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ALEXANDRE PACHECO
A VIOLÊNCIA NO RIO DE JANEIRO, NA DÉCADA DE 1970, EM
“FELIZ ANO NOVO” (1975) DE RUBEM FONSECA.
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ALEXANDRE PACHECO
A VIOLÊNCIA NO RIO DE JANEIRO, NA DÉCADA DE 1970, EM
“FELIZ ANO NOVO” (1975) DE RUBEM FONSECA.
Dissertação apresentada ao Instituto de História
da Universidade Federal de Uberlândia como
exigência parcial para a obtenção do título de
Mestre em História. (Área de concentração:
História Social).
Orientadora:
Prof. ª Dr. ª Rosangela Patriota Ramos.
Uberlândia
2003
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
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ALEXANDRE PACHECO
A VIOLÊNCIA NO RIO DE JANEIRO, NA DÉCADA DE 1970, EM
“FELIZ ANO NOVO” (1975) DE RUBEM FONSECA.
COMISSÃO JULGADORA
Titulares
_________________________________________________________________________
Prof. ª Drª. Rosangela Patriota Ramos – Orientadora – UFU
_________________________________________________________________________
Prof. ª. Drª. Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha - UFU
_________________________________________________________________________
Prof. Dr. José Evaldo de Mello Doin - UNESP
Suplentes
_________________________________________________________________________
_________________________________________________________________________
Uberlândia, 11 de janeiro de 2003.
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer o apoio essencial de algumas pessoas, que muito contribuíram
para a concretização deste trabalho:
À minha orientadora Prof. ª Dr. ª Rosangela Patriota Ramos, por sua competente
orientação, suporte teórico-metodológico em todo o trabalho, bem como, por seu apoio e
compreensão.
Ao Prof. Dr. Alcides Freire Ramos, pelo suporte teórico-metodológico - que me
proporcionou no curso de História e Ficção, bem como quando de sua participação na
banca examinadora de qualificação - para a análise tanto da internalização como da
conceituação da violência constante na obra de Rubem Fonseca.
À Prof. ª Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha, pela indicação de leituras
fundamentais para a concretização da análise literária da obra de Rubem Fonseca, quando
de sua participação na banca examinadora de qualificação.
à Prof.ª Dr.ª Maria Clara Thomaz Machado pelo direcionamento de algumas leituras
importantes, como a de Pierre Ansart que muito me ajudou a conceituar a questão da
representação do ressentimento nos personagens de Rubem Fonseca.
às colegas de curso Sirley e Claúdia, pelo apoio prestado e pelos trabalhos em
conjunto.
aos amigos Robson, Sônia e Rodrigo, colegas de ofício, pelos suportes e apoio
durante todos esses anos de amizade e UNESP.
à Iara, minha amiga e colega de curso, que muito me acolheu nesta cidade de
Uberlândia.
a todos do NEHAC.
ao Sistema Jornal do Brasil, pela viabilização de alguns documentos fundamentais
para a realização dessa pesquisa.
AGRADECIMENTO ESPECIAL
ao Prof. Dr. José Evaldo de Mello Doin, pelo grande apoio dado desde o início deste
trabalho, como também por todos os anos de convívio e amizade de UNESP.
RESUMO
PACHECO, Alexandre.
A Violência no Rio de Janeiro, na década de 1970, em “Feliz
Ano Novo” (1975) de Rubem Fonseca. 2003.131f. Dissertação (Mestrado em História
Área de concentração: História Social). UFU. Uberlândia.
Neste trabalho, discutimos a representação da violência social da cidade do Rio de Janeiro,
na década de 1970, através do conto “Feliz Ano Novo” de Rubem Fonseca. Parte do livro
Feliz Ano Novo, que se tornou um marco da literatura brasileira, esse conto revelou, em
1975, os primórdios dos complexos arranjos que passaram a contribuir para uma
transformação da violência na sociedade brasileira, pois, Rubem Fonseca soube inserir nele
as imagens dos fatos brutais e implacáveis ligados às contradições sociais desenvolvidas na
cidade do Rio de Janeiro, a partir da década de 1970.
Palavras-chave: História e Literatura; Rubem Fonseca; Feliz Ano Novo; violência urbana
Sumário
Introdução .................................................................................................................... p. 09
Capítulo 1. Feliz Ano Novo: mbolo da luta democrática e de denúncia das contradições
sociais brasileiras ............................................................................................................ p. 17
1.1- Crise econômica, censura e repressão ..................................................................... p. 17
1.2- Feliz Ano Feliz: censurada em 1976 ....................................................................... p. 21
1.2.1- Feliz Ano Novo: símbolo da pornografia e da violência ...................................... p. 21
1.2.2- Feliz Ano Novo: consagrado como um dos símbolos da luta democrática através da
representação de um Brasil miserável ............................................................................ p. 26
1.3 - Os novos rumos da arte ......................................................................................... p. 32
1.3.1- Uma linguagem não tão nova assim ..................................................................... p. 39
Capítulo 2. A construção da obra de Rubem Fonseca ................................................. p. 43
2.1- A crítica dos jornais e revistas versus a crítica acadêmica ..................................... p. 43
2.1.1- Uma nova literatura sintomática da condição humana em uma sociedade de massas
........................................................................................................................................ p. 46
2.1.2 O brutalismo na obra como sintoma de uma cidade e de um país miserável e
violento .......................................................................................................................... p. 52
2.2 – O desvendamento pela crítica acadêmica da linguagem brutalista de Rubem Fonseca
........................................................................................................................................ p. 57
2.2.1- A concepção de uma literatura não engajada ...................................................... p. 58
2.2.1.1 – A linguagem hiper-realista de Rubem Fonseca .............................................. p. 62
2.2.1.2 – A linguagem marcada pela mídia extra-literária ............................................ p. 72
Capítulo 3. A representação da violência contemporânea através da obra Feliz Ano Novo e
do conto “Feliz Ano Novo” ........................................................................................... p. 78
3.1- A representação da violência no livro Feliz Ano Novo .......................................... p. 78
3.2 O conto “Feliz Ano Novo” como confirmação da estética brutalista e sua
representação da miséria e da violência do Rio de Janeiro na década de 1970.............. p. 80
3.3 – A contemporânea violência interpessoal na obra de Rubem Fonseca ................... p. 91
3.3.1- A representação da violência interpessoal dos pobres contra os ricos .................p. 91
3.3.2 – A contemporânea violência interpessoal no Brasil dos anos de 1970 ................p. 96
3.3.3 – A moralidade das armas e a violência interpessoal na civilização ocidental ......p.107
Conclusão .......................................................................................................................p.114
Documentação ................................................................................................................p.122
Bibliografia .....................................................................................................................p.125
Introdução
Sempre que nos debruçávamos sobre a literatura de Rubem Fonseca, algo nos
intrigava com relação aos quadros da condição existencial de seus personagens, sempre
dominados por uma atmosfera de violência latente, principalmente após termos contato
com suas obras dos anos de 1960 e 1970, e em especial o livro Feliz Ano Novo, de 1975.
Perguntávamos a nós mesmos de onde vinha a inspiração para a composição das
misérias humanas dos personagens de contos como “Feliz Ano Novo”, que a condição
humana e a violência neles formavam um retrato que não havia sido proposto para a
sociedade brasileira, desde então.
A partir dessa constatação, passamos a perceber que essa estética de misérias e
violências incomodava-nos, causava-nos um desconforto, devido, inconscientemente, à
associação com certas imagens presenciadas durante nossa infância, enquanto ex-
moradores, de uma cidade como São Paulo, na década de 1970.
Naquela época, sem compreendermos o porquê de tais fenômenos, percebíamos
quando passeávamos por certas regiões empobrecidas da cidade, a proliferação de favelas
em contraste com as modernizações urbanas, que é claro, não tomávamos como
modernizações, mas como algo que destoava da miséria que havíamos percebido. E, por
isso, pensávamos como seria a vida daquelas pessoas que ali viviam na pobreza absoluta.
Assim, como leitores reflexivos, víamos, por meio de nossas lembranças, que a
proposição daquele retrato diferenciado de Rubem Fonseca, na verdade, possuía uma
função social - a de simbolizar algo que estava acontecendo: a representação da condição
de vida daqueles que, em nossa infância, tentavámos imaginar em meio às misérias, mas
não tínhamos condições de nos aproximar em termos de entendimento, pois não
percebíamos que a essa situação deveriam ser acrescidos outros problemas: como o da
opressão e brutalização do indivíduo numa tal sociedade repleta de violências.
A partir dessa vivência, e de nossa formação acadêmica, neste trabalho,
procuraremos mostrar que a obra de Rubem Fonseca contém o retrato de uma violência
diferenciada das obras literárias escritas até, então, no Brasil, pois enquanto marco da
literatura brasileira
1
, a obra desse escritor revela os primórdios de uma violência que
pulveriza-se em nossa sociedade nos dias de hoje, devido ao aumento das contradições
sociais, sobretudo, nos grandes centros urbanos do Brasil, a partir da década de 1970.
Assim, diante dessa percepção, empreender um estudo da representação da
violência na obra e suas ligações com a cidade do Rio de Janeiro na década de 1970,
coloca-se como o objetivo maior deste trabalho.
Contudo, frente a uma obra tão vasta, nossa pesquisa centraliza-se sobre a análise da
violência em um livro: Feliz Ano Novo de 1975, e, particularmente, no conto que lhe
originou o nome.
A escolha de Feliz Ano Novo” nos chama a atenção por revelar uma história
brutal, em que marginais invadem uma mansão num bairro nobre do Rio de Janeiro,
durante um réveillon, assaltam e assassinam algumas pessoas ricas de forma implacável.
A partir daí, nosso trabalho, analisa e demonstra a representação da violência do
Rio de Janeiro na década de 1970, contida em Feliz Ano Novo”, a partir de referenciais
teórico-metodológicos que nos proporcionaram ferramentas de análise capazes de jogar
algumas luzes para o entendimento de nosso objeto de estudo.
Resulta disso o fato de que, estando nosso estudo dentro do debate das relações
entre história e literatura, realizado por estudiosos como Roger Chartier, Sidney Chaloub,
Sandra Jatahy Pesavento, Nicolau Sevcenko, Lígia Chiappini, entre outros, a leitura desses
autores e a compreensão e apreensão de alguns dos seus conceitos
2
possibilitaram a
construção de um modelo de análise que, baseando-se no objeto, pudesse levar-nos à
revelação da representação da violência contida nesse mesmo objeto.
1
De acordo com a crítica literária de jornais e revistas da década de 1960 e até meados da década de 1970,
perceberemos que Rubem Fonseca passou a ser considerado um escritor que em seus livros desde Os
Prisioneiros de 1963, até Feliz Ano Novo de 1975, tratou da questão da condição humana de uma forma até,
então, o realizada. Ou seja, foi capaz, por meio de sua literatura, de apreender os dilemas do homem
contemporâneo atormentado e massificado por uma sociedade opressora. Mas não bastasse essa originalidade,
Alfredo Bosi, em 1975, foi o primeiro estudioso que se debruçou sobre a obra e a qualificou como
inauguradora de uma estética brutalista.
2
O conceito de representação em Roger Chartier, principalmente em seu livro A História Cultural: entre
práticas e representações; os conceitos que giram em torno dos “efeitos do real na ficção”, em artigo de
Sandra Jatahy Pesavento intitulado Fronteiras da Ficção; Diálogos da História com a Literatura”; os estudos
da análise do discurso figurativo de Sthephen Bann em seu livro As Invenções da História; a questão da
literatura e de sua função social em Nicolau Sevcenko através de sua obra Literatura como Missão; a
problemática do “fingimento” do autor na ficção, em artigo de Lígia Chiappini “Relações entre História e
Literatura no contexto das humanidades hoje: perplexidades”; bem como as apreensões das imagens da
História do Brasil realizada pelo livro A História Contada: capítulos de História Social da Literatura no Brasil
organizado por Sidney Chaloub, foram fundamentais para nossa análise da violência na obra.
Dessa forma, podemos dizer que a obra de Antônio Cândido, Literatura e
Sociedade, fornece-nos um referencial teórico-metodológico que nos ajudará na
estruturação analítica que perpassará os capítulos, de modo a expormos o entendimento de
um processo de internalização dos fatores da violência social externos à obra
3
.
Essa abordagem não permitirá com que integremos o conceito de representação
em Roger Chartier, como também o ampliemos
4
.
Dentro dessa ótica teórico-metodológica, mostraremos que a partir do discurso do
artista Rubem Fonseca, definiremos tanto a configuração de seu papel social, bem como
seu posicionamento político-ideológico enquanto escritor na década de 1970, por meio
tanto da crítica literária que o recepcionou, como a partir da conceituação da violência que
utiliza para compor os seus quadros fictícios.
As noções de autor como uma (...) individualidade empírica responsável, como
causa criadora (...) de um objeto estético, bem como, nome próprio de um cidadão, que
possui uma identidade civil profissional
5
, alternam-se, às vezes, de forma curiosa em
Rubem Fonseca.
Como autor, que é causa criadora de um objeto estético, Rubem Fonseca assinou a
inauguração de uma nova corrente na literatura brasileira contemporânea que ficou
conhecida, em 1975, como brutalista. Essa designação criaria efeitos de sentido entre o
autor e suas outras obras desse momento em diante
6
.
Ainda, como autor-criador teve, em 1976, seu livro Feliz Ano Novo censurado pela
ditadura.
Já, como cidadão, para alguns críticos o fato de Rubem Fonseca ter atuado como
advogado, aprendido medicina legal, bem como ter sido comissário de polícia, nos anos de
3
CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade: Estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1967, p. 07.
4
O conceito de representação, segundo Chartier tem a vantagem, em relação ao de mentalidades, de permitir
designar e ligar três realidades maiores: (...) , primeiro as representações coletivas que incorporam nos
indivíduos as divisões do mundo social e estruturam os esquemas de percepção e de apreciação a partir dos
quais estes classificam, julgam e agem; em seguida as formas de exibição do ser social ou do poder político
tais como as revelam signos e “performances” simbólicas através da imagem, do rito ou daquilo que Weber
chamava de “estilização da vida”; finalmente a “presentificação” em um representante (individual ou
coletivo), (concreto ou abstrato) de uma identidade ou de um poder, dotado assim de continuidade e
estabilidade. CHARTIER, Roger. A História Hoje: vidas e propostas. In: Revista Estudos Históricos. Rio
de Janeiro: CPDOC, v.7, nº 13, 1994, p.106.
5
HANSEN, João Adolfo. Autor. In: JOBIN, José Luís. (Org.). Palavras da Crítica: tendências e conceitos no
estudo da literatura. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1992, p.11.
6
Vários seriam os críticos que assim designaram a literatura do autor, como mostraremos.
1950, no subúrbio do Rio de Janeiro, teria contribuído decisivamente para o escritor
compor histórias do submundo dentro de uma linguagem direta com elementos de
oralidade
7
.
De outro lado, Rubem Fonseca, ao deixar a polícia e ter se transformado em
professor de Administração de Empresas na FGV na cidade do Rio de Janeiro, e
posteriormente executivo da empresa Light, durante a década de 1960, e um pouco mais
tarde, participar ativamente do movimento que culminou com o golpe de 1964
8
, parece nos
revelar enquanto homem de ação e ativista político, uma crença do cidadão Rubem Fonseca
em certos valores capitalistas, como por exemplo, o individualismo que se realiza no valor
da liberdade. O mesmo individualismo, que segundo alguns críticos, marca a condição
existencial de muitos personagens de suas histórias violentas
9
.
Como contista e romancista, Rubem Fonseca utiliza-se de uma maneira de narrar
onde destacam-se em suas histórias fictícias personagens que são ao mesmo tempo
narradores como é o caso de “Feliz ano Novo”.
Assim, no capítulo 1, demonstraremos como o livro Feliz Ano Novo, ao ter sido
censurado em 1976 a partir de contos como “Feliz Ano Novo” - foi alçado à condição de
símbolo da resistência democrática por setores liberais, que, a partir da obra, passaram não
a denunciar os desmandos da ditadura, como também o modelo econômico adotado
pelos militares que, àquela altura, havia produzido um ambiente de misérias e violências
contrastante com o Brasil das décadas anteriores.
No capítulo 2, trabalharemos a crítica de jornais e revistas desde a década de 1960
até os anos de 1980, demonstrando que essa mesma crítica, ao colocar-se, de uma maneira
geral, favorável à estética da violência do autor, legitimou essa imagem como um elemento
estruturador interno à obra.
7
CARVALHO, Mário C. A verdadeira história de Rubem Fonseca. Folha de S. Paulo, São Paulo, 25 jun.
1995.
8
Rubem Fonseca foi membro da estrutura formal de autoridade do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais
(IPES) do Rio de Janeiro, que possuía claros interesses de conspiração político-militar, enquanto uma
instituição que representava os interesses de parte dos grupos sociais dominantes no Brasil e das
multinacionais contrárias à política econômica e social do governo de João Goulart DREIFUSS, René
Armand. 1964: A conquista do Estado. Ação política, poder, e golpe de classe. Petrópolis: Editora Vozes,
1981, p. 173.
9
RODRIGUES, Nina Rosa da Penha. A construção da significação nos contos de Rubem Fonseca. Tese de
doutoramento, FFLCH-USP, 1980, p. 09, 109, 110 e XVII.
Esse posicionamento favorável da crítica, caso nos ajude a construir uma
representação coletiva, por outro lado, poderá fazer-nos enxergar, a partir da crítica
acadêmica que essa representação da violência foi, muitas vezes, construída a partir de uma
linguagem de não engajamento político por parte do autor, ao mesmo tempo, que foi
influenciada por imagens importadas do cinema noir e do romance policial norte-
americano
10
.
no terceiro e último capítulo, mostraremos que Rubem Fonseca juntamente com
um grupo de escritores contemporâneos construíram imagens de uma violência interpessoal
diferenciada dos pobres contra ricos, o que cria a hipótese de que esse grupo poderia
retratar uma violência a partir do final dos anos de 1950, ainda não realizada por outros
grupos de escritores anteriores. O retrato da violência desenhado por esse grupo passou a
ter como simbologia maior a raiva dos pobres contra os ricos, ambientada em uma
sociedade de massas, que permite aos menos privilegiados e miseráveis uma oportunidade
de se vingar dos ricos e, muitas vezes, saírem sem punição pelos seus atos violentos:
roubos, assassinatos, tortura.
Sem desconsiderarmos o papel que a crítica possuiu na composição estética desse
grupo, e centrando a discussão diretamente sobre a representação da violência social desse
grupo, tornar-se-á mais preciso para nós definirmos, a partir de Michel Maffesoli, o
conceito de violência utilizado por Rubem Fonseca em “Feliz Ano Novo”. Assim como,
também à luz da discussão teórica sobre a violência de autores como Eric Hobsbawn,
Hanna Arendt, Norbert Elias e Alba Zaluar.
Com Michel Maffesoli, nossa discussão sobre o conceito de violência caminhará
para a percepção de que não se tratará de definir “Feliz Ano Novo”, como a representação
do início de um processo que marcaria um aumento da violência sócial, a partir dos anos
1970, mas sim definir se estamos diante da representação de uma nova violência social.
Dessa forma, será a partir de Michel Maffesoli que se poderá discutir a literatura de
Rubem Fonseca como uma representação histórica que contém a revelação de um novo tipo
de violência ligada aos nossos dias, e que para entendê-la será preciso não somente analisar
10
Essas imagens importadas poderão ser notadas por meio da presença de alguns pastiches tanto do cinema,
como da literatura norte-americana, no capítulo 2.
a miséria da sociedade carioca, mas também a realização de uma análise de complexos
arranjos de fatores sociais que mostraremos, capazes de contribuir para sua existência
11
.
Assim, para a discussão e entendimento desses complexos arranjos que comporão as
imagens desse fenômeno contemporâneo da violência interpessoal dos pobres contra os
ricos, será necessário remetermo-nos ao artigo de Alba Zaluar “Para não dizer que não falei
de samba”
12
.
A partir desse artigo, mostraremos segundo a autora, que os fatores sociais que
concorrem para a violência representada no conto que ora analisamos, girarão em torno dos
problemas ligados a uma sociedade de massas que passou a existir no Brasil, a partir dos
anos 1960, na qual indivíduos libertados das prescrições familiares por uma sociedade que
passou a exigir cada vez mais da individualidade e não da coletividade, inseriu-os num
mercado em que podem conquistar essa mesma individualidade através de um
consumismo de estilo
13
.
Ora, numa sociedade de contradições sociais, como a brasileira nos anos de 1960,
sobretudo após o golpe de 1964, só uma minoria pôde dar-se ao luxo de um consumismo de
estilo, sendo a maioria alijada de tal processo. Assim, ainda de acordo com a autora, não
podendo a maioria definir-se em suas individualidades através desse tipo de consumo, a
falta de uma base familiar e educacional levaria muitos indivíduos a buscarem esse
consumo de estilo por meio do roubo e da violência contra aqueles que possuíam tal
condição.
Com relação a Hanna Arendt, a discussão de seu conceito de violência na sociedade
ocidental, a partir dos anos de 1960, ajudar-nos-á a perceber que será justamente a partir de
um sentimento de impotência frente às condições sociais determinadas pelas classes
privilegiadas, bem como o peso de sua hipocrisia e desprezo, que muitos indivíduos
11
ZALUAR, Alba. ZALUAR, Alba. Para o dizer que o falei de samba: os enigmas da violência no
Brasil. In: Schwarcz, Lílian. (Org.) História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras:
1997, p. 252.
12
Idem, 1997, p. 254 a 318.
13
O conceito de “consumo de estilo” está diretamente relacionado à idéia da formação de uma identidade dos
indivíduos numa sociedade de massas a partir da aquisição de certos produtos de marcas famosas produzidas
pelo capitalismo, sobretudo, a partir dos anos de 1970, no Brasil. Ibidem, p. 255. ARRUDA, Maria Arminda
do Nascimento. A embalagem do sistema: A publicidade no capitalismo brasileiro. São Paulo: Livraria Duas
Cidades,1985, p.189.
apreendidos dentro dos subjetivismos criados por uma sociedade de massas buscarão um
consumo de estilo por meio de uma violência extrema
14
.
Eric Hobsbawn completará nossa análise do conceito da violência utilizada por
Rubem Fonseca, ao considerar que em uma sociedade cujos indivíduos, cada vez mais,
portam armas no pós-guerra
15
- inclusive os de classes menos privilegiadas - a tentação de
se buscar, por meio das armas um reconhecimento social, no mundo ocidental, é muito
grande. Essa discussão de Hobsbawn proporcionará respostas para se entender o fenômeno
da violência cada vez mais presente entre bandidos que, desde jovens, sentem, por meio das
armas a aspiração de um poder de transformação e ascensão social que, de outra maneira,
não poderiam atingir na sociedade.
Eric Hobsbawn vê, nesse processo, um retrocesso dentro da contemporaneidade do
projeto civilizacional iluminista.
Ainda no terceiro capítulo, definiremos a representação propriamente dita de “Feliz
Ano Novo” em termos de seus personagens, enredo e tema, enquanto representações do
crime organizado carioca.
Por meio das discussões proporcionadas, com base no conceito de representação de
Roger Chartier, espera-se demonstrar como o conto do autor, enquanto uma representação
histórica, contém a internalização do sentido da violência social carioca, a partir da década
de 1970.
As discussões sobre a literatura ficcional propostas por Sandra Jatahí Pesavento,
ajudar-nos-ão a analisar como os personagens bandidos de Rubem Fonseca, em “Feliz Ano
Novo”, foram revestidos - de acordo com o conceito que o autor construiu da violência - de
aspectos que lhes garantiram verossimilhança em suas ações enquanto indivíduos que
fazem parte de um submundo do crime. Ou seja, como o autor cercou-os de certas
“garantias de um real social”
16
.
14
HANNAH, Arendt. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 49.
15
HOBSBAWN, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 269.
16
Nicola Abagnanno define o termo verossímil da seguinte forma: (...) 1. O que é semelhante à verdade, sem
ter a pretensão de ser verdadeiro ( no sentido, por ex. de apresentar um fato ou um conjunto de fatos).
Portanto um conto, p. ex., um romance ou uma tragédia, pode ser V. sem ser minimamente provável, sem que
exista alguma probabilidade de que os fatos mencionados se verificaram ou se verifiquem. Nesse sentido o
conceito do V. foi empregado constantemente no domínio da estética de Aristóteles em diante. ( ) Nesse
sentido o V. é o caráter de enunciados, teorias e expressões que não contradizem as regras da possibilidade
lógica ou das possibilidades técnicas ou humanas. Um acontecimento humano imaginado é V. se êste é
julgado conforme ao comportamento comum dos homens ou encontra explicações ou apoio neste
Para tanto, confrontaremos a literatura especializada sobre a violência social da
cidade a partir dos anos 1960 - mais especificamente pós golpe de 1964 com a
representação da violência no conto, para percebermos como os bandidos de “Feliz Ano
Novo” constituíram-se como desvios construídos à maneira do autor, dentro da
normalidade do banditismo carioca da década de 1970.
Dessa forma, a utilização de uma literatura acadêmica a respeito da violência na
cidade será necessária, e autores como Alba Zaluar e José Louzeiro contribuirão para
estabelecermos a face humana da representação que ora estudamos.
comportamento. ABAGNANNO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Rio de Janeiro: Mestre Jou, 1967, p. 962.
Como mostraremos, o comportamento dos bandidos de “Feliz Ano Novo” encontra possibilidade no
comportamento comum de muitos indivíduos violentos em nossa sociedade contemporânea. E com relação a
essa capacidade dos ficcionistas como Rubem Fonseca e dos poetas de criar verossimilhança em suas obras,
Aristóteles, assim se referiu: Pelo que atrás fica dito, é evidente que não compete ao poeta narrar exatamente
o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou a
necessidade. E sobre a verossimilhança na tragédia assim se expressou: (...) Como se trata, não de imitar
uma ação em seu conjunto, mas também fatos capazes de excitarem o terror e a compaixão, e estas emoções
nascem principalmente,...(e mais ainda) quando os fatos se encadeiam contra nossa expectativa.
ARISTÓTELES. Arte e retórica e arte e poética. Rio de Janeiro: Ed. Ouro, s/d. Como mostraremos Rubem
Fonseca exercita essas características em sua trágica história de revéillon.
Capítulo 1
Feliz Ano Novo: Símbolo da luta democrática e de denúncia das
contradições sociais brasileiras.
1.1 - Crise econômica, censura e repressão
A partir de meados da década de 1970, as lutas pelas liberdades democráticas tanto
por parte dos jornalistas da grande imprensa
17
como dos jornalistas da imprensa
alternativa
18
- que sofriam censuras por suas posturas contrárias ao ambiente de restrição
às liberdades democráticas - ganharam novo fôlego quando passaram a denunciar, através
de suas críticas, o modelo de desenvolvimento econômico adotado pelos militares e as
mazelas sociais produzidas pelo mesmo.
Vivia-se um momento de desestabilização da ditadura militar devido aos seus
percalços políticos, o que fez com que o estado-maior militar começasse a articular um
processo de abertura política impulsionado através da grande imprensa.
O aumento brutal dos preços internacionais do petróleo, no final de 1973, que
abalou a economia e passou a colocar em xeque o estilo de vida da récem-formada classe
média, além de derrubar as taxas de crescimento econômico que se mantinham altas desde
1968, veio para colocar fim ao chamado ciclo do “milagre econômico”.
Mesmo assim, em dezembro de 1974, o governo Geisel trouxe a público o Segundo
Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), que visava a um planejamento da economia
17
Segundo Bernardo Kucinski, seria após a morte do jornalista Wladimir Herzog, em dezembro de 1975, que
a grande imprensa passaria a ser menos complacente com a política de distensão dos militares, pois até então:
Acomodada, a maior parte da grande imprensa não avaliou a escala da crise. Com exceção da revista
VISÃO, de A GAZETA MERCANTIL, e de algum veículo regional, como FOLHA DA MANHÃ, de Porto
Alegre, a grande imprensa havia perdido o senso crítico. KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e
Revolucionários: Nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Editora gina Aberta Ltda, 1991, p.55 a
60.
18
Foram, sobretudo, os jornais alternativos, a partir do governo Geisel,
que juntamente às questões de cunho
político, criticavam as condições sociais, econômicas, educacionais, culturais e de política internacional,
como era o caso do jornal O MOVIMENTO. AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa e Estado.
(1968-1978): O exercício cotidiano da dominação e da resistência: O Estado de São Paulo e Movimento.
Bauru: EDUSC, 1999, p. 240.
entre os anos de 1975 a 1979, e, novamente, a despeito da crise internacional, pregou-se
(...) a manutenção do crescimento acelerado dentro dos mesmos rumos anteriormente
divulgados (...)
19
.
Porém, a novidade, a partir daí, foi que esse plano apresentou um reconhecimento,
por parte dos donos do poder dos resultados dos planos anteriores adotados pelos militares,
em relação às condições da pobreza e da miséria no Brasil:
(...) É alarmante, ( ), neste Plano a menção aos “focos de pobreza
absoluta existentes, principalmente na região semi-árida do Nordeste e
na periferia dos grandes centros urbanos”. Afinal, depois de propalados
êxitos registrados nos documentos oficiais e nos veículos de
comunicação de massa, depois da exaltação do “Brasil como potência
emergente”, alega-se a presença de “focos de pobreza absoluta”,
passados mais de 10 anos do Movimento de 1964
20
.
A queda do Produto Interno Bruto brasileiro fez com que surgisse uma exposição
ainda mais profunda das condições de miséria de uma grande parte da população, no
momento em que a economia não estava mais crescendo, e o modelo adotado revelou-se
concentrador de renda.
Segundo Bernardo Kucinski:
(...) O milagre havia provocado o maior êxodo da história do Brasil,
inchando as regiões metropolitanas. Agravaram-se as condições de
moradia e de transporte. Proliferaram as favelas e explodiram
epidemias. Primeiro, a poliomelite, matando entre 16 mil e 31 mil
crianças em 1971. Depois a epidemia de meningite, que somente em
1974 matou 2.900 crianças, a maioria em São Paulo
21
.
Nesse ambiente de degradação econômica, apesar do governo Geisel ter anunciado
um projeto de “distensão” lento e gradual para o restabelecimento das liberdades
democráticas
22
, na verdade, o que se presenciou, por vários setores sociais que combatiam a
ditadura, foi um certo recrudescimento da censura.
19
VIEIRA, Evaldo. Estado e Miséria Social no Brasil: de Getúlio a Geisel. São Paulo: Cortez Editora, 1983,
p. 206-207.
20
Idem, 1983, p. 206-207.
21
KUCINSKI, op. cit., p. 56.
22
Segundo Bernardo Kucinski: Entre fechar mais o regime, ampliando a dimensão política da crise e
socializar as responsabilidades, a facção “castelista” dominante na cúpula militar, optou pelo segundo
caminho. Nascia, assim, a proposta de distensão política do general Geisel e de seu braço direito, o general
Não passaram a ser censurados previamente os jornais e revistas críticos do
modelo econômico, mas também, no caso da literatura
23
, a representação de aspectos
estéticos
24
que, de alguma forma, nos livros, estivesse aliada a toda uma conjuntura de
misérias, violências e contradições que esse modelo foi capaz de produzir desde 1964.
25
Assim, às lutas da imprensa alternativa e suas denúncias juntou-se uma nova
literatura que passou a representar, através de sua escrita, esse momento de crise social e
econômica dos anos de 1970, com uma estética renovada e muito incômoda aos donos do
poder na época
26
.
Golbery do Couto e Silva, um dos articuladores do golpe de 1964 e criador do Sistema Nacional de
Informações (SNI). Isso teve a ver com uma saída gradual e controlada do regime autoritário, que levaria a
médio prazo a quebra do monopólio da oposição pelo MDB e, dessa forma, o gradativo abrandamento dos
controles sobre as atividades políticas com a permissão da participação de outras oposições de esquerda e o
fim da censura prévia que se abateu sobre os meios de comunicação. A longo prazo haveria a substituição da
coerção física e a adoção de mecanismos de dominação ideológica, que seria necessária para o controle da
oposição de massa. Ibidem, 1991, p. 57.
23
De acordo com Maria Aparecida de Aquino: (...) Não estava prevista nos planos de uma distensão
‘consentida’ a participação de setores da sociedade que contribuíssem para o redimensionamento do projeto
dos militares. Assim, essa autora, ao analisar as formas das censuras impostas, chegou à conclusão de que um
dos objetivos da censura prévia que se abateu em jornais alternativos como O MOVIMENTO - que criticavam
afora as questões políticas da falta de liberdade no período, também o modelo de desenvolvimento dos
militares como falamos anteriormente - era o de (...) ocultar ao público leitor, através da permissão apenas
da difusão de um discurso harmônico de um lado e igualitário de outro, parte do que se dava no âmbito da
produção das condições materiais de existência: a violência das contradições entre os interesses de camadas
antagônicas e a opção por objetivos minoritários geradores de desigualdades e injustiças sociais. Assim se
disseminam interesses particulares, como se representassem objetivos de todo o corpo social. Podemos
deduzir, também, que um dos objetivos de se proibir a circulação de livros indesejáveis ao poder estabelecido,
era o de censurar todos os discursos desarmoniosos aos interesses da minoria dominante. AQUINO, op. cit.,
p.240 a 243. Isso asseguraria, como já dissemos, gradativamente para o Estado autoritário a substituição a
longo prazo da coerção física, eficaz apenas no combate a pequenos grupos, pela dominação ideológica,
necessária ao controle da oposição de massa..KUCISNKI, op. cit., p.57.
24
Maria Luiza Tucci Carneiro aponta que, durante os anos de 1964 a 1980, as obras dos intelectuais de
esquerda foram as mais visadas e apreendidas como (...) provas do crime de subversão. Porém, a idéia de uma
revolução cultural juntamente com uma revolução armada sempre esteve presente nas preocupações das
autoridades que viam no intelectual e no profissional de imprensa cidadãos perigosos. no governo Geisel
foram censurados, sob o comando de seu ministro da justiça, mais de 500 livros. CARNEIRO, Maria Luíza
Tucci. Livros Proibidos, Idéias Malditas: O DEOPS e as Minorias Silenciadas. São Paulo: Estação Liberdade:
Arquivo do Estado/SEC, 1997, p.82 a 86.
25
Esse modelo, a partir da crise do petróleo, lentamente caminhou para o seu colapso no final da década de
1970 e década de 1980.
26
Entre os escritores e livros que foram censurados estavam: Ignácio de Loyola Brandão com o seu Zero;
José Louzeiro com Aracelli Meu Amor; Renato Tapajós e o seu Câmera Lenta e o próprio Feliz ano Novo de
Rubem Fonseca. SILVA, Deonísio da. Rubem Fonseca: Proibido e Consagrado. Rio de Janeiro: Relume
Dumará: Prefeitura, 1996, p.34. Mas obviamente, juntando-se à literatura, muitas obras teatrais foram
censuradas e entre essas a peça Rasga Coração de Oduvaldo Vianna Filho o “Vianinha”. Rosangela Patriota,
num estudo aprofundado sobre essa obra, ajudou-nos a perceber que o medo dos militares com relação a uma
revolução cultural, como disse Maria Luíza Tucci Carneiro, não era infundado, pois mesmo censuradas,
algumas obras tornaram-se símbolos da resistência democrática contra a ditadura, como foi o caso provado
por Rosangela Patriota da peça Rasga Coração de Vianinha, e é o que mostraremos neste capítulo com
E foi nesse ambiente repressivo, norteado pelo projeto de distensão do governo de
Geisel, que a obra de Rubem Fonseca Feliz Ano Novo foi censurada, em 1976, por seu
ministro da Justiça Armando Falcão
27
.
Um dos motivos principais para a condenação, a partir da análise de algumas
narrativas curtas como o conto “Feliz Ano Novo”, foi o argumento de que o livro era
pornográfico e fazia apologia da violência.
Dentro dessa conjuntura, na grande imprensa liberal
28
, algumas obras literárias
passaram a ser simbolicamente alçadas como verdadeiras bandeiras de luta contra o
autoritarismo, ao mesmo tempo que eram consideradas pelos críticos que, nesses jornais, se
manifestaram obras que representavam o momento de crise de uma sociedade repleta de
injustiças. Entre essas, a partir de 1976, estava Feliz Ano Novo.
A recepção da obra Feliz Ano Novo, de uma maneira geral, foi compreendida pela
crítica dos jornais como uma legítima representação - principalmente a partir do conto
“Feliz Ano Novo” - de uma sociedade em transformação profunda que a tornava, em seu
conjunto, mais implacável e injusta. Por trás da recepção desses críticos, pudemos perceber
uma intenção de alçar a obra e o conto à condição de símbolos de luta de certos setores
liberais democráticos contra a ditadura militar e suas arbitrariedades
29
.
