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FACULDADE DE DIREITO DE VITÓRIA
PROGRAMA DE MESTRADO STRITO SENSU EM DIREITOS E GARANTIAS
FUNDAMENTAIS
CLARISSA MENDES DE SOUSA
A AÇÃO CIVIL PÚBLICA E A PROTEÇÃO DOS DIREITO
FUNDAMENTAIS NO COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO
VITÓRIA
2007
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CLARISSA MENDES DE SOUSA
A AÇÃO CIVIL PÚBLICA E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS NO COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado
em Direitos e Garantias Fundamentais da
Faculdade de Direito de Vitória, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em
Direito, na área de concentração de Direitos e
Garantias Fundamentais.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Henrique Bezerra Leite.
VITÓRIA
2007
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FICHA CATALOGRÁFICA
CLARISSA MENDES DE SOUSA
A AÇÃO CIVIL PÚBLICA E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS NO COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direitos e Garantias Fundamentais da
Faculdade de Direito de Vitória, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, na
área de concentração de Direitos e Garantias Fundamentais.
Aprovada em de de 2007.
COMISSÃO EXAMINADORA
Prof. Dr. Carlos Henrique Bezerra Leite
Faculdade de Direito de Vitória
Orientador
Aos meus amados pais.
AGRADECIMENTOS
Aos melhores pais do mundo, José Luiz e Solange, que sempre incentivam e apóiam
minhas novas empreitadas.
Ao Doutor Carlos Henrique Bezerra Leite, orientador desta dissertação, verdadeiro
exemplo de professor dedicado ao reconhecimento dos direitos e interesses
metaindividuais.
Aos colegas do mestrado que estiveram sempre presentes ao longo da caminhada,
contribuindo com inúmeros debates teóricos, em especial à Ana Lúcia, com sua
permanente disponibilidade para a troca de idéias que muito enriqueceu para o
resultado deste trabalho.
À Ana Paula Branco, mestra e amiga de grande estima, sempre na torcida pelos
melhores resultados e contribuindo para que eles se realizem.
Aos amigos e amigas de todas as horas.
Muito obrigada!
RESUMO
O objetivo do trabalho é discutir a respeito dos direitos humanos, na perspectiva do
trabalho análogo ao de escravo, acesso à justiça e ão civil pública. O problema a
que ora discute é: como a ação civil pública pode ser um instrumento fundamental
para a efetivação dos direitos humanos no combate ao trabalho escravo. O método
adotado para desenvolver a pesquisa foi o dialético pluridisciplinar, a fim de permitir
diferentes enfoques sobre o mesmo assunto. As fontes de consulta utilizadas no
desenvolvimento deste trabalho foram: pesquisa bibliográfica e documental, por meio
de leitura analítica de artigos, livros, legislação e análise de decisões judiciais
correlatas. Os resultados alcançados pela pesquisa demonstram que a ação civil
pública e a criatividade dos magistrados e procuradores do trabalho estão aptos a
garantir verdadeiras punições àqueles que ainda hoje mantêm seres humanos como
escravos, defendendo, assim, os direitos humanos. Com os resultados obtidos com
essa ação, é possível promover a dignidade da pessoa humana e a cidadania tanto
dos trabalhadores que foram resgatados do cativeiro, quanto das comunidades
vizinhas, à medida que o provimento jurisdicional pune quem incorre no crime do art.
149 do CPB, proporcionando o efetivo acesso à Justiça.
Palavras - Chave: Ação civil pública. Trabalho escravo. Direitos fundamentais.
ABSTRACT
The purpose of this work is to discuss over the human rights, concerning slave-like
work, access to justice and class action lawsuit. The issue to be discussed is in what
ways the class action lawsuit can be an essential instrument for the consolidation of
human rights in the struggle against slave-like work. In order to develop the research,
the multi-disciplinary dialectic approach was used, so that it would allow different
focuses within the same subject. The sources that were used in the writing of this work
were: bibliographical and documental research as well as analytical reading of articles,
books, legislation and analysis of related court decisions.The results reached on the
research show that the class action lawsuit along with the creativity of the magistrates
and labor attorneys are able to guarantee – in order to defend the human rights - actual
punishment to those who still keep human beings as slaves. Using the results obtained
from this action, it is possible to provide dignity of the human being and the citizenship,
not only for workers that were rescued from the bondage, but also the nearby
communities. As the provision under jurisdiction punishes those who are charged with
the crime as read on art. 149, CPB, the effective access to justice is promoted.
Key Words: Class action lawsuit. Slave and slave-like work. Primary rights.
LISTA DE SIGLAS
ACC – Ação Civil Coletiva
ACP – Ação Civil Pública
ASI – Ant-slavery International
CDC – Código de Defesa do Consumidor
CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas
CONTRAE – Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo
CPB – Código Penal Brasileiro
CRFB – Constituição da República Federativa do Brasil
EC – Emenda Constitucional
GERTRAF – Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado
LACP – Lei de Ação Civil Pública
MP – Ministério Público
MPT – Ministério Público do Trabalho
MT – Mato Grosso
MTE – Ministério do Trabalho e Emprego
OIT – Organização Internacional do Trabalho
ONG – Organização Não-Governamental
PEC – Projeto de Emenda Constitucional
SINAIT – Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho
SINE – Sistema Nacional de Empregos
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................
....................................................
12
CAPÍTULO I: SONHOS TRANSFORMADOS EM DIMENSÕES..............................
15
1 BREVE HISTÓRICO DAS DIMENSÕES DOS DIREITOS
HUMANOS)......................................................................................................
15
1.1 BREVE HISTÓRICO DOS DIREITOS HUMANOS.........................................
16
1.2 DIMENSÕES DOS DIREITOS HUMANOS.....................................................
21
1.2.1 Direi
tos Humanos de Primeira Dimensão..........................................
24
1.2.2 Direitos Humanos de Segunda Dimensão........................................
25
1.2.3 Direitos Humanos de Terceira Dimensão......................
....................
28
1.2.4 Direitos Humanos de Quarta e Quinta Dimensões...........................
29
CAPÍTULO II: DA ESCRAVIDÃO À ESCURIDÃO...................................................
32
2. DO TRABALHO ESCRAVO LEGALIZADO À SU
A ILEGALIDADE ....................
32
2.1 A ESCRAVIDÃO NO BRASIL COLÔNIA........................................................
32
2.2 O USO DO TERMO TRABALHO ESCRAVO.................................................
35
2.3 AS PRIMEIRAS DENÚNCIAS DE TRABALHO ESCRAVO........................... 37
2.4 BREVES COMPARAÇÕES ENTRE O TRABALHO ESCRAVO LEGAL E O
TRABALHO ESCRAVO ILEGAL...................................................................
37
2.5 QUEM É O ESCRAVO CONTEMPORÂNEO.................................................
38
2.6 LEGISLAÇÃO RELATIVA AO TRABALHO ESCRAVO..................................
41
2.6.1 Legislação Internacional.................................................................
....
41
2.6.2 A Evolução do Código Penal Brasileiro no Conceito de Trabalho
Análogo ao de Escravo.......................................................................
45
2.6.2.1 Trabalho Forçado ou Obrigatório................................................. 52
2.6.2.2 Jornadas Exaustivas e Trabalho Degradante ..............................
52
2.7 CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS TRABALHISTAS E O TRABALHO
ESCRAVO...................................................................................................
56
2.7.1 Trabalho Escravo e a Relação de Emprego......................................
56
2.8 LEI 7.998/90, LEI 10.608/02 E O SEGURO DE SEMPREGO DEVIDO
AOS TRABALHADORES EM CONDIÇOES ANÁLOGAS À DE
ESCRAVO........................................................................................................
60
2.9 PROJETO DE EMENDA CONSTITUCIONAL n° 38 DE 2001........................
63
CAPÍTULO III .............
................................................................................................
64
3 O TRABALHO ESCRAVO À LUZ DOS DIREITOS E GARANTIAS
FUNDAMENTAIS..................................................................................................
64
3.1 DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS.............................................................
69
3.2 A CIDADANIA COMO EFEITO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS...............
71
3.3 O TRABALHO ESCRAVO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ..........
72
3.4 O TRABALHO ESCRAVO E O OS DIREITOS E GARANTIAS
FUNDAMENTAIS.............................................................................................
76
3.5 O TRABALHO ESCRAVO E OS DIREITOS SOCIAIS ..................................
77
3.5.1 Direito de Resistência..........................................................................
80
CAPÍTULO IV .........................................................................................................
....
82
4 A FUNÇÃO DA AÇÃO PÚBLICA NA ERRADICAÇÃO DO TRABALHO
ESCRAVO.............................................................................................................
82
4.1 A AÇÃO CIVIL PÚBLICA................................................................................
83
4.2 CONCEITUAÇÃO DE DIREITOS DIFUSOS, COLETIVOS E INDIVIDUAIS
HOMOGÊNEOS...............................................................................................
85
4.2.1 Interesses Difu
sos...............................................................................
86
4.2.2 Interesses Coletivos............................................................................
88
4.2.3 Interesses Individuais Homogêneo
s..................................................
89
4.3 A AÇÃO CIVIL PÚBLICA COMO DIREITOS E GARANTIA
FUNDAMENTAL...............................................................................................
91
4.4 O PEDIDO DE DANO MORAL COLETIVO....................................................
93
4.5 PROVIMENTOS JURISDICIONAIS POSSÍVEIS EM SEDE DE ACP:
NATUREZA JURÍDICA ..............................................................................................
97
4.6 A AÇAO CIVIL PÚBLICA COMO EFETIVADORA DA
CIDADANIA....................................................................................................
99
4.7 INTERESSES OU DIREITOS DOS TRABALHADORES EM CONDIÇÃO
DE ESCRAVIDÃO PROTEGIDOS PELA AÇÃO CIVIL PÚBLICA ..................
103
5 CONCLUSÃO .........................................................................................................
109
REFERÊNCIAS.........................................................
..................................................
111
INTRODUÇÃO
O presente trabalho apresenta como problema a possibilidade de a Ação Civil Pública
(ACP) ser um instrumento de garantia fundamental para a efetivação dos direitos
humanos no combate ao trabalho escravo. Pretende-se discutir os direitos humanos, o
trabalho escravo, o acesso à Justiça e à Ação Civil Pública. Para tanto, apresentam-se
idéias que atravessam séculos, sendo, portanto, ao mesmo tempo, secular e atual.
Isso porque a escravidão era a forma de trabalho utilizada em nossa colonização e se
encontra presente até os dias atuais, por meio de “máscaras” que ajudam a burlar a
legislação.
o “trabalho escravo”
1
faz parte da nossa genética e está impregnado na mentalidade
de quem continua a insistir na exploração de seus semelhantes. Assim, essa luta
requer, ainda, muito esforço daqueles que têm consciência da barbárie que a
escravidão representa e por isso pretendem ajudar a mudar esse quadro.
Na busca de aprofundar os estudos sobre trabalho escravo, esta dissertação objetiva:
localizar os momentos históricos em que se destacaram os direitos sociais e os
direitos e interesses metaindividuais; definir e conceituar o que é o trabalho análogo ao
trabalho escravo; identificar a sua realidade; determinar se trabalho análogo ao de
escravo é forma de trabalho ou de ofensa aos princípios de direitos humanos; analisar
o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana em relação ao trabalho
análogo ao de escravo; verificar como a ACP pode ser útil no combate ao trabalho
escravo; analisar os possíveis pedidos em sede de Ação Civil Pública; demonstrar a
importância e grandiosidade da ACP no ordenamento jurídico brasileiro e analisá-la
como elemento de efetivação dos direitos humanos e cidadania do trabalhador sob
condições análogas à de escravo.
A relevância do estudo encontra-se no fato de que a escravidão ocorreu no período do
Brasil Colônia, mas, apesar de ser considerada uma prática ilegal na atualidade, ainda
se tem nocia de sua existência, principalmente, nas regiões mais afastadas dos
1
Ao longo do trabalho, pode-se observar que existe uma discussão a respeito da utilização do termo Trabalho
Escravo.
centros urbanos, onde a fiscalização dos órgãos públicos é mais difícil e as condições
de miséria deixam grande parte da população sem qualquer formação profissional e,
conseqüentemente, sem escolha de atividades profissionais.
Considerando-se esses elementos que dificultam a efetivação dos direitos humanos
dos trabalhadores em situação análoga à de escravo, vislumbra-se, como
possibilidade legal de inibir a permanência do trabalho escravo que, sob novas formas,
retoma o Brasil de 400 anos atrás, a ACP, uma vez que as ações penais não têm
alcançado os seus objetivos em relação aos condenados pelo crime de redução de
alguém à condição análoga à de escravo.
O estudo começa com uma breve abordagem histórica sobre os direitos humanos,
partindo da independência das 13 colônias dos Estados Unidos da América do Norte
até os dias de hoje, buscando entender a evolução desses “novos direitos”. Para tanto,
classifica os períodos históricos em que se destacaram determinados direitos
humanos em dimensões: na primeira delas, predominava a idéia dos direitos
individuais; na segunda, os direitos sociais; e, na terceira, os direitos metaindividuais
(interesses, difusos, coletivos e individuais homogêneos).
Em seguida, no Capítulo II, trata do histórico brasileiro do trabalho escravo, partindo do
Brasil Colônia, momento histórico em que essa forma de trabalho era legal e
representava status dos proprietários, até os dias atuais, em que tal prática é proibida
por atentar contra a dignidade da pessoa humana, contra os direitos fundamentais e,
mesmo assim, ainda faz parte da realidade do País.
No capítulo subseqüente, faz-se uma abordagem constitucional dos direitos humanos,
por meio dos princípios, direitos e garantias fundamentais. Nesse momento, subsume-
se o trabalho análogo ao de escravo e as normas constitucionais que garantem a
esses trabalhadores, acima de tudo, cidadania e dignidade como seres humanos.
Por fim, no Capítulo IV, analisa-se a Ação Civil Pública como uma garantia
constitucional, capaz de produzir efeitos reais no combate ao trabalho escravo e,
portanto, possibilitar a esses trabalhadores acesso à Justiça pretendida, quando ainda
se ouve que seres humanos são tratados de forma análoga à de escravo.
As fontes de pesquisa foram bibliográficas e documentais, uma vez que a base da
pesquisa foi desenvolvida por meio de leitura analítica de artigos, livros, pesquisas e
legislação referentes ao tema, além da análise de decisões judiciais sobre trabalho
análogo ao de escravo.
O método utilizado foi o dialético pluridisciplinar, que permite que o tema seja tratado
em diferentes enfoques, como sociológico, filosófico e legal. Ocorreram confrontos
com a práxis e informações oriundas da realidade jurisprudencial e de pesquisas
prexistentes, buscando, a partir desse confronto, gerar uma síntese criativa de
diferentes tópicos abordados no trabalho, uma vez que foram apresentados e
discutidos conceitos, ao longo da pesquisa, objetivando, assim, aproximar os
resultados da realidade e da resposta do problema proposto.
CAPITULO I - SONHOS TRANSFORMADOS EM DIMENSÕES
É verdade que apostar é uma coisa e vencer é outra. Mas também é verdade
que quem aposta o faz porque tem confiança na vitória. É claro não basta a
confiança para vencer. Mas se não se tem a menor confiança, a partida está
perdida antes de começar. Depois, se me perguntassem o que é necessário
para se ter confiança, eu voltaria às palavras de Kant citadas no início:
conceitos justos, uma grande experiência e, sobretudo, muita boa vontade
(BOBBIO, 2004, p. 232).
1 BREVE HISTÓRICO DAS DIMENSÕES DOS DIREITOS HUMANOS
Estudar os direitos humanos em dimensões
2
não significa separá-los em classes
estanques, sugerindo que cada dimensão seja restrita a esses ou aqueles direitos. A
classificação tem cunho didático-pedagógico e serve para ajudar a entender o que
aconteceu com o Direito em determinados momentos da História e acompanhar o seu
desenvolvimento.
Vê-se que os direitos de primeira dimensão ainda estão presentes em nossa
sociedade e que o simples fato de terem surgido direitos de terceira, quarta e quinta
dimensões não significa o desaparecimento dos anteriores. As dimensões coexistem
fazendo com que os direitos humanos sejam interdependentes e complementares. É
sempre bom lembrar que, apesar de esses direitos terem sido reconhecidos
bastante tempo, nem todos são gozados pelo cidadão, e o maior problema referente a
eles, em nossa sociedade, tem sido a sua efetivação.
Justamente no tocante à não efetivação é que o presente trabalho ganha importância,
pois os direitos dos trabalhadores em condição análoga à de escravos fazem parte,
acima de tudo, dos direitos humanos e, por falta de efetivação, eles são, em regra,
tratados de forma oposta ao que determina a Constituição e as normas
infraconstitucionais.
1.1 BREVE HISTÓRICO DOS DIREITOS HUMANOS
2
A explicação sobre a escolha da expressão dimensão, e não geração, será feita mais à frente, no item em que se
fala sobre as dimensões dos direitos humanos.
O estudo parte da independência das 13 colônias dos Estados Unidos da América,
pois foi em 4 de julho de 1776, com a Declaração de Independência (Declaração de
Direitos do Povo da Virgínia) e, em 1787, com a Constituição dos Estados Unidos da
América do Norte, que os direitos humanos passaram a ser constitucionalizados e,
portanto, deveriam ser lidos para todos. Foi nesse momento foram reconhecidos os
direitos humanos, propriamente ditos. Mesmo os autores que demonstram fatos
históricos que introduzem a idéia de dignidade humana, anteriores à Declaração de
Independência dos Estados Unidos, aceitam o fato de esse ser o primeiro documento
político que legitimou os direitos mínimos para todos os seres humanos.
A importância histórica da Declaração de Independência está justamente aí: é
o primeiro documento político que reconhece, a par da legitimidade da
soberania popular, a existência de direitos inerentes a todo ser humano,
independentemente das diferenças de sexo, raça, religião, cultura ou posição
social (COMPARATO, 2005, p.103).
Dessa forma, sem desmerecer os marcos humanistas, por exemplo, do período axial
séc. VIII a. C. momento em que o homem começa a refletir sobre si mesmo e a
formar a concepção de que é um ser único e incompleto, mas essencialmente igual e,
portanto, possuidor de liberdade e razão, tanto no plano religioso quanto no filosófico e
existencial (COMPARATO, 2005). Também sem desmerecer o que, para Fábio K.
Comparato, foi um outro marco do início da mentalidade dos direitos humanos, “[...] a
instituição, sob Davi, do reino unificado de Israel, tendo como capital, Jerusalém”
(2005, p. 40), pois, nesse momento,
[...] instituiu-se, pela primeira vez na historia política da humanidade a figura
do rei-sacerdote, o monarca que não se proclama Deus nem se declara
legislador, mas se apresenta, antes, como delegado do Deus único e o
responsável supremo pela execução da lei divina (COMPARATO, 2005,
p.40).
Adotar-se-á, assim como Fábio Comparato, o ano de 1776, como o que deu validade e
exigibilidade aos direitos humanos, por meio de sua constitucionalização: “O artigo I da
declaração que ‘o bom povo da Virginia’ tornou pública, em 16 de junho de 1776,
constitui o registro de nascimento dos direitos humanos na História”(2005, p. 49), o
que demonstra que esse foi o marco mais importante, para o Direito, no que diz
respeito à exigibilidade e constitucionalidade dos direitos humanos.
Contudo é importante frisar que a Declaração estabeleceu que não seria mais aceita
qualquer forma de trabalho escravo nas colônias e, com isso, as colônias do Norte
acabaram abolindo o trabalho escravo, entretanto as colônias do Sul dos Estados
Unidos permaneceram com essa prática e com mentalidade escravagista e anti-
humanista. Esse fato leva a crer que nem todos os objetivos da Declaração de
Independência foram efetivados e que a falta de efetivação desses direitos é oriunda
de sua origem constitucional.
Logo após a Independência dos Estados Unidos, foi o momento de os franceses
fazerem sua revolução, que em muito se assemelhou à norte-americana e gerou,
como tal, um documento de suma importância para os direitos humanos, a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão. Observa-se que, ao comparar os ideais da
Independência dos Estados Unidos e as da Revolução Francesa, vê-se que se
diferenciam pelo fato de que essa, posterior àquela, valorizou, além da liberdade e da
igualdade, a fraternidade e solidariedade e foi um “[...] gênero de importantíssimas
renovações institucionais na medida em que içou, a favor do homem, a tríade da
liberdade, igualdade e fraternidade, decretando, com seus rumos, o presente e o futuro
da humanidade” (BONAVIDES, 2001, p.16).
Ao final da Revolução Francesa, foi criada a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão. Esse documento concretizou, materialmente, os anseios da Revolução,
porém ainda não conseguiu efetivar o ideal de direitos humanos, direitos esses que
pretendem defender os direitos de todos os indivíduos, como veremos.
Com a Declaração, apesar de uma visão mais ampla dos que seriam os detentores de
direitos, como o próprio nome indicava, somente eram garantidos os direitos daqueles
que eram considerados humanos em plenitude. Homens, na época, eram os seres do
sexo masculino, brancos, com posses, o que fazia com que continuasse a segregação.
Mulheres, crianças, negros e pobres continuavam a não possuir direito efetivo à
liberdade, à igualdade e à fraternidade. É importante observar, assim como Noberto
Bobbio (2004), que, apesar de a Declaração possuir dispositivo que considerava
todos os homens iguais,
Os direitos do homem, apesar de terem sido considerados naturais desde o
início, não foram dados de uma vez por todas. Basta pensar nas vicissitudes
da extensão dos direitos políticos. Durante séculos não se considerou de
forma alguma natural que as mulheres votassem [...] (BOBBIO, 2004, p.229).
As palavras do professor supracitado são importantes para demonstrar que nem todas
as pessoas eram tratadas com dignidade e, apesar de proclamada uma igualdade
legal, a prática era diferente, havia dificuldade de aceitar os direitos dos homens e dos
cidadãos como direito de todas as pessoas e não apenas daqueles que eram
considerados cidadãos ou eram proprietários.
Assim, apesar de previstos para todos os homens, os direitos daquela época eram
efetivamente válidos para poucos, visto que, apesar de existir a norma, as pessoas
ainda não estavam preparadas culturalmente para fluí-las de forma plena, uma vez
que ainda havia segregação entre os seres humanos.
Observa-se que, conforme Gomes Canotilho e Ingo W. Sarlet trabalharam o conceito
de direitos dos homens, esses direitos devem ser inerentes a todos os seres humanos,
o que demonstra que, a princípio, a idéia da declaração foi positiva. O problema da
época, na verdade, como foi dito, era cultural, uma vez que havia diferenciação
entre os seres humanos e a idéia de humanidade ainda não havia se formado.
O primeiro autor defende a idéia de que direito dos homens “[...] são direitos válidos
para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista)”
(CANOTILHO, 2007, p. 393), Além disso, ele diferencia direitos fundamentais e direitos
dos homens: “[...] os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí
o seu carácter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os
direitos objectivamente vigentes numa ordem jurídica concreta” (2007, p. 393).
O segundo é taxativo ao afirmar que direitos dos homens correspondem a todos os
direitos naturais não positivados, enquanto os direitos humanos são direitos
positivados na esfera internacional (SARLET, 2005, p. 36). Para ele, a diferença entre
direitos humanos e direitos fundamentais é o fato de que o primeiro, como se
afirmou, está presente na esfera internacional, enquanto o segundo são os direitos
humanos confirmados pela Carta Constitucional de um Estado-Nação. Assim,
[...] Direitos fundamentais são, portanto, todas aquelas posições jurídicas
concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional
positivo, foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade em
sentido material), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da
esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalidade formal),
bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser
equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo, ou não assento
na Constituição formal (aqui considerada a abertura material do Catálogo
(SARLET, 2005, p. 89).
Por fim, é interessante ressalvar que a expressão direitos fundamentais, conforme
Célia Zisman (2005) surgiu na França, no ano de 1770, e esses direitos eram
chamados de droits fondamentaux, o marco político e cultural que ensejou a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Voltando às Revoluções Norte Americana e Francesa, observa-se que ambas, em sua
essência, possuíam os mesmos ideais: individualistas e voltados para a proteção da
propriedade privada. A grande diferença residiu no fato de que a Revolução Francesa
tomou maiores proporções, dado que, ao contrário da Norte - Americana, que queria
apenas a independência da Coroa Britânica e continuava a manter escravos nas
colônias do Sul, a Francesa pretendia a libertação universal dos povos. Essa
pretensão teve grande e rápida divulgação e aceitação na Europa. Isso não retira a
importância da Revolução Americana como o primeiro marco constitucional dos
direitos humanos. Dessa forma, Perez Luño (1998, p.36) pronunciou-se no sentido de
que
As Declarações norte-americanas, assim como determinados documentos da
Europa Continental destinados a reconhecer a tolerância e a liberdade
religiosa (como, por exemplo, La Paz de Augsburso de 1555 e a Paz de
westfalia de 1648) e os pressupostos racionalistas e contratualistas da Escola
de Direitos Natural, exerceram uma influencia direta sobre a Declaração dos
direitos do Homem e do Cidadão, votada pela Assembléia Constituinte da
França revolucionária em 1789. Nesse famoso texto, da mesma forma que no
norte-americano, se insiste no caráter universal dos direitos consagrados,
pelo seu fundamento racional cuja validade se considera absoluta. Seus
pressupostos são também individualistas: os direitos que correspondem ao
homem por sua natureza são: a liberdade, a propriedade, a segurança e o
direito de resistência à opressão. Somente a lei poderá limitar o desfrute dos
direitos naturais de cada cidadão e, para assegurá-los a todos os entendem
como expressão da vontade geral.
3
3
“Las Declaraciones norteamericanas, así como determinados documentos de la Europa continental destinados a reconocer la
tolerância y la liberdad religiosa (como, por ejemplo, la Paz de Augsburgo de 1555 y la Paz de Westfalia de 1648) y los
presupuestos racionalistas y contractualistas de la Escuela Del Derecho natural, ejercienron uma influencia directa sobre la
Declaración de los Derechos del Homebre y del Ciudadano, votada por la Assamblea constituyente de la Francia revolucionaria el
año 1789. En este famoso texto, al igual que en los norteamericanos, se insiste en el caráter universal de los derechos
consagrados, por su fundamento racional cuya validez se considera absoluta. Sus presupuestos son tambiem individualistas: los
derechos que le correspondem al hombre por naturaleza son la liberdad, la propiedad, la seguridad y la resistencia a la opresión.
É importante frisar que, na Europa, além da Revolução Francesa, desenvolvia-se,
também, a Revolução Industrial no Séc. XVIII. A França, por não apresentar regras de
proteção ao trabalhador e ao trabalho, acabou gerando o empobrecimento da classe
proletária, que era obrigada a trabalhar em jornadas exaustivas e com remunerações
que não cobriam os seus gastos mensais.
Nesse momento da História, o capital continuava a ditar as normas, conforme a sua
vontade e, assim, dominava o mundo e quem o tinha era possuidor de direitos. Essa
diferenciação acabou revoltando os trabalhadores do Séc. XX, que provocaram várias
revoltas e lutas até que, em 1917, com a Revolução Russa e a Constituição Mexicana
e, em 1919, com a Constituição de Weimar, esses trabalhadores tiveram
reconhecidos os direitos humanos de caráter econômico e social. Pode-se dizer que
esse foi o primeiro marco de uma nova mentalidade sobre os direitos humanos.
A Constituição mexicana de 1917 garantiu direitos fundamentais individuais e
também sociais como direitos trabalhistas ao operariado de direito à
educação estatal gratuita. No mesmo caminho do Estado social não-marxista
foi a Constituição alemã da República de Weimar de 1919, que garantia, entre
outros direitos sociais, a proteção à maternidade, à saúde, ao
desenvolvimento social da família, educação pública gratuita, seguridade e
previdência social para os trabalhadores (GALINDO, 2006, p. 43).
Conforme foi apresentado, a mentalidade humanista começava a tomar forma após a
Revolução Norte Americana e a Francesa. Contudo, um grande problema ainda
permanecia, a falta de regras que garantissem a efetividade dos direitos humanos para
todos e perante o conjunto da sociedade. Somente após a Primeira e a Segunda
Guerra Mundial, e diante das grandes barbáries que o mundo presenciou, foi que se
percebeu que urgia a necessidade de uma nova ordem econômica e social, a fim de
garantir o mínimo de direitos para todos os seres humanos.
Sendo assim, foi necessário um ciclo de destruição humana e grandes sofrimentos
causados por guerras, para que começasse “[...] a compreensão da dignidade humana
e de seus direitos” (COMPARATO, 2005, p. 36). Apenas após esse marco histórico, é
Sólo la ley podrá limitar el disfrute de los derechos naturales de cada ciudadano y, para asegurarlos a todos, se concibe como
expresión de la voluntad general, a tenor de la enseñanza de Rousseau” (LUÑO, 1998, p. 36).
que as regras deixaram de englobar somente aqueles considerados homens, pela
sociedade da época, e passam a adotar os seres humanos, aí, sim, todos os seres
humanos: os negros, as mulheres, as crianças e outras etnias. É nesse momento que
surge a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, selada no dia 10 de dezembro de
1948, representou o maior marco humanístico mundial. Ela trouxe a idéia de direitos
humanos universais e indivisíveis. Patrícia Piovesan (2002, p. 41) trabalha muito bem
a concepção de direitos humanos universais e indivisíveis ao dizer que
Universalidade porque clama pela extensão universal dos Direitos Humanos,
sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a
dignidade e titularidade de direitos. Indivisibilidade porque garantia dos
direitos civis e político é condição para a observância dos direitos sociais,
econômicos e culturais, e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais
também são. Os Direitos Humanos compõem assim uma unidade indivisível,
interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos
civis e políticos ao catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais.
