabalha com os significados. O
pensamento não se interessa com o que é uma coisa, ou se simplesmente esta
coisa existe ou não, mas se dedica ao significado de alguma coisa ser tal qual ela
é. Com o pensamento não se acumulam significados. Já com o intelecto obtêm-se
resultados e se acumulam conhecimentos. Para exemplificar, retomo uma clássica
questão na filosofia: a existência de Deus. Tendo em vista a distinção entre
pensamento e conhecimento, é óbvio que não se pode conhecer a Deus, pois não
se pode experimentá-lo na evidência do mundo sensível. Mas, se a experiência
sensível do conhecimento for delimitada, libera-se o domínio de onde se pode
pensar Deus, entrar em seu significado, experimentá-lo em outro campo. Porém
estes pensamentos sobre Deus não trazem nenhum saber acumulativo. Se alguém
desejar retomar suas experiências de pensar sobre Deus, deverá repensar. Deverá
começar tudo de novo. Os objetos do pensamento são sempre diferentes e
independentes de experiências anteriores, pois não são acumulativos.
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
190
Ao delimitar os domínios de vernunft e de verstand, Kant estava interessado
em assegurar o âmbito das primeiras coisas, as questões privilegiadas da
Metafísica: a existência de Deus, a imortalidade da alma e a possibilidade da
liberdade. Porém, para ARENDT (995:49), “Kant nunca teve completa
consciência de haver liberado a razão e o pensamento, de haver justificado essa
faculdade e a sua atividade, mesmo quando elas não se podem gabar de ter
produzido quaisquer ‘resultados’ positivos”.
Para Kant o importante era abrir um novo espaço para as questões últimas,
mas Hannah Arendt afirma que o que Kant realmente conseguiu foi liberar a
atividade de pensar do compromisso com a verdade e inaugurou o significado do
mundo como a principal conquista do pensamento. No pensamento kantiano,
criticar é estabelecer limites. Na Crítica da Razão Pura, estabeleceram-se os
limites da razão. Segundo a autora, o trabalho de Kant foi estabelecer os limites
do conhecimento, traçar o território da verdade, para encontrar o espaço do
pensamento e do significado. É o exercício de saber até onde o conhecimento
pode chegar, para saber o que não é conhecimento. O conhecimento está
preocupado com a verdade, com ele temos sempre mais, ou seja, podemos
acumular conhecimentos, já com o pensamento o processo é diferente. A Tradição
não faz esta distinção. É Kant, como crítico que a apresenta. Na Metafísica o
pensamento é visto como gerador de critérios para compreender e determinar
outros estatutos: a vontade e o juízo, por exemplo. Para Hannah Arendt, esta visão
compromete o pensamento em sua autonomia, pois para ela apesar do pensamento
poder contribuir no exercício da faculdade do juízo, sua principal característica é
estar liberado do interesse pela verdade.
Trazendo tais considerações para o campo educacional, considero que, fiel
ao seu caráter iluminista, a escola e a universidade continuam educando para a
aquisição de conhecimentos. Mas, se o que se quer é construir a paz, a tolerância e
a solidariedade, então se deveria ir além, isto é, dever-se-ia buscar o significado
do mundo e não apenas as suas verdades. O fracasso moral de Eichmann e de
todos os intolerantes não pode ser entendido como falta de conhecimentos.
Sabemos que o problema não é esse. Muitos fenômenos intolerantes, inclusive,
envolvem pessoas com um alto grau de conhecimentos (científicos, morais e
legais). O mal não se entende com os critérios do conhecimento e da verdade. A
banalidade do mal está intrinsecamente relacionada com a incapacidade de pensar
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
191
e significar (dar sentido a) o mundo. Sendo assim, é urgente uma educação
propiciadora do pensamento e conseqüentemente liberadora da faculdade do juízo.
Uma educação que ajude a dar sentido à vida, ao mundo e à própria atividade de
educar. Tal empreitada educativa poderia – pois não é o objetivo aqui dar
certificados de garantias – contribuir com um ambiente no qual se busque evitar o
fracasso moral, principalmente no que diz respeito ao ódio à diversidade alheia.
A fim de garimpar fundamentos para tal tarefa educativa, é mister continuar
distinguindo o que vem a ser o pensamento nas categorias arendtianas. Uma pista,
então, será entender o pensamento como possibilidade de dar sentido ao mundo.
3.3.4
Pensamento: possibilidades e significados.
Hannah Arendt prossegue na distinção entre conhecer e pensar, trazendo a
análise de Leibniz sobre verdade. Para Leibniz existem dois tipos de verdade:
verdades de fato e verdades da razão. As verdades da razão têm como principal
característica a necessidade e o seu contrário não é possível. No raciocínio
matemático encontramos o modelo e a mais elevada forma de expressão deste tipo
de verdade. Por exemplo, 2 + 2 = 4 é sempre verdadeiro, e algo que, nesta
operação, resulte diferente é falacioso, é um erro, ou seja, é impossível participar
da verdade.
Já as verdades de fato são caracterizadas por sua contingência e o contrário
é sempre possível. O julgamento de Sócrates seria um bom exemplo. Só se pode
chegar às verdades do fato através do que foi deixado em testemunhos. Estas
verdades não podem ser comprovadas universalmente, estão limitadas a um grupo
histórico que as pôde presenciar. Os testemunhos podem ser diferentes, o que
revela a possibilidade de um engano. As verdades de fato não são necessárias e
universais, e um erro é sempre possível. Um fato é sempre contingente e o seu
contrário é uma possibilidade que deve sempre ser levada em conta.
Hannah Arendt introduz esta distinção para apresentar outra possibilidade
de distinguir o conhecer e o pensar. Se por um lado o intelecto busca as verdades
da razão, necessárias e universais numa típica abordagem do conhecimento
científico, por outro lado, a razão – enquanto capacidade do pensar – não busca o
que é contingente, efêmero, transitório. Aqui uma oposição direta entre universal
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
192
e contingente seria enganosa para a caracterização do pensamento. As verdades de
fato indicam as possibilidades de pensar para além das categorias de falso ou
verdadeiro, de engano ou acerto. Segundo Arendt, o que se contrapõe à
necessidade não é a contingência, mas a liberdade, a possibilidade de pensar fora
das categorias do conhecimento objetivo. Sendo assim, a autora oferece outra
pista para entender o pensamento como uma atividade livre e significativa.
Para Hannah Arendt, não existem verdades além das verdades dos fatos,
inclusive as verdades do conhecimento científico são verdades factuais, tal como
já demonstrei com Karl Popper. Basta retomar mais uma vez o exemplo do
progresso ilimitado como argumento. O conhecimento em sua busca por aquilo
que se constitui verdade, vai produzindo resultados e deixando-os ao longo do
caminho. Geralmente estes resultados são superados, pois todo conhecer, de fato,
traz em si a possibilidade do erro – se assim não fosse, não haveria a idéia de
progresso.
A atividade do pensar ao contrário não produz nada, não deixa nada
constituído. O pensador, ao abandonar os seus pensamentos, não está de posse de
nenhum saber, nenhuma regra de concepção ou de garantias que lhe sirvam para
engendrar alguma ciência. O pensamento não produz resultados. Sua busca é pelo
significado e sua atividade não é necessariamente válida nem contingente, é
essencialmente livre e significativa. O pensamento não resulta em verdades nem
produz erros ou acertos como o ato de conhecer.
A Filosofia Moderna, que pôs a Tradição em crise, reduziu o pensar ao
conhecer. Esta visão limita – não no sentido kantiano – o pensamento, pois ele
não é interessado na verdade, mas no significado. A razão, como faculdade do
pensar nos possibilita buscar o significado das coisas, mas não nos possibilita
conhecê-las nem manipulá-las.
Hannah Arendt chama atenção para a possibilidade das coisas serem em si
mesmas. Elas são como são, não como gostaríamos que fossem. As realidades do
âmbito do pensamento são as coisas em si. Como afirmei, para Kant, as grandes
questões filosóficas estão no âmbito do pensamento: a existência de Deus, a
imortalidade da alma e a possibilidade da liberdade. Tais questões não podem ser
colocadas no âmbito do conhecimento. O pensamento é a possibilidade de contato
com estes temas, que não são coisas-objetos, porque senão seria função do
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
193
conhecimento manipulá-las. As coisas em si são as realidades que não se pode
conhecer, mas tão somente pensá-las, significá-las.
A partir do âmbito do conhecimento é possível entender o âmbito do
pensamento. Só que muitas vezes nos damos por satisfeitos com a verdade e
paramos nela. A razão da qual nos fala Hannah Arendt quer ir além da verdade,
ela quer o significado das coisas. O conhecimento conhece seu fim, o pensamento
nunca. O conhecimento manipula, experimenta, demonstra, prova e pára. O
pensamento não, ele continua no significado, vai além.
Quero destacar aqui mais uma possibilidade de fundamento para o tipo de
educação que estou tentando sinalizar neste trabalho. De fato, a partir de um ponto
de vista mais amplo, não é possível considerar a educação como mera transmissão
de informações ou conteúdos. Educar não pode – sob nenhuma hipótese – estar
restrito aos atos de manipular, experimentar, demonstrar, provar e acumular
conhecimentos. O pensamento educacional contemporâneo tem assinalado, por
exemplo, que a crise dos processos educativos não está nos mecanismos de
transmissão e assimilação de conteúdos, mas no fato de que estes conteúdos não
fazem sentido para aqueles que os recebem (GIMENO SACRISTÁN: 2001:220).
E ressalto, mais uma vez, seguindo a sugestão de Arendt, que dar sentido é tarefa
da razão enquanto pensamento e não intelecto enquanto conhecimento. Mas, dar
sentido a quê? Ao mundo que habitamos, diria Hannah Arendt. Ao mundo que
nos aparece e no qual aparecemos. O mundo das aparências, onde nos
movimentamos e nos humanizamos.
3.3.5
O mundo das aparências.
Uma das principais características do estatuto do pensamento para Hannah
Arendt é a sua retirada do mundo, como veremos no próximo item. Mas antes de
buscar as reflexões sobre o que consiste e como se dá esta retirada do pensamento
do mundo, considero necessário entender o que significa o mundo para a autora,
mais especificadamente o mundo das aparências. É importante, neste contexto,
entender as principais considerações arendtianas acerca do que vem a ser aparecer
e quais suas implicações para o pensamento, que é um elemento inerente à vida
humana, mas que não aparece.
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
194
O que há de comum entre as coisas que compõem o mundo é a
característica de aparecer. Aparecer significa ser percebido sensorialmente por
alguém, isto é, sofrer a percepção através dos sentidos da visão, da audição, do
tato, do olfato e do paladar de um outro. Ser percebido por um outro é a própria
garantia de algo ser no mundo das aparências. Ser alguma coisa neste mundo
significa aparecer de alguma forma para algum espectador. Nada pode garantir
sua existência sem os órgãos sensoriais de um outro ente. Para Hannah Arendt,
“ser e aparecer coincidem” (ARENDT, 1995:17).
Até mesmo nós, seres humanos, sempre concebidos como os sujeitos por
excelência, só somos na medida em que podemos também ser identificados pelos
sentidos de outros animais, humanos ou não. Nunca somos somente sujeitos.
Somos, porque primordialmente somos objetos. Não há sujeito que não seja
também objeto. Neste sentido, Hannah Arendt desqualifica totalmente o cogito
cartesiano, pois para ela é impossível garantir a existência com o simples ato de
aparecer para si próprio. A autoconsciência não basta a si mesma, até porque o
fato de estar ciente de si só se sustenta com a consciência de ser uma aparência
que outros também percebem.
É importante desde o início alertar para a possível confusão dos termos
aparecer e aparentar. Aparecer implica ser percebido por uma vasta pluralidade
de espectadores com órgãos sensoriais bem distintos (o ser humano não tem o
olfato como o de um cão e um hipopótamo não enxerga como uma coruja, por
exemplo). Daí a possibilidade sempre evidente de algo aparentar várias formas,
independente do fato dele aparecer. Para nós, criaturas dotadas de sentidos, o
mundo sempre nos aparece e nos aparenta algo, ou seja, a aparência sempre
aparenta alguma coisa para um espectador. É desta maneira que podemos
identificar a variedade de aparições e de sentidos. Um mesmo ser pode aparentar
diversas formas de acordo com os sentidos que o percebe.
Hannah Arendt busca rever a visão dicotômica do mundo dividido entre
essências e aparências, recuperando e revalorizando o âmbito mundano das coisas.
A Metafísica sempre dividiu o mundo entre essência / aparência; verdade /
engano; transcendente / imanente; inteligível / sensível; alma / corpo, com a
conhecida valorização dos primeiros elementos dos pares e o desprestígio e o
desprezo por tudo que fosse mundano, corpóreo e percebido pelos sentidos, ou
seja, a segunda parte deste sistema dual. Hannah Arendt chama a atenção para o
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195
fato de que, apesar deste dualismo, a primazia é da aparência, pois até mesmo o
filósofo descrito por Platão no Mito da Caverna tem que sair do seu mundo
natural, original e adentrar-se em um outro. Os metafísicos não podem fugir do
fato que a chamada mera aparência é anterior a qualquer lugar que o filósofo
possa escolher como verdadeira morada. O que possibilita ao filósofo pensar algo
para além daquilo que aparece é em última instância a própria qualidade de
aparecer das coisas.
A verdade do espírito é a verdade que se revela – alethéia (ARENDT,
1995:20). Esta verdade nada mais é que outro fenômeno que aparece. Assim,
trocam-se os órgãos sensoriais, os sentidos físicos pelos sentidos inteligíveis do
espírito, porém continuam as mesmas categorias. Algo aparece e outro alguém o
percebe. O espírito, tal como os sentidos do corpo, é dotado para receber o que se
apresenta. Mudam-se tão somente os planos referenciais.
Há certa crença que a aparência é fundamentada por algo que não é ela
mesma, como se ela surgisse de algo e voltasse a ele quando desaparece. Essas
teorias sempre investiram contra as aparências. Hannah Arendt reagiu firmemente
contra tais teorias e reafirma a primazia da aparência. Não há outra possibilidade.
O cientista e o filósofo sempre voltam a ela e tudo que descobrem ou teorizam é
para decodificá-la. A Metafísica sempre pretendeu um fundamento, uma causa.
De forma que esta causa diminui em valor o seu efeito. E ainda mais, para a
Metafísica, as aparências além de não ser a verdade, escondem-na do observador.
As aparências ocultam o que há de mais importante. É duplamente desvantajosa:
não é a verdade e ainda esconde a verdade. A Nova Ciência deu ainda mais ânimo
aos argumentos de que algo se esconde nas aparências. E é supostamente este algo
fundamental que o ser humano deve dominar para controlar o mundo das
aparências. Porém, nenhum ser humano vive num mundo de causas, todos
vivemos onde as coisas espontaneamente aparecem. A vida cotidiana ainda só é
possível acontecer assim.
A Metafísica gerou, a partir deste dualismo do mundo, uma série de
falácias. Uma delas é associar aparência ao erro, ao engano. Não se pode dizer que
erros e ilusões são intrínsecos às aparências e nem que eliminadas as aparências se
pode evitá-los. Ao romper uma aparência ilusória ou errônea, o que se apresenta é
uma nova aparência. O conhecimento científico herdado da Modernidade mantém
a dicotomia entre (verdadeiro) ser e (meras) aparências, só que o discurso vem
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
196
fundamentado em um suposto funcionalismo. Argumenta-se uma qualidade
secundária para as aparências em relação aos organismos internos que teriam
qualidades essenciais.
É no mínimo interessante como Hannah Arendt busca desqualificar tal
argumentação. Baseada nas idéias do biólogo Adolf Portman, ela propõe uma
inversão da hierarquia metafísica, buscando a revalorização das aparências do
mundo como realidades fundamentais. Segundo Portman, não são as aparências
que funcionam a fim de proteger os órgãos internos de um ser vivo, mas são os
órgãos escondidos que servem de apoio e realidade secundária para o mais
importante que é aparecer. Um argumento interessante que Portman levanta é
sobre a plumagem dos pássaros. Segundo o biólogo a plumagem dos pássaros não
tem somente a função de proteger o corpo do animal como se lê nas teorias
funcionalistas da aparência, se assim fosse como explicaríamos a variedade de
tipos e cores. Portman aponta para o poder máximo de expressão daquilo que está
do lado de fora do corpo. Para ele o mais importante de nós não está no interior,
mas na exterioridade. As aparências verdadeiramente nos revelam e nos
identificam. A superfície, nesta concepção, de maneira nenhuma é superficial.
Apesar de buscar a revalorização e a supremacia das aparências, Hannah
Arendt admite que a Metafísica tem seus acertos. Ela reconhece que em relação a
uma determinada percepção a Tradição nunca se enganou: o pensamento não é
desse mundo que aparece. É fácil perceber que o pensamento trabalha com os
objetos do mundo, através da memória ou da imaginação, mas estes mesmos
elementos fazem do pensamento uma realidade extra-mundana. A Metafísica
errou ao desvalorizar as aparências, mas teve sempre razão enquanto conceituava
o ato de pensar. Pensar é não estar neste mundo de aparências.
Ora, um projeto educativo que valorize as diferenças e a tolerância,
enquanto convivência pacífica entre diferentes e opostos, encontra nesta
percepção de Hannah Arendt outro fundamento. Refiro-me ao esforço de Arendt
de entender as aparências como riquezas fundamentais e de desmontar as
abordagens que submetem a aparência a uma essência universal e, por isso,
supostamente mais adequada de ser defendida. Tal como facilmente percebemos,
as diferenças (de gênero, etnia, orientação sexual, pertencimento, religião etc.)
pertencem ao mundo das aparências e tal afirmação não quer aqui significar nada
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
197
de secundário ou superficial. Pelo contrário, o que aparece é, ou dito de outra
forma, somos na medida em que aparecemos.
Seguindo as sugestões de Arendt e Portman, a maneira com qual
aparecemos no mundo – nossas diferenças identitárias – é a riqueza de nossa
existência enquanto seres que se revelam ao mundo e são reveladores de outros
seres neste mesmo mundo. A valorização da exterioridade da aparência é, a meu
juízo, uma possibilidade de fundamentar filosoficamente a riqueza do pluralismo,
para além do mundo da política e da ética, como substrato mesmo de nossa
condição humana. Tal fundamento implica diretamente em desenhos educativos
que visem valorizar, respeitar e garantir às diferenças como expressão, riqueza e
identidade de nossa condição de seres aparentes e reveladores de aparências num
mundo de aparências. Insisto que o mais importante é a possibilidade de dar à
aparência um lugar central na tarefa educativa e não apenas um sentido de
superficialidade ou de contingência. Tal possibilidade funciona, a meu modo de
ver, como questionamento profundo a uma educação universalista, que é, em
geral, desatenta, desrespeitosa e intolerante com as diferenças humanas.
No entanto, há ainda uma contradição que é preciso elucidar a partir do
pensamento de Hannah Arendt: como entender o pensamento como invisível num
mundo de aparências identitárias e reveladoras? Neste sentido, importa destacar
como e por que o pensamento é, em Hannah Arendt, invisibilidade e retirada do
mundo das aparências.
3.3.6
Invisibilidade e retirada do mundo.
Se tivéssemos que classificar a obra de Hannah Arendt dentre uma das
diversas vertentes da filosofia, poderíamos identificá-la com a fenomenologia.
Hannah Arendt é conhecida por seus escritos políticos e no que diz respeito à sua
obra mais filosófica, A Vida do Espírito, logo se destaca a sua posição crítica em
relação à Tradição e à Modernidade. Como vimos no item anterior, Hannah
Arendt busca revelar a primazia da aparência e dos fenômenos, pondo em cheque
uma visão dualista do mundo. Tendo esses dados de início, qualquer leitor ou
leitora ficaria surpreso se não houvesse mais comentários sobre o que significa
entender o pensamento como invisível e como retirada do mundo.
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198
Em As Atividades Espirituais em um Mundo de Aparências, ARENDT
(1995:53-95) trata daquilo que ela denomina os acertos da Metafísica. Inclusive, a
autora reconhece que apesar da Metafísica ter entrado em descrédito, ela é o único
caminho que temos para examinar questões acerca do que é o pensar. É na
tradição filosófica, apesar da crise, que se pode encontrar o que se tem de mais
significativo sobre as atividades do pensar, do querer e do julgar.
Pensar, querer e julgar são as atividades básicas da vida do espírito, e,
segundo Hannah Arendt, são atividades autônomas. Ainda que mantenham uma
rede de relação entre elas, cada uma é determinada por lógicas específicas
inerentes a cada atividade. Mas o que estas três atividades da vida do espírito têm
em comum é a quietude. A quietude pode ser analisada pelas diferenças que
Hannah Arendt apresenta entre a vida do espírito em relação ao que comumente se
chama de alma. Alma é onde sofremos as paixões, onde vivemos os sentimentos e
emoções. Foi a partir da quietude que muito se afirmou sobre a impotência do
espírito, enquanto se falava da força das paixões. A autonomia e a quietude das
atividades espirituais notam-se pelo fato das situações da vida em nada as
condicionar e também pelo fato das atividades espirituais em nada alterarem a
vida e seu decurso próprio. Não quero afirmar que exista uma indiferença do
pensamento com os fatos da vida, mas tão somente alertar que pensar não altera
diretamente nada no mundo.
Diante disto, visto pela perspectiva do mundo, o pensamento não é nada útil
e tem como sua principal característica a invisibilidade (ARENDT, 1995:57). As
paixões da alma também são invisíveis. A diferença é que, na verdade, a alma é
sempre passiva. Sofre (do grego pathos) os sentimentos, as paixões. Ao contrário
do que sempre se acreditou, para Hannah Arendt, o espírito é ativo. O que
caracteriza a manifestação das atividades do espírito é o alheamento, a distração
do mundo. O estar quieto do filósofo, não é passividade, mas a manifestação da
pura atividade espiritual, enquanto que a alma passiva de emoções, manifesta-se
em atitudes apaixonadas e até somáticas (pensemos num rosto corado por um
encabulamento ou uma taquicardia provocada por uma forte emoção). Por mais
contraditório que pareça – a uma primeira vista – a quietude do ato de pensar é a
pura atividade e as ações e reações da alma é que são manifestações de
passividade.
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
199
As atividades do espírito, em especial o pensar, nunca param num objeto tal
qual ele é dado aos sentidos. O pensamento sempre vai além do aspecto sensorial
de um objeto. Na verdade, o pensamento é o ato de desensorializar objetos e a
partir deles – no estar só, na quietude – estabelecer um diálogo consigo mesmo,
um relacionar-se em si próprio.
Hannah Arendt difere estar só de solidão. Esta distinção remonta a outras
obras da autora
22
. “Estar só” é um “estado existencial no qual faço companhia a
mim mesmo” (ARENDT, 1995:58). “Solidão” é o estado no “qual também me
encontro sozinho, mas abandonado não apenas de companhia humana, mas
também de minha própria companhia” (ARENDT, 1995:59).
Segundo Hannah Arendt, o pensar é o diálogo sem som do eu consigo
mesmo, porém apesar deste diálogo ser silencioso ele nunca é vazio, sem sentido.
Este estar só, dialogando sem som, é um ato profundo e fecundo enquanto
natureza reflexiva do espírito. Estar abandonado por si mesmo constitui uma
realidade bastante comum para os seres humanos nestes tempos sombrios, tal
como Hannah Arendt analisou nos processos de massificação das sociedades
modernas e autoritárias. Estar presente para si mesmo é o esforço que Hannah
Arendt propõe a fim de eliminar qualquer possibilidade de despersonalização e de
submissão aos sistemas politicamente autoritários.
É unânime a noção que o pensar é uma atividade que não aparece. Porém,
esta atividade acontece mediada por um mundo de aparências, através de seres
que essencialmente são aparências. Hannah Arendt apresenta então outra
característica para se entender o pensamento: o pensar só pode ser compreendido
como uma atividade que para acontecer tem que se retirar do mundo das
aparências. O pensamento obtém seus objetos no mundo sensível, retira-os deste
mundo e também se retira. Os objetos do mundo sensível são apenas pontos de
partida, funcionam como agentes que iniciam um processo e mais complexo.
Pensar requer do sujeito retirar-se da aparência, desensorializando os objetos,
pessoas ou fatos que o levam a pensar, e sozinho – num diálogo consigo mesmo –
examiná-los na própria ausência dos objetos, mas na presença do seu próprio eu.
Pela memória se pode refazer a imagem de um objeto ausente e pela
imaginação se pode criar algo inexistente. Porém, imaginar algo não significa
22
Refiro-me à obra Origens do Totalitarismo, na qual a autora indica a solidão como condição
para os sistemas totalitários.
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
200
estar pensando algo. Imaginar não é pensar. Tampouco rememorar. O espírito em
suas atividades sempre opera com coisas ausentes e vai sempre à busca do
entendimento, do significado. Todo pensar é um repensar, com a ajuda da
memória e da imaginação, sobre algo afastado pelo próprio pensamento e por sua
retirada do mundo. Hannah Arendt reconhece que a falácia da Metafísica em torno
das teorias dualistas surgiram de uma percepção genuína: pensar é estar retirado
temporariamente do mundo das aparências.
Antes de prosseguir, retomo os dois pontos centrais do pensamento
arendtiano que, no entanto, podem parecer opostos e contraditórios: (1) o mundo é
uma realidade que tem como principal característica a aparência e (2) pensar é
uma atividade invisível, retirada do mundo e marcada pela distração. Como o
pensamento pode ser uma ação – passiva de processos educativos – se é invisível
para o mundo de aparências no qual vivemos enquanto humanos? Como garantir
ao pensamento uma existência ativa, para através dele poder estar atentos às
coisas do mundo e, dentro da hipótese que a Hannah Arendt levanta, possibilitar
as condições que levam os seres humanos a se absterem do mal? É num misto de
atenção e alheamento, de aparência e invisibilidade, de ação e quietude, que
Hannah Arendt examina a prática dos filósofos no decorrer dos tempos, bem
como as mais fecundas definições sobre o que venha a ser o pensamento. Aqui
vejo mais uma possibilidade de entender a educação como um projeto que vise
possibilitar o pensamento e evitar a banalidade do mal intolerante.
3.3.7
O não-lugar do pensamento.
Os filósofos, em sua maioria, sempre ostentaram certo desprezo e
distanciamento da população. Os populares por sua vez nunca entenderam aqueles
sujeitos estranhos que nada fazem e se dedicam a uma atividade totalmente inútil,
mesmo que respeitada e cercada por certa áurea de nobreza. Os indivíduos do
senso comum sem entender o estranhamento dos que pensam, reservaram-lhe o
riso e a situação de ridículo. A camponesa trácia, riu de Tales de Mileto ao vê-lo
cair num buraco distraído com as estrelas. O riso e o deboche em torno dos
filósofos os levaram a buscar um lugar de nobreza, de suposta superioridade
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201
intelectual, para garantir a própria aceitação e um espaço social neste mundo
aparentemente tão estranho para a atividade do pensar.
Hannah Arendt acredita que o caráter invisível do pensamento provoca
invariavelmente dois desejos nos filósofos. O primeiro desejo é viver em um
além; onde as coisas do pensamento sejam tão presentes quanto os objetos
sensíveis são neste mundo. O segundo desejo é estar livre de todas as coisas, de
qualquer ocupação, estar livre do próprio corpo. Daí a dicotomia tão negada e,
contraditoriamente, tão desejada entre corpo e espírito.
Este caráter além-física do pensamento revela-o como uma atividade de
alternância entre estar e não estar no mundo. Isto significa que ser e pensar são
realidades que não são concomitantes. Quando se pensa não se está mais no
mundo, por isso não se é. Tantôt je pense, tantôt je suis, de acordo com Paul
Valéry. E segundo Hannah Arendt:
Quando estou pensando não me encontro onde realmente estou; estou cercada não
por objetos sensíveis, mas por imagens invisíveis para os outros. É como se eu
tivesse me retirado para uma terra dos invisíveis, da qual nada poderia saber, não
fosse esta faculdade que tenho de lembrar e imaginar. O pensamento anula
distâncias temporais e espaciais. Posso antecipar o futuro, pensá-lo como se já
fosse presente, e lembrar do passado como se ele não tivesse desaparecido.
(ARENDT, 1995:67).
Como afirmei anteriormente, as atividades espirituais são marcadas pela
quietude. Esta quietude, o estar só do pensamento, aponta para uma atividade
invisível. Ela parte dos objetos sensíveis, porém se retira deste mundo já sem eles
e se realiza neste outro lugar: o lugar do pensamento. Talvez, por enquanto possa
chamá-lo de o não lugar. Pensar é retirar-se do mundo e partir para o não lugar.
Acrescente-se a tudo isso o aspecto autodestrutivo do pensamento, como já havia
de certa forma indicado, quando tratei de limitar pensar e conhecer a partir do
referencial teórico de Kant.
Pensar não constrói nada. O pensamento é uma atividade que não deixa
para trás nenhum rastro. E mais do que isso, o pensamento só se revela no próprio
ato de pensar. O pensamento é autodestrutivo, traz dentro de sua própria atividade
a capacidade de eliminar-se. Pensar é sempre recomeçar do zero.
Daí se depreende que o pensamento é como a teia de Penélope, desfaz-se toda
manhã o que se terminou de fazer na noite anterior. Pois a necessidade de pensar
jamais pode ser satisfeita por insights supostamente precisos de “homens sábios”.
Essa necessidade só pode ser satisfeita pelo próprio pensamento, e os pensamentos
que ontem tive irão satisfazer essa necessidade, hoje, apenas porque quero e porque
sou capaz de pensá-los novamente. (ARENDT, 1995:69).
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
202
Tendo em vista a invisibilidade do pensamento e a sua retirada do mundo,
somando-se ainda à manifestação destas atividades que são marcadas pela
quietude, comumente o filósofo revela-se muito mais um espectador da vida e do
seu curso histórico do que um participante das atividades do mundo. O pensador
como tradicionalmente é apresentado pela história da filosofia não se envolve
diretamente nas questões e nas decisões da cidade, todavia, para Hannah Arendt,
este ato não deve ser compreendido como uma escolha deliberada por um
elitismo aristocrático.
Para Arendt, ser espectador dá ao filósofo o melhor lugar, pois são óbvias
as vantagens do espectador em reconhecer e compreender uma ação em relação
ao lugar que o agente da própria ação ocupa. Isto se dá não pelo fato de desejar
uma fuga das atividades do mundo real, não se trata de negar um necessário
envolvimento político com os eventos da cidade. O pensador toma para si o lugar
da platéia porque ele busca o significado de cada coisa, de cada ato. O significado
está inerente ao ato de pensar, e aquele ou aquela que pensa é inevitavelmente
afetado pelos fatos e pelas coisas, porém ele não os transforma em simples dados
de análises ou cognição, mas a partir deles vai além, compreende, dá significado.
Num ato de retirada e distanciamento daquilo que o cerca – mesmo que presente
de corpo – o “espectador-pensador” assiste ao longe e assim compreende melhor;
não por ele ser simplesmente mais capacitado, mas por ocupar o melhor lugar,
pois ele reservou a possibilidade de contemplar e dar significado, pela sua
compreensão, ao que se passa no espetáculo.
Como a atividade do pensador é invisível e autodestrutiva, talvez
deveríamos nos perguntar se a camponesa trácia não teria razão, pois a filosofia
se apresenta como algo inútil e que expõem os que a exercem a um ridículo
constante. Para um possível encaminhamento de respostas para esta questão,
poderíamos dizer que o pensar não é um ato inútil e sem necessidades.
Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não
deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes estabelecidos for
útil; se buscar compreender a significação do mundo, da cultura, da história for
útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas ciências e na
política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem
conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a
felicidade for útil, então podemos dizer que a filosofia é o mais útil de todos os
saberes que os seres humanos são capazes. (CHAUÍ, 2001:18).
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203
Se for reservado ao pensador o lugar do espectador, pode-se concluir que
cabe a ele/ela dar o sentido e a compreensão do espetáculo da vida. Assim, não
importa a intenção de quem realiza a ação, porém a de quem a compreende. Só
quem mantém certa distância do fato é que consegue, devido ao seu ponto de
vista, compreendê-lo mais globalmente.
Se o pensamento é invisível e retirado do mundo, aquele ou aquela que se
propõe a pensar joga-se num caminho incerto, sem resultados garantidos tanto
para a prática quanto para a cognição. A esperança talvez resida no lugar que lhe
é conferido. O pensador é o espectador que desvela pela contemplação o sentido
do espetáculo da vida cotidiana. Ainda assim é duvidoso, pois é ao ator que se
destina a glória, pois é pela sua ação que se transforma o mundo e também por ela
a história encontra seu rumo. Os heróis são invariavelmente indivíduos que
sabem agir. Os filósofos são indivíduos que sabem interpretar a ação, dar sentido
a ela, compreendê-la.
Se pensar é sempre um repensar, ou seja, é o ato de repassar as coisas ou
acontecimentos pelo crivo da razão, a faculdade do pensamento, então, aponta
para duas realidades muito importantes. Primeiro, o pensamento não exclui
definitivamente a ação. Aquele que escolher o ato de pensar não estará inabilitado
para opinar, agir e interagir na sociedade. Pois se pode participar efetivamente da
vida da cidade e pela exigência inerente à própria razão repensar o fato e dar-lhe
o devido significado. Pode-se pensar antes ou depois de qualquer intervenção na
história, pois o pensamento pode trazer presente um fato futuro e por outro lado
pode refazer, rememorar um fato passado. Segundo, o pensamento não é
exclusividade de nenhuma casta ou grupo de privilegiados. Hannah Arendt nos
revela que o pensamento deve ser uma exigência para todo e qualquer indivíduo.
Todo aquele/a que age pode e deve pensar. O pensamento é uma exigência e um
compromisso contra toda ordem autoritária e a favor da formação de indivíduos
livres na ação e na construção de seus significados.
No que diz respeito à educação, creio que neste ponto Arendt oferece duas
considerações bastante significativas, que implicam alguns questionamentos
perscrutadores. Primeiro: há no processo do pensar uma quietude, uma não
manifestação no mundo das aparências, que é o diálogo interno sem som de
quando se está só, de quando se está diante de si mesmo. Tal quietude – basilar
para a ação do pensamento – poderia, então, questionar nossa prática educativa:
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
204
valorizamos tal serenidade nos processos educacionais? Incentivamos em nossas
práticas educativas o diálogo intra-subjetivo? A quietude tem lugar entre nós
educadores/as? Ou, ao revés, a voz, a fala, a palavra sempre dita e repetida é o
que mais prevalece? Segundo: o valor positivo do lugar do espectador, isto é,
estar na assistência não significa necessariamente passividade e pode reservar um
lugar privilegiado para se ver e entender a ação. Numa perspectiva supostamente
progressista da educação, em geral, valoriza-se a ação, a atuação transformadora.
Ser espectador parece ser a opção daquele que toma para si o papel de passivo,
omisso, indiferente. Neste sentido, uma educação que valorize o pensamento
como possibilidade de se evitar o fracasso moral intolerante deveria se perguntar:
há espaço em nossas salas de aula, em nossas instituições educativas, em nossos
projetos pedagógicos para olhar o espetáculo da vida, com o distanciamento
necessário para saber ver e significar o mundo das aparências?
Tendo em vista tais questionamentos, importa seguir o caminho com
Hannah Arendt a fim de recolher novos elementos sobre a dimensão do pensar.
Seguirei a idéia já anunciada do diálogo intra-subjetivo.
3.3.8
Sócrates e o diálogo interno.