Vejamos como isso se deu.
relação a Feliz Ano Novo de Rubem Fonseca. PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: Um Dramaturgo no
Coração de Seu Tempo. São Paulo: HUCITEC, 1999, p.25 –26.
27
Segundo Tucci Carneiro, o ministro da Justiça de Geisel possuiu uma predileção em censurar obras que
revelassem temas vinculados à sexualidade. CARNEIRO, op. cit., p.86.
28
A imprensa liberal, que é designada por Maria Aparecida Aquino como convencional, organiza-se enquanto
uma empresa capitalista. Ao adotar e orientar-se pelos princípios do liberalismo, passa a pautar-se pela virtual
defesa da imparcialidade com relação à apuração dos fatos. Dessa forma, pretende ser um veículo que expõe
as mais variadas correntes dentro de uma suposta igualdade de voz a partir de seus órgãos de divulgação.
Sendo que as publicações são sustentadas principalmente por grandes anunciantes e, secundariamente, pela
venda em bancas e através de assinaturas. AQUINO, Maria Aparecida de. op. cit., p.122.
29
Segundo Heloísa Buarque de Hollanda, o recrudescimento da censura e a eliminação sistemática do
discurso político direto acabaram por provocar uma imigração estratégica da contestação política para a
produção cultural. (...) Ou seja, a impossibilidade de mobilização e debate político aberto transfere para as
manifestações culturais o lugar privilegiado da “resistência”. HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões
de Viagem: CPC, Vanguarda e Desbunde: 1960/1970.São Paulo: Editora Brasiliense, 1981, p. 92.
1.2 - Feliz Ano Novo: censurada em 1976
Para estabelecermos um diálogo sobre a construção da obra por aqueles que a
censuraram e pelos que se posicionaram contra a censura, foi de fundamental importância o
livro do crítico literário e romancista Deonísio da Silva Rubem Fonseca: Proibido e
Consagrado.
Nessa obra, em que reuniu seus estudos sobre a obra de Rubem Fonseca, o autor,
em uma análise profunda do discurso do grupo pró e contra a censura, discutiu os reais
motivos que levaram Feliz Ano Novo a ser censurada.
Sob o olhar competente do crítico literário, o livro ajudou-nos a perceber, com o
olhar de historiador da cultura, as simbologias constituintes da obra, a partir dos
depoimentos analisados por Deonísio da Silva
30
.
1.2.1 - Feliz Ano Novo: símbolo da pornografia e da violência
A partir dos depoimentos colhidos em janeiro de 1977, por Deonísio da Silva e
ajudados por sua análise crítica dos argumentos, pudemos perceber que o grupo a favor da
censura
31
condenou a obra, primeiramente, como pornográfica e num momento posterior
(1980) como realizando apologia da violência.
Esse grupo que defendeu, direta ou indiretamente, os interesses dos donos do poder
à época, contraditoriamente, não aceitou a representação de uma forma de manifestação
sexual e de uma violência que, culturalmente, passou a estar relacionada às condições
materiais de existência de uma sociedade que produzia cada vez mais contradições,
30
A grande maioria colhida em uma extensa matéria realizada pelo Jornal do Brasil, em 19 de janeiro de
1977, e sobre a qual esse autor construiu grande parte dos seus argumentos, em que, seu posicionamento foi o
de procurar desqualificar os motivos da censura imposta sobre Feliz Ano Novo. Silva, Deonísio da. Rubem
Fonseca: Proibido e Consagrado. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Prefeitura, 1996, p.19 a 28 e 122 e 129.
31
Faziam parte desse grupo: Armando Falcão (ministro da Justiça), Nertan Macedo (escritor e assessor do
ministro rio Henrique Simonsen), Dinarte Mariz (Senador), Bento Gabriel Costa Fontoura (Juiz Federal),
Sylvio Fiorêncio (procurador da República), entre outros.
desenvolvidas a partir de um modelo de desenvolvimento econômico adotado em 1964 e
imposto por uma minoria dominante a qual esses censores estiveram ligados.
O poeta Affonso Romano de Sant’Anna, em entrevista para a revista Veja em 1975,
de acordo com Deonísio da Silva, parecia antever, um ano antes, a condenação de Feliz Ano
Novo pelas autoridades que comandavam a censura:
(...) Uma leitura superficial desta obra poderia tachá-la de erótica e
pornográfica
32
.
Não ocorreu outra possibilidade.
Em 15 de dezembro de 1976, o ministro da Justiça Armando Falcão, através de um
despacho, censurou Feliz Ano Novo depois de 30.000 exemplares vendidos e na lista dos
dez mais vendidos da revista Veja:
Nos termos do parágrafo 80 do artigo 153 da Constituição Federal e
artigo do Decreto-Lei 1.007, de 26 de janeiro de 1970, proíbo a
publicação e circulação, em todo o território nacional, do livro
intitulado Feliz Ano Novo, de autoria de Rubem Fonseca, publicado pela
Editora Artenova S.A., Rio de Janeiro, bem como determino a apreensão
de todos os seus exemplares expostos à venda, por exteriorizarem
matéria contrária à moral e aos bons costumes. Comunique-se ao DPF
33
.
Após o escritor ser uma quase unanimidade perante a crítica, suas obras, a partir de
Feliz Ano Novo, ganharam uma nova recepção por parte dos censores do regime, sendo
esses muitas vezes juízes, escritores, promotores, deputados.
Apesar de ter havido uma unanimidade na condenação da censura ao livro de
Rubem Fonseca por parte de intelectuais, escritores, jornalistas entre outros, ocorreram
algumas exceções como a do escritor Nertan Macedo assessor do ministro Mário
Henrique Simonsen que, em declaração ao Jornal do Brasil em 19 de janeiro de 1977,
demonstrou estar bem alinhado com o governo da ditadura dentro de sua posição
conservadora:
Nós ignoramos este assunto, esta literatura; não estamos aqui para fazer
publicidade de autores idiotas
34
.
32
SILVA, op. cit., 1996, p.19.
33
Ibidem
, p. 19 -20.
34
Ibidem,
p. 20.
Outros, porém, incomodaram-se por motivos diferentes, como o Senador Dinarte
Mariz do Rio Grande do Norte:
(...) O que li me espantou, me causou arrepios. É pornografia de
baixíssimo nível, que não se hoje nem nos recantos mais atrasados do
país
35
.
Mas, a despeito dos aspectos pornográficos utilizados para a condenação da obra, a
censura, a partir do ponto de vista sobre a apologia da violência, passou a prevalecer como
argumento da censura sobretudo com base no conto “Feliz Ano Novo”, embora outros
como “Passeio Noturno(Parte 1) e (Parte 2), “Nau Catrineta”, entre tantos, estivessem na
mira dos censores.
Tal fato ocorreu em 1980 - numa época em que a abertura estava em curso -
quando o juiz da 1ª Vara Federal Bento Gabriel Costa Fontoura julgou improcedente a ação
indenizatória movida pelos defensores de Rubem Fonseca, e aditou uma outra condenação
extrapolando sua competência específica e passando a condenar a obra pelo que ele
enxergava nela em termos de apologia da violência.
Disse o juiz:
No mundo destes autos, falou-se bastante sobre o erotismo e olvidou-se o
conteúdo. Nem o erotismo nem a linguagem empregada, por si só,
justificariam o veto censório. O grave está no modo pelo qual se tratou
da violência.
Ainda:
(...) como se verifica pelo texto dos cinco contos escorçados nesta
sentença, subsiste um denominador comum consistente na inusitada
violência contra a pessoa humana, aureolada por uma sugestão de
impunidade. ( ) Realmente, tanto os três marginais do primeiro conto
como todos os criminosos grã-finos dos outros quatro contos aparecem
como heróis absolutos e as suas reprocháveis atitudes aparecem como se
socialmente louváveis, dissimuladamente travestidas de atos
meritórios
36
.
35
Ibidem
, p. 20.
36
Ibidem,
p. 24-25.
A impunidade dos personagens do conto “Feliz Ano Novo” passou a ser, então, a
preocupação do juiz, muito mais que a linguagem obscena empregada para a construção das
histórias.
O procurador da República Sylvio Fiorêncio, corroborando o posicionamento do
juiz à época, deu - numa indicação de que visou a criticar, ao que tudo indica, os
personagens violentos impunes do conto “Feliz Ano Novo” - a seguinte declaração:
(...) Dir-se-á tratar-se de comportamento ou conversa de subgente, tipos
patológicos que o ilustre Autor apenas grafou. E daí? Haverá
necessidade de dar foros de gente a quem não o é?
37
Dessa forma, muito mais passou a ser a suposta representação da apologia que a
obra fazia da violência o motivo da condenação do livro, que os motivos acerca dos
elementos pornográficos, numa época em que ela deveria estar liberada. A verificação
desse posicionamento pode ser percebida pela leitura da sentença.
Vejamos as palavras do juiz:
(...) personagens portadores de complexos, vícios e taras, com o objetivo
de enfocar a face obscura da sociedade na prática de vários delitos, sem
qualquer referências a sanções, fazendo o escritor largo emprego da
linguagem pornográfica
38
.
Os aspectos violentos condenaram, mas a utilização de uma linguagem popular
recheada de gírias para dar mais verossimilhança à condição humana de seus personagens,
também, concorreu para a censura
39
à obra Feliz Ano Novo.
37
Ibidem,
p.27.
38
Ibidem,
p.122.
39
Uma das passagens que mais incomodou o juiz, foi provavelmente esse trecho de “Feliz Ano Novo”:
Depois de amanhã vocês vão ver.Vão ver o quê?, perguntou Zequinha. esperando o Lambreta chegar
de o Paulo. Porra, tu transando com o Lambreta?, disse Zequinha. As ferramentas dele o todas aqui.
Aqui?, disse Zequinha. Você louco. Eu ri. Quais são os ferros que votem?, perguntou Zequinha. Uma
Thompsom lata de goiabada, uma carabina doze, de cano serrado, e duas Magnum. Puta que pariu, disse
Zequinha. E vocês montados nessa baba tão aqui tocando punheta? ( ) Posso ver o material? , disse
Zequinha. ( ) Abri o pacote. Armei primeiro a lata de goiabada e dei pro Zequinha segurar. Me amarro
nessa máquina, tarratátátátá!, disse o Zequinha.. É antigo mas não falha, eu disse. Zequinha pegou a
Magnum. Jóia, jóia, ele disse. Depois segurou a doze, colocou a culatra no ombro e disse: ainda dou um tiro
com esta belezinha nos peitos de um tira, bem de perto, sabe como é, pra jogar o puto de
costas na parede
e deixar ele pregado lá. FONSECA, Rubem. In: SCHNAIDERMAN, Boris. (Org.). Rubem Fonseca/Contos
reunidos. São Paulo: Companhia das letras, 1998, p. 367.
O juiz, então, demorou-se no relato detalhado de cinco contos, destacando os pontos
negativos a ser condenados. Vejamos como esse posicionamento ajudou-nos a entender
como a censura foi construindo o argumento de que, pelo menos, parte da obra era
apologista da violência, utilizando-se um enredo resumido do conto “Feliz Ano Novo”
realizado pelo juiz, em que ele deu grande importância ao desfecho da narrativa como valor
de significação do conto:
Para melhor apreciação da matéria, apresenta-se um resumo de cada
um dos contos mais significativos, dentre os quinze que integram a
coletânea:
Feliz Ano Novo: o conto que dá título ao livro. Na véspera do Ano Novo,
três assaltantes se reúnem no apartamento de um deles, onde fumam
maconha, bebem cachaça, imaginam assassinar policiais e acabam por
arquitetar um assalto a uma residência qualquer. Entrementes, um se
masturba. Munidos de armas de fogo, saem para a rua e furtam um
carro, no qual rumam para São Conrado. Escolhida a casa a ser
assaltada, interrompem a festa que ali se realizava e, sob a ameaça das
armas, obrigam os vinte e cinco circunstantes a se deitarem no chão,
amarrando-os. Iniciam o saque. No andar superior, um dos assaltantes
assassina a dona da casa, que se negara a manter relações sexuais com
ele. Uma mulher idosa acaba morrendo de susto. A seguir, outro
assaltante defeca sobre a cama, e os três voltam a se reunir no andar
térreo, onde passam a comer e a beber, enquanto fuzilam dois homens,
pelo prazer de ver seus corpos ficarem grudados na parede de madeira,
por força dos tiros. Ao final, uma garota é estuprada no sofá, não sem
antes receber murros no rosto. Eles se retiram, retornando ao
apartamento, após o que um abandona o automómovel em uma rua
deserta de Botafogo. Os diálogos estão prenhes de palavras de baixo
calão, tais como, v.g., fudidão, porra, boceta, xoxota, punheta, bronha,
puta, cu etc. Atente-se para o desfecho, in verbis:
‘Subimos. Coloquei as garrafas e as comidas em cima de uma toalha no
chão. Zequinha quis beber e eu não deixei. Vamos esperar o Pereba.
Quando o Pereba chegou, eu enchi os copos e disse , que o próximo ano
seja melhor. Feliz Ano Novo
40
.
De acordo com Deonísio da Silva, a alegação de que a obra fizesse apologia da
violência era vulnerável, pois para realizar a sentença, o juiz baseou-se num enredo que ele
próprio construiu, a partir de uma escolha conveniente de cinco contos de Feliz Ano Novo
considerados os mais apologistas da violência.
40
SILVA, op. cit., p.129.
O juiz construiu, na verdade, um resumo sobre o conto “Feliz Ano Novo”,
descontextualizando-o da realidade social de sua época, e de acordo com os seus interesses;
terminou-o assim de maneira a incriminar o conto enquanto apologista de uma violência
sem punição.
Para Deonísio da Silva, o enredo não podia apresentar de maneira alguma a
significação do que havia sido narrado, pois para esse autor, a construção do resumo
realizado pelo juiz e arrolado na sentença condenatória não considerando as regras mínimas
da análise crítico-literária, não passou de um amontoado de frases.
Como pudemos perceber, dentro de nossa exposição dos motivos da censura à obra
Feliz Ano Novo e, particularmente, ao conto “Feliz Ano Novo”, os argumentos mais
utilizados para as suas condenações em 1976, e após apelação do autor, em 1980, foram a
questão da pornografia, do palavreado vulgar, da violência e da impunidade dos
personagens violentos.
O posicionamento do grupo a favor da censura demonstrou que estiveram muito
afinados aos interesses da ditadura militar em impor uma distensão lenta e gradual dos
processos de repressão planejados por Geisel e Golberi, fazendo da trajetória de Feliz Ano
Novo um exemplo simbólico da intolerância com um discurso que não se adequava ao
projeto de distensão.
1.2.2 - Feliz Ano Novo: consagrado como um dos símbolos da luta democrática
através da representação de um Brasil miserável
Os motivos que levaram Feliz Ano Novo à proibição nos fizeram perceber como foi
sendo construída essa obra pelos que se posicionaram a favor do estado de censura
defendido pelos militares. Mas agora, vejamos como esse livro foi alçado a mbolo da
resistência democrática contra a ditadura.
A censura a Feliz Ano Novo em 1976, provocou um ganho de visibilidade
diferenciada para a obra de Rubem Fonseca, que veio reforçar a designação de brutalista
realizada, em 1975, por Alfredo Bosi sobre a literatura do autor.
Se, até meados da década de 1970, a obra era vista como representativa da condição
humana oprimida do homem contemporâneo
41
, diante da censura sobre Feliz Ano Novo, a
estética brutalista passou a encontrar seus fundamentos na sociedade, através de sua
recepção por um grupo de intelectuais que nela passaram a ver os aspectos da representação
social de uma violência sintomática das crises que o país passou a viver, a partir de meados
da década de 1970.
Essa recepção denunciou com relação àqueles que defenderam Feliz Ano Novo
contra a censura, a construção de um discurso em torno dessa obra, que culminou com a
elevação dela à categoria de mbolo de resistência de setores liberais que queriam a volta
da normalidade democrática.
Entre os intelectuais e escritores que defenderam a obra como expressão artística
legítima e representativa dos problemas sociais brasileiros, a partir de 1977, estavam, entre
outros, Afonso Arinos de Melo Franco, Gerardo Mello Mourão, Lygia Fagundes Telles,
Aliomar Baleeiro, Alfredo Lamy Filho, Josué Montello, Guilherme Figueiredo, lio
Pellegrino, Roberto da Matta, Bernardo Élis, Nelson Werneck Sodré
42
, e, juntamente com
esses, mais de mil outros intelectuais que assinaram um manifesto contra a decisão do
ministro da Justiça, na época.
Vejamos como foi construída a defesa de Feliz Ano Novo e os seus significados:
Afonso Arinos, à época, realizou a seguinte declaração sobre a função social de
Feliz Ano Novo:
41
Através do estudo da crítica literária dos anos de 1960 e 1970, pudemos perceber que anteriormente à
designação da literatura de Rubem Fonseca como contendo uma estética brutalista, os críticos, de uma
maneira geral, viram em sua obra uma estética da condição humana do homem contemporâneo, dentro de
uma sociedade de massas. Veremos isso no capítulo 2.
42
Apesar de dar espaço aos políticos e intelectuais favoráveis à censura do escritor, como vimos acima, ficou
evidente que essa grande reportagem no caderno B de o Jornal do Brasil, em janeiro de 1977, revelou o
posicionamento liberal desse diário a favor das liberdades democráticas, tanto pelo fato de dar mais espaço a
um mero maior de intelectuais que condenaram a censura, como também pelo que pudemos notar, pelo
conteúdo das declarações desses mesmos intelectuais que se colocaram plenamente a favor da liberalização e
democratização do regime. Corroborando a idéia de que o Jornal do Brasil estava seguindo um
posicionamento menos complacente com os mandos e desmandos da ditadura, o governo Geisel, depois de
superar algumas lutas intestinas com a linha dura dentro do aparelho militar - a partir da morte do jornalista
Wladimir Herzog, em 1975, e do operário Manuel Fiel Filho, em 1976 -, que culminou com a demissão do
ministro do exército Sílvio Frota, realizou nesse meio tempo cassações de mandatos, baixou o pacote de abril
de 1977, e realizou expurgos em alguns dos principais jornais como Folha de S. Paulo, O Estado de São
Paulo e o Jornal do Brasil. Neste, seu diretor Alberto Dines foi afastado. KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e
Revolucionários: Nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Editora Página Aberta Ltda, 1991, p.59.
(...) Sempre existiu tendência repressiva contra as obras de arte que
espelham a realidade social. Assim, os problemas sociais são atacados
na sua expressão artística e não mais nas suas causas efetivas
43
.
Gerardo de Mello Mourão realizou a defesa da obra censurada recorrendo à grande
literatura mundial:
(...) deveria mandar-se apreender toda a grande literatura mundial, em
que os autores recorrem aos nomes das coisas para descrevê-las. Dante
e Cervantes, Quevedo e Goethe, Shakespeare e todos usaram as mesmas
palavras escatológicas e expuseram as mesmas cenas terríveis
44
.
Para o psicanalista Hélio Pellegrino, a proibição do livro significou uma ação
farisaica, pois ele entendia que a função do escritor é a de trabalhar (...) a língua em nome
da comunidade (...), sendo que esse trabalho deveria ser (...) estimulado e garantido pelo
Estado, através de uma absoluta liberdade de expressão
45
.
O antropólogo Roberto da Matta considerou Feliz Ano Novo como um símbolo da
intolerância para com representatividades divergentes
46
.
Com relação aos palavrões na obra, assim se expressou o escritor Josué Montello:
(...) Eu próprio tenho experiência de uma novela na qual fui obrigado a
empregar sucessivos palavrões porque essas palavras fazem parte da
linguagem insubstituível do personagem
47
.
Para Nelson Werneck Sodré, a acusação pelos censores de que a obra era imoral, fez
com que esse intelectual declarasse:
(...) Imoral, acima de tudo, é a intolerância e a ( ) sanção volta-se
contra a intolerância e consagra a liberdade de expressão
48
.
43
SILVA, Deonísio da. Rubem Fonseca: proibido e consagrado. Rio de Janeiro:Relume-Dumará, 1996, p. 20.
44
Idem
, 1996, p. 20.
45
Ibidem, P. 21-22.
46
Ibidem, p. 22.
47
Ibidem
, p.22.
48
Ibidem,
p.
22.
Guilherme de Figueiredo, escritor, percebeu na condenação de Feliz Ano Novo
também uma chance para sua consagração:
O livro está sendo procurado: agradecemos à censura ( ) Feliz Ano
Novo voltará a ser editado, como as Flores do Mal, de Baudelaire, e
Madame Bovary, de Gustave Flaubert
49
.
O poder de proibir de uma minoria desinteressada pela literatura brasileira foi assim
destacado por Lygia Fagundes Telles:
(...) uma outra minoria, que não faz parte da minoria que se interessa
pela nossa literatura, põe-se a ostentar um poder que a minoria que
não tem: o de proibir livros dos quais não gosta, sem examinar a sua
qualidade artística, propriamente literária
50
.
Analisando, em 1978, Feliz Ano Novo e, particularmente, o conto que nome ao
livro, o crítico Deonísio da Silva, em comparação com os intelectuais que defenderam a
obra, em 1977, foi mais incisivo e revelou de forma mais clara seu posicionamento com
relação à sociedade produzida pela ditadura. Remeteu a obra à representação de uma cidade
que se modernizava, e, compulsivamente, reagia às modificações capitalistas, vomitando os
desprevenidos para um submundo bem distante de uma burguesia colonizada, que faz uso
de uma cultura importada para impor uma violência simbólica contra os pobres:
Nos contos de Rubem Fonseca, a violência manifesta-se intensivamente
na dependência econômica e na invasão cultural. Dependente
economicamente, dependente culturalmente, a sociedade brasileira
procria seus marginais por força de compulsões sociais e decorrentes de
seu famoso modelo econômico.Procria, igualmente, uma burguesia
peculiar, às voltas com uma cultura importada, que não soube ainda
assimilar. A burguesia brasileira é nitidamente diferente de quase todas
as burguesias da América Latina, seja por sua formação histórica, seja
pela configuração e função condicionadas pela situação geopolítica do
país, da qual a extensão territorial é apenas um dos aspectos. E os
personagens burgueses que desfilam nos contos de Rubem Fonseca
demonstram muito bem essa diferença.
49
Ibidem, p. 23.
50
Ibidem, p. 28-29.
No mais, em tudo está a violência, que é o traço comum que atravessa
todos os contos de Feliz Ano Novo*, seja na manifestação real - uso da
força - seja na manifestação simbólica - uso da cultura
51
.
Em 1979, Afrânio Coutinho criticou a censura ao livro e comentou os argumentos
que a condenaram. Mostrou que, independentemente do escritor, as mazelas presentes na
obra, estavam disseminadas por todos os lados numa sociedade injusta e desequilibrada
como a brasileira.
Ao falar sobre o escritor e sua obra, disse:
É escritor dotado de extrema sensibilidade e argúcia no captar os
costumes de sua sociedade. Realista, dominando os recursos que a
técnica literária mais recente proporciona ao ficcionista, o quadro que
nos oferece é muito vivido e sem ambages.
O erotismo e a pornografia que ele expõe não são sua invenção,
pertencem à vida que o cerca e a todos nós. A violência, a criminalidade,
o abuso, o menor abandonado, o crime, a toxicomania, a permissividade,
a libertinagem, não são criações suas, mas estão aí, na rua, nas praias,
nos edifícios de apartamentos, nas favelas. Estão nas deficiências ou
inexistência do ensino, na indigência que inclui cerca de 70 por cento de
uma população abandonada à sua miséria e sorte.
Os livros de Rubem Fonseca são obra de arte literária no melhor
sentido, seja pela sua língua vivaz e franca, seja pelo uso de todos os
recursos técnicos da arte ficcional moderna, seja pela segura e arguta
visão dos costumes sociais contemporâneos. Não condena, e não é essa a
função da arte: expõe. Se são feios os seus quadros, a culpa não é sua,
mas de todos nós, da sociedade, que não soubemos ainda libertar das
mazelas, que alguns julgam inerentes à natureza humana. A arte de
todos os tempos a retratou
52
.
Rubem Fonseca, em conferência descoberta a partir de algumas gravações pela
revista Playboy, em 1988, ironizou a censura a Feliz Ano Novo e revelou que também
acreditava na obra enquanto um instrumento de representação da realidade brasileira na
época:
51
SILVA, Deonísio da. Violência nos contos de Rubem Fonseca. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 dez.
1978.
* Grifo do autor.
52
SCALZO, Nilo. Arte e Moral, velho debate sobre uma falsa relação. O Estado de São Paulo, São Paulo, 30
jan. 1979.
Quando o meu livro Feliz Ano Novo foi proibido, a alegação era que ia
contra a moral e os bons costumes, baseada numa tal Lei 1007. Entre os
considerandos da lei, um dizia assim: “Considerando que essas
manifestações contrárias à moral e aos bons costumes fazem parte de um
plano subversivo que põe em risco a Segurança Nacional...”, e então foi
proibido meu livro. E, em primeira instância, o juiz que julgou o
processo decidiu que não apenas o meu livro era contrário à moral e aos
bons costumes, como, inclusive, eu fazia a apologia do crime, um dos
itens do Código Penal Brasileiro. Então, eu ainda corro o risco de ser,
além de homossexual, assassino, homem das forças da repressão, um
criminoso comum. É como se o sujeito que inventou a escala Ritcher
fosse culpado pelos terremotos
53
.
A liberação pela justiça, em 1988, de Feliz Ano Novo mostrou-nos que a miséria e
a violência consagradas na obra, enquanto fator de construção artística legítima de uma
sociedade em crise, e utilizado como símbolo de luta da resistência democrática por setores
liberais, desde os anos de 1970, finalmente passou também a ser reconhecido pela justiça,
num momento de redemocratização do país.
Em reportagem do Jornal do Brasil, de 1989, temos essa confirmação:
A vitória do escritor ontem foi no Tribunal Regional Federal da 2ª
Região, cuja turma considerou que o ato do ex-Ministro era ilegal e
que, em conseqüência, o autor do livro censurado e apreendido tem
direito à indenização por danos patrimoniais e morais. O advogado de
Fonseca, Alberto Venâncio Filho, acredita que a decisão do TRF será
definitiva “porque vai ser muito difícil a União recorrer, já que seu
representante, o procurador da república Juarez Tavares, votou a favor
do acolhimento do recurso impetrado pelo escritor”.
A decisão da Segunda turma do TRF foi tomada com dois votos a favor,
dados pelos desembargadores Alberto Nogueira e Sérgio Andréia
Ferreira, e um voto contra, da desembargadora Julieta Luntz. Em 1980,
no julgamento em primeira instância, o juiz manteve a censura ao livro,
mas decidiu que Feliz Ano Novo não era atentatório à moral e aos bons
costumes, como queria Armando Falcão, e, sim, que incitava à violência.
(...) Ao derrubar 13 anos depois a ordem do ex-ministro Armando
Falcão, a Justiça removeu também, às vésperas da eleição, um dos
últimos entulhos de uma época de intolerância da qual a apreensão de
Feliz Ano Novo foi um símbolo
54
.
53
VOLTOLINI, Ricardo. Rubem Fonseca: O que eu penso dos meus leitores. Playboy, São Paulo,
dez. 1988, p.180.
54
RUBEM FONSECA: JUSTIÇA LIBERA FELIZ ANO NOVO. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,
15 nov. 1989.
Apesar de ter sido noticiada a liberação de Feliz Ano Novo juntamente com Rasga Coração e
Zero em reportagem da Folha de São Paulo de 09/05/1979 (PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: Um
Dramaturgo no Coração de Seu Tempo. São Paulo: HUCITEC, 1999, p.40.), não foi exatamente isso que
aconteceu com Feliz Ano Novo. Devido ao recurso impetrado por um advogado de Rubem Fonseca após a
A censura sobre a estética de Feliz Ano Novo dissolveu-se com o passar dos anos
porque o conteúdo negado na década de 1970, não mais poderia sê-lo nas décadas de 1980
e 1990, com a explosão de violência que o Brasil passou a viver.
1.3. Os novos rumos da arte.
Quando Rubem Fonseca estreou na literatura com o seu livro de contos Os
Prisioneiros, em 1963, estava antecipando os elementos de uma estética literária
55
que viria
a concretizar-se, principalmente, na poesia dita “marginal” dos anos de 1970. Porém, apesar
da semelhança estética, as trajetórias de Rubem Fonseca e dos poetas “marginais” foram
marcadas por posicionamentos diferenciados frente à realidade política dos anos de 1960 e
1970.
Através de uma análise, tendo como base a utilização da obra Impressões de Viagem
de Heloísa Buarque de Hollanda
56
, contraporemos a idéia dessa nova literatura exposta
como marginal” e tentaremos mostrar como a produção literária de Rubem Fonseca, não
encontrou-se na mesma tendência, mas antecipou-a a partir de outros posicionamentos
políticos.
Segundo essa autora, o golpe de estado de 1964, que desmantelou as organizações
de massa, bem como perseguiu suas lideranças mais atuantes, terminou por poupar a
censura ao livro, esse fato provocou um processo que durou 13 anos, na justiça permitindo a liberação da obra
em 1989. Segundo Deonísio da Silva: A verdadeira torre de papel em que se tornou este caso em nossas
letras – o processo judicial durou 13 anos – demonstra que o veto à obra de um escritor de talento e prestígio
reconhecidos deflagra discussões muito mais incômodas à censura do que o veto tout court. Os censores não
esperavam a reação de Rubem Fonseca nem a de seus companheiros de ofício, muito menos a da chamada
sociedade civil.( ) Vê-se, pois, que o veto à obra de Rubem Fonseca ocorre em pleno processo de distensão,
em 1976, e que a anistia literária que liberou, no governo Figueiredo, várias centenas de livros
censurados, não de contemplar a obra de Rubem Fonseca com o mesmo perdão, tendo o processo judicial
seguido seu curso anovembro de 1989, quando o livro foi definitivamente liberado no Tribunal Regional
Federal, do Rio, em cuja corte estava já em grau de apelação. Silva, Deonísio da. Rubem Fonseca: Proibido e
Consagrado. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Prefeitura, 1996, p.12 e 14. Esse esclarecimento de Deonísio da
Silva, contemplou nossa idéia de que a censura provocou um reconhecimento da obra enquanto símbolo da
resistência democrática de vários setores liberais que pretendiam o restabelecimento das liberdades civis.
55
Como veremos mais à frente, essa estética ficou marcada por uma linguagem agressiva e de dicção rápida,
“dissonante quase ruído”. BOSI, Alfredo. O Conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Editora Cultrix.
MCMLXXV, p. 18.
56
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de Viagem: CPC, Vanguarda e Desbunde: 1960/1970.São
Paulo: Editora Brasiliense, 1981.
intelectualidade de esquerda. A partir daí, instalou-se uma anomalia: o regime deixou
intocada a produção cultural esquerdizante, porém, impediu-a de chegar até as massas
dominadas
57
.
Ao mesmo tempo, a discussão sobre a dependência cultural e sobre as questões da
modernidade que marcaram esse período produziram, em alguns setores, desconfiança cada
vez maior com os padrões impostos de comportamento e com relação às linguagens, não só
produzidas a partir do sistema, mas também com relação à própria linguagem da rigidez
comportamental, autoritarismo político e cultural que marcaram a atuação das esquerdas até
a época
58
. E essas desconfianças acabaram por configurar-se, em termos de movimentos
culturais, por meio do tropicalismo e seus desdobramentos.
57
Segundo Roberto Schwarz, essa anomalia refletiu-se nas práticas dos que detinham a hegemonia dessa
produção esquerdizante onde o domínio concentrou-se (...) nos grupos diretamente ligados à produção
ideológica, tais como estudantes, artistas, jornalistas, parte dos sociólogos e economistas, a parte
raciocinante do clero, arquitetos etc., - mas que daí não saía, nem poderia sair, por razões de
policionamento. Ainda, (...) Os intelectuais são de esquerda, e as matérias que preparam de um lado para as
comissões do governo ou do grande capital, e do outro para as rádios, televisões e os jornais do país, não
são. É de esquerda somente a matéria que o grupo – numeroso a ponto de formar um bom mercado produz
para o consumo próprio. Esta situação cristalizou-se em 64, quando grosso modo a intelectualidade
socialista, já pronta para a prisão, desemprego e exílio, foi poupada. Torturados e longamente presos foram
somente aqueles que haviam organizado o contato com os operários, camponeses, marinheiros e soldados.
Cortadas naquela ocasião as pontes entre o movimento cultural e as massas, o governo Castelo Branco não
impediu a circulação teórica ou artística do ideário esquerdista, que embora em área restrita floresceu
extraordinariamente. Com altos e baixos esta solução de habilidade durou até 1968, quando uma nova massa
havia surgido, capaz de dar força material à ideologia: os estudantes organizados em semi-clandestinidade...
( ) Se em 64 fora possível a direita “preservara produção cultural, pois bastara liquidar o seu contato
com a massa operária e camponesa, em 68, quando o estudante e o público dos melhores filmes, do melhor
teatro, da melhor sica e dos melhores livros já constituia massa politicamente perigosa, será necessário
trocar ou censurar os professores, os encenadores, os escritores, os músicos, os livros, as editoras, - noutras
palavras, será necessário liquidar a própria cultura viva do momento SCHWARZ, Roberto. Cultura e
Política, 1964-1969. In: O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 62-63.
58
Essa rigidez de atuação das esquerdas foi comentada por Gilberto Vasconcellos, tanto em relação à canção
de protesto em que muitos compositores optaram por uma concepção sociologizante da canção como em
relação à crítica musical, com seu sociologismo vulgar reinante. Assim, tanto os compositores, como críticos,
que catalizaram politicamente setores da pequena burguesia, sobretudo os estudantes, e que criticavam o
sistema com suas injustiças e preconceitos, na verdade ajudaram a perpetuá-lo, pois não apontavam um
caminho para a construção de uma resistência contra a ditadura. Dessa forma, segundo Gilberto Vasconcellos,
o furor participante característico dessa produção esquerdizante (...) deixava clara sua contradição: calcado
numa perspectiva sentimental reformista, não fazia senão embaçar o suposto agente real da transformação
histórica; na verdade, se comprazia apenas em alertar a estrutura do privilégio. Curioso é que não
diferença alguma entre essa atitude e a crença ilusória (avivada inclusive pela esquerda) na “burguesia
nacional”, ou na “elite” populista, enquanto agente da transformação histórica. Mesmo sua deificação
pequeno burguesa do povo sintonizava-se com a idéia populista da redenção da “nação”, reforçando assim a
no papel transformado da canção, a qual era decodificada acriticamente e sem filtragem racional. a
tropicália (...) colocou em um outro nível a questão crítica política na MPB. Representou um passo adiante da
“participação” musical populista, sobretudo porque em suas canções o significado político nunca é exterior
à configuração estética... ( ) Daí resulta sua abertura de significados, sua dimensão polivalente: a tropicália
joga-nos na cara os efeitos da nossa dependência econômica e social e ao mesmo tempo mostra (via
Nesse momento, ocorreram grandes transformações no cenário político cultural
brasileiro e os movimentos de massa, sobretudo os de composição estudantil e de esquerda,
sofreram uma nova derrota, sendo desbaratados com a imposição do AI-5.
(...) O chamado “segundo golpe” instala definitivamente a repressão
política de direita organizada pelo Estado e marca a abertura de um
novo quadro conjuntural onde a coerção política irá assegurar e
consolidar a euforia do “milagre brasileiro
59
.
Nessa conjuntura em que houve o recrudescimento da censura e o discurso político
direto foi eliminado, realizou-se um deslocamento estratégico da contestação política para a
produção cultural:
(...) Ou seja, a impossibilidade de mobilização e debate político aberto
transfere para as manifestações culturais o lugar privilegiado da
“resistência”
60
.
Em meio a essa “cultura da resistência” e de seus heróis
61
, tivemos, segundo Heloísa
Buarque de Hollanda, o surgimento de uma produção cultural com uma nova proposta de
não engajamento político a partir de duas gerações.
A primeira, identificada por sua participação nos debates que marcaram o processo
cultural, nos anos 1960, mas não necessariamente presente no mundo literário, por meio de
obras.
A partir de um estado de latência, essa geração recusou-se a aceitar os fundamentos
do engajamento populista e vanguardista, foi exposta às influências do pós-tropicalismo,
mas não se alinhou a essa tendência. Dois de seus maiores expoentes foram Roberto
Schwarz e Cacaso.