É somente com a formulação da Declaração Universal dos Direitos Humanos que os
direitos nimos dos seres humanos passam a ter proteção no âmbito mundial, uma
vez que, a partir de 1948, os Estados passam a ter poder de intervenção nos demais
Estados.
Esse ponto não será abordado a fundo neste trabalho, mas é merecedor de ser
aprofundado, uma vez que, por ferir a soberania dos Estados, gera grande polêmica,
tendo sido usado até mesmo como motivo de guerra entre países. Contudo o seu
conhecimento é de suma importância para o trabalho que estamos desenvolvendo,
pois o Brasil vem sofrendo intervenção de organismos internacionais, na tentativa de
abolir, de vez, a prática do trabalho análogo ao de escravo.
Dando seguimento ao estudo, após uma visão ampla dos direitos humanos, faremos
uma abordagem em que esses direitos serão vislumbrados de acordo com a dimensão
a que pertencem, lembrando, desde já, que não existe uma separação estanque entre
os direitos e que uma dimensão não supera a outra, elas coexistem. Os direitos dos
trabalhadores que se encontram em condição análoga a de escravo encontram
fundamento em mais de uma dimensão.
1.2 DIMENSÕES DOS DIREITOS HUMANOS
Para começar a explicar as dimensões dos direitos humanos, é importante frisar o
porquê da opção pelo termo dimensão e não geração de direitos, como preferem
alguns doutrinadores. Contudo, antes de adentrar no significado apresentado por
doutrinadores, optou-se por conceituar o vocábulo, propriamente dito. O primeiro deles
é apresentado como: Dimensão [...] 1. sentido em que se mede a extensão para
avaliá-la [...] A dimensão tempo no complexo espaço tempo” (FERREIRA, 1986, p.
590), enquanto o segundo é conceituado como “[...] cada grau de filiação de pai a
filho; posteridade, descendência espaço de tempo (aproximadamente 25 anos que vai
de uma geração a outra” (FERREIRA, 1986, p. 848).
Aprofundando na distinção entre os dois vocábulos, Antônio Carlos Wolkmer (2003,
p.17), ao questionar a natureza do que ele chama de “novos direitos” e que aqui se
denominam direitos humanos, busca a resposta para a questão, indagando se seriam
produto de “gerações”, originários de uma evolução histórica que tem como
característica a sucessão linear, gradual e cumulativa, ou se são frutos de um
processo de permanente gestação e inter-relação, gerado por reivindicações, conflitos
e ações cooperativas.
Como resposta, o autor conclui que, historicamente, os “[...] novos direitos
fundamentam-se na permanente necessidade humana de afirmação e na legitimidade
de ação dos novos atores sociais, capazes de implementar práticas diversificadas de
relação entre indivíduos, grupos e natureza” (WOLKMER, 2003, p. 20), assumindo
preferência pelo termo dimensão.
Cançado Trindade (2000) questiona a tese de gerações de direitos apresentada por
Bobbio em vários pontos. O primeiro deles é em relação à originalidade do termo.
Segundo Trindade, Bobbio teria copiado da formulação feita por Karel Vasak, em
conferência ministrada no Instituto Internacional de Direitos Humanos, em 1979,
quando falou em gerações de direitos e fez analogia à bandeira francesa no que dizia
respeito à “liberté, egalité e freternité”.
Em 1979, o francês Karel Vasak apresentou no Instituto Internacional de
Direitos do Homem em Estramburgo uma classificação baseada nas fases de
reconhecimento dos direitos humanos, dividida por ele em três gerações,
conforme a marca predominante dos eventos históricos e das inspirações
axiológicas que a elas deram identidade: a primeira, surgida com as
revoluções burguesas dos Séculos XVII e XVIII, valorizava a liberdade; a
segunda, decorrente dos movimentos sociais democratas e da Revolução
Russa, dava ênfase à igualdade e, finalmente, a terceira geração se nutre das
duras experiências passadas pela humanidade durante a Segunda Guerra
Mundial e da onda de descolonização que a seguiu, refletirá os valores da
fraternidade (SAMPAIO, 2004, p. 259).
Além disso, Trindade (2000) alega que a tese de gerações de direito não tem
fundamento jurídico, além de ser fragmentadora, atomista e vislumbrar os direitos de
maneira dividida, o que, para ele, não corresponde à realidade. Afirmação essa que
não deve ser feita em sede de direitos humanos, dado que uma de suas
características é a coexistência, pois direitos de primeira, segunda e terceira
dimensões estão presentes no ordenamento jurídico, ao mesmo tempo.
O autor entende que, quando surge um direito “novo”, ele não anula os direitos
anteriores, ambos passam a existir conjuntamente e, coexistindo, um direito
complementa o outro. Trindade (2000, p.2) é enfático ao dizer que crê “[...] que o
futuro, na proteção internacional dos direitos humanos passa pela indivisibilidade e
pela inter-relação de todos os direitos [...]”.
É importante ressaltar que Bobbio (2004) ao utilizar o termo “geração”, não justifica o
motivo de tal escolha, enquanto os doutrinadores adeptos ao termo dimensão têm
forte argumentação, conforme demonstrado. José Adércio (2004) não justifica a
utilização do termo “geração”, contudo insurge que a alternância de fatores históricos
pode possibilitar o surgimento de “sucessivas gerações”. Nesse ponto, a expressão
“sucessivas gerações” parece inadequada por remeter à idéia de que as “gerações”
não coexistem, elas se sucedem.
Carlos Henrique B. Leite (2001) é taxativo ao argumentar que a questão terminológica
ora debatida é de extrema importância para a nova concepção universalista dos
direitos humanos, uma vez que a utilização da expressão “dimensões” garante as
características básicas de indivisibilidade e da interdependência dos “novos direitos”
(2001, p.30) enquanto o vocábulo “gerações” apresenta conceito inverso:
[...] se a expressão ‘gerações’ induz a idéia de sucessão cronológica dos
direitos, avulta o descompasso entre o direito interno de alguns países, nos
quais a constitucionalização dos direitos sociais foi posterior à dos direitos
civis e políticos, e o direitos internacional, que teve na criação da Organização
Internacional do Trabalho, em 1919, a institucionalização de diversas
convenções que regulamentaram direitos sociais dos trabalhadores, bem
antes da internacionalização dos direitos civis e políticos (LEITE, 2001, p. 30).
Superada a dicotomia entre os termos geração e dimensão e explicados os pontos que
levam à escolha do termo “dimensão” para o presente trabalho, dá-se seguimento à
pesquisa demonstrando os direitos que sobressaíam em cada dimensão e a
importância de cada um no estudo em questão.
1.2.1 Direitos Humanos de Primeira Dimensão
Foram os primeiros a ser reconhecidos e visavam a justificar a democracia como uma
boa forma de governo, uma vez que garantiam a existência de direitos individuais e
liberdades de cada cidadão, para depois garantir o poder do governo, controlado e
constituído pelos cidadãos com suas liberdades. Sendo assim, essa dimensão está
relacionada com os direitos individuais (individuais fundamentais, em função do regime
de governo que estava sendo implantado na época, democracia, séc. XVIII e XIX,
hegemonia da burguesia com a Revolução Norte-Americana e Francesa). Além dos
direitos individuais, também eram garantidos os direitos políticos e civis a fim de
assegurar o controle do poder do governo pelos cidadãos.
A liberdade, a igualdade perante a lei (a igualdade material somente foi alcançada na
segunda dimensão), propriedade, segurança e resistência à opressão eram os bens
maiores desse momento histórico. Esses seriam os atributos naturais dos indivíduos.
Os direitos de primeira dimensão, assim como todos os direitos humanos, são
imprescritíveis e inalienáveis.
Percebe-se que a característica mais marcante dessa dimensão é o fato de ela ser
individualista, conforme a mentalidade liberal burguesa predominante na época.
Assim, conforme Carlos Henrique B. Leite (2001, p. 28), esses direitos também podem
ser “[...] chamados de direitos individuais ou direitos de liberdade e têm por
destinatários os indivíduos isoladamente considerados [...]”.
Sendo assim, esse momento histórico ficou marcado pelo individualismo e pelo fato de
os indivíduos poderem opor-se ao Estado, que deixou de ser absoluto e imbatível para
submeter-se ao respeito aos direitos mínimos de seus integrantes. O ser humano
começa a ser visto como prioridade. Verifica-se que os trabalhadores que se
encontram em condição análoga à de escravo também têm os direitos humanos de
primeira dimensão (liberdade e igualdade) desrespeitados perante a lei, pois, como
será visto, uma das características dessa forma de desrespeito ao trabalhador pode
ser o cerceamento de sua liberdade. Frisa-se que, após a alteração do art. 149 do
CPB, o cerceamento de liberdade passou a ser uma das características desse crime,
mas, ao contrário do que se entendia, ele não é mais requisito obrigatório para a
configuração do crime de trabalho escravo, como será tratado no Capítulo II.
1.2.2 Direitos Humanos de Segunda Dimensão
Os direitos humanos de segunda dimensão caracterizam-se por serem direitos sociais,
econômicos e culturais que dominaram o século XX e, conforme Carlos Henrique B.
Leite (2001), devem dominar o século subseqüente. Para serem gozados pelos seres
humanos, tais direitos dependem da intervenção do Estado. Assim como na dimensão
anterior, continuam a ser gozados de forma individual, porém amparados pelo Estado
(COUTO, 2004). Esses momento histórico tem, como papel fundamental, diminuir as
desigualdades provocadas pelo modelo liberal capitalista, que sempre preconizou os
bens materiais aos seres humanos.
Nobberto Bobbio (2004, p. 86) entende que a proteção dos direitos sociais
[...] requer uma intervenção ativa do Estado, que não é requerida pela
proteção dos direitos de liberdade, produzindo aquela organização dos
serviços públicos de onde nasceu até mesmo uma nova forma de Estado,
Estado social. Enquanto os direitos de liberdade nascem contra o superpoder
do Estado e, portanto, com o objetivo de limitar o poder, os direitos sociais
exigem, para sua realização prática, ou seja, para a passagem de declaração
puramente verbal à sua proteção efetiva, precisamente o contrário, isto é, a
ampliação dos poderes do Estado.
Assim, ao contrário dos direitos de primeira dimensão, os direitos sociais necessitam
da intervenção do Estado, demonstrando que, em certos casos, é positiva a sua
intervenção. Além disso, eles também estão incluídos no rol dos direitos infringidos,
quando é exercida a prática ilegal do trabalho análogo ao de escravo, uma vez que o
Estado tem o dever de garanti-los a esses trabalhadores.
Conforme Célia Zisman (2005), o Brasil sofreu fortes influências da Revolução Russa,
da Revolução Mexicana e da Constituição de Weimar, que o levou a implementar, na
Constituição de 1934, os direitos sociais. Esse foi o marco histórico para a criação dos
diretos sociais na Constituição Brasileira. Na Constituição de 1988, os direitos sociais
estão contidos no Capítulo II, entre os art. e 11. Artigos esses que visam a garantir
ao trabalhador e a todos os cidadãos o mínimo necessário a uma vida com dignidade.
Contudo, ao se falar de trabalho análogo ao de escravos, está se falando no
desrespeito a todos os artigos supracitados. Alexandre de Morais (2002, p. 202)
conceitua os direitos sociais como:
[...] direitos fundamentais do homem caracterizando-se como verdadeiras
liberdades positivas de observância obrigatória em um Estado Social de
Direitos, tendo por finalidade a melhoria de condições de vida aos
hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são
consagrados como fundamentos do Estado democrático, pelo art. 1
o
., IV, da
Constituição Federal.
Esse capítulo da Constituição proporciona ao empregado subordinado direito de
igualdade em termos de dignidade, em relação aos demais trabalhadores. O
empregado subordinado configura-se por ser, conforme a melhor doutrina: “[...] pessoa
física que com ânimo de emprego trabalha subordinadamente e de modo não-eventual
para outrem, de quem recebe salário” (NASCIMENTO, 1998, p. 384).
A relação de subordinação ocorre nos contratos de emprego, espécie do contrato de
trabalho. As relações de emprego surgiram com o capitalismo, cerca de 200 anos
atrás e é, do ponto de vista econômico-social, a mais importante relação de trabalho,
uma vez que se volta ao mercado de trabalho em expansão, e dita normas que
beneficiam, ou melhor, garantem, pelo menos, o mínimo aos trabalhadores
empregados. Assim deu origem a uma gama de direitos, princípios e institutos
jurídicos próprios e específicos que conseguiram fazer o mercado se submeter às suas
regras na utilização da força de trabalho (DELGADO, 2005). É importante frisar que
[...] empregado é necessariamente trabalhador, nem todo trabalhador será sempre
empregado, porque esta palavra tem um sentido técnico-jurídico próprio e está
reservada para identificar um tipo especial de pessoa que trabalha (NASCIMENTO,
1998, p. 384).
Sendo assim, o empregado é espécie do gênero trabalhador. A idéia de trabalhador
origina-se dos contratos de atividade, enquanto o empregado é parte em um contrato
de emprego. Para Nascimento (1998, p. 396), a subordinação caracteriza-se como:
[...] uma situação em que se encontra o trabalhador, decorrente da limitação
contratual da autonomia da sua vontade, para o fim de transferir ao
empregador o poder de direção sobre a atividade que desempenhará. A
subordinação significa uma limitação à autonomia do empregado, de tal modo
que a execução dos serviços deve pautar-se por certas normas que não
serão por ele traçada (NASCIMENTO, 1998, p. 396)
Talvez esse seja o principal requisito da relação de emprego e o que mais foi
atualizado. Isso porque, para se chegar ao conceito supracitado, primeiramente se
entendia que a dependência do empregado era meramente econômica, no vértice da
pirâmide, estava o empregador e, na base, o empregado. Contudo esse requisito, visto
dessa forma, é fraco e não condiz com a realidade, uma vez que outros fatores podem
inverter essa pirâmide.
Diante da fragilidade da caracterização da subordinação, passaram a entendê-la como
uma dependência técnica, mas essa também é uma definição fraca, dado que as
empresas de hoje contratam profissionais extremamente capacitados exatamente
buscando o potencial técnico, que, na maior parte das vezes, o empregador não tem.
Mas o empregado não deixou de ser subordinado por ter um maior conhecimento
técnico sobre o assunto. Nesses casos, a subordinação apresenta um grau menor,
mas não deixa de existir.
O entendimento que prevalece hoje é o de que a subordinação tem natureza jurídica,
ela deriva do contrato de trabalho assinado entre empregado e empregador. Nessa
subordinação jurídica, pode haver a subordinação técnica e econômica, mas elas não
são mais requisitos indispensáveis para a caracterização da subordinação.
Entende-se que a subordinação jurídica caracteriza-se por ser a possibilidade de o
empregador dar ordens, comandar, dirigir e fiscalizar a atividade do empregado. Alice
de Barros (2007) frisa que o empregador fiscaliza a atividade do empregado, o que
não é a mesma coisa de dizer que ocorre a submissão da pessoa do empregado em
relação à do empregador. O art. 483, a, b e c,da CLT, traz exemplos do limite de
subordinação.
José Afonso Dallegrave (2006) faz uma consideração bastante importante no que diz
respeito à subordinação, pois, para ele, a alteridade é um requisito da subordinação.
Sendo assim, subordinado é aquele que não tem responsabilidade em relação ao risco
do negócio. Saraiva (2006, p.39) entende que a alteridade é mais um requisito da
relação de emprego “[...] o princípio da alteridade determina que o risco da atividade
econômica pertence única e exclusivamente ao empregador”.
O exposto é importante para demonstrar que a subordinação a qual o empregado está
submetido é jurídica e está relacionada com trabalho que ele exerce e não com a sua
pessoa. Sendo assim, diante dos fatos, podemos afirmar que os direitos sociais estão
intimamente ligados aos direitos dos trabalhadores e visam a garantir o mínimo para
que a dignidade dos trabalhadores seja mantida. O art. 6
o
da CRFB lista alguns dos
itens que o constituinte julgou essencial para o ser humano.
Apesar de o trabalho não subordinado não ter garantido os direitos presentes no art.
7
o
. da CRFB, a doutrina e a legislação infraconstitucionais, ao contrário do que
pretendem os empregadores, vêm buscando formas de englobar o maior número de
trabalhadores entre os subordinados, a fim de resguardar uma gama, cada vez maior,
de direitos sociais para um número maior de trabalhadores. Esse tema será tratado
com mais detalhes no Capítulo II.
1.2.3 Direitos Humanos de Terceira Dimensão
Se forem seguidos os ideais da Revolução Francesa, pode-se denominar essa
dimensão de direitos da fraternidade ou, sob uma ótica mais de vanguarda, de direitos
metaindividuais (conceito mais adequado, conforme Leite, 2001). A verdade é que
esses direitos vão além do indivíduo, ao contrário do que se entendia durante os
direitos de primeira dimensão. E, “[...] seja lá qual for a denominação que dêem à
época presente, o fato é que vivemos o início de uma nova etapa” (FABRIZ, 1999, p.
200). A afirmação desse doutrinador é incisiva, quanto à importância e grandiosidade
dessa dimensão.
Paulo Bonavides (2007) defende que esses direitos são dotados de um nível elevado
de humanismo e universalidade e, ao contrário dos diretos de primeira e segunda
dimensões, destinados à proteção do indivíduo particularizado ou de um grupo com os
titulares determinados, ele possui, em regra, titulares indeterminados: “A rigor, seu
destinatário, por excelência, é o próprio nero humano, num momento expressivo de
sua afirmação como valor supremo em termos existenciais” (LEITE, 2001, p. 29). Célia
Zismam (2005), embasada em Celso Lafer (1988), alerta que, devido ao fato de esses
direitos serem referentes a todos, deve-se tomar cuidado para não visualizar o
indivíduo como supérfluo, assim como ocorreu no nazismo.
Por tratar de direitos gozados por todo o gênero humano, essa dimensão é de suma
importância para este trabalho, pois vislumbra a questão do trabalho análogo ao de
escravo como um problema metaindividual, portanto de todos, e permite visualizar o
desrespeito aos direitos individuais homogêneos, difusos e coletivos. Esses conceitos
serão examinandos melhor no Capítulo IV.
O trabalho encontra bases mais sólidas nos direitos humanos de primeira, segunda e
terceira dimensão, principalmente pelo fato de desconsiderar a idéia de uma quarta e
de uma quinta dimensão. De toda forma, analisar-se-á o que alguns doutrinadores
chamam de direitos humanos de quarta e quinta dimensões.
1.2.4 Direitos Humanos de Quarta e Quinta Dimensões
No que diz respeito à quarta dimensão, várias são as divergências: a primeira delas
está em determinar quais são os direitos que a compõem; a segunda, se esses direitos
formam, efetivamente, uma dimensão ou fazem parte das anteriores; e a terceira, se
esses direitos são fluidos ou se são ilusão. Assim, neste momento, serão
apresentadas as posições existentes em torno dessa polêmica dimensão dos direitos
humanos.
A análise parte da posição de Paulo Bonavides (2006), pois, no Brasil, esse autor foi o
primeiro a admitir a existência de uma quarta dimensão, fruto da globalização, dos
direitos humanos, porquanto, assim como a economia sofreu mudanças com a
globalização os direitos humanos também. O autor apresenta como direitos dessa
dimensão a democracia direta, a informação correta e, por fim, o pluralismo, sem o
monopólio do poder.
4
Para Paulo Bonavides (2006, p. 536), os direitos dessa
dimensão “[...] compendiam o futuro da cidadania e o porvir da liberdade de todos os
povos. Tão-somente com eles será legitima e possível a globalização política”.
Algumas críticas foram tecidas contra esse posicionamento. Uma delas foi a de Ingo
W. Sarlet. Para esse autor (2005, p.59),
[...] todas as demandas na esfera dos direitos fundamentais gravitam, direta
ou indiretamente, em torno dos tradicionais e perenes valores da vida,
liberdade, igualdade e fraternidade (solidariedade), tendo, na sua base, o
princípio maior da dignidade humana.
Ademais, ele acredita que a quarta dimensão, como salienta Paulo Bonavides (2006,
p. 537), “[...] longe está de obter o devido reconhecimento no direito positivo interno
(ressalvando-se algumas iniciativas ainda isoladas de participação popular direta no
processo decisório [...] ”. Assim, observa-se que Ingo W. Sarlet não coaduna com o
pensamento apresentado por Paulo Bonavides e acredita que as dimensões anteriores
já englobam todos os direitos até hoje existentes.
5
Bruno Galindo (2006) também discorda do pensamento de Paulo Bonavides. Para ele,
“[...] tais direitos chamados de quarta dimensão são, em verdade, novos direitos de
terceira dimensão [...]” uma vez que “[...] os direitos fundamentais de solidariedade não
são taxativos nem exaustivos, podendo ser alargados a seu espectro, que é o que
acreditamos ocorrer com os direitos à democracia, à informação e ao pluralismo”
(p.70). Portanto o presente autor, assim como Ingo W. Sarlet (2005), discorda de
Paulo Bonavides (2006).
Noberto Bobbio (2005, p. 229) apresenta um outro contorno para os direitos humanos
de quarta dimensão. Segundo ele,
Os direitos de nova geração, como foram chamados, que vieram depois
daqueles em que encontraram as três correntes de idéias do nosso tempo,
nascem todos dos perigos à vida, à liberdade e à segurança, provenientes do
aumento do progresso tecnológico. Bastam esses três exemplos centrais no
debate atual: o direito de viver em um ambiente não poluído, do qual surgiram
os movimentos ecológicos que abalaram a vida política tanto dentro do
próprio Estado quanto no sistema internacional; o direito à
privacidade, que é
4
Poder no sentido de poder do Estado.
5
Direitos esses pertencentes à primeira, à segunda e à terceira dimensões de direitos humanos.
colocado em sério risco pela possibilidade que os poderes públicos têm de
memorizar todos os dados relativos à vida de uma pessoa e, com isso,
controlar os seus comportamentos sem que ela perceba; direito, o último da
série, que es levantando debates nas organizações internacionais, e a
respeito do qual provavelmente acontecerão os conflitos mais ferrenhos entre
duas visões opostas da natureza do homem: o direito à integridade física, já
afirmado nos artigos 2 e 3 da Convenção Européia dos Direitos do Homem.
Antônio Carlos Wolkmer (2003), assim como Noberto Bobbio, entende que esses
“novos direitos” surgiram no final do século XX e projetam grandes discussões ao
longo do século subseqüente. Esses direitos são formados pela biotecnologia, bioética
e pela regulamentação da engenharia genética. Todos são direitos diretamente
relacionados com a vida humana. Eles têm a característica de ser polêmicos,
interdisciplinares e complexos. Todos carecem de normas específicas que
regulamentem a sua prática, a fim de que eles, efetivamente, promovam o bem-estar e
não se tornem uma ameaça.
Apesar de Ingo W. Sarlet não fazer menção direta a Noberto Bobbio, pelos seus
escritos, pode-se averiguar que esses direitos supranarrados fazem parte dos direitos
humanos de terceira dimensão, dispensando, assim, o tratamento em uma dimensão
de direitos exclusiva, da mesma forma ocorre com o que Antônio Carlos Wolkmer
denomina de quinta dimensão.
6
6
Antônio Carlos Wolkmer (2006, p. 15) entende que a quinta dimensão é formada pelos “[...] direitos advindos das
tecnologias de informação (internet), do ciberespaço e da realidade virtual em geral”.
CAPÍTULO II - DA ESCRAVIDÃO À ESCURIDÃO
Deus lhe pague
[...] Por esse pão prá comer,
Por esse chão prá dormir;
A certidão prá nascer,
E a concessão para sorrir;
Por me deixar respirar,
Por me deixar existir,
Deus lhe pague [...]
(Chico Buarque)
2 DO TRABALHO ESCRAVO LEGALIZADO À SUA ILEGALIDADE
O fato de a Princesa Isabel assinar a Lei Áurea não significou que a escravidão
estivesse, efetivamente, abolida, uma vez que, até hoje, encontram-se pessoas
trabalhando de forma indigna. Essa realidade, não diz respeito apenas ao Brasil, mas
este foi o país escolhido para ser o foco do estudo. O presente capítulo faz uma
abordagem desde a colonização das terras brasileiras, momento em que a escravidão
era legalmente permitida, até os dias de hoje, com a criminalização dessa prática.
2.1 A ESCRAVIDÃO NO BRASIL COLÔNIA
No século XVI, quando o Brasil começou a ser colonizado, um dos problemas
enfrentados pelos portugueses foi o de o-de-obra. Isso porque era necessário um
grande contingente de trabalhadores para cultivar os latifúndios e a população de
Portugal era reduzida, o que não permitia que os colonos da época trouxessem seus
compatriotas para o labor. Além do mais, essa mão-de-obra seria excessivamente
cara e inviabilizaria a concorrência.
Tentando solucionar o problema, os portugueses começaram praticando o escambo
com os índios e, com dificuldades, tentaram escravizá-los. Contudo os índios
possuíam uma forma de vida muito diferente daquela pretendida pelos portugueses.
Os índigenas brasileiros não estavam acostumados ao tipo de trabalho imposto pelos
portugueses, já que possuíam um processo produtivo multimilenar e uma economia de
subsistência organizada de forma particular. Assim não precisavam dos “brancos” para
sobreviver e isso foi um dos fatores que dificultaram a sua escravização .
Em decorrência das dificuldades em lidar com os índios e da facilidade de compra de
escravos africanos, os colonos começaram a traficar escravos negros, que possuíam
uma boa estrutura física para suportar o trabalho braçal, exigido pelos colonizadores, e
acabavam tendo maior facilidade de adaptação à nova situação, não por a aceitarem,
mas por estarem longe de suas comunidades, de seus amigos e da família, o que os
enfraquecia e os tornava mais fáceis de serem dominados.
Como pode ser observado, a colonização do Brasil deu-se por intermédio da utilização
da força de trabalho formada por escravos africanos, tanto pela facilidade e
lucratividade do comércio quanto pela facilidade de enfraquecê-los diante da nova
condição. Os escravos eram tratados como mercadorias; nunca como seres humanos.
Conforme Arruda e Piletti (1996, p.160),
Nas fazendas, os escravos viviam em promiscuidade, em habitações
coletivas, as senzalas, quase sem janelas, para facilitar a vigilância.
Trabalhavam de sol a sol em canaviais, moendas, caldeiras, praticamente
sem descanso, pois aos domingos cuidavam de roçados para seu próprio
sustento. O alimento principal era a mandioca.
A dureza do trabalho e a precariedade da alimentação fazia com que a vida
útil do escravo chegasse no máximo aos dez anos. Seus filhos os substituíam
desde cedo. Assim, por todo o período colonial e monárquico, os negros
forneceram a maior parte da mão-de-obra.
Os capatazes mantinham vigilância permanente. Qualquer deslize implicava
severo castigo, como: o tronco, em que os negros, presos pelas canelas,
eram açoitados com o bacalhau, chicote que abria fendas, nas quais se
punha sal; o vira mundo, instrumento de ferro com vários braços em forma de
gancho. Faltas mais graves podiam merecer penas mais cruéis ainda, como a
castração, amputação de seio, quebra de dentes a martelada e
emparedamento vivo.
Os escravos resistiam de várias formas. Havia os que se suicidavam ou
matavam os feitores. Os fugitivos eram caçados pelos capitães-do-mato,
profissionais que recebiam certa quantia por escravo recapturado. Muitos
conseguiam escapar e formar quilombos.
O contexto de desrespeito aos direitos humanos era gritante. Os negros africanos e
índios brasileiros eram tratados como “animais”, “mercadorias” de alto valor e
desejadas por todos, inclusive por aqueles que não possuíam muitas posses. Os
escravos eram submetidos a situações desumanas, humilhantes, degradantes e
indignas.
Depois de muita pressão internacional, principalmente pelo fato de a Inglaterra ter
aprovado, em 1833, a Lei da Abolição, que deu incentivo para que alguns
abolicionistas, inconformados com a situação dos países que, assim como o Brasil,
possuíam legislação permitindo a escravidão, lutassem pela extinção universal da
escravidão e do tráfico de escravos em todo o mundo (SUTTON, 1994). Em função da
pressão, medidas abolicionistas também foram tomadas no Brasil, como a assinatura
da Lei Diogo Feijó que, em 7 de novembro de 1831, ratificou a proibição do tráfico de
escravos. Ratificou, pois Portugal, sob pressão da Inglaterra, já havia assinado o
“Tratado de Cooperação e Amizade” (1810), que considerava o tráfico de escravos
ilegal e o transformou em crime contra a humanidade. Em seguida, foi a vez da Lei
Euzébio de Queiroz, de 4 de setembro de 1850, que autorizava o governo brasileiro a
apreender as embarcações, de qualquer nacionalidade, que estivessem sob suspeita
de praticar tráfico de escravos (DODGE, 2007).
