Download PDF
ads:
1
ZENIR RODRIGUES DOS ANJOS FILHO
CARLOS LAMARCA - SIGNIFICAÇÃO
MÍTICA E HISTÓRIA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
U.F.U.
2004
ZENIR RODRIGUES DOS ANJOS FILHO
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
CARLOS LAMARCA - SIGNIFICAÇÃO MÍTICA E HISTÓRIA
Dissertação apresentada ao programa de Pós-graduação em História como requisito parcial
para a obtenção do título de mestre em História.
Área de concentração: História Social.
Linha de Pesquisa: História Política e Imaginário.
Orientadora: Prof.a Dra. Jacy Alves de Seixas (UFU)
UBERLÂNDIA
2003
Zenir Rodrigues dos Anjos Filho
ads:
3
CARLOS LAMARCA - SIGNIFICAÇÃO MÍTICA E HISTÓRIA
___________________________________
Prof.a. Dra. Jacy Alves de Seixas ( Orientadora/UFU )
___________________________________
Prof. Dr. Noé Freire Sandes ( UFG )
___________________________________
Prof.a. Dra. Christina da Silva Roquette Lopreato (UFU )
Uberlândia, 29 de abril de 2004.
Resultado: ___________________________
4
Dedicatória
Dedico esse trabalho à minha mãe,
Carmen (in memorian), a meu pai
Zenir, as minhas irmãs Kátia, Raquel
e Beatriz, as minhas sobrinhas
Carmen, Larissa, Renata e Talita.
E a pessoa que tornou esse projeto
possível, Jacy Alves de Seixas.
5
AGRADECIMENTOS
À professora Jacy Alves de Seixas pelos anos de generosidade, amizade,
carinho e pela oportunidade de realizar esse projeto.
À minha família, pela paciência e compreensão durante todos estes anos.
À Ana Paula Aguiar da Silva Perdomo, Antônio Almeida, Christina da Silva
Roquette Lopreato, Denise de Oliveira Gonçalves, Eduardo de Melo Peixoto, Dorian Erich,
Gonçalo Oliveira Luz, Jamir dos Reis, Karla Adriana Martins Bessa, Lady Vieira Gomes,
Maria Clara Tomaz Machado, Maria de Fátima, Maria Helena, Paulo Almeida, Rafael,
Elmiro, Sandrinha, a todas as pessoas do Nephispo, a toda a IV turma do curso de Mestrado
em História (Edmar, Maria Clara, Cristiane, Jô, Nádia, Kátia, Marileuza...) pela generosa
amizade e cooperação.
Ao ex-deputado federal e secretário dos Direitos Humanos do Governo Luís
Inácio Lula da Silva, Nilmário Miranda, pela cessão do Processo da Comissão Especial de
Mortos e Desaparecidos no Regime Militar.
A todos que, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização este
projeto.
6
RESUMO
Este trabalho é uma incursão ao imaginário político brasileiro destacando a
imagem de Carlos Lamarca, filho de sapateiro, capitão do Exército, que optou pela luta
armada contra a ditadura militar nas décadas de 60 e 70, como um mito político brasileiro. A
partir da deserção, em janeiro de 1969, analisa a construção da imagem mítica tanto do
conspirador maléfico quanto do homem providencial. Lamarca desertou do Exército ingressou
na VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) organização de oposição armada ao governo,
passando posteriormente a VAR-PALMARES (Vanguarda Armada Revolucionária) e ao MR-
8 (Movimento Revolucionário 8 de outubro) ao qual estava vinculado quando foi morto em
17 de setembro de 1971. Perito em armas e com fama de excelente atirador, tornou-se o mais
procurado “subversivo” do país e a representar a imagem do movimento de luta contra a
ditadura. Para além da construção da imagem mítica, o trabalho buscou identificar ocasiões
em que houve a intervenção do mito Lamarca na história, destaque para o momento da luta
pela anistia e do reconhecimento da responsabilidade pelo Estado da morte dos militantes de
mortos ou desaparecidos”. À partir de fontes como jornais, revistas, livros sobre a guerrilha
no Brasil e em Cuba (devido à influência da revolução cubana em todo o continente latino
americano e ao apelo a imagem mítica do guerrilheiro na figura de Che Guevara), do relatório
“Operação Pajussara” do Exército e do processo na Comissão Especial de Mortos e
Desaparecidos, buscou revelar as tramas da construção da imagem mítica e seu poder de
intervenção ainda presente na vida política brasileira. Devido à extensa dedicação que a
pesquisa exigiria, a questão da memória não foi explorada. O grande número de livros
contando a trajetória e a saga individual em momentos distintos de disputa, como da anistia e
outros de reflexão sobre os acontecimentos do período, justifica a investigação sobre a relação
entre mito e memória.
Palavras Chave: Imaginário Político, Mitos Políticos, Ditadura Militar, Rebeldes
Brasileiros.
7
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA...................................................................................... I
AGRADECIMENTOS............................................................................ II
RESUMO................................................................................................ III
LISTA DE FIGURAS............................................................................. IV
INTRODUÇÃO..................................................................................
...................... 001
CAPÍTULO I - LAMARCA E A CONSTRUÇÃO DO MITO......................... 012
1.1 - Santo e/ou demônio?.............................................................................. 023
1.2 - A imagem da onipresença...................................................................... 030
CAPÍTULO II – CHE E LAMARCA: ESTRELAS AVESSAS DO AVESSO
DA AMÉRICA LATINA........................................................ 058
2.1 - “As entranhas do monstro” .................................................................. 059
2.2 - Espelhos identitários............................................................................. 063
2.3 - Analogias históricas... a rebeldia e a tragédia....................................... 068
2.4 - Símbolos de vida e morte...................................................................... 081
CAPÍTULO III O MITO LAMARCA E A
CONSOLIDAÇÃO
DEMOCRÁTICA.................................................................... 091
3.1 - A anistia e o tema da traição................................................................ 092
3.2 - O reconhecimento do mito no reconhecimento das
responsabilidades civis........................................................................ 104
IV - CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................
111
V – FONTES DOCUMENTAIS........................................................................... 115
VI – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................ 120
VII – ANEXOS...................................................................................................... 124
8
LISTA DE FIGURAS
1 – Foto – Aman Cadete 198............................................................................... 001
2 – Cartazes da Repressão................................................................................... 004
3 – Foto – Treinamento Laudo Natel................................................................... 030
4 – Foto – Treinamento funcionárias Bradesco I................................................. 031
5 – Foto – Treinamento funcionárias Bradesco II................................................ 032
6 – Capa Revista Veja 03/06/1970....................................................................... 038
7 – Fotos – Cadáveres de Lamarca e Zequinha.................................................... 045
8 – Foto – Escola Preparatória de Cadetes de Porto Alegre................................. 068
9 – Foto – Iara na casa de Rodolfo Nani.............................................................. 076
10 – Foto – Che e família..................................................................................... 077
11 – Foto – Lavrador aponta o local da morte de Lamarca.................................. 081
12 – Foto – Pinheiro milagroso............................................................................ 082
13 – Foto – Menino aponta o local da morte de Lamarca.................................... 083
14 – Foto – Che, Lamarca e gravura de Elifas Andreatto.................................... 085
15 – Foto – Che, Lamarca e Rembrandt............................................................... 086
16 – Revista Veja: Operação Condor..................................................................... 089
17 – Laudo Cadavérico de Lamarca...................................................................... 129
9
INTRODUÇÃO
Álbum de formatura da AMAN. Cadete 198 - Lamarca
1960
10
A revista AGULHAS NEGRAS, uma espécie de álbum de formatura da
Academia Militar de Agulhas Negras, na edição de 1961, traz as fotografias dos formandos do
curso de Infantaria turma I-3, entre elas a do cadete nº 198, Carlos Lamarca, com os seguintes
dizeres: “nascido na cidade do Rio de Janeiro no dia 27 de outubro de 1937, ingressou na
Escola Preparatória de Pôrto Alegre, onde concluiu o curso em 1957. Cursou a AMAN nos
anos de 58 59 60 e foi declarado Aspirante da Arma Infantaria no dia 4 de dezembro de
1960”
1
. Na seção das fotos do Comando da Academia, aparece como Comandante o General
de Brigada Adalberto Pereira dos Santos e como Sub-comandante o então coronel Emílio
Garrastazú Médici. Ambos, no período mais violento da repressão militar, chegaram aos mais
importantes postos de comando, o primeiro sendo vice-presidente da república no governo de
Ernesto Geisel e o segundo, presidente da república no período mais negro da repressão
política do regime militar e da morte de Carlos Lamarca.
Dez anos depois, em um relatório datado de 30 de setembro de 1971, um documento
reservado do Exército sobre a Operação Pajussara anunciava os objetivos alcançados. O
primeiro da lista era assim formulado: “Foi destruído o mito terrorista representado por
LAMARCA”
2
. (o grifo é meu)
Entre estes dois momentos, o da revista de formatura da Academia, quando
inicia sua carreira militar, e do relatório dando como destruído o mito terrorista representado
por LAMARCA; a trajetória do filho de sapateiro que chega a capitão do Exército e sua luta
contra o regime imposto ao ps por seus pares, estão os acontecimentos selecionados capazes
de transformá-lo em um personagem ao mesmo tempo histórico e mítico.
Ao lado do personagem histórico Lamarca habita o Lamarca imaginário, que
se tornou o maior mito da esquerda armada no Brasil
3
. Desde as primeiras reportagens sobre o
capitão desertor - oficial do Exército Brasileiro, carreira brilhante à frente, que,
inconformado, rasga sua farda, aposta noutro futuro – sonha com a humanidade livre, mete o
peito resoluto em busca da liberdade e leva as últimas conseqüências o que julgava acertado
4
- foi transformado em uma imagem representativa de todo o período da luta entre os
subversivos” ou “terroristas” e a ditadura militar implantada no país em abril de 1964.
1
ACADEMIA MILITAR DE AGULHAS NEGRAS. AGULHAS NEGRAS: ÓRGÃO OFICIAL DO
CORPO DE CADETES DA ACADEMIA MILITAR DAS AGULHAS NEGRAS.[S.l.]. 1960.
2
MINISTÉRIO DO EXÉRCITO BRASILEIRO, IV EXÉRCITO, 6
ª
REGIÃO MILITAR. RELATÓRIO
RESERVADO OPERAÇÃO PAJUSSARA, [S.l]. 1971. p. 37.
3
OLTRAMARI. A. O cérebro do roubo do cofre REVISTA VEJA. São Paulo: Abril.. ano 36. n. 2 15/01/2003,
p. 36/37.
4
JOSÉ, E.; MIRANDA O. LAMARCA, O CAPITÃO DA GUERRILHA., 15ºed. rev. e ampl.; São Paulo:
Global, 2000. p. 16.
Formatado
Formatado
Formatado
Formatado
Excluído:
p.
Excluído:
completar
referência
Excluído:
,
Excluído: Oldack Miranda e
Emiliano José,
11
Parece-me equivocado pensar que a construção dessa imagem se deve
unicamente ao esforço das organizações de esquerda em criar um herói, ao contrário, muito
foi feito pelos próprios militares ao tentarem criar um rosto que representasse o “mal” na
figura dos “subversivos”.
Após a deserção, a ditadura traça ao público seu perfil como sendo o de um
rebelde com sérios problemas mentais, sonhos megalomaníacos e que significava um perigo
real, pois era um militar treinado:
“Na imprensa, a habilidade de atirador e uma série de operações
espetaculosas (certa vez comandou um assalto simultâneo a dois bancos, numa
rua movimentada de São Paulo, e parou o transito com rajadas de
metralhadora depois de atingir mortalmente um policial com um tiro de pistola
de mais de 30 metros) levaram o nome de Lamarca às manchetes e daí ao
posto de principal líder do terrorismo no Brasil.”
5
A matéria é sobre a notícia de sua morte ocorrida em 17/09/1971, ela induz que
a partir das manchetes, da fama e de sua qualificação técnica como soldado capaz de realizar
“operações espetaculosas”, Lamarca chegou a condição de líder da “subversão”. Para Jacob
Gorender, militante do PCBR Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, a notoriedade
foi prejudicial:
“Desenharam sua imagem pública como a de traidor, bandido inescrupuloso e
assassino perverso. A fama de campeão de tiro reforçou imagem tão
negativa”
6
A partir de sua saída do Exército e da constante presença de seu nome nos
noticiários, o capitão passou a ser responsabilizado, como veremos adiante, por grande parte
das ações armadas contra a ditadura. A aptidão para o tiro associada à qualificação
profissional e ao “arsenal” que levou consigo na fuga do Quartel de Quitaúna foram imagens
bastante exploradas na criação do temor em relação aos chamados “subversivos”.
5
A cena final de um terrorista. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. n. 159 22/09/1971, p. 23/26.
6
GORENDER, J.; COMBATE NAS TREVAS A ESQUERDA BRASILEIRA: DAS ILUSÕES PERDIDAS
À LUTA ARMADA. São Paulo: Ática. 1987. p. 188
Formatado
Formatado
Formatado
12
Iconographia. Cartazes. Extraído do livro Combate nas Trevas – Jacob Gorender
1987.
Nos cartazes espalhados pelas ruas das cidades brasileiras, os escritos traziam
mensagens como: “Terroristas procurados Assaltaram Roubaram Mataram pais de
família”
7
ou “Ajude a proteger a sua vida e a de seus familiares”
8
. Nelas a ênfase é dada ao
perigo de uma ação contra o homem comum e contra valores importantes a esse homem.
A propaganda em relação aos subversivos evitava admiti-los como um
problema político de grande relevância. Suas ações deveriam parecer incapazes de atingir o
7
Os rachas do terror. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. p. 23/25 de 04/02/1970.
8
GORENDER, J. op. cit. anexos.
Formatado
13
governo que, mesmo assim, surge como o sempre atento guardião do bem estar da população
vulnerável à sanha dos “terroristas” identificados principalmente na figura de Carlos Lamarca.
Não são, portanto, os acontecimentos em si, mas as imagens e as
representações que tornam a saga de Carlos Lamarca uma “história exemplar”. Nesse sentido,
é notável, nestas narrativas sobre o ex-capitão, os apelos a imagens mitológicas,
transformando-o no “maior mito”
9
da esquerda armada brasileira.
Carlos Lamarca participou de poucas ações armadas. Foram três, segundo
Marcelo Rubens Paiva: um assalto a banco, o roubo da “caixinha do Adhemar” e o seqüestro
do embaixador suíço, que poderiam ser somadas a pelo menos mais três: a fuga do Quartel de
Quitaúna, levando consigo armas para a revolução; a fuga do Vale do Ribeira, escapando do
cerco da polícia militar e do Exército; a fuga no sertão que terminou com sua morte. Uma
biografia pobre em relação a outros nomes da esquerda como por exemplo Carlos Marighella,
porém ultrapassando os limites da trajetória pessoal capaz de , como a de nenhum outro,
sintetizar a tragédia do seu tempo.
Os biógrafos Oldack Miranda e Emiliano José, em uma nota no início do seu
livro, apontam a dificuldade dessa compreensão:
“...Lamarca não foi o assassino frio e sangüinário’, mostrado na imprensa
por pressão do Exército, muito menos um ‘Messias sem Deus’ ou joguete da
esquerda armada. Nem o herói imaculado apresentado por admiradores
fantasiosos no exterior. O capitão Lamarca absorveu a tragédia de seu tempo
e viveu o drama, todo, de um período em que a tortura e o assassinato político
eram métodos considerados normais pelo Estado brasileiro. Os anos somados
vão tornando possível uma análise política fria. Duro é sacar o lance do
oficial do Exército brasileiro, carreira brilhante à frente, que, inconformado,
rasga sua farda e aposta noutro futuro: sonha com a humanidade livre, mete o
peito resoluto em busca da liberdade e leva às últimas conseqüências o que
julgava acertado.”
10
É provável que se buscarmos a compreensão através do acontecimento em si
não consigamos mesmo sacar o lance do oficial do Exército brasileiro” os seus motivos
para abandonar tudo e apostar noutro futuro ou para explicar como transformou-se no rosto e
na imagem dos militantes que aderiram à luta armada, pois o ex-capitão torna-se um
personagem importante para a recente história política do Brasil ao ultrapassar os contornos
individuais. Sua importância histórica está na compreensão das representações de seus atos
muito mais que nos atos em si.
9
OLTRAMARI. A. O cérebro do roubo do cofre. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 15/01/2003, p. 36/37.
10
JOSE E.; MIRANDA O. op. cit. p.16.
Formatado
14
Os acontecimentos são, no entanto, fundamentais para os mitos pois estes o
surgem da natureza das coisas. Não foi a deserção de Lamarca que o transformou em mito e
sim a possibilidade de, a partir dessa deserção, ter sua trajetória na luta armada selecionada e
transformada numa “história exemplar” estabelecendo um diálogo com uma sociedade que
reconhece o seu significado.
O uso do termo mito para se referir a coisas distintas e distantes no tempo e no
espaço, como os mitos gregos, os mitos das sociedades tradicionais e os mitos políticos, não é
um problema, pois não há grandes diferenças nas funções desses mitos. O sentido pedagógico
de cada mitologia equivale-se. Carlo Ginsburg, em Olhos de Madeira, comenta que para
Platão existiam bons e maus mitos, os bons deveriam ser adotados e os ruins repelidos e,
também, haveria a necessidade de vigiar os que compuseram os mitos
11
, isto devido à
educação que ele pensava a mais indicada aos guardiões do Estado. Para Mircea Eliade, os
mitos das sociedades tradicionais contam uma história de um tempo primordial, ou seja,
narrativas sagradas sobre um tempo imemorial que ordena um espaço social através da
repetição de acontecimentos primordiais
12
. Nota-se que a noção de cada sociedade sobre mito
ou a compreensão de sua mitologia não elimina, portanto, a sua função de ordenação social.
Nas mitologias grega e das sociedades tradicionais o exemplo vem de seres
divinos ou divinizados interagindo na esfera humana ou de homens postos a prova pelos
deuses ou ancestrais sagrados. A sociedade do homem moderno, que se quer histórico,
dessacraliza acontecimentos tentando racionalizá-los, mas não consegue libertar-se dos
exemplos de imagens oníricas. Para o historiador marxista Jacob Gorender isto é um
problema:
“A história do movimento comunista internacional está repleta da construção
de mitos. Por enquanto, a racionalidade marxista tem sido impotente para
refrear essa tendência ideológica milenar, cuja força espontânea impregna a
consciência das massas trabalhadoras
13
A dessacralização dos seres divinos cedeu lugar à sacralização do homem. Não
são mais os deuses do Olimpo os protagonistas da mitologia das sociedades modernas nem
imagens de uma religiosidade cívica como a grega, na qual a relação religiosa entre o
indivíduo e uma divindade se dava através de uma mediação social
14
ou de sociedades em
11
GINSBURG. C. OLHOS DE MADEIRA: NOVE REFLEXÕES SOBRE A DISTÂNCIA São Paulo:
Companhia das Letras. 2001. p. 43.
12
ELIADE. M. O MITO DO ETERNO RETORNO Lisboa: Edições 70: Rio de Janeiro: Edições 70 Brasil.
13
GORENDER. J. op. cit. p. 27.
14
VERNANT, Jean-Pierre, ENTRE MITO E POLÍTICA. trad. Cristina Murachco. o Paulo: EDUSP. 2000
p. 202 et. seq.
Formatado
Formatado
Formatado
Formatado
Formatado
Excluído:
,
Excluído:
arlo
Excluído:
ircea
Excluído:
Eliade
Excluído:
acob Gorender,
Combate nas Trevas,
15
comunhão com a natureza, como as chamadas tradicionais. As histórias sagradas da sociedade
moderna são de imagens divinizadas neste mundo. Assim, podemos considerar a existência de
mitos no cinema, no esporte, no teatro, e, igualmente, a existência de mitos políticos.
O entendimento sobre mito político é que se trata de uma narrativa exemplar,
na qual se encontra explicação, justificativa e sentido para um passado e motivação para a
ação presente. Explicação também de motivos pessoais, capaz de sintetizar em sua tragédia a
de outros indivíduos, de motivar e explicar a adesão pessoal e completa que ultrapassa a idéia
de vínculo com uma determinada corrente de pensamento político, assumido diante do
balanço racional de argumentos, avaliações ou interesses.
Assim, O mito político é ficção, síntese explicativa e mensagem
mobilizadora
15
; como ficção é capaz de fornecer certo número de chaves para a compreensão
do presente, constituindo uma criptografia através da qual pode parecer ordenar-se o caos
desconcertante dos fatos e acontecimentos
16
.
O diálogo das sociedades com o mito, através das imagens e formas, para
poder ser estabelecido pressupõe que haja compreensão da sociedade sobre os significados
contidos nestas narrativas, imagens e formas. Assim, o diálogo deve fazer sentido, deve ser
possível e coerente. Não é uma construção arbitrária. O Mito como relatos aceitos entendidos
e sentidos compõe a compreensão de Jean-Pierre Vernant sobre a mitologia grega:
“Os mitos são outra coisa: são relatos aceitos, entendidos, sentidos como
tais desde nossos mais antigos documentos. Comportam assim, em sua origem,
uma dimensão de ‘fictício’, demonstrada pela evolução semântica do termo
mythos, que acabou por designar, em oposição ao que é do domínio da ficção
pura: a fábula. Esse aspecto de narração (e de narração livre o bastante para
que sobre um mesmo deus ou um mesmo episódio de sua gesta, versões
múltiplas possam coexistir e ser contraditórias sem escândalo) relaciona o
mito grego ao que chamamos de religião, assim como ao que é hoje para nós a
literatura”
17
Os mitos possuem, independentes de sua natureza, núcleos temáticos sobre os
quais as narrativas míticas são construídas. Assim, segundo Mircea Eliade, o mito:
“conta uma história sagrada; relata um acontecimento que teve lugar no
tempo imemorial, o tempo fabuloso dos começos. Em outras palavras, o mito
conta como uma realidade chegou à existência, quer seja a realidade total, o
cosmos, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um
comportamento humano, uma instituição...”
27
15
GIRARDET, Raoul; MITOS E MITOLOGIAS POLÍTICAS. trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Cia.
das Letras. 1987. p. 98.
16
Ibid. p. 13
17
VERNANT. J. op. cit. p. 230.
Formatado
Excluído:
Idem, idem,
Excluído:
Raoul Girardet, Mitos
e Mitologias Políticas,
Excluído:
,
Excluído:
ean-Pierre;
Excluído:
Entre Mito e Política;
tradução de Cristina Murachco – 2
ed. – São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2002.
P. 230
16
O mito do sagrado possui, portanto, dois grandes grupos ou núcleos centrais,
que são os cosmogônicos e os de origem relacionados com a criação e complementação do
cosmos; enquanto que os de origem política possuem, segundo Girardet, quatro grandes
núcleos: A Conspiração, O Salvador, A Idade de Ouro, e a Unidade. Estes núcleos míticos
não são herméticos, ao contrário, eles se entrelaçam, o que de certa forma elimina a precisão
de seus contornos, mas possuem características que possibilitam análise a partir de
comparações entre manifestações míticas que possuam narrativas, motivações, explicações e
poder de mobilização similares, ou seja, que possuam estruturas próximas.
Esses quatro núcleos temáticos denominados de Constelações mitológicas
foram discutidos pelo autor em dois séculos da história francesa, ou seja, podem não possuir
um sentido universal e nem abarcar todas as manifestações míticas de natureza política,
porém, penso que são úteis para a compreensão do personagem mítico Lamarca.
A constelação d’A conspiração utiliza, segundo este autor, a imagem do
complô possuidor de um poder que se move nas sombras, determina o desenrolar de
acontecimentos e justifica o antídoto contra ele, isto é, a existência de outro complô para
combater omal”, sempre encarnado na imagem do antagonista. O único meio de combatê-lo
é voltar contra ele as suas próprias armas através de uma réplica consagrada a serviço do
“bem”. Porém, antes de tudo, necessita-se identificá-lo, não somente no sentido de saber
quem é ou de que lado está, dotando o antagonista do sentido pleno do termo Estrangeiro
18
.
Identifica-se também o modo de agir e assimila-o. Uma identificação completa para poder
enfim enfrentá-lo, desmascará-lo, afrontá-lo.
A constelação do Salvador tem como núcleo central os perfis de personagens
capazes de surgir em momentos de extrema crise e, graças a sua ação, realizar a salvação”
de seu grupo ou sociedade. Apresenta quatro arquétipos que demonstram diferentes formas
desta manifestação. São os arquétipos de Cincinnatus, Alexandre, Sólon e Moisés.
O arquétipo de Cincinnatus retorna a um cenário ao qual já pertencia, abre mão de sua forma
privada de viver para atender a um pedido da sociedade pela qual havia feito muito. O de
Alexandre está centrado na figura do conquistador que rompe com a mediocridade e chama
para a aventura. Aquele que liberta da monotonia segura de uma vida insossa e oferece o risco
e a glória de uma existência na qual se cria o destino escrevendo seu nome em vermelho sobre
17
a terra
19
e deixa como herança para as próximas gerações um modo de vida a seguir ou a ser
resgatado.
Sólon o Legislador - aparece ligado a construção de um modo de vida (deixado ou não
como herança por alguma figura do arquétipo de Alexandre). Sua função é ditar as normas ou
reavivá-las seguindo o exemplo dos “grandes ancestrais”.
Por último, o arquétipo de Moisés o Profeta - que lidera e conduz o seu povo a um futuro
que somente ele consegue ver através da História.
A terceira constelação que Girardet apresenta é a Idade de Ouro. Este conjunto
consiste, segundo o autor, no mais completo conjunto de características do mito político, pois
apresenta ao mesmo tempo ficção, sistema de explicação e mensagem mobilizadora
20
.
Seu núcleo principal é centrado na:
“Restauração evidentemente incompleta, fragmentária, deformada, mas onde
um refrão de canção, um certo vocabulário, os elementos de uma estética
decorativa, as lembranças esparsas de usos abolidos vêm no entanto,
recolocar na expressão do presente do gosto e da sensibilidade a imagem
enobrecida de um passado mitificado.”
21
Nesta constelação o tempo não mais esligado a cronologia, é não datado,
pode ser resgatado e é carregado de gosto e de sensibilidade.
A quarta e última constelação apresentada refere-se a Unidade. Uma vontade
una e regular na qual habitam o profano e o sagrado, o poder civil e o religioso, o bem e o
mal, aquilo que está separado e deve ser unificado e o esforço para se conquistar a unificação.
Através desse método comparativo separando e organizando as manifestações
em núcleos temáticos utilizado por Raoul Girardet
22
, trata-se, segundo ele mesmo, de uma
proposta retirada do trabalho de Gilbert Durant Structures anthropologiques de
l’imaginaire
23
, e que consiste em procurar definir, dentro do que é possível, os contornos ou
conjuntos de construções míticas sob o domínio de um mesmo tema, reunidas em torno de
um núcleo central”
24
que analisamos o personagem Carlos Lamarca utilizando a figura tica
de Che Guevara, pois compreendemos que elas possuem similaridades em suas construções.
As principais questões que norteiam este trabalho são; a própria compreensão
do que é mito; compreendê-lo como algo histórico, que ocorre e intervém na história;
19
Ibid. p. 77
20
Ibid. p. 97 et. seq.-
21
Ibid. p. 99
22
Ibid. p. 19 et. seq.
23
Ibid.
24
Ibid.
Excluído:
Raoul Girardet,
MITOS E MITOLOGIAS
POLÍTICAS pp.
Excluído:
140
Excluído:
dem,
Excluído:
Mitos e Mitologias
Políticas, Raoul Girardet, p
Excluído:
-20
Excluído:
dem, idem
Excluído:
dem, idem.
18
demonstrar os elementos que possibilitem afirmar a figura do ex-capitão como um mito
político brasileiro.
Compreender o Mito como algo histórico é reconhecer que é na história que
encontraremos elementos capazes de serem selecionados para comporem uma narrativa
exemplar. Por sua vez, esta precisa ser compreendida e aceita, assim os valores e desejos
atribuídos a Lamarca (e não porquê pensar que ele não os tivesse, é por tê-los que foi
selecionado) são também próprios do homem comum, possibilitando que este se reconheça.
Quanto a intervenção na história é preciso notar que além de síntese explicativa há também a
força mobilizadora do mito. Essa força mostra-se nos momentos em que esta imagem
potencializa valores e desejos de quem com ela estabelece diálogo definindo assim
posicionamentos e identidade dos antagonistas.
No caso de Lamarca destacamos três momentos quando, para além da sua ação,
sua imagem intervém na história: o primeiro é o período da luta contra o regime militar que
fornece elementos para a construção do personagem, quando o apelo a sua imagem é feito
tanto no sentido da identificação do complô maléfico quanto da possibilidade de servir como
figura mobilizadora para a adesão aos movimentos armados.
O segundo é o momento da anistia que traz no bojo o apelo à legitimidade de
ações passadas e a determinação, característica bastante destacada na figura do ex-capitão,
para novos confrontos.
O terceiro momento é a disputa no julgamento na “Comissão de Mortos e
Desaparecidos” sobre a responsabilidade pela sua morte.Não estão separados
cronologicamente mas de acordo com os apelos e as imagens invocadas a cada episódio ou
circunstância.
A fabulação, a forma das narrativas, os momentos em que são invocadas, suas
imagens, a aproximação com outras figuras, a força exemplar, a ordem que estabelece para os
acontecimentos, são partes ativas da construção mítica, e não será separando-as que se
apreenderá o mito. Este está no emaranhado e nas ligações que se elevam ao infinito.
No período em que esteve vivo e foi perseguido pela repressão, Lamarca
transformou-se na imagem da “subversão” e da revolução no país. A propaganda da ditadura e
a imprensa é que tornaram pública a figura do ex-capitão. Não é, portanto, na exatidão de sua
participação nos acontecimentos e sim nas descrições de suas façanhas como guerrilheiro e
rebelde que surge como mito.
19
O trabalho de estudar o mito não deve partir da premissa de desconstrução. A
tentativa de desfazer equívocos de narrativas conhecidas e transmitidas sobre personagens
míticos faz com que se perca exatamente a noção de mito.
A proximidade com os acontecimentos, as várias pessoas envolvidas na luta
armada e ainda ativas na política, até no governo Luís Inácio Lula da Silva, como a militante
da VAR-PALMARES Vanguarda Armada Revolucionária Palmares - Dilma Rousseff,
ministra de Minas e Energia, e o ministro da Casa Civil, José Dirceu, nos dão a possibilidade
de avaliar, a cada reportagem, livros, investigações para descoberta de novos indícios sobre as
mortes (como no caso da operação de ajuda mutua entre os órgãos de repressão política
conhecida como Operação Condor), o quanto a imagem mítica do ex-capitão está presente,
despertando debates, opiniões e mobilizando setores politizados e intervindo na vida e na
história política.
Essa possibilidade, como ocorreu no caso do processo de reconhecimento da
responsabilidade do Estado na morte do ex-capitão Carlos Lamarca realizado pela Comissão
de Mortos e Desaparecidos no Regime Militar, deixa-nos atento para o alerta de Raoul
Girardet sobre o devido cuidado do historiador que aceitar o desafio de trabalhar com mitos
políticos:
“É uma esperança sem dúvida bem ilusória pretender definitivamente
transcender a oposição do racional e do imaginário. Encontramo-nos em um
domínio onde o único verdadeiro conhecimento seria da ordem do existencial:
apenas aqueles que vivem o mito na adesão de sua fé, no impulso de seu
coração e no empenho de sua sensibilidade se encontrariam em condição de
exprimir sua realidade profunda. Visto do exterior, examinado com o exclusivo
olhar da observação objetiva, o mito corre o risco de não mais oferecer senão
uma imagem fossilizada, seca, prancha de anatomia despojada de todos os
mistérios da vida, cinzas esfriadas de uma fogueira incandescente.”
25
25
GIRARDET. R. Op. cit. p. 23.
Excluído:
GIRARDET
Excluído:
Raoul, Mitos e
Mitologias Políticas, São Paulo,
Companhia das Letras, 1987, p. 23
20
CAPÍTULO I - LAMARCA E A CONSTRUÇÃO DO MITO
21
Os movimentos políticos que optaram pela oposição armada ao regime militar
tornaram-se conhecidos muito em função de obras literárias, cinematográficas, e matérias
jornalísticas. Carlos Lamarca é um ícone desses movimentos. Ex-capitão do Exército,
desertou em 24 de janeiro de 1969 para ingressar na luta armada contra o regime militar e foi
morto em 17 de setembro de 1971, próximo ao povoado de Pintada no sertão baiano
26
após
dois anos, oito meses e 25 dias de clandestinidade, sendo lembrado e citado em várias
abordagens sobre o tema.
Aparece, entre outros, nos seguintes livros de memórias de ex-guerrilheiros e
estudiosos do período:
Lamarca: o capitão da Guerrilha, biografia escrita por Oldack Miranda e Emiliano
José, lançada em 1980 e que chegou a oito edições no período de um ano, tendo,
posteriormente, na 15ª edição recebido uma versão revista e atualizada devido a novas
descobertas fruto das investigações para o processo da “Comissão de Mortos e
Desaparecidos no Regime Militar”, entre elas a do laudo cadavérico desaparecido
25 anos;
Os Carbonários: Memórias da Guerrilha Perdida de Alfredo Syrkis; cuja primeira
edição é de agosto de 1980;
Brasil: Nunca Mais, o dossiê sobre torturas de presos políticos organizado pela
Arquidiocese de São Paulo, de 1985;
Combate nas Trevas A Esquerda Brasileira: das ilusões perdidas à luta armada,
livro do historiador Jacob Gorender, de 1987;
Iara, Reportagem Biográfica, de Judith Lieblich Patarra, biografia de sua grande
paixão e companheira na guerrilha Iara Yavelberg, livro que tem como data da
primeira edição o ano de 1992, alcançando no período de um ano quatro edições;
Mulheres Que Foram à Luta Armada, livro de jornalismo investigativo baseado em
depoimentos, de Luiz Maklouf Carvalho, de 1998;
Dos Filhos Deste Solo – Mortos e Desaparecidos políticos durante a ditadura militar:
a responsabilidade do Estado, dossiê dos processos da “Comissão de Mortos e
Desaparecidos do Regime Militar”, de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, de agosto
de 1999;
Ousar Lutar Memórias da Guerrilha Que Vivi de José Roberto Rezende,
depoimento a Mouzar Benedito, de setembro de 2000;
26
O atestado de óbito da como local da morte o município de Brotas de Macaúbas, porém o povoado de Pintada
22
Almanaque Abril: Quem é Quem na História do Brasil, de 2000, que apontava as
“500 personalidades que fizeram a diferença na formação do país”
27
;
Na narrativa jornalística de Elio Gaspari em A Ditadura Escancarada, de 2002.
Lamarca está também presente nos registros bibliográficos dos militares. É
citado e comentado em:
nas memórias do ex-chefe do Doi/Codi de São Paulo, Carlos Alberto Brilhante Ustra,
Rompendo o Silêncio, publicado em 1987;
no dossiê Brasil: Sempre, de Marco Pollo Giordani, de 1986 (uma tentativa de
resposta ao Brasil: Nunca Mais);
Os Anos de Chumbo Memória Militar sobre a Repressão, organizado por Maria
Celina D’Araújo, Gláucio Ary Dillon Soares e Celso Castro, de 1994;
nas memórias do chamado Anjo da Morte o Cabo Anselmo: Eu, cabo Anselmo
depoimento a Percival de Souza, de 1999.