A segunda geração, porém, começou a produzir no clima político dos anos de 1970,
época em que tanto a universidade como o processo cultural apresentavam condições bem
metalinguagem) as limitações do protesto populista. Andam de mãos dadas crítica social e crítica da
musicalidade. Queremos dizer: desocultação ideológica (principalmente da retórica solene, grandiloqüente
do populismo) e subversão do código lingüístico e musical. Eis porque é lícito falar em vanguarda no caso da
tropicália. Em outros termos, nela um nculo indissolúvel entre avanço político (crítica ao reformismo
desenvolvimentista) e avanço estético (superação do legado bossa-novista, crítica à noção de protesto na
MPB). VASCONCELLOS, Gilberto. Música popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro: Edições do Graal,
1977, p. 41, 42, 43, 44, 47, 51 e 52.
59
HOLLANDA, op. cit., p. 90.
60
Ibidem, p. 92.
61
Um desses “heróis” foi Chico Buarque. Ibidem, p. 92.
diferentes daquelas que possuíam na década anterior. Seus principais expoentes foram
Chacal e Luiz Olavo Fontes.
Desse modo, com formação e caminhos diversos, essas duas gerações se
encontraram a partir de seus posicionamentos avessos às ortodoxias.
Os caminhos percorridos para concretizarem essas atitudes demonstraram uma
crítica por parte do primeiro grupo, com relação às suas posições assumidas na década
anterior, e checadas por meio de sucessivas desilusões.
os setores mais jovens com quem a geração dos anos de 1960 estabeleceu
alianças, não compartilharam do processo de descrença, enquanto problemática crítica e
intelectual.
(...) Pode-se dizer que para a juventude tal descrença já estava “pronta”.
O clima político e cultural do “milagre brasileiro”, o sufoco da primeira
metade da década e a própria experiência social de cursar a
universidade nesse momento forneceram a essa geração o ambiente para
a recusa e a descrença das linguagens e das significações dadas. As
linguagens do sistema, “as formas sérias do conhecimento” e
especialmente a forma séria do conhecimento por excelência” que é a
ciência são rejeitadas. O mesmo parece acontecer em relação ao
discurso da esquerda burocratizada que passa a ser confundido com o
discurso da cultura oficial e, portanto, com o próprio sistema
62
.
Dessa forma, foi a partir da primeira metade da década de 1970, em um momento
em que o estado passou a fornecer através de uma política cultural oficial algumas
alternativas à classe intelectual e artística, que surgiu essa tendência “marginal” na
literatura.
A visão de mundo dessa literatura dita “marginal” passou a expressar a
consolidação de uma linguagem definida por conter, em seu suporte, uma relação profunda
entre arte/vida. Esta foi entendida como a consolidação de um processo em que a
valorização do presente, do aqui e agora, passou a estar na ordem do dia. Essa nova forma
de produzir a linguagem muito se oporia à idéia de futuro e (...) otimismo da burguesia, dos
liberais, dos capitalistas e mesmo do pensamento marxista (...)
63
que passou a perder seu
prestígio.
62
Ibidem, p. 96.
63
Ibidem, p. 100.
(...) Esse Futuro que por tanto tempo definiu as conquistas da
humanidade, que permanece na versão capitalista, cristã ou na marxista
como o valor mais profundo, num dos sintomas mais importantes das
transformações que estamos sofrendo, cede lugar, ao instante, ao aqui e
agora. E esse aqui e agora delineia o sentido da produção novíssima
64
.
A partir dessa idéia, até o sexo e as drogas que, para a geração anterior, tiveram um
sentido subversivo, de protesto, passaram a ser esteticamente encarados pela geração dos
poetas “marginais” como algo sem maiores ansiedades, como “curtição”.
As próprias atitudes antiintelectuais desses poetas “marginais”, sobretudo da
segunda geração dos anos de 1970, consolidaram-se através da valorização do momento e
representaram uma nova visão sobre o mundo. Essas atitudes se consolidaram enquanto
crítica mais abrangente à ciência, à técnica e à noção de progresso.
Os projetos dessa nova tendência não se fizeram pela idéia de que o sistema deveria
ser mudado por uma tomada de poder, mas principalmente a partir de uma desconfiança na
própria linguagem do sistema e do poder instituído
65
.
Assim, com essa valorização do momento através do binômio arte/vida, esses poetas
passaram a realizar uma poetização da experiência cotidiana e não, ao contrário, como
faziam os modernistas como Oswald de Andrade a escrita de um cotidiano poetizado.
(...) É a arte de captar situações no momento em que estão acontecendo,
sentimentos que estão sendo vividos e experimentados e fazer com que o
próprio processo de elaboração do poema reforce esse caráter de
momentaneidade. E isso não pode e não deve ser reduzido apenas a um
artifício literário. Nesse gesto no qual o trabalho, a ciência, o progresso
e o futuro deixam de ser valores fundamentais, o cotidiano passa a ser
arte
66
.
A linguagem desses poetas, bem como seus comportamentos, passaram a se
realizar através de um deslocamento da crítica social, em que esse social passou a estar
vinculado ao indivíduo, muitas vezes se manifestando através de uma sensação de mal-
estar, de um sufoco” experimentado frente à ordem do cotidiano do Brasil, da primeira
64
Ibidem, p. 100.
65
Esse sentimento de desconfiança, de incredulidade, é comentado por David Harvey, como uma das
características que difeririam as manifestações ditas s-modernas das propriamente modernas, percebidas a
partir do estudo que as formas da cultura podem assumir a partir do desenvolvimento do capitalismo desde o
século XIX, até os dias de hoje. HARVEY, David. Condição Pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1993,
p. 49-50.
66
HOLLANDA, op. cit., p. 101.
metade da década de 1970. Dessa forma, mais é a atitude sentida e experimentada frente à
ordem que se colocou como “marginal”, do que propriamente a literatura.
Foi com o lançamento de três coleções que essas duas gerações de poetas marginais
se encontraram: Frenesi, Vida de Artista e Nuvem Cigana.
Frenesi foi articulada pelos poetas da primeira geração que, como disse Heloísa
Buarque de Hollanda, vivenciaram os debates culturais e políticos da década de 1960 e
passaram a criticar e redimensionar seus antigos posicionamentos. Depois desses
revisionismos, a experiência de sufocamento e de descrença frente ao sistema e às
“linguagens sérias” apareceram em críticas realizadas por mediações intelectuais e
racionalizantes, que em muito denunciaram suas opções de mudanças e reavaliações de
posicionamentos.
Essa foi a postura de alguns nomes possuidores de posições destacadas no sistema
como Roberto Schwarz que publicou Corações Veteranos e Cacaso com Grupo Escolar,
ambos ligados à universidade; Francisco Alvim, diplomata, com sua obra Passa-tempo;
Geraldo Carneiro com Na Busca do Sete-Estrelo e João Carlos Pádua com Motor, possuíam
ligações com a produção cultural institucional.
Assim, para esse grupo, de um nível acurado de percepção e consciência em relação
ao sentimento de sufocamento daquela época repressiva e influenciado por sua formação
mais intelectualizada, esse sentimento de mal-estar revelou-se, sobretudo, como um
problema existencial.
(...) O sentimento experimentado no cotidiano é também um problema
teórico. E é essa consciência que determina uma linguagem necessária e
desejosamente crítica. A alegoria, a metonímia, a ironia, a paródia etc.,
isto é, o recurso a uma dicção mais literária, faz-se em favor de um
distanciamento crítico
67
.
Antônio Carlos de Brito - Cacaso -, que havia participado em Frenesi, realizou com
Eudoro Augusto que escreveu Vida Alheia; Carlos Saldanha com Aqueles Papéis e de
poetas da segunda geração dos “marginais” como Chacal com sua obra América e Luiz
Otávio Fontes (Prato Feito), uma nova coleção que se intitulou: Vida de Artista.
67
Ibidem, p. 103.
Após essa coleção - uma espécie de consolidação entre as duas gerações, com uma
influência consistente dos mais jovens - os poemas tornaram-se (...) mais curtos, mais
próximos do flash e do registro bruto de episódios e sentimentos cotidianos (...)
68
.
A aproximação entre vida e obra, e de que a vida deve ser vivida enquanto tal,
apesar do sufocamento da época, apareceu acompanhada nesse grupo da progressiva
“desliteralização”
69
da linguagem, que passou a manter seu nível crítico através de seu
poder de corrosão provocado pelos elementos surpresa e do humor.
Mas, para terminarmos nossa exposição da produção cultural marginal, tendo como
base a análise da autora de Impressões de Viagem, a coleção Nuvem Cigana, reunindo
exclusivamente a geração mais jovem, trouxe para a cena literária toda a novidade de uma
poesia que, nos anos de 1970, configurou-se recentíssima, como também a amostragem de
uma forma diferenciada de atuação de seus poetas.
Para esse grupo nascido descrente das linguagens e das significações dadas pelo
sistema, o sentimento ante o clima de sufocamento das manifestações políticas e culturais
da época, não não se tornou objeto de reflexão, como também foi experimentado no
âmbito das sensações mais imediatas, resultando mais em perplexidades do que um espírito
crítico conceitual. Os poemas, a partir desse momento, evitariam as metáforas ou
justaposições que criassem algum tipo de neutralidade entre os seus elementos. O poema
passou a conter a transcrição imediata do sentimento do autor, ainda que expressando um
sentido de “falta de saída”, de tragédia frente à repressão.
(...) , a marginalidade vivenciada, não é mais o sufoco significado, mas
experimentado de forma direta. É interessante notar como aqui pode-se
apreender a absorção do coletivo pelo individual. Parece não haver mais
a consciência dessa separação. Nem a experiência desse sentimento
separa mais o sujeito do objeto observado. Nesse caminho, podemos ver
ainda como a distância entre o gesto e a palavra, entre o fazer literário e
o produto final é igualmente fragilizada
70
.
68
Ibidem, p. 105.
69
O termo desliteralização é utilizado por Heloísa Buarque de Hollanda no intuito de demonstrar que a
linguagem dos poetas marginais prescinde de palavras bonitas, floreios maquiadores, para a construção de um
sentido sobre a realidade.
70
HOLLANDA, op. cit., p. 110.
Assim, o poema passou a ser o registro da imediaticidade da ação e não da reflexão,
e o culto do instante passou a estar inteiramente ligado ao caráter da experiência pessoal;
não mais procurado enquanto um efeito inesperado como fizeram os modernistas, mas
como efeito de instante diluído no cotidiano que pode ser apreendido a qualquer momento.
1.3.1. - Uma linguagem não tão nova assim
De uma forma geral, a produção cultural comentada e analisada por Heloísa
Buarque de Hollanda sobre a nova literatura que surgiu na primeira metade de década de
1970, respondendo ao momento político do Brasil na época, fê-lo através de uma
linguagem de dicção rápida e direta. Porém, o que ela talvez não tenha percebido à época, é
que este tipo de linguagem vinha se formando em prosa por uma geração de escritores
dos anos de 1960, da qual Rubem Fonseca passou a ser um de seus principais expoentes. E,
ao contrário de alguns dos poetas “marginais” que, muitas vezes, realizaram suas obras com
a utilização do mimeógrafo, esses escritores da década anterior possuíam ligações estreitas
com a produção institucional
71
.
71
Heloísa Buarque de Hollanda, ao designar a produção artística dos poetas “marginais” como uma ruptura
com as linguagens da arte engajada dos anos de 1960, inseriu-se dentro de um paradoxo da história das
contradições da tradição moderna, que é a de ser uma história formada, segundo Antoine Compagnon, a partir
de muitas rupturas políticas e estéticas. Apesar de esse autor aceitar que, para o período que estamos
discutindo a literatura, os trabalhos das últimas décadas encaixam-se dentro de uma consciência
contemporânea que designa o moderno como pós-moderno, entendido esse pós-moderno enquanto uma
dúvida do próprio autor, se representaria um auge do moderno ou o repúdio do moderno. Assim, a ruptura
ligada aos aspectos formais com relação à linguagem dos poetas “marginais”, discutidos por Hollanda,
corresponderiam a uma tradição da modernidade realizada dentro de um histório de rupturas que podem ser
sentidas a partir de outras transformações formais da linguagem das artes em direção a certos limites. Os neo-
impressionistas, por exemplo, viam na inovação de suas estéticas formais, uma revolução nas artes plásticas
no final do século XIX. (...) Os primeiros temas neo-impressionistas, escreve Signac, eram tirados da vida
urbana, do trabaho industrial e do lazer das massas; testemunhavam o conflito social, opondo operários e
capital. Entretanto, a verdadeira inovação neo-impressionista não reside na análise social do lazer
capitalista, mas na estética formal descoberta graças a esses temas. Como escreve Thomas Crow, “a
liberação da sensibilidade de vanguarda apresentar-se-á como um exemplo implícito de possibilidade
revolucionária e o artista cumprirá com mais eficiência seu papel, concentrando-se nas exigências
autônomas de seu meio. O texto de Signac é exemplar como definição de uma estética vanguardista, aspira a
ser revolucionária em si e não mais pelos temas abordados, pretendendo prefudicar o edifício social pela sua
própria prática formal. A pesquisa formal é doravante considerada revolucionária na sua essência. Dessa
forma, Compagnon vê nessa idéia da tranformação formal da linguagem de uma geração para outra, a
genealogia da tradição moderna de ser a de uma história de rupturas: (...) A tradição moderna, segundo essa
Alfredo Bosi, em 1975, em seu O conto brasileiro contemporâneo, expôs essa
geração e a dicção direta de sua linguagem como artifício inseparável à construção de uma
estética verossímil da brutalidade; na verdade, manifestação e resposta a um ambiente
social brasileiro de contradições e violências. E, já em Dalton Trevisan, Bosi encontrava os
sintomas dessa linguagem em cenas brutais de violência e degradação, partindo de uma
prosa capaz de construir cruamente flashs de situações peculiares que denunciavam um
realismo e um expressionismo frenético.
Mas por achar o estilo de Dalton Trevisan vigiado até os sinais de pontuação, Bosi
considerou que uma linguagem brutalista de dicção rápida, direta e (...) tocando o gestual
(...)
72
, caberia melhor a outras manifestações literárias que começaram a aparecer na década
de 1960.
Vejamos as próprias palavras de Alfredo Bosi com relação a essa corrente brutalista,
para que possamos melhor entender como uma maneira de escrever peculiar já antecedia na
prosa - a partir de posicionamentos diferentes em relação ao ambiente político e cultural
dos anos de 1960, sobretudo na figura de Rubem Fonseca aquilo que os poetas marginais
dos anos de 1970 fizeram na poesia:
(...) “brutalista”. (...) O adjetivo caberia melhor a um modo de escrever
recente, que se formou nos anos de 60, tempo em que o Brasil passou a
viver uma nova explosão de capitalismo selvagem, tempo de massas,
tempo de renovadas opressões, tudo bem argamassado com requintes de
técnica e retornos deliciados a Babel e a Bizâncio. A sociedade de
consumo é, a um tempo, sofisticada e bárbara. Imagem do caos e da
agonia de valores que a tecnocracia produz num país de Terceiro Mundo
é a narrativa brutalista de Rubem Fonseca que arranca a sua fala direta
e indiretamente das experiências da burguesia carioca, da Zona Sul,
onde, perdida de vez a inocência, os “inocentes do Leblon” continuam
atulhando praias, apartamentos e boates e misturando no mesmo
coquetel instinto e asfalto, objetos plásticos e expressões de uma libido
sem saídas para um convívio de afeto e projeto. A dicção que se faz no
interior desse mundo é rápida, às vezes compulsiva: impura, se não
obscena; direta, tocando o gestual; dissonante quase ruído. Está,
ortodoxia, surgida no final do século XIX, é a história da purificação da arte, de sua redução ao essencial. É
nesse sentido que veremos muitas vezes descrever a passagem de uma geração a outra e de um artista a outro
como uma superação rumo à verdade, uma tensão da arte em direção a seu limite ou, ainda, uma redução da
ilusão, uma reapropriação da origem. Guardadas as diferenças dos limites com relação aos seus lugares
sociais, tanto a arte dos neo-impressionistas, como dos poetas “marginais”, bem como a de Rubem Fonseca,
procuram o caminho do essecial. COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 1999, p. 9-10-11-12- 42-43-44.
72
BOSI, Alfredo. O Conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Editora Cultrix. MCMLXXV, p. 18.
necessariamente, fazendo escola: junto a Rubem Fonseca, ou na sua
esteira, algumas páginas de Luiz Vilela, de Sérgio Sant’Anna, de Manoel
Lobato, de Wander Piroli, de contistas que escrevem para o Suplemento
Literário do Minas Gerais, de Moacir Scliar e de outros escritores
gaúchos ligados à Editora Movimento sem falar em alguns textos de
quase-crônicas do seminário carioca O Pasquim
73
.
A linguagem nessa geração de contistas passou a se traduzir pela ausência de
projetos e como nos poetas marginais dos anos de 1970, mostrou uma preocupação em
recortar situações cotidianas, em que a distância entre a palavra e o gesto demonstrou-se
extremamente fragilizada, como expôs Bosi.
Ao contrário de Heloísa Buarque de Hollanda, que não relaciona a poesia marginal
a uma tendência internacional, Bosi, ao analisar a literatura dita por ele brutalista,
encontrou nela os indícios de uma maneira de se escrever muito recente que passou a existir
nos Estados Unidos:
Essa literatura, que respira fundo a poluição existencial do capitalismo
avançado, de que é secreção e contraveneno, segue de perto modos de
pensar e de dizer da crônica grotesca e do novo jornalismo yanque. Daí
os seus aspectos antiliterários que se querem, até, populares, mas que
não sobrevivem fora de um sistema de atitudes que sela, hoje, a
burguesia culta internacional
74
.
Dessa forma, emprestando o exemplo de Rubem Fonseca, sua linguagem brutalista,
- de narração direta na maioria dos casos, em primeira pessoa - apesar de refletir uma
descrença com relação à condição humana, em termos políticos, não representaria um
posicionamento de desconfiança com relação ao sistema ou às linguagens do poder como
fizeram os poetas marginais”. Uma prova disso é o fato de que Rubem Fonseca apoiou e
participou ativamente no movimento de articulação política, que culminou com o golpe de
1964.
Assim, através do exemplo de Rubem Fonseca e dos poetas marginais”, podemos
perceber que tanto a linguagem da contística como da poesia, encontraram, no Brasil dos
anos de 1960 e 1970, um ambiente favorável para a transformação de sua função social, a
partir de posicionamentos diversos dos literatos frente ao sistema.
73
Idem, 1975, p. 18.
74
Ibidem, p. 18.
Capítulo 2
A construção da obra de Rubem Fonseca pela crítica
2.1 A crítica dos jornais e revistas versus a crítica acadêmica
A partir da década de 1960, Rubem Fonseca passou a ser considerado um inovador
da literatura brasileira. Além de uma boa vendagem junto ao público, em geral, para os
padrões brasileiros não das décadas de 1960 e 1970, mas também para os dias de hoje, o
autor contou com o apoio explícito de críticos, jornalistas, escritores e intelectuais, que
passaram a ver em sua obra uma representação crua da condição humana e da violência
social do país. Aliás, os críticos em sua maioria do Rio e de São Paulo
75
, compartilharam a
idéia de que uma nova transformação se processava na literatura e sociedade brasileiras.
Nesse sentido, a percepção sobre como foi sendo construída a obra de Rubem
Fonseca, baseando-se na crítica literária, desde os anos de 1960 até os anos de 1980,
constituiu-se de grande importância para que pudéssemos visualizar as idéias, concepções
estéticas e políticas, alicerçando a crítica sobre a obra que, como discutimos no capítulo
anterior, ganhou visibilidade com a censura à obra Feliz Ano Novo.
Em linhas gerais, podemos dizer que essa crítica pode ser dividida em duas
categorias: a dos jornais e revistas
76
do Rio e São Paulo e a crítica acadêmica.
75
Os motivos ligados aos objetivos da pesquisa de se estabelecer a violência na obra de Rubem Fonseca como
representando uma violência histórica da cidade do Rio de Janeiro, bem como uma maior facilidade de acesso
aos artigos de jornais e revistas a respeito da obra do escritor, tanto no Rio, como em São Paulo, colocaram-se
como fatores fundamentais para a escolha dos críticos literários que trabalharam nesse eixo.
76
PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: Um Dramaturgo no Coração de Seu Tempo. São Paulo: HUCITEC,
1999, p.55 a 92. Através do livro desta autora que, em seu segundo capítulo, realizou a partir da crítica
literária que se debruçou sobre a obra desse grande dramaturgo, um estudo de como ela foi sendo construída
pela recepção ao longo do tempo, pudemos perceber que juntamente às simbologias políticas de resistência
democrática que ocorrem em Rasga Coração em relação ao período da ditadura, a análise das outras obras,
desde o final dos anos 1950 até os anos de 1970, ajudaram-nos a entender como os elementos estruturais
sócio-culturais de todo esse período se compuseram aos aspectos de engajamento político, e mais tarde, de
resistência democrática na obra. Dessa forma, tal análise da recepção pela autora fez com que pudéssemos
pensar que aos aspectos políticos simbólicos de resistência construídos pela recepção ao livro Feliz Ano Novo,
a crítica que analisou as outras obras do autor nos ajudou a perceber que estruturalmente esses aspectos
políticos estiveram inseparáveis de uma condição humana brutalizada na obra. Assim, a partir dos elementos
estruturadores da condição humana do homem de Rubem Fonseca e de sua violência, a crítica, de um modo
De uma maneira geral, a primeira ateve-se à análise da linguagem e suas ligações
com o espaço social de produção nos anos de 1960, 1970 e 1980, com comentários rápidos
e superficiais sobre a obra.
Em contrapartida, a segunda aprofundou-se em análises estruturais da linguagem da
obra, porém, sem maiores preocupações com sua representação social no momento em que
foram lançadas no mercado. Dessa forma, realizaram-se estudos, sobretudo, considerando a
censura ao livro Feliz Ano Novo, ou seja, dentro de um certo distanciamento temporal das
obras do autor dos anos de 1960, como também em relação àquelas da primeira metade dos
anos de 1970. Dentro dessa problemática temporal, essas análises adotaram uma relação
direta entre elas e as obras, produzindo quase sempre uma interpretação dos textos a partir
do que Roger Chartier chamou de modelos lingüísticos, nos quais um determinado sentido
deriva-se a partir do funcionamento da linguagem
77
.
Esses estudos não privilegiaram a cadeia de mediações que existiram entre a
literatura de Rubem Fonseca em seu próprio espaço de produção e recepção. Ou seja, não
se preocuparam com as críticas de jornais e revistas anteriores a 1975, em relação à obra do
autor.
78
Mas tanto os críticos de jornais e revistas, quanto os acadêmicos desprezaram a
questão do público
79
na construção de suas análises, porque se fixaram no binômio
autor/obra
80
. Ainda assim tiveram muitos problemas a resolver dentro dessa tradição
analítica da obra literária. Ao contrário do que aconteceu com outros autores, dificilmente a
crítica que analisou a obra de Rubem Fonseca pôde vinculá-lo aos seus próprios escritos.
geral, pode expressar algumas idéias em relação ao ambiente político e social brasileiro não em Feliz Ano
Novo, mas também através de outras obras dos anos de 1960 e 1970, em que seus posicionamentos políticos
críticos em relação ao ambiente de opressão da sociedade brasileira e da cidade do Rio de Janeiro,
representaram, muitas vezes, os posicionamentos dos próprios jornais de orientação liberal aos quais estavam
vinculados, e que combateram a ditadura através de vários artifícios literários. Esses críticos que analisaram a
obra de Rubem Fonseca e que formaram um grupo de jornalistas liberais, intelectuais e professores
progressistas, muitas vezes de mesma origem social, esconderam atitudes conscientes e deliberadas que
corresponderam a determinados interesses - materializados num discurso histórico sobre a obra - que estavam
sintonizados com a cultura das camadas mais elitizadas da sociedade. Esses interesses giraram em torno de
uma militância que visava ao fim das restrições à liberdade e a redemocratização do país.
77
CHARTIER, Roger. Cultura Escrita, Literatura e História. Porto Alegre: ARTMED EDITORA, 2001,
p.93.
78
Idem, 2001, p.93.
79
Essa atitude de uma maneira geral, coloca-se dentro de uma tradição crítica ocidental. Ibidem, p. 93.
80
Ibidem, p.88.
Avesso a entrevistas, o autor dificilmente deixou transparecer publicamente seus
posicionamentos estéticos e políticos.
Esse comportamento do autor lembra a atitude de escritores como Thomas Pinchon,
que sempre evitou a imprensa, fez com que a crítica nunca pudesse confirmar diretamente
a partir dos posicionamentos do autor o que ela escreveu acerca de sua obra. Preferiram
antes levantar algumas hipóteses sobre os posicionamentos do autor e sua influência sobre a
obra
81
.
Assim, apesar de algumas ressalvas com relação a esse comportamento
82
, a crítica
sempre se colocou favorável a Rubem Fonseca e acreditou numa certa intenção do autor em
denunciar a condição humana oprimida do homem contemporâneo, frente a uma sociedade
de massas sob regime político autoritário, como a que passou a existir no Brasil a partir da
década de 1970, bem como da disseminação de uma agressividade inerente a ela.
Porém, a crítica nunca ousou atribuir essa denúncia enquanto um engajamento
político do autor contra as injustiças sociais através de sua escrita.
Ao contrário, para ela, Rubem Fonseca - que nunca assumiu pessoalmente nenhuma
bandeira de defesa dos direitos democráticos em público - sempre esteve preocupado em
construir através de sua narrativa uma condição humana e uma violência dentro de um
“clima de suspensão moral”. Tudo isso numa clara tentativa do autor em realizar a narração
de quadros realistas sobre esses problemas brasileiros, mas que, como veremos pela própria
crítica, ainda assim escondem um posicionamento político.
Este capítulo procurará evidenciar, portanto, como a obra de Rubem Fonseca foi
construída em torno do princípio que passou a inaugurar uma nova estética literária oriunda
das imagens das mazelas sociais de um Brasil violento e miserável das décadas de 1960 e
1970, e mostrado inversamente pela propaganda dos governos militares autoritários após
1964.
81
Salvo alguns fragmentos colhidos em fontes variadas com relação a certas manifestações do autor sobre sua
obra.
82
Não foram poucos os críticos desde os anos de 1960 até os anos de 1990, que criticaram essa postura do
autor, inclusive denunciado-o como um empobrecedor da literatura brasileira, por isso.
Dessa forma, nossa discussão sobre a construção da obra partirá de um diálogo tanto
com os críticos de jornais e revistas como com os críticos acadêmicos
83
. Comecemos pelos
primeiros.
2.1.1 - Uma nova literatura sintomática da condição humana numa sociedade de
massas
Desde que Rubem Fonseca realizou sua estréia na literatura, em 1963, com o livro
de contos Os Prisioneiros, tendo logo em seguida escrito A Coleira do Cão (1965), e Lúcia
McCartney (1969), rapidamente o autor alcançou um sucesso que, muito, não se
percebia na literatura brasileira.
Na década de 1960, ao ser analisado por críticos de diferentes perspectivas, vários
artigos a respeito de seus contos surgiram nos jornais do Rio e de São Paulo: “Um estilo
vertiginoso”; O conto em questão”; “O conto subterrâneo”, “Realismos e realismos”. E,
confirmando sua ascensão dois contos foram filmados nessa época: Lúcia McCartney” e a
“Coleira do Cão”
84
.
Em 1969, o escritor foi um dos vencedores do II Concurso Nacional de Contos,
realizado em julho na cidade de Curitiba, com os textos “Desempenho”, “Lúcia” e “O Caso
de F. A”
85
.
Mas o quê, em sua obra, levaria Rubem Fonseca a ser em pouco tempo, tão
comentado pela crítica?
De uma forma geral, dos aspectos mais fundamentais comentados pela crítica
partindo de uma análise generalizada dos seus cinco primeiros livros de contos e do
romance O Caso Morel, ou seja de sua produção a meados dos anos de 1970, ficou
patente a percepção de uma representação da condição humana de um homem atormentado,
83
o se pode, entretanto, esquecer que alguns críticos acadêmicos escreveram e escrevem em jornais e
revistas, como por exemplo, Afrânio Coutinho, Alfredo Bosi, Antônio Candido, Deonísio da Silva, entre
outros.
84
COELHO, Regina. O homem em questão. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 25 ago. 1970.
85
DEPOIS DOS PRÊMIOS, MUITA CONFUSÃO. Jornal da Tarde. São Paulo, 03 jul. 1969.
girando em torno de uma série de aspectos obsessivos e de uma violência inerente a ela
86
.
Mostrando, por meio da obra de arte, não os sintomas de indivíduos desequilibrados,
numa cidade que passou a viver um clima de opressão política após 1964, mas também a
inserção numa sociedade de massas e as insatisfações que permeiam a condição humana do
indivíduo que nela vive. Ou seja, de um homem sem perspectivas quanto ao seu futuro
87
.
86
Se bem que, como iremos mostrar ainda neste capítulo, a problemática da discussão de uma estética da
violência, a partir de Rubem Fonseca foi aprofundada por Alfredo Bosi, em 1975. Este autor foi o primeiro a
cunhar a expressão brutalista para designar na literatura de Rubem Fonseca a inauguração da representação
de uma violência inerente à sociedade de massas que passou a se desenvolver no Brasil, na década de 1960.
87
A discussão da condição do homem a que nos reportamos numa sociedade de massas a partir da recepção à
obra, foi por nós embasada nas teorizações do assunto por Hannah Arendt em seu livro A Condição Humana.
Nesse livro, a autora, baseando-se em uma revisão do arcabouço teórico marxista, analisa a condição humana
do homem moderno partindo da conceituação ao longo do tempo dos três aspectos que englobam a existência
materialista da chamada vida activa e que são respectivamente o labor, o trabalho e a ão. Assim, tendo
apreendidas as diferenças entre as esferas blica e privada na polis grega, a autora chegou à conclusão de
que o lugar natural da ação política dos homens se dava na esfera pública, e do labor e do trabalho na esfera
privada do chamado oikos. A condição para a participação dos indivíduos na esfera política da polis estava
totalmente ligada a um distanciamento desses das atividades tanto do labor como do trabalho, respectivamente
atividades ligadas aos escravos, às mulheres e, de outro lado, aos artesãos livres, bem como aos grandes
proprietários de terras que estavam mais preocupados com seus negócios privados. E, embora os gregos
diferenciassem o labor do trabalho, entendendo que labor, segundo Hannah Arendt, constitui-se em uma (...)
atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujos crescimento espontâneo,
metabolismo e eventual declínio têm a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no
processo da vida.. Dessa forma, a condição humana do labor é a própria vida; e já o conceito de trabalho
estaria relacionado a (...) atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, existência essa
não necessariamente contida no eterno ciclo vital da espécie, e cuja mortalidade não é compensada por este
último.( ) A condição humana do trabalho é a mundanidade ( ) ambas atividades consideradas degradantes
do ser. Uma por aproximar os homens dos animais e a outra por distanciar o homem das coisas da polis.
Ambas ligadas às necessidades de sobrevivência impostas pela esfera da vida social dos homens. Dessa
forma, a condição para a ação que se dava naturalmente na esfera pública ação que, no entender de Hannah
Arendt, é sempre política porque é a única atividade que corresponde à condição humana da pluralidade que
é, por natureza, a condição de toda a vida política, e que revela dentro dela também as diferenças entre os
homens - era possuir liberdade, por ser proprietário de escravos, e, assim, estar distante tanto do labor como
do trabalho. Entretanto, com o avanço no mundo moderno da esfera privada, devido ao também avanço do
animal laborans, que passou a ser um resultado da disseminação da produção industrial e de sua divisão
social do trabalho e, portanto, constituindo-se numa realidade que se projeta na esfera social das necessidades
de sobrevivência humanas, tal esfera social passou a avançar sobre a esfera pública em detrimento da esfera
da ação política. Daí resultando que os interesses privados de uma sociedade de operários, sejam estes
dominantes ou dominados, passam a dominar a esfera pública que, aos poucos, perde sua função política ao
estar subordinada a uma esfera social que dissemina cada vez mais o animal laborans que, alienado, o se
reconhece como resultado de uma produção e de um consumo que passam numa sociedade de consumidores a
estarem ligados cada vez mais diretamente ao desejo desse mesmo animal laborans de satisfação de sua ânsia
por trabalho e de consumo. Assim, a satisfação do seu desejo de trabalho e consumo passou a estar
diretamente relacionado às suas necessidades de sobrevivência na sociedade capitalista moderna. Numa tal
sociedade, esse animal laborans abre mão de sua liberdade e o faz do espaço político o espaço para a
realização da ação entendida por Hannah Arendt como um local para o exercício da liberdade, como ocorria
na polis grega, e limita-se a reproduzir cada vez mais uma sociedade de trabalhadores consumidores sem
trabalho. Nas palavras de Celso Lafer, que prefacia a obra de Hannah Arendt: A era moderna trouxe consigo
a glorificação teórica do trabalho, e resultou na transformação efetiva de toda a sociedade em uma
sociedade operária. Assim, a realização do desejo, como sucede nos contos de fadas, chega num instante em
que pode ser contraproducente. A sociedade que está para ser libertada dos grilhões do trabalho é uma
Em um texto sobre o escritor, datado de 1970, a jornalista Regina Coelho mostrou
pendores críticos com relação à alienação e à falta de liberdade do indivíduo na sociedade
moderna, não só confirmando a fama de Rubem Fonseca como escritor inovador por meio
de sua técnica de escrita - mostrando-nos inclusive que, anteriormente à sua visada crítica,
outros haviam comentado esse aspecto na obra - mas também com a demonstração de que
essa inovação possuía um sentido estético de denúncia de uma sociedade opressora do
homem moderno e, ao mesmo tempo, potencializadora das misérias do espírito desse
mesmo homem:
Dizer que Zé Rubens renovou o conto no Brasil é repisar o óbvio.
Quando a gente o lê, encontra em diversas passagens e assume a própria
mesquinharia, grandeza e condição humana. Sua técnica é nova e
apresenta uma dualidade temática: ora se coloca em acontecimentos
banais, ora em situações sofisticadas. Lembra Salinger, mostrando a
dicotomia do ser humano atual frente a sociedade obsoleta que herdou
com seus mitos, preconceitos, e a tendência permanente à iconoclastia
sociedade de trabalhadores, uma sociedade que não conhece aquelas outras atividades superiores e mais
importantes em benefício das quais valeria a pena conquistar essa liberdade. Dentro desta sociedade, que é
igualitária porque é próprio do trabalho nivelar os homens, não existem classes nem uma aristocracia de
natureza política ou espiritual da qual pudesse ressurgir a restauração das outras capacidades do homem.
Até mesmo presidente, reis e primeiros ministros concebem seus cargos como tarefas necessárias à vida da
sociedade; e entre os intelectuais, somente alguns indivíduos isolados consideram ainda o que fazem em
termos de trabalho, e não como meio de ganhar o próprio sustento. O que se nos depara, portanto, é a
possibilidade de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta.
Certamente nada podia ser pior. Assim, como podemos notar o triunfo da sociedade moderna sobre a
necessidade se deveu dessa forma, segundo Hannah Arendt, à libertação do labor e ao avanço do animal
laborans em direção à esfera pública. Percebemos, entretanto, através das palavras de Celso Lafer, que tal
processo não ocorreu sem o pagamento de um preço alto: a perda da esfera da ação política e da liberdade
inerente a ela. Por isso, Hannah Arendt diz, comparando a esfera pública moderna com a da polis que era o
espaço natural de realização da esfera política, o seguinte: (...) e, no entanto, enquanto o animal laborans
continuar de posse dela, não poderá existir uma esfera verdadeiramente pública, mas apenas atividades
privadas exibidas em público. O resultado é aquilo que eufemisticamente se chama cultura de massas; e o
seu profundo problema é a infelicidade universal, devida, de um lado, à perturbação do equilíbrio entre o
labor e o consumo e, de outro, à persistente exigência do animal laborans de perseguir uma felicidade que
pode ser alcançada quando os processos vitais de exaustão e regeneração, de dor e de alijamento da dor,
estão em perfeito equilíbrio. A universal exigência de felicidade e a infelicidade tão comum em nossa
sociedade (que são apenas os dois lados da mesma moeda) são alguns dos mais persuasivos sintomas de que
começamos a viver numa sociedade operária que não tem suficiente labor para mantê-la feliz. Pois
somente o animal laborans e não o artífice nem o homem de ação jamais exigiu ser “feliz ou pensou que
homens mortais pudessem ser felizes”. Dessa forma, é essa condição infeliz do animal laborans moderno
frente a uma sociedade de massas que vemos em Rubem Fonseca, transposto a uma realidade brasileira em
que o discurso político direto, o o era permitido pela ditadura, mas o foi e não é percebido como
algo a ser utilizado pelo ser atormentado, alienado, compulsivo, enquanto válvula de escape para uma
opressão que nem percebe de onde vem. Ficando, assim, angustiado por querer realizar uma ação política que
se encontra latente e se debatendo em seu “espírito”, mas que devido à sua alienação pelo sistema produtivo
não a consegue codificar e muito menos realizá-la, transformando-se em um animal laborans e vivendo toda a
sorte de misérias que essa condição impõe à sua vida material e espiritual. ARENDT, Hannah. A Condição
Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, 352 p.
não como a forma e o desejo de ser mas com a coragem de pretender
ser uma pessoa gente
88
.