No volume O Pensar de A Vida do Espírito, Hannah Arendt propõe-se a
responder a questão “O que nos faz pensar?” (ARENDT, 1995:97-146). Num
primeiro momento, ela examina e nos oferece suas reflexões sobre as respostas
historicamente apresentadas pela filosofia. Platão define a origem do pensamento
como thauma, um espanto, uma admiração. É o ato e a capacidade de ser tocado
pelas coisas. Os romanos viam na origem do pensamento uma fuga, um abandono
da dimensão perecível da realidade para a segurança do mundo das idéias. Para
eles, os seres humanos se encontravam mais seguros em um outro mundo, no
mundo da imortalidade. Na Modernidade, o espanto e a fuga são substituídos pela
dúvida metódica. A era cartesiana desqualifica os sentidos e redefine a origem do
pensamento. Mais do que isso, Descartes afirma a possibilidade da própria
existência no racionalismo puro e indubitável. No entanto, em sua vertente
empirista a Modernidade também defende que o pensamento vem das
experiências.
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
205
Hannah Arendt busca colher o melhor de cada resposta e ao mesmo tempo
desqualifica todas elas, talvez por serem profissionais demais. Para Arendt, os
gregos cometeram o erro de confiar demais na possibilidade da verdade se
manifestar e na nossa capacidade de apreender estas verdades, que segundo Platão
estão fora da mente humana. Descartes coloca em cheque o thauma da Grécia. Os
instrumentos da Nova Ciência revelam realidades impossíveis para os sentidos,
consequentemente para qualquer maneira de perceber. Porém, um porto-seguro
baseado na instropecção do sujeito é algo também problemático e falacioso. Para
Hannah Arendt não há possibilidade de uma existência sem aparência. Já
demonstrei que para a autora ser é aparecer. A resposta de Hannah Arendt está
mais próxima da resposta dos romanos: pensar é abandonar o mundo. Porém, ela
não entende o pensamento como fuga dos problemas mundanos. O pensamento
não pode ser entendido como um virar as costas às coisas do mundo, às
aparências, mas sim como uma abertura, como uma interrupção com o cotidiano.
Não é fuga nem descompromisso, mas um abandono que favorece a possibilidade
de reaproximar-se das coisas com um novo olhar.
Hannah Arendt busca um filósofo que consiga estar à vontade entre estas
duas dimensões da vida, ou seja, o cotidiano e o pensamento:
O melhor, e na verdade o único modo que me ocorre para dar conta da pergunta, é
procurar um modelo, um exemplo de pensador não profissional que unifique em
sua pessoa duas paixões aparentemente contraditórias, a de pensar e a de agir. Essa
união não deve ser entendida como a ânsia de aplicar seus pensamentos ou
estabelecer padrões teóricos para a ação, mas tem o sentido muito mais relevante
do estar à vontade nas duas esferas e ser capaz de passar de uma à outra
aparentemente com a maior facilidade, do mesmo modo como nós avançamos e
recuamos constantemente entre o mundo das aparências e a necessidade de refletir
sobre ele. (ARENDT, 1995:126).
Para a autora, a grande resposta é a socrática. Sócrates é o sujeito que sabe
transitar entre o mundo das aparências e o mundo do pensamento. Ele não tem o
desprezo dos pensadores profissionais pelo caráter concreto das coisas. Dentro da
história da filosofia, poucos mostraram tanta familiaridade com o pensar e a vida
em sua mundanidade.
A primeira característica que Hannah Arendt levanta sobre a personalidade
de Sócrates é a aporia que se encontra nos diálogos socráticos. O diálogo entre
Sócrates e seus pares sempre acontece a partir de conceitos simples, que
confrontam o cotidiano. As questões geralmente são sem saída. A discussão fica
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sempre presa a um círculo de perguntas e respostas que parecem encadeadas e
nunca atingem um ponto final. Nestes diálogos, pode-se comprovar mais uma vez
que o pensamento não produz resultados, não apresenta nenhum saber que se
possa acumular. O pensamento questiona, analisa, perpassa cada coisa, fato, ou
pessoa que se apresenta, mas toda esta atividade não deixa nenhum rastro.
Sócrates examina as questões a partir da vida diária, coisas que todos podem
compreender: fatos justos, coisas belas, atitudes piedosas etc. A partir disto,
Sócrates investiga o que é a justiça, a beleza, a piedade. Para Aristóteles, Sócrates
inventou o conceito. Hannah Arendt quer algo mais, quer entender o que Sócrates
faz com os conceitos. O conceito é um termo geral que abrevia todos os
particulares. Uma abreviatura necessária à rapidez do pensamento. O conceito é
como um pensamento congelado pela linguagem. Sócrates, através do ato de
pensar, tenta desfazer este processo. Tenta descongelar aquela palavra em
discussão. Falando e pensando no significado de cada palavra, de cada conceito,
pode-se descobrir quantas coisas e experiências estão abreviadas nelas. Sócrates
parecia não acreditar que a virtude pudesse ser ensinada, porém Hannah Arendt
acredita que para ele o ato de falar e pensar sobre justiça, piedade, sabedoria,
coragem etc. poderia tornar os cidadãos atenienses mais justos, pios, sábios e
corajosos. Talvez este seja um dos principais objetivos de Hannah Arendt: provar
que se Eichmann estivesse mais atento, pensando e falando sobre justiça, piedade,
sabedoria e coragem ele não seria tão injusto, impiedoso, ignorante e covarde. Ele
teria, pelo simples ato de pensar, mais habilidade com a atividade do juízo.
Segundo Heidegger, o pensamento é fora de ordem, é como um vento, vem
de lugar nenhum, sopra aonde quer e ninguém pode detê-lo. O vento do
pensamento vem, perpassa o ser pensante e retorna de volta para nenhum lugar.
Não se tem nenhum controle sobre o pensamento, nem se pode construir nada a
partir dele. Não se pode também atingir critérios ou regras com o pensar, ao
contrário ele provoca desordem por todos os lugares por onde passa. Para
Heidegger, Sócrates foi o filósofo mais puro do Ocidente, pois ele se expôs
totalmente a este vento.
Durante toda a sua vida e até a hora da morte, Sócrates não fez mais do que se
colocar no meio desta correnteza, desta ventania [do pensamento], e nela manter-
se. Eis porque ele é o pensador mais puro do Ocidente. Eis porque ele não escreveu
nada. Pois quem sai do pensamento e começa a escrever tem que se parecer com as
pessoas que se refugiam, em um abrigo, de um vento muito forte para elas... Todos
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
207
os pensadores posteriores a Sócrates, apesar de sua grandeza, são como estes
refugiados. (ARENDT, 1995:131).
A principal característica deste vento é a desordem. O vento é aquele que
devido a sua natureza incontrolável desfaz e, às vezes, até bagunça o que estava
anteriormente arrumado. O vento do pensamento desfaz os conceitos, desestrutura
esquemas, cria uma nova e inesperada situação. Sócrates enfrenta o vento. Ele não
se escondeu, porém não sai impune a esta situação. Sócrates, a cada ventania, é
um homem diferente. Cada vez que uma pergunta retorna ao seu ponto de partida
há algo de novo para ele. Esta entrega total ao vento do pensar dá a Sócrates
algumas características que Hannah Arendt descreve em três metáforas, que são
de fundamental análise.
Na primeira metáfora, Sócrates é comparado a um moscardo
23
. Moscardo é
um inseto que nos ferroa retirando-nos do sono. Sócrates sabe como ferroar os
cidadãos atenienses para que não continuem a dormir durante a vida. O sono
conceitual é uma realidade sempre presente em nossos dias. Muitos de nós ainda
não estamos atentos às questões de real importância na vida cotidiana, vivemos o
perigo constante de ser embalados no sono da ideologia. A atitude de Sócrates
convoca para o despertar. E para que ele nos desperta? Para o pensamento. Uma
atividade sem a qual a vida não vale a pena ser vivida. Viver sem pensar é viver
adormecido, inconscientes das riquezas das coisas e experiências que nos cercam.
Neste sentido, Arendt conclui que pensar e estar vivo são como sinônimos.
Na segunda metáfora, Sócrates é uma parteira. A parteira é quem sabe
retirar das mulheres a vida ou a morte. Belas e verdadeiras crianças ou os seus
fetos mortos. Os verdadeiros conceitos – justiça, piedade, sabedoria, coragem – ou
as doxas (opinião), aquilo que não é a verdade, que não está vivo, as meras
opiniões sem fundamentos. É comum se identificar as parteiras com mulheres de
idade avançada, que já estéreis reconhecem aonde se encontra a vida. Sócrates é
uma parteira porque ele sabe trazer à luz os pensamentos alheios. Ele mesmo se
considera estéril e sabe mostrar aos seus interlocutores que eles não devem confiar
tão cegamente em suas opiniões infundadas, os fetos mortos que carregam.
Na terceira metáfora, Sócrates é uma arraia-elétrica. Sócrates é comparado
a este peixe porque deixa todos ao seu redor paralisados. Sócrates admite esta
23
Optei em manter o vocábulo utilizado na tradução brasileira de A Vida do Espírito, ainda que me
pareça mais conveniente utilizar o vocábulo pernilongo.
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208
comparação só se seus companheiros reconhecerem que o peixe permanece
também paralisado quando dá uma descarga elétrica em alguém. Sócrates também
se surpreende com a questão como a pessoa que lhe ouve. O filósofo também deve
estar sempre pensando a questão pela primeira vez, isto é, ele se espanta
juntamente com quem ficou espantado.
O pensamento é assim. Interrompe todas as atividades humanas, deixa-nos
inseguros quando percebemos que duvidamos sobre coisas que antes nos davam
uma segurança irrefletida. O pensamento é também sempre uma possibilidade de
perigo. Uma nova ordem trazida pelo vento do pensamento não significa
necessariamente uma melhor compreensão, há uma possibilidade concreta de um
niilismo conceitual. Hannah Arendt chama isto de perigo do pensamento
(ARENDT, 1993:159). Porém, apesar de saber que o pensamento não torna
ninguém necessariamente sábio ou benfeitor e ainda pode ser fonte de um niilismo
para quem se aventura ao seu vento, Sócrates entendia que o significado do
pensamento está na sua própria atividade.
Ou, em outras palavras: pensar e estar completamente vivo são a mesma coisa, e
isto implica que o pensamento tem sempre que começar de novo; é uma atividade
que acompanha a vida e tem a ver com os conceitos como justiça, felicidade e
virtude, que nos são oferecidos pela própria linguagem, expressando o significado
de tudo o que aconteceu na vida e nos ocorre enquanto estamos vivos. (ARENDT,
1995:134).
Apesar dos perigos do pensamento, a vida não vale a pena sem reflexão.
Estar vivo é estar exposto ao vento do pensamento, na busca de entender os
conceitos mais simples do cotidiano. Hannah Arendt parte então para examinar
como Sócrates reconhece a atividade do pensar, a autora quer entender a relação
entre pensar e julgar e começa então a articulá-la:
Chegamos à conclusão de que apenas as pessoas inspiradas pelo eros socrático, o
amor da sabedoria, da beleza e da justiça são capazes de pensamento e dignas de
confiança.(...) Se há algo no pensamento que possa impedir os homens de fazer o
mal, esse algo deve ser alguma propriedade inerente à própria atividade,
independente dos seus objetos (ARENDT, 1995:135).
Arendt analisa duas frases de Sócrates que se encontram no diálogo
Górgias. As frases são profundamente reveladoras do pensamento socrático.
Eu preferiria que minha lira ou um coro por mim dirigido desafinasse e produzisse
ruído desarmônico, e [preferiria] que multidões de homens discordassem de mim
do que eu sendo um, viesse a entrar em desacordo comigo mesmo e a contradizer-
me
24
.
24
Górgias, 482c. Cf. ARENDT (1995:136). Grifos da autora.
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
209
Esta frase de Sócrates é contraditória, pois nada que efetivamente seja um,
pode entrar em desentendimento. É preciso dois tons para que ocorra uma melodia
harmônica ou desarmônica. Isto revela que Sócrates tem consciência que na
verdade ele é dois num mesmo ser, ou seja, cada ser humano tem a possibilidade
de ser dois sendo a mesma pessoa. De início sei que sou um ser que aparece para
mim mesmo e para os outros. Mais de uma pessoa me reconhece como uma
mesma pessoa. Este fato é uma revelação de que sou um. A minha unicidade é
garantida no reconhecimento que uma pluralidade de outros fazem de mim como
um mesmo ser que aparece. Porém, quando apareço para mim mesmo algo em
minha unicidade é desfeito, pois sou aquele que aparece e ao mesmo tempo aquele
para quem apareço. Sou o sujeito que observa e o objeto que aparece e é
desvelado.
Devo retomar aqui o argumento de que o pensar é o diálogo sem som do eu
com ele mesmo. O dois-em-um é a concretização deste diálogo. Quando apareço
para mim mesmo, dialogando sem som, estou na profunda natureza reflexiva do
espírito. Aparecer para si mesmo, reconhecer-se dois num diálogo interno é o
esforço que Hannah Arendt acredita ser necessário para favorecer um ambiente
que possa efetivamente evitar a prática do mal. A despersonalização nas
sociedades de massa e a submissão aos sistemas politicamente autoritários são
realidades que talvez possam ser evitadas pelo diálogo do dois-em-um. O
pensamento não pode oferecer garantias de como evitar o mal. No entanto, ao se
tratar de evitar o mal, talvez não exista outro caminho que não seja a opção
consciente de, se necessário, sofrer o mal, mas nunca praticá-lo.
Ponderando fenômenos intolerantes, é de sabedoria considerar que a luta
contra a despersonalização dentro das sociedades de massa e contra a banalidade
do mal possa não ter garantias de vitória, porém se existe um caminho é na opção
consciente de que é melhor sofrer o mal do que cometê-lo. Sofrer o mal se
necessário, mas nunca praticá-lo é o conteúdo da outra frase de Sócrates que
Hannah Arendt analisa. Bastante ilustrativo é também o diálogo travado pela
personagem Ricardo III, de Shakespeare. Ricardo III deseja escapar de sua
própria companhia, pois tem medo de si mesmo e não se sente seguro no seu “eu”
mais íntimo. É nesta perspectiva que Arendt afirma que é melhor sofrer o mal,
pois serei sempre o companheiro de uma vítima. É melhor e mais fácil conviver
com a vítima do que com um malfeitor, um assassino. Não é fácil estar só com
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
210
um assassino. Talvez, seja por isso que a característica maior dos assassinos, dos
déspotas e dos intolerantes é estar na solidão, ou seja, abandonados de toda
companhia e de si próprio. Estar só, presente para si mesmo, dialogando como
sujeito e objeto de um mesmo ato, ser espectador da sua própria ação é um
exercício que necessita a atenção exigente do pensamento e a busca do
significado do mundo. O mal é possível sempre que nos abandonamos. Não estar
diante de si mesmo, estar calado internamente, parece ser a condição mais que
propícia para se engendrar a banalidade do mal. Eichmann é mais uma vez o
exemplo desse humano, demasiado humano, abandonado de si mesmo, na solidão
das sociedades autoritárias, de massa e despersonalizadas.
A vida não vale a pena ser vivida sem reflexão. O exemplo de Sócrates,
apresentado por Hannah Arendt, indica que talvez seja mais válido a busca de
experiências do que doutrinas ou regras de conduta. Talvez dialogar internamente
descongelando conceitos – possa preparar um ambiente que intimide a prática
do mal. Arendt não apresenta o vento do pensamento como uma garantia, mas
como uma possibilidade de através da reflexão e do seu efeito destruidor liberar a
faculdade do juízo.
Minha hipótese é que a educação possa ser um espaço propiciador desse
ato de dialogar internamente. A meu juízo, devemos apostar em processos
educativos nos quais descongelando conceitos possamos também preparar um
ambiente que intimide o fracasso moral intolerante. Entendo também que a
inabilidade do pensar não é privilégio dos grandes assassinos e déspotas da
história, mas uma possibilidade sempre presente para todos a todo momento. O
horror intolerante que constantemente visita os noticiários são provas e, de certa
maneira, denúncias do quanto o diálogo interno tem sido silenciado em nossas
sociedades. Estar na solidão é uma realidade nas sociedades de massa e as suas
conseqüências nós as experimentamos e as conhecemos. Neste sentido, faz-se
ainda mais premente uma educação para a tolerância, propiciada pela capacidade
do diálogo interno do pensamento, bem como pela capacidade de distanciar-se e
reaproximar-se do mundo, dando-lhe sentido. É nesta direção que oriento tópico a
seguir a través da seguinte questão: quais as contribuições arendtianas para se
fundamentar filosoficamente uma educação para tolerância na perspectiva do
pensamento?
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211
3.4
EDUCAR NA PERSPECTIVA DO PENSAMENTO:
CONTRIBUIÇÕES ARENDTIANAS.
Importa retomar algumas afirmações indispensáveis para se entender o
estatuto do pensamento segundo Hannah Arendt a partir das obras Eichmann em
Jerusalém e A Vida do Espírito. A minha principal intenção é – a partir dos
pressupostos oferecidos pela autora e do exemplo de Sócrates – entender o
pensamento como distanciamento e a possibilidade de reaproximação ao mundo.
Sendo assim, destaco primeiro alguns pressupostos que foram examinados ao
largo desse caminho conceitual em companhia da Senhora Arendt.
Quanto à obra Eichmann em Jerusalém, considero importante retomar três
pontos fundamentais. Primeiro: a personalidade daquele homem na cabine de
vidro. Tal como apresentado, Eichmann é, supostamente, um homem banal,
comum, ordinário. Sua maldade – se é que podemos assim nos referir – não tem
origens em um satanismo ou monstruosidade ou enfermidade. A origem do mal
cometido por aquele inimigo do gênero humano é sua total incapacidade de
pensar. Esta incapacidade de pensar revela-se, segundo Arendt, na desconexão
que Eichmann vive entre um mundo de clichês, de frases prontas e superficiais, e
o mundo das aparências, o mundo real e cotidiano.
Segundo: o mal cometido por Eichmann e por tantos outros burocratas
assassinos da diversidade alheia não tem motivos, ou seja, não se pode explicar tal
horror a partir das tradicionais motivações psicológicas, teológicas, antropológicas
ou sociológicas. Neste sentido, o mal intolerante não tem raiz, não é profundo, não
tem existência ontológica. É superficial, o que não significa que não tenha grande
potencial destrutivo. A banalidade do mal não se constitui no fato dele ser trivial,
mas no fato dele ocupar o lugar da normalidade, como se fosse normal. O ódio
intolerante com a diversidade alheia nos sistemas totalitários é monstruoso em
dimensões, mas não em motivos. Hannah Arendt quebra uma racionalidade causal
simplista, pois, muitas vezes, acredita-se que quanto maior o resultado do mal,
mais perversa é sua motivação. É esta desconexão entre o motivo e os resultados
do mal que leva a filósofa a forjar o conceito de banalidade do mal.
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212
Terceiro: a banalidade do mal não significa ausentar este novo tipo de
criminoso – monstro ou palhaço – de suas responsabilidades jurídicas e políticas.
O conceito de banalidade não quer ser uma justificativa a inimputabilidade. Ainda
que sem motivo, sem intenção maligna ou patológica, o ser humano banal, mal e
intolerante deve ser sempre responsabilizado por seus atos. A banalidade do mal é
uma possibilidade para todos. Não é privilégio de alguns déspotas. E sendo assim,
reclama especial atenção social – e educacional – a fim de se evitar seus
resultados monstruosos.
Ora, um projeto educativo que tenha como preocupação evitar o fracasso
moral diante da diversidade alheia deve estar atento a estas questões. A meu juízo,
uma educação com estas características deve ajudar a desfazer as desconexões
existentes entre o mundo real e cotidiano e o mundo irrefletido dos clichês, no
qual podemos, com perigosa facilidade, habitar. Uma educação para tolerância,
então, poderia incorporar em sua prática tanto uma denúncia à banalidade da
intolerância, enquanto mal sem motivos, quanto como um anúncio das
responsabilidades morais diante de tais fatos.
Não é minha intenção aqui oferecer um método pedagógico contra a
banalidade do mal, mas tão somente – se é que isso seja pouca coisa – refletir
sobre alguns fundamentos para a tarefa educativa que se queira comprometida
com o respeito e a abertura ao diferente, que esteja pronta para afrontar os
fenômenos intolerantes em sociedades plurais. A obra de Hannah Arendt pode
ajudar a entender a banalidade que uma educação para a tolerância visa combater.
Mais importante, no entanto, será pensar tais fundamentos numa perspectiva
assertiva. Para isto reporto-me, mais uma vez, à obra A Vida do Espírito.
Quanto ao estatuto do pensamento apresentado por Hannah Arendt, retomo
aqui três tópicos centrais. Em primeiro lugar, não se pode esquecer que Hannah
Arendt está motivada pelo depoimento de Eichmann em Jerusalém. Ela quer
entender se existe alguma relação entre a incapacidade de pensar – o não estar
atento às coisas – e a prática do mal.
Em segundo lugar, é mister ter presente as fronteiras e as diferenças que
Hannah Arendt – secundando Kant – apresenta entre pensar e conhecer. Conhecer
é a busca do intelecto pela verdade. O conhecimento cumpre sua finalidade
alcançando resultados. O pensamento não busca a verdade, ele lida com os
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
213
significados. O pensamento não se interessa com a verdade das coisas, mas sim
com o que elas significam.
Em terceiro lugar, retomo uma importante afirmação de Hannah Arendt: ser
e aparecer coincidem. A autora rejeita o dualismo entre as aparências e as
essências e o desprezo dos filósofos pelas coisas do mundo. Para ela, ser
percebido e reconhecido pelos sentidos de um outro – ou seja, aparecer – é a
condição básica para algo garantir sua existência. Então, como explicar o
pensamento sabendo que ele não aparece e que para a Hannah Arendt o que não
aparece não é? E ainda mais: como ponderar sobre um projeto educativo para a
tolerância que tenha presente a perspectiva do pensamento tal como o entende
Arendt em sua contradição entre aparecer e ser? Neste sentido, retomo o estatuto
arendtiano do pensamento para conjeturar sobre as possibilidades de uma
educação na perspectiva do pensamento.
Segundo Arendt, o pensamento é uma atividade invisível, como já havia
afirmado a Metafísica. Ela absorve esta intuição da tradição filosófica, mas marca
sua diferença. Para ela o pensamento – o inteligível – não é uma recusa do mundo
sensível, mas uma retirada do mundo para um diálogo silencioso do eu consigo
mesmo. Neste sentido, Sócrates é apresentado como um modelo de filósofo que
soube manter-se neste diálogo. Ele conseguiu unir o agir e o pensar, mantendo
com cada experiência a intimidade necessária para se entender que o pensar é um
distanciamento do mundo e uma reaproximação sempre renovada ao mesmo.
Está claro, a meu juízo, que Hannah Arendt quer marcar uma
descontinuidade entre pensar e estar no mundo. O pensamento é uma abertura que
se caracteriza por ir além da atividade de conhecer. O conhecimento deixa um
rastro: o saber que pode ser acumulado. Podemos dizer que o pensamento nos
deixa de mãos vazias. Quanto aos resultados, ele está liberado dos interesses e
quanto à finalidade ele é significativo. O pensamento não pretende uma
aproximação manipuladora com as coisas, mas busca os sentidos de cada coisa ser
no mundo.
No entanto, a oposição entre o pensamento e o que aparece se mantém. O
pensamento não aparece, logo não é. Ser é o que aparece. Mas o pensamento em
sua atividade é o que dá significado ao mundo, aquilo que aparece e é. O mundo é
algo puramente objetivo, o seu significado está fora dele mesmo e só é possível na
atividade do pensamento, onde nada aparece.
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214
Entendo que o pensamento não é da ordem do não ser, nem da ordem do
ser. O pensamento não se interessa por aquilo que é, pois lida com o significado
invisível de cada coisa do mundo. Os metafísicos diziam que existia um mundo
que é e não aparece. Segundo Arendt, não se pode repetir o mesmo erro para
justificar o pensamento, não existe um lugar, ontologicamente falando, para a
atividade do pensamento, ou melhor, existe: o não lugar, o lugar nenhum, na
suspensão do fluxo do tempo e do espaço. Pensar é uma atividade atemporal e
retirada do mundo das aparências. O pensamento não tem espaços nem tempos
definidos.
Hannah define o pensamento associado a fenomenologia a partir de um
ponto de vista liberado de interesses. Este ponto de vista desinteressado significa
um olhar a partir dos particulares e não com critérios de leituras que surjam fora
deles. Olhar desinteressadamente o pensamento é saber que ele não é código de
conduta nem critério de conhecimento para a vida prática. Hannah Arendt
compreende o pensamento como reconciliação com o mundo, ao mesmo tempo
em que reconhece o inegável da Metafísica: o estatuto do pensamento tem como
característica a suspensão do mundo. Suspensão e reconciliação do mundo – eis o
que mais forte marca o pensamento arendtiano.
A atividade do pensar consiste em um distanciar-se do mundo. Não é trocar
este mundo por um mundo inteligível ou buscar critérios e normas para o mundo
sensível. Pensar é a possibilidade de ver o mundo, desde fora, desde uma posição
privilegiada para se ver a ação cotidiana, resignificando-a. A retirada do mundo é
uma distração total, é como se a experiência do pensamento se originasse numa
sensação de estranhamento, sobre a qual nós não temos nenhum controle. Retirar-
se do mundo traz em si um aparente dualismo metafísico. Mesmo porque a dupla
morada humana é uma constatação da realidade: habitamos o mundo e não o
habitamos quando pensamos.
Neste sentido, pensar não é passividade, mas a pura atividade. Pensar não é
aproximar-se da morte, mas sim viver. Não é a inação, mas o máximo da ação. O
pensamento não é uma atividade de outro mundo, é deste mundo. Não é fuga, nem
abandono, é um distanciamento que possibilita reaproximar-se do objeto pensado
com um olhar totalmente revigorado.
Com Hannah Arendt quero afirmar que o pensar não tem caráter fundador,
mas apenas preparador. O pensamento é de possibilidade indefinida, de advento
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
215
incerto e sem garantias a dar. Com isso, a autora desarma uma postura interessada
e aponta para um pensar reconciliado com o mundo. Mesmo que a faculdade do
pensar não gere nenhum código de conduta, Hannah Arendt está firme na certeza
de que o pensar deva ser uma atividade atribuída a todos, e não somente a alguns.
Apesar do pensar lidar com o invisível e ser fora da ordem, talvez ele seja, na sua
busca incessante de experiências e na destruição de critérios pré-estabelecidos, a
possibilidade de favorecer um ambiente que desenvolva a incapacidade de fazer o
mal. Só as pessoas que desejam o que falta, que amam o ausente, que se envolvem
com o eros socrático podem experimentar realmente a atividade do pensar. O
pensamento pode ser a possibilidade do bem agir na vida cotidiana e a de
reconciliar-se com as coisas do mundo. Se algo está em crise é a maneira como
tradicionalmente pensamos, nunca a nossa capacidade de pensar.
Diante da banalidade do mal, concretizada em inúmeros casos de
intolerância, acredito que os/as educadores/as se encontrem diante de um grande
desafio: educar para o pensamento e conseqüentemente para a tolerância e a
valorização das diferenças. Não posso deixar de relembrar que vivemos num
tempo marcado pelo estar na solidão que inabilita para o pensamento e propicia a
banalidade e incapacidade de significar o mundo. A intolerância assassina banal,
como se fosse normal, é uma realidade das atuais sociedades de massa,
autoritárias e despersonalizadas.
Educar na perspectiva do pensamento e re-significar o mundo que
habitamos é uma urgência. Sendo assim, o que deve ser valorizado na atividade do
pensar a fim de dar fundamentos a uma proposta educativa com tais
características? Educar para o pensamento é cultivar em nós e em nossas relações
educativas atitudes que possibilitem o estar só para o diálogo do eu consigo
mesmo. Reconheço que o diálogo sem som do dois-em-um é uma atividade
inerente à vida humana, por isso nunca será demais incentivá-lo nos processos
educativos. Não obstante, é importante observar que nos projetos pedagógicos,
geralmente, o silêncio para o pensamento é raramente valorizado. Privilegia-se a
fala, a leitura, o trabalho de grupo etc. Contudo, não quero aqui desvalorizar o
diálogo com o outro (o educador, o texto, o grupo). Toda conversa dialógica –
entre educador/a e educando, educando e texto e educandos entre si – deveria
levar ao silêncio, isto é, deveria instigar o educando e educanda para o seu diálogo
sem som consigo mesmo. O que quero dizer é que toda aula, texto ou trabalho de
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Para pensar a intolerância: Hannah Arendt e a banalidade do mal
216
grupo deveria propiciar, naquele e naquela que se educa, uma reflexão pessoal e
interna.
Educar é também expor-se ao vento do pensamento. Todos podemos e
devemos nos expor a este vento para que ele possa desarrumar nossas pequenas
certezas e abrir outras possibilidades, apesar dos riscos. O pensamento é assim.
Interrompe todas as nossas atividades, deixa-nos inseguros quando percebemos
que duvidamos sobre coisas que antes nos davam uma segurança irrefletida.
Educar na perspectiva do pensamento é provocar esta descontinuidade, uma
ruptura com o mundo cotidiano para reconciliar-se com ele num novo significado.
Abertura e imprecisão são características próprias da atividade do pensamento que
precisam ser assumidas como necessárias na prática educativa. Transmitir
conhecimentos é imprescindível; mas, como já afirmei, educar para o pensamento,
com abertura e imprecisão, é uma urgência em tempos de intolerâncias.
Além do diálogo e do vento, considero que Sócrates possa oferecer outras
pistas para uma educação que busque o pensamento e propicie um ambiente
privilegiado para se combater a intolerância, esse fracasso moral diante da
diferença. Relembro aqui apenas as três posturas socráticas, recuperando-as
através das metáforas com as quais o filósofo foi identificado: o moscardo, a
parteira e a arraia-elétrica. Despertar do sono reflexivo, trazer à luz verdades e
abortar preconceitos e paralizar-se, indignar-se, admirar-se.
A faculdade do pensar não gera nenhum código de conduta, como já
afirmei. Entretanto, estou certo de que o pensar deva ser uma atividade atribuída a
todos e não somente a alguns. Apesar da atividade do pensamento lidar com o
invisível e ser fora da ordem, talvez, ela seja a possibilidade de favorecer um
ambiente que desenvolva a incapacidade de fazer o mal, talvez seja a
possibilidade de construção de um ambiente desfavorável para a intolerância
assassina. Educar na perspectiva do pensamento, então, seria despertar a si mesmo
e os outros do sono de irreflexão, abortando nossas opiniões vazias e irrefletidas.
Educar para o pensamento seria uma atitude consciente de indignar-se e admirar-
se, abrindo nossas janelas conceituais para o vento do pensamento e começando
já, agora mesmo, o nosso diálogo interno.
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4
PARA PENSAR A TOLERÂNCIA:
UMA APROXIMAÇÃO À ESCOLA DE VALENCIA.
No capítulo anterior dediquei-me aos fenômenos intolerantes, enquanto
banalidade do mal. É chegado o momento de mudar o enfoque para a tolerância.
Para tanto, elegi a companhia de Adela Cortina
1
, reconhecida pensadora
espanhola que vem se dedicando, entre outros temas, ao campo da ética aplicada e
seu entorno reflexivo: a religião, a moral, o direito e a política. Adela Cortina é,
sem dúvidas, o expoente máximo do grupo que chamarei aqui de Escola de
Valencia. Ainda que com pouca influência no cenário brasileiro, Cortina tem se
destacado no contexto ibero-americano, dialogando com diferentes correntes
filosóficas, tais como a ética da libertação ou o liberalismo político. Filiada às
tradições deontológica (Kant) e discursiva (Habermas e Apel), Adela Cortina tem
apresentado tanto críticas quanto possibilidades de avanço ao formalismo dessas
escolas de pensamento.
Dado a larga produção da filósofa de Valencia, examinarei, principalmente,
a concepção de ética cívica
2
como a sua original proposta no que tange à tentativa
de articular exigências mínimas de justiça e convites máximos de felicidade. Além
disso, tratarei de demonstrar que mínimos éticos – tal como viso conceituar a
tolerância – não é pouco, senão a base sobre a qual se articula e se garante a
diversidade desejada em sociedades plurais.
Para tanto, seguirei Adela Cortina em sua argumentação sobre a
fundamentação da ética e da moral e sua opção pela ética do discurso, para em
seguida defender e embasar a minha reflexão sobre o conceito de tolerância na
perspectiva de uma agenda mínima para uma ética cidadã e para uma prática
pedagógica preocupada com o valor da diferença.
1
Catedrática de Filosofia Jurídica, Moral e Política da Universidade de Valencia (Espanha).
2
Optei pela expressão ética cívica tal como em castelhano para manter-me fiel ao vocábulo utilizado
pela autora, que é plenamente inteligível em português. Evitei a expressão ética civil por ser menos
freqüente na obra de Adela Cortina, ainda que presente.
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Para pensar a tolerância: uma aproximação à Escola de Valencia
218
4.1
PARA FUNDAMENTAR A MORAL E A ÉTICA.
Num debate sobre valores e atitudes éticas, tal como é o caso do debate
sobre tolerância, importa fundamentar o campo da moral e da ética, indicando
suas semelhanças e distinções, verificando suas aproximações e distanciamentos.
Ainda que ética e moral sejam comumente entendidas como sinônimos, tentarei
distinguir cada campo apresentando as características constitutivas de cada um.
4.1.1
Ética e moral: similitudes e distinções.
Em suas origens, as palavras ética e moral significavam o mesmo: um
conjunto de valores, códigos, juízos que visam regular o comportamento humano,
a ação concreta, o agir cotidiano de um determinado grupo, definindo e
delimitando sobre o que é certo e errado. A diferença estaria basicamente no
contexto sócio-histórico no qual foram forjadas. Ethos vem do grego e daí o
vocábulo ética, que significa tanto morada como também caráter, jeito, modo de
ser, perfil de uma pessoa. E mores vem do latim, daí moral, que pode significar
tanto modo de vida e costumes quanto os princípios e os valores que moldam o
caráter de uma pessoa. Justamente por possuírem significados originários comuns,
as palavras ética e moral são utilizadas como sinônimos na linguagem comum e
na acadêmica. Há, no entanto, certa convergência no campo filosófico em afirmar
que as duas palavras necessitam de uma diferenciação. Apresentarei aqui três
diferenciações entre ética e moral. A primeira é do psicólogo e pesquisador sobre
educação moral, Yves de la Taille. A segunda, do teólogo Leonardo Boff. A
terceira, com a qual trabalharei mais detalhadamente, é da filósofa Adela Cortina.
DE LA TAILLE (2002) considera que a moral seria o âmbito de nossa vida
no qual nos perguntamos: Como devo viver? Trata-se da dimensão do dever, da
obrigação, dos mandamentos, das proibições. A moral é a dimensão da vida que
apresenta regras que visam regular o comportamento humano e que incidem sobre
os comportamentos socialmente considerados como errados. Já a ética
representaria outro âmbito. Aquele no qual nos perguntamos: Que tipo de vida
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Para pensar a tolerância: uma aproximação à Escola de Valencia
219
quero levar? Trata-se de uma dimensão que se opõe e complementa a primeira.
Na dimensão ética se define valores e se constrói projetos de vida, incidindo assim
sobre as atitudes desejadas segundo um critério pessoal ou grupal do que é bom.
Sendo assim, a ética seria a dimensão das possibilidades, da gratuidade, do
aconselhamento e da superação. Yves De La Taille tem uma peculiar percepção
dessas duas dimensões a partir da idéia de limite. Segundo DE LA TAILLE
(2002), os significados de limite seriam ilustrativos dessas duas dimensões. Por
um lado, limite pode ser um ponto ou fronteira que não se deve ultrapassar. Esta
idéia é muito forte, por exemplo, quando se fala da indisciplina dos educandos/as.