Na literatura de ficção recebeu a dedicatória do livro de poesias do ex-militante
Alex Polari de Alverga Inventário de Cicatrizes”, cujo valor aferido na venda destinava-se
ao Comitê Brasileiro Pela Anistia, em 1978; e no romance Não és tu, Brasil, de Marcelo
Rubens Paiva, em 1996, tendo como pano de fundo a passagem de Carlos Lamarca pela
região do Vale do Ribeira.
Pelas datas das publicações percebe-se o quanto a literatura sobre o período do
regime militar, tendo em Lamarca uma de suas mais destacadas figuras, é volumosa e
contínua. Também pelas datas pode-se imaginar ter havido, após o fim da censura, um boom
editorial, e de fato houve, sobre livros que trazem a público o conflito entre os “subversivos”
e os militares tendo o interesse de explicar e legitimar cada um dos lados e suas ações.
Lamarca é conhecido pela sociedade sobretudo através destas obras e pelo
papel desempenhado pela imprensa durante e depois do período de luta armada. Estas são as
fontes privilegiadas na análise da construção do personagem mítico.
Em 1996, no dia 30 de julho, durante o julgamento dos processos de
reconhecimento da responsabilidade do Estado pela morte de militantes das organizações de
esquerda e opositores da ditadura na Comissão de Mortos e Desaparecidos no Regime Militar,
o Jornal Folha de S. Paulo promoveu um debate entre o escritor Marcelo Rubens Paiva,
autor do livro Não és tu, Brasil, filho do deputado Rubens Beirodt Paiva, desaparecido
está localizado no município de Ipupiara
27
ALMANAQUE ABRIL QUEM É QUEM NA HISTÓRIA DO BRASIL. São Paulo: Abril Multimídia.
2000. p. 7
23
político e primeiro a ter sua morte reconhecida através de anexo da Lei 9.140/95 que
instrumentalizou os trabalhos da Comissão; o historiador Jacob Gorender, autor do livro
Combate nas Trevas – Das Ilusões Perdidas à Luta Armada; Antônio Paim diretor do
Instituto Brasileiro de Filosofia antigo membro do Partido Comunista Brasileiro com o qual
rompeu em 1958 e defensor do regime militar e Jarbas Passarinho, coronel da reserva, um dos
articuladores do movimento de 1964, em Belém do Pará e ministro em três pastas de
governos do regime que ajudou a implantar: do Trabalho (governo Costa e Silva), da
Educação (Médici) e da Previdência Social (Figueiredo), foi também ministro de um governo
diretamente eleito na pasta da Justiça (Collor), que lançava um livro de memória Um Híbrido
Fértil
28
.
O debate foi publicado pelo jornal em 25 de agosto de 1996, e na capa do
caderno “Mais” uma frase de Jarbas Passarinho chamava atenção:
“Nosso lado ganhou a luta armada e perdeu a batalha da comunicação, não
teve a menor capacidade de justificar de explicar de convencer”
29
A afirmação do ex-ministro é correta no sentido de, a posteriori, os militares
prescindirem de uma imagem capaz de justificar, explicar e convencer as ações da ditadura, a
diferença proporcional entre as forças, a militarização do Estado ao dotar, através do Ato
Institucional n.º 5, o Executivo de poderes excepcionais e, ao mesmo tempo, liberar os
agentes da repressão para um combate fora das formas convencionais de luta, mas plenamente
de acordo com a Doutrina de Segurança Nacional
30
. Faltou, enfim, a capacidade de criar uma
imagem de legitimidade às suas ações.
Esta guerra de comunicação não foi travada apenas após o fim da censura,
quando os combates armados haviam sido finalizados. A batalha da comunicação começou
durante o conflito.
Antes do AI-5 os militares já se preocupavam com a importância estratégica da
imprensa no intuito de “explicar, justificar e convencer”, de maneira unívoca o momento,
para isso os manuais utilizados pelos censores em São Paulo no dia da decretação do Ato
continham as seguintes instruções:
28
Jarbas Passarinho encontra Marcelo Paiva JORNAL FOLHA DE S. PAULO Caderno 5 “Mais”. 25/08/1996
p. 5.
29
Jarbas Passarinho encontra Marcelo Paiva JORNAL FOLHA DE S. PAULO Caderno 5 “Mais”. 25/08/1996
p. 1.
30
GASPARI, Elio Ditadura Envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras. 2002 p. 39 et. seq.
Excluído:
Jornal Folha de São
Paulo
Excluído:
Jornal Folha de São
Paulo
24
“[...] as notícias devem ser precisas, versando apenas sobre fatos consumados
[...]. Não publicar notícias sobre atos terroristas, explosão de bombas,
assaltos a bancos, roubos de dinamite em qualquer ponto do território
nacional, ou sobre movimentos subversivos, mesmo quando se trate de fato
consumado e provado.”
31
A proibição de publicações contrárias aos interesses da ditadura não significou
o completo silêncio em relação ao movimento armado contra o governo, uma vez que a
imprensa foi utilizada para tornar público o mal” na imagem dos guerrilheiros, um perigo
constante, sorrateiro e ameaçador que justificava as ações da ditadura:
“O inimigo opera subterraneamente, clandestinamente, versátil, inapreensível,
capaz de infiltrar-se em todos os meios, sua habilidade suprema é a da
manipulação, suas tropas invisíveis mas presentes em toda parte, são
submetidas a uma obediência sem protestos .”
32
É dessa forma que a imprensa identifica as organizações subversivas e constrói,
na imagem de Lamarca, a identificação desse “mal”.
Estrategicamente uma das maneiras de como a imprensa era utilizada foi no
atraso das informações para que os subversivos” não soubessem quem havia sido preso e
pudessem se reorganizar para absorverem o golpe da “queda”, como explicou o próprio I
Exército no Rio de Janeiro:
“A divulgação da notícia no mesmo dia alerta todo o sistema subversivo. Os
encontros que estão marcados para dentro de seis, doze ou 24 horas são todos
desfeitos. Isso tem ocorrido na realidade e as tropas legas têm caído em
verdadeiros vazios, prejudicando enormemente o desenrolar das operações”
33
Não se trata de censura, mas de utilização estratégica, pois, em outros casos, a
imprensa foi utilizada para encobrir assassinatos a serem ainda cometidos pelos agentes de
repressão. No livro Dos filhos deste solo, de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, (um dossiê
dos processos de reconhecimento de responsabilidade do Estado pela morte de militantes
durante a ditadura da Comissão de Mortos e Desaparecidos no Regime Militar vinculada ao
Ministério da Justiça) são reveladas informações sobre a fuga e, posteriormente, a morte de
Bacuri (Eduardo Collen Leite - um dos mais destemidos entre os guerrilheiros); elas dão bem
a dimensão desse uso:
31
Idem. 2002 ; p. 212.
32
GIRARDET. R. op. cit. p. 59.
33
Sinais de guerra. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 28/01/1970 p. 25/26 - transcrição nota do 1º Exército
Excluído:
Elio Gspari
25
“Vinte e quatro de outubro de 1970, solitária do fundão do Deops/SP: o
tenente Chiari da PM informa a Eduardo Collen Leite, o Bacuri, mineiro de
Campo Belo, que o jornal daquele Sábado estava noticiando a sua fuga,
ocorrida no dia anterior. Outros presos políticos, como Vinícius Caldeira
Brant e Viriato Xavier, também ouviram o comunicado”
34
A manobra da publicidade da fuga serviu para encobrir sua retirada do DEOPS
e seu encaminhamento para o sítio particular do delegado Sérgio Paranhos Fleury, do DEOPS
Paulista e do Esquadrão da Morte, onde foi supliciado. O nome de Bacuri era dado como
certo na lista de presos a serem libertados em troca da liberdade do embaixador suíço Enrico
Bucher, seqüestrado por um comando da VPR Vanguarda Popular Revolucionária, liderado
por Carlos Lamarca: A repressão não poderia apresentá-lo: além da farsa da fuga, ele estava
dilacerado pelas torturas
35
.
Seu corpo foi encontrado no dia 08 de dezembro de 1970 e, segundo Nilmário
Miranda e Carlos Tibúrcio, foi encontrado apresentando hematomas, escoriações, cortes
profundos, queimaduras, dentes arrancados e os olhos vazados.
36
Mas a versão oficial,
reproduzida no laudo cadavérico, era de morte em tiroteio ... que teria ocorrido às 22 horas
do dia 8 de dezembro de 1970, em Boracéia, ligação entre Bertioga e São Sebastião. O laudo
registra quatro disparos e responde não ao item que pergunta se houve tortura.
37
Esta versão
foi desmontada pela Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, quando foi aprovada a
indenização por unanimidade, contando até com o voto do representante das Forças Armadas,
o general Oswaldo Gomes.
Foi através desta imprensa e da propaganda utilizada pela ditadura que
Lamarca tornou-se conhecido e através das reportagens veiculadas no período de luta armada
a sociedade soube de sua existência, ou como a representação do compmaléfico ou, como
veremos, como o homem providencial.
A força de sua figura surge nas reportagens em que aparece como o
“subversivo” capaz de realizar proezas como tiros certeiros, fugas espetaculares, assaltos
mirabolantes; muitas dessas façanhas ligadas a sua formação profissional, afinal era um
soldado. Dessa forma, pode ser identificado como um perigo ou o homem providencial, figura
34
MIRANDA. N.: TIBÚRCIO C. DOS FILHOS DESTE SOLO - MORTOS E DESAPARECIDOS
POLÍTICOS DURANTE A DITADUARA MILITAR: A RESPONSABILIDADE DO ESTADO. o
Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo: Boitempo Editorial. 1999. p. 57.
35
Ibid. p. 58.
36
Ibid.
37
Ibid.
Excluído:
,
26
redentora capaz de redimir sentimentos de impotência diante de uma realidade não mais
acolhedora e segura.
Como militante de organizações de luta armada (VPR Vanguarda Popular
Revolucionária, VAR-PALMARES Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, MR-8
– Movimento Revolucionário 8 de Outubro), o ex-capitão passa a representar o perigo de toda
“subversão”. Sua presença torna-se constante na imprensa e praticamente todas as ações dos
grupos guerrilheiros são noticiadas ou como sendo de sua responsabilidade, ou para anunciar
a possibilidade de sua prisão, ou ainda para demonstrar a periculosidade e a importância de
algum “terrorista” preso ou morto (quanto mais próximo de Lamarca, maior o perigo que
representava). O Lamarca que participou, segundo Marcelo Rubens Paiva, de apenas três
ações: Um assalto a banco, o roubo do cofre de Ana Capriglione e o seqüestro do embaixador
suíço, não era conhecido no momento da Luta Armada. Nesse período, ele é quase
onipresente em relação ao “terror”. No inquérito do DEOPS enviado à segunda auditoria, foi
acusado de 18 ações
38
e, invariavelmente, as matérias sobre a subversão” faziam alguma
referência a seu nome.
A prisão de Lamarca era sempre, segundo as reportagens, uma questão de dias
ou não havia sido ainda realizada por um simples acaso:
“E, segundo o Centro de informações do Exército, também a imagem de
organização eficiente poderá sofrer um golpe a qualquer momento, com a
prisão do ex-capitão Carlos Lamarca, o mais conhecido dos executores do
Terror. informações de que ele foi localizado, no Rio, e dificilmente
escapará ao cerco que se fecha em sua volta”
39
Na reportagem sobre a morte do guerrilheiro Antônio Raimundo Lucena, a
prisão do ex-capitão só não teria ocorrido porque uma rádio noticiou o tiroteio:
“A mulher de Lucena, presa na ocasião confessou que Lamarca freqüentava a
casa habitualmente. E a polícia afirma que não conseguiu pegá-lo (Lucena
o esperava, Sábado, dia 21 um dia após sua morte) porque uma rádio de São
Paulo noticiou o tiroteio.”
40
Havia sempre um motivo para que esta prisão não se realizasse. Lamarca
escapava graças a casualidade de pequenos detalhes, o que demonstrava tanto a sua
capacidade quanto a eficiência dos órgãos de repressão, pois estes sempre o “localizavam”,
mesmo que fosse em função de erros à ventura cometidos pelo ex-capitão, mas não contavam
com a sorte:
38
VER ANEXO 1.
39
O terror fala e escreve. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 11/06/1969. p. 18.
27
“As autoridades acreditam que Lamarca está numa posição bastante difícil,
praticamente acuado. Mesmo não sendo considerado um dos ‘cérebros’ do
terror (na sua organização, VAR-Palmares, ele era tido mais como homem de
ação) localizar Lamarca, para a polícia, será a etapa final da escalada contra
o terror. Ele é hoje o único homem em condições de reunir o que resta dos
vários grupos esfacelados. Essa seria a última batalha do terror.” (os grifos
são meus)
41
Prender ou matar o ex-capitão é considerada a última etapa da luta contra o
“terror”, ou seja, não é um indivíduo mas a representação de toda a “subversão”, mesmo
que ela esteja bastante desarticulada. Para justificá-lo como o “rosto” da subversão e a
imagem do mal” a ser combatido e extirpado, era necessário que sua condição de liderança
fosse aceita e facilmente identificada nas matérias. As façanhas e a disposição para a ação o
credenciaram como líder, mesmo desqualificando-o como político, afinal, não era “um dos
cérebros do terror” e mantinha a idéia da necessidade da existência do aparato repressivo da
ditadura.
A instrumentalização da imprensa através do aparato da censura, também foi
explicada com a necessidade de conter o poder de sedução da imagem de Lamarca, pois para
os militares, a possibilidade de pontos de vista divergentes atribuírem diferentes significações
às noticias serviram como justificativa para a existência desse controle. O general Carlos
Alberto da Fontoura comentou esse perigo ao ser perguntado sobre a censura total em relação
a guerrilha:
“Ah! Em relação à guerrilha, era. Porque a notícia desperta. Se deixássemos
publicar, e sobretudo mentir, que a guerrilha venceu ali, que o Lamarca fez
isso, fez aquilo, os estudantes começariam a se assanhar. Porque os estudantes
universitários, a UNE, todos eram inocentes úteis.”
42
O General está correto quanto a possibilidade de Lamarca transformar-se,
devido às “mentiras” da imprensa, em um exemplo a ser seguido, porém ao tentar dotar-lhe
de um perfil maléfico, foi a ditadura quem mais buscou divulgar suas façanhas, “mentiu”,
como disse o general, buscando imputar-lhe todos os males” e “perigos” dos grupos
“subversivos”, tornando-o presente em ações, mesmo quando estava ausente, aumentando
seus feitos e tornando-os espetaculares ela fez de quem era para ser temido, uma imagem
40
A última batalha. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 04/03/1970. p. 29.
41
A última batalha. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 04/03/1970. p. 29.
42
D’ ARAÚJO Maria Celina; SOARES Gláucio Ary Dillon; CASTRO Celso OS ANOS DE CHUMBO: A
MEMÓRIA MILITAR SOBRE A REPRESSÃO, Rio de Janeiro; Relume-Dumará; 1994; p. 98.
28
capaz dar respostas às expectativas sobre a chegada de um homem providencial apto a romper
com a situação social vigente.
Lamarca, em março em 1971, segundo seus biógrafos Oldack Miranda e
Emiliano José, também tinha conhecimento da importância que sua figura adquiriu:
“Admite que numa ação armada, no sul, militantes haviam gritado ‘Viva
Lamarca’, o que considerava errado por não aceitar a criação de um mito
mas não a ponto de combater isso publicamente; seria uma política
burguesa”
43
Admitiu, segundo os mesmos biógrafos, em uma carta para a esposa Maria
Pavan Lamarca, que estava em Cuba, a esperança da população em seu nome. Em um
esquema de clandestinidade podemos concluir que tal notícia só poderia chegar até ele através
de órgãos de comunicação, mesmo que tenha havido erro na sua avaliação, foi nos noticiários
e periódicos que, a princípio, Carlos Lamarca, o personagem mítico, surge diante do homem
Lamarca:
“Falam no meu nome com extraordinária esperança. O nosso povo já foi
traído por seus falsos líderes e embora eu não tenha esta pretensão sou uma
esperança para o povo”
44
A publicidade em torno do nome de Carlos Lamarca trouxe alguns problemas
na sua relação com os companheiros de luta. Segundo Judith Lieblich Patarra, biógrafa da
companheira de Lamarca, Iara Yavelberg, quando surgiu, na imprensa, a notícia de que o
Exército estava treinando as funcionárias de um Banco para defenderem-se dos assaltos
impetrados por terroristas”, o militante Espinoza, desconhecendo a identidade do militar
preparou um plano para “justiçá-lo”.
Outro caso conhecido e noticiado pela imprensa foram as explicações que o
militante “Otavio”, codnome de Bajara Muniz, exigiu através do documento interno da VPR:
“Quem é Carlos Lamarca”. O esclarecimento era: “Por que o companheiro Carlos Lamarca
recebe tanta publicidade pelos canais de divulgação do Brasil” e a justificativa “...a não ser
o companheiro Carlos Lamarca, o falecido companheiro Carlos Marighella conseguiu
tanta publicidade em seus quase 40 anos de militância.”
45
43
JOSÉ. E.: MIRANDA. Op. cit. p. 111.
44
JOSÉ. E.: MIRANDA. O. op. cit. p. 48.
45
As acusações e as suspeitas dos seus companheiros de terror. JORNAL DA TARDE, O ESTADO DE SÃO
PAULO, p. 14 de 21/09/71.
29
Portanto o comportamento da imprensa não passou despercebido, nem mesmo
no momento da luta, e a publicidade negativa em torno do nome do ex-capitão também não.
Essa relação servil da imprensa com a ditadura foi motivo de indignação para o ex-capitão:
“A imprensa é dominada pelo capital americano: o que ficava da dignidade foi
varrido pela pressão econômica. O regime de semi-escravidão do Nordeste
brasileiro essendo institucionalizado pelo governo e a imprensa aplaude,
mostrando o grau desolador da indignidade moral a que chegou
46
O julgamento de Lamarca sobre a imprensa é, segundo Raimundo Rodrigues
Pereira
47
, exagerado, mas não se pode omitir os serviços prestados pela imprensa à ditadura.
Podem ter ocorrido não por iniciativa dos jornalistas (aliás, segundo o projeto Brasil Nunca
Mais, esta categoria foi uma das mais perseguidas pelo regime militar)
48
ou então sob pressão
econômica e imposições, como acusa o ex-capitão, mas foram fundamentais na dissimulação
de notícias e até ajudando a acobertar casos de morte.
A propaganda e a imprensa foram armas poderosas da ditadura contra a
guerrilha urbana. Sem noticiar as atrocidades de seus porões, a ditadura não deixou de
alimentar, através dos meios de comunicação, a imagem do perigo e nem negou a existência
do terror ou dos chamados “subversivos”, chegando mesmo a levar à televisão aqueles que
“renegavam” (sinceramente ou não) seus dias de militância. Reconhecendo haver um conflito,
uma guerra e não apenas um surto terrorista.
No entanto, mesmo diante da seleção de elementos utilizados na tentativa de
construção da imagem de Carlos Lamarca como sendo a expressão do complô maléfico das
organizações “subversivas” houve possibilidade da construção de uma imagem voltada para a
disposição para a luta.
O apelo a constelação da Conspiração tem conotação negativa, pois em geral
se graças aos militares que, diante a existência de um perigo buscam justificar a existência
e sua forma agir na repressão política. Nos livros e reportagens não uma organização que
possa ser citada como a representação da “subversão”, nem durante a luta nem em outros
momentos. Não houve na luta armada uma organização capaz tornar-se conhecida como
condutora da luta, até mesmo a guerrilha do PC do B é reconhecida como a Guerrilha do
Araguaia” ou “Guerrilha de Xambioá”. As representações desses grupos recaiu sobre suas
lideranças, os dois Carlos revolucionários, e tornando-os então a representação desse “mal”.
46
JOSÉ. E.: MIRANDA. O. op. cit. p. 95.
47
Autor do prefácio do livro de Oldack Miranda e Emiliano José.
Excluído:
, op.cit
30
Em relação a “Guerrilha do Araguaia” não houve na imprensa durante o
momento da luta apelo a imagem mítica alguma, pois, neste caso, não havia necessidade da
identificar o complô. Tratava-se de uma força organizada e localizada em uma área limitada.
Após o fim da censura, no entanto, novamente é o perfil individual que ultrapassa seus
contornos e assume a imagem do movimento guerrilheiro: Osvaldo Orlando da Costa.
A imprensa é utilizada e veicula a imagem de Lamarca de acordo com os
interesses dos militares na luta contra o “terror”. Desde o momento que se noticia sua saída do
Quartel de Quitaúna levando armas e o ingresso na luta armada, houve, em torno de seu
nome, a construção da imagem da “subversão”, se não de toda ela pelo menos como o mais
concreto perigo oferecido por essas organizações.
48
Arquediocese de São Paulo, BRASIL NUNCA MAIS. 20 º. Petrópolis: Ed. Vozes. p. 143.
Formatado
31
1.1 - SANTO E/OU DEMÔNIO?
A Luta Armada foi uma guerra declarada, pelo menos este foi o discurso do
porta voz dos militares na Comissão de Mortos e Desaparecidos, o general Oswaldo Pereira
Gomes:
“Mas para satisfazer os juristas, devo dizer que a Carta de 1967 e sobretudo a
Emenda de 17 de outubro de 1969, absorvendo a doutrina de Segurança
Nacional, duas ordens jurídicas paralelas, no Estado Brasileiro, a ordem
constitucional e a ordem institucional, esta pela vigência do Ato Institucional e
os que lhe sucederam, a justificativa para isso, era combater a Guerra
Revolucionária no país”
49
Guerra que os militares vitoriosos não conseguiram transformar em imagem de
êxito do regime contra uma ameaça interna, mas a serviço de nações estrangeiras. Tão pouco
a idéia de grande nação conseguiu, após o período de notável desenvolvimento do chamado
“Milagre Brasileiro”, elevar o país ao primeiro mundo, nem a rígida disciplina dos quartéis
foi capaz de deixar sua marca na política e tornar-se seu legado.
Na opinião do ex-capitão Carlos Lamarca, a edição do AI-5 – Ato Institucional
n.º 5 - foi a declaração dessa guerra, o que precipitou, segundo a biógrafa de Iara Yavelberg
(companheira de Lamarca), Judith Lieblich Patarra, sua saída imediata do Exército e o
ingresso por completo na clandestinidade e na guerra: “O governo se declarou em guerra
contra todos que contestam o regime. Ou vocês participam ou saio sozinho com meu 38”
50
.
Não foi um conflito travado nos moldes tradicionais nos quais avança-se sobre
um território inimigo conquistando terreno e posições, fazendo prisioneiros e, por fim
depondo um governo ou uma liderança. Nesta guerra havia a necessidade de se adaptar para
uma nova forma de luta. Na busca de um inimigo interno a tortura tornou-se uma prática
comum. O romancista Marcelo Rubens Paiva narra o suicídio do capitão Ênio e a participação
do Coronel Erasmo Dias da Polícia Militar de São Paulo no episódio da “Guerrilha do
Ribeira” ( quando Lamarca e outros oito guerrilheiros, entre 21 de abril a 31 de maio de 1970,
escaparam do cerco do Exército e da Polícia Militar de São Paulo na região do Vale do
49
Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos no Regime Militar Ministério da Justiça PROCESSO
038/96 p. 317.
50
PATARRA, Judith Lieblich. IARA, REPORTAGEM BIOGRÁFICA, 4 ed. Rio de Janeiro: Rosa dos
Ventos. 1993. p. 277. Segundo esta autora esta afirmação foi feita na última reunião da VPR para avaliarem a
pertinência da saída de Lamarca naquele momento. Teria ocorrido após o dia 17 e antes do dia 24 de janeiro,
sem precisar a data certa.
32
Ribeira ) como um momento de total descompasso a ponto de tirá-lo da ativa e transformá-lo
em político de carreira:
“Ficou de mãos abanando o coronel Erasmo
51
. Bem que tentou, seguindo os
manuais do bom soldado, simulando uns fuzilamentos. Ficou deprimido ao
descobrir que pelas vias normais, missão-terreno-inimigo-meios, o combate à
subversão o surtia efeito. É, Erasmo, deixe para os outros, para os
profissionais. Erasmo viu o DOI-Codi
52
se fortalecer. Teve que ceder, como
todos os outros comandantes militares, homens para a tarefa suja; como um
pacto. Viu seu melhor homem, capitão Ênio, entrar na onda e ir para o DOI-
Codi da rua Tutóia
53
, o centro da tortura paulista. Acompanhou o estado em
que seu capitão ficou quando teve contato com a verdade das prisões. Viu
capitão Ênio vomitar depois de descrever os horrores dos bastidores. Viu seu
melhor homem definhar. Tentou alertá-lo: Sai disso, homem, isso não é pra
você! Mas Ênio sabia: uma vez dentro, ninguém saía. Erasmo não viu mais
nada. Seu melhor homem, capitão Ênio, se matou. O resto você sabe, coronel
Erasmo pediu desligamento do Exército, entrou para a vida pública, virou
secretário de Estado e depois deputado.”
54
Para o autor de Não és tu, Brasil a partir dos acontecimentos do Vale do
Ribeira houve uma mudança fundamental para a vitória dos militares:
“Repensaram a tática antiguerrilheira e fortaleceram os grupos paramilitares,
dando carta branca aos esquadrões e torturadores do DOPS, do DOI-Codi e dos
centros de informação do Exército, da Marinha e da Aeronáutica que, em vez de
partirem diretamente para o confronto, priorizavam os informantes, delatores,
agentes infiltrados e contra-inteligência. Tortura. Profissionalizaram o combate à
subversão e, você sabe, funcionou. Extermínio. O Jogo virou. O que um ano antes
eram vitorias esmagadoras da guerrilha, assaltos a bancos a torto e a direito,
roubos de armas, bombas em quartéis, justiçamentos, seqüestros de diplomatas,
com quedas, sim, e mortes, agora, derrotas. A revolução com os dias
contados.”
55
Elio Gaspari também considera a figura de Lamarca central na mudança da
forma de combater a “subversão”:
“Apesar dos sucessos conseguidos pela repressão, o governo se assustara com
a fuga de Lamarca, sobretudo pelo toque romanesco do capitão do Exército
que deixa a fortaleza e se junta aos guerrilheiros. O general Jayme Portella
,na qualidade de secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional,
escreveu a Costa e Silva que ‘a persistir tal situação é de prever-se: a eclosão
de guerrilhas urbanas e rurais; a atuação mais violenta em atos de terrorismo;
a criação de ‘bases’ e ‘zonas liberadas’”
56
51
Erasmo Dias – Na época coronel da Polícia Militar de São Paulo posteriormente seguiu carreira política.
52
DOI-Codi – Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna.
53
Centro de tortura denunciado com bastante freqüência por militantes que estiveram presos.
54
PAIVA, Marcelo Rubens, NÃO ÉS TU, BRASIL São Paulo: Mandarim. 1996 p. 195
55
PAIVA, Marcelo Rubens. Op. cit. 197
56
GASPARI, É. . Op. cit. 59
33
Em outras citações, a figura de Lamarca continua a aparecer como responsável
direto de um novo modo de agir por parte dos militares. Em depoimentos de militares como
o general Carlos Alberto da Fontoura, encontramos novamente o personagem como
justificativa para esse novo comportamento:
“No meu tempo de chefe de Estado-Maior em Porto Alegre, foi preso um oficial
comunista da Aeronáutica. Não me lembro o nome; era um comunista, daqueles
de arma na mão. Foi preso na própria Aeronáutica e mandado para o
Batalhão de Caçadores. Fugiu. ‘Mas, como fugiu? Estava numa sala fechada com
sentinelas!’ ‘Fugiu pelo teto’ – as coisas são engraçadas. Então mandei um
oficial falar com o comandante e fazer uma pesquisa: o oficial de dia no dia da
fuga era o tenente Lamarca. Está aí a explicação. Ele era comunista quando
tenente em Porto Alegre, em 1966. Transferiu-se para um batalhão em São Paulo,
e ninguém sabia que era comunista. quando fugiu. Não havia um serviço de
informações. Por isso, um dia eu fui ao Médici e disse ‘O SNI esgotou os seus
conhecimentos. Somos todos amadores. O senhor também foi amador como chefe
do SNI, o Golberi era amador, eu sou amador, e os que vierem serão amadores.’
Diz ele: ‘Mas qual é a solução?’ ‘É fundar uma Escola Nacional de
Informações.’ Disse que ia pensar um pouco. Daí uns dois dias ... ‘Pode
fundar.’”
57
A caçada a Lamarca aparece, nestes depoimentos, distinta de todas as outras da
repressão. A perseguição a Marighella tem também elementos trágicos como pessoas o
resistindo a tortura, a morte de Frei Tito que, com problemas mentais, suicidou na França
após as torturas sofridas. Segundo os relatos, foi na busca ao ex-capitão que a ditadura
modificou seu modo de agir contra o “terror”. Não bastou encontrá-lo e matá-lo foi preciso
mudar a maneira de enfrentar a “subversão” com ações de informação e contra-informação,
nas quais o avanço é mensurado pelo número de inimigos colocados fora de combate, ou
presos ou mortos. Os partidários da ditadura deixam com isso, de habitar um mundo de luz
para habitar um mundo de trevas onde regras da normalidade social não são reconhecidas.
O núcleo da Conspiração possui essa caraterística de explicação do quadro
social quando não mais uma identificação com o momento de aceleração e quebra dos
laços de solidariedade social. Poder de explicação que não se limita à realidade social, mas
desdobra-se na justificativa de um conflito para além das regras da normalidade social.
A narrativa de Marcelo Rubens Paiva demonstra o quanto a “nova” forma de
luta teria causado estranheza a antigos agentes policiais. Um impotente para retirar-se prefere
a morte; outro busca na política convencional, a identificação e a legitimidade de suas
posições. No entanto há na ação do Coronel Erasmo Dias total conhecimento da
34
institucionalização da força como método e nenhum repúdio, a não ser quanto ao
envolvimento pessoal de um subordinado e amigo.
Além da tortura outra característica desse conflito, regra de uma normalidade
moral quebrada, é a traição. A descrição das infiltrações de algumas atividades demonstram
que o principal feito não era colocar um agente dentro das organizações “subversivas”, mas
“virar” alguém dentro dos grupos:
“Porque o Chou à la créme, quer dizer o máximo de todo serviço de
informações é ‘virar’ um camarada, não é infiltrar. Infiltrar é muito bom. Mas
o máximo do máximo é virar’, é pegar um camarada importante do outro
lado, ‘ganha-lo’ e fazer com que ele trabalhe para você”
58
A “virada” de alguns membros das organizações subversivas é considerada o
grande feito dos serviços de informação. Eles eram chamados na gíria dos porões da ditadura
como cachorros. Os mais conhecido são José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo que
militou na VPR, era membro de confiança do dirigente Onofre Pinto, contudo trabalhava para
a repressão e Jover Teles, militante histórico do PC do B também notório delator.
A traição é o grande feito dos serviços de informação ao “virar” alguém, mas é
também a afronta sofrida. Lamarca não pode ser perdoado pelos militares por se tratar, para
eles, de um traidor.
Para o coronel da reserva Uzemir Ramos Camargo
59
, contemporâneo de
Lamarca na Academia Militar de Agulhas Negras, não como negar a traição ou mesmo
reconhecê-la e perdoá-la.
Ao entrar na luta, Lamarca era um militar descontente e rebelde. Não havia
sido um militante do Partido Comunista nem se notabilizado em círculos teóricos ou
acadêmicos, suas atividades políticas se resumiam em participar da campanha nacionalista O
Petróleo é Nosso e facilitar a fuga de um preso político, o capitão da Aeronáutica Alfredo
Ribeiro Daudt, em Porto Alegre em 1964, algo de pouca expressão que lhe valeu um inquérito
que resultou em nada. Sua indignação não é fruto de orientação recebida através de alguma
dogmática militância partidária ou da sedução por teorias acadêmicas.
Essa deficiência teórica é uma das suas características mais evidenciadas tanto
nos livros publicados posteriormente, quanto pelos artigos de jornais e revistas do momento
57
D’ ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO Celso. Op. cit. p. 94 Depoimento do
general-de-divisão Carlos Alberto da Fontoura a O trecho citado trata-se da resposta à pergunta “Como se deu a
decisão de criar a Escola?” ( Escola Nacional de Informações )
58
Ibid. p. 40.
59
Depoimento ao autor.
35
da luta armada, mas não diminui sua importância para o movimento guerrilheiro, ao
contrário, evidencia sua dedicação, entrega e capacidade:
“Lia sofregamente, na ânsia de superar esta deficiência, que o inferiorizava
diante dos intelectuais de formação universitária. Contudo, não lhe faltavam
inteligência e senso comum da sua origem popular, que lhe permitiram acertar
quando os intelectuais erravam.”
60
A determinação com a qual se dedicou a luta é uma das justificativas para o
destaque que recebe. A revista Caros Amigos ao lançar uma série especial denominada
Rebeldes Brasileiros: homens e mulheres que desafiaram o poder, dedica-lhe o fascículo nº 6
ao lado de Gervásio Pires e identifica-o pela sua disposição para o combate:
“Não se destacou como um teórico da guerrilha, mas foi reconhecido pela
disposição com que combateu a ditadura e por ter transformado sua
indignação em prática, o que se valorizava acima de tudo naqueles anos”
61
A construção de sua imagem como uma das representações desse combate
através da avaliação de suas ações e atitudes ultrapassa os contornos individuais. Perseguido e
caçado, torna-se um dos principais elementos da luta contra a ditadura e a principal imagem
deste movimento e perfil ideal para os rebeldes subversivos”. A disposição com que
combateu é, portanto, um fundamento histórico essencial na mitificação do ex-capitão,
segundo Girardet:
“O mito político jamais deixa, nós sabemos, de enraizar-se em uma certa
forma de realidade histórica”
62
Essa certa forma de realidade histórica” é selecionada, seja
intencionalmente, destacando aspectos comprobatórios da argumentação, seja
espontaneamente com o reconhecimento de uma proximidade redentora ou afetiva, para em
ambos os casos buscarmos uma resposta à intenção persuasiva da narrativa mítica. O poder do
mito não está, portanto, apenas nas excelências da narrativa e dos elementos selecionados.
Devem haver condições, ou mesmo uma disponibilidade, para sua compreensão e sua
aceitação.
63
60
GORENDER. J. op. cit. p. 188
61
REBELDES BRASILEIROS: HOMENS E MULHERES QUE DESAFIARAM O PODER. São Paulo:
Coleção Caros Amigos Editora Casa Amarela. fascículo 6, vol.. 2, p. 547/ 575.
62
GIRARDET. R. op. cit. p. 81.
63
GIRARDET. R. op. cit p. 51.
36
Desde o momento em que optou pela participação na luta contra a ditadura
militar, Lamarca tornou-se um personagem constante nos jornais e revistas, desde então data
são atribuídos valores a sua figura. Sua hierofânia, isto é, o momento em que é sacralizado se
logo após sua saída do Exército e não apenas quando se tornar, entre os guerrilheiros
aquele que talvez tivesse a melhor qualificação militar, mas por revelar-se de uma maneira
completa e ao espaço que lhe cerca.