O sentimento sobre a condição humana que Regina Coelho captou nas obras do
autor nos anos de 1960, mostrou-nos que essa nova linguagem constituiu-se na expressão
de manifestações culturais de um homem frente a uma sociedade de massas e que
começava a se fazer presente, no Brasil, com suas contradições.
Nesse sentido, em um outro texto de 1969, sem assinatura, expressou-se a
descoberta na linguagem de Rubem Fonseca da denúncia de uma sociedade alienadora dos
indivíduos em um Brasil, cujos posicionamentos políticos declarados estão proibidos.
Seu estilo contém audácias excelentes, uma dose inquieta de angustias,
uma nota justa de lirismo contido e uma adesão profunda ao homem
exilado num mundo que digere pacificamente o horror das telas de
televisão ou das manchetes de jornais, sem por isso perder o apetite
89
.
Esse ponto de vista legitima a percepção de que Rubem Fonseca, em sua literatura
até então, deixa antever o enredamento dos indivíduos, em um Brasil que, passando a se
acostumar com a propagação dos meios de comunicação e começando a experimentar uma
indústria cultural incipiente, era capaz de produzir a massificação de uma sociedade não
politizada. Por isso mesmo, certos indivíduos são capazes de digerir o horror da violência
de uma cidade moderna como o Rio de Janeiro, sem perder o apetite diante da televisão que
mostra as imagens dessa mesma violência.
Mas o homem imbricado nas tramas de uma sociedade urbana opressora e
alienadora também pode produzir, através do sexo, uma válvula de escape para suas
frustrações.
Esse sentimento foi compartilhado numa crítica sem assinatura de 1973, no jornal O
Globo, sobre o romance O Caso Morel:
88
COELHO, Regina. O homem em questão. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 25 ago. 1970. Este jornal
após 1964, congregou alguns intelectuais cariocas, jornalistas e escritores que estavam na linha de frente da
resistência ao golpe, chegando inclusive a denunciar tortura sob o regime. KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas
e Revolucionários: Nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Editora Página Aberta Ltda, 1991, p. 20 e
21. E refletindo a postura de resistência do jornal que contestou a ditadura desde o início, sua proprietária
Niomar Moniz Sodré foi seqüestrada pelos órgãos de repressão e presa. A partir de lobbies políticos, o jornal
passou a enfrentar dificuldades econômicas, acabando por fechar suas portas. CAPELLATO. Maria Helena
Rolim. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1988, p. 55.
89
O QUE RUBEM FONSECA TEM CONTRA ESTA PÁGINA? Jornal da Tarde. São Paulo, 29 nov. 1969.
Romance urbano é o que pretende ser O Caso Morel, o primeiro de um
escritor consagrado como contista com a Coleira do Cão e Lúcia
McCartney.
Urbano porque transcorre numa cidade, o Rio de Janeiro, mas também
poderia etiquetar-se como policial ou erótico, tal a carga de sexo que
contém.
No entanto, apesar do apelo gritante ao sexo, não é um livro erótico, não
consegue transmitir um potencial de sensualidade que se inculque ao
leitor como seu primeiro plano. E isto apesar de todos os recursos
utilizados pelo autor: em 182 páginas, há sessões incríveis de
sadomasoquismo, lesbianismo, poligamia, promiscuidade sexual, para só
falar das manifestações com que se tenta cativar o leitor afeiçoado ao
gênero ou escandalizar o puritanismo
90
.
A idéia de que Rubem Fonseca realizou um livro urbano com grande apelo ao sexo,
a partir de O Caso Morel, mostrou-nos que esse romance, além de possuir os aspectos sobre
a condição humana discutidos acima, também foi capaz de suscitar na crítica a idéia de que,
num centro urbano como o Rio de Janeiro, o ser massificado também é capaz de reagir às
opressões consolidando atitudes difundidas pela contracultura irradiada a partir dos Estados
Unidos e Europa, na virada dos anos de 1960 e 1970, e que se faziam presentes na cultura
de muitos indivíduos situados em uma metrópole como o Rio de Janeiro, apesar de toda a
repressão às várias formas de manifestações artísticas do período.
Célia Pedrosa, em entrevista para o jornal O Globo, ao analisar as técnicas de
linguagem em O Caso Morel, na dissertação de mestrado: O Discurso Hiper-realista em
Rubem Fonseca e André Gide, também compartilhou com o autor, em 1977, um sentimento
de que violência e sexo formam um conjunto característico dentro de sua obra e numa
sociedade de massas:
(...) o homem reprimido, angustiado, e sem uma consciência nítida
disso.( ) voltado para um tipo de sexo compulsivo, neurótico. E (voltado
também) para uma violência de novo tipo, que não é aquela ligada ao
instinto de conservação ou à luta pela sobrevivência
91
.
90
O CONTISTA DOMINA O ROMANCE. O Globo. Rio de Janeiro, 22 jul. 1973.
91
DO PRAZER DO TEXTO À ANÁLISE DA VIDA NA CIDADE VIOLENTA. O Globo. Rio de
Janeiro, 21 nov. 1977.
O reconhecimento de uma violência gratuita que a autora encontra no O Caso
Morel, explicitou uma crença de que numa sociedade autoritária, como a brasileira na
década de setenta, repleta de contradições, o indivíduo inconsciente de suas misérias
procuraria obsessivamente no sexo e numa violência gratuita a satisfação de suas
frustrações.
Mas essa literatura que tem como centro a representação do homem contemporâneo
desequilibrado, mostrou que esse mesmo homem sofria as influências de uma cultura
internacional propagada pela indústria cultural - seja através do cinema, da televisão, da
música, do lazer, da moda - capaz de transpor as fronteiras dos centros urbanos periféricos
e criar, em parte de sua população, hábitos urbanos modernos como é o caso da
personagem Lúcia McCartney de livro de mesmo nome, de 1969. Revelando-nos que, se no
período havia uma intensa repressão a várias formas de manifestações artísticas nacionais,
o mesmo não acontecia com as manifestações vindas da indústria cultural patrocinada por
grandes grupos internacionais, incluindo a indústria fonográfica estadunidense e inglesa,
que conseguiu, através da música pop, uma grande expansão de suas vendas pelo mundo.
92
A busca dessa imagem é clara em uma crítica, novamente sem assinatura do Jornal
da Tarde de 1969, analisando o livro Lúcia McCartney:
Escritor urbano, é capaz de pegar para personagem de seus contos a
figura simplória de uma moça qualquer, como aquela que escreve
cartinhas para um programa de música americana moderna e assina
como seu sobrenome o mesmo de seu ídolo (Lúcia McCartney) Rubem
Fonseca nunca escreveria um conto passado no campo.
Segundo elê, o Brasil terá logo 200 milhões de habitantes. Metade deles
nascerá na cidade e a outra no campo. É quase se como para êles o
campo não tivesse a menor importância
93
.
Mesmo num Brasil que acelerava sua urbanização e sob o signo de governos
autoritários, o homem de Rubem Fonseca não deixou de estar enredado numa cidade como
o Rio de Janeiro, pelas influências de uma cultura cosmopolita jovem numa situação de
opressão.
92
Assim, das integrações entre o cinema, a televisão e a cultura da música pop americana e inglesa, tendo no
rock seu “carro chefe”, juntamente com a moda – entre essas os costumes hippies ou o chamado mode inglês -
a indústria cultural internacional foi capaz de “criar” milhões de “Lúcias McCartneys” pelo mundo afora.
93
O QUE RUBEM FONSECA TEM CONTRA ESTA PÁGINA? Jornal da Tarde, São Paulo, 29 nov. 1969.
Os críticos que analisaram a obra do autor, anteriormente a Alfredo Bosi e à
censura a Feliz Ano Novo, expressaram a partir dos temas propostos e da técnica de escrita
de Rubem Fonseca, seus posicionamentos acerca do existencialismo humano numa cidade
como o Rio de Janeiro.
E conforme o fizeram, relacionaram-no intimamente ao ambiente cultural do
momento, seja em termos de suas ligações com a urbanização crescente; seja enredado por
uma cultura de massas que o aliena através dos meios de comunicação; seja descontando
suas frustrações na busca de um sexo compulsivo ou praticando uma violência gratuita; ou
ainda, divertindo-se com os produtos de uma indústria cultural em seus primórdios.
Esses críticos elegeram, dessa forma, a obra enquanto simbólica de uma nova
representação da condição existencial do homem moderno.
2.1.2 O brutalismo na obra como sintoma de uma cidade e de um país miserável e
violento
Ao contrário dos críticos que analisaram a obra do autor anteriormente a 1975, foi a
partir da crítica de Alfredo Bosi e a censura de Feliz Ano Novo, em 1976, que a recepção à
obra começou a ganhar outros contornos.
Em seu O conto brasileiro contemporâneo em 1975, Alfredo Bosi consagrou
Rubem Fonseca como o inaugurador na literatura brasileira da chamada corrente brutalista.
A partir daí, a utilização desse termo marcou uma verdadeira ruptura sobre a visão
da crítica em relação à obra.
E por quê?
Justamente pelo autor ter percebido e se apropriado através desse termo, da idéia de
que passou a existir a representação de uma violência na obra, peculiar à sociedade de
massas que passou a se desenvolver no Brasil, na década de 1960.
Dessa maneira, não
seriam poucos os críticos e intelectuais que pensariam a obra partindo dessa idéia
94
e
94
Principalmente a crítica de jornais e revistas que se debruçou sobre a obra a partir dos anos de 1980 e 1990,
e que percebemos através de um levantamento em artigos de vários jornais da grande imprensa. Entre esses
passassem a ver a violência nela como inteiramente relacionada, enquanto produto e
realização daquela condição humana que os primeiros críticos haviam percebido
anteriormente a 1975, mas que agora, relacionando-a a uma sociedade de contradições e
misérias que começou a se disseminar no país nas décadas de 1970 e 1980. Isso
considerando obras como Os Prisioneiros (1963), até os romances policiais do autor, nos
anos de 1980.
Dessa forma, a violência na obra foi sendo construída pela crítica, de um modo
geral, como a expressão literária de uma sociedade de extremas contradições sob o mando
dos militares, sendo essa mesma sociedade um terreno fértil para uma busca compulsiva da
satisfação das frustrações através do exercício dos piores instintos agressivos do ser.
E é o que pudemos perceber em Alfredo Bosi, para quem Rubem Fonseca, desde o
início, construiu uma prosa que recortaria cruamente situações cotidianas exemplares, em
que o leitor não reconheceria ao certo se teria pela frente um autor realista ou o (...) mais
sombrio e frenético dos expressionistas
95
.
Para Bosi, por trás dessa linguagem crua do cotidiano, teríamos na verdade a
representação de um Brasil sofisticado e bárbaro em que a:
(...) A imagem do caos e da agonia de valores que a tecnocracia produz
num país do Terceiro Mundo é a narrativa brutalista de Rubem Fonseca
que arranca sua fala direta e indiretamente das experiências da
burguesia carioca, da Zona Sul, onde, perdida de vez a inocência, os
“inocentes do Leblon” continuam atulhando praias, apartamentos e
boates e misturando no mesmo coquetel instinto e asfalto, objetos
plásticos e expressões de uma libido sem saídas para um convívio de
afeto e projeto. A dicção que se faz no interior desse mundo é rápida, às
vezes compulsiva; impura, se não obscena; direta, tocando o gestual;
dissonante quase ruído
96
.
Analisando, em 1978, Feliz Ano Novo e, particularmente, o conto que nome ao
livro, matéria para o Jornal do Brasil, o crítico Deonísio da Silva - grande conhecedor da
obra de Rubem Fonseca - alçou essa obra à representação de uma cidade que se
modernizava e compulsivamente, reagia às modificações capitalistas, vomitando os
críticos estiveram: Boris Schnaiderman, João Gilberto Noll, rio Vargas Llosa, Nelson Ascher, André Luiz
Barros, Miguel de Almeida, João Paulo Paes, John Updike, entre outros.
95
BOSI, Alfredo. O Conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Editora Cultrix. MCMLXXV, p. 18.
96
Idem, 1975, p. 18.
desprevenidos para um submundo bem distante de uma burguesia colonizada, usuária de
uma cultura importada para impor uma violência simbólica contra os pobres:
Nos contos de Rubem Fonseca, a violência manifesta-se intensivamente
na dependência econômica e na invasão cultural. Dependente
economicamente, dependente culturalmente, a sociedade brasileira
procria seus marginais por força de compulsões sociais e decorrentes de
seu famoso modelo econômico. Procria, igualmente, uma burguesia
peculiar, às voltas com uma cultura importada, que não soube ainda
assimilar. A burguesia brasileira é nitidamente diferente de quase todas
as burguesias da América Latina, seja por sua formação histórica, seja
pela configuração e função condicionadas pela situação geopolítica do
país, da qual a extensão territorial é apenas um dos aspectos. E os
personagens burgueses que desfilam nos contos de Rubem Fonseca
demonstram muito bem essa diferença.
No mais, em tudo está a violência, que é o traço comum que atravessa
todos os contos de Feliz Ano Novo
97
, seja na manifestação real uso da
força - seja na manifestação simbólica – uso da cultura
98
.
Para Deonísio da Silva, Feliz Ano Novo, com sua linguagem representativa de uma
violência simbólica e física da cultura urbana carioca, constituiu-se num perfeito quadro de
uma sociedade desequilibrada por contradições sociais.
Comentando, em 1979, a contribuição artística de Rubem Fonseca e o seu papel
enquanto escritor em uma sociedade injusta como a carioca, Afrânio Coutinho assim se
manifestou:
A obra literária de Rubem Fonseca tem-se caracterizado por extrema
originalidade no que concerne ao estilo, técnica narrativa, temática,
além de uma busca de renovação que o faz um escritor moderno. Os seus
contos, pelos quais se revela um inovador quanto à técnica, oferecem
sobretudo, um quadro da atual sociedade carioca, e acredito que se
possa dizer brasileira, em estado de crise
99
.
O que percebemos, portanto, é que, na década de 1970, a linguagem violenta de
Rubem Fonseca foi sendo recepcionada pela crítica como a representação da vida de uma
97
Aqui, Deonísio da Silva realiza uma ironia ao grifar o nome do livro: Felicidade e violência parecem ser “as
duas faces de uma mesma moeda”, ao contrário do que muitos possam imaginar.
98
SILVA, Deonísio da. Violência nos contos de Rubem Fonseca. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 dez.
1978.
99
SCALZO, Nilo. Arte e Moral, velho debate sobre uma falsa relação. O Estado de São Paulo, 30 jan. 1979.
cidade em que os miseráveis começaram a reagir frente a uma classe dominante banal,
arrogante e protegida por um regime ditatorial.
Esse quadro de misérias, que se completou com a ficcionalização de um submundo
terrível pelo autor - onde os pobres convivem com marginais compulsivos, bem
condizentes com um país que, na década de 1970, criou imensas contradições sociais e
concentração de renda - foi compartilhado pela crítica como verossímil.
Em comentário para a revista Veja, em 1975, o poeta Affonso Romano de
Sant’Anna falou sobre a capacidade do escritor em adentrar, com sua linguagem brutalista,
o submundo do Rio de Janeiro:
(...) bem-sucedido (diretor da light), realiza o que os profissionais da
marginalia não conseguem com suas caspas e incompetência frente o
sistema e à literatura
100
.
Zuenir Ventura, em 1983, tamm confirmou a capacidade da obra de Rubem
Fonseca retratar a realidade de um Brasil que se tornava cada vez mais urbano, devido às
experiências do autor com o submundo, já que havia sido delegado na periferia carioca:
(...) o criador de Feliz Ano Novo tem, por exemplo, a obsessão de
escrever o que viveu e viver o que escreveu
101
.
A inovação que os críticos passaram a apreender da literatura de Rubem Fonseca
pareceu mostrar-nos, então, que o autor internalizou, em sua obra, algumas transformações
que a sociedade brasileira estava sofrendo, a partir do final da década de 1950, 1960 e
1970. Tempo em que o Brasil começava a se transformar em um país mais urbano do que
rural e, dessa forma, percebendo, numa cidade como o Rio de Janeiro, as agruras que o
progresso trazia em termos de miséria e violência urbanas.
A crítica literária de jornais e revistas, desde a década de 1960 até o final dos anos
de 1970, sempre se colocou favorável ao autor, ao ponto de classificá-lo como um inovador
da literatura brasileira. Esse argumento foi, muitas vezes, embasado no fato do escritor ter
100
SILVA, Deonísio da. Rubem Fonseca: Proibido e Consagrado. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Prefeitura,
1996, p.19.
101
VENTURA, Zuenir. O inventor de palavras. Isto é, n. 363, 07 dez. 1983, p. 91.
criado em seus cinco primeiros livros de contos uma visão própria da condição humana e
da realidade carioca.
Porém, essa recepção sobre a obra, que proporcionou um sentido coletivo à sua
estética da condição humana e da violência, foi realizada, na maioria das vezes, por
jornalistas, escritores e amantes da literatura que, ao se debruçarem sobre os escritos de
Rubem Fonseca, não levaram em conta um referencial teórico metodológico
102
mais
apurado para a análise de sua linguagem e, dessa forma, reduziram, muitas vezes, a obra do
autor a um suporte que carregasse uma representação neutra sobre a violência.
Esses críticos, ao não realizarem uma análise das estruturas da narrativa da obra do
autor de uma forma mais aprofundada, bem como ao desprezarem a recepção à obra, não
perceberam que estavam diante de uma estética da violência que escondia certas práticas,
valores e crenças, e que, portanto, se constituiu num esforço por parte do escritor de im-
la como verossímil a um público leitor, inclusive aos próprios críticos. Dessa forma, estes,
em sua grande maioria, incorporaram como seus os pontos de vista sobre a condição
humana e a violência defendidas por Rubem Fonseca, em suas ânsias de procurarem uma
bandeira de luta contra uma sociedade injusta como a carioca e brasileira.
Por outro lado, os críticos que analisaram a obra de Rubem Fonseca formaram um
grupo de intelectuais, muitas vezes de mesma origem social, que escondeu atitudes
conscientes e deliberadas correspondendo a determinados interesses - materializados em
um discurso histórico sobre a obra – e sintonizados com a cultura das camadas mais
intelectualizadas da sociedade.
Dessa maneira, nossa percepção sobre esses posicionamentos adveio justamente da
contraposição dessa crítica de jornais e revistas com as análises formais da crítica
acadêmica.
102
Alcides Freire Ramos, ao analisar as críticas realizadas sobre as chanchadas desde os anos de 1960, e
percebendo que essas críticas continham uma oposição deliberada a partir de posicionamentos elitistas e não
embasados em métodos históricos de análise, forneceu-nos a partir de seu modelo, um instrumental para
ajudar-nos na percepção sobre os posicionamentos dos críticos de jornais e revistas que se debruçaram sobre a
obra de Rubem Fonseca. FREIRE RAMOS, Alcides. Historiografia do Cinema Brasileiro diante das
Fronteiras entre o Trágico e o Cômico: discutindo a “chanchada”. p.911-921. In: Simpósio Nacional da
Associação Nacional de História (20; 1999, Florianópolis) História: Fronteiras/Associação Nacional de
História. São Paulo: Humanitas / FFLCH / USP: ANPUH, 1999, Vol. II, p. 637-1270.
2. 2 - O desvendamento pela crítica acadêmica da linguagem brutalista de Rubem
Fonseca.
Contrapondo à crítica de jornais e revistas, a crítica acadêmica que surgiu,
principalmente, nos anos de 1980, veremos que, apesar dessa última ter realizado uma
interpretação aprofundada da obra
103
, “esqueceu-se” das mediações realizadas pelo público
com relação aos livros do autor, desde os anos de 1960
104
. E assim como a crítica de jornais
103
Essas interpretações foram realizadas dentro de uma tradição da crítica literária ocidental, em que a partir
de modelos de análises lingüísticos os sentidos estéticos resultam do funcionamento da linguagem.
CHARTIER, Roger. Cultura Escrita, Literatura e História. Porto Alegre: ARTMED EDITORA, 2001, p 93.
104
Roger Chartier contrapondo o new historicism,enquanto uma nova definição da prática da crítica literária
norte-americana que passou a considerar a contribuição da teoria da recepção com relação à análise de um
texto, a new criticism que pregava a idéia de que a produção estética estava intimamente relacionada ao
funcionamento da linguagem, mas que ao mesmo tempo reconhecia a pluralidade e instabilidade da
linguagem de um texto, mostrou-nos as deficiências dessa última corrente em desenvolver técnicas que
permitissem recuperar essas mesmas instabilidades ou pluralidades, justamente por distanciar-se da prática
sócio-histórica da produção estética de um texto, ou seja, de sua recepção como é o caso das análises críticas
que descrevemos aqui tanto dos jornais como da crítica acadêmica. Mas o próprio Chartier reconhece que as
análises da new criticism, ou do desconstrutivismo de Derrida, foram importantes em mostrar que alguns
textos estão abertos a reapropriações litplas, enquanto outros não estão. Assim falou Chartier: (...) O new
historicism tenta “tirar” a produção estética do funcionamento da linguagem que foi a base do new
criticism em relação com a nouvelle critique francesa. Pode-se exemplificar com as figuras de Barthes ou
com os ensaios dos anos 60 sobre Bataille, Klossowski, Artaud e Blanchot, que são parte da obra de
Foucault em que é mais claro esse modelo lingüístico da produção de sentido que escapa à vontade do autor,
que ultrapassa o leitor, que é uma produção múltipla e instável da linguagem do texto. Foucault abandonou
mais tarde esse tipo de estudo, e não dedicou mais ensaios a escritores contemporâneos seus. Parece-me que,
ao insistir na diferença entre práticas discursivas e práticas não discursivas, Foucault foi-se distanciando da
idéia de que fora da linguagem não nada, que não realidades não discursivas, que a realidade é
sempre produzida dentro da linguagem. Desde A história da loucura na época clássica aVigiar e punir,
Foulcault sempre se empenhou na distinção entre práticas discursivas e não discursivas. Depois da new
criticism ou da novelle critique dos anos 50 e 60, Derrida é o autor que, após Foulcault ou Barthes, aparece
nos Estados Unidos como a figura principal deste tipo de enfoques, centrados no funcionamento da
linguagem e na pluralidade e instabilidade do texto. ( ) Pelo visto, é útil recuperar essa dimensão porque
falamos de pluralidade, diferenças, multiplicidade de sentidos (esta idéia de que não um sentido fixo,
congelado, estabelecido da obra, mas instabilidade e multiplicidade, é o que me parece importante); mas do
meu ponto de vista, nem na new critcism nem em Derrida essa constatação levou a desenvolver todas as
técnicas que permitiriam recuperar essa instabilidade ou pluralidade. A perspectiva é fundamental para
evitar a tradicional crítica literária que buscava o sentido de Macbeth ou de O Misantropo, mas ao mesmo
tempo se distancia da prática sócio-histórica. Por essa razão, este tipo de crítica literária é agora discutido
no âmbito americano. Mas também se consolidaram outras correntes dedicadas ao estudo do copyright, a
propriedade literária, a construção do autor; o new historicism ou todas estas correntes que mais ou menos
se inspiraram na teoria da recepção e que se dedicam à teoria da reader’s response, quer dizer, à maneira
em que o leitor reage diante do texto. Todas estas correntes representaram uma vontade de se distanciar em
relação à hegemonia da new criticism, ou do desconstrutivismo à maneira de Derrida. Hoje atrevo-me a
dizer que durante muito tempo pensei que para nós o era de grande utilidade esse tipo de proposta em
visrtude de que nos distanciava de uma perspectiva sócio-histórica. Mas agora modifiquei meu pensamento e
creio que se pode fazer algo com essa idéia de um texto não fechado, da instabilidade do sentido, da
e revistas desprezou a recepção sobre a obra que legitimaria de forma mais aprofundada os
sentidos que propôs para a linguagem de Rubem Fonseca
105
.
Por outro lado, os trabalhos acadêmicos conduziram-nos a um entendimento de que
a crítica de jornais e revistas favoráveis ao autor, tendo defendido concepções e
preferências estéticas, bem como crenças e valores com o escritor, não percebeu os sentidos
do funcionamento da linguagem do autor, em termos de sua estética brutalista.
O que nos revelam esses trabalhos acadêmicos com relação aos sentidos do
funcionamento da linguagem do escritor?
Primeiramente a revelação de que o escritor opunha-se a uma estética literária de
engajamento político-social. Em seguida, mostrando-nos que a estética brutalista de Rubem
Fonseca sobre a realidade brasileira esconderia atitudes e comportamentos tanto de uma
elite nacional culta, como de uma elite internacional.
Vejamos como isso se processou em sua linguagem.
2.2.1. - A concepção de uma literatura não engajada.
Segundo Walnice Nogueira Galvão, Rubem Fonseca, para criar sua obra ficcional,
utilizou, desde o início, uma linguagem de desprezo pela retórica e também pelo processo
de depuração da linguagem, enxugando a prosa desde seus primeiros contos. Assim,
perseguiu uma escrita sucinta, direta, elíptica, impondo um modelo de temática
metropolitana aos seus leitores e a muitos seguidores que passaram a considerar outras
prosas como beletristas e derramadas
106
.
Boris Schnaiderman, também confirmou o posicionamento de Walnice Nogueira
Galvão, porém, apontando-nos que essa linguagem direta constituiu-se como característica
pluralidade interna da linguagem. Indica algo importante: há textos abertos a reapropriações e outros que
não estão.Idem, 2001, p. 105. (grifos do autor).
105
Chartier crê que uma análise crítica deve realizar o entrecruzamento dos enfoques sócio-históricos e das
proposições estéticas ou formalistas. Ibidem, p.106.
106
GALVÃO, Walnice Nogueira. Realismo Feroz. Folha de S.Paulo, São Paulo, 09 jun. 2001.
inseparável, desde os primeiros trabalhos, da estética brutalista de Rubem Fonseca e
inclusive reconhecendo sua função histórica:
Os contos de Rubem Fonseca, quando surgiram, causaram impacto com
a brutalidade do submundo que expressavam. Por mais que numerosos
autores tivessem tratado do tema, esses contos impressionavam. Não
havia neles uma observação de fora para dentro, não tinham nada a ver
com uma anotação “etnográfica”, mas, sobretudo, aquela brutalidade
era algo cotidiano e corrente, a própria linguagem ficava marcada por
ela.
De lá para cá, a vida brasileira, em seu conjunto, tornou-se mais brutal
e implacável, fatos como os narrados ali passaram a fazer parte de
nossa vivência diária e acabamos mais acostumados com eles. (Não será
isto mais uma das “ironias da História” de que fala Isaac Deutscher?
Como nos parece anacrônica a indignação com que os porta-vozes do
establishment reagiram à publicação de Feliz Ano Novo em 1975! Estar
no poder e indignar-se com a brutalidade, na década de setenta...
107
Dessa forma, entendidas essas características da linguagem do escritor, é a partir
delas que podemos explicar sua estética literária de não engajamento político-social
108
- que
guarda uma intenção, por parte do autor, de construir uma linguagem imparcial dos
assuntos de que tratou - , bem como, a partir daí, alinhavarmos um arcabouço denunciador
do que essa linguagem conteria em termos de preferências e atitudes de classe.
Assim, o que primeiramente devemos nos perguntar é quais seriam os sentidos
dessa linguagem sucinta e direta utilizada pelo autor para compor os pontos de vista sobre a
condição humana e a violência tão bem recepcionados pela crítica nas últimas três décadas?
A que lugar social ela corresponderia?
107
SCHNAIDERMAN, Boris. (Org.). Rubem Fonseca/Contos Reunidos. São Paulo.: Companhia das Letras,
1998, p. 773.
108
Ao contrário de escritores como Lima Barreto, Graciliano Ramos, Antônio Callado, entre outros, que
muito denunciaram por meio de suas declarações e obras, as injustiças sociais de suas respectivas épocas,
dentro de certas perspectivas que envolviam conflitos classistas, Rubem Fonseca nunca assumiu publicamente
nenhuma bandeira de luta, de protesto, contra as condições sociais de miséria e opressão das classes menos
privilegiadas. Quando falamos que a literatura do autor o possui uma estética de engajamento político, o
queremos dizer que esteja isenta da revelação de um posicionamento político determinado quanto aos
conflitos entre classes, pois, (...) por excelência, todas as manifestações, artísticas ou não, são políticas
(Patriota, 1999), mas, sim, mostrarmos que não houve por parte da literatura de Rubem Fonseca um
compromisso declarado de denúncia desses mesmos conflitos sociais e muito menos uma perspectiva
consciente de análise crítica e de denúncia explícita das contradições da realidade brasileira durante a década
de 1970. Se isso aconteceu, foi feito por meio da o-revelação dos princípios que nortearam a elaboração da
crítica social na obra. PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: Um Dramaturgo no Coração de Seu Tempo. São
Paulo: HUCITEC, 1999, p. 19 e 20.
Nas discussões mais aprofundadas em teses e trabalhos acadêmicos que surgiram a
partir da década de 1980 - quando as transformações que acompanhavam a sociedade
passaram também a se fazerem representadas e percebidas numa nova corrente da literatura
brasileira – essa linguagem direta e sucinta de Rubem Fonseca – bem como a linguagem de
outros escritores brasileiros da metade do século XX foi incluída por Afrânio Coutinho
dentro chamada corrente pós-modernista brasileira
109
.
Segundo Afrânio Coutinho, a ficção brasileira dos anos de 1970 e 1980
caracterizou-se por várias tendências que, em sua maioria, continham uma série de aspectos
em comum com o que se convencionou chamar de estética do Pós-Modernismo
110
. Dessa
109
Segundo Afrânio Coutinho: Falar de Pós-modernismo, no Brasil, é algo bastante complexo e contraditório,
que pode ser feito com extrema cautela. A discussão sobre a questão, nos moldes em que vem sendo
travada na Europa e América do Norte, chegou até nós nos anos 80, sobretudo em decorrência da importância
que vem adquirindo recentemente o discurso teórico crítico norte americano e da onda pós estruturalista que
já há algum tempo varria as nossas plagas. Assim, para esse autor, essa literatura e tais manifestações estéticas
no Brasil mostradas no corpo do texto, seriam representações das condições sociais específicas do país a partir
de meados do século XX: (...) O processo de modernização por que vem passando o Brasil na Segunda
metade do século XX, embora mais acelerado do que nunca, continua apresentando fortes contradições,
decorrentes de uma economia dependente e de uma realidade social altamente matizada e diferenciada, e as
manifestações aqui surgidas não podem deixar de expressar tais contradições. Assim, se de um lado se
encontram, na sociedade brasileira, aspectos que a aproximariam de uma era s-industrial, característica
das civilizações informatizadas do chamado Primeiro Mundo, de outro ainda abundam elementos que
apontam para um estágio pré-industrial e conferem, em conseqüência, legitimidade a alguns dos grandes
récits da modernidade. Nesse contexto múltiplo, em que computadores sofisticados convivem com alta dose
de miséria e analfabetismo, o s-Modernismo como expressão literária e artística, pode ser visto de
modo também múltiplo, o que aliás vem ao encontro da heterogeneidade com que ele tem sido caracterizado
nos contextos referidos. Ele se configura como um conjunto de traços que, na órbita da literatura nacional,
distinguem a produção da Segunda metade do século XX da que fora arrolada pelas nossas histórias
literárias como modernista, mas ao mesmo tempo prolongando, e em alguns casos acentuando, aspectos
dessa tradição, e, no plano internacional, aproximam essa literatura de suas contemporâneas na Europa e na
América do Norte, mas mantendo também uma feição eminentemente própria.COUTINHO, Afrânio. A
literatura no Brasil: relações e perspectivas. São Paulo: Global, 1997, p. 243.
110
David Harvey, quando discute as diferenciações entre os conceitos de modernidade e s-modernidade,
utiliza-se de um enfoque analítico em que parte da idéia de que se deve falar em modernismo ou pós-
modernismo, enquanto formas concebidas a partir de “estruturas de sentimentos” e “sistemas de
pensamentos” desenvolvidos socialmente sobre as transformações da cultura e sua paisagem em diversos
campos do conhecimento, tanto a partir da revolução industrial, no século XIX, como também diante do
desenvolvimento do capitalismo, nas últimas décadas do século XX. E falando diretamente sobre o sentido do
pós-modernismo, David Harvey diz: (...) Assim sendo, que é esse pós-modernismo de que muitos falam
agora? Terá a vida social se modificado tanto a partir dos anos 70 que possamos falar sem errar que
vivemos numa cultura pós-moderna, numa época pós-moderna? Ou será simplesmente que as tendências da
alta cultura deram, como é do seu feitio, mais uma circunvolução e que as modas acadêmicas também
mudaram sem um único vestígio ou eco de correspondência na vida cotidiana dos cidadãos comuns? ( ) Na
verdade, a resposta está na dependência direta do sentido específico que possamos dar a esse termo. E, nesse
ponto, temos de nos ver às voltas com as últimas modas intelectuais importadas de Paris e com as mais novas
reviravoltas do mercado de arte de Nova Iorque, visto ter sido a partir desses fermentos que surgiu o
conceito de “pós-moderno”. Quanto ao sentido do termo, talvez haja concordância em afirmar que o
“pós-modernismo” representa alguma espécie de reação ao “modernismo” ou de afastamento dele. Como o
sentido de modernismo também é muito confuso, a reação ou afastamento conhecido como “pós-
forma, essas tendências, apesar de nunca terem se configurado como movimentos,
encontraram-se constantemente imbricadas. As mais significativas foram: (...) nos anos 70,
o romance ou ficção reportagem de José Louzeiro, Aguinaldo Silva e João Antônio e o
memorialismo de Fernando Gabeira, as incursões no fantástico, expressas embora em
menor escala do que na América de língua espanhola – por obras como as de José J. Veiga
e Murilo Rubião, e a linha intimista da narrativa, sobretudo feminina, de Lygia Fagundes
Telles, Nélida Piñon, Edla van Steen e Maria Alice Barroso; e, nos anos 80, a narrativa
fragmentada, de incorporação da mídia e caráter predominantemente especular e auto-
indagador
111
.
Essas correntes se aproximariam do código pós-modernista de acordo com Afrânio
Coutinho, no primeiro caso, pela ênfase no cotidiano e utilização da mídia jornalística; no
segundo, pelo questionamento da lógica racionalista e da estrutura linear da narrativa e por
fim, no terceiro caso, pela acentuada fragmentação do texto e polifonia de vozes.
Mas, será na última corrente, a da narrativa dos anos de 1980 que, para Afrânio
Coutinho, o código pós-modernista mostrar-se-ia mais intenso, predominando a partir d
uma narrativa metalinguística, (...) marcada por uma ampla intertextualidade e acentuada
modernismo” o é duplamente. O crítico Terry Eagleton (1987) tenta definir o termo da seguinte maneira:
Talvez haja consenso quanto a dizer que o artefato s-moderno típico é travesso, auto-ironizador e até
esquizóide, e que ele reage à austera autonomia do alto modernismo ao abraçar impudentemente a
linguagem do comércio e da mercadoria. Sua relação com a tradição cultural é de pastiche irreverente, e sua
falta de profundidade intencional solapa todas as solenidades metafísicas, por vezes através de uma brutal
estética da sordidez e do choque. Mais positivamente, os editores da revista de arquitetura PRECIS 6 (1987,
7-24) vêem o pós modernismo como legítima reação a “monotonia” da visão de mundo do modernismo
universal. “Geralmente percebido como positivista, tecnocêntrico e racionalista, o modernismo universal tem
sido identificado com a crença no progresso linear, nas verdades absolutas, no planejamento racional de
ordens sociais ideais, e com a padronização do conhecimento e da produção. O pós-moderno, em contraste,
privilegia “a heterogeneidade e a diferença como forças libertadoras na redefinição do discurso cultural” A
fragmentação, a indeterminação e a intensa desconfiança de todos os discursos universais ou (para usar um
termo favorito) “totalizantes” são o marco do pensamento pós-moderno. A redescoberta do pragmatismo na
filosofia (p. ex., Rorty, 1979), a mudança de idéias sobre a filosofia da ciência promovida por Kuhn (1962) e
Feyerabend (1975), a ênfase foucaultiana na descontinuidade e na diferença na história e a primazia dada
por ele a “correlações polimorfas em vez da causalidade simples ou complexa”, novos desenvolvimentos na
matemática - acentuando a indeterminação (a teoria da catástrofe e do caos, a geometria dos fractais) - , o
ressurgimento da preocupação, na ética, na política e na antropologia, com a validade e a dignidade do
“outro” - tudo isso indica uma ampla e profunda mudança na estrutura do sentimento”. O que em
comum nesses exemplos é a rejeição das “metanarrativas” (interpretações teóricas de larga escala
pretensamente de aplicação universal) HARVEY, David. Condição s-moderna. São Paulo: Edições
Loyola, 1993, p. 18 -19 e 49.