Aqui estaria o limite moral: proibição. Por outro lado, também se pode entender
limite como um ponto ou fronteira que pode ser ultrapassado, principalmente
quando se fala de esportes ou de dificuldades a serem vencidas. Aqui estaria o
limite ético: superação. Assim, limite moral seria um obstáculo proibitivo que
restringe um comportamento não desejado pela sociedade, por isso, geralmente,
são formulados na negativa: não matar; não roubar. Limite ético seria um desafio
propositivo que convida à superação de comportamentos ordinários, por isso,
geralmente, são formulados como assertivas: ame ao próximo; seja solidário.
Para BOFF (2003) a moral faz parte da vida concreta e a ética faz parte da
filosofia. Neste sentido, a moral faz parte da prática real das pessoas e se expressa
por costumes, hábitos e valores culturalmente estabelecidos. Já a ética trata de
concepções de fundo acerca da vida, do universo, do ser humano e de seu destino,
além de instituir os princípios que orientam as pessoas e as sociedades. Leonardo
Boff exemplifica suas especificações sobre moral e ética adjetivando-as na pessoa
humana. Assim, uma pessoa é moral quando age em conformidade com os
costumes, hábitos e valores consagrados por seu grupo. O que deriva, obviamente,
que uma pessoa só pode ser considerada moral ou imoral dentro de um grupo de
referência, em relação ao comportamento de seus convivas. Por outro lado, uma
pessoa é ética quando se orienta por princípios e convicções, o que não têm uma
relação direta com os costumes de um grupo, mas com princípios e valores
últimos, fundamentais ou universalizáveis. Assim, pode-se concluir que uma
pessoa pode agir moralmente, segundo seu grupo e até mesmo por conveniências
sociais, mas não necessariamente agir eticamente, pois em sua ação poderia
contrariar os princípios últimos e universalizáveis. E o contrário também seria
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Para pensar a tolerância: uma aproximação à Escola de Valencia
220
possível: uma pessoa poderia agir eticamente e estar em uma situação imoral, em
desacordo com os valores do seu grupo de referência.
Para Adela Cortina, também se faz necessário fundamentar a ética
distinguindo-a da moral. Segundo a pensadora de Valencia, a diferença entre ética
e moral está nos níveis de reflexão e nem tanto em sua etimologia (CORTINA,
1986:80). A moral ou “as distintas morais” estão vigentes na vida cotidiana e
tratam de oferecer orientações práticas e diretas para a ação humana. A ética não
tem como objetivo central orientar a conduta humana, ainda que o faça de maneira
indireta. Sua tarefa central consiste em refletir sobre os fundamentos racionais do
fenômeno moral (CORTINA, 2001:133). A moral é, para Adela Cortina, um
fenômeno presente na vida cotidiana. A ética seria, por sua vez, a reflexão
filosófica sobre a moral.
Neste sentido, as definições de Adela Cortina aproximam-se das de
Leonardo Boff. Para o teólogo, a moral faz parte da vida cotidiana, são os valores,
hábitos e costumes de um grupo, tal qual como Cortina reconhece a moral vivida,
ainda que a filósofa marque a diferença na pluralidade – distintas morais. Para
Boff, a ética faz parte da filosofia, como concepções de fundo ou princípios
últimos, o que Cortina chama de filosofia moral ou moral pensada. A concepção
de moral para Adela Cortina também pode ser vista como próxima a de Yves de
La Talle, pois ambos percebem na dimensão moral a centralidade do dever e sua
relação de como as coisas deveriam ser. Assim, os dois convergem no fato de que
“la moral no debe confundirse con lo que de hecho sucede, sino con la conciencia
de lo que debería suceder. La moral se ocupa de lo que debe ser y desde ese
deber ser critica lo que sucede” (CORTINA, 1999:204)
3
.
Entretanto, para CORTINA (1986:30), a principal diferença no trânsito da
moral para a ética está na mudança qualitativa do nível de reflexão. A moral seria
uma orientação prática para a ação cotidiana, enquanto que a ética uma teoria
filosófica da ação. “El quehacer ético consiste, pues, a mi juicio, en acoger el
mundo moral en su especificidad y en dar reflexivamente razón de él, con objeto
de que los hombres crezcan en saber acerca de sí mismos, y, por tanto, en
libertad” (CORTINA, 1986:32)
4
.
3
Grifos da autora.
4
Grifos da autora.
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Para pensar a tolerância: uma aproximação à Escola de Valencia
221
Sendo a moral algo que não podemos renunciar, a ética – como filosofia
moral ou moral pensada – tem que dar um fundamento racionável para o
fenômeno moral. A ética “como reflexión filosófica se ve obligada a justificar
teóricamente por qué hay moral y debe haberla, o bien a confesar que no hay
razón alguna para que haya” (CORTINA, 1986:31). A segunda hipótese seria,
obviamente, uma contradição latente com o caráter irrenunciável do fenômeno
moral.
Num primeiro nível, a moral refere-se aos códigos e juízos que pretendem
regular as ações concretas. Este nível é sempre normativo e tem como questão
central: O que devo fazer?, tal como observava Yves de La Talle. O segundo, a
ética ou filosofia moral, é o nível da reflexão crítica sobre os juízos morais
existentes na vida cotidiana e suas questões são um pouco mais complexas: “É
racionável que existam juízos morais? E quais são as razões suficientes desses
juízos?” (CORTINA,1986:81).
Destas duas questões, CORTINA (1986:81-82) desdobra três tarefas para a
ética: (1) determinar a especificidade da moral; (2) elaborar categorias que
analisem e caracterizem a moral e (3) fazer compreensível e racionável estas
categorias, propondo razões suficientes para sua própria existência (a ética) bem
como para o fenômeno analisado (a moral). Ora, se a ética fundamenta
criticamente a moral e se fundamenta a si própria, então ela se consolida
reflexivamente como um saber rigoroso e distinto da simples opinião. Além do
mais, a ética legitima que é racionável que exista um saber específico a cerca dos
juízos que orientam a vida prática e que chamamos de juízos morais. Neste
sentido, importa destacar a aplicabilidade da ética como uma fundamentação
filosófica do fenômeno moral.
4.1.2
Da aplicabilidade da ética.
Se, por um lado, destaquei que Adela Cortina considera a ética como uma
fundamentação filosófica sobre a moral, por outro, devo também registrar que
esse discurso filosófico não é compreendido como algo desconectado da vida
prática. Em realidade, para a autora, a ética é filosofia prática. CORTINA
(1986:21) entende a ética como um saber para e desde o agir cotidiano. Como
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Para pensar a tolerância: uma aproximação à Escola de Valencia
222
saber prático, a ética surge a partir da reflexão da vida cotidiana e a ela se destina,
ainda que não de maneira tão direta como a moral, mas tampouco se poderia
entendê-la como um saber desinteressado. Um saber prático diz respeito àquelas
coisas que poderiam ser executadas de uma outra maneira, ao contrário do saber
científico que, se tem pretensões de verdade, não pode ser de outra maneira. É por
essa abertura que a filosofia prática se dedicará ao que é certo e errado em campos
tão polêmicos como a moral, a política, o direito e a religião, pois são âmbitos nos
quais a noção de verdade científica está completamente descartada.
A filosofia prática se pergunta essencialmente por três questões: felicidade,
justiça e poder (CORTINA, 1986:21). Neste sentido, que a filosofia prática tem
importantes e distintas tarefas. Cabe aqui acrescentar, seguindo a obra de Adela
Cortina, outras duas tarefas da fundamentação moral, uma anterior e outra
posterior à fundamentação tratada anteriormente. A tarefa anterior seria esclarecer
em que consiste o fenômeno moral, distinguindo-o do jurídico, do político e do
religioso. De posse dessa distinção, a ética fundamenta o seu objeto mais
específico, o moral, e parte para aquela tarefa posterior à fundamentação, a saber:
buscar uma aplicação dos princípios éticos descobertos para os distintos âmbitos
da vida, o que seria a aplicabilidade da ética no mundo dos negócios, da medicina,
da genética, da ecologia, da pesquisa científica, da educação etc.
Analisando as tarefas da ética, podemos identificar duas definições
cortinianas de ética. Primeiro, a ética é filosofia moral, um discurso filosófico do
fenômeno moral, a moral pensada. Segundo, a ética é filosofia prática, que se
ocupa tanto da moral, mas também da religião, da política e do direito, bem como
suas distintas aplicabilidades. Apesar da aplicabilidade da ética estar listada como
uma tarefa posterior às outras duas, isso não significa uma submissão do âmbito
da vida cotidiana ao âmbito do pensamento filosófico, pelo contrário, CORTINA
(1993:165) defende que “la reflexión de la ética aplicada – a pesar del nombre
que ostenta – funciona más “de abajo arriba” que “de arriba abajo”, más desde
la base republicana de las distintas esferas que desde la monarquia del saber
filosófico” . Tendo em vista estas diferentes tarefas que a ética deve cumprir e das
diferentes possibilidades de cumpri-las, analisarei, a seguir, como e por que Adela
Cortina opta pela companhia dos filósofos da ética do discurso, principalmente
Karl-Otto Apel e Jünger Habermas, para pensar a moral e a aplicabilidade da
ética.
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223
4.2
ÉTICA DO DISCURSO: UMA OPÇÃO.
A ética do discurso visa, entre outras coisas, superar a razão monológica do
imperativo categórico de Kant. Segundo Adela Cortina, trata-se do necessário
câmbio do “eu penso” para o “nós argumentamos” (CORTINA, 1993:170).
Cumpre registrar que, para a pensadora de Valencia, uma ética que tem como
centro o diálogo em nada se opõe ao caráter normativo do fenômeno moral, tal
qual cumpre a ética kantiana. Como toda ética deontológica, a ética do discurso
busca os fundamentos racionáveis para o fato de que exista e de que deva existir
os juízos normativos centrados no dever, que chamaremos aqui de juízos morais.
Há éticas que colocam no centro da fundamentação dos juízos morais a
busca pela vida boa, tais como: a ética aristotélica, na qual vida boa é sinônimo da
felicidade que o ser humano busca ou ainda o utilitarismo, no qual o objetivo a
cumprir é o maior prazer, como sinônimo de felicidade, para o maior número
possível de pessoas. Para estas éticas o âmbito da moral se mede pela felicidade
que podem proporcionar (CORTINA, 1993:170). Estas propostas éticas são
chamadas teleológicas, pois estão centradas nos fins (teleo) que se deve alcançar.
Há outras éticas que colocam no centro de sua argumentação as normas e a
realização da autonomia legisladora do ser humano. Estas éticas se iniciam com o
estoicismo e ganham sua mais reconhecida e refinada versão com Kant. Para a
ética kantiana, o âmbito da moralidade humana não é o do julgamento das ações
humanas à luz da felicidade que produzem ou podem produzir, é pois o da ação
segundo às leis que o ser humano impõe a si mesmo e que, portanto, tem como
centro o dever e não a busca da felicidade (CORTINA, 1986:112). Neste sentido,
moralmente válido é que o ser humano seja capaz de ditar a si mesmo suas
próprias leis. Estas propostas são chamadas deontológicas, pois estão centradas
nas normas (déontos) às quais se deve submeter livremente a vontade.
Para o teleologismo, agir moralmente é a realização da vida boa, que se dá
através da busca de fins felicitantes. Já para o deontologismo, seria a realização de
normas de dever concebidas de maneira livre e autônoma. Cortina reconhece que
tanto um grupo quanto outro tem acertos e erros. No entanto, vê mais acertos nas
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224
éticas deontológicas e aponta uma série de pensadores e correntes filosóficas que
desde o deontologismo buscam rever suas limitações e promover possíveis
correções de percurso. Assim fazem, além da ética do discurso, a ética da
libertação, o marxismo humanista, o socialismo neokantiano, entre outros.
A verdade do deontologismo, segundo CORTINA (1986:113), estaria: “en
destacar que ni la felicidad individual ni la colectiva, que constituye el bien
subjetivo del hombre, pueden anteponerse al respecto o promoción de lo valioso
en si: la persona humana. Su limitación estribaría en no proporcionar
procedimientos de actuación operativos, que el teologismo ofertaría en mayor
medida”.
A partir de aqui cumpre fazer duas incursões antes de seguir adiante com a
ética do discurso propriamente dita. Uma elucidativa e outra mais questionadora.
A primeira incursão será para esclarecer o que significa a pessoa humana como
um ser absolutamente valioso no pensamento kantiano, conceito que as éticas
deontológicas mantém como central. A segunda incursão é para refletir sobre a
limitação apresentada pela pensadora valenciana, ou seja, as éticas deontológicas
são muito menos atrativas que as teleológicas – não proporcionam procedimentos
de atuação operativos – pois estão baseadas no puro dever, como um fardo para
camelos, na alusão nietzschiana.
4.2.1
Seres absolutamente valiosos.
A vantagem das éticas deontológicas estaria na valorização da pessoa
humana como um ser absolutamente valioso, contra o qual não se pode opor nem
a felicidade subjetiva de um ser humano e tampouco a felicidade do maior número
possível de seres humanos. Segundo CORTINA (1996:83), um dos grandes
problemas da ética filosófica ao longo dos tempos foi a busca de uma
fundamentação racional para esta dimensão humana que chamamos de moral.
Há moral porque existe no universo um tipo de seres que tem um valor absoluto e
por isso não devem ser tratados como instrumentos. Há moral porque todo ser
racional – o que, obviamente, inclui o ser humano – é um fim em si mesmo, e não
meio para qualquer outra coisa.
5
5
Grifos da autora.
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Para pensar a tolerância: uma aproximação à Escola de Valencia
225
Kant, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), reconheceu,
por primeira vez numa ética filosófica, que todo ser racional possui um valor
absoluto. Kant não desconsiderava o fato do humano ser finito e limitado. E o mal
seria uma evidência disso. No entanto, o ser humano possui o privilégio de reger-
se por leis assumidas livremente por sua própria razão. Trata-se do caro e
irrenunciável valor da autonomia no pensamento kantiano. A isso, Kant denomina
racionalidade moral. Estar livre para escolher e agir é o que caracteriza o ser
humano. A ação humana, para Kant, não está submetida às leis da natureza, mas
às leis que o próprio ser humano escolhe seguir, por isso, é um ser moral e não
simplesmente um ser da natureza. O ser humano é livre em suas escolhas e essa
liberdade no agir abre possibilidades para a ação má. Porém, apesar da propensão
ao mal, o ser humano pode escolher a boa ação e isso faz que a escolha seja ainda
mais louvável. Para Kant, a racionalidade moral é o argumento definitivo para
entender o ser humano absolutamente valioso.
Absolutamente valioso significa o contrário de relativamente valioso. Há
seres valiosos em si mesmos e seres nos quais o valor é relativo porque servem
para outra coisa. Relativamente valiosos são seres que têm o seu valor em função
das necessidades às quais eles respondem, como, por exemplo, instrumentos e
mercadorias. É no âmbito dessa reflexão que Kant apresenta a fórmula do
imperativo categórico: Age de tal forma que a humanidade, tanto em sua pessoa
quanto na pessoa de qualquer outro, seja considerada como um fim e nunca
somente como meio. A idéia forte do imperativo categórico é que a humanidade
constitui um fim em si e portanto não pode ser reduzida ao nível de um
instrumento para qualquer fim alheio a ela mesma (PAPACCHINI, 1995:241). O
imperativo kantiano da dignidade humana e da não instrumentalização do ser
humano começa, segundo PAPACCHINI (1995), pela auto-estima e pela
valorização da própria pessoa, o que impediria que um ser humano se rebaixasse a
meios ou instrumentos para outros fins.
O ser humano, então, através de sua capacidade única, a racionalidade
moral, é chamado a se opor a qualquer tipo de manipulação e instrumentalização
da sua própria humanidade e da humanidade de seus convivas. A escravidão é
uma forma de instrumentalização da humanidade que Kant veementemente
combateu. A insistência de Kant em afirmar a racionalidade moral e o dever da
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226
não instrumentalização da dignidade humana é uma tentativa, talvez a melhor
disponível até os dias de hoje, para se entender o valor absoluto da vida humana.
Seres relativamente valiosos possuem um determinado valor, que pode ser
um valor de uso e/ou um valor de compra e venda. E, por isso mesmo,
geralmente, possuem um preço. Os seres absolutamente valiosos não possuem
preço e ninguém pode lhes estipular um valor de uso ou um valor de troca. Para
eles não há um equivalente, ou seja, não existe no universo algo que tenha valor
igual a um ser absolutamente valioso, nem mesmo outro ser absolutamente
valioso. Conclui-se, então, que os seres absolutamente valiosos não têm preço e
sim dignidade, e que, portanto, merecem respeito, do qual se seguem obrigações
morais.
Se por valor absoluto entendemos aquilo que não é relativo a nenhuma
situação e se por fim incondicionado entendemos o que não é meio para nenhum
outro fim, concluímos, com Kant, que não podemos conceber a moralidade sem a
existência de um ser que seja ao mesmo tempo um valor absoluto e um fim
incondicionado. Cabe então a pergunta: a que tipo de seres podemos atribuir
ambas as categorias?
A existência de pessoas é pois a razão de que haja obrigações morais; porque, como
são valiosas em si mesmas, não há equivalente para cada uma delas, assim como
não há possibilidade de fixar-lhes um preço. Mas têm dignidade
, e quem tem
dignidade não é trocável, mas respeitável. (CORTINA, 1996:85)
6
.
Em Kant, a dimensão do dever ganha centralidade pelo reconhecimento que
é devido ao ser humano enquanto ser absolutamente valioso. Não obstante, fica a
questão sobre como o ser humano pode optar por uma moral tão pesada como as
deontológicas, que mais o faz parecer um camelo com seus fardos.
4.2.2
Por que uma ética de camelo?
Se, por um lado, a vantagem da ética deontológica kantiana está em
reconhecer na pessoa humana um valor absoluto e identificá-la como fim
incondicionado de toda e qualquer ação humana que se queira moral, por outro
lado, a sua limitação está na centralidade dada à dimensão do dever.
6
Grifos da autora.
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O dever como centro da moral representa, na maioria das vezes, um fardo
pesado demais para os seres humanos, que além de seres normativos e, por isso
mesmo, livres e racionais, são também seres que aspiram à felicidade. Uma moral
centrada no dever é, na linguagem nietzschiana, uma moral de camelo. Ora, uma
proposta moral, além da dimensão das normas, necessitaria reconhecer uma outra
dimensão inerentemente humana: a busca da felicidade. Além do peso do que
deve ser feito por questões de justiça, o que exige do ser humano força,
determinação e trabalho duro, é mister reconhecer a felicidade, os desejos, o
prazer, que dão ao ser humano motivação para a ação, além de propiciar, segundo
as circunstâncias, satisfação e realização pessoais e/ou coletivas.
No prefácio à terceira edição de Ética Mínima, Adela Cortina apresenta
quatro imagens a fim de ilustrar distintas propostas morais: camelo, leão,
camaleão e menino. A partir delas ouso apresentar uma reflexão pessoal que visa
demonstrar uma possível articulação entre elas e esclarecer um pouco mais a
centralidade do dever moral e sua articulação com uma dimensão felicitante.
A moral do camelo precisa articular, a meu juízo, dever e força, para
cumprir a afirmação eu devo. A moral do leão, por outro lado, articula desejo e
força, para cumprir a afirmação eu quero. A moral do camaleão, por sua vez,
articula dever e fraqueza, para realizar a afirmação eu me adapto. E a moral do
menino articula desejo e fraqueza, para simplesmente afirmar eu sonho, de
maneira misteriosa, lúdica e estética. O camelo, obviamente, representa os
deontologistas, que a todo custo querem cumprir seus deveres. O leão representa
os que também a todo custo, por isso o elemento força, buscam cumprir seus
desejos felicitantes. O leão representaria, então, as éticas hedonistas
7
, com sua
centralidade no prazer. O camaleão se adapta às circunstâncias, daí a articulação,
ainda segundo meu juízo, entre os elementos dever e fraqueza. Ele representaria
as éticas pragmáticas. E o menino representa apenas a falta de desenvolvimento
moral, a infância moral da humanidade, aquele estágio no qual ainda não se
reconhece deveres e nem a busca da felicidade como algo alcançável.
A partir dessas metáforas, estariam descartadas como propostas válidas as
figuras do menino e do camaleão, pois o crescimento moral é um desafio que já
estamos cumprindo como humanidade e nada mais desviante neste caminho que
7
Um tipo de teleologismo exacerbadamente misturado com princípios egoístas.
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se render às facilidades e ao cinismo camaleônico de adaptar-se. Restam, então,
as éticas do eu devo (camelo) e as do eu quero (leão), representando, assim, aos
deontologistas e aos teleologistas, ou seja, às duas tradições éticas mais fecundas
na história da filosofia.
A tensão entre estas tradições de pensamento é mais que uma questão de
princípios, é, na verdade, um conflito que todos experimentamos na vida
cotidiana. Trata-se da dolorosa constatação de que o que é justo, aquilo que devo
fazer, em muitas ocasiões, está em conflito direto com o que me convém
pessoalmente fazer, com o que me causaria felicidade (CORTINA, 1993:182).
É pelo caráter mais subjetivo da felicidade e mais universal do dever que as
éticas deontológicas optam pelo eu devo do camelo.
Y es que el tema de la felicidad es un muy complejo asunto para el que no cabe una
respuesta unánime. ¿Quién puede hoy pretender que posee el secreto de la vida
feliz y empeñarse en extenderla universalmente, como si a todos los hombres
conviniera el mismo modo de vida buena? Esta es tal vez la razón por la que otras
tradiciones de filosofía práctica (…) han dejado en un segundo plano la
preocupación por la felicidad y orientan sus esfuerzos hacia aquella vertiente del
fenómeno moral que posee la rara virtud de la universalidad: la vertiente del deber,
de las normas (CORTINA, 1986:22-23).
8
A opção pela centralidade do dever pode parecer mais antipática e sem os
atrativos de uma opção centrada na felicidade. No entanto, a felicidade humana,
muitas vezes, está condicionada por dados da natureza ou por convenções sociais,
enquanto que a virtude do dever converteria o ser humano, como já sugeriu
Sêneca, em “artífice de sua própria vida”. É na possibilidade do ser humano ser
seu próprio artífice que kantianos e demais éticos deontológicos colocam seus
esforços, pois entendem que no livre cumprimento do dever o ser humano se
experimenta verdadeiramente autônomo. As discussões acerca do teleologismo e
deontologismo, da felicidade e do dever, serão retomadas mais adiante. O que me
cabe destacar por hora é a diferença entre a busca de uma vida prazerosa e feliz
(leão) e a busca por um comportamento justo através do cumprimento de deveres
(camelo), bem como os motivos que levam os deontologistas a se afastarem do
complicado mundo da felicidade.
Devo retomar, no entanto, à ética do discurso, que, segundo CORTINA
(1986:184), está sob influência kantiana na medida em que antepõe o justo ao
8
Grifos da autora.
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bom, o dever à felicidade. Não obstante, a proposta de Habermas e Apel trata-se
de um deontologismo matizado, que não está de costas à felicidade humana. É
importante recordar que a ética do discurso visa oferecer algumas correções no
percurso das éticas deontológicas, buscando a superação de uma racionalidade
monológica. E é isso que tentarei demonstrar a seguir, destacando a centralidade
de uma lógica intersubjetiva na dimensão do dever, propiciada pelo diálogo em
condições ideais.
4.2.3
Diálogo: a lógica intersubjetiva como centro do dever.
Uma das principais contribuições da ética do discurso, senão a mais
importante, é a ênfase no caráter intersubjetivo da racionalidade moral, que tem o
consenso racional como fim último e o diálogo como procedimento. Trata-se da
mudança do eu penso para o nós argumentamos na tarefa de apresentar uma
fundamentação racionável para os juízos morais. Segundo CORTINA (1986:199),
a racionalidade prático-moral é, de fato, sempre intersubjetiva e nunca
monológica. Segundo a autora, em Kant já se encontravam os primeiros sinais
dessa racionalidade que vai ser definitivamente aclarada com Habermas e Apel.
A fim de perceber essa racionalidade intersubjetiva é importante destacar a
diferença que CORTINA (1986:199) apresenta entre o que é “racional” e o que é
“racionável”. Algo é racional quando é produto da razão calculadora ou técnica,
que pode ser operacionalizada, de maneira individual ou monológica, ainda que
nem sempre recomendável. Já o racionável é intersubjetivo, é produto de uma
razão que conecta o indivíduo com os outros, com seu meio social. Trata-se da
razão que é posta em marcha para encontrar o justo e o injusto, o correto e o
incorreto num determinado contexto. Sendo assim, o fenômeno moral é sempre
uma busca racionável e não racional. A razão calculadora ou técnica é própria
para a busca de meios adequados para uma determinada atividade, já a razão
intersubjetiva é própria para a justificação dos fins últimos da ação. A primeira
pode se dar de maneira individual e monológica. A segunda só pode se dar na
relação com os pares, pois busca o estabelecimento de normas justas, que ganham
formas – ou são formuladas – em um discurso, que posto em uma situação ideal
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de diálogo, visa à obtenção de um consenso racionável e não de uma verdade
racional.
Quienquiera que enuncie una norma está pretendiendo ya implícitamente su validez
intersubjetiva, si es que la enunciación tiene algún sentido. Pero esta pretensión de
validez intersubjetiva, igualmente si tiene sentido, debe estar avalada por
argumentos, que quien mantiene la norma tiene que estar dispuesto a ofrecer a
través de un discurso para respaldar sus pretensiones. Ahora bien, los argumentos
tienen que ser comprensibles y aceptables, pues, en caso contrario, la pretensión de
validez intersubjetiva es irracional. Lo que legitima una norma no sería la voluntad
de los sujetos individuales, sino el reconocimiento intersubjetivo de su validez,
obtenido a través del único motivo racional posible: el discurso. (CORTINA,
1986:128-129).
Se a ética do discurso valoriza uma racionalidade intersubjetiva através do
diálogo, será fácil supor que sua regra de ouro é distinta do imperativo kantiano,
que é formulado, recordemos aqui uma vez mais, como uma norma individual que
pretende ser universal: age de tal forma que o princípio de sua ação possa valer
como norma para todos. Para a ética do discurso, o novo princípio de ação deverá
incorporar de maneira mais explícita a racionalidade intersubjetiva. Sendo assim,
o princípio da ética discursiva seria o seguinte: só são válidas aquelas normas de
ação com as que estão ou poderiam estar de acordo todos os possíveis afetados
como participantes num discurso prático, celebrado em condições ideais
9
. Sendo
assim, uma norma só é justa, ou encontra sua validade, se todos os implicados
pela ação desejam (ou desejariam) a norma ou pelo menos estão (ou estariam) de
acordo com ela, mediante um diálogo celebrado em condições de simetria.
Os acordos celebrados no diálogo não podem invalidar os princípios básicos
que garantem à pessoa humana um valor absoluto e um fim incondicionado.
Suponhamos que, mesmo após um diálogo em condições ideais, uma pessoa
admitisse uma regra na qual fosse explorada por outra. Em qualquer circunstância,
essa regra – ainda que consensuada – não seria justa, pois estaria em desacordo
com os pontos de partida demonstrados anteriormente: o ser humano como ser
absolutamente valioso e fim incondicionado.
Numa ética deontológica, por normas justas se entendem as normas
universalizáveis, pois assim é a natureza do fenômeno moral, ou seja, sua
centralidade está no dever, na necessidade, na obrigatoriedade, na não-
contingência. Ora, a ética discursiva pondera que cada ser humano implicado deva
9
Cf. CORTINA (1997:100) e CORTINA (1986:12).
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dar seu consentimento, como interlocutor válido, para que uma norma seja
considerada justa. Neste sentido, ao mesmo tempo em que dá a esta norma um
caráter universalizável, a prática do diálogo também a conecta a uma realidade
concreta, contextualizando-a no mundo real cotidiano. A meu ver, a ética do
discurso promove uma saudável flexibilização entre a universalidade das normas e
a particularidade dos casos concretos nas quais as normas são celebradas e
executadas. Assim, outra vantagem da ética do discurso estaria na possibilidade
de articular universalidade e particularidade no âmbito das normas morais.
4.2.4
Por um diálogo em condições ideais.
A fim de melhor entender o princípio da ética do discurso é mister refletir
agora sobre o que venha a ser um diálogo em condições ideais. Por condições
ideais, em primeiro lugar, considera-se o diálogo celebrado em simetria, ou seja,
no qual todos os interlocutores são considerados igualmente válidos, tem o mesmo
valor e os mesmos direitos; ademais, o único poder que é concedido aos
interlocutores é o do melhor argumento. Em um diálogo ideal, “no se ejercerá
coacción alguna como no sea la del mejor argumento, y, por consiguiente, queda
excluido todo otro motivo que no consista en la búsqueda cooperativa de la
verdad” (CORTINA, 1986:129).
Um diálogo em condições ideais também pressupõe, então, que os
interlocutores queiram estabelecê-lo numa situação na qual o diálogo faça sentido.
Ahora bien, estar dispuesto a entablar un diálogo significa estar a la vez dispuestos
a aceptar las condiciones que le dan sentido. Y, desde esta perspectiva, ningún
interlocutor está legitimado para privar de la vida a sus interlocutores potenciales,
ni para negarles la posibilidad de expresarse, ni para asignarles a priori un puesto
de inferioridad. (CORTINA, 1997:215).
Sendo assim, os interlocutores não se podem eliminar, nem física nem
logicamente. Desde esta condição de possibilidade mínima – o reconhecimento de
todos os interlocutores como igualmente válidos e a manutenção dos mesmos
como tais – apresento algumas premissas que, segundo a ética do discurso
(CORTINA, 1986:69), caracterizam uma situação de diálogo ideal.
A primeira premissa é que os interlocutores façam uma opção pela verdade.
Um diálogo ideal não pode ser celebrado se o ponto de partida, a argumentação,
estiver entremeado de mentiras. Aqui o procedimento (diálogo) e a própria ética
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se intercalam. Não é possível diálogo sem compromisso com a verdade e nem
construção de verdades morais sem compromisso com o diálogo.
A segunda premissa é o compromisso com uma comunidade ideal de
argumentação, o que significa uma situação na qual a plena compreensão entre os
interlocutores seja desejada e constantemente buscada. Um diálogo não pode ser
celebrado se os interlocutores a priori não querem se entender. Em outras
palavras: para um diálogo em condições ideais, é preciso que cada interlocutor
esteja aberto a entender os argumentos dos outros e ao mesmo tempo se esforce ao
máximo para se fazer entender pelos demais. Aqui as atividades da escuta e da
fala devem atingir o seu melhor estágio.
A terceira premissa deriva das anteriores. Trata-se de considerar a
comunidade ideal de argumentação como um imperativo para os interlocutores.
Todos devem estar comprometidos em impulsionar desde a comunidade real a
comunidade ideal de argumentação. A comunidade ideal deve ser mais que uma
hipótese, deve ser o compromisso dos interlocutores em promovê-la desde as
condições reais nas quais se encontram para estabelecer o diálogo.
Em efeito, o diálogo não é propriamente uma invenção da ética do discurso.
Ele senta suas raízes desde a tradição socrática, que utilizava o diálogo como um
procedimento cooperativo para revelar a verdade sobre as proposições da natureza
e sobre a correção das normas sociais. Além disso, devemos também render
tributo à tradição judaico-cristã na qual a palavra – elemento central do diálogo –
sempre teve especial relevância.
O diálogo na ética do discurso não tem simplesmente a função de verificar a
validade de normas morais. A ética do discurso é uma filosofia prática. Neste
sentido, visa uma fundamentação racionável dos juízos morais. Isso implica, ainda
que de maneira indireta, uma orientação para o mundo da vida. O diálogo busca a
validez de uma norma e a sua aplicabilidade, isto é, as decisões que tanto nos
esperam na vida cotidiana, às vezes, de maneira dramática e urgente. Na ética do
discurso, as decisões do mundo da vida devem ser tomadas em cada caso pelos
implicados, ou seus representantes, desde um marco deontológico que os
considere como interlocutores válidos de um diálogo celebrado em condições de
simetria (CORTINA, 1993:175). As decisões a serem tomadas dão às normas uma
outra proporção, na qual o consenso racionável passa ser o fator de legitimação e
não somente a vontade do indivíduo em cumprir um dever que seja
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universalizável. Assim, CORTINA (1986:132) afirma que para além do valor
absoluto da pessoa humana e sua condição como fim último (ética kantiana), é
acrescentado como critério de validade das normas morais o consenso racionável
(ética discursiva).
A ética discursiva é uma opção válida para a superação de conflitos,
principalmente os conflitos que emergem de posturas intolerantes dentro de
sociedades plurais. Há conflitos que giram em torno dos meios a serem utilizados
para determinado fim. Este nível de conflito seria uma falta de acordo sobre como
alcançar um fim que é acatado por todos/as como justo e/ou bom. No entanto, há
situações de conflito mais complexas que surgem quando uma sociedade não está
de acordo sobre os fins últimos ou sobre as normas mais fundamentais segundo as
quais se deve agir, o que é cada vez mais evidente em sociedades marcadas por
diferentes culturas. Não será difícil constatar que, às vezes, não estamos de acordo
com os fins a alcançar e ainda menos com os meios que devemos utilizar para
tanto. Neste sentido, a ética do discurso, com sua prática do diálogo e a busca do
consenso racionável, não é uma ética a mais, mas, talvez, a mais propicia para os
desafios de nossa sociedade, marcada pela pluralidade e pela intolerância.
4.2.5
Por uma busca justa de satisfação de interesses.
Ainda falta analisar como a ética do discurso busca também satisfazer os
interesses humanos, superando um possível dualismo entre o dever e a felicidade.
Articular a uma proposta de ética deontológica, a dimensão da felicidade é
considerar, já de entrada, que a razão humana não é uma razão pura como muito
se acreditou. Não é possível sustentar uma razão meramente objetiva, imparcial e
desinteressada, como se fosse possível uma racionalidade alheia aos interesses
humanos (CORTINA, 2001:63). A razão humana se move a partir dos interesses
pessoais e coletivos, bem como a partir das circunstâncias históricas, com suas
tradições, valores e costumes. Não existe razão desinteressada. Aristóteles já havia
indicado, desde a Antiguidade, que a natureza humana é uma unidade entre
inteligência e desejo, que só pode ser descrita como inteligência desejosa.
Uma ética que tem como centro o discurso, que só é possível se celebrado
através do diálogo e este, por sua vez, só é possível através da palavra, não pode,
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então, esquecer que “la palabra está ligada sin duda a la razón, pero también a
la sensación y al deseo” (CORTINA, 1997:47). A palavra não é simplesmente
logos, mas é também eros. A palavra comunica razão e desejo. A palavra passa
pela razão e pelo desejo. O que quero assinalar é que não há discurso meramente
racional, neutro e objetivo. Todo discurso comunica uma aspiração, passa por um
desejo e se concretiza na fala por uma vontade.
Desde esta perspectiva, el hombre es un ser deseoso de felicidad, que tiene la
oportunidad de esclarecer inteligentemente qué tendencias conviene potenciar y
cuáles refrenar para alcanzar la meta. Por eso es prudente quien acuerda deseo e
inteligencia, optando por los deseos más conducentes a la felicidad. (CORTINA,
1997:47).