O objetivo da Operação Pajussara de destruir com sua morte, o mito do
guerrilheiro
64
, e a proibição do presidente da república de, após as notícias confirmando o
fato, não haver mais publicações a respeito
65
, evidenciam que o momento de hierofânia não é
posterior à luta armada e há consciência a disto por parte da ditadura.
Neste momento de sacralização, segundo Mircea Eliade, há uma:
“Rotura na homogeneidade do espaço como também revelação de uma
realidade absoluta que se opõe a uma não-realidade absoluta de imensa
extensão envolvente.”
Evidentemente Mircea Eliade refere-se a uma realidade religiosa, esta pode se
confirmar no cotidiano das sociedades arcaicas por ele estudadas. Mas esse traço destes mitos
não é descartados pelos mitos políticos de sociedades históricas ou modernas. A não-realidade
absoluta convive com a realidade absoluta, esta revela aquilo que move nas sombras, nos
subterrâneos, nos complôs e tem sua existência reconhecida sem perder o mistério que a
envolve. O mito não possui a função de esconder, mas de revelar e falar das coisas
66
.
A não-realidade absoluta e envolvente do país que caminha a passos largos
para um futuro brilhante com os vários setores da sociedade colaborando entre si para
harmonia geral é confrontada pela realidade absoluta da existência de organizações de
esquerda praticando assaltos, seqüestro de embaixadores, ataques a quartéis, enfim, uma outra
face desse país. Descontentamento evidente desde as manifestações de 1968, afinal uma
passeata com 100 mil pessoas em uma cidade que até pouco tempo era a capital federal, ou
seja um palco destacado na cena política contando com a adesão e apoio de várias categorias é
algo representativo.
Segundo Raoul Girardet, o mito político, em todas as manifestações
observadas, estava ligado a um momento de crise onde se verifica:
64
MINISTÉRIO DO EXÉRCITO BRASILEIRO, IV EXÉRCITO, 6
ª
REGIÃO MILITAR. RELATÓRIO
RESERVADO OPERAÇÃO PAJUSSARA, [S.l]. 1971. p. 37.
65
GASPARI, É. op. cit. 358.
66
ROLAND Barthes O Mito, Hoje. In. O PODER DO MITO p. 117
37
“aceleração brutal do processo de evolução histórica, rupturas repentinas do
meio cultural ou social, desagregação dos mecanismos de solidariedade e de
complementaridade que ordenam a vida coletiva”
67
A luta armada no Brasil, assim como outros conflitos ocorridos no final da
década de sessenta e início dos anos setenta em todo o mundo, evidencia estas rupturas e a
desagregação dos mecanismos de solidariedade. Seja polarizando a sociedade, seja definindo
lados e posições a serem ocupadas.
Esta forma polarizada, uma disputa entre o “bem” e o “mal”, entre heróis e
vilões, entre aqueles que queriam “entregar” o país a algum interesse estrangeiro e quem se
via como capaz de realizar a “salvação” do país, foi, como boa parte da literatura retratou o
momento e a maneira como os antagonistas se viam. O cineasta Sérgio Resende no filme
Lamarca utilizou um texto de Charles Dickens para nos despertar a emoção do período e
localizar cada lado:
“Era o melhor de todos os tempos, era o pior de todos os tempos, era a idade
da sabedoria, era a idade do disparate, era a época da fé, era a época da
descrença, era a estação da lua, era a estação da treva, era a primavera da
esperança era o inverno do desespero, tínhamos tudo à nossa frente, não
tínhamos nada à nossa frente, em suma, era uma época tão semelhante à atual,
que algumas de suas mais espalhafatosas autoridades insistem em ser aceitas,
para o bem ou para o mal apenas no grau superlativo: Deuses ou Demônios.”
Nesse tempo de posições polarizadas e superlativas, Lamarca é, para os
militares, o traidor, a vilania, mas era a face daqueles abdicados que podiam dizer: “perdemos
o direito de morrer até que a morte seja um de exemplo
68
.
67
GIRARDET. R. op. cit. 180.
68
JOSE E.: MIRANDA O. op. cit. p. 48
Excluído:
p.
38
1.2 - A IMAGEM DA ONIPRESENÇA
Banco de Dados Jornal Folha S. Paulo. Lamarca posa junto a Laudo Natel, diretor do Banco Bradesco
posteriormente indicado para assumir o cargo de governador do Estado de São Paulo. 22/01/1969.
39
Banco de Dados Jornal S. Paulo. O capitão Lamarca como instrutor de tiro
ao lado de funcionárias do Banco Bradesco. 22/01/1969.
40
Banco de Dados Jornal Folha S. Paulo. Lamarca e funcionária do Bradesco
em treinamento de tiro. 21/01/1969. Esta foto foi publicada também pela revista
Veja, em 21/05/1969, com os subscritos “Ele era enérgico, mas delicado”.
A ditadura ajudou a construir e utilizou-se da imagem do complô maléfico na
figura do capitão Carlos Lamarca. E, em um caso pelo menos, pode-se afirmar utilizou sua
imagem como de um representante do Exército. Isto ocorreu antes de sua saída do Exército,
quando foram publicadas fotos suas como instrutor de tiros na Revista Manchete
69
ao lado de
funcionárias do Banco Bradesco e de seu diretor Laudo Natel, depois indicado como
governador do Estado de São Paulo.
Após a deserção, este uso se de outra forma, ou melhor, de outras formas.
Através da imprensa, controlada pelos militares, não aparece mais o representante do Exército
e sim o assaltante de bancos que rouba em “nome do terror”
70
e “subversivo”. É também o
“vil traidor” que menospreza o esforço dos pais de origem humilde para ajudá-lo nos estudos
e até o próprio Exército, que lhe possibilitou ascensão social e enfim, surge como a expressão
de um “mal”, um cancro social, o destaque para a perícia com as armas e um perfil de sua
personalidade
71
vão acentuar-lhe os contornos de um perigo eminente.
69
JOSÉ. E.: MIRANDA. O. op. cit. p. 45
70
Ele assalta em nome do terror. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 21/05/1969. p. 18/21.
71
Ele assalta em nome do terror. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 21/05/1969. P. 18/21
41
A imagem de Lamarca foi construída como sendo a existência e a
identificação com algo que coloca em perigo a harmonia social. A partir de então, torna-se o
rosto desse perigo com todos os contornos que este mal” possa possuir. Para os militares, é
símbolo de traição e de todo perigo contido na palavra “subversão”. A habilidade com as
armas e sua qualificação profissional ajudaram a criar essa figura.
Após a fuga do Quartel do RI de Regimento Raposo Tavares levando armas
para a revolução, a imprensa o apresenta com uma identificação “completa”, com
características físicas, habilidades e até um “detalhe psicológico”:
Ele é capaz de acertar numa laranja a 30 metros, com um tiro de revólver.
Dirige automóvel com perícia, o pé sempre no fundo. Fuma muito. Tem 31
anos, 1,70m. de altura, olhos castanhos escuros e aquela magreza rija dos
homens tensos. Ele é capaz de matar a mais de 30 metros de distância com
dois tiros de sua pistola um na testa outro no maxilar como aconteceu há
dez dias, em São Paulo, com o guarda-civil que corria para intervir no assalto
a bando da Rua Piratininga
72
Neste momento ainda não era o mais procurado “terrorista”, mas é apontado
como o mais perigoso entre os que até então tiveram seus nomes ligados à subversão. Antes
havia Carlos Marighella, até então, o mais conhecido “subversivo” e apontado como o líder
de todo o “terror”, Sábado Dinotos considerado mais um fanático místico
73
; o ex-pracinha
Roberto Manes, que agia com a família e chamado de rocambolesco pela imprensa. Todos
foram responsabilizados por ações armadas, entretanto apenas Marighella é reconhecido
como sendo ligado a grupos organizados de esquerda.
Quando surge na imprensa, Lamarca é apresentado como um perigo para o
cidadão comum, pois é capaz de matar, como fez no assalto a banco da Rua Piratininga,
possui habilidade técnica, e por ser uma pessoa tensa pode, a qualquer momento, perder o
controle. Perigo maior ainda pelo arsenal que traz consigo:
...êle desapareceu do seu quartel, Regimento Rapôso Tavares (4º RI), situado
em Quitaúna, localidade próxima a São Paulo, levando 69 fuzis, dez
metralhadoras e três bazucas, arma anti-tanque.
74
72
Ele assalta em nome do terror. REVISTA VEJA. o Paulo: Abril. 21/05/1969. p. 18/21.– A versão dos
biógrafos Oldack Miranda e Emiliano José sobre estes tiros é mais interessante: “Na esquina com a Rua
Visconde de Parnaíba, de pé na calçada, ele vê o guarda-civil Orlando Pinto Soares apontar a arma em direção ao
ex- sargento Darcy Rodrigues. Lamarca, a 30 metros de distância, dispara o 38 e acerta a nuca do guarda, que dá
uma volta no corpo e recebe mais um tiro no rosto”
72
73
Ele assalta em nome do terror. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 21/05/1969. p. 18/21.
74
Ele assalta em nome do terror. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 21/05/1969. p. 18/21.
42
O instrutor antes considerado seguro, enérgico, mas delicado
75
, não aparece
como vítima ou seduzido, ao contrário, torna-se o rosto do “mal”, algo que pode ser atacado:
“O Mal que se sofre, e mais ainda, talvez, aquele que se teme, acha-se
doravante muito concretamente encarnado
76
.
A polícia ao afirmar: “É o mais perigoso de todos”
77
contribui para que o
“mal” fosse reconhecido na imagem do ex-capitão. A ele é imputada a identidade do outro, do
estrangeiro, um grupo de traidores” dispostos a agir em função de uma nação estrangeira ou
em benefício próprio. Lamarca, na imagem construída pela ditadura, ao juntar-se às
organizações “subversivas” passou a representar esse “mal”, sendo lhe imputado os contornos
da representação do complô “subversivo”.
A disputa entre o “bem” e o “mal” junta-se ao cenário onde a guerrilha urbana
se desenvolveu. A clandestinidade dos militantes das organizações e os porões da ditadura são
uma realidade histórica, como também representações de forças ocultas defrontando-se.
A idéia de complôs movendo-se nas sombras e exercendo um poder misterioso,
porém detectável, não é uma novidade na história da república brasileira. Getúlio Vargas
utilizou o eminente perigo da conspiração quando lançou mão, em 1937, do falso plano
Cohen para justificar a implantação do estado de sítio e da ditadura do Estado Novo.
Carlos Lacerda tentou impedir a posse de Juscelino Kubitschek sob a acusação
de que os comunistas, então membros de um partido prescrito, ou seja, fora de uma certa
normalidade social, teriam apoiado sua candidatura, o que justificava a diferença de votos a
favor do ex-governador mineiro. E o golpe de 31 de março, também fruto de uma conspiração
entre civis e militares. Enfim, a população brasileira convivia com este movimento intenso
realizado às sombras.
O ex-capitão ao se colocar fora do Exército é também colocado fora do mundo
da Luz”. O tema da “Conspiração”, aponta Raoul Girardet, apresenta um local onde ira
travar-se um combate, este lugar é o Império das Trevas
78
. É onde “começa o domínio do
não-conhecível, do não-identificável, aquele onde as palavras familiares perderam todo o
poder para designar uma realidade que se furta à sua captura”
79
. Um local, portanto,
distante de uma normalidade social.
75
Ele assalta em nome do terror. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 21/05/1969. p. 18/21.
76
GIRARDET. R. op. cit. p. 55.
77
Ele assalta em nome do terror. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 21/05/1969. p. 18/21.
78
GIRARDET. R. op. cit. p. 42.
79
Ibid p. 42 et. seq.
43
Neste Império das Trevas os complôs identificam nos antagonistas a imagem
do Estrangeiro. No caso da luta armada a influência estrangeira é demonstrada nos desígnios
apontados, pois ambos os lados se querem brasileiros e identificam o opositor como aquele
que está a serviço de governos estrangeiros. Lamarca mesmo refere-se a esta direta
participação estrangeira;
“Atualmente, os EUA mantém no Brasil um corpo permanente de ‘assessores’,
e o aumento dos agentes da CIA e dos ‘Peace Corps’ é significativo. No
interior das Forças Armadas brasileiras uma propaganda entre os oficiais
para que seja aceita a intervenção.”
80
Militares também identificam os interesses internacionais como sendo os que
conduzem à subversão. Para Marco Pollo Giordani;
“Logo após a conquista do poder, em Cuba, pelos comunistas, passou o PCUS
– (Partido Comunista da União Soviética) a se utilizar daquele país como pólo
irradiador de movimentos revolucionários de cunho violento (guerrilha),
subversão e terrorismo.”
81
Esses dois depoimentos apresentam diferenças. O de Lamarca é feito no calor
da luta, enquanto o de Marco Pollo Giordani, posterior ao de Lamarca, tenta explicar a luta.
Mas percebe-se em ambos uma identidade ciosamente dada ao antagonista. Ele é o corpo
estranho à unidade nacional. Defendê-la de tal afronta é a justificativa que legitima as ações.
Portanto ultrapassar os limites de uma normalidade é algo necessário
Os homens das trevas são vistos como pertencentes a uma nova sociedade, ou
melhor separados do mundo da “luz”. O Império das Trevas, local onde o complô maléfico
será confrontado com sua réplica benigna, é a representação de onde se travou a luta armada
presente nos relatos envolvendo o tema. Um dos mais respeitados livros sobre esse período,
traz no título esta imagem, “Combate nas Trevas” de Jacob Gorender.
Para habitar este Império das Trevas as organizações de “subversivas” além de
suas necessidades orgânicas e funcionais têm suas características destacadas favorecendo o
culto ao mistério. Algumas reportagens são apresentadas literalmente com características que
Girardet aponta ao descrever a estrutura da hierarquia dos complôs maléficos da constelação
da Conspiração:
80
JOSÉ. E.: MIRANDA. O. op. cit. p. 92.
81
GIORDANI. M. P. BRASIL: SEMPRE. São Paulo: Tche. 1986. p. 160.
44
“Protegida dos olhares externos pela lei do segredo, a Organização impõe-se,
por outro lado, pelo rigor de sua compartimentação interna e de sua estrutura
hierárquica. A forma pela qual se apresenta, o mais das vezes, é a de uma
pirâmide com escalões sucessivos e estritamente compartimentados: a cada
escalão recentemente galgado corresponde, para o homem do complô, um
grau suplementar de conhecimento de autoridade e de responsabilidade. No
topo, para onde confluem os fios de todas as intrigas e de onde partem todas
as palavras de ordem, assenta-se uma autoridade soberana, definida ao
mesmo tempo como implacável e invisível”
82
O fascínio do mistério deve-se a um jogo que oculta e mostra. A reportagem da
Revista Veja de 21 de maio de 1969 descreve a VPR Vanguarda Popular Revolucionária,
organização onde Lamarca militou logo após sua deserção, da seguinte forma:
Por dentro da Vanguarda Estruturada nos mesmos moldes dos tupamaros
uruguaios, a Vanguarda Popular Revolucionária é uma organização
paramilitar de esquerda cujos integrantes se conhecem apenas por nomes de
guerra e são divididos em compartimentos quase estanques: um de cada
célula tem contato com o quadro superior e assim por diante, numa rôsca
que termina num insuspeito comando.”
83
A partir de setembro de 1970 uma estrutura de repressão é montada para agir
melhor neste Império das Trevas, melhor dizendo, para buscar ordenar sob comando do
Exército ações que já ocorriam. Em cada área de Comando de Exército, hoje Comando militar
havia:
“- um Conselho de Defesa Interna (CONDI);
- um Centro de Operações de Defesa Interna (CODI);
- um Destacamento de Operações de Informações (DOI)
Todos sob a coordenação do comandante de cada Exército”
84
A parcela mais conhecida dessa estrutura foi a dupla DOI/CODI, sendo o
CODI – Centro de Operação de Defesa Interna - o responsável por garantir a coordenação e a
execução do planejamento das medidas de Defesa Interna, e o DOI – Destacamento de
Operações de Informações - o que na prática era a centralização de agentes de várias áreas,
Marinha, Aeronáutica, SNI (Serviço Nacional de Informações), Departamento de Polícia
Federal, Secretaria de Segurança Pública (Polícia Civil e Polícia Militar) na atividade de
combate a “subversão”. Algo que não constava até então das atribuições de quaisquer destas
82
GIRARDET. R. op. cit. p. 35.
83
Ele assalta em nome do terror. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 21/05/1969. p. 18/21.
84
USTRA. C. A. B. ROMPENDO O SILÊNCIO. Brasília: Editerra Editorial. 1987. p. 125.
45
instituições, mas que vinha sendo exercida através de seus centros de informações, CIE
Centro de Informações do Exército, CENIMAR - Centro de Informações da Marinha, CISA
Centro de Informações da Aeronáutica, e outras exatamente com essas atribuições como a
OBAN Operação Bandeirante (que recebia apoio financeiro de empresários), e o DEOPS -
Departamento Estadual de Ordem Política e Social.
Os órgãos de repressão tornaram-se muito mais conhecidos por suas siglas que
por suas atribuições, pois, na prática, essa linha divisória pouco pode ser percebida, causando
inclusive alguns problemas operacionais na coordenação em algumas operações, como as
buscas a Lamarca:
“A dificuldade de coordenação das equipes de diferentes origens, no emprêgo
tático, foi motivada por falta de uma doutrina única, já que pertenciam ao
EXÉRCITO MARINHA DE GUERRA (Armada e Fz. Nv.) AERONAUTICA,
POLÍCIA FEDERAL, POLÍCIA MILITAR e SSP/GB (GOEsp), POLÍCIA
MILITAR DA BAHIA e SSP/SP. “
85
as organizações “subversivas” deveriam ser identificadas pela imprensa para
poderem ser atacadas e demonizadas. Na matéria de capa da revista Veja de 03 de junho de
1970, aparece uma máscara e ao lado os dizeres “Segredos do Terror”. Trata-se de uma foto
de ex-capitão recortada, sem os olhos, sem cabelos, apenas a face aparece. Abaixo parte de
um manuscrito do ex-capitão criticando asperamente uma militante.
Com o título de “A nova face do terror”, a matéria traz o vínculo entre as
imagens de Lamarca e o “terror” já consolidado. Não há quem represente melhor o “perigo” e
o poder maléfico que o ex-capitão. A máscara não esconde, ela o revela. Faz alusão aos
caminhos por onde o terror age tornando necessário a vigilância constante para identificar as
novas formas que assume, mas mantém o temor diante do desconhecido evidenciando-o. O
rosto conhecido não é mais o mesmo, mas mantém reforça o perigo da face anterior.
O roteiro desta matéria é o mesmo de outras reportagens sobre o “terror”.
Qualquer ação terrorista é noticiada com a presença de Lamarca. Neste caso, de fato eram
notícias a seu respeito. Os temas são: os detalhes da operação plástica e as atividades militares
na região do vale do Ribeira. A matéria é composta de análises do “desespero” das ações das
organizações “subversivas”, dos possíveis locais onde Lamarca foi reconhecido e de avaliação
de erros militares cometidos.
85
MINISTÉRIO DO EXERCITO VI REGIÃO RELATÓRIO PAJUSSARA, [S.l] p. 19 et. seq.
46
Revista Veja. Capa. 03/06/1970. – A máscara foi feita a partir de uma foto de Lamarca.
A cada abordagem um julgamento do ex-capitão desqualificando suas ações,
mas sem diminuir o perigo que representa. A operação plástica realizada pelo médico Afrânio
Azevedo, na época ainda não identificado para a imprensa, é considerada uma audácia tão
grande que mostra não coragem e sim um gesto desesperado. A cirurgia foi noticiada como
um bem guardado segredo da repressão, sigilo necessário para o andamento das investigações,
ou seja, desespero de um lado e eficiência e competência de outro.
A censura é outro assunto abordado. Além da falta de capacidade para o
exercício da liderança sobre todo o “terror”, a forma como a exerce é comentada através de
sua reação a questões orgânicas da guerrilha. A censura desejada por Lamarca para
documentos internos é mostrada na figura do líder das “várias organizações guerrilheiras”
como exemplo de autoritarismo dessa liderança.
47
“Censura subversiva- Julgando um documento redigido por um elemento do
grupo (queixas amargas feitas por uma militante na época em que a VPR
começava a se estruturar, onde classifica a organização como ‘alienada e
alienante’), Carlos Lamarca redigiu uma espécie de circular para outros
membros do grupo (veja a reprodução ao lado) onde condena a companheira e
levanta o problema da censura interna na organização.”
86
Parte dessa circular foi utilizada na composição da capa. Tratava-se de uma
repreensão à militante Odete devido a um documento interno da VPR que esta fizera circular,
nele constava uma crítica a postura alienante da organização:
“Trecho de cartas de Lamarca: Sobre o documento da ‘Organização Alienada,
Organização Alienante’, afirma a companheira Odete: - Elabora a maneira de
nos isolarmos Os militantes não podem manter contato entre si. Cada um
de nós está um pouco distante de si mesmo, um pouco frustrado e um pouco
indeciso. Que os militantes (não todos) são mais alienados do que qualquer
indivíduo mais ou menos intelectualizado, que jornais, revistas e livros e
assiste a filmes, peças de teatro, que discute sobre as coisas novas. E continua
lamentando a falta de vínculo com a sociedade, etc... Ora, é incrível que tal
documento tenha de circular pela organização por falta, ainda, de uma
censura. O revolucionário tem mesmo que romper com a sociedade que quer
transformar, abomina a sua cultura alienante. Como poderemos fazer
revolução se citamos como exemplo o trabalho de um vietcong que passava
todo o dia num buraco escondido e à noite saía para fazer trabalho político e
ao mesmo tempo nos ressentimos de cinema, teatro, etc...? Não importa como
vivemos: nenhuma dificuldade pode nos deixar ‘um pouco frustrado ou um
pouco indeciso’. Denuncio a companheira como vacilante ideologicamente.”
87
Um destaque: a sensata observação da militante fora repudiada por Lamarca
utilizando a mesma imagem das sombras de onde saem os vietcongs protegidos para alcançar
seus objetivos.
A censura que Lamarca pedia era um novo item na construção de seu contorno
demonizado. É a expressão de autoritarismo diante de uma observação facilmente identificada
como de bom senso. É a condenação de uma das atribuições da Polícia Federal. Condena-se
na conduta do outro a própria ação que pratica.
Curiosamente, Lamarca não recebe, no momento em que está ocorrendo, um
destaque literal nas notícias sobre as atividades no Vale do Ribeira. Aponta-se erros militares,
como impossibilidades técnicas da localização (porém o Exército realizava ali manobras de
treinamento antiguerrilha, segundo seus biógrafos, Lamarca conheceu a área em um destes
86
A nova face do terror. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 03/06/1970. p. 20/23
87
A nova face do terror. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 03/06/1970. n. 91 p. 20/23. Transcrição do quadro
referido na reportagem.
48
exercícios) e a escassez, no Brasil, de áreas ideais para atividades guerrilheiras. Ao escapar do
cerco, no entanto, alimenta, ainda mais, o perfil do homem das façanhas espetaculares. Líder
rebelde e respostas para as expectativas.
A chamada “Guerrilha do Ribeira” aconteceu com a descoberta de um campo
de treinamento da VPR instalado na região de Registro em São Paulo. Com parte do dinheiro
do assalto à mansão Benchimol de onde levaram o cofre de Ana Capriglione, veremos adiante
esta ação, compraram um sítio no Vale do Jacupiranguinha, na altura do Km 510 da rodovia
Régis Bittencourt ao sul do Vale do Ribeira. Instalaram, no sítio, duas bases: a base Eremias
Delizoikov”, nome dado em homenagem a um militante morto em fins de 1969, contava com
oito militantes, e a 400 metros dali a outra batizada de “Carlos Roberto Zanirato”, com dez
militantes, onde Lamarca passava a maior parte do tempo. Havia ainda um rancho onde os
militantes Tercina Dias, com seus “três filhos” e José Lavechia compunham a “fachada”
passando por uma família de lavradores da região. O conjunto formava o núcleo “Carlos
Marighela”, morto em 4 de novembro de 1969.
A área era utilizada para treinamento e Lamarca era rigoroso. Nem mesmo sua
“companheira” Iara Yavelberg, psicóloga e militante da POLOP (Política Operária) e
posteriormente da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) desde a época da faculdade, que
havia chegado em janeiro de 1970 era poupada e acabou abandonando a área por conta de
problemas de saúde.
O treinamento seguia normalmente até ocorrer um acidente de carro e a prisão
do militante Shizuo Ozawa Mário Japa -, que levava consigo munição e documentos da
VPR mais o agravante de saber sobre a área de treinamento no Vale do Ribeira, sua
localização, em quantas bases estava montado o campo de treinamento e quantas pessoas se
encontravam dentro da área.
Sua libertação era caso de urgência para que nada revelasse sob tortura.
Decide-se então desmobilizar parte da área retirando Tercina Dias e as crianças. Lavechia se
juntaria aos companheiros das bases.
Lamarca vai, nessa época, a São Paulo juntamente com Yoshitane Fujimore
para uma reunião do comando. O motivo da viagem, de acordo com Marcelo Rubens Paiva
88
,
era apressar a realização do seqüestro do cônsul-geral do Japão Nobuo Okuchi para poderem
negociar a libertação de Mário Japa. No entanto, ainda segundo o autor, logo ao chegarem a
cidade encontram as entradas cheias de soldados. A ação já havia sido realizada.
88
PAIVA, Marcelo Rubens. Op. cit. p. 110
49
Foi uma ação conjunta entre a VPR, a REDE (Resistência Democrática)
liderada por Eduardo Collen Leite – o Bacuri - e o MRT (Movimento Revolucionário
Tiradentes) liderado por Devanir José de Carvalho. Mário Japa, incluído na lista dos presos
políticos exigidos em troca da libertação do diplomata, é libertado, nada havia revelado.
Mário Japa não falou, mas dois outros militantes também presos foram
acusados de “delatar” a área, Massafumi Yoshinaga e Celso Lungaretti. Os dois foram depois
utilizados como terroristas arrependidos e levados à televisão, deram entrevistas a jornais e
revistas repudiando as ações e tecendo comentários. Sobre Lamarca, veremos adiante algumas
dessas citações.
Lamarca retorna à base do Vale da Ribeira em 18 de abril e no dia 19 já sabia
que a base havia sido delatada. Resolve desmobilizar a área. Um primeiro grupo de 8
militantes deveria sair o mais rapidamente possível. Depois um outro grupo de 4 militantes
também tentaria sair. Cinco militantes deveriam ficar na área e tentar “defender o
patrimônio”.
O primeiro grupo consegue sair sem problemas, mas o segundo é obrigado a
permanecer na área porque o cerco da repressão estava instalado, juntando-se então aos
cinco que deveriam ficar.
A tentativa de fuga desses nove guerrilheiros ficou conhecida como a
“Guerrilha do Ribeira”. Nela foram presos os seguintes guerrilheiros: José Araújo Nóbrega,
Edmauro Gopfert, Darcy Rodrigues e José Lavechia.
Uma das passagens mais conhecidas e polêmicas da Guerrilha do Ribeira” é a
morte do tenente Paulo Mendes Júnior.
Esse tenente foi feito prisioneiro em combate e, ao se render, havia concordado
em facilitar a saída dos guerrilheiros do cerco dando passagem em uma das barreiras das
estradas. Em troca poderia prestar ajuda aos seus comandados que estavam feridos. Após
levar os feridos para receberem o socorro necessário retorna ao local combinado com os
guerrilheiros, mas ao contrário leva-os para uma emboscada que havia sido preparada.
Conseguem escapar, entretanto José Araújo Nóbrega e Edmauro Gopfert perdem-se do grupo
e são presos. Cansados, sem alimento e precisando revezarem-se para vigiar o tenente, os
guerrilheiros resolvem executá-lo. Sua morte é feita a coronhadas.
Em 31 de maio de 1970 o sargento Koji Kondo e os soldados Paulo Roberto
Motta, José Carlos Donattini, Manuel Carrera e Hélio da Silva saíram em um caminhão
Mercedes Benz para buscar água. Por ser uma tarefa de rotina, não havia necessidade de irem
armados, então apenas o sargento levava uma pistola. Ao pararem para oferecer carona a um
50
homem na beira da estrada, este apontou uma arma em direção ao sargento, enquanto outros
surgiam do meio do mato e dominavam os soldados. Com o caminhão e as fardas dos
soldados, os guerrilheiros conseguem romper o cerco.
O cuidado em identificar determinados elementos nas reportagens é claro. As
organizações de esquerda são relacionadas a movimentos internacionais, o Estrangeiro:
...Documentos como êsse, mostrando as ligações dos subversivos e dos seus
vários grupos ou facções com movimentos internacionais, são considerados de
grande importância para as autoridades militares. Embora para boa parte da
população essas ligações sejam evidentes, as autoridades consideram que as
justificativas usadas pelos subversivos, classificando seus atos como ‘luta
contra a ditadura’ ou ‘contra a Revolução’ podem soar como argumentos
capazes de iludir certas áreas.
89
A questão da Identidade, seja esta de um grupo pequeno ou de um país, é um
tema o qual não podemos negligenciar ao tratarmos seja com a constelação da Conspiração
seja com a constelação do Salvador. No caso da luta armada, a busca da legitimidade de uma
identidade nacional é fácil de ser notada como a forma pela qual os participantes se definem.
Ambos os lados se querem brasileiros. Os antagonistas estão a serviço de governos
estrangeiros e assim são identificados.
Dar à guerrilha uma identidade estrangeira a torna diferente da população e
julgando que esta, mesmo tendo entendimento desse fato, não es de todo protegida da
propaganda subversiva, alguns setores podem se iludir, ou seja, existe a preocupação de que
as façanhas dos guerrilheiros possam motivar outras pessoas a se rebelarem contra o regime
dos generais. A ditadura busca proteger-se do poder de mobilização contido na imagem dos
“subversivos”.
Os mesmos acontecimentos, na época da guerrilha urbana, que identificam, na
figura de Lamarca, o “mal”, expressam esperança e alento para “um grupo de estudantes”
militantes, pois um militante com tantas qualificações militares era alguém realmente
considerável. Carlos Eugênio refere-se a esse contingente de estudantes que aderiu à luta
armada como garotos secundaristas e universitários com muita disposição, mas sem
conhecimento técnico de armamentos
90
. Uma liderança militar era um grande ganho” para a
revolução, um “ganho” talvez maior no jogo da imaginação mítica que no campo
efetivamente militar.
89
A nova face do terror. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 03/06/1970. p. 20/22
90
Carlos Eugênio Sarmento Coelho é o “Clemente” da Luta Armada, militante com trajetória singular, nunca foi
preso e é o único líder da ALN, Aliança Libertadora Nacional, ainda vivo. REVISTA VEJA, 31/07/1996 pp. 7/8
51
Uma das características dos mitos políticos, segundo Girardet, é a sua
imprecisão de contornos e, fundamentalmente, ser polimorfo com contornos que se
interpenetram, sendo também essencial o entendimento de que um mesmo mito possa oferecer
numerosas significações complementares ou muito freqüentemente opostas
91
.
Na nota oficial, quando foi divulgada sua morte, Lamarca sofre uma
desqualificação completa:
“O ex-terrorista Lamarca era um homem frustrado e visivelmente recalcado.
Megalomaníaco por temperamento, prevalecendo seu traço predominante de
depressão acentuada e profunda introspecção. Obstinado, fanático,
reacionário e agressivo, incapaz de dialogar ou aceitar sugestões de
mudanças no que planejava(...)Esses traços de sua personalidade foram
marcantes para caracterizar o traidor nato, sempre burlando e trapaceando
seus mais íntimos amigos,(...) Filho de família honesta, bem constituída e
humilde, recebeu o fruto do sacrifício de seus pais para educá-lo até ingressar
na Academia Militar das Agulhas Negras, onde, em 1960, tornou-se oficial do
Exército, orgulho de sua família e parentes mais chegados. Antes mesmo de
retribuir de qualquer forma esse sacrifício, demonstrava insensibilidade e
arrogância, resolvendo contrair matrimônio para iniciar uma nova forma de
vida.(...)
Traiu seus pais, aos quais abandonou, alheio aos sacrifícios realizados.
Traiu sua esposa e seus filhos, enganando-os com promessas de futura
reconciliação em Cuba, passando depois a viver com várias amantes
terroristas, fixando-se numa paixão em Iara Yavelberg.
Traiu o Exército, que lhe educou e formou sua personalidade cívica,
dispendendo com ele valores e recursos, dando-lhe condição social nobre e
compatível.
Traiu sua pátria, quando desfrutando da sua cidadania como oficial do
Exército, roubou e utilizou as armas confiadas a sua responsabilidade pelo
povo, para matar e destruir.
O último perfil de Lamarca apresentado mostra-o como um homem
desequilibrado psicologicamente, em busca de glória e poder pessoal, um falso líder. Não é
mais todo o “mal”, sua desqualificação é pessoal, do contrário chegaria ao fim a necessidade
da repressão política.
Nesta condição, qualquer teor político de seus atos é negligenciado, uma vez
que tudo era em função de uma realização pessoal. “Traidor nato” não se restringe a questões
políticas, transgride valores morais em busca da satisfação de seu temperamento
megalomaníaco, ou seja, sacia uma necessidade patológica.
A instituição familiar, ele a teria agredido duas vezes: a primeira ao casar-se e
constituir uma nova família antes de retribuir aos pais os esforços para realizar seu sonho de
91
GIRARDET. R. op. cit. p. 15.
52
garoto de tornar-se militar, a segunda ao mandar a esposa doente e os filhos para Cuba e
envolver-se com amantes no Brasil.
Na relação com os amigos, é mostrado como sendo capaz de qualquer ato que
resultasse em vantagem pessoal, seja para conseguir dinheiro, seja para saudar suas dívidas
alegando problemas de saúde da esposa ou convencendo-os a segui-lo na aventura da
deserção.
Do militar, solícito, atencioso que treinava bancárias, restara um farrapo
humano, degradado física e moralmente. Ao lado de Zequinha, seu último companheiro que
negou-se a abandoná-lo e fugir sozinho, a imagem é literalmente de restos de um corpo
vencido, esgotado, desprovido de vida, do poder sobrenatural que lhe dava condições de
realizar as mais espetaculares ações.
Um jogo de traição e lealdade aparece ao confrontar a nota oficial do Exército
sobre a morte de Carlos Lamarca e a forma narrada na biografia Lamarca O capitão da
Guerrilha. O mesmo homem que desertou, traiu a família, o Exército, os amigos tem na
relação com José Campos Barreto e nos relatos de Olderico aos jornalistas Oldack Miranda e
Emiliano José, destacados valores como a amizade e a lealdade:
“É o depoimento de um homem carregado de convicção: ‘a morte não é nada
quando vem pela lealdade, amizade, cumprimento de um trato ou fidelidade a
uma causa. Sempre é melhor morrer do que trair um amigo’ assim é
Olderico”
92
Não é uma biografia de Olderico, os valores destacados o compartilhados
pelos que estavam a seu lado. As pessoas que morreram venceram a morte pela forma como
esta lhes alcançou. Um sentido inequívoco de certo e errado no qual o discurso não pretende,
de forma alguma, buscar qualquer forma de neutralidade ou análise. Os acontecimentos são a
prova inconteste da explicação, da narrativa mítica. Lamarca, Zequinha, Santa Bárbara, Iara,
Nilda e Otoniel superaram a morte.