111
COUTINHO, op. cit., p. 239.
fragmentação, com grande dose de pastiche, tintas hiper-realistas e presença expressiva da
mídia extra-literária
112
.
É o que se verifica, segundo o crítico literário citado, nas obras mais recentes de
autores como Rubem Fonseca, Sérgio Sant’Anna, Victor Giudice, João Gilberto Noll,
Silviano Santiago, Antônio Torres, João Ubaldo Ribeiro, Heloísa Maranhão, Lya Luft,
Sônia Coutinho, Patrícia Bins, Moacir Scliar, Ignácio de Loyola Brandão, João Almino,
Márcio de Souza e Zulmira Ribeiro Tavares, para citar alguns dos mais expressivos
113
.
Assim, as duas características históricas da linguagem direta e sucinta que, por um
lado se configura dentro do seu aspecto de não engajamento político, e de outro, a sua
configuração enquanto uma linguagem de classe, ou melhor dizendo, de uma elite cultural,
estão inteiramente ligadas à análise de duas das marcas apontadas por Coutinho com
relação à linguagem de Rubem Fonseca: o hiper-realismo e as influências da mídia extra-
literária.
Elas ajudaram-nos a entender como o escritor tentou criar um sentimento de
verdade imparcial considerando suas crenças e posicionamento político, bem como
denuncia suas preferências, a partir de influências estéticas internacionais (que novamente
confirmam seu posicionamento político), quando da apropriação através de sua
representação dos problemas sociais da realidade brasileira e carioca.
2 . 2 . 1. 1 - A linguagem hiper-realista de Rubem Fonseca.
Mas se Afrânio Coutinho, particularmente para os nossos interesses, aponta as obras
dos anos de 1980 de Rubem Fonseca como possuidoras de características mais marcantes
do Pós-Modernismo, aqui é preciso fazermos uma ressalva e apontar que, no caso deste
autor, as características do hiper-realismo e do uso da mídia extra-literária
114
já eram
notadas em seus contos principalmente nos anos de 1970. Quanto ao uso de pastiches pelo
112
Ibidem, p. 240.
113
Ibidem, p. 240.
114
Segundo alguns críticos como Sérgio Augusto, Walnice Nogueira Galvão, Nelson Pujol Yamamoto,
Rubem Fonseca foi capaz de construir algumas imagens literárias em suas obras, a partir das características
dos movimentos que compõem as imagens do cinema noir.
escritor em sua linguagem, ainda nessa época, mostraremos que está intimamante
relacionado à presença da mídia extra-literária.
Partindo-se das marcas do hiper-realismo, observa-se que esse jogo do pós-
modernismo foi discutido ainda nos anos de 1970 por Célia Pedrosa:
Seria a ngua culta? Não é. Na verdade, é a tensão que existe entre
uma norma culta e o uso que o povo faz dessa norma. No hiper-realismo
de seu fazer literário Rubem Fonseca teria que adotar o coloquial, as
formas populares de linguagem. Se sua obra tende a denunciar a
violência de nossos dias, é lógico que o palavrão tem que entrar
115
.
Essa afirmação supõe um novo questionamento: Seria essa linguagem popular
imparcial?
Mesmo essa linguagem popular é fruto de uma construção altamente técnica,
revelando-a como uma apropriação de um homem culto, mas que teve a oportunidade de
ter conhecido o submundo carioca
116
.
Hudinilson Urbano, em sua tese de doutoramento, A Elaboração da Realidade
Lingüística em Rubem Fonseca, mostrou, ao analisar vários contos do autor dos anos de
1960 e 1970, que ele soube com uma clara consciência, inspirar-se para a composição de
sua linguagem, nos recursos da fala popular, do coloquial espontâneo e franco.
115
O GLOBO. Do prazer do texto à análise da vida na cidade violenta. Rio de Janeiro, 21 nov. 1977.
116
Morando e convivendo desde os 5 anos de idade na cidade do Rio de Janeiro, e tendo sido nos anos de
1950 comissário de polícia, tal fato deve ter contribuído para a apropriação de uma linguagem popular do
submundo da cidade, pois Rubem Fonseca, quando foi designado para assumir seu cargo, foi mandado para o
16º Distrito Policial de o Cristovão, um subúrbio operário na zona norte do Rio. Possuía 27 anos.
CARVALHO, rio Cézar. A verdadeira história de Rubem Fonseca. Folha de S. Paulo, São Paulo, 25 jun.
1995. Dessa forma, acreditamos que esse fato deve ter contribuído positivamente para que Rubem Fonseca
convivesse e apreendesse sensivelmente a linguagem popular da periferia da cidade. O escritor João Gilberto
NoLL corrobora nossa idéia: (...) Acho que foi bom para ele ter sido delegado de polícia, pois esse corpo a
corpo com a vida de certo modo lhe permitiu romper com os bacharelismos, com o beletrismo. Sua obrao
tem frescura, o é um ‘bolo nos mausoléus bibliográficos’. Ele se aproximou de uma certa oralidade que
ajudou a vivificar a literatura.. Augusto, rgio. O cineasta das letras agora está no teatro. Folha de São
Paulo, São Paulo, 29 mar. 1992.
Ao analisar a capacidade lingüística como também o desempenho lingüístico
117
de
certos personagens em seus diálogos, como também dos personagens-narradores em contos
dos anos de 1960 e 1970
118
, Urbano percebeu que esses personagens continham um elevado
grau de coerência, entre a elaboração de suas realidades lingüísticas e a elaboração das
realidades sócio-culturais propostas para cada um deles pelo autor, fossem de capacidade
linguística culta, mediana ou popular, fossem de desempenho lingüístico ajustados ou
desajustados com esses mesmos níveis de capacidade.
E, ao comentar a grande consciência do escritor no uso de uma linguagem popular
coerente com os níveis de representação sócio-culturais de seus personagens pobres ou
marginalizados, diz Urbano:
Rubem Fonseca revela consciência da natural impossibilidade de
simplesmente transpor para o estilo literário a oralidade total. A
metamorfose artística leva sempre a marca da criatividade e elaboração,
sem, porém, ofuscar a ilusão de língua oral ou coloquial.
Tudo traduz a capacidade e arte do Autor no aproveitamento desse
coloquial. Não se trata, contudo, de depurar a língua falada popular,
tentando elevá-la à categoria de literária, mas sim, de literalizá-la no
que tem de espontâneo e expressivo.
Tais elementos manifestam-se não só naturalmente ao nível dos diálogos,
como também menos comumente ao nível da narração propriamente
dita, ao menos da de primeira pessoa
119
.
117
Urbano explica tais conceitos da seguinte forma: A linguagem não é o suporte semântico da narrativa
através da narração, como também é, ela mesma, por si, um signo, na medida em que denuncia e evoca o
próprio narrador e personagens, suas condições sócio-culturais, suas situações elocutórias, seus
comportamentos, seus estados emocionais. Nessas condições, a linguagem é também um elemento
caracterizador. Por outro lado, o seu grau de formalidade ou de informalidade constitui também um dos
fatores caracterizadores da formalidade ou informalidade da própria narrativa. (...) Todo falante tem
internalizado um conjunto de normas ou regras que lhe permite emitir, receber e julgar enunciados da
língua. É a competência lingüística. Trata-se, pois, de uma condição abstrata, que se evidencia ou pode se
evidenciar pelo desempenho lingüístico, que ‘é aquilo que efetivamente realizamos quando falamos (ou
quando ouvimos, ou escrevemos, ou lemos)’. ( ) Neste sentido, pode-se admitir “limites” e “graus” de
capacidade lingüística. O grau de capacidade lingüística está condicionado, em regra, às condições cio-
culturais do falante. Assim, um falante de nível sócio-cultual elevado presume-se tenha um correspondente
grau de capacidade lingüística, teoricamente identificado com a capacidade de uso da língua padrão ou
culta. Inversamente, um falante sem escolaridade e sem condições sócio-culturais gerais favoráveis possuirá
uma capacidade lingüística restrita a um dialeto popular ou mesmo vulgar. O desempenho lingüístico, por
sua vez, não só está sujeito ao grau de capacidade lingüística, mas também condiciona-se à situação
concreta de comunicação. Assim, um falante de alta capacidade lingüística pode eventualmente inibir-se ou
desviar-se em face de uma situação concreta adversa, revelando um desempenho lingüístico aparentemente
desajustado com a respectiva capacidade lingüística..URBANO, Hudinilson. A elaboração da realidade
lingüística em Rubem Fonseca. Tese de doutoramento, USP, 1985, p. 200 –201.
118
Esses contos analisados pelo autor foram: “ Pierrô da Caverna” de O Cobrador (1978); “O Caso de F.A.”
de Lúcia McCartney ; “Gazela” de Os Prisioneiros , entre outros dos anos de 1960 e 1970.
119
URBANO, op. cit., p. 337.
O segredo do autor em captar os procedimentos da oralidade surgiria, então, de sua
capacidade em produzir uma prosa simples:
Todavia, é, sobretudo, na simplicidade artificial das estruturas frásicas
onde parece esconder-se o maior grau de elaboração da narrativa
coloquial de Rubem Fonseca.
Observamos, ainda, o procedimento bastante freqüente das comparações
populares, mais quanto à forma do que quanto ao conteúdo. Nelas
notam-se, também, a criatividade e a elaboração do escritor, sem
perderem, no entanto, a feição coloquial e popular
120
.
Mas, por outro lado, o que podemos notar segundo esse autor - e que denuncia uma
preocupação do escritor com um compromisso com a norma culta da língua - é a ocorrência
no uso dessa linguagem popular, de uma não-aceitação do modo de concordância e
regência da fala popular, bem como das variadas pronúncias que a linguagem falada pode
impor a certas palavras, como também de palavras aviltadas pela língua popular. Dessa
forma, a linguagem popular do autor carregaria consigo as marcas de seu posicionamento
de homem culto.
Segundo Hudinilson Urbano:
A morfossintaxe e, em especial, a sintaxe de concordância e regência da
fala popular não se sobressaem. Ocorrem muito raramente construções
em desconformidade com a língua padrão.
No plano fonético, Rubem Fonseca demonstra desinteresse pela
representação de pronúncias da ngua falada ou de significantes
deformados pela língua popular. Apenas descreve, nas narrativas mais
populares, e de maneira assistemática, certas realizações fonéticas
automotizadas, que contribuem igualmente para o tom natural e
coloquial da língua falada da conversação espontânea
121
.
Urbano continua reforçando essa preocupação com a língua por parte do autor, ao
analisar o narrador-personagem do Conto Pierrô da Caverna”, do livro O Cobrador de
1979, posterior a “Feliz Ano Novo”, mas onde foi utilizada a mesma técnica para a
composição de um linguajar popular que impôs em muitos contos e que lhe valeu a censura.
120
Ibidem, p. 335.
121
Ibidem, p. 336.
A atitude lingüística consciente do Autor tem um porta-voz nas palavras
do narrador-personagem do conto “Pierrô da Caverna”, que, como
escritor, emite opiniões sobre a própria linguagem, criticando o estilo
“requintado” e “afetado”, a artificialidade, a sofisticação e a
redundância inútil. Todavia, não despreza, para a escrita, certo cuidado
e elaboração
122
.
O emprego de uma linguagem coloquial com técnica e destreza como foi discutido
acima por Urbano, e que é uma das características do hiper-realismo da linguagem direta de
Rubem Fonseca, encontra eco nos estudos de Maria Lídia Lichtscheidl Maretti, enquanto
uma forma do autor realizar uma provocação aos seus leitores.
Para essa autora, Rubem Fonseca, com certos palavreados agressivos, constituiria
uma provocação intencional aos seus leitores para conseguir destes uma interação através
de certos sentimentos que contribuiriam para a realização de efeitos de impacto e crueldade
para os seus quadros de violência.
Segundo Maria Lídia Lichtscheidl Maretti:
Esta hostilidade se traduz pela violência discursiva, tanto através de
expedientes formais (estilo seco e entrecortado, frases curtas), como
através dos recursos ao conteúdo, nas situações-limite em que envolve as
personagens
123
.
E para demonstrar esses recursos utilizados pelo escritor, Maria Lídia Lichtscheidl
Maretti, utilizou-se da análise do conto “Meu Interlocutor”, da obra Lúcia MacCartney de
1969, por ser um texto estratégico e decisivo para a explicação dessa linguagem
provocativa e violenta de Rubem Fonseca
124
.
122
Ibidem, p. 336.
123
MARETTI, Maria Lídia Lichtscheidl. A lógica do mundo marginal na obra de Rubem Fonseca.
Dissertação de mestrado, Campinas, Unicamp, 1986, p. 65.
124
Idem, p.90 e 92.
Utilizando-se o conceito de analogia,
125
a autora começa a estabelecer, pelo título
desse conto, uma referência ao personagem que, dentro da obra, faz o papel de um
interlocutor do próprio narrador do texto, podendo ser “imaginado e pressentido” enquanto
um leitor específico que o escritor tem em mente ao criar suas histórias. Mas, essa relação
de um leitor antecipado pelo autor, expressar-se-ia também no conjunto do texto, a partir de
uma discussão entre a pessoa do interlocutor e a do narrador, devido a uma questão moral,
que no desenrolar do conto cria uma série de conflitos, que foram apreendidos por Maria
Lídia Lichtscheidl Maretti e possibilitam, por meio da utilização do conceito de analogia,
uma referência à relação escritor-leitor.
Essa história retrata a intromissão do interlocutor na vida particular do narrador,
sendo que esse possuindo um filho que em breve se casará, escolheu uma mulher para
realizar o enlace, descrita pelo interlocutor como moralmente suspeita. O narrador, tendo
tido um caso com a esposa do interlocutor, julga-o um hipócrita por pregar para os seus
alunos um discurso de liberdade e, ao mesmo tempo, denegrir a mulher de seu filho,
mantendo inclusive sua própria mulher em cárcere privado. Diante, então, da relutância do
interlocutor em aceitar as “verdades” ditas pelo narrador com relação à sua hipocrisia, esse
último começa a provocá-lo, falando com sabedoria dos detalhes do corpo de sua esposa
que ele havia possuído sexualmente. Finalmente, o narrador - vendo no interlocutor
somente um fraco ao manter sua adorada mulher em cárcere privado - trava um embate
corporal com o opositor e, depois de vários socos, acaba por assassiná-lo com uma faca.
Essa estrutura ficcional baseada em relacionamentos discursivos como o diálogo, a
narrativa e o embate corporal que anula o interlocutor, segundo Maretti, reproduziria as
fases do processo de construção literária de Rubem Fonseca, enquanto correspondente às
125
A autora assim descreve a aplicação do conceito de analogia: O conceito de analogia que se supõe aqui é
aquele que se refere “ao sentido de expressão provável conhecimento mediante o uso de semelhanças
genéricas que se podem aduzir entre situações diversas”, conceito que foi e é empregado na filosofia
moderna e contemporânea. Da estrutura dialógica que compõe o conto duas figuras que, em posição de
parceria, são alternativamente protagonistas da enunciação: um eu e seu interlocutor é possível aduzir
uma estrutura análoga, pelo diálogo que o escritor prevê junto ao seu leitor. ( ) O estabelecimento dos
termos que compõem a relação entre as personagens se faz então necesssária para fundamentar a analogia e,
com isso, desvendar o modo como se constrói a representação. Para evitar possíveis equívocos quanto à
maneira pela qual efetuo a análise, fica claro que a visão que apresento do processo de representação do
conto supõe a configuração de semelhanças genéricas entre situações diversas: aquela que está na base da
relação entre as personagens (suporte “literal” do texto) e a que o transcenderia e explicaria a
representação o relacionamento entre o autor e o público. São níveis diversos e a aproximação entre eles
só é possível e aceitável através e graças a esse conceito filosófico de analogia. Ibidem, p.66.
instâncias que determinam na sociedade qualquer expressão literária. Falamos da tríade
autor, obra e público.
Tendo no erotismo uma verdade sobre a condição humana, é através de uma
linguagem libidinosa e agressiva que o narrador imporá seu ponto de vista sobre o
interlocutor a ponto de matá-lo se não aceitá-la.
Dessa forma, para Maretti tratar-se-ia de uma:
(...) representação da genealogia de um discurso, levando em conta os
limites - as formas de controle - que atuam na sua formação. A violência
explícita, presente na relação Narrador/Ouvinte, e, por analogia, na
relação Escritor/Leitor, se manifesta como o meio estruturante da
narrativa para se chegar à verdade do erotismo
126
.
Querendo desnudar a linguagem, Fonseca incorpora um linguajar violento para
impedir algum tipo de resistência na manutenção das aparências.
Supondo que, através da sua “pele fina”, a linguagem em geral tem
escondido o que justamente importa revelar, Rubem Fonseca propõe o
inverso: da “matéria bruta” concernente à realidade para a sua
representação na narrativa, uma série de desmistificações se fazem
necessárias. E na base delas está, sobretudo, a desmistificação da
linguagem. ( ) Este expediente narrativo configura a caracterização de
vários textos do autor. É ele, aliás, que fundamenta seus contos mais
conhecidos
127
.
Assim, de acordo com a crítica Maretti, na leitura de contos como “Feliz Ano
Novo”, poderemos perceber que a linguagem agressiva tem uma função particular definida
frente ao seu leitor: construir uma linguagem violenta que não pode ser questionada pelo
mesmo.
Observa a autora com relação aos choques que a leitura suscita nos leitores:
(...) acostumados que somos a abrandar, através de mecanismos vários (
e o silêncio é um deles), o efeito do que tem que ser dito pelo modo de o
dizer, ficamos surpresos diante de uma linguagem tão avessa a
atenuações. Violentados, agredidos e questionados ao extremo, somos
irremediavelmente impelidos a uma catarse às avessas: estupradores
126
Ibidem, p. 90.
127
Ibidem, p. 91.
estuprados? Prevendo a nossa atividade, a re-apresentação mimética do
mundo (que não se restringe ao Rio de Janeiro atual) escandaliza-nos e
nos faz vítimas do próprio texto
128
.
E Maretti confirma tal reação através da crítica:
(...) Imagens como a do “soco”, tantas vezes exploradas pelos críticos
para sugerir o efeito de culpa da leitura, aparecem como indícios
evidentes de êxito
129
.
No papel a que se propõe enquanto escritor, Rubem Fonseca, ao escrever, não
descartaria o leitor, impondo-lhe, a partir da leitura de contos como “Meu Interlocutor”, um
auto julgamento acerca de suas próprias atitudes e do mundo que o rodeia.
Com a intenção de dar uma função à sua arte, o escritor, em contos como “Meu
Interlocutor”, “Feliz Ano Novo” e “O Cobrador”, desmistificaria a arte enquanto contendo
julgamentos virtuosos sobre a vida. E o fá-lo-ia sem nenhum tipo de subterfúgio como
podemos notar
130
.
Mas essa linguagem hiper-realista ainda carrega outros valores do escritor com
relação à sua representação da condição humana e da violência em sua linguagem direta e
sucinta.
E se podemos dizer que as técnicas de utilização de um linguajar popular, bem
como o impacto criado por uma linguagem violenta, apontam para a composição de uma
arte não engajada politicamente
131
, isso se daria justamente porque o autor buscaria por
128
Ibidem, p. 92.
129
Ibidem, p. 92.
130
Ibidem, p. 93.
131
Como falamos, o fato de o conter um posicionamento de engajamento político classista explícito, contra
o estado de coisas perpetrado pelos governos da ditadura, o quer dizer que a obra não revele um
posicionamento político-ideológico. A idéia de se relacionar interesses políticos e ideológicos com situações
de classe, foi, segundo Terry Eagleton, um dos erros do marxismo clássico. Esse autor, ao discutir a
problemática entre condições socioeconômicas e posições políticas e ideológicas, afirma que a ideologia o
governaria as condições socioeconômicas, como também não seria causada por elas, mas sim ofereceria um
conjunto de razões para tais condições materiais. Assim, para ele, (...) existem muitos interesses políticos que
não estão necessariamente ligados a situações de classe. A partir de, e interagindo com certas condições
existenciais dos indivíduos, que ajudam a compor a sociedade, e que antecedem as condições classistas, os
homens também criam certas posições político-ideológicas. E para isso, o autor o exemplo dos
movimentos não classistas que surgiram a partir dos anos de 1970: (...) Considere-se, por exemplo, o caso dos
movimentos das mulheres. Certamente é verdade que não nenhuma relação orgânica entre política
feminista e classe social, pace os marxistas reducionistas que lutam em o para enfiá-la nesta. Mas um
bom argumento para argumentar que realmente existe uma relação interna entre ser uma mulher (uma
situação social) e ser uma feminista (uma posição política). Isso não significa, é desnecessário dizer, afirmar
meio desses recursos um extremo realismo através da impressão de imparcialidade que
causariam.
Mas no fundo, o que pudemos perceber acima, é que a criação de um mundo
violento foi realizada a partir de uma linguagem pertencente e assimilada, sobretudo, por
uma elite cultural (autor e críticos que o apoiaram). Pois essa mesma linguagem conteria
certos valores das classes cultas, como o cuidado em reproduzi-la de acordo com uma
língua padrão e, conseqüentemente, por meio dela, construir uma visão de mundo sobre a
violência.
A confirmação desse posicionamento, -se pela análise dos aspectos da
significação de sua obra, onde descobriríamos, no autor, que o seu não engajamento em
termos de linguagem seria o resultado de uma crença, que teria no velho valor burguês da
individualidade e liberdade algo que deve estar acima de qualquer projeto coletivista. Pelo
menos seria assim que seus personagens estariam inseridos em suas histórias segundo Nina
Rosa da Penha Rodrigues, seja em suas formas de sobrevivência ou atitudes.
Nina Rosa da Penha Rodrigues, em sua tese de doutoramento A construção da
significação nos contos de Rubem Fonseca, ao aplicar o método de análise teórico
semiótico
132
em vários contos dos anos 60, descobriu que os processos de construção da
significação das estruturas discursivas da prosa do autor giravam em torno de um valor
básico mediador: a liberdade.
que todas as mulheres irão tornar-se espontaneamente feministas; mas é afirmar que devem fazê-lo e que
uma compreensão desmistificada de sua condição social oprimida logicamente as levaria nessa direção.
Exatamente a mesma coisa é verdade no caso de outras correntes políticas não classistas em fermentação na
década de 1970. Dessa forma, transposta essa realidade para um escritor, podemos dizer que os interesses
políticos da construção da linguagem de Rubem Fonseca, colocaram-se acima da tradição de alguns
escritores, que historicamente se viram na posição de denunciadores das injustiças sociais, bem como de sua
própria origem classista, embora carregue traços indiscutíveis em termos estruturais profundos, com essa
origem, como demonstraremos ainda nesse capítulo. EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. o
Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista: Editora Boitempo, 1997, p.183 a 186.
132
Através do método de análise semiótico de A J. Greimas compreendida pela autora através das obras
Sémantique structurale (1966), Du Sens (1970), e Dictionnaire raisonné de la théorie du langage (1979), onde
essa autora propõe uma segmentação textual dos discursos, segmentação essa que depois é submetida a uma
álgebra construtora de significações que estabelece estruturas narrativas, Lourenço adentrou pelo discurso
textual do autor, onde promoveu uma descida em dois níveis, sendo o primeiro em relação (...) às suas
camadas mais profundas, em busca das articulações geradoras de seu sentido, que permitiriam entender seus
processos de construção de significação. Mas a descida a essas estruturas teve necessariamente um caminho
de volta `a superfície do texto, ao discurso. E cada passagem de volta à superfície se fez com progressivos
investimentos semânticos, rearticulando, a partir das estruturas profundas, texto e contexto. RODRIGUES,
Nina Rosa da Penha. A construção da significação nos contos de Rubem Fonseca. Tese de doutoramento,
FFLCH-USP, 1980, p. 09, 109, 110 e XVII.
Em vários contos, essa autora percebeu a construção de histórias a partir do valor da
liberdade, em que personagens soltos, sem origem e inserção parcial, perante as instituições
que castram a individualidade, dão o tom dos discursos.
Se pensarmos que as localizações espacial e temporal, tomadas
isoladamente, consistem na inscrição dos programas narrativos no
interior de unidades espaciais e temporais dadas, a primeira observação
a ser feita em relação aos contos de Rubem Fonseca diz respeito à
ausência de dados que permitam remeter os atores a um espaço e a um
tempo históricos. Daí a impressão de que surgem soltos e estão
desenraizados do espaço onde se desenrola a ação
133
.
Segue Rodrigues:
Existem indícios que permitem dizer que o meio é urbano, que o Rio de
Janeiro é o cenário dos contos, que seus ambientes (concretização dos
meios) sugerem determinados estratos sociais, mas tais elementos não
permitem compor historicamente o ator. Nunca se sabe se os atores são
ou não cariocas, se têm ou não família, qual sua origem social, qual sua
história de vida, como conseguem sobreviver
134
.
Em alguns contos analisados pela autora, esse desenraizamento provocaria (...)
numa primeira leitura, uma sensação de perplexidade, que cria a atmosfera de nonsense:
os programas narrativos se frustram, as situações não se consumam, daí a impressão de
gratuidade (...)
135
do ser e do fazer de certos atores nos contos.
A linguagem, para ser hiper-realista, contaria também com essas características,
pois elas proporcionariam um impacto com relação às atitudes de violência que, parecendo
gratuitas, desumanizam os personagens, criando perplexidade no leitor.
Tal acontecimento ajudar-nos-ia a entender que, tanto a construção da condição
humana como da violência de seus personagens m como premissa básica para atuarem
dentro de seus instintos de satisfação, a ausência de compromisso com qualquer contrato
social
136
. É o que podemos inclusive perceber no conto “Feliz Ano Novo” e o “Cobrador”.
133
Idem, 1980, p. 231.
134
Ibidem, p. 231.
135
Ibidem, p. 232.
136
Rodrigues chega a explicar que o valor da liberdade como um dos pontos centrais da significação
discursiva de contos como os “Prisioneiros” e “A Coleira do Cão”, configurar-se-ia longinquamente como um
valor burguês. Idem, 1980, p. 233.
Dessa forma, aplicando-se essa significação, que tem na liberdade seu ponto
fundamental na obra, e transpondo-a para esses dois contos citados, intui-se um sentimento
de que, a mediação da política para uma convivência social justa para o autor não parece
existir nas relações entre ricos e pobres, numa cidade como o Rio de Janeiro, nem
representar uma saída para a contenção da satisfação da natureza humana em geral. Assim,
o escritor captaria, principalmente nesses contos, a violência como um resultado,
especialmente numa cidade como o Rio de Janeiro, da falência da manutenção por parte do
Estado do monopólio da violência legítima, deixando que bandidos organizados tomem
conta da cidade, principalmente, na periferia. E o que teríamos, a partir daí, é a guerra de
todos contra todos”.
Por isso, um clima de suspensão moral: porque todos, a seu modo, e em contos
como “Feliz Ano Novo” produzem algum tipo de violência, seja física ou simbólica, sejam
pobres ou ricos.
Esse sentimento de gratuidade e esse aspecto nonsense corresponderiam em Feliz
Ano Novo”, a uma falta de punição que a ausência do estado provocaria nas relações
violentas entre seus cidadãos.
Assim, se a linguagem crua e sucinta de Rubem Fonseca é muitas vezes vulgar,
provocativa em relação ao leitor, o que a completaria dentro das intenções do autor de não
ser engajada, ou seja, de ser imparcial ou hiper-realista, seria esse aspecto de sua
significação que pregaria, por meio de um valor burguês, a condição de liberdade e
individualidade como sempre estando acima dos projetos políticos da coletividade.
Para Rubem Fonseca, valeria mais o individual que o coletivo, pois a liberdade
pode ser sentida realmente na solidão. E seus personagens, em geral, são seres solitários.
2 . 2 . 1. 2 - A linguagem marcada pela mídia extra-literária
Mas se a linguagem crua do autor guarda uma série de características reveladas por
certos posicionamentos estéticos e políticos parciais que contem e que foram, como
mostramos, compartilhada por uma boa parte da crítica, urge ainda explicarmos uma outra
marca dessa linguagem apontada por Afrânio Coutinho e que registra também certos
posicionamentos estéticos e políticos, desta feita ligados a certas tendências internacionais e
que se fazem através da presença da mídia extra-literária, nessa mesma linguagem.
Quando em 1975, Alfredo Bosi, pela primeira vez, designou em O conto brasileiro
contemporâneo, a literatura de Fonseca como iniciadora de uma estética brutalista, ele
percebeu que se tratava de uma nova estética; dessa maneira, deu-nos as primeiras pistas
relevantes, mostrando uma expressão urbana contemporânea com fortes aproximações a
determinadas tendências e comportamentos das classes cultas, internacionais:
Essa literatura, que respira fundo a poluição existencial do capitalismo
avançado, de que é ambiguamente secreção e contraveneno, segue de
perto modos de pensar e de dizer da crônica grotesca e do novo
jornalismo yankee. Daí os seus aspectos antiliterários que se querem,
até, populares, mas que não sobrevivem fora de um sistema de atitudes
que sela, hoje, a burguesia culta internacional
137
.
A influência norte-americana na linguagem de Rubem Fonseca também é
corroborada por Walnice Nogueira Galvão, apontando que dos Estados Unidos viriam as
mais significativas, especialmente do thriller ou romance noir, compreendidos como uma
espécie de best-sellers da cidade grande. E, embora Walnice Nogueira Galvão, ao fazer
essa análise, centralize-a, sobretudo, nos romances de Rubem Fonseca, a partir dos anos de
1980, ao especificar o arcabouço constituidor dessas vertentes, estende-o indiretamente
para os contos violentos dos anos de 1970. As características desse arcabouço seriam:
construção de uma linguagem em que haveria o privilégio da cena em detrimento da
elucubração, a ação em vez da reflexão, o impacto em vez da nuança
138
.
Essa linguagem realizar-se-ia ainda, segundo Walnice Nogueira Galvão, pelo
primado da violência como assunto a ser explorado, e como um produto da influência das
técnicas do jornalismo, do cinema, da televisão
139
.
137
BOSI, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo. Editora Cultrix, MCMLXXV, p. 18.
138
GALVÃO, Walnice Nogueira. Realismo Feroz. Folha de S.Paulo, São Paulo, 09 jun. 2001.
139
Walnice Nogueira Galvão, ao relacionar essas características da linguagem violenta e de utilização da
mídia-extraliterária na obra de Rubem Fonseca, indiretamente coloca-a como produto de uma mercantilização
realizada pela indústria cultural, a partir dos anos de 1960, em que o totalitarismo de um mercado exigiria
uma literatura impactante, de fácil assimilação e, portanto, vendável. Daí as influências na literatura e, em
especial no romance policial, da mídia jornalística e cinematográfica como modo de torná-la menos complexa
e mais digerível, pois os produtores culturais prevendo as atitudes de um público desejoso da aquisição de um
modo de vida e atitudes das camadas dominantes, ofereceria um mundo de aventura, ação e violência. Coisa
Segundo, ainda, Nogueira, essa linguagem que nos Estados Unidos teria em
escritores como Dashiel Hammett e Raymond Chandler seus precursores, habituaria os
leitores a uma leitura de fácil digestão, e que se configuraria como uma resposta ao duro
cotidiano das metrópoles e como uma maneira de compensação das fantasias de
agressividade.
Esse fato foi percebido por Antônio Cândido:
(...) Aludindo à influência, Antônio Cândido chama a tendência em
nossa literatura de “ultra-realismo” ou “realismo feroz”, notando que
aposta no “envolvimento agressivo” do leitor
140
.
Esse “realismo feroz” que pode ser percebido em Feliz Ano Novo, possuiria estreitas
ligações com essa literatura, que nos autores norte-americanos tem no detetive um tipo
durão, preocupado com questões morais e sociais a respeito dos crimes que desvendaria,
mas que com o passar do tempo foi tornando-se mais violento em autores como Mickey
Spillane, que em sua ficção, nos anos de 1950, criou o detetive Mike Hammer, que, ao
atuar, é extremamente violento e faz justiça com as próprias mãos.
Assim, a partir do policial violento, agindo de acordo com suas próprias convicções,
através de uma lenta evolução, surgiu o assassino que se desligou do policial tornando-se o
herói.
Esse parece ser o caso após os anos de 1960, da criação de Patricia Highsmith:
(...) O caso mais bem sucedido devemos a Patricia Highsmith e à saga
em vários tomos de Ripley, ladrão e homicida jamais punido, que leva
uma bela vida a usufruir de seus crimes
141
.
As influências do cinema noir também estariam presentes nessa literatura policial,
em que o policial livresco adaptou-se muito bem e dentro de um processo de circularidade
que uma literatura belletrista com suas reflees não conseguiria realizar para tornar-se vendável. Diz a autora
quando analisa a estética imposta pela indústria cultural com seus aspectos alienantes e que teve, no Brasil,
com a televisão seu ponto de inauguração: (...) A modernidade não é constituída por fatores supostamente
progressistas ( ) , comportando em seu amplo espectro outros que apenas servem para gerar conformismo,
difundir metas de ascensão social e espicaçar o desejo de bens materiais. E cujo objetivo é reforçar a ordem
burguesa, enfim. Galvão, Walnice Nogueira. Cultura contra cultura. Folha de S.Paulo, São Paulo, 17 mar.
2002.
140
GALVÃO, Walnice Nogueira. Realismo Feroz. Folha de S.Paulo, São Paulo, 09 jun. 2001.
141
Idem, 2001.
cultural, passou também a influenciar esse tipo na literatura, em que é muito comum o
bandido que é herói.
É o que Walnice Nogueira Galvão viu em “Feliz Ano Novo”:
(...) Na criação de personagens, pode-se dizer que o herói e protagonista
símbolo de Rubem Fonseca é o policial, assassino por opção, mesmo
quando utiliza codinomes elegantes como Matador ou Exterminador, que
relevam da “science fiction” cinematográfica e televisiva. Esse
homicida-herói pode ser pobre (“Feliz Ano Novo”) ou rico (“Passeio
Noturno”), amador dedicado ou profissional
142
.
Dessa forma, tanto em Feliz Ano Novo”, como em outros contos, o bandido é o
personagem central de cenas rápidas, que ao comandar delitos e agir de forma implacável,
torna-se herói
143
, pois chamaria a atenção dos leitores através de sua impetuosidade e
agressividade que passariam a ser motivos de idolatria.
E, para observar como Rubem Fonseca aplicou essas influências estéticas extra-
literárias à realidade carioca, vejamos as palavras de Nelson Pujol Yamamoto ao analisar O
Cobrador:
Em seu esforço para cativar, a prosa de Fonseca não se contenta com um
trecho bem tricotado. Também costuma evocar um clima “noir”,
traduzido num Rio cosmopolita, quase uma Los Angeles dos trópicos,
habitada por vilões excêntricos, mulheres belas e cultas, homens
ansiosos e sedutores. E, no que poderia ser identificado como uma
“conexão pós-moderna”, todo esse volume romântico de forte sotaque
cinematográfico - é pontuado por citações eruditas, que às vezes
resvalam no enciclopédico
144
.
142
Ibidem, 2001.
143
Dentro de nossa própria experiência com relação a vários filmes assistidos, podemos dizer que a utilização
de uma linguagem cinematográfica para compor os quadros de violência dos bandidos em “Feliz Ano Novo”,
muitas vezes contém verdadeiros pastiches dos filmes violentos americanos. E se não houve a construção de
cenas violentas em mera lenta pelo escritor em“Feliz Ano Novo” (como Renato Tapajós tenha construído),
no momento em que os bandidos atiram em um convidado na mansão, tanto a forma como Rubem Fonseca
descreveu o tiro e os efeitos, bem como o deslizar lentamente do personagem até ficar sentado no chão depois
do tiro, denunciam isso. E no caso, podemos perceber uma clara influência o só do cinema noir americano,
como também do cinema hollywoodiano do diretor San Pekinpah e seu pioneirismo em mostrar cenas brutais
em câmera lenta, onde personagens recebem cargas de carabinas calibre doze e o arremessados para trás.