Mas, apesar das leis citadas, o tráfico de escravos, principalmente dos africanos,
permaneceu. Foi somente em 5 de junho de 1854, que uma nova lei autorizou o
emprego de maiores esforços na repressão ao tráfico. “O tráfico, todavia, persistiu, e
motivou a edição de nova lei, em 5 de junho de 1854, que autorizou maior repressão
sobre os importadores de escravos da África. O último desembarque de escravos
parece ter ocorrido em 13 de outubro de 1855)” (DODGE, 2007, p.5). Nesse momento,
o tráfico de escravos estava sendo combatido com vigor e, por isso, os negros não
entravam, nem saíam do Brasil. Mas o problema ainda não estava resolvido, uma vez
que, em nossas terras, a mão-de-obra básica continuava sendo a do trabalhador
escravo. O tráfico havia sido proibido, mas ter trabalhadores escravos ainda não era
ilegal.
Foi somente em 1871, com a assinatura da Lei do Ventre Livre, que medidas
começaram a ser tomadas em favor dos escravos que aqui permaneceram. Ela
garantia a liberdade dos filhos de escravos que nascessem a partir daquele momento,
desde que eles trabalhassem para o senhor de suas mães até completar 21 anos
(SUTTON, 1994).
Finalmente, em 13 de maio de 1888, a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, que
versava sobre a abolição da escravatura no Brasil. A partir desse momento, a
escravidão tornou-se legalmente proibida no País. No entanto, a abolição não
significou vida nova para os escravos, pois eles continuaram à margem da sociedade,
uma vez que não tinham oportunidades.
Pronto. Tinha acabado a escravidão. Na corte, deram um baile comemorativo.
Os negros só puderam entrar como criados. Depois da abolição, a data era
comemorada ostensivamente pelas elites, sem nenhuma voz dos negros.
Para que ninguém discutisse a situação dos ex-escravos. A lei não previa
nenhuma proteção social. De escravos, os negros tornaram-se trabalhadores
muito pobres (e poderia ser diferente, quando você
deixa de ser um
escravo?),
sem chance de progredir numa sociedade de latifundiários cheios
de preconceito. Até hoje discriminados, não perderam a capacidade de luta
[...] (SCHMIDT, 1998, p.198).
Assim, apesar da Lei Áurea, parece que o termo escravidão deixou de existir apenas
na teoria, pois, na prática, até os dias de hoje, encontramos seres humanos em
situação análoga à de escravo, submetendo-se à indignidade para sobreviver, mesmo
tendo seus direitos fundamentais, apesar de garantidos pela Constituição Federal,
desrespeitados, devido a atitudes primitivas de empresários que somente visam ao
lucro, sem se preocupar com a forma como o alcança, bem como por uma sociedade
egoísta que não consegue enxergar e lutar contra as barbáries que vêm sendo
praticadas com outros seres humanos. O mais impressionante é que essa forma de
trabalho, que, em regra, nos remete ao campo, também vem sendo praticada nas
grandes cidades.
2.2 O USO DA EXPRESSÃO TRABALHO ESCRAVO
A expressão trabalho escravo originou-se junto com a Lei Áurea e hoje seria mais
adequada a utilização da expressão trabalho análogo ao de escravo, conforme
previsto pelo Código Penal Brasileiro (CPB). Contudo, de acordo com o que se
vivencia por meio da tradição e facilidade apresentada pela primeira expressão –
trabalho escravo – Ricardo Figueira (2004, p.48) argumenta:
[...] por força de construção social, manifestada nas pressões de grupos
específicos e no seu uso cada vez mais freqüente pelo conjunto das
organizações oficiais e não oficiais, a modalidade de trabalho forçado sobre a
qual escrevo tem sido reconhecida como não apenas parecida com a
escrava, mas de fato escrava. Os que empregam a categoria consideram que
sua utilização não obscurece ou confunde seu significado, mas o torna mais
visível.
Assim, os usos e costumes acabam fazendo com que seja utilizada a expressão
trabalho escravo a trabalho análogo ao de escravo ou trabalho forçado. Quanto à
utilização da expressão trabalho forçado, é importante observar que é a redução das
condutas tipificadas como trabalho análogo ao de escravo, sendo assim inadequada a
sua utilização na caracterização do crime tipificado, no art. 149 do CPB.
A fim de consolidar o pensamento anterior, basta imaginar uma matéria de jornal
noticiando que foram encontrados trabalhadores em regime de trabalho forçado.
Imagine se a expressão utilizada fosse em regime de trabalho escravo; a segunda
frase é muito mais impactante do que a primeira. Denise Andrade (2005, p. 79)
coaduna com esse pensamento e afirma que “[...] trabalho escravo é a forma reduzida
e comumente aceita para se referir a tipo trabalho em condições análogas à de
escravo, previsto no Código Penal, art. 149, recentemente alterado pela Lei n.
10.803/03”.
Segundo RIcardo Figueira (2004), foi no começo do governo do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva, em 2003, que a expressão “trabalho escravo” tomou maiores
proporções, já que ele e seus ministros passaram a usar a expressão corriqueiramente
e até mesmo o Programa Nacional passou a ser chamado de Programa Nacional de
Erradicação do Trabalho Escravo e não mais como Grupo Executivo de Repressão ao
Trabalho Forçado (Gertraf) como era no governo de Fernando Henrique Cardoso. O
autor também narra:
[...] Ao mesmo tempo, as declarações também cada vez mais freqüentes de
membros da Procuradoria da Justiça e do Trabalho, da Procuradoria e da
Justiça Federal se referiram com insistência ao fenômeno como ‘escravidão’.
Além disso, os documentos, as conferências e os seminários promovidos pela
OIT no Brasil, por funcionários do Ministério do Trabalho, pela Associação
Nacional de Juízes Federais, por Procuradores Federais também se referem
à mesma categoria. Mesmo a expressão adotada pelo CPB de ‘análoga à
de’, complementando a categoria ‘escravo’- tem sido desprezada
(2004, p.
48).
Cláudio Brito Filho (2005, p.10) entende que a denominação legal é trabalho análogo
ao de escravo, mas nada impede a utilização do termo “trabalho escravo”, que seria a
forma reduzida da primeira. Para ele, a única coisa que não pode ser esquecida é que
se trata da redução do termo e não do seu significado. Além disso, ele afirma que, pelo
fato de a escravidão não ser uma prática admitida no Brasil, não se pode permitir que
seres humanos, mesmo por conduta ilícita de outrem, sejam tratados como escravo.
Segundo o autor, a pessoa estará, no máximo, em condição análoga à de escravo,
mas nunca será efetivamente um escravo.
2.3 PRIMEIRAS DENÚNCIAS DE TRABALHO ESCRAVO
A primeira denúncia da permanência do trabalho escravo, nas terras brasileiras, após
a abolição ocorreu em 1970, com a Carta Pastoral de D. Pedro Casaldáliga, denunciou
que a utilização da mão-de-obra escrava “[...] na abertura de novas fronteiras agrícolas
por fazendas do Mato Grosso, com ampla utilização de incentivos fiscais e
empréstimos públicos federais” (DODGE, 2007, p.6). A gravidade dessa denúncia é
enorme, uma vez que incentivos fiscais e empréstimos públicos estavam sendo
usados para bancar a abertura de novas fronteiras, com a utilização de mão-de-obra
escrava. O governo estava incentivando, mesmo indiretamente, a prática do trabalho
análogo ao de escravo.
Após essa primeira denúncia, outras vieram e, em 1973, a Polícia Federal realizou
uma operação em uma das fazendas do grupo Bradesco, na época, o maior grupo
bancário do Brasil. Esse teria sido um dos primeiros casos, divulgados, de trabalho
análogo ao de escravo, segundo Alison Sutton (1994).
O fato de as primeiras denúncias de trabalho escravo terem ocorrido na década de 70
não é mera fatalidade, segundo Ricardo Figueira (2004) lembra, o trabalho exercido
sob coerção tomou maiores proporções nos anos de 1970 e nas décadas seguintes,
em razão da segunda intervenção do Estado na Amazônia
7
(2004), o que jutifica por
7
Figueira (2004, p.109) narra que, em 1970, aumentou o número de trabalhadores em condição análoga à de
escravo: “[...] foi a segunda intervenção do Estado na Amazônia, favorecendo a existência do trabalho escravo. A
primeira havia sido durante a Segunda Guerra Mundial, quando mais de 50 mil homens – os ‘soldados da borracha’
– foram mobilizados voluntariamente e, depois, levados de forma compulsiva pelas Forças Armadas para a extração
do látex, e em torno de 20 mil morreram”.
que, na década de 70, tornaram-se públicas as primeiras denúncias de trabalho em
condições análogas a de escravo.
2.4 BREVES COMPARAÇOES ENTRE O ESCRAVO LEGAL E O ILEGAL
O site Repórter Brasil (2001) divulgou um estudo demonstrando que os trabalhadores
escravos, do Brasil Colônia, eram economicamente menos lucrativos do que os
trabalhadores que hoje trabalham em condição análoga à de escravo, isso porque a
escravidão tinha características distintas da atuais. Naquela época, era elevado o
custo para a aquisição de mão-de-obra; a lucratividade era mais baixa, uma vez que a
manutenção dos escravos gerava altos custos; o tráfico de escravos apresentava
dificuldades, o que aumentava ainda mais o valor de cada escravo.
Em contrapartida, os trabalhadores em condição análoga à de escravo, hoje,
apresentam um custo muito baixo para a aquisição, pois: não compra, quando
muito, gasta-se com o transporte; apresentam alta lucratividade, visto que, quando
doentes, são dispensados sem receber nenhum direito trabalhista; eles mesmos
pagam sua alimentação e qualquer coisa de que precisem; ao terminarem o serviço,
não há que manter o sustento pelo patrão; qualquer pessoa, contanto que seja,
desinformado e miserável, pode virar o escravo contemporâneo, independentemente
de sua etnia. O ponto em comum entre os dois tipos de escravismo é o fato de que,
nos dois casos, a ordem é mantida por meio de ameaças, violência psicológica,
coerção física, punições e, em último caso, assassinato (REPÓRTER BRASIL. acesso
em 28 de fev. 2007).
Essa afirmação que ser refletida, pois, quanto ao baixo ou quase nenhum custo do
trabalhador de hoje, não dúvidas, porém compará-lo ao escravo de antigamente e
dizer que ele apresenta custos mais baixos é uma afirmação muito forte, uma vez que
os referenciais são distintos. Se os escravos não fossem muito rentáveis, na época da
colonização, não teria havido tanta resistência ao fim do tráfico e do trabalho escravo.
É inegável que o trabalhador em condições análogas à de escravo apresenta custo
quase zero e, portanto, gera uma lucratividade enorme. Mas é necessária uma
pesquisa mais aprofundada para verificar se os escravos africanos, apesar das
características que, segundo o autor, seriam desvantajosas, não geravam lucro para
os seus donos.
2.5 QUEM É O ESCRAVO CONTEMPORÂNEO
Ao que tudo indica, os escravos deixaram de ser os negros africanos para ser a classe
mais oprimida dos brasileiros. É formada por pessoas excluídas da sociedade que
tentam, no desespero e a qualquer custo, obter uma fonte de renda que lhes
proporcionem e às suas famílias, ao menos, o mínimo para a sobrevivência. Assim,
quando se deparam com os gatos”,
8
se iludem com a proposta de trabalho por eles
oferecida.
Maurício Lima, ao relatar o que foi discutido na Oficina do Fórum Social Mundial
(2003), narrou, conforme Dom Tomáz Balduíno (representante da Comissão da
Pastoral da Terra), quem são os novos escravos. Segundo ele, esses novos
trabalhadores são “[...] vítimas de um mercado financeiro, [...] sem restrições, que gera
um aumento dos miseráveis, potenciais vítimas dessa situação” (2003, p.121).
Em seqüência, o autor narra o que a auditora fiscal Marinalva Cardoso Dantas
(pertencente ao Grupo Móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego e
representante do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (SINAIT)
constatou em relação a quem o os trabalhadores escravos contemporâneos. Para
ela, a maior parte são nordestinos, que chegam a somar 60% desses trabalhadores.
Ela relata a existência de índios, crianças, ex-garimpeiros, portadores de deficiências,
imigrantes clandestinos, prostitutas, foragidos da justiça e flagelados e completa
afirmando que a maior culpada disso é a fome, que faz com que essas pessoas se
submetam ao tratamento degradante (LIMA, 2003, p. 122).
O grande problema é que os “gatos”, quando chegam aos locais de aliciamento, fazem
uma proposta tão tentadora, que até mesmo as pessoas que passaram pela
experiência do trabalho escravo, muitas vezes, acabam acreditando que, dessa vez,
será diferente. Nesse “sonho” proposto pelo “gato”, a igualdade e a liberdade, dentre
8
“Gato”, conforme Abreu e Zimmermann (2003) são “[...] supostos empreiteiros de mão-de-obra, que são, na
verdade, recrutadores de trabalhadores”.
vários outros direitos fundamentais, não serão respeitadas e todo o dinheiro prometido
será retido pelas “cantinas” dos seus “empregadores”, para pagamento do “transporte”,
de equipamentos obrigatórios de segurança que foram, a princípio, “bondosamente
oferecidos pelo dono da fazenda”.
Vale ressalvar que conforme Ingo W. Sarlet (2005), o direito fundamental de liberdade
e igualdade são noções indissociáveis da dignidade da pessoa humana e esses
trabalhadores, apesar de serem considerados seres humanos, são cerceados de seus
direitos fundamentais, por meio da prática ilegal da escravidão.
Não se pode considerar, neste contexto, que a liberdade e a igualdade o
noções indissociáveis da dignidade de cada pessoa humana, justificando
como visto o reconhecimento de direitos fundamentais diretamente
vinculados à proteção das liberdades pessoais e da isonomia. Que o direito à
vida e à integridade física e corporal garante, em última análise, o substrato
indispensável à expressão da dignidade também ficou evidenciado e pode
ser tido como incontroverso ( SARLET, 2005, p.125).
Ricardo Figueira (2004) narra uma entrevista feita com um trabalhador que conseguia
entrar e sair das fazendas. Conforme a narrativa, verifica-se que o sonho era um
elemento determinante de seu retorno às fazendas. Quando o “gato” fazia a proposta,
havia sempre a oferta do abono – era um dinheiro pago adiantado que acabava
servindo como isca – além disso, esse trabalhador tinha problemas com bebida, o que
dificultava a sua contratação nos empregos escassos em sua cidade. A propósito,
Jairo Lins Sento-Sé (2000, p.44-45) relata a triste realidade dos escravizados:
O ‘gato’ não possui a menor preocupação de verificar se os trabalhadores
dispõem ou não de qualquer documento de identificação e muito menos de
Carteira de Trabalho e Previdência Social. Quando têm tal documento, ele é
retido pelo ‘gato’, como maneira de criar mais um vínculo de dependência do
rurícula para com o suposto empreiteiro.
Acrescente-se a isto o fato de o obreiro rural, nem de longe, conhecer quais
os direitos oriundos da relação laboral que irá celebrar, somado ao estado de
miséria em que vive, o que cria
nele a falsa impressão de que, com tal oferta,
poderá melhorar o seu padrão de vida.
O arregimentador normalmente adianta uma pequena percentagem em
dinheiro ao trabalhador, a fim de que este atenda às necessidades mais
básicas de sua família por um determinado período, antes de viajar para o
local em que irá realizar a atividade empregatícia. Desse modo, inicia o
labor contraindo dívida perante o seu futuro empregador.
Essa é a realidade dos trabalhadores análogos a escravo no campo, mas não se pode
esquecer que essa forma de “escravidão” na cidade pode ser encontrada em:
empresas de confecções que exploram a mão-de-obra dos imigrantes estrangeiros
que vêm para o nosso país, conforme matéria da revista Istoé, de 3 de agosto de
2005, intitulada “Brasil vira terra prometida de bolivianos, que fogem da miséria e
acabam escravizados pela indústria da moda paulistana”; na exploração sexual de
mulheres e crianças, conforme matéria publicada no Jornal A Gazeta, de 27 de março
de 2007; no trabalho de algumas empregadas domésticas; no corte de cana-de-açúcar
e nas carvoarias.
2.6 A LEGISLAÇÃO RELATIVA AO TRABALHO ESCRAVO
2.6.1 Legislação Internacional
Neste momento, serão feitas algumas considerações a respeito da declaração do
represente do Brasil, em Londres, em março de 1994, que afirmou: “No Brasil, a
maioria dos casos não se enquadra na categoria de escravidão, conforme definida na
Convenção 29 da OIT” (SUTTON, 1994, p. 153).
9
Parece que o então embaixador do Brasil não conhecia a realidade do País, pois, se
analisasse a Convenção da OIT, 29 (1930), usada por ele como base para a
afirmação, constataria a prática do trabalho análogo ao de escravo. A Convenção
mencionada, pelo então embaixador, diz respeito ao trabalho forçado ou obrigatório,
prática ainda imposta a muitos brasileiros. Para a OIT, o trabalho forçado ou
obrigatório, também chamado de análogo ao de escravo, é aquele exercido sobre
ameaça e para o qual o “empregado” não se ofereceu espontaneamente. Essa
conceituação, quando especifica que a pessoa não se oferece espontaneamente, à
primeira vista, pode parecer que foge da realidade brasileira, uma vez que, da forma
como os trabalhadores são aliciados, em um primeiro momento, considera-se que
houve vontade do trabalhador em aceitar a proposta.
9
Carta do embaixador em Londres para ASI, Anti-Slavery International, in: Sutton, 1994, p.153.
Convenção n. 29 da OIT.
Artigo 2º
1. Para fins desta Convenção, a expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’
compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça
de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente.
[...]
Artigo 5º
1. Nenhuma concessão feita a particulares, empresas ou associações
implicará qualquer forma de trabalho forçado ou obrigatório para a produção
ou coleta de produto que esses particulares, empresas ou associações
utilizam ou negociam.
2. Onde existirem concessões que contenham disposições que envolvam
essa espécie de trabalho forçado ou obrigatório, essas disposições serão
rescindidas, tão logo quanto possível, para dar
cumprimento ao Artigo 1º
desta Convenção.
Porém os trabalhadores aceitam o trabalho em função da proposta de emprego
oferecida pelo “gato” (ressalve-se o conceito do termo emprego que caracteriza uma
forma legal de trabalho garantidora de direitos e deveres, mas que prima pela
dignidade da pessoa humana) e não, é claro, para serem escravizados. A verdade é
que, se fosse ofertado o prometido, com certeza nenhum trabalhador seria aliciado,
uma vez que a vontade deles não condiz com aquilo a que são submetidos. Sendo
assim, o trabalhador não foi por vontade própria, mas sim por um aliciamento, crime
tipificado no art. 207 do CPB
.
Além da Convenção 29, a própria OIT tem a Convenção 105, que diz respeito à
abolição do trabalho forçado:
[...] qualquer membro da Organização Internacional do Trabalho que ratifique
a presente convenção se compromete a suprimir o trabalho forçado ou
obrigatório, e a não recorrer ao mesmo sob forma alguma: a) como medida de
coerção, ou de educação política ou como sanção dirigida a pessoas que
exprimam certas opiniões políticas, ou manifestem sua oposição ideológica à
ordem política, social ou econômica estabelecida; b) como método de
mobilização e de utilização da mão-de-obra para fins de desenvolvimento
econômico; c) como punição por participação em greve; d) como medida de
discriminação racial, social, nacional ou religiosa (SANTOS, 2003, p. 52-53).
Assim como Ronaldo Santos (2003) menciona, a Convenção 105 preocupa-se,
principalmente, com a tentativa de abolição da escravidão praticada pelos próprios
Estados-membros e por isso obriga cada Estado a acabar com os trabalhos forçados
ou obrigatórios, praticados por eles mesmos. Essa medida é muito importante, uma
vez que o Estado só conseguirá inibir e punir os particulares, se ele próprio não for um
praticante dos atos ilegais.
Além da Convenção 29 da OIT, que versa sobre o t rabalho escravo, o Brasil é
signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Convenção Sobre a
Escravatura, dentre outros acordos internacionais referentes ao tema e tem Código
Penal Brasileiro, que conceitua, muito bem, o que é o trabalho em condição análoga à
de escravo. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela
Resolução 217 A (III), da Assembléia Geral das
Nações Unidas, em 10 de
dezembro de 1948, assim se posiciona: “Artigo IV. Ninguém será mantido em
escravidão ou servidão, a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas
as suas formas”. A Convenção Sobre a Escravatura, assinada em Genebra, em 25 de
setembro 1926, e emendada pelo protocolo aberto à assinatura ou à aceitação na
sede da Organização das Noções Unidas, em New York, em 7 de dezembro de 1953,
versa:
Artigo 1º
Para os fins da presente convenção, fica entendido que:
1º A escravidão é o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total
ou parcialmente , os atributos do direito de propriedade;
2º O tráfico de escravos compreende todo ato de captura, aquisição ou
cessão de um indivíduo com o propósito de escravizá-lo; todo ato de
aquisição de um escravo com o
propósito de vendê-lo ou trocá-lo; todo ato de
cessão, por meio de venda ou troca, de um escravo adquirido
para ser
vendido ou trocado;
assim como em geral todo ato de comércio ou de
transportes de escravos (COMPARATO, 2005, p. 202).
Assim sendo, a Declaração feita pelo representante do País, inicialmente apresentada,
parece uma mera tentativa do governo brasileiro de preservar a sua imagem no
cenário internacional, visto que, menos de um ano depois, o próprio governo assumiu
a existência de trabalho análogo ao de escravo no Brasil.
Felizmente, a tentativa de camuflar o trabalho análogo ao de escravo durou pouco. Em
1995, segundo o site Repórter Brasil, “[...] o governo brasileiro, por intermédio de um
pronunciamento do Presidente da República, assumiu a existência do trabalho escravo
no Brasile, em função disso, criou o Grupo Executivo Para o Combate ao Trabalho
Escravo (Gertraf) e o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, que deveriam atuar na
repressão a esse crime. Em 2003, foi lançado o Plano Nacional de Erradicação do
Trabalho Escravo (Contrae). Esses foram pontos positivos para a tentativa de acabar
com a violência e o desrespeito gerados por essa prática (ERRADICAÇÃO ..., Acesso
em 23 nov. 2005).
Em 2003, também foi lançado e dado início à execução do projeto de cooperação
técnica “Combate ao Trabalho Forçado no Brasil”, com a intervenção da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), buscando medidas com a finalidade de erradicar o
trabalho escravo contemporâneo. A OIT estima que, na atualidade, existam cerca de
25 mil pessoas nessas condições no Brasil e 12 milhões no mundo inteiro
(ERRADICAÇÃO..., Acesso em 23 nov. 2005).
Segundo dados colhidos pela própria OIT, após a divulgação da existência de trabalho
escravo pela mídia e da realização de grandes eventos a fim de promover alterações
legislativas, percebeu-se que o tema se tornou um dos principais na agenda nacional.
Cabe frisar que, no ano inicial da campanha de erradicação do trabalho escravo, mais
de 7 milhões de dólares foram doados para as campanhas publicitárias
(ERRADICAÇÃO ..., Acesso em 23 nov. 2005).
Mas, apesar da notoriedade tomada pelo tema, ainda é importante que haja uma
maior conscientização da gravidade do problema, principalmente no interior do Brasil,
onde a maioria dos trabalhadores são aliciados e submetidos a essa violência. Além
disso, é necessário que sejam oferecidas e criadas oportunidades para esses
trabalhadores que, muitas vezes, se submetem aos gatos”, acreditando ser aquela a
única oportunidade de trabalho que têm.
Na maioria das vezes, os aliciados contam com a sorte e a esperança, visto que
não têm oportunidades, em suas cidades e ao seu redor, onde existe a pobreza e o
desespero de seus familiares em busca do mínimo para a sobrevivência. Diante da
dura realidade de suas vidas, essas pessoas se tornam vulneráveis e crédulas. É
como se necessitassem de um “sonho”, ainda que um sonho irreal, para colorir a
aspereza de suas vidas e assim sobreviverem.
Na tentativa de acabar com essa exploração, foi criado o Plano Nacional de
Erradicação do Trabalho Escravo que apresentou 76 metas, de curto e longo prazo,
que previam acabar com a prática desse crime até o ano de 2006. Medidas foram
tomadas e uma delas foi a criação da “lista suja”, onde todos os empresários que
utilizam a mão-de-obra escrava são inscritos e taxados como maus empregadores.
Para ser inscrito nessa lista, basta a condenação administrativa (ERRADICAÇÃO...,
Acesso em 23 ov. 2005). Várias medidas foram tomadas pelo governo para que essa
crueldade e esse desrespeito aos seres humanos fossem diminuídos a ponto de um
dia acabar, mas, ao que tudo parece, elas ainda não foram suficientes para erradicar o
trabalho escravo contemporâneo. Estamos no ano de 2007 e ainda são encontrados
seres humanos exercendo atividades de trabalho em condições análogas à de
escravo.
É importante ressalvar que hoje o conceito de trabalho escravo apresentado pela OIT
é mais restrito do que o contido no ordenamento brasileiro. A alteração do art. 149 do
CPB em muito contribuiu para a caracterização do crime. Segundo a OIT, o crime de
trabalho análogo ao de escravo assim se caracteriza:
Toda forma de trabalho escravo é trabalho degradante, mas o recíproco nem
sempre é verdadeiro. O que diferencia um conceito do outro é a liberdade.
Quando falamos de trabalho escravo, falamos de um crime que cerceia a
liberdade dos trabalhadores. Essa falta de liberdade se dá por meio de quatro
fatores: apreensão de documentos, presença de guardas armados e ‘gatos’
de comportamento ameaçador, por dívidas ilegalmente impostas ou pelas
características geográficas do local, que impedem a fuga (TRABALHO...,
Acesso em 23 nov. 2005).
Nesse conceito, a OIT restringe o trabalho “escravo” ao cerceamento de liberdade, que
em regra, acontece com o rural, esquecendo-se de que vários foram os casos de
trabalho análogo ao de escravo na cidade, que, apesar de não cercear totalmente a
liberdade, a pressão psicológica era tão grande, que os trabalhadores acabavam
ficando “presos” às indústrias que os escravizavam.
2.6.2 A Evolução do Código Penal Brasileiro no Conceito de Trabalho Análogo
ao de Escravo
O Código Penal Brasileiro, em seu art. 149, até o dia 7 de dezembro de 2003,
conceituava trabalho análogo ao de escravo como: “Reduzir alguém a condição
análoga à de escravo: Pena – reclusão, de dois a oito anos” (ANGHER, 2001. p.363).
O conceito apresentado pelo Código era bastante subjetivo e dava margem a várias
interpretações ou, por tamanha subjetividade, a nenhuma interpretação. A análise da
doutrina demonstra que o conceito ficava restrito ao cerceamento de liberdade. Ele,
nem sempre, era visto à luz dos princípios de direitos humanos e, principalmente, da
dignidade da pessoa humana. Para facilitar a compreensão, têm-se as conceituações
apresentadas por alguns doutrinadores.
Armando Costa Junior (2000), ao identificar os elementos subjetivos do crime, foi
taxativo ao estabelecer que “[...] o crime é doloso, consistindo o elemento subjetivo na
vontade consciente e livre de reduzir alguém à condição análoga à de escravo, de
suprimir-lhe por completo o status libertatis( p.443). Além disso, o mesmo autor, ao
explicar como se consuma o crime, é enfático em dizer que se consuma “[...] quando
alguém for efetivamente reduzido à condição análoga a de escravo” (2000, p. 443). A
conceituação apresentada no ano de 2000 fazia com que o crime de redução a
condição análoga à de escravo fosse de difícil caracterização, porque o tinha
especificação dos seus elementos. Esses ficavam a cargo dos doutrinadores que,
como se viu, restringiam-se ao cerceamento de liberdade, enquanto o crime vai muito
além do simples cerceamento de liberdade; ele está intimamente ligado à
desconsideração da dignidade da pessoa humana.
Julio Mirabete (1999), ao qualificar o sujeito passivo, estabeleceu que esse era
qualquer pessoa, uma vez que o crime viola o status libertatis do ser humano. Além
disso, o autor lembra que esse é um direito subjetivo de interesse do Estado, protegido
pela Convenção de Direitos Humanos art 6.1 do Pacto de São José da Costa Rica
(2001). Contudo esse conceito, assim como o de Armando Costa nior (2000)
continuou restritivo, dado que diminui o alcance do crime à restrição de liberdade,
esquecendo-se da dignidade da pessoa humana. Júlio Mirabete conceitua o tipo
objetivo do crime como:
A conduta típica é a de sujeitar alguém totalmente à vontade de agente, numa
condição semelhante à de escravo, com qualquer finalidade, exceto quando o
fato constituir crime mais grave. A conduta pode ser praticada por violência,
ameaça, fraude, retenção de salário etc., e em qualquer lugar, não se
exigindo, porém, além da submissão, que o agente pratique maus-tratos
contra a vítima. É irrelevante o consentimento da tima que lei protege um
direito disponível, o status libertatis (MIRABETE, 1999, p. 970).
Além disso, para ele, a consumação e tentativa do crime ocorrem, quando “O sujeito
passivo passa ao domínio de outrem, suprimido que foi o seu status libertatis
(MIRABETE, 1999, p. 970). Para a configuração do crime, que é permanente, não
basta a sujeição momentânea da vítima às qualificadoras, pois somente essa
característica pode configurar crime de constrangimento ilegal. É importante lembrar
que é admissível a tentativa do crime (MIRABETE, 1999). Vê-se que os conceitos
utilizados, antes da alteração do código, não conseguiam englobar o que hoje se sabe
que vem a ser a redução de alguém à condição análoga a de escravo. Ele ficava
restrito ao direito fundamental de liberdade.