92
JOSÉ E.; MIRANDA O. op. cit. p. 15.
53
Polícia Federal. Zequinha e Lamarca mortos; Lamarca no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues em Salvador.
1971. Extraído do livro Lamarca – O capitão da guerrilha Emiliano José e Oldack Miranda.
A origem humilde, a revolta, a indignação, a capacidade de realizar tarefas
militares, oferecerem outras leituras, afinal não ficou alheio as agruras da população
submetida a ditadura de seus pares, reagiu e sacrificou todas as suas conquistas pessoais em
função de ideais. Portanto, as ações as quais partidários da ditadura evidenciam sua vilania
são as mesmas que demonstram sua dignidade, coragem, desprendimento pessoal. Até a
deserção, apresentada como traição pelas Forças Armadas, também significa não compactuar
com o que julga errado.
Identificar o complô maléfico ajuda a definir os lados do conflito. Para
combatê-lo somente uma réplica voltada para o bem. Seu poder, exercido em um mundo de
sombras de onde busca determinar o desenrolar dos acontecimentos, justifica o antídoto
contra ele lançado.
O “mal” está sempre encarnado na imagem do outro e é dotado de tudo o que
me é estranho. A imagem do estrangeiro, aquele que não sou eu, está presente no antagonista.
Ela ordena o conflito onde o único meio de combater uma organização maléfica é através de
uma réplica consagrada a serviço do “Bem”. Antes, necessita de uma identificação não
somente, no sentido de saber quem é ou de que lado está, mas para assimilar o modo de agir.
Uma identificação completa para poder enfim enfrentá-lo, desmascará-lo, afrontá-lo:
54
Apenas uma organização que corresponda às mesmas características, secreta,
disciplinada, hierarquizada, treinada para manobrar na sombra, é capaz,
portanto, de lhe ser vitoriosamente oposta
93
.
Ao poder identificar, na figura do ex-capio, um modo profissional, poderio
bélico, capacidade e determinação para levar a cabo as ações das esquerdas, o regime militar
buscou distanciar a imagem dos opositores ao regime militar da imagem dos estudantes. A
ação da repressão não é mais a dispersão de assembléias e passeatas, é a guerra. A
"subversão” envolta em mistério passou a possuir um novo rosto que sofre o processo de
demonização e representa as organizações de esquerda através de um poder maléfico. Os
líderes estudantis tão presentes nas manchetes em 1968, eram muito simpáticos a classe
média, aliás, eram a sua própria carne, e mesmo sendo bastante ativos no período de guerra,
não são mais o rosto da rebeldia. Este agora aparece na forma de um profissional treinado e a
serviço de interesses estrangeiros. Lamarca era um militar com fama de bom atirador, capaz
de cometer “loucuras” como largar uma carreira promissora, “abandonar” a família em nome
de uma aventura, para isso possuía um poderoso arsenal. Enfim, uma figura capaz de causar
temor e encarnar a face do terror.
A imagem individual de Lamarca, como militar treinado, capaz de realizar
façanhas, estimular a imaginação e tornar a existência bucólica de um oficial de infantaria em
uma aventura repleta de ingredientes de heroísmo, fornece modelos para o perfil do
combatente. Estas façanhas foram veiculadas pela imprensa mesmo quando não ocorreram,
como a extraordinária fuga que sido teria realizada no Rio Grande do Sul:
Apertando o cêrco Com as informações da mulher de Lucena, a polícia
acredita que nunca esteve tão perto de Lamarca. Na verdade, desde que
participou do assalto ao cofre de Ana Capriglione (VEJA n74 de 14/2/70),
Lamarca teria estado em São Paulo, na Guanabara, no Rio Grande do Sul ou
mesmo no Uruguai. Entre as informações, a mais curiosa dizia que Lamarca
fugira para o Paraguai, atravessando o rio Paraná a nado. Mas essas
indicações limitavam-se a hipóteses. As autoridades acreditam que Lamarca
está numa posição bastante difícil, praticamente acuado. Mesmo não sendo
considerado um dos ‘cérebros’ do terror (na sua organização, VAR-Palmares,
ele era tido mais como homem de ação) localizar Lamarca, para a polícia,
será a etapa final da escalada contra o terror. Ele é hoje o único homem em
condições de reunir o que resta dos vários grupos esfacelados. Essa seria a
última batalha do terror.
94
93
GIRARDET. R. op. cit. p. 59.
94
A última batalha. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 04/03/1970. p. 29.
55
A fuga espetacular atravessando o rio Paraná, sua capacidade de realizar
grandes ações como o assalto ao cofre de Ana Capriglione (a origem do dinheiro nunca foi
explicada, mas todos os relatos dizem tratar-se de dinheiro de corrupção e negociatas, uma
“caixinha” do ex governador de São Paulo Adhemar de Barros), organizar os grupos de
esquerda, que estariam então esfacelados, mesmo não sendo um dos “cérebros do terror”,
dão a sua figura um perfil que pode ser admirado pela capacidade, mesmo que em potência,
de realizá-las. E, devido à importância da instrumentalização da imprensa pela ditadura
militar no combate aos “subversivos”, consegue atingir a população.
Uma das ações, que durante muito tempo foi considerada como tendo a
participação in loco de Lamarca, foi este assalto à mansão de Aarão Burlamaqui Benchimol.
Trata-se do roubo do cofre do “Dr. Rui”, codnome de Ana Gimol Capriglione identificada, na
imprensa, como secretária e “eminência parda” de Adhemar de Barros
95
. No Livro de Oldack
Miranda e Emiliano José, além desses atributos, era também amante do ex-governador.
De acordo com as notícias da época, o assalto teria rendido dois milhões e
quatrocentos mil dólares, na versão atualizada da biografia escrita por Oldack Miranda e
Emiliano José a cifra é de dois milhões, quinhentos e noventa e seis mil dólares.
A descrição do assalto pela imprensa fala de dois garotos, João Carlos,
quatorze anos, e seu primo Lumerci, onze anos, que, ao chegarem a casa dos tios, viram o
portão aberto e entraram. João Carlos à frente, de repente uma mão tenta agarrá-lo. Com um
chute, consegue libertar-se e corre, mas lembra-se de Lumerci, pára e tenta avisá-lo, então vê
o estranho agarrando o primo e guardando uma faca. Quando tenta fugir, é impedido por um
descendente de japonês (na reportagem é chamado de “japonês”) armado de uma pistola. Na
delegacia, os garotos reconhecem Lamarca e Yoshitame Fujimori como o homem da faca e o
“japonês” com a pistola. Esta versão, segundo os biógrafos, consta do IPM (Inquérito Policial
Militar). Nenhum deles esteve de fato presente na chamada “Ação Grande”. A participação de
Lamarca foi planejar e indicar cinco dos treze militantes
96
que a realizaram.
O Lamarca da cena do assalto foi incompetente, afinal não evitou a fuga de um
garoto de 14 anos mesmo estando armado de uma faca, arma aliás bastante imprópria para
quem tinha fama de perito em armas e grande atirador. A fuga do adolescente seria um
desastre e a ação não poderia ser realizada, pois, como carregar rapidamente um cofre de mais
95
Dez bilhões em meia hora. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 04/02/1970 p. 18/22
96
Os militantes que participaram do assalto foram: “Leo” - Darcy Rodrigues, “Justino” - Wellington Moreira
Diniz, “Alberto” - José de Araújo Nóbrega, Juvenal” Juarez Guimarães de Brito, Mário” Jesus Paredes
Soto, “Jeremias” – João Marques de Aguiar, “Elias” – João Domingues da Silva, “Felipe” – Fernando Borges de
56
de duzentos quilos que estava no segundo andar da casa? Mas o que impediu a fuga? Uma
ameaça de morte de um “estrangeiro” frio e capaz de cumprir a ameaça.
O “mal” não invadiu apenas a casa dos Benchimol, invadiu também a família,
sua estrutura e todos os valores tradicionais a ela atribuídos, pois quem informou a existência
do cofre foi um sobrinho de Ana Capriglione envolvido na luta armada, ou na “subversão”,
Gustavo Buarque Schiller.
Gustavo era um sobrinho do qual Ana Capriglione não lembrava da existência,
mas em seguida é considerado como o mais inteligente dos sobrinhos. Outra divergência em
relação a Gustavo é quanto a idade, na revista tem 22 anos, no livro de Oldack Miranda e
Emiliano José tem 17 anos.
Um detalhe chama a atenção, o comentário do detetive Nélson Duarte sobre as
investigações a respeito do conteúdo do cofre, a quem pertencia o dinheiro e qual sua origem:
“É melhor não mexer nesse caso; tem muita gente grossa metida nisso”. O poder das
sombras parece evidente, cotidiano e imediatamente reconhecido.
O reconhecimento feito pelos garotos demonstra não merecer muita
credibilidade. A matéria trazia, sete meses após o assalto ( a ação foi realizada em 18 de julho
de 1969 e a matéria é de 04 de fevereiro de 1969), uma lista de doze nomes: Leo- Darcy
Rodrigues, “Justino” - Wellington Moreira Diniz, “Alberto” - José de Araújo Nóbrega,
“Mário” – Jesus Paredes Soto, “Jeremias” – João Marques de Aguiar, “Elias” – João
Domingues da Silva, “Felipe” – Fernando Borges de Paula Ferreira, “Orlando” - Carlos Minc,
“Maurício” - Reinaldo José de Melo, “Mariana” - Sônia Lafoz, “Simone” - Dilma Vana
Roussef Linhares e “Ronaldo”. Excetuando Juarez Guimarães de Brito e incluindo os nomes
Lamarca e Yoshitame Fujimori.
Os seis “reconhecidos” pelos garotos eram: Joaquim Câmara Ferreira, o
“Velho” ou Toledo”, um dos mais procurados e considerado um dos grandes líderes da luta
armada após a morte de Carlos Marighella; Carlos Roberto Zanirato, que não participou, mas
tem seu nome ligado diretamente ao de Lamarca pois era um dos que fugiram do quartel de
Quitaúna, Marise Farhi, de origem egípcia segundo a revista, ou seja, uma estrangeira; José
Araújo Nóbrega, chamado de braço direito de Lamarca e o único que efetivamente, entre os
“reconhecidos”, esteve no local da ação, Lamarca e Yoshitame Fujimori.
Lamarca, de fato, passou a maior parte de seu tempo de militância em
aparelhos (casas, apartamentos, sítios utilizados pelos chamados subversivos), contudo
Paula Ferreira, “Orlando” - Carlos Minc, “Maurício” - Reinaldo José de Melo, “Mariana” - Sônia Lafoz,
“Simone” - Dilma Vana Rousseff Linhares e Ronaldo que não foi identificado em nenhum livro ou depoimento.
57
através dos relatos sobre sua atuação, a caçada que sofreu, a guerrilha e seus desdobramentos
na guerra de comunicação, transformou-se exatamente em uma figura na qual se expressa não
o teórico político, intérprete e herdeiro privilegiado de doutrinas ou correntes de pensamento.
Tornou-se um dos principais símbolos da luta contra a ditadura militar e, segundo parte da
imprensa, “o maior mito da esquerda armada brasileira”
97
. Em sua figura está sintetizada a
tragédia de quem abandonou a família, projetos profissionais, uma existência relativamente
cômoda e envolveu-se em uma luta de tão desproporcional relação de forças.
Para José Roberto Resende, militante da VPR Vanguarda Popular
Revolucionária, organização da qual Lamarca foi um dos principais dirigentes, a luta era:
“...simplesmente a conseqüência do ideal de liberdade, justiça e dignidade do
povo brasileiro. Não razão para romancear aquele período. Tínhamos um
objetivo definido a alcançar: a derrubada da ditadura militar, a reconquista
da democracia e a construção de uma sociedade socialista”
98
A VPR Vanguarda Popular Revolucionária era uma organização onde duas
tendências disputavam a direção da luta. Uma parte de estudantes e intelectuais vindos da
POLOP Política Operária e outra parte de militares cassados. O líder era o ex-sargento
Onofre Pinto e, para os biógrafos de Lamarca, o grande mero de ex-militares na
organização foi importante na escolha de qual iria ingressar, já que dava como certa a
necessidade da luta armada como o único caminho para derrubar a ditadura e fazer a
revolução. Apesar do grande número de militares participando das ações da esquerda armada,
nenhum, até então, tornou-se um referencial, pois a maioria vinha de momentos anteriores,
quando o alto grau de politização das Forças Armadas atingiu até as camadas mais
subalternas, eram politizados e combatentes, eram rebeldes, mas poucos possuíam um rosto
para ser identificado.
No momento da Luta Armada, as principais imagens são vinculadas ao perigo
da “subversão”, pois o poder de contar, de narrar, estava nas mãos da ditadura que controlava
e utilizava a grande imprensa. A luta das organizações de esquerda é narrada a partir da
imagem do complô maléfico capaz de destruir a imagem pacifica de ordem e de “segurança
nacional” que a ditadura dizia implantar e defender. Mesmo ingressando na guerrilha urbana
após seu início, Lamarca acabou por ser utilizado.
97
O cérebro do roubo do cofre. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 15/01/2003. p. 36/37.
98
RESENDE, José Roberto; BENEDITO Mouzar OUSAR LUTAR, OUSAR VENCER. São Paulo:
Viramundo. 2000. p. 21.
58
Para enfrentar este inimigo poderoso, a repressão utilizou das mesmas armas
que as organizações de esquerda, ou seja, liberou-se dos entraves da burocracia legal, passou a
operar no mesmo mundo de sombras dos “subversivos”.
As notícias sobre a luta armada revelam a Conspiração de forma ambígua. No
sentido forte é justificadora de toda ão e constituição de um novo aparelho repressor para
contê-la, ao mesmo tempo, por ter sido descoberto e identificado o mal” a que serve, perde
sua força e tem banalizada a sua existência.
A narrativa apresentada cumpre então um papel explicativo, à medida que toda
a situação do confronto e em especial as condições das Forças Armadas e o regime militar
para combater a guerrilha se justificam no perigo representado por Lamarca. Este ultrapassa
as ões armadas que realizou, a deserção, o roubo das armas, a fuga do Vale do Ribeira, o
seqüestro do embaixador suíço Enrico Bucher, ou melhor, o sentido individual dessas ações e
assume um perfil completo de todo o terror”, assim como serve para delimitar a posição de
cada participante da luta naquele momento e posteriormente.
O poder de explicação da constelação da Conspiração foi bastante explorado
durante o período da luta armada, pois apela para uma:
Explicação tanto mais convincente quanto se pretende total e de exemplar
clareza: todos os fatos, qualquer que seja a ordem a que pertençam, acham-se
reduzidos, por uma lógica aparentemente inflexível, a uma mesma e única
causalidade, a uma só vez elementar e todo-poderosa
99
No entanto o mito habita o imaginário e não é fruto apenas do desejo de
manipulação de eventuais usuários:
...porque nenhum empreendimento manipulador pode esperar atingir seus
objetivos ali onde não existe, nos setores da opinião que ele se esforça para
conquistar uma certa situação de disponibilidade.
100
A certeza que havia certa disponibilidade para ler as façanhas de Lamarca, não
como atos de banditismo ameaçador e sim como ações libertadoras do homem providencial, o
mítico Salvador, justificam a necessidade de tentar acabar com o mito.
A nota oficial dos órgãos de segurança do Governo sobre a morte do ex-capitão
falava sobre uma capacidade sedutora da sua imagem, que seria a de um falso líder:
99
GIRARDET. R. op. cit. p. 55.
100
Ibid p. 51.
59
“A morte de Lamarca interrompeu definitivamente uma carreira inexorável de
crimes e traições, cujos reflexos negativos incidiram em diversos setores do
país além dos condicionamentos espúrios impostos a vários jovens que se
viram atraídos pelos acenos quixotescos desse falso líder”.
101
O Salvador, outro núcleo temático de mitologias políticas identificado por
Girardet, traz a figura do homem providencial com o poder de surgir em momentos de
extrema crise e, graças a sua ação, realizar a “salvação” de seu grupo ou sociedade. Este
momento de crise está ligado a sua hierofânia. Não quer dizer que intervém apenas nestes
momentos, mas que ali fora sacralizado.
O perigo representado por Lamarca e demonstrado nas narrativas de
espetaculares ações e a sempre eminente prisão que nunca se efetivava tornam simpática a
figura do rebelde e maior o perigo de admiradores descontentes com a situação política
sentirem-se tentados a imitá-lo.
No período em que foi caçado os apelos à imagem de Lamarca foram através
dos contornos da Conspiração e Salvador, mesmo que isto tenha ocorrido na forma de
denúncia do complô maléfico e do “traidor”.
Assim como os apelos a sua imagem para a denúncia de um complô maléfico e
as referências ao Salvador não ocorrem após o fim da censura, do AI-5, em alguns
depoimentos vemos que a expectativa em torno de seu nome era muito grande entre os
militantes.
Muitos desses depoimentos, porém, só foram possíveis com o processo de
abertura e a volta dos militantes de esquerda, quando puderam falar sobre o ex-capitão para
um grande público e de maneira mais direta. Portanto um momento de lembrança sujeito aos
jogos seletivos de quem recorda.
A grande imprensa, no momento de sua presença viva, quando realizava ações
e a guerrilha era ativa, mostrava seu perfil individual contendo apenas valores pejorativos. As
opiniões de militantes eram as dos chamados “arrependidos”, militantes presos que aceitavam
ir à televisão para renegar a luta armada e demonstrar arrependimento. Depoimentos de
credibilidade duvidosa serviram a este propósito. Para Massafumi Yoshinaga, um dos
renegados acusado de delatar a áreas de treinamento do Vale do Ribeira, Lamarca era:
...um tipo temperamental inculto, pouco mais que um bom atirador
102
101
A Bahia ainda procura Terror JORNAL DA TARDE – O ESTADO DE SÃO PAULO. 21/09/1971. p. 16.
102
A cena final de um terrorista. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 22/06/1971. p. 22/26.
60
Evidentemente era um depoimento veiculado dentro de um esquema de censura
e controle da imprensa. Mas um momento este, que havia a disponibilidade para a leitura dos
feitos como respostas às expectativas de uma luta heróica e gloriosa contra um regime
opressor cuja força muito superior era desafiada com destemor e coragem.
Uma das caraterísticas da constelação do Salvador, aponta Girardet, é em
relação a crises de identidade e crises de legitimidade, quando:
“silenciosa ou violentamente, se desfazem ou se rompem os liames da
confiança e da adesão(...) deixa de reconhecer-se no sistema institucional com
o qual se havia até então mais ou menos tacitamente identificado”
103
Em relação ao líder, as relações de fidelidade, ainda de acordo com Girardet,
substituem a de filiação. Exerce um poder cativante, fascina através de palavras e gestos.
Portanto o Salvador não cumpre sua tarefa através da prestação de um socorro do qual
guarda-se apenas gratidão. Chama para a ação, compartilha a aventura gloriosa e cumpre
sozinho a sua sina trágica na derrota. Depois, em momentos de lembrança, retoma seu
esplendor e força de acordo com quem recorda.
O livro de Luiz Maklouf Carvalho, Mulheres Que Foram a Luta Armada, é
bastante rico em depoimentos desta natureza sobre a figura de Lamarca.
Uma das entrevistadas, Idalina Maria Pinto, viúva de Onofre Pinto, ex-sargento
e dirigente da VPR quando Lamarca fugiu do quartel em Quitaúna, relembra assim a
capacidade de entrega do marido em prol da causa revolucionária e a sua coragem diante do
perigo:
“A prioridade era fazer a revolução, derrubar os militares. Foi ele que
organizou a saída de Lamarca do quartel de Quitaúna. A mulher e as filhas do
Lamarca ficaram hospedadas comigo, na casa do Carandiru. Era um perigo
danado”
104
A dimensão do perigo e da coragem é dada a partir da presença física de
Lamarca ou de pessoas próximas a ele. Assim, quanto mais a imagem do ex-capitão
representa perigo, maior será a coragem e a importância de quem recorda ou é recordado.
Não são apenas as pessoas, quando relembram. que utilizam a imagem de
Lamarca para dimensionar sua participação. O autor também o faz para poder dar a devida
importância aos entrevistados.
103
GIRARDET. R. op. cit. p. 88.
104
CARVALHO. L. M. MULHERES QUE FORAM A LUTA ARMADA. São Paulo: Globo. 1998. p. 30.
61
Ao trazer à tona a trajetória de Renata Guerra de Andrade, uma das mais ativas
entre as mulheres envolvidas com a guerrilha urbana, tendo participado entre outras das ações
do roubo de armas no Hospital do Cambuci e da explosão do carro-bomba no Quartel-General
do II Exército, no Ibirapuera, o autor apresenta-a da seguinte forma:
“Renata mudou-se para a capital em 66. Entrou no cursinho de vestibular
para Psicologia, onde foi aluna de Iara Iavelberg, a bela militante que logo
encantaria o capitão do Exército Carlos Lamarca.”
105
Renata ainda não é, uma destacada guerrilheira, mas seu espaço começa a
ser delineado. O destino parece estar ligado a uma aproximação com Lamarca. Existe até uma
certa hierarquia de figuras que pode ser detectada partindo da aluna de cursinho, passando por
Iara, cujo primeiro grande feito parece ter sido o de ser bela e encantar Lamarca, até chegar a
Lamarca propriamente.
Renata parece obedecer a mesma trama ao comentar sua participação:
“Renata:
Onofre me destacou para dar assistência teórica ao grupo de Lamarca e de
seus companheiros em Quitaúna. Ajudei a recrutá-lo para a VPR. Ele era um
simpatizante descontente com o Partido Comunista Brasileiro. No primeiro
encontro que tivemos falou na possibilidade de desertar, saindo com um
enorme arsenal. Eu achei que era cutucar a onça com vara curta. Achei que
podíamos esperar o momento mais adequado. Mas a idéia foi crescendo. (...)
Eu defendia a idéia que Lamarca deveria sair quando tivéssemos pelo menos
gente para empunhar tantas armas. Nem isso havia. Éramos um grupo de
gatos-pingados.”
106
A saída de Lamarca do Exército é motivo para apresentar algumas façanhas de
outra destemida guerrilheira, Dulce Maia de Souza – a Judith:
“Viria, então, como uma ação conjunta, o plano de maior envergadura até ali:
a retirada do capitão Carlos Lamarca do Regimento de Infantaria do
Quartel de Quitaúna, em Osasco (SP). O capitão sairia com outros militares e
com uma grande quantidade de armas às 8 da manhã de 26 de janeiro de
1969. Dia em que o Paulo viveria, com explosões e blecaute, a
comemoração antecipada do apocalipse revolucionário. A ALN acha-o demais
e não participa. Parte da VPR assume a responsabilidade e toca o plano em
frente.
Entre idas e vindas a Quitaúna, para organizar as coisas com o capitão e sua
esposa Maria, Dulce Maia aproveita para treinar tiro, dentro do quartel,
105
CARVALHO. L. M. op. cit. p. 32.
106
Ibid. p. 45 et. seq.
62
misturada às bancárias que Lamarca ensinava a atirar, um serviço gratuito
que o Exército prestava aos bancos temerosos de ataque terroristas.”
107
O plano para a saída de Lamarca de Quitaúna era algo de grande proporção
para as organizações, chamado de Noite de São Bartolomeu” consistia em um ataque ao
Palácio Bandeirantes, sede do governo de São Paulo que arderia em chamas após o
bombardeio de lança chamas, simultaneamente outro golpe seria desfechado contra o Quartel-
General do II Exército. do Planalto. A Academia Militar de Polícia viria a baixo com a
explosão de cem quilos de dinamite. O Campo de Marte seria dominado e o sistema aéreo da
cidade ficaria em total confusão. Um dia antes, Lamarca deveria sair do Quartel de Quitaúna
levando sessenta fuzis FAL ( Fuzil Automático Leve) mais algumas armas em sua Kombi e
quantas armas pudessem ser carregadas em um caminhão que estava sendo preparado. No
entanto dois tapas foram suficientes para impedir a ação.
Um garoto aproximou-se de um sítio em Itapecerica da Serra onde estava
sendo preparado o caminhão. Um dos militantes deu-lhe dois tapas e mandou-o embora. A
mãe do garoto apresentou queixa e o soldado que foi até o local pensando intimidar alguns
rapazes agressores, algo de pouca monta, percebeu a movimentação e a pintura do veículo nas
cores do Exército. Pedro Lobo, Ismael Antônio de Souza, Oswaldo Antônio dos Santos e
Hermes Camargo foram presos. Torturados, eles seguram o quanto podem, mas acabam
falando. Dulce é presa em função destas confissões arrancadas a pancadas.
Além da participação nesse plano, que merece ser lembrada com todo
destaque possível, Dulce também esteve presente no atentado ao QG do II Exército em
26/06/68, no assalto ao Banco Mercantil da Rua Joaquim Floriano, no Itaim, em 01/08/68, na
ocasião da morte do Capitão Chandler, militar americano morto em 12/10/68, no primeiro
assalto a agência do Banco do Estado de São Paulo, em 15/10/68, e no segundo assalto a esta
mesma agência bancária, em 06/12/68. Mas recebe uma tarefa especial que o autor Luiz
Maklouf Carvalho acredita ser de altíssimo risco:
“Incansável, adrenalina a mil, Dulce/Judith estará às voltas com tarefas de
altíssimo risco entre elas a de recolher a mulher (Maria) e os filhos do
capitão (César e Cláudia)”
108
107
Ibid. p. 39 et. seq.
108
Idid. p. 52.
63
Damáris Lucena, a esposa de Antônio Raimundo de Lucena, mecânico e
militante conhecido por “Doutor” e mãe de Ariston Lucena que esteve no Vale do Ribeira
junto com Lamarca, também recorda esta passagem julgando-a:
“A reunião que decidiu a saída do Lamarca do quartel foi em casa. Ele
esteve lá duas vezes – com o nome de João. Na primeira, a reunião entrou pela
noite. Se tivesse tomado parte da reunião, eu teria dito pra ele não sair. Eu
achava que lá dentro ele produziria muito mais. Ficava como infiltrado e teria
uma participação mais produtiva. Esse talvez tenha sido um erro muito grave.
Muito mais grave do que a gente pensou naquela época.”
109
Um outro relato no qual Lamarca é citado é de Sônia Lafoz ao comentar os
preparativos para a operação plástica de Lamarca:
“Sônia Lafoz:
- Precisavam de uma mulher para fazer o papel da irmã. No início eu o
sabia que era ele. soube no aparelho da Barra da Tijuca, uma casa antiga.
Ele foi pra e aí eu tive que fazer aquele papel de atriz, de irmã, dar a
entender que ele seria meio efeminado, que precisaria arrumar o nariz
- A fachada foi disfarçar o Lamarca de gay?
- Foi. O médico sabia, mas a clínica não. A equipe de enfermagem, o
anestesista, ninguém sabia. Então você tinha que entrar com a conversa de que
era um paciente que queria melhorar a cara, o nariz, a arcada dentária,
porque se achava feio e precisava se arrumar. Então, que justificativa que eu
tinha que dar? Que era um homossexual! Hoje é comum, mas naquela época
homem não fazia cirurgia plástica. Então a gente foi por aí. Na casa a gente
ficou treinando com ele. Ele ficava puto.”
110
Este é mais um depoimento no qual a figura física de Lamarca tem um papel
bem determinado. A aproximação com alguém tão importante de maneira tão íntima não é
uma pequena e deliciosa indiscrição. Representa a importância pessoal em participar de algo
grandioso com naturalidade, ter intimidade com um ser que está além do alcance da
normalidade, sentindo-se importante por estar próximo de alguém que julgamos superior
tecendo novas relações de solidariedade e fidelidade.
Entre outros relatos em que Lamarca aparece mais um pode ser citado. É o de
Kito, filho de Damáris e Antônio Lucena:
“O que fizeram com as crianças depois que ela foi presa? Com a palavra
Kito, que então tinha 9 anos:
Eles circularam com a gente por vários lugares de São Paulo. Ninguém nos
queria porque circulava a história de que Lamarca ia nos tirar das mãos da
109
Ibid. p. 47.
110
Ibid. p. 377.
64
polícia. Tentaram em São João Clímaco, no Catarina Labouré. Ninguém
queria. Era como se fôssemos filhos de Judas. Acabamos ficando na Febem do
Tatuapé, mas volta e meia saindo com o capitão Maurício. Queriam que a
gente encontrasse pessoas e apontasse. Um dia nos levara à Oban. Nós
almoçamos lá.”
111
Colocado hierarquicamente acima destes militantes, sua figura acaba por se
alimentar da própria coragem deles, uma vez que mesmo o mais audaz guerrilheiro se
posiciona aquém de sua figura. É esta a imagem construída nos relatos de Dulce Maia, Sônia
Lafoz, Damáris e Idalina.
A proximidade demonstra na fidelidade ao líder admiração e afetividade, ao
mesmo tempo que retrata as virtudes de quem recorda, a coragem, a sabedoria, o bom senso
que não pôde ser ouvido, a ousadia. A imagem funciona como ponto de partida para
autocrítica de erros militares.
Lamarca tem no imaginário das militantes um lugar definitivo. É um pólo para
onde convergem a coragem, a ousadia e a doação destas pessoas. Explica as suas ações e
motiva lembranças e julgamentos, ao mesmo tempo, tem a sua imagem alimentada pela ação
destas, pois sempre se encontra mais além. Toda a vida clandestina, toda a ação, todo o poder
que se acreditava possuir, o orgulho de ter participado de algo importante caminha em sua
direção. É o complô se vendo por seus próprios olhos.
No caso do boato do resgate de Kito, outra imagem é literalmente mostrada, a
de um salvador, aquele que virá e resgatará das mãos dos militares uma criança, a ser melhor
analisada no próximo capítulo.
Neste capítulo, vimos que muitos dos elementos utilizados na construção do
personagem mítico Lamarca foram no sentido de buscar justificar a repressão política da
ditadura. A existência do perigo servia de justificativa para o “momento de exceção” e para as
ações. Porém havia uma certa receptividade capaz de aceitar a leitura desses elementos como
justa indignação, afinal não foi apenas através da luta armada que a sociedade manifestou-se
contra o regime militar. Manifestou-se em 1968 nas passeatas organizadas pelos estudantes,
nas derrotas nas eleições para governadores em Minas Gerais e Rio de Janeiro. Ao desertar
revela a si e esse estado de descontentamento. A ditadura, tornando-o praticamente
onipresente nas ações “subversivas”, ampliou a expectativa e os desejos da chegada do
homem providencial.
O papel da imprensa foi fundamental na seleção dos elementos que fizeram
Lamarca habitar o imaginário político sendo temido ou admirado. A censura não deve ser
111
Ibid. p. 83.
65
confundida com sigilo e sim com a manipulação dos órgãos de informação do país que
vendiam a mensagem otimista do milagre brasileiro e noticiavam os “desajustados
subversivos”. O complô das organizações de esquerda, do qual Lamarca tornou-se o rosto,
esteve nos noticiários diariamente. As façanhas do guerrilheiro puderam ser acompanhadas,
mesmo quando não aconteciam, criando expectativa sobre a próxima notícia a seu respeito.
Quando os exilados retornaram e começaram a escrever sobre a luta armada, a
figura de Lamarca habitava o imaginário político brasileiro. As histórias contadas nestes
livros são novas versões de acontecimentos conhecidos, como seqüestros de embaixadores,
assaltos lendários, guerra de guerrilhas no interior do país. O momento político traz, nestas
novas abordagens, justificativas para lutar pelo fim da ditadura, pela abertura política.
Os apelos à imagem de quem lutou contra a ditadura fazem da tragédia pessoal
de Lamarca novamente a representação dos complôs, não mais como o mal” a ser destruído,
mas a unidade a ser restabelecida. Com isto “ex-subversivos” e militares lutam para serem a
expressão da legítima identidade nacional, ou seja, a identificação do estrangeiro, figura do
outro, continua a existir.
66
CAPÍTULO II – CHE E LAMARCA: ESTRELAS AVESSAS DO
AVESSO DA AMÉRICA LATINA
67
2.1 - “AS ENTRANHAS DO MONSTRO”
Uma das formas de análise, segundo Girardet, é a comparação das figuras
selecionando-as em núcleos temáticos denominados como Constelações Míticas. O apelo à
constelação da Conspiração pode vir acompanhado pela figura de um líder, um Salvador, pois
o mito é polimorfo, multifacetado e não possui contornos precisos e herméticos. Lamarca
aparece, como vimos, sendo o rosto de todo o “terror” e, ao mesmo tempo, o líder, o oficial do
Exército que “rasga a farda” e parte resoluto para a guerra conquistando vitórias e
admiradores.
Porém, ainda segundo Girardet:
“O poder de renovação da criatividade mítica é, de fato, muito mais restrito
do que as aparências poderia fazer crer.”
112
Isto é, podemos perceber facilmente que as narrativas míticas giram em torno
de um círculo estreito de repetição e de associação. No caso de Lamarca a comparação mais
imediata é sem dúvida de Ernesto CheGuevara, uma vez que suas figuras assemelham-se na
combinação de imagens utilizadas na construção de seus personagens míticos. Em ambos
guerrilheiros estas imagens:
“inserem-se em um sistema, inscrevem-se em uma ‘sintaxe, para retomar a
expressão de Claude Lévi-Strauss: em outros termos, é agrupados em séries
idênticas, estruturados em associações permanentes que se apresem os
elementos construtivos da narrativa que elas compõem.”
113
A história política da América Latina com suas lutas pela independência, com
seus caudilhos, governos populistas parece sempre estar a espera da chegada de um homem
providencial capaz de conduzir o continente a uma “segunda independência” ainda não
alcançada.
O termo “segunda independência” foi utilizado por José Martí, pensador, poeta
e guerrilheiro cubano que lutou e foi morto na primeira guerra pela independência de Cuba.
Referia-se à influência de uma nação que, no final do século XIX, se tornava o maior
empecilho para uma autonomia concreta da América Latina
114
.
112
GIRARDET. R. op. cit. p. 17.
113
Ibid.
114
RETAMAR, Roberto F. Nossa América e outros ensaios in: CALIBAN E OUTROS ENSAIOS. SãoPaulo
Ed. Busca Vida 1988, p. 99.
68
A primeira independência ocorreu através da luta contra o colonizador
espanhol. A exceção brasileira é por se tratar de um processo evolutivo iniciado com a
chegada da família real portuguesa em 1807 culminando com a proclamação de 1822.
Martí, que havia vivido nos Estados Unidos, pensava ser necessária a luta pela
independência cubana para conter o avanço norte americano sobre as antilhas:
“Vivi no interior do monstro, e conheço-lhe as entranhas, minha funda é a de
Davi”
115
Nem a disposição em combater nem os alertas de JoMartí foram capazes de
evitar que o caminho para o domínio ianque sobre o continente ocorresse justamente através
da intervenção na segunda guerra de independência de Cuba em 1898.