Tudo isso, dentro de um realismo extraordinário em filmes do fim da década de 1960, como “Meu ódio será
tua herança” e de inícios da década de 1970, como “Sob o domínio do medo” com Dustin Hoffman.
144
YAMAMOTO, Nelson Pujol. Rubem Fonseca escreve sobre a inveja. Folha de S. Paulo, São Paulo, 09
abr. 1989.
Sérgio Augusto confirmou a vocação de Rubem Fonseca para o cinema:
Dificilmente haverá entre nós escritor mais cinéfilo do que o mineiro (de
Juiz de Fora) Rubem Fonseca, 63 anos de idade, a maior parte deles
vivida no Rio e, sobretudo naquelas escuras salas onde as vastas
emoções e os pensamentos imperfeitos são projetados numa tela. Tinha
apenas dois anos quando foi à sua primeira sessão de cinema, levado
pela babá.
145
.
Concluindo essa etapa de nosso trabalho, o que percebemos então, é que as
influências da mídia jornalística, como do cinema, ao serem aproveitadas na linguagem
direta e sucinta de Rubem Fonseca, leva-nos a perceber que, ao aspecto de posicionamento
político burguês da linguagem hiper-realista, ou seja, de não engajamento político, juntar-
se-ia o aspecto de uma assimilação das influências literárias das classes cultas
internacionais pelo escritor.
Conforme a análise da construção da obra de Rubem Fonseca - sobretudo em
alguns momentos com relação à obra Feliz Ano Novo e ao conto que lhe dá nome -
percebemos que os aspectos de uma condição humana particular, bem como de uma
violência histórica saltaram como símbolos essenciais, permitindo a observação de um
arcabouço de desconstrução da sua linguagem, a partir do qual pudemos perceber que
Rubem Fonseca, ao construir artisticamente essa condição humana e a violência ligada a
ela, utilizou vários artifícios técnicos que marcariam sua escrita com aspectos peculiares da
cultura urbana carioca, inclusive com um ideal estético da indústria cultural burguesa do
pós-guerra.
Essa apropriação mimetizaria os anseios de um padrão de vida de uma classe culta
nacional e internacional, da qual o próprio escritor e a maioria da crítica que o apoio fazem,
obviamente, parte.
Assim sendo, pudemos perceber que, anteriormente a 1975, a visibilidade sobre a
obra partiu, sobretudo, da crítica de jornais e, salvo alguns casos como o de Alfredo Bosi e
de forma sucinta em seu O conto brasileiro contemporâneo, a crítica acadêmica passaria
a se debruçar sobre o autor a partir da censura à obra Feliz Ano Novo.
145
AUGUSTO, Sérgio. Novo livro de Rubem Fonseca traz as “vastas emoções” cinematográficas. Folha de S.
Paulo, São Paulo, 19 nov. 1988.
Após esse momento em que a obra de Rubem Fonseca passou a ganhar visibilidade,
à crítica de jornais e revistas, somaram-se análises acadêmicas que muito contribuíram para
sua consolidação em torno da idéia de que possuiria uma estética brutalista.
De uma forma geral, os críticos de jornais e revistas, realizaram uma análise da obra
confrontada com as realidades do homem contemporâneo urbano, denunciadora das
mazelas dessa mesma sociedade, entretanto, sem uma análise mais profunda da linguagem
que proporcionou o suporte de tais conteúdos.
Os críticos, ao questionarem superficialmente a linguagem do autor, ficaram presos
ao nível literal de seu discurso, apesar de realizarem aproximações da literatura do autor
com o lugar social de sua época, com certos problemas da condição humana, e imbuídos de
certas concepções acerca desse social.
As análises acadêmicas, porém, ao lançarem mão do estudo dos aspectos estruturais
da linguagem do escritor sobre a condição humana, a partir de um modelo de análise
lingüístico, salvo alguns casos, construíram arcabouços de entendimento em que as obras
parecem não possuir ligações com o lugar social ao qual foram produzidas, realizando,
muitas vezes, apenas especulações sócio-históricas sobre as criações de Rubem Fonseca.
Não tendo sido possível auferirem uma recepção, sobretudo durante os anos de
1960, esses críticos analisaram a obra dentro de uma tradição cultural ocidental que se
fixou no binômio autor/obra.
Capítulo 3
A representação da violência contemporânea através da obra Feliz
Ano Novo e do conto “Feliz Ano Novo”
3.1. - A representação da violência no livro Feliz Ano Novo
Desde seus primeiros livros de contos da década de 1960, Rubem Fonseca sempre
causou impacto com suas histórias violentas, representassem elas o submundo ou o mundo
da classe média e dos ricos da cidade do Rio de Janeiro.
A brutalidade dos seus contos conseguiu, de uma forma inédita, captar uma
violência cotidiana e corrente, por meio de uma linguagem direta e inteiramente marcada
por essa mesma violência. Interagindo com seu momento histórico, passou a narrar, de
maneira sofisticada, acontecimentos que se tornariam corriqueiros numa sociedade cada
vez mais miserável e repleta de contradições.
Boris Schnaiderman percebeu essas características da linguagem de Rubem Fonseca
com relação aos seus cinco primeiros livros de contos das décadas de 1960 e 1970, em que
encontrou a alternância de vozes apontada por Mikhail Bakthin, com relação aos aspectos
dialógicos das narrativas fictícias. Partindo das peculiaridades da linguagem brutalista de
Rubem Fonseca e dentro dessa ótica, o crítico russo percebeu uma alternância de vozes de
barbárie e vozes de cultura em seus contos:
Lendo-se agora os seis livros de contos publicados até hoje, aparece
neles, com muita nitidez, a alternância de vozes de que nos fala o teórico
russo Mikhail Bakhtin. Dirigindo esta minha preocupação para os
contos de Rubem Fonseca, distingo claramente vozes de barbárie e vozes
de cultura. Mas o próprio Bakhtin ensina que as vozes, numa ficção que
ele denomina “dialógica”, existem mescladas, uma repercutindo na
outra, e, com muita freqüência, uma voz se fragmenta ou se junta a
outras.
Assim, as vozes de barbárie são contaminadas por algo que não se
coaduna com a palavra “bárbaro”. E a crueldade xima, o ápice da
violência, está muitas vezes matizada por que lhe é claramente oposto. O
rude, o excrementício, liga-se às vezes ao maior lirismo, numa
construção ritual, como no caso do rapaz que escreve com urina o nome
da amada, acrescido de dois corações, “um deles varado por uma flecha
inacabada”
146
.
Igualmente, podemos dizer sobre o livro Feliz Ano Novo, de 1975, com relação à
alternância dessas vozes de barbárie e de cultura que se mesclam principalmente em cinco
contos dessa obra: “Feliz Ano Novo”, “Passeio Noturno I”, “Passeio Noturno II”, “Nau
Catrineta” e “74 degraus”.
Essas narrativas foram as mais visadas pela censura à obra, em 1976, sobretudo,
“Feliz Ano Novo”.
Em “Feliz Ano Novo”, Rubem Fonseca relata a história de três bandidos que
decidem realizar um assalto numa mansão, num bairro de classe média alta do Rio de
146
SCHNAIDERMAN, Boris. (Org.). Rubem Fonseca/Contos Reunidos. São Paulo.: Companhia das Letras,
1998, p. 774.
Janeiro, na passagem do réveillon, instrumentalizado de um lado, por uma linguagem
repleta de gírias e palavreados vulgares utilizados pelos bandidos e, de outro lado, com um
um linguajar sofisticado transmitindo uma violência simbólica dos ricos para com os
marginais
147
.
“Passeio Noturno I”, constitui a narrativa de um empresário e pai de família que,
acostumado a passear sozinho à noite com seu belo carro negro, escolhe ruas desertas para
praticar alguns atos da mais extrema crueldade: sem deixar vestígios em seu automóvel, o
personagem atropela e assassina suas vítimas. Rubem Fonseca, aqui, utiliza-se de uma
linguagem fria e direta que nos passa a impressão de que os assassinatos cometidos pelo
empresário, configuram-se algo normal ao seu posicionamento social.
Em “Passeio Noturno II”, há uma repetição do enredo anterior; desta feita a vítima é
uma jovem atriz que, em um restaurante, conhece o empresário assassino. Aqui,
novamente, a narrativa é revestida pelos mesmos recursos de “Passeio Noturno I”.
“Nau Catrineta” relata a história de um jovem descendente do oficial imediato da
Nau Catrineta, que convida a namorada para jantar em sua casa ao comemorar seus 21
anos. Lá, envenena a moça e depois, com a ajuda de suas tias prepara o corpo para devorá-
lo em um ritual.
A barbárie aqui é produzida pela linguagem que constrói o sentido de tradição por
parte da origem do rapaz, colocando a delicada namorada como uma vítima a ser explorada
por essa mesma tradição.
Em “74 degraus”, temos a narração da violência de duas mulheres que,
aparentemente, desejam ter um relacionamento mais íntimo e para tanto assassinam dois
homens, um deles marido de uma delas.
Esse conto foi realizado por meio de imagens violentas que denotam um sentido
para essa mesma violência, de gratuidade, intolerância e satisfação imediata dos instintos
sexuais de duas mulheres egoístas
148
.
147
Tendo-se eleito esse texto como o mais representativo do livro com relação à discussão da violência que
surgiu a partir da década de 1970, faremos uma análise crítica no tópico posterior.
148
Como veremos ao longo deste capítulo, a idéia sobre a condição do homem, em Rubem Fonseca, está em
consonância com a perspectiva da visão do homem em Thomas Hobbes. Pois assim como esse filósofo, o
escritor demonstra através de suas histórias uma crença na igual capacidade violenta de todos para matar.
Hobbes, aliás, considerava ser o medo provocado por essa mesma capacidade, o maior motivo para os homens
em estado de natureza unirem-se numa comunidade política. ARENDT, Hannah. Sobre a Violência . Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 51.
Essas narrativas de Feliz Ano Novo, através de uma linguagem alternando aquilo
que Boris Schnaiderman define como vozes de barbárie e vozes de cultura, possuem a
internalização das imagens de uma violência contemporânea
149
que passou a se disseminar
na década de 1970, e que mostraremos passo a passo a partir do conto “Feliz Ano Novo”.
3. 2. - O Conto “Feliz Ano Novo” como confirmação da estética brutalista de
Rubem Fonseca e sua representação da miséria e da violência do Rio de Janeiro, na década
de 1970.
A leitura do conto “Feliz Ano Novo”, sempre nos chamou a atenção não só pela sua
linguagem brutal
150
, mas sobretudo porque nele percebíamos um instantâneo da violência
da cidade do Rio de Janeiro, durante a cada de 1970, em que imensas contradições
sociais eram reveladas através da condição existencial vivida pelo bandido protagonista.
Em “Feliz Ano Novo”, o autor nos mostra as contradições entre pobres e ricos, em
uma história em que três bandidos, passando fome num apartamento localizado na zona sul
do Rio de Janeiro, resolvem fazer um assalto na passagem de ano. Escolhem uma mansão
na região de São Conrado, onde ocorre uma festa de réveillon. Invadem a casa e assaltam
todos os presentes, e não contentes, estupram, cometem homicídios, bem como atos
escatológicos no ambiente higienizado da casa.
No momento em que rendem todos os que estão no recinto social, comemorando a
passagem de ano, o bandido protagonizador repara uma mesa repleta de refinados comes e
bebes, fato que lhe desperta uma reação de indignação com relação àquelas pessoas e
ambiente privilegiado.
Apesar de os assaltantes afirmarem que não farão mal a ninguém se não reagirem,
durante o transcurso da ação, e ao menor sinal de resistência, começam a matar. É o que
149
Gradativamente neste capítulo, mostraremos que tipo de violência foi internalizada na obra, por meio de
uma análise que teve como eixo central o entrecruzamento de três textos fundamentais: o conto Feliz Ano
Novo”; a crítica de Alfredo Bosi, de 1975, sobre a obra de Rubem Fonseca e a discussão sobre a violência em
Alba Zaluar.
150
BOSI, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo. Editora Cultrix: MCMXLXXV, p. 18.
acontece, por exemplo, com um dos convivas que resolve ter a audácia de tentar fazer um
acordo com os bandidos, afirmando que poderiam pegar o que quisessem, sem que
ninguém os denunciassem à polícia.
O bandido-protagonista, percebendo que o homem queria mostrar o controle da
situação para os outros convidados, entendeu tal atitude como arrogante e, ali mesmo, mata
o indivíduo com um tiro de carabina.
Conforme o desenrolar da história, a crueldade extrema dos bandidos é mostrada
através de uma violência gratuita”: é o caso da dona da mansão que resiste à tentativa de
estupro de um dos ladrões e é prontamente morta; ou de sua mãe que, ao ver a atitude dos
bandidos, morre de susto, e tem um dos dedos arrancados a dentadas por um dos marginais
que quer tirar seu anel; ou ainda, do convidado alvo de uma aposta entre os bandidos que
tentam ver, na prática, se um tiro em seu peito com a carabina de calibre doze, pregá-lo-ia
em uma porta.
Por fim, os marginais carregam tudo que podem, retornando sem maiores problemas
num opala roubado para o velho apartamento na zona sul
151
.
A análise crítico-literária dessa história fez com que a pensássemos dentro de uma
problemática teórico-metodológica em que pudéssemos, a partir do estudo de sua
construção narrativa, perceber, por meio de seu tema personagens, enredo, certas
representações sociais da época em que foi escrita
152
.
A partir dos gestos criadores da linguagem de “Feliz Ano Novo”, encontramos
estruturando a fala dos personagens, bem como seus atos e suas relações com o ambiente
em que vivem, certos signos formadores de simbologias que dão um sentido à temática da
violência no conto.
151
FONSECA, Rubem. In: SCHNAIDERMAN, Boris. (Org.) Rubem Fonseca/ Contos Reunidos. São Paulo.
Companhia das Letras: 1998, p.363 a 371.
152
Isso nos levou a entrecruzar ao conceito de “representação”, o método de análise do discurso histórico.
Partindo-se do objeto, a utilização dessa sistemática metodológica será assim realizada: A partir da nossa
análise de Feliz Ano Novo”, mostraremos que algumas simbologias constituem fatos literais e outras
constituem fatos lingüísticos relativos a determinadas imagens da violência na obra. Dessa forma, colaremos
tanto a imagem da narrativa, que conta os eventos sobre a violência na história, como a imagem da narrativa
genérica - utilizada pelo escritor para encadear esses mesmos eventos da violência e assim permitir sua
concatenação enquanto elementos de uma estrutura reconhecível - aos seus lugares sociais de curta e longa
duração históricos. BANN, Stephen. As invenções da História: ensaios sobre a representação do passado.o
Paulo: Edunesp, 1994, p. 63, 80 e 81.
Esses Signos e simbologias em “Feliz Ano Novo”
153
, que apontaram para a
representação de uma violência contemporânea, relacionam-se com uma prática de crimes
contra a pessoa que possui basicamente como seu motor - mas que não se restringe só a ele,
e isso nós demonstraremos adiante - o desejo de um consumo por parte de uma população
miserável, carente de educação e de cultura, de mercadorias que só a classe média e os ricos
podem consumir
154
.
Essa violência, pulverizada em suas várias formas, estaria ligada estreitamente ao
contexto de modernização contraditória, promovida através da implantação de um
capitalismo pós-golpe de 1964, e as misérias que produziu em metrópoles como o Rio.
Vejamos como se deu essa representação a partir do conto:
Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas
ricas para as madames vestirem no reveillon. Vi também que as casas de
artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque.
( ) Eu queria ser rico, sair da merda em que estava metido! Tanta gente
rica e eu fudido.
( ) Zequinha chupou o ar, fingindo que tinha coisas entre os dentes.
Acho que ele também estava com fome.
153
Segundo Roger Chartier, esses signos e simbologias estão construídos a partir das fórmulas que governam
as narrações. Pois como fala esse autor, as entidades que os historiadores manejam como sociedade, classes,
mentalidades, etc..., são quase personagens dotados implicitamente de propriedades que são as dos heróis
singulares ou dos indivíduos ordinários que compõem as coletividades e designam as categorias abstratas
citadas acima. Por outro lado, também, as temporalidades históricas possuem uma grande dependência em
relação ao tempo subjetivo, o que, de certa forma, colocaria em cheque a intenção da História de uma
pretensão à verdade. Finalmente, os procedimentos explicativos da História continuam solidamente
amparados na lógica da imputação causal singular, e dessa forma, ao modelo de compreensão que no
cotidiano ou na ficção, permite dar conta da explicação das decisões e das ações dos indivíduos e dos
personagens. Assim, apesar de não afirmarmos que a história se constitui num gênero ficcional, pois como diz
Michel de Certeau, esta envolve toda uma operação historiográfica, as afinidades descritas acima, com as
referências produtoras do relato ficcional, fazem-nos propormos os bandidos protagonistas de “Feliz Ano
Novo”, dentro de dois aspectos:1° Como uma reconfiguração de experiências individuais de bandidos dos
anos de 1970, mediatizadas por uma linguagem que os cercam de certas “garantias” que os aproximariam de
um “real” ligado à sua época. Essas “garantias” estão constituídas no texto através de alguns signos e
símbolos (PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra História: Imaginando o Imaginário. In:
Revista Brasileira de História. São Paulo: Contexto/ Marco Zero, n°29, p. 9-27, 1995.) que a representação
do autor depositou nele e que foram decifrados para entendermos o funcionamento da violência dos
personagens que protagonizam o conto. 2° Como personagens criados através de prefigurações lingüísticas
(os chamados 4 tropos clássicos da linguagem poética: metáfora, metonímia, sinédoque e ironia), onde
percebemos que o tropo ironia, sobressaindo-se em relação à sua combinação com os outros, determinou um
clima de “suspensão moral à história”, que esconde um significado estrutural profundo (deep structure) ligado
à visão de mundo do autor. CHARTIER, Roger. A História Hoje: vidas e propostas. In: Revista Estudos
Históricos. Rio de Janeiro: CPDOC, v.7, 13, 1994, p.103-104. CERTEAU, Michel de. A Escrita da
História. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 65 e 66.
154
ZALUAR, Alba. Para o dizer que não falei de samba: os enigmas da violência no Brasil. In: Schwarcz,
Lílian. (Org.) História da Vida Privada no Brasil. São Paulo,.Companhia das Letras, 1997, p. 246 a 318.
Eu tava pensando a gente invadir uma casa que tá dando festa. O
mulherio tá cheio de jóia e eu tenho um cara que compra tudo o que eu
levar. E os Barbados tão cheios de grana na carteira...
( ) O fumo acabou. A cachaça também. Começou a chover
155
.
A partir da exploração de certas figuras de linguagem que estruturam as imagens
dos atos violentos, e que formam certos argumentos por parte do autor, alguns fatos podem
ser ordenados em torno das seguintes simbologias:
Primeiramente, a raiva dos bandidos com relação aos ricos gira, no conto, em torno
da intencionalidade do autor em relacionar privações e misérias pelas quais passam os
bandidos em termos de fome, ambiente sujo em que vivem, carências emocionais e sexuais,
péssimas condições de saúde, em oposição à vida de regalia dos ricos, como um motivo
justificável para conseguirem aquilo que precisam através da violência.
O escritor chegou a criar alguns fatos que acredita como sendo geradores de tensão
e violência ligados às condições do próprio sistema social, como, por exemplo, a televisão
que, com suas imagens de um mundo de consumo
156
, gera raiva e frustração nos bandidos,
incitando-os a buscar, através do roubo, aquilo que vêem: a beleza e higiene do
comportamento dos ricos despertando o ódio dos ladrões.
155
FONSECA. op. cit., p. 365.
156
Essas imagens de um mundo de consumo apresentadas na televisão, representam as formas como o autor
internalizou - de acordo com nosso estudo sobre a obra de Maria Arminda do Nascimento Arruda: A
Embalagem do Sistema: A publicidade no capitalismo brasileiro os usos da publicidade voltadas a um
público limitado dentro do capitalismo retardatário brasileiro. Mesmo nos anos de 1970, apesar de ter
evoluído para uma fase de capitalismo monopolista, sua capacidade de produzir mercadorias continuou a estar
à frente da capacidade do mercado de consumir essas mesmas mercadorias. Assim, fala Arminda Arruda
quando trata da publicidade enquanto um dos componentes da reprodução capitalista numa fase oligopólica:
(...), a publicidade originariamente um setor do departamento de vendas, converteu-se numa prática
empresarial imprescíndivel nos quadros de uma estrutura produtiva que passa a gerar não apenas a
diversificação - um dos pilares da acumulação na etapa monopolista - mas também o aparecimento de
mercadorias similares. O papel da publicidade reside, fundamentalmente, no “planejamento” do próprio
consumo. No caso brasileiro, a autora diz o seguinte ao comentar as dimensões e o sentido da publicidade,
num período em que o capitalismo no Brasil atinge um estágio monopolista: (...) finalmente, na fase da
industrialização pesada, assiste-se à estruturação definitiva do mercado publicitário brasileiro, que se torna
fundamental quando se configura a fase monopolista. É neste momento que se criam forças produtivas
capitalistas; quando se redefinem as relações imperialistas. Nesta última etapa, a estrutura oligopolista que
se instala, pelas características que lhe são inerentes, mantém um crescimento adiante da procura, isto é,
opera com uma “capacidade ociosa planejada”. O fulcro da questão passou a ser a busca de “meios
eficientes” que permitissem movimentar a capacidade produtiva instalada.. Um desses meios foi incremento
da publicidade que se refletiu no crescimento espantoso das verbas destinadas às agências de propaganda.
Arruda, Maria Arminda do Nascimento. A Embalagem do sistema: a publicidade no capitalismo brasileiro.
São Paulo: Livraria Duas Cidades LTDA, 1985, p.185 a 188.
Sendo assim, teríamos, a partir de tais fatos explícitos na linguagem, a idéia de que
para o autor a miséria pode levar à violência.
Continuando a análise, podemos observar outro significado da linguagem explícita
do conto:
Depois de amanhã vocês vão ver.
Vão ver o quê?, perguntou Zequinha.
Só tô esperando o Lambreta chegar de São Paulo.
Porra, tu tá transando com o Lambreta?, disse Zequinha.
As ferramentas dele tão todas aqui.
Aqui?, disse Zequinha. Você tá louco.
Eu ri.
Quais são os ferros que você tem?, perguntou Zequinha.
Uma Thompsom lata de goiabada, uma carabina doze, de cano serrado,
e duas Magnum.
Puta que pariu, disse Zequinha. E vocês montados nessa baba tão aqui
tocando punheta?
( ) Posso ver o material? , disse Zequinha.
( ) Abri o pacote. Armei primeiro a lata de goiabada e dei pro Zequinha
segurar. Me amarro nessa máquina, tarratátátátá!, disse o Zequinha.
É antigo mas não falha, eu disse.
Zequinha pegou a Magnum. Jóia, jóia, ele disse. Depois segurou a doze,
colocou a culatra no ombro e disse: ainda dou um tiro com esta
belezinha nos peitos de um tira, bem de perto, sabe como é, pra jogar o
puto de costas na parede e deixar ele pregado
157
.
Nesse segundo momento, percebemos e esclarecemos, que a ótica de Rubem
Fonseca, ao não reservar aos pobres ou aos ricos nenhuma espécie de redenção para os seus
atos, pois todos produzem algum tipo de violência, faz com que essa se pulverize por todos
os lados em sua história. Os ladrões, produzindo a violência física; o rico, a violência
simbólica das palavras que produzem o desprezo. O sadismo dos bandidos que, num
momento de superioridade de poder ante os ricos, horrorizam esses últimos. O roubo de
carros por parte desses que prejudicam alguém desconhecido.
E, dessa forma, se por um lado o significado explícito gira em torno da idéia de que
a miséria geraria violência, agora temos como intenção do autor mostrar que tanto os
pobres como os ricos são violentos.
Porém, esses dois aspectos do significado explícito da linguagem do conto,
escondem um significado estrutural profundo, que pode ser apreendido através das
seguintes simbologias:
157
FONSECA, op. cit., p. 367.
Vamos comer, eu disse, botando a fronha dentro da saca.
Os homens e mulheres no chão estavam todos quietos e encangaçados,
como carneirinhos. Para assustar ainda mais eu disse, o puto que se
mexer eu estouro os miolos.
Então, de repente, um deles disse, calmamente, não se irritem, levem o
que quiserem, não faremos nada.
Fiquei olhando para ele. Usava um lenço de seda colorida em volta do
pescoço.
Podem também comer e beber à vontade, ele disse.
Filho da Puta. As bebidas, as comidas, as jóias, o dinheiro, tudo aquilo
para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles nós não
passávamos de três moscas no açucareiro.
Como é seu nome?
Maurício, ele disse.
Seu Maurício, o senhor quer se levantar, por favor?
Ele se levantou. Desamarrei os braços dele.
Muito obrigado ele disse. Vê-se que o senhor é um homem educado,
instruído. Os senhores podem ir embora, que não daremos queixa à
polícia. Ele disse isso olhando para os outros , que estavam quietos
apavorados no chão, e fazendo um gesto com as mãos abertas, como
quem diz, calma minha gente, já levei este bunda suja no papo.
Inocêncio, Você já acabou de comer? Me traz uma perna de peru dessas
aí. Em cima de uma mesa tinha comida que dava para alimentar o
presídio inteiro. Comi a perna de peru. Apanhei a carabina doze e
carreguei os dois canos.
Seu Maurício, quer fazer o favor de chegar perto da parede?
Ele se encostou na parede.
Encostado não, não, uns dois metros de distância. Mais um pouquinho
para cá. Muito obrigado.
Atirei bem no peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo
trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi
escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele tinha
um buraco que dava para colocar um panetone
158
.
A miséria, instrumento da violência contra os ricos, possui um aspecto simbólico
estrutural secundário de compensação e ressarcimento social para os personagens bandidos.
Seu Maurício, o senhor quer se levantar, por favor?
Ele se levantou. Desamarrei os braços dele.
Muito obrigado ele disse. Vê-se que o senhor é um homem educado,
instruído. Os senhores podem ir embora, que não daremos queixa à
polícia. Ele disse isso olhando para os outros , que estavam quietos
apavorados no chão, e fazendo um gesto com as mãos abertas, como
quem diz, calma minha gente, já levei este bunda suja no papo.
158
FONSECA, op. cit., p. 370.
Inocêncio, Você já acabou de comer? Me traz uma perna de peru dessas
aí. Em cima de uma mesa tinha comida que dava para alimentar o
presídio inteiro. Comi a perna de peru. Apanhei a carabina doze e
carreguei os dois canos.
Seu Maurício, quer fazer o favor de chegar perto da parede?
Ele se encostou na parede.
Encostado não, não, uns dois metros de distância. Mais um pouquinho
para cá. Muito obrigado.
Atirei bem no peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo
trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi
escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele tinha
um buraco que dava para colocar um panetone.
Viu, não grudou o cara na parede porra, nenhuma.
Tem que ser na madeira, numa porta. Parede não dá, Zequinha disse.
Os caras deitados no chão estavam de olhos fechados, nem se mexiam.
Não se ouvia nada, a não ser os arrotos do Pereba.
Você aí, levante-se, disse Zequinha. O sacana tinha escolhido um cara
magrinho de cabelos compridos.
Por favor, o sujeito disse, bem baixinho.
Fica de costas para a parede, disse Zequinha.
Carreguei os dois canos da doze. Atira você, o coice dela machucou o
meu ombro. Apóia bem a culatra senão ela te quebra a clavícula.
Vê como esse vai grudar. Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram
do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. Bateu
com estrondo na porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o
corpo do cara ficou preso pelo chumbo grosso na madeira.
Eu não disse?, Zequinha esfregou o ombro dolorido. Esse canhão é
foda.
159
.
os fatos ligados às atitudes de violência extrema, por parte dos bandidos que
descontam nos ricos suas frustrações e que ajudam a pulverizar a violência na obra,
possuem um caráter de relativização da condição dos bandidos enquanto marginais,
justamente pelo fato do escritor em impor um enredo irônico
160
que culmina na imposição
de um clima de suspensão moral”
161
à história e procurando, dessa forma, não tomar
partido nem pelo lado dos ladrões e nem pelo lado dos ricos.
159
Ibidem, p. 371.
160
Hayden White ao comentar que os poetas impõem uma forma narrativa para os eventos que desejam narrar
afirma que essa atitude dos poetas nada diferiria da atitude dos historiadores que também se utilizariam de
protocolos lingüísticos para prefigurar um conjunto de eventos antes de escrever suas narrativas. Assim, ao
falar isto, e ao dizer que sempre existe um elemento histórico em toda ficção, tais afirmações corroboram
nossa idéia de que foi a partir do tropo ironia que o autor Rubem Fonseca internalizou e concatenou os
eventos da violência histórica da década de 1970, como mostraremos ainda nesse capítulo. WHITE, Hayden.
O texto histórico como artefato literário. In: Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São
Paulo: EDUSP, 1994, p. 112-114.
161
Esse clima de “suspensão moral” vem confirmar a crença do autor na igual capacidade que todos os
homens teriam para cometer atos violentos, exatamente como pensava Hobbes.
As simbologias da linguagem figurativa denunciam a criação de uma imagem pelo
autor que encerra uma crença de que, ao praticarem seus crimes dentro dessa violência
provocada por um aspecto de vingança social cruel e extremada esses bandidos não
mais poderiam ser encarados, enquanto vítimas de um processo de marginalização social,
mas sim como participantes, dentro de seus modos, dessa sociedade de contradições
sociais.
Para Rubem Fonseca, ao praticarem crueldades e descontarem nos ricos seus
ressentimentos provocados pela privação, os pobres marginalizados deixam de ser vítimas
e coitados para assumirem seus papéis também de algozes daqueles que os desprezam.
Dessa forma, o autor procura mostrar que na sociedade contemporânea não existem
inocentes, e todos, cada um a seu modo, produziriam brutalidades.
Assim, a simbologia maior de tal linguagem figurativa que gira em torno das idéias
compensação e ressarcimento social e da tentativa de se criar um clima de “suspensão
moral” em sua história (todos produzem violências: o pobre e o rico), denuncia, na verdade,
a forma pela qual a sensibilidade do autor internalizou os motivos por trás da violência que
começou a ocorrer em sua época
162
: a necessidade da bandidagem em adquirir mercadorias
que não pudessem lhes reverter uma vida mais confortável, mas também apropriarem-se
de mercadorias de luxo que pudessem lhes reverter uma identidade diferenciada perante os
outros grupos de marginais, como também em relação às suas próprias comunidades. Por
isso, a apropriação pelos bandidos no conto, de jóias, relógios, talões de cheques, etc...
163
Assim, percebemos que tanto na linguagem explícita como na figurada de “Feliz
Ano Novo”, temos a construção de uma violência extrema muito ligada à intenção do autor
em mostrar como as classes pobres e os marginais passaram a querer apropriarem-se do
“estilo de vida” das classes proprietárias
164
.
Essa representação da busca de um “estilo de vida” por meio da bandidagem que
Rubem Fonseca desenhou em sua literatura, parece corroborar aquilo que Micael
162
Não se pode esquecer que Rubem Fonseca foi comissário de polícia no subúrbio carioca.
163
ZALUAR Com relação a esse tipo de consumo que define uma identidade no mundo, uma maneira de se
estar nele e que é chamado por Alba Zaluar de consumo de “estilo”, e que a partir dos anos de 1970, passou a
estar entre os motivos do aumento da violência, reportaremos mais à frente nesse capítulo. ZALUAR, op.cit.,
p.255.
164
Ao se apropriarem, porém, do “estilo de vida” das classes proprietárias, a marginália reelaboraria de
acordo com o seu lugar no jogo das relações sociais e das relações com o mercado esse mesmo “estilo de
vida”. HERSCHMANN, Micael. O funk e o Hip-Hop invadem a cena. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000,
p.59.
Herschmann se reporta como sendo o redimensionamento da política a partir do consumo,
pois o consumismo daria muito mais respostas a uma possibilidade de cidadania que a
participação dos indivíduos nos processos políticos
165
, que sabemos, no Brasil, estar restrito
- no caso da maioria da população - ao simples fato de votar.
Para Rubem Fonseca, a violência extrema ligada à obtenção de mercadorias,
constitui-se o meio pelo qual os bandidos inserem-se numa sociedade de contradições
sociais gritantes. Sociedade essa que impõe o culto da imagem dos indivíduos de acordo
com as mercadorias que consomem
166
.
Dessa forma, os personagens bandidos de Feliz Ano Novo” constituíram-se como
uma tentativa de Rubem Fonseca em construir atores ficcionais com discursos e
comportamentos que possuíssem certas interconexões com um submundo “real” de uma
cidade como o Rio de Janeiro, na década de 1970.
Assim, como bom conhecedor do submundo carioca, Rubem Fonseca
contextualizou seu personagem protagonista como um representante da condição
existencial a que muitos favelados, suburbanos e imigrantes estiveram fatalmente
condenados em cidades como o Rio de Janeiro, depois de 1964. Fez com que traduzisse,
também, a realidade de muitos indivíduos que, nascidos no subúrbio carioca, ao terem
contato com o crime, desde uma jovem idade, viram nesse mundo a possibilidade de ter
uma vida menos dura e resolveram, dessa forma, encará-la de frente, tornando-se
165
Assim, se reporta Herschmann a esse fenômeno quando cita Canclini e sua discussão da crise das formas
tradicionais de representação política: Corroborando esta perspectiva, Canclini sugere uma aproximação
entre cidadania e consumo. Segundo o autor, os indivíduos vêm recebendo mais respostas através do
consumo privado de bens e dos meios de comunicação de massa do que nas regras abstratas da democracia
ou pela participação coletiva nos espaços públicos. Canclini postula a necessidade de se identificar, ou
melhor, de se vincular cidadania e consumo, desconstruindo as concepções que julgam os comportamentos
dos consumidores predominantemente irracionais e as que somente em os cidadãos atuando em função da
racionalidade dos princípios ideológicos. Considera indispensável reconhecer a crise das formas
tradicionais de representação política e que o mercado de opiniões cidadãs inclui tanta variedade e
dissonância quanto o mercado da moda, o entretenimento. O autor postula a necessidade de atentarmos para
o fato de que somos cidadãos e consumidores, e que admitir isso nos leva a descobrir que na diversificação
dos gostos e dos estilos temos uma das bases estéticas que justificam a concepção democrática da cidadania.
Idem, 2000, p.60.
166
Herschmann, em seus estudos, enfatiza o papel fundador e estruturador que a violência desempenha na
dinâmica social, por meio de sua ambivalência e dimensão cultural: Volto-me para as representações da
violência, sublinhando o modo pelo qual ela ganha visibilidade e repercussão no imaginário social,
procurando, com isso, sem destacar o potencial irruptivo da violência, enfatizar o papel fundador e
estruturador da violência. Em outras palavras, longe de parecer apenas como evidência de dissidência ou de
“caos” social, a violência passa a ser vista no cenário intelectual, cada vez mais claramente, como tendo um
papel constitutivo, capaz de fecundar novas expressões do social. Ibidem, p.42.
profissionais do submundo
167
. Mas por outro lado, mostra-nos que muitos desses marginais
gostariam de ter levado a vida daqueles que consideravam como responsáveis por sua
situação.
Por meio do protagonista, o autor procurou internalizar tanto as possibilidades que
os marginais encontram no mundo do crime para terem uma vida melhor, como as práticas
brutais que realizam uma vez dentro desse mundo. Tudo isso, envolto pela tamm
internalização do que tenha sido a realidade sócio-econômica proporcionada principalmente
durante os anos 1970, pela política econômica imposta pelos militares nos maiores centros
urbanos, a partir de 1964.
Política essa que desencadeou um processo de modernização contendo a
disseminação de uma barbárie social (miséria e violência), dadas as estruturas arcaicas em
que foi realizada sua implantação (área periférica do capitalismo mundial)
168
, em que
cidades como o Rio de Janeiro, na década de 1970, viram suas contradições sociais
aumentarem ao extremo: de um lado, uma elite morando com todo o conforto
proporcionado pela modernização em bairros como a Barra da Tijuca e Ipanema, de outro,
milhões de pessoas morando nos subúrbios, morros e favelas, ou mesmo, no centro da
cidade, em péssimas condições de sobrevivência, o que fez com que milhares de indivíduos
optassem pelo crime como uma saída “mais fácil” para os seus dramas existenciais de
miséria.
Dessa forma, os bandidos protagonistas de “Feliz Ano Novo”, seriam a
presentificação de bandidos que, a partir de 1964, ainda jovens, engajaram-se nos
primórdios do crime organizado e passaram a ter, quando mais velhos e experientes, um
comportamento diferente dos chamados “bandidos românticos”, com relação à polícia da
ditadura.
De acordo com José Louzeiro, eles se encaixariam dentro da seguinte realidade
social:
Os delinqüentes mais espertos aproveitaram a boa época” da ditadura
para um melhor adestramemto. Trocavam armas por entorpecentes,
estabeleceram frentes de informação e atuação, dentro das milícias.
167
ZALUAR, Alba. Condomínio do Diabo. Rio de Janeiro: Revan : Ed. UFRJ, 1994, p. 9.
168
KURS, Robert. O Colapso da Modernização: Da Derrocada do Socialismo de Caserna à Crise da
Economia Mundial. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1992, p. 195.
Esse quadro terminou sendo montado com relativa facilidade, porque os
chamados marginais terminaram entendendo uma coisa: eles e os
policiais eram vizinhos nas mesmas favelas. E se estavam tão próximos,
porque não partirem para ‘bons acertos’, embora na hora de agir cada
um defendesse sua posição?
De posse das armas poderosas geralmente as mesmas usadas pelos
ditadores - , os delinqüentes passaram ao item 2 do seu trabalho
‘político’: atrair a atenção das comunidades carentes
169
.
Concluindo, podemos dizer que em “Feliz Ano Novo”, Rubem Fonseca construiu
uma representação verossímil do fenômeno de uma violência contemporânea, na cidade do
Rio de Janeiro, bem como do Brasil, na década de 1970, por meio de suas manifestações a
partir dos primórdios do crime organizado, que hoje em dia aterroriza todas as grandes
cidades do país.
3.3. - A contemporânea violência interpessoal na obra de Rubem Fonseca.
As considerações tomadas para analisar os agenciamentos e as estratégias que a
linguagem brutalista de “Feliz Ano Novo” possui, levou-nos a uma pergunta: Que tipo de
violência
170
contemporânea da cidade do Rio de Janeiro contém essa representação,
enquanto fator de construção artística do conto? Que fatores individuais e sociais estariam
relacionados ao desencadeamento dela? É o que tentaremos responder nesse capítulo.
169
LOUZEIRO, José. Violência: a guerra civil não declarada. In: Cadernos do Terceiro Mundo. Rio de
Janeiro, v. 11, n. 112, 10 jul. 1998, p. 54 a 68.
170
Maffesoli, em sua obra Dinâmica da Violência, chama a atenção para o fato de que a discussão sobre se
hoje existiria mais violência do que no passado é uma discussão supérflua. Para ele, trata-se de uma “estrutura
constante do fenômeno humano”, pois representa um certo papel na vida em sociedade. Dessa forma, o que
importaria, na verdade, é muito mais a explicação de qual seria o modo de fazer contemporâneo do que ele
mesmo chama de a “desordem fecunda”. MAFFESOLI, Michel. A dinâmica da violência. São Paulo Editora
Vértica, 1987, p. 13.
3. 3. 1- A representação da violência interpessoal dos pobres contra os ricos.
Para começarmos a análise da violência histórica em Feliz Ano Novo”, faz-se
necessário analisar este pequeno trecho do conto. Ele se configura como o simbolismo
central dos indícios de uma nova violência que começou a surgir no Brasil e no mundo.
Os homens e mulheres no chão estavam todos quietos e encangaçados,
como carneirinhos. Para assustar ainda mais eu disse, o puto que se
mexer eu estouro os miolos.
Então, de repente, um deles disse, calmamente, não se irritem, levem o
que quiserem, não faremos nada.
Fiquei olhando para ele. Usava um lenço de seda colorida em volta do
pescoço.
Podem também comer e beber à vontade, ele disse.
Filho da Puta. As bebidas, as comidas, as jóias, o dinheiro, tudo aquilo
para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles nós não
passávamos de três moscas no açucareiro.
( ) Atirei bem no peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo
trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi
escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele tinha
um buraco que dava para colocar um panetone
171
.
As intenções de Rubem Fonseca, de acordo com essa passagem, giraram em
torno da idéia de que, supostamente, ninguém teria morrido (vejamos bem: supostamente!),
não fosse a reação de um dos convidados com relação às imposições dos bandidos.
Uma reação que o autor fez questão de ser interpretada como hipócrita,
demonstrando sua visão pessimista da condição humana, pois foi através dessa reação que
ele forneceu à história aquilo que Hannah Arendt definiu como sendo a raison d’être que
justificou a violência dos bandidos.
Esse ponto de vista é confirmado pelo crítico Deonísio da Silva, que fala sobre as
razões da violência dos bandidos de Rubem Fonseca:
(...) os bandidos matam para viver e deixam clara essa opção. Mas não
vivem para matar; daí o refinamento de uma metáfora esplêndida. Se
171
FONSECA, Rubem. In: SCHNAIDERMAN, Boris. (Org.) Rubem Fonseca/ Contos Reunidos. São Paulo.
Companhia das Letras: 1998, p.370.
matar é condição para viver, que as ações sejam realizadas em grande
estilo. Misturando aforismos, clivados por atrapalhes do cotidiano, os
bandidos declinam uma especial condição de vida: para viver é preciso
matar
172
.
Dessa forma, a intenção do autor, em construir a hipocrisia e a falta de
sensibilidade de Maurício convidado da festa - , propositalmente visou a esvaziar o poder
de coação dos ladrões. Esses, ao sentirem seus poderes esvaziados, não vêem outra
alternativa senão desferirem uma violência extrema
173
contra o próprio Maurício e contra
um outro convidado.
Esses ressentimentos latentes, construídos pelo autor denotam sua crença na
possibilidade de que a sociedade, nos anos de 1970, tinha passado a proporcionar para
certos indivíduos pobres e miseráveis diante de um contato negativo” com os ricos, a
oportunidade de descontarem não só suas carências, mas também seus sentimentos de
inveja com relação à vida que os mais privilegiados possuem
174
.
A própria condição estética do personagem Maurício, homem bem tratado,
desencadeia o que estava latente nos bandidos: a raiva de suas próprias condições de
miséria
175
:
Fiquei olhando para ele. Usava um lenço de seda colorida em volta do
pescoço.
( ) Filha da puta. As bebidas, as comidas, as jóias, o dinheiro, tudo
aquilo para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles,
nós não passávamos de três moscas no açucareiro
176
.
Essa estética, que representa uma “perda da inocência” de parte do momento atual
da literatura brasileira - ou seja, que demonstra um certo pessimismo, uma falta de
esperança nas relações humanas, muitas vezes expressada na violência interpessoal de
172
SILVA, Deonísio da. Rubem Fonseca: Proibido e Consagrado. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Prefeitura,
1996, p. 103.
173
Hanna Arendt diz que “Substituir o poder pela violência pode trazer à vitória, mas a um preço muito alto
que não é apenas pago pelo vencido, mas também pelo vencedor em termos de seu próprio poder”. Dessa
forma, o poder dos ladrões, ao ser colocado em questão pelo convidado, foi substituído pela violência brutal.
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 42.
174
ANSART, Pierre. História e Memória dos Ressentimentos. In: BRESCIANI, Stela e Naxara, Márcia.
(Org.) Memória e (res)sentimento: Indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Editora da Unicamp,
2001, p.15-36.
175
MAFFESOLI, op.cit., p. 10-13.
176
FONSECA, op. cit., p. 370.
pobres contra ricos, ou vice-versa - surgiu na sociedade brasileira do pós-guerra,
simbolizada por uma corrente que passou a vigorar, a partir dos anos de 1950, com Plínio
Marcos, e depois em autores como Dalton Trevisan, atingindo uma expressão mais direta
nos anos 1960 e 1970, com Rubem Fonseca e outros nomes como Sérgio Sant’Anna.
Essa corrente literária, inspirada na constância de uma violência extremada
(estupros, assassinatos e torturas), parecia demonstrar uma nova orientação social não
com relação aos sentimentos e atitudes desse novo grupo de escritores, em face de uma
nova violência social, mas também com relação aos seus valores e posicionamentos,
advindos de suas respectivas formações e da sociedade que os recepcionou.
Podemos ver isso em Plínio Marcos que, em 1958, mostrou com sua obra Barrela,
a vida cruel da prisão, em que, por meio de um diálogo direto entre os detentos de uma
cela, revela como os presos, muitas vezes, resolvem suas carências sexuais através do
homossexualismo, resolvendo também seus ressentimentos por intermédio do assassinato
de companheiros dentro da cela.
Porém, o que nos chamou a atenção é o momento em que um rapaz de posição
privilegiada é jogado dentro da cela junto com os detentos violentos e é violentado por
quase todos os homens da cela. A boa aparência do jovem incita sua própria desgraça.
Numa linguagem brutal, fica claro que Plínio Marcos não possuía muitas
esperanças com relação à condição humana
177
.
Já Dalton Trevisan, que construiu com sua obra cenas brutais de violência e
degradação
178
, em Crimes de paixão (1978) criou, em várias de suas histórias, um painel
grotesco das pequenas misérias, das frustradas devassidões, dos fetichismos impotentes.
Dentre elas uma, em especial, chamou-nos a atenção: “A Gilete na Peruca Loira”, em que
temos a história de uma cantora prostituta que sai com um homem rico e, em um
determinado momento, pensa em matá-lo devido ao desprezo demonstrado por ele após ter-
se deitado com ela.
Temos ainda João Antônio, que em Malagueta, Perus e Bacanaço, mostrou,
utilizando uma linguagem lírica popular, de forma breve, intensa e sintética, um narrador
177
MARCOS, Plínio. Barrela. São Paulo:Global Editora, sem data.
178
BOSI, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Editora Cultrix, MCMXLXXV, p. 18.
que relata o andamento vital de criaturas apertadas entre a urgência de vencer a fome e o
medo agudo da polícia ou do malandro mais forte
179
.
Mas, se essa corrente representava a violência de uma sociedade que estava em
rápida transformação, Alfredo Bosi congregaria a ela, de acordo com suas análises, uma
literatura ainda mais direta e brutal que também nasceu nos anos de 1960 e 1970, tempo em
que:
(...) o Brasil passou a viver da explosão de um capitalismo selvagem,
tempo de massas, tempo de renovadas opressões, tudo bem argamassado
com requintes de técnica e retornos deliciados a Babel e a Bizâncio. A
sociedade de consumo é, a um só tempo, sofisticada e bárbara
180
.
Para ele, junto a Rubem Fonseca ou dentro de sua tendência, fizeram escola
escritores como Luiz Vilela, Sérgio Sant’Anna, Manoel Lobato, Wander Piroli, e de
contistas que escreveram para o Suplemento Literário do Minas Gerais, de Moacyr Scliar e
de outros escritores gaúchos ligados à Editora Movimento, bem como textos quase-
crônicas do seminário carioca Pasquim.
Ainda segundo Alfredo Bosi, nos anos de 1970:
Essa literatura, que respira fundo a poluição existencial do capitalismo
avançado, de que é ambiguamente secreção e contraveneno, segue de
perto modos de pensar e de dizer da crônica grotesca e do novo
jornalismo yankee. Daí os seus aspectos antiliterários que se querem,
até, populares, mas que não sobrevivem fora de um sistema de atitudes
que sela, hoje, a burguesia culta internacional
181
.
Podemos sublinhar para concluir esta etapa sobre as razões e as relações da
estética da violência interpessoal de Rubem Fonseca, bem como da corrente à qual
pertence, que a própria censura ao livro “Feliz Ano Novo”, em 1975, configurou-se como
uma legitimação do objeto estético
182
que contém, enquanto representação da nova
violência social de uma sociedade de desigualdades gritantes, em que os ricos não estariam
179
Idem, MCMXLXXV, p.19.
180
Ibidem, p. 18.
181
Ibidem, p. 18.
182
LEENHARDT, Jacques. Teoria da Comunicação e Teoria da Recepção. In: Anos 90 (Revista do Programa
de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul ). Porto Alegre, dez/ 1997, n. 8.
incólumes a essas mesmas misérias do Brasil, da década de 1970. A esse respeito,
pronunciou-se Boris Schnaiderman:
Os contos de Rubem Fonseca, quando surgiram, causaram impacto com
a brutalidade do submundo que expressavam. Por mais que numerosos
autores tivessem tratado do tema, esses contos impressionavam. Não
havia neles uma observação de fora para dentro, não tinham nada a ver
com uma anotação “etnográfica”, mas, sobretudo, aquela brutalidade
era algo cotidiano e corrente, a própria linguagem ficava marcada por
ela.
De lá para cá, a vida brasileira, em seu conjunto, tornou-se mais brutal
e implacável, fatos como os narrados ali passaram a fazer parte de
nossa vivência diária e acabamos mais acostumados com eles. (Não será
isto mais uma das “ironias da História” de que fala Isaac Deutscher?
Como nos parece anacrônica a indignação com que os porta-vozes do
establishment reagiram à publicação de Feliz Ano Novo em 1975! Estar
no poder e indignar-se com a brutalidade, na década de setenta...)
183
Vejamos agora as interconexões que essa corrente literária possuiu com a violência
social do Brasil dos anos de 1970.
3.3.2 - A contemporânea violência interpessoal no Brasil, dos anos de 1970
Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas
ricas para as madames vestirem no réveillon. Vi também que as casas de
artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque.
Pereba, vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha
morta e farofa dos macumbeiros”
( ) Acendemos uns baseados e ficamos vendo a novela. Merda.
Mudamos de canal, prum bangue-bangue. Outra bosta.
“As madames granfas tão todas de roupa nova, vão entrar o ano novo
dançando com os braços pro alto, já viu como as branquelas dançam?
Levantam os braços pro alto, acho que é pra mostrar o sovaco, elas
querem mesmo é mostrar a boceta mas não tem culhão e mostram o
sovaco. Todas corneiam os maridos. Você sabia que a vida delas é dar a
xoxota por aí?”
183
SCHNAIDERMAN, Boris. (Org.). Rubem Fonseca/Contos Reunidos. São Paulo: Companhia das Letras,
1998, p. 773.
( ) Eu queria ser rico, sair da merda em que estava metido! Tanta gente
rica e eu fudido
184
.
Ao iniciar o texto, com os marginais assistindo na televisão o consumo conspícuo
e o divertimento da classe média e dos ricos da cidade, o autor procurou com essas imagens
incitar nos bandidos a consciência de suas próprias condições de miséria. Foi a partir desse
cenário que, intencionalmente, Rubem Fonseca construiu, progressivamente, a extrema
violência dos bandidos em relação aos ricos.
Nesse sentido, essa violência, relacionada aos meios de comunicação e a um
consumo de estilo
185
, demonstra que o autor antecipou uma discussão que só seria realizada
pelos meios acadêmicos, em algumas obras teóricas no final da década de 1970, sobretudo,
a partir dos anos de 1980, como também um pouco mais tarde pela sociedade brasileira de
uma maneira geral
186
.
Por isso, desse ponto de vista, essa violência é histórica e particular, pois aponta,
já nos anos de 1970, fenômenos ligados à violência que explodiria no Brasil e no mundo na
década de noventa. Violência que se transformou com o desenvolvimento de uma indústria
cultural, em meados dos anos de 1960, no Brasil, e que foi liderada pela televisão durante
os anos de 1970. Quando ocorreu o natural avanço da publicidade (que passaria a manter
em grande parte o complexo de comunicação), como também de uma racionalidade
administrativa e comercial dos meios de comunicação, o que fez com que, a partir desse
momento, a lógica do lucro para a expansão e sobrevivência dos meios de comunicação
prevalecesse. Finalmente, a lógica de uma sociedade em que deveria prevalecer o consumo,
184
FONSECA, op, cit., 365.
185
O consumo de estilo liga-se segundo Alba Zaluar a uma forma de consumo, que surgiu na sociedade de
massas do pós-guerra e que esinteiramente relacionado à aquisição de uma identidade, de uma gratificação
narcisista, de uma maneira de se estar no mundo a partir do momento em que indivíduos adquirem e portam
certas mercadorias de luxo. Para Alba Zaluar, o consumismo de estilo o estando ao alcance de todos, gera
violência: As mudanças no consumo observadas como um dos efeitos do processo de globalização do
consumo familiar para um consumo de “estilo”, muito mais caro, que inclui o uso de drogas favoreceram
igualmente o aumento impressionante verificado em certos crimes contra a propriedade (furtos e roubos) e
contra a vida (agressões e homicídios). ZALUAR, Alba. Para o dizer que o falei de samba: os enigmas
da violência no Brasil. In: Schwarcz, lian. (Org.) História da Vida Privada no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997, p. 255.
186
Idem, 1997, p.254-255.
ainda que fosse um consumo conspícuo das classes mais altas
187
, instalava-se nos meios de
comunicação no Brasil, na década de 1970, principalmente na televisão.
188
E é o que
percebemos nesta passagem do conto:
Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado
roupas ricas para as madames vestirem no réveillon. Vi também que as
casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque
189
.
Isso denuncia o que parecia então ocorrer já nos anos 1970: a modernização da
sociedade brasileira que reestruturou, segundo Renato Ortiz, a relação entre as esferas de
bens restritos e a de bens ampliados, em que a lógica comercial, ao se tornar dominante,
passou a determinar o espaço a ser conferido as outras formas de manifestações
culturais
190
.
Dentro dessa lógica, Rubem Fonseca, ao apresentar os bandidos como possuidores
de uma televisão, mas não tendo o que comer no velho apartamento, captou com sua
sensibilidade de escritor, um fenômeno que passou a ocorrer, no Brasil, em relação à
massificação dos aparelhos de TV.
Tendo sido um bem durável que, nos anos de 1970, devido ao crediário, chegou às
classes mais populares, massificando-se, dessa forma, o uso da TV no Brasil, provocou ao
mesmo tempo um efeito contrário ao poder de consumo da maioria desses novos
consumidores de aparelhos, pois como disse, em 1978, Muniz Sodré:
(...) os bens de luxo que começam a predominar nas imagens do vídeo
destinam-se, em termos de mercado real, aos privilegiados do consumo
suntuário, exacerbado pela concentração de renda. Uma emissora de
televisão com ampla audiência nacional (caso da Rede Globo) falará
cada vez mais de um universo estranho à prática social da maioria de
seu público. Para este, constituído de gente excluída da divisão do
grande bolo da renda, os bens e os atos mostrados na tevê só podem ser
187
ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A Embalagem do sistema: a publicidade no capitalismo
brasileiro. São Paulo: Livraria Duas Cidades LTDA, 1985, p. 189.
188
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira.Cultura Brasileira e Indústria Cultural. o Paulo: Editora
Brasiliense, 1991, p. 130 a 148.
189
FONSECA, op, cit., p. 365.
190
ORTIZ, op. cit., 148.
consumidos em suas funções inessenciais, ou seja, no plano da
imaginação – controlada
191
.
Possuindo, então, uma linguagem do desejo forçado, a televisão cria a idéia de um
consumo que é impossível. Para a grande maioria da população, nos anos de 1970, (...) ver
televisão significava assim como hoje, viver a substância do real pelo consumo
imaginado
192
.
E a questão é que essa realidade de um consumo que se circunscreveu e se
circunscreve na imaginação da maioria da população brasileira, interligou-se ao estágio de
um capitalismo, que na década de 1970, devido às particularidades de sua evolução que
desde os anos de 1950 apoiou-se na concentração de renda nos estratos mais elevados da
sociedade, a saída para um consumo que sustentasse seu próprio desenvolvimento
Maria Arminda Nascimento Arruda quando se refere a esta etapa do capitalismo, no
Brasil, como de um consumo limitado e relaciona a importância da publicidade no seu
processo de acumulação, disse em 1985:
(...) Nesta última etapa, a estrutura oligopolista que se instala, pelas
características que lhe são inerentes, mantém um crescimento adiante da
procura, isto é, opera com uma “capacidade ociosa planejada”. O fulcro
da questão passou a ser a busca de “meios eficientes” que permitissem
movimentar a capacidade produtiva instalada. Uma das formas
encontradas foi ampliar a concentração da renda nos estratos mais
elevados da população, a partir de uma contenção dos salários de base.
Este expediente era fundamental a uma economia cujo desenvolvimento,
a partir de 1956, se deu em cima do Departamento de Bens de Consumo
Capitalista. Por isso, a estreiteza do mercado, originária deste processo
concentracionista, torna-se ainda menor em virtude do tipo de bens
produzidos. Nesse quadro, a publicidade converteu-se em recurso
essencial, explicando o crescimento espantoso da verba destinada às
suas agências. ( ) Pensamos ter mostrado que a manipulação
publicitária que se seguiu foi bastante bem sucedida, corroborada pelo
notável crescimento das agências, e o consumo conspícuo dos estratos
mais altos garantiu uma alta rentabilidade às empresas produtoras
desses bens. O consumismo transformou-se no “novo fetiche”. ( )
Embora a importância da publicidade no processo de reprodução no
capitalismo retardatário seja, grosso modo, a mesma do capitalismo
maduro, estamos diante de uma sociedade na qual, por sua própria
“natureza”, os efeitos perversos do desenvolvimento capitalista são
extremamente pesados. Estou me referindo ao caráter social e
191
SODRÉ, Muniz. O monopólio da fala. Petrópolis: Editora Vozes, 1984, p. 116.
192
Idem, 1984, p. 116.
regionalmente excludente do capitalismo brasileiro, que, antes de serem
totalmente eliminados, parecem ser renovadamente recriados. Estou
pensando também num capitalismo cujo Departamento de Bens de
Produção não se desenvolve plenamente, cujo desenvolvimento se faz
sob a égide do Estado e com a participação dos capitais internacionais,
expressão mais elevada do imperialismo Todos esses elementos
convergem para a definição do capitalismo brasileiro como um
capitalismo específico, especificidade esta que se manifesta na
onipresença do Estado, na relevância das multinacionais, no
atrofiamento de parte do setor produtivo nacional, na concentração de
renda que determina o consumo conspícuo, na própria publicidade e na
indústria cultural. A publicidade, especialmente, assume uma proporção
considerável quando comparada à publicidade nas economias centrais.
Disto resulta a contradição aparente que é a de se ter num país
periférico a terceira televisão e o sétimo mercado publicitário mundo.
Tal incursão, nos meandros da estrutura publicitária brasileira, tem a
virtude de iluminar os desvãos mais recônditos do capitalismo nesse
país
193
.
Todavia, Rubem Fonseca, percebendo esse fenômeno, entendeu que nem todos se
limitaram (...) a viver a substância do real pelo consumo imaginado (...)
194
de forma
resignada, principalmente se estiverem no mundo do crime. Portanto, para o autor, a
mistura televisão + consumo são fatores que juntos poderiam despertar a violência de quem
tem pouco a perder.
Em “O Cobrador”, conto de 1979, o autor insistiu em tais efeitos de agressão
simbólica que as imagens publicitárias podem causar, gerando ressentimento e violência de
pobres que se enveredam pelo crime, e têm como alvo os privilegiados financeiramente:
Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som,respeito,
sanduíche de mortadela no botequim da Rua Vieira Fazenda, sorvete,
bola de futebol.
Fico na frente da televisão para aumentar o meu ódio. Quando minha
cólera está diminuindo e eu perco a vontade de cobrar o que me devem
eu sento na frente da televisão e em pouco tempo meu ódio volta. Quero
muito pegar um camarada que faz anúncio de uísque. Ele está
vestidinho, bonitinho, todo sanforizado, abraçado, com uma loira
reluzente, e joga pedrinhas de gelo num copo e sorri com todos os
dentes, os dentes dele são certinhos e são verdadeiros, e eu quero pegar
ele com a navalha e cortar os dois lados da bochecha até as orelhas, e
aqueles dentes branquinhos vão todos ficar de fora num sorriso de
193
ARRUDA, op. cit., p. 188-189.
194
SODRÉ, op. Cit., p. 116.
caveira vermelha. Agora está ali, sorrindo, e logo beija a loura na boca.
Não perde por esperar
195
.
Durante a década de 1970, não só Rubem Fonseca mas tamm os próprios
militares, em um documento oficial, acreditavam nas influências dos meios de
comunicação de massa sobre a população de um modo geral:
Reconhece-se ainda a importância dos meios de comunicação de massa,
sua capacidade de difundir idéias, de se comunicar diretamente com as
massas, e, sobretudo, a possibilidade que têm em criar estados
emocionais coletivos
196
.
Apesar de os militares terem pensado esses “estados emocionais coletivos” muito
mais do ponto de vista do inconformismo do que ligado às frustrações e aos ressentimentos
que as propagandas televisivas, controladas por eles, poderiam suscitar em certos
indivíduos, eles corroboram nossa idéia acerca das influências dos meios de comunicação
de massa e as mudanças de comportamento da violência, a partir da década de 1970. Com
relação a esses meios, o documento diz ainda, de maneira inequívoca:
(...) bem utilizados pelas elites constituir-se-ão em fator muito
importante para o aprimoramento dos componentes de Expressão
Política; utilizados tendenciosamente podem gerar e incrementar
inconformismo
197
.
Ao que tudo indica, os meios de comunicação geraram muito mais inconformismo
com relação ao desejo de consumo do que com relação a um inconformismo político. Se,
parte das elites desejava que as massas fossem controladas por um Estado autoritário,
repressor, e ao mesmo tempo incentivador de atividades culturais que garantissem a
segurança dessas mesmas elites; o que não se contava, era com os efeitos que as imagens
de consumo sobre uma população de miseráveis, sobretudo das grandes cidades como o
Rio de Janeiro, poderiam suscitar.
195
FONSECA, op. cit., p. 493.
196
ORTIZ, op. cit., p. 116.
197
Ibidem, p. 116.
Tal afirmação parece estar em acordo com Alba Zaluar quando discute sobre os
fatores interacionais que contribuíram para o fenômeno da violência, a partir dos anos de
1980 e 1990.
Segundo essa autora, a sociedade do pós-guerra caracterizou-se por um intenso
processo de transformações sociais que resultaram numa nova maneira de definir as
identidades através das relações dos indivíduos com certas atividades de consumo e lazer.
Esse processo teria gerado fragmentação social e atomização dos indivíduos, sendo que
teria abarcado as várias camadas sociais da população.
Partindo das análises dos estados de subjetividades, em que os indivíduos passam
a viver nessa realidade, as possibilidades de escolha destes é que realizam suas imagens
diante dos outros, que criam uma identidade, uma biografia para eles.
Assim, a atomização desses indivíduos, ao mesmo tempo que garante sua
liberdade de escolha - pois o mercado assim os coloca para que não tenham obstruções com
relação ao consumo que os diferencie dos outros, que não possuem condições de consumir
- , anularia as prescrições tradicionais, por exemplo, que eram realizadas pela família. As
opiniões particulares dos indivíduos, suas críticas passam a ser um passo necessário e
fundamental para a participação e reconhecimento social e político.
Mas, por outro lado, tais liberdades de escolha, no plano da justiça, provocariam
a fragilização dos controles morais tradicionais que, junto com as leis, ajudaram a regular
as regras de uma convivência civilizada entre os indivíduos, e que não foram substituídas
por outras formas que considerassem uma (...) nova ética pós convencional fundamentada
na liberdade pessoal e no entendimento com os outros por meio do diálogo, da
mutualidade e do respeito ao direito alheio
198
.
Muito, portanto, dessa nova violência, que tem seus indícios na década de 1970,
ligar-se-ia ao fato de que diversos indivíduos, carecendo de uma formação educativa
mínima e de uma família que prescreva um padrão de conduta para a formação de sua
identidade, usariam dessa nova liberdade para satisfazer, de modo violento, suas tentações
de um consumismo de estilo, que é o elemento diferenciador em uma massa de indivíduos
desprovidos.
198
ZALUAR, op. cit., 255.
Daí que as práticas centradas nas gratificações narcisistas das imagens
especulares, ou nos hábitos mais imediatos de busca do prazer, seja no
jogo, nas drogas ou na diversão, ganham maior importância na vida de
vários setores da população, especialmente os mais jovens, o que torna
lucrativo o investimento nos negócios que exploram o seu consumo,
organizando atividades criminosas em torno dos que são proibidos pela
lei. As mudanças no consumo observadas como um dos efeitos do
processo de globalização do consumo familiar para um consumo de
“estilo”, muito mais caro, que inclui o uso de drogas favoreceram
igualmente o aumento impressionante verificado em certos crimes contra
a propriedade (furtos e roubos) e contra a vida (agressões e
homicídios)
199
.
Esses parecem ser os motivos implícitos nos crimes dos bandidos de Rubem
Fonseca. Se é o consumismo que diferencia os indivíduos da massa dos desprovidos, as
imagens dos meios de comunicação podem incitar os miseráveis, que se enveredam para o
crime, a um consumo que só pode ser conseguido através de uma quebra total das regras de
convivência civilizada, como é o que acredita o escritor: seus bandidos, depois de
assistirem à televisão, saem à rua para roubar.
Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas
ricas para as madames vestirem no réveillon. Vi também que as casas de
artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque.
( ) Eu queria ser rico, sair da merda em que estava metido! Tanta
gente rica e eu fudido.
( ) Zequinha chupou o ar, fingindo que tinha coisas entre os dentes.
Acho que ele também estava com fome.
Eu tava pensando a gente invadir uma casa que tá dando festa. O
mulherio tá cheio de jóia e eu tenho um cara que compra tudo o que eu
levar. E os Barbados tão cheios de grana na carteira...
O fumo acabou. A cachaça também. Começou a chover
200
.
E, uma vez que o consumo determina as identidades no mundo contemporâneo,
o não acatamento da opinião daquele que rouba objetos de consumo para possuir uma
identidade, pode levá-lo a uma violência que não se limita a subtrair objetos cobiçados de
alguém, mas também da eliminação do proprietário do objeto. Pois o enfrentamento do
199
Ibidem, p. 255.
200
FONSECA, op. cit., p. 365-368.
proprietário levá-lo-ia a sentir-se como um desqualificado, “um sem identidade”,
humilhado e frustrado, diante daqueles que possuem o poder para consumir e não respeitam
sua opinião.
Os homens e mulheres no chão estavam todos quietos e encangaçados,
como carneirinhos. Para assustar ainda mais eu disse, o puto que se
mexer eu estouro os miolos.
Então, de repente, um deles disse, calmamente, não se irritem, levem o
que quiserem, não faremos nada.
Fiquei olhando para ele. Usava um lenço de seda colorida em volta do
pescoço.
Podem também comer e beber à vontade, ele disse.
Filho da Puta. As bebidas, as comidas, as jóias, o dinheiro, tudo aquilo
para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles nós não
passávamos de três moscas no açucareiro.
( ) Atirei bem no peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo
trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi
escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele tinha
um buraco que dava para colocar um panetone
201
.
Essa reação violenta que Rubem Fonseca localiza em seus bandidos estaria,
segundo a análise de Hannah Arendt sobre a violência e não observando as questões
relativas às subjetividades contemporâneas, dentro de uma racionalidade peculiar ao
fenômeno violência:
(...) ninguém reage com ódio a uma doença incurável ou a um
terremoto, ou, no que concerne ao assunto, a condições sociais que
parecem ser imutáveis. O ódio aparece apenas onde há razão para supor
que as condições poderiam ser mudadas, mas não são. Reagimos com
ódio apenas quando nosso senso de justiça é ofendido
202
.
A reação da vítima Maurício configura-se pelo viés racional do bandido, como
uma não compreensão de sua condição social miserável, que, de uma forma geral, ao
abordar alguém, ele procuraria uma pessoa que possa lhe dar algo em troca e que ele julgue
poder possuir.
A aparente racionalidade do personagem Maurício, para tentar sobreviver, em que
procura demonstrar compreender a situação dos bandidos, mas que não foi aceita por eles,
justamente por ter sido interpretado como uma manifestação falsa, provocou o ódio dos
mesmos.
201
Ibidem, p. 370.
202
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 47.
Posto que os homens vivem em um mundo de aparências e, ao lidar
com ele, dependem de manifestações, à dissimulação da hipocrisia
enquanto distinta dos expedientes e astúcias, seguidos da revelação no
tempo devido não pode ser enfrentada pelo assim chamado
comportamento racional. podemos nos fiar nas palavras se estamos
certos de que sua função é a de revelar, e não a de esconder
203
.
Acreditamos ser essa a intenção de Rubem Fonseca, ao justificar a morte de
Maurício:
Os homens e mulheres no chão estavam todos quietos e encangaçados,
como carneirinhos. Para assustar ainda mais eu disse, o puto que se
mexer eu estouro os miolos.
Então, de repente, um deles disse, calmamente, não se irritem, levem o
que quiserem, não faremos nada.
Fiquei olhando para ele. Usava um lenço de seda colorida em volta do
pescoço
204
.
Podem também comer e beber à vontade, ele disse.
Filho da Puta. As bebidas, as comidas, as jóias, o dinheiro, tudo aquilo
para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles nós não
passávamos de três moscas no açucareiro.
( ) Atirei bem no peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo
trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi
escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele tinha
um buraco que dava para colocar um panetone.
( ) Viu, não grudou o cara na parede porra, nenhuma.
Tem que ser na madeira, numa porta. Parede não dá, Zequinha disse.
Os caras deitados no chão estavam de olhos fechados, nem se mexiam.
Não se ouvia nada, a não ser os arrotos do Pereba.
Você aí, levante-se, disse Zequinha. O sacana tinha escolhido um cara
magrinho de cabelos compridos.
Por favor, o sujeito disse, bem baixinho.
Fica de costas para a parede, disse Zequinha.
203
Idem, 1994, p. 49.
204
O olhar do bandido-protagonista sobre o lenço do personagem Maurício suscita a discussão da moda
enquanto mbolo de distinção de classes. Segundo Gilda de Mello e Souza, desde o século XIX, a partir da
urbanização crescente proporcionada pelo desenvolvimento capitalista, a moda passou a ser um sinal de
ascensão social para as elites urbanas, bem como para os arrivistas, muito mais que os bens que poderiam
possuir. Pois, o “acompanhar a moda”, demonstraria um poder de ostentação visual impactante e não
questionável do ponto de vista do posicionamento do indivíduo na sociedade à primeira vista. (...) A
vantagem que o gasto com a roupa apresenta sobre os outros métodos é que a vestimenta está sempre em
evidência e oferece, à primeira vista, a todos os observadores, uma indicação do padrão pecuniário. A moda,
inclusive, tornou-se uma maneira de se reconhecer a diferença entre aqueles que labutam e pertencem às
classes menos privilegiadas, daqueles que são ociosos e fazem questão de mostrar que não realizam nenhum
tipo de trabalho produtivo. Esse, aliás, parece ser o motivo por trás das intenções do autor Rubem Fonseca, ao
construir o olhar do bandido-protagonista sobre o lenço de Maurício. MELLO e SOUZA, Gilda. O Espírito
das Roupas: a moda no século dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 115 a 125.
Carreguei os dois canos da doze. Atira você, o coice dela machucou o
meu ombro. Apóia bem a culatra senão ela te quebra a clavícula.
como esse vai grudar. Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram
do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. Bateu
com estrondo na porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o
corpo do cara ficou preso pelo chumbo grosso na madeira.
Eu não disse?, Zequinha esfregou o ombro dolorido. Esse canhão é
foda
205
.
.
Como fala Hannah Arendt:
(...) É a aparência de racionalidade, muito mais do que os interesses por
trás dela, que provoca o ódio. Valer-se da razão quando a utilizamos
como uma armadilha não é “racional”, tanto quanto usar uma arma em
defesa própria não é “irracional
206
.
Esse conceito da violência em Hannah Arendt, que tem como seu motor o ódio à
hipocrisia, mostra que a violência possui, como dissemos, um papel fundador e
estruturador. Pois enquanto um dos fatores da dinâmica cultural, a violência social revela
uma linguagem que expressa conflitos que, muitas vezes, aparecem em forma de
manifestações culturais que denunciam a existência de manifestações sociais e diferentes
interesses que, na sociedade contemporânea ao serem mostrados pela mídia e, muitas
vezes, absorvidos/consumidos pelo público, ganham sentidos e adeptos.
207
Isso pode ser
notado, principalmente, em uma sociedade injusta como a brasileira, onde muitas vezes os
menos favorecidos se enfurecem contra a ordem estabelecida.
Vejamos novamente as palavras de Herschmann:
A questão da violência, tal com se apresenta nos espaços urbanos
brasileiros, por trás de suas manifestações freqüentes, se não deixa
entrever uma reivindicação por ordenamentos sociais mais justos, pelo
menos evidencia a impotência do Estado em cumprir o antigo projeto de
unificação e equilíbrio. Na primeira metade dos anos 90, vários
episódios amplamente noticiados chocaram a opinião pública,
ganhando, inclusive, as páginas do noticiário internacional: o
assassinato de menores de rua na Candelária, a chacina de Vigário
Geral, os arrastões nas praias da Zona Sul, as operações militares no
205
FONSECA, op. cit., p. 371.
206
ARENDT, op. cit., p. 49.
207
HERSCHMANN, Micael.O funk e o Hip-Hop invadem a cena. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000, ,p.46.