Júlio Mirabete (1999), na tentativa de resguardar a dignidade humana dos indivíduos
escravizados, entende ser possível o concurso de crime, modo pelo qual lesões
corporais, homicídios, dentre outros crimes, seriam punidos.
Nada impede o concurso com outro delito, como lesões corporais, homicídios
etc., mas o crime de seqüestro e cárcere por ser circunstância elementar do
ilícito previsto no art. 149 é por este absorvido. possibilidade de concurso
formal e de crime continuado (MIRABETE, 1999, p. 971).
10
Todavia, o art. 149 do Código Penal Brasileiro precisava, na visão da maioria dos
estudiosos, ser revisto e melhorado, na tentativa de resguardar o que é o bem maior
dos seres humanos: a dignidade dos trabalhadores.
Conforme se verifica, a legislação penal anterior o era suficiente para a qualificação
do crime de redução à condição análoga a de escravo. Por isso, em 7 de dezembro de
2003, foi editada a Lei 10.803, que alterou o ar t. 149 do CPB, fazendo com que a
10
CRIME CONTINUADO TJSP “[...] ocorre o crime continuado na hipótese em que os acusados, mediante
mais de uma ação, praticam, seguidamente, o delito do art. 149 do Código Penal, contra vítima diversa, mas que,
pelas condições de tempo, lugar e maneira de execução, os subseqüentes atos devem ser considerados como
continuação do primeiro”(REVISTA DOS TRIBUNAIS 484/280).
sua redação fosse clara, quanto ao que hoje vem sendo praticado por quem reduz
alguém à condição análoga à de escravo. A nova redação passou a ser assim:
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-
o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições
degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua
locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
(Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003).
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à
violência.
(Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003).
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem: (Parágrafo incluído pela Lei
10.803, de 11.12.2003)
I cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador,
com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou
objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: (Parágrafo
incluído pela Lei nº10.803, de 11.12.2003):
I – contra criança ou adolescente;
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
A inclusão dos itens: trabalho forçado, jornada exaustiva e condição degradante de
trabalho fez com que o artigo ficasse muito mais coerente com o que vem sendo
praticado contra os trabalhadores brasileiros. O novo artigo, ao vislumbrar, como
qualificador do crime, fatos que violam a dignidade da pessoa humana, passou a
contemplar os anseios da sociedade moderna e da evolução do Direito.
Guilherme Feliciano (2004) entende que a alteração do art. 149 do CPB fez com que
surgissem quatro condutas tipificadoras do crime de redução à condição análoga à de
escravo. São elas: “[...] a) a sujeição alheia a trabalhos forçados; b) sujeição alheia à
jornada exaustiva; c) sujeição alheia a condições degradantes de trabalho; d) restrição,
por qualquer meio, da locomoção alheia em razão de dívida contraída com o
empregador ou preposto” (2004, p. 5).
Cláudio Brito Filho (2005, p. 14), seguindo os preceitos humanista, define trabalho em
condições análogas à de escravo como: “[...] o exercício do trabalho humano em que
restrição, em qualquer forma, à liberdade do trabalhador, e/ou quando o são
respeitados os direitos mínimos para o resguardo da dignidade do trabalhador”.
Continuando o seu raciocínio, ele vai mais além afirmando:
É a dignidade da pessoa humana que é violada, principalmente, quando da
redução do trabalhador à condição degradante, o que se faz é negar ao
homem direitos básicos que o distinguem dos demais seres vivos; o que se
faz é coisificá-lo; dar-lhe preço, e o menor possível (2005, p.14).
Cláudio Brito Filho (2005) não restringe o trabalho em condições análogas à de
escravo ao simples cerceamento da liberdade. Segundo o autor, o fator principal desse
crime é a violação da dignidade da pessoa humana e da cidadania, e não meramente
a sua liberdade. A cidadania e a dignidade humana são conceitos amplos e serão
tratados no próximo capítulo. Ao finalizar, o autor afirma que a legislação brasileira vai
além da Convenção 29 da OIT, que apresenta uma v isão restritiva do crime de
redução à condição análoga à de escravo, que se prende ao cerceamento de
liberdade. Além do conceito estabelecido na Convenção 29 da OIT, ela também
apresentou o conceito de trabalho escravo, configurando-o pelo cerceamento de
liberdade e dignidade. Importante é ressalvar que é utilizado o termo “e” e não “ou”,
como no CPB.
Percebe-se que alguns doutrinadores, assim como a OIT, apesar da alteração
legislativa, permaneceram dando maior importância ao cerceamento de liberdade,
mesmo de forma inconsciente. Veja-se o que diz Jardel Oliveira (2006, p. 253), quanto
à objetividade jurídica do referido artigo:
É a liberdade individual, na sua expressão mais ampla, considerando, o
legislador, que se trata de conduta delituosa de maior gravidade, porque
incide diretamente sobre a dignidade da pessoa, que é usurpada em sua
própria personalidade. O agente domina a tima, submetendo-a à sua
vontade. Reitere-se que se trata de situação de fato, e não de direito. A vítima
não é reduzida à condição de escravo, mas, sim o que é diferente -, a
condição análoga à de escravo.
Nessa conceitualização, verifica-se a tentativa do autor de enquadrar a dignidade
humana, mas ele a foca, exclusivamente, no que diz respeito à liberdade e, no art. 149
do CPB, a violação à dignidade humana não está restrita à liberdade; ela é vista em
relação a todos os outros itens do artigo, como quando tratam do trabalho forçado, da
jornada exaustiva e da condição degradante, por isso se afirma que os autores,
mesmo inconscientemente, ainda estão atrelados ao conceito de cerceamento de
liberdade. A redução de alguém ao trabalho análogo ao de escravo vai muito além da
restrição do direito fundamental de liberdade (art. 5 da CRFB),
11
pois fere,
fundamentalmente, a dignidade humana (art. 1
o
, III, da CRFB).
12
Os doutrinadores da área penal, apesar de terem conhecimento de que o crime de
redução à condição análoga à de escravo vai muito além do cerceamento de
liberdade, ainda estão presos a conceitos arcaicos e, por não possuírem uma
formação humanística, acabam com dificuldade de fundamentar o art. 149 do CPB
com base na dignidade da pessoa humana. Mas, mesmo sendo poucos,
doutrinadores que conseguiram dar ao artigo interpretação mais voltada para os
direitos humanos e para a realidade do trabalho análogo ao de escravo no País.
Fernando Capez (2006, p. 320) escreve a respeito do elemento do tipo penal, mais
especificamente sobre a ação nuclear do referido artigo:
A Lei n. 10.803/2003 procurou elencar os modos pelos quais a redução a
condição análoga à de escravo pode dar-se. Vejamos: a) mediante
submissão a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva: submeter significa
sujeitar, subjugar a tima, no caso, a trabalhos forçados, entendendo-se
como tais aqueles em que não há como oferecer resistência ou manifestar
recusa, em face do emprego de violência, ameaça, ou fraude; também se
caracteriza o crime na hipótese em que impõe a obrigação do labor até a
exaustão física, sem perspectiva de interrupção a
curto prazo; b) mediante a
sujeição a condições degradantes de trabalho: aqui o indivíduo é obrigado a
trabalhar em condições subumanas, sem a possibilidade de interrupção
voluntária da relação empregatícia; c) mediante restrição, por qualquer meio,
de sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou
preposto: trata-se aqui de verdadeiro cerceamento à liberdade de ir e vir do
indivíduo. A vítima se encontra obrigada a trabalhar sem permissão para
deixar o local até a quitação total de dívida contraída com o patrão ou
preposto.
Neste último caso,
geralmente, não pagamento em dinheiro,
mas mediante compensação do débito, quase sempre de difícil quitação.
Convém notar que basta a caracterização de uma dessas situações para que
o crime se configure, não sendo necessária a coexistência de todas elas.
Finalmente, vejam que todas essas ações (submissão, sujeição ou restrição)
podem ser praticadas mediante o emprego de fraude, ameaça, violência.
Trata-se de crime de ação livre.
Essa definição do novo art. 149 do CPB, feita por Fernando Capez, vislumbra o
dispositivo legal sob uma ótica humanista, explica o que vem a ser cada ação nuclear
e frisa que elas não precisam ser praticadas juntas, basta apenas uma para que a
11
Art. 5
o
da CRFB “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes” (PINTO; WINDT; CÉSPEDE, 2007, p. 10)
12
Art. 1
o
da CRFB: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios
e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[...]
III – a dignidade da pessoa humana [...]”.
dignidade humana seja violada e, assim, o crime seja consumado. Porém, seguindo a
linha dos doutrinadores criminalistas, Fernando Capez desliza ao determinar o sujeito
passivo, uma vez que afirma que qualquer pessoa pode ser o sujeito passivo,
independentemente de seu consentimento, dado que o “[...] status libertatis constitui
bem jurídico indisponível” (CAPEZ, 2006, p. 321).
Ao que tudo indica, o autor se prendeu ao status libertatis e deixou de lado a dignidade
humana, que também é ferida, quando o artigo fala em “sujeitando-o a condições
degradantes”, “trabalho forçado” ou “exaustivo”, o que também é um bem jurídico
indisponível. Além disso, o legislador, ao reformular o artigo, deixou claro que o sujeito
passivo é um trabalhador e não qualquer pessoa. Mas Fernando Capez, e a maior
parte da doutrina, entendeu que uma pessoa que não é trabalhadora poderá
submeter-se a trabalho forçado, condições degradantes de trabalho, ou ter sua
locomoção restringida mediante dívida contraída com empregador ou preposto
descaracterizando a alteração legislativa que estabelece que o sujeito ativo deverá ter
relação de trabalho com o trabalhador.
Vicente Greco (2005) defende a posição de que o sujeito passivo e sujeito ativo
devem fazer parte de uma relação de emprego (esse conceito será apresentado mais
à frente) “[...] sujeito ativo será o empregador que utiliza a o-de-obra escrava.
Sujeito passivo, a seu turno, será o empregado que se encontra numa condição
análoga à de escravo” (p.631), andando, assim, nos moldes da legislação vigente. O
autor também dá a melhor definição para o que vem a ser o trabalho escravo nos dias
de hoje.
Bem juridicamente protegido pelo tipo do art. 149 do Código Penal é a
liberdade da vítima, que se vê, dada à sua redução a condição análoga à de
escravo, impedida do seu direito de ir, vir ou mesmo permanecer onde queira.
[...]
Entretanto, quando a lei penal faz menção às chamadas condições
degradantes de trabalho, podemos visualizar também como bens
juridicamente protegidos pelo art. 149 do diploma repressivo: a vida, a saúde,
bem como a segurança do trabalhador, além da sua liberdade (GRECO,
2005, p. 630).
Vicente Greco (2005) foi brilhante, ao falar do art. 149 do CPB, porque ele conseguiu
chegar muito próximo da essência do artigo, quando afirmou que, para além da
liberdade, o artigo visa a proteger a saúde, a segurança do trabalhador e,
principalmente, a vida desse indivíduo.
Raquel Dodge (2005), ao falar das alterações do art. 149 do CPB, faz comentários
bastante distintos de tudo que foi visto até agora. Para ela, essa alteração era
desnecessária e acabou sendo prejudicial. Ela entende que, a partir do momento em
que o legislador vincula o artigo ao trabalhador, ele retira a possibilidade de enquadrar
situações que suprimiam a liberdade de mulheres, crianças e adolescentes, que eram
obrigados a ir para o estrangeiro, ou, nos casos de supressão de pessoas, para o
roubo de órgãos. Para ela, essas também eram formas de escravidão abarcadas no
antigo artigo.
Para a autora, o problema não estava no tipo penal; na verdade, ele estava na falta de
conhecimento do significado daquela norma penal, pois a simples capacitação da
polícia judiciária seria suficiente para um melhor enquadramento, chegando a dizer
que, quando se fala que a conduta é “matar alguém”, não é necessário dar explicação,
e assim também deveria acontecer com a conduta de reduzir alguém à condição
análoga a de escravo.
Para o melhor entendimento do art. 149 do CPB, é importante definir o que vem a ser
cada uma das características levantadas, para configurar o trabalho análogo ao de
escravo.
2.6.2.1 Trabalho Forçado ou Obrigatório
Trabalho forçado ou obrigatório, conforme a Convenção 29 da OIT, art. 2
o
, item 1:
“[...] designará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de
qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade”
(BRITO FILHO, 2005, p.11). Notam-se que as características marcantes dessa forma
de trabalho são: coação e cerceamento de liberdade.
Apesar de o núcleo central do artigo ser a coação e o cerceamento de liberdade, uma
outra característica que deve ser respeitada é que o trabalhador “[...] não se oferece
de espontânea vontade” (BRITO FILHO, 2005, p. 11) e, em regra, os trabalhadores
que acabam em situação análoga à de escravo são ludibriados e, em um primeiro
momento, acabam trabalhando por “vontade própria” é quando chegam ao local de
trabalho e conhecem a verdade que descobrem que a realidade não foi dita e querem
voltar.
Luiz Antônio C. Melo (2004) classifica de forma interessante o trabalho escravo ou
forçado, no que diz respeito ao conceito de trabalho forçado:
[...] Considerar-se-á trabalho escravo ou forçado toda modalidade de
exploração do trabalhador em que este esteja impedido, moral,
psicologicamente e/ou fisicamente, de abandonar o serviço, no momento e
pelas razões que entender apropriados, a despeito
de haver, inicialmente,
ajustado livremente a prestação dos serviços (2004, p. 426).
Nesse conceito, o autor retrata a realidade vivida pelos trabalhadores que se
encontram no trabalho forçado. Ele é mais completo e real do que o conceito
apresentado pela OIT, uma vez que encara o fato de o empregado, inicialmente,
aceitar o emprego e perceber, quando chega ao local, a realidade dos fatos, momento
em que quer voltar e é impedido pelo “empregador”.
2.6.2.2 Jornadas Exaustivas e Trabalho Degradantes
Um outro requisito para a configuração do trabalho escravo é a existência de jornadas
exaustivas. A jornada de trabalho é responsável pela principal obrigação do
empregado (2005), o tempo que está à disposição do empregador. De acordo com
Maurício Delgado, as normas jurídicas referentes à duração do trabalho são tão
importantes que se configuram como normas de saúde pública:
[...] as normas jurídicas concernentes à duração do trabalho já não são mais
necessariamente normas estritamente econômicas, uma vez que podem
alcançar, em certos casos, a função determinante de normas de saúde e
segurança laborais, assumindo, portanto, o caráter de normas de saúde
pública ( DELGADO, 2005, p. 831).
Alice de Barros (2007), na mesma esteira, afirma que o combate a essa prática tem
como fundamentos e objetivos tutelar a integridade sica do obreiro a fim de evitar a
fadiga. A autora relaciona o excesso de trabalho, sem descanso, com o estresse, uma
vez que esse é gerado por um grande desgaste do organismo, acarretando úlceras,
acidentes de trabalho, dentre outros. Esse direito é tão importante que está presente
na própria CRFB, no art. 7
o
, XXII: “[...] redução do risco inerente ao trabalho, por meio
de normas de saúde, higiene e segurança” (COSTA; FERRARI; MARTINS, 2006, p. 6).
Mas, o respeito a esse direito não vem sendo observado por aqueles que tratam
outros seres humanos como escravos. Isso fica claro nos relatos de empregados que
trabalham cerca de 16 horas por dia, enquanto o permitido por lei é, no máximo, de
oito horas diárias e 44 horas semanais, podendo ser excedida em até duas horas
diárias, nos casos de extrema necessidade, de acordo com a CLT e com a CRFB de
1988.
Dentro do conceito de trabalho análogo ao de escravo, a jornada exaustiva vem sendo
entendida, pela maior parte da doutrina, como um dos elementos da condição
degradante e, portanto, um dos elementos do art. 149 do CPB. Cláudio Brito Filho
(2005, p. 10) esclarece:
Em verdade, se fossemos considerar literalmente o dispositivo, teríamos três
espécies e não duas, pois nele se encontram o trabalho forçado, a jornada
exaustiva e o trabalho em condições degradantes. Estamos fazendo, todavia,
a opção de incluir a jornada exaustiva dentro das condições degradantes de
trabalho.
É apreciável a inclusão da jornada exaustiva no conceito de trabalho degradante. Isso
porque dificulta a banalização do trabalho escravo, uma vez que exclui os casos em
que o trabalhador, como médicos, advogados, que, muitas vezes por vontade própria,
acabam excedendo a jornada normal e extraordinária permitida, mas, nem por isso,
estão eles em condição análoga à de escravo. O trabalho degradante não está
diretamente ligado à jornada exaustiva essa é que depende daquele. Luiz Antônio
Melo (2004) entende que um trabalho, mesmo degradante, atendendo ao mínimo de
liberdade de locomoção e autodeterminação, podendo o empregado deixar de
trabalhar por vontade própria, não se enquadraria nos termos do art. 149 do CPB. O
autor apresenta os dez requisitos que caracterizam, segundo ele, o trabalho
degradante como trabalho escravo.
1 utilização de trabalhadores, através de intermediação de mão-de-obra
pelos chamados ‘gatos’; 2 utilização de trabalhadores, através de
intermediação de mão-de-obra pelas chamadas ‘fraudoperativas
13
(designação dada àquelas cooperativas de trabalho fraudulento); 3
utilização de trabalhadores, aliciados em outros Municípios e Estados, pelos
13
Conforme o MPU, já foram encontradas cooperativas constituídas por “gatos” para registrar a CTPS dos
trabalhadores braçais e contrato firmado entre fazendeiro e firma individual do “gato” formalmente constituída
(Trabalho escravo e Estado brasileiro. em 28 de março de 2007)
chamados “gatos”; 4 submissão às condições precárias de trabalho pela
falta de adequado fornecimento de boa alimentação e água potável; 5 –
alojamentos sem as nimas condições de habitação e falta de instalações
sanitárias; 6 – falta de fornecimento gratuito de instrumentos para a prestação
de serviços; 7 falta de fornecimento gratuito de equipamentos de proteção
individual (chapéus, botas, luvas, caneleiras etc.); 8 – falta de fornecimento de
materiais de primeiros socorros; 9 não utilização de transporte
seguro e
adequado aos trabalhadores; 10 – não cumprimento de legislação trabalhista,
desde o registro do contrato da CTPS, passando pela falta de exames
médicos admissionais e demissionais, até a remuneração ao empregado
(MELO, 2004, p. 427).
Luiz Antônio Camargo Melo no painel: O papel do Judiciário e do Ministério Público do
Trabalho na defesa dos direitos humanos, no dia 14 de junho de 2007, no auditório da
PRT 17
a
Região, apresentou um conceito de jornada exaustiva, interessante que não
fica preso às horas trabalhadas. Para ele, o que a caracteriza é ser exaustiva. Para
exemplificar, ele citou os trabalhadores que carregam os caminhões nas carvoarias.
Segundo ele, relatos de que, para agüentar o trabalho, essas pessoas se dopam,
caso contrário param em menos da metade da jornada, de tão exaustiva que é. Além
desse exemplo, ele usou o dos cortadores de cana-de-açúcar, que 15 anos
cortavam uma média de cinco toneladas por dia e hoje estão cortando o dobro, dentro
da mesma carga horária e com os mesmos equipamentos.
Além desse conceito, Luiz Antônio Melo (2007) apresentou, no painel, o conceito de
condição degradante, que, para ele, é aquela que salta aos olhos. Você não consegue
ver a situação sem ficar chocado (sendo assim, os dez itens citados anteriormente e
determinados pelo mesmo autor devem ser acrescidos da característica ora
apresentada, para que sejam uma condição degradante caracterizadora do trabalho
análogo ao de escravo).
Denise Andrade (2005) acrescenta parâmetros para configurar o trabalho degradante.
Segundo a autora, essa forma de trabalho priva o trabalhador de sua dignidade,
rebaixa-o e prejudica-o, chegando até a causar problemas relacionados com a saúde.
Um trabalho penoso que implique certo sacrifício, por exemplo não se
considerado degradante se os direitos trabalhistas de quem o prestar
estiverem preservados e as condições adversas, devidamente
mitigadas/compensadas com equipamentos de proteção/pagamento de
adicional devidos.
Por outro lado, será degradante aquele que tiver péssimas condições de
trabalho e remuneração incompatível, falta de garantias mínimas de saúde e
segurança; limitação na alimentação e moradia. Enfim, aquele que explora a
necessidade e a miséria do trabalhador. Aquele que o faz submeter-se a
condições indignas ( ANDRADE, 2005, p. 81).
Entendido o que vem a ser condição degradante e trabalho, analisar-se-á o art. 149 do
CPB, no que se refere às suas melhorias, observando se realmente os quatro pontos:
trabalho forçado, jornada exaustiva, condições degradantes e restrição de liberdade,
por si sós são capazes de configurar o trabalho análogo ao de escravo ou se seria
necessário mais algum requisito.
Considera-se que o fator preponderante para a configuração do crime é o desrespeito
à dignidade da pessoa humana e, por isso, todos os itens devem ser interpretados em
cotejo com ela. Dessa forma, o trabalho forçado é aquele imposto à pessoa ao qual
ela, por vontade própria, não pode se eximir. A jornada exaustiva, como também foi
dito, não está relacionada somente com o excesso de horas trabalhadas, mas com o
fato de o trabalho ser exaustivo e em conseqüência ser degradante e causar danos à
saúde do trabalhador. A condição degradante está intimamente ligada à jornada
exaustiva e deve ser analisada no caso concreto. O cerceamento de liberdade deve
ser observado com cautela, uma vez que, em alguns casos, é a pressão psicológica
que prende os trabalhadores e, para ser desvendada, necessita de cuidado com a
análise do caso.
Posições divergentes estão presentes na doutrina, como a de Denise Andrade (2005).
Para ela, o art. 149 do CPB é insuficiente, dado que em seu texto apresenta a conduta
de submissão de alguém a trabalho forçado, à jornada exaustiva, à condição
degradante. Segundo a autora, essas condutas, quando analisadas isoladamente, são
mera infração legislativa:
Primeiro, porque a simples submissão a trabalho forçado ou a jornada
exaustiva de trabalho, por si só, não configuram trabalho escravo [...]. Por seu
turno, jornada exaustiva pode resultar simplesmente em infração à legislação
do trabalho, devidamente apenada, na via administrativa.
Condições degradantes de trabalho, por sua vez, podem não significar
também trabalho escravo, se não houver impedimento para o trabalhador
deixar o local de trabalho [...] (ANDRADE, 2005, p. 87).
Concordar-se-ia com a autora se o crime não fosse o de submeter alguém ao trabalho
análogo ao de escravo, pois, para configurar o crime aqui descrito, é necessário que
as condutas do art. 149 do CPB sejam praticadas ao extremo, ferindo o bem jurídico
maior de um ser humano, que é a sua dignidade e cidadania. É de se compreender a
preocupação da autora, uma vez que, se a simples conduta tipificada no CPB fosse
interpretada como suficiente para atender à configuração do crime, correria o risco de
cair na banalização do tipo penal aqui estudado.
2.7 CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS TRABALHISTAS E O TRABALHO ESCRAVO
2.7.1 Trabalho Escravo e Relação de Emprego
A CLT e a doutrina fizeram questão de diferenciar o que é relação de trabalho e
relação de emprego e essa diferenciação é importante para o nosso trabalho, uma vez
que a primeira delas não garante os benefícios da legislação trabalhista, enquanto, na
segunda, empregado e empregador estão diretamente ligados por uma relação
jurídica, contrato, que garante a incidência dos benefícios trabalhistas.
A relação de trabalho configura-se por ser um contrato autônomo entre as partes, em
que uma presta determinado serviço, sem subordinação, à outra, enquanto a
característica marcante da relação de emprego é, exatamente, a subordinação. Nessa
relação, estão presentes os direitos sociais assegurados a todos os empregados a
partir da segunda dimensão dos direitos humanos.
A relação de trabalho engloba os autônomos, eventuais, avulsos e até mesmo a
relação de emprego. Relação de trabalho é uma expressão ampla e não garante a
todos os direitos trabalhistas. Conforme Maurício Delgado (2005, p. 286), a expressão
“[...] traduz, portanto, o gênero a que se acomodam todas as formas de pactuação de
prestação de trabalho existente no mundo jurídico atual”. Pode-se dizer que relação de
trabalho é gênero que possui, como espécie, a relação de emprego. Essa, sim,
assegurada pela legislação trabalhista. A CLT conceitua empregado como:
Art. 3
o
. considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de
natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante
salário.
PARÁGRAFO ÚNICO. Não haverá distinções relativas à espécie de emprego,
e à condição de trabalhador, nem entre trabalho intelectual, técnico e manual
(COSTA; FERRARI; MARTINS, 2006, p. 37).
Assim, concluiu Alice Barros (2007), que a relação de emprego possui natureza
contratual, uma vez que é formada por meio de um contrato, que pode ser tácito ou
expresso. Suas principais características são: a) pessoalidade, o empregado tem o
dever jurídico de prestar serviço ao empregador de forma pessoal; b) não-
eventualidade, o serviço a ser prestado tem que ser essencial à atividade meio do
empregador; c) remunerado, o trabalho executado pelo empregado deve, sempre, ter
uma contraprestação, uma remuneração; e d) subordinação, que deve ser jurídica, na
relação empregado e empregador. Ao empregado são garantidos os direitos contidos
no art. 7
o
. da CRFB.
Há, também, no ordenamento jurídico, conforme José Afonso Dellegrave Neto (2006),
novas formas de relação de emprego subordinadas e uma nova visão do conceito de
subordinação, que surgiram na sociedade pós-industrial. São elas: o Job- Sharing, o
consórcio de empregadores rurais, trabalho intermitente, trabalho no home Office, part-
time ou trabalho em tempo parcial, terceirização e quarteirizaçao do trabalho.
14
Em
todas essas relações, há a presença da pessoalidade, continuidade, onerosidade,
14
[...] a) Job-sharing (ou partilha de emprego) aplicado sobretudo nos EUA, Canadá e Reino Unido, é a
repartição de um posto de trabalho a tempo completo e de um salário por dois ou mais trabalhadores, que,
assim, dividem tarefas, responsabilidades e benefícios sociais segundo um cálculo proporcional. [...] o job-sharing
é admissível por analogia ao trabalho por tempo parcial (part-time), entre nós previsto no art. 58-A), da CLT;
b) Consórcio de empregadores rurais previsto no art. 25-A da Lei 10.256/01, consiste na união de empregadores
rurais, pessoas físicas, com a finalidade única de contratar empregados rurais [...];
c)Trabalho intermitente trata-se de um contrato por prazo indeterminado com cláusula de intermitência. Esta
cláusula prevê o revezamento de períodos de trabalho e períodos de inatividade, sendo o empregado retribuído em
função do tempo e volume de trabalho efetivamente prestado [...]. Em face do que dispõe a parte final do caput do
art. 4
o
. da CLT, entendemos ser possível sua implementação em nosso país;
d) Teletrabalho ou home Office – caracteriza-se pelo contato à distância entre o prestador e o apropriado de
determinada atividade, de modo que o comando, a realização e a entrega do resultado do trabalho se completem
mediante o uso da tecnologia da informação, principalmente telefone e computadores, substitutivas da relação
humana direta. O vetusto art. 6
o
da CLT, o qual não distingue o trabalho realizado no estabelecimento do
empregador e o executado na residência do empregado – é revigorado para contemplar a moderna figura do
teletrabalho;
e) Part-time ou trabalho a tempo parcial - muito comum nos EUA e Canadá, chega ao Brasil, caracterizado pelo
trabalho em jornada reduzidas – em até 25 horas semanais – conforme dispõe o art. 58-A da CLT, recebendo salário
proporcional ao número de horas em comparação aos colegas que trabalham em tempo integral na mesma função
[...];
f) Terceirização e Quarteirizaçao do trabalho. Além das hipóteses de serviços temporários, previsto na Lei 6019/74,
é possível, nos termos da Súmula 331 do TST, a contratação através de empresa interposta de serviços
especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.
Além dessas modalidades de terceirização, hoje se verifica a existência de empresas quarteirizadas, as quais são
contratadas pela empresa-tomadora com o objetivo de monitorar e fiscalizar a empresa terceirizada”.
subordinação, conforme requisito previsto nos arts. 2
o
e 3
o
da CLT, para a
configuração da relação de emprego, mas a grande novidade é a presença da
alteridade, na configuração da subordinação, que responsabiliza o tomador pelo
serviço prestado pelo empregado. O autor, ao final, consigna que “A averiguação de
quem cabe o risco do resultado é um critério eficiente para identificar a relação de
emprego. Assim, se o empresário suporta o risco da atividade econômica haverá
presunção de que o trabalho é subordinado” (DELAGRAVE NETO, 2006, p. 45).
A importância da discussão supracitada é a de vislumbrar que o Direito brasileiro
possibilita o enquadramento de muitas formas de trabalho dentro do trabalho
subordinado e, toda vez que este apresentar essa característica, estar-se-á falando de
uma relação de emprego, que, ao contrário da relação de trabalho, garante ao
trabalhador a lista de benefícios elencada no art. 7
o
da Constituição Federal Brasileira
e, conseqüentemente, presentes na legislação trabalhista.