O apelo à ação está presente no pensamento de José Martí. Assume, em certo
sentido, a condição de herdeiro de Davi. O destemor e fidelidade a ideais (crença religiosa, no
caso de Davi) o conduzem. O personagem bíblico rompe com a inércia e a covardia de seu
povo diante as afrontas sofridas, com a letargia e conclama para a luta. Não encontrando
ressonância para seus apelos, enfrenta, em luta desigual, o oponente, o outro, o estrangeiro.
O rompimento de Davi é também com a rede de solidariedade social na qual a
acomodação de pais, tios, familiares que mesmo dizendo-se seguidores de uma doutrina não a
tem como condutora de sua ação, portanto, para além de uma abstrata identificação de povo, é
preciso compreender esta fidelidade rompida e a crença em outro pai no qual encontramos os
princípios para uma nova realidade social.
Nos escritos do pensador cubano, morto em 1895, encontramos então o apelo
literal a figura do Salvador. Sessenta e um anos depois de sua morte, um grupo de rebeldes
desembarcou em Cuba e nas montanhas de Sierra Maestra lançaram-se em busca dessa
“segunda independência”, a revolução cubana, cujo líder, Fidel, apontou Martí como patrono
intelectual.
Os guerrilheiros de Sierra Maestra, assim com José Martí, dispuseram-se a dar
uma resposta à expectativa de controle sobre o destino dos países latino-americanos. A
revolução cubana trouxe a idéia da possibilidade de realização deste desejo através da ação de
líderes predestinados, ousados, capazes de uma travessia entre o continente e a ilha com 82
homens em um barco construído para no máximo doze pessoas e iniciar uma guerra ao lado
115
Idem, p. 100
69
de um líder completamente inexperiente e após um desembarque desastroso, quando quase
toda a força rebelde fora dizimada.
Apesar dos vários aspectos dos mitos políticos e da fluidez de suas imagens
que se interpenetram, as angustias, a situação que motiva os apelos, parecem limitadas. O
rompimento com uma situação de constrangimento e dominação é em vários momentos,
relacionado com a tomada de posição de uma pessoa que, através de seu gesto, realizará a
redentora tarefa de libertação.
A definição simplista da teoria do foquismo, elaborada após a revolução
cubana, que um pequeno motor de arranque coloca em funcionamento um grande motor em
movimento, ou seja, um reduzido grupo armado e disciplinado desperta as massas para a luta
e a revolução, é a teorização do apelo ao Salvador, do messias que virá para redimir,
reorganizar o espaço social, romper com uma não-realidade absoluta na qual o “grande
motor” não se reconhece, mas contra a qual é incapaz de reagir segundo a sua própria
iniciativa.
Além da admiração despertada pelos guerrilheiros de Sierra Maestra capaz de
seduzir rebeldes da América Latina, a revolução cubana tinha, nesta estratégia de luta, um
modelo a oferecer a todo o continente. A teoria do foquismo, ao lado do terrorismo, foi uma
das formas de luta que os grupos “subversivos” do continente tentaram implantar em seus
países.
O foquismo, segundo Jacob Gorender, singularizou “a idéia do fator militar
sobre o fator político, da prioridade do foco guerrilheiro sobre o partido”
116
. Dessa forma a
determinação e disposição para a luta receberam aval teórico. Chebuscou repetir, na Bolívia, o
sucesso de Sierra Maestra aplicando esta teoria:
“Em 1967, foi a vez do próprio Guevará aplicar sua teoria na Bolívia. Nem
mesmo o malogro desta tentativa heróica conduziu a um exame
despreconceituoso da teoria, ao mesmo em grandes setores da esquerda
radical brasileira.”
117
A viria do movimento cubano e a projeção internacional de seus líderes
trouxeram a baila, e com uma força mobilizadora que se alastrou por todo o continente, o
apelo a esta figura mítica.
A busca (ou espera?) pelo homem providencial é algo tão presente no
imaginário político da América Latina que até uma teoria de revolução surge atribuindo a um
116
GORENDER, J. op. cit. p. 80
117
Ibid. op. cit. p. 81
70
grupo de messias (note que, apesar do pequeno motor não ser uma ação individual o apelo é o
mesmo, pois recorre à ação de alguns “escolhidos” abnegados para romper com um estado de
coisas) a tarefa da libertação.
71
2.2 – ESPELHOS IDENTITÁRIOS
Entre os poucos sobreviventes do desastroso desembarque dos rebeldes
cubanos nas praias da província de Oriente, no extremo leste da ilha de Cuba, estava Ernesto
Guevara, o dico argentino que tornou-se um dos mais destacados comandantes
guerrilheiros ao lado do próprio Fidel Castro e Camilo Cienfuegos. A revolução e seus
personagens serviram de inspiração para os ativistas que, nas décadas de mil novecentos e
sessenta e mil novecentos e setenta, acreditavam no poder da guerrilha na luta contra o
imperialismo norte americano.
A imagem de Chesobreviveu ao desgaste da revolução cubana e ainda possui
uma força extraordinária. A descoberta de seus restos mortais, em 1997 (ano em que se
comemorava o trigésimo aniversário de sua morte), enterrados sob a pista de um aeroporto em
Vallegrande na Bolívia trouxe uma série de publicações a seu respeito, o mesmo acontecendo
em 1999 nos quarenta anos da revolução cubana.
A imprensa referiu-se, nestes momentos, sempre ao mitológico guerrilheiro”,
reconhecendo-o como mito político. Em 04 de janeiro de 1999, a Revista Época apresentou
uma reportagem onde destacou os líderes da revolução Cubana da seguinte forma:
“OS HERÓIS DA ESQUERDA
GUERRILHEIROS SE TORNARAM MITOS
Fidel Castro, Camilo Cienfuegos e Ernesto Che Guevara foram os três
principais comandantes militares da Revolução Cubana e marcaram o
imaginário da esquerda das décadas de 60 e 70. Morto em 1967 pelo Exército
na Bolívia, para onde o levara seu ímpeto revolucionário, Che Guevara ficou
preservado do desgaste do poder e sua imagem é associada à rebeldia até
hoje.”
A Revista Veja, em 9 de julho de 1997, numa matéria que foi capa com a
seguinte chamada: A ressurreição de Che Guevara, utilizou também o termo mitológico na
manchete:
“TRIUNFO FINAL DE CHE; COM A BUSCA DE SEUS OSSOS,
RESSURGEM AS IDÉIAS E AS AVENTURAS DO GUERRILHEIRO
MITOLÓGICO”.
Ainda em junho de 1997, a mesma revista em sua edição do dia 11, trazia, na
sua seção de livros, uma matéria onde comentava o lançamento de uma biografia sob o
seguinte título:
72
“DURO DE MATAR; SAI A MELHOR BIOGRAFIA DE GUEVARA, O MITO
DE ESQUERDA QUE SOBREVIVEU AO FIM DO COMUNISMO”
A figura de Che Guevara é reverenciada como a de um mito político.
Dificilmente encontra-se, trinta anos depois de sua morte, uma matéria na imprensa que não
se refira dessa forma a sua imagem.
De maneira bem mais discreta a imprensa brasileira tem se referido a Carlos
Lamarca também como um mito. Uma das vezes foi numa matéria sobre a morte do general
Emílio Garrastazu Médice, quando o jornalista comenta o combate ao “terrorismo”:
“O terrorismo brasileiro foi derrotado menos de um ano depois de ter
aparecido. Carlos Marighela, seu primeiro der, foi morto em 1969 e Carlos
Lamarca, sua Segunda figura mitológica, foi fuzilado no meio da caatinga
baiana em 1971, quando, esquálido e faminto, fugia em andrajos sem rumo
nem seguidores.”
118
A matéria apresenta erros como induzir que o “terrorismo” teria sido um surto
ocorrido em um período menor que um ano, mas cita mortes cujas datas ultrapassam este
intervalo de tempo, Marighela (04/11/1969) e Lamarca (17/09/1971), intervalo de um ano e
dez meses, mesmo assim, estas não são datas limites nem do início nem do fim da luta armada
contra a ditadura.
Outro momento em que Lamarca é reconhecido como mito foi em 2003
quando a Revista Veja trazia uma matéria sobre o perfil de Dilma Rousseff, ex-militante da
VAR-Palmares Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, escolhida como ministra das
Minas e Energia com quem o ex-capitão teve uma divergência que culminou num racha
dentro da organização, sendo então reorganizada a VPR – Vanguarda Popular Revolucionária:
“O capitão Carlos Lamarca, o maior mito da esquerda armada no Brasil, e
Iara Iavelberg, com quem o capitão manteve um tórrido e tumultuado
romance. Com Lamarca, Dilma Rousseff polemizou sobre os rumos da
guerrilha, numa famosa reunião realizada em Teresópolis.
119
As comparações entre Lamarca e Guevara ocorrem na imprensa quando em
geral percebem a similaridade de algum detalhe. No momento da descoberta do paradeiro dos
118
A mote de um símbolo. REVISTA VEJA. 16/10/1985. p. 36/41.
119
O cérebro do roubo do cofre. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. p. 36/37. 15/01/2003.
73
restos mortais de Che, o local onde ele foi morto lembrou, ao jornalista Dorrit Harazim da
Revista Veja, o cenário da morte do guerrilheiro brasileiro:
“Foi caçado como um bicho numa caatinga boliviana que lembra mais o
cenário da morte do brasileiro Carlos Lamarca, na mata rala do sertão
baiano, do que a do libertador cubano José Martí, apanhado por uma bala
perdida durante uma batalha”
120
Mas semelhanças podem ser encontradas em momentos anteriores, nos quais
destaques e seleções de imagens e trajetórias apresentam sincronias.
O argentino Ernesto Guevara saiu de seu país deixando para traz a carreira de
médico e a possibilidade de uma existência tranqüila e acomodada. Teve a infância marcada
pela asma, doença que levou a família a mudar-se de Rosário, onde nasceu, para Alta Gracia
em busca de melhor clima para o pequeno Ernesto; e pela disposição em alcançar objetivos,
enfrentava fortes crises de asma sem reclamar, e a determinação de, após a morte da avó,
formar-se em medicina com o intuito de ajudar as pessoas.
Nas biografias de Che, este espírito determinado e de superação, que não se
rendeu aos percalços causados pela doença, é sempre destacado, assim como seu gosto pela
aventura, suas viagens pela América Latina e o curso de medicina.
Depois de um encontro com Fidel, em 1956, no México, rumou para Cuba e,
ao lado do líder cubano, tornou-se um dos rostos da revolução cubana. A imagem dessa
vitória alastrou-se pela América Latina transformando-os em alvo de admiração e exemplo a
ser seguido por outros revolucionários do continente.
Após a vitória em Cuba e de um rápido período envolvido em trabalhos
administrativos e diplomáticos, Che retorna à guerra. Antes de sua morte nas selvas bolivianas
havia tornado-se símbolo de guerrilheiro capaz de abrir mão de usufruir de uma existência
segura e partir em busca da realização de seus ideais.
Entre os admiradores de Ernesto Guevara estava o capitão Carlos Lamarca.
Segundo os biógrafos Oldack Miranda e Emiliano José, no dia em que foi anunciada a morte
de Che, Carlos chegou em casa mais cedo e chorou copiosamente. Mas anunciava:
“Marina
121
, perdemos um dos maiores líderes internacionalistas, mas a vida é
assim, ou se morre ou se vence. Che Guevara morreu, mas deixa sua semente,
raízes que não morrerão.”
122
120
O triunfo final de Che. REVISTA VEJA. 09/07/1997. p. 88/97.
121
O nome correto é Maria Pavan, mas Lamarca a apelidou de Marina devido a música de Dorival Caymme
“Marina”
122
JOSÉ. E.: MIRANDA. O. op. cit. p. 42.
74
Lamarca acreditava na tomada do poder através da ação militar de um
pequeno, disciplinado e determinado grupo de homens servindo de vanguarda das massas na
condução da revolução. Quando retornou ao Quartel de Quitaúna, onde serviu pela primeira
vez e pediu para retornar após uma passagem pela PE Polícia do Exército em Porto Alegre
em 1964, onde respondeu um inquérito pela fuga de um preso político, o oficial da
aeronáutica Alfredo Ribeiro Daudt, o capitão reencontrou o sargento Darcy Rodrigues.
eram amigos desde 1962, quando serviram juntos ali mesmo. Lamarca vinha da Academia
Militar de Agulhas Negras e Darcy da Escola de Sargentos, fizeram parte de um círculo de
estudos políticos ao lado de oficiais e suboficiais do regimento. Para Oldack e Emiliano,
nesta época, 1962, acreditavam na inviabilidade de tomar o poder pela via pacífica.
Quando reencontraram-se em Quitaúna, Darcy estaria arregimentando
cautelosamente os recrutas de sua unidade através de um “clube de amigos”, meio encontrado
para discutir política dentro do quartel. Darcy, o cabo José Mariane, o soldado Zanirato e
Lamarca estavam convictos, conforme seus biógrafos, da necessidade de estruturar um foco
guerrilheiro, seguindo a teoria do foquismo de Che Guevara um pequeno grupo de homens
armados, disciplinados e bem treinados formam uma coluna guerrilheira numa área rural
servindo, assim, de catalisador das lutas populares até que se deflagre a guerra
revolucionária.
A crença na tomada do poder através das armas, a simpatia e admiração pelo
rebelde argentino dão à imagem de Lamarca condição de assumir o legado de Che, ou pelo
menos seguir seus passos.
Na constelação do Salvador, Girardet apresenta quatro arquétipos, entre eles
Sólon - o Legislador - ligado à construção de um modo de vida (deixado ou não como herança
por alguma figura do arquétipo de Alexandre, outro arquétipo). Sua função é ditar as normas
ou reavivá-las seguindo o exemplo dos “grandes ancestrais”. Lamarca, segundo seus
biógrafos, sugere, neste episódio, claramente uma herança, um legado que não poderia se
perder. Sua conduta segue os passos dados por Guevara mesmo depois do fracasso de sua
tentativa na Bolívia.
As sementes plantadas por Che não podem morrer. Essa herança, mesmo não
sendo assumida como sua, colocam em relação direta as duas figuras. Lamarca, o militar
rebelde insatisfeito com a conquista do poder pelos militares em defesa de uma ordem com a
qual não concorda, mesmo não sendo um legislador, é colocado em uma situação que o
credencia a receber o legado, pois é capaz de reavivá-lo. Guevara rompera com a inércia e
75
mostrava ser possível partir em busca da aventura, de realizar anseios, de transformar a
realidade social, mais ainda, chamava para esta aventura. Indicava os caminhos, trazia a
estratégia a ser usada.
Lamarca, convicto da necessidade de derrubada violenta do governo e da
transformação radical da sociedade, apresenta-se de arma em punho para escrever, com
sangue, seu nome na história.
O gesto de romper com o Exército não é suficiente para qualificar Lamarca
como herdeiro de CheGuevara. Além da disposição para a aventura de fazer a revolução,
outras semelhanças são destacadas, relacionadas, lembradas e comparadas. Algumas
comparações são aproximações através de simbologias, outras usadas para mensurar e julgar
as ações, ora glorificando, ora repudiando suas imagens.
76
2.3 – ANALOGIAS HISTÓRICAS... A REBELDIA E A TRAGÉDIA
Escola Preparatória de Cadetes de Porto Alegre.
Cadete Carlos Lamarca – 17 anos. 1957.
Buscando semelhanças em momentos anteriores, a hierofânia de cada, é
possível encontrar sugestivas aproximações.
O problema de saúde, no caso do brasileiro uma pneumonia dupla
diagnosticada como tuberculose, quando os médicos deram por desenganado o pequeno
Carlos e no caso do argentino uma asma que o acompanhou por toda a vida.
A família de Guevara foi bastante dedicada aos cuidados com o filho, de modo
que passaram a procurar, no país, cidades onde o clima fosse favorável ao garoto:
“A família mudava muito de cidade, em busca de um clima melhor para o
garoto, até parar em Alta García, na região serrana de Córdoba, onde ele vai
crescer.”
123
Dedicação que ocupa grande parte do tempo dos pais:
“À noite, muitas vezes Guevara Lynch
124
dormia sentado na cama do filho,
com a cabeça do menino pousada em seu peito para ajudá-lo a suportar os
ataques de asma. Ernesto tinha quatro irmãos e uma amistosa vida familiar
‘Nós vivíamos uma boa vida. Eu passava meu tempo com o menino. Ensinei-o
a atirar, a nadar e o levei para jogar futebol e rugby. Cuidava para que no
123
Os primeiros passos. CAROS AMIGOS ESPECIAL CHE GUEVARA. São Paulo: Casa Amarela. 1997.
Numero Especial 1. p. 4.
124
Ernesto Guevara Lynch, arquiteto e engenheiro civil, pai de Ernesto Guevara de La Serna, o CheGuevara.
77
verão passasse três horas por dia na piscina, para relaxar seus músculos do
peito e permitir que respirasse melhor’, recordou o pai, anos mais tarde”
125
Na biografia de Oldack Miranda e Emiliano José, este assunto é abordado sem
detalhar a dedicação, mas afirmando o favoritismo em torno do filho doente da seguinte
forma:
“Nascido no Estácio, bairro da zona norte do Rio de Janeiro, a 27 de outubro
de 1937, o menino Carlos Lamarca agitou a família com apenas dois anos de
idade: foi desenganado pelos médicos que o deram como tuberculoso.
Sobreviveu. Tratava-se de uma pneumonia dupla, mas a comoção tornou-o
favorito entre os seis filhos.”
126
O garoto Ernesto Guevara de La Serna também enfrentou a doença com galhardia:
“Nós escutávamos como ele ofegava, víamos como se deitava no chão para
facilitar a respiração. Mas jamais se queixava. Para ele, tratava-se de um
desafio.
Uma tia de Che.
127
Graças a determinação e disciplina, Lamarca superou seus problemas de saúde
e começou a demonstrar outras características de sua personalidade, diferenciando-se dos
demais irmãos:
“Seu irmão Walter Lamarca guardou dele a imagem de um garoto decidido.
Não gostava de perder e sempre conquistava a liderança nas brincadeiras de
rua”
128
Ao contrário de Che, um filho de classe média aristocrata e decadente, não era
um aventureiro, Lamarca era um rapaz pobre, filho de sapateiro responsável, disciplinado e
determinado o que o levou a ser o único dos filhos a concluir um curso superior. Se o cubano-
argentino abre mão da cidadania cubana, dos cargos de ministro e presidente do Banco
Central de Cuba, o brasileiro abriu mão de uma ascensão social significativa para um filho de
sapateiro do bairro do Estácio e da carreira que tanto desejou.
125
KELLNER, Douglas. OS GRANDES LÍDERES – CHE CUEVARA. São Paulo: Nova Cultural 1989. p. 15
et seq.
126
JOSÉ. E.: MIRANDA. O. op. cit. p. 33.
127
KELLNER, Douglas. Op. cit. p. 16.
78
As primeiras dificuldades enfrentadas pelos dois guerrilheiros mostram-os
como pessoas comuns. Suas doenças não eram moléstias raras mas servem para demonstrar a
determinação dos personagens em superar adversidades desde a infância. Os males os tornam
iguais, a superação os diferenciam.
Além do perfil individual de pessoas capazes de ultrapassar limites impostos
pelas enfermidades, este quadro revela uma realidade social: a incidência de doenças contra as
quais a população se obrigada a lutar cotidianamente, pois não são raras, ao contrário são
relativamente comuns e no caso da pneumonia de Lamarca capaz de levá-lo à morte.
Esta é a realidade com a qual deve-se romper e buscar não mais reconhecer-se
na carência de condições básicas de saúde, indignidade imposta à condição humana devido a
defesa de interesses econômicos e políticos. É um fundamento histórico que impele a ação, à
rebeldia. O conhecimento e a compreensão das dificuldades cotidianas justificam a rebeldia.
Como o mito não surge da natureza das coisas e tem a necessidade de possuir
elementos que possibilitem a apreensão dos significados das narrativas, percebemos a
primeira face das manifestações míticas deste núcleo: a igualdade. A mais famosa narrativa
de núcleo temático do Salvador é exemplar. Jesus Cristo se fez homem e nasceu em um local
pobre, ou seja, tornou-se um igual, capaz de sentir e viver da mesma forma que o mais
simples dos homens, não basta saber sobre as agruras sofridas. Diante o apelo da mãe para
transformar água em vinho respondeu que ainda não havia chegado sua hora, ou seja, sua
hierofânia, o momento de sua sacralização, do mito, de sua revelação, e isto se após o
batismo e uma viagem ao deserto quando torna-se o Messias. Após cumprir sua missão, vence
a tragédia e deixa um legado.
Os Salvadores a principio nada possuem de diferente até realizar-se a sua
hierofânia, mas são um solo fértil. Ou seja, tanto Che como Lamarca são pessoas de
existências comuns, entretanto possuem características que, em um dado momento, irão
diferencia-los.
O desejo de ajudar as pessoas aparece na construção da imagem de Lamarca na
escolha de sua profissão. É no Exército, segundo Oldack Miranda e Emiliano José, que
procura realizar esse desejo, mas, decepcionado, queixa-se a Maria Pavan:
“Eu vim servir ao Exército pensando que o Exército estava servido ao povo,
mas quando o povo grita por seus direitos é reprimido. Aqui, o Exército
79
defende os monopólios, os latifundiários, a burguesia. O povo é sempre
reprimido. Esse Exército é podre e eu não agüento mais...”
129
A biógrafa de Iara Yavelberg, Judith Lieblich Patarra, também relata o que o
filho de sapateiro do morro do Estácio no Rio de Janeiro buscava na carreira militar:
“Lamarca sacrificaria qualquer coisa pelo Brasil e encorajava os amigos
queridos a imitá-lo, desde a parcimônianos gastos e consumo de material
bélico, à convicção de serem seus guardiões. Tudo, ali, era a Pátria. Ao
abandonar o Exército, resgatava o que da Nação haviam usurpado, inclusive a
própria fé”
130
O tema da traição está presente nestas duas passagens de sua biografia. Não
traiu, ao contrário, rebela-se contra os traidores. Portanto podem unir-se a ele quem por
ventura compartilhar de sua opinião.
Para Che a opção foi motivada por um acontecimento familiar que despertou-
lhe o desejo de servir, no seu caso este servir é literalmente salvar vidas:
“Pensava em estudar engenharia, mas a morte da avó, à qual era muito ligado
e de quem assiste à morte, leva-o a decidir-se pela medicina.”
131
O momento quando começam a tornarem-se conscientes da necessidade de sua
ação ainda não é o momento de sua hierofânia. Essa conscientização aparece nas narrativas
biográficas como sendo momentos, uma transformação íntima, anterior e necessária. Che, no
seu retorno da viagem pela América Latina ao lado de seu companheiro Alberto Granado,
grafou em seu diário:
“A pessoa que tomou estas notas morreu no dia em que pisou novamente o
solo argentino. A pessoa que está agora reorganizando e polindo estas mesmas
notas, eu, não sou mais eu, pelo menos não sou mesmo que era antes. Esse
vagar sem rumo pelos caminhos de nossa Maiúscula América me transformou
mais do que me dei conta.”
132
A politização de Che se através de uma experiência pessoal no contato com
as vicissitudes da vida na América. Nos relatos sobre Carlos Lamarca há também uma
viagem.
129
JOSÉ. E.: MIRANDA. O. op. cit. p. 34.
130
PATARRA, Judith Lieblich, IARA – REPORTAGEM BIOGRAFICA. p. 304
131
Os primeiros passos. CAROS AMIGOS ESPECIAL – CHE GUEVARA. São Paulo: Casa Amarela. 1997.
Numero Especial 1. p. 4.
132
GUEVARA, Ernesto Che, DE MOTO PELA AMÉRICA DO SUL, p. 14
80
Lamarca, então segundo-tenente, teve em sua viagem ao canal de Suez, na
cidade de Rabah, em 1962, com as tropas da ONU, a mesma experiência transformadora. No
livro de Oldack Miranda e Emiliano José, o motivo desta viagem foi a necessidade de
aumentar o soldo, entre outras coisas porque Maria estava grávida pela segunda vez. Para
Judith Lieblich Patarra os problemas financeiros eram em decorrência de uma misteriosa
doença de Maria Pavan, algo nos rins. Por duas vezes, antes da viagem, alguns amigos teriam
enfiado um pouco do soldo no envelope do pagamento de Carlos e emprestavam-lhe calças e
camisas, porque seus trajes eram muito surrados. Segundo os autores de Lamarca – O
Capitão da Guerrilha, ele comentava a viagem em seu círculo de amigos da seguinte forma:
“Foi ali – disse um dia – ‘que tomei maior consciência da pobreza’”
133
No filme de Sérgio Rezende, esta viagem é mencionada por duas vezes: a
primeira em uma reunião de agentes da repressão onde afirmam ter sido uma experiência
marcante, e outra quando, conversando com o pai, conta a miséria que presenciou explicando
a imagem recorrente utilizada pelo cineasta: aparece uma mulher árabe carregando uma
criança no colo e acompanhada por outra caminhando pelo deserto.
Ao tomar consciência da miséria, rebela-se também com a sua existência de
classe média com perspectiva de ascensão social ao construir uma carreira estável no Exército
e omitindo-se ante a injustiça que presencia. O mesmo poderia ocorrer ao jovem médico
argentino, filho de aristocratas decadentes, cuja profissão poderia garantir algum prestígio
social e comodidade financeira.
Não se reconhecem neste estado de coisas, suas rebeldias não são apenas em
relação a situação política, com a qual evidentemente não concordam, para além dessas
divergências o que os motiva é o contato direto com a miséria da população. Não é o fato de
serem adeptos de uma teoria política que os mostra capazes de realizar a salvação e sim a ação
direta.
O prenúncio messiânico de uma sociedade igualitária evidentemente compõe o
poder de sedução de suas figuras míticas, mas sem a ação, a tragédia, o gesto exemplar, ou
seja, o fundamento histórico do mito, podemos garantir realmente o destaque que ambos
possuem na história política do continente? Dificilmente.
Veremos adiante, na seleção de momentos biográficos, algumas semelhanças
que são destacadas além da posição política de embasamento teórico ou vínculo partidário.
133
JOSÉ. E.: MIRANDA. O. op. cit. p. 36.
81
Tanto Lamarca quanto Che casaram duas vezes cada. A primeira esposa de
Che foi Hilda Gadea Costa com quem teve uma filha, Hildita, posteriormente casou-se com
Aleida March, militante da facção Llano, a mais detestada por Ernesto entre todas no âmbito
da revolução cubana.
Lamarca casou-se com Maria Pavan, depois, já durante a clandestinidade, teve,
dentro das possibilidades do momento, um relacionamento estável com Iara Yavelberg,
psicóloga e professora universitária, militante da VPR – Vanguarda Popular Revolucionária
da qual o ex-capitão tornou-se dirigente.
Hilda esteve com Che na Guatemala e o teria colocado em contato com os
cubanos que pretendiam derrubar a ditadura de Fulgêncio Batista após uma noite inteira
conversando com o jovem advogado chefe do grupo, Guevara era seu médico na expedição.
Entretanto, apesar desse papel fundamental, a pequena militante peruana, mãe de Hildita, não
é destacada como a mulher providencial. Este papel está destinado a Aleida March, uma
mulher voluntariosa e corajosa, também vaidosa e muito atraente que conquistou o amor do
lendário guerrilheiro expondo-se durante os combates em Sierra Maestra e demonstrando sua
valentia. Após a vitória, tornou-se a mãe dedicada, mas cúmplice nos “sonhos” do marido.
Lamarca casou-se com a amiga de infância, Maria Pavan, que o ajudou a seguir
a carreira militar. Segundo seus biógrafos, o casamento foi em sigilo, pois era proibido aos
cadetes da Academia Militar de Agulhas Negras, porém devido a gravidez da namorada foi
realizado. Maria Pavan negou ao cineasta Sérgio Rezende que estivesse grávida, ao contrário
disse haver permanecido virgem durante seis meses para não prejudicar a carreira do marido
com uma gravidez indesejada.
Grávida ou não, o papel de Maria Pavan, na biografia de Lamarca, é muito
parecido com o de Hilda Gadea na de Che, ambas foram arrimo dos primeiros sonhos, mas
limitadas ao papel da companheira de um casamento sacerdotal. Maria afirma que foi educada
para ser “mãe de família e não heroína”
134
A imprensa explorou, à época de sua morte, a ligação entre Lamarca e Iara
como sendo uma traição a Maria de quem, segundo a imprensa controlada pela ditadura, o ex-
capitão reclamava dizendo ter se casado com uma mulher e vivido com uma enferma.
Iara, assim Aleida, era uma mulher vaidosa e muito atraente. Ingressou na luta
armada, foi orientadora do grupo de Quitaúna composto por Lamarca, sargento Darci
Rodrigues, cabo José Mariane e o soldado Zanirato. Militante da VPR, do MR-8, tornou-se
134
LEITE, Paulo Moreira. Do fundo das trevas REVISTA VEJA, 04/05/1994. P. 118/119.
82
uma das mulheres mais conhecidas entre as mulheres que pegaram em armas contra a
ditadura, morreu em Salvador, no dia 20 de agosto de 1971, a versão oficial fala em suicídio.
É uma das poucas mulheres que lutaram contra a ditadura a tiveram uma
biografia. Escrita por Judith Lieblich Patarra, Iara – Reportagem Biográfica, conta a trajetória
da judia do bairro da consolação, o prematuro casamento, os primeiros motivos que a levaram
a participar de atividades políticas, o interesse pelo teatro, o desejo de ser mãe, os namoros,
enfim, toda sua singularidade. No entanto seu nome é reconhecido em função de sua ligação
com Carlos Lamarca.
Durante os trabalhos da Comissão de Mortos e Desaparecidos, não foi possível
exumar seu corpo devido a motivos religiosos, afinal sendo judia, significaria a profanação do
corpo, considerado sagrado pelos judeus. A família afirma que, exatamente por motivos
religiosos, continua tentando provar que não houve suicídio e sim assassinato para poder
retirar sua sepultura da ala destinada aos suicidas, próxima ao muro do cemitério.
Samuel Yavelberg, irmão de Iara, falou a imprensa que a família brigou na
justiça, em outros processos, durante 13 anos, para conseguir exumar o corpo, ao
conseguirem, a manchete do Jornal Folha de S. Paulo do dia 23 de setembro de 2003 era a
seguinte:
“CORPO DA MULHER DE LAMARCA É EXUMADO”
Mesmo possuindo uma trajetória própria dentro do movimento armado e até
posteriormente tendo uma situação singular pelas dificuldades encontradas pela família para
reconhecer as condições em que ocorreu sua morte, Iara tem sido reconhecida através de sua
ligação com Lamarca.
Em alguns casos, na época do processo de demonização de Lamarca, Iara era
apontada pela imprensa como o cérebro por trás da imagem de grande líder. Até outro
personagem lendário, o famigerado Cabo Anselmo, afirmou que, no encontro com o casal saiu
com a seguinte impressão:
“...A Iara era muito amorosa, maternal. Do Lamarca com a Iara, o que eu
percebi é que a Iara era dominante naquela relação. Politicamente, era a
pessoa que estava dando força para o Lamarca de uma maneira carinhosa.
Era um tipo de mãezona, companheira. Líder daquela dupla política.”
135
135
SOUZA, Percival de. EU, CABO ANSELMO. São Paulo: Globo. 1999. p. 159.
83
A afirmação do notório delator em 1999, mesmo tendo a intenção de
desqualificar o político Lamarca reduzindo-o a um homem de ação, assim como as
reportagens do momento da luta evidenciam a importância da imagem da ligação entre
Lamarca e Iara. Um casal sacerdotal.
A imagem de casais sacerdotais cujos filhos são toda a humanidade renovada, é
apresentada por Girardet na constelação da Unidade. É a imagem:
“Da condenação do casamento burguês à visão redentora do casal sacerdote,
guia espiritual de uma humanidade renovada”
136
Para compor o casal sacerdotal, a mulher deve apresentar os mesmos atributos
do homem, ou seja, a versão feminina de um messias. Iara, politizada, militante, apresenta o
perfil ideal para isto.
A condenação do casamento burguês não foi explorada de maneira abrupta
pelos biógrafos de Lamarca. Maria é conformada, como vimos, com o papel de mãe de
família, foi a mulher que possibilitou os estudos e a carreira militar de Carlos, mas por ela, o
ex-capitão nutria um amor fraternal e não a paixão capaz de servir de guia espiritual.
Maria, mesmo não sendo o perfil da mulher-messias, ajuda na construção do
personagem mítico Lamarca, pois, é na sua companhia que aparece o chefe de família,
atencioso e preocupado com a educação dos filhos, cuidadoso com a esposa. No livro de
Oldack Miranda e Emiliano José, a relação com Iara é assumida em junho de 1969 com uma
frase que mistura desabafo e respeito: “não queria trair Maria, amava Iara”.
Aos olhos de quem busca uma identidade através da fidelidade a uma imagem,
cujos gestos apresentam-se exemplares, a relação entre o capitão e a psicóloga é legitimada
pelo sentimento da paixão e pela doação à causa da revolução. Lamarca escreve a Iara, no seu
“diário”, consolando-a por não ter sido confirmada a gravidez que esperavam:
“O nosso amor não está isolado na realização de nós dois nem nos milhares
de filhos que teremos, ele nasceu e estava umbilicalmente ligado à revolução e
construção do socialismo”
137
Uma contradição acompanha as narrativas sobre o início dessa união. Oldack
Miranda e Emiliano José, autores de Lamarca: O capitão da guerrilha, o fazem nenhuma
referência a participação de Iara Yavelberg no grupo de estudos, dizem que eles só se
conheceram em abril de 1969. No livro de Judith Lieblich Patarra, Iara: Reportagem
136
GIRARDET. R. op. cit. p. 173.
84
Biográfica, a bela psicóloga aparece como designada, em outubro de 1968, pela organização
armada VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) para prestar assistência teórica ao grupo
em substituição a Renata Guerra de Andrade que acompanhava o grupo desde os primeiros
meses de 1968.
Judith Lieblich Patarra, no entanto, aponta que, antes deste encontro no grupo
de estudos, Lamarca e Iara se conheciam. Este primeiro contato teria sido em um final de
semana quente de 1962, quando Iara, ainda estudante, foi ao quartel acompanhada de Antônio
José Figueiredo o Tom Figueiredo irmão do capitão do RI de Quitaúna Afonso
Figueiredo - e alguns amigos para utilizar a piscina. Tom relata que após a piscina formaram
uma roda de conversa da qual participou o oficial-de-dia, um jovem tenente muito amigo de
seu irmão e que teria sido ele Tom quem os apresentara. O jovem tenente era Carlos Lamarca.
NANI, Rodolfo. Iara na casa de Rodolfo Nani. 1968.
Luiz Maklouf Carvalho em Mulheres Que Foram a Luta Armada, ao militante Espinosa o
mérito de ter apresentado Lamarca a Iara, na casa da professora universitária e diretora de
teatro Heleni Telles Ferreira Guariba (que constava na lista dos desaparecidos políticos e teve
a responsabilidade de sua morte reconhecida em anexo da lei 9140/95), sem precisar a data
137
Diário de Carlos Lamarca. JORNAL FOLHA DE S. PAULO. Folhetim. São Paulo. n. 543. 10/07/1987. P.