Desde a Antiguidade, há certo consenso sobre o fato de que nós humanos
tendemos à busca da felicidade. No entanto, a maneira de alcançar a felicidade
deve ser escolhida inteligentemente. Deve-se eleger os meios para atingi-la. Para
Aristóteles, possuímos uma peculiaridade em nossa razão, que é a unidade que
somos entre inteligência e desejo. Assim, volto às éticas teleológicas,
considerando que elas apresentam o que há de melhor na tradição aristotélica, que
é o conceito de razão prudencial, aquele tipo de racionalidade que nos leva a
buscar as justas normas morais que melhor conduzem à felicidade. Se há consenso
que tendemos à felicidade, não é tão fácil, entre as diferentes correntes filosóficas,
chegar a um acordo sobre o que vem a ser a felicidade. CORTINA (1993:180),
por exemplo, considera a felicidade como “auto-realização”, tal como a define a
tradição aristotélica. Entender felicidade assim não significa negar a satisfação de
prazeres. Na verdade, a auto-realização é uma atividade que pode vir acompanha
de prazer, mas que não se restringe a ele. A busca de auto-realização pode ser
entendida como a conquista do maior bem possível que deve ser alcançado em
consonância com princípios e valores morais, ou seja, felicidade articulada às
exigências de justiça. Esta busca é uma atividade conflituosa, pois o maior bem
possível não significa apenas a obtenção de prazer, mas auto-realização com
princípios e valores que podem, inclusive, restringir a felicidade desejada. Sendo
assim, a felicidade não é simplesmente tarefa de uma razão calculadora, mas de
uma razão prudencial, que deveria conjugar o que é bom com o que é justo. Uma
razão prudencial guia-se por dois princípios: o que causa a felicidade e o que
cumpre os critérios de justiça.
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Tendo em vista a razão prudencial e a tarefa de buscar a felicidade como
auto-realização, não posso esquecer que a ética do discurso é uma ética
deontológica, com a centralidade nos deveres morais e nem tanto na busca da
felicidade. No entanto, evitar o dualismo entre as dimensões do dever e da
felicidade é a tarefa que Adela Cortina cobra da ética discursiva. A questão
enfrentada, e tantas vezes apresentada pela filósofa valenciana, é sobre como
articular no âmbito de uma proposta ética as exigências morais (deveres de
justiça) e diferentes projetos de vida boa (busca da felicidade)
10
.
Pela centralidade no pensamento de Cortina, esta questão será retomada
adiante. O que importa agora é que ela seja entendida inicialmente a partir dessas
duas características conflitantes da racionalidade moral: a busca inevitável dos
seres humanos por projetos felicitantes e o compromisso irrenunciável com a
exigência dos juízos normativos. A articulação dessas duas dimensões só será
possível, segundo Adela Cortina, na elaboração de uma ética cívica, para a qual a
ética discursiva se apresenta como o melhor procedimento. Não obstante, antes de
examinar a ética cívica e sua relação com a ética discursiva, considero que é hora
de mais uma parada reflexiva. Desta vez, o tema que me força a distrair-me é a
relação de uma ética discursiva com o campo da educação propriamente dito.
4.2.6
Dever, diálogo e educação.
Para ensaiar algumas relações entre a ética discursiva e o pano de fundo
desta pesquisa – fundamentar filosoficamente uma educação para a tolerância –
cumpre retomar alguns pressupostos levantados até aqui a partir da obra de Adela
Cortina. Sendo assim, uma ética discursiva repousa basicamente em cinco
convicções, a saber: (1) os seres humanos são absolutamente valiosos e são fins
em si mesmos; (2) os seres humanos têm dignidade e não preço e por dignidade só
se pode exigir respeito; (3) os seres humanos são autônomos, auto-legisladores e
possuidores de uma racionalidade irrenunciável sobre as exigências dos juízos
10
Esta questão é reiteradamente discutida em: Ética Mínima (CORTINA, 1986:167); Ética sin
Moral (CORTINA, 1990:83-85); Ética Aplica y Democracia Radical (1993:180); Ética Civil e
Religião (CORTINA, 1996:08, 14 e 53); Ciudadanos del Mundo (CORTINA, 1997:28-29);
Hasta un Pueblo de Demonios (CORTINA, 1998:113) e Alianza y Contrato (CORTINA,
2001:137).
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normativos, isto significa afirmar que a dimensão do dever cobra centralidade no
agir moral; (4) as normas morais só possuem validade se elaboradas num
consenso racionável que se obtêm a partir de um diálogo celebrado em condições
ideais; (5) as normas morais formam um marco indispensável para o agir moral,
mas não ofertam felicidade tal como os seres humanos a buscam e a necessitam.
A partir dessas convicções, importa começar destacando a dimensão do
dever no processo educativo. A meu juízo, são duas as considerações a fazer.
Primeiro: a educação é um procedimento que deve acontecer necessariamente no
processo de humanização. Ao contrário de outros seres do mundo animal, o ser
humano não possui uma programação biológica que lhe forneça uma identidade.
A identidade enquanto humano e enquanto indivíduo é forjada obrigatoriamente
na relação com outros humanos. O que torna um ser humano humano é a relação
que ele mantém com outros humanos. Só na relação com outros humanos é que o
bicho humano se humaniza. Tal processo é obrigatório, necessário, imperativo. Se
não for assim, não pode ser de outra maneira
11
.
Segundo: se antes de mais nada, a educação é um dever ser – um
imperativo – para os humanos, então, como quer que ela aconteça, ela deve
responder ao dever moral de ser um processo de socialização ou humanização que
parta do princípio – também imperativo – de que todos os seres humanos são
absolutamente valiosos e fins incondicionáveis. Como processo de humanização,
a educação não possui nenhum equivalente e muito menos preço, tão somente
porque é o humano um ser absolutamente valioso. O que não possui preço ou
equivalente reclama imperiosamente dignidade. Dignidade é sempre respeitável e
nunca intercambiável. A partir desta perspectiva, a educação é um imperativo de
humanização, quiçá um dos mais elevados processos de conquista da dignidade
pelos seres humanos.
Ora, tamanha responsabilidade cobra o processo educativo enquanto dever
humano de todos para com todos, que é óbvio que ele não pode se dar de qualquer
maneira. Por isso, a educação foi, é e sempre será um dos principais campos de
disputa entre os humanos. Que sociedade queremos construir? Que tipo de seres
humanos queremos formar? Estas são questões fundamentais para uma filosofia
11
Talvez possa ser, de fato, de outra maneira, tal como contam os mitos de Mogli, o menino lobo,
e de Tarzan, o menino macaco. Mas, poderíamos considerá-los plenamente humanos?
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da educação e mobilizam projetos e poderes. Neste sentido, aposto que a educação
se dá no diálogo (FREIRE, 1987:77). No entanto, o diálogo, no decorrer da
história da filosofia, salvo raras exceções, ficou bastante restrito como um
procedimento adequado para a tarefa filosófica. A própria Hannah Arendt o pensa
numa dimensão mais interna, como o pensamento de forma mais dialógica. Em
suas palavras: o dois-em-um socrático.
É mister que o pensamento educacional, principalmente o brasileiro, não
deixe cair no esquecimento o papel fundamental de Paulo Freire no campo da
filosofia da educação e das práticas pedagógicas, incorporando e aprofundando o
diálogo como método educativo essencial para a superação de uma prática
educativa bancária (FREIRE, 1987:57-62). A meu juízo, a novidade dos herdeiros
da Escola de Frankfurt é estipular premissas básicas internas para um diálogo em
condições de simetria e dar as razões suficientes a favor de uma comunidade ideal
de argumentação, que são categorias primordiais para a proposta da ética do
discurso.
Nesta perspectiva, desde já destaco também que comprometer-se com a luta
e a promoção da tolerância como valor e atitude para uma agenda ética e
educativa é comprometer-se em promover o respeito à dignidade humana e
reconhecer, através de atitudes e propostas viáveis para o campo ético e
educacional, o valor absoluto da vida. No entanto, não nos basta aqui declarar a
uma posição contra a manipulação e a instrumentalização da dignidade humana.
Isso desgraçadamente não basta, pois ficaríamos estacionados na obrigação
negativa, isto é, num comportamento que se baseia no que não se deve fazer: não
devemos instrumentalizar o ser humano, pois ele é um ser absolutamente valioso.
Então, o que poderia ser proposto a partir das conclusões apresentadas até aqui?
Algum fundamento para uma prática educativa diferenciada? Arrisco-me em dizer
que as respostas a estas perguntas derivam necessariamente uma obrigação moral
positiva: devemos promover e construir valores para uma agenda mínima no
campo da ética e da prática pedagógica, na qual a tolerância pudesse ser um dos
valores e uma das atitudes centrais.
Não obstante, importa entender o que é uma ética mínima e como ela
articula outros dois valores ainda mais basilares: justiça e felicidade. É preciso
voltar a dialogar com Adela Cortina.
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4.3
ÉTICA CÍVICA: ENTRE A JUSTIÇA E A FELICIDADE.
Retomo o que considero ser o questionamento central no pensamento de
Adela Cortina: como é possível propor uma filosofia prática que permita conciliar
as exigências irrenunciáveis de justiça com a pluralidade de projetos de vida
felicitante? A filósofa de Valencia propõe a Ética Cívica como resposta, na qual
visa incorporar como procedimento as propostas da ética discursiva e promover
um entendimento entre as éticas deontológicas e as teleológicas. A ética cívica é a
proposta de Adela Cortina para articular o justo e o bom. Ela cumpre esta tarefa
discutindo o que seriam éticas de justiça e éticas de felicidade, que em suas
palavras são respectivamente éticas de mínimos e éticas de máximos. É
interessante notar que não se trata de uma proposta meramente teórica ou nascida
de contradições internas de um campo filosófico. A proposta nasce de um fato
inegável: vivemos em sociedades plurais, nas quais encontramos diferentes – e, às
vezes, opostos – projetos de vida feliz. Estes projetos, muitas vezes, se chocam de
maneira conflitiva. A questão, então, responde a uma demanda do mundo da vida
cotidiana: como promover a convivência pacífica de diferentes propostas de
máximos felicitantes com mínimos irrenunciáveis de justiça?
4.3.1
Ética Cívica: do monismo moral ao pluralismo axiológico.
Segundo Adela Cortina, uma sociedade pode possuir distintas maneiras de
conceber e organizar os códigos morais. Há sociedades que são moralmente
monistas, isto é, possuem apenas um código moral, e há sociedades nas quais
convivem – ou coexistem – distintos códigos morais. Para a autora, as sociedades
que historicamente superaram um monismo moral, geralmente imposto
autoritariamente, deparam-se com três situações distintas, a saber: (1) vazio
moral; (2) politeísmo moral e (3) pluralismo moral
12
.
12
A distinção entre monismo, vazio, politeísmo e pluralismo moral é apresentada em distintas obras da
autora: Ciudadanos del Mundo (CORTINA, 1997: 27); Hasta un Pueblo de Demonios (CORTINA,
1998: 111) e Alianza y Contrato (CORTINA, 2001: 135-136).
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Hoje é praticamente impossível conceber uma sociedade que se queira
democrática orientada somente por um código moral. O monismo moral só é
possível em sociedades totalmente homogêneas – existirão? – ou em sociedades
nas quais um código moral é imposto a todos como o único possível, tal como
costuma acontecer nos sistemas totalitários
13
. Um monismo moral só se dá de
maneira imposta, em sistemas autoritários. Sabemos que o monismo moral, tal
como as ditaduras, não conseguem durar para sempre, ainda que durem tempos
longos demais. As ditaduras, cedo ou tarde, caem – não de maduras, mas por
serem insuportavelmente podres – e com elas se vão, afortunadamente, além dos
ditadores, seus códigos morais, que são sempre a tentativa de impor uma norma
moral acrítica, irreflexiva, e um nível de participação cidadã nulo ou bastante
passivo.
Cabe aqui relembrar, com Locke, que um código moral (religioso, civil,
ideológico, partidário etc.) só pode ser realmente aceito como opção pessoal e
intransferível, razão pela qual é impossível impor um código moral sem
conseqüências posteriores, tais como: revoltas, apatia ou negação do código. Um
código moral só pode ser apresentado por seus formuladores (igreja, partido,
movimento etc.) e livremente aceito por aqueles/as que sob tal código optem
viver. Daí, o valor imprescindível da tolerância como base para se construir uma
alternativa que supere a situação de monismo moral.
Para a Adela Cortina, quando uma determinada sociedade supera o monismo
moral, geralmente, passa por três etapas: vazio, politeísmo ou pluralismo moral; e
sobre isso afirma: “A mi juicio, la primera salida es impracticable por
inexistente; la segunda, practicable, pero indeseable; la tercera, muestra un
proyecto en el que merece la pena trabajar, porque responde a lo mejor de las
aspiraciones humanas” (CORTINA, 1998:112).
13
Assim foi com o nazismo de Hitler na Alemanha, com o nacional catolicismo de Franco na
Espanha, com o chamado marxismo de Estado de Stalin na União Soviética, bem como quase
todos os sistemas autoritários que temos experimentado em distintos rincões do mundo. No caso
da ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1985, a falta de apoio institucional explícito de uma
igreja e de um partido político como eixo fundamental do golpe abriu espaço para um código
moral elaborado na caserna, a Doutrina de Segurança Nacional que foi transmitida – em
escolas, universidades, meios de comunicação etc. – como uma moral cívica, centrada numa
suposta ordem social, num progresso científico artificialmente neutral, num duvidoso
desenvolvimentismo econômico e, por fim, num civismo forçosamente passivo.
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240
A situação de vazio moral se caracterizaria pela negação de todo e qualquer
código e uma suposta alternativa de viver sem nenhuma norma ou regra moral que
oriente a ação humana, tendo em vista a imperfeição de todas. Esta situação é
inexistente porque é impossível uma sociedade humana sem valores morais, sem
um projeto hierarquizador de valores que oriente a organização, a manutenção e a
continuidade da própria sociedade. Uma sociedade sem moral é tão impossível
quanto uma pessoal amoral, ou seja, situada para além do bem e do mal. Um ser
humano sempre opta por uns valores e não outros na hora de orientar sua ação,
mas nunca carece totalmente de um norte moral (CORTINA, 1998:112).
Para descrever a segunda situação, Adela Cortina toma emprestado a
expressão politeísmo axiológico de Max Weber e o explica:
El politeísmo axiológico consiste en creer que las cuestiones de valores morales son
“muy subjetivas”, que en el ámbito de los valores cada persona elige una jerarquía
de valores u otra, pero la elige por una especie de fe. En realidad, si tuviera que
tratar de convencer a otra persona de la superioridad de la jerarquía de valores que
ha elegido, sería incapaz de aportar argumentos para convencerla, porque tales
argumentos no existen; por eso se produce en el terreno de los valores una especie
de politeísmo, que consiste en que cada uno “adora” a su dios, acepta su jerarquía
de valores, y es imposible encontrar razones que puedan llevarnos a encontrar un
acuerdo argumentado, a un acuerdo intersubjetivo. (CORTINA, 2001:136).
Talvez, alguns cidadãos possam equivocadamente desejar tal situação, tendo
em vista a vontade de rechaçar definitivamente o monismo moral. O politeísmo
moral pode, inclusive, parecer mais moderno, liberal ou tolerante. No entanto, ele
é inadequado, pois coloca a moralidade num âmbito incomunicável, irracionável,
ou seja, numa situação na qual não se pode dar razões suficientes, na qual não se
pode argumentar crítica e reflexivamente em diálogo com outras tradições ou
códigos morais.
Quero lembrar que tolerar não significa aceitar tudo, como se tolerância
fosse aceitar passivamente as situações ou opiniões mais absurdas. Há situações
intoleráveis, como há códigos morais intoleráveis. O que me parece é que os
códigos morais intoleráveis, mais do que os outros, desejam uma situação de
politeísmo axiológico, para deixar para trás um diálogo racional que revele suas
contradições internas, sua irracionalidade, sua incapacidade de dar fundamentos,
de elaborar razões suficientes para uma legítima hierarquia de valores. Posso
tomar como exemplo a crescente onda neonazista. Não se pode aceitar o
argumento de que cada um tem o direito de seguir o código moral que mais lhe
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Para pensar a tolerância: uma aproximação à Escola de Valencia
241
convenha e pronto. Numa sociedade democrática, um código de conduta para ser
apresentado como uma opção válida para que os cidadãos/ãs possam a ele aderir,
deveria apresentar suas razões suficientes e se estas estão abaixo de uns mínimos
morais de justiça, então, este código moral deveria ser denunciado como
moralmente inadequado, irracionável, absurdo e, por tudo isso, este código moral
não deve ser tolerado numa sociedade que se queira justa, para além de ser
supostamente democrática, tal como predica erroneamente o politeísmo moral.
A terceira situação, o pluralismo moral, é a mais adequada, pois ao mesmo
tempo em que busca superar o monismo moral, revela a impossibilidade de um
vazio de valores e nega a situação de Torre de Babel presente no modelo anterior.
A anarquia moral do politeísmo propicia uma disparidade tal entre os códigos
morais que resulta impossível encontrar um espaço comum de diálogo entre as
diferentes propostas morais (CORTINA, 1998:113). A meu modo de ver, esta
anarquia moral propiciaria também um espaço de atuação para códigos morais
inaceitáveis – tal como o neonazismo – para uma sociedade que se queira
verdadeiramente justa e democrática.
O pluralismo moral é a opção pelo diálogo, pela racionalidade
intersubjetiva, pela crítica saudável que cada grupo pode oferecer aos demais e, do
mesmo modo, receber dos demais grupos as críticas sobre seus posicionamentos
mais frágeis. O pluralismo é o modelo ou situação moral mais compatível com
uma filosofia prática, pois cada código moral deve apresentar suas razões
suficientes para um diálogo em condições ideais, com o objetivo de alcançar certo
nível de consenso racionável.
E a que consenso racionável deve chegar os códigos morais num modelo
que seja respeitoso da pluralidade? Ora, os distintos códigos morais devem abrir
um diálogo sobre um mínimo de coincidência entre eles, sobre um mínimo
comum de valores que sejam defendidos por todos os códigos e que sejam os
fundamentos de suas especificidades enquanto códigos morais válidos para uma
determinada sociedade. Esses mínimos coincidentes deverão ser os mínimos
exigíveis a todos os códigos, abaixo dos quais nenhum código moral pode estar,
senão estaria aquém da estatura moral que numa sociedade determina como a
mínima aceitável. Na verdade, a maioria das sociedades pluralistas já sabe quais
são esses mínimos coincidentes, tais como o valor da liberdade, da igualdade de
tratamento, da solidariedade, da tolerância, do diálogo, entre outros. A tarefa a
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242
cumprir, num pluralismo moral, não é tanto de inventar novos valores, mas de
sacar à luz aqueles valores morais já compartilhados, discuti-los publicamente e
apresentar suas razões suficientes, reconsiderando todos os argumentos,
favoráveis e contra, num diálogo que seja atual, isto é, a partir de nossos
condicionantes históricos.
Uma ética cívica nasce justamente dessa tarefa e se identifica com esses
valores comumente partilhados: “la ética cívica es el conjunto de valores y
normas que comparten los miembros de una sociedad pluralista, sean cuales
fueren sus concepciones de vida buena, sus proyectos de vida feliz” (CORTINA,
2001:137). Chego, assim, ao centro da argumentação da pensadora de Valencia: a
ética cívica é uma articulação entre máximos de felicidade e mínimos de justiça, e
nisso consiste sua racionalidade moral específica: articular o que é justo e o que é
bom.
4.3.2
Ética Cívica: entre mínimos e máximos.
Adela Cortina propõe uma ética cívica a partir de um contexto de
diversidade de códigos morais e de uma demanda histórica de elaborar, no marco
de um pluralismo axiológico, uma proposta ética que articule os mínimos de
justiça, que devem ser resultado de um consenso racionável, e as concepções de
vida boa ou projetos de vida feliz. Neste sentido, a ética cívica que é justamente o
ponto de articulação entre mínimos de justiça e máximos de felicidade, entre o
justo e o bom:
De facto la convivencia de distintas morales que pretenden universalidad ha sido, y
es, posible sobre la base de una ética cívica
, que se compone de unos mínimos
compartidos entre las distintas ofertas de “máximos”, entre las distintas propuestas
de felicidad. A la felicidad se invita
, mientras que los mínimos de justicia de la
ética cívica se exigen
. Nadie puede exigir a otro que viva según un modelo de
felicidad: puede invitarle a seguirlo. Pero una sociedad sí puede exigir a los
ciudadanos que vivan según unas orientaciones de justicia. Por eso es posible de
facto el pluralismo moral: porque ya hay unos mínimos de justicia (libertad,
igualdad, diálogo, respeto) compartidos por las morales de máximos. Y esta moral
cívica orienta la legalidad, que no sólo se exige, sino que se impone, si es
necesario, mediante sanción. (CORTINA, 1986:167).
14
14
Grifos da Autora. Neste mesmo sentido, veja também: Hasta un Pueblo de Demonios (CORTINA,
1998:117) e Alianza y Contrato (CORTINA, 2001:140).
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243
Neste sentido, uma ética cívica visa constatar e promover, tanto no campo
da ação prática quanto da teoria moral, as aproximações entre o que é justo e o
que é o bom. “Sem dúvida, é quase impossível averiguar o que é justo se não
tivermos uma idéia precedente dos ideais de uma vida digna ou boa, assim como
é impossível esboçar um ideal de felicidade sem levar em conta as exigências de
justiça” (CORTINA, 1996:60).
Reconhecendo a necessária inter-relação entre o bom e o justo, a autora
defende também a delimitação dos conceitos. Argumenta que o justo tem a ver
com o que é exigível e como tal se torna obrigação moral para qualquer ser
racional que queira pensar e agir moralmente. “Donde podemos concluir que é
moralmente justo aquilo que satisfaz aos interesses universalizáveis”
(CORTINA, 1996:62). Moralmente justo é algo que se faz sempre necessário e
assim universalizável para todo ser racional que queira ser moral, isto é, que não
queira estar aquém de uns mínimos de justiça que garantam a dignidade humana.
Necessário e universal significam os mandatos que se fazem obrigatórios para
todos que se queiram morais. Moralmente justo é algo que está fora da
contingência, da efemeridade; trata-se de algo que deve ser, porque se não for,
estaremos abaixo da estatura moral que requer a dignidade humana.
Por sua vez, o bom é aquilo que causa felicidade, ou seja, auto-realização
por alcançar os fins que nos propusemos intencionalmente ou não. O bom não
pode ser exigido dos outros seres racionais, pois se trata fundamentalmente de
uma realização subjetiva, pessoal e intransferível. Como já afirmei, o que é bom
para um pode não ser bom para outros. O que causa felicidade em um pode não
causar em outros.
Sendo assim:
As éticas de justiça ou éticas de mínimos ocupam-se unicamente da dimensão
universalizável do fenômeno moral, isto é, daqueles deveres de justiça exigíveis de
qualquer ser racional, e que, efetivamente, só são constituídos de exigências
mínimas. Ao contrário, as éticas de felicidade pretendem oferecer ideais de uma
vida digna e boa, ideais que se apresentam hierarquizadamente e englobam o
conjunto de bens que os homens usufruem como fonte da maior felicidade possível.
São pois, éticas de máximas, que aconselham a seguir o modelo e convidam-nos a
tomá-lo como norma de conduta, mas não podem exigir ser seguidos, visto que a
felicidade é tema de aconselhamento e convite, e não de exigência. (CORTINA,
1996:62).
Tomando, por exemplo, o ideário judaico-cristão, é possível entendê-lo
como uma ética de felicidade, ou seja, de convite e de aconselhamento. Trata-se
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244
de um conjunto de valores que se apresenta como regras de conduta que
funcionam como auto-referência e que, por isso mesmo, se seguido de acordo com
a liberdade de escolha de cada um poderá proporcionar a auto-realização, a
felicidade. Não se pode esquecer, no entanto, que, como uma ética de felicidade,
esse ideário não poderá ser exigido. Ninguém pode exigir que alguém aja dessa ou
de outra maneira porque somos todos filhos de Deus, que nos amemos porque
somos todos irmãos em Cristo. O ideário judaico-cristão pode ser entendido,
então, como convite e aconselhamento. E deste ideal se pode identificar alguns
valores éticos presentes de forma secular hoje numa ética cívica, tais como
solidariedade ou fraternidade.
No entanto, é no campo das exigências mínimas que se encontra a
tolerância, como uma agenda necessária e moralmente exigível para a convivência
social entre os diversos outros de nossas sociedades pluralistas. Mesmo me
colocando no campo de defesa da tolerância, não acredito que as exigências
mínimas sejam melhores que os convites e aconselhamentos. Não quero deixar
transparecer aqui que fraternidade e solidariedade representariam ilusões que
devam ser ignoradas por serem inocentes ou tolas demais, ao contrário, o que
pretendo é defender que junto com as utopias devemos buscar uma agenda
mínima de ação, que deve ser entendida como deveres de uma ética de justiça e
por isso mesmo exigível de qualquer ser racional que se pretenda moral. Aposto
muito mais numa relação dialética entre o justo e o bom, entre mínimos e
máximos, entre justiça e felicidade, do que numa oposição binária entre os
conceitos.
No entanto, se não se pode exigir moralmente que nos amemos
fraternalmente, porque somos todos filhos de Deus, até por que, como já
explicitado, essas máximas só podem funcionar como convites e
aconselhamentos, então será necessário construir estratégias que garantam a
tolerância e outros tantos valores como requisitos mínimos – no sentido de
fundamental, imprescindível – para a convivência humana. Se não tem sido
possível o discurso sobre a igualdade fraternal e o amor para alcançarmos à paz e
à concórdia, que seja pelo menos o da tolerância. As propostas sobre a tolerância
saem do campo do convite e do aconselhamento – do qual concordo que não se
deve abrir mão, pois o sonho é inerente ao ser humano – para encontrar saídas
possíveis e moralmente exigíveis no âmbito da convivência social.
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245
4.3.3
Ética Mínima: esclarecimentos de percurso.
A fim de seguir nosso percurso, principalmente, no que diz respeito aos
conceitos de bom e justo, faz-se necessário dois esclarecimentos. O primeiro é
sobre a origem dos termos ética de mínima e ética de máximos. Ainda que
pareçam ser próprios da obra de Adela Cortina, ela admite que tais concepções
encontram ressonância na obra de John Rawls (CORTINA, 1997:28)
15
. Aqueles
valores que todos compartem e compõem os mínimos de justiça que uma
sociedade pluralista não está disposta a renunciar e que Adela Cortina resume em
ética mínima, Rawls chama de concepção moral de justiça para a estrutura
básica de uma sociedade. E as distintas propostas de felicidade que a filósofa
espanhola resume em éticas de máximos, o filósofo norte-americano chama de
doutrinas compreensivas de vida boa. Numa coisa os dos pensadores convergem:
chamam a atenção para o fato de que em sociedades pluralistas deve-se buscar
com muito cuidado a articulação entre as duas dimensões a fim de que não se crie
obstáculos para a plena justiça e tampouco para que não se perca a pluralidade de
ofertas de definição do que é uma vida feliz, pois este é um ponto fundamental
para se garantir o efetivo respeito às diferenças.
O segundo esclarecimento é sobre os limites da defesa de uma ética mínima.
Cumpre registrar que quando defendo uma ética mínima ou uma agenda mínima
para o campo moral não estou falando em atitudes morais minimalistas,
preocupadas em cumprir o mínimo possível, como se fosse possível numa
liquidação moral
16
. Não! Aqui não se trata de mercado de valores. Ética mínima
não é liquidação de valores morais. Quando se fala de ética mínima não se trata de
baixar os níveis de exigências, tampouco “cortar custos” da atividade moral.
Trata-se, de fato, de encontrar o limite por abaixo do qual só estaremos se
ferirmos o ideal de dignidade humana, do ser humano como absolutamente
valioso e como fim incondicionado.
15
Quanto às obras de John Rawls citadas por Adela Cortina, destacam-se: Liberalismo Político
(Barcelona: Crítica, 1996) e Teoría de la Justicia (Madrid: FCE, 1979).
16
Como se fosse algo do tipo: Vejamos o mais baixo que podemos chegar a nos exigir moralmente
e aí vendemos nosso produto ético-filosófico, pois assim cidadãos com menor capacidade moral
de compra poderão consumi-lo. E quanto mais se consome mais difundiremos valores morais,
ainda que baixa qualidade.
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246
Neste sentido, uma agenda mínima no campo da ética significa estabelecer
limites para que possam ser ultrapassados – e daí as possibilidades das éticas de
felicidade – e ao mesmo tempo ser vigiados, cuidados, para que não sejam
desrespeitados, isto é, para que não se fique aquém desses limites. Definir bem os
conceitos é tarefa fundamental para a filosofia e respeitá-los é de sabedoria diante
da condição humana, que é frágil, débil. Desocupar-se dos limites mínimos,
pensando que os máximos nos bastam, é cair no equívoco de um pensamento
fraco e preguiçoso. Há que sacar da ética um pensamento forte, laborioso e
cuidadoso. E é com este fim que se buscam os limites de uma ética mínima e para
isso, a seguir, demarcarei algumas fronteiras entre o que é bom e o que é justo.
4.3.4
Entre o justo e o bom.
A fim de apresentar uma síntese e uma articulação entre a felicidade e a
justiça, apresento a seguir um quadro comparativo entre algumas idéias chaves
que norteiam, definem e delimitam fronteiras entre os dois conceitos.
JUSTIÇA FELICIDADE
Ética de Mínimos Ética de Máximos
Justo Bom
Dever Finalidade
Deontologismo Teleologismo
Normas Conselho
Exigência Convite
Obrigação Gratuidade
Compromisso Liberdade
Mandatos Possibilidades
Prescrição Flexibilização
Lei Virtude
Contrato Aliança
Universalidade Pluralidade
Legalidade Legitimidade
Direito / Coação Religiões / Graça
Ideal da razão Ideal da imaginação
Meta do cidadão Meta da pessoa humana
© Quadro elaborado por Marcelo Andrade (2006).
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247
Algumas das correlações apresentadas no quadro já foram explicitadas. No
entanto, outras necessitam um trato mais específico e a partir dos conceitos de
felicidade e justiça tratarei de analisar as idéias sintetizadas no quadro. No
entanto, antes de me dedicar especificamente aos conceitos desse quadro, faz-se
necessário algumas observações preliminares.
Em primeiro lugar, há que insistir na idéia de complementaridade entre os
dois conceitos, ou melhor, mais do que dois conceitos, estamos tratando da
complementaridade das duas mais importantes capacidades morais do ser
humano: o sentido de justiça e a concepção de bem, o que significaria afirmar que
os seres humanos são essencialmente morais (o que seria o mesmo que dizer
essencialmente humanos) quando logram ser justos e felizes. Ser feliz e justo seria
uma boa síntese do que comumente se expressa como ser um bom caráter, ou seja,
levar consigo boas características morais. A discussão entre o bom e o justo não
tem a pretensão de entendê-los como opostos que se atraem e se nutrem através de
uma polarização de significados, mas sim como âmbitos diferentes que se
complementam.
Em segundo lugar, cabe também insistir no caráter intersubjetivo das normas
(deveres de justiça), pois quando se defende as capacidades morais não se estás
simplesmente afirmando, sem mais, a capacidade humana de obedecer às normas,
mas de discursivamente construí-las: “las normas morales nacen de un
reconocimiento entre sujetos, que el núcleo básico de la vida social es la relación
intersubjetiva, que se extiende, diríamos hoy, a cuantos están dotados de
competencia comunicativa” (CORTINA, 2001:37). Ainda que a palavra norma
provoque certa ojeriza em setores supostamente mais liberais ou mais
revolucionários ou mais modernos de nossas sociedades, há que recordar que sem
normas não há convivência social possível.
Em terceiro lugar, é preciso realçar a relação entre normas morais e a
confiança no projeto de ser uma pessoa feliz, isto é, a tarefa de cumprir deveres
morais requer o desenvolvimento da auto-estima. Corroborando Kant, Adela
Cortina afirma que só quando o ser humano se compreende a si mesmo – a sua
própria humanidade – como absolutamente valiosa, como o que tem dignidade e
não preço, ou seja, é para ele sua própria humanidade um fundamento para a ação
moral, é que descobre o verdadeiro motor do agir ético (CORTINA, 1986:86).
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248
Así entendido lo moral, resulta indispensable para un individuo tener algún
proyecto vital de autorrealización e ir ganando la confianza suficiente en sí mismo
para intentar llevarlo a cabo. (…) Una razonable confianza en sí mismo y en el
valor de los propios proyectos son necesarios para vivir una vida verdaderamente
humana. (CORTINA, 1993:179).
Por fim, há que se reconhecer que não é gratuito, em nossas sociedades, o
fato de dizer que alguém feliz e realizado está com a moral em alta ou que, ao
contrário, quando dizemos que uma pessoa está desmoralizada é sempre sinônimo
de alguém infeliz, não realizado diante de si mesmo e diante de seu próprio grupo
de referência. Pode-se perceber assim, mais uma vez, a relação intuitivamente
expressada em nossa linguagem cotidiana entre justiça (dever) e felicidade
(projeto). Segundo Adela Cortina, estas categorias – moral em alta e
desmoralização – também podem ser aplicadas às sociedades, pois se pode
entender um grupo humano como desmoralizado ou com alta moral, isto é, com
estatura moral suficiente ou não para responder com galhardia aos desafios que se
enfrenta enquanto grupo (CORTINA, 1993:179)
17
.
Dessa forma, volto ao quadro de analogias entre justiça e felicidade.
Tentarei explicitar a seguir, além da relação, os limites entre a justiça e seus
mandados e a felicidade e suas possibilidades.
4.3.5
A justiça e seus mandados.
Como já afirmado anteriormente, a proposta de ética cívica de Adela
Cortina, ainda que busque articular o justo e o bom, tem um posicionamento
muito claro sobre a prioridade – quase uma imposição da razão prática – da justiça
sobre a felicidade como instrumento para a convivência humana. No entanto, cabe
a pergunta sobre o que significa justiça ou o que se entende por justiça. Para
responder minimamente a esta indagação, apresentarei alguns esclarecimentos
sobre o conceito, principalmente sobre algumas considerações mais atuais que
disputam o termo no atual debate que marca o campo da ética
18
.
Antes de tudo, há que registrar que a justiça, no campo da filosofia prática,
estabelece uma diferença fundamental entre o que é legal judicialmente e o que é
17
Veja também Sintomatologia geral de nossa sociedade (CORTINA, 1996:17-22).
18
Veja Anexo I – Notas históricas sobre o conceito de justiça, páginas 291-295, deste trabalho.
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249
legítimo moralmente. É uma delimitação que estabelece as fronteiras entre o
direito e a moral. É conveniente que não se perca de vista esta distinção, pois não
vou aqui limitar o conceito de justiça ao campo da legalidade e da coerção
jurídica. Na história da filosofia, justiça sempre quis significar mais do que
acordos legais celebrados em uma sociedade. Daí que até hoje há uma
compreensão de que existem ações que são legalmente corretas e moralmente
inválidas e vice-versa, moralmente válidas e legalmente incorretas.
Considerarei aqui algumas das atuais teorias de justiça. Elas, de alguma
maneira, se correlacionam com a própria história do conceito de justiça. Assim,
abordarei três grandes correntes: (1) as teorias de justiça liberais e contratualistas,
nas quais seu mais destacado representante seria John Rawls; (2) as teorias de
justiça de concepção igualitarista, representadas por Michael Walzer e (3) as
teorias de justiça convergentes com a ética do discurso, representadas por
Habermas e Apel.
(a) O contratualismo liberal de John Rawls.