Conforme Maurício Delgado (2005), um outro cuidado que se deve tomar a respeito da
relação de emprego é quanto à figura do empregador ou tomador de serviço, pois,
segundo o art. 2
o
. da CLT, esse se caracteriza por ser: “[...] empresa, individual ou
coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria, e dirige
a prestação pessoal de serviços” (COSTA; FERRARI; MARTINS, 2006, p. 37).
O autor ressalva que a CLT é falha, ao definir empregador, pois o termo empresa
deveria ser substituído por um termo que englobasse: “[...] os profissionais liberais, as
instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins
lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados” (DELGADO, 2005, p. 389).
Somente a sua presença no artigo acaba deixando-o falho, visto que a relação de
emprego também pode ser configurada por meio da contratação feita pelas instituições
citadas.
Após verificar como se configura a relação de emprego e de trabalho, entende-se que
os casos de trabalho escravo pertencem à relação de emprego e que por isso são
assegurados a esses trabalhadores todos os direitos previstos na CRFB e CLT.
Ronaldo Santos coloca que os modos de proceder que, atualmente, dão ensejo ao
trabalho escravo, forçado ou obrigatório no Brasil, são:
a) a constrição da vontade inicial do trabalhador em se oferecer à
prestação de serviços, sendo, por isso, constrangido à prestação de trabalhos
forçados sem sequer emitir sentimento volitivo neste sentido (geralmente esta
situação ocorre com os filhos de trabalhadores sujeitos a trabalho escravo e
seus familiares);
b) O aliciamento de trabalhadores em uma dada região com promessas de
bom trabalho e salário em outras regiões, com a superveniente contração de
dívidas de transportes, de equipamentos de trabalho, de moradia e
alimentação, cujo pagamento se torna obrigatório e permanente,
determinando a chamada escravidão por dívida;
c) O trabalho efetuado sob ameaça de uma penalidade como ameaças
de morte com armas - , geralmente violadora da
integridade física e
psicológica do empregado; modalidade que quase sempre segue a
escravidão por dívidas;
d) A coação, pelos proprietários de oficinas de costuras em grandes
centros urbanos - como São Paulo de trabalhadores latinos pobres e sem
perspectivas em seus países de origem – geralmente bolivianos e paraguaios
-, que ingressam irregularmente no Brasil. Os empregadores apropriam-se
coativamente de sua documentação e os ameaçam de expulsão do país, por
meio de denúncia às autoridades competentes. Obstados de locomoverem-se
para outras localidades, distantes diante da sua
situação irregular, os
trabalhadores submetem-se às vis condições de trabalho e moradia (coletiva)
(SANTOS, 2003, p. 55).
Esse caso seria a mesma coisa que o não pagamento do 1 salário para um
empregado de empresa, o que se caracteriza pelo desrespeito de alguns quesitos
trabalhistas que podem ser repostos posteriormente, sem muito prejuízo, não havendo
por que falar em trabalho análogo ao de escravo.
Sendo assim, a relação entre o trabalhador em condições análogas à de escravo e
quem o submete a essa situação vai muito além do simples descumprimento de
alguns direitos trabalhistas garantidos aos trabalhadores. Essa prática é crime,
previsto no art. 149 do CPB, pois desrespeita a cidadania e a dignidade da pessoa
humana, bens maiores do ser humano.
2.8 LEI 7.998/90 E LEI 10.608/02 E O SEGURO DESEMPREGO DEVIDO AOS
TRABALHADORES EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO
Conforme discutido, nos direitos humanos de primeira dimensão, tem-se a idéia dos
direitos individuais e o Estado não intervencionista. Momento em que são
resguardados os direitos de liberdade. com os direitos humanos de segunda
dimensão, verifica-se que a idéia de um Estado não interventor convive com a de um
Estado protetor das garantias sociais visando a resguardar o mínimo social para os
indivíduos.
Nesse momento, surge o conceito dos direitos mínimos trabalhistas e com isso os
direitos sociais trabalhistas, incluindo os direitos previdenciários, inclusive o direito ao
seguro-desemprego. A Constituição brasileira assegura, no art. 6
o
, o direito à
previdência social e define o que ela compreende no art. 194 da CRFB “A seguridade
social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos
e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à
assistência social” (PINTO; WINDT; CÉSPEDES, 2007, p. 93).
Segundo Sérigio Martins (2004), a seguridade-social resguarda ao trabalhador
dispensado sem justa causa ou por rescisão indireta o direito de perceber um seguro
(benefício), a fim de promover sua assistência financeira temporária, além de auxiliá-
lo na busca por um novo emprego, por meio de ações integradas de orientação e
qualificação profissional. Para esse autor, o seguro-desemprego tem natureza de
benefício previdenciário e não de uma prestação de assistência social. Ele faz a
presente afirmação com base no art. 201, IV da CRFB que responsabiliza a
Previdência Social pelo pagamento de tal benefício (MARTINS, 2004, p. 457).
Marcelo Tavares (2005, p. 1) entende que a natureza jurídica do direito à seguridade
social:
[...] é um direito social, nos termos do art. 6
o
da Constituição da República
Federativa do Brasil. A Carta relaciona a saúde à previdência social, a
proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados, como
direitos prestacionais sociais de índole positiva no rol dos direitos
fundamentais.
Portanto o autor, ao determinar que o seguro-desemprego é um direito social, engloba-
o entre os direitos fundamentais e, conseqüentemente, entre os direitos humanos de
cunho social. Voltando à classificação do Capítulo I, vê-se que esse direito é um direito
humano de segunda dimensão, devendo ser assegurado a todos os empregados. Por
isso, em 1990, a Lei do Seguro-Desemprego passou a assegurar o benefício ao
trabalhador encontrado em condições análogas à de escravo pelo Ministério do
Emprego e do Trabalho. Antes disso, somente eram assegurados aos trabalhadores
urbanos e rurais desempregados em virtude de dispensa sem justa causa, inclusive a
indireta, conforme o art. 2
o
, I da Lei n° 7.998/90.
Contudo, vislumbrada a existência de trabalhadores escravos no País e observada a
situação desumana em que permaneciam, após a saída do local em que eram
encontrados, o legislador brasileiro entendeu por bem assegurá-los e inseri-los no
referido artigo, por meio da Lei 10.608/02. Os t rabalhadores comprovadamente
resgatados de regime de trabalho forçado ou da condição análoga à de escravo foram
beneficiados pelo seguro-desemprego.
Art. 2
o
O Programa de Seguro-desemprego tem por finalidade:
I Promover assistência financeira temporária ao trabalhador desempregado
em virtude de dispensa sem justa causa, inclusive a indireta, e ao trabalhador
comprovadamente resgatado de regime de trabalho forçado ou da condição
análoga à de escravo.
A referida lei data de 2002 e a alteração do art. 149 do CPB foi em 2003, ano seguinte
à alteração do art. 2
o
, I da Lei 7998/90. Motivo que ensejou o que hoj e parece
redundante, mas, na época, foi atual e necessária, a inclusão do termo trabalho
forçado e não apenas a expressão condição análoga a de escravo. Apesar de já se ter
discutido que, mesmo sem a alteração do art. 149 do CPB, era possível o
entendimento de que todo trabalho forçado seria um trabalho escravo, isso não era
pacífico e poderia fazer com que os trabalhadores encontrados na prática de trabalho
forçado ficassem sem o benefício.
Posicionou-se bem o legislador ao evitar esse tipo de confusão jurídica, explicitando a
necessidade da concessão do seguro-desemprego não àqueles trabalhadores que
tiveram seu direito de liberdade cerceado, mas também aos que trabalhavam em
regime de trabalho forçado, que hoje, conforme o art. 149 do CPB, é considerado
trabalho análogo ao de escravo.
Foi omisso o legislador à medida que não mencionou o trabalhador submetido à
jornada de trabalho degradante e excessiva, que hoje também configura uma forma de
trabalho análogo ao de escravo. Contudo, essa que, na opinião desta pesquisadora,
seria uma falha foi superada em pouco tempo, com a alteração do art. 149 do CPB.
Além do seguro-desemprego, no valor de um salário mínimo, no período de três
meses (art. 2
o
C da Lei 7998/90 alterado pela Lei 10.608/02) , o trabalhador
encontrado em condições análogas a de escravo tem direito à qualificação profissional
e recolocação no mercado de trabalho, por meio do Sistema Nacional de Emprego
(SINE), conforme a letra do art. 2
o
C, § 2° da Lei n° 10.608/02.
A inclusão do trabalhador análogo a escravo entre os beneficiados do seguro-
desemprego colabora, por um pequeno período, para que o trabalhador escravizado
não seja novamente vítima de exploração. Contudo, se as medidas de recolocação
desses trabalhadores no mercado não forem efetivadas em pouco tempo, essas
pessoas estarão se submetendo, novamente, a esse regime, conforme os casos
narrados no início do capítulo.
2.9 PROJETO DE EMENDA CONSTITUCIONAL N° 438/2001
Uma proposta que visa a inibir a prática do trabalho escravo que se encontra em
tramitação é o Projeto e Emenda Constitucional 4 38/2001, que prevê uma nova
redação ao art. 243 da CRFB. Hoje o artigo assim se apresenta:
Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas
culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e
especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de
produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao
proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em
decorrência do trafico ilícito de entorpecentes e drogas afins será confiscado
e reverte em benefício de instituições e pessoal especializados no
tratamento e recuperação de viciados e no aparelhamento e custeio de
atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão do crime de tráfico
dessas substâncias.
Conforme a proposta, o artigo passará a englobar, além das glebas em que forem
encontradas plantas psicotrópicas, as glebas em que for detectado trabalho escravo. O
artigo passaria a ter a seguinte redação:
Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas
culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo
serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas à reforma
agrária, como assentamento prioritário aos colonos que trabalhavam na
respectiva gleba, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de
outras sanções previstas em lei.
Parágrafo único: todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em
decorrência do trafico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração
de trabalho escravo será confiscado e se reverterá, conforme o caso, em
benefício de instituições e pessoal especializado no tratamento e
recuperação de viciados, no assentamento dos colonos que foram
escravizados, no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização,
controle e prevenção e repressão ao crime de tráfico ou do trabalho escravo
(ANAMATRA..., em 1° de abril 2007).
A proposta apresentada, se aprovada, representaria um avanço legislativo importante,
uma vez que teria o papel de inibir a prática do trabalho escravo por apresentar
possível punição severa a quem for pego praticando o crime, pois teria o papel de
punir, com a expropriação da terra e confisco de bens utilizados para o crime. Uma
observação deve ser feita em relação à literalidade da lei. É utilizada a expressão
trabalho escravo, em seu corpo. Como discutido, trabalho escravo e trabalho análogo
ao de escravo, em regra, apresentam o mesmo sentido, contudo, em textos técnicos, a
utilização da expressão trabalho análogo ao de escravo apresenta-se mais adequada,
conforme justificativa já apresentada no Capítulo II.
CAPÍTULO III
“Justamente quando descobri todas as respostas, mudaram todas as
perguntas” (PROVÉRBIO).
3 O TRABALHO ESCRAVO À LUZ DOS PRINCÍPIOS, DIREITOS E GARANTIAS
FUNDAMENTAIS
Para este capítulo, é importante recordar a existência da Carta Magna, no
ordenamento brasileiro, que, apesar de seus poucos anos de existência, é responsável
por toda a ideologia de interpretação legislativa do País, uma vez que a interpretação
da legislação deve ser feita “conforme a Constituição”:
Não se olvida que o intérprete, no ato de intelecção de seu mister, continue a
se servir de técnicas tradicionais de interpretação, tais como métodos (regras)
gramatical, teleológica, lógico, lógico-sistemático etc. Todavia, por força do
reconhecimento da influência do Texto Constitucional no ordenamento
jurídico como um todo e tendo em vista o aspecto da concretude histórica da
Constituição, atualmente não se compreende uma operação exegética
constitucional que não seja aquela que se firmou como ‘conforme à
Constituição’ (RIZZATTO, 2002, p. 32).
Sendo assim, a Constituição é a baliza para todo o ordenamento pátrio e traz, em seu
preâmbulo, o direcionamento para a interpretação do ordenamento pátrio:
PREÂMBULO
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional
Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-
estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de
uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia
social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução
pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte
Constituição da República Federativa do Brasil (PINTO; WINDT; CÉSPEDES,
2007, p. 9).
Vê-se, pois, que a Assembléia Constituinte que deu origem à CRFB, após o
preâmbulo, assegurou, logo no Título I, os princípios fundamentais que regem a
República Federativa do Brasil: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa
humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, princípios esses que
guiaram todo o estudo. Dentro do mesmo Título, no art. 3
o
, encontram-se os objetivos
da República Federativa do Brasil . São eles: “I – constituir uma sociedade livre, justa e
solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV promover o bem
de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras
formas de discriminação”.
No Título II, verifica-se a presença os Direitos e Garantias Fundamentais, tema de
suma importância para guiar a todos que pretendem estudar a Constituição. O mesmo
título, no seu Capítulo I, traz os Direitos e Garantias Individuais e Coletivas que,
juntamente com os preceitos do Título I, devem ser garantidos a quem estiver no
território brasileiro. Ainda no Título II, no primeiro artigo (art. 5
o
da CRFB), está
presente que todos os residentes no Brasil têm, por direito, a igualdade perante a lei,
independentemente de sua natureza; a esses também é garantida a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Direitos que são
desrespeitados quando encontramos trabalhadores tratados de forma análoga à de
escravo.
Um breve estudo de alguns incisos do art. 5
o
da CRFB esclarece: o inciso II,
estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão
em virtude de lei, está ligado ao fato de que nenhum trabalhador poderia ser tratado
como escravo, pois esse tratamento não está previsto em lei, pelo contrário, ele é
vedado por ela; o inciso III, determina que ninguém será submetido à tortura nem a
tratamento desumano ou degradante, tratamento esse dispensado a quem se
encontra sujeito ao trabalho escravo; o inciso XXIII está ligado à idéia dos direitos
humanos de segunda dimensão e informa que a propriedade deverá atender à função
social, função essa desvirtuada, quando os trabalhadores são tratados como escravos.
Quando se trata da PEC 438, de 2001, foram vislu mbrados preceitos trazidos pelo
inciso XXIV, uma vez que ele prevê que a lei estabelecerá o procedimento para
desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante
justa e prévia indenização, ressalvados os casos previstos na Constituição. Seguindo
a linha da própria Constituição, nada mais justo do que a referida proposta
apresentada pela PEC de alteração do art. 243 da CRFB, permitindo a expropriação
de terras em que for encontrado trabalho escravo.
O inciso XLI é importante para demonstrar que, no art. 5
o
, os incisos não estão
estabelecidos em ordem de importância, caso contrário, esse deveria ser um dos
primeiros, dado que prevê que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos
direitos e liberdades fundamentais. Liberdades e direitos esses que são usurpados nos
casos de trabalho análogo ao de escravo.
O inciso XLIII é o que ressalta a maior importância ao Projeto de Emenda
Constitucional estudada no capítulo anterior, quando prevê que a lei considerará
crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico
ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes
hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo
evitá-los, se omitirem. A implementação do PEC, junto com esse inciso, facilitará o
enquadramento dos “gatos”, pois explicita a sua responsabilidade em evitar o crime,
além de impor uma responsabilidade maior a quem diretamente o pratica.
O inciso LIV estabelece que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem
o devido processo legal. Na mesma linha, o inciso LXVII prevê a impossibilidade de
prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e
inescusável de obrigação alimentícia e do depositário infiel. Notamos que, em nenhum
dos casos em que é permitido o cerceamento temporário da liberdade, está presente a
situação dos trabalhadores análogos à de escravo, o que demonstra que não existe a
possibilidade, legal de cercear a liberdade, mesmo temporariamente, de qualquer ser
humano, exceto pelos incisos supracitados e, portanto, é uma ofensa social, além de
ofender à dignidade da pessoa humana e a cidadania, o que ocorre com esses
trabalhadores.
Vários são os direitos fundamentais assegurados pelos constituintes que estão sendo
desrespeitados com a prática do trabalho análogo ao de escravo. Além disso, é
importante frisar que, ao contrário do que a velha hermenêutica constitucional
afirmava, os princípios, os direitos e as garantias fundamentais não são normas
programáticas e tampouco de eficácia contida, conforme Daury César Fábriz (2007)
crítica Afonso da Silva, por classificar as normas fundamentais como de eficácia
contida. Assim, a hermenêutica atual coaduna com Paulo Bonavides (2007, p. 259)
A inserção constitucional dos princípios ultrapassa, de último, a fase
hermenêutica das chamadas normas programáticas. Eles operam nos textos
constitucionais da segunda metade deste século uma revolução de
juridicidade sem precedente nos anais do constitucionalismo. De princípios
gerais se transformaram, já, em princípios constitucionais.
Manoel Ferreira Filho (2006), na linha da velha hermenêutica, afirma que a
Constituição de 1988, no art. 5
o
, § 1
o
, estabeleceu a aplicabilidade imediata das
normas que determinam os direitos e garantias fundamentais, mas ele ressalva que a
intenção do legislador foi boa, contudo afirma ser impossível a aplicação imediata,
uma vez que essas normas não são completas na hipótese e no dispositivo.
Hordiernamente a doutrina e jurisprudência vêm entendendo que, apesar de possuir
normas programáticas, os princípios, direitos e garantias fundamentais servem de
baliza para a interpretação dos casos concretos. Eles devem ser o principal item a ser
observado em cada caso julgado, como confirma Sarlet (2005, p.75):
Três características consensualmente atribuídas à Constituição de 1988
podem ser consideradas (ao menos em parte) como extensivas ao tulo dos
direitos fundamentais, nomeadamente seu caráter analítico, seu pluralismo e
seu forte cunho programático e dirigente. Com efeito, é preciso reconhecer
que, em face do seu grande número de dispositivos legais (246 artigos e 74
disposições transitórias), a Constituição de 1988 se enquadra no rol das
assim denominadas Constituições analíticas [...]. Este cunho analítico e
regulamentarista reflete-se também no tulo II (dos Direitos e Garantias
Fundamentais) [...]. Neste contexto, cumpre salientar que o procedimento
analítico do Constituinte revela certa desconfiança em relação ao legislador
infraconstitucional, além de demonstrar a intenção de salvaguardar uma série
de reivindicações e conquistas contra uma eventual erosão ou supressão
pelos Poderes constituídos.
O pensamento de Tereza Aparecida Gemignani (2007) complementa a posição
adotada por Sarlet, que compreende o cunho, a princípio programático e analítico da
Constituição, contudo entende que seus princípios podem e devem ser aplicados em
conjunto com todas as normas constitucionais e infraconstitucionais, pois a
Constituição é diretiva e estabelece a forma como toda a legislação deve ser
interpretada.
[...] se no início os princípios constitucionais foram considerados como uma
coleção de diretivas, destinadas apenas a balizar a conduta do legislador,
hoje é diferente.
Com efeito, é reconhecida sua força normativa, cuja observância pode ser
judicialmente exigida, para tanto considerada como fundamento das razoes
de decidir, assim guiado na atividade jurisdicional, e outorgando ao juiz um
campo de atuação muito mais abrangente, na complementação do próprio
enunciado normativo, para tanto se valendo do marco axiológico ali fixado, a
fim de enfrentar as limitações apresentadas pela reserva do possível.
Além disso, como se logo a seguir, os principais princípios balizadores das
decisões judiciais devem ser o princípio da cidadania e o dignidade da pessoa
humana. Os juízes e órgãos judiciais devem estar sempre atentos aos princípios ora
discutidos, a fim de atender aos preceitos básicos constitucionais.
Voltando ao tulo II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, encontra-se, no Capítulo
II, que rege os Direitos Sociais e assegura a educação, a saúde, o trabalho, a moradia,
o lazer, a segurança, a previdência social (que foi regulamentada também para os
trabalhadores em condição análoga à de escravo, pela Lei 7998/90 e 10.608/02,
vistas no capítulo anterior), a proteção à maternidade e à infância e também a
assistência aos desamparados, conforme prevê a Constituição.
No art. 7
o
, encontra-se a maior gama de incisos que garantem benefícios ao
trabalhador em condições análogas à de escravo. É garantida, no inciso I, a proteção à
despedida arbitrária; o seguro-desemprego e fundo de garantia por tempo de serviço
são garantidos logo a seguir, nos incisos II e III. O inciso IV garante a proteção ao
salário mínimo fixado em lei, capaz de garantir as necessidades vitais básicas e às de
sua família, com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene,
transporte e previdência social, sendo vedada a sua retenção.
Quando se trata de trabalho escravo, existe uma agravante, o salário passa a ser uma
forma de aprisionar os trabalhadores, visto que todo ele fica comprometido com o
pagamento das cantinas, controladas pelos empregadores (item visto no capítulo
anterior), cujos preços, arbitrariamente estipulados, fazem dos trabalhadores reféns de
dívidas impagáveis, endividados e sem condições financeiras e morais de sair da
situação em que se encontram. Da mesma forma, tem-se os incisos VII e X,
garantindo que o salário nunca será inferior ao mínimo e não poderá ser retido
dolosamente, como ocorre com os trabalhadores escravizados.
O art. 7
o
, em seus incisos, VIII, IX, XII, garante o décimo terceiro salário, a
remuneração diferenciada, a maior, para o trabalho noturno, e o salário-família pago
aos trabalhadores de baixa renda, em razão de seus dependentes. Além disso, é
garantida a duração do trabalho não superior a oito horas diárias e 44 horas semanais
(inc. XIII), o repouso semanal remunerado (inc. XV), a remuneração superior do
serviço extraordinário superior, no mínimo, em 50 por cento à remuneração normal
(inc. XVI), férias anuais (inc. XVII), licença a gestante (inc. VXIII), licença-paternidade
(inc. XIX), aviso prévio proporcional (inc. XXI), redução dos riscos inerentes ao
trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (inc. XXII), adicional para
as atividades penosas, insalubres ou perigosas (inc. XXIII), aposentadoria (inc. XXIV),
reconhecimento das convenções e acordos coletivos do trabalho (inc. XXVI), seguro
contra acidente de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que
este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa (inc. XXVII) e, por fim, mas não
menos importante, a proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores
de 18 anos e qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz,
a partir de 14 anos. Não é preciso lembrar que nenhum desses direitos são efetivados
para os trabalhadores em condição análoga à de escravo.
Os Títulos I e II da CRFB, ao tratar dos princípios, direitos e garantias fundamentais,
abortam qualquer tentativa de submeter seres humanos à condição de escravo.
Contudo a efetivação desses preceitos é que se tornou o grande problema dos tempos
modernos. Na tentativa de suprir essa falta de efetividade, essa questão será
apresentada, no próximo capítulo.
3.1 DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS
Conforme Ingo W. Sarlet (2005), não foi por mero acaso que a Assembléia
Constituinte de 1988 consagrou os princípios fundamentais em um título próprio e,
estrategicamente, colocou-os em primeiro lugar. Isso devido, à sua fundamental
função e significação.
[...] o Constituinte deixou transparecer de forma clara e inequívoca a sua
intenção de outorgar aos princípios fundamentais a qualidade de normas
embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional, inclusive dos
direitos fundamentais, que também integram aquilo que se pode denominar de
núcleo essencial da Constituição material. Igualmente sem precedentes em
nossa evolução constitucional foi o reconhecimento, no âmbito do direitos
positivo, do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1
o
, inc.
III, da CF), que não foi objeto de previsão anterior (SARLET, 2005, p. 110).
Dessa forma, toda a Constituição deve ser interpretada com base nos princípios
fundamentais constitucionais, que servem de guia e base para todos os demais artigos
e até mesmo para o ordenamento infraconstitucional.
Alexy (2002), ao determinar o que é uma norma de direito fundamental, estabelece
que ela, estruturalmente, divide-se entre regras e princípios, sendo a primeira de
cumprimento relativo, ou seja, ela somente será obrigatória se houver possibilidade
jurídica e fática. Enquanto os princípios orientam que determinada coisa “deve ser”,
dentro das possibilidades fáticas e jurídicas, viabilizando, até mesmo, que sejam
utilizados, em graus diferente (2002). Mas Alexy não concorda com a existência de um
princípio com maior força do que os demais. Para ele, todos os princípios apresentam
a mesma valoração e devem, sempre, ser vistos caso a caso, de acordo com a
ponderação de valores. Alexy (2002, p. 99) demonstra que, para Dworking, a grande
diferença entre regra e princípio é que:
[...] las regras, cuando valem, son aplicables de una manera Del todo-o-nada,
miestras que los princípios sólo contienen una razón que indica uma dirección
pero que no tiene como consecuecia necessáriam, ente una dereminada
decisión.
Da mesma forma se encontra Luiz Roberto Barroso (2003, p.151):
[...] os princípios constitucionais são normas eleitas pelo constituinte como
fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que os institui [...].
É importante assinalar, logo de início, que as normas jurídicas, em geral, e as
normas constitucionais, em particular, podem ser enquadradas em duas
categorias diversas: as normas-princípio e as normas-disposição. As normas-
disposição, também referidas como regras, têm eficácia restrita às situações
específicas às quais se dirigem. Já as normas-princípio, ou simplesmente
princípios, têm normalmente, maior teor de abstração e uma finalidade mais
destacada dentro do sistema.
Rizzato Nunes (2002) afirma que os princípios constitucionais influenciam até mesmo
as próprias normas Magnas, porque, se houver qualquer conflito entre elas, será por
meio dos princípios constitucionais que ele será resolvido. Mas, infelizmente, conforme
Teresa Aparecida Gemmignani (2007), apesar de todos os estudos sobre os
princípios, observa-se que eles não têm passado dos bancos universitários. Sendo
assim, continua a ser um objetivo a ser alcançado pela sociedade moderna a efetiva
utilização dos princípios.
[...] a aplicação dos princípios fundamentais, agasalhados na Constituição,
não pode se restringir a explanação teóricas tecidas em debates, congressos
e seminários. Deve ser concretizada nas mesas de audiência, no corpo das
sentenças e nos atos de execução (GEMMIGNANI, 2007, p. 51).
Visto que os princípios são normas de maior abstração do que as regras e devem ser
valorados no caso concreto, deve ser dada uma atenção maior ao princípio da
cidadania e da dignidade da pessoa humana nos casos de trabalho análogo ao de
escravo.
3.2 A CIDADANIA COMO FRUTO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
A cidadania, ao contrário do que se lê, em alguns manuais de direito constitucional e
de como era entendida no período da Revolução Francesa, vai muito além do sufrágio
universal e consequente “[...] afirmação do indivíduo frente ao estado” (RIBEIRO,
2002, p. 303). Para alguns doutrinadores, como Ricardo Lobo Torres, a cidadania
traduz a idéia de que:
[...] por sua extensão, pela abertura interdisciplinar e pela conotação política
que exibe e pela multiplicidade de suas dimensões pode servir de ponte para
a superação das contradições e perplexidades que cercam a temática da
liberdade e da justiça social, da igualdade e da solidariedade, do
universalismo e do nacionalismo, dos direitos fundamentais e dos sociais e
econômicos nesta ‘era dos direitos’ que vai caracterizando a transição do séc.
XX para o Séc. XXI (2001, p.247).
Na Constituição de 1988, a cidadania ganhou status de objetivo do Estado de direito
brasileiro, o demonstrando que ela passou a ser mais abrangente do que o direito ao
voto. Outro ponto importante a ser ressaltado é que, conforme José Alfredo de O.
Baracho, a teoria geral da cidadania está intimamente ligada à temática dos direitos
fundamentais (LEITE, 2000) e, portanto, diante do Título II da Constituição que versa
sobre os direitos e garantias fundamentais e é subdividido em capítulos, sendo eles
destinados aos diretos e deveres individuais e coletivos, assim como os direitos
sociais, os direitos da nacionalidade e, por fim, os direitos políticos; não é de se
estranhar que seja chamada de Constituição Cidadã.
Contudo, apesar de amplamente garantido, o direito a cidadania nem sempre é
respeitado. Nos casos de trabalho análogo ao de escravo, vê-se que o desrespeito é
gritante, uma vez que os trabalhadores que se encontram nessa situação têm
usurpado seus direitos básicos de cidadão, como direitos individuais, políticos e
sociais. O grande problema é como assegurar tais direitos a essas pessoas,
denominadas por José Murilo de Carvalho de “elementos”,
15
que estão à margem da
sociedade.
3.3 O TRABALHO ESCRAVO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Parte da doutrina afirma que o princípio da dignidade da pessoa humana seria um
superprincípio por possuir um valor maior do que todos os demais princípios
constitucionais e fundamentos da República, pois trata da vida, da igualdade e da
liberdade (SARLET, 2005). Vale a pena, neste momento, ressalvar que, conforme
Hanna Arendt (2003), a idéia de igualdade como justiça é uma convenção atual, uma
vez que ela era vista como a essência da liberdade e não como um elemento de
justiça.
15
Elementos: “Jargão policial, cidadãos de terceira classe. São a grande população marginal das grandes cidades,
trabalhadores urbanos e rurais sem carteira assinada, posseiros, empregadas domésticas, biscateiros, camelôs,
menores abandonados, mendigos. São quase invariavelmente pardos ou negros, analfabetos, ou com educação
fundamental incompleta. Esses elementos’ são parte da comunidade política nacional apenas nominalmente. Na
prática, ignoram seus direitos civis ou os têm sistematicamente desrespeitados por outros cidadãos, pelo governo,
pela polícia. Não se sentem protegidos pela sociedade e pelas leis. Receiam o contato com agentes da lei, pois a
experiência lhes ensinou que ele quase sempre resulta em prejuízo próprio” (CARVALHO, 2006, p. 216).