85
em que isto teria ocorrido. Enfim, trata-se de uma união celebrada nos jogos de seleção de
quem recorda
Departamento de Assuntos Históricos, Conselho de Estado de Cuba. Última foto oficial. 1965. Che, com o
filho Ernesto, Camilo, Aliuska e Aleida com a filha Célia.
Além de toda a humanidade renovada, os filhos de Che e Lamarca também são
herdeiros do legado e fazem parte de seus projeto. O destaque para o convívio entre pais e
filhos mostra-nos a educação dada a eles, uma relação entre o pessoal e o universal, entre os
filhos biológicos e aqueles renovados através da adesão e da fidelidade.
Algumas cartas de Lamarca e Che foram selecionadas para demonstrar o afeto
desses pais com seus filhos. Não é algo ilógico um pai escrever aos filhos, principalmente
quando está em uma situação de extrema pressão psicológica, com os sentimentos à flor da
pele, o que chama a atenção é que estas que vieram a público contém traços e preocupações
comuns
138
.
O início da carta de Lamarca traz uma explicação sobre o que é ser um
revolucionário:
“O que é um revolucionário? É toda pessoa que ama todos os povos, ama a
Humanidade, tem uma imensa capacidade de amar, ama a Justiça, a
Igualdade. Mas ele tem de odiar também, odiar aos que impedem que o
revolucionário ame, porque é uma necessidade amar.”
B-3.
138
As cartas de Lamarca foram publicadas na biografia escrita por Oldack Miranda e Emiliano José. As de Che
foram extraídas da coleção Pensamento Vivo de. CHE GUEVARA. o Paulo: Martin Claret, p.17 et. seq.
86
Na carta de despedida aos filhos, Che comenta sobre qual julga ser a qualidade
mais linda do revolucionário:
“Sobretudo, sejam sempre capazes de sentir, no mais profundo, qualquer
injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. É a
qualidade mais linda de um revolucionário.”
O amor revolucionário é abordado diretamente neste trecho. É um amor que
age, que exige uma atuação. É o “amar ao próximo como a si mesmo”.
No segundo parágrafo da carta de Lamarca, duas passagens são marcantes.
Primeiro:
“O revolucionário ama a Paz, faz a guerra como instrumento para ter a Paz, a
Paz Justa, sem exploração do homem pelo homem.”
Neste trecho, é notável que um chavão para se referir ao capitalismo foi
utilizado exploração do homem pelo homem”. Na carta a Hildita, a mesma mensagem é
utilizada por Che, temos a seguinte passagem:
Eu não era assim quando tinha a tua idade, mas vivia numa sociedade
diferente, onde o homem era inimigo do homem”.
A segunda passagem é quando Lamarca comenta sua adesão à luta
revolucionária;
“Quando sentirem saudades de mim, lembrem-se que aqui no Brasil existem
muitas crianças que passam fome, que andam descalças, sem escolas, que
sofrem e vêem seus pais sofrerem. Lembram-se quando conversei com vocês no
quarto e pedi a vocês que deixassem eu lutar para acabar com isso. Eu me
lembro bem que a Claudinha bateu palmas e o Cesar disse: ‘Muito bem,
papai’.”
Che também cita sua atuação aos filhos e aponta sobre a atitude que devem ter
em relação a isto na carta a Hildita:
“Deves saber que estou e estarei durante muito tempo longe de ti, fazendo o
que posso para lutar contra nossos inimigos. Não que seja muita coisa, mas
alguma coisa estou fazendo e creio que poderás sempre te orgulhar de teu pai,
assim como eu me orgulho de ti.”
No terceiro parágrafo, Lamarca diz aos filhos o que espera deles:
87
“Vocês são felizes porque a mãe e o pai são revolucionários e vocês têm que
ser também. Amem muito a mamãe, eu o posso beijá-la, todos os dias de
manhã beijem duas vezes a ela, uma vez por mim.”
Na carta a seus filhos, Che é mais incisivo:
“Cresçam como bons revolucionários.”
E na carta a Hildita:
“Enquanto isso, tens que preparar-te, ser muito revolucionária, o que na sua
idade significa aprender muito, o mais que for possível e estar sempre pronta
para apoiar as causas justas.”
No quarto parágrafo, Lamarca chama a atenção dos filhos para os estudos e
para a justiça:
“então estudem mais, perguntem tudo o que não entenderem, perguntem
sempre o porquê das coisas perguntar e pensar ver se é certo, se não for,
falem, discutam – ver se é justo, se não for lutem para mudar.”
Após alguns comentários sobre particularidades de cada filho, Lamarca um
conselho que está diretamente ligado à doutrina pela qual optou:
“Não chamem ninguém de senhor porque ninguém é senhor de ninguém. Mas
ouçam os mais velhos e procurem fazer as coisas melhores que eles, porque
tudo que é novo é superior ao velho.”
O novo superior ao que é velho é uma alusão a evolução da sociedade tal qual é
vista no marxismo. Somado ao conselho anterior sobre os estudos, Lamarca refere-se
literalmente à análise de modificação da natureza pelo homem.
Che novamente é mais direto, quando dá o mesmo conselho:
“Estudem muito para poder dominar a técnica que permite dominar a
natureza.”
Após comentar algumas particularidades dos filhos, Lamarca encerra a carta
com um último conselho em forma de pedido aos filhos;
“A maior alegria que vocês podem me dar é aproveitar muito o estudo,
preparando-se para fazer a revolução em qualquer país.”
88
Esta revolução mundial é abordada por Che no mesmo parágrafo em que fala
a Hildita sobre o amor revolucionário.
As cartas podem ser lidas não apenas pelos filhos biológicos, o didáticas,
servem também aos herdeiros de uma ligação sacerdotal. O sentimento revolucionário, a
definição do que vem a ser revolucionário, a teoria pela qual pensavam chegar a uma nova
sociedade, a educação a ser dada à renovada humanidade.
A mensagem das cartas não se limita a relação afetiva entre pais e filhos. Esta
relação revela um amor “maior”, revolucionário, sem limites ou ligações diretas, um amor que
se quer universal.
89
2.4- SÍMBOLOS DE VIDA E MORTE.
Há outros detalhes que se assemelham nas biografias de Lamarca e Che.
Alguns apenas curiosos como a preferência por jogar futebol na posição de goleiro, outros
com um sentido mais simbólico como o local da morte.
Lamarca foi morto na caatinga do sertão baiano, num lugarejo chamado
Pintada, no município de Oliveira dos Brejinhos. Estava deitado sob a sombra de uma
baraúna, ao lado de José Campos Barreto. Vegetação seca, lugar isolado e miserável. A
baraúna destaca-se na paisagem.
Bancos de Dados Jornal Folha S. Paulo. Lavrador aponta o local da
morte de Lamarca. 1971.
Che, após sua execução, foi levado para a lavanderia de um hospital, em
Vallegrande, para ser exposto à população. Devido à sujeira, foi lavado no chão, em um
terreno nos fundos. Dizem que um pinheiro teria nascido de sementes que ele trazia no bolso e
caíram ao solo.
90
HAZARIM, D. Pinheiro Milagroso. 1997
Pinheiro nascido no local onde foi lavado o
Corpo de Che.
A simbologia da árvore como fonte de vida é destacado por Girardet , as raízes
que buscam, no fundo da terra, a essência da vida que se vê nos galhos frondosos:
“A raiz que aspira dirigir ao céu o sumo da terra, mas que cresce no reino
subterrâneo dos mortos, é percebida simultaneamente como força de vida e
força tenebrosa”
139
As árvores, nos casos de Lamarca e Che, demonstram a continuidade da vida
que deveria ter cessado naquele local.
No caso de Ernesto Che Guevara a frondosa árvore é, como a pequena
lavanderia, visitada por pessoas de vários países. Um projeto turístico denominado La Ruta
del Che”
140
acredita que encontrará interessados na geração de 68” que ...se achavam
idealistas quando jovens e hoje estão casados com filhos crescidos. Profissionais liberais
em boa situação financeira em busca de alguma causa esquecida”
141
ou sem a determinação
para romper com a própria existência bucólica.
A baraúna, sob a qual Lamarca descansava, não foi transformada em ponto
turístico, contudo bastante lembrada na Comissão de Mortos e Desaparecidos. João Queiroz,
policial, em 1971 em Brotas de Macaúbas e delegado, em 1996, declarou a imprensa que
139
GIRARDET. R. op. cit. p. 16.
140
HARAZIM D. O triunfo final de Che REVISTA VEJA. São Paulo: abril. p. 88/97.
141
HARAZIM D. O triunfo final de Che REVISTA VEJA. São Paulo: abril. p. 88/97.
91
havia muitas marcas de balas na baraúna
142
. Este depoimento mais o do ex-carcereiro Genésio
Nunes Araújo, de que foram apenas duas rajadas rápidas, portanto, sem tempo para haver o
diálogo entre o major Nilton Cerqueira e o “terrorista caçado” que aparece no relatório oficial
da “Operação Pajussara”.
LIMA, Agliberto C. Menino aponta o local onde Lamarca foi assassinado.
1979
Oldack Miranda e Emiliano José visitaram o local da morte de Lamarca e
mostram, no livro, a foto de um garoto que, oito anos após, aponta com exatidão o local do
tiroteio.
A árvore, no caso do brasileiro, está ligada à tragédia. Não houve a
sacralização do local, sua lembrança é a presença no local da morte. Ela não marca o local, ela
estava presente no local, testemunha o fim físico e simboliza a continuidade.
Algumas semelhanças são resultado de aproximações, como no caso dos
diários. Che tinha o hábito de escrever diários, os mais famosos são: o diário da campanha na
Bolívia e o da viagem de moto pela América do Sul. Lamarca não escreveu diários, mas uma
coleção de cartas diárias, endereçadas a Iara Yavelberg foram transformadas” no “diário de
Lamarca” pela imprensa
143
:
Para o jornalista Élio Gaspari estas cartas são um documento único:
“Documento único na historiografia brasileira, essas cartas contam o estado
de ânimo de um revolucionário derrotado que corre em direção ao nada,
cavalgando sua utopia sem recriminações que mascarassem fracassos nem
dúvidas que amortecessem perigos. Pela aparência macerada e pela marcha
142
Carcereiro e Policial contestam Exército JORNAL FOLHA DE S. PAULO. o Paulo. 15/16/1996. P. 1-11.
Brasil.
143
Diário de Carlos Lamarca. JORNAL FOLHA DE S. PAULO. Folhetim. São Paulo. n. 543. 10/07/1987. P.
B1/B12
92
sem rumo, o Cirillo do sertão baiano move-se como um desesperado, mas
aquele que se mostrou nas cartas é um homem feliz, desempenhando o papel
de herói que se impusera e cultivara.”
144
O comentário do jornalista afirma que a fama de Lamarca fora cultivada pelo
próprio quando a ditadura controlava a imprensa. Nem mesmo estas cartas são documento
único sobre o cotidiano de organizações de esquerda. O Partido Comunista sofreu com o
chamado processo das cadernetas, pois o ex-secretário geral, Luís Carlos Prestes, tinha o
hábito de anotar nomes, codinomes, episódios, observações. O diário, no entanto, serve para
colocar o leitor muito próximo da figura admirada ou desprezada, porém possibilita uma
reorganizações oníricas das imagens.
A famosa foto de Alberto Korda e a capa do livro de Emiliano José e Oldack
Miranda também foram aproximadas.
A foto de Che foi feita em um ato público pela morte de 136 pessoas quando
explodiu um artefato em um navio francês que descarregava armas em Cuba. Como o
pensador francês Sartre estava em Cuba, construíram uma tribuna. Nela estavam todas as
figuras do governo, Che estava um pouco atrás, em segundo plano, de repente, quem estava
na sua frente saiu, ele vem a frente, olha a multidão e retira-se novamente para o fundo do
palanque. Neste momento, o atento fotógrafo dispara o obturador da câmara e tira dois
retratos
145
, um deles tornou-se a mais conhecida fotografia do mundo.
A capa do livro de Emiliano e Oldack é uma gravura feita por Elifas Andreatto
a partir de uma foto para documento. Essa fotografia é a imagem mais conhecida de Lamarca,
juntamente com as fotos dos treinamentos de tiro para funcionários do Bradesco. Na
fotografia, ele está vestido com um surrado terno e um ar cansado.
144
GASPARI. E. op. cit. p. 351.
145
Caros Amigos Especial – Vida e Morte de Um Mito CAROS AMIGOS. São Paulo: Casa Amarela 10/1997.
93
Banco de Dados do Jornal Folha S. Paulo. Lamarca.
Korda, A. – Che
ANDREATO, Elifas. - gravura capa do livro Lamarca – O Capitão da Guerrilha de Emiliano José e Oldack
Miranda. 1980.
A gravura de Elifas traz Lamarca vestido com uma camisa vermelha, os
cabelos mais desgrenhados e o ar de cansaço desaparece. A cor vermelha é uma referência à
bandeira comunista. Também o retrato de Che exposto em ginásios, na parede do Ministério
do Interior em Cuba, recebe um tom avermelhado, ao fundo. Ambas as imagens sofrem,
portanto, um processo de reconstrução no qual o discurso faz claras referências ao
comunismo, opção política dos movimentos armados.
Outra imagem foi muito divulgada nos processos na Comissão de Mortos e
Desaparecidos no Regime Militar. Os cadáveres de Che e Lamarca. As fotos relembram ainda
o quadro Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp, sec. XVII, de Rembrandt.
94
Revista Veja “O terrorista esfomeado, no IML: cena que lembra Rembrandt (acima à dir.) e Che Guevara
A semelhança da cena é evidente. Os corpos sobre uma mesa ou maca
mortuária são examinados por algumas pessoas. A comprovação e a exposição da morte, o
corpo chegou ao fim de sua missão. Apresentados em um momento de disputa da legitimidade
das ações de cada um dos lados, estes cadáveres possuem vida. Lamarca, o centro das
discussões sobre as indenizações e a legitimidade do Estado democrático em oposição ao
Estado de Exceção; Che vive nos ideais; no quadro, uma aula de vida através da morte; o
mesmo contraste.
As pessoas que viram os cadáveres se impressionaram com um detalhe, ambos
tinham os olhos abertos. Mesmo que isto seja algo comum, o fato é que este detalhe passou a
ter uma significação para estas pessoas. Detalhe percebido pelo boliviano de Vallegrande Juan
Escalante ao visitar o corpo de Che exposto na lavanderia do hospital: “Pode soar absurdo,
mas ele tinha algo de vivo - parecia nos olhar de frente”
146
, nem aos jornalistas Percival de
Souza, Inajar de Souza e José Roberto que cobriram o episódio da morte de Lamarca no
sertão baiano: “De olhos abertos, morto”
147
. O contraste entre o corpo morto e os olhos
abertos é expressivo.
Aproximando as imagens de Che e Lamarca compartilham-se as virtudes, ou os
vícios, que se possam atribuir tanto a um quanto a outro:
A categoria de representação figurada não é um dado imediato do espírito
humano, um fato da natureza, constante e universal. Trata-se de um quadro
mental que, em sua construção, supõe que se tenham singularizado e
delineado nitidamente, em suas relações mútuas e em sua oposição comum ao
146
HARAZIM, D. O triunfo final de Che. REVISTA VEJA São Paulo: Abril 09/07/1997, p. 88/97.
147
Xerox de jornal no processo da Comissão de Mortos e Desaparecidos, p. 155.
95
real, ao ser, as noções de aparência, de imitação, de semelhança, de imagem,
de simulacro.
148
O mito político é polimorfo e significações opostas são comuns e também parte
da construção da imagem mítica:
“As referências temáticas são as mesmas, mas suas tonalidades afetivas e
morais acham-se subitamente invertidas”
149
Os personagens ticos de Lamarca e Che nem sempre sofrem uma
aproximação de reconhecimento da similaridade de suas ações. Por vezes, são colocados
confrontando-se.
Caso ocorrido no momento do processo para o reconhecimento da
responsabilidade do Estado na morte do ex-capitão quando a articulista do Jornal Folha de S.
Paulo, Marilena Filinto, ao comparar as figuras dos cadáveres de Lamarca e Marighella, diz
ser impossível retirar de seus corpos contorcidos heróis, como foram para ela, na juventude,
os barbudos de Sierra Maestra:
“Fatos antigos, que não se renovam, que não causam perturbação nos espíritos
das gerações seguintes: como transformar em heróis os corpos crivados de bala,
as caras contorcidas e torturadas de Carlos Lamarca e Carlos
Marighella?(...)Nossa paixão por Castro e Guevara era romântica e ideológica.
Desejávamos fisicamente aqueles homens barbados, armados e amoitados no
escuro da Sierra Maestra. .”
Admirávamos a luta ousada contra os ianques. Líamos em voz alta as palavras de
Fidel Castro: ‘A justiça continuará a ser feita, até que todos os criminosos do
regime de Batista tenham sido julgados... Se os norte-americanos não estiverem
gostando do que está acontecendo em Cuba, eles poderão desembarcar os
‘marines’ e, então, haverá 200 mil gringos mortos.’
150
Para a autora, os rebeldes brasileiros e a “história falsificada do Brasil” foram
incapazes de despertar sonhos, fantasias e até paixões, como os rebeldes da revolução cubana
despertaram. Como transformar em heróis os corpos crivados de bala, as caras contorcidas e
torturadas de Carlos Lamarca e Carlos Marighella?
Mesmo não estando presente no passado afetivo da autora como imagem na
qual se tem uma intimidade protetora, este papel é reservado aos cubanos, é em dialogo com
148
VERNANT Jean-Pierre ENTRE MITO & POLÍTICA; 2 ed. o Paulo; Editora da Universidade de São
Paulo, 2002, p. 310.
149
GIRARDET. R. op. cit. p. 16 et. seq.
150
FELINTO, Marilene. Lamarca, Marighella e meus homens de Cuba JORNAL FOLHA DE S. PAULO
09/07/96 cad. 2 pag. 3.
96
a imagem dos corpos contorcidos que se mobiliza a escrever sobre o “seu” passado,
“enobrecido” pela presença dos vitoriosos Che e Fidel, afinal esse artigo foi publicado dois
dias após a descoberta do laudo cadavérico do ex-capitão em um momento de grande
evidência de sua figura durante o julgamento da responsabilidade do Estado pela morte de
desaparecidos políticos na Comissão de Mortos e Desaparecidos do Ministério da Justiça
Para a jornalista, os rostos dos cubanos são mais cativantes, trazem estampadas
imagens belas e vitoriosas tão próximas de um sonho adolescente. Nos contorcidos rostos de
Lamarca e Marighella a imagem da tragédia e a falsidade de uma história incapaz de
despertar sonhos e paixões, como as românticas imagens dos cubanos.
Outra comparação entre os dois guerrilheiros foi feita por Élio Gaspari
criticando a morte do tenente Mendes no Vale do Ribeira. Para o jornalista, levá-lo junto e
transformá-lo de prisioneiro de guerra em refém foi ultrapassar o limite entre o guerrilheiro e
o bandido comum. Invoca a figura de Che para condenar a ação do rebelde brasileiro:
“(...) Para ficar dentro da historiografia dos rebeldes, um exemplo é a captura
pela guerrilha do Che Guevara, em duas ocasiões diferentes, de um total de
trinta militares bolivianos. O Che interrogou dois oficiais que ‘falaram como
papagaios’ e deixou todos os prisioneiros no mato. Seis meses depois, feito
prisioneiro, foi assassinado. Disso derivou em boa parte sua lenda heróica”
151
Diferente do depoimento da articulista (argumentos afetivos justificam sua
preferência) que encontra, nas imagens dos guerrilheiros de Sierra Maestra, motivos para
uma paixão juvenil e espontânea.
Élio Gaspari julga as ações buscando em uma construção empírica a
legitimidade de seu julgamento. Omite detalhes da ação de Lamarca, por exemplo que estava
num cerco, situação na qual Che nunca esteve, nem em Cuba, nem na Bolívia. Guevara
sempre esteve em um front, ou seja uma frente de combate onde o recuo e a fuga eram
possíveis. Também a tentativa de emboscada preparada pelo tenente quando retornou ao
encontro dos guerrilheiros e de seus soldados que foram feitos prisioneiros em um primeiro
confronto, sendo todos liberados.
Lamarca, ao sair da área, levou consigo outros prisioneiros deixados
desarmados e amarrados na Marginal do Tietê, fato discretamente lembrado duas páginas a
diante, da mesma forma que Che em relação aos dois oficiais.
Guevara, quando foi cercado, acabou assassinado, como o próprio jornalista
narra. A proposta então é deixar-se matar para alimentar uma lenda heróica intencionalmente?
97
Na análise de Élio Gaspari uma cobrança da imagem de Lamarca como herói imaculado,
pois o jornalista julga essa uma construção deliberada, como vimos, feita pelo próprio ex-
capitão em torno de si.
Segundo Girardet:
“Lenda dourada ou lenda sombria, a veneração ou a execração alimentam-se
dos mesmo fatos, desenvolvem-se a partir da mesma trama. Entre as duas
versões, entre Napoleão, o Grande, e Ogro da Córsega, não mais que uma
oposição de ponto de vista:..”
152
Lamarca e Che não são sempre vistos da mesma forma. O rebelde argentino
conheceu a vitória em um acontecimento que tornou-se referência para o continente. Ao abrir
mão de cargos e poder aumentou a aura de romântico aventureiro.
Lamarca realmente não aparece como a figura de um vencedor político. Sua
imagem está relacionada com a tragédia de vários movimentos guerrilheiros, alguns
inspirados no sucesso da revolução cubana, que foram derrotados pelas ditaduras instaladas na
América Latina.
Na denúncia da Operação Condor, ação de cooperação entre os órgãos de
repressão política das ditaduras da América Latina, Lamarca aparece ao lado de Augusto
Pinochet e Fenando Henrique Cardoso.
DIEGUEZ, C.; SOARES, L.. Revista Veja. 24/05/2000.
151
GASPARI, É. Op. cit. p. 198
152
GIRARDET. R. op. cit. p. 16.
98
A imagem da tragédia de quem lutou e foi derrotado pela repressão das
ditaduras da América Latina não é representada por Che e sim por Lamarca. Apesar da
derrota do guerrilheiro argentino, sua imagem está mais relacionada com a vitória em Cuba e
a rebeldia que de sua trágica derrota.
O mitológico guerrilheiro cubano não serviu para retratar a tragédia de tantos
perseguidos políticos pelas ditaduras instaladas na América do Sul. Este papel cabe ao
brasileiro. Lamarca ultrapassou, ao menos na imprensa brasileira, os contornos de uma
representação interna, relativa apenas aos movimentos nacionais.
Apesar das similaridades, Che é a rebeldia, Lamarca a tragédia.
99
CAPÍTULO III - O MITO LAMARCA E A CONSOLIDAÇÃO
DEMOCRÁTICA
100
3.1 – A ANISTIA E O TEMA DA TRAIÇÃO
O mito ocorre e intervém na História. Seu poder explicativo desdobra-se em
uma força mobilizadora e, enquanto sua imagem possuir significados capazes de estabelecer
algum diálogo com a sociedade, ele tem condições de intervir. Por isso o mito não pode ser
desconstruído a partir somente de um exercício cognitivo. Assim, demonstrar, por exemplo, a
participação de Lamarca em apenas três ações armadas ou que a chamada Guerrilha do
Ribeira foi uma fuga e não um confronto entre forças não são suficientes para retirar da figura
do ex-capitão seu significado, pois sua importância histórica e sua força mítica está na mais
compreensão das representações de seus atos que nos atos em si.
Lamarca tornou-se conhecido em um momento de radicalização política.
Muitos daqueles que viveram o período, civis e militares, ainda estão ativos na política
nacional. Além disso não houve uma mudança radical nas Forças Armadas Brasileiras, elas
ainda são as mesmas instituições que instalaram no país o regime ditatorial. A passagem para
um regime democrático não foi uma ruptura drástica e sim passagem feita com cautela,
preservando as instituições militares e seus agentes de repressão política.
O período de marcante radicalização da política brasileira não foi, no entanto,
esgotado e parece haver sempre algo a ser retomado. Após o fim dos conflitos armados lutou-
se pela abertura política, fim do AI-5, “anistia ampla, geral e irrestrita”, eleições diretas, pelo
reconhecimento da responsabilidade do Estado pela morte e desaparecimento de militantes
políticos. A imagem do regime implantando em 31 de março de 1964 é utilizada para uma
luta constante: a que não aconteça novamente uma ditadura no Brasil.
Quando temas relativos à Luta Armada vêm a baila, Lamarca ressurge como
imagem daqueles que optaram pelas armas, dessa forma, cumprindo o papel de simbolizar a
tragédia de sua época, ou como ponto limite em torno do qual as partes se reorganizam para
um novo combate. Nestes momentos, sua imagem, ao ser invocada, retoma sua força
inserindo-se no presente.
As Forças Armadas, desde a Guerra do Paraguai, deixou de ser uma instituição
estritamente militar, para ocupar um espaço ativo na política nacional. Durante a ditadura as
atividades políticas e as funções militares confundem-se aos olhos dos militares. O general
Emilio Garrastazu Médici sobre o seu mandato declarou que:
“Minha intenção é pacificar o país e, ao final do meu governo, devolver o
poder ao civis. Se isso não for possível, se, ao final de meu mandato, o país
ainda estiver no estado de ebulição em que o encontrei ao assumir, me
restará devolver o bastão ao Alto Comando que, seguramente, indicará um
101
general da ativa para me substituir. Se, no entanto, conseguir pacificar, vou
trabalhar para fazer um civil meu sucessor. E se as coisas estiverem a meio
caminho, vou indicar um general da reserva para fazer a transição a um
governo civil”
153
Médici nesta declaração demonstra que a presidência era uma tarefa militar
para a qual sentia-se designado pelo Alto Comando e dessa forma a exerceu. Sentia-se à
vontade na utilização do AI-5 ou de qualquer outra fórmula para vencer o inimigo.
Seu sucessor, Ernesto Geisel, iniciou o processo de abertura política. Referia-se
a ele como uma distensão lenta e gradual. Período bastante ativo na política, quando a
resistência armada contra o regime militar ainda era um problema. O movimento guerrilheiro
do Araguaia agonizava. Em relação ao movimento armado nas cidades, episódios como a
“Chacina da Lapa”, (militantes do PC do B foram assassinados após uma reunião) e as mortes
de Manoel Fiel Filho e do jornalista Vladimir Herzog determinaram o afastamento do general
Ednardo D’Ávila de Melo do comando do II Exército e apontavam ora para uma maior
abertura, ora para um grande revés.
Outro caso de exoneração de cargo bastante turbulento e definitivo para a
consolidação de processo de distensão política do governo foi a demissão do general Sílvio
Frota do cargo de ministro do Exército o que demonstrou uma fissura na hermética cúpula do
Alto Comando, pois, neste momento, o exercício da presidência pareceu não poder ser
delegado pelas Forças Armadas. Geisel demitiu seu ministro do Exército, que claramente se
colocava como virtual futuro presidente, e ainda abriu caminho para a indicação de João
Batista de Oliveira Figueiredo como sucessor.
A disposição no exercício da presidência, não significa um rompimento com o
regime autoritário implantado a partir de 1964. Geisel sentia-se muito à vontade para utilizar
dos poderes excepcionais que lhe eram conferidos. Foi assim que, baseado no Ato
Institucional nº 5, fechou o Congresso Nacional para implantar o pacote de abril que consistia
em um projeto de reforma do Judiciário, mudanças na legislação trabalhista, na lei do
inquilinato, nas normas de concursos para ingresso no funcionalismo público, aumento do
mandato do presidente de cinco para seis anos, eliminava as eleições diretas para
governadores previstas para 1978 e criava a figura do senador biônico.
Como herança, Geisel deixou, ao seu sucessor, o legado de continuar com a
distensão política, o fim do Ato Institucional 5, a volta do direito de greve, o habeas-
corpus, a liberdade de imprensa, a imunidade parlamentar. O general João Batista de Oliveira
153
MÉDICI, Roberto Nogueira, MÉDICI, O DEPOIMENTO. Rio de Janeiro: Mauad. 1995.
102
Figueiredo estava comprometido com as idéias de seu antecessor e, pela primeira vez desde
1968, sem poderes excepcionais para fechar o congresso ou cassar políticos. Iniciou seu
governo em 15 de março de 1979, o último do regime militar.
O momento era de expectativa e também de desconfiança em relação ao futuro.
Num programa especial de natal exibido pela Rede Bandeirantes dia 25 de dezembro de 1978,
o compositor Chico Buarque de Holanda comentava o momento:
“E agora se pretende vender a idéia, a imagem de uma abertura democrática,
entre aspas, evidente que vai se usar, entende, tudo que se pode. Então a
publicidade vai usar a liberação de algumas músicas minhas como sinônimo
dessa abertura. Isso não quer dizer nada, entende, eu falei tem muita coisa
ainda para ser liberada.”
154
Havia muita coisa ainda para ser liberada e um “front” importante dessa
abertura era a guerra de informação, não bastava denunciar as atrocidades cometidas em nome
do regime, mesmo que a denúncia em si tivesse o poder de comover e sensibilizar as
pessoas. Uma série de livros sobre trajetórias pessoais na luta armada invadiu as listas dos
mais vendidos, entre eles, Os Carbonários de Alfredo Sirkis, O Que é Isso Companheiro e
Entradas e Bandeiras de Fernando Gabeira, 1964: A Conquista do Estado de René Dreifuss,
Lamarca de Oldack Miranda e Emiliano José também esteve por mais de trinta semanas entre
os mais vendidos na lista da Revista Veja. A tragédia pessoal dos militantes chegou as
livrarias de todo o país. Gabeira chegou a ser capa do número 651 dessa revista com a
seguinte referência: “Fernando Gabeira: O Escritor da Aberbura”.
Lamarca então reaparece no cenário político nacional. Sua figura torna-se
central neste momento, não oferece o perigo de deflagrar uma guerrilha, nem resgatará,
pelas armas, o país das mão dos militares, define lados e reforça as posições assumidas antes e
no processo de abertura. Mito Político, exerce seu poder ao justificar ações realizadas e
mobilizar para novas realizações como a luta pela abertura. Diante de sua imagem apenas
duas posições são possíveis: a favor ou contra a anistia para aqueles que participaram de
movimentos armados. A primeira lei de anistia de 6683/79 não contemplava quem havia
cometido crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal, ou seja, excluía o ex-
capitão e todos aqueles que participaram da luta armada.
Em livros sobre a luta armada, os autores assumem explicitamente suas
posições neste novo momento, como, por exemplo, o ex-militante da VPR Vanguarda
Popular Revolucionária - Alex Polari de Alverga, que lançou o livro de poesias Inventário de
Cicatrizes, cujo produto da venda era destinado ao Comitê Brasileiro Pela Anistia. O próprio
103
autor encontrava-se preso cumprindo uma pena de 74 anos por sua participação na Luta
Armada e na expectativa de ser contemplado pela anistia. Os temas dos poemas são os
momentos da luta, o cotidiano da clandestinidade, a tortura. Em outro livro, Não és tu, Brasil
de Marcelo Rubens Paiva, o recorte de duas reportagens, uma de 29 de maio de 1971 do
Jornal Folha de S. Paulo e outra da revista Manchete de 12 de julho de 1971 texto creditado a
Murilo Melo Filho em que Alex duvidava da legitimidade de Lamarca como militante.
No entanto, em 1978, na dedicatória de Inventário de Cicatrizes o nome Carlos
Lamarca está na lista dos homenageados:
“A todos os companheiros, livres, na clandestinidade, nas prisões e
no exílio.
Especialmente em homenagem de:
Stuart Edgar Angel Jones, assassinado na tortura.
Eduardo Leite, assassinado na tortura.
Juarez Guimarães de Brito, por suicídio depois de ferido
Carlos Lamarca, fuzilado depois de preso.
Yara Iavelberg, morta? Assassinada? Suicídio?
A TODOS OS NOSSOS MORTOS,
A MORTE
A MEU FILHO THIAGO
À VIDA
(Entre esses dois extremos e compromissos eu vou seguindo)”
155
A morte de Lamarca é citada como assassinato, diferentemente da versão
divulgada pela ditadura (morte em combate). Para o poeta houve um assassinato. Confronta a
versão oficial, portanto, coloca-se novamente em posição de conflito em relação a ditadura,
não basta então lutar por liberdade física ou por perdão, mas pela sua verdade e
posicionamento.
O SNI Serviço Nacional de Informação ainda tentava, nesta época, continuar
com o processo de demonização buscando vincular Lamarca à imagem de um “mal”.
Em setembro de 1979, em São Luís do Maranhão, uma greve de motoristas
provocou distúrbios e tinha o apoio da população. Pichações agressivas, no entanto,
assustaram a população, fizeram com que retirassem seu apoio ao movimento. Diziam: Viva
154
ESPECIAL DE NATAL – CHICO BUARQUE . Rede Bandeirantes de Televisão. 25/12/1978.
155
ALVERGA. Alex Polari de - INVENTÁRIO DE CICATRIZES. 3 ed. São Paulo: Editora Parma. 1978.
p. 7
104
Lamarca”, “CNBB-Greve-PCB” e “PC, estamos com você” foram feitas por sugeso do
SNI
156
.
A retirada de apoio à greve, pela possível ligação com o Partido Comunista, a
CNBB e possíveis herdeiros dos ideais de Lamarca, não significou repudio a eles, mas receio
de um novo momento de radicalização, uma vez que novamente a sociedade sofria um novo
surto de politização com a campanha pela redemocratização do país.
O medo, provocado por estas pichações, era em função de uma possível
retomada aos anos de terror, pois a abertura não havia sido concretizada. Se o perigo da
volta da “subversão”, de um “mal” que pensava-se extirpado, há também o temor do retorno à
repressão violenta dos anos mais agudos da ditadura durante o governo Médici.
Sobre Lamarca, no período da discussão sobre a abertura, um episódio
interessante. Em 1980, o Prêmio Esso de Jornalismo, na categoria regional, foi concedido ao
semanário gaúcho Coojornal pela publicação de documentos militares reservados sobre a
“Operação Registro” da campanha dos militares no combate a Carlos Lamarca e aos
guerrilheiros do Vale do Ribeira.
A ousadia custou aos jornalistas Osmar Trindade, Elmar Bones da Costa,
Carlos Rafael Guimarães e Rosvita Saueressing uma condenação a cinco meses de
detenção
157
sem que houvesse sido desmentida a autenticidade dos documentos. Premiados
por um lado, condenados por outro, literalmente.
Neste momento de lembrança, o mito, ao ser recordado, vai sendo reorganizado
em uma seqüência de imagens e assumindo contornos de mecanismos seletivos de quem o
recorda.
O Lamarca recordado por Alfredo Syrkis em Carbonários: Memórias da
Guerrilha Perdida é ainda o perito militar e sua presença a dimensão da importância da
organização a qual o autor vinculou-se. Mas é recordado com um humor muito diferente de
todos os outros livros. Em uma passagem, um encontro entre o ex-capitão e agentes da
repressão chamados de os homi” no hall de um edifício tem um desfecho inusitado quando
estes recuam para a rua pouco dispostos ao confronto, enquanto Lamarca saía pelo terraço.