Herdeiro do contratualismo liberal, o filósofo norte-americano John Rawls
recolheu em 1971 uma série de estudos sobre justiça em seu livro A Theory of
Justice
19
. O principal aporte de Rawls é a elaboração de um constructo teórico no
qual todas as pessoas agiriam hipoteticamente baseadas no princípio de justiça.
Essa hipótese ou constructo teórico se chama posição original e é a partir dela que
Rawls propõe que devam ser pensados os pactos sociais.
A posição original consiste em supor que um grupo de pessoas imaginárias
tem que fazer um pacto social em nome de todos e de maneira definitiva. Essas
pessoas imaginárias são livres, racionais, iguais e unicamente interessadas em ser
boas e fiéis representantes de todos e todas. Essas pessoas são colocadas em
situação de total simetria, isto é, nenhuma pode influenciar ou coagir às outras.
Além disso, essas pessoas são profundas conhecedoras das condições que marcam
a vida humana: escassez de bens, competição, tecnologias, desigualdades,
discriminações, cooperação, solidariedade etc. Rawls acrescenta a estas pessoas
imaginárias conhecimentos de economia, psicologia, sociologia e, por suposto,
são também conhecedoras das diferentes concepções filosóficas sobre justiça.
19
Trabalharei com a edição em castelhano de 1979 (2ª Reimpressão, FCE-Espanha, 2002).
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No entanto, estas pessoas imaginárias estão submetidas a um tipo de
desconhecimento muito especial para que pactuem com justiça. Essa condição é o
“véu de ignorância”, que vem a ser outro conceito central no pensamento
rawlseano (RAWLS, 2002:135). O véu de ignorância consiste na hipótese que
estas pessoas ignoram totalmente suas condições concretas, suas identidades reais
e por isso não sabem a que grupo representam. As pessoas imaginárias
desconhecem seu gênero, idade, etnia, classe social, nacionalidade, nível
intelectual, capacidades físicas, crenças religiosas etc. O mais importante do
constructo racional de Rawls é que as pessoas imaginárias que fazem o pacto não
sabem quais condições possuirão na sociedade para a qual estão pactuando.
A posição original e o véu de ignorância são hipóteses que consideram
racionalmente a vontade de pactuar com justiça independente da imposição de
uma loteria biológica e/ou social. Essas duas hipóteses, segundo Rawls, são
fundamentais para se entender a justiça para além das pré-condições que nos são
dadas no nascimento e sobre o qual não temos nenhum ou pouco controle, daí
loteria ou acaso, sorte, fortuna, destino.
Para RAWLS (2002:140), o véu da ignorância fará das pessoas “egoístas
racionais”, isto é, dará a elas a condição ideal de imparcialidade para construir
pactos sociais justos para todos. As pessoas imaginárias não sabem que condições
terão, então, elas farão um pacto no qual todos/as, inclusive os mais
desfavorecidos, estejam protegidos por princípios de justiça. As pessoas
imaginárias sabem que após o pacto podem estar nos piores postos da sociedade.
Com este constrangimento produzido pelo véu de ignorância e conhecedoras das
condições nas quais se dá a vida em sociedade, as pessoas imaginárias desejam
criar uma sociedade na qual, ainda que pertençam ao grupo dos mais
desfavorecidos, estejam melhor que sendo do grupo dos mais desfavorecidos em
outro tipo de sociedade com outra concepção de justiça.
A concepção de justiça de Rawls está centrada na idéia de imparcialidade e
de contrato. É evidente, por exemplo, que o conceito de igualdade não é central.
Rawls parte do princípio que a imparcialidade produz dois tipos de garantias para
um pacto justo e consequentemente para um Estado justo. Primeiro, a
imparcialidade garante que todas as pessoas tenham as mesmas liberdades básicas
compatíveis com as liberdades dos demais. Segundo, a imparcialidade indica que
as desigualdades econômicas e sociais somente serão justificadas em duas
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circunstancias aceitáveis: (a) que exista igualdade de oportunidades para alcançar
riqueza e cargos de prestígio e (b) que as desigualdades da sociedade permitam
que os mais desfavorecidos tenham um nível econômico e social mais elevado que
uma sociedade mais igualitária, ou seja, com menos níveis de desigualdades.
Assim, seria melhor ou mais aceitável ser um desfavorecido numa sociedade
desigual que um desfavorecido numa sociedade igualitária. Já para MARTÍNEZ
(1994:184-185), o constructo de Rawls impede que as partes contratantes adotem
princípios que possam excluir injustamente e antecipadamente determinados
coletivos: “La posición originaria es sólo un recurso expositivo para mostrar de
modo sintético lo que damos por supuesto todos nosotros (los occidentales
actuales en general) cuando hablamos en serio de la justicia”.
A teoria de Rawls abre mão da concepção de igualdade como meta ao
justificar as desigualdades já que as oportunidades são supostamente dadas
igualmente. Além disso, a desigualdade é aceita se, e somente se, os mais
desfavorecidos tiverem melhores condições econômicas em uma sociedade
desigual que em uma sociedade igualitária. Entretanto, alguns dados bastante
concretos, e nada hipotéticos, indicam que quanto maior a desigualdade, ainda que
com liberdade individual e suposta igualdade de oportunidades, maior é o nível de
exclusão dos mais desfavorecidos. Basta lembrar, por exemplo, o nível de pobreza
em países como Brasil através dos índices do PNUD e os alarmantes níveis de
desigualdades que vivemos. A meu juízo, nem mesmo hipoteticamente falando é
possível aceitar que desigualdades justificadas em sociedades desiguais garantam
aos mais desfavorecidos melhores condições econômicas que em sociedades mais
igualitárias. Neste sentido, segundo o meu entendimento, a concepção de justiça
de Rawls apresenta uma contradição significativa e obriga a seguir o caminho
atrás de outras possibilidades de entendimento deste conceito. Em resumo: sem
profundo compromisso com o ideal de igualdade não há justiça.
(b) A igualdade complexa de Michael Walzer.
Michael Walzer, historiador e antropólogo radicado em Princeton (USA), dá
a conhecer em 1983, sua obra Spheres of Justice
20
. Walzer tem um objetivo muito
diferente de Rawls e isso ele deixa claro já na introdução de sua obra:
20
Trabalharei com a segunda edição em castelhano de 2001 (2ª Reimpressão, FCE-México, 2004).
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252
Ningún estudio sobre la justicia en estos días puede omitir reconocer y admirar el
logro de John Rawls. En el texto he discrepado de ‘A Theory of Justice’ la mayoría
de las veces. Mi objetivo es muy distinto al de Rawls y toma como base distintas
disciplinas académicas (la historia y la antropología más que la economía y la
psicología). Pero sin su trabajo, el mío no hubiera tenido la forma que adquirió, y
tal vez no hubiera tenido forma alguna. (WALZER, 2004:15-16).
A obra de Walzer, de certa maneira, é uma resposta ao contratualismo liberal
de Rawls e uma tentativa de dar centralidade ao tema da igualdade no debate
sobre a concepção de justiça tanto na filosofia política quanto no campo da ética.
Além de apresentar uma teoria de justiça, o filósofo de Princeton propõe encontrar
as possibilidades de um igualitarismo em nossas sociedades hoje, mediante
exemplos contemporâneos e históricos, tal como ele faz com o conceito de
tolerância apresentado no capítulo 2 deste trabalho.
Walzer parte da concepção de igualdade como tema central e chega a
admitir que é necessário superar uma igualdade simplista, ou seja, concebe a
igualdade como uma noção complexa, articulada com o pluralismo e fundamental
em diferentes esferas da vida social que tenha a justiça como valor possível.
Importa saber, então, como Walzer distingue igualdade simples e complexa e
como a justiça se encontra na segunda.
A igualdade simples seria a proposta de dar a mesma quantidade de bens
(dinheiro, cargos, tempo livre, educação, poder, reconhecimento etc) para todas as
pessoas independente de seus méritos e esforços. Para Walzer, este tipo de
proposta igualitária é injusta, pois os esforços e méritos diferentes devem ser
premiados de maneira diferente, o que não significaria necessariamente
estabelecer desigualdades, mas tão somente diferenças aceitáveis numa sociedade
plural. É óbvio que os seres humanos possuem características individuais que nos
diferenciam quanto à inteligência, bondade, energia, capacidade de trabalho,
habilidades, dotação física etc. Estas características podem fazer que algumas
pessoas alcancem, com justiça
, mais bens que outras.
No es la envidia ni el resentimiento lo que anida primordialmente en las
motivaciones de los partidarios de la igualdad, sino una actitud de justa rebeldía
ante la experiencia de la subordinación que los poderosos imponen a los que
carecen de un poder similar. Lo que persigue el igualitarismo político cuando trata
de hacerse compatible con la libertad no es la eliminación de las diferencias entre
las personas, porque no todos hemos de ser lo mismo ni tener la misma cantidad de
las mismas cosas. (MARTÍNEZ, 2002:194-195).
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253
Para Walzer, a justiça se encontra na igualdade complexa, pois uma
sociedade plural é formada por diferentes esferas, a saber: pertencimento político,
segurança e bem estar social, dinheiro e mercadorias, cargos e profissões, trabalho
e tempo livre, educação, parentesco e relações de amor, graça divina,
reconhecimento e poder político. Ainda que não nos convenha aqui detalhar cada
uma das esferas da teoria de Walzer, é importante registrar que cada uma possui a
sua própria lógica. “La igualdad compleja es la situación resultante de repartir
los bienes de cada una de dichas esferas atendiendo, en cada caso, a lógica de la
esfera en cuestión” (SIURANA, 1998:35). Há esferas nas quais o conceito de
igualdade pode ter um funcionamento interno muito restrito, como são os casos de
graça divina ou relações de amor, já que nunca haverá um departamento de Estado
apto a receber reclamações do tipo: Meu Deus não me há abençoado na vida ou
Ninguém me ama. Como uma teoria da justiça poderia pensar mecanismo de
redistribuição de bens sociais que são frutos da generosidade de nossas relações?
Claro está que nestas esferas a igualdade ou a justiça são conceitos de pouca valia.
No entanto, estas esferas devem ser consideradas em relação com outras. Isso se
torna mais evidente no princípio organizativo das esferas, segundo a proposta de
Walzer. Para ele, a obtenção de bens sociais em uma determinada esfera não pode
ser o único critério ou a única possibilidade de alcançar outros bens sociais:
“Ningún bien social X ha de ser distribuido entre hombres y mujeres que posean
algún otro bien Y simplemente porque poseen Y sin tomar en cuenta el significado
de X” (WALZER, 2004:33).
O que Walzer parece querer evitar, com esta espécie de imperativo
categórico dos bens sociais, é que de posse de um bem social, de uma determinada
esfera, uma pessoa possa obter, sem mais, os bens de outras esferas. Por exemplo,
em nossas sociedades capitalistas, quem possui em grande quantidade o bem
social dinheiro pode obter quase todos os outros bens sociais, tais como: bem estar
social, tempo livre, educação, cargos, poder político e até relações de amor e graça
divina. Em outros períodos históricos já tivemos exemplos de como outras esferas
eram fundamentais para obter dinheiro ou poder político, tais como: as relações de
parentescos e a graça divina para as monarquias absolutistas do Medievo.
Sendo assim, Walzer conclui que duas são as práticas que geram situações
que não permitem o surgimento e a permanência de uma igualdade complexa: o
predomínio e o monopólio. O predomínio ocorre quando a posse de um bem
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254
social é dominante para obter outros e o monopólio quando os que possuem o bem
social dominante impedem que outros tenham acesso ao mesmo. Walzer propõe
uma igualdade complexa que visa apartar predomínios e monopólios dos bens
sociais. Para ele, a igualdade complexa só é possível mediante três atitudes: o
intercambio livre dos bens sociais, a obtenção dos bens sociais por merecimento e
o acesso aos bens sociais básicos por necessidade. Assim, a justiça seria derivada
de uma igualdade complexa que consiste distribuir os diferentes bens sociais
atendendo aos critérios próprios de cada bem social, evitando predomínios e
monopólios através de intercâmbios, méritos e necessidades.
(c) A ética do discurso de Habermas e Apel.
Para finalizar estas breves notas sobre o conceito de justiça, retornarei à
ética do discurso já discutida preliminarmente
21
. A ética do discurso trata-se de
uma elaboração original dos filósofos alemães Jürgen Habermas e Karl-Otto Apel,
considerados atualmente os dois herdeiros de maior relevância da Escola de
Frankfurt. Poderia, de maneira muito resumida, afirmar que para a ética do
discurso uma ação é justa se é aceita, sem qualquer tipo de coação através de um
diálogo em condições de ideais, por todos os afetados e afetadas pela ação em
questão. Tal como já foi exposto, os filósofos da ética do discurso, fiéis ao
deontologismo kantiano, visam superar uma racionalidade monológica, buscando
condições ideais de fala entre os afetados a fim de se chegar a princípios e ações
justas construídas intersubjetivamente e com pretensões de validade universal.
Nesta perspectiva, há dois pilares fundamentais para uma teoria da justiça a
partir da ética do discurso: (a) o reconhecimento recíproco de todos os seres
humanos como pessoas capazes de dialogar e (b) o diálogo como procedimento
fundamental para definir princípios justos e decidir por ações justas.
Obviamente las condiciones en la realidad son muy diferentes a las de una situación
ideal de diálogo. Pero podemos medir en qué grado nuestras sociedades son más o
menos justas por lo próximo o por lo alejadas que se encuentran de realizar esa
situación ideal. Así, los Estados que hacen leyes como respuestas a los intereses
expresados de sus ciudadanos son más justos que los Estados que no atienden a las
demandas de sus miembros, o que ni siquiera fomentan la educación entre ellos
para que sean conscientes de sus própias opiniones. (SIURANA, 1998:36).
21
Veja o apartado 4.2 – Ética do Discurso: uma opção, páginas 223 a 237, deste trabalho.
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255
Ainda mais injusto seria o Estado que persegue os seus cidadãos/ã por suas
idéias e opiniões ou os proíbe de expressá-las, considerando sempre que estas
idéias não estejam a baixo dos mínimos de justiça acordados entre todos os
implicados.
A fim de verificar a concepção de justiça para os filósofos da ética do
discurso, teríamos muitos prováveis caminhos. Optei, então, por algumas obras
mais recentes de Habermas. Sendo assim, apresentarei o conceito de justiça que
emerge de Faktizität und Geltung (1992)
22
, Die Einbeziehung des Anderen
(1996)
23
e Wahrheit und Rechtfertigung (1999)
24
.
Em Facticidad y Validez, Habermas trata das concepções filosóficas de
justiça e admite que desde os anos 70, juristas e filósofos, influenciados pela obra
de Rawls, reagiram surpreendentemente contra o normativismo tanto no campo da
moral quanto do direito. No entanto, tal reação – liberal e contratualista – não
conseguiu livrar-se de um sério problema: o que fundamentaria o agir moral se o
dever é visto como uma realidade impotente, sem força para orientar a ação? “Se
trata aquí del viejo problema de cómo realizar el proyecto racional de una
sociedad justa, que abstractamente se opone a una sociedad irracional”
(HABERMAS, 2005:121).
Habermas indica que o equívoco de Rawls está na dicotomia entre os dois
níveis de sua teoria de justiça, a saber: um primeiro nível de fundamentação e um
segundo nível de considerações relativas à aceitação prática da fundamentação.
Segundo HABERMAS (2005:124), quanto mais Rawls apóia sua teoria em
intuições (posição original e véu da ignorância) que ninguém pode recusá-las,
mas impreciso se torna o limite entre a fundamentação teórica e a compreensão
política de uma comunidade jurídica concreta. O que Habermas parece indicar é
que a teoria de justiça de Rawls, que tem fortes pretensões universalistas, na
verdade, está demasiadamente referida a um tipo de sociedade, a sociedade
liberal, mais especificamente ao pluralismo liberal dos Estados Unidos. O filósofo
do discurso chega a admitir que tal teoria seria, por exemplo, de difícil aceitação
para o povo alemão que tem outra constituição histórica e política (HABERMAS,
22
Trabalharei com a quarta edição em castelhano: Facticidad y Validez (Madrid: Trotta, 2005).
23
Trabalharei com a edição em castelhano: La inclusión del outro (Barcelona: Paidós, 1999).
24
Trabalharei com a edição em português: Verdade e Justificação (São Paulo: Loyola, 2004).
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256
2005:127). Sendo assim, o contratualismo liberal estaria restrito ao liberalismo
político norte-americano e estaria fora de sua pretensão de universalidade.
HABERMAS (2005:124-125) se posiciona a favor de uma teoria da justiça
que seja mais universal e ao mesmo tempo mais situada, ou dito de outra maneira,
que seja menos liberal e mais respeitosa de outras concepções de vida política, de
cultura, de sociedade e de pessoa humana:
En una sociedad pluralista la teoría de la justicia sólo podrá contar con ser aceptada
si se limita a una concepción que sea postmetafísica en sentido estricto, es decir, si
evita tomar partido en la disputa entre formas de vida y concepciones del mundo,
que compiten unas con otras. (…) Pues bien, una teoría de la justicia cortada a la
medida de las formas de vida moderna tiene que contar con una diversidad de
formas de vida y planes de vida que han de coexistir dotados de unos mismos
derechos; y naturalmente, sobre esas formas de vida y planes de vida cabrá esperar
disenso desde la perspectiva de las diversas tradiciones y de las diversas biografías.
Habermas afirma que filósofos e juristas que defendem uma concepção de
justiça ancorada no liberalismo político e suas instituições deveriam apresentar as
razões pelas quais as demais pessoas deveriam escolher ser liberais
(HABERMAS, 2005:128). Sem um liberalismo político de fundo não há
possibilidades institucionais para o contratualismo liberal, no entanto, uma teoria
da justiça não deveria pertencer, se ela tem pretensões de universalidade, a um
único modo de organizar a política, a economia ou a sociedade. Para Habermas,
uma teoria de justiça não deve estar ancorada num sistema político, mas em um
sistema de normas, de deveres intersubjetivamente construídos, indepen-
dentemente do contexto sócio-cultural.
Convencido que uma teoria de justiça tem mais a ver com o sistema de
normas morais (deontologia) do que com um sistema político (liberalismo), em La
inclusión del outro, HABERMAS (1999:29) apresenta as razões suficientes da
autoridade do dever, ou seja, porque “formulamos proposiciones que tienen el
sentido de exigir a los demás un determinado comportamiento (es decir, plantear
una obligación), de comprometernos com una cierta acción (contraer una
obligación), de hacer reproches a los demás o a nosotros mismos, de reconocer
errores, de presentar excusas, de ofrecer una reparación etc.” Para o filósofo do
discurso, a obrigação pressupõe o reconhecimento intersubjetivo de normas
morais ou de práticas comuns que fixam, de modo convincente, para uma
determinada comunidade aquilo a que estão obrigados os atores, bem como o que
devem esperar uns dos outros. E ainda: “El concepto central de obligación se
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257
refiere no sólo al contenido de los mandamientos morales, sino al carácter
peculiar de la validez del deber que se refleja también en el sentimiento de estar
obligado” (HABERMAS, 1999:30).
É importante ressaltar que para a ética do discurso, as regras morais operam
como auto-referenciadas, isto é, sua força coordenadora da ação se dá em dois
estádios de interação acoplados retroativamente. No primeiro estádio, as regras
morais dirigem a ação social de modo imediato na medida em que vinculam a
vontade dos atores e a orientam de um determinado modo. No segundo estádio,
regulam as tomadas de posturas críticas daqueles casos nos quais se dão algum
tipo de conflito moral. Sendo assim, “una moral no sólo dice cómo deben
comportarse los miembros de la comunidad; proporciona al tiempo razones para
la resolución consensual de los conflictos de acción correspondientes”
(HABERMAS, 1999:30).
Em Verdade e Justificação, Habermas, seguindo Aristóteles e Kant, opta por
um entendimento diferenciador entre razão prática e razão teórica a fim de
fundamentar o saber moral, que é essencialmente uma razão prática, ou seja,
orienta a ação. E a ação para ser moral precisa necessariamente ser justa.
Enquanto a razão teórica é assertiva, isto é, afirma o que são e como são os
objetos analisados, a razão prática revela o que deve ou não deve ser feito.
As asserções dizem o que é o caso, enquanto prescrições e proibições dizem qual
deve ou não ser o caso. Saber como as coisas se encadeiam “efetivamente” é
diferente de exigir o que deve ser feito – ou saber como nossas ações “têm de” se
engrenar para que seja possível uma convivência correta ou justa. O saber moral se
distingue do empírico já por sua referência à ação. Ele diz como as pessoas devem
se comportar, e não o que se passa com as coisas. A “verdade” de proposições
descritivas significa que os estados de coisas enunciadas “existem”, enquanto a
“correção” das proposições normativas refletem o caráter obrigatório dos modos de
agir prescritos ou proibidos. (HABERMAS, 2004:269).
Enquanto a razão teórica e o saber empírico constituem verdades, a razão
prática e o saber moral constituem obrigações, ações corretas ou justas. Para
HABERMAS (2004:276), há um paralelismo entre verdade e justificação ou
correção: “o mundo social desempenha para o desenvolvimento da consciência
moral um papel semelhante ao que desempenha o mundo objetivo para o
pensamento em geral”. Em todo caso, a razão prática e o saber moral se
diferenciam da razão teórica e do saber empírico pelo fato de estarem
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258
internamente relacionado à solução de problemas de aplicação no mundo social e
não à descrição e instrumentalização das coisas do mundo objetivo.
Ainda a fim de estabelecer esta relação comparativa entre verdade e normas
justas, Habermas infere uma distinção entre valor e validade. Esta distinção
lingüística ajuda a entender a nítida diferença que há entre o valor de um juízo que
é factualmente reconhecido porque se trata de uma verdade da razão teórica e a
validade de um juízo que merece reconhecimento intersubjetivo porque tem força
de validez para a razão prática. Para HABERMAS (2004:279), “Esse uso da
linguagem denuncia uma certa hesitação em estabelecer uma analogia irrestrita
entre validade deontológica e validade ligada à verdade”. Na dinâmica interna da
razão prática, a norma justa tem força de verdade, pois é através da
obrigatoriedade deôntica (das normas legisladoras) que esperamos, como
membros de uma comunidade moral, um determinado comportamento – justo,
correto – uns dos outros (HABERMAS, 2004:271). No entanto, esta
obrigatoriedade da ação moral é uma obrigatoriedade livre, pois já afirmara Kant
que a vontade é livre, enquanto capacidade de subordinar-se às normas que podem
ser aceitas em virtude de um discernimento moral.
A fim de esclarecer a noção de justiça para a ética do discurso, sua relação
intrínseca com o deontologismo e a opção pelo diálogo intersubjetivo como
procedimento, recorro ao próprio Habermas pela força de suas palavras:
A intuição que me guia pode se caracterizar da seguinte maneira. De um lado, a
correção de juízos morais se estabelece da mesma forma que a verdade de
enunciados descritivos – pela argumentação. Não temos acesso direto, não filtrado
por razões, às condições de verdade, assim como não temos semelhante acesso às
condições sob as quais as normas morais merecem reconhecimento universal. Em
ambos os casos, portanto, a validade dos enunciados não pode resistir à prova senão
passando discursivamente pelo medium de razões disponíveis. De outro lado, falta
às pretensões de validade moral a referência ao mundo, característica das
pretensões de verdade. A “verdade” é um conceito que transcende toda justificação
e também não pode ser identificado com o conceito de assertibilidade idealmente
justificada. Ele aponta antes para condições de verdade que de certo modo devem
ser preenchidas pela própria realidade. Em contrapartida, o sentido de “correção”
reduz-se a uma aceitabilidade idealmente justificada. Pois, ao construir um mundo
de relações interpessoais bem-ordenadas, contribuímos, nós mesmos, para
preencher as condições de validade dos juízos e normas morais. No entanto, essa
construção está sujeita a limitações que não estão a nosso dispor; do contrário não
se poderia falar de discernimento moral. A ausência de conotações ontológicas não
pode prejudicar a pretensão de validade universal ou incondicional. Essa pretensão
se mede por condições sociais e relações de reconhecimento recíproco, que
merecem ser aceitas como justas por todos os envolvidos. (HABERMAS,
2004:279-280).
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259
4.3.6
A felicidade como possibilidade do ir além.
O conceito de felicidade na filosofia moral é um tema central e, ao mesmo
tempo, bastante arriscado. Central porque corresponde a uma das principais
aspirações humanas: ser feliz. Como já afirmado, uma ética baseada tão somente
em deveres morais, isto é, nos deveres de justiça, se tornaria uma proposta pesada
demais e incapaz de motivar as pessoas a vivê-la. Também não é possível propor,
segundo CORTINA (1996:60), uma noção do que é justo sem uma articulação
necessária com o que é bom, com aquilo que dá ao sujeito alegria, satisfação ou
auto-realização.
No entanto, falar de felicidade é algo sempre atrevido e arriscado, porque se
está diante dos perigos de um tipo de subjetivismo reducionista. Como já se sabe,
o que para um pode ser extremamente desagradável para outro pode ser a melhor
possibilidade de ser feliz. Então, como falar de felicidade com o rigor que se faz
necessário na filosofia moral se o conceito se refere a algo efêmero, impreciso,
subjetivo e de difícil consenso? Como evitar o subjetivismo de sentimentos e
definir uma experiência que de qualquer ponto de vista será sempre única, pessoal
e intransferível?
Se é difícil definir o que é a felicidade, mais difícil ainda será chegar a
acordos de como se deve alcançá-la. E ainda que haja coincidência sobre o que é
este supremo bem a ser logrado pelos seres humanos, há também um determinado
consenso de que existem muitos diferentes caminhos e maneiras que, segundo
cada tradição ou vontade pessoal, levaria à felicidade.
O tema de como alcançar a felicidade – seja ela o que for – deve ser uma
preocupação sempre pertinente para uma ética da felicidade que ouse ser
responsável, pois não é prudente apresentar, sem mais, definições sobre o que é a
felicidade sem considerar quais são as mediações históricas, reais e possíveis para
alcançá-la (DOMINGO, 1994:107). Definir a felicidade sem o compromisso de
identificar quais são as suas mediações nos levaria a duas conseqüências
desastrosas. Primeiro, a um utopismo exacerbado, por isso irreal, irresponsável e
sem poder de mobilização. Segundo, a um niilismo pessimista e cínico, pois
diante da impossibilidade de fazer real o ideal de felicidade se estaria
estabelecendo o total descrédito para a definição da felicidade.
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260
É necessário registrar que ao examinar aqui o conceito de felicidade se
levará em conta as correntes filosóficas que, minimamente, apresentam, além de
uma definição conceitual, as mediações históricas possíveis para a realização da
proposta considerada. Se, por um lado, a felicidade não tem o caráter de
obrigatoriedade como tem a justiça, tampouco deve ser tratada como se fosse algo
inviável, ilusório ou descompromissado com a realidade. Se a justiça tem
mandados, a felicidade tem possibilidades. Sendo assim, analisarei o conceito a
partir dessa maneira de entender a felicidade, ou seja, dentro do marco de
mediações possíveis.
A partir da história do conceito de felicidade
25
, poderia me perguntar sobre
quais são as principais teorias sobre a felicidade que atualmente dominam o
campo filosófico. E aí está mais uma diferença do conceito de felicidade em
relação ao conceito de justiça. Não há nenhuma novidade substancial sobre o que
venha ser felicidade no debate filosófico atual. Há algumas releituras de
concepções antigas e modernas. Isso se dá por dois motivos. Primeiro: pela
imprecisão do conceito, como já explicitado. Felicidade refere-se a um conceito,
cada vez mais, de caráter subjetivo, o que dificulta o rigor que rege o campo da
filosofia. Assim, qualquer tentativa de renovar seriamente o entendimento sobre o
conceito deveria passar por retirá-lo do âmbito dos sentimentos pessoais, tarefa
nem sempre fácil ou aceita após os sentimentos terem ganhado estatuto de
autonomia. Segundo: as antigas e modernas definições de felicidade continuam
bastante onipresentes, ou seja, as definições aristotélicas, hedonistas, epicuristas,
kantianas e utilitaristas parecem manter bastante vitalidade e conseguem definir o
campo semântico do conceito de tal forma que pouca novidade possa ser ousada.
Apesar da dificuldade de definição e da pouca inovação nos estudos sobre a
felicidade, parece-me importante ressaltar um aspecto que se pode perceber nos
trabalhos de alguns especialistas. Refiro-me a idéia de felicidade como uma
possibilidade de excelência da condição humana. A tensão entre felicidade como
esforço e felicidade enquanto dom gratuito está assumida como algo inerente ao
conceito. Sendo assim, não há razão para insistir em um ou outro pólo, mas
assumir a relação dialética entre ambos na configuração da felicidade como uma
possibilidade, vinda de um esforço e/ou de um dom.
25
Veja Anexo II – Notas históricas sobre o conceito de felicidade, páginas 295 -302, deste trabalho.
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261
Nesta perspectiva, a novidade estaria em algumas concepções,
principalmente de fundamentações kantianas ou cristãs, tais como as de Adela
Cortina e as de Agustín Domingo, respectivamente. Trata-se de entender
felicidade como horizonte possível de superação, de desafio, de convite, de
máximos. Aqui há duas percepções distintas e entrelaçadas, a saber: (a) o conceito
de felicidade se articula e amplia o conceito de justiça (Adela Cortina) e (b) o
conceito de felicidade amplia a condição humana (Agustín Domingo).
A idéia de felicidade como ampliação significa exatamente ir além, superar
um nível fundamental, alcançar patamares de excelência, seja do conceito de
justiça, seja da condição humana. Se retomo aqui a discussão iniciada com Yves
de La Talle com o conceito de limite, será possível perceber que há uma
concepção que entende o campo ético como o âmbito dos limites a serem
superados, como desafios que mobilizam, como proposições provocativas que
devem ser ultrapassadas a fim de se atingir um estágio de excelência moral e/ou
humana. Estaríamos assim no campo de significação de: ir além, superar, exceder,
extrapolar, suplantar, transbordar, desbordar, estender, expandir, superabundar,
exagerar, ultrapassar etc. A felicidade significaria um mais. Ela nos remete aos
máximos, a níveis de excelência, porém mesclada com a gratuidade. Não se trata
tão somente de excelência pelo esforço, mas da possibilidade gratuita de ser feliz
porque isso corresponde a um desejo inerente da humanidade, que sem dúvidas
pode ir além, pode transbordar as condições histórias do aqui e agora.
DOMINGO (1994:140) afirma que os limites propostos pelo imperativo
categórico kantiano não são apenas limites à ação da vontade, mas possibilidades
de enriquecê-la humanamente. Estar-se-ia assim diante de uma proposta ética que
não se limita aos princípios de justiça, tal como também propõe Adela Cortina,
mas de uma ética da felicidade movida por ideais de plenitude e auto-realização
que podem ser partilhados, que podem ser experiências grupais e coletivas e não
tão somente individuais, subjetivas. No entanto, “aunque la autorrealización sea
compartida, la felicidad siempre es personal e intransferible, de ahí que sea la
‘actuación de un don’” (DOMINGO, 1994:145).
Para DOMINGO (1994), a diferença da alegria que nos exalta e do prazer
que nos excita, a felicidade é um dom que nos encanta, nos enamora. A felicidade
seria, então, a possibilidade de abertura, de recriação de si mesmo e do mundo,
que só poderá chamar-se verdadeiramente mundo humano se oferecer garantias de
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262
uma vida justa e possibilidades de uma vida feliz, pois tão forte como os deveres
de justiça são os desejos de superação e gozo. Realidades inerentemente humanas.
Cumpre registrar que nesta proposta há toda uma preocupação com a
dimensão da partilha, da felicidade que não é apenas um desejo pessoal, mas um
compromisso de abrir portas para os outros. A preocupação com outro é
fundamental, porém não só por caridade ou justiça, mas sim por partilhar a mesma
condição humana, histórica e mundana. Tratar-se-ia de um tipo de solidariedade
de espécie. Não seria paternalismo. Seria um amor-solidariedade que não substitui
a ação alheia, mas que excede – vai além, supera, ultrapassa – a lógica da ação
moral baseada somente em deveres de justiça, porque recorda permanentemente
suas origens existenciais e humanas, mantendo-se vigilante com as superficiais
propostas de felicidade baseadas apenas em prazer, alegria ou bem-estar
(DOMINGO, 1994:151).
Assim, o que há de mais novo nas atuais pesquisas sobre a felicidade é a
percepção de que esta dimensão da vida humana é uma possibilidade – por
esforço e/ou dom – de ir além, uma abertura, um convite que nos é feito e que
todos e todas desejam acolhê-lo, pois ser feliz aqui e agora é o sinal mais evidente
da superação de todos as mazelas e limites humanos.
4.3.7
O jogo cooperativo entre mínimos e máximos.
Como já afirmado, a ética cívica é a original proposta de Adela Cortina a
fim de se articular uma ética de mínimos de justiça exigíveis (deontologismo) e
uma ética de máximos de felicidade aconselháveis (teleologismo). Esta proposta
tem, de certa forma, fundamentado uma série de trabalhos no âmbito da Escola de
Valencia. Neste sentido, também considerarei aqui alguns recentes ensaios que
tem buscado trabalhar conceitualmente com as categorias criadas pela pensadora
de Valencia. Analisarei, então, os trabalhos de Emílio Martínez
26
, da
Universidade de Murcia (Espanha) e de Jovino Pizzi
27
, da Universidade Católica
de Pelotas (RS), a fim de perceber como esta proposta tem sido inicialmente
aceita e rediscutida por alguns especialistas e estudiosos do campo da ética.
26
MARTÍNEZ (2005).
27
PIZZI (2005).
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263
PIZZI (2005:262) vê na proposta de Adela Cortina uma revisão crítica da
ética do discurso. Por sua vez, a ética do discurso é uma revisão crítica do
deontologismo kantiano. Tal como já indicado, Habermas e Apel desenvolveram
uma severa crítica ao solipismo moral de Kant. Se para Kant a universalidade dos
princípios morais estaria preestabelecida pela reflexão solitária e necessária de
todos os seres racionais, para a ética discursiva o formalismo solipsista kantiano
deve ser substituído pelo procedimento do acordo consensual entre todos
implicados mediante um diálogo em condições de simetria. Mais que atribuir
como válida aos demais qualquer máxima que se possa querer que se converta
numa lei universal – tal como propusera Kant, a proposta de Habermas é submeter
a máxima a todos os demais implicados com a finalidade de examinar
discursivamente sua pretensão de universalidade.
Neste sentido, PIZZI (2005:264) entende que a proposta habermasiana dá
uma importante contribuição ao campo da ética, que é defender proposições
universalistas sem perder de vista a multiplicidade de contextos. Tendo presente o
horizonte dos fins particulares, a ética do discurso fundamenta uma proposta de
universalidade de princípios fundamentais em articulação com a diversidade de
realidades sócio-culturais. A ética discursiva é uma alternativa que transforma
dialogicamente o princípio formal e monológico de autonomia da vontade
proposto por Kant em um princípio também formal, mas intersubjetivo, de
autonomia da vontade de todos os implicados mediados pela prática do diálogo
(PIZZI, 2005:267).
No entanto, a limitação do procedimentalismo dialógico habermasiano
estaria em sua total omissão sobre formas concretas de vida, de ideais de vida boa,
de modelos comunitários de virtude, de propostas tangíveis de felicidade. Se uma
proposta ética quer ser uma articulação entre fins particulares e fins universais não
pode, segundo Jovino Pizzi, desconsiderar as formulações do que venha a ser uma
vida boa ou feliz nos diferentes contextos que pretende ser aplicada.