Rizzato Nunes (2002, p.50-51) se encontra na mesma corrente de pensamento de
Ingo W. Sarlet e afirma que o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana
é:
Um verdadeiro supraprincípio constitucional que ilumina os demais princípios
e normas constitucionais e infraconstitucionais, sendo que não pode este
princípio ser desconsiderado em nenhum ato de interpretação, aplicação ou
criação de normas jurídicas.
A partir da idéia de que o princípio da dignidade da pessoa humana merece um
tratamento especial e também pelo fato de tratar-se de um dos principais princípios
suprimidos, quanto a trabalho em condições análogas à de escravo, será desenvolvida
uma análise desse princípio. É importante demonstrar que dignidade humana e a
dignidade da pessoa humana são termos distintos. O primeiro refere-se a toda a
coletividade e o segundo determina quem tem direito a essa dignidade. Para melhor
explicar, Ingo W. Sarlet (2005, p. 118) explica:
Ainda no que tange à classificação do sentido da dignidade da pessoa
humana, importa considerar que apenas a dignidade de determinada (ou de
determinadas) pessoa é passível de ser desrespeitada, inexistindo atentados
contra a dignidade da pessoa humana em abstrato. Vinculada a esta idéia,
que transparecia no pensamento Kantiano, encontra-se a concepção de
que a dignidade constitui atributo da pessoa humana individualmente
considerada, e não de um ser ideal ou abstrato, não sendo lícito confundir as
noções de dignidade da pessoa humana e dignidade humana (da
humanidade). Verifica-se, neste contexto, que o Constituinte de 87/88 acolheu
esta distinção, consagrando o principio
da dignidade da pessoa humana (e
não da dignidade humana) entre os princípios fundamentais de nossa Carta.
Por outro lado, não se descarta uma dimensão comunitária (ou social) da
dignidade da pessoa humana, na medida em que todos o iguais em
dignidade e como tais convivem em determinada comunidade ou grupo.
Além desse autor, Jorge Miranda (2000, p.184) estabelece essa diferenciação,
sugerindo que “[...] a dignidade da pessoa é da pessoa concreta, na sua vida real e
quotidiana; não é de um ser ideal e abstracto”. Esclarecida a diferenciação entre a
dignidade humana e a dignidade da pessoa humana, fica clara a opção da Assembléia
Constituinte pelo conceito de dignidade da pessoa humana, denominação abstrata que
visa a englobar todos os seres humanos.
A expressão dignidade da pessoa humana, segundo Ingo W. Sarlet (2005), é de difícil
conceituação, haja vista que é um conceito vago que depende do caso concreto para
ser determinado, mas, conforme o próprio autor, a sua determinação é de suma
importância, que facilita a sua aplicação. Sendo assim, para auxiliar o estudo e
possibilitar uma melhor conceituação, o referido autor determina as principais
dimensões da dignidade da pessoa humana, sendo elas: a dimensão ontológica, a
dimensão comunicativa e relacional e a histórico-cultural. A primeira refere-se à
qualidade intrínseca da pessoa humana, a segunda reporta-se ao ser igual aos demais
e a terceira considera que a dignidade não é inerente ao ser humano: ela também
possui um sentido cultural. Diante dessas posições, chega a um conceito que
considera o melhor e, sem ter a pretensão de achar que é completo, diz que a
dignidade da pessoa humana pode ser assim traduzida:
[...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o
faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da
comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres
fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de
cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições
existentes mínimas para a vida saudável,
16
além de propiciar e promover sua
participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da
vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET, 2005, p.37).
Jorge Miranda (2000, p. 183 - 184), ao falar sobre a dignidade da pessoa humana na Constituição
portuguesa, estabelece diretrizes básicas que sintetizam esse princípio. São elas: a) o fato de esse
princípio “[...] reportar-se a todas e cada uma das pessoas e é a dignidade da pessoa individual e
concreta”; b) ser referente “[...] à pessoa desde a concepção, e não só desde o nascimento”; c) ser
referente à pessoa como ser humano; d) pelo fato de vivermos em comunidade, a dignidade é igual
para todas as pessoas; e) apesar de cada pessoa viver em uma relação comunitária, a dignidade é
inerente a ela e não à sua situação perante a comunidade; f) ”[...] o primado da pessoa é o do ser, e não
do ter; a liberdade prevalece sobre a propriedade”; g) a dignidade justifica a busca pela qualidade de
vida; h) a proteção da dignidade está acima do Estado, ela é universal; i) “[...] a dignidade pressupõe a
autonomia vital da pessoa, a sua autodeterminação relativamente ao Estado, às demais entidades
públicas e às outras pessoas”.
Diante de uma tentativa de conceituação do princípio da dignidade humana, vale a
pena valorizar as palavras de Rizzato Nunes (2002, p. 48), uma vez que o autor
menciona que esse princípio foi uma [...] conquista da razão ético-jurídica, fruto da
reação à história de atrocidades que, infelizmente, marca a experiência humana”, pois
ele é um direito humano.
16
O autor considera que “vida saudável” deve ser averiguada conforme os parâmetros da Organização Mundial da
Saúde.
Perante tantos argumentos que justificam a importância desse supraprincípio, deve ser
levantada uma questão: como pode ser o princípio da dignidade humana um princípio
acima de todos os outros se, na verdade, ele depende do princípio do direito à vida.
Assim, não seria o princípio à vida o principal princípio do ordenamento jurídico
brasileiro? A resposta é não, pois o princípio do direito à vida é incompleto. Ele tem
que andar colado, como gêmeos siameses, com o princípio da dignidade da pessoa
humana, uma vez que vida sem dignidade não foi o que o legislador pretendeu, ao
estabelecer que todos têm direito à vida. Por isso, afirma-se que se tem direito a uma
vida digna e o meramente à vida. Caso contrário, estar-se-ia abrindo uma brecha
para voltar a aceitar que pessoas sejam escravizadas, maltratadas, sem cuidados à
saúde, lazer, sem um tratamento humano, ou seja, tratadas sem o mínimo de
dignidade. O direito à vida vai além da conceituação biológica, acrescentando
dignidade.
Por sua vez, Michael Kloepfer (2005, p. 156) entende que “Pessoas sem a proteção de
sua vida ou de sua dignidade são inimagináveis do ponto de vista constitucional”.
Segundo o autor, há o ideal de que os dois princípios andem juntos, mas isso não quer
dizer que um esteja contido no outro e que sempre estejam juntos.
Perelman (1999), ao tratar da dignidade humana e da dignidade da pessoa humana,
foi extremamente bem-sucedido, uma vez que lembrou que o Estado é o maior
responsável pela garantia desse direito. Ele tem o dever de assegurar a todos o direito
que vai além da vida, de que garantir a dignidade a ela.
A noção de direitos humanos implica que se trata de direitos atribuíveis a
cada ser humano enquanto tal, que esses direitos são vinculados à qualidade
de ser humano, não fazendo distinção entre eles e o se estendendo a mais
além. Reconheça-se ou não a origem religiosa do lugar especial reservado
aos seres humanos nessa doutrina, proclama ela que a pessoa possui uma
dignidade que lhe é própria e merece respeito enquanto sujeito moral [...].
Com efeito, se é o respeito pela dignidade humana a condição para uma
concepção jurídica dos direitos humanos, se trata de garantir esse respeito
de modo que ultrapasse o campo do que é efetivamente protegido, cumpre
admitir, como corolário, a existência de um sistema de direito com um poder
de coação. Nesse sistema, o respeito pelos direitos humanos imporá, a um só
tempo, a cada ser humano - tanto no que concerne a si próprio quanto no
que concerne aos outros homens e ao poder incumbido de proteger tais
direitos a obrigação de respeitar a dignidade da pessoa. Com efeito, corre-se
o risco, se não se impuser esse respeito ao próprio poder, de este, a pretexto
de proteger os direitos humanos, tornar-se tirânico e arbitrário. Para evitar
esse arbítrio, é, portanto indispensável limitar os poderes de toda autoridade
incumbida de proteger o respeito pela dignidade das pessoas, o que supõe
um Estado de direito e a independência do poder judiciário. Uma doutrina dos
direitos humanos que ultrapasse o estádio moral ou religioso é, pois,
correlativa de um Estado de Direito.
[...]
Assim também o Estado, incumbido de proteger esses direitos e fazer que se
respeitem as ações correlativas, não só é por sua vez obrigado a abster-se de
ofender esses direitos, mas tem também a obrigação de criar as condições
favoráveis ao respeito à pessoa por parte de todos os que dependem de sua
soberania (PERELMAN, 1999, p. 400 - 401).
Visto que o princípio da dignidade humana visa a resguardar a todos os seres
humanos, indistintamente, o direito a uma vida digna, não poderia ser diferente com o
trabalho em condição de escravidão. A esses trabalhadores também é assegurado tal
princípio, até mesmo por parte do Estado.
3.4 O TRABALHO ESCRAVO E OS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
Como visto no começo do capítulo, os direitos fundamentais são responsáveis por
uma interpretação voltada para os valores constitucionais. Luño (1998) lembra que, no
novo constitucionalismo, os direitos fundamentais desempenham uma dupla função,
uma no plano subjetivo, em que resguarda os direitos e garantias individuais e, com a
nova hermenêutica constitucional, garante também, os direitos sociais e coletivos,
enquanto, no plano objetivo, deve assegurar que os fins e objetivos constitucionais
sejam perquiridos.
Ao iniciar o capítulo, foi tomado o devido cuidado de destacar os principais incisos do
art. 5
o
para a proteção do trabalhador análogo a escravo e para demonstrar que todos
esses incisos estão ligados em um elo protetor da dignidade da pessoa humana,
demonstrando que o constituinte pretendeu trazer esse princípio como basilar da Carta
Magna de 1988.
Um outro ponto importante a ser mencionado no estudo é a diferença entre direitos e
garantias. Alguns doutrinadores entendem ser a mesma coisa enquanto outros
apresentam conceitos distintos. As garantias, conforme Paulo Bonavides (2006, p.
525), existem “[...] sempre em face de um interesse que demanda proteção e de um
perigo que se deve conjurar”. Quanto a esse conceito, o próprio autor entende que
não há contradição. Ele surge quando as expressões são utilizadas na esfera política e
jurídica, uma vez que, conforme o próprio autor, a garantia constitui-se como um meio
de defesa e é utilizada pelo direito, mas não se confundindo com ele. Portanto,
ressalva que direito e garantia não se confundem.
Jorge Miranda (2002), apesar de apresentar a diferença entre os dois conceitos,
afirma que casos em que garantias e direitos se confundirão. Como exemplo, ele
cita o art. 36, n.6 da Constituição portuguesa, que prevê a proibição de separar os pais
dos filhos, podendo ser tanto um direito quanto uma garantia:
Os direitos representam por si certos bens, as garantias destinam-se a
assegurar a fruiçao desses bens; os direitos são principais, as garantias são
acessórias e, muitas delas, adjectivas (ainda que possam ser objecto de um
regime constitucional substantivo); os direitos permitem a realização das
pessoas e inserem-se directa e imediatamente, por isso, nas respectivas
esferas jurídicas, as garantias nelas se projetam pelo nexo que possuem
com os direitos; na acepção jusracionalista inicial, os direitos declaram-se, as
garantias estabelecem-se (MIRANDA, 2002, p. 95 - 96).
Em relação aos trabalhadores em condição análoga à de escravo, verifica-se que nem
as garantias e muito menos os direitos fundamentais são resguardados, dado que a
forma como esses trabalhadores são tratados não se assemelha nem ao menos ao
tratamento de animais de tão indigna que é. Por fim, resta demonstrar que, conforme
Paulo Bonavides (2006, p. 581), a teoria dos direitos fundamentais vincula-se à teoria
da constituição e as duas à teoria dos direitos humanos:
Toda interpretação dos direitos fundamentais vincula-se, de necessidade, a uma teoria
dos direitos fundamentais; esta, por sua vez, a uma teoria da Constituição, e ambas -
a teoria dos direitos fundamentais e a teoria da Constituição a uma indeclinável
concepção do Estado, da Constituição e da cidadania, consubstanciando uma
ideologia, sem a qual aquelas doutrinas, em seu sentido político, jurídico e social mais
profundo, ficariam de todo ininteligíveis. De tal concepção brota a contextura teórica
que faz a legitimidade da Constituição e dos direitos fundamentais, traduzida numa
tábua de valores, os valores da ordem democrática do Estado de Direitos onde jaz a
eficácia das regras constitucionais e repousa a estabilidade de princípios do
ordenamento jurídico, regido por uma teoria material da Constituição.
Acredita-se que essa passagem demonstra a fundamental importância dada por nosso
ordenamento jurídico aos direitos fundamentais e que o desrespeito a esses direitos
não é um mero descumprimento de normas, mas, sim, a violação dos direitos
humanos, no sentido da nova hermenêutica constitucional.
3.5 TRABALHO ESCRAVO E OS DIREITOS SOCIAIS
Seria inviável falar em trabalho escravo, princípios, direitos e garantias fundamentais,
sem falar nos direitos sociais. Esses, como já foi visto no início do capítulo, fazem
parte dos direitos e garantias previstos no Título II da Constituição. Eles foram
implementados nos textos constitucionais a partir das Constituições de Weimar e
Mexicana, que marcaram a ideologia dos direitos humanos de segunda dimensão. O
direito do trabalho é um dos meios de inclusão social, uma vez que as relações de
emprego inserem o trabalhador no âmbito de uma sociedade, visto que gera meios de
o ser humano sustentar a si e a sua família, possibilitando a vida em sociedade.
Maurício Delgado (2006, p. 1159) afirma:
As principais funções do Direito do Trabalho, afirmadas na experiência
capitalista dos países desenvolvidos, consistem, em síntese, na melhoria das
condições de pactuação da força de trabalho na vida econômico-social, no
caráter modernizante e progressista, do ponto de vista econômico e social,
deste ramo jurídico, ao lado de seu papel civilizatório e democrático no
contexto do capitalismo. Em aparente contraponto a tudo isso, desponta a
função política conservadora deste segmento jurídico especializado.
Nessa passagem, o autor demonstra a importância do trabalho para os seres
humanos, tanto do ponto de vista econômico-social, quanto civilizatório e democrático
A relação de emprego é hoje o sonho de grande parte dos brasileiros. Aqueles que
não o conseguem acabam na informalidade, muitas vezes, submetendo-se a
condições análogas à de escravo, vivendo em situação degradante, na tentativa de
obter ao menos um pouco de dignidade e cidadania.
Mas, em regra, a informalidade não é a melhor forma de trabalho para um país que
prima, em sua Constituição, pelos direitos sociais. Isso porque o contrato de emprego
é a conexão existente entre o indivíduo, a economia e o direito do trabalho. Como é o
ramo jurídico que a regulamenta, essa relação acaba se tornando o mais importante
meio de implementação da justiça social.
[...] sabe-se que a economia de mercado não visa a busca de equidade, de
justiça social, porém a procura da eficiência, da produtividade e do lucro.
Neste contexto o Direito do Trabalho tem se afirmado na história como uma
racional intervenção da idéia de justiça social, por meio da norma jurídica,
no quadro genérico de toda a sociedade e economia capitalista, sem
inviabilizar o próprio avanço deste sistema socieconômico (DELGADO,
2006, p. 1160).
O autor utiliza o termo direito do trabalho, apesar de as normas desse ramo do Direito
estarem contidas tanto de forma específica (infraconstitucionais) quanto na
Constituição. Ana Paula Branco (2006, p. 1505) é taxativa ao afirmar que a
modernidade deve empenhar-se na utilização do direito constitucional do trabalho:
Sem se descurar de manter as conquistas históricas alcançadas, é preciso
transgredir em relação a uma conjuntura de fatores e de preceitos picos do
fenômeno da globalização, reinventando-o como instrumento viabilizador da
manutenção desse ideário, ante o evidente clamor social pela manutenção
desse ideário, ante o evidente clamor social pela manutenção de uma
abordagem efetivamente humanizadora do Direito Constitucional do Trabalho,
e que, ao contrário do que possam pensar alguns, nada tem de panfletagem
ou de antipragmatismo.
É relevante lembrar a importância do direito constitucional para o direito do trabalho,
pois alguns autores não conseguem fazer um link sólido entre direito do trabalho e
direito constitucional. Apesar de tentar distanciar-se da velha hermenêutica, eles ainda
estão presos a ela e por isso consideram os princípios, direitos e garantias
fundamentais, normas não auto-aplicáveis.
Em suas considerações, Jorge Souto (2000) afirma que o direito do trabalho é
instrumento de justiça social. Ele chega a falar que a constitucionalidade das normas e
a sistematização do Direito é um dos principais fatores para a luta pelo direito.
Ingo W. Sarlet (2005), Canasado Trindade (2000), Carlos Henrique B. Leite (2001) e
Nobberto Bobbio (2004) trabalham com a idéia de que as normas fundamentais têm
eficácia e aplicabilidade plena e imediata, porque são normas constitucionais de
segunda dimensão. A norma constitucional não é apenas um balizador. Mais uma vez,
pode-se afirmar que o problema justrabalhista não está na legislação, mas na sua não
utilização adequada, gerando injustiça social. Conforme Jorge Luiz Souto Maior (2000,
p. 249):
Essa justiça social, cabe dizer, não é um preceito abstrato, não identificável e
subjetivo. Ao contrário, no conflito, localizado e específico, do capital versus
trabalho, a justiça pode ser muito bem identificada no lucro e na
conseqüente acumulação de riqueza que o capital obtém à custa de mão-
de-obra mal remunerada e nas más condições de trabalho a que se
submetem os trabalhadores.
Assim, identificando a injustiça social, fica mais fácil de se saber o que vem a ser a
justiça social e vislumbrar a posição inibidora das injustiças alcançada pelo direito do
trabalho. Jorge Luiz Souto Maior (2000, p.259) traz uma conclusão que demonstra que
as relações de emprego são importantes para manter a economia estável:
[...] toda situação de miséria, provocada pelo afastamento da dignidade nas
relações de trabalho, é profundamente instável, também do ponto de vista
econômico. A precarização das relações de trabalho, portanto, ainda que
provoque aumento de
lucros ao empresário, provoca uma instabilidade social
da qual o empresário é a primeira tima; a segunda, toda a sociedade e, de
forma mais abrangente e complementar, todo o globo.
É importante ressaltar as palavras de Maurício Delgado (2006, p. 1163) em relação ao
mercado de trabalho no mundo capitalista.
Como se sabe, mesmo com a abolição da escravatura (1888), o país não
chegou a construir, nas quatro décadas seguintes, um mercado de trabalho
capitalista bem estruturado, com suporte no clássico instrumento de conexão do
indivíduo a este sistema econômico-social, qual seja, a relação de emprego.
Muito menos instituiu um Direito do Trabalho efetivo, seja com fulcro na
negociação coletiva, seja com base na legislação estatal, uma vez que ambas
mostraram-se rarefeitas ao início da década de 1930. Tudo isso certamente
conectado ao fato de a industrialização principal veículo de generalização das
normas trabalhistas nas fases iniciais do capitalismo ainda não se ter
expandido de modo relevante na economia do país, que apenas despontava,
porém pressionada, nos meandros hegemonia agro-exportadora da época.
Os direitos sociais, como visto, estão presentes no ordenamento brasileiro. Para
alcançá-los, é preciso apenas de boa vontade, tanto do mercado, conscientizando-se
de que o trabalhador tem que ter seus direitos na prática, quanto dos aplicadores e
estudiosos do direito, na tentativa de efetivá-los. Quando se trata de trabalhadores em
condição análoga à de escravo, essa situação é ainda mais grave do que a dos
trabalhadores informais, já que esses são privados dos direitos sociais, enquanto
aqueles, além dos direitos sociais, perdem a sua dignidade como pessoa humana e
sua cidadania. Considerar os direitos sociais como direitos fundamentais não é apenas
uma visão topográfica, como afirmam alguns autores. Assim, é necessário
conscientizar-se de seu valor e de que sem eles a sociedade está fadada a grandes
bolsões de miséria.
3.5.2 O Direito de Resistência
Após a CRFB de 1988, o Direito Constitucional tomou grandes proporções no âmbito
trabalhista. Além disso, a partir de Ingo W. Sarlet (2005), o Direito brasileiro passou a
ter um doutrinador que caracteriza a dignidade da pessoa humana como fator
preponderante do direito à vida e, portanto, um princípio que merece uma maior
atenção. Neste item, pretende-se demonstrar que, quando configurado o trabalho
análogo ao de escravo, o direito de resistência (do trabalhador) é mais um direito
fundamental suprimido e, quando combinado com um dos requisitos tipificadores do
art. 149 do CPB, é a mola propulsora para a configuração do ilícito penal e,
conseqüentemente, para a configuração do trabalho escravo.
Conforme Marcio Túlio Viana (1996, p. 78), o direito de resistência é uma norma com
status de garantia fundamental, “[...] o empregador que excede os limites do poder
diretivo ofende, em regra, o direito fundamental contido no art. 5
o
, II, da Constituição.
Deste modo, ao resistir a essa ofensa, o empregado exercita outro direito
fundamental”. Esse consagrado autor ensina que o ius resistentiae é um direito do
trabalhador, independentemente do direito à Justiça (órgão estatal), pois, no âmbito
trabalhista, esse, em regra, só se após o término do contrato de trabalho, fator
oneroso para o empregado. Portanto, afirma o autor que, “[...] quando o poder de
comando se excede, não há, logicamente, acordo de vontades, e nem sempre (ou
quase nunca) é viável o recurso ao Estado” (VIANA, 1996, p. 74). Assim, complementa
que o “[...] ius resistentiae não apenas serve de limite ou barreira natural ao ius
variandi
17
, como também, por isso mesmo, ajuda a legitimá-lo” (p.75). O mesmo
acontece com o poder disciplinar.
Viana (1996, p. 75) aponta, como fundamento do direito de resistência, o art. 5
o
. da
CRFB, que determina que “[...] ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer
17
Ius variandi conforme Viana (1996, p. 76): “[...] o empregador é o juiz do modo de ser da prestação do
empregado, também é o primeiro juiz das ordens que recebe, resistindo às ilegais”.
alguma coisa, senão em virtude de lei”. Como forma de justificar a aplicação da norma
fundamental a particulares, o autor aduz a eficácia horizontal dos direitos
fundamentais, defendida por Canotilho e Sarmento e, por fim, deve-se observar que
Marcio Túlio Viana (1996, p. 79) é taxativo ao dizer que a defesa do ius resistentiae
está intimamente ligada à dignidade do trabalhador.
Por tudo isso, e arrematando o nosso pensamento, podemos concluir que,
seja qual for o direito que socorra, o ius resistentiae’ é uma garantia
fundamental do trabalhador. E garantia das mais importantes: basta notar que
o seu oposto é a submissão, sinônimo de dignidade perdida (VIANA, 1996, p.
79).
No caso do trabalho escravo, o conceito apresentado de direito de resistência é um
divisor de águas, porque, se um trabalhador puder resistir às ordens abusivas de seu
empregador, dificilmente estará nas condições estudadas. Além disso, na análise do
art. 149. do CPB, veremos que, quando um trabalhador é submetido ao trabalho
forçado, à jornada exaustiva, à condição degradante ou à restrição de sua liberdade,
combinado com a perda do direito de resistência, ele estará submetido à condição
análoga à de escravo e, conseqüentemente, estará sem o seu bem maior, a dignidade
da pessoa humana, e sem a sua cidadania.
CAPÍTULO IV
Primeiro levaram os negros
Mas, não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas, não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas, não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas, como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora, estão me levando
Mas, já é tarde
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo
(BERTOLD BRECHT, 1898 – 1956)
Estou lutando com as roupas e as armas de Jorge
[...] (MARINA LIMA).
4 A FUNÇÃO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA NO COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO
Até o momento, o presente estudo tratou da conceituação de trabalho análogo ao de
escravo, da sua origem, dos problemas enfrentados por seres humanos que se
encontram nessa condição indigna que fere os direitos fundamentais e,
conseqüentemente, os direitos humanos. Além disso, verificou-se que a legislação
penal brasileira foi além do conceito de trabalho escravo apresentado pela OIT, mas
os trâmites penais nem sempre são suficientes para punir, efetivamente, quem comete
o crime de reduzir alguém à condição análoga à de escravo.
Por isso, enfocar-se-á a Ação Civil Pública (ACP) como uma garantia constitucional
que está conseguindo, à medida do possível, punir aqueles que cometem o crime
tipificado no art. 149 do CPB. A aceitação da ACP, nos casos de trabalho análogo ao
de escravo, com pedido de dano moral coletivo, dentre outros, é posição de
vanguarda e a sua aceitação pelo TST é recente.
Como se afirmou, medidas efetivas devem ser tomadas para que pessoas não
continuem a trabalhar de forma indigna. Em pleno século XXI, continua o desrespeito à
vida humana nas relações de trabalho, inclusive com reincidência. Na busca de meios
que contribuam para a erradicação dessa prática, estudar-se-á a ACP.
4.1 A AÇÃO CIVIL PÚBLICA
Conforme Cappelletti e Garth (2002, p. 67), a terceira onda de acesso à Justiça é um
passo importante para a representação dos “[...] interesses difusos não apenas dos
pobres, mas também dos consumidores, preservacionistas e do público em geral, na
reivindicação agressiva de seus novos direitos sociais”. A Ação Civil Pública é um
instrumento que coloca em prática a tendência levantada pelos autores citados e,
devido ao seu caráter difuso, coletivo e individual homogêneo, é estudada como
instrumento efetivador dos direitos fundamentais do trabalhador análogo a escravo.
Quanto à denominação dada à ação que se esestudando, ela apresenta alguns
problemas que não interferem na utilização prática, que são meramente didáticos,
mas não devem passar em branco pelos estudiosos, a fim de que fique claro o que se
pretendeu com o nome escolhido. O primeiro deles é quanto à utilização do termo
público. Alguns autores entendem ser redundante, visto que, em regra, toda ação é
pública (art. 5
o
, LX da CRFB), mas o legislador optou pela utilização do termo para
diferenciar das ações civis comuns e da ação penal pública. Pedro Lenza (2005) faz
uma análise da doutrina estrangeira, principalmente da italiana, e chega à conclusão
de que a denominação ação civil pública surge para diferenciar da ação penal pública,
“Pública porque ajuizada pelo Ministério Público; penal ou civil, de acordo com a
natureza jurídica de seu objeto” (p.159), e no mesmo sentido, Marcelo Abelha (2004,
p.16), em seus estudos, concluíu que o termo civil pública foi utilizado “[...] em
contraste com o termo ação penal pública, numa clara referência à ação não penal
proposta pelo ‘parquet’”.
Para Rodolfo Mancuso (2004, p. 23-24), essa terminologia se justifica pelo fato de a
ação conter “[...] um largo espectro social de atuação, permitindo o acesso à justiça de
certos interesses metaindividuais que, de outra forma, permaneceriam num certo
‘limbo jurídico’”. Em contrapartida, Ada Pelegrini Grinover (1997) considera o termo
impróprio, uma vez que a titularidade da ação não é exclusiva dos órgãos públicos,
como o MP, União, Estados e Municípios, e acrescenta que a tutela dos interesses
públicos não é objeto do processo. Sendo assim, a denominação da ação com o termo
público, para ela, é impróprio. Da mesma forma, José Marcelo Vigliar (2002, p. 457)
diz:
Tanto ação civil pública como ação civil coletiva são expressões equivocadas.
Esta, embora não seja consagrada, deveria ser a utilizada (aconselho mesmo
que optem por ela), porque revela o tipo de interesse que está a pleitear a
tutela jurisdicional. O nome não terá a força para modificar a essência da
coisa. Se o interesse for transindividual (na sua essência ou não), a demanda
será coletiva.
Na mesma esteira, segue Pedro Lenza (2005, p.162).
[...] a única conclusão que se pode chegar, seguindo a linha exposta por
Vigliar é erigir o fator histórico como justificativa terminológica. Nem o critério
subjetivo, nem o material servem para explicá-la.
Isso porque, do ponto de vista subjetivo a terminologia ‘ação civil pública’
seria inadequada que não houve atribuição de legitimidade exclusiva a
órgão públicos [...].
No mesmo sentido, o critério material também seria insuficiente para justificar
a escolha do nomem júris, que o objeto da tutela trazido pela Lei 7.347/85
(LACP), também, não é público [...].
Assim, na medida em que as hipóteses do art. 1
o
da LACP não são taxativas
e, sabendo-se que o digo de Defesa do Consumidor e a Lei da Ação Civil
Pública se completam reciprocamente, pode-se dizer que o objeto da Lei da
Ação Civil Pública é a tutela de quaisquer interesses difusos, coletivos ou
individuais homogêneos, portanto não públicos, afastando-se, dessa feita, a
aplicação do critério material para se nominar a ação trazida pela Lei
7.347/85.
O autor segue seu entendimento propondo que estaria mais correta a “[...]terminologia
adotada pelo Código de Defesa do Consumidor que nominou como coletiva a defesa
dos interesses transindividuais, consoante os arts. 87, 91 e 98” (LENZA, 2005, p. 163).
Contudo ele nos lembra que o termo Ação Civil Pública foi aquele que se tornou usual,
na doutrina, na jurisprudência e até mesmo na CRFB e em toda legislação que a
seguiu. Da mesma forma que José Marcelo Vigliar (2002), Pedro Lenza entende que a
expressão civil pública foi consagrada pela prática, é a forma como é conhecida na
linguagem forense.
Considera-se importante lembrar que, dentro da Ação Civil Coletiva, também se inclui
a Ação Popular e os Acordos Coletivos, dentre outras ações. Assim, para a maioria
dos autores, a discussão terminológica, na prática, não interfere no conteúdo da
pretensão material deduzida em juízo. Contudo, observa-se que a Ação Civil Pública é
uma espécie de Ação Civil Coletiva. Apesar de sua denominação não expressar
realmente o que é essa ação, ela a diferencia das demais ações coletivas, uma vez
que apresenta características próprias.
José Marcelo Vigliar (2002, p. 453) não concorda com a afirmação acima alegando:
[...] não como sustentar seja a ação coletiva um gênero, do qual a ação
civil pública seja uma espécie. É plenamente possível a utilização de uma
expressão pela outra. Ambas não deveriam existir, pois ão não deve ser
adjetivada. Mas, a coletiva diz muito mais: diz que tipo de interesse se busca
tutelar.
Rodolfo Mancurso (2004) e Carlos Henrique B. Leite (2001) discordam da posição
supracitada, à medida que entendem que a denominação civil pública não qualifica a
ação, mas a diferencia das demais ações coletivas e, portanto, demonstra aos
profissionais do Direito o que se pretendia ao ajuizar aquela ação e qual deve ser o
procedimento adotado, assim como os seus legitimados, o direito defendido, dentre
outras coisas. O nome da ação não é crucial para a sua interposição, mas ajuda aos
profissionais atualizados a identificar o que se pretende com aquela demanda.
4.2 CONCEITUAÇAO DE INTERESSES OU DIREITOS DIFUSOS, COLETIVOS E
INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS
Com o surgimento dos interesses de massa, protegidos pelo sistema metaindividual, a
“[...] clássica distinção entre direitos e interesses, pelo menos no tocante aos ‘novos
direitos’, deixa de ter relevância para a dogmática jurídica” (LEITE, 2001, p. 45). Da
mesma forma que o CDC, José dos Santos Carvalho Filho (2007) utiliza tanto a
expressão interesses e direitos. Sendo assim, quando escolhido um dos dois, não se
está optando pela antiga conceituação que distinguia os conceitos, mas pela tendência
posterior aos interesses de massa e que segue o CDC que considera desnecessária a
distinção.
Certamente que direito não é a mesma coisa que interesse e isso fica evidente
no próprio texto legal, aliás, diz-se, normalmente, que direito é o interesse
juridicamente protegido. Entretanto, por ficção jurídica, o legislador fez com
que os interesses ali discriminados fossem equiparados a direitos, permitindo
a sua tutela. Essa equiparação tem raízes fincadas na dificuldade de se definir
e separar um instituto do outro; para aumentar o rol de interesses
juridicamente tuteláveis; para concretizar a existência de direitos que não são
apenas normas instituidoras de programas na nossa constituição, tais como o
direito do ambiente, o direito ao desporto, o direito à saúde, o direito à
informação, entre outros direitos sociais que apresentam espectro difuso
(público propriamente dito). É de se notar que a antiga distinção entre
interesse e direito parte de uma noção individualista, portanto, privatista de
todo o Estado, onde este último tinha por função precípua ‘não violar direitos e
garantias individuais. Hoje a sua função é menos negativa e mais positiva,, na
medida em que deve prestar, implementar e executar políticas públicas que
indiquem os interesses sociais a serem perseguidos’ (ABELHA, 2007, p. 267).
Além disso, como visto no capítulo dos sonhos transformados em dimensões, o uso do
termo metaindividual resultou da inclusão dos direitos individuais homogêneos ao
termo transindividual (LEITE, 2001), conforme o art. 81 do CDC.
4.2.1 Interesses Difusos
A conceituação de tais interesses está presente no Código de Defesa do Consumidor,
art. 81, I: “[...] Para efeito deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível de
que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”.
Apesar disso, é importante observar o que os doutrinadores falam a respeito desses
interesses.
Rodolfo Mancuso (2004, p.150) ) hesita em definir interesse difuso, mas, ao final de
sua obra, apresenta uma definição do termo, sustentando que
[...] são interesses metaindividuais, que, não tendo atingido o grau de
agregação e organização necessários à sua afetação institucional junto a
certas entidades ou órgãos representativos dos interesses já socialmente
definidos, restam em estado fluido, disperso pela sociedade civil como um
todo (v.g., o interesse à pureza do ar atmosférico), podendo, por vezes,
concernir a certas coletividades de conteúdo numérico indefinido (v.g., os
consumidores). Caracterizam-se: pela indeterminação dos sujeitos, pela
indivisibilidade do objeto, por sua intensa litigiosidade interna e por sua
tendência à transição ou mutação no tempo e no espaço.
Mauro Cappelletti (2001, p.26) define os direitos difusos como “[...] interesses
fragmentados ou coletivos, tais como o direito ao ambiente saudável, ou à proteção do
consumidor”. Percebe-se que esse autor não distingue entre direitos coletivos e
direitos difusos mas, no trabalho, opta-se por essa diferenciação. Além disso, o autor
apresenta como problema desses direitos o fato de que “[..] ninguém tem direito a
corrigir a lesão a um interesse coletivo, ou o prêmio para qualquer indivíduo buscar
essa correção é pequeno demais para induzi-lo a tentar uma ação” (p.27).
De fato, individualmente, tais direitos são de difícil efetivação, seja por conta da
legitimação, seja por conta da insignificância, seja pelo baixo retorno que uma
demanda traria. Contudo, quando unidos, os direitos assumem uma dimensão capaz
de produzir efeitos favoráveis a todos. Vários são os exemplos, porém o mais fácil de
visualizar é o do consumidor que, desavisado, compra um pacote de açúcar que, de
500g, passou para 400g sem que o preço fosse reduzido ou que o fabricante o
informasse. Individualmente nenhuma comprador iria acionar a Justiça (salvo raras
exceções), buscando ser ressarcido de 100g de açúcar. Mas, se um determinado
supermercado vende mil pacotes de açúcar por dia, ao final do mês, o supermercado e
o fabricante terão um lucro extra em cima dos consumidores em cerca de 30.000.000g
de açúcar, o que é um montante considerável.
Nesses casos é preciso que um legitimado entre com uma ação que favoreça a todos
os consumidores que foram “enganados”. O exemplo foi de um direito que não se
determina exatamente quem foi afetado, visto que seria difícil identificar cada
comprador daquela marca do pacote de açúcar. Assim, uma associação de
consumidores ou o Ministério Público poderiam acionar a Justiça por meio da ACP,
pleiteando medidas que beneficiassem os consumidores e punissem os fabricantes
que tentaram ludibriar seus consumidores.
As características dos direitos difusos são: a indeterminação do sujeito, caracterizada
pela falta de união jurídica entre os sujeitos afetados, a indivisibilidade do objeto, visto
que são direitos que, por sua natureza, não se dividem a intensa litigiosidade interna
e a duração efêmera – Conforme Hugo Mazzilli (2004, p. 51).
[...] Os interesses difusos compreendem grupos menos determinados de
pessoas (melhor do que pessoas indeterminadas, são antes pessoas
indetermináveis), entre as quais inexiste vínculo jurídico fático preciso. São
como um feixe ou conjunto de interesses individuais, de objetos indivisível,
compartilhados por pessoas indetermináveis, que se encontram unidas por
circunstancias de fato conexas.
[...] a lesão ao grupo não decorrerá de relação jurídica em si, mas sim da
situação fática resultante.
Por fim, a transição ou mutação no tempo e no espaço que assim se caracteriza, de
acordo com Rodolfo Mancuso (2004, p. 106):
Os interesses difusos, de ordinários, não se apresentam jungidos a um
vínculo jurídico básico, mas a situações contingenciais, e daí deriva a
conseqüência deles serem mutáveis como essas mesmas situações de fato;
e mesmo, podem fenecer e desaparecer, acompanhando o declínio e
extinção daquelas situações. Pela mesma razão, podem reaparecer mais
adiante, se e quando apresentarem fatores suficientes para tal.
Pedro Lenza (2005, p. 69-70) apresenta o seguinte quadro com a caracterização
doutrinária dos interesses difusos: “[...] transindividualidade real ou essencial ampla;
indeterminação dos seus sujeitos; indivisibilidade ampla e indisponibilidade; vínculo
meramente de fato a unir os sujeitos; ausência de unanimidade social; organização
possível, mas sempre subotimal reparabilidade indireta”.
Definido o que vem a ser os interesses difusos, passa-se a falar dos interesses
coletivos que, por vezes, foram confundidos com os interesses difusos, mas que se
entende serem interesses diferentes, apesar de não haver propriamente uma diferença
de essência ou de natureza entre esses dois tipos de interesses: ambos integram o
gênero “metaindividuais”; a particularidade está em que um interesse difuso pode
tornar-se “coletivo” se e quando estiver revestido do grau de definição, coesão e
organização deste último (MANCUSO, 2004).
4.2.2 Interesses Coletivos
Dogmaticamente, pode-se definir que os interesses coletivos são: conforme a Lei n°
8.078/90, art. 81, II - “[...] os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular
grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por
uma relação jurídica base” (AQUAVIVA, 2005, p. 801). Didaticamente, Rodolfo
Mancuso (2005, p. 54-53) é quem apresenta a melhor definição para os interesses
coletivos, ao determinar que
[...] não se trata da defesa do interesse pessoal do grupo; não se trata,
tampouco, de mera soma ou justaposição de interesse dos integrantes do
grupo; trata-se de interesses que depassam esses dois limites, ficando
afetados a um ente coletivo, nascido a partir do momento em que certos
valores individuais, atraídos por semelhanças e harmonizados pelo fim
comum, se amalgamam no grupo. É síntese, antes que mera soma.
[...]
Pensar e sentir coletivamente é relegar a um plano secundário o interesse
imediato, egoísta, para, com os olhos postos num ideal amplo e generoso,
empenar os esforços comuns com vistas à consecução desse desiderato.
Sendo assim, os direitos coletivos vão além dos interesses individuais das pessoas
pertencentes a um grupo, categoria ou classe. Eles surgem quando se encontram,
conforme Pedro Lenza (2005, p. 69-70): “[...] transindividualidade real ou essencial
restrita (ao grupo, categoria ou classe de pessoas); determinabilidade dos sujeitos;
divisibilidade externa e indivisibilidade interna; disponibilidade coletiva e
indisponibilidade individual; relação jurídica-base a unir os sujeitos; irrelevância da
unanimidade social; organização-ótima viável, reparabilidade indireta”.
É sempre bom lembrar que a formação de um grupo legalmente constituído, anterior
ao fato, nem sempre é obrigatória para a existência do interesse coletivo, o que é
necessário, para Rodolfo Mancuso (2004, p.62),
É o quantum satis para compreender quais são as notas fundamentais que
caracterizam como ‘coletivo’ um dado interesse: a) um mínimo de
organização, a fim de que os interesses ganhem a coesão e a identificação
necessária; b) a afetação desses interesses a grupos determinados (ou ao
menos determináveis), que serão os seus portadores (enti esponenziali); c)
um vínculo jurídico básico, comum a todos os participantes, conferindo uma
situação jurídica diferenciada.
Assim também Carlos Henrique B. Leite (2001, p. 54) se manifesta:
[...] não é a lesão em si que faz surgir a relação jurídica base. Ao revés, é a
existência prévia do grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou
com a parte contrária por meio de um vínculo jurídico básico que faz nascer
para os integrantes desses agrupamentos sociais o interesse coletivo que os
empolga a se defenderem da lesão ou ameaça a direito a eles outorgados
enquanto integrantes do grupo, categoria ou classe (grifo nosso).
Dessa forma, a diferença básica entre os interesses difusos e os coletivos está no fato
de que, nos coletivos, conseguem-se determinar os titulares e existe uma relação
jurídica-base que os caracteriza, tendo em comum o fato de que são interesses
metaindividuais e indivisíveis.
4.2.3 Interesses Individuais Homogêneos
O CDC incluiu os interesses individuais homogêneos dentre os direitos coletivos, no
art.81, III, determinando que são aqueles de origem comum. O primeiro ponto a ser
observado, nesse artigo, é que, ao contrário dos demais artigos referentes ao direito
coletivo, esse artigo não é exauriente, o que acabou por gerar severas críticas
doutrinárias (LEITE, 2001).
A primeira delas, levantada por Carlos Henrique B. Leite (2001), diz respeito à inclusão
feita pelo legislador dos direitos individuais homogêneos no CDC, junto com os direitos
coletivos, pois, segundo Zavascki, esses direitos somente são coletivos na forma, mas
não em sua essência e, assim, não deveriam estar presentes nesse artigo.
Em
contrapartida, encontra-se Rodolfo Mancuso (2004, p. 54) que deixa clara a
concordância com a inclusão dos interesses individuais homogêneos entre os direitos
coletivos elencados pelo CDC:
Está claro que a vera noção de interesse coletivorequer mais do que uma
simples adição de interesses individuais. Sempre se pode fazer coletivamente
o que já antes se poderia fazer a título individual; todavia, uma simples
alteração do modo do exercício não pode mudar a essência dos interesses
agrupados, que permanecem de natureza individual. É por isso que o CDC,
dentro do gênero ‘interesses transindividuais’ considera individuais
homogêneos aqueles ‘decorrentes de origem comum’ (art. 81, III, da Lei
8.078/90) e para tanto disponibiliza uma modalidade de tutela processual
coletiva (arts. 91-100), sem que, todavia, isso impeça os particulares lesados
de ajuizarem seus pleitos individuais, apressando-se o legislador em
esclarecer que não há litispendência (art. 104).
Carlos Henrique B. Leite (2001), ao contrário de Hugo Mazzili (2004), entende que os
titulares dos direitos e interesses individuais homogêneos – titulares do direito material
e não processual – não são os mesmos do direito e interesse coletivo já que
[...] os interesses do grupo, da classe ou da categoria são transindividuais e
indivisíveis por natureza. os interesses individuais homogêneos não o
materialmente transindividuais, embora processualmente o sejam, isto é, os
interesses individuais homogêneos são metaindividuais apenas na forma
empregada para a sua defesa em juízo (LEITE, 2001, p. 60).
Um apontamento muito interessante feito por Carlos Henrique B. Leite (2001, p. 62) é
o de que não que se confundir interesses individuais homogêneos com a formação
litisconsorcial ativa:
Não há que se confundir, ao que nos parece, defesa coletiva de interesses
individuais homogêneos com defesa individualizada de direitos subjetivos.
Naquela, a legitimatio ad causam é conferida a entes ou instituições
juridicamente coletivos (Estado e suas descentralizações, Ministério Público,
associações civis), sendo certo que a sentença respectiva, no caso de
procedência do pedido fará coisa julgada erga omnes (CDC, art. 103, III); ao
passo que nesta ão é proposta pelos próprios titulares dos direitos
subjetivos e a sentença, que dirime esse conflito intersubjetivo, tanto no caso
de procedência quanto no de improcedência do pedido, fará coisa julgada
inter omnes (CPC, art. 472).
É importante rever as observações feitas por Pedro Lenza (2005, p. 60), em seu
quadro sinóptico, que determina a caracterização doutrinária dos interesses/direitos
individuais homogêneos como sendo:
[...] transindividualidade artificial (ou legal) e instrumental; “determinabilidade
dos sujeitos; divisibilidade; disponibilidade (quando a lei não disponha o
contrário); núcleo comum de questões de direto ou de fato a unir os sujeitos;
irrelevância da unanimidade social; organização-ótima viável e recomendável;
reparabilidade direta, com recomposição pessoal dos bens lesados”.
Esse esquema apresentado pelo autor ajuda a compreender melhor o que o legislador
pretendeu, ao incluir os interesses individuais homogêneos entre os direitos coletivos.
Carlos Henrique B. Leite (2001, p. 63), na tentativa de sintetizar a diferença entre os
interesses difusos e coletivos e os interesses individuais homogêneos, afirma que
[...] os interesses difusos e coletivos são, materialmente e processualmente,
metaindividuais; enquanto os individuais homogêneos, em razão de serem
provenientes de uma causa comum que atinge uniformemente a todos os
lesados, são metaindividuais apenas para fins de tutela judicial coletiva.
E as explicações de Hugo Mazzilli (2004, p. 53) complementam:
Tanto interesses difusos como coletivos são indivisíveis, mas se distinguem
não pela origem da lesão como também pela abrangência de grupo. Os
interesses difusos supõem titulares indetermináveis, ligados por
circunstâncias de fato, enquanto os coletivos dizem respeito a grupo,
categoria ou classe de pessoas determinadas ou determináveis, ligadas pela
mesma relação jurídica básica.
Por sua vez, os interesses coletivos e os interesses individuais homogêneos
têm também um ponto de contato: ambos reúnem grupo, categoria ou classe
de pessoas determináveis; contudo, distinguem-se quanto à divisibilidade do
interesse: os interesses individuais homogêneos são divisíveis, supondo
uma origem comum.
Entendido o que vem a ser interesses/direitos difusos, coletivos e individuais
homogêneos, aprofundar-se-á sobre a ACP, apresentando-a como uma garantia
fundamental para, posteriormente, explicar o que vem a ser o dano moral coletivo,
protegido pela ACP.
4.3 A AÇÃO CIVIL PÚBLICA COMO GARANTIA FUNDAMENTAL
Dentre os constitucionalistas, Celso Ribeiros Bastos (2001, p. 260) foi aquele que
assumiu a ACP como previsto no Título dos direitos e garantias
18
fundamentais. O
autor defende que, apesar de ela não estar prevista no Título II da CRFB, “[...] não
deixa de constituir-se em uma das garantias instrumentais dos direitos
constitucionalmente assegurados”.
Ele alega que a ACP, além de proteger os valores inseridos na LACP, teve o seu
objeto alargado com os arts. 129 e 127, caput da CRFB, o que assegura a essa ação
o status de garantia constitucional fundamental de defesa dos direitos metaindividuais,
deixando de ser uma ação infraconstitucional, regulamentada apenas pela Lei n°
7347/85. Com isso, o MP passa a ser o único legitimado incondicional, uma vez que os
demais devem comprovar o legítimo interesse pela causa (BASTOS, 2001).
Ainda conforme Celso Ribeiro Bastos (2001, p.261), o texto da Constituição de 1988
[...] alargou o alcance desses instrumentos. Por um lado, estendeu-os à
proteção do patrimônio público em geral, dando, pois, à ação civil pública
âmbito análogo ao da ação popular (v. art. 5
o
, LXXIII). Por outro, tornou
meramente exemplificativa uma enumeração que era taxativa. Note-se que a
regra constitucional se refere a outros interesses difusos ou coletivos.
Fica claro ser a ação civil pública meio de proteção de alguns interesses
transindividuais [...]. A ação civil pública consagrou-se como meio de
defesa de interesses indisponíveis do indivíduo e da sociedade.
Como vimos, Bastos é claro e objetivo, ao definir a ACP como uma garantia
instrumental fundamental, da mesma forma que Carlos Henrique B. Leite (2001, p.91):
Com a promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, a
ação civil pública foi guindada à categoria de garantia instrumental
fundamental, ampliando-se consideravelmente o seu objeto não apenas para
a reparação de danos causados ao meio ambiente, ao consumidor e aos
bens referidos no parágrafo anterior, mas também para ‘a proteção do
patrimônio público e social’ e ‘de outros interesses difusos e coletivos’(CF, art.
129, III).
18
Vislumbra-se a ACP como uma garantia, uma vez que visa a assegurar direitos.
Dessa forma, Celso Ribeiro Bastos (2001) e Carlos Henrique B. Leite (2001)
consideram a ACP uma garantia fundamental constitucional. A importância desse
status é impedir que normas infraconstitucionais a retirem do ordenamento brasileiro.
4.4 O PEDIDO DE DANO MORAL COLETIVO
O trabalho será iniciado com a conceituação de dano e passará pelo conceito de dano
moral individual para, ao final, chegar ao que é entendido como dano moral coletivo,
pois assim será possível definir o tema proposto e perceber que seus fundamentos
são distintos. Dano, segundo Aurélio Ferreira (1993, p. 519), significa “[...] mal ou
ofensa pessoal; prejuízo moral [...] prejuízo material causado a alguém pela
deterioração ou inutilização de bens seus”. Para Carlos Alberto Bittar (1989, p. 315 -
316), é
[...] lesão, ou redução patrimonial, sofrida pelo ofendido, em seu conjunto de
valores protegidos no Direito, seja quanto à sua própria pessoa moral ou
fisicamente seja quanto a seus bens ou seus direitos ou ainda como a
perda, ou a diminuição, total ou parcial, de elementos, ou de expressão
componente de sua estrutura de bens psíquicos, físicos, morais ou materiais.
Não havendo divergência em relação ao conceito de dano, discutir-se-á sobre o dano
moral individual e sua caracterização. Nota-se que hoje é pacífico o seu entendimento,
mas é preciso lembrar que, poucos anos, não havia consciência, entre os
brasileiros, do seu significado. Essa mudança faz parte da evolução do Direito e será
necessário deixar de lado a visão individualista de mundo, para entender o dano moral
coletivo.
O dano moral individual configura-se por ser: “[...] prejuízo que afeta o ânimo psíquico,
moral e intelectual da vítima” (VENOSA, 2003, p. 33). Nesse caso, fica claro o seu
entendimento individual, mas considerando que a coletividade é formada por
indivíduos e que, assim, também tem moral e, portanto, sofre danos. Além disso, Xisto
Tiago de Medeiros Neto (2004, p. 65) relata que a configuração do dano é uma “[...]
espécie de satisfação compensatória [...] constituindo um meio de atenuar, ao máximo,
os efeitos do dano, à vista do contentamento e possibilidades várias de conteúdo
positivo que o dinheiro pode gerar”.
Após a compreensão do desenvolvimento dos direitos humanos e do que é dano e
dano moral individual, fica mais fácil entender o que é dano moral coletivo. Para tanto,
é importante reforçar o conceito de direito metaindividual ou transindividual, que
esse conceito é a base para a compreensão do dano moral coletivo. Conforme
Raimundo Simão Melo (2004, p. 29),
São chamados de transindividuais ou metaindividuais certos interesses ou
direitos pelo fato de que os mesmos transcendem a esfera privada e pessoal
do indivíduo porque não pertencem a uma pessoa. São direitos de todos
os cidadãos dispersamente considerados na coletividade; a lesão de um
constitui ofensa a toda a coletividade, assim como a satisfação de um
também implica a satisfação de todos, daí a sua indivisibilidade como marca
principal norteadora do procedimento de tutela dos mesmos.
Relembrando a idéia dos direitos metaindividuais, será introduzido o novo conceito de
dano moral apresentado por Carlos Alberto Bittar Filho e Xisto Tiago Medeiros. O
primeiro escreveu um artigo para a revista Direito do Consumidor (v. 12), do Instituto
Brasileiro de Política e Direito do Consumidor, publicada em outubro/dezembro de
1994; e o segundo publicou o livro Dano Moral Coletivo, em 2004, pela Editora LTr.
Não é de se estranhar que os primeiros escritos tenham sido voltados para as áreas
de Direito do Consumidor e Direitos do Trabalho, pois são essas as legislações de
vanguarda, no sentido de promover uma visão de mundo, sob o ponto de vista social e
não individual.
No artigo, Carlos Alberto Bittar Filho (1994, p. 48) cita os motivos pelos quais não se
aceitava o dano moral: “[...] (a) a dor não admite compensação pecuniária; b) não é
possível avaliar o dano moral (pretium doloris)”. Esclarece que o Direito vem passando
por várias transformações e a principal delas é a socialização. Acrescenta que esse
ato não poderia distanciar-se do dano moral, que também deve passar a ser visto sob
uma ótica social, coexistindo com o dano moral individual, quando fere a esfera de um
particular, de um indivíduo na sua pessoalidade; e o dano moral coletivo, quando for
ferida a moral transindividual, aquela que vai além do indivíduo e atinge a moral de
uma coletividade (BITTAR, 1994, p. 50). O autor alega que
O dano moral coletivo é a injusta lesão da esfera moral de uma dada
comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de um determinado círculo de
valores coletivos. Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo
menção ao fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade
(maior ou menor), idealmente considerado, foi agredido de maneira
absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico: quer isso dizer, em
última instância, que se feriu a própria cultura, em seu aspecto imaterial. Tal
como se na seara do dano moral individual, aqui também não que se
cogitar de prova da culpa, devendo-se responsabilizar o agente pelo simples
fato da violação (BITTAR, 1994, p.55)
.
Góes (2005, p. 473-474) ensina que o dano moral coletivo é:
[...] aquele que envolve uma condenação genérica da pessoa sica ou
jurídica que causou o dano, tendo em vista o abalo de toda uma coletividade,
perante o bem jurídico lesado.
Desse modo, o bem jurídico ofendido é de tamanha importância para a
sociedade que não poderia a instituição do Ministério Público ficar inerte pela
presença do fato gerador.
[...]
Com efeito, o dano moral coletivo, é uma forma de buscar um bálsamo para
a sociedade que foi afetada na sua integridade, em função da gravidade do
ato e da natureza do bem corrompido e também como forma de inibir a ação
recidiva.
Quando os fatos demonstrados numa ação civil pública espelharem a
violação de vários dispositivos legais e constitucionais que tutelam direitos de
subsistência humana de espectro físico, psicológico e social, é inquestionável
o cabimento do pedido de dano moral coletivo, porque ofende frontalmente
um vetor básico do Estado Democrático de Direito brasileiro exposto na
CF/88, em seu art. 1
o
, inciso III, que é o fundamento da dignidade da pessoa
humana.
É importante frisar que o dano moral coletivo, ao contrário do individual, não está
calcado simplesmente na compensação; ele está alicerçado na coletividade, nos
interesses metaindividuais e, conforme Góes (2005, p. 475), “[...] tem como foco a
restauração da crença na ordem jurídica e da segurança para a sociedade”.
José dos Santos Carvalho Filho (2007) admite a existência do dano moral coletivo e
justifica-o pelo fato de que o dano moral ofende padrões éticos dos indivíduos pois,
quando se trata de direitos metaindividuais, o indivíduo passa a ser composto por
grupos sociais, uma vez que esses também são dotados de padrões éticos. O autor
salienta que nem sempre será fácil aceitar que um grupo social sofreu o dano moral,
visto que, pela doutrina clássica, essa forma de dano é causada a indivíduos.
A legislação que respaldo a tudo o que foi discutida até agora é composta pela
CRFB, pela Lei de ACP, pelo Estatuto da Criança, dentre outras.
O primeiro sustentáculo é a Carta Magna do País, pois é a partir dela que todo o nosso
ordenamento deve ser visto e compreendido e, se ela guarita para o dano moral
coletivo, como entender que ele não existe, como querem alguns juristas? Para
fundamentar o que foi argumentado até o momento, seguem as principais normas que
permitem a aplicação do instituto ora estudado.
O art. , X, da Constituição Federal Brasileira, r ege que: “[...] são invioláveis a
intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas [física, jurídica ou
coletiva, uma vez que a Constituição não especifica de qual pessoa está tratando],
assegurando direito à indenização por dano material ou moral”. Assim, verifica-se que
o mesmo artigo constitucional que assegura o dano moral individual garante o coletivo,
pois, se o legislado estivesse defendendo apenas as pessoas naturais, teria
especificado.
Lei n° 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), no art. 1º e incisos, dispõe:
[...] rege-se pelas disposições desta lei, sem prejuízo da ão popular, as
ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: I - ao
meio ambiente; II - ao consumidor; III - à ordem urbanística e IV - a bens e
direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; V - a
qualquer outro interesse difuso ou coletivo; VI - por infração da ordem
econômica (grifo nosso).
O art. 6º, VI e VII, do Código de Defesa do Consumidor, assegura como direitos
básicos do consumidor:
VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais,
individuais, coletivos e difusos [...] VII - o acesso aos órgãos judiciários e
administrativos, com vistas à prevenção e reparação de danos patrimoniais e
morais, individuais, coletivos e difusos, assegurada a proteção jurídica,
administrativa e técnica ao necessitados.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), nos arts. 3º, e 17, c/c o
art. 201, V, VI e IX, estabeleceu:
Art. 3
o
A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata
esta Lei. assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as
oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico,
mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Art. 5
o
Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão,
punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus
direitos fundamentais.
Art. 17
o
– O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade
física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a
preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e
crenças, dos espaços e objetos pessoais.
Art. 201 – Compete ao Ministério Público.
V – promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos
interesses individuais, difusos ou coletivos relativos à infância e à
adolescência, inclusive os definidos no art. 200, parágrafo 3
o
, inciso II, da
Constituição Federal.
VI – Instaurar procedimentos administrativos e, para instruí-los: [...]
IX impetrar mandado de segurança, de injunção e hábeas corpus, em
qualquer juízo, instância ou tribunal, na defesa dos interesses sociais e
individuais indisponíveis afetos à criança e ao adolescente [...];
As normas citadas são aquelas que regulamentam o dano moral coletivo mais
explicitamente, mas isso não quer dizer que outras leis sobre o assunto não existam.
Ao tratar do trabalho análogo ao de escravo, o dano moral coletivo vem sendo aceito
algum tempo. Para isso, teve que passar por uma mudança do pensamento dos
juristas que trabalham com essa matéria, até que a velha mentalidade individualista,
enraizada na origem, desse lugar ao conceito dos “novos direitos”, incluindo o dano
moral coletivo.
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INDENIZAÇÃO POR DANO À COLETIVIDADE. Para
que o Poder Judiciário se justifique, diante da necessidade social de justiça
célere e eficaz, é imprescindível que os próprios juízes sejam capazes de
crescer, erguendo-se à altura dessas novas e prementes aspirações, que
saibam, portanto, tornar-se eles mesmos protetores dos novos direitos
difusos, coletivos e fragmentados, tão característicos e importantes da nossa
civilização de massa, além dos tradicionais direitos individuais (Mauro
Capelletti). Importa no dever de indenizar por dano causado à coletividade, o
empregador que submete trabalhadores à condição degradante de escravo. (
TRT da Região, Processo RO n. 861/2003, AC 276/2002, Turma,
Relator Juíza Maria Valquiria Norat Coelho, DJRO de 3-04-2003)
Foi necessária uma mudança de mentalidade, por parte dos juristas que tratam do
assunto, ou seja, foi necessário que a visão individualista desse lugar ao pensamento
coletivo e difuso, para que o dano moral coletivo fosse aceito no ordenamento pátrio,
pelo menos pelo TST, no que diz respeito ao trabalho análogo ao de escravo.
4.4 PROVIMENTOS JURISDICIONAIS POSSÍVEIS EM SEDE DE ACP: NATUREZA
JURÍDICA
Esse ponto ainda apresenta controvérsia na doutrina pátria. Alguns doutrinadores
entendem que a finalidade da ACP é responsabilizar qualquer pessoa física ou
jurídica, de direito público ou privado, por danos morais ou patrimoniais por eles
causados aos elementos do art. 1
o
da LACP. Sendo esse o entendimento, somente
seria possível um provimento jurisdicional de natureza condenatória nos moldes do art.
3
o
da Lei. Contudo, a ACP, após a CRFB de 1988, ganhou uma nova categoria, a de
“[...] garantia fundamental dos direitos ou interesses metaindividuais” e, portanto,
passou a ser o objeto de proteção dos direitos e interesses fundamentais (LEITE,
2001, p.102), o que a garante uma tutela que vai além da condenatória, como será
visto.
José dos Santos Carvalho filho (2007, p. 74) segue a primeira corrente. Para ele a
ACP tem natureza condenatória, além de ser uma ação de conhecimento, uma vez
“[...] que a decisão proferida declarará a certeza da existência da relação jurídica em
litígio”. Além disso, o autor afirma que, apesar de ser uma ação condenatória, ela pode
ter dois desfechos. o eles: indenização em dinheiro ou obrigação de fazer ou não
fazer. Segundo o próprio autor,
No primeiro caso, pode-se considerar que a ação tenha a natureza
condenatória pecuniária: o objetivo do autor é o de obter do réu o pagamento
de determinando quantum fixado na sentença. No segundo, a ação pode
classificar-se como condenatória mandamental, visto que a pretensão do
autor é a de obter determinação judicial para que o réu se conduza na forma
decidida na sentença, fazendo ou deixando de fazer alguma coisa
(CARVALHO FILHO, 2007, p. 74).
Em contrapartida, Cândido Rangel Dinamarco (2001) afirma que, mesmo diante de
uma aparente omissão da lei que leva a crer que a tutela da ACP é meramente
condenatória, é possível pedir tutela constitutiva por meio da referida ação por via do
CDC, uma vez que o art. 83 prevê a aplicação nas ACPs “Para a defesa dos direitos e
interesses protegidos por este Código são admissíveis todas as espécies de ações
capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela” (AQUAVIVA, 2005, p. 802), e o
art. 21 da LACP prevê que se aplicam “[...] à defesa dos direitos e interesses difusos,
coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da Lei que
instituiu o Código de Defesa do Consumidor” (AQUAVIVA, 2005, p. 765). Sendo assim,
Cândido R. Dinamarco (2001) conclui que a expressão “todas as espécies de ações”
se refere tanto aos procedimentos, quanto às tutelas cabíveis em sede de ACP.
Hugo Mazzilli (2004, p. 201-202) entende que, em sede ACP, são cabíveis pedidos:
a) principais: condenatórias (separatórias ou indenizatórias), declatatória ou
constitutivas; b) cautelares (preparatórias ou incidentes); c) cautelares
satisfativas, que não dependem de outra ação dita principal; d) de liquidação
de sentença; e) de execuçao; f) mandamentais; g) quaisquer outras, com
qualquer preceito cominatória, declaratório ou constitutivo.
Visto que as tutelas veis dos interesses metaindividuais não poderiam ficar limitadas
às sentenças condenatórias, o autor afirma que “[...] a possibilidade de formular
qualquer pedido em ação civil pública não chegará, evidentemente, a ponto de admitir
a apresentação de pedidos inviáveis, ou a cumulação de pedidos incompatíveis”
(MAZZILLI, 2004, p. 202), mas, em regra, qualquer pedido é admitido nas ACP.
Carlos Henrique B. Leite (2001, p. 102-103) vai mais além e afirma que, pelo fato de a
ACP ter sido “[...] guindada à categoria de garantia fundamental dos direitos ou
interesses metaindividuais”, ela passa a levar em conta a “proteção” desses
importantes interesses. Leite estabelece que “proteção” compreende a prevenção e a
reparação, conforme o art. 25, IV, a, da Lei Orgânica do Ministério Público. O mesmo
autor lembra que a natureza jurídica da ACP será a mesma, tanto na Justiça do
Trabalho, quanto na Justiça Comum Estadual e Federal, o que diferenciará entre elas
é a matéria (art. 114 da CRFB) (2001, p. 104).
4.6 A AÇÃO CIVIL PÚBLICA COMO EFETIVADORA DA CIDADANIA
É por apresentar características peculiares que a ACP é considerada um “instrumento
de cidadania”.
19
Como visto no item 4.4, é possível qualquer tipo de provimento
jurisdicional, juridicamente possível, por meio dessa ação. Isso possibilita que a
criatividade dos procuradores do trabalho e dos juízes trabalhistas enriqueçam cada
vez mais os provimentos
20
relacionados com o trabalho escravo, buscando sempre a
Justiça.
19
Termo utilizado por Oliveira, Francisco Antonio de. Da Ação Civil Pública: instrumento de cidadania. Revista
LTr. 61-07/881.
20
Em anexo consta uma sentença em que o juiz, além de majorar o valor da indenização pleiteada por danos morais
coletivos, possibilita que, no momento da execução, seja feito um acordo entre as partes para que o montante da
condenação, ao invés de ser depositado no FAT, seja revertido para obras sociais, como escolas, postos de saúde,
entre outras.
Francisco Antonio de Oliveira (1997, p.881), em seus estudos, afirma que [...] o
processo do trabalho tem vocação cosmopolita e é despido de preconceitos”,
possibilitando, assim, a “[...] vivificação do próprio processo do trabalho e a sua
sobrevivência”. Nas nobres palavras do doutrinador, verifica-se que, tempos, se
falava em adequar o processo, principalmente o processo do trabalho, à realidade. A
ACP é uma ação que permite a criatividade de quem a manuseia, a fim de que os
provimentos jurisdicionais vindos em seu bojo sejam adequados às suas
características metaindividuais.
O professor Daury César Fabriz (2006, p. 37) é categórico ao afirma que o Judiciário
precisa deixar de lado sua postura autoritária e buscar novos meios de efetivar as
necessidades sociais.
Um processo célere, que pugna pela simetria da relação entra as partes
litigantes e pela observância das garantias, depende em muito da estrutura
concepcional do próprio Judiciário. Este aspecto deve estar aliado a um
contexto afastado de concepções anacrônicas da realização de justiça,
apegada a postura autoritária, repressiva e até vingativas. O acesso à justiça
não pode se constituir numa forma de vingança, contrariando o núcleo
essencial do Estado democrático de direitos. Faz-se necessária uma
mudança de concepção profissional. A noção do que é direito e do que
entendemos por fazer justiça deve estar afinada com a complexidade de uma
sociedade plural.
Tal postura já vem sendo encontrada na ceara trabalhista, em sede de ACP, de forma
incipiente, mas que pode ser considerada a semente do futuro. Conforme matéria
publicada no site Repórte Brasil a Destilaria Gameleira, localizada em Confresa (MT),
acordou com o MPT, em sede de ACP, a doar dois terrenos e a construir duas
escolas, no valor total de R$ 800 mil (oitocentos mil reais), por manter 1.003
trabalhadores em condição análoga a de escravo em 2005 (THENÓRIO, 2007).
Esse acordo é proveniente da sentença proferida pelo MM Juiz do Trabalho João
Humberto Cesário, da Vara Federal do Trabalho de São Felix do Araguaia MT,
relativa ao processo 00232.2006.061.23.00-6, em que contendem o MPT e a
Destilaria Gameleira S.A. (requerida). Essa sentença difere das demais, pois seu
dispositivo contém os requisitos de praxe e, ao final, o juiz acolheu o pedido do MPT
de acordo em sede de execução:
Assim sendo, resolvo, nos autos do processo nº 00232.2006.061.23.00-6,
onde contendem o MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO (REQUERENTE)
e a DESTILARIA GAMELEIRA S/A (REQUERIDA):
1 - Acolher os pedidos mandamentais veiculados na inicial, para ordenar à
requerida que cumpra, sob pena da imposição de multa de R$50.000,00
(cinqüenta mil reais) para cada ordem descumprida e a conseqüente
responsabilização penal, por crime de desobediência (artigo 330 do Código
Penal), das pessoas físicas responsáveis pela infração, as obrigações de
fazer indicadas nos itens 'A' a 'Q' da fundamentação, o que deverá ser feito
nos prazos indicados no mesmo local;
2 - Acolher o pedido condenatório contido na ação, para condenar a requerida
ao pagamento do valor histórico de R$500.000,00 (quinhentos mil reais),
acrescido de correção monetária e juros de mora ex lege, a título de 'Dano
Moral Coletivo de Natureza Ambiental', no prazo de 48 horas do trânsito em
julgado da presente;
3 - Conceder tutela antecipada ao requerente, para ordenar desde à
requerida, que independentemente da interposição de recurso ordinário
dotado de eventual efeito suspensivo, cumpra, nos prazos estabelecidos, as
obrigações de fazer determinadas no corpo da sentença, sob pena da
imposição de multa de R$50.000,00 (cinqüenta mil reais) para cada ordem
descumprida e a conseqüente responsabilização penal, por crime de
desobediência (artigo 330 do Código Penal), das pessoas físicas
responsáveis pela infração.
A indenização estabelecida será revertida ao FAT (Fundo de Amparo do
Trabalhador), com a possibilidade das partes, em virtude de conciliação
entabulada durante eventual execução de sentença, destinarem o aludido
montante à concretização de benfeitorias sociais (tais como a construção
escolas, postos de saúde e áreas de lazer) em prol tanto dos trabalhadores
da requerida, bem como daqueles residentes no entorno da propriedade rural
desta última (situada na jurisdição territorial da Vara Federal do Trabalho de
São Félix do Araguaia).
Outrossim, as multas eventualmente aplicadas serão preferencialmente
destinadas à concretização de benfeitorias sociais (tais como a construção
escolas, postos de saúde e áreas de lazer) em prol tanto dos trabalhadores
da requerida, bem como daqueles residentes no entorno da propriedade rural
desta última (situada na jurisdição territorial da Vara Federal do Trabalho de
São Félix do Araguaia). Tudo nos termos da fundamentação, que passa a
fazer parte do presente dispositivo, para todos os fins que se fizerem
necessários.
Sendo líquida a parte condenatória da sentença, sujeita tão somente à
incidência de correção monetária a juros de mora, é despicienda a indicação
da modalidade de liquidação.Custa pela requerida, no importe de
R$20.000,00 (vinte mil reais), calculadas sobre R$1.000.000,00 (um milhão
de reais), valor arbitrado à condenação, levadas em conta as imposições
condenatórias típicas e mandamentais encerradas na sentença.
Observa-se que o MM Juiz acolheu ao requerimento do MPT, que os pedidos
condenatórios fossem destinados, por meio de acordo, a atender obras sociais. É
importante ressaltar que tal medida vai ao encontro do art. 13, da Lei 7.347/85, que
prevê: “[...] havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado
reverterá a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de
que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da
comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstrução dos bens lesados”. O
referido fundo até hoje não existe, contudo a Justiça do Trabalho, desde 1990, conta
com o FAT que é ligado ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
Criado em 1990, o FAT é ligado ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)
e funciona como uma poupança que tem a
finalidade de custear o seguro-
desemprego, conceder abonos salariais e financiar programas de
desenvolvimento econômico. Os recursos do fundo provêm, quase em sua
totalidade, pelas contribuições do PIS/Pasep, além dos juros pagos pelas
instituições que emprestam pelos empréstimos ao FAT (THENÓRIO, 2007, p.
2).
Assim sendo, o FAT vinha substituindo o fundo referido no art. 13 da Lei de ACP,
contudo, por ser o seu objeto diferente daquele defendido pelo referido artigo, que
pretende a reconstrução dos bens lesados, no caso, a dignidade e cidadania daqueles
seres humanos encontrados em situação de escravidão, apresenta-se como uma boa
opção reverter os valores das indenizações de danos morais coletivos para
benfeitorias que tragam mais dignidade para a população que vive nas mediações. Em
Cuiabá, isso já é uma realidade.
Uma das instituições beneficiadas com recursos judiciais foi o Instituto
Cultural Flauta Mágica, que promove a cidadania por meio da música para
300 crianças e adolescentes de Cuiabá (MT). Na última quarta-feira
(15/08/2007), a ONG reinaugurou sua sede, reformada com R$ 120 mil
provenientes de um acordo entre a Procuradoria Regional do Trabalho e um
supermercado da região (THENÓRIO, 2007, p. 3).
Além disso, a reportagem do Repórte Brasil salienta que o MPT vem tendendo a
fomentar cada fez mais ações como essa, nas ações que é parte. A reportagem
aponta:
O acordo, que aconteceu em julho deste ano, reflete uma tendência que tem
crescido nas ações movidas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). Em
vez de destinar os recursos advindos de condenações por danos morais
coletivos ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), como tradicionalmente
sempre foi feito, os procuradores do MPT têm preferido reverter o dinheiro
referente à condenação para benfeitorias diretas às comunidades locais.
No Mato Grosso, um dos estados que mais sofre com o trabalho escravo,
esse tipo de destinação de verbas vem acontecendo desde 2003
(THENÓRIO, 2007, p.1).
Esse tipo de acordo em sede de ACP faz com que a justiça seja alcançada, pois
conjuga celeridade e um provimento jurisdicional que traz em benefícios imediatos à
sociedade que sofreu com o dano moral coletivo. Seguindo a linha proposta pelo
professor Daury César Fabriz (2006) de uma forma razoável de resolução de conflito
que, por ele, em regra, seria extrajudicial, a ACP, judicialmente, conseguie atingir os
objetivos de defender os direitos humanos e com isso resguardar a cidadania e a
dignidade da pessoa humana.
[...] seja qual for a denominação que pode ser estabelecida à época presente,
o fato é que vivemos o início de uma nova etapa e nesse novo começo é
fundamental se optar por uma cultura jurídica afinada a uma perspectiva
humanista. Nesse sentido faz-se urgente ‘fomentar uma cultura jurídica que
consiga compreender uma realidade cada vez mais complexa, contínua e
inesgotável, na construção de um sistema jurídico orientado por ações
racionais’, sendo o respeito aos direitos humanos imprescindíveis na
concretização de um sistema jurídico adequado às reais necessidades dos
cidadãos (FABRIZ, 2006, p. 39)
Assim, a ACP possibilita que, junto com a criatividade dos juízes e procuradores do
trabalho, sejam recriadas medidas de defesa dos direitos humanos que beneficiem,
acima de tudo, a dignidade da pessoa humana e a cidadania, fundamentos da
República Federativa do Brasil.
4.7 INTERESSES OU DIREITOS DOS TRABALHADORES EM CONDIÇÃO DE
ESCRAVIDÃO PROTEGIDOS PELA AÇÃO CIVIL PÚBLICA
Após o estudo, em linhas gerais, dos direitos e interesses difusos, coletivos e
individuais homogêneos, é chegada a hora de analisar cada item voltado para o
trabalho análogo ao de escravo.
O interesse e o direito difuso configuram-se nas lides de trabalhadores análogos a
escravos pelo fato de que, quando se escraviza um indivíduo, se está colocando toda
a sociedade exposta a essa prática, proibida e que já deveria ter sido abolida. A
simples hipótese de se escravizar alguém enseja a natureza difusa desse direito,
uma vez que qualquer pessoa poderia estar sendo escravizada. Dado que os titulares
desse direito são indeterminados, todos somos titulares, ninguém pode, legalmente,
ser escravizado. A natureza desse direito é indivisível, que o gozo por um não
impede que outros o utilizem. No mesmo sentido, Ronaldo Lima dos Santos (2003, p.
62) se posiciona:
Escravizar um indivíduo equivale à escravização de toda a nação. Dessa
simples e profunda assertiva extrai-se a natureza difusa das práticas
escravizatórias. A proibição da escravidão é um direito de toda a sociedade e,
quiçá, da humanidade, como expressam as declarações internacionais. Os
titulares desse direito são indeterminados e, espraiam-se por toda a
sociedade a mera circunstância fática de se localizar no território brasileiro
deixa o indivíduo protegido contra a escravidão proteção erga omnes. Sua
natureza é indivisível, o usufruto por indivíduo não obsta o gozo por outros, e
a violação em relação a uma pessoa, equivale à violação total do direito. É
insuscetível, por isso, de disposição coletiva ou individual, de sorte que
ninguém, ainda que voltivamente, é dado submeter-se a práticas
escravizatórias, pois sua esfera de repercussão atinge a toda a sociedade,
isto é, transcende a mera esfera individual.
A configuração dos direitos e interesses difusos não obsta a existência dos direitos
coletivos e individuais homogêneos. Ao encontrar trabalhadores
escravizados,
visualiza-se, imediatamente, uma classe de trabalhadores, pois um vínculo jurídico
que os une ao empregador, dono da fazenda, mesmo que esse não tenha sido
reconhecido, diretamente, pelo tomador dos serviços. Dessa forma, esses
empregados têm suprimidos os seus direitos, a um meio ambiente
de trabalho digno, à
salubridade, não periculosidade, higiene, jornadas não exaustivas, dentre várias outras
coisas que surgem junto à falta da dignidade desses trabalhadores, gerada por essa
forma de trabalho desumano. Para Ronaldo Lima dos Santos (2003, p. 62),
Torna-se evidente que, se a própria pessoa subjugada a essas práticas não
tem reconhecidas sua liberdade e dignidade, todas essas formas de trabalho
forçado vêm acompanhadas da submissão dos trabalhadores às mais vis e
desumanas condições de trabalho. Por elas também soa violados direitos
coletivos dos trabalhadores como a salubridade do meio ambiente e a
proteção à saúde [...].
Os direitos e interesses individuais homogêneos também são reconhecidos nos casos
de trabalho análogo ao de escravo, haja vista que todos aqueles trabalhadores têm
direitos iguais a 13
o
salário, férias, descanso semanal remunerado, salário e a todos
os demais direitos garantidos, constitucionalmente, aos trabalhadores urbanos e
rurais.
[...] além de diversos interesses individuais homogêneos, posto que,
acompanham esses métodos a não satisfação de uma série de direitos
trabalhistas dos trabalhadores, que por decorrerem de uma origem comum,
revestem-se de homogeneidade, de modo a propiciar a sua tutela processual
conjunta (SANTOS, 2003, p. 63).
Apesar de citados vários direitos que podem ser requeridos por meio da ACP, ainda
não foi esgotado o assunto, pois, como demonstrado, existe o dano moral coletivo,
configurado, no caso em estudo, pelo desrespeito aos direitos e interesses difusos,
coletivos e individuais homogêneos dos trabalhadores em condição análoga a de
escravo. Ronaldo Lima dos
Santos (2003, p. 63) demonstra a existência dos direitos
metaindividuais na configuração do dano moral coletivo, nos casos de trabalhadores
submetidos a trabalho escravo, por meio da seguinte análise:
[...] dão ensejo à reparação por danos morais em três esferas distintas: dano
moral difuso imagem da sociedade); dano moral coletivo (do grupo
globalmente considerado); e dano moral individual homogêneo
(correspondente aos danos sofridos de forma pessoal por cada trabalhador
encontrado na situação em comento); cujas reparações possuem finalidades
distintas e independentes, sendo, por isso específicas e, assim, passíveis de
serem exigidas concomitantemente.
Fica claro que o pedido de dano moral coletivo, na ACP que verse sobre trabalho
escravo, é possível e facilmente configurado. Por isso, quando se esem frente a um
caso de trabalho escravo, deve-se ter em mente que vários são os pedidos, uma vez
que a natureza jurídica da ação foi ampliada com o CDC e devido ao fato de se estar
tratando de direitos e interesses metaindividuais.
A fim de enriquecer o trabalho, foram selecionadas algumas decisões judiciais que
ilustram o debate.
EMENTA
DANO MORAL COLETIVO ? SUBMISSÃO DE EMPREGADOS A
CONDIÇÕES DE TRABALHO DEGRADANTE, ANÁLOGAS ÀS DE
ESCRAVO ? COMPROVAÇÃO ? ATO ATENTATÓRIO A TODA A
COLETIVIDADE ? SOLIDARISMO CONSTITUCIONAL QUE IMPÕE A
OBSERVÂNCIA DE PRECEITOS COMO O DA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA ? O QUANTUM ARBITRADO DEVE OBSERVAR OS
PARÂMETROS DA TEORIA DO DESESTÍMULO ? A submissão de
trabalhadores a condições de trabalho degradante, análogas às de escravo,
porquanto detectada a infringência de um sem número de dispositivos legais
(a demonstração inequívoca de inexistência de qualquer observância ao teor
do art. 168 da CLT e NR 7.4 da Portaria 3.214/78 do MTbE, que regulamenta
o Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional; ausência de controle
eletrônico de jornada, infringindo o disposto no art. 74, § 2º, da CLT; ausência
de local adequado para a realização das refeições, ferindo o disposto no art.
157, I, da CLT e NR 24, item 24.3.15.1, alínea "a", do MTbE; não
fornecimento de água potável, contrariando disposições do art. 157, I, da CLT
e NR 24, item 24.7.1, do MTbE; ausência de armazenamento adequado para
produtos químicos, em desrespeito ao art. 13 da Lei 5.889/73; realização de
trabalhos contrários às disposições de proteção necessária, art. 444 da CLT;
manter em serviço trabalhadores com idade inferior a 16 anos, inobservando
o disposto no art. 403, "caput", da CLT) devendo ser usados todos os
mecanismos previstos no instrumental jurídico relativos para a prevenção e
reparação dos danos eventualmente havidos, inclusive a punição exemplar,
levando-se em conta a teoria do desestímulo e a repercussão geral do dano
moral coletivo, de forma a servir de parâmetro para a garantia da observância
das normas protetivas à dignidade da pessoa humana, dos direitos e
garantias fundamentais do cidadão e da relação de trabalho (origem : Vara do
Trabalho de São Félix do Araguai, relator : juiz Paulo Brescovici, revisor : juiz
Osmair Couto, recorrente : Antônio Claret Ferreira e outro(s). advogados
: Jamilly Castro da Silva e outro(s). recorrente : Ministerio Publico do
Trabalho. recorrido : os mesmos.
http://www2.trt23.gov.br/jurisprudenciaonline/pages/buscaresultado.jsf in 29
de julho de 2007).
EMENTA:
Dano moral. trabalho em condições análogas à de escravo. além de justa
a reparação do dano moral requerida , bem como da procedência das verbas
rescisórias trabalhistas reivindicadas em conseqüência do aludido dano ,
também justificador da extinção das relações empregatícias, torna-se
impostergável um indispensável e inadiável "basta!" à intolerável e nefasta
ofensa social e retorno urgente à decência das relações humanas de
trabalho. torna-se, portanto, urgente a extirpação desse cancro do trabalho
forçado análogo à de escravo que infeccionou as relações normais de
trabalho, sob condições repulsivas da prestação de serviços tão ofensivas à
reputação do cidadão brasileiro com negativa imagem do país, perante o
mundo civilizado. (TRT - 00073-2002-811-10-00-6 - ro - acórdão 2ª
turma/2003 - 1 - ro 00073-2002-811-10-00-6 relator : juiz José Ribamar O.
Lima Junior, revisora : juíza Flávia Simões Falcão recorrente : Ministério
Público do Trabalho Procuradoria Regional do Trabalho da 10ª região
procurador: Fábio Leal Cardoso recorrido : Jesus José Ribeiro (fazenda Minas
Gerais II) advogados: Túlio Jorge R. de Magalhães Chegury e outra origem :
01ª vara do trabalho de
Araguaína/tohttp://www.oitbrasil.org.br/trabalho_forcado/brasil/documentos/ac
orda _trt10.pdf, 29 de julho de 2007).
As emendas juntadas fazem parte do que vem sendo decidido no âmbito da Justiça do
Trabalho, no que se refere às Ações Civis Públicas em defesa dos direitos dos
trabalhadores em condição de escravidão. Muito ainda há que ser feito para que
pessoas não sejam submetidas à condição de escravidão, contudo, vislumbra-se a
ACP como uma ação que, na medida do possível, possibilita acesso à Justiça.
5 CONCLUSÃO
Considerando que as normas jurídicas devem refletir o anseio social, não se pode
“fechar os olhos” para a situação arcaica existente no País, qual seja, a existência de
“trabalho escravo” ou de trabalho equiparado a este. Seres humanos não podem
continuar sendo tratados como animais e tendo que aceitar essa situação em função
da realidade social do País. O problema não é apenas daqueles que o vivenciam
diretamente, mas, sim, de toda a sociedade, que também é agredida, quando um ser
humano é submetido ao trabalho escravo.
Didaticamente, os direitos humanos puderam ser visualizados em três dimensões: os
direitos individuais, os direitos sociais e os direitos metaindividuais. Na primeira
dimensão, encontram-se os direitos individuais, que visam a assegurar a não
intervenção estatal na esfera particular do indivíduo; a segunda dimensão fixa os
direitos sociais, responsáveis pelo mínimo garantido aos trabalhadores, introduzindo a
idéia de interesses coletivos; na terceira dimensão, tem-se o surgimento da idéia de
interesses difusos, responsáveis pela tomada de consciência de que interesses
relativos a todos e, portanto, são indivisíveis.
Na seqüência, ao se estudar o histórico do trabalho escravo no Brasil, percebe-se que,
até final do Séc. XIX, ser proprietário de trabalhador escravo era permitido e constituía-
se um sinal de status social. Mas, hoje, tratar seres humanos como escravos é ferir o
ordenamento pátrio e, principalmente, a Carta Magna, que prevê, como fundamento da
República Federativa do Brasil, dentre outros, a dignidade da pessoa humana e o valor
social do trabalho e a cidadania.
No entanto, quando se trata de trabalho análogo ao de escravo, está-se falando
também de desrespeito a normas internacionais, como as Convenções da OIT, que
tratam da proibição do trabalho escravo e forçado. Ao subsumir fato e norma, observa-
se que a Constituição brasileira, nos Títulos I e II, refutou, de todas as formas, o
trabalho análogo ao de escravo, pois garante a todos a dignidade da pessoa humana e
prima pelo meio ambiente saudável de trabalho, por construir uma sociedade livre,
justa e solidária, e defende a inviolabilidade do direito à vida, dentre vários outros
direitos elencados ao longo do trabalho. Além disso, conclui-se que, aperfeiçoando
normas internacionais, o ordenamento jurídico brasileiro, por meio do CPB, foi
inovador, ao conceituar o trabalho análogo ao de escravo independentemente do
cerceamento de liberdade.
A Ação Civil Pública é uma garantia fundamental que, após o CDC, passou a
resguardar, além do direito à indenização, todos os pedidos relativos a
direitos/interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos, o que, para os casos
de trabalho análogo ao de escravo, é favorável, pois resguarda os interesses desses
trabalhadores em uma única ação, sempre sob a ótica dos interesses metaindividuais.
Além disso, por meio da ACP e da criatividade dos magistrados e procuradores do
trabalho, é possível garantir dignidade e cidadania aos trabalhadores que foram
submetidos a essa forma de trabalho e às comunidades próximas, uma vez que as
sentenças condenatórias punem com danos morais, em valores condizentes com os
danos gerados e, em seus dispositivos, possibilita que esses valores sejam, por meio
de acordo no momento da execução, revertidos para obras sociais, como a construção
de escolas, hospitais, no quantum arbitrado na condenação, para favorecer as
comunidades diretamente expostas ao trabalho escravo.
Essa condenação inibe novos aliciamentos, pois esse crime deixa de ser tão lucrativo;
a comunidade local ganha obras sociais que, conseqüentemente, revertem-se em
maior qualidade de vida, dignidade e cidadania. Sendo assim, possível afirmar que a
ACP, quando bem instrumentalizada consegue atender ao seu papel fundamental de
assegurar os direitos fundamentais dos trabalhadores submetidos à condição análoga
à de escravo.
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