Outro momento bem humorado é o da compra de um veículo pela organização,
um fusquinha bem disfarçado, documentos legais, porém com um pequeno furo de segurança,
o nome do dono anterior era Lamarca. Compraram o carro de Antônio Alberto, primo distante
do ex-capitão. Até a pontaria, talvez a maior virtude militar do ex-capitão é utilizada para
156
O SNI informa e contra-informa. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 05/12/1979 p. 37
157
Fatos na cadeia REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 08/07/1981. p. 32.
105
comentar a bravata do militante Carlos Minc enaltecendo as qualidades de uma namorada
capaz de:
“...acertar o olho esquerdo dum mosquito, com uma 44...
- Pô, não vem me contando lorotas. Essa nem o tal Lamarca”
158
Das imagens utilizadas para a recordação, Syrkis lembra a dificuldade do
militante Daniel e a esperança com a qual jovens militantes viam Lamarca:
“Primeiros tempos terríveis, sobretudo para ele, com pouco preparo físico.
Mas lá pelas tantas o sujeito se acostuma e começa a entrar em forma.
Começa a curtir os treinamentos. As táticas militares, sobretudo com um
instrutor feito o Lamarca, um Deus grego da Guerrilha. Aprende a fazer
minas, armadilhas vietcongs”
159
O militar, sempre presente, o tem o perfil de nervoso das reportagens de
momentos anteriores, suas virtudes são divinas, líder nato aos olhos de quem o recebeu cheio
de esperanças:
“Lamarca era outro nível. Como combatente era adestradíssimo. Além disso,
tinha sentido tático e uma intuição extraordinária, imaginação e reflexos
trabalhados, por anos de formação aplicada e entusiástica. Um feixe de nervos
que, na hora do perigo, funcionavam com a precisão de um cronometro, calma
olímpica, frieza absoluta”
160
A imprensa, antes instrumento na luta contra a “subversão” e agora livre do
controle da censura, passa a denunciar as atrocidades da ditadura, Lamarca, a imagem de um
“mal” que utilizava das sombras para tentar destruir a ordem, passou a ser a revelação de que
o “mal” devia ser visto no outro, na figura do seu antagonista. Os elementos agora
selecionados serão de denúncia e vigilância. A irritação dos militares com a nova postura
também virou notícia:
“É ponto pacífico para a cúpula militar do governo que a imprensa está
infiltrada por esquerdistas que escapa ao controle dos proprietários das
empresas. Dividindo a imprensa em dois tipos, a chamada ‘grande’ e a
‘alternativa’, os militares queixam-se do que seria a parcialidade da grande e
a ‘irresponsabilidade’ da alternativa.”
161
158
SYRKIS, Alfredo. OS CARBONÁRIOS: MEMÓRIAS DA GUERRILHA PERDIDA. 6 ed. São Paulo:
Global. 1981. P. 111
159
SYRKIS, Alfredo. Op. cit. p. 161.
160
SYRKIS, Alfredo. Op. cit. p. 257 et. seq.
161
O que irrita os militares no quadro político. REVISTA VEJA. São Paulo. 18/02/1981 p. 17.
106
O clima de descontentamento do militares piorou, quando, em 1981 uma ex-
presa política e ex-dirigente da VPR, Inês Etienne Romeu reconheceu a casa onde foi
torturada e tornou pública a descoberta. A notícia fez os ministros do Exército, da Marinha e
da Aeronáutica soltarem notas contra a denúncia de atividades ilegais de autoridades policiais
e militares, consideradas atos de revanchismo. O ministro do Exército Walter Pires empenhou
sua solidariedade declarando:
“O Exército repele energicamente as malévolas insinuações (... que procuram
agora lançar a execração pública aqueles que se bateram, em verdadeiras
operações de guerra, pela preservação da paz e da tranqüilidade da família
brasileira”
162
Para o almirante Maximiano Fonseca:
“Foram ações legítimas contra elementos subversivos”
163
A nota do brigadeiro Délio Jardim de Mattos, Ministro da Aeronáutica, é mais
incisiva ao afirmar haver revanchismo nas denúncias:
“Se terroristas anistiados podem hoje, com a tranqüilidade de homens livres,
reescrever a história dos vencidos, é porque aos vencedores mais importa o
reencontro histórico que hoje vivemos que a vingança estéril e sem futuro (...)
Fomos violentos, injustiças existiram e erros o negamos (...) Mas a quem
pode interessar o julgamento de uma fase ultrapassada?”
164
Às denúncias de Inês, somaram-se as de que o psicanalista Amílcar Lobo
assessorou torturadores, e que (segundo a imprensa “serviu de senha para a reação
militar”
165
) o então coronel Nilton Cerqueira, comandante da “Operação Pajussara”, o
assassino de Lamarca, teria torturado, em 1971, o preso político César Queiroz Benjamim.
Denúncias como esta incomodavam os militares que começaram a reagir sem,
contudo, conseguirem convencer ou explicar seus métodos. Se o homem que caçou e matou o
mais procurado dos “subversivos” podia ser denunciado, outros de menor destaque sentiram-
se ameaçados o que fez alguns chefes militares lembrarem ao ministro do Exército sua
promessa ao assumir o ministério:
162
Com o pé o freio. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 18/02/1981 p. 14/19.
163
Com o pé o freio. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 18/02/1981 p. 14/19.
164
Com o pé o freio. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 18/02/1981 p. 14/19.
165
Com o pé o freio. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 18/02/1981 p. 14/19.
107
“Estaremos sempre solidários com aqueles que, na hora da agressão e da
adversidade, cumpriram o duro dever de se oporem a agitadores e terroristas,
de armas na mão, para que a nação não fosse levada à anarquia”
166
Nilton Cerqueira continuou a ter o nome ligado diretamente a Lamarca.
Quando foi promovido a general-de-brigada, o ex-comandante do DOI de Salvador virou
notícia ao ser o primeiro comandante famoso do órgão a chegar a general, na manchete da
Revista Veja os dizeres: “Glorificado por matar Lamarca e acusado de mandar torturar
presos na Bahia, Cerqueira vai a general”
167
. O nome de Nilton Cerqueira ficou marcado
pelo do ex- capitão e, de certa forma, cultivou este vínculo guardando, como troféu de guerra,
o revolver Smith & Wesson, calibre 38, presente de seu Antônio Lamarca para o filho.
Neste período, em agosto de 1980 foi lançada a biografia escrita por Oldack
Miranda e Emiliano José, que conseguiu chegar a sete edições no espaço de um ano. A
segunda edição é do mesmo mês do lançamento, a terceira e a quarta edição são de outubro de
1980, a quinta janeiro de 1981, a sexta de abril de 1981 e a sétima de agosto de 1981.
O número de edições deste livro, em um período tão curto, expressa o quanto o
tema despertou interesse, posteriormente, no ano 2000 na 15ª edição, foi atualizado e
ampliado devido a revelação de novos dados e acontecimentos que vieram a público com a
descoberta do laudo cadavérico em julho de 1996 e as novas perícias realizadas.
É desse período a biografia escrita pelos jornalistas Emiliano José e Oldack
Miranda Lamarca O capitão da guerrilha, que tornou-se praticamente a fonte central de
qualquer abordagem sobre Carlos Lamarca; o filme de Sérgio Resende foi uma livre
adaptação deste livro, a Comissão de Mortos e Desaparecidos recorreu às suas páginas para
compor um resumo biográfico anexado ao processo de reconhecimento da morte do ex-
capitão. Os autores não querem mostrar o ex-capitão nem como um traidor nem o guerrilheiro
de rias façanhas. Mesmo anunciando uma possível isenção, não consegue escapar da
singularidade do momento em que foi escrita e lançada.
O livro inicia-se com o depoimento de Olderico Campos Barreto, irmão de
José Campos Barreto, o Zequinha, morto junto com Lamarca, e narra os últimos momentos de
sua participação no episódio derradeiro da vida do ex-capitão. O final é conhecido, o herói
morre, mas sobrevive à medida que, na figura do narrador/personagem, os ideais, a fidelidade,
as relações de solidariedade sobrevivem.
166
Com o pé o freio. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 18/02/1981 p. 14/19.
167
Porão de Estrelas. REVISTA VEJA. São Paulo: Abril. 01/04/1987. P. 30/31.
108
O discurso mítico não se quer isento, o narrador não busca demonstrar
neutralidade, nem razões que justifiquem outra posição:
“O fato de que a exigência unitária constitui o próprio eixo da narrativa, o
núcleo central em torno do qual ela se articula, explica o caráter
obrigatoriamente unívoco, para não dizer maniqueísta do discurso.”
168
Mesmo anunciando que não querem falar nem sobre o herói, para seus
admiradores, nem sobre o joquete nas mãos da esquerda nem sobre o bandido, segundo
detratores, o próprio momento é caracterizado pela retomada de posições em um espaço de
disputa política.
Raimundo Rodrigues Pereira, o prefaciador, tem a clara percepção deste
momento e reconhece mais que uma intenção, a necessidade política presente que é
compreender a luta pela anistia. A figura de Lamarca é utilizada para explicar e justificar essa
luta definindo o lado que cada um ocupa antes e agora:
“O livro de Emiliano e Oldack realiza ainda um mergulho no poço negro do
horror fascista e ajuda a compreender por que a luta pela anistia ampla, geral
e irrestrita, pela punição dos torturadores e desmantelamento dos órgãos
repressivos não pode ser interrompida: no livro estão os nomes de muitos dos
responsáveis pelos crimes e que hoje circulam com liberdade em postos
oficiais.”
Neste sentido, o prefácio
169
é interessante, pois nele uma “receita” a ser
utilizada na leitura, não apenas deste livro, mas de todo o período
170
, cujo objetivo é perceber
a importância de contar os acontecimentos do período, principalmente naquele momento, para
isso a figura de Lamarca, segundo o prefaciador:
“revela também a intensa emoção, o amor e a tragédia da vida de alguns
revolucionários desse período; e inclui também uma narrativa precisa e
dramática do horror desses anos de repressão sangüinária.”
As façanhas de Lamarca não são esquecidas, contudo a motivação é a de um
homem comum, capaz de se apaixonar por uma causa, preocupado com os filhos, mas que
ante a sua indignação reage colocando sua vida em risco:
168
GIRARDET. R. op. cit. p. 162.
169
JOSÉ. E.: MIRANDA. O. op. cit. p. 11 et. seq.
170
Ver na integra anexo 2
109
O livro mostra um Lamarca de que poucos têm notícias: pai dedicado e
amoroso; o homem apaixonado; o revolucionário em busca de uma saída para
seu povo; o justiceiro de sangue frio que expropriou a fortuna que Adhemar de
Barros passou para o cofre da amante; o capitão competente e corajoso que
enfrenta e vence o cerco de 20 mil soldados no Vale do Ribeira; e o político
angustiado que morreu no sertão isolado, mas que vibrava de alegria com as
vitórias de qualquer povo, elogiava Fidel, Lênin e Trotsky, dava vivas à
Albânia e desejava ‘longa vida’ à Mao Tse-Tung.
O enredo de sua morte é trágico:
“A seqüência que leva à descoberta do refúgio do Capitão Lamarca no sertão
talvez não tenha paralelo na história da crueldade policial brasileira:
mulheres enlouquecem, outras morrem, outras se suicidam; homens são
trespassados por torturas que lhes arrancam as almas e os obrigam à traição.
Apesar da tragédia, da dor, Lamarca não morre, afinal já não se possui:
Ao mesmo tempo, lemos a história de Olderico, o amigo de Lamarca que
resiste e se mantém de pé; pessoalmente vitorioso, com o rosto varado por uma
bala, a mão mutilada. O corpo dilacerado por pancadas e eletricidade; mas
com a alma alegre e vitoriosa de quem não traiu.
Com a história de Olderico, os dois jornalistas baianos abrem o livro. Foi ela
que Emiliano ouviu fascinado numa noite de prisão na Bahia. E é o seu
significado profundo, o otimismo, que transparece na narrativa”
Eis a receita sobre a leitura do livro e do período. Pessoas comuns, tais quais o
leitor que es diante do livro, foram perseguidas por suas convicções políticas. Não são
bandidos, mas seres humano comuns, capazes de amar os filhos e as esposas. Indignaram-se
diante daquilo que julgaram injusto e buscaram a vitória da justiça.
Antes de mais nada, precisamos notar que, segundo o prefaciador, este livro
não busca ser apenas a construção do perfil político do personagem Lamarca, mas sintetizar
tanto as ões quanto as emoções de um grupo que participou daquele período e, Vemos,
assim, a possibilidade que esta imagem oferece-nos ao sintetizar um período de guerra, de
tortura, de censura, também, de motivar trabalhos árduos de várias pessoas para que este
período não seja esquecido. Em outras palavras, uma narrativa que explique e perpetue, na
história, as emoções que cercaram a luta armada. É interessante percebermos que ao deixar
de ser a construção de um perfil político de Lamarca, é o contar sobre sua trajetória que é
capaz de cumprir tal papel.
110
Apesar de sua importância na luta pela anistia, Lamarca não foi anistiado. A
primeira lei de Anistia 6683/79, regulamentada pelo decreto 8.143 de 31/10/79 anistiava a
todos que entre 02/09/1961 a 15/08/1979 tivessem cometido crimes ou políticos ou praticados
por motivação política, exceto crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.
Assim, não apenas ele, mas todos os exilados que haviam sido banidos ou condenados pela
participação ativa na luta armada foram excluídos do processo.
Com a Emenda Constitucional 26 veio a “anistia ampla, geral e irrestrita”.
Argumentando-se que Lamarca o cometeu crime político e sim disciplinar, ou seja, era um
desertor, a União não lhe concedeu anistia. Posteriormente, um parecer favoreceu-o com os
benefícios da anistia, mas mesmo tendo recebido ganho de causa através da sentença da juíza
federal Marisa Ferreira dos Santos, a viúva Maria Pavan não conseguiu ter os direitos do
marido reconhecidos, o que daria a ela direito a uma pensão levando-se em conta as possíveis
promoções que Carlos receberia durante sua carreira.
A intervenção de Lamarca, neste momento foi devido à luta pela anistia de
pessoas que, literalmente, fizeram oposição armada à ditadura militar. Tendo a figura do ex-
capitão no centro desse embate, Forças Armadas e opositores continuam em busca da
legitimidade tanto das ações quanto de sua identidade, afinal quem é o brasileiro e quem é o
estrangeiro?
O tema da traição fica em evidência. A deserção de Lamarca constitui a traição
a pátria ou, ao contrário, revela quem a traiu. Uma polêmica que es longe de terminar,
entretanto de posições e lados bastante convictos, como demonstra o depoimento do
brigadeiro João Paulo Moreira Burnier a Maria Celina D’Araújo e Celso Castro em dezembro
de 1993:
“É um absurdo! É inacreditável saber que tem gente com a mentalidade de
achar bonito dizer que o combate ao regime militar elevou a herói esse
Lamarca. Herói que nada, era um assassino!
171
Para as Forças Armadas não se trata de um valor a ser pago pela União. Estar
ao lado de Lamarca significa estar contra a ditadura. Reconhecê-lo ou reabilitá-lo é impingir a
quem esteve contra ele o repúdio. Não , em relação ao discurso mítico, nenhuma intenção
“de mencionar as razões suscetíveis de ser invocadas de uma parte e de outra”
172
, mas
uma necessidade de polarização, porque a manifestação mítica tem mensagem mobilizadora
171
D’ARAÚJO. M. C. ; SOARES. G. A. D.; CASTRO. C. op. cit. p. 201.
172
JOSÉ E.; MIRANDA O. op. cit. p. 162
111
na qual questões de identidade, legitimidade, solidariedade, enfim uma certa realidade social é
questionada havendo rupturas, divergências e reorganizações.
É, portanto, papel das Forças Armadas rechaçar a imagem que possa questionar
a legitimidade que acredita possuir. O mito não vive apenas de apelos positivos vive também
dos negativos, pois, antes de mais nada, é uma narrativa com a qual a sociedade estabelece
diálogo reconstruindo-o a cada abordagem.
112
3.2 - O RECONHECIMENTO DO MITO NO RECONHECIMENTO DAS
RESPONSABILIDADES CIVIS
Em outro momento, quando a luta armada foi mais uma vez revista, o mito de
Lamarca esteve presente e intervindo na recente História política brasileira. Dessa vez sua
figura foi central em uma polêmica na qual as Forças Armadas sentiram-se julgadas e
afrontadas. Isto ocorreu durante o julgamento de reconhecimento da responsabilidade pela
morte de militantes na Comissão de Mortos e Desaparecidos subordinada ao Ministério da
Justiça.
Esta Comissão Especial era composta por sete membros, de livre escolha e
designação do Presidente da República. Quatro foram escolhidos dentre os membros da
Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, pessoas vinculadas aos 136
desaparecidos reconhecidos oficialmente como mortos em uma lista do Anexo I da lei
9140/95, membros do Ministério Público Federal e integrantes das Forças Armadas.
A lei 9140/95 que instrumentalizava os trabalhos da comissão foi elaborada de
forma que os casos de Lamarca e Marighella não pudessem ser contemplados, isso graças ao
conceito de “dependência assemelhada”
173
e o reconhecimento, em anexo das mortes
ocorridas na Guerrilha do Araguaia:
“Sempre se suspeitou que esses termos foram introduzidos para cumprir uma
função precisa: excluir do reconhecimento da responsabilidade do Estado
principalmente as mortes dos dois Carlos revolucionários, Marighella e
Lamarca.”
174
As condições das mortes de Lamarca e Marighella, em campo aberto os
excluíam dos benefícios da lei. O relator do caso de Lamarca, o procurador federal Paulo
Gonet Branco optou pelo não reconhecimento da responsabilidade do Estado, mas acabou
sendo voto vencido.
A polêmica sobre este reconhecimento iniciou-se devido a uma questão
técnica: por “dependência assemelhada” deveria se considerar apenas espaços físicos ou uma
situação de controle por parte do representante do Estado também poderia ser considerada?
Não houve uma solução para esta pendenga jurídica. Ao final do julgamento do processo, os
173
A lei 9140/95 previa o reconhecimento de mortes ocorridas em dependências polícias e assemelhadas.
174
MIRANDA. N.:TIBÚRCIO. C. op. cit. p. 16
113
votos obedeceram à convicção de cada um, sendo que, para o relator do caso de Carlos
Lamarca, Paulo Gonet Branco, a expressão deveria ser literal.
Destacamos que a simples possibilidade de reconhecimento foi suficiente para
que as atenções se voltassem para o caso Lamarca. Um romance, Não és tu, Brasil de Marcelo
Rubens Paiva, foi lançado no momento em que se discutiam estes processos, inclusive a
expedição do Atestado de Óbito de seu pai, Rubens Beirodt Paiva, beneficiado, em anexo,
pela lei 9140/95.
Houve também dificuldades com a identificação dos restos mortais de Carlos
Lamarca. O corpo foi exumado em 18 de junho de 1996 pelo IML de Brasília a pedido da
família. A imprensa noticiou que a ossada poderia não pertencer a Lamarca, porque a
mandíbula não se encaixava no crânio, e havia dentes na arcada contrariando a informação de
que o ex-capitão havia extraído todos a fim de modificar sua fisionomia.
A acolhida do pedido caso de Lamarca abriu espaço para o pedido de um
deputado do PT-MG – Partido dos Trabalhadores - Minas Gerais – de investigação das mortes
de Iara Yavelberg, Nilda Cunha, Luís Antônio Santa Bárbara, Otoniel Campos Barreto e José
Campos Barreto, o Zequinha, que acompanhava Lamarca quando foram mortos.
O caso de Iara, como vimos, esbarrou na questão religiosa e foi indeferido
pelo placar 4 x 3. Luís Antônio Santa Barbara teve seu pedido indeferido prevalecendo a
versão de suicídio, 4 x 2. No caso Otoniel, irmão de Zequinha, foi reconhecida a
responsabilidade do Estado, 4 x 2. O caso Nilda também foi porque a família deu entrada no
processo fora do prazo legal.
Apesar do reconhecimento de alguns casos e do indeferimento de outros, a
polêmica maior era em função dos casos de Carlos Lamarca e Carlos Marighella. A disputa
interna na Comissão atingiu seu clímax quando foi descoberto o laudo cadavérico de
Lamarca. A descoberta foi noticiada como furo de reportagem do Jornal O Globo.
A reportagem do Jornal O Globo trazia algumas afirmações do legista Nelson
Massini. Mesmo advertindo que precisaria de pelo menos uma semana para uma análise mais
conclusiva, adiantou que Lamarca estaria parado, sem oferecer qualquer risco para seus
perseguidores. Essa conclusão se deve à concentração de tiros no tórax, algo muito difícil em
um alvo móvel.
O corpo apresentava também escoriações que “não poderiam ser resultado de
uma corrida no meio do mato”
175
, neste caso, haveria arranhões nos braços e na lateral do
175
FURTADO, Bernardino Laudo Cadavérico indica que Lamarca foi executado JORNAL O GLOBO cad. 1 –
O país. 07/07/1996. P. 12.
114
corpo. Segundo o legista, os ferimentos são típicos de quem, antes de morrer, foi arrastado ou
levou pontapés
Depois da descoberta do laudo e de uma nova perícia o fiel da balança da
Comissão começou a pender para o lado do reconhecimento e da tese de ampliação da Lei na
interpretação do conceito de “dependências assemelhadas”. Antes a tendência era de que
prevaleceria a versão do Estado de morte em combate.
O comportamento do representante das Forças Armadas, general Oswaldo
Gomes antes de relativamente discreto passou a ser de velada ameaça. Enquanto o general
Cardoso, da Casa Militar, dizia não haver risco de desobediência, o general Oswaldo Gomes
ameaçava deixar a comissão.
A reação do representante das Forças Armadas, general Oswaldo Gomes
mostra que o julgamento extrapolava os acontecimentos ocorridos no sertão Baiano e
abarcava todo o caso:
“Acho essa história de laudo uma embromação. Prefiro acreditar nos
testemunhos do nosso pessoal: Carlos Lamarca poderia ter emboscado o
major Cerqueira e não o fez porque foi surpreendido dormindo. Ele era um
homem perigoso e matou muitos dos nossos.”
176
No dia 08/07/1996, o Ministério do Exército divulgou nota oficial reagindo a
possibilidade de discutir uma nova versão para o caso. O representante dos militares na
Comissão, o general Oswaldo Pereira Gomes, também se manifestou dizendo haver
intranqüilidade por parte dos militares, que não se manifestaram porque não podiam, e que
havia “finalidade ideológica de desmoralizar as Forças Armadas”
177
O julgamento não se resumia, no entender do representante das Forças
Armadas, às condições técnicas de decisão sobre a morte de um militante dentro dos limites
impostos pela lei. A figura de Lamarca é, para os militares, o símbolo da traição, e se ele o
é reconhecido de imediato como tal, mas ao contrário, vítima da repressão política, são os
agentes que praticaram estas ações que estarão sendo julgados.
O ministro da justiça, Nelson Jobim, posicionou-se afirmando não ser o fato
de Lamarca ser um desertor que estava em julgamento, mas se houve negligência ou falha na
ação dos agentes do Estado. Argumentou que a lei não possui poderes para reabilitar
ninguém, sob o ponto de vista pessoal, nem a condenar agentes dos órgão de segurança.
176
FURTADO, Bernardino Laudo Cadavérico indica que Lamarca foi executado JORNAL O GLOBO cad. 1 –
O país. 07/07/1996. P. 12.
177
Exército reage à indenização por Lamarca. JORNAL FOLHA DE S. PAULO, cad. 1 – Brasil. 09/07/1996
115
O ministro tentou limitar a discussão dentro de critérios técnicos, entretanto o
conflito ultrapassava claramente a análise da morte de Lamarca, importava a representação
dela.
Neste conflito, nem o Presidente da República pôde ficar alheio, pois é, em
última instância, o chefe supremo das Forças Armadas, situação insólita para um ex-
autoexilado político.
No dia 10/07/1996, o ministro do Exército, Zenildo de Lucena, e o chefe da
Casa Militar do governo Fernando Henrique Cardoso, general Alberto Cardoso, anunciaram
que estimularam a divulgação do laudo, mesmo tendo lançado nota oficial dois dias antes,
onde não era aceita sequer a possibilidade de discutir uma nova versão para a morte. O
documento estava num cofre da Polícia Federal de Salvador havia 25 anos e fora trancado em
1971 pelo coronel Luiz Arthur, dirigente da Polícia Federal, que teria, segundo a imprensa,
comentado: “Este é um documento Histórico”.
O descontentamento foi anunciado pela imprensa. Segundo o Jornal Folha de
S. Paulo de 30/07/1996, os militares pressionaram o presidente Fernando Henrique Cardoso
para não assinar o decreto reconhecendo a responsabilidade pela morte de Lamarca. De
acordo com a legislação, o reconhecimento somente se tornaria oficial depois de publicado no
“Diário Oficial”, o que ocorreu no dia 05 de setembro de 1997, decreto nº 2.318, devido a um
acordo firmado estabelecendo que os decretos presidenciais seguiriam rigorosamente o que
fora definido pela Comissão.
Em dado momento, o presidente da república fez um acordo com o ministro
Nelson Jobim para que o veredicto do caso Lamarca fosse adiado. Isso porque ano dia 07
de agosto deveria decidir se sancionava ou não o projeto que transferia para a Justiça comum
o poder de julgar militares acusados de cometerem crimes dolosos contra civis. Não seria
conveniente um desgaste duplo junto aos militares. O adiamento foi conseguido com os
pedidos de vistas aos processos de Lamarca e Marighella.
O representante das Forças Armadas pediu vistas ao processo de Marighella
com o intuito de encaminhar em dias diferentes as votações e acenava claramente o voto
aprovando o reconhecimento no caso do deputado baiano. A representante das famílias
Suzana Lisboa pediu vistas ao processo de Carlos Lamarca avaliando que os casos deveriam
ser julgados juntos, o que ocorreu em 11 de setembro de 1996 com o resultado de 5 x 2 em
favor do reconhecimento.
Como o resultado foi favorável ao reconhecimento da responsabilidade, o
general Oswaldo Gomes ameaçou abandonar a Comissão e buscou apoio no CECOMSEX
116
Centro de Comunicação Social do Exército para organizar uma entrevista na qual diria ter
havido orientação para aprovação de indenização. Por isso foi chamado ao gabinete da
presidência e desafiado a provar as acusações.
Em nota oficial, no entanto, o presidente disse que a decisão teria sido técnica e
que Lamarca continuava sendo um desertor. As Forças Armadas oficialmente não se
manifestaram, mas o general da reserva Nilton Cerqueira, que matou Lamarca divulgou nota
cujo título era: Indenização para terroristas: ofensa aos militares
178
No filme de Sérgio Rezende, Lamarca, o personagem de José de Abreu
denominado apenas major, segundo o cineasta, um personagem que possui características de
vários militares e não apenas de Nilton Cerqueira, comandante da Operação Pajussara que
matou o ex-capitão, faz o seguinte comentário:
“O que me deixa louco é lembrar que ele foi um dos nossos, andou no meio da
gente, fez os mesmos cursos, os mesmos treinamentos, nos mesmos quartéis,
sentou na nossa mesa e tramou conta nós. Ele vai ter que pagar por isso, vai
ter que pagar pela traição”
179
Da ficção para a realidade, o então secretário de Segurança Pública do Rio de
Janeiro, o General da Reserva Nilton Cerqueira, divulgou nota oficial sobre a decisão do
pagamento de indenização à família de Lamarca:
“Ao premiar um oficial desertor e terroristas, ladrão das armas de seu
regimento, as instituições militares são atingidas duramente em suas bases
essenciais: hierarquia e disciplina”
180
As Forças Armadas, no entanto, não se manifestaram devido a um acordo no
qual apenas os ministros poderiam demonstrar insatisfação em público e somente em
solenidades e momentos oportunos. Qualquer outra manifestação abaixo do ministro e não
autorizada por ele seria punida dentro dos regulamentos disciplinares das Forças Armadas.
Algumas frases ditas no momento do veredicto a favor da indenização trazem
parte do clima emotivo do julgamento:
“Este é um momento histórico para o movimento de familiares. É um basta à
impunidade para que nenhuma outra execução seja permitida hoje no país”
Suzana Lisboa, representante das familiares na Comissão de Mortos e Desaparecidos
Políticos.
“Eu acredito que Lamarca tenha sido um desertor, nunca um traidor. Quem
traiu o Brasil foram os militares. A única de reagir era a luta armada”
178
Prêmio ao terror, diz Cerqueira. JORNAL FOLHA DE S. PAULO, de 12/09/1996, p. 12 – 1.
179
LAMARCA. Direção Sérgio Rezende. Brasil: Sagres/Riofilme. 1994. 1 filme 2h.10. son. Color.
180
Prêmio ao terror, diz Cerqueira. JORNAL FOLHA DE S. PAULO, de 12/09/1996, p. 12 – 1.
117
Claudia Pavan Lamarca da Silva, filha de Carlos Lamarca.
181
Confrontando estas frases com as declarações do representante das Forças
Armadas, de haver finalidade ideológica em denegrir a imagem da instituição, e a nota do
general Nilton Cerqueira percebe-se novamente a luta pela legitimidade das posições
assumidas. E, novamente, o tema da traição. O presidente Fernando Henrique Cardoso, em
nota oficial, afirmou que a aprovação havia sido técnica, contudo “Lamarca continua sendo
um desertor”
182
.
No caso de Lamarca, tanto em relação à anistia, quanto da responsabilidade do
Estado pela sua morte, a questão da identidade social e sua legitimidade foram motivo de
disputa legal, situações definidas e expressas em leis, nas quais nota-se a intenção seletiva das
redações delas, o que motiva reações de acordo com cada momento político, com a
possibilidade de avançar ou recuar. Essa luta revela a própria consolidação da plenitude de um
Estado democrático em oposição à ditadura.
O apelo a manifestação mítica de maneira intencional utilizando a imagem de
Lamarca no momento em que o cumprimento de leis discutidas em processos jurídicos e
políticos substitui a arbitrariedade dos atos institucionais é uma disputa pela legitimidade da
própria forma de governo.
De um lado os militares desejam reafirmar sua participação na história política
brasileira como um ato de heroísmo e dedicação e não como intrusos, enquanto que os
“subversivos”, vistos como vítimas de um regime arbitrário são a expressão das necessidades
democráticas de um Estado de direito.
Neste regime democrático os apelos ao mito Lamarca continuam. Não
cessaram com o reconhecimento e a responsabilidade do Estado pela sua morte. A eleição de
Luís Inácio Lula da Silva, um ex-operário do ABC Paulista, ex-sindicalista, condenado pela
Lei de Segurança Nacional por liderar greves, foi recebida como um momento de euforia
pelos seus partidários. A vitória, esperada no primeiro turno das eleições, não aconteceu mas
tudo indicava que viria, e veio, ao final do segundo turno.
Na noite de domingo, dia de votação em segundo turno, a TV Câmara,
emissora da Câmara dos Deputados, levava ao ar o longa metragem Lamarca de Sérgio
Resende. A vitória eleitoral de um presidente de origem popular, que no passado também
181
Frases. JORNAL FOLHA DE S. PAULO. 12/09/1996. p. 12-1.
182
FRANÇA, Willian. FALCÃO, Daniela. Passa indenização a Lamarca e Marighella. JORNAL FOLHA DE
S. PAULO, de 12/09/1996, p. 12 – 1.
118
desafiou a ditadura organizando greves e foi preso e condenado legitimava um passado de
lutas.
Em um momento de lembrança, o apelo ao mito Lamarca serve para relacionar
a vitória de Lula com a luta contra a ditadura, posteriormente vai servir para credenciar
ministros.
A ex-militante da VAR PALMARES, Dilma Rousseff, nomeada ministra de
Minas e Energia, foi apresentada pela imprensa como uma das mais ativas e importantes
militantes. Entre as façanhas destacadas para traçar o perfil de capacidade, firmeza e coragem
para enfrentar adversidades destacaram-se sua participação no roubo do cofre de Adhemar de
Barros considerado pelo jornalista Élio Gaspari o “maior golpe do terrorismo mundial” até
então. Sua outra grande façanha teria sido a discussão com Lamarca no congresso de
fundação da organização.
Nesse congresso, Lamarca desejava intensificar as ações de guerrilha, enquanto
Dilma tentava privilegiar o trabalho de mobilização das massas. A firmeza na discussão com
“o maior mito da esquerda armada” serviu para demonstrar o que esperar da ministra. Para
finalizar a matéria, foi utilizada a opinião do ex-sargento Darcy Rodrigues, nome mais ligado
ao capitão depois de Iara:
“É uma mulher espetacular e será uma sargentona no governo. Ela não é
mulher de meio tom.”
183
Lamarca es presente intervindo em episódios determinantes para a
consolidação do Estado democrático, em alguns casos qualificando pessoas, em outros sendo
motivo de discussões e de reinterpretações de uma certa realidade social. Esta é a sua
presença na vida política brasileira. Hoje o apelo a sua imagem não é em função de se fazer a
revolução, o que pode voltar a ocorrer, mas em não deixar que se retorne a uma ditadura ou
regimes autoritários.
183
OLTRAMARI. A. O cérebro do roubo do cofre. REVISTA VEJA. P. 36/37
119
IV - CONSIDERAÇÕES FINAIS
120
Com a intenção de compreender a construção e significação da imagem de
Carlos Lamarca, o capitão que abandonou a farda e aderiu à luta contra a ditadura militar
tornando-se uma das figuras mais representativas da luta armada, encontramos elementos
capazes de afirmá-lo como um mito político.
É preciso reafirmar que compreendemos mito político como uma narrativa
exemplar: ficção, síntese explicativa e mensagem mobilizadora
184
; como ficção é capaz de
fornecer certo número de chaves para a compreensão do presente, constituindo uma
criptografia através da qual pode parecer ordenar-se o caos desconcertante dos fatos e
acontecimentos
185
.
A construção do mito de Lamarca, como vimos, ocorreu desde a primeira
hora, quando desertou do Quartel de Quitaúna para ingressar na luta armada. A imprensa,
manipulada pelas Forças Armadas, ao noticiar as ações armadas, manteve o mistério em torno
de sua figura e do poder que representava como o homem das trevas, de objetivos espúrios.
Lamarca passou a não possuir limites individuais e a ser a imagem da “conspiração terrorista”
que assolava o país. Esta Constelação da Conspiração segundo Raoul Girardet, possui uma
função explicativa e justificadora
186
.
É preciso destacar que o “terror” foi notícia constante e a censura não apenas
impediu a divulgação de notícias, ela manipulou e instrumentalizou os órgãos de comunicação
para servirem de forma estratégica na luta contra os contestadores do regime.
A deserção revela o descontentamento com o regime implantado, mesmo
dentro das fileiras das Forças Armadas. A propaganda de harmonia e paz social acompanhada
pelo desenvolvimento econômico sofreu um grande golpe com esta baixa, afinal o próprio
personagem escolhido para simbolizar publicamente, entre a sociedade civil, as Forças
Armadas rebela-se e adere à luta contra seus pares. Após a deserção, buscou-se criar a
imagem de um traidor para justificar o aparato de repressão política implantado no país após o
decreto do Ato institucional 5. O uso dessa imagem foi bastante intenso, a ponto de ser
capa de revista e manchetes que o nomeavam “a face do terror”.