Sendo assim, a proposta de Adela Cortina seria uma nova planificação na
descrição e na justificação daquilo que podemos denominar como a dimensão
moral da ação comunicativa proposta por Habermas e Apel. Sem dúvida, a
formulação de ética de mínimos e ética de máximos representa uma tentativa de
fundamentar normas morais dentro de uma perspectiva discursiva. No entanto, o
seu diferencial estaria em não reduzir a reflexão sobre o âmbito das normas
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264
morais (ética) ao âmbito da reflexão sobre as normas jurídicas (direito), tal como
critica Adela Cortina em seus comentários ao trabalho Facticidad y Validez de
Habermas (PIZZI, 2005:269-275).
Segundo PIZZI (2005:275), a novidade de Adela Cortina é compreender a
tensão entre universal e particular a partir de uma doutrina da virtude, ou seja, a
partir da articulação de máximos felicitantes e mínimos de justiça. O decorrer da
história tem nos ensinado que nenhuma comunidade moral pode estar
ensimesmada, daí o elemento universalizante, tampouco podemos desprezar os
princípios, valores, atitudes e hábitos elaborados em cada comunidade moral
particular sem renunciar à riqueza da diversidade humana e à própria humanidade
que constitui cada e qualquer grupo de pessoas.
Por sua vez, Emílio Martínez valoriza a proposta de Adela Cortina por
considerar que é uma proposta que corresponde adequadamente aos desafios do
mundo atual, marcado principalmente pelo pluralismo. Há, cada vez mais, uma
multiplicidade de propostas de éticas de máximos (ou éticas compreensivas de
bem, para usar a expressão de Rawls) que convidam e aconselham a um projeto
de vida boa ou vida feliz. Há propostas que são racionáveis, outras nem tanto.
Para Martínez, a pluralidade de propostas em si não significa necessariamente
algo positivo, pois é notável que nesta pluralidade há propostas irracionáveis, isto
é, nefastas para a convivência humana. Lembremos mais uma vez, por exemplo,
das propostas de orientações nazistas, racistas ou sexistas. É óbvio que a solução
para tal problema não seria a eliminação da diversidade e o estabelecimento de um
único modelo de vida boa, pois isto seria tão nefasto quanto aceitar que propostas
nazistas, racistas ou sexistas são propostas racionáveis de vida boa para a
convivência humana.
Segundo MARTÍNEZ (2005), a proposta de Adela Cortina é atual e
corresponde aos desafios de nosso tempo justamente por propor critérios comuns
entre as diversas propostas de vida boa. Esses critérios elaborados mediante um
consenso dialógico seriam os únicos capazes de avaliar quais propostas são
racionáveis, pois tais critérios já são partilhados pelas diferentes propostas. A
tarefa mais importante, então, não seria inventar critérios, mas sacá-los à luz,
discuti-los, fundamentá-los em nosso contexto sócio-histórico.
A proposta de Adela Cortina garante a pluralidade de propostas de vida
feliz, nega o monismo moral e afasta o perigo do politeísmo axiológico. A ética
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265
cívica, que no fundo é uma ética de mínimos articulada à pluralidade de éticas de
máximas, é uma opção equilibrada, pois admite uma ampla variedade de
propostas de vida boa, porém não todas, pois algumas delas são incompatíveis
com a convivência e o respeito à dignidade humana.
Segundo MARTÍNEZ (2005), a proposta de ética cívica confirma uma
tendência do pensamento ético contemporâneo de se admitir claramente que há
éticas compreensivas e éticas compartilhadas, que na denominação da filósofa de
Valencia são éticas de máximos e éticas mínimos, respectivamente. Esta tendência
iniciada por John Rawls reconhece que em sociedades pluralistas os diferentes
grupos estão sempre parcialmente em acordo (éticas compartilhadas) e
parcialmente em desacordo (éticas compreensivas). Isso significa que nestas
sociedades há tensões e conflitos permanentes, o que leva a busca de elementos
harmonizadores, ou seja, elementos comuns que estabelecem os mínimos que
devem ser preservados.
Cada grupo sabe que, mientras que exista una situación de auténtico pluralismo,
podrá gozar de las condiciones necesarias para difundir su verdad moral completa
entre quienes aún no la conocen o no la comparten. También sabe cada grupo moral
– aunque algún grupo a veces parece olvidarlo – que ese pluralismo es una
situación frágil que puede romperse en cuanto cualquiera de ellos viole los
‘mínimos’ y pretenda imponer sus ‘máximos’ por la fuerza y la manipulación. Y se
sabe por experiencia histórica que al romperse el pluralismo se produce una deriva
hacia situaciones indeseables para todos: o monismo axiológico violentamente
establecido, o politeísmo axiológico al borde del caos social (MARTÍNEZ,
2005:04).
Neste clima de desacordo parcial permanente, a tolerância, como valor e
atitude, será fundamental para garantir a convivência humana em marcos éticos
racionáveis. Retomando as notas que apresentei sobre o Congresso de Lima, vale
a pena chamar atenção que uma das definições mais significativas de tolerância,
compartilhada por alguns autores da comunidade ibero-americana de filosofia, era
sobre a necessidade de consensos entrecruzados como resposta a situação de
concórdia discorde típica das sociedades plurais. Sendo assim, importa dar mais
um passo e estabelecer algumas relações entre a ética cívica, proposta por Adela
Cortina, e o conceito de tolerância.
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266
4.4
ÉTICA CÍVICA E TOLERÂNCIA.
Tentarei demonstrar como a tolerância, como valor e atitude, é fundamental
numa agenda cidadã que opte por articular mínimos de justiça moralmente
exigíveis e máximos de felicidade eticamente aconselháveis. Ainda que Adela
Cortina, mais recentemente, tenha optado pela expressão respeito ativo
28
,
podemos encontrar ao longo de sua produção acadêmica uma estreita ligação entre
a ética cívica e o conceito de tolerância.
Cumpre registrar que CORTINA (1998:115) admite que o nascedouro do
que ela hoje chama de ética cívica só foi possível a partir dos séculos XVI e XVII,
com a defesa de alguns pensadores, como Locke e Voltaire, por uma experiência
de convivência pacífica entre grupos que professavam distintas concepções
religiosas, atéias ou agnósticas, sempre que compartissem um mínimo de valores.
Las guerras de religión habían puesto de manifiesto las nefastas consecuencias que
se siguen de la intransigencia de aquellos que se sienten incapaces de admitir
cosmovisiones diferentes de la propia. Ciertamente, las razones últimas de las
llamadas “guerras de religión” no siempre fueron religiosas, sino frecuentemente
políticas, económicas o provocadas por la psicología de personajes poderosos, pero
quienes actuaban por estos móviles se sirvieron de las cosmovisiones religiosas. La
experiencia del pluralismo nace con la de una incipiente ética cívica, que cuenta,
como factor esencial, con la tolerancia hacia quienes compartan cosmovisiones
diferentes de la propia. (CORTINA, 1998:114)
29
.
O que quero destacar são as relações entrecruzadas dos conceitos de ética
cívica e de tolerância desde as suas origens. Há que se considerar também que
uma ética cívica – tal como Adela Cortina a delineia – além de nascer de uma luta
histórica pela tolerância, tem a própria noção de tolerância como uma de suas
bases fundamentais, pois a ética cívica é “sequiosa de tolerância e respeito” e é a
expressão mais legítima contra a “intolerância e seus atropelos” (CORTINA,
1996:70-71).
28
Como já explicitado no apartado 2.2.2 – A filosofia discute a tolerância: parecer de um
congressista em Lima, páginas 127-147, deste trabalho, a
filósofa de Valencia surpreendeu
bastante a comunidade filosófica ibero-americana reunida em Lima, Peru, em janeiro de 2004, diante
da qual afirmou que o tema do congresso, justamente o conceito de tolerância, era um equívoco e que
a pauta de discussão dos filósofos políticos e éticos deveria ser o “respeito ativo”.
29
Grifos meus.
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267
CORTINA (1986:144) considera ainda que a tolerância é o “sello de lo
plural”, ou seja, é a tolerância o sinal mais visível e inconfundível de que uma
sociedade trilha os caminhos do pluralismo. Para Adela Cortina, graças ao valor
da tolerância – “la nunca suficientemente ensalzada virtud democrática” – tem
sido possível a convivência, ou pelo menos a coexistência, de abortistas e
antiabortistas, ou seja, de grupos prós e contra qualquer tema que se considere
polêmico: aborto, casamento homossexual, eutanásia, utilização de células-
troncos etc. Ainda que pareça uma coisa muito normal, quase natural, nas
democracias atuais, se retrocedermos algumas décadas – não precisaria mais –
vamos concordar que “hoy es una bendición contemplar cómo las gentes pueden
mantener impunemente las más diversas posturas acerca de problemas morales”,
ainda que saibamos que não é esta uma realidade em todas as partes do mundo. O
sagrado direito de discordar apresentando as devidas razões suficientes é hoje
mais do que um ideal desejado, é um direito conquistado e fundamental nas
sociedades democráticas e plurais.
É importante frisar a opção de Adela Cortina pelo pluralismo axiológico
como a expressão máxima desse “sello de lo plural”. Assim, a tolerância é
expressão e condição para uma ética cívica enquanto articulação entre máximos e
mínimos:
El pluralismo moral supondría en verdad la convivencia – no la mera coexistencia –
de distintas concepciones acerca de lo que hace felices a los hombres y acerca de lo
que deben hacer; distintas concepciones acerca de lo bueno (lo felicitante) y lo
justo. Pero esto exige un duro esfuerzo. Implica rebasar con creces el terreno de los
actos concretos e intentar esbozar los contornos de lo que consideramos una actitud
más humana que otras; es decir, una actitud más felicitante (más generadora de
felicidad) y justa. (CORTINA, 1986:144-145).
Uma leitura desatenta poderia nos indicar o falso caminho de que a
tolerância seria apenas a coexistência de distintas propostas e não a sua
convivência, já que esta seria supostamente fruto de um respeito ativo. Para além
das sutilezas entre os dois termos e da recente preferência da filósofa de Valencia
pelo segundo, mostrarei como Adela Cortina tem contornado o conceito de
tolerância como um valor fundamental. Para cumprir esta tarefa, recorrerei aos
escritos da própria autora para indicar como o valor da tolerância – implícita e
explicitamente – aparece entre seus argumentos para a constituição da ética cívica
e desta como um contrato necessário e uma aliança possível em contextos plurais.
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268
Em Ética Mínima (1986), Adela Cortina afirma que a moral civil é uma
empresa urgente dos tempos atuais e que “las virtudes que en esta empresa van a
ayudarnos serán, sin duda, la tolerancia y la disposición al diálogo”
(CORTINA,
1986:155). Adela Cortina admite ainda que os indivíduos que vivem o pluralismo
podem perceber facilmente que um estado de normas consensuadas proporciona
mais vantagens que um estado de intolerância e guerras. Assim, “de esta
necesidad de supervivencia pacífica y provechosa sacaríamos las virtudes que
adornan a la moral cívica: tolerancia, disponibilidad para el diálogo y para
aceptar lo consensuado a través de él, rechazo de toda pretensión de poseer el
monopolio de la verdad (CORTINA, 1986:153)
30
. Pode-se perceber aqui como
tolerância e diálogo aparecem como dois pilares de uma proposta ética que vise
articular os mínimos de justiça e os máximos de felicidade.
Em Ética civil y cultura de la tolerância (1996), no contexto do Ano
Internacional da Tolerância, Adela Cortina defende explicitamente as relações
entre sua proposta de ética cívica e o conceito de tolerância: “Es importante, pues,
dejar claro desde el comienzo qué es lo que la ética cívica puede y quiere ofrecer,
y cuáles son sus ventajas. Una de las cuales consiste en abogar por la tolerancia:
sin ética civil, no hay tolerancia posible” (CORTINA, 1996
A
:15). Neste mesmo
artigo, a filósofa de Valencia defende que a ética cívica é uma tarefa de todos os
cidadãos: “la ética civil o la hacen los ciudadanos, o no se hará, porque nadie la
va a hacer por nosostros” (CORTINA, 1996
A
:13). Ela também retoma a
importância de se articular máximos e mínimos a fim de se garantir a diversidade
em sociedades plurais; condena a tentação intolerante de determinados grupos por
desejarem impor suas máximas a toda sociedade; argumenta a favor de se buscar
conjuntamente os mínimos morais já partilhados em uma sociedade a fim de se
estabelecer a estatura moral que se deseja ter enquanto sociedade e chama a
atenção para necessária garantia de liberdade para as ofertas de vida felicitante
dentro de um marco de mínimos morais já partilhados.
Para fundar una sociedad tolerante es necesario tener una convicción muy fuerte de
que la tolerancia merece la pena, una convicción muy fuerte de que todas las
personas que forman parte de esa sociedad son dignas de respeto. Pero también una
convicción muy fuerte de que sus concepciones de vida son dignas de ser
respetadas. (CORTINA, 1996
A
:24).
30
Grifos meus.
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269
Já em Alianza y Contrato, de 2001, a autora mantém basicamente a mesma
linha de pensamento, ainda que acrescente sua nova terminologia, isto é, respeito
ativo: “una sociedad no puede ser pluralista y tolerante si no cuenta con algunos
principios y valores morales que los distintos grupos sociales tienen por
irrenunciables, entre ellos el valor de tolerar a quien piensa de forma diferente o,
todavía más, el valor de respetarlo activamente” (CORTINA, 2001:135).
O que fica claro na comparação entre estes escritos é a relação intrínseca
entre tolerância, diálogo e pluralismo, bem como a proposta de uma ética cívica
como aquela capaz de garantir este pluralismo em termos toleráveis. Neste
sentido, Adela Cortina defende que nenhum grupo ou poder público está
legitimado para proibir expressa ou veladamente aquelas propostas de máximos
de felicidade que respeitam – e somente se respeitam – os mínimos de justiça
partilhados na ética cívica. “Por consiguiente, ni la ética civil está legitimada
para intentar anular a alguna de las éticas de máximos que respetan los mínimos
de justicia, ni las éticas de máximos están autorizadas para anular a la ética civil.
Los monismos intolerantes son siempre inmorales” (CORTINA, 2001:143).
Adela Cortina parece nos alertar que uma situação de tolerância não está
isenta de tensões entre os mínimos e os máximos, bem como dentre as diferentes
propostas de máximos. A tensão ou situação de conflito entre máximas sempre se
dá, posto que um grupo que oferta uma proposta de máximos de felicidade pode
se sentir tentado pela idéia de eliminar aos demais grupos que com ele competem
nesta oferta em sociedades pluralistas ou pode ainda se sentir tentado a impor sua
oferta a todos por considerá-la a mais adequada.
Neste sentido, vale o alerta de MARTÍNEZ (2005:06):
La tolerancia no significa en este contexto que todo esté permitido, puesto que el
propio sistema tolerante exige que todos sus miembros lo sean para que el clima de
tolerancia no sea eliminado por algún grupo intolerante. Los comportamientos
intolerantes no tienen cabida en el sistema pluralista, puesto que son una amenaza
para la continuidad del mismo. En consecuencia, es conveniente tomar
precauciones para evitar que los grupos intolerantes se salgan con la suya. Ahora
bien, esto no significa que en este terreno todo esté permitido, puesto que la
prevención de la intolerancia puede ser utilizada fácilmente como excusa por parte
de algún grupo o coalición de grupos para intentar eliminar a quienes consideran
competidores. Por tanto, en un sistema pluralista debe fijarse con mucho cuidado el
límite de lo que se considera permisible, y los ciudadanos han de tener en todo el
momento el control sobre los poderes estatales para evitar que sean utilizados por
unos grupos para eliminar a otros.
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270
A tolerância seria, então, o valor e a atitude de aceitar a diversidade de
concepções últimas sobre a vida, as diferentes ofertas do que venha a ser uma vida
boa. Sem este valor-atitude e sem a valorização do diálogo não é possível uma
ética cívica, já que esta é em sua essência a articulação dialogada de mínimos de
justiça partilhados por todos com as diferentes propostas de máximos de
felicidades aos quais todos estão convidados a participar livremente.
Seguindo a perspectiva de Adela Cortina, faz-se necessário entender a
diferenciação entre contrato e aliança remetendo-a mais uma vez ao marco de seu
pensamento: ética de mínimos e ética de máximos. Mais que uma diferenciação,
Adela Cortina entende que contrato e aliança são concepções originárias de duas
tradições distintas, que versam basicamente sobre o modo de relacionar-se
socialmente.
O contrato pertence a uma tradição que entende a sociedade como um caos,
como um estado de guerra e competição permanente entre as pessoas no qual é
necessário um ordenamento. Trata-se da necessidade de regras para proteger os
humanos dos próprios humanos. O representante mais notável dessa leitura sobre
a sociedade seria Hobbes. Já a aliança pertence àquela tradição que vê a
sociedade como uma rede de relações marcada pela ajuda mútua, pela necessidade
social de convívio, pela interdependência dos seres humanos. A representação
aqui estaria figurada no livro do Gênesis da tradição judaico-cristã.
Ora, a tolerância estaria presente nas duas tradições, ainda que de maneira
mais nítida na primeira, já que o contrato é, para Adela Cortina, o campo dos
mínimos, dos pactos de coexistência e convivência. O contrato é o pacto social
necessário para estabelecer a ética dos mínimos, que se expressará em leis,
códigos, declarações e ordenamentos jurídicos. Já a aliança é o campo dos
máximos, dos acordos amplos, da dádiva humanizadora que pode vir das ofertas
de felicidade. Adela Cortina admite que sem contrato não podemos viver, mas
sem relações de aliança a vida humana estaria empobrecida e desgraçadamente
fechada para a felicidade (CORTINA, 2001:26; 47). Sem o valor-atitude da
tolerância não é possível um contrato mínimo de direitos tampouco uma aliança
de acordos mútuos de convívio e respeito ativo. Em sociedades pluralistas, a
tolerância é a raiz de qualquer contrato e a garantia, como condição indispensável,
de possíveis alianças.
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271
Finalmente, há que registrar que para Adela Cortina a ética cívica joga um
papel de prevenção de intolerâncias, prática comum entre os incapazes de viver o
pluralismo:
Indudablemente los valores y derechos de nuestra mínima moral cívica son
perfectamente defendibles por creyentes, cuya fe, bien entendida, ha ayudado a
configurarlos. Pero no debe esperarse de ellos fraternidad o salvación, porque la
moral cívica no pretende sino dar sentido compartido a la vida y decisiones
sociales
31
y evitar el totalitarismo intolerante de los incapaces de pluralismo
32
.
(CORTINA, 1993:205-206).
Se a tolerância é um valor-atitude fundamental na agenda política e social de
sociedades pluralistas, tal temática não poderá passar despercebida na agenda
educativa desta mesma sociedade. Sendo assim, encerrarei este quarto capítulo
indicando as relações da proposta de ética cívica de Adela Cortina e as demandas
do campo educacional, especialmente no que tange aos fundamentos da educação
e suas relações com a discussão sobre currículo e formação de professores/as.
31
Grifos da autora.
32
Grifos meus.
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272
4.5
ÉTICA CÍVICA E A TAREFA EDUCATIVA.
A partir do conceito de ética cívica, ou seja, da busca de articular felicidade
(máximos eticamente aconselháveis) e justiça (mínimos moralmente exigíveis)
numa proposta ética, é possível se questionar sobre como fundamentar os valores
e as atitudes morais mínimos a serem respeitados e ensinados para se comportar
com justiça numa sociedade plural. Quando se fala de mínimos morais se está,
obviamente, diante de uma questão de justiça, ou seja, de como atender, com
eqüidade e dignidade, às diferentes demandas e necessidades em sociedades
pluralistas.
O tema dos mínimos morais não deve ser um tema alheio ao campo
educativo e especialmente para os fundamentos da educação. Neste sentido, a
primeira questão a ser levantada é sobre a necessidade de se refletir ou não sobre
os mínimos de moralidade a serem ensinados.
Sobre isso, CORTINA (1996:57-58) afirma:
Os educadores também têm de saber quais são os seus ‘mínimos decentes’ de
moralidade na hora de transmitir os valores, sobretudo no que diz respeito à
educação pública numa sociedade pluralista. Pois é certo que, por serem
educadores, não têm legitimidade para transmitir, sem mais, apenas os valores que
lhes pareçam oportunos. (...) Não seria urgente descobrir quais são os valores que
podemos partilhar e que vale a pena ensinar? É ou não é urgente descobrir um
‘mínimo decente de valores’ já partilhados?
Descobrir este mínimo de valores e atitudes já partilhados numa sociedade
pluralista a fim de se pensar a tarefa educativa, é um esforço que envolve
diferentes âmbitos do pensamento educacional, tais como: fundamentos, currículo
e formação de professores/as. Neste sentido, é preciso se refletir conjuntamente
sobre que tipo de seleção se deve fazer – pois claro está que a educação escolar
não tem capacidade nem obrigação de ensinar tudo – dos conteúdos, das
habilidades e dos valores disponíveis dentro do acervo cultural no qual está
inserida a escola.
Não quero dar a entender aqui que o currículo e os programas de formação
de professores/as estão limitados a uma lista de conteúdos, habilidades e valores a
serem ensinados. Ainda que currículo e formação de professores/as não se limitem
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273
a este aspecto, como tão bem orienta as atuais teorias do currículo, tampouco esta
dimensão da seleção de conteúdos, de habilidades e de valores pode ser
dispensada ou relegada a uma situação de menor significância, seja na prática
pedagógica ou na reflexão sobre os fundamentos da educação. Sendo assim, nos
processos educativos, e em especial na educação escolar, é inevitável que se faça
seleção dos conteúdos, das habilidades e dos valores disponíveis dentro do acervo
cultural no qual está inserida a escola.
No que diz respeito à seleção curricular, GIMENO SACRISTÁN
(2001:218) afirma que:
Como agente que pone en contacto a los sujetos con la cultura virtualmente
disponible, quizá la peculiaridad más singular de la educación escolarizada sea la
de procurar las experiencias no directamente accesibles a los sujetos por otras vías
de socialización o redes sociales y por la intencionalidad dada a esos aprendizajes.
La escuela debe centrarse en aquello ‘a lo que no se dediquen’ o no puedan
dedicarse la família, la pandilla, las iglesias, los medios de comunicación social
etc., en vez de sustituir o competir con estos agentes educativos.
José Gimeno Sacristán tem defendido em diferentes trabalhos que o
currículo escolar não é apenas uma oferta a mais de conteúdos, habilidades e
valores. O específico da escola é uma oferta selecionada e ordenada desses
elementos de forma que façam, ou deveriam fazer, sentido tanto para os
educadores/as quanto para os educandos/as. Uma coisa, segundo o professor da
Universidade de Valencia, é oferecer informação, outra é gerar conhecimento.
O conhecimento é sempre uma ordenação de conteúdos, habilidades e
valores que faz sentido num determinado contexto. Conteúdos, habilidades e
valores que, inclusive, podem e são de fato adquiridos em outros contextos, como
a família, as igrejas, a turma de amigos etc. “El aprendizaje pasa a ser
conocimiento cuando tiene un sentido para quien lo adquiere; lo cual significa
que ilumina algo nuevo, lo hace de otra forma o con un tipo de comprensión más
profunda, lo que ya se conoce por experiencias previas” (GIMENO
SACRISTÁN:2001, 220).
Ainda que seja um tema recorrente na literatura sobre os fundamentos da
educação, o currículo e a formação de professores/as, é necessário reafirmar que a
educação escolar não é mera reprodução – ainda que selecionada com alguma
ordem e sentido – da cultura dominante. A tarefa educativa, se entendida como
uma prática social reflexiva, não é a de reproduzir o já encontrado, senão a de
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274
fazer possível que os indivíduos possam intervir livre e autonomamente em seu
entorno sócio-cultural e não simplesmente serem determinados por ele.
O currículo escolar deve ter como objetivo a transmissão do até então
acumulado não com a intenção de manter tal e qual o que já está, como
equivocadamente entendia Hannah Arendt ser a função da educação. Como já
afirmei, aposto muito mais na tarefa educativa como possibilidade tanto de análise
quanto de mudança daqueles aspectos considerados inoportunos num determinado
contexto e de manutenção daqueles considerados oportunos.
Se por um lado a educação escolar – consubstanciada no currículo – é uma
seleção dentro de uma cultura, por outro uma cultura envolve vários e distintos
aspectos, entre eles o âmbito dos valores. Os valores morais formam um campo
propício de análise, de mudança e de manutenção, pois são vitais em todo e
qualquer processo de socialização de conhecimentos.
Para GIMENO SACRISTÁN (2001:223), a educação pode dar informação e
entendimento sobre este componente axiológico (dos valores morais) existente em
toda cultura sem doutrinar nem pressionar para que um determinado código moral
seja aceito como o único possível. Tampouco este componente axiológico pode
ser dispensado ou relegado a uma situação inferior já que são também os valores
e sobretudo eles – que determinam nossas preferências e orientam nossas ações,
principalmente a ação educativa.
Se o currículo e a formação de professores/as envolvem também uma
seleção de valores, uma questão central é quais sãos os critérios para selecionar
uns valores e não outros. Creio ser possível indicar, a princípio, dois aspectos a
serem evitados, a saber: o universalismo exacerbado e o diferencialismo
inconseqüente.
Por um lado, é preciso evitar a cilada de um universalismo exacerbado, no
qual uma cultura – geralmente a da classe dominante – é tomada como a única
possível, a única correta, a única com estatuto de validade. Um universalismo
exacerbado pode nos levar à uniformização e ao desrespeito às diferenças, que são
o que de fato garantem que uma sociedade seja plural. Sem respeito às diferenças
não há pluralidade possível. Em efeito, aqui cabem as críticas às posturas
modernas.
Por outro lado, deve-se igualmente recusar a cilada do relativismo radical
que considera que tudo vale por igual. Esta perspectiva, que identifico como um
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diferencialismo inconseqüente, não se sustenta diante de um questionamento mais
profundo, pois não se pode afirmar, por exemplo, que o ideal da igualdade entre
homens e mulheres tem o mesmo valor que o machismo. Existe uma hierarquia de
valores que pode e deve orientar nossas preferências, nossas ações e, por isso
mesmo, a prática educativa. Uma hierarquia de valores sempre será válida se – e
somente se – respeitar a dignidade humana como algo fundamental e inegociável.
Afinal, para utilizar a nomenclatura kantiana, a pessoa humana é um ser
absolutamente valioso e um fim incondicionado. Aqui, por sua vez, cabem as
críticas às posturas pós-modernas.
Seguindo a reflexão de GIMENO SACRISTÁN (2001:223), podemos
afirmar que existe um “ideal de cultura” que pode ser privilegiado no currículo:
Cabe plantear la existencia de una cultura idealizada o ideal de cultura y una ética
de la cultura que propone los criterios a partir de los cuales se pode evaluarla,
compararla con otras, realizar su crítica y emprender su transformación, llenando
los programas y las actividades escolares no sólo con informaciones acerca de la
cultura en el sentido descriptivo, sino con contenidos seleccionados por creerlos
valiosos.
Se existe uma cultura idealizada, que possui conteúdos, valores e atitudes
que valem a pena ser ensinados de acordo com os critérios do campo axiológico
desta mesma cultura, então estes conteúdos, valores e atitudes poderão ter alguma
pretensão de universalidade, isto é, não serão importantes somente para uma
determinada cultura. Pretensão de universalidade não significa necessariamente
imposição de conteúdos e valores dos mais poderosos sobre os menos poderosos,
ainda que tal prática seja uma constante facilmente observável na história do
currículo em diferentes experiências educativas. Pretensão de universalidade deve
significar um espaço comum de diálogo entre as diferenças toleráveis
33
, um
espaço onde se constrói uma agenda mínima entre diferentes culturas de uma
sociedade pluralista ou de diferentes sociedades pluralistas.
Partindo do ponto de que a tarefa educativa demanda uma agenda mínima de
valores partilhados, a questão pendente é sobre por que e como uma agenda
pedagógica deve incluir o conceito de tolerância em sua pauta de discussão e
atuação. Ou, perguntado de outra forma: por que a tolerância deve fazer parte de
uma agenda mínima de valores nos processos educativos de sociedades plurais?
33
Pois claro está que o machismo ou o racismo, por exemplo, não podem ser considerados
diferenças culturais toleráveis.
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Para pensar a tolerância: uma aproximação à Escola de Valencia
276
Neste sentido, é preciso justificar a necessidade de se pensar uma educação
para a tolerância. Para tanto, recorro a ECO (2001:114) que afirma que certo nível
de recusa do diferente faz parte da nossa condição de humanos: “a intolerância
em relação ao diferente ou ao desconhecido é natural na criança, tanto quanto o
instinto de se apossar de tudo quanto deseja”. Porém, como a criança é educada
para respeitar a propriedade alheia ela deve ser educada para a tolerância.
Educar para a tolerância adultos que atiram uns nos outros por motivos étnicos e
religiosos é tempo perdido. Tarde demais. A intolerância selvagem deve ser,
portanto, combatida em suas raízes, através de uma educação constante que tenha
início na mais tenra infância, antes que possa ser escrita em um livro, e antes que se
torne uma casca comportamental espessa e dura demais. (ECO, 2001:117).
A partir do caminho feito até aqui, a meu juízo, a defesa de uma educação
para a tolerância apresenta-se como uma tarefa urgente e necessária em
sociedades pluralistas que desejem ser justas e felicitantes. E aqui acho que
encontramos um ponto fundamental em defesa da tolerância e da ética dos
mínimos no campo educacional.
As éticas de máximos, e conseqüentemente as propostas educativas que daí
derivam, buscam apresentar convites que, segundo o grupo proponente, nos levam
à felicidade. Assim, amar ao próximo e valorizar a paz e a fraternidade são
máximas de convite e aconselhamento de notório reconhecimento em nossas
sociedades.
No entanto, uma ética de mínimos busca – também através de suas propostas
educativas – apresentar normas, deveres e regras que legislam atitudes e são uma
exigência para todos e não um convite livre para aqueles que se queiram
incorporar a um determinado grupo. Sendo assim, não roubar, não matar, não
mentir fazem parte de uma série de mínimos decentes comuns que já partilhamos
nas sociedades pluralistas
34
. Não se pretende aqui, de maneira nenhuma, oferecer
34
É óbvio que as normas e deveres de uma ética de mínimos podem ser ditas como assertivas, tais
como: dizer a verdade, respeitar a vida, respeitar o que pertence ao outro. Porém, parece-nos que
a formulação na negativa tem sido historicamente consolidada por ser mais clara, direta,
objetiva. E em tempos de crise ética, como os nossos, na qual a dúvida entre o que é certo e o
que é errado se faz crescente, acho preferível optar sempre por formulações que não permitam
ambigüidade. Por exemplo, respeitar a vida pode ser amplo demais. Na verdade, pode ser dúbio.
Imaginemos que alguém considere que, em respeito a sua própria vida, possa matar outra pessoa
que o ameace. Neste caso, a alegação de legítima defesa desse suposto assassino pode vir a ser a
própria norma ética: respeitar a vida. A formulação não matar é mais direta, permite uma
margem quase nula de dúvidas e erros sobre como se deve agir, ou melhor, de como não se deve
agir: não matar e ponto. Se alguém matar outrem estará desrespeitando a regra, independente da
intenção ou da justificativa que se encontre para realizar tal fato.
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Para pensar a tolerância: uma aproximação à Escola de Valencia
277
receitas, mas apenas destacar como uma determinada proposta educativa pode dar
ênfase em convites e aconselhamentos ou em normas e regras ou ainda articular as
duas dimensões.
A meu juízo, o tema mais conflitante que se tem que estar atento é que a um
convite felicitante cada um está livre para aceitá-lo ou não, mas a uma exigência
de justiça todos e todas estamos obrigados a nos submeter se não quisermos estar
abaixo dos mínimos decentes que garantem a dignidade humana, se não
quisermos estar aquém da estatura moral necessária para enfrentarmos os desafios
de inclusão de todos e todas, independente de nossa loteria biológica ou social
(etnia, gênero, orientação sexual, classe social, capacidades físicas e intelectuais
etc.).
Uma estratégia educativa de mínimos de justiça centrada no valor-atitude da
tolerância nos leva a assumir que o sentimento em relação ao outro até pode não
ser o melhor, mas que se deve sempre ter o compromisso da melhor atitude com
relação ao outro. Quando se diz a uma criança ou adolescente que ela não pode
sentir raiva, ódio, nojo, repulsa com relação ao outro, ao diferente, estamos
pedindo a ela que não sinta algo que provavelmente ela não possa controlar ou
talvez não saiba controlar. Sentimos raiva do outro. Às vezes, repulsa e nojo. Isso
nos é próprio enquanto humanos, como afirmou Umberto Eco. Convidar a amar e
a ser solidário é e sempre será válido, porém creio que a tarefa educativa não se
esgota em convites, em conselhos. É preciso garantir o desenvolvimento de
valores-atitudes, que são verdadeiras exigências de justiça, tal como compreendo
e pretendi mostrar aqui a tolerância.
Além de tudo, reprimir sentimentos não é a melhor estratégia para se educar
alguém. Melhor seria reconhecer esses sentimentos, aceitá-los e apesar deles se
comprometer minimamente em buscar a melhor atitude na relação com o outro.
Isso se expressa muito bem no fato que não preciso gostar ou amar ou aceitar
alguém para respeitá-lo, para tratá-lo com dignidade e cordialidade.
Uma educação para a tolerância não seria um convite a máximos felicitantes,
mas uma exigência moral. E para se educar numa exigência moral uma proposta
educativa deve ser coerente à sua própria natureza, ou seja, não pode renunciar à
sua tarefa de fixar as exigências dos mínimos de justiça que são imprescindíveis
para se manter o próprio pluralismo que tanto desejamos.
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Para pensar a tolerância: uma aproximação à Escola de Valencia
278
Uma agenda mínima moralmente decente de valores-atitudes para o campo
educativo nos leva para além do campo exclusivo dos sentimentos, dos ideais, das
máximas para passarmos a compreender que a educação também precisa ser
garantida no âmbito das atitudes, do real cotidiano, dos mínimos necessários. No
entanto, não se trata de fazer uma opção entre o ideal sonhado ou o real possível,
entre educar em valores ou educar em atitudes, mas sim de articular essas duas
dimensões, tal como apresentado na proposta de ética cívica. Entendo a tolerância
como um valor-atitude. No entanto, não cabe dúvida: tolerar não é um convite,
mas uma exigência. Sendo assim, uma educação para tolerância não é um
conselho, mas um dever.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Tendo em vista a trajetória feita até aqui, através de diferentes filósofos que
desde a Renascença e a Ilustração lançaram as pedras basilares do conceito de
tolerância e também através daqueles pensadores que, a meu juízo, lhe dão
contemporaneamente certo acabamento, importa uma síntese reflexiva a fim de
estabelecer as considerações finais deste trabalho, à guisa de conclusão. De certo,
não é o fim derradeiro da viagem, mas ao menos o tempo de encerrar uma trilha.
Recorrendo outra vez à metáfora do mapa de viagem retomarei aqui duas sínteses
reflexivas. Ademais de sínteses, espero que funcionem também como setas a
indicar outros novos e possíveis caminhos. Neste sentido, importa destacar: (1) a
relação entre tolerância, igualdade, liberdade e diferença e (2) as possibilidades de
uma fundamentação ético-filosófica de uma educação para a tolerância. Uma seta
será mais especulativa e a outra tentará ser mais propositiva.
1
TOLERAR NÃO É POUCO: IGUALDADE, LIBERDADE E DIFERENÇA.
Tomarei aqui como pressuposto que igualdade e liberdade são – entre as
heranças da Modernidade – valores indiscutíveis tanto na consolidação da história
da humanidade quanto em nosso processo de auto-entendimento enquanto
sociedade hoje. Juntamente à fraternidade, liberdade e igualdade foram unidas e
cantadas em verso e prosa como ideais revolucionários. Mais tarde foram
seccionadas como ideais de revolucionários distintos e, por fim, opostos. A
liberdade como ideal da revolução burguesa e do liberalismo político. Já a
igualdade seria um ideal da revolução proletária e do pensamento socialista.
Liberdade, uma reivindicação à direita. Igualdade, à esquerda. Mais uma vez,
temo pelas dicotomias e tentarei ver quais são as distinções válidas neste
tradicional esquema.
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Considerações Finais 280
Antes de tudo, cumpre relembrar que estes conceitos surgiram
historicamente e foram definidos a partir de uma situação real indesejada que se
visava superar. A liberdade foi defendida e definida em oposição às
arbitrariedades do poder absoluto. O conceito de igualdade, por sua vez, tem sido
historicamente pensado em oposição às desigualdades sociais. Retomando a
trajetória do conceito de tolerância como uma resposta às intolerâncias assassinas,
vejo aqui mais que uma mera similitude. Trata-se de uma constatação. Um ideal
ou uma bandeira se levanta contra uma realidade indesejada pela sua nítida
condição de injustiça. Ainda que não possa afirmar que a falta de tais valores
sempre foi ou é percebida desta maneira – como uma injustiça – é notório que, em
todos os casos (autoritarismo, desigualdade e intolerância), tais faltas foram,
pouco a pouco, percebidas pelos grandes pensadores e pelos homens e mulheres
normais e correntes como uma situação a ser superada por um legítimo clamor de
justiça motivado por um valor ideal (liberdade, igualdade e tolerância). Minha
opção é estratégica ao relacionar estes ideais aos clamores – populares ou de uma
elite ilustrada – por justiça.
Se ideais revolucionários, à esquerda ou à direita, respondem às injustiças
indesejadas com vista a uma superação, detenho-me em primeiro lugar ao ideal de
igualdade. Retomo, então, a dinâmica de negação de um contraposto indesejado e
injusto para afirmação de um ideal revolucionário. Desigualdades – sobretudo
sociais, políticas, jurídicas e econômicas – são realidades que se quer, de uma
maneira mais ou menos intensa, superar. Em Rousseau – a grande influência de
Babeuf, de Marx e de outros pensadores socialistas – o ponto de partida da
igualdade desejada também é a desigualdade de fato. A questão que Rousseau
busca responder é sobre a origem das desigualdades entre os seres humanos,
revelando que a preocupação com a instauração ou com a consolidação da
igualdade surge a partir da desigualdade que nos marca. Na verdade, por
nascimento, os seres humanos tendem a diferir, seja por suas capacidades físicas e
mentais, seja por sua condição sócio-econômica. A desigualdade é, portanto, o
fato primeiro, que cabe à sociedade corrigir. E o ideal de igualdade é o resultado
global dessa tentativa de correção (DELACAMPAGNE, 2000:106).
O conceito de igualdade tem sido fundamental para a consolidação da
concepção de democracia, concebida como sistema político que visa a garantia da
igualdade dos indivíduos perante a lei, tal qual preconiza a Declaração Universal
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Considerações Finais 281
dos Direitos Humanos. Nesta perspectiva, a igualdade é vista como um direito
natural: os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. No entanto,
“todas as sociedades modernas foram fortemente hierarquizadas, ao mesmo
tempo que afirmavam a igualdade dos direitos civis” (TOURAINE, 1998:11).
Esta marca contraditória da Modernidade produziu e segue produzindo até os
tempos atuais indivíduos semelhantes, porém desiguais. Sendo assim, a igualdade
de direito e a desigualdade de fato entre indivíduos, classes e nações provocaram
uma convivência contraditória entre a proclamação ideal de uma e a efetivação
concreta da outra, através principalmente da dominação da classe operária, da
escravização dos negros, da destruição de nações colonizadas e da dominação das
mulheres. Contudo, é possível avançar em direção aos direitos de igualdade,
principalmente através de progressivas políticas sociais de redistribuição de
oportunidades, renda, bens e poder. Se a desigualdade é um fato constatado e
inegável – ainda que também construído, ou seja, produzido – e a igualdade um
princípio fundamental de nossas sociedades, há que se buscar as estratégias de
redução desta distância.
O maior ou menor empenho na busca dessas estratégias é o que
fundamentalmente distingue posturas mais conservadoras, ou de direita, de
posturas mais progressistas, ou de esquerda: “O critério mais freqüentemente
adotado para distinguir a direita da esquerda é a diversa postura que os homens
organizados em sociedade assumem diante do ideal da igualdade” (BOBBIO,
1995:95). Ao se atribuir à esquerda uma maior sensibilidade para diminuir as
desigualdades não se deseja dizer que ela pretenda eliminar todas as desigualdades
ou que a direita pretenda conservá-las todas, mas que a primeira é “mais
igualitária e a segunda é mais inigualitária” (BOBBIO, 1995:103).
É fundamental, a meu modo de entender, introduzir o lugar e a importância
do valor da diferença nesta discussão. Pois, a igualdade pode levar ao
igualitarismo, aquela postura na qual se busca a igualdade de todos em tudo – a
todos, a mesma coisa – o que historicamente tem se mostrado um desastre.
Lembremos aqui dos totalitarismos tanto à esquerda quanto à direita, de Stalin ou
de Hitler. O igualitarismo é a negação da possibilidade da existência das
diferenças ou a sua efetiva eliminação. É, neste sentido, que retomo as origens do
conceito de igualdade, reafirmando que este não se opõe ao conceito de diferença,
mas sim ao de desigualdade. Nesta perspectiva, justifica-se a unidade das
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Considerações Finais 282
bandeiras igualitárias e diferencialistas, a fim de se combater as desigualdades
sociais, ao mesmo tempo em que se luta por garantir o respeito à diferença.
Assim, ao espectro político de esquerda pode e deve ser conveniente lutar contra
as desigualdades sociais e evitar igualitarismos homogeneizadores.
Então, o ideal de igualdade se não balizado pelo respeito às diferenças pode
se tornar igualitarismo? Numa sociedade profundamente desigual do ponto de
vista econômico e admiravelmente pluralista do ponto de vista cultural, vale mais
enfatizar a igualdade ou a diferença? A sugestão apresentada por KONDER
(2001:39) à questão pode aportar uma saída que evite fragmentações
desnecessárias e oposições dicotomizadoras:
Ao que tudo indica, a tensão entre singularidade [diferença] e a universalidade
[igualdade] cria um desses problemas filosóficos que não têm solução, quer dizer,
que vão sendo resolvidos caso a caso, um tanto de acordo com as contradições
históricas e culturais. (...) Hegel propôs algo mais simples e menos entusiasmante:
singularidade e universalidade são conceitos de determinação reflexiva. Um
pressupõe o outro.
Passo a diante. Passo atrás. Ainda não é hora de deslanchar a reflexão sobre
a diferença. Retorno à liberdade e sua relação com o paradigma da igualdade e,
por conseqüência, como mais uma bandeira contra todo e qualquer tipo de
totalitarismo intolerante.
Igualdade e liberdade se relacionam na medida em que respondem a
diferentes e profundas demandas da vida humana: “o fortalecimento dos valores
ligados à autonomização individual [a liberdade] e a dos valores ligados a
preservação e à recriação da dimensão comunitária [a igualdade] (KONDER,
2000:12). Se estas demandas não forem equilibradas e bem respondidas estaremos
diante da eminência da criação de “situações patéticas ou grotescas”, tais como a
perda da autonomia daqueles/as que se diluem num grupo ou sociedade marcada
pelo totalitarismo ou o egoísmo extremo daqueles/as que estão insensíveis às
desigualdades sociais que nos cercam (KONDER, 2000:13).
Igualdade e liberdade são, então, demandas distintas e não simétricas, mas
que, ao mesmo tempo, se limitam: “medidas igualitárias limitam a liberdade e,
vice-versa, medidas libertárias aumentam a desigualdade” (BOBBIO, 1995:113).
Se, por exemplo, uma norma igualitária impusesse a todos a utilização de meios
de transportes públicos para aliviar o tráfego ela ofenderia a liberdade de escolha
do meio de transporte preferido. No entanto, as medidas igualitárias atingem mais
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Considerações Finais 283
aos ricos, que numa sociedade desigual têm mais poder de escolha ou mais poder
de exercer a sua liberdade do que os pobres, “o rico perde uma liberdade
usufruída efetivamente, o pobre perde uma liberdade potencial” (BOBBIO,
1995:114). Em geral, qualquer extensão para a esfera pública de medidas
igualitárias restringe a liberdade de escolha na esfera privada, que, em nossas
sociedades, é intrinsecamente desigual.
Igualdade e liberdade são distintas e articuladas, porém funcionam como
balizas limitadoras uma para a outra. A liberdade não é e nem deve ser um valor
em si mesmo se queremos construir uma democracia: “A ‘maioria’, pelo simples
fato de que é ‘maioria’, goza da liberdade de impor, em qualquer circunstância, o
seu ponto de vista à ‘minoria’? E a democracia não corre o risco de transformar-
se, com o tempo, em tirania?” (DELACAMPAGNE, 2001:20). Neste sentido,
numa democracia pluralista, a liberdade só tem razão de ser se articulada e
limitada por outros valores igualmente legítimos. A liberdade deve, então, ser
balizada por outros critérios, por outros valores que apresentem razões suficientes
para também organizar a vida social. Entre estes, o valor da igualdade, que
reivindica condições de isonomia e eqüidade, a fim de se evitar a imposição dos
mais fortes, que agem supostamente em condição de liberdade e de igualdade com
todos os outros. A liberdade não pode servir para mascarar a desigualdade de fato.
Nesta perspectiva, importa também esclarecer que igualdade nada tem que
ver com ser idêntico ou semelhante. A igualdade pretendida seria mais bem
significada como isonomia (igualdade formal de direitos, normas e critérios
comuns para todos e todas) e eqüidade (partilha dos bens e serviços sociais com
espírito igualitário). As “democracias modernas não deveriam apenas se
preocupar em proteger as ‘liberdades’, mas também em reduzir as
‘desigualdades’ sociais mais evidentes” (DELACAMPAGNE, 2001:23). Assim,
as sociedades democráticas e pluralistas poderiam oferecer aos mais
desfavorecidos a possibilidade real de superar suas desvantagens originais ou
historicamente produzidas.
Em relação à igualdade e à liberdade, a temática da diferença,
principalmente como reivindicações que fundamentam direitos, tem sido apenas
mais recentemente pensada e discutida. Como mais recentemente me refiro ao
fato daquelas serem ideais modernos e esta um ideal pós-moderno. É verdade que
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Considerações Finais 284
há autores, como PIERUCCI (1999)
1
, que identificam a luta pela diferença
enquanto direito como uma retomada da bandeira da desigualdade empunhada há
séculos pela direita conservadora. A partir do exposto anteriormente, trata-se,
como se pode perceber, de um duplo engano. Primeiro: diferença não significa
desigualdade. Segundo: a direita não empunha a bandeira da desigualdade, mas da
liberdade desarticulada da igualdade. Não há argumentos suficientes para se
afirmar que todo e qualquer liberal defenda a desigualdade como valor, ainda que
a desigualdade de fato tenha sido uma constante intrínseca ao liberalismo político
e econômico.
Importa defender a bandeira da diferença como uma articulação necessária
entre a igualdade e a liberdade para se evitar dois perigos sempre presentes e já
historicamente experimentados. Por um lado, os totalitarismos uniformizantes e
intolerantes como negação da liberdade, marcada por um igualitarismo
exacerbado. Por outro, as hierarquizações sociais, os sistemas de castas, as
exclusões vergonhosas, ou seja, toda e qualquer situação de negação de isonomia
e eqüidade, marcada pela defesa exclusiva da liberdade.
A meu juízo, a defesa do conceito de tolerância nestes termos seria capaz de
unificar, no atual contexto, três diferentes históricas demandas de justiça: (1) a
liberdade de pensamento, expressão e associação; (2) a igualdade de acesso a
direitos, oportunidades e bens sociais; (3) o direito à diferença e ao pluralismo de
identidades e subjetividades.
Sendo assim, creio ser uma incoerência sustentar que a tolerância é um
conceito menor ou uma prática minimalista. Enfim, tolerar não é pouco. E sim, o
fundamental numa sociedade que se queira livre, igualitária e pluralista. E uma
sociedade pluralista não se sustenta sem um projeto educacional que lhe
corresponda nesta tarefa. Importa, então, explicitar alguns fundamentos ético-
filosóficos de uma educação para a tolerância.
Sigo, então, a seta propositiva.
1
“A certeza de que os seres humanos não são iguais porque não nascem iguais e portanto não
podem ser tratados como iguais, quem primeiro a professou nos tempos modernos foi a direita.
(...) Dito de outro modo: o pavilhão de defesa das diferenças, hoje empunhado à esquerda com
ares de recém-chegada inocência pelos ‘novosmovimentos sociais (o das mulheres, o dos
negros, o dos índios, o dos homossexuais, os das minorias étnicas ou lingüísticas ou regionais
etc.), foi na origem – e permanece fundamentalmente – o grande signo/desígnio das direitas,
velhas ou novas, extremas ou moderadas” (PIERUCCI, 1999:19).
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Considerações Finais 285
2
POR UMA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO A PARTIR DO CONCEITO DE
TOLERÂNCIA.
Além de uma discussão especulativa, este trabalho também buscou ser uma
fundamentação para a prática educativa. Não tive a pretensão de apresentar uma
proposta pedagógica, nem tampouco a de argumentar por uma política
educacional ou por currículo escolar. Meu trabalho se insere na perspectiva dos
fundamentos da educação, que se caracteriza por ser um campo de dupla
identidade. Por um lado, a filosofia, enquanto campo das teorizações, das
aspirações fundacionais, das interpretações dos desejos e anseios sobre que tipo de
ser humano se quer formar e sobre que tipo de sociedade se quer construir. Por
outro lado, a educação, enquanto campo da veiculação das aspirações humanas e
sociais, da difusão de normas e projetos, da concretização de valores e atitudes.
Assim, não vejo outra alternativa para uma pesquisa de tal natureza que não seja a
de transitar entre estes dois campos. A filosofia da educação não é uma
especulação desinteressada, pois visa, de algum modo, uma possibilidade de
efetivação. Por outro, não se restringe ao aspecto prático e não se confunde com
projetos pedagógicos, políticas educacionais ou currículos escolares. Não é
puramente especulativa, nem totalmente aplicável. Funciona num campo de
fronteira, entre o que se quer e o como fazer o que se quer.
Neste sentido, importa aqui retomar brevemente algumas considerações
sobre a tolerância, enquanto teoria, aspiração fundamental, interpretação dos
desejos e anseios sobre um tipo de ser humano específico que se quer ajudar a
formar, aquele tolerante com a diversidade alheia, e sobre um tipo específico de
sociedade que se quer ajudar a construir, aquela na qual as diferenças são
acolhidas como riquezas a serem valorizadas. É preciso retomar estas
interpretações a fim de se indicar, ainda que brevemente, algumas possíveis
veiculações, sem contudo pretender ser um projeto pedagógico, uma política
educacional ou um currículo escolar, mas tão somente pistas possíveis de alguns
fundamentos para uma prática educativa que se queira respeitosa das diferenças
que dignamente nos constituem enquanto humanos.
A tolerância, como sustentado, irrompe como virtude e atitude durante a
Renascença e a Ilustração. Dos diferentes pensadores da época quero retomar
alguns princípios. De Erasmo de Rotterdam, o valor do testemunho como método
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Considerações Finais 286
de convencimento mais eficaz que a força ou o dogma. De Locke, a convicção
que a consciência individual é um terreno totalmente livre a ser sempre respeitado.
De Voltaire, toda a veemência contra a intolerância assassina. De Babeuf e Mill,
os valores já anteriormente comentados da igualdade e da liberdade. Neste
sentido, renascentistas e modernos ajudam a pensar uma educação para tolerância
fundada em virtudes, como a igualdade santa e perfeita e a liberdade inviolável do
indivíduo, mas também em atitudes, como o testemunho convincente pela
liberdade de consciência e a luta incansável contra a intolerância, pois esta é uma
injustiça que ainda precisamos banir de nossas práticas sociais e educativas.
A tolerância ganhou densidade ao longo da história da filosofia, seja pela
urgência da temática, seja pelo aprofundamento das reflexões no campo da ética e
da filosofia política. Assim, vale a pena também retomar os aspectos
fundamentais do conceito a partir de alguns pensadores contemporâneos. De
Popper, a certeza que a verdade é sempre provisória. De Rawls, o princípio de
justiça como garantia do pluralismo de concepções compreensivas da vida. De
Bobbio, a serenidade como a capacidade de mitigar os fardos da vida
compartilhada. De Walzer, a igualdade complexa a fim de se reconhecer os
direitos dos diferentes e se evitar predomínios e monopólios dos bens sociais.
Assim, por um lado, a epistemologia contemporânea nos ajuda a pensar uma
educação para a tolerância que recuse toda e qualquer possibilidade de verdades
inquestionáveis, que reconheça na racionalidade a possibilidade do erro e que
afaste de nossa maneira de pensar os dogmatismos intolerantes, as verdades
prontas e as certezas supostamente objetivas. Por outro lado, a filosofia política
atual – liberal ou igualitarista – nos ajuda a desenhar uma educação para a
tolerância como formadora de homens e mulheres respeitosos do pluralismo
porque cientes da necessidade de estruturas mínimas para uma justiça distributiva
e para a garantia de uma igualdade que realize de fato a isonomia e a eqüidade
entre todos e todas. Uma educação para tolerância também pode apreender que há
valor em virtudes fracas, tal como a serenidade, pois a prepotência é a força do
intolerante, mas a tolerância se constrói na fortaleza da não-violência.
Devo ainda que reconhecer a voz de dois sujeitos coletivos. Da ONU /
Unesco recobro a concepção de tolerância como a busca da harmonia nas
diferenças, a abertura de espírito e a rejeição ao dogmatismo. Da comunidade
filosófica ibero-americana vem a retomada da tolerância como esforço de
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Considerações Finais 287
convivência e como contradição, ou seja, um consenso de disensos, uma
concórdia discorde. Uma proposta de educação para a tolerância pode e deve
dialogar com estes sujeitos coletivos e extrair deles um projeto pluralista e,
conseqüentemente, contraditório e harmônico. Ora, a incongruência de uma
educação para a tolerância – um projeto educativo de concórdia discorde – é a
possibilidade de aprender a não ocultar o conflito entre diferentes e opostas
concepções de vida e de mundo, sem com isso negar que seja possível conviver,
ou seja, assumir um consenso de disensos sem desistir da coexistência pacífica e
harmoniosa. A pluralidade, se quer ser garantida, precisa de uma proposta
educativa que valorize o plural como harmônico e também como contraditório.
Com Hannah Arendt, apresentei algumas reflexões sobre educar na
perspectiva do pensamento. Educar para o pensamento e educar para tolerância
não são propostas excludentes, tampouco justapostas. Creio que o estatuto do
pensamento arendtiano é mais liberador de possibilidades do que propositivo.
Assim, naquela oportunidade defendi que educar para o pensamento como
possibilidade de evitar o fracasso moral diante da diversidade alheia ou como
possibilidade de desfazer as desconexões existentes entre o mundo real do
cotidiano e o mundo irrefletido dos clichês. O vazio do pensamento –
exemplificado por Adolf Eichmann – é uma realidade sempre possível nas
sociedades de massa e despersonalizadas. Assim, uma educação para a tolerância
numa perspectiva arendtiana, quiçá, tenha um caráter mais preventivo do que
propositivo, mais liberador de possibilidades do que instrumentalizador de
projetos.
No entanto, vale destacar algumas pistas que a reflexão com Hannah Arendt
proporcionou. Primeiro: o conhecimento é a busca por verdades, enquanto que o
pensamento não busca a verdade; ele lida com os significados. O pensamento não
se interessa com a verdade das coisas, mas sim com o que elas possam significar.
Segundo: o pensamento é como um vento invisível e desorganizador de nossas
verdades. O pensamento se caracteriza pela invisibilidade, pela descontinuidade
com o mundo cotidiano, pela possibilidade de afastamento e desde este
afastamento como uma abertura para a ressignificação do mundo da vida.
Terceiro: o pensamento é um diálogo interno sem som do eu consigo mesmo, o
dois-em-um socrático, um diálogo que suspende a vida e investiga tudo e todos
que nos aparecem. Apesar do pensamento lidar com o invisível e ser fora da
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Considerações Finais 288
ordem, quiçá, seja ele uma possibilidade de favorecer um ambiente que
desenvolva a incapacidade de fazer o mal. Talvez seja a educação para o
pensamento uma possibilidade de construção de um ambiente desfavorável para a
intolerância assassina. Educar para a tolerância na perspectiva do pensamento,
então, seria despertar a si mesmo e os outros do sono de irreflexão, abortando
nossas opiniões vazias e irrefletidas.
Diante do mal banal e intolerante do mundo contemporâneo, acredito que
os/as educadores/as se encontrem diante de duas possibilidades: ou se educa para
o pensamento e conseqüentemente para uma concórdia discorde, para um
consenso de disensos, para o pluralismo e a valorização das diferenças, ou se
colabora, ainda que inconscientemente, com uma educação para a irreflexão, para
o vazio do pensar, para um harmonioso mundo de clichês e verdades feitas, para o
monismo e a uniformização.
A partir dessa perspectiva, é possível entender uma educação para tolerância
tendo o pensamento como fundamento e método. Bem sei que Hannah Arendt
entende o pensamento como uma realidade suspensiva e incontrolável. Então,
como entendê-lo como método? Não falo aqui de um método tal qual se costuma
compreender na pesquisa científica. Não falo de método como procedimento
rigoroso de investigação, como um programa previamente regulado com uma
série de operações técnicas ou acadêmicas a fim de se atingir um objetivo
desejado e previamente estabelecido. Falo de método como processo, como
caminho através do qual precisamos passar, como abertura, como passagem que
nos leva a um outro estágio ou situação. Assim, acredito que o pensamento possa
ser o nosso método, a nossa passagem, a nossa abertura.
Já com Adela Cortina, é importante retomar alguns aspectos da ética
deontológica e da ética discursiva. Primeiro: retomar o valor dos seres humanos
como seres absolutamente valiosos e a dimensão do dever como uma realidade
inegável para que haja juízos morais e extremamente necessária para o nosso
processo de humanização. Refiro-me ao fato imperioso de nos tornarmos
humanos tão somente em contato com outros humanos através de mediações
educativas dadas pelo mundo do real cotidiano. Segundo: retomar o diálogo como
centro do dever, como racionalidade intersubjetiva e como condição ideal de
elaboração das normas éticas. Neste sentido, uma educação para a tolerância parte
tanto da valorização do valor absoluto de cada ser humano – único, distinto,
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Considerações Finais 289
singular – como da obrigação moral de, pelo diálogo, construir normas éticas
universais para garantir, sem mais, a pluralidade deste mesmo ser humano tão
particular. Educar para a tolerância, como já indicado, apontaria para a
universalidade das normas morais e para a particularidade de cada ser humano
como um ser absolutamente valioso.
Ora, esta temática nos remete de imediato aos questionamentos sobre os
mínimos de valores a serem ensinados numa sociedade pluralista. Afinal, quais
são os mínimos decentes de valores morais a serem respeitados para se comportar
com justiça numa sociedade plural? E qual deve ser o compromisso da educação
com a construção e difusão desses valores?
Estes questionamentos que me levaram às definições sobre éticas mínimas
(ou de justiça) e éticas máximas (ou de felicidade) no pensamento de Adela
Cortina podem ser ensaiados aqui a partir de cinco valores que foram
constantemente contornados neste trabalho, a saber: igualdade, liberdade,
solidariedade, tolerância e diálogo. Esses valores – e/ou atitudes e/ou práticas –
são, ao mesmo tempo, clamores de justiça e convites de felicidade. Não há como
negar que a desigualdade, o autoritarismo, a indiferença, a intolerância e o
monólogo silenciador são, à vez, realidades indesejadas e injustas.
Retomo, assim, as distinções e as aproximações entre o que é justo e o que é
bom, entre o que deve ser feito como exigência de justiça e o que oferece aos
seres humanos o sentimento do ir além felicitante. Esta discussão entre justiça e
felicidade não pode estar alheia, numa sociedade democrática e multicultural, das
discussões e análises sobre a educação, em especial de uma educação
comprometida com o pluralismo, como é o caso da tolerância enquanto valor e
atitude mínima.
O desafio que este tema apresenta ao campo educacional é sobre a
necessidade de pensar quais são os mínimos decentes a serem ensinados. Os
educadores/as, os especialistas em educação, os responsáveis e os educandos/as
também devem discutir e saber quais são os seus mínimos decentes de moralidade
na hora de ensinar e aprender valores e atitudes, sobretudo quando estamos
atuando numa sociedade que se queira pluralista. Para a Adela Cortina, quando
falamos de mínimos decentes estamos fundamentalmente diante de uma questão
de justiça, ou seja, de como atender, com equidade, às diferentes demandas e
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Considerações Finais 290
necessidades presentes em sociedades pluralistas, o que remete aos cinco valores
que me referi anteriormente.
Enfim, ao contrário do que se pensa comumente, educar para a tolerância
não é pouco. É sim o fundamental, se é que queremos construir e manter uma
sociedade plural. E talvez seja ainda mais necessária e produtiva do que se
imagina inicialmente, pois busca intervir em nossos valores e atitudes – como
mínimos de justiça, moralmente exigível. Nesta perspectiva, educar para a
tolerância é uma questão de justiça que visa assegurar, numa sociedade pluralista,
a maior multiplicidade possível de ofertas de vida feliz condizentes com a estatura
moral que estes tempos nos exigem.
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ANEXOS.
ANEXO I
Notas históricas sobre o conceito de justiça.
A fim de apresentar algumas notas sobre a história do conceito justiça, recorri
principalmente às sugestões de Juan Carlos Siurana
1
e de Emilio Martínez
2
. Recolherei as
notas dos dois comentaristas buscando mesclá-las naquilo que cada um oferece de
melhor, mais original ou mais sintético.
Emílio Martínez inicia a história sobre o conceito de justiça destacando algumas
contribuições que chama de antecedentes pré-filosóficos. Nesta concepção, entrariam
tradições muitos distintas e registros muito antigos, tais como o Código de Hammurabi, o
decálogo hebraico, os escritos dos profetas judaicos e islâmicos e a mensagem de Jesus
Cristo. Deixemos registrado este amplo campo de antecedentes, ainda que seja possível
localizar alguns deles no curso da história da filosofia, tal como opta Juan Carlos Siurana.
Tanto Martínez como Siurana concordam que os pré-socráticos entendiam justiça
como a recuperação da ordem natural das coisas, ou seja, justiça como ajustamento. Foi
Anaximandro de Mileto quem mais utilizou a palavra neste sentido físico. “La naturaleza
tiene un orden, y por naturaleza las cosas tienden a estar nuevamente en orden, a
ajustarse, es decir, a hacerse justicia. La justicia es el orden natural y la injusticia el
desorden natural” (SIRUANA, 1998:23).
Séculos depois de Anaximandro, a polis grega experimenta uma grave crise de
coesão interna, o que dá lugar a um fenômeno que hoje chamamos de relativismo,
pautado principalmente pelos sofistas. Segundo MARTÍNEZ (1994:165), os sofistas
mantiveram neste período a idéia que a justiça é uma noção vazia, que só ganha conteúdo
de acordo com uma convenção social que é sempre efêmera e volátil. Assim, algo seria
justo quando se acorda que é justo e injusto quando se acorda que é injusto. Ainda que o
relativismo sofístico tenha esvaziado de conteúdo quase todos os conceitos, o tema se
torna ainda mais perigoso quando falamos de justiça, dever, moral, correção e normas.
Platão retirou o conceito tanto do âmbito da natureza quanto do âmbito do
relativismo e lhe deu um uso para as relações sociais: justiça, então, consistiria em fazer o
que corresponde a cada um. Em A República, Platão justifica a divisão dos estratos
sociais e define justiça como fazer o que lhe corresponde a cada um, do modo mais
adequado. É óbvio que o conceito platônico em nada nos ajuda hoje, pois o filósofo não
concebia a igualdade social como uma meta a ser alcançada, mas sim justificava a
desigualdade como a norma a ser mantida. Sendo assim, justiça seria adequar-se ao papel
social que lhe corresponde de acordo com a educação que é destinada a cada estrato
social. Esta idéia de justiça abandonarei totalmente.
Posicionamento muito diferente terá Aristóteles. Para ele, a justiça é a virtude
perfeita, pois nela se dão todas as outras virtudes. Há certa similitude entre a visão dos
pré-socráticos e a de Aristóteles, pois para ele tal como a natureza cumpre sua ordem
1
SIURANA, Juan Carlos. Historia de la idea de justicia, in: CORTINA, Adela. Educar en la Justicia,
Valencia: Generalitat Valenciana, 1998, pág. 23-52.
2
MARTÍNEZ, Emílio. Justicia, in: CORTINA, Adela. Diez Palabras Clave en Ética, Navarra: Verbo Divino,
1994, pág. 155-202.
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natural a política deve cumprir as suas leis intrínsecas. Assim, o ser humano deve buscar
a ordem justa em sua alma e o governante na cidade. Porém, como bem sabemos, a polis
grega era, segundo a nossa capacidade de entender hoje, bastante restritiva. Nela não
participavam as mulheres, os escravos e os estrangeiros. Somente os homens livres com
posses podiam participar da justiça da polis. Nesta perspectiva, Juan Carlos Siurana
considera que a justiça aristotélica é a virtude de tratar com igualdade os que se
consideram iguais, os cidadãos de Atenas, e tratar com desigualdade os que são desiguais,
isto é, os que são considerados socialmente inferiores. No entanto, em Ética a Nicômaco,
Aristóteles avança na definição do conceito e distingue a justiça distributiva (divisão de
bens) da justiça corretiva (castigo a delitos cometidos).
Segundo SIURANA (1998:25), de todas as definições da Antiguidade Clássica, a
que mais marcou a história do conceito e considerada ainda bastante atual é a definição
dada por um jurista romano do século III d.C. chamado Ulpiano. Para Ulpiano, a justiça é
a constante e pérpetua vontade de dar a cada um seu próprio direito. E, para Ulpiano, o
direito envolvia três coisas: viver honestamente, não prejudicar aos demais e dar a cada
um o que lhe corresponde.
Seguindo a história da filosofia, tal como opta Siurana, temos então o legado da
Cristandade, passando pelo próprio Jesus Cristo e depois pelos filósofos-santos:
Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino. No Novo Testamento, Jesus anuncia uma nova
concepção de justiça, que vai diferir muito da do Antigo Testamento. A máxima olho por
olho e dente por dente será substituída pela máxima cubra as necessidades básicas dos
demais como gostaria que eles cobrissem as suas. Se no Antigo Mandamento imperava a
lógica que o mal se paga com o mal e o bem com o bem, na lógica de Jesus é diferente,
pois o justo não julga aos demais e, além disso, esforça-se a fazer o bem independente da
origem ou condição de quem será beneficiado. O que importa é a necessidade de quem
precisa ser atendido pela boa ação. Assim, a regra de ouro do Antigo Testamento que
estava proposta na negativa, o que não queres para ti não faças a ninguém, é mudada por
uma formulação muito mais propositiva: tudo que queiras para ti faças primeiro aos
outros. Na mensagem genuinamente cristã, a justiça vem articulada com a solidariedade
e, ao meu juízo, nos ensinamentos do Evangelho a segunda importa ainda mais que a
primeira. Se recordarmos aqui o clássico discurso do Juízo Final, registrado no
Evangelho de Mateus, veremos que o critério utilizado pela justiça de Jesus é a
solidariedade, muito mais que a prática religiosa ou qualquer outra atividade: Eu tive
fome e me deste de comer, eu tive sede e me deste de beber, eu estive enfermo,
encarcerado, desnudo e tu me visitaste e vestiste. Na justiça de Jesus, o que conta é a
solidariedade e é esse o critério apresentado para a obtenção do bem supremo: a salvação
daqueles que seguem sua mensagem.
En efecto, a pesar de la insistencia de muchos pensadores cristianos en que lo propio del
trato interhumano debe ser la caridad, el amor mutuo, y no la mera justicia, sin embargo
era preciso desarrollar la reflexión sobre la justicia para poder dar respuesta a una serie
de situaciones en las que las gentes en general, y los privilegiados en particular, no tenían
hábitos caritativos, ni mayor interés en adquirirlos. Si la caridad es una virtud que
“sobrepasa la justicia”, pero ni siquiera había condiciones para lograr un mínimo de
justicia, difícilmente se podía esperar un avance en la práctica de una más exigente
caridad. (MARTÍNEZ, 1994:169).
Neste sentido, os trabalhos dos filósofos-santos do período medieval tentam
responder a esta demanda de pensar a justiça como garantia de um mínimo de caridade.
Agostinho de Hipona, em seu clássico dualismo entre a Cidade de Deus e a Cidade
dos Homens, oporá a justiça divina e a justiça temporal. A primeira, perfeita e eterna
deverá ser objeto de busca da segunda, imperfeita e efêmera. Para Santo Agostinho, “la
justicia consiste en tratar a los demás como quisiéramos que nos trataran a nosotros
porque así se alcanza la paz eterna” (SIURANA, 1998:26). Como se percebe com
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relativa facilidade, a justiça de Agostinho é uma variante de justiça anunciada pelo seu
mestre, Jesus, acrescentada aqui a paz interna e eterna, preocupação constante do
conturbado santo.
Tomás de Aquino, mais sistemático e mais platônico, em sua Suma Teológica,
propõe uma definição de justiça que se relaciona diretamente e inovadoramente com a
prioridade para o bem comum. As perguntas, então, passam a ser: o que é bem comum? E
o que devemos fazer para atingi-lo justamente? Para Tomás de Aquino, é justo, por
exemplo, que o soberano formule e promulgue leis, pois estas vão orientadas,
necessariamente, ao bem da comunidade. E também será justo que os súditos obedeçam
aos soberanos para que se cumpra o bem comum. Como é amplamente conhecido, o
pensamento de Tomás de Aquino representa um período no qual o poder do soberano é
justificado pela poder sagrado, no caso a Igreja que ele pertencia e servia. Poderíamos nós
hoje cobrar do santo teólogo uma definição de justiça muito díspare da apresentada?
Creio que não. Penso que é de sabedoria admitir que a concepção de justiça de Tomás de
Aquino estava bastante condicionada por sua condição histórica, ainda que reconheçamos
como um avanço sua articulação com o conceito de bem comum.
Da Idade Média vamos ao contratualismo dos séculos XVII e XVIII. Aqui
encontramos os igualmente clássicos: Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau e Kant. A
fim de resumir pensadores tão distintos e ao mesmo tempo tão próximos, serei bastante
breve tanto para descrever as similitudes quanto as diferenças entre eles. Os
contratualistas têm uma idéia central sobre justiça que é bastante evidente: justiça
consiste em manter um contrato social porque através deste se pode alcançar a paz e a
segurança.
Las teorías contractuales modernas son construcciones ético-políticas que nacen en el
ambiente general de ruptura del orden social del medievo, como un intento de sustitución
del fundamento religioso por la razón natural. En este contexto, los filósofos más
secularizados tratan de dar explicaciones sobre la moralidad en general y sobre la
justificación del Estado en particular, a través del recurso a un hipotético estado de
naturaleza, en el que los individuos aislados, dotados de las características propias de los
europeos de la época (que los teóricos de los inicios del liberalismo confunden con
características propias de la naturaleza humana), y pertrechados con los derechos
naturales (que los tratadistas consideran derivables de tal naturaleza humana), se
enfrentarían unos a otros de tal manera que, antes o después, acordarían libremente a
conveniencia de instituir una autoridad superior con amplios poderes para distribuir los
beneficios y las cargas de la vida en comunidad, recortando los derechos iniciales en
beneficio de todos y cada uno. (MARTÍNEZ, 1994:173-174).
Se a idéia de pacto social é o que une os pensadores contratualistas, o que os separa
são as diferentes maneiras de compreender o que e como deve ser acordado em
sociedade.
Para Hobbes, em Leviatã, o homem é o lobo do homem. A frase descreve o estado
de natureza onde todos estão contra todos, que é na verdade um estado de guerra
contínua. Num contrato social hobbeseano, que visa basicamente estabelecer a paz, o
soberano deve ter poder absoluto de coação para, pelo temor, manter o pacto de
convivência. Aqui justiça é obedecer ao soberano. E nisso Hobbes se assemelha a Tomás
de Aquino.
Locke, ao contrário de Hobbes, entende o estado de natureza como um estado no
qual impera a paz, a benevolência e a ajuda mútua. E nisso se assemelha a Rousseau. No
entanto, segundo Locke, experimentamos a transgressão deste estado de benevolência. Na
teoria cristã, esta hipótese é conhecida como a teoria da queda ou o pecado de Adão.
Sendo assim, para Locke, “lo justo es castigar cada transgresión en tal grado que el
culpable salga perdiendo, se arrepienda e inspire miedo a los demás para no obrar de
esa manera” (SIURANA, 1998:28). A essa definição Locke acrescenta que a justiça
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também se estabelece ao se alcançar propriedades e bens através do trabalho bem como
ao cumprir a vontade da maioria. Aqui encontramos os princípios da democracia liberal.
Para Montesquieu, justo é dividir o poder, pois o poder absoluto gera soberanos
déspotas, arbitrários e injustos. Assim, seguindo uma sugestão que já havia sido
anunciada por Locke, Montesquieu em Do Espírito das Leis, de 1735, propõe
formalmente a separação do Estado em legislativo, executivo e judiciário, para que a
vontade de um, o governante, não se imponha sobre a vontade de muitos, o povo. Justiça
aqui seria equilibrar poderes.
Para Rousseau, o ser humano nasce bom e livre e a sociedade o corrompe. O
princípio das desigualdades sociais, o que equivaleria às injustiças, é a propriedade
privada. No momento em que alguém cercou um terreno e bradou isto é meu, começaram,
segundo o filósofo de Genebra, as injustiças entre os seres humanos em forma de
desigualdades sociais, econômicas e culturais, bem como a exploração de uns sobre
outros. Como todos os contratualistas, Rousseau vê a saída para a situação de injustiça na
intervenção do Estado. O Estado deve promover a liberdade e a igualdade entre todos e
para isso deve ser regido pela vontade geral, que é um dos conceitos mais obscuros e
complexos no pensamento de Rousseau. Em poucas palavras, podemos afirmar que a
vontade geral não é a soma de vontades individuais e tampouco podemos afirmar que
seria a vontade unânime de todos, mas, quiçá, o desejo de paz, igualdade e liberdade
construído entre todos/as e com todos/as.
Kant só vê uma maneira de garantir a justiça, seja na ação individual ou na ação do
Estado: há que seguir princípios que possam ser universalizáveis. O centro do
pensamento kantiano sobre ética e moral, e por isso mesmo sobre justiça, está plasmado
na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de 1797. Para Kant, o estado de natureza
é um estado sem lei, por isso mesmo não há juiz competente para ditar uma sentença e
ninguém que a faça cumprir. Um Estado justo é um Estado de leis, juizes e sentenças que
se orientem por princípios que poderiam ser aplicados a todos e todas como princípios
justos. Este é um estado de direito. Para SIURANA (1998:31), Kant tem a particularidade
de instaurar critérios que garantem uma ordem justa não somente para um Estado, mas
para a ordem internacional, pois os princípios universalizáveis teriam a possibilidade de
entendimento do que é justo para além das fronteiras de um Estado Nacional.
Dos contratualistas vamos ao século XIX e nos encontraremos com os pensadores
que nos ensinaram a não conceber justiça sem outro conceito central, a igualdade. Aqui se
destacam Hegel e Marx e a recuperação da articulação entre justiça e igualdade que havia
sido iniciada por Rousseau.
O conceito de justiça para Hegel, plasmado na obra Princípios da Filosofia do
Direito, de 1821, baseia-se em duas idéias centrais: o bem comum e a liberdade
(SIURANA, 1988:32). Para Hegel, o ser humano é potencialmente um ser livre se chega
a desenvolver racionalmente sua liberdade. Este desenvolvimento racional da liberdade
deveria conduzir o ser humano a buscar e atuar pelo bem comum. Assim, a História seria
a realização das liberdades individuais em direção à construção do bem comum. O mais
importante aqui é a recuperação do bem comum como possibilidade de exercer a
liberdade e garantir a igualdade, bem distinto do que havia sido projetado até então por
Tomás de Aquino.
Marx compreende o conflito de classes antagônicas como o motor da história.
Assim, a condição econômica e de classe determinariam nos sujeitos a busca de seus
interesses. Obviamente burgueses e proletários têm condições econômicas muito
distintas, o que leva à busca de interesses distintos e, conseqüentemente, ao conflito de
classes. Partindo dessas premissas, o filósofo do socialismo histórico entende que a
justiça deve ser garantida por um Estado que faça desaparecer as classes ou que maneje
os interesses antagônicos equilibrando as forças desiguais entre os donos dos modos de
produção, os capitalistas, e os que apenas têm sua força de trabalho, os operários. Marx
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reforça o ideal de igualdade quando defende que justiça é controlar a propriedade privada
e os meios de produção e construir um Estado a serviço de uma sociedade sem classes.
Contemporaneamente ao pensamento de Marx, temos uma outra importante
corrente filosófica que ganhará destaque no pensamento de Stuart Mill. Trata-se do
utilitarismo de corte liberal. Para Mill, se há uma coisa na qual todos os seres humanos
coincidem é na busca da felicidade. Por felicidade, o utilitarismo entende a ausência de
dor, por isso sua proposta de justiça será a maior felicidade possível para o maior número
de pessoas, respeitando as liberdades individuais. Para Stuart Mill, a felicidade de uns não
pode ser fonte de injustiça para outros. Assim, seria injusto sacrificar um indivíduo, sem o
seu consentimento, para o bem da comunidade. Também seria injusto forçar uma pessoa a
aceitar uma idéia de felicidade. No utilitarismo, a justiça deve evitar a dor (física ou
moral) desnecessária, potencializar ao máximo a liberdade e a felicidade do maior
número de pessoas em uma determinada sociedade.
No século XX, os principais filósofos que ousaram propor uma teoria de justiça
beberam, inevitavelmente, das fontes que tinham: a Antigüidade Clássica, a Tradição
Cristã, o Contratualismo Liberal, o Socialismo Histórico e o Utilitarismo. Para as atuais
concepções de justiça, veja-se o apartado 4.3.5 – A Justiça e seus mandados, no qual são
analisadas as considerações de John Rawls (liberalismo político), de Michael Walzer
(igualitarismo complexo) e de Habermas e Apel (ética do discurso).
ANEXO II
Notas históricas sobre o conceito de felicidade.
A fim de apresentar algumas notas sobre a história do conceito de felicidade
seguirei especialmente as sugestões de Diego Gracia
3
e Agustín Domingo
4
, apresentando
basicamente cinco noções de felicidade: (1) vida boa, (2) prazer, (3) possibilidade da
virtude, (4) beatitude e (5) bem-estar.
Eudaimonia significaria em grego o objetivo final para se viver uma vida boa (1).
Tanto Diego Gracia quanto Agustín Domingo concordam que foi Aristóteles que cunhou
o termo grego eudaimonia em sua obra fundamental Ética a Nicomaco, para tratar pela
primeira vez de maneira filosófica – sistemática e racionalmente – o que vem a ser uma
vida feliz.
No entanto, existem algumas complicações e distinções sobre como interpretar o
que é uma vida boa. Segundo GRACIA (2005:01), uma vida boa, para o grego antigo,
tem como substrato uma boa natureza, assim “no podría ser feliz del todo aquel cuyo
aspecto fuera completamente repulsivo, o mal nacido, o solo y sin hijos”. Dessa maneira,
a vida boa possuiria uma série de elementos que estão, de certa forma, fora de nosso
controle, ou seja, estão na natureza que nos constitui primeiro. Além de uma primeira
natureza boa, a vida boa significaria também submeter esta mesma natureza aos
adequados exercícios para que ela obtivesse o seu melhor rendimento. Adequados
exercícios dizem respeito tanto a exercícios físicos para manter saudável o corpo quanto
aos exercícios morais (hábitos, costumes, atitudes) para manter saudável o espírito.
Sin un correcto ejercicio de las facultades o potencias naturales, la salud es imposible, y
sin ella también lo son la virtud y la felicidad. En cierto sentido, la salud es un predicado
3
GRACIA, Diego. Salud, Sufrimiento y Vida Buena, in: Felicidad y Proyectos de Vida Buena, Valencia:
Universidad Internacional Menéndez Pelayo, 2005, 7 páginas. CD-ROM do Curso Felicidad y Proyectos
de Vida Buena, organizado por Adela Cortina (Universidade de Valencia, Espanha) e Jean Grodin
(Universidade de Montreal, Canadá).
4
DOMINGO, Agustín. Felicidade, in: CORTINA, Adela. Diez Palabras Clave en Ética, Navarra: Verbo
Divino, 1994, pág. 101-153.
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que se convierte con la belleza, la bondad y la felicidad. Esto explica por qué los médicos
estuvieron tan próximos a los filósofos, y también por qué las reglas de ordenación de la
vida del cuerpo fueron asumidas por todos aquellos que quisieron alcanzar la perfección y
la felicidad. (GRACIA, 2005:02).
Neste sentido, um primeiro sinal de desvio de uma vida boa seria a enfermidade.
Para os gregos antigos, havia dois tipos de enfermidades. As enfermidades físicas seriam
as anomalias da primeira natureza. Sobre estas enfermidades não havia, segundo o
entendimento da época, muito que fazer, até porque o desenvolvimento da medicina de
então não permitia outra resposta. Havia, no entanto, as enfermidades morais, causadas
pela desordem de costumes, pela irregularidade de bons hábitos. O ser humano que
exercita mal sua primeira natureza padece no corpo e na alma das enfermidades que são,
de fato, desarranjos morais, perturbações de comportamentos, desordem de hábitos. Neste
segundo caso, a enfermidade não seria um mal em si, mas disposição ao costume errado
ou ao uso incorreto da primeira natureza.
Já para DOMINGO (1994:99), Aristóteles empregava o termo eudaimonia para
“designar el fin (telos) de todas as acciones, llegando a ser el bien supremo al que
aspiramos como hombres; por ello, cuando una tradición ética explica el obrar humano
como acción orientada conforme a fines, se llamará explicación teleológica”. Segundo o
autor, ainda que a palavra felicidade seja a mais usual para traduzir do grego eudaimonia
existem outras possibilidades de tradução, tais como: sorte, fortuna, ventura ou bem-
aventurança, pois etimologicamente eudaimonia significaria bom (
ευ
) destino (
δαιμον
).
Sendo assim, todo aquele que participa de um bom destino, enquanto encadeamento de
fatos sobre os quais temos pouca ou nenhuma influência, estaria em estado de felicidade
ou pré-destinado a ela.
Para DOMINGO (1994:100), desde a Grécia Antiga, a felicidade se referiu a este
aspecto de dom, de oferta gratuita, independente de nossa ação voluntária e, ao mesmo
tempo, ao esforço que se deve fazer para obtê-la. Felicidade seria, então, dom e esforço.
No entanto, é Platão, mais do que Aristóteles, que insiste na vida boa como um
dom:
Platón incide menos en la construcción de un carácter personal, le da menos importancia
al esfuerzo y a la voluntad de felicidad que al hecho de que sea “regalo”, “donación” y
“gracia” de los dioses. Lo realmente difícil será mantener esta tensión entre felicidad que
es preparada por el esfuerzo de la voluntad y una felicidad que acontece
independientemente de los esfuerzos que realice la limitada voluntad humana.
(DOMINGO, 1994:100).
Do debate dos grandes mestres gregos temos, então, a tensão entre o esforço por
alcançar a felicidade e o reconhecimento que há uma dimensão neste fim último, neste
bem supremo que almeja todo e qualquer ser humano, que escapa de nosso controle, seja
por capricho da natureza primeira ou dos deuses. O fato é que teríamos inúmeros
exemplos de pessoas que perseguem a felicidade e a alcançam como aqueles que tal como
estes a buscam incessantemente e nunca logram encontrá-la. Por outro lado, há aqueles
que sem nenhum esforço pessoal se sentem felizes ou se sentem presenteados – pelos
deuses, pela natureza, pelo destino – com uma felicidade plena.
Da disjunção entre Aristóteles e Platão, seguirei entre aqueles que defendem a
felicidade como resultado de um esforço voluntário e chegarei à segunda concepção de
felicidade. Sendo assim, a busca pelo bem supremo felicitante será a busca pelo prazer
(2). Identificar felicidade com prazer é uma tendência que vem desde Epicuro, na
Antiguidade Clássica, até os hedonistas pós-modernos.
Epicuro (341-270) defendia que o supremo bem que todos desejam nada mais é que
o prazer em suas diferentes formas. Sendo assim, de acordo com DOMINGO (1994:114),
a finalidade da ética epicurista se definiria basicamente em duas atividades: (a) buscar
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aquelas coisas que produzem prazer e (b) evitar aquelas coisas que conduzem à dor. Neste
sentido, para Epicuro, o saber moral estaria numa economia de esforços marcada pela
dialética entre lograr o prazer e evitar a dor. “Economía de esfuerzos que es resultado de
un ‘cálculo’ de placeres, de ahí que podamos hablar de una racionalización del placer,
de una ‘recta razón’ al evitar el dolor y conseguir el placer” (DOMINGO, 1994:114).
Os epicuristas defendem que o prazer (hedoné, em grego, daí hedonistas) é o
princípio e o fim de uma vida feliz. Poderia dizer, então, que o epicurismo é uma ética
teleológica, centrada em fins felicitantes. Demonstrarei, então, o que os chamados
hedonitas entendem por prazer e, conseqüentemente, por felicidade.
Para os hedonistas, antigos ou modernos, existem dois tipos de prazer. O primeiro
tipo, que chamarei aqui de prazeres básicos, alcança-se evitando ou suprimindo a dor ou
uma situação desagradável. O segundo tipo, que chamarei de prazeres gozosos, é
resultado dos sentidos, é o prazer experimentado não mais para evitar algo desagradável,
mas pelo gozo do próprio ato. Por exemplo, quando comemos para saciar a fome estamos
produzindo um prazer do primeiro tipo, básico. Para o hedonismo, a fome, a sede, o sono,
o comichão são situações desagradáveis, de perda de uma ordem, de um equilíbrio.
Comer quando se tem fome, beber quando se tem sede, dormir quando se está com sono,
coçar quando se comicha são atos que estabelecem a ordem perdida e dão sensação de
alívio, que é o prazer básico. Porém, depois de saciados, se seguimos em busca de prazer
pelo simples gozo do ato, ou seja, pela degustação de uma boa comida, por refrescante
que se encontra a água, por cômodo que significa estar deitado, por prazenteiro que é
coçar-se, já entramos no prazer gozoso. O prazer gozoso vai além do prazer básico, pois
este simplesmente restabelece uma ordem perdida, no caso, a saciedade de um incômodo
natural ou provocado, enquanto que o outro é fruto da vontade humana de seguir se
deleitando com um determinado ato.
Contudo se continuarmos comendo, bebendo, dormindo ou se comichando
podemos chegar ao ponto da desordem dos hábitos que faz padecer o corpo e alma, tal
qual nos falava Aristóteles anteriormente. Estas desordens atendem pelo nome de gula,
preguiça, luxúria etc.
Neste sentido, os epicuristas antigos já previam para a mente o papel de
moderadora dos prazeres da carne e introduziram o princípio de mesura para a
intensidade, a quantidade e a duração dos prazeres (DOMINGO, 1994:115). Sem o
princípio de mesura, o grupo humano que se paute pela ética hedonista está fadada ao
caos. Se prazeres individuais forem perseguidos sem o mínimo de controle
testemunharemos situações nas quais os prazeres de uns significarão a indignidade de
outros. O prazer do pedófilo poderá ser aceito numa sociedade que se queira moralmente
justa? O prazer daqueles que consomem sem mesura destruindo o meio ambiente pode ser
aceito numa sociedade que se queira ecologicamente sustentável?
Claro está que o prazer como peça chave de uma vida feliz traz grandes desafios
conceituais e práticos. No entanto, seguindo a trilha da felicidade como prazer é preciso
considerar o utilitarismo, pois ele “comparte con el epicureísmo una interpretación
mecanicista de la persona en la que es fundamental el equilibrio entre máximos de
placer-bienestar y mínimos de dolor-sufrimiento” (DOMINGO, 1994:117).
Nesta perspectiva, Jeremy Bentham (1748-1832), um dos pais do utilitarismo, não
poderia ser mais claro: “Utilidad es un término abstracto que expresa la propiedad o la
tendencia de una cosa a preservar de algún mal o procurar algún bien: mal es pena,
dolor, o causa dolor; bien es placer o causa placer (...) El principio de utilidade lo
subordina todo a estos dos móviles” (BENTHAM, 1981:28).
O utilitarismo moderno de Jeremy Bentham e John Stuart Mill deu ao hedonismo
epucirista um princípio de quantificação dos prazeres com uma suposta finalidade de
controle social, para além do princípio de mesura já estabelecido pelos antigos. Assim,
por um lado, o princípio de maior felicidade para o maior número de pessoas se converte
no critério pelo qual se mede a felicidade social, por outro lado, a opção pela
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quantificação do prazer como controle das conseqüências ao realizar uma ação será o
critério com o qual se deve medir a felicidade individual (DOMINGO, 1994:118). “La
felicidad se plantea como placer que se puede medir, y el principio de utilidad como un
criterio de cuantificación y cálculo” (DOMINGO, 1994:119).
No entanto, os utilitaristas são conscientes que o princípio de utilidade não pode ser
aplicado indiscriminadamente como o único critério de justiça distributiva de prazer
(felicidade) numa sociedade, pois só deve ser utilizado quando se pode, de fato, calcular
as conseqüências de uma ação. “Es entonces cuando la mayor felicidad se convierte en
‘mayor bienestar’, y puede llegar a cuantificarse, incluso, matemáticamente”
(DOMINGO, 1994:119).
Ainda que o critério de utilidade nos pareça válido em sociedades com escassez de
recursos para garantir o bem-estar ao maior número possível de pessoas, esta proposta
apresenta um sério desafio político ao identificar felicidade com prazer e este com bem-
estar. Considerar felicidade como bem-estar, mediada pela noção de prazer, parece
perigoso, pois bem-estar é, em geral, entendida como uma noção pública enquanto
felicidade é uma percepção subjetiva. Pode um Estado basear-se que garantindo o bem-
estar de todos estará garantindo necessariamente uma sociedade feliz? E mais: deve um
Estado preocupar-se diretamente com a felicidade dos cidadãos?
Ainda que por causa da identificação entre felicidade e prazer tive que pular
diretamente da Antiguidade Clássica (epicurismo) à Modernidade (utilitarismo), é
necessário retornar à Grécia Antiga para fazer o terceiro percurso, aquele que entende a
felicidade como resultado da virtude (3). Nesta perspectiva, terei que fazer o mesmo salto
histórico, pois esta noção de felicidade também vai da Antigüidade Clássica (estoicismo)
diretamente à Modernidade Ilustrada (formalismo kantiano). Neste novo percurso não
encontraremos uma definição de felicidade propriamente dita, mas tão somente um
caminho privilegiado para alcançá-la: a busca de uma vida virtuosa.
Zenão e Sêneca desenvolveram a idéia que a felicidade só pode ser resultado da
firmeza de caráter, da auto-afirmação, do autodomínio, da segurança diante as supressas e
transformações que a vida nos apresenta (DOMINGO, 1994:126-127). O estoicismo
clássico – grego e ainda mais romano – defenderá “que el ideal del sabio no está en la
búsqueda de la felicidad como tal, sino en la búsqueda de la virtud” (DOMINGO,
1994:127).
A virtude (arétè, em grego; virtute, em latim) designava na Antigüidade Clássica
uma disposição constante, habitual ou firme da alma, o que levaria o ser humano a
praticar o bem ou a evitar o mal, equivalendo-se a uma força moral. Assim, mais que
tentar ser feliz, aquele e aquela que desejam agir com sabedoria devem exercitar a
virtude, pois ser sábio é fazer aquilo que está a seu alcance e que, conseqüentemente, é
mais próprio à sua natureza. A felicidade se dará como um resultado possível e não
necessariamente alcançável. O estoicismo assume que ser virtuoso é o mais próprio da
natureza humana, mais do que ser feliz. No entanto, isso não significa uma aceitação
incondicional da infelicidade ou da tristeza, ao revés, ao agir da maneira que lhe é mais
própria – virtuosamente – o ser humano se faz merecedor da felicidade.
O estoicismo clássico busca esta centralidade da virtude a partir de uma leitura
muito particular de Aristóteles. Em Ética a Nicômaco, o mestre grego afirma:
A virtude é portanto uma disposição adquirida voluntária, que consiste, em relação a nós,
na medida, definida pela razão em conformidade com a conduta de um homem ponderado.
Ela ocupa a média entre duas extremidades lastimáveis, uma por excesso, a outra por falta.
Digamos ainda o seguinte: enquanto, nas paixões e nas ações, o erro consiste ora em
manter-se aquém, ora em ir além do que é conveniente, a virtude encontra e adota uma
justa medida. Por isso, embora a virtude, segundo sua essência e segundo a razão que fixa
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sua natureza, consista numa média, em relação ao bem e à perfeição ela se situa no ponto
mais elevado. (Ética a Nicômaco, II, 6, 1107 a)
5
.
Mais uma vez me vejo obrigado a saltar da Antiguidade Clássica para a
Modernidade, simplesmente para manter uma coerência temática, pois Kant e toda a
tradição deontológica que o sucede se fundamentará basicamente nesta concepção
aristotélica reinterpretada pelo estoicismo.
Como já afirmado em outras oportunidades, o deontologismo kantiano se baseia
justamente na idéia de que o específico do ser humano é o exercício de sua razão. A
natureza humana consiste precisamente em ser racional. Ao exercício da razão, uns
chegarão mais do que outros, porém todos têm a possibilidade de exercitá-la. Isto é
importante no âmbito da filosofia moral, dado que fará universalizáveis os ideais morais,
ou seja, os deveres de justiça como uma exigência racional para todos e todas que se
queiram morais. Neste sentido, a virtude – e conseqüentemente a felicidade para os
estóicos – não é privilégio de alguns poucos, eleitos por nobreza, divindade ou poder
financeiro, mas uma experiência aberta e possível a todos.
Sendo assim, a felicidade não é um conceito central no estoicismo, muito menos no
formalismo deontológico de Kant. A felicidade para Kant é um ideal moral derivado e
indireto, pois ela, ainda que seja um anseio humano legítimo, não pode ser vista como
uma obrigação moral exigível, mas tão somente como uma possibilidade real e viável que
poderá nascer de uma vida virtuosa. Kant defende, inclusive, uma felicidade mínima, pois
todo ser racional tem como obrigação moral assegurar sua própria felicidade a fim de não
se situar em condições inumanas. Daí a importância do amor-próprio, da auto-estima e de
considerar a própria humanidade como um valor absoluto em si mesmo e um fim
incondicionado.
Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant vai defender a felicidade
como um âmbito da necessidade humana: “Há um fim que pode se pressupor real em
todos os seres racionais, há um propósito que não só pode ter, senão que pode se
pressupor com segurança que todos têm, por uma necessidade natural, e este é o
propósito da felicidade”.
O deontologismo não despreza a felicidade, mas desconfia das propostas éticas que
a põem como fundamento ou como objetivo último, pois, claro está, que alguém pode
levar um modo de vida prazenteiro e felicitante, em suma, uma vida boa, sem ser virtuoso
e, todavia mais, em desrespeito à dignidade humana, alheia ou própria. O objetivo aqui
não é desqualificar a felicidade, mas tão somente entendê-la em sua relação com a
virtude, pois se trata de uma das mais importantes correntes filosóficas no trato do
conceito. Volto, então, ao percurso histórico.
Entre nossas idas e vindas, da Antiguidade Clássica para a Modernidade, por uma
questão tão somente de manter uma fidelidade temática, desviei o olhar propositalmente
de um longo período histórico que as intercala. Pulei justamente o meio, o Medievo, a
Idade Média. No entanto, é mister retroceder, uma vez mais, para analisarmos a
concepção de felicidade própria do Medievo que será apresentada aqui como a quarta
possibilidade de entendimento do conceito, a beatitude (4).
Do latim medieval temos duas palavras para designar o que comumente chamamos
hoje de felicidade: beatitudo e felicitas. A palavra beatitudo poderia ser traduzida por
beatitude, mas seu significado não é tão óbvio para o uso que fazemos dela hoje em dia
nas línguas latinas modernas
6
. Beato (beatus) é, na tradição cristã, o bem-aventurado, o
agraciado, que também poderia ser traduzido por feliz. Tanto beatitudo como beatus são
palavras derivadas do verbo beo que significa satisfazer, encher, completar, premiar,
5
Veja também tradução de Pietro Nasseti para a editora Martin Claret (São Paulo), na página 49.
6
Refiro-me especialmente ao português (beatitude), ao castelhano (beatitud) e ao francês (béatitude), nos
quais o termo parece estar muito mais relacionado à beatice, ou seja, sentimento religioso exagerado e
ingênuo.
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acumular, no sentido de não deixar que falte nada, de estar tudo completo, cheio, perfeito
ou no seu lugar. Já a palavra felicitas refere-se à fecundidade, fertilidade, prosperidade.
Neste sentido, tanto Diego Gracia quanto Agustín Domingo optam pela primeira,
beatitudo, por corresponder mais diretamente ao conceito de felicidade que vinha sendo
construído desde a Antiguidade. Segundo GRACIA (2005:05), lo que en la tradición
griega fue la eudamonia, lo fue en la era cristiana medieval la beatitudo, que es lo que
intentan conseguir los monjes”.
Nesta perspectiva, na era medieval cristã, a felicidade não significará mais vida
boa, mas sim uma condição a ser alcançada através da comunhão com o sagrado. “El
objetivo del hombre sabio sigue siendo el mismo que el de las escuelas helenísticas:
imitar a Dios, sabiduría plena. Por supuesto, Dios tiene que ser feliz, beatus, en latín.
(…) De ahí que haya dos tipos de beatitudo, una increata, la propia de Dios, y otra
creata, la única a la que el ser humano puede aspirar” (GRACIA, 2005:04). A felicidade
criada ou alcançada (beatitudo creata) será mais do que nunca fruto do esforço pessoal,
porém não é um ideal prazenteiro, de vida mundana, mas um ideal de participação
transcendente com a felicidade perfeita que é o próprio Deus.
Es evidente que el concepto de felicidad ha cambiado de modo radical respecto de la
tradición griega. Ahora la felicidad ya no es un ideal cismundano sino transmundano. De
ahí que el mejor modo de conseguirla, o al menos de acercarse a ella, es salir de este
mundo, apartarse de él. Eso es lo que se intentó conseguir en la vida monástica. El
monasterio debía ser un lugar apartado del mundo, organizado del modo más idóneo para
conseguir el fin último, la unión con Dios y, de este modo, la bienaventuranza. (GRACIA,
2005:05).
Mais uma vez, o controle do corpo está associado ao esforço necessário para se
encontrar a felicidade, pois bem se sabe que as regras dos mosteiros eram (são)
extremamente rígidas com o controle da comida, bebida, sono, vigília, repouso, trabalho e
sexo
7
. Aqui, a mudança mais significativa será a fuga do prazer mundano-corporal, ao
contrário dos epicuristas antigos
8
, para se alcançar a verdadeira felicidade. Tampouco
tem a ver com a busca da virtude estóica
9
, pois a felicidade não será fruto do exercício
racional, mas da atitude contemplativa e orante diante do sagrado.
Segundo Agustín Domingo, os medievais teriam uma dimensão mais dialética e
menos dualista que possa nos parecer num primeiro momento. Ainda que reconheça a
primazia da beatitudo, ele a entende articulada com a felicitas, pois considera a vida do
homem-comum da Idade Média e não somente o ideal dos monges beneditinos.
Assim, DOMINGO (1994:105) afirma:
Aspirar a la felicidad será, por una parte, aspirar a tener una vida fructífera y plena, tener
aquí y ahora (intramundanamente) una vida dichosa. Pero con el término beatitudo se
vincula la felicidad a la perfección de la naturaleza humana, perfección que en la moral
cristiana se logrará con la esforzada contemplación (beatífica) de Dios, y que va a suponer
una felicidad que desborda lo histórico y que roza la auténtica desmesura que supone la
eternidad.
Segundo DOMINGO (1994:106), o conceito de beatitudo no ideal cristão do
Medievo tem uma importante função mobilizadora das ações éticas, pois ainda que esteja
claro tanto para o homem-comum quanto para o monge que eles nunca alcançarão a
plenitude da beatitudo increata, eles, por outro lado, nunca devem desistir da
possibilidade da bem-aventurança, que também é dom gratuito de Deus para aqueles que
se esforçam na atitude de contemplação e oração. Aqui retomo a tensão de felicidade
7
Na verdade, a prática de abstinência sexual, o celibato.
8
E dos utilitaristas modernos.
9
E dos deveres de justiça universalizáveis do deontologismo kantiano.
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como esforço e dom, ainda que formulada em outras concepções éticas de vida, de
mundo, de sagrado.
Finalmente, a quinta e última concepção de felicidade chega do emotivismo
britânico dos séculos XVII e XVIII. É o conceito de well-being, que traduzirei para aqui
como bem-estar (5). Segundo GRACIA (2005:05), para se compreender a ascensão do
conceito de well-being como felicidade será preciso alcançar o movimento de
reinvidicação e revalorização dos sentimentos, no período moderno, principalmente com
os autores do chamado romanticismo ou emotivismo, tais como: Shaftesbury e
Hutcheson.
Até a Modernidade, as emoções e/ou os sentimentos não tinham grande
importância no pensamento filosófico de origem greco-romana. Não tinham autonomia
nem estatuto de objeto de reflexão. As emões eram entendidas sempre como reação ou
como sensação secundária, que não determinavam, mas sim eram determinadas por
instâncias primeiras. Assim, alguém se sentiria feliz ou triste porque viu algo bonito ou
feio, porque outrem lhe fez um bem ou lhe causou algum mal. Com a Modernidade, a
felicidade ganha estatuto de sentimento e um sentimento que tem autonomia enquanto
objeto de reflexão. Assim como o pensamento, o conhecimento, a vontade ou o juízo, os
sentimentos ganham reconhecimento de existência como uma importante faculdade
humana. A felicidade, então, não seria mais resultado de uma vida boa ou virtuosa, mas
um estado anímico, uma faculdade humana orientada por valores (GRACIA, 2005:05).
Los valores constituyen un mundo propio, fundamental en la vida humana. Son,
probablemente, más importante que los hechos. Lo que dota de identidad y argumento a
nuestras vidas son los valores, no los hechos. Los valores los que nos diferencian y dotan
de identidad. No es un azar que fuera el mundo moderno el que, para protegerlo, inventara
un derecho, el derecho a la intimidad (GRACIA, 2005:05).
Neste sentido, a tese do emotivismo moderno é que a felicidade tem que ver
fundamentalmente com os valores que se assumem como relevantes ou constitutivos da
condição humana. Dito de outra forma: existem tantos projetos de felicidade quantos
forem os sistemas de valores escolhidos como relevantes ou constitutivos da vida. “Y si
vivimos en una sociedad pluralista, es porque en ella coexisten distintos sistemas de
valores, por tanto, distintos proyectos de vida que priman unos valores sobre otros, los
dotan de diferentes contenidos, etc.” (GRACIA, 2005:05).
Arrisco-me a dizer que, de tantos e diferentes valores, o mais influente no
sentimento de felicidade desde a Modernidade até nossos dias é o valor de bem-estar,
pois estar bem é o ideal de vida mais vigente quando nos referimos ao fato de se sentir
feliz. O termo feliz, por exemplo, vem seguido comumente dos significados de alegre,
contente, pessoa que se encontra bem, sem nenhum mal-estar. Não é gratuito, por
exemplo, que na Europa se estenda ou se pretenda estender um ideal de aparato estatal
chamado Estado de Bem-Estar Social ou que a própria Organização Mundial de Saúde
defina saúde como um estado de perfeito bem-estar físico, mental e social e não somente
a ausência de enfermidades. É evidente que um Estado de Bem-Estar é uma utopia
10
, tal
como definir saúde como perfeito estado de bem-estar. É intrigante perceber que bem-
estar é um conceito que basicamente define emoções, mas que também define um
desejado aparato estatal e uma suposta definição de saúde. Aqui poderia retomar as
críticas apresentadas ao utilitarismo ao misturar o conceito de bem-estar enquanto noção
pública e sentimento subjetivo.
Em suma, felicidade tem significado encontrar-se bem. No entanto, o ideal de
encontrar-se bem tem, cada vez mais, ampliado o seu leque de significação tais como:
10
Adela Cortina, por exemplo, tem insistido em diferentes oportunidades que se deveria denominar o projeto
de Estado que se leva a cabo em diferentes países europeus como Estado de Justiça, por corresponder
melhor aos mínimos de justiça que o Estado deve garantir aos cidadãos e por impreciso que se apresenta o
termo “bem-estar” para definir um aparato estatal.
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sentir-se bonito/a, elegante, bem sucedido/a, bem relacionado/a, amado/a, consumidor/a
etc. Para encontrar-nos bem nós, da Modernidade Tardia, temos aceitado verdadeiros
sacrifícios ou esforços supra-humanos para chegarmos a esses ideais. Não serão
necessárias muitas reflexões para entender as paranóias, ou melhor, as ditaduras da
magreza, do bronzeado, da academia de ginástica, dos potes de creme anti-rugas, das
compras no shopping, dos passeios aos lugares badalados, das roupas da última Rio
Fashion Week etc. Tudo isso para quê? Para encontrar-se bem consigo mesmo (com o
espelho que temos em casa e o espelho social de nossas relações) e, assim, finalmente ser
feliz. O mais cômico e trágico de tudo isso é que sabemos que a busca obsessiva pelo
bem-estar tem causado o reverso, ou seja, um verdadeiro sentimento de mal-estar. São
testemunhas dessa obsessão os consultórios psicológicos e psiquiátricos, bem como os
grupos de Vigilantes do Peso e as vendas de um sem fim de livros e almanaques de auto-
ajuda. “Hay toda una patología del bienestar cada día mejor conocida y más frecuente.
De ahí la importancia de gestionarlo razonablemente, filosóficamente, prudentemente”
(GRACIA, 2005:07).
Minha tarefa aqui foi levantar as principais tendências filosóficas para pensar a
felicidade. Da eudaimonia grega até o well-being de nossos dias, procurei apresentar
definições e críticas, reconhecendo os diferentes grupos: hedonistas, utilitaristas, estóicos
e deontologistas.
Para as atuais concepções de felicidade, veja o item 4.3.6 – A felicidade como
possibilidade do ir além, deste trabalho.
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