Rio de Janeiro (conhecidas como operação Rio I e II), o massacre de
Carandiru (São Paulo), as invasões e os massacres dos sem-terra em
várias localidades, e assim por diante.
Em outras palavras, num contexto marcado pelo descaso, podemos
considerar a violência desencadeada pela sociedade, no Brasil, tanto
como um indício de uma “desordem urbana”, quanto, em certo sentido,
como uma forma de se expor a insatisfação diante de uma estrutura
autoritária e clientelista que promove sistematicamente a exclusão
social. Ou seja, em um país cujo modelo político tradicional está
saturado, em que o aparato jurídico-legal, na “prática”, é capaz de
punir as camadas menos favorecidas da população, podemos conceber a
violência como uma forma de ruptura da ordem jurídico-social, como
uma forma de “resposta” concreta da sociedade
208
.
Dessa forma, o que podemos perceber por meio dessas palavras de Herschmann
embora o autor se reporte ao papel dinâmico cultural da violência em termos, sobretudo, de
uma reação dos menos privilegiados, numa sociedade de contradições sociais como é a
brasileira - o que se percebe é que Rubem Fonseca vai além, e o papel fundador e
estruturador de sua violência tem a função legitima de desmascarar as hipocrisias, sejam de
que lado for: do pobre para com o rico ou vice-versa.
Vejamos, agora, as inter-conexões da corrente literária internacional da qual Rubem
Fonseca fez parte com a violência no mundo ocidental.
3.3.3 - A moralidade das armas e a violência interpessoal na civilização ocidental.
Depois de amanhã vocês vão ver.
Vão ver o quê?, perguntou Zequinha.
Só tô esperando o Lambreta chegar de São Paulo.
Porra, tu tá transando com o Lambreta?, disse Zequinha.
As ferramentas dele tão todas aqui.
Aqui?, disse Zequinha. Você tá louco.
Eu ri.
Quais são os ferros que você tem?, perguntou Zequinha.
Uma Thompsom lata de goiabada, uma carabina doze, de cano serrado,
e duas Magnum.
208
Idem, 2000, p. 44.
Puta que pariu, disse Zequinha. E vocês montados nessa baba tão aqui
tocando punheta?
( ) Posso ver o material? , disse Zequinha.
( ) Abri o pacote. Armei primeiro a lata de goiabada e dei pro Zequinha
segurar. Me amarro nessa máquina, tarratátátátá!, disse o Zequinha.
É antigo mas não falha, eu disse.
Zequinha pegou a Magnum. Jóia, jóia, ele disse. Depois segurou a doze,
colocou a culatra no ombro e disse: ainda dou um tiro com esta
belezinha nos peitos de um tira, bem de perto, sabe como é, pra jogar o
puto de costas na parede e deixar ele pregado
209
.
Se Rubem Fonseca pertence a uma corrente brutalista da literatura brasileira, por
outro lado, essa corrente possuiria ligações com uma estética artística vinda dos Estados
Unidos e Europa.
A esse respeito, alguns críticos o relacionam de forma direta ao chamado romance
policial e ao cinema noir.
Vejamos o que esse posicionamento ajuda-nos a entender a estética da violência
interpessoal contida em “Feliz Ano Novo”.
Nelson Pujol, que considera Rubem Fonseca tributário de uma das maiores
escritoras do chamado romance policial norte-americano, Patricia Highsmith, diz que o
autor compôs muito de suas histórias, a partir da construção de um Rio cosmopolita
210
.
Esse cosmopolitismo é realmente confirmado por um simbolismo assemelhando
os bandidos brasileiros aos bandidos da tendência artística internacional: percebe-se a
preocupação do escritor em descrever as marcas das armas, mostrando que todas são
importadas, bem como mostrar como os bandidos possuem facilidade em obtê-las, ao
mesmo tempo que conhecem seus detalhes para um uso eficaz.
Temos, também, a tipificação dos vilões que, dentro da tradição ocidental, foram
transformados pelos escritores contemporâneos de bandidos tipo Robin Hood
211
em heróis-
vilões; ou seja, aqueles que matam, mas que ainda assim, têm a admiração do público leitor
209
FONSECA, Rubem. In: SCHNAIDERMAN, Boris. (Org.) Rubem Fonseca/ Contos Reunidos. São Paulo.
Companhia das Letras: 1998, p. 367.
210
YAMAMOTO, Nelson Pujol. Rubem Fonseca escreve sobre a inveja, Folha de S.Paulo, São Paulo 09 abr.
1989.
211
Hobin Hood que costumava roubar dos ricos para dar aos pobres, por considerar injusta a condição de
opressão e miséria que os nobres impunham aos plebeus e só cometia assassinatos se assim não pudesse evitar
em sua cruzada de paladino da justiça, possuía, por tudo isso, um comportamento diferente dos bandidos
contemporâneos da literatura. Esses roubam dos ricos ou de quem quer que seja, para satisfazerem seus
desejos de poder e consumo, sem nenhum tipo de ética e utilizando-se de requintes de crueldade para com
seguirem o que desejam.
ou telespectador. Esse vilão, que passou a ter um comportamento mais condizente com o
mundo contemporâneo, em que a violência interpessoal está diretamente relacionada ao
porte e uso de armas pesadas, para destruir qualquer um que atrapalhe os planos de
indivíduos que entram no mundo do crime.
Mas esse posicionamento crítico que considera Rubem Fonseca dentro do
chamado romance policial é recusado por Deonísio da Silva, por submeter a obra a:
(...) uma redução tão drástica que impede o analista, e mesmo o leitor
comum, de perceber as sutilezas na ficção de Rubem Fonseca que o
distinguem de numerosos escritores empenhados em fabricar uma
literatura previamente destinada a agasalhar-se sob o rótulo de romance
policial. Podem-se encontrar semelhanças entre Rubem Fonseca e
Georges Simenon, mas semais difícil emparelhá-lo a Agatha Cristie.
Com efeito, o essencial na ficção de Rubem Fonseca não é a descoberta
do assassino, através da atuação do detetive
212
.
Deonísio da Silva prefere ver Rubem Fonseca como um beneficiário da
massificação do romance policial, mostrando-nos, sobretudo, com relação aos seus
romances esse beneficiamento.
No período que vai de 1945 a 1980, foram vendidos dez bilhões de
romances policiais em todo o mundo, a grande maioria em língua
inglesa, seguida a uma distância média por publicações no mesmo
gênero em francês, espanhol, alemão e japonês, nessa ordem
213
.
Fernanda Scalzo também corrobora a idéia de Deonísio:
(...) Seus contos ditos policiais se distanciam muito do esquema clássico
do gênero, revelando antes uma visão brutal e cruel da vida, em que a
violência aparece numa perspectiva artística
214
.
Essa estética histórica da violência, do ponto de vista da civilização ocidental,
como fala Alfredo Bosi, respirando “a poluição existencial do capitalismo avançado, de
que é ambiguamente secreção e contraveneno”, encerra ligações intrínsecas com as
transformações sociais do pós-guerra.
212
SILVA, Deonísio da. Rubem Fonseca: proibido e consagrado. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
Prefeitura, 1996, p. 111.
213
Idem, 1996, p. 113.
214
SCALZO, Fernanda. Rubem Fonseca: Em Romance Negro e Outras Histórias o escritor volta à narrativa
curta. Folha de S. Paulo, São Paulo, 29 mar. 1992.
Novamente Deonísio da Silva anota:
Com a explosão da criminalidade, sobretudo nos Estados Unidos, após a
Segunda Guerra Mundial, o romance policial passa a espelhar uma
realidade social violentíssima que, entretanto, é cada vez mais bem
suportada pelo leitor e, em outro plano, pela própria sociedade
215
.
Mas o que a representação dessa corrente parecia denunciar, ao mesmo tempo que
passou a ser bem aceita pela sociedade?
No momento em que, os bandidos estão de posse das armas que estavam
escondidas, o primeiro pensamento que adveio a um deles, foi o de matar um policial. Isso
nos mostraria a crença de que Rubem Fonseca depositou na posse das armas de fogo a
possibilidade que os miseráveis passaram a ter em termos de enfrentamento contra aqueles
que odeiam, configurando a efetivação de uma violência que não pode ser mais contida
pela simples figura da autoridade policial. Se os bandidos possuem armas, logo a polícia
perderia sua autoridade.
Dessa forma, essa nova violência representada parece possuir insuspeitadas
relações com uma realidade em que o recuo das regras de civilidade foram, em muitas
situações, substituídas por uma moralidade das armas” nos anos de 1960 e, no caso do
Brasil, nos anos de 1970.
Segundo Alba Zaluar:
(...) Após a Segunda Guerra Mundial, tanto os países europeus quanto
os Estados Unidos e o Brasil viveram períodos de relativa tranqüilidade
no que se refere aos índices de violência internos, com baixas taxas de
crimes contra a pessoa. Depois, enquanto na França e nos Estados
Unidos os crimes violentos, em especial o assalto e o homicídio,
começaram a aumentar rapidamente nos anos sessenta, chegando a
dobrar no caso dos homicídios, no Brasil isso iria acontecer no final
da década de setenta
216
.
Essa ruptura dos padrões e regras de comportamento moral pelos quais as
sociedades vinham controlando seus membros, estaria ligada à própria falência do
215
SILVA, op. cit., 113.
216
ZALUAR, Alba. Para o dizer que não falei de samba: os enigmas da violência no Brasil. In: Schwarcz,
Lílian. (Org.) História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 262.
monopólio legítimo da violência que era exercido pelo Estado
217
e que é o fundamento de
sua soberania.
Nos países europeus, onde o controle de armas é mais severo, não se encontraria a
mesma relação existente nos Estados Unidos e em muitos países do continente americano,
entre a facilidade da compra de armamentos e o crescimento do crime organizado
218
.
(...) Nos Estados Unidos, que detêm 43% do mercado de armas do
mundo, existem hoje 67 milhões de pessoas armadas ou 70 milhões de
armas, sendo produzidas, a cada ano, mais de 1,5 milhão delas. O
comércio interno de armas é o único não regulamentado, e escapa aos
controles do Estado e dos consumidores. O comércio internacional (e o
tráfico transnacional) de armas convencionais de guerra movimentou
22,8 bilhões de dólares em 1995, destinadas seja aos países em guerra
civil, seja às máfias ou bandos armados que assolam quase todas as
regiões do planeta. Hoje, no cenário da violência no mundo, não se pode
excluir o impacto local do contrabando de armas, que, embora
legalmente comerciada em seus países de origem, entram ilegalmente em
países do chamado Terceiro Mundo, entre os quais o Brasil
219
.
Apesar de os meros de Alba Zaluar serem de 1995, pode-se ter uma idéia do
tamanho que a indústria armamentista possuía na década de 1970, nos Estados Unidos e
no mundo, dentro de uma realidade de Guerra Fria e de tantos conflitos internacionais
como a Guerra do Vietnã, assim como já estariam acessíveis ao crime organizado no
Brasil, como é representado no conto.
Quais os ferros que você tem?, perguntou Zequinha.
Uma Thompsom lata de goiabada, uma carabina doze, de cano serrado,
e duas Magnum.
Puta que o pariu, disse Zequinha. E vocês montados nessa baba tão aqui
tocando punheta?
220
Dessa forma, se, para Norbert Elias, o processo de pacificação dos costumes, pelo
menos na Europa, sempre teria sido um processo que ocorreu no interior das nações
221
, sob
o peso da evolução de um Estado que possuía o monopólio da violência, a presença de um
comércio internacional de armas na verdade parece, além de outros fatores discutidos, neste
217
HOBSBAWN, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 269.
218
ZALUAR, op. cit., 264-265.
219
Ibidem, p. 256.
220
FONSECA, op. cit., p. 367.
221
ZALUAR. op. cit., p. 264.
capítulo, contribuir para um aumento da violência interpessoal dentro daquilo que podemos
concluir como o desenvolvimento de um “etos guerreiro”
222
.
A simples posse das armas transforma o ânimo dos bandidos e confirma isso:
(...) ainda dou um tiro com esta belezinha nos peitos de um tira, bem de
perto, sabe como é, pra jogar o puto de costas na parede e deixar ele
pregado lá
223
.
Essa idéia parece estar em concordância com Marcuse, quando fala dos efeitos que
o desenvolvimento desenfreado dos armamentos na sociedade contemporânea podem
produzir:
Guerras mantidas em sucessivas escaladas, permanente preparação
para uma conflagração bélica e administração total podem muito bem
bastar para manter o povo sobre controle, mas à custa de alterar a
moralidade de que a sociedade depende
224
.
Pode-se perceber então, que a violência interpessoal das décadas de 1960 e 1970,
diferentemente da violência social anterior, passou a contar para se desenvolver não só com
um acesso fácil aos armamentos, que podem ser comprados como qualquer outra
mercadoria, mas também pelo fato de os padrões e regras de comportamento moral, que
sustentavam uma civilidade mínima, entrarem em decadência, devido à falência do Estado
em garantir a segurança do cidadão nos países centrais, mas também no Brasil.
Mas, ao fator de decadência das regras de civilidade, devemos mencionar para
finalizarmos esse capítulo, um outro aspecto social da violência, nas décadas de 1960 e
1970, e que o conto nos dá uma pista.
Assim como Rubem Fonseca relata em seu conto a crueldade dos bandidos, não é
menos verdade que, ao utilizar-se deles para relatar a visão que ele, escritor-pessoa, próprio
possui da polícia e dos ricos, intencionalmente, mostra-os também como cruéis, arrogantes
e corruptos:
222
Ibidem, 1997, p. 264.
223
FONSECA, op. cit., p. 367.
224
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1978, p. 21.
Pra falar a verdade a maré também não boa pro meu lado, disse
Zequinha. A barra pesada. Os homens não tão brincando, viu o que
fizeram com o Bom Crioulo? Dezesseis tiros no quengo. Pegaram o Vevé
e estrangularam. O Minhoca, porra! O Minhoca! Crescemos juntos em
Caxias, o cara era tão míope que não enxergava daqui até ali, e também
era meio gago pegaram ele e jogaram dentro do Guandu, todo
arrebentado.
Pior foi com o Tripé. Tacaram fogo nele. Virou torresmo. Os homens
não tão dando sopa, disse Pereba
( ) Não vais comer uma bacana destas?, perguntou Pereba.
Não estou a fim. Tenho nojo dessas mulheres
225
.
Dessa forma, se, por um lado, o individualismo crescente de uma sociedade
capitalista do pós-guerra, com sua crença no mercado mundial, deu oportunidade às
subjetividades que passaram a questionar as regras de convivência coletiva, tal se deu,
também, pelo padrão de conduta hipócrita creditado aos governantes e à própria burguesia.
Essas condutas, segundo análise de Hannah Arendt sobre a violência, estariam sendo
duramente combatidas pelos movimentos de 1968, e nos conflitos de rua nos Estados
Unidos, na década de 1970.
Tirar a máscara da hipocrisia da face do inimigo, desmascará-lo e às
maquinações e manipulações diabólicas que lhe permitem dominar sem
valer-se de meios violentos, quer dizer provocar a ação mesmo sob o
risco da aniquilação, de sorte que a verdade possa aparecer, - estes
ainda estão entre os mais fortes motivos da violência nos campi nas
ruas
226
.
Podemos dizer que a violência interpessoal, mais particularmente de pobres contra
ricos, despontada na década de 1970, configurou-se como os princípios de uma nova
violência que antecedeu a explosão da criminalidade das décadas de 1980 e 1990, nas
grandes cidades brasileiras. Violência interpessoal que demonstramos necessitar de uma
série de fatores para que haja sua ocorrência, dos quais destacamos nesse capítulo - a partir
da representação realizada por Rubem Fonseca a problemática da frustração e
ressentimento diante de um consumo restrito às camadas mais privilegiadas; das influências
da indústria cultural no Brasil; de um consumismo de estilo não acessível a todos; de um
225
FONSECA, op. cit., p. 371.
226
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 49.
mercado paralelo que coloca à venda armas como se fossem mercadorias corriqueiras e da
decadência das regras de comportamento civilizado, bem como da falência do monopólio
legítimo do Estado no mundo ocidental.
Conclusão
Ao constatarmos que o conto “Feliz Ano Novo” foi ordenado em torno da
representação de uma violência contemporânea, que, como dissemos, possui suas raízes em
torno de um complexo de arranjos sociais contemporâneos para sua ocorrência, podemos
dizer que essa violência representa a transposição, no plano da estrutura do conto
227
, da
idéia expressa por meio de uma linguagem de “suspensão moral” de que todos os homens
são capazes de realizar violências extremadas.
Rubem Fonseca utiliza-se da linguagem de “suspensão moral” como verdadeira
conspurcação, para confirmar um quadro da condição humana extremamente pessimista: o
de que, em “estado de natureza”, todos os homens são violentos, ao mesmo tempo em que
desenha um quadro pessimista em relação à possibilidade do processo civilizador iniciado a
partir do Iluminismo, no século XVIII, poder ser levado adiante pelo Estado
228
, na
sociedade brasileira:
Pra falar a verdade a maré também não boa pro meu lado, disse
Zequinha. A barra pesada. Os homens não tão brincando, viu o que
fizeram com o Bom Crioulo? Dezesseis tiros no quengo. Pegaram o Vevé
e estrangularam. O Minhoca, porra! O Minhoca! Crescemos juntos em
Caxias, o cara era tão míope que não enxergava daqui até ali, e também
227
CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade: Estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1967, p. 06.
228
Segundo Alba Zaluar, um dos principais motivos da decadência das regras de civilidade no pós-guerra, é a
valorização pela sociedade de consumo do individualismo que coloca em xeque as regras de convivência
coletiva que eram praticadas no seio das famílias, em uma sociedade pré-consumista, e que possuíam um
grande peso na formação do caráter dos indivíduos.
era meio gago pegaram ele e jogaram dentro do Guandu, todo
arrebentado.
Pior foi com o Tripé. Tacaram fogo nele. Virou torresmo. Os homens
não tão dando sopa, disse Pereba
( ) Zequinha pegou a Magnum. Jóia, jóia, ele disse. Depois segurou a
doze, colocou a culatra no ombro e disse: ainda dou um tiro com esta
belezinha nos peitos de um tira, bem de perto, sabe como é, pra jogar o
puto de costas na parede e deixar ele pregado
229
.
Essa idéia acerca da condição humana violenta e da possibilidade de sua
manifestação, uma vez que não lhe seja imposto um limite
230
, não foi afirmada de forma
abstrata pelo escritor, nem apenas ilustrada por meio de exemplos, mas sugerida na própria
composição do todo e das partes, ou seja, na forma como organizou essa violência, a fim de
“dar-lhe uma certa expressividade”
231
por meio de uma linguagem de “suspensão moral” na
história. Pois, é justamente por meio da linguagem de “suspensão moral”, que Rubem
Fonseca constrói aquilo que Alfredo Bosi designou como o brutalismo em sua obra e que
foi corroborado por Boris Schnaiderman:
Os contos de Rubem Fonseca, quando surgiram, causaram impacto com
a brutalidade do submundo que expressavam. Por mais que numerosos
autores tivessem tratado do tema, esses contos impressionavam. Não
havia neles uma observação de fora para dentro, não tinham nada a ver
com uma anotação “etnográfica”, mas, sobretudo, aquela brutalidade
229
FONSECA, Rubem. In: SCHNAIDERMAN, Boris. (Org.) Rubem Fonseca/ Contos Reunidos. São Paulo.
Companhia das Letras: 1998, p. 366.
230
Esse limite desde o século XVII, em pensadores como Thomas Hobbes, deveria ser realizado por um
Estado cujo poder baseia-se no monopólio da violência legítima. Nesse sentido, a violência teria importância
para o poder do Estado da seguinte forma: (...) Em primeiro lugar, o recurso à violência é um traço
característico do poder político ou do poder do Governo. Uma das definições mais abrangentes e mais
difundidas do poder político, que tem sua origem na filosofia política clássica e, especialmente, no
pensamento de Hobbes, e foi melhor enunciada em sentido sociológico por Max Weber, baseia-se no
monopólio da Violência legítima. Esta importância da Violência deriva, de um lado, da eficácia geral das
sanções físicas e, de outro, da finalidade mínima e imprescindível de todo Governo. Com referência ao
primeiro ponto, convém insistir que, salvo exceções particulares, a segurança física da própria vida tende a
ser o valor fundamental para todos os homens. Devido a isto, o controle efetivo da conduta humana é
exercido, como último recurso, privando os homens, totalmente ou em parte, deste valor fundamental. A
eficácia generalizada da aplicação da Violência é, portanto, superior à aplicação de sanções de outra
natureza. Isto é ainda mais verdadeiro quando se procura obter uma omissão, e a ameaça da Violência ou a
sua aplicação tem uma função aterrorizadora. Aqui entra o segundo ponto: a função de aterrorizar da
Violência é indispensável, pelo menos, para obter a finalidade mínima de um Governo, isto é, a manutenção
das condições externas que salvaguardem a coexistência pacífica. BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI,
Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília, DF: Editora da Universidade de Brasília,
1995, p. 1293.
231
CÂNDIDO, Op. cit., p. 07.
era algo cotidiano e corrente, a própria linguagem ficava marcada por
ela.
De lá para cá, a vida brasileira, em seu conjunto, tornou-se mais brutal
e implacável, fatos como os narrados ali passaram a fazer parte de
nossa vivência diária e acabamos mais acostumados com eles. (Não será
isto mais uma das “ironias da História” de que fala Isaac Deutscher?
Como nos parece anacrônica a indignação com que os porta-vozes do
establishment reagiram à publicação de Feliz Ano Novo em 1975! Estar
no poder e indignar-se com a brutalidade, na década de setenta...)
232
Essa expressividade que a obra ganhou por meio do elemento estruturador -
brutalismo - reverteu uma grande notoriedade ao escritor, devido à censura pela ditadura, e
sua defesa por parte de intelectuais e artistas que viram nela uma expressão artística
legítima de uma sociedade violenta e repleta de contradições.
Dessa forma, essa expressividade não possuindo um caráter ilustrativo, mas
explicativo, colocou-se como fator da própria construção artística do conto e da obra Feliz
Ano Novo
233
.
Assim, a precedência lógica e empírica foi dada pela crítica ao corroborar esse
fator de construção artística como um traço característico da obra, estruturador de um todo,
por meio de sua elevação à categoria de mbolo da resistência democrática, que protestava
contra um contexto, em que a razão política e econômica de um Estado autoritário
engendrou uma modernização conservadora, geradora de contradições sociais brutais.
As referências às partes, que formaram esse fator de construção artística, foram
apreendidas de forma explícita, primeiramente, de um lado, por meio da crítica que
analisou a obra do autor, desde os anos de 1960, quando de um modo geral, elegeu-a
símbolo da condição humana reprimida do homem moderno violento, como também de
suas misérias vivendo na sociedade brasileira nos anos de 1970
234
.
232
SCHNAIDERMAN, Boris. (Org.) Rubem Fonseca/ Contos Reunidos. São Paulo. Companhia das Letras:
1998, p. 773.
233
CANDIDO, op. cit., p. 07.
234
Esses críticos perceberam que a obra continha, na época, os mbolos que representavam as mazelas
sociais de uma modernização conservadora, que concentrou renda e gerou um consumo conspícuo por parte
das classes privilegiadas, deixando grandes parcelas da população em condições miseráveis. Eles perceberam
e legitimaram a partir da obra, o que seria confirmado, em 1981, por Evaldo Vieira: A política econômica,
depois de pregar ao longo dos anos o desenvolvimento e o controle da inflação, depois de anunciar para todo
o Brasil inimagináveis sucessos, referiu-se à existência de “focos de pobreza absolutapassados mais de 10
anos do Movimento de 1964. Além dos tristes “focos”,acrescenta-se a presença de provas seguras de que se
relegou e se explorou a grande massa popular. A política social reproduz claramente estas atitudes com a
De outro lado, pela análise do conceito da violência histórica contida na obra, e
que acabou por nos ajudar a compor a referência à outra parte do fator de construção
artística em termos de um significado
estrutural profundo, que contém uma idéia sobre a
violência, tanto do ponto de vista de uma curta duração, como de uma longa duração. Pois a
análise legitima a obra enquanto simbólica de uma violência contemporânea, que muito se
relaciona à incapacidade do Estado em gerar políticas sociais para setores inteiros da
população. O que faz com que muitos indivíduos miseráveis e violentos passem a agir nas
fraturas da sociedade forjada por esse Estado, colocando em xeque seu papel como
possuidor de uma missão civilizadora da sociedade brasileira
235
.
O Estado brasileiro, que nunca se constituiu como um Estado do bem-estar social,
ao relegar grandes parcelas miseráveis da população à sorte de sobreviverem a partir do
mercado, fez com que essas mesmas parcelas passassem a ser “educadas” e “informadas”
pela lógica do mercado. Mercado, aliás, que o Estado se incumbiu de ampliar a partir de
1964, mas que não açambarcou todos, nem em termos de emprego nem em termos de
consumo.
Se pensarmos que a modernização brasileira, a partir de 1964, foi realizada no
sentido de se implantar uma sociedade de consumo em massa, as problemáticas que
acompanharam essa sociedade em outros lugares, instalaram-se, no Brasil, com uma série
de agravantes. Pois o desejo de um “consumismo de estilo” que a acompanha e passou a
definir identidades no mundo moderno e é desejado por todas as classes, passou a estar
presente nas subjetividades de todos, também no Brasil, principalmente, em cidades como o
Rio de Janeiro.
população brasileira. Nesse sentido, a política social desde 1964 reduziu-se a uma série de decisões
setoriais, sobretudo na Educação, na Saúde Pública, na Habitação Popular, na Previdência e na Assistência
Social, servindo em geral para desmobilizar as camadas carentes da sociedade. Ela ofereceu serviços, antes
de perguntar quais eram as necessidades reais. Há dúvidas de que isto possa denominar-se de política social.
Um dos seus produtos finais, se a política existir de fato, consiste nos “meninos de rua”, cuja situação
está: “Não vou ficar o resto da minha vida nessa vida, dormindo na rua, debaixo de viaduto, passando frio.
(...) Eu não vou mais poder ficar trabalhando e andando pela rua, porque eu posso ser preso, vou para a
prisão.” VIEIRA, Evaldo. Estado e Miséria Social no Brasil: de Getúlio a Geisel. São Paulo: Cortez Editora,
1981, p.226 e 227. Dessa forma, tivemos de um lado uma condição humana reprimida em suas ações políticas
pelo Estado, sendo que para grandes parcelas da população, a essa repressão juntaram-se as carências e as
misérias materiais e humanas, e de outro, uma classe social que praticava um consumo conspícuo e protegida
pelo Estado.
235
Assim, a idéia da curta duração histórica estaria na representação de uma violência que é contemporânea e
vive da ausência de um Estado forte, enquanto a longa duração pode ser apreendida a partir da representação
da idéia de Thomas Hobbes de que a ausência de um Estado forte causaria “A guerra do todos contra todos”. .
Dessa forma, o Estado que não implementou políticas públicas para integrar
socialmente grandes parcelas da população que viviam tanto nas periferias, nos subúrbios,
como nos centros degradados, ao mesmo tempo, foi o grande responsável em provocar
nelas uma tentação de um “consumo de estilo” impossível.
Esse desejo reprimido de um consumo que pode ser notado nos personagens de
“Feliz Ano Novo”, ao se encontrar com a possibilidade da aquisição de armas
principalmente, em parcelas da população que se encontraram isoladas de qualquer tipo de
assistência por meio de um crescente tráfico de armas, que pode ser percebido nos anos
de 1970, e que, também, está representado no conto, despertou a possibilidade em certas
parcelas dessas populações de buscarem aquilo que desejavam, por meio daquilo que
podemos dizer, ter sido os inícios do crime organizado que ocorreria de forma mais brutal a
partir da década de 1980, e de suas ligações com um crescente tráfico de entorpecentes.
Assim, o isolamento e a falta de assistência de parte das populações miseráveis,
educadas pelo mercado e por meio da televisão, não propiciariam ao juntarem-se em
bandos um retrocesso do processo da civilidade, como também, criaram um etos guerreiro,
que muito passou a diminuir uma pressão tanto da família, como da sociedade em relação
ao controle das emoções e da violência física, resultando em um baixo sentimento de culpa
no uso da violência, no momento dos assaltos, dos assassinatos, realizados pelo crime
organizado.
Posto dessa maneira, o Estado que implementou uma modernização capitalista
conservadora, onde o consumo passou a estar na “ordem do dia”, fez com que nessa
“ordem”, as armas passassem a ser mercadorias consumidas como qualquer outras, via
contrabando. Esse processo não gerou o incremento do crime organizado, como foi o
grande responsável pela realização das subjetividades ligadas ao desejo de um “consumo de
estilo” de parcelas da população que viram no crime um bom negócio, gerando fraturas na
sociedade que colocaram em xeque o monopólio legítimo da violência por parte do Estado.
Obviamente que o militarismo também deu sua contribuição ao crime, com o
surgimento dos esquadrões da morte, dos anos de 1960, e seus congêneres, que não
poderiam combater esse novo tipo de crime que aparecia
236
, pois os bandidos, a partir daí,
236
ZALUAR, Alba. Para não dizer que não falei de samba: os enigmas da violência no Brasil. In: Schwarcz,
Lílian. (Org.) História da Vida Privada no Brasil. São Paulo,.Companhia das Letras, 1997, p. 245 a 271.
passaram a entender que poderiam trocar armas por entorpecentes, realizar frentes de
informação e atuação, dentro da polícia.
Quadro esse montado sem maiores dificuldades, devido ao entendimento dos
marginais de que eles e o policiais, ao serem muitas vezes vizinhos nas favelas, poderiam
realizar grandes acertos. Porém, no momento de agir, teríamos, marginais de um lado,
policiais de outro
237
.
Assim, o que tivemos como resultado de nossa análise do conto “Feliz Ano Novo” ,
foi a percepção da internalização na obra, de um “estado de natureza violento” do homem
moderno, que se revelaria a partir de certos processos culturais em uma sociedade de
massas. Processos esses responsáveis pelo surgimento de uma violência social
contemporânea. Violência que não não pode ser contida pelo poder do Estado, como
também, é uma das forças sociais mais responsáveis pela falência do monopólio da
violência legítima desse mesmo Estado, no Brasil.
Para concluirmos, devemos dizer que nosso trabalho constitui-se como uma
pequena contribuição para a análise histórica do período da ditadura militar e das mazelas
sociais que produziu, pois o entendimento do funcionamento e do significado
238
da estética
da violência, em “Feliz Ano Novo”, ajudou-nos a perceber como os personagens desse
conto representam “experiências” marginais dentro do ambiente social, econômico e
cultural da época.
“Experiências” que deciframos, abordando os processos utilizados pelo autor para a
confecção das identidades dos personagens, como também, insistindo na análise da
natureza discursiva e na política de construção da linguagem
239
que criou esses mesmos
personagens
240
.
237
LOUZEIRO, José. Violência: a guerra civil não declarada. In: Cadernos do Terceiro Mundo. Rio de
Janeiro, v. 11, n. 112, 10 jul. 1998, p. 54 a 68.
238
HUNT, Lynn. Apresentação: história, cultura e texto. In: HUNT, Lynn. (Org.). A Nova História Cultural.
São Paulo: Martins Fontes, 1992p. 21.
239
Segundo Maria do Rosário Valencise Gregolin, surgindo a partir do interior da crise epistemológica da
Lingüística, no final dos anos de 1960, devido, tanto ao momento político, como também da percepção de um
desgaste da Lingüística, por causa de sua grande influência nas ciências humanas como a “ciência piloto”,
suas transferências de metáforas para outras áreas do conhecimento, sua absorção e banalização, surge a
disciplina Análise do Discurso. Ao tratar da análise dos sentidos de uma linguagem e suas movências, a AD,
colocou-se como um marco crítico da concepção da Lingüística como “ciência piloto”, questionando como a
ciência da linguagem realizaria a incorporação da investigação semântica. (...) Considerado por Pêcheux
como “a primeira época da AD”, esse momento, fortemente inspirado no estruturalismo mas já com
Nas palavras de Joan W. Scott:
Experiência é a história de vida de um sujeito. A linguagem é o campo
no qual se constitui. A explicação histórica não pode portanto separar as
duas
241
.
Os personagens mostraram-nos, que longe da ditadura militar, constituir-se em um
período de prosperidade para todos os brasileiros, antecipou em alguns momentos, em uma
cidade como o Rio de Janeiro, uma violência difusa que se consolidaria com o colapso do
modelo de desenvolvimento econômico dos militares no final da década de 1970, e início
dos anos de 1980.
Dessa forma, podemos dizer que ao longo de todo nosso trabalho, demonstramos
que a linguagem brutal produzida pelo escritor Rubem Fonseca apreendeu a partir das
experiências do cidadão Rubem Fonseca, as transformações pelas quais passou a sociedade
preocupação semântica, foi um marco que permitiu a passagem da análise lingüística para as relações do
processo discursivo, no qual estão imbricados o lingüístico e o histórico. Assim, provocando uma evolução
dentro dos estudos das unidades mais complexas da língua, a AD passou a realizar um aprofundamento da
análise do correlacionamento entre o enunciado da língua (dos elementos intradiscursivos que ordenam a
língua) e a enunciação (que estabelece dentro da linguagem elementos interdiscursivos resultantes da
percepção de que o “exterior” é fator constitutivo do sentido). Assim ( ) , partindo de uma relação
necessária entre o dizer e as condições necessárias desse dizer, a Análise do Discurso proposta por Pechêux
insere a exterioridade como elemento constitutivo dos sentidos, exigindo, portanto, um deslocamento teórico,
de caráter conflituoso, que vai recorrer a conceitos exteriores ao domínio de uma Lingüística imanente para
dar conta da análise de unidades mais complexas da linguagem. As noções de discurso e de formação de
discursiva desempenham para s esse papel de desubjetivação da teoria da linguagem... nos ajudam a
pensar a relação de intrincação entre língua e formações ideológicas, através da qual práticas lingüísticas
tendencialmente antagônicas vêm se desenvolver sobre uma mesma base lingüística. A pergunta que paira no
ar é: “pode-se correlacionar os enunciados à sua situação de enunciação?” A questão fundamental é,
portanto, entender como se relacionam os elementos intradiscursivos (da ordem da língua) com os elementos
interdiscursivos (tendo em conta que esse “exterioré constitutivo do sentido). Trata-se pois, desde o início
do desenvolvimento da teoria do discurso, de investigar como se relacionam a língua e história, nos
processos discursivos. Dessa forma, apesar de durante todo o trabalho termos analisado a linguagem de
Rubem Fonseca, e dela termos abstraído certos simbolismos, é preciso aqui frisarmos a diferença entre
linguagem e discurso do escritor. Estamos cientes de que, houve, na verdade, a partir do estudo de sua
linguagem, o a revelação de uma visão secreta do autor, que possuiria uma unidade de sentido sobre a
violência, a partir da análise dos enunciados e seus correlatos conjuntos de acontecimentos enunciativos de
sua formação discursiva sobre esse fenômeno social, mas sim, a revelação de um discurso sobre a violência
que é resultado de um sentido que surgiu de um sistema regulador das diferenças e dispersões da visão do
autor sobre a violência. GREGOLIN, Maria do Rosário Valencise. “Análise do discurso: os sentidos e suas
movências. In: GREGOLIN, Maria do Rosário Valencise... {et al.}(Org.). Análise do discurso: entornos do
sentido. Araraquara: UNESP, FCL, Laboratório Editorial; São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2001, p. 9 a
15.
240
SCOTT, Joan W. A invisibilidade da experiência. In: Projeto História. São Paulo: PUC/SP, n°16, fev.
1998, p.324.
241
Idem, 1998, p. 320.
brasileira, durante as décadas de 1960 e 1970, tanto em termos do aumento de suas misérias
como de sua violência.
Ao mesmo tempo, essa linguagem brutal, por meio de suas características, mostrou-
nos que foi capaz de se impor como uma concepção estética para a explicação da violência
do Rio de Janeiro, na década de 1970, pois além de ser bem recepcionada pelo público,
também influenciou o comportamento da crítica no sentido de defendê-la e considerá-la
uma legitima expressão das contradições brasileiras.
Por isso, entendemos que muito pode ser explicado ainda por essas imagens da
literatura de Rubem Fonseca, dentro de outros aspectos brutais que nossa sociedade foi
capaz de produzir a partir da década de 1970, sobretudo com relação às diversas formas
que uma violência simbólica pôde assumir e produzir nas relações sociais.
DOCUMENTAÇÃO
Textos de Rubem Fonseca
FONSECA, Rubem. Rubem Fonseca/Contos Reunidos In: SCHNAIDERMAN, Boris.
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