A utilização da imprensa ajudou a transformar a figura de um capitão de
infantaria em um personagem conhecido internacionalmente (teve sua morte noticiada no
jornal francês Le Monde), criando um perigo eminente em sua figura, logo, praticamente toda
184
GIRARDET, R. op. cit. 1987; p. 98.
185
Ibid. p. 13.
186
Ibid. p. 55.
Excluído:
Idem, idem,
Excluído:
Raoul Girardet, Mitos
e Mitologias Políticas,
121
a Luta Armada era representada por este homem onipresente, capaz de organizar ações
espetaculares como o assalto ao cofre de Adhemar de Barros ou a fuga de um cerco no Vale
do Ribeira.
O “terror”, apresentado na imprensa, tinha, no discurso, a intenção de mostrar a
conspiração maléfica das organizações subversivas” e encontrou em Lamarca o rosto que
possibilitou identificar esse “mal”.
As façanhas utilizadas para demonstrar a dimensão do perigo representado pelo
ex-capitão, graças à liberdade para interpretações contrárias dos significados presentes nas
manifestações míticas, à margem a uma leitura diferente da intenção inicial. Ante a oposição
divergente de pontos de vista, onde deveria haver execração possibilidade de cultivar a
veneração à imagem do Salvador.
A ditadura não é, no entanto, o único aspecto capaz de justificar o apelo à
imagem do homem providencial. Mesmo tendo conseguido sua independência política, a
América Latina parece incapaz de legitimar uma identidade soberana e a busca, ou espera,
pelo Salvador torna-se, então, um tema recorrente.
O imaginário político da América Latina é repleto de exemplos de homens
providenciais. Entre eles utilizamo-nos da figura de Che Guevara por encontrarmos sincronias
entre sua imagem mítica e a de Carlos Lamarca.
Nestas sincronias, encontramos a estrutura simbólica de episódios que se
repetem no cleo temático do Salvador, a determinação para superar as dificuldades, o
casamento sacerdotal, o contraste entre morte e vida.
Desejo destacar que apesar da importância de se identificar as estruturas das
narrativas míticas e os elementos capazes contidos nesta construção, compreender momentos
em que o mito intervém na história foi, talvez, a maior ousadia cometida neste trabalho.
Há, no entanto, uma forte convicção da possibilidade de, através das
manifestações míticas, do imaginário político reorganizado a cada apelo e através de um
poder criativo e ativo examinarmos e apreendermos alguns momentos da realidade social de
maneira mais completa.
O personagem de Carlos Lamarca não sofreu, até o momento, um processo de
santificação, entretanto como personagem político esteve presente em dois delicados
momentos na recente vida política nacional. Durante a anistia, foi excluído da primeira lei e,
mesmo após a justiça ter dado ganho de causa a sua viúva, Maria Pavan, não teve seus direitos
reconhecidos, porém a acusação foi modificada: sua condenação era por deserção. Mesmo
122
tendo essa deserção motivação política o argumento de delito disciplinar, deserção, serviu
para as Forças Armadas evitarem o perdão a Lamarca.
Como a função do mito é revelar e não omitir, perdoar Lamarca, a quem vêem
como a imagem do outro, do mal”, do estrangeiro, é o mesmo que assumir culpas, o que os
militares não estão dispostos a fazer. Principalmente porque não possuem contornos
individuais, mas institucionais. Seria assumir a ditadura como um erro.
O episódio do reconhecimento da responsabilidade da morte de Lamarca,
apesar de grande divulgação, ainda não foi assimilado em sua dimensão. Afinal, foi um dos
poucos momentos em que membros das Forças Armadas vieram a público falar sobre o perigo
da indisciplina nos quartéis. Superar este episódio foi uma das grandes vitórias do regime
democrático ainda em consolidação desde o final da ditadura em 1985.
Lamarca, neste sentido, é hoje um personagem presente na construção de um
Estado brasileiro democrático, sua imagem tem sofrido o apelo da vigilância para que não
haja mais regimes de exceção em toda a América Latina. Sua imagem, hoje, já que a
reconstrução é feita de acordo com os elementos selecionados nos apelos ao mito, é da
tragédia do continente todo e que aos poucos vem sendo superada.
Por fim desejo reafirmar a convicção na importância e na possibilidade de
estudo da manifestação mítica através de sua intervenção na história.
123
V – FONTES DOCUMENTAIS
1. Os livros de memória e depoimentos:
Que é Isso Companheiro e Entradas e Bandeiras, de Fernando Gabeira;
Rompendo o Silêncio de Carlos Alberto Brilhante Ustra;
Os Carbonários, de Alfredo Sirkis;
Batismo de Sangue e Das Catacumbas – Cartas da Prisão 1969 – 1971, de Frei Beto;
Sinal de Contradição – Frei Beto depoimento a Afonso Borges Filho;
Mulheres Que Foram a Luta Armada, de Luiz Maklouf Carvalho;
Os Anos de Chumbo A Memória Militar Sobre a Repressão, organizado por Maria
Celina D’Araújo, Glaúcio Ary Dillon Soares e Celso Castro, depoimentos.
Ousar Lutar Memórias da Guerrilha Que Vivi José Roberto Rezende, depoimento a
Mouzar Benedito;
Eu, cabo Anselmo, depoimento a Percival de Souza;
Médici – O Depoimento – Roberto Nogueira Médici;
Dossiê Herzog – Fernando Jordão;
O Poder Jovem História da Participação Política dos Estudantes Brasileiros Arthur
José Poerner;
1968 – O Ano Que Não Terminou – A Aventura de Uma Geração – Zuenir Ventura;
2 . Livros biográficos:
Iara – Reportagem Biográfica, de Judith Lieblich Patarra, biografia;
Lamarca – O Capitão da Guerrilha, de Oldack Miranda e Emiliano José, biografia;
Coleção Os Grandes Lideres – Che Guevara, de Douglas Kellner;
Che Guevara – Uma Biografia, de Jon Lee Anderson;
Coleção O Pensamento Vivo – Che Guevara, org. Marcelo Wahtely Paiva;
3. Livros acadêmicos:
A Revolução Faltou ao Encontro, de Daniel Aarão Reis Filho;
Combate nas Trevas A Esquerda Armada: Das Ilusões Perdidas à Luta Armada, de
Jacob Gorender;
4. Romances:
Não és tu, Brasil, de Marcelo Rubens Paiva, romance;
124
Barão de Mesquita, 425 – A Fábrica do Medo, Alcir Henrique da Costa.
5 Livro de Poesias:
Inventário de Cicatrizes de Alex Polari de Alverga, poesias.
6 Jornais:
Folhetim, Jornal Folha de S. Paulo, O Diário de Lamarca; de 10/07/1987;
Jornal Folha de S. Paulo caderno “Mandíbula o é da ossada de Lamarca, conclui
novo laudo” de 25/06/96;
Jornal Folha de S. Paulo, 4º caderno - Ilustrada, p. 1 de 13/06/1996.
Jornal O Globo – “Descoberta do Laudo Cadavérico de Lamarca” de 07/07/1996;
Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Deputado quer laudos de pessoas ligadas a
Lamarca” p. 9 de 08/07/96;
Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Exército reage a indenização por Lamarca” p. 9 de
09/07/96;
Jornal Folha de S. Paulo 4º caderno Ilustrada, p. 3 “Gabeira muda ‘O Que é Isso
Companheiro” de 09/07/96;
Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Caso Lamarca será discutido em agosto” de
09/07/96;
Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Família de Iara não recorrerá” p. 9 de 09/07/96;
Jornal Folha de S. Paulo caderno “Ministro militar nega crise no caso Lamarca” de
10/07/96;
Jornal Folha de S. Paulo caderno “Laudo de Lamarca teve aval do Exército” p. 11 de
10/07/96;
Jornal Folha de S. Paulo caderno “Morte de 3 do PC do B terá indenização” p. 11 de
13/07/96;
Jornal Folha de S. Paulo caderno Lamarca estava deitado ao ser atingidop. 12 de
25/07/96;
Jornal Folha de S. Paulo – 1º cadernoLaudo diz que tiro de fuzil matou Lamarca” p. 8 de
26/07/96;
Jornal Folha de S. Paulo – caderno “Lobby militar tenta barrar favorecimento a
Lamarca” p. 4 de 30/07/96;
125
Jornal Folha de S. Paulo caderno Exército espera reação no caso Lamarca” p. 10 de
31/07/96;
Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “FHC faz acordo para adiar a decisão sobre
Lamarca” p. 4 de 01/08/96;
Jornal Folha de S. Paulo – 1º caderno “Julgamentos de Lamarca e Marighella são adiados”
p. 9 de 02/08/96;
Jornal Folha de S. Paulo caderno “Reale Jr. Defende indenizar torturados” p. 12 de
04/08/96;
Caderno Mais, Jornal Folha de S. Paulo, caderno Caderno Mais “Jarbas Passarinho
encontra Marcelo Paiva” de 25/08/1996;
Jornal Folha de S. Paulo caderno Passa indenização a Lamarca e Marighella” p. 12
de 12/09/96;
Jornal Folha de S. Paulo – Jornal de Resenhas, p. 3; de 11/10/1996;
Jornal Folha de S. Paulo caderno Comissão de Desaparecidos adia caso Iara” p. 13
de 31/08/97;
Jornal Folha de S. Paulo caderno “Autópsia põe em vida suicídio de Iara” p. 6 de
02/11/97;
Jornal Folha de S. Paulo caderno “Caso Iara só deve ser julgado dia 4” p. 8 de
15/11/97;
Jornal Folha de S. Paulo caderno “Comissão adia julgamento do caso Iara” p. 16 de
03/12/97;
Jornal Correio Braziliense, Especial AI-5 de 13/12/98;
Jornal Folha de S. Paulo 4º caderno Ilustrada, p. 5 “Filme é criticado pela direita e
esquerda”;
Jornal Folha de S. Paulo, caderno Ilustrada, p. 5 “‘O Que é Isso Companheiro’ terá
filha do embaixador”;
Jornal Folha de S. Paulo, 4º caderno – Ilustrada, p. 7 “Elbrick encontra Gabeira”;
Jornal Folha de S. Paulo, “Presidente Geisel morre aos 88 anos, vítima de câncer, caderno
1 p. 4 e seguintes;
Jornal Folha de S. Paulo 5º caderno – Caderno Mais, p.4 e seguintes;
Jornal Folha de S. Paulo Especial “68 O Ano Que Acabou”.
Jornal Folha de S. Paulo caderno Caderno Mais, p.5 e seguintes “A Vida Secreta das
Guerrilheiras – Tabus das Guerrilheiras”;
126
Jornal O Popular – 2º caderno “Sérgio Rezende divulga ‘Lamarca’;
7. Revistas:
Revista Visão – “A Igreja não diz mais amém” p. 24/25 de 26/04/68;
Revista Veja “Segredos do Terror A nova Face do Terror” matéria de capa e p. 20 e
seguintes, de 03/07/70;
Revista Veja “Está Morto A cena final de um terrorista” matéria de capa e p. 23 e
seguintes, de 22/09/71;
Revista Veja – O Livro do Ano – 1971 – “O fim de um terrorista” – 1971;
Revista Veja – “O Campus vai às urnas” p. 54 de 26/09/79;
Revista Veja – “A volta do ‘Dr. Kimble’” pp. 30/31 de 04/04/84;
Revista Veja – “O Porão Iluminado” p. 108 de 24/07/85;
Revista Veja – “A morte de um símbolo” p. 36 e seguintes; de 16/10/85;
Revista Veja – “Dor resgatada” p. 45, de 23/10/85
Revista Veja – “Dor presente” p. 138 de 30/10/85;
Revista Veja – “Para a planície – Tibiriça leva Ustra para a reserva” p. 23 de 26/02/86;
Revista Veja – “A hora da verdade” p. 36 de 10/09/86;
Revista Veja – “Porão de estrelas” p. 30 de 01/04/87;
Revista Veja – “A bomba na abertura” p. 60 e seguintes; de 01/05/91;
Revista Manchete – “Porque foi seqüestrado o embaixador alemão” p. 83 de 02/11/91;
Revista IstoÉ Senhor “Eu, Capitão Ramiro, interroguei Herzog, p. 20 e seguintes; de
25/03/92;
Revista Veja – “Romance nos Porões” Silvio Giannini, p. 84 e seguintes, de 15/07/92;
Revista Veja – “Um mistério por escrito” p. 68 de 19/08/92;
Revista Veja – “A dieta do Capitão Lamarca” de 15/11/93;
Revista Veja “Do fundo das trevas A vida de Lamarca, mito e mártir das esquerdas,
deu um filme envolvente mas incompleto” p. 118 de 04/05/94;
Revista Veja – “No coração do Lobo” p. 34 e seguintes; de 01/03/95;
Revista Veja – “Acerto póstumo” p. 38 de 18/09/96;
Revista IstoÉ – “O anti-herói – Lamarca reconstitui a vida do capitão-guerrilheiro” p. 112
de 06/08/97;
Revista Veja – “Traição em casa” Paulo Moreira Leite, p. 166 de 01/07/98;
Revista Veja – “Eu torturei” p. 42 e seguintes; de 09/12/98;
127
Revista Época – “A Face da Traição” p. 92 e seguintes; de 15/03/99;
Revista Status – “Flávio Tavares – Um relato a Marcos Faerman” p. 31 e seguintes;
8. Dossiês:
Brasil: Sempre, de Marco Pollo Giordani;
Brasil: Nunca Mais, organizado pela Arquediocese de São Paulo, dossiê sobre tortura;
Dos Filhos Deste Solo Mortos e Desaparecidos políticos durante a ditadura militar: a
responsabilidade do Estado, de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio.
Quem é Quem na História do Brasil – Almanaque Abril.
9. Processo:
Processo da Comissão de Mortos e Desaparecidos – Ministério da Justiça.
128
VI - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMANAQUE ABRIL QUEM É QUEM NA HISTÓRIA DO BRASIL. São Paulo:
Abril Multimídia. 2000.
ALVERGA, Alex Polari de - INVENTÁRIO DE CICATRIZES. 3 ed. São Paulo: Editora
Parma. 1978.
ANDERSON, Jon. Lee. CHE GUEVARA: UMA BIOGRAFIA. Rio de Janeiro: Objetiva
1997.
ARQUEDIOCESE DE SÃO PAULO. BRASIL: NUNCA MAIS. 24 ed. Petrópolis: Vozes.
1987.
BANDEIRA, Moniz. O GOVERNO JOÃO GOULART: AS LUTAS SOCIAIS NO
BRASIL (1961-1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1977.
BARTHES, Roland. O Mito, Hoje, in: O PODER DO MITO, São Paulo: Editora Martin
Claret.
BETTO, Frei. DAS CATACUMBAS: CARTAS DA PRISÃO 1969-1971. 3 ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira. 1985.
______. FIDEL E A RELIGIÃO: CONVERSAS COM FREI BETTO. 5 ed. São Paulo:
Brasiliense. 1985.
BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; PASSQUINO, Giancarlo. DICIONÁRIO DE
POLÍTICA, tradução Carmen C. Varriale [ed al]. 7 ed. Brasília: UNB
BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia. (orgs.) MEMÓRIA E (RES)SENTIMENTO:
INDAGAÇÕES SOBRE UMA QUESTÃO SENSÍVEL. Campinas: Unicamp.
BURKE, Peter (org). A ESCRITA DA HISTÓRIA: NOVAS PERSPECTIVAS. Tradução
Magda Lopes. São Paulo: Unesp. 1992.
______. Unidade e variedade na história cultural in: VARIEDADES DA HISTÓRIA
CULTURAL. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2000. p. 231-267.
CARVALHO, Luiz Maklouf, MULHERES QUE FORAM À LUTA ARMADA, São
Paulo, Editora Globo, 1998.
COSTA, Alcir Henrique da. BARÃO DE MESQUITA 425, A FÁBRICA DO MEDO.
São Paulo: Brasil Debates, 1981.
D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon; CASTRO Celso. A MEMÓRIA
MILITAR REPRESSÃO SOBRE A REPRESSÃO. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1994.
DEBRAY, Régis. A GUERRILHA DO CHE. Tradução Ronaldo Antonelli, São Paulo:
Edições Populares, 1980.
129
DOSSE, François A HISTÓRIA EM MIGALHAS: DOS ANNALES À NOVA
HISTÓRIA. Tradução Dulce A. Silva Ramos. São Paulo: Ensaio: Campinas, SP: Editora da
Universidade Estadual de Campinas. 1982.
DULLES, John W. F. O COMUNISMO NO BRASIL 1935-1945. Tradução Raul de
Barbosa. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
ELIADE, Mircea, - O SAGRADO E O PROFANO, 3 ed. Editora Martins Fontes, São
Paulo, 1996.
______. MITO E REALIDADE. 5 ed. Coleção Debates. São Paulo: Editora Perspectiva,
1998.
______. O MITO DO ETERNO RETORNO. Rio de Janeiro: Edições 70. 1993.
FERNANDES, Florestan. A INTEGRAÇÃO DO NEGRO NA SOCIEDADE DE
CLASSES. 3 ed. Vol. 1. São Paulo: Ática. 1978.
GABEIRA, Fernando. O QUE É ISSO COMPANHEIRO, 13 ed. Rio de Janeiro: Codecri,
1980.
______. ENTRADAS E BANDEIRAS, 13 ed. Rio de Janeiro: Codecri. 1981.
GALEANO, Eduardo. VEIAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA. Tradução Galeano
Freitas 37 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1996.
GASPARI, Élio. A DITADURA ESCANCARADA, São Paulo: Companhia das Letras.
2002
______.A DITADURA ESCANCARADA, São Paulo: Companhia das Letras. 2002
GINSBURG, Carlo. OLHOS DE MADEIRA: NOVE REFLEXÕES SOBRE A
DISTÂNCIA. São Paulo: Companhia das Letras. 2001
GIORDANI, Marco Pollo. BRASIL: SEMPRE. Porto Alegre: Tchê. 1986.
GIRARDET, Raoul. MITOS E MITOLOGIAS POLÍTICAS. tradução Maria Lúcia
Machado, São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
GORENDER, Jacob – COMBATE NAS TREVAS, São Paulo, Ática, 1987.
GUEVARA, Ernesto Che. DE MOTO PELA AMÉRICA DO SUL: DIÁRIO DE
VIAGEM. Tradução Diego Ambrosini. 2 ed. São Paulo: Sá Editora. 2003.
JORDÃO, Fernando, DOSSIÊ HERZOG: PRISÃO, TORTURA E MORTE NO
BRASIL. 5 ed. São Paulo: Global, 1984.
JOSÉ, Emiliano & MIRANDA, Oldack, LAMARCA, O CAPITÃO DA GUERRILHA. 9
ed. São Paulo: Global Editora, 1984.
______.______., 15 ed., São Paulo, Global Editora, 2000.
130
KELNNER, Douglas. ERNESTO CHE GUEVARA. Tradução David Casas. São Paulo:
Nova Cultural, 1989.
LEFORT, Claude. PENSANDO O POLÍTICO: ENSAIOS SOBRE DEMOCRACIA,
REVOLUÇÃO E LIBERDADE. Tradução Eliana M. Souza. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
1991.
LOPREATO, Christina Roquete O ESPIRITO DA REVOLTA: A GREVE
ANARQUISTA DE 1917. São Paulo: Annablume; Fapesp. 2000.
MÉDICI, Roberto Nogueira. MÉDICI, O DEPOIMENTO, Rio de Janeiro: Mauad, 1995.
MIRANDA, Nilmário & TIBÚRCIO, Carlos. DOS FILHOS DESTE SOLO, São Paulo:
Boitempo; Editorial, 1999.
NUNES, Mônica Rebecca Ferrari. O MITO NO RÁDIO: A VOZ E OS SIGNOS DE
RENOVAÇÃO PERIÓDICA. 3 ed. São Paulo: ANNABLUME.1999.
PAIVA, Marcelo Rubens. NÃO ÉS TU, BRASIL. São Paulo: Mandarin, 1996.
PAIVA, Marcelo Whately Paiva (Org.). PENSAMENTO VIVO DE CHE GUEVARA.
São Paulo: Martin Claret 1987.
PATARRA, Judith Lieblich. IARA REPORTAGEM BIOGRÁFICA. 4 ed. Rio de
Janeiro: Rosa dos Tempos. 1993.
PRADO JR., Caio. A REVOLUÇÃO BRASILEIRA. 7 ed. São Paulo: Brasiliense. 1987.
PRESTES, Anita L. A COLUNA PRESTES. 3 ed. São Paulo: Brasiliense. 1991.
POERNER; Arthur José. O PODER JOVEM: HISTÓRIA DA PARTICIPAÇÃO
POLÍTICA DOS ESTUDANTES BRASILEIROS. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
1968.
RETAMAR, Roberto F. CALIBAN E OUTROS ENSAIOS. São Paulo. Ed. Busca Vida.
1988.
REIS FILHO, Daniel Aarão. A REVOLUÇÃO FALTOU AO ENCONTRO.
MCT/CNPq, Editora Brasiliense, 1990.
RESENDE, José Roberto; BENEDITO, Mouzar. OUSAR LUTAR MEMÓRIAS DA
GUERRILHA. Rio de Janeiro: Viramundo. 2000.
SODRÉ, Nelson Werneck. DO TENENTISMO AO ESTADO NOVO: MEMÓRIAS
DE UM SOLDADO. 2.ed. Petrópolis: Vozes. 1986.
SYRKIS, Alfredo. OS CARBONÁRIOS: MEMÓRIAS DA GUERRILHA PERDIDA. 6
ed. São Paulo: Global. 1981.
SOUZA, Percival. EU, CABO ANSELMO. Rio de Janeiro: Editora Globo. 1999.
131
STARLING, Heloisa Maria Murgel. OS SENHORES DAS GERAIS: OS NOVOS
INCONFIDENTES E O GOLPE MILITAR DE 1964. 4
ed. Petrópolis: Vozes. 1986
SZULC, Fidel. FIDEL: RETRATO CRÍTICO. Tradução Jusmar Gomes. São Paulo: Best
Seller. 1987.
TAVARES, Flávio. MEMÓRIAS DO ESQUECIMENTO. 4 ed. São Paulo: Globo. 1999.
USTRA, Carlos Alberto Brilhante, ROMPENDO O SILÊNCIO, 2 ed., Brasília: Editerra,
1987.
VAIL, John J. FIDEL CASTRO. Tradução Maria Sílvia C. Passos. São Paulo: Nova
Cultural. 1987.
VENTURA, Zuenir. 1968: O ANO QUE NÃO TERMINOU, Rio de Janeiro: Nova
Fronteira. 1988.
VERNANT Jean-Pierre ENTRE MITO & POLÍTICA; 2 ed. São Paulo; Editora da
Universidade de São Paulo, 2002.
VIEIRA, Evaldo. ESTADO E MISÉRIA SOCIAL NO BRASIL: DE GETÚLIO A
GEISEL 1951 A 1978. 3 ed. São Paulo: Cortez. 1987
Revistas:
VEJA – de 1968 a 2003.
CAROS AMIGOS – Edição Especial de 10/97.
Jornais:
JORNAL FOLHA DE S. PAULO, de 1968 a 2003.
FOLHETIM, JORNAL FOLHA DE S. PAULO, O Diário de Lamarca
O GLOBO, Descoberta do Laudo Cadavérico de Lamarca
Processos judiciais:
PROCESSO DA COMISSÃO DE MORTOS E DESAPARECIDOS NO
REGIME MILITAR
132
VII - ANEXOS
133
ANEXO 1 – ACUSAÇÕES A LAMARCA NO INQUÉRITO
INQUÉRITO DO DOPS DE SÃO PAULO
ENVIADO À SEGUNDA AUDITORIA
Carlos Lamarca – vulgos João, César, ex-capitão do Exército, era o
melhor atirador do regimento, instrutor de tiro dos funcionários do Branco
Brasileiro de Descontos. Durante as manobras de treinamento contra guerrilha
realizadas pelo Exército com o sentido de treinamento, poucas vezes ficava do
lado dos ‘legais’, preferindo combater com os ‘guerrilheiros’. Atual membro da
VPR Vanguarda Popular Revolucionária, é acusado de participante ou
responsável das seguintes ações:
1. Assalto à Pedreira Cajamar.
2. Assalto à Pedreira Fortaleza.
3. Atentado a bomba ao consulado norte-americano em São Paulo.
4. Atentado a bomba ao jornal O Estado de S. Paulo.
5. Atentado a bomba à loja Sears, na Lapa.
6. Atentado ao Quartel-General do II Exército, do que resultou a morte de um soldado.
7. Assassinato do capitão norte-americano Charles Chandler.
8. Morte de um sentinela do Quartel da Força Pública no Barro Branco.
9. Roubos de armas na Casa Diana.
10. Assalto ao Hospital Militar no bairro do Cambuci.
11. Assalto ao carro pagador da Massey-Ferguson.
12. Assalto ao trem pagador da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí.
13. Assalto ao Banco Brasileiro de Descontos, agência Rudge Ramos.
14. Assalto ao Banco do Comércio e Indústria de São Paulo.
15. Assalto ao Banco do Estado de São Paulo, agência da rua Iguatemi.
16. Assalto ao Banco do Comércio e Indústria de São Paulo.
17. Outro assalto ao mesmo Banco do Estado de São Paulo da rua Iguatemi.
18. Furtos de um caminhão, um jipe, 22 automóveis e três camionetes.
187
187
PAIVA Marcelo Rubens; Não És Tu, Brasil, São Paulo; Mandarim; 1996; p. 37
134
ANEXO 2 PREFÁCIO DO LIVRO DE OLDACK MIRANDA E EMILIANO JOSÉ
LAMARCA O CAPITÃO DA GUERRILHA – ESCRITO POR RAIMUNDO JOSÉ
“Os jornalistas brasileiros têm ajudado a contar a história recente do país através de vários
livros. São reportagens e pesquisas que a imprensa não pôde ou não quis fazer na época: a
Guerrilha do Araguaia, a Tortura, O projeto Jari, de Fernando Portela, Antônio Carlos Fon,
Sérgio Buarque, Palmério Vasconcelos, Jaime Sautchuk e outros. O livro de Emiliano e
Oldack, um desses documentos de nossa história, acrescenta aos esforços anteriores mais do
que um perfil político do capitão Lamarca: revela também a intensa emoção, o amor e a
tragédia da vida de alguns revolucionários desse período; e inclui também uma narrativa
precisa e dramática do horror desses anos de repressão sangüinária.”
O livro permite uma reflexão amarga sobre a imprensa de nossos dias. A certa altura, numa
entrevista que nunca saiu, nem sairia na imprensa legal da época, Lamarca diz que ‘a
imprensa é dominada pelo capital americano; o que ficava de dignidade foi varrido pela
pressão econômica. O regime de semi-escravidão do Nordeste brasileiro es sendo
institucionalizado pelo governo e a imprensa aplaude, mostrando o grau de indignidade
moral a que chegou’.
Lamarca exagera nesse juízo. Restava muita dignidade dentro das redações dos jornais
brasileiros da época. Mas o erro não é essencial: a direção das grandes empresas
jornalísticas, que o tom e o conteúdo geral das publicações que dominam o mercado de
informações, fez o que pôde para omitir ou ocultar a vida trágica daqueles anos, exatamente
por seu compromisso com o regime militar implantado para servir os monopólios e
latifundiários, especialmente os estrangeiros.
Mesmo os jornalistas empenhados em divulgar a verdade não tinham sequer, às vezes, como
se aproximar dos fatos. Na época dos acontecimentos relatados por Oldack e Emiliano, eu fui
editor de política da revista Veja. E, mesmo tendo escrito várias vezes sobre a ‘guerrilha
urbana’, e mesmo tendo feito esforços para revelar as torturas junto com os companheiros da
revista, ao ler hoje Lamarca, o Capitão da Guerrilha, me surpreendo com a fibra, o
heroísmo, o amor à Pátria, à revolução, e mesmo os muitos acertos e descobertas políticas
dos grupos armados daquele período. Mais do que o isolamento político dos revolucionários,
foi o terror oficial, a intimidação, a pressão econômica, a guerra psicológica que envenenava
o país a partir dos porões da tortura que nos levavam a uma admiração descrete e passiva
pelos que, mesmo em seus erros, enobreceram o espírito do povo brasileiro, reafirmaram a
sua disposição de dar a vida por liberdade e justiça.
Emiliano e Oldack provam, com sua obra, a qualidade do jornalismo de partido. É uma
história que inclui fatos centrais para a compreensão dos graves erros políticos dos
guerrilheiros, mas é, ao mesmo tempo, uma história contada por quem está ao lado dos que
combateram o fascismo. É o jornalismo dos que têm posição, sem ter uma seita, tão vigoroso,
tão denso e tão real como jamais poderá ser o jornalismo dos escritores de aluguel, tão ao
gosto dos patrões de hoje, eternamente perdidos no seu esforço de equilibrar os dois lados
quando um é a morte, o rastro de sangue, a tortura, a corrupção e a mordomia e o outro é o
futuro, a esperança, o sofrimento, o grito de liberdade.
É um esforço jornalístico, histórico e político. Faz sentir orgulho da nossa profissão, do seu
alcance e suas limitações. Ajuda na educação e na elevação do nível de consciência política
do povo. Mostra como o jornalista ajuda também a escrever a história quando compreende
as limitações objetivas do seu trabalho, o tempo curto e o espaço limitado que
desaconselham o preconceito, o doutrinarismo, o perfeccionismo, o intelectualismo e
recomendam o espírito de crítica, de pesquisa, da urgência da luta e da realidade.
135
O livro mostra um Lamarca de que poucos têm notícias: pai dedicado e amoroso; o homem
apaixonado; o revolucionário em busca de uma saída para seu povo; o justiceiro de sangue
frio que expropriou a fortuna que Adhemar de Barros passou para o cofre da amante; o
capitão competente e corajoso que enfrenta e vence o cerco de 20 mil soldados no Vale do
Ribeira; e o político angustiado que morreu no sertão isolado, mas que vibrava de alegria
com as vitórias de qualquer povo, elogiava Fidel, Lênin e Trotsky, dava vivas à Albânia e
desejava ‘longa vida’ à Mao Tse-Tung.
Suas idéias sobre a guerrilha também ficam melhor esclarecidas. O Vale do Ribeira era um
bom campo de treinamento de guerrilheiros e, como tal, teve sucesso relativo. Na região de
Buriti Cristalino, sertão da Bahia, ele se convenceu de que o melhor a fazer era recrutar
quadros camponeses para a luta armada. As áreas mais prováveis para a guerrilha, dizia ele,
estavam no eixo Goiás-Maranhão-Mato Grosso: a mesma conclusão a que, por outros
caminhos, chegou o Partido Comunista do Brasil.
O livro de Emiliano e Oldack realiza ainda um mergulho no poço negro do horror fascista e
ajuda a compreender por que a luta pela anistia ampla, geral e irrestrita, pela punição dos
torturadores e desmantelamento dos órgãos repressivos não pode ser interrompida: no livro
estão os nomes de muitos dos responsáveis pelos crimes e que hoje circulam com liberdade
em postos oficiais.
A seqüência que leva à descoberta do refúgio do Capitão Lamarca no sertão talvez não tenha
paralelo na história da crueldade policial brasileira: mulheres enlouquecem, outras morrem,
outras se suicidam; homens são trespassados por torturas que lhes arrancam as almas e os
obrigam à traição.
Ao mesmo tempo, lemos a história de Olderico, o amigo de Lamarca que resiste e se mantém
de ; pessoalmente vitorioso, com o rosto varado por uma bala, a mão mutilada. O corpo
dilacerado por pancadas e eletricidade; mas com a alma alegre e vitoriosa de quem não
traiu.
Com a história de Olderico, os dois jornalistas baianos abrem o livro. Fi ela que Emiliano
ouviu fascinado numa noite de prisão na Bahia. E é o seu significado profundo, o otimismo,
que transparece na narrativa”
136
ANEXO 3 – ARTIGO MARILENA FILINTO
“Fatos antigos, que não se renovam, que não causam perturbação nos espíritos das gerações
seguintes: como transformar em heróis os corpos crivados de bala, as caras contorcidas e
torturadas de Carlos Lamarca e Carlos Marighella?
As ossadas dos guerrilheiros do Araguaia, desenterradas nos confins de Tocantins
recentemente, confundem-se com outras exumações de cadáveres feitas ainda ontem: todo
documento é suspeito, todo laudo técnico, todo passado histórico brasileiro, do mais remoto
ao mais recente.
Impossível tirar heróis das imagens deformadas e, em última instância, derrotadas. Mais
fácil apaixonar-se por Fidel Castro e Che Guevara como fizemos, um grupo de amigas
adolescentes e eu, no início dos anos 80, lendo a biografia desses revolucionários mitos
latino-americanos.
Resta saber se a geração adolescente de hoje foi ao cinema assistir ao filme de Sérgio
Rezende – ‘Lamarca O Coração em Chamas’ e saiu apaixonada pelo capitão que desertou
do Exército para combater o regime militar.
Nossa paixão por Castro e Guevara era romântica e ideológica. Desejávamos fisicamente
aqueles homens barbados, armados e amoitados no escuro da Sierra Maestra.
Admirávamos a luta ousada contra os ianques. Líamos em voz alta as palavras de Fidel
Castro: ‘A justiça continuará a ser feita, até que todos os criminosos do regime de Batista
tenham sido julgados... Se os norte-americanos não estiverem gostando do que está
acontecendo em Cuba, eles poderão desembarcar os ‘marines’ e, então, haverá 200 mil
gringos mortos.’
Para a história dos guerrilheiros brasileiros, entretanto, meu olhar sempre foi de
distanciamento e frieza, de desinteresse quase. Uma visão retrospectiva explica um pouco.
Foram décadas ruins as de 60 e 70. Havia uma dureza no ar, uma constante ameaça de
miséria na vida do lugar.
Na escola, meninos muito pequenos, éramos obrigados a formar fila, fardados como
soldados, e cantar todo santo dia, no pátio, sob o sol a pino da 1h. da tarde em Recife, o Hino
Nacional, de cor e salteado, sem errar um único verso. Anos depois, passei a sofrer de uma
espécie de aversão ao hino.
Anos depois, quando tive consciência de que houve gente combatendo a dureza das fardas,
gente torturada, morta e exilada, não senti qualquer emoção mais profunda. Sempre olhei
com desdém a mistura de nostalgia e orgulho da geração velha, que participara da ‘luta’ e
olhava a minha como alienada.
Era quase impossível perdoar àqueles guerrilheiros esforçados as centenas de hinos que
cantei, a gravata apertada, a rigidez, a miséria. Impossível perdoar a derrota, a frustração,
as duas décadas de ditadura, a vergonha de ser brasileiro.
Nos meus homens de Cuba, havia vitória nos olhos largos, no misto de força e ternura de Che
Guevara, no corpo duro e grande de Fidel Castro. Na história falsificada do Brasil nunca
houve com o que sonhar.”
188
188
Artigo publicado no JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO, de 09/07/96 cad. 2 pag. 3 sob o título Lamarca,
Marighella e meus homens de Cuba, por Marilene Felinto da Equipe de Articulistas do jornal.
137
LAUDO CADAVÉRICO DE LAMARCA
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo