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FACULDADE DE DIREITO DE VITÓRIA
MESTRADO EM DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
BRUNELLA PIRAS COSER
A FORMAÇÃO DA COISA JULGADA MATERIAL NAS
SENTENÇAS DE CARÊNCIA DE AÇÃO COMO FATOR
GARANTIDOR DA SEGURANÇA JURÍDICA
VITÓRIA
2007
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BRUNELLA PIRAS COSER
A FORMAÇÃO DA COISA JULGADA MATERIAL NAS
SENTENÇAS DE CARÊNCIA DE AÇÃO COMO FATOR
GARANTIDOR DA SEGURANÇA JURÍDICA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Direitos e Garantias
Fundamentais da Faculdade de Direito de
Vitória, como requisito parcial para obtenção do
grau de Mestre em Direito.
Orientador: Prof. Dr. José Roberto dos Santos
Bedaque.
VITÓRIA
2007
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BRUNELLA PIRAS COSER
A FORMAÇÃO DA COISA JULGADA MATERIAL NAS
SENTENÇAS DE CARÊNCIA DE AÇÃO COMO FATOR
GARANTIDOR DA SEGURANÇA JURÍDICA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direitos e
Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória, como
requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito.
Aprovada em 30 de Novembro de 2007.
COMISSÃO EXAMINADORA
Prof. Dr. José Roberto dos Santos Bedaque
Faculdade de Direito de Vitória
Orientador
Prof Dr José Rogério Cruz e Tucci
Examinador
Prof Dr Carlos Henrique Bezerra Leite
Examinador
Aos meus pais, por terem me ensinado os
valores da ética e do trabalho, e que o
talento prospera se estiver
acompanhado da dedicação.
Ao Juliano, por seu amor, carinho e apoio,
que me permitem ser uma pessoa repleta
de sonhos, e, por vezes, alcançá-los...
AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, ao meu orientador, Dr. José Roberto dos Santos
Bedaque, por suas preciosas lições, as quais engrandeceram, bem como alargaram
minha visão acerca das condições da ação e da decisão que declara sua ausência.
Contar com sua orientação no tema foi uma experiência única e extremamente
enriquecedora para minha vida acadêmica.
Agradeço, do mesmo modo, à minha família, por ter suportado o período de
pesquisa e elaboração da presente dissertação, no qual, confesso, dei mais atenção
aos livros e escritos do que às pessoas queridas.
Agradeço, ainda, àqueles que tiveram participação direta na elaboração do trabalho,
especialmente João, em seu auxílio nas revisões, Ivana, com seu apoio nos
momentos críticos, e Federica, com sua tradução rápida. Esse agradecimento faz
menção de abranger todos aqueles que porventura eu tenha esquecido de citar
nominalmente – por favor, sintam-se pessoalmente mencionados.
Por fim, agradeço aos colegas de mestrado, que nos debates ocorridos durante o
cumprimento dos créditos, sempre se mostraram solícitos em discutir o tema que
desenvolvi, e representaram verdadeiro auxílio na estruturação do problema
abordado.
RESUMO
A presente pesquisa tem por escopo investigar a possibilidade de incidência de
coisa julgada material nas sentenças de carência de ação como fator gerador de
segurança jurídica. Para tanto, recorre precipuamente à análise da ação como
garantia constitucional. Nesse âmbito, observa a previsão constitucional do conteúdo
do direito de ação, para posteriormente, compará-lo ao direito de ação condicionado.
Acerca desse último, investiga de que modo se deu sua formação, com a análise
das teorias evolutivas do direito de ação no tempo. Em seguida, explicita a adoção
da Teoria Eclética da Ação, que implicou na idéia de direito de ação em dois planos
distintos: constitucional e processual. No objetivo de delimitar a sentença de
carência, as condições da ação têm seu conceito exposto e sua relação com o
mérito da demanda investigada. A carência de ação é, então, confrontada com o
conceito de garantia constitucional de ação extraído, tendo seu significado dentro de
nosso ordenamento jurídico definido. A possibilidade de incidência de coisa julgada
material nas sentenças de carência de ação é, então, investigada, no que é seguida
por uma análise pormenorizada sobre a garantia constitucional da coisa julgada. A
narrativa segue, então, discorrendo sobre o valor segurança jurídica e sua relação
com a coisa julgada, a fim de constatar se a imutabilidade da sentença de carência
de ação é um fator garantidor de segurança jurídica. Por fim, são analisados
julgados do Superior Tribunal de Justiça para verificar se a conclusão a que se
chegou com a pesquisa tem adoção jurisprudencial.
PALAVRAS-CHAVE: Condições da ação. Mérito. Carência de ação. Coisa julgada.
Segurança juridíca.
ABSTRACT
The presente research has the objective of investigating the possibility of “carência”
sentences regarding the effects of res judicata are factors that generate juridic
security. For so, it analises actio as a constitutional warranty. Is observes the
constitucional prevision of the contents of the right of action to, afterwards, compare
it to the conditioned right of action. About this last one, it investigates in wich way it
has formated, with the analises of the evolutive theories of the right of action in time.
It affirmes the adoption of the Eclectic Theory, that implicated in the ideia of actio in
two different levels: constitucional and procedimental. Looking for delimitating the
“carência” sentences, the “condições da ação” have their concept exposed and their
relation with the merit investigated. The “carência” of actio is, then, confrontated with
the concept of constitucional warranty of actio taken before, having its meaning in our
juridic sistem clearely defined. The possibility of res judicata in “carência” sentences
is investigated, and followed by na anallizes about res judicata. It then talks about
juridic safety and its relation with res judicata, to findo ut if the imutability of the
“carência” sentence is a factor that garantees juridic safety. To conclude, it analses
decisions of the Superior Tribunal de Justiça to verify if the conclusion taken with the
research is adopted by the courts.
KEY-WORDS: Actio conditions. Merit. Res judicata. Juridic security.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
atual. – atualizado
art. – artigo
CC/16 – Código Civil de 1916
CC/02 – Código Civil de 2002
CF/88 – Constituição Federal de 1988
rev. – revisto
REsp – Recurso Especial
STJ – Superior Tribunal de Justiça
v. – volume
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO........................................................................................................10
2 O DIREITO DE AÇÃO.............................................................................................14
2.1 AÇÃO: DIREITO OU GARANTIA CONSTITUCIONAL?......................................14
2.2 A NATUREZA JURÍDICA DA AÇÃO E SUAS TEORIAS.....................................21
2.2.1 A Teoria Imanentista.............................................................................22
2.2.2 A Teoria Concreta.................................................................................23
2.2.3 A Teoria do Direito Potestativo...........................................................24
2.2.4 A Teoria Abstrata..................................................................................25
2.2.5 A Teoria Eclética...................................................................................27
2.3 O DIREITO DE AÇÃO COMO DIREITO CONDICIONADO.................................31
2.3.1 Possibilidade jurídica da demanda.....................................................37
2.3.2 Legitimidade ad causam......................................................................40
2.3.3 Interesse processual............................................................................42
3 A AUSÊNCIA DAS CONDIÇÕES DA AÇÃO NAS SENTENÇAS
JUDICIAIS..................................................................................................................46
3.1 AS CONDIÇÕES DA AÇÃO E O MÉRITO...........................................................46
3.2 A SENTENÇA DE CARÊNCIA DE AÇÃO: SUA POSIÇÃO EM FACE DAS
REGRAS JURÍDICAS CONSTITUCIONAIS..............................................................59
3.3 INCIDÊNCIA DE COISA JULGADA MATERIAL NAS SENTENÇAS DE
CARÊNCIA DE AÇÃO................................................................................................63
4 A COISA JULGADA...............................................................................................67
4.1. A COISA JULGADA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL............................67
4.2 CONCEITO DE COISA JULGADA.......................................................................71
4.3 COISA JULGADA FORMAL E MATERIAL..........................................................78
4.4 PRONUNCIAMENTO JUDICIAIS QUE PRODUZEM COISA JULGADA............81
4.5 A COISA JULGADA MATERIAL EM SENTIDO POSITIVO E NEGATIVO..........84
4.6 LIMITES OBJETIVOS DA COISA JULGADA.......................................................85
4.7 LIMITES SUBJETIVOS DA COISA JULGADA....................................................87
5 A IMUTABILIDADE DAS SENTENÇAS DE CARÊNCIA DE AÇÃO E A
SEGURANÇA JURÍDICA..........................................................................................92
5.1 A SEGURANÇA JURÍDICA..................................................................................92
5.2 SEGURANÇA JURÍDICA, COISA JULGADA E REALIDADE SOCIAL...............98
5.3 A IMUTABILIDADE DAS SENTENÇAS DE CARÊNCIA DE AÇÃO COMO
FATOR GARANTIDOR DA SEGURANÇA JURÍDICA.............................................105
5.4 POSICIONAMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ACERCA DO
TEMA........................................................................................................................107
6 CONCLUSÃO.......................................................................................................110
7 REFERÊNCIAS.....................................................................................................113
ANEXO A – REsp nº 45.935/SP..............................................................................122
ANEXO B – REsp nº 103.584/SP............................................................................129
ANEXO C – REsp nº 191934/SP.............................................................................148
ANEXO D – REsp nº 216.478/SP............................................................................150
11
1 INTRODUÇÃO
Na atualidade, um conflito de paradigmas em relação à compreensão tradicional
do fenômeno jurídico, vindo à tona debates que, antes de se restringirem à mera
casuística legal, viram-se cada vez mais para questões fundamentadas no próprio
Direito e da legitimidade de suas decisões, sejam legislativas, judiciárias ou
administrativas.
Portanto, cada vez mais estudiosos e autores do Direito, investigam sobre conceitos
e institutos que, apesar de estarem no cotidiano do universo jurídico, passaram a
representar um segundo plano devido à ascendente visão formalista do Direito.
Entretanto, entendimento como legitimidade, efetividade e princípios jurídicos
surgem recuperados e revigorados pela nova hermenêutica, que procura buscar-
lhes o sentido último e redefinir-lhes a função, tornando assim, a segurança jurídica
o centro de debates doutrinários.
Contudo, suas crescentes e imutáveis referências, feitas pelos doutrinadores do
direito contemporâneo, resistem com a escassa produção. A segurança jurídica
avoca especial relevância em virtude do típico momento que o mundo atravessa.
Ainda que possa parecer exagero afirmar que vivemos momentos de insegurança,
não se pode esconder a necessidade de uma tomada brusca de atitudes em virtude
das grandes acelerações que se presencia através das mídias, fruto da globalização
econômica, política e cultural, onde a desconstrução do clássico Estado Nacional e a
disseminação de novas tecnologias de informação influenciam na vida de cada
indivíduo, que vêem suas relações constantemente modificadas, aumentando os
riscos de frustração de suas expectativas.
Importante salientar que a segurança jurídica é, sobretudo, uma necessidade
antropológica do homem
1
. Para Luis Recaséns Siches, sem segurança jurídica não
direito, nem bom nem mau, nem de nenhuma classe. Todavia, afirma que a
1
PÉREZ LUÑO, Gregorio. La seguridad jurídica. 2. ed. Barcelona: Ariel Derecho, 1996.
12
segurança jurídica, em termos absolutos, é um ideal inatingível
2
e que não no
mundo jurídico, instituto tão profundamente ligado à temática da segurança quanto o
da coisa julgada.
O Poder Judiciário é a última via na qual os indivíduos buscam auxílio para a
solução de seus dissídios. A prestação jurisdicional, diferentemente da atuação do
legislador e do administrador, dota-se da qualidade fundamental da definitividade, de
forma a por fim às discussões relativas à titularidade ou existência de direitos e
obrigações. É exatamente esta definitividade que, juntamente com a substutividade,
peculiariza a função jurisdicional.
A definitividade da decisão jurisdicional é garantida pelo instituto da coisa julgada,
que foi consagrado no art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição da República de 1988,
in verbis, “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa
julgada”.
Nesse sentido, a coisa julgada guarda relação direta com a efetivação da segurança
jurídica, na medida em que estabiliza de forma definitiva a pacificação judicial de um
conflito jurídico. Em linhas gerais, é papel direto do instituto da coisa julgada garantir
a certeza e a imutabilidade do direito declarado pelas decisões judiciais.
A coisa julgada é a imutabilidade da própria sentença e de seus efeitos. Desse
modo, tal imutabilidade pode manifestar-se de dois modos: endoprocessualmente,
ou extraprocessualmente.
No primeiro caso, temos a impossibilidade de alterar a sentença por novo
julgamento, por não comportar mais recursos. Assim, não cabe ao Estado-Juiz emitir
mais pronunciamentos naquele processo, restando finda sua atividade julgadora.
Esse fenômeno denomina-se coisa julgada formal, e incide sobre todas as
sentenças não mais impugnáveis via recurso.
2
SICHES, Luis Recaséns. Nueva filosofia de la interpretación del Derecho. 2. ed. México: Porua,
1973. p. 294.
13
Os julgamentos de mérito, por sua vez, uma vez que solucionaram o litígio, vão
adquirir imutabilidade não dentro do processo em que nasceram, mas também
dos efeitos substanciais que produzem.
3
Serão, portanto, impassíveis de alteração
as situações jurídicas criadas ou ditadas pela sentença, não cabendo solução
diferente para o conflito pacificado, seja pelo órgão jurisdicional que proferiu a
decisão, seja por qualquer outro órgão.
Referida estabilidade é a chamada coisa julgada material, que somente se manifesta
nas sentenças que solucionam o rito, e, pois, pacificam o conflito. Nesse sentido,
essa face da garantia da coisa julgada é a responsável por assegurar a segurança
jurídica.
Entretanto, a fim de que se a incidência da coisa julgada, com a atuação efetiva
da segurança jurídica no plano da concretude, necessário que se apresente uma
sentença de mérito, fruto de um processo com todas as garantias a ele ínsito (devido
processo legal constitucional).
Todavia, resta indispensável destacar que o processo não tem um fim em si mesmo,
mas representa instrumento de pacificação de conflitos e aplicação do direito
material. O processo, especialmente em sua acepção de procedimento, deve
representar método de trabalho que torne possível a obtenção de resultado idêntico,
formal e substancialmente, àquele resultante da atuação espontânea das regras
substanciais.
Assim, caso seja detectada pelo jurista situação em que, à parte das regras de
direito processual puro, ou mesmo contrariamente às mesmas, se possa dar solução
a conflito decorrente da não-aplicação do direito material, é dever do mesmo que
garanta a operabilidade do direito subtancial, e não de seu instrumento (observados
e ponderados eventuais prejuízos).
3
V. LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e Autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa
julgada. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007; e BARBOSA MOREIRA, Ainda e sempre a coisa
julgada. Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 416, 1984.
14
Continuando o raciocínio, se são ultrapassadas as fronteiras exclusivamente
procedimentais, a fim de aplicar o direito substancial e pacificar a lide, certamente tal
provimento jurisdicional deve ser dotado de imutabilidade (leia-se: coisa julgada
material), como meio legítimo de garantir o direito fundamental da segurança
jurídica.
Isso é exatamente o que se busca no presente trabalho, ao se proceder à análise
das sentenças de carência de ação e da possível incidência da coisa julgada
material sobre as mesmas, como medida garantidora da segurança jurídica.
A fim de esclarecer o objetivo principal da dissertação em voga, passamos a
discorrer acerca do que consiste o direito de ação, bem como da previsão
constitucional de seu conteúdo, que torna dispensável a concepção de um direito de
ação processual. Explicitaremos, também, a evolução teórica do direito de ação, que
culminou na adoção de uma concepção dicotômica do mesmo, limitada em seu
exercício pelos requisitos denominados condições da ação.
Em seguida, discorreremos acerca da relação entre as condições da ação e o mérito
da demanda, bem como da constatação da ausência de mencionados requisitos
numa demanda, culminado com a formação de uma sentença de carência de ação.
Por fim, analisaremos a possibilidade de imutabilidade da sentença de carência de
ação.
Com o intuito de atingir um melhor desenvolvimento do tema, exporemos o conceito
de coisa julgada, assim como sua condição de garantia constitucional, seus limites e
contornos gerais.
Por fim, delinearemos a segurança jurídica, expondo sua relação estreita com a
coisa julgada, com o objetivo de verificar se a incidência de coisa julgada material
sobre a sentença de carência de ação implica num fator gerador de segurança
jurídica. Faremos, ainda, uma análise da posição do Superior Tribunal de Justiça.
15
2 O DIREITO DE AÇÃO
2.1 AÇÃO: DIREITO OU GARANTIA CONSTITUCIONAL?
Com o surgimento do Estado de Direito, restou proibida a autotutela, com a solução
das crises de direito substancial cabendo exclusivamente à atividade jurisdicional.
Assim, chamou para si o Estado o poder-dever de, em substituição à vontade dos
titulares dos interesses em conflito, fazer atuar a vontade concreta da lei que rege o
caso, com a finalidade de realizar a paz social.
A jurisdição, todavia, tem como característica fundamental a inércia (nemo judex
sine actore, ne procedat judex ex officio). Desse modo, cabe ao titular do direito que
reclama a atuação estatal provocar o exercício da atividade jurisdicional. Ao dever
do Estado à prestação jurisdicional corresponde um direito – o direito de ação.
Ação, portanto, é o direito ao exercício da atividade jurisdicional
(ou o poder de exigir esse exercício). Mediante o exercício da ão
provoca-se a jurisdição, que por sua vez se exerce através daquele
complexo de atos que é o processo.
4
-
5
A Constituição Federal afirma, em seu art. 5º, XXXV, que “a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Está assegurado, assim,
pelo texto constitucional, o amplo acesso ao Poder Judiciário, mediante a garantia
da ação.
De fato, tomada nos termos antes mencionados, a ação tem status de garantia
constitucional, na medida em que representa norma assecuratória do acesso à
justiça.
4
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria geral do processo. 20 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 247.
5
Ada Pellegrini Grinover tem conclusão individual um pouco diversa acerca do conceito do direito de
ação. A mesma discorda acerca da concepção de que seria a ação um poder, e completa, afirmando
que a obrigação correspondente ao direito de ação é do Estado, e não do outro integrante da relação
jurídica de direito material. Senão vejamos: “Em nosso entender, portanto, o direito de ão é direito
público subjetivo, de que é titular o indivíduo e ao qual corresponde a obrigação do Estado (não do
juiz, que é mero agente) à prestação jurisdicional.” (GRINOVER, Ada Pellegrini. O direito de ação.
Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 451, mai. de 1973. p. 31.)
16
Destaca-se, no entanto, que o direito de ação teve desenvolvimento doutrinário
quase que exclusivamente realizado no plano processual, dissociando-se muitas
vezes a doutrina do plano constitucional.
6
Isso fez com que ainda hoje a garantia
prevista constitucionalmente pelo art. . XXXV seja vista como uma faceta distinta
daquela que se denomina “direito processual de ação”, que nada mais é que o
delineamento dado pelo legislador infraconstitucional à citada garantia prevista na
CF/88.
Assim, o direito de ação teria dois sentidos, um processual e um
constitucional.
7
Tal equívoco será mais bem demonstrado à frente, ocasião em que serão expostas
as condições evolutivas e a atual disciplina do direito de ação na legislação
brasileira.
Entretanto, é necessário afirmar desde já, que a ação está prevista
constitucionalmente, no art. 5º, XXXV, da CF/88. Assim, ainda que se considere a
ação um direito dicotômico, é impossível negar sua acepção constitucional,
positivada que está no texto da Carta Magna.
Por tal motivo, cumpre-nos estabelecer o significado da garantia constitucional da
ação, uma vez que o sistema processual legal deverá ser balizado nos preceitos e
princípios exarados pela mencionada garantia.
8
Conforme mencionado, o texto do art. 5º, XXXV, da CF/88 estabelece o princípio da
inafastabilidade da tutela jurisdicional, bem como o direito de ação. Essas duas
regras constitucionais têm existência interdependente, sendo que seus conceitos
verdadeiramente se mesclam.
9
6
DIDIER JÚNIOR, FREDIE. Pressupostos processuais e condições da ação: o juízo de
admissibilidade do processo. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 203.
7
“O direito de ão está prescrito em nosso ordenamento de forma dicotômica: de maneira mais
ampla e genérica, como direito de acesso ao judiciário, na Constituição Federal, art. 5º, XXXV; e no
Código de Processo Civil, como direito a uma sentença de mérito, nos termos dos arts. 3º, 267, 295.”
(KLIPPEL, Rodrigo. As condições da ação e o mérito à luz da teoria da asserção. São Paulo:
Scortecci, 2005. p. 43.)
8
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumária e de
urgência (tentativa de sistematização). 4ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 70.
9
BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. v. 1. São Paulo:
Saraiva, 2007. p. 329.
17
Pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição, também denominado de acesso à
justiça, a Constituição Federal garante a todos, indistintamente e sem restrição, o
acesso ao mecanismo estatal de proteção de seus interesses jurídicos, qual seja, o
processo. Assim, todos têm o direito de recorrer ao Poder Judiciário a fim de propor
demandas.
Para que o acesso ao Judiciário se dê, não necessidade de que o direito que
carece de proteção tenha sido efetivamente lesado. Segundo a previsão
constitucional (art. 5º, XXXV), a simples ameaça a direito deve receber a proteção
estatal. A inclusão da ameaça como conteúdo da inafastabilidade do Judiciário é
exclusiva da Constituição Federal de 1988, que inovou na matéria ao ampliar a
proteção antes oferecida somente a direitos lesados.
10
Ademais, cumpre destacar que o ingresso no Poder Judiciário, exatamente por ser
garantido de forma ampla e genérica, não exige a existência real do direito a ser
protegido. “Basta a afirmação de um direito, lesado ou ameaçado, para que a
pessoa tenha acesso à jurisdição e ao processo.”
11
No entanto, devemos ter em conta que o acesso à justiça não representa garantia
meramente formal de petição ao Judiciário.
Muito mais do que assegurar a mera formulação de pedido ao Poder
Judiciário, a Constituição da República garante a todos o efetivo
acesso à ordem jurídica justa, ou seja, proporciona a satisfação do
direito não cumprido espontaneamente.
12
A satisfação do direito está consubstanciada na tutela jurisdicional efetiva, que nada
mais é do que o resultado a ser atingido pelo processo, qual seja a satisfação dos
10
É como se disse, que o inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal impusesse um repensar do
processo civil em duas grandes frentes. Uma delas voltada à reparação de lesões ocorridas no
passado, uma proposta retrospectiva da função jurisdicional, e outra, voltada para o futuro, uma visão
prospectiva do processo, destinada a evitar a consumação de quaisquer lesões a direito, é dizer, a
emissão de uma forma de proteção jurisdicional (de tutela jurisdicional) que imunize quaisquer
ameaças independentemente de elas converterem-se em lesões. Independentemente, até mesmo,
de elas gerarem quaisquer danos. Basta, quando a ameaça é o foro das preocupações da atuação
jurisdicional, que haja uma situação antijurídica.” (BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sistematizado
de direito processual civil. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 102.)
11
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumária e de
urgência (tentativa de sistematização). 4ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 64.
12
Ibid. p. 63.
18
interesses legitimamente postulados.
13
Significa, em outras palavras, atingir, por
meio do processo, a situação jurídica que poderia ter naturalmente surgido caso não
se tivesse instalado a crise de direito substancial, i.é., caso aquele que deve sujeitar-
se ao direito legitimamente verificado o fizesse sem resistência.
14
Assim, muito embora o processo (mecanismo de atuação estatal para proteção de
direitos) esteja acessível a todos, mediante a mera afirmação de direito ameaçado
ou lesado, em virtude da inafastabilidade da jurisdição, ele tem seus delineamentos
postos com o intuito direto de prover tutela jurisdicional efetiva, ou seja, adequada
para a devida realização do direito material no caso, a qual somente será conferida a
quem de fato possui o direito material.
Portanto, nem todos aqueles que recorrem ao judiciário têm acesso à tutela
jurisdicional, o que não representa limitação ao princípio do acesso à justiça.
O direito de ação, por sua vez, tem o papel de retirar da inércia a jurisdição.
Constitui-se o mesmo na “[...] provocação inicial do Estado-juiz para que ele atue e,
nesta perspectiva, para que ele preste tutela jurisdicional [...]”
15
. “Trata-se do poder,
pertencente a todos, uti civis, de provocar a atividade jurisdicional e retira-la da sua
inércia.”
16
Nesse sentido, não como negar à ação o status de garantia constitucional, na
medida em que é norma que assegura o acesso à justiça.
No entanto, a ação não é uma garantia vazia, de simples acesso ao Judiciário.
17
É
uma garantia substancial a um processo justo, ou seja, a todos os meios que
garantam a obtenção da tutela jurisdicional apta à pacificação do conflito.
18
13
“[...] o processo deve dar, quanto for possível praticamente, a quem tenha um direito, tudo aquilo e
exatamente aquilo que ele tenha direito de conseguir.” (CHIOVENDA. Giuseppe. Instituições de
direito processual civil. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2000, v.I. p. 84.)
14
V. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo. Influência do direito material sobre o
processo. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 27-30.
15
BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. v. 1. São Paulo:
Saraiva, 2007. p. 331.
16
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo:
Malheiros, 2006. p. 229.
17
DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução Civil. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2002. p.
388.
19
Conforme explicitado, somente têm acesso à tutela jurisdicional aqueles que são
titulares do direito afirmado. Todavia, todos possuem, indistintamente, mediante a
simples afirmação de um direito ameaçado ou lesado, o poder ou direito de se valer
dos meios assegurados constitucionalmente para a obtenção de tutela jurisdicional.
O exercício da ação, desse modo, “dá origem ao direito de obter pronunciamento do
juiz sobre o pedido de tutela, independentemente do conteúdo da decisão final.”
19
Esse pensamento é brilhantemente desenvolvido por José Roberto dos Santos
Bedaque, que conclui que os meios garantidores da obtenção da tutela jurisdicional
se consubstanciam no devido processo constitucional.
[...] Todos podem requerer a tutela jurisdicional, ainda que dela o
sejam merecedores. E o que está à disposição de todos, titulares de
direitos ou de meras pretensões infundadas, é o mecanismo previsto
pelo legislador constitucional, por ele minuciosamente modelado,
para viabilizar a tutela jurisdicional e quem efetivamente faz jus a ela.
Assim, a garantia constitucional de ação representa para as pessoas,
em última análise, garantia ao devido processo constitucional, ao
instrumento estatal de solução de conflitos. Garantia implica
proteção, ou seja, predisposição de meios para assegurá-la em
concreto.
20
18
Acerca do tema, expõe Luigi Paolo Comoglio três proposições: “1) il riconoscere ora nel precetto
costituzionale la vera ‘norma fondamentale’ sull’azione significa irreversibilmente dare per scontato
che, prima (e senza) di essa, la disciplina positiva del processo non sia mai riuscita (né tontomeno
riesca, di per sé) a garantire um adeguato supporto legittimante a qualsiasi concezione tradicionale di
azione; 2) nel contesto dei principi costituzionali, inoltre, il ‘diritto al processo’ non è caracterizzato da
un oggetto puramente formale od astratto (‘processo’ tout court), ma assume um contenuto modale
qualificato (come ‘diritto al giusto processo’); 3) l’azione in giudizio, quindi, va rimodellata in armonia
com tale qualificato contenuto tenendo conto del fatto che la norma costituzionale non è, per così dire,
uma garanzia di soli ‘mezzi’, ma è anche (perlomeno in termini modali) uma garanzia di risultato,
poiché, com l’inviolabilità di taluni poteri processuali minimi (azione e difesa), essa consacra altresì
l’adeguatta posibilitá di ottenere, per loro ‘mezzo’, um mínimo di forme di tutela effetiva, proprie
(apunto) di um processo ‘giusto’.” (COMOGLIO, Luigi Paolo. Note Riepilogative su azione e forme di
tutela, nell’ottica della Domanda Guidiziale. Rivista di Diritto Processuale, Anno XLVIII [seconda
serie], n. 2. Milão: CEDAM, 1993. p. 472.) Tradução livre: “1) o reconher ora no preceito constitucional
a verdadeira ‘norma fundamental’ sobre a ação significa irreversivelmente dar como certo que, antes
(e sem) dessa, a disciplina positiva do processo nunca tenha conseguido (nem também consiga por si
própria) garantir um suporte adequado legitimamente a qualquer concepção tradicional de ação; 2) no
contexto dos princípios constitucionais, ademais, o ‘direito ao processo’ não é caracterizado por um
objeto puramente formal ou abstrato (processo tout court), mas assume um conteúdo modal
qualificado (como direito ao ‘justo processo’); 3) a ação em juízo, portanto, tem que ser remodelada
em harmonia com tal qualificado conteúdo tendo em conta o fato que a norma constitucional não é,
por assim dizer, uma garantia somente de meios, mas é também (pelo menos em termos modais)
uma garantia de resultados, pois, com a inviolabilidade de alguns poderes processuais mínimos (ação
e defesa) ela consagra também a adequada possibilidade de obter por seu meio um mínimo de
formas de tutela efetiva, próprias (exatamente) de um processo justo.”
19
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo:
Malheiros, 2006. p. 230.
20
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumária e de
urgência (tentativa de sistematização). 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 64.
20
De fato, cabe à Constituição Federal procurar estabelecer garantias, poderes e
mecanismos que confiram a tutela jurisdicional a quem é titular do direito material
discutido. O processo conduzido mediante tais regras estabelecidas
constitucionalmente é o processo justo, assim qualificado por Augusto Morello.
21
Desse modo, o processo justo pode ser entendido como o processo conduzido
mediante a observância dos princípios e poderes que integram o devido processo
constitucional.
Esse tema, que inclusive foi desenvolvido por Bedaque ao longo de diversas de
suas obras publicadas
22
, levou-o a afirmar:
[...] Importante fixar que todos têm, independentemente de quaisquer
condições pessoais, não a certeza ou a probabilidade de obter o
reconhecimento de um direito, mas a possibilidade séria e real de
contar com instrumentos adequados para alcançar esse objetivo.
[...]
A Constituição procura estabelecer, pois, o processo justo, ou seja, o
instrumento que a sociedade politicamente organizada entende
necessário para assegurar adequada via de acesso à solução
jurisdicional dos litígios.
Daí poder-se afirmar ser o processo permeado de valores éticos,
exatamente aqueles que norteiam a própria Constituição. Cada país
tem seu modelo processual-constitucional, construído em
conformidade com as opções ideológicas dominantes.
23
Em vista do exposto, não subsiste a diferença entre um direito de ação
constitucional, e um direito de ação processual
24
. A ação é plena e suficientemente
prevista na Constituição Federal. Qualquer previsão infraconstitucional acerca do
instituto deve estar de acordo com a configuração que lhe deu a CF/88, sendo que
as regras acerca do tema inseridas no Código de Processo Civil devem ser
21
MORELLO, Augusto M. El proceso justo. Buenos Aires : Abeledo-Perrot, 1994.
22
V. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo. Influência do direito material sobre o
processo. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2006; Idem, Tutela cautelar e tutela antecipada:
tutelas sumária e de urgência (tentativa de sistematização). 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros,
2006; e Idem, Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2006.
23
Idem. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumária e de urgência (tentativa de
sistematização). 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 65-66.
24
Dinamarco, não obstante reconheça a previsão constitucional da ação como garantia de acesso
não só ao Judiciário, mas a um amplo poder de exigir e obter provimento, acolhe a concepção
dicotômica do direito de ão, e acaba por denominar o direito de ão constitucionalmente previsto
de direito de demandar, considerando a ação um direito condicionado. (DINAMARCO, Cândido
Rangel. Execução Civil. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2002. pp. 357 e ss.).
21
entendidas como mera técnica processual, destinadas a dar melhor alcance ao
direito de ação.
Portanto, tendo em vista a previsão da garantia constitucional da ação, bem como a
determinação de seu conteúdo, qual seja o devido processo constitucional, não
razão de ser na distinção entre direito de propor demandas e direito de ação. Como
assevera Luigi Paolo Comoglio
25
, não que se falar em autonomia entre esses
“direitos”, pois não mesmo separação entre eles: formam a ação, garantia una
prevista constitucionalmente.
Por fim, devemos ter em conta que a previsão de um processo justo deve ser
acompanhada de mecanismos que garantam o acesso efetivo ao instrumento de
solução de controvérsias, conferindo a todos igualdade de condições materiais. “Não
basta assegurar, portanto, a existência de mecanismo adequado à solução de
controvérsias, se as pessoas não tiverem efetivo acesso a ele.”
26
Na doutrina de Boaventura de Sousa Santos, o acesso efetivo à justiça possui
óbices de natureza econômica, social e cultural às classes menos favorecidas. No
que tange aos obstáculos econômicos, destaca os custos elevados das demandas,
agravados pela lentidão do Poder Judiciário, os quais muitas vezes o superiores
ao valor das causas interpostas pelas mencionadas camadas da população. Quanto
aos óbices sociais e culturais, ressalta a potencial ignorância dos direitos, inclusive
quanto aos meios disponibilizados à sua defesa, o descrédito na atuação do
Judiciário, e mesmo o temor de represálias por estarem em situação de
subordinação ou dependência.
27
No intuito de apresentar soluções aos óbices ao acesso à ordem jurídica justa,
Mauro Cappelletti e Bryant Garth identificaram três ondas que garantem o acesso
efetivo à justiça. A primeira onda implica na oferta de assistência judiciária gratuita
25
COMOGLIO, Luigi Paolo. Note Riepilogative su azione e forme di tutela, nell’ottica della Domanda
Guidiziale. Rivista di Diritto Processuale, Anno XLVIII (seconda serie),n. 2. Milão: CEDAM, 1993. p.
487.
26
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumária e de
urgência (tentativa de sistematização). 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 75.
27
SANTOS, Boaventura de Sousa. Justiça: Promessa e Realidade. O acesso à justiça em países
ibero-americanos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p. 405.
22
aos pobres; a segunda onda reside na representação jurídica para os interesses
difusos; e a terceira onda resta consubstanciada na simplificação dos procedimentos
judiciais, através, v.g., da adoção de todos alternativos, como os juízos arbitrais,
e de procedimentos especiais, como os juizados de pequenas causas.
28
Desse modo, uma vez expostas as idéias acerca da garantia constitucional da ação
e seu respectivo conteúdo na ordem constitucional atual, passaremos a abordar o
caminho evolutivo que resultou na sua concepção dicotômica na doutrina brasileira.
2.2 A NATUREZA JURÍDICA DA AÇÃO E SUAS TEORIAS
Conforme anteriormente mencionado (2.1), o direito de ação teve seu
desenvolvimento doutrinário com ênfase no plano processual, em detrimento do
plano constitucional, o que fez com que ainda hoje seja o mesmo visto como um
direito dicotômico, apresentando duas facetas: constitucional, consubstanciado na
garantia prevista pelo art. 5º, XXXV, da CF/88, considerado um direito
incondicionado, e processual, que nada mais é do que o delineamento dado pelo
legislador infraconstitucional à citada garantia prevista na CF/88.
Esse último seria
um direito condicionado, de acordo com as regras do Código de Processo Civil.
Faz-se indispensável, portanto, neste primeiro momento, a exposição evolutiva das
principais teorias criadas para a definição da natureza jurídica e do conceito de
ação, que culminaram na errônea concepção dicotômica do direito de ação, a ser
analisada em seguida (2.3).
2.2.1 A Teoria Imanentista
Segundo a teoria clássica, civilista ou imanentista, que remonta ao direito romano,
29
a ação era imanente a um direito material, do qual era mero acessório, elemento
integrante.
28
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Trad. de Ellen Gracie Northfleet.
Reimpr. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2002.
29
GRINOVER, Ada Pellegrini. O direito de ação. Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 451, mai. de
1973. pp. 24-25.
23
Assim, na concepção clássica, a ação se manifestaria quando determinado direito
substancial, do qual era integrante, fosse lesado, de modo que não existiria ação
sem direito material, nem direito material sem ação.
Tal teoria foi inicialmente desenvolvida por Savigny, para quem “a ação era o próprio
direito material colocado em movimento, a reagir contra a ameaça ou a violação.
30
Vários foram os seguidores de Savigny. Como lembra Rezende Filho,
UNGER compara a ação ao direito em de guerra, no saio marcial,
em oposição ao direito em estado de paz, na toga.
MATTIROLO conceitua a ação como direito elevado à segunda
potência.
31
Dentre os doutrinadores pátrios adeptos da teoria civilista, podemos mencionar João
Monteiro, para quem ação é o próprio direito violado, bem como Clóvis Beviláqua,
que considera a ação um elemento constitutivo do direito.
32
Sob influência desse
último, foi editado o art. 75 do CC/16, que afirmava que “a todo direito corresponde
uma ação, que o assegura.” Referido dispositivo não foi replicado no CC/02, não
obstante terem sido editados artigos no citado diploma que prescrevem que alguém
“tem ação contra” outrem
33
.
Como se percebe, a teoria civilista implica na dependência entre o direito de ação
(que representa verdadeiramente o direito processual como um todo, in casu) e o
direito material violado.
A idéia da ação como direito autônomo, por sua vez, teve início em meados do séc.
XIX na Alemanha, com a notória polêmica travada entre Windscheid e Müther.
30
GOMES, Fábio. Carência de ação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 20.
31
REZENDE FILHO, Gabriel José Rodrigues de. Curso de direito processual civil. 4. ed. São
Paulo: Saraiva,1954, v. I. p. 155.
32
GRINOVER, Ada Pellegrini. Op. cit. pp. 25-26.
33
Como exemplos de dispositivos do CC/02, temos o art. 195, que afirma que: “Os relativamente
incapazes e as pessoas jurídicas têm ação contra seus assistentes ou representantes legais, que
derem causa à prescrição, ou não a alegaram oportunamente”; o art. 666, in verbis: “O maior de
dezesseis e menor de dezoito anos não emancipado pode ser mandatário, mas o mandante não tem
ação contra ele senão de conformidade com as regras gerais, aplicáveis à obrigações contraídas por
menores”; e ainda o art. 673, que preceitua que: “O terceiro que, depois de conhecer os poderes do
mandatário, com ele celebrar negócio jurídico exorbitante do mandato, não tem ação contra o
mandatário, salvo se este lhe prometeu ratificação do mandante ou se responsabilizou
pessoalmente”.
24
Na polêmica instalada entre os famosos juristas alemães, Bernard Windscheid
publicou ensaio no qual, ao contrário do entendimento que vigorava na época,
defendia que o conceito da actio romano não correspondia ao conceito moderno de
ação. Em face de tal trabalho, Theodor Müther publicou ensaio no qual sustentava a
coincidência entre os mencionados conceitos.
34
Da descrita discórdia emergiu a idéia atualmente aceita de forma pacífica de que
distinção entre direito material e direito de ação, entendido esse como direito à
prestação jurisdicional.
No entanto, uma vez concedido caráter autônomo ao direito de ação, inúmeras
novas teorias surgiram na tentativa de conceituar a ação, destacando-se duas
correntes: direito autônomo concreto e direito autônomo abstrato.
2.2.2 A Teoria Concreta
Coube a Adolf Wach, em 1885, a afirmação categórica de que o direito de ação é
autônoma em relação ao direito substancial. Afirma o jurista, em suas palavras:
La tesis de la inmanencia del derecho de acción en el derecho
subjetivo privado, es del todo imposible e inconcebible, cuando
existen derechos de acción, independientemente de los derechos
subjetivos privados que deben ser protegidos por aquéllos. Su
existencia, hoy em dia, ya no puede ser negada por nadie, em vista
de la acción de declaración negativa.
35
Desse modo, em face da ação declaratória negativa, o direito de ação não pode ser
confundido com o direito subjetivo privado, uma vez que em mencionada demanda o
que se objetiva exatamente é o reconhecimento da não existência de direito
material. Resta comprovada, assim, a autonomia da ação em relação ao direito
lesado.
34
CF. nota 3 in LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Trad. e notas de
Cândido R. Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984, vol. I. p. 149.Ver também GOMES, Fábio.
Carência de ação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 22-25.
35
WACH, Adolf. La pretensión de declaración. Trad. Argentina. Buenos Aires: Ejea,1962. p. 51.
Tradução livre: “A tese da imanência do direito de ação do direito subjetivo privado é de todo
impossível e inconcebível, quando existem direitos de ação, independentemente dos direitos privados
que devem ser protegidos por aqueles. Sua existência, hoje em dia, não pode ser negada por
ninguém, em vista da ação declaratória negativa.”.
25
Todavia, não obstante justificasse a autonomia da ação mediante o exemplo da
ação declaratória negativa, Wach em geral considerava que a mesma tinha sua
existência condicionada à existência do direito material. Assim, o direito de ação
seria o direito de se obter em juízo uma sentença favorável ao autor para reparar o
direito material lesado ou ameaçado.
36
Em virtude disso, se denomina a citada teoria como concreta, ou teoria do direito
concreto de agir. A mencionada corrente tem como principal defensor no Brasil José
Ignácio Botelho de Mesquita.
37
Não é difícil criticar a teoria descrita. Primeiramente, contradição em termos nas
idéias de Wach quando o mesmo afirma que há autonomia entre o direito de ação e
o direito substancial, para em seguida condicionar a existência daquele à existência
desse. Ademais, a teoria concreta não explica o fenômeno da sentença de
improcedência nesse caso não haveria direito de ação, mas o quê explicaria o
pronunciamento judicial?
2.2.3 A Teoria do Direito Potestativo
Como verdadeira variação da citada teoria, no início do séc. XX, Giuseppe
Chiovenda formulou sua teoria do direito potestativo de agir a fim de conceituar a
ação. Segundo o jurista, a ação seria “um direito potestativo e até se pode dizer um
direito potestativo por excelência.”
38
Assim, para Chiovenda, o direito de ação seria um poder do titular do direito
material, voltado frente ao réu, em face de quem se produz o efeito jurídico da
atuação da lei, não restando ao mesmo nenhuma obrigação diante de tal poder.
39
Ação é o poder jurídico de realizar a condição necessária (atuação jurisdicional) para
a atuação da vontade da lei.
36
GOMES, Fábio. Carência de ação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 31.
37
MESQUITA, José Ignácio Botelho de. Ação civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975.
38
CHIOVENDA, Giuseppe. A ação no sistema dos direitos. Trad. de Hiltomar Martins Oliveira. Belo
Horizonte: Líder, 2003. p. 31
39
Ibid. pp. 27-33.
26
A teoria do direito potestativo de agir recebeu severas críticas, pois em substância
não difere da teoria concreta, uma vez que para a existência da ação exige a
existência de direito material.
[...] A ausência de qualquer obrigação por parte do réu, em
decorrência do exercício de um direito potestativo por parte do autor,
geraria, conforme Alfredo Rocco, uma relação jurídica deformada,
que teria um termo. O que a doutrina de Chiovenda erigiu em
direito autônomo e chamou de potestativo, continua Alfredo Rocco,
nada mais é do que a faculdade, naquele direito compreendida, de o
titular respectivo iniciar o exercício do mesmo por meio de expressa
declaração de vontade.
40
Acreditando ter explorado suficientemente a teoria potestativa, passamos para uma
outra vertente teórica a seguir explorada.
2.2.4 A Teoria Abstrata
Em oposição às teorias formuladas, surge a chamada teoria abstrata da ação,
exposta quase concomitantemente pelo alemão Degenkolb (através de sua obra
Einlassungszwang und Urteilsnorm Ingresso forçado e norma judicial, publicada
em 1877) e pelo húngaro Plósz (pela obra Beiträge zur Theorie des Klagerechts
Contribuição à teoria do direito de queixa, escrita em 1876, mas traduzida para o
alemão em 1890).
41
Segundo essa linha de pensamento, o direito de ação é o direito a um
pronunciamento do Estado, diante de um pedido deduzido em juízo pelo autor, e não
simplesmente um direito a uma sentença favorável. O direito de ação, portanto, tem
existência própria, completamente independente da efetiva existência do direito
material que se pretende ver protegido em juízo.
Nesse sentido, a ação é um direito inerente à personalidade, do qual todos o
titulares. Exige que o autor apenas afirme a existência de um interesse seu
protegido pelo direito em abstrato. Em conseqüência, resta ao Estado a obrigação
40
GOMES, Fábio. Carência de ação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 34.
41
FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Condições da ação: enfoque sobre o interesse de agir no
processo civil brasileiro. São Paulo: RT, 1999. pp. 42-43; SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas
de direito processual civil. 12. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1985, v. 1. p. 152.
27
de prestar a atividade jurisdicional. Forte em tal razão, seria a ação um direito
público subjetivo preexistente ao processo.
Em meio às vertentes da teoria abstrata destaca-se aquela desenvolvida por
Eduardo Juan Couture. Para o doutrinador uruguaio, a ação é uma forma típica de
direito de petição previsto constitucionalmente. Afirma o mesmo:
La acción civil no difiere, em su esencia, del derecho de petición ante
la autoridad. Este es el género; aquélla es uma espécie.
[...] cuando el derecho de petición se ejerce ante el Poder Judicial,
bajo la forma de acción civil, esse poder jurídico no solo resulta
virtualmente coactivo para el demandado, que há de comperecer a
defenderse, si no desea sufrir lãs consecuencias perjudiciales de la
ficta confessio, sino que también resulta coactivo para el magistrado,
que debe expedirse em una u otra forma acerca del
pronunciamiento.
42
O direito de petição instituído no sistema constitucional vigente no Brasil tem
delineamento claramente distinto do direito de ação. O art. 5º, XXXIV, “a”, da CF/88
assegura a todos, independentemente do pagamento de taxas, o direito de petição
aos poderes públicos caso o cidadão pretenda defender um direito, ou tenha sofrido
uma ilegalidade ou abuso de poder. De fato, o direito de petição garante a
possibilidade de postular ou representar em face das autoridades, para defesa de
direitos, ou como um writ em potencial, a ser utilizado contra ações ilegais ou
abusivas de poder, praticadas pelo Estado.
43
-
44
O direito de ação, por sua vez, tem atuação restrita e focada ao âmbito jurisdicional,
e, muito embora partilhe de características em comum com o direito de petição,
42
COUTURE, Eduardo Juan. Fundamentos del derecho procesal civil. 4. ed. Montevidéo: Editorial
B de F, 2002. pp. 63-64. Tradução livre: “A ão civil não difere, em sua essência, do direito de
petição diante da autoridade. Esse é o gênero; aquela é uma espécie. [...] quando o direito de petição
é exercido diante do Poder Judicial, por meio da forma da ação civil, esse poder jurídico não
resulta virtualmente coativo para o demandado, que deve comparecer em juízo para se defender, se
não deseja sofrer as conseqüências prejudiciais da revelia, mas também resulta coativo para o
magistrado, que deve pronunciar-se, de uma ou outra forma.”
43
BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito de Petição. Garantia Constitucional. São Paulo: Método, 2004.
p. 71.
44
“Certo é que a efetividade desse direito deve ser haurida nos princípios fundamentais da Carta
Política, os quais são reconduzidos, essencialmente, à dignidade da pessoa humana. É com esse
norte que se pretende fomentar um modelo administrativo constitucional que respeite os direitos
constitucionais dos cidadãos e, em particular, do administrado, estabelecendo-se um processo
cultural ambivalente, com reflexos mesmo no desafogamento das instâncias jurisdicionais, atingindo-
se os objetivos do sistema social e jurídico, como um todo.” (Ibid. p. 73.)
28
possui conteúdo que o torna único (e até mesmo podemos dizer mais específico),
qual seja o direito ao devido processo constitucional.
2.2.5 A Teoria Eclética
Enrico Tullio Liebman foi o criador da Teoria Eclética, segundo a qual a ação
consiste no direito a uma sentença de mérito, mas o julgamento do mesmo está
condicionado à satisfação de determinadas condições.
45
De fato, Liebman se revela um abstratista ao afirmar que a ação é o direito a uma
sentença de mérito, conferindo ao direito substancial a tarefa de determinar se essa
decisão será ou não favorável.
46
Todavia, na qualidade de discípulo de Chiovenda, um dos defensores do
concretismo, conforme exposto anteriormente (2.2.3), Liebman acabou por se
afastar das teorias abstratas puras, que consideram a ação um direito inerente à
personalidade e livre de requisitos para sua existência, para criar um elo de ligação
entre a ão e o direito material, que são as chamadas condições da ação. Essas
últimas, verdadeira interligação entre direito processual e material, são a
legitimidade ad causam, o interesse processual e a possibilidade jurídica do
pedido.
47
A Teoria Eclética da Ação, assim, pode ser classificada como uma teoria abstrata,
ainda que conectada a elementos de concretude, quais sejam, as condições da
ação. O direito de ação, na concepção enunciada por Liebman, não mais representa
45
LIEBMAN, Enrico Tullio. Manuale di diritto processuale civile. Milano: Giufrè, 1955, v. I. p. 39.
46
Nas palavras de Cândido Rangel Dinamarco, “[...] são abstratistas todas as teorias para as quais a
ação se considere existente ainda que inexistente o direito subjetivo material afirmado ( ou seja,
‘abstraindo-se’ da existência deste), e isso é expressamente reiterado na obra de LIEBMAN.” (Nota
103 In: LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Trad. e notas de Cândido R.
Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984, vol. I. p. 153; )
47
Faz-se necessário destacar que a teoria original de Liebman previa as três condições da ação:
legitimidade para agir, interesse processual e possibilidade jurídica do pedido. Todavia, a partir da
terceira edição de seu Manuale, o jurista entendeu que os casos de possibilidade jurídica do pedido
estariam englobados no conceito de interesse processual, terminando por excluir a primeira das
condições mencionadas de sua doutrina. (Cf. Nota 106 de Cândido Rangel Dinamarco In: LIEBMAN,
Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Trad. e notas de Cândido R. Dinamarco. Rio de
Janeiro: Forense, 1984, vol. I. pp. 160-161; v. também DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução
Civil. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2002. pp. 382-383.)
29
a cisão entre os planos material e processual do direito, ocorrida nos primórdios do
desenvolvimento da Ciência do Direito Processual Civil. Cabe a tal instituto o papel
contrário, de fazer a indispensável interligação entre referidos planos, sem a qual a
tutela jurisdicional efetiva não possui atuação.
Segundo a teoria em tela, a ação teria bases constitucionais, mas seria um direito
processual, inconfundível de seu alicerce fundamental. Sobre o tema, afirma
Liebman:
vimos que o poder de agir em juízo é reconhecido a todos e
vimos também a razão dessa limitada abertura: uma garantia
constitucionalmente instituída, que é o reflexo ex parte subiecti
da instituição dos tribunais pelo Estado; eles têm a tarefa de dar
justiça a quem a pedir e por isso uma das regras fundamentais
do nosso ordenamento constitucional assegura a todos a
possibilidade de levar-lhes a sua pretensão a obtê-la, com isso
fazendo com que o juiz venha a examinar o seu caso. Segundo
uma opinião muito conhecida, esse poder pertence à categoria dos
direitos cívicos; ele é absolutamente genérico e indeterminado,
inexaurível e inconsumível, não se ligando a qualquer situação
concreta.
48
[grifo nosso]
Dessa forma, Liebman reconhece na previsão constitucional do poder de agir em
juízo o fundamento, ainda que remoto, do direito de ação. É importante destacar
que, na passagem transcrita, o jurista afirma que o poder de agir em juízo é genérico
e indeterminado (atribuído a todos!), concepção que se aproxima da linha abstratista
pura de conceber a ação. Assevera, ainda, que mencionado poder está moldado na
forma de um direito cívico.
49
Todavia, Liebman termina por conceber a ação como um direito totalmente distinto
daquele poder constitucional de agir em juízo: é um direito de natureza processual e
ligado a elementos de concretude, que são as condições da ação. Vejamos como se
pronuncia o jurista acerca do assunto:
Coisa diferente é a ação, o direito subjetivo sobre o qual está
construído todo o sistema do processo, cuja fisionomia se acha
delineada já na primeira parte do art. 24 da Constituição: o direito de
agir em juízo é realmente atribuído para a tutela dos próprios
48
Idem. Manual de Direito Processual Civil. Trad. e notas de Cândido R. Dinamarco. Rio de
Janeiro: Forense, 1984, vol. I. p. 150.
49
Acerca do direito de acesso aos tribunais como um direito cívico, v. LACERDA, Galeno. Despacho
Saneador. 3. ed. Porto Alegre: Fabris, 1990. p. 76.
30
direitos e interesses legítimos e isso significa que não
pertenceria a quem postulasse tutela para direitos alheios. Eis
uma primeira indicação que serve para individualizar a pessoa que,
caso por caso, pode efetivamente agir em juízo: é o que se chama
legitimação para agir.
Em segundo lugar, como o direito de agir é concedido para a tutela
de um direito ou interesse legítimo, é claro que existe apenas quando
necessidade dessa tutela, ou seja, quando o direito ou interesse
legítimo não foi satisfeito como era devido, ou quando foi contestado,
reduzido à incerteza ou gravemente ameaçado. Individualiza-se, com
isso, a situação objetiva que justifica a propositura de uma ação: é o
que se chama interesse de agir. [grifo nosso]
Assim, em suma, Liebman considera a ação um direito subjetivo com fundamento
constitucional
50
, mas de natureza processual, dirigido contra o Estado
51
, e cuja
existência, e mesmo o efetivo exercício da função jurisdicional, dependem da
implementação de alguns requisitos, as mencionadas condições da ação.
Interessante destacar como Liebman, ao delinear a ação como um direito
condicionado, destacando-a do poder constitucional de agir em juízo, acaba por
limitar, ou dar novo significado ao vocábulo todos anteriormente citado, que agora
passa a indicar apenas aquele grupo de titulares de interesses que preencherem as
condições da ação.
Acerca das condições da ação e suas especificidades, afirma Liebman:
As condições da ação, pouco mencionadas, são o interesse de
agir e a legitimidade. Como ficou dito, elas são os requisitos de
existência da ação, devendo por isso ser objeto de investigação no
processo, preliminarmente ao exame do mérito (ainda que
implicitamente, como costuma ocorrer). se estiverem presentes
essas condições é que se pode considerar existente a ação,
surgindo para o juiz a necessidade de julgar sobre o pedido
[domanda] para acolhê-lo ou para rejeitá-lo. Elas podem, por
isso, ser definidas também como condições de admissibilidade
do julgamento do pedido, ou seja, como condições essenciais
para o exercício da função jurisdicional com referência à
situação concreta [concreta fattispecie] deduzida em juízo. Toda
decisão sobre as condições da ão é decisão sobre o processo,
devendo aplicar a lex fori, seja qual for a lei que rege a relação
controversa.
50
Ver também sobre o tema LIEBMAN, Enrico Tullio. O despacho saneador e o julgamento do mérito.
Estudos sobre o Direito Processual Civil Brasileiro, com notas da Dra. Ada Pellegrini Grinover.
São Paulo: Bushatsky, 1976. Págs. 129-130.
51
Idem. Manual de Direito Processual Civil. Trad. e notas de Cândido R. Dinamarco. Rio de
Janeiro: Forense, 1984, vol. I. p. 152.
31
A ausência de apenas uma delas já induz carência de ação,
podendo ser declarada, mesmo de ofício, em qualquer grau do
processo. Por outro lado, é suficiente que as condições da ão,
eventualmente inexistentes no momento da propositura desta,
sobrevenham no curso do processo e estejam presentes no
momento em que a causa é decidida.
52
[grifo nosso]
Necessário destacar, nesse ponto, que, conforme disserta Liebman, as condições da
ação não são somente condições para que se obtenha uma sentença de mérito,
mas também representam requisitos de existência da ação e do exercício da
atividade jurisdicional em cada caso concreto. Em outras palavras, no processo em
que não foram preenchidas as condições da ação, não existiu ação nem atividade
jurisdicional.
A Teoria Eclética da Ação foi a teoria adotada pelo Código de Processo Civil em
vigor, conforme se verifica da redação do art. 267, VI, in verbis:
Art. 267. Extingue-se o processo, sem julgamento do mérito:
[...]
VI quando não concorrer qualquer das condições da ação,
como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o
interesse processual;
[...]
Desse modo, no sistema processual civil brasileiro, moldado com base na Teoria
Eclética de Liebman, o direito de ação não é um direito subjetivo de exercício
absoluto: seu exercício regular está condicionado ao preenchimento de requisitos,
quais sejam, as condições da ação possibilidade jurídica do pedido, legitimidade
ad causam e interesse processual.
53
A teoria eclética concebe o direito de ação, então, como direito condicionado, não
obstante o art. 5º, XXXV, da CF/88 conferir o direito de ação, como garantia
constitucional, a todos indistintamente, de forma dissociada da imposição de
quaisquer requisitos ou condições (2.1).
52
LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Trad. e notas de Cândido R.
Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984, vol. I. pp. 150 e 154.
53
Nosso Código de Processo Civil optou por adotar a concepção original de Liebman, que contava
com as três condições da ação (ver a nota 41), muito embora seu art. 3º fale somente em interesse e
legitimidade.
32
Com o intuito de demonstrar a mencionada discrepância, passaremos a analisar o
direito de ação condicionado, previsto infraconstitucionalmente pelo CPC e derivado
da teoria de Liebman.
2.3 A AÇÃO COMO DIREITO CONDICIONADO
Conforme descrito, o Código de Processo Civil em vigor, cujo anteprojeto teve por
autor Alfredo Buzaid, um dos mais entusiasmados seguidores de Liebman no
Brasil
54
, adotou a teoria eclética da ação, ainda que não em sua totalidade. Dessa
forma, para a lei processual brasileira, ação é o direito a uma sentença de mérito.
Esse julgamento fica condicionado ao preenchimento das condições da ação,
verificadas à luz da relação jurídica de direito substancial deduzida em juízo.
A ordem natural do processo é a entrega da tutela jurisdicional, ou seja, a prolação
de uma sentença de mérito. Na disciplina do CPC, mérito é sinônimo de lide, na
concepção carneluttiana
55
, e para que o julgador se pronuncie sobre o mesmo, as
condições da ação devem estar presentes.
Entretanto, o CPC não se mostrou de todo fiel ao que está enunciado na sua
Exposição de Motivos, uma vez que, em diferentes dispositivos, v.g., quando trata
da denunciação da lide e do curador à lide, o vocábulo “lide” apresenta significado
diverso daquele exprimido anteriormente.
56
Cândido Rangel Dinamarco, em estudo inspirado na doutrina alemã
57
, afirma que a
pretensão processual é o objeto do processo. Dessa forma, o mérito da causa se
54
Acerca da influência de Liebman sobre os processualistas brasileiros e a formação da Escola
Paulista de Processo, a qual Alfredo Buzaid integrou, v. DINAMARCO, Cândido Rangel. Formação do
moderno processo civil brasileiro. In: ______. Fundamentos do processo civil moderno. São
Paulo: RT, 1986.
55
“O projeto só usa a palavra ‘lide’ para designar o mérito da causa. Lide é, consoante a lição de
Carnelutti, o conflito de interesses qualificado pela pretensão de um dos litigantes e pela resistência
do outro. O julgamento desse conflito de pretensões, mediante o qual o juiz, acolhendo ou rejeitando
o pedido, razão a uma das partes e nega-a à outra, constitui uma sentença definitiva de mérito. A
lide é, portanto, o objeto principal do processo e nela se exprimem as aspirações em conflito de
ambos os litigantes.” (Exposição de Motivos do CPC)
56
DINAMARCO, Cândido Rangel. O conceito de mérito em processo civil. Revista de Processo, São
Paulo, v. 34, abr./jun. de 1984. pp. 20-26.
57
A construção da pretensão processual como objeto do processo é originalmente de Karl Heinz
Schwab, que faz a distinção entre pretensão processual e pretensão material, que considera
33
consubstancia na pretensão processual
58
, que se constitui numa aspiração do
demandante a certo bem ou situação jurídica que não pode obter sem o processo e
a intervenção judicial.
Essa pretensão é trazida ao processo por meio do pedido de emissão de um
provimento jurisdicional de certa ordem, cujo conteúdo indica o bem da vida
almejado. Desse modo, é possível vislumbrar dois momentos lógicos em que a
pretensão se apresenta: 1) pretensão ao provimento postulado; 2) pretensão ao bem
da vida ou à nova situação jurídica buscados.
59
Portanto, na visão de Dinamarco, a pretensão processual teria dupla direção: a) para
exigir do juiz o provimento que lhe seja útil; e b) para obter o resultado jurídico-
material pretendido.
60
Desse entendimento deriva a concepção de pedido imediato e
pedido mediato que vigora atualmente.
Bem se percebe, assim, que Cândido R. Dinamarco defende o
conceito restrito de mérito da causa, fazendo-o equivalente à noção
de objeto litigioso do processo. Deixa bem claro, com efeito, que o
mérito não pode ser confundido com as questões de mérito, sendo
estas resolvidas na motivação da sentença e aquele no dispositivo.
61
Verifica-se, dessa forma, que Dinamarco defende uma concepção de mérito restrita.
Isso porque, no seu pensamento, o objeto do processo não é toda a pretensão
(aspiração) do demandante, mas somente aquela veiculada na demanda. Toda e
qualquer pretensão que não for deduzida na demanda, não constará do mérito.
62
essencial. (SCHWAB, Karl Heinz. El Objeto Litigioso en el Proceso Civil. Trad. de Tomas A.
Banzhaf. Buenos Aires: EJEA, 1968. pp. 3-9.) Essa última terminologia (pretensão material) é
repudiada por Dinamarco, como se pode verificar expressamente no texto do Prefácio da obra de
Kazuo Watanabe: WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. 3. ed. rev. atual. São Paulo:
Perfil, 2005. p. 14.
58
DINAMARCO, Cândido Rangel. O conceito de mérito em processo civil. Revista de Processo, São
Paulo, v. 34, abr./jun. de 1984. p. 45.
59
DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit. pp. 22-23; 29.
60
DINAMARCO, Cândido Rangel. O conceito de mérito em processo civil. Revista de Processo, São
Paulo, v. 34, abr./jun. de 1984. pp. 33-34.
61
WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. 3. ed. rev. atual. São Paulo: Perfil, 2005. p.
115.
62
No mesmo sentido, afirma Galeno Lacerda: “Para o direito processual, interesse somente o conflito
tal como se apresenta nos pedidos. Êste é que é julgado. O mérito a êle se refere.” (LACERDA,
Galeno. Despacho Saneador. 3. ed. Porto Alegre: Fabris, 1990. p. 86.)
34
José Roberto dos Santos Bedaque também defende conceito restrito do mérito da
causa. No seu entendimento, no entanto, mérito é o pedido deduzido na inicial.
“Julgar o mérito é julgar o pedido deduzido na inicial, acolhendo-o ou rejeitando-o.”
63
Dessa forma, podemos afirmar, seguindo a idéia exposta por Bedaque, que a
sentença que possui conteúdo de rito propriamente dito é aquela que rejeita o
acolhe o pedido. Impende salientar que o pedido traz em si a porção da realidade
social, ou da relação jurídica de direito material, que o demandante optou por
deduzir em juízo. Ou seja, toda a situação de direito material que não foi submetida
ao processo não integra o mérito e não será objeto de análise na sentença.
Por fim, destaca-se que, na qualidade de defensores de um conceito restrito de
mérito, tanto Dinamarco
64
quanto Bedaque
65
, consideram as questões de mérito
(questões relativas ao mérito, mas não integrantes do pedido) excluídas dessa
categoria.
Na disciplina do CPC, as hipóteses de sentenças de mérito estão previstas no art.
269 e seus incisos
66
. Todavia, das cinco hipóteses previstas, apenas duas
representam verdadeiro julgamento do mérito, quais sejam, o acolhimento ou
rejeição do pedido do autor (inc. I), e o acolhimento da alegação de decadência ou
prescrição (inc. IV), que significa verdadeira sentença de improcedência.
67
Portanto, na disciplina do CPC, o direito de ação é o direito a uma sentença de
mérito. Todos têm direito de pedir a atuação jurisdicional, mas nem todos têm direito
63
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo:
Malheiros, 2006. p. 242. V. também YARSHELL, Flávio Luiz. Ação Rescisória: Juízos Rescindente e
Rescisório. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 115.
64
DINAMARCO, Cândido Rangel. O conceito de mérito em processo civil. Revista de Processo, São
Paulo, v. 34, abr./jun. de 1984. pp. 258-259.
65
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo:
Malheiros, 2006. p. 246.
66
Art. 269. Haverá resolução de mérito:
I – quando o juiz acolher ou rejeitar o pedido do autor;
II – quando o réu reconhecer a procedência do pedido;
III – quando as partes transigirem;
IV – quando o juiz pronunciar a decadência ou a prescrição;
V – quando o autor renunciar ao direito sobre que se funda a ação.
67
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Op. cit. p. 242.
35
de receber uma sentença de mérito, devendo, para tanto, preencher as condições
da ação.
As condições da ação genéricas estão previstas nos art. 3º
68
, art. 267, VI, e §
69
,
art. 268
70
, e art. 295, II, III, parágrafo único, III
71
, todos do Código de Processo Civil.
A falta de condições da ação pode ser alegada em preliminar de contestação (art.
301, X, do CPC) ou a qualquer momento e qualquer grau de jurisdição, tendo-se
presente que sobre esta questão não ocorre preclusão (art. 267, § 3º, CPC e art.
301, § 4º, CPC), podendo ser inclusive conhecida ex officio pelo juiz.
Destaca-se que a concepção da ação processual ora exposta não ignora a previsão
constitucional da ação contida no art. 5º, XXXV, da CF/88. Tal qual Liebman, que
reconhece um fundamento constitucional do direito de ação (a previsão
constitucional do poder de agir em juízo), a regra contida no mencionado dispositivo
constitucional é considerada o alicerce sobre o qual se sustenta o direito processual
de ação. Assim, restou previsto, no sistema brasileiro, o direito de ação de forma
dicotômica.
Sobre o assunto se pronuncia Arruda Alvim, que distingue claramente duas espécies
de ação:
68
Art. 3. Para propor ou contestar ação, é necessário ter interesse e legitimidade.
69
Extingue-se o processo, sem resolução de mérito:
[...]
VI quando não concorrer qualquer das condições da ão, como a possibilidade jurídica, a
legitimidade das partes e o interesse processual;
[...]
§ 3º. O juiz conhecerá de ofício, em qualquer tempo e grau de jurisdição, enquanto não proferida a
sentença de mérito, da matéria constante dos ns. IV, V e VI; todavia, o réu que não a alegar, na
primeira oportunidade em que lhe caiba falar nos autos, responderá pelas custas de retardamento.
70
Art. 268. Salvo o disposto no art. 267, V, a extinção do processo não obsta que o autor intente de
novo a ação. A petição inicial, todavia, não será despachada sem a prova do pagamento ou do
depósito das custas e dos honorários de advogado.
71
Art. 295. A petição inicial será indeferida:
I – quando for inepta;
II – quando a parte for manifestamente ilegítima;
III – quando o autor carecer de interesse processual;
[...]
Parágrafo único. Considera-se inepta a petição inicial quando:
[...]
III – o pedido for juridicamente impossível;
36
a) uma de cunho eminentemente genérico e sediada no direito
constitucional: é o direito de ação constitucional (art. 5º, XXXV, da
CF/88); b) a outra que é a processual – regulada no processo, mas
que nasce do próprio direito de ação constitucional, enquanto o
direito de ação constitucional é pressuposto da norma
infraconstitucional.
72
Assim, ao adotar de forma evidente a Teoria Eclética da Ação, o CPC criou
sistemática em que a previsão constitucional da ação é algo por demais genérico e
abstrato (acesso à justiça, acesso à ordem jurídica justa, direito de ação
constitucional, direito de demanda
73
...) e distinto em certo nível do direito processual
de ação (que é um direito de natureza processual e ligado a elementos de
concretude, que são as condições da ação), esse sim o responsável pela
instauração do processo e tutela dos bens jurídicos.
Todavia, uma vez que o CPC optou por adotar a Teoria Eclética da Ação, assumiu o
risco de padecer das fraquezas que a teoria apresenta.
74
E, de fato, a teoria
formulada por Liebman não ficou livre das críticas.
José Joaquim Calmon de Passos, que chega a chamar da Teoria Eclética de um
concretismo dissimulado de Liebman, defende a postergação das condições da ação
do nosso ordenamento.
75
Fábio Luiz Gomes, por sua vez, identifica três vícios insuperáveis na construção de
Liebman: 1) tomar posição intermediária entre duas doutrinas inconciliáveis, a
doutrina concreta e a doutrina abstrata; 2) confundir ação com pretensão, conferindo
72
ARRUDA ALVIM, José Manoel de. Tratado de direito processual civil. 5. ed. São Paulo: RT,
1990, v. 1. p. 378.
73
Para Dinamarco, o direito de demandar, termo que adota por comodidade de linguagem, é a ação
incondicionada, mas que contém poder de estimular o exercício da função jurisdicional, tendo papel
no processo. (DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução Civil. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros
Editores, 2002. pp. 383-387.)
74
É discutível o acerto dessa orientação, de um Código adotar uma teoria da ação, quando é sabido
que nenhuma das teorias até hoje construídas está isenta de críticas irrespondíveis. A construção de
LIEBMAN, apesar de sua engenhosidade, não resiste a uma análise mais aprofundada. Basta
apresentar a mesma crítica que se fez à teoria civilista e à teoria de CHIOVENDA, com ligeiras
modificações: quando o juiz, depois de ter sido desenvolvida larga atividade jurisdicional, conclui que
o autor não tem direito de ação, porque falta uma daquelas três condições, como se explica a
movimentação da máquina estatal por quem não tinha o direito de ação?” (BARBI, Celso Agrícola.
Comentários ao Código de Processo Civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, v. 1. p. 20-21.)
75
PASSOS, José Joaquim Calmon de. A ação no direito processual civil brasileiro. Bahia:
Imprensa Oficial, 1960.
37
direito de ação ao réu; e 3) a redução do campo de atividade jurisdicional, relegando
a atividade do magistrado que profere sentença de carência ao limbo.
76
Arakén de Assis
77
e Adroaldo Furtado Fabrício
78
, cada qual com seus particulares
argumentos, são defensores de que as condições da ação estão contidas no mérito,
devendo o direito de ação permanecer incondicionado.
De forma geral, as críticas à Teoria Eclética, reproduzida no CPC, podem ser
sintetizadas nas seguintes questões
79
:
1) As condições da ação podem ser examinadas em qualquer momento processual,
mesmo após dilação probatória? Qual a profundidade da cognição a ser utilizada
para verificação da existências das condições da ação?
2) As condições da ação formam uma categoria de natureza processual, distinta do
mérito? Ou sua ligação com a relação jurídica de direito material é suficiente para
que venham a integrar o mérito?
3) Caso seja declarada a carência de ação, a ação não existiu? E o que teria
provocado a prestação do Estado materializada na sentença proferida?
4) Qual a natureza da atividade do magistrado que prolata sentença de carência de
ação?
5) A sentença de carência de ação, ainda que proferida mediante cognição
superficial, está apta a adquirir coisa julgada material?
Percebe-se, desse modo, que as dúvidas, suscitadas pela adoção clara de uma
teoria da ação pelo nosso Código de Processo Civil, e ainda não sanadas por
76
GOMES, Fábio. Carência de ação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. pp. 45-46.
77
ASSIS, Araken de. Sobre o Método em Processo Civil. In: Doutrina e Prática do Processo Civil
Contemporâneo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
78
FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Extinção do processo e mérito da causa. Revista de Processo, São
Paulo, v. 58, abr./jun. de 1990.
79
Cf. DIDIER JÚNIOR, FREDIE. Pressupostos processuais e condições da ação: o juízo de
admissibilidade do processo. São Paulo: Saraiva, 2005. pp. 209-210; e BEDAQUE, José Roberto dos
Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2006. pp. 250-257.
38
completo, são numerosas. Entretanto, elas serão enfrentadas no Capítulo posterior,
cujo objetivo principal será responder o último dos questionamentos expostos: se há
incidência de coisa julgada material na sentença de carência de ação, ou não.
Por ora, realizaremos o exame individual das condições da ação, procurando, desde
já, demonstrar sua proximidade com a relação jurídica de direito substancial que
origina a demanda.
2.3.1 Possibilidade jurídica da demanda
A possibilidade jurídica do pedido (como foi denominada por Liebman) será atendida
quando a providência pedida não esteja em tese vedada no ordenamento jurídico,
seja de forma expressa ou de forma implícita.
80
Desse modo, podemos dizer que um
pedido será juridicamente impossível quando for ilegal (não aceito pelo
ordenamento, ainda que implicitamente), impossível (não pode ser alcançado, ainda
que não haja proibição expressa ou ilicitude) ou expressamente proibido pela
legislação (o legislador afirma de forma clara que não se pode ir a juízo para pleitear
referido provimento).
Exemplos clássicos de impossibilidade jurídica do pedido são o pedido de cobrança
de dívida de jogo, bem como o pedido de usucapião de imóvel público. Entretanto,
outros exemplos podem ser extraídos do sistema jurídico, v.g., pedido de nulidade
de sentença que não esteja enquadrada nas hipóteses de ação rescisória, pedido de
prisão civil por dívida, excetuando-se as dívidas de alimentos, etc.
Cumpre destacar que a vedação jurídica que impossibilita o seguimento do processo
nem sempre repousa sobre o pedido em si. Na realidade, a impossibilidade jurídica
80
Originalmente, para Liebman, a possibilidade jurídica do pedido consiste na “possibilidade para o
juiz, na ordem jurídica à qual pertence, de pronunciar a espécie de decisão pedida pelo autor.”
(LIEBMAN, Enrico Tullio. O despacho saneador e o julgamento do mérito. Estudos sobre o
Processual Civil Brasileiro, com notas da Dra. Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: Bushatsky, 1976.
p. 124.). Essa concepção implica na incumbência do magistrado de realizar, em abstrato, exame do
ordenamento jurídico, a fim de verificar a viabilidade jurídica da pretensão deduzida pela parte. Em
razão da amplitude e muitas vezes inviabilidade desse exame, Dinamarco propôs sua formulação na
sentido negativo, i.é., o pedido será juridicamente impossível no caso de vedação, expressa ou
implícita, pelo ordenamento jurídico (DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução Civil. 8. ed. rev.
atual. São Paulo: Malheiros, 2002. pp. 401-402.). Esse é o sentido que adotamos no texto.
39
pode se manifestar em função de peculiaridades de quaisquer dos elementos da
demanda
81
, seja a causa de pedir
82
(como no caso clássico de vedação à cobrança
de dívida de jogo), sejam as partes (por gozarem de alguma prerrogativa, como a
execução por quantia certa em face da Administração Pública, reintegração de
posse do poder público, etc.), ou o próprio pedido.
83
Portanto, o termo “pedido” não deve ser entendido em seu sentido restrito, mas sim
conjugado aos demais elementos que compõem a demanda, principalmente a causa
de pedir. Por tal motivo, consideramos mais acertado denominar a condição da ação
em voga de possibilidade jurídica da demanda.
84
É indispensável salientar, ainda, que, como relatamos anteriormente (v. nota 44),
Liebman acabou por excluir a possibilidade jurídica do rol das condições da ação à
partir da edição de seu Manuale. Isso ocorreu, pois o principal exemplo dessa
categoria era a vedação ao pedido de divórcio, que foi permitido em 1970 na Itália.
Forte em tal razão, Liebman preferiu eliminar a possibilidade jurídica, enquadrando
as demais hipóteses no interesse de agir.
85
81
Demanda é o ato pelo qual alguém pede ao Estado a prestação de atividade jurisdicional. Através
da demanda a suposto titular do direito que necessita proteção exerce o direito de ação einício ao
processo. Ainda, por meio da demanda a parte formula um pedido, o qual delimita o objeto do litígio.
O instrumento da demanda é a petição inicial. É interessante destacar a posição de Marcelo Abelha
Rodrigues, que considera que as condições da ão “melhor seriam denominadas condições da
demanda, já que correspondem, precisamente, aos requisitos necessários para verificar se a
reclamação (demanda) é merecedora (meritória) de um julgamento.” (RODRIGUES, Marcelo Abelha.
Condições da ação no processo de conhecimento. Revista Jurídica, Espírito Santo, nº 02, ano II,out.
2000.)
82
Na lição de José Rogério Cruz e Tucci, a causa petendi possui dupla finalidade advinda dos fatos
que a integram, vale dizer, presta-se, em última análise, a individualizar a demanda e, por via de
conseqüência, para identificar o pedido, inclusive quanto a possibilidade deste.” (CRUZ E TUCCI,
José Rogério. A Causa Petendi no Processo Civil. 2. ed. São Paulo: RT, 2000. p. 130.)
83
Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução Civil. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2002.
pp. 395-396; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual.
São Paulo: Malheiros, 2006. pp. 250-257.
84
Dinamarco afirma que o ideal seria falar-se em possibilidade jurídica da demanda, uma vez que a
locução impossibilidade jurídica do pedido é insuficiente para exprimir seu real significado, pois fixa-
se somente em um dos elementos da ação, qual seja, o pedido, quando deveria também considerar
os outros dois elementos as partes e a causa de pedir. (Idem. Instituições de Direito Processual
Civil. 4. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2004. vol. II. p. 302.; Idem. Execução Civil. 8 ed. rev.
atual. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 399.)
85
Cf. Nota 106 de Cândido Rangel Dinamarco In: LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito
Processual Civil. Trad. e notas de Cândido R. Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984, vol. I. pp.
160-161; v. também DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit. 2002. pp. 395-396.
40
Por fim, destacamos que a possibilidade jurídica da demanda é condição da ação
que deve ser analisada anteriormente às demais condições da ação. Isso porque a
vedação do ordenamento à demanda proposta é evidente na impossibilidade jurídica
(ela se mostra a priori inadmissível), não havendo, dessa forma, necessidade do
exame da legitimidade ou do interesse.
86
Indispensável salientar a proximidade dessa condição da ação da situação de direito
material a ser objeto de provimento jurisdicional, o que equipararia a situação de
verificação da impossibilidade jurídica da demanda à improcedência do pedido. Esse
tema será explorado em tópico vindouro (3.1).
2.3.2 Legitimidade ad causam
A legitimidade ad causam, ou legitimidade para agir, é a relação de adequação entre
a relação hipotética de direito material deduzida em juízo e descrita na inicial e os
titulares da relação jurídica de direito processual.
87
Destaca-se que a mesma, na
qualidade de condição da ação, não se confunde com a chamada legitimidade ad
processum.
A legitimidade ad processum pertence aos pressupostos processuais subjetivos. As
partes, como elementos da ação que são, para preencherem os pressupostos
processuais referentes a elas devem ter capacidade de ser parte (qualidade
86
Esse entendimento está calcado nas idéias de Cândido Rangel Dinamarco (DINAMARCO, Cândido
Rangel. Op. cit. 2004. p. 301.), José Roberto dos Santos Bedaque (BEDAQUE, José Roberto dos
Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 266.) e de
Rodrigo da Cunha Lima Freire (FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Condições da ação: enfoque
sobre o interesse de agir no processo civil brasileiro. São Paulo: RT, 1999. p. 112).
87
Para Barbosa Moreira, a legitimação ocorre quando a denominada situação legitimante (modelo
que a lei abstratamente preceitua para a tutela de certo direito) coincidir com a situação deduzida em
juízo. Afirma o jurista: “Para todo e qualquer processo, considerado em relação à lide que por meio
dele se busca compor, cria a lei, explícita ou implicitamente, um esquema subjetivo abstrato, um
modelo ideal que deve ser observado na formação do contraditório. Esse esquema é definido pela
indicação de determinadas situações jurídicas subjetivas, as quais se costuma chamar situações
legitimantes. A cada uma das partes, no modelo geral, corresponde, em princípio, uma situação
legitimante. Há, assim, necessariamente, uma situação legitimante ativa, que corresponde ao autor, e
uma situação legitimante passiva, que corresponde ao réu, além de outras eventuais situações
legitimantes que correspondem aos diversos possíveis intervenientes. [...] Denomina-se legitimação
a coincidência entre a situação jurídica de uma pessoa, tal como resulta da postulação formulada
perante o órgão judicial, e a situação legitimante prevista na lei para a posição processual que a essa
pessoa se atribui, ou que ela mesma pretende assumir.” (BARBOSA MOREIRA, José Carlos.
Apontamentos para um estudo sistemático da legitimação extraordinária. Direito processual civil:
ensaios e pareceres. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. p. 58-59.)
41
pertencente a todos que possam tornar-se titulares de situações jurídicas integradas
na relação jurídica de direito processual art. 1º, CC/02), capacidade de estar em
juízo (atuar como parte em um processo) e capacidade postulatória (necessidade de
representação por advogado para realização dos atos postulatórios). A capacidade
de estar em juízo também se denomina legitimidade ad processum.
Toda pessoa que se acha no pleno exercício dos seus direitos (CPC, art. 7º) tem
capacidade para estar em juízo. Assim, são legitimados ad processum os maiores
de dezoito anos que não se enquadrem em nenhuma das situações previstas pelo
Código Civil como incapacidade (arts. e 4º, CC/02). O menor impúbere e até
mesmo o nascituro, v.g., possuem capacidade de ser parte, porque para esta se
exige que a pessoa tenha aptidão para adquirir direitos e contrair obrigações; o que
não possuem é capacidade para estar em juízo, o que é suprido pela representação
(arts. 7º e 8º).
Verifica-se, portanto, que não que se confundir legitimidade ad processum com
legitimidade ad causam.
Liebman, ao conceituar a legitimidade para agir, fala em pertinência subjetiva da
ação. Vejamos.
A legitimação para agir é, pois, em resumo, a pertinência subjetiva da
ação, isto é, a identidade entre quem a propôs e aquele que,
relativamente à lesão de um direito próprio (que afirma existente),
poderá pretender para si o provimento de tutela jurisdicional pedido
com referência àquele que foi chamado em juízo.
88
É interessante notar que Liebman fala em direito “afirmado”, ou seja, a legitimidade
deve ser analisada em conformidade com a relação de direito material descrita pelo
autor (i.é., “afirmada”). Isso porque essa relação pode se revelar, no desenrolar do
processo e de sua fase probatória, diversa daquela delineada pelo autor na
demanda, ou mesmo inexistente. Entretanto, referida conclusão deve levar à
improcedência do pedido, e não à ilegitimidade da parte.
88
LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Trad. e notas de Cândido R.
Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984, vol. I. p. 159.
42
A legitimidade é requisito a ser verificado tanto em relação ao autor, quanto em
relação ao réu. No que tange ao autor, sendo o mesmo o titular do interesse
substancial afirmado, resta configurada a legitimidade ativa. A legitimidade passiva,
por sua vez, não estará presente se “[...]o autor indicar para figurar como réu no
processo pessoa diversa daquela que, segundo a descrição fática por ele mesmo
feita, participa da relação substancial[...]”.
89
Por fim, devemos apontar que quando há coincidência entre a titularidade da relação
de direito material afirmada e a titularidade da relação de direito processual estamos
diante da legitimação ordinária, que é a regra geral (cf. preceitua o art. 6º do CPC). A
legitimação seria extraordinária, por sua vez, quando o integrante da relação de
direito processual estiver em juízo discutindo, em nome próprio, direito alheio, ou
seja, quando a lei conferir a titularidade da ação a estranho à relação de direito
material afirmada na demanda.
90
Frisamos que, para haver a legitimidade
extraordinária, deverá haver previsão legal.
Como podemos verificar, portanto, a legitimidade também apresenta proximidade
com o mérito da demanda, uma vez que, para se fazer a verificação da existência da
referida condição da ação, é necessário que se verifique elementos da relação
jurídica de direito material que busca a tutela jurisdicional. Essa verificação se
assemelharia a uma análise do mérito. Também analisaremos referido tema em
tópico posterior (3.1).
89
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo:
Malheiros, 2006. p. 280.
90
autores que afirmam que legitimação extraordinária e substituição processual são sinônimos.
Dentre eles podemos citar: DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil.
4. ed. rev. atual. o Paulo: Malheiros Editores, 2004. vol. II. p. 311; ROCHA, José de Albuquerque.
Teoria Geral do Processo. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 181; RODRIGUES, Marcelo Abelha.
Elementos de direito processual civil. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, v.
1. p. 200; .
Barbosa Moreira, entretanto, afirma que somente ocorrerá a substituição processual quando ocorrer a
legitimidade extraordinária exclusiva. A legitimidade extraordinária será exclusiva quando somente o
legitimado extraordinário for titular da ação, ou concorrente, quando o próprio titular do direito material
também conservar a titularidade do direito de ação, em concorrência com o legitimado extraordinário.
(BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Apontamentos para um estudo sistemático da legitimação
extraordinária. Direito processual civil: ensaios e pareceres. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971.). Rodrigo
da Cunha Lima Freire entende ser a substituição processual espécie do gênero legitimação
extraordinária, mas não especifica se a mesma se identificaria com a legitimação extraordinária
exclusiva. (FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Condições da ação: enfoque sobre o interesse de agir
no processo civil brasileiro. São Paulo: RT, 1999. p. 76, nota 34)
43
2.3.3 Interesse processual
O interesse de agir, por sua vez, é caracterizado pela utilidade do provimento
jurisdicional requerido – esse deverá ser útil para o fim do processo.
De fato, Liebman afirma que o “interesse de agir é, em resumo, a relação de
utilidade entre a afirmada lesão de um direito e o provimento de tutela jurisdicional
pedido.”
91
No entanto, devemos estabelecer em que condições resta configurada a
mencionada utilidade e, em conseqüência, o interesse processual. Para tanto, nos
utilizaremos da lição de Cândido Rangel Dinamarco.
Afirma o jurista que a utilidade tem uma feição abstrata, que consiste na
generalizada necessidade da jurisdição. Isso porque a jurisdição é necessária a
todos aqueles que tiverem uma pretensão perante outrem que se negou à
prestação, ou nos casos em que o ordenamento não colocar à disposição do titular
do direito meio para a satisfação voluntária. Nesse ponto, Dinamarco ressalva o
afirmado caráter secundário da jurisdição na doutrina: referida característica de
secundariedade se manifesta nos casos de anterior descumprimento voluntário da
prestação de direito material; todavia, configurará solução primária nos casos de
jurisdição necessária (v.g. as ações constitutivas necessárias, como a destituição de
pátrio poder e a anulação de casamento).
92
No entanto, o Estado somente emite provimento jurisdicional mediante uma utilidade
em concreto para o demandante. Essa utilidade reside na satisfação da pretensão
que não ocorreu voluntariamente, na obtenção do resultado prático equivalente,
91
LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Trad. e notas de Cândido R.
Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984, vol. I. p. 156.
92
DINAMARCO, ndido Rangel. Execução Civil. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2002. pp.
411, 412, 415.
44
caso a vontade do direito tivesse atuado (tutela jurisdicional). Assim, o interesse de
agir reside na utilidade do provimento jurisdicional.
93
A utilidade do provimento, entretanto, não pode ser significativa apenas para o
demandante. Essa utilidade deve também ser conveniente e suficientemente
vantajosa para que suplante os custos advindos da atividade preparatória do
provimento (em dinheiro, trabalho ou sacrifícios).
94
Portanto, “o interesse de agir, como condição da ação, traduz-se, em última análise,
na coincidência entre o interesse do Estado e o do demandante.”
95
Os benefícios a
serem auferidos pelo demandante com a tutela jurisdicional devem, também, trazer
vantagens para o Estado como a pacificação social e a devida atuação da ordem
jurídica. Esse é o legítimo interesse processual de agir que explicita Dinamarco.
96
Por fim, afirma Dinamarco que a verificação da presença do interesse de agir está
condicionada à existência de dois requisitos cumulativos: a necessidade concreta da
atividade jurisdicional e a adequação do provimento e do procedimento almejados.
97
A necessidade concreta se liga à idéia do processo como instrumento secundário,
i.é., só há necessidade, e conseqüentemente, interesse, quando os meios para
satisfação voluntária da pretensão forem negados por aquele que deve a prestação
(lembramos a ressalva nos casos de jurisdição voluntária).
A adequação, por sua vez, implica na correlação entre o provimento desejado e pelo
procedimento eleito e a situação afirmada pelo demandante. Assim, o pedido e a
causa de pedir têm papel primordial na investigação desse requisito.
Em resumo, para que exista a condição da ação a que se costuma
se chamar interesse de agir é preciso que o processo aponte para
um resultado capaz de ser útil ao demandante, removendo o óbice
93
DINAMARCO, Cândido Rangel. Ibid. p. 415-417. Importante salientar que esse conceito de
utilidade é elaborado com atenção ao direito material, e não com total abstração desse, como bem
observa Dinamarco (p. 416).
94
DINAMARCO, Cândido Rangel. Ibid. p. 418-419.
95
DINAMARCO, Cândido Rangel. Ibid. p. 419.
96
DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução Civil. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2002.
p.420.
97
DINAMARCO, Cândido Rangel. Ibid. p.420.
45
posto ao exercício de seu suposto direito, e útil também segundo o
critério do Estado, estando presentes os requisitos da necessidade e
da adequação.
98
Indispensável destacar que Dinamarco foi o primeiro a introduzir a idéia do binômio
necessidade-adequação no direito pátrio
99
, visão que passou a ser adotada por
diversos doutrinadores.
100
Ressaltamos que a idéia exposta não é aceita uniformemente na doutrina.
juristas que preferem falar no interesse processual como resultado do binômio
necessidade-utilidade, incluindo muitas vezes a adequação no conceito de
utilidade.
101
No entanto, entendemos a utilidade como algo maior que a necessidade e a
adequação. Tal qual exposto por Dinamarco, ela mostra diversas facetas e acaba
por abranger não o conceito de adequação, mas também o conceito de
necessidade (v. seu aspecto abstrato). Assim, com base nesse entendimento, para a
existência do interesse a utilidade tem o papel principal, enquanto a necessidade e a
adequação são coadjuvantes. Essas últimas são, na realidade, “idôneos indicadores,
de cuja ausência se conclui com segurança pela inexistência do legítimo
interesse.”
102
Por tais motivos, adotamos as idéias de Dinamarco acerca do
interesse de agir.
98
DINAMARCO, Cândido Rangel. Ibid. p.421.
99
FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Condições da ação: enfoque sobre o interesse de agir no
processo civil brasileiro. São Paulo: RT, 1999. p. 87.
100
Como exemplo, citamos: WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. 3. ed. rev. atual.
São Paulo: Perfil, 2005.; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica
processual. São Paulo: Malheiros, 2006.; GRINOVER, Ada Pellegrini. Condições da ação penal
uma tentativa de revisão. São Paulo: José Bushatsky, 1977.
101
“[...] o interesse processual repousa no binômio utilidade + necessidade(BARBOSA MOREIRA,
José Carlos. Ação declaratória e interesse. Direito processual civil (ensaios e pareceres). Rio de
Janeiro: Borsoi, 1971. p. 17); “[...] o interesse de agir é uma das condições da ação (rectius,
condições de admissibilidade da ação), caracterizada pela necessidade e utilidade da provimento
jurisdicional, demonstradas por pedido idôneo lastreado em fatos e fundamento jurídico hábeis a
provocar a tutela do Estado.” (LOPES, João Batista. Ação declaratória. 3. ed. São Paulo: RT, 1991.
p. 257); “[...]existe interesse processual quando a parte tem necessidade de ir a juízo para alcançar a
tutela pretendida e, ainda, quando essa tutela jurisdicional pode trazer-lhe alguma utilidade, do ponto
de vista prático. Movendo a ão errada ou utilizando-se do procedimento incorreto, o provimento
jurisdicional não lhe será útil, razão pela qual a inadequação procedimental acarreta inexistência do
interesse processual.” (NERY JUNIOR, Nelson. Condições da ação. Revista de Processo, São
Paulo, v.64, 1991. p.37). No mesmo sentido, ver ainda WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades
do processo e da sentença. 5. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: RT, 2004. p. 47.
102
DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução Civil. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2002. p.
421.
46
3 A AUSÊNCIA DAS CONDIÇÕES DA AÇÃO NAS SENTENÇAS
JUDICIAIS
3.1 AS CONDIÇÕES DA AÇÃO E O MÉRITO
Conforme versado no capítulo anterior, o sistema processual vigente adotou a
Teoria Eclética da Ação, de forma que as condições da ação são categoria, distinta
dos pressupostos processuais, cuja verificação é indispensável para que seja
proferida uma sentença de mérito. Entretanto, as condições da ação, tal qual o
mérito da demanda, têm como substrato de seu conteúdo o direito material.
103
Por
esse motivo, se utilizarmos o mesmo método de análise tanto para as condições da
ação, quanto para o mérito, teremos verdadeira confusão entre os objetos de
análise.
Afirma Cleanto Guimarães Siqueira que,
em tema de carência, tão ou mais importante quanto o momento da
verificação de sua ocorrência, é a problemática de se saber, no caso
concreto, se um determinado ponto (afirmado pelo autor) ou uma
dada questão (surgida no curso do procedimento) de fato ou de
direito se enquadra como uma condição da ação (cuja ausência
levará à carência, e à extinção do processo sem julgamento de
mérito, etc.) ou é assunto pertinente à procedência ou à
improcedência do pedido.
104
Forte em tal razão é indispensável realizar verdadeiro corte, com o objetivo de que
possamos identificar precisamente quando se está a analisar as condições da ação,
e quando a análise realizada é do mérito.
Nesse sentido, a análise das condições da ação deve se dar in statu assertionis, i.é.,
no estado das afirmações.
105
Isso quer dizer que se está a verificar se, de acordo
103
Todas as condições da ação buscam no direito material o seu suporte. Sempre cognição da
relação de direito material quando da análise das condições da ão, mas essa cognição representa
diversas feições e intensidades, de acordo com a modalidade de condição investigada.
104
SIQUEIRA, Cleanto Guimarães. A Defesa no Processo Civil: as exceções substanciais no
processo de conhecimento. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. p. 87.
105
Essa concepção das condições da ação parece ser a única compatível com a teoria abstrata. Isto
é, a visão abstrata da ação, que existe independentemente da efetiva existência do direito material
pleiteado por seu intermédio, se a análise da situação da vida permanecer no plano condicional, in
statu assertionis. O autor terá direito ao provimento judicial se preencher essas condições, cujo
47
com o afirmado na petição inicial, a pretensão do autor é em tese admissível. Essa
cognição macroscópica da relação de direito material
106
, na qual o magistrado deve
raciocinar no condicional, pode ser qualificada, no plano vertical, como uma
cognição sumária da situação posta em juízo, enquanto a cognição que leva à
sentença de mérito é, em geral, exauriente.
No que tange ao momento no qual deve ser realizada a análise, afirma Bedaque:
Esse exame, feito no condicional, ocorre normalmente em face da
petição inicial, in statu assertionis. Apenas por exceção se concebe a
análise das condições da ação após esse momento: é que algumas
vezes não há elementos para que tal ocorra naquele instante.
107
Desse modo, regra geral, a verificação das condições da ação deve se dar na
petição inicial. Uma vez que o magistrado tenha ultrapassado esse momento
processual, esta analisando o rito, especialmente se houver instrução
probatória no processo.
Destaca-se que a diferenciação ora enunciada reside na análise a ser realizada
entre condições da ação e mérito, ou seja, numa diferenciação na cognição, e não
propriamente numa diferenciação ontológica entre os mesmos.
A análise das condições da ação pelo método da asserção tem inúmeros adeptos
em sede doutrinária. Podemos citar, sem o objetivo de esgotar, Galeno Lacerda
108
,
Machado Guimarães
109
, Barbosa Moreira
110
, Lopes da Costa
111
, Adroaldo Furtado
exame será feito à luz dos fatos descritos na inicial. Se o juiz realizar cognição profunda sobre as
alegações contidas na petição, após esgotados os meios probatórios, terá, na verdade, proferido
juízo sobre o mérito da questão, acolhendo ou rejeitando a demanda. Mas sempre conferindo a tutela
jurisdicional ao autor ou ao réu, o que implica a pretendida pacificação social.” (BEDAQUE, José
Roberto dos Santos. Direito e Processo. Influência do direito material sobre o processo. 4. ed. rev. e
ampl. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 93.). No mesmo sentido, WATANABE, Kazuo. Da cognição no
processo civil. 3. ed. rev. atual. São Paulo: Perfil, 2005. p. 91-92.
106
Idem. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 240.
107
Idem. Pressupostos processuais e condições da ação. Justitia, São Paulo, v. 53 (156), out./dez.,
1991. p. 54. Indispensável salientar a posição do jurista acerca da impossibilidade da análise do
interesse processual nas ação declaratórias pelo método da asserção.
108
Ainda que confira às condições da ação a qualidade de mérito, em sua narrativa o jurista alude à
sua verificação em tese. Cf. LACERDA, Galeno. Despacho Saneador. ed. Porto Alegre: Fabris,
1990. p. 78.
109
GUIMARÃES, Luiz Machado. Carência de ão. In: Estudos de direito processual civil. Rio de
Janeiro: Jurídica e Universitária, 1969. pp. 102-103.
48
Fabrício
112
, Rodrigo da Cunha Lima Freire
113
, além dos referenciados Bedaque e
Kazuo Watanabe (ver notas 102 e 103).
114
Machado Guimarães, por sua vez, afirma que Liebman preconizava que a análise
das condições da ação deveria se dar pelo método da asserção. Tal afirmativa tem
por base notas tomadas em conferência dada por Liebman em 1949, em que o
mesmo teria sustentado a mencionada posição. São as palavras de Machado
Guimarães acerca da questão:
O Prof. Liebman, em memorável conferência pronunciada em 29 de
setembro de 1949, a cujas notas taquigráficas temos recorrido mais
de uma vez, ensina que todo problema, quer de interesse
processual, quer de legitimação ad causam, deve ser proposto e
resolvido admitindo-se, provisoriamente e em via hipotética, que as
afirmações do autor sejam verdadeiras; nesta base é que se pode
discutir e resolver a questão pura da legitimação ou do interesse.
Quer isto dizer que, se da contestação do réu surge a dúvida sobre a
veracidade das afirmações feitas pelo autor e é necessário fazer-se
uma instrução, não mais um problema de legitimação ou de
interesse, já é um problema de mérito.”
115
Dessa concepção levantada por Machado Guimarães discorda frontalmente
Dinamarco, que defende a existência real das condições da ação (cf. nota 110)
116
, e
afirma que Liebman é adepto desse método de análise das mesmas. Esse impasse
110
BARBOSA MOREIRA, JoCarlos. Apontamentos para um estudo sistemático da legitimação
extraordinária. Direito processual civil: ensaios e pareceres. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. pp. 59-
60. V. também BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Legitimação para agir. Indeferimento de petição
inicial. In: Temas de direito processual, 1ª série. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 200.
111
LOPES DA COSTA, Alfredo Araújo. A carência de ação, especialmente em relação à legitimação
para a causa. Revista de direito processual civil, São Paulo, v. 3, 1962. p. 5 e ss.
112
FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Extinção do processo e mérito da causa. Revista de Processo,
São Paulo, v. 58, abr.-jun./1990. p.16.
113
FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Condições da ação: enfoque sobre o interesse de agir no
processo civil brasileiro. São Paulo: RT, 1999. pp. 45 e ss.
114
Importante salientar que Dinamarco discorda frontalmente da utilização da teoria da asserção
como método de verificação das condições da ação, sendo adepto da denominada teoria da
existência real das condições da ação, à qual dedicou tópico em sua obra. Cf. DINAMARCO, Cândido
Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 4. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2004, vol.
II. p. 313. Sobre o tema v. também Idem. Execução Civil. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros,
2002.
115
GUIMARÃES, Luiz Machado. Carência de Ação. In: Estudos de direito processual civil. Rio de
Janeiro: Jurídica e Universitária, 1969. p. 103.
116
Sobre a posição de Dinamarco, importante ver ainda BEDAQUE, José Roberto dos Santos.
Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 251, nota 51.
49
levou Kazuo Watanabe a concluir que Liebman havia reformulado a afirmação feita
na conferência que menciona Machado Guimarães.
117
À parte da adesão ou não de Liebman à descrita teoria da asserção, entendemos
ser a mesma o todo mais eficaz na distinção entre a análise das condições da
ação e do rito, uma vez que, como mencionamos, ambos buscam o substrato
de seu conteúdo na relação de direito material.
No entanto, a teoria da asserção representa mero método de análise das condições
da ação, não representando diferenciação ontológica entre essas e o mérito.
Bedaque aponta dois grandes problemas no que tange à diferenciação entre as
condições da ação e o mérito da demanda:
Primeiro, saber se realmente há diferença ontológica entre os
exames sumário (condições da ação) e exauriente (mérito) da
relação material, ou se ambos possuem a mesma natureza. Depois,
verificar se o resultado da análise superficial é apto a adquirir algum
grau de imutabilidade.
118
Portanto, cabe ainda verificar se a diferença entre as condições da ação e o mérito
de fato existe, uma vez que seu conteúdo tem origem comum.
A possibilidade jurídica da demanda, conforme exposto, se atendida quando a
providência pedida não esteja em tese vedada no ordenamento jurídico. Entretanto,
referida condição não se verifica somente quando houver vedação expressa à
demanda no ordenamento jurídico.
Casos em que o direito material prescreve elementos cuja presença deve ser
verificada em concreto para a efetiva ocorrência do efeito vinculado. Essa situação
legal é semelhante, se não idêntica, a um tipo legal, ainda que previsto pelo direito
civil. Exemplo clássico dessa situação temos no ilícito civil, que exige, para sua
117
Informa Cândido R. Dinamarco que para Liebman ‘as condições da ação não resultam da simples
alegação do autor, mas da verdadeira situação trazida a julgamento’ (Execução civil, cit., p. 139, nota
53), o que revela que, posteriormente, o eminente processualista reformulara a colocação feita na
conferência mencionada por Machado Guimarães.” (WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo
civil. 3. ed. rev. atual. São Paulo: Perfil, 2005. p. 93).
118
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São
Paulo: Malheiros, 2006. p. 255.
50
configuração, a verificação de dolo ou culpa do agente. Caso inexistentes esses
requisitos, e não se trate de uma das hipóteses de responsabilidade objetiva, não
existirá ato ilícito, e, por conseguinte, dever de indenizar.
119
Nos casos mencionados, a constatação da subsunção do fato à norma depende da
verificação concreta de todos os elementos descritos abstratamente na demanda – a
rejeição dessa última independe da análise sobre a veracidade dos fatos. Resulta
nesse ponto grande parte da similaridade da sentença de carência de ação por
impossibilidade da demanda com o juízo de improcedência com fundamento em
questão exclusivamente de direito.
Ademais, se adiciona a essa similitude o fato de que quando vedação no
ordenamento jurídico à demanda (ou quando a mesma não preenche os requisitos
constantes do “tipo legal”), o indeferimento liminar da petição inicial, com a
conseqüente extinção do processo por impossibilidade jurídica, implica na solução
total da lide, com a pacificação definitiva do conflito.
Pelos citados motivos, não diferença ontológica entre a sentença de carência por
impossibilidade jurídica da demanda, e a sentença de mérito.
Pedido juridicamente impossível equivale substancialmente ao
julgamento antecipado com fundamento no art. 330, I, do CPC. A
pretensão deduzida pelo autor não encontra amparo no ordenamento
jurídico, e, por isso, deve ser rejeitada.
120
A impossibilidade jurídica do pedido, portanto, é uma improcedência evidente,
macroscópica, que, por ser notada no limiar do processo, torna desnecessário o
prolongamento desse. A impossibilidade judica do pedido, dessa forma, é uma
improcedência prima facie.
A improcedência macroscópica é apenas a forma mais avultante de
improcedência, e, por isso, deve ser tratada com mais rigor – como já
119
Ibid. p. 261.
120
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. o
Paulo: Malheiros, 2006. p. 264. Interessante notar que Bedaque alterou seu posicionamento, firmado
em Idem. Pressupostos processuais e condições da ação. Justitia, São Paulo, v. 53 (156), 1991. p.
55.
51
acontece com os casos de decadência legal e prescrição em favor de
incapaz. O caso é de improcedência prima facie.
121
Portanto, a única diferença que podemos apontar entre a sentença que declara a
demanda juridicamente impossível e a sentença de improcedência, uma vez que
ambas implicam julgamento total da lide, reside no plano processual: o juiz está
autorizado a indeferir a inicial e a conhecer de ofício a matéria em qualquer instância
(art. 267, VI, e art. 295, I, e parágrafo único, III, todos do CPC).
A identificação da impossibilidade jurídica da demanda com o mérito é defendida por
Galeno Lacerda, para quem referida condição da ação fulmina o pedido.
122
O
mencionado jurista é seguido em seu posicionamento por Arakén de Assis
123
,
Adroaldo Furtado Fabrício
124
, Teresa Arruda Alvim Wambier
125
e Donaldo Armelin
126
,
dentre outros.
Galeno Lacerda também considera que a sentença de carência de ação por
ilegitimidade ad causam é sentença de mérito, pois resolve negativamente o pedido,
e, portanto, a lide. Isso porque a “ilegitimidade para a causa vicia também o pedido,
por inaptidão do sujeito em relação ao objeto.”
127
O mesmo entendimento foi seguido por Adroaldo Furtado Fabrício, que, acerca da
legitimidade ad causam, afirma:
Relativamente a esta “condição”, parece ainda mais difícil sustentar-
se que seja matéria estranha ao mérito. Efetivamente, ao sentenciar
que o autor não tem legitimatio ad causam, denega-lhe o juiz,
claríssimamente, o bem jurídico a que aspirava, posto que à sua
demanda responde: Se é que existe o direito subjetivo invocado,
121
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação: o juízo de
admissibilidade do processo. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 226. V. também DIDIER JUNIOR, Fredie.
Um réquiem às condições da ação. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 96, n. 351, p. 65/82, jul./set.,
2000.
122
LACERDA, Galeno. Despacho Saneador. 3. ed. Porto Alegre: Fabris, 1990. p. 88.
123
ASSIS, Arakén de. Sobre o Método em Processo Civil. In: Doutrina e Prática do Processo Civil
Contemporâneo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. pp. 58-59.
124
FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Extinção do processo e mérito da causa. Revista de Processo, São
Paulo, v. 58, abr.-jun./1990. pp.17-18.
125
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. 5. ed. rev. atual. ampl.
São Paulo: RT, 2004. pp. 54-55.
126
ARMELIN, Donaldo. Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro. São Paulo:
RT, 1979. p. 53.
127
LACERDA, Galeno. Despacho Saneador. 3. ed. Porto Alegre: Fabris, 1990. p. 88.
52
dele não és titular”. Proclamando o juiz, por outro lado, ilegitimidade
passiva ad causam, declara que, em face do réu, não tem o autor
razão ou direito. Em qualquer dos casos, clara prestação
jurisdicional de mérito, desfavorável ao autor vale dizer,
sentença de improcedência.
128
[grifo nosso]
Arakén de Assis, por sua vez, que havia externado opinião acerca da inclusão de
todas as condições da ação no mérito da causa
129
, acabou por alterar seu
entendimento para sustentar que a legitimidade para a causa implica mera
capacidade para conduzir o processo. Afirma o jurista que na verificação da
condição da ação em voga, o magistrado limita-se
[...] a identificar, a partir dos dados ministrados pelo direito material,
sempre in statu assertionis, aquelas pessoas habilitadas a conduzir o
processo, relativamente ao objeto litigioso alegado. Aos esquemas
abstratos, traçados na lei, que geram tal capacidade chama-se de
situações legitimadoras. Portanto, a dissociação entre o sujeito da
lide e o do processo, objeto do presente estudo e adiante elucidada,
evidencia a verdadeira natureza da legitimidade, bastando enuncia-la
para tal finalidade. Ninguém se atreverá a reputar respeitante ao
mérito eventual juízo quanto à inexistência, em determinado caso
concreto, do título legal para alguém pleitear em juízo alheio.
130
Desse modo, Arakén de Assis, muito embora reconheça que a legitimidade ad
causam encontra o fundamento de seu conteúdo no direito material, a considera
estranha ao mérito.
Não podemos concordar com as idéias do mencionado jurista. Todavia, também não
é possível aquiescer com a afirmação de que a legitimidade para a causa integra o
mérito, pura e simplesmente.
Casos em que, para aferir a legitimidade ad causam, não será necessária a
análise de elementos da relação de direito material. Isso ocorre nas situações de
legitimação extraordinária, nas quais o magistrado deve verificar se há autorização
128
FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Extinção do processo e mérito da causa. Revista de Processo,
São Paulo, v. 58, abr.-jun./1990. p. 19.
129
“[...] a teoria de Liebman, tão frágil, desafia a falsificação em um ponto crucial: a exclusão das
‘condições’ da ação do mérito. [...] Assim, as condições da ação se situam no mérito da causa, como
bem apanhou Galeno Lacerda, talvez o primeiro crítico de Liebman e, sem dúvida, um dos mais
autorizados.” (ASSIS, Arakén de. Sobre o Método em Processo Civil. In: Doutrina e Prática do
Processo Civil Contemporâneo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. pp. 58-59.)
130
Idem. Substituição Processual. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo, n. 9,
dez./2003. p. 10.)
53
legal para que a parte defenda, em nome próprio, direito alheio. Do mesmo modo,
caso a lei exija condição jurídica específica para que a parte integre a relação
jurídica processual (v.g. casado, para a ação de separação; cidadão, para a ação
popular), a verificação dessa independe da análise da relação de direito material.
131
Ademais, a extinção do processo por ilegitimidade para a causa não oferece uma
resposta integral à pretensão, i.é., não possui conteúdo de mérito propriamente dito,
pois não rejeita nem acolhe o pedido. No entanto, a sentença de carência por
ilegitimidade e a sentença de improcedência que reconhece a titularidade do direito
discutido a terceiro não apresentam diferença substancial. Bedaque levanta
importante exemplo que aborda a questão:
Se o autor pede a condenação do réu ao pagamento de importância
por este devida a terceiro, será julgado carecedor da ão por
ilegitimidade ativa. Caso ele afirme ser o credor e a instrução revele
que a obrigação foi contraída por terceiro, teremos sentença de
improcedência.
Não parece haver diferença substancial entre concluir pela
inexistência do crédito com os próprios dados da inicial ou com os
elementos probatórios. A distinção está simplesmente na maior ou
menor dificuldade para se chegar à conclusão de que o autor o
tem direito à tutela condenatória.
132
Percebe-se, então, que na declaração de carência por ilegitimidade não ocorre
exame integral do litígio pois não necessidade dele para que se verifique que o
autor não é titular do direito que procurava ver tutelado. Entretanto, apesar de não
haver uma resposta de rito (ao pedido formulado), uma conclusão acerca
daquela demanda deduzida em juízo.
Assim, a sentença de carência produz eficácia extraprocessual, sendo apta a
colocar fim na controvérsia que foi levada ao judiciário: o juiz elimina de uma vez por
todas a possibilidade de se discutir a respeito do nculo entre a parte e a relação
jurídica. Afinal, o pedido traz em si a porção da relação jurídica de direito material
que o demandante optou por deduzir em juízo toda a situação de direito material
que não foi submetida ao processo não integra o mérito.
131
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Legitimação passiva: critério de aferição. Mérito. Direito
Aplicado II (Pareceres). Rio de Janeiro: Forense, 2000. pp. 375-380; e BEDAQUE, José Roberto dos
Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2006. pp. 278-279.
132
Ibid. pp. 286-287.
54
Portanto, ainda que não se possa reconhecer à sentença de carência por
ilegitimidade ad causam a natureza de sentença de mérito – pois não elimina
integralmente a possível lide, ela está apta a adquirir o caráter de definitiva. Esse
tema será discutido posteriormente.
A análise do interesse processual, por sua vez, é mais complexa do que a análise
das demais condições da ação, realizadas anteriormente. Isso porque, conforme a
faceta do interesse processual verificada, diversas serão as conclusões acerca de
sua proximidade, ou não, com o mérito.
133
-
134
O interesse processual implica utilidade da tutela jurisdicional, a qual deve ser
aferida objetivamente, mediante a verificação da necessidade dessa tutela, e de sua
adequação à eliminação da crise de direito material.
Visto sob o ângulo da adequação, o interesse processual tem sua verificação
desvinculada de elementos da relação de direito substancial. A análise se resume à
conformação em abstrato da crise de direito material à tutela jurisdicional escolhida.
Essa conformação deve ser desconsiderada caso não seja identificada
oportunamente, e se o julgamento de mérito se mostre possível, sem danos às
partes, por se tratar de questão unicamente de forma. A solução de mérito, in casu,
é certamente mais vantajosa para o sistema.
135
133
Galeno Lacerda demonstrou certa confusão ao tratar da condição da ação em tela, na medida em
que não distingue o interesse processual do interesse substancial. Afirma o jurista que “Exigindo-se
como condição da ação o interêsse substancial, não se está, portanto, aderindo à teoria do direito
concreto, pois nem sempre a titularidade do interêsse coincide com a do direito subjetivo material”.
(LACERDA, Galeno. Despacho Saneador. 3. ed. Porto Alegre: Fabris, 1990. p. 91.) de todo modo,
para Galeno Lacerda, a decisão acerca do interesse é de mérito, e faz coisa julgada material.
134
Para Adroaldo Furtado Fabrício, o interesse processual deveria integrar a categoria dos
pressupostos processuais, pois tem maior relação com o exercício da jurisdição do que com a ação.
Afirma ele “Antes de faltar à ação algum requisito, a jurisdição mesma está impossibilitada de mover-
se por tratar-se de assunto estranho à sua órbita de atuação.
[...] colocada a lide como pressuposto do processo, não cabe falar-se desse requisito do interesse
processual, eis que a idéia da pretensão resistida por si mesma evidencia a necessidade da
prestação jurisdicional.
Parece-nos que essa suposta condição da ação, se é que melhor não se acomodaria entre os
pressupostos processuais, poder-se-ia enquadrar se esforço no meritum causae.” (FABRÍCIO,
Adroaldo Furtado. Extinção do processo e mérito da causa. Revista de Processo, São Paulo, v. 58,
abr.-jun./1990. p. 20.)
135
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São
Paulo: Malheiros, 2006. pp. 359, 402.
55
No que tange à necessidade da tutela, o exame da verificação do interesse
processual se torna complexo. Nesse âmbito, a análise deve ser feita de modo
diverso, conforme seja diversa a tutela jurisdicional pretendida: condenatória,
constitutiva ou declaratória.
Sobre o tema, José Roberto dos Santos Bedaque fez importante construção, que
adotamos no presente trabalho, e cujas idéias principais passaremos a expor. Afirma
o jurista sobre a verificação do interesse de agir:
Nas ações condenatórias e constitutivas, a necessidade da tutela
jurisdicional surgiria com a simples afirmação do próprio direito
material a ser efetivado no processo. na demanda declaratória,
como o autor pretende obter a certeza jurídica, não é suficiente a
afirmação da existência do direito. É preciso esteja presente uma
situação concreta de incerteza, que não se confunde com a
discussão sobre a existência do direito material. Exige-se, para a
propositura da demanda declaratória, mais do que a mera afirmação
da existência ou inexistência de um direito.
136
Desse modo, tanto nas demandas condenatórias, quanto nas demandas
constitutivas, o interesse de agir nada mais é do que um aspecto do direito material
deduzido em juízo. Nesse sentido, a mencionada condição da ação somente se
diferencia do mérito pela profundidade da cognição.
137
Nas ações constitutivas, portanto, a necessidade se confunde com o próprio direito
potestativo de obter modificação jurídica. Ressalvam-se, oportunamente, os casos
de ações constitutivas de “jurisdição necessária”, nos quais a necessidade foi
determinada pela própria lei. No que tange às ações constitutivas não-necessárias, o
fato constitutivo do direito mesmo é o responsável pela verificação da necessidade
da tutela ou não. A única forma de diferenciação entre condição da ação e mérito é
mesmo a análise em asserção.
Numa ação condenatória, do mesmo modo, o interesse se verifica pela existência da
exigibilidade e do inadimplemento da dívida, conforme se extrair da petição inicial.
Se o autor afirma inexigível (e tomamos a inexigibilidade como exemplo, pois ela
136
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. o
Paulo: Malheiros, 2006. pp. 305-306.
137
Ibid. pp. 298-299.
56
abrange o inadimplemento) a dívida já na inicial, haverá carência de ação por
inexistência de interesse processual. Caso a inexigibilidade, negada na inicial, venha
a ser verificada após a impugnação pelo réu, e instrução probatória, o juiz declarará
a inexistência de crise de direito material, decidindo essa demanda, que não poderá
mais ser discutida pelo menos enquanto não se implementar a exigibilidade ou o
inadimplemento.
Dessa forma, mesmo que não se possa reconhecer à sentença de carência por
ausência de interesse processual a natureza de sentença de mérito, vez que não
elimina integralmente a possível lide, ela está apta a adquirir certo grau de
imutabilidade.
Nas demandas declaratórias, entretanto, a situação é distinta.
138
O que se busca
sanar, com a tutela declaratória, é uma crise de certeza acerca da existência ou
inexistência de uma relação jurídica (ou, excepcionalmente, de um fato, na caso da
autenticidade ou falsidade de documento, prevista no art. 4º, II, do CPC).
A necessidade, nos casos de tutelas declaratórias, está configurado na dúvida
objetiva, gerada pelo comportamento de alguém (o réu), que potencialmente poderá
causar prejuízo ao autor. O interesse de agir, portanto, é constituído por fatos
estranhos à relação material que se almeja seja objeto de declaração.
[...] a dúvida objetiva é um dos fatos integrantes da causa de pedir,
mas estranho à constituição do direito. A falta de prova a respeito
levaria à carência, cuja eficácia não atinge o plano jurídico material.
Nenhum dos aspectos da relação da vida foi objeto de exame.
139
Desse modo, quando tratamos de demandas declaratórias, ao contrário das
constitutivas e das condenatórias (e ao contrário do reconhecimento das demais
condições da ação), não óbice à declaração de carência por falta de interesse
quando existente em tese o direito substancial; e, por outro lado, também se mostra
138
Ibid. pp. 307-334.
139
Ibid. p. 312.
57
possível a improcedência quando verificado o estado de incerteza. Referida situação
contém verdadeiro paradoxo, conforme passaremos a revelar.
140
Se o demandante pleiteia declaração de existência de relação jurídica
141
,
descrevendo os fatos e o direito substancial a que esses se subsumem, mas silencia
sobre a recusa do réu no reconhecimento espontâneo da referida relação – e,
embora intimado, não emende a inicial. O caso é de carência de ação por ausência
de interesse processual, uma vez que o processo se revelou de plano
desnecessário, devendo a inicial ser indeferida, conforme determina o art. 295, III,
do CPC.
O problema surge quando as providências ora mencionadas (indeferimento da
inicial) o são tomadas no momento adequado, ou mesmo se o autor afirme existir
dúvida objetiva, e o réu, citado, apresentar contestação. Nesse caso, poderão
ocorrer as seguintes alternativas:
A) Somente a existência da relação jurídica é impugnada, tornando-se controvertida.
Desse modo, está o réu a reconhecer a crise de certeza, e a carência deixa de
existir.
B) O réu nega somente a crise de certeza, o o direito do autor. Nesse caso, o réu
estará necessariamente reconhecendo que não dúvida sobre a existência da
relação jurídica alegada pelo autor. Esse ponto se tornou incontroverso.
Produzida a prova sobre o ponto controvertido, qual seja a crise de certeza, poderá
o magistrado concluir pela inexistência de dúvida objetiva. A solução usual nesse
caso, pela teoria da asserção, seria a improcedência do pedido. Todavia, pela
peculiaridade do interesse de agir na tutela declaratória, que não está informado por
elementos da relação de direito material, mesmo após produção probatória, a
solução correta será a extinção do processo por carência de ação.
140
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. o
Paulo: Malheiros, 2006. p. 313.
141
Destaca-se que não há diferenças significativas nos efeitos descritos no que tange à sua aplicação
às demandas declaratórias de inexistência de relação jurídica, tendo a tutela declaratória de
existência sido tomada a título exemplificativo. Sobre a aplicação das idéias nas declaratórias de
inexistência, v. Ibid. pp. 322-324.
58
Entretanto, devemos tomar em conta que o processo, nas condições descritas,
reúne todos os elementos necessários a formar juízo acerca da própria existência do
direito material, que, repita-se, foi tornado incontroverso pela ausência de
impugnação do réu. Assim, não óbices, que não a própria técnica, a que o
processo atinja seu efeito prático: a sentença declaratória de existência da relação
jurídica afirmada.
A extinção sem exame do mérito por não estar configurada a crise de
certeza se justifica se a ausência da condição da ação for
detectada logo no início, quando ainda não se desenvolveram
atividades voltadas à demonstração da situação substancial
afirmada. Exaurida a cognição neste plano, eventual vício
relacionado à forma não pode impedir que a sentença produza
efeitos substanciais.
Se o u limita-se a impugnar crise de certeza, o fato constitutivo da
relação material fica incontroverso, sendo desnecessário prová-lo
(CPC, art. 334, III). Admissível a antecipação de efeitos práticos da
tutela declaratória (CPC, art. 273, § 6º). Ao final, ainda que
inexistente a prova da resistência indevida, não pode ser desprezada
a situação de certeza resultante do processo quanto à relação de
direito material.
142
Dessa forma, como medida que visa a própria atuação instrumental do processo,
devemos valorizar os fins do processo, em detrimento da técnica. Isso implica em
superar a carência de ação e proferir sentença de mérito, ainda que não exista real
litígio a ser julgado. Ao autor será conferido o bem almejado a certeza jurídica;
mas sobre ele recairá o ônus sucumbencial, por ter desnecessariamente provocado
a atividade jurisdicional. O processo, na qualidade de meio de atuação do direito
substancial, acabou por extrair de sua atuação desnecessária algum efeito útil no
plano material.
Pelo exposto, podemos perceber que as condições da ação não são categoria
estranha ao mérito. Por outro lado, também não é possível afirmar que elas integram
o mérito, generalizadamente. A análise de cada uma das condições da ação se
relaciona com a relação jurídica de direito material de uma forma particularizada, o
que pode sim gerar uma decisão total de mérito, ou uma decisão que o resolva
apenas parcialmente, conforme destacamos ao longo da narrativa.
142
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São
Paulo: Malheiros Editores, 2006. pp. 314-315.
59
Cabe agora descobrir qual é o tratamento dado pelo sistema processual brasileiro à
sentença de carência, e como essa se adequa à concepção de ação exposta no
capítulo 2.
3.2 A SENTENÇA DE CARÊNCIA DE AÇÃO: SUA POSIÇÃO EM FACE
DAS REGRAS JURÍDICAS CONSTITUCIONAIS
De acordo com o sistema processual vigente, a ausência de uma ou mais condições
da ação induz carência de ação. A inicial, então, deverá ser indeferida, com fulcro no
art. 295 do CPC, ou, caso tal providência não seja tomada, deverá o processo ser
extinto sem julgamento de mérito, por meio de sentença terminativa, nos termos do
art. 267, VI, e art. 329, do mesmo código.
Destaca-se que, ressalvada a nossa adoção pela teoria da asserção como método
de análise das condições da ação, pelo sistema pátrio a carência poderá ser
declarada de ofício, em qualquer grau de jurisdição (art. 267, § 3º; art. 301, § 4º,
ambos do CPC).
Ademais, a extinção do processo por carência de ação tem por conseqüência a
possibilidade de repropositura da demanda (art. 468 do CPC) e a vedação da ação
rescisória (art. 485 do CPC).
Indispensável salientar, ainda, que, conforme disserta Liebman, as condições da
ação não são somente condições para que se obtenha uma sentença de mérito,
mas também representam requisitos de existência da ação e do exercício da
atividade jurisdicional em cada caso concreto. Em outras palavras, no processo em
que não foram preenchidas as condições da ação, não existiu ação nem atividade
jurisdicional. Nesse caso, não direito de ação processual, e a atividade exercida
pelo magistrado não pode ser caracterizada como jurisdicional.
143
Assim, na disciplina atual, a ação constitucional é mero pressuposto remoto sobre
que se assenta a ação processual. A construção liebmaniana acabou por implicar na
143
LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Trad. e notas de Cândido R.
Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1984, vol. I. p. 150 e 154.
60
concepção de um direito de ação condicionado, com vida própria em relação à
garantia constitucional da ação.
Em virtude das dúvidas geradas pela referida construção, como o fato de não existir
sequer processo no caso de declaração de carência, ou da natureza da atividade do
magistrado não se enquadrar na clássica tripartição dos atos do Estado em
legislativo, administrativo e jurisdicional
144
, doutrinadores optaram por denominar as
condições da ação como “condições do legítimo exercício do direito de ação”
145
, ou
“condições para o julgamento do mérito da causa”
146
, considerando que o direito de
ação constitucional já foi exercido com a propositura da demanda.
No entanto, a concepção vigente, de inspiração liebmaniana, evidencia um contra
senso, pois o art. 5º, XXXV, da CF/88 confere o direito de ação, na qualidade de
garantia constitucional, a todos indistintamente, de forma dissociada da imposição
de quaisquer requisitos ou condições, conforme já analisado.
A ação, entretanto, não é uma garantia vazia, de simples acesso ao Judiciário. É
uma garantia substancial a um processo justo, ou seja, a todos os meios que
garantam a obtenção da tutela jurisdicional apta à pacificação do conflito.
Conforme explicitado, somente têm acesso à tutela jurisdicional aqueles que são
titulares do direito afirmado. Todavia, todos possuem, indistintamente, mediante a
simples afirmação de um direito ameaçado ou lesado, o poder ou direito de se valer
dos meios assegurados constitucionalmente para a obtenção de tutela jurisdicional.
O exercício da ação, desse modo, “dá origem ao direito de obter pronunciamento do
juiz sobre o pedido de tutela, independentemente do conteúdo da decisão final.”
147
Em última análise, os meios garantidores da obtenção da tutela jurisdicional se
consubstanciam no devido processo constitucional.
144
ASSIS, Arakén de. Sobre o Método em Processo Civil. In: Doutrina e Prática do Processo Civil
Contemporâneo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 57.
145
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Legitimação para agir. Indeferimento da inicial. Temas de
direito processual. 1ª série. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 199.
146
WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. 3. ed. rev. atual. São Paulo: Perfil, 2005. p.
91.
147
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. o
Paulo: Malheiros, 2006. p. 230.
61
Em vista do exposto, não subsiste a diferença entre um direito de ação
constitucional, e um direito de ação processual. A ação é plena e suficientemente
prevista na Constituição Federal. Qualquer previsão infraconstitucional acerca do
instituto deve estar de acordo com a configuração que lhe deu a CF/88, sendo que
as regras acerca do tema inseridas no Código de Processo Civil devem ser
entendidas como mera técnica processual, destinadas a dar melhor alcance ao
direito de ação.
Essa é a forma pela qual buscamos encarar as condições da ação: como mera
técnica processual. É interessante para o sistema que o processo tenha um filtro em
seu limiar para que demandas que evidentemente não venham a ter um resultado de
tutela jurisdicional positiva (benéfica para o autor) não prolonguem o curso
procedimental, sobretudo em sua fase mais custosa, a probatória. Tal medida
representa clara e necessária atuação do princípio da economia processual.
É interessante, nesse ponto, retomar as conclusões obtidas no tópico anterior: todas
as condições da ação buscam no direito material o seu suporte. Sempre há cognição
da relação de direito material quando da análise das condições da ação, mas essa
cognição representa diversas feições e intensidades, com diferentes efeitos
substanciais extraprocessuais, de acordo com a modalidade de condição
investigada. Desse modo, não podemos concordar com a idéia de que as condições
da ação o categoria totalmente indistinta do mérito, razão pela qual deveriam ser
extirpadas do sistema.
148
-
149
De outra forma, também não é possível concordar com
a idéia de que sejam de fato condições da ação. E as explicações advindas dos
termos condições para o legítimo exercício da ação, ou condições para o exame de
mérito, não satisfazem.
As condições da ação revelam grande utilidade como técnica processual, a qual
reside no seu regime processual. Assim, em se tratando de reconhecimento de
carência de ação, a petição inicial deverá ser indeferida de plano (art. 295, CPC), ou,
148
PASSOS, José Joaquim Calmon de. A ação no direito processual civil brasileiro. Bahia:
Imprensa Oficial, 1960; DIDIER, Fredie. Um réquiem às condições da ão. Revista Forense, Rio de
Janeiro, v. 96, n. 351, p. 65/82, jul./set., 2000.
149
“[...] a afirmação taxativa de que inexiste qualquer diferença entre sentença de carência e de
improcedência revela má compreensão do instituto. Trata-se de conclusão simplista, resultante da
ausência de reflexão adequada do fenômeno.” (BEDAQUE, José Roberto dos Santos.Op. cit. p. 302.)
62
caso tal providência não seja tomada, deverá o processo ser extinto sem julgamento
de mérito, por meio de sentença terminativa, nos termos do art. 267, VI, e art. 329,
do mesmo código.
Desse modo, caso fizermos a opção de tratar da situação em que, mediante
cognição superficial, é possível verificar a inutilidade do prosseguimento do
processo, como mérito propriamente dito, o tratamento legal diferenciado conferido
pelo legislador a essa situação não poderá ser aplicado, e o processo deverá seguir
todo o trâmite procedimental, com instrução probatória inclusive. Apesar de ambas
terem efeitos substanciais, sua distinção se mostra útil do ponto de vista da técnica
processual (mesmo levando em conta as hipóteses de sentenças proferidas em
virtude da previsão do art. 285A do CPC).
Portanto, não se trata de condições da ação. A ação é um direito autônomo e
abstrato, previsto constitucionalmente, cujo conteúdo se compõe do direito ao devido
processo constitucional. O exercício da ação se inicia com a propositura da
demanda, e prossegue com os demais atos processuais que impliquem no exercício
do devido processo constitucional, em nada se relacionando com essa categoria
cognitiva da relação material que estamos analisando. Assim, o que se
convencionou denominar condições da ação, na realidade, constitui análise
superficial e preliminar da relação material, que produz efeitos substanciais
extraprocessuais, cujo objetivo é evitar o prolongamento e a proliferação de
demandas que evidentemente não obterão tutela jurisdicional positiva. Uma vez
revelada sua utilidade para o processo na forma como estão reguladas pelo CPC,
optamos por readequar seu papel ao de técnica processual.
Resta determinar, uma vez que as decisões advindas dessa cognição superficial da
relação material produzem efeitos substancias extraprocessuais, se estão as
mesmas aptas a adquirir imutabilidade, e em que grau.
3.3 INCIDÊNCIA DE COISA JULGADA MATERIAL NAS SENTENÇAS
DE CARÊNCIA DE AÇÃO
63
Segundo o Código de Processo Civil atual, somente as sentenças de mérito
produzem coisa julgada material. As sentenças terminativas, que não se pronunciam
sobre a procedência ou a improcedência do pedido, são aptas apenas à produção
da coisa julgada formal. Isso porque a coisa julgada formal é imutabilidade que
somente recai sobre o efeito (ou comando) da sentença de extinguir o processo. A
coisa julgada material, por sua vez, imuniza os efeitos substanciais da sentença.
Ressalta-se que, como conseqüências da extinção do processo sem julgamento de
mérito por carência de ação estão a possibilidade de repropositura da demanda, e a
não admissibilidade de ação rescisória da respectiva sentença.
No entanto, conforme exposto, as sentenças declaratórias de carência têm eficácia
material extraprocessual. As sentenças de carência por ilegitimidade de parte, e por
ausência de interesse processual apresentam solução parcial da lide, enquanto a
impossibilidade jurídica da demanda implica na definição completa do litígio no início
do processo.
De todo modo, os efeitos materiais produzidos pela decisão de carência não podem
ser ignorados. Ainda que a solução da lide não seja total, vez que a procedência do
pedido não foi objeto de análise, não se pode negar que a demanda efetivamente
deduzida em juízo (e não a chamada lide possível) teve um resultado que deve
tornar-se definitivo. Se a solução da lide é total, no caso de impossibilidade jurídica,
a sua imutabilidade é inquestionável.
Desse modo, se a coisa julgada material é a imutabilidade dos efeitos substanciais
da sentença, não obstante o que a lei processual civil preceitua, a sentença
declaratória de carência de ação é apta a produzi-la.
Muito embora não concorde com uma assimilação entre condições da ação e mérito
da demanda, Cândido Rangel Dinamarco reconhece a incidência de coisa julgada
material nas sentenças de carência de ação. Afirma o doutrinador sobre o tema:
Sustento que coisa julgada sobre as sentenças que
pronunciam a carência de ação, mas não por assimilar qualquer
das causas de carência ao meritum causae. Dado que a negativa do
64
concreto poder de exigir o provimento de mérito apóia-se sempre em
raízes jurídico-substanciais (sem se confundir com elas), essas
sentenças definem uma situação que transcende a vida e as
vicissitudes do processo que se extingue, atingindo uma situação
jurídica exterior e anterior a este (a ação). Tanto quanto no
julgamento do mérito, contém-se nessas sentenças a definição de
situações que poderiam repetir-se em outros processos, não fora a
autoridade rei judicatae. Minha opinião é minoritária.
José Roberto dos Santos Bedaque concorda com a opinião exarada por Dinamarco,
afirmando que, “nos limites do juízo de valor realizado no plano material a sentença
deve tornar-se imutável, operando-se coisa julgada material.”
150
Todavia, discorda
no que tange à afirmação de que a posição seja minoritária, sustentando que o
número de adeptos da posição vem crescendo, especialmente em sede
jurisprudencial.
151
De fato, a doutrina se mostra cada vez mais receptiva à idéia ventilada. Galeno
Lacerda, ainda que considerasse as sentenças que declaram a ausência das
condições da ação como sentenças de mérito, sem a diferenciação entre as
profundidades de cognição e entre os efeitos substanciais produzidos que fazemos
no presente estudo, sustenta a posição da incidência da coisa julgada material nas
citadas decisões.
152
Adroaldo Furtado Fabrício defende idéia análoga à de Galeno
Lacerda, afirmando que as sentenças de carência são sentenças de mérito, ou pelo
menos, um passo que se dentro do mérito, e que devem fazer coisa julgada
material.
153
Humberto Theodoro Júnior também é partidário da corrente que defende
a aplicação da coisa julgada material nas sentenças de carência. Segundo o jurista,
o ponto que foi causador da carência é matéria definitivamente julgada, e, se o
autor se limita a repropor a demanda, estará ofendendo a coisa julgada.
154
O próprio Liebman, na construção de sua teoria eclética, afirma que a repropositura
da demanda não pode se dar através da pura e simples repetição do processo
150
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São
Paulo: Malheiros, 2006. p. 350.
151
Ibid. p. 351.
152
LACERDA, Galeno. Despacho Saneador. 3. ed. Porto Alegre: Fabris, 1990. p. 89.
153
FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Extinção do processo e mérito da causa. Revista de Processo,
São Paulo, v. 58, abr.-jun./1990. p. 22-23
154
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Ação civil pública Operação bancária de caderneta de
poupança Inaplicabilidade de ação civil pública Inocorrência de relação de consumo Direito
individuais homogêneos Carência de ação e coisa julgada. Revista Forense, São Paulo, v. 339,
jul.-ago.-set./1997. pp. 222 e ss.
65
extinto. Deve haver inovação fática capaz de justificar o desaparecimento do vício
declarado.
155
Importante salientar que a conclusão acerca da incidência de coisa julgada material
nas sentenças de carência de ação torna necessário fazer uma interpretação
restritiva do art. 268 do CPC. Isso porque esse dispositivo legal prevê a
possibilidade de repropositura da demanda sem restrições. Uma vez que o artigo de
lei é aplicável a todas as hipóteses de extinção previstas no art. 273 do CPC, não
levando em conta as particularidades de cada caso previsto, entendemos que o
legislador deixou aberto caminho para a aplicação da técnica hermenêutica mais
adequada para cada situação.
No caso das sentenças de carência, a repropositura somente poderá ser permitida
caso sejam alterados, ou corrigidos, os aspectos definitivamente julgados. Essa
interpretação não vai de encontro à imutabilidade provocada pela coisa julgada
material, uma vez que, realizadas as alterações, se estará na realidade propondo
uma nova demanda.
De fato, se o objetivo da técnica das condições da ação é a economia processual,
evitando o prolongamento e a proliferação de demandas inúteis, a repropositura
através da repetição do processo julgado é medida totalmente contrária ao fim do
instituto.
Com o intuito de prosseguir nosso estudo, julgamos indispensável que, nesse ponto,
seja enfrentado o tema da coisa julgada de forma mais detida, explicitando em que
consiste o instituto, qual sua posição na ordem jurídico-constitucional, quais os seus
limites de incidência, etc.
155
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. o
Paulo: Malheiros, 2006. p. 392, nota 229.
66
4 A COISA JULGADA
4.1 A COISA JULGADA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL
A coisa julgada tem previsão e delineamento na Constituição Federal de 1988,
sendo possível afirmarmos que foi insculpida no diploma constitucional como
garantia prevista no art. 5º, XXXVI.
Faz-se indispensável destacar a qualidade de instituto constitucional da coisa
julgada, cujo estudo, durante um longo tempo, foi quase que exclusivamente
realizado pelos processualistas. Forte em tal razão, cabe ao referido ramo do direito,
até os dias atuais, conceituar a coisa julgada, assim como estabelecer seus limites.
No entanto, mesmo diante disso, a coisa julgada material não pode ser tomada
unicamente como instituto de direito processual, mas, sim, e principalmente, de
direito constitucional. Não é possível, portanto, dispensar à mesma um tratamento
jurídico de instituto regulado por lei infraconstitucional, mas, ao contrário, impõe-se o
reconhecimento da coisa julgada com a magnitude constitucional que lhe é própria
como elemento formador do Estado Democrático de Direito.
Uma vez que a previsão constitucional da coisa julgada é expressa, cabe verificar se
é correto seu enquadramento como garantia constitucional. Para tanto, é necessário
definir o que são as garantias constitucionais, e constatar se os delineamentos
dados pelas normas constitucionais ao instituto da coisa julgada se amoldam àquela
categoria.
Primeiramente, no entanto, uma vez fixada a previsão expressa da coisa julgada no
art. 5º, XXXVI, da CF/88, é indispensável afastar a idéia de que o instituto em estudo
tenha o papel de instrumento à garantia da irretroatividade das leis. Essa idéia
decorre diretamente do citado texto constitucional, que preceitua, in verbis, “a lei não
prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;”
156
.
156
Art. 5º, XXXVI, CF/88.
67
Desse modo, pela literalidade da escrita constitucional, teríamos que o dispositivo
em voga trataria precipuamente da garantia da irretroatividade das leis, relegando a
coisa julgada à condição de instituto instrumental a essa garantia.
Todavia, como bem expõe Eduardo Talamini
157
, tal concepção é errônea, devendo
ser conferido à coisa julgada valor de garantia constitucional. Para tanto, explicita
que as previsões constitucionais dos direitos e garantias fundamentais (art. 5º,
CF/88) têm significado muito mais amplo do que seu teor literal possa indicar; e,
ainda que não tivesse, incidiria a regra hermenêutica de que as normas sobre
direitos e garantias fundamentais merecem interpretação extensiva. Para tanto,
exemplifica que a previsão do caput do art. se refere à igualdade apenas perante
a lei, “mas reconhece-se facilmente a incidência do princípio da isonomia em todo e
qualquer momento de aplicação do direito.”
158
Por fim, afirma que o preceito de que a lei não pode prejudicar a coisa julgada
formada, também significa que o aplicador da lei não pode desrespeitá-la, pois não
faria sentido obrigar um ao respeito ao instituto e deixar o outro livre para decidir
conforme lhe aprouvesse
159
. Portanto, evidente que a Constituição Federal consagra
a coisa julgada como garantia constitucional, mesmo que o dispositivo que a
mencione não o faça de modo literal.
Resta-nos agora determinar o que é uma garantia constitucional, e se a coisa
julgada de fato pode ser classificada como tal.
Segundo Paulo Bonavides, as garantias constitucionais tiveram nascedouro
liberalista, como verdadeiro meio de proteção da liberdade perante o Estado. Por tal
motivo, tiveram desenvolvimento em nosso ordenamento eminentemente voltado
para os direitos individuais.
160
157
TALAMINI, Eduardo. Coisa Julgada e sua Revisão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2005. pp. 50-53.
158
Ibid. p. 51.
159
Ibid. p. 51.
160
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. pp.
529-531.
68
O maior responsável pelo desenvolvimento do conceito das garantias constitucionais
e por sua diferenciação dos direitos fundamentais no Brasil foi Rui Barbosa. Afirma o
jurista em importante passagem de sua vasta obra:
Verdade é que também não se encontrará, na Constituição, parte, ou
cláusula especial, que nos esclareça quanto ao alcance da locução
‘garantias constitucionais’. Mas a acepção é óbvia, desde que
separemos, no texto da lei fundamental, as disposições meramente
declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos
reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em
defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos;
estas, as garantias; ocorrendo o raro juntar-se na mesma
disposição constitucional, ou legal, a fixação da garantia com a
declaração do direito.
161
As citadas palavras de Rui Barbosa resumem não no que consiste a garantia
constitucional, e na sua diferenciação dos direitos fundamentais, mas também
enunciam a falta de clareza com que as normas constitucionais ordinariamente os
apresentam. Decerto reside nesse ponto boa parte da dificuldade dos juristas na
percepção e fixação do direito e correspondente garantia constitucional, com mais
razão ainda se levarmos em conta que um único dispositivo constitucional pode
enunciar vários direitos e/ou garantias.
De modo geral, portanto, podemos dizer que as garantias constitucionais são meios
ou instrumentos que objetivam assegurar o exercício de um direito.
Ainda segundo Paulo Bonavides, as garantias constitucionais podem ser: garantias
da Constituição, que têm como função assegurar a permanência da ordem
constitucional e o direito objetivo em geral contra fatores desestabilizantes, v.g. o
estado de sítio; e garantias dos direitos subjetivos, que protegem os direitos
fundamentais, através, não somente, de uma cláusula assecuratória, mas também
de remédios jurisdicionais próprios que objetivam proteger o direito violado.
162
No século XX, a teoria das garantias constitucionais avançou, e, conforme restou
substituído o Estado Liberal pelo Estado Social, foram reconhecidas as garantias
161
BARBOSA, Rui. A Constituição e os Atos Inconstitucionais do Congresso e do Executivo
ante a Justiça Federal. 2. ed. Rio de Janeiro: Flores & Mano, s/d. p.194.
162
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. pp.
532-533.
69
institucionais, criadas pelo doutrinador alemão Carl Schmitt. Elas consistem na
proteção conferida às instituições e a direitos fundamentais que contam com um
componente institucional de fundamental importância para a sociedade.
163
Por tal motivo, para Paulo Bonavides o conceito liberalista de garantia constitucional,
anteriormente citado, deve ser reformulado para agregar a idéia de garantia
institucional. Desse modo,
[...] a garantia constitucional é uma garantia que disciplina e tutela o
exercício dos direitos fundamentais, ao mesmo tempo que rege, com
proteção adequada, nos limites da Constituição, o funcionamento de
todas as instituições existentes no Estado.
164
Segundo Bonavides, ainda, a Constituição Federal de 1988 busca uma
compatibilidade do Estado Social com o Estado de Direito, razão pela qual procurou
inovar, introduzindo garantias que nunca estiveram em nosso sistema jurídico, como
o mandado de injunção e o mandado de segurança coletivo.
165
Importante destacar a opinião de Eduardo Talamini, para quem
[...] a coisa julgada tem também o caráter de garantia institucional,
objetiva: prestigia a eficiência e a racionalidade da atuação estatal,
que desaconselham, em regra, a repetição de atividade sobre um
mesmo objeto.
166
Pelo que foi analisado, podemos concluir que a coisa julgada é uma garantia
constitucional. Ela não tem um fim em si mesma, muito obstante tenha como objetivo
claro imunizar um ato jurisdicional. Antes de tudo, serve para garantir estabilidade
nas relações jurídicas, certeza ao titular de um direito ameaçado ou lesado. Ou seja,
a coisa julgada nada mais é do que um meio de se garantir a segurança jurídica.
Portanto, não há que se negar a sua condição de garantia constitucional.
163
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p.
537.
164
Ibid. p. 537.
165
Ibid. pp. 549-550.
166
TALAMINI, Eduardo. Coisa Julgada e sua Revisão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2005. p. 52.
70
Necessário analisar, por fim, a concepção de JoAfonso da Silva, para quem a
garantia da coisa julgada prevista no texto constitucional somente abrange a coisa
julgada material, excluindo-se a coisa julgada formal. Senão vejamos.
Dizemos que o texto constitucional só se refere à coisa julgada
material, em oposição à opinião de Pontes de Miranda, porque o que
se protege é a prestação jurisdicional definitivamente outorgada. A
coisa julgada formal só se beneficia da proteção indiretamente na
medida em que se contém na coisa julgada material, visto que é
pressuposto desta, mas não assim a simples coisa julgada formal.
Tutela-se a estabilidade dos casos julgados, para que o titular do
direito reconhecido tenha a certeza jurídica de que ele ingressou
definitivamente no seu patrimônio.
167
Devemos discordar do constitucionalista. A garantia constitucional da coisa julgada é
composta por ambas as modalidades de coisa julgada, precipuamente porque a
coisa julgada constitui um único instituto, e não dois institutos diferentes. Referidos
conceitos (coisa julgada formal e material) funcionam como as duas faces de uma
mesma moeda, não se podendo, então, negar que a composição da previsão do inc.
XXXVI do art. da CF/88 se tanto pela coisa julgada formal, quanto pela coisa
julgada material.
No que tange aos conceitos de coisa julgada formal e material, e à unidade do
instituto que formam, realizaremos estudo mais pormenorizado adiante (4.3).
4.2 CONCEITO DE COISA JULGADA
A coisa julgada pode ser definida, em linhas gerais, como a qualidade especial que
reveste a sentença transitada em julgado e que consiste na imutabilidade da própria
sentença, enquanto ato jurídico processual, bem como do comando que compõe seu
conteúdo, e de seus efeitos.
Esse conceito deriva em parte da concepção de Enrico Tullio Liebman acerca do
instituto da coisa julgada, concepção essa que goza, nas palavras de Ada Pellegrini
167
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 26. ed. rev. e atual. São Paulo:
Malheiros, 2006. p. 436.
71
Grinover, em nota aos escritos do doutrinador italiano, de um “consenso
generalizado” no meio doutrinário brasileiro.
168
O Mestre italiano, em brilhante escrito
169
, criou teoria inovadora em que superou a
noção tradicional romanística, que sustentava que a coisa julgada era um efeito da
sentença, bem como a concepção equivalente da doutrina alemã
170
, a qual
prevalece naquele país até os dias atuais, em que se afirma queidentidade entre
a coisa julgada e o efeito declaratório da sentença.
É imperioso destacar que, anteriormente ao surgimento das idéias tão largamente
difundidas de Liebman, já havia sido feito progresso em terras italianas no que tange
ao desenvolvimento da teoria da coisa julgada por dois outros grandes mestres
italianos.
As mencionadas concepções, segundo Liebman, trazem em seu interior um erro de
lógica, pois acabam por resultar em conclusões que impliquem na negação do
caráter jurisdicional a parte da sentença, ou à sua contraposição com os possíveis
efeitos da mesma.
171
De fato, coube a Carnelutti fazer a distinção entre imperatividade e imutabilidade da
sentença.
172
Segundo o mestre, a sentença tem força e está apta a produzir
efeitos antes mesmo da incidência da coisa julgada.
Ademais, Chiovenda, dentre outras contribuições, ensaiou conceber um afastamento
ou mesmo uma distinção entre a imutabilidade da sentença e os seus efeitos.
173
Todavia, o ilustre doutrinador acabou por não romper com a concepção italiana
168
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e Autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa
julgada. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 65.
169
Ibid.
170
NEVES, Celso. Coisa Julgada Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. pp. 443 e ss.
171
LIEBMAN, Enrico Tullio. op.cit. p. 31
172
CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil. São Paulo: Classic Book, 2000,
v. I. pp 412 e ss.
173
CHIOVENDA. Giuseppe. Instituições de direito processual civil. 2. ed. Campinas: Bookseller,
2000, v. I. pp. 383, 414, 417.
72
dominante, cuja principal característica residia na identificação da coisa julgada com
um efeito da sentença ou mesmo com a certeza produzida pela mesma.
174
Portanto, coube a Liebman a formulação de teoria que apresentasse a devida
diferenciação entre a coisa julgada e os efeitos da sentença.
Conforme expõe em seu clássico ensaio sobre o tema, o mestre italiano considera
que a coisa julgada, ou autoridade da coisa julgada, como a denomina, não é um
efeito da sentença, mas sim um modo especial de se produzir os efeitos da
sentença.
Para formar a sua teoria, Liebman delineia dois conceitos basilares, quais sejam, o
de eficácia natural da sentença – comando eficaz genericamente e que emana
naturalmente da sentença enquanto ato estatal e autoridade da coisa julgada a
própria imutabilidade do comando emergente da sentença.
Desse modo, coube ao Mestre romper definitivamente com a antiga tradição, que
afirmava que os efeitos da sentença somente iniciavam-se a ser produzidos após ou
concomitantemente com a incidência da coisa julgada. Na realidade, a sentença,
uma vez prolatada pelo magistrado, produz efeitos desde logo, independentemente
de estar acobertada ou não pela autoridade da coisa julgada. Isso decorre
diretamente de sua condição de ato estatal, e, portanto, da imperatividade
proveniente dessa condição.
Independentemente da produção desses efeitos pela sentença, ela está sujeita,
posteriormente, quando não mais passível de recursos por força da preclusão, à
174
Afirma Liebman, acerca de seu mestre, que sua contribuição à doutrina da coisa julgada “consistiu
principalmente em depurar o conceito e o fenômeno da coisa julgada e de conceitos e fenômenos
afins, isto é, em separar o seu conteúdo propriamente jurídico de suas justificações político-sociais;
em distinguir, daí, a autoridade da coisa julgada da simples preclusão, que é a impossibilidade de se
tornar a discutir no decurso do processo uma questão decidida; em distinguir, consequentemente,
a autoridade da coisa julgada (substancial) do fato processual da irrecorribilidade de uma sentença ou
de um despacho interlocutório (coisa julgada formal); em limitar, por isso, a autoridade da coisa
julgada à decisão que decide o mérito da ação, para declará-la procedente ou improcedente; em
subtrair, por fim, toda a atividade puramente gica desenvolvida pelo juiz no processo, do campo de
ação da coisa julgada, religando esta última ao ato de vontade ditado na sentença pelo órgão
judiciário e acentuando energicamente a sua finalidade prática e o seu caráter publicístico.
(LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e Autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa
julgada. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. Aditamentos ao § 1º, a, p. 6).
73
aquisição de qualidade que torna imutável o ato da sentença, e seus efeitos, a
autoridade da coisa julgada.
Sobre o conceito de autoridade da coisa julgada, são as palavras do autor italiano:
Não se identifica ela simplesmente com a definitividade e
intangibilidade do ato que pronuncia o comando; é, pelo contrário,
uma qualidade, mais intensa e mais profunda, que reveste o ato
também em seu conteúdo e torna assim imutáveis, além do ato em
sua existência formal, os efeitos, quaisquer que sejam, do próprio
ato.
175
Resta exatamente nessa definição da autoridade da coisa julgada, ao distinguir de
forma direta e indiscutível a mesma dos efeitos da sentença, o brilhantismo até hoje
reverenciado de seu trabalho. Após negar sua condição de efeito da sentença, ele
termina por identificar a autoridade da coisa julgada com uma qualidade conferida à
sentença e seus efeitos, consistente na sua imutabilidade.
176
Portanto, Liebman elevou a um novo patamar a separação entre imperatividade e
imutabilidade da sentença feita por Carnelutti, e criou a clássica definição de coisa
julgada, decretando a distinção entre os efeitos da sentença, e a autoridade da coisa
julgada, especial qualidade consistente na imutabilidade da sentença e de seus
efeitos, distinção essa que Chiovenda havia ensaiado fazer, mas não chegou a
completar.
Pela exposição de tamanhos avanços na conceituação da coisa julgada, a tese de
Enrico Tullio Liebman foi, como é, largamente aceita na doutrina brasileira.
175
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e Autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa
julgada. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 51.
176
No aditamento ao § 3º, alínea “b”, Liebman explicita de forma clara e simplificada as bases de sua
teoria, acabando por expor que a sentença tem forças vinculantes diversas, conforme o estado do
processo em que está considerada. “Dei o nome de eficácia natural à da sentença ainda não passada
em julgado [...] Ora, a sentença simplesmente eficaz, a já passada em julgado (não recorrível) e a
nem mais sujeita à ação rescisória (art. 798 do Cód. de Proc. Civil brasileiro) apresentam graus
diversos e crescentes de força vinculante. Todavia, o caráter excepcional da ação rescisória justifica
sua natureza de ação autônoma e permite qualificar-se como passada em julgado (imutável) a
sentença não sujeita aos recursos. Eis por que a coisa julgada se apresenta como qualidade que a
lei confere à sentença e à sua eficácia, a fim de conseguir mais plenamente o resultado em vista. Eis
por que, também, na definição de GUILHERME ESTELITA, da finalidade do processo, se pode e se
deve distinguir o efeito da sentença (fixação da relação jurídica litigiosa) da imutabilidade que, em
determinado momento, a lei lhe confere (coisa julgada).” (Ibid. p. 59).
74
Entretanto, o obstante a menção de Ada Pellegrini ao chamado “consenso
generalizado”, a doutrina de Liebman, tal qual ocorreu na Itália, não saiu incólume
de crítica entre nós.
De fato, no trabalho de exposição de suas análises sobre as idéias do jurista italiano,
José Carlos Barbosa Moreira e Ovídio A. Baptista da Silva, além de tecer suas
críticas às mesmas, acabaram por travar, entre si, através de uma série de ensaios
publicados
177
, um dos mais importantes embates doutrinários na formação do
conceito de coisa julgada no Brasil.
José Carlos Barbosa Moreira corrobora a noção de que a coisa julgada não é um
efeito da sentença, autônomo em relação aos demais que dela emanam. No
entanto, não concorda com a concepção da autoridade da coisa julgada como
especial qualidade que reveste os efeitos da sentença e consiste na imutabilidade
dos mesmos e da própria sentença.
Para o jurista carioca, faltou à teoria de Liebman direcionar a característica da
imutabilidade não para os efeitos da sentença, mas para o conteúdo do comando da
sentença. “Ora, a quem observe, com atenção, a realidade da vida jurídica, não
pode deixar de impor-se essa verdade muito simples: se alguma coisa, em tudo isso,
escapa ao lo da imutabilidade, são justamente os efeitos da sentença.”
178
Isso
porque os efeitos da sentença poderão ser modificados ou extintos a qualquer
momento, pela própria vontade das partes (sendo os direitos disponíveis), ou
mesmo pela sua normal atuação (no caso da execução das sentenças
condenatórias). um novo comando não poderá ser obtido, via sentença
jurisdicional, por estar acobertado pela proteção da coisa julgada.
Desse modo, no pensamento de Barbosa Moreira, temos três conceitos distintos,
quais sejam, trânsito em julgado, res judicata e auctoritas rei iudicatae. O trânsito em
julgado consiste na passagem da sentença de mutável para imutável, pela sua
177
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais, São
Paulo, vol. 416, 1984; Idem, Eficácia da sentença e autoridade da coisa julgada, Revista de
Processo, São Paulo, vol. 34, 1984; SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Conteúdo da sentença e coisa
julgada. Revista Ajuris, Porto Alegre, vol. 33, 1985; Idem, Eficácias da sentença e coisa julgada.
3ª ed. Porto Alegre: Fabris, 1995.
178
Idem. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 416, 1984. p. 12.
75
irrecorribilidade. A res judicata é a situação jurídica que se forma no momento em
que se converte a sentença de mutável para imutável. a auctoritas rei iudicatae,
por sua vez, é essa característica, a imutabilidade, que passa a revestir essa
situação jurídica nova, inaugurada pelo trânsito em julgado.
179
De fato, a construção de Barbosa Moreira, ao distinguir claramente os três conceitos
que, juntos, formam a teoria da coisa julgada, bem como sua definitiva
desvinculação dos efeitos da sentença, representam, mais do que uma crítica, um
passo adiante na evolução da doutrina iniciada por Liebman
180
, que, em algumas
passagens de sua obra clássica, ensaiou fazer essa desvinculação.
181
Ovídio A. Baptista da Silva, por sua vez, acabou por construir sua teoria a partir das
diversas críticas que teceu às construções de Liebman e, principalmente, de
Barbosa Moreira.
Em suma, para Odio Baptista, a coisa julgada consistiria na imutabilidade tão e
somente do elemento declaratório da sentença. Para ele, o “efeito ‘certificativo’,
contido na declaração sentencial, indiscutivelmente perdura, como núcleo e
essência da coisa julgada material”
182
.
Muito embora não confunda o efeito declaratório com a coisa julgada, a teoria do
doutrinador gaúcho não deixa de representar um retorno às antigas convenções
muito criticadas e superadas por Liebman, razão pela qual não goza de maior
aceitação.
179
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais, São
Paulo, vol. 416, 1984. pp. 16 e 17.
180
Cf. LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e Autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa
julgada. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 65, nota de rodapé n. 4 das Notas ao § 3º, de Ada
Pellegrini Grinover e p. 36.
181
“Nisso consiste, pois, a autoridade da coisa julgada, que se pode definir, com precisão, como a
imutabilidade da comando emergente de uma sentença. Não se identifica ela simplesmente com a
definitividade e intangibilidade do ato que pronuncia o comando; é, pelo contrário, uma qualidade,
mais intensa e mais profunda, que reveste o ato também em seu conteúdo e torna assim imutáveis,
além do ato em sua existência formal, os efeitos, quaisquer que sejam, do próprio ato.” (LIEBMAN,
Enrico Tullio. Op.cit. p. 51). Nessa passagem Liebman se aproxima em muito do que diz Barbosa
Moreira, para, somente ao final, falar sobre os efeitos da sentença mais uma vez: “Eis por que a
coisa julgada se apresenta como qualidade que a lei confere à sentença e à sua eficácia, a fim de
conseguir mais plenamente o resultado em vista.” (Ibid. Pág. 59). Liebman, então, prefere,
corretamente, o vocábulo eficácia, ao contrário de efeitos.
182
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Conteúdo da sentença e coisa julgada. Revista Ajuris, Porto
Alegre, vol. 33, 1985. Pág. 60.
76
Uma vez expostos os pensamentos dos principais doutrinadores que tratam do
tema, torna-se necessário abordar o tratamento legal conferido à coisa julgada. Isso
porque, apesar de a coisa julgada ter sua previsão e delineamento na Constituição
Federal de 1988 (em especial na regra do art. 5º, XXXVI da CF), o ordenamento
jurídico infraconstitucional fez algumas tentativas de definir o instituto.
Segundo o art. 6º, § 3º, da Lei de Introdução ao Código Civil, “chama-se coisa
julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.”. Essa
disposição foi largamente criticada, pois confunde coisa julgada com sentença
transitada em julgado.
O digo de Processo Civil, por sua vez, ao expor sua definição de coisa julgada,
tentou ser fiel à doutrina de Liebman, conforme era a vontade do mentor de seu
anteprojeto, Alfredo Buzaid.
183
Realmente, o art. 507 do anteprojeto do CPC expunha o seguinte: “Art. 507. Chama-
se coisa julgada material a qualidade que torna imutável e indiscutível o efeito da
sentença não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.”
Entretanto, no procedimento de aprovação do Código, o mencionado dispositivo teve
seu texto alterado, tendo sido transformado no atual art. 467 do citado diploma legal.
Afirma o mesmo: “Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia que torna
imutável e indiscutível a sentença não mais sujeita a recurso ordinário ou
extraordinário.”
Assim, é possível constatar que houve não um repúdio, mas um desvio na acolhida
da teoria de Liebman, qualificada por Ada Pellegrini Grinover como “algum recuo e
certa imprecisão”
184
.
183
Na Exposição de Motivos Do Código de Processo Civil, afirma Buzaid que: “O projeto tentou
solucionar esses problemas, perfilhando o conceito de coisa julgada elaborado por Liebman e
seguido por vários autores nacionais.”
184
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e Autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa
julgada. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. Págs. 9-10.
77
De toda forma, é possível afirmar que o sistema composto pelos demais dispositivos
que regulam a coisa julgada no Código de Processo Civil reafirma as idéias de
Liebman e a intenção de Buzaid. “Vale dizer, a literalidade do art. 467 é
desautorizada por outras normas contidas no próprio Código.”
185
.
4.3 COISA JULGADA FORMAL E MATERIAL
Em vista do anteriormente exposto, resta certo e evidente que a coisa julgada
consiste na imutabilidade da sentença. No entanto, é indispensável determinar em
que termos se impede a rediscussão daquilo que foi decidido. Assim, teremos a
distinção da coisa julgada em formal e material.
Destaca-se, oportunamente, que a distinção entre coisa julgada formal e material
não apresenta verdadeira divisão da coisa julgada em dois institutos distintos, mas
sim duas faces da mesma figura, que mantém a unicidade de seu conceito e
representam manifestações distintas do mesmo fenômeno.
186
Por coisa julgada formal entende-se a imutabilidade da sentença (ou acórdão) como
ato jurídico processual
187
. Ou seja, no interior do mesmo processo em que foi
proferida, a sentença transitada em julgado não pode ser atacada por novos
recursos, e, portanto, sofrer novo julgamento.
Uma vez que o advento da coisa julgada formal está subordinado, ainda que
temporalmente, ao trânsito em julgado, e que este tem seu surgimento a partir de
um fator preclusivo das vias recursais, tornou-se comum associar a coisa julgada
formal a uma modalidade de preclusão.
188
185
TALAMINI, Eduardo. Coisa Julgada e sua Revisão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2005. p. 44.
186
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e Autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa
julgada. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. pp. 49 e 55.
187
Ibid. p. 55.
188
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento:
a tutela jurisdicional do processo através do processo de conhecimento. São Paulo: RT, 2001. p. 608.
78
Ainda, como a coisa julgada formal traz em si a idéia de fim do processo e
estabilidade, tem sido comumente denominada preclusão máxima. Nas palavras de
Dinamarco:
A coisa julgada formal é ao mesmo tempo resultado da
inadmissibilidade de qualquer recurso e fator impeditivo da
substituição da sentença por outra. Diz-se que esta passa em
julgado, no momento em que, por tornar-se irrecorrível, ingressa no
mundo dos atos processuais intocáveis e não pode ser substituída
por eventual acórdão (art. 467). O fenômeno processual da
irrecorribilidade, ou seja, da exclusão de todo e qualquer poder de
provocar ou emitir nova decisão no processo, é a preclusão [...]. E,
como essa preclusão tem sobre o processo como um todo o efeito
mortal de consumar sua extinção, tradicionalmente a doutrina diz
praeclusio maxima para designar a coisa julgada formal.
189
Entretanto, não se pode confundir coisa julgada formal e preclusão.
A preclusão é a perda da faculdade de se praticar um ato processual, seja por tê-
lo praticado (preclusão consumativa), seja pelo decurso do prazo concedido pela lei
sem que o mesmo seja praticado (preclusão temporal), ou, ainda, pela prática de ato
incompatível com aquele que se pretendia praticar (preclusão lógica).
A coisa julgada formal, por sua vez, é a qualidade especial que reveste a sentença
transitada em julgado, e que consiste na imutabilidade da própria sentença,
enquanto ato jurisdicional.
Portanto, não que se confundir dois institutos que em muito divergem entre si,
mas estão ligados por uma relação lógica de antecedente e conseqüente, como bem
explicitado por Ada Pellegrini Grinover: indispensável a preclusão de todas as vias
recursais para que se o trânsito em julgado. E, uma vez passada em julgado a
sentença, forma-se a coisa julgada formal, tornando-a imune a outros julgamentos
dentro do mesmo processo em que foi proferida.
190
189
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 4 ed. São Paulo:
Malheiros, 2003, vol. III. p. 298.
190
Esse é o pensamento exposto nas Notas ao § 3º, alínea 6, in LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e
Autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa julgada. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2007. p. 68.
79
Coisa julgada material, por sua vez, é a coisa julgada por excelência. Dela emana a
própria autoridade da coisa julgada, que consiste na imutabilidade do conteúdo e
dos efeitos da sentença. De praxe, quando se trata da coisa julgada material
isoladamente, comumente se utiliza somente o termo coisa julgada, como faremos
no presente trabalho.
Assim, não se trata mais de indiscutibilidade da decisão na mesma relação jurídica
processual em que foi proferida, mas na sua indiscutibilidade em relação a outros
processos.
Ademais, trata-se, in casu, de imunização tanto do comando que consta da
sentença, quanto de seus efeitos substanciais, isto é, da tutela jurisdicional
concedida, ou do resultado prático atingido.
É indispensável salientar, mais uma vez, que não verdadeira cisão no instituto da
coisa julgada, e que os aspectos formal e material são apenas diferentes faces em
que ele se manifesta.
Sobre a questão se manifesta Liebman em sua obra prima sobre a coisa julgada:
A unicidade do conceito impede, sem mais, que os seus dois
aspectos se possam cindir e manter-se separados conforme o objeto
da sentença. [...]. Verdade é que no primeiro caso [coisa julgada
formal] tem a sentença efeito meramente interno no processo no qual
foi prolatada, e perderá toda a importância com o término do mesmo
processo; no segundo [coisa julgada material], porém, a sentença,
decidindo sobre a relação deduzida em juízo, destina-se a projetar
sua eficácia também e sobretudo fora do processo e sobreviver a
este. Mas a diferença está toda no comando contido na sentença e
nos seus efeitos, não na coisa julgada, que permanece a mesma.
191
Desse modo, não há que se falar em relação de antecedente-conseqüente na
formação da coisa julgada formal e material. Sua formação é concomitante, pois
trata-se do mesmo fenômeno, e ocorre em conseqüência, sim, do trânsito em
julgado da decisão.
191
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e Autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa
julgada. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. pp. 55-56.
80
Portanto, uma vez transitada em julgado a sentença, forma-se a coisa julgada e
imuniza-se a sentença, que não poderá mais ser discutida no mesmo processo em
que foi proferida, nem em outros processos.
4.4 PRONUNCIAMENTOS JUDICIAIS QUE PRODUZEM COISA
JULGADA
Uma vez determinado em que consiste a coisa julgada, resta necessário expor em
que âmbito ela incide. Iniciaremos, dessa forma, pelos atos que são ou podem ser
acobertados pela coisa julgada.
Primeiramente, é possível extrair do exposto ao momento que a coisa julgada é
fenômeno exclusivo dos atos jurisdicionais decisórios, mais especificamente, das
sentenças.
192
No entanto, conforme explicitado, a coisa julgada se forma após o trânsito em
julgado da sentença. Assim, não é qualquer sentença que está apta a fazer coisa
julgada, mas tão e somente aquela sentença passada em julgado.
No que tange à questão de que espécies de sentenças estão aptas a produzir coisa
julgada, é que reside a real importância na distinção da coisa julgada em suas duas
facetas: coisa julgada formal e coisa julgada material. Isso porque, conforme seja a
sentença definitiva ou terminativa, de forma diversa recairá a coisa julgada sobre a
mesma.
Acerca da diferenciação entre coisa julgada formal e coisa julgada material, afirma
Eduardo Talamini:
A diversidade reside no teor do comando: a coisa julgada formal
consiste na imutabilidade de um comando que se limita a pôr fim ao
processo; a coisa julgada material consiste na imutabilidade do
192
Destaca-se que o vocábulo sentença, in casu, é tomado em sentido amplo, abrangendo também
os acórdãos proferidos por órgãos colegiados que possam, inclusive, vir a substituí-las.
81
comando que confere tutela a alguma das partes, isso é, que dispõe
substancialmente sobre algo que vai além da relação processual.
193
Assim, percebe-se que a coisa julgada formal somente recai sobre o efeito (ou
comando) da sentença de extinguir o processo. A coisa julgada material, por sua
vez, imuniza os efeitos substanciais da sentença, que nada mais são que a tutela
jurisdicional concedida.
Uma vez que o efeito extintivo do processo é inerente a todas as sentenças, é certo
afirmar que todas as sentenças produzem coisa julgada formal.
Toda e qualquer sentença é apta a receber a coisa julgada formal,
porque todas elas têm o efeito programado de extinguir o processo e,
quando nenhum recurso tem cabimento ou o cabível não é
interposto, o processo se extingue por força dela e nenhuma outra se
proferirá naquele processo. O efeito processual extintivo é comum às
sentenças terminativas e às de mérito, por expressa disposição legal
e porque é essa uma função universalmente reconhecida às
sentenças em geral (CPC, arts. 162, § 1º, 267 e 269).
194
.
No que tange à coisa julgada material, entretanto, não é possível afirmar que recaia
sobre todos os tipos de sentenças. Para que sua imutabilidade alcance a decisão,
deve a mesma contar com um grau de cognição suficiente a por fim na demanda
deduzida em juízo.
195
Portanto, estão aptas a produzir coisa julgada material somente as sentenças
definitivas (de mérito), ficando excluídas desse especial aspecto da imutabilidade as
sentenças terminativas, que apenas põem termo ao processo, sem julgamento do
mérito.
Não obstante haja disciplina legal (arts. 267 e 269 do CPC) no sentido de atribuir a
imunidade da coisa julgada material apenas às sentenças definitivas, a regra é
extraída da própria essência do instituto.
193
TALAMINI, Eduardo. Coisa Julgada e sua Revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p.
132.
194
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 4. ed. São Paulo:
Malheiros, 2003, vol. III. p. 297.
195
SIQUEIRA, Cleanto Guimarães. A Defesa no Processo Civil: as exceções substanciais no
processo de conhecimento. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. p. 421.
82
Se a coisa julgada material é a imutabilidade dos efeitos substanciais da sentença, e
somente as sentenças definitivas resolvem a lide, pacificando o conflito e produzindo
efeitos extraprocessuais, decerto que somente essa espécie de sentenças pode
estar apta à imunização desses efeitos.
“Uma sentença terminativa, por não passar de decisão sobre o processo, exaure
neste a sua eficácia e os efeitos que tem são com este sepultados, sem deixar
marcas na vida das pessoas.”
196
Por essa razão, não necessidade de que seja
imunizada fora dos limites do mesmo processo em que foi produzida.
Em função de também não resolverem a lide, atuando exclusivamente no universo
processual, do mesmo modo as sentenças cautelares não fazem coisa julgada
material. Têm elas o caráter acessório de outra relação processual, tutelando uma
situação em caráter provisório e viabilizando a eficácia da decisão que será
provocada em outro processo, esse sim destinado a resolver um conflito de
interesses.
Destaca-se que, por não haver lide a ser resolvida
197
, também as sentenças
proferidas nos casos de jurisdição voluntária o são acobertadas pela coisa
julgada.
Quanto às sentenças definitivas proferidas no caso de relações continuativas, o é
correto afirmar que ensejam menor rigidez da coisa julgada. No caso, a coisa
julgada protege a decisão judicial enquanto e se as circunstâncias fáticas e jurídicas
da causa permanecerem inalteradas. Modificada a situação fática, outra é a causa
de pedir e, como decorrência lógica, outro é o pedido, e isso, então, autoriza nova
decisão sobre o assunto, sem ofensa à coisa julgada.
198
196
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 4. ed. São Paulo:
Malheiros, 2003, vol. III. p. 306.
197
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria Geral do Processo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. pp. 153-154.
198
DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit. pp. 311-312.
83
4.5 A COISA JULGADA MATERIAL EM SENTIDO POSITIVO E
NEGATIVO
Outrossim, ressaltando mais uma vez a unidade do instituto da coisa julgada,
cumpre destacar a manifestação da coisa julgada material em suas funções positiva
e negativa.
A coisa julgada em sentido negativo nada mais é do que a proibição da
repropositura de demanda anteriormente deduzida em juízo e solucionada por
sentença definitiva acobertada pela coisa julgada material. Em outras palavras, é a
vedação de qualquer órgão jurisdicional de reapreciar o rito de objeto processual
imunizado por coisa julgada material.
A coisa julgada em sentido positivo, por sua vez, seria a obrigatoriedade ou
vinculação ao conteúdo da decisão sobre a qual recai a coisa julgada material
imposta a qualquer órgão jurisdicional no julgamento de novo processo entre as
partes, cujo resultado dependa da decisão proferida no processo anterior, e já
imutável.
Esse conceito se assemelha ao conceito de eficácia natural da sentença de
Liebman.
199
Entretanto, entre eles se pode extrair diferenças.
Em brilhante passagem, Talamini afirma que esse efeito de obrigatoriedade não
emana exclusivamente da coisa julgada, mas também é expressão dos efeitos da
sentença, que, enquanto ato jurisdicional, deve ser acatada. Contudo, decorre
exatamente da coisa julgada essa vinculação a que está obrigado o magistrado no
momento de proferir sua decisão. Sem a especial característica da coisa julgada,
estaria o juiz livre para decidir como bem lhe aprouvesse.
Com efeito, daí se pode extrair que a chamada “eficácia positiva da
coisa julgada” não é expressão exclusiva do fenômeno da coisa
julgada. Expressa também os efeitos (declaratórios, constitutivos) da
sentença. Mas certamente, sem a coisa julgada, a “eficácia positiva”
não se poria como tal: o juiz do segundo processo não ficaria
199
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e Autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa
julgada. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. pp. 58-60.
84
vinculado à solução dada pelo decisum da sentença anterior à
questão que ora funciona como prejudicial. Enfim, é sempre a
autoridade da coisa julgada que faz o juiz ficar vinculado ao
conteúdo do comando anterior seja para negar novo julgamento,
seja para decidir tomando aquele comando como premissa
necessária. O mesmo e único fenômeno – a coisa julgada
apresenta esses dois aspectos, expressa-se dessas duas
maneiras.
200
[grifo nosso]
Ademais, cumpre destacar que a coisa julgada material, além dos “efeitos” negativo
e positivo, ora descritos, também gera “efeitos” como a possibilidade de utilização da
ação rescisória, etc.
4.6 LIMITES OBJETIVOS DA COISA JULGADA
Uma vez verificado sobre quais pronunciamentos pode recair a coisa julgada, e de
que modo ela se manifesta, é necessário delinear, ainda, o objeto sobre o qual irá
atuar a qualidade de imutabilidade que lhe é inerente.
A sentença é a resposta a uma pretensão que tenha sido levada à apreciação
jurisdicional, que emite um comando, regulando a relação jurídica posta. Entretanto,
o pronunciamento judicial propriamente dito (dispositivo) tem como premissa
necessária um resumo do conteúdo do processo e suas ocorrências (relatório), bem
como a demonstração das razões do convencimento do juiz (motivação). A
sentença, portanto, pode ser decomposta em três partes principais.
A coisa julgada não atinge todas as partes componentes da sentença, ficando
restrita somente a um de seus elementos, qual seja, o dispositivo. Essa é a dicção
negativa do art. 469 e incisos do CPC.
No entanto, a regra pode ser deduzida do próprio conceito de coisa julgada. Isso
porque é no dispositivo da sentença que o órgão jurisdicional pacifica a lide, se
pronunciando definitivamente sobre o objeto do processo. Desse modo, é o
comando emergente da sentença, contido na parte decisória, que deve ser
200
TALAMINI, Eduardo. Coisa Julgada e sua Revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. pp.
130-131.
85
imunizado, sob pena de insegurança da relação jurídica que carecia da proteção
jurisdicional.
Portanto, a limitação objetiva da incidência da imutabilidade característica da coisa
julgada ao dispositivo da sentença, não tem o caráter de fazê-lo apenas
formalmente, i.é., somente será imunizado aquilo que está escrito no decisum. Antes
de tudo, a imutabilidade atinge o comando constante do dispositivo, com o intuito
último de imunizar os efeitos substanciais da sentença.
Importante salientar que, como afirma Bedaque, “são fenômenos diversos a
autoridade da coisa julgada, restrita ao dispositivo, e sua aptidão para impedir novo
julgamento sobre o mesmo objeto.”
201
Isso porque a impossibilidade de
repropositura da demanda somente se aplica em face das mesmas partes e com o
mesmo fundamento. Assim, caso algum dos elementos da demanda seja alterado, a
imunização não será óbice a que o pedido seja veiculado em outro processo.
Por fim, é necessário mencionar a eficácia preclusiva da coisa julgada (arts. 471,
caput, e 474, CPC), pela qual são consideradas deduzidas e repelidas todas as
alegações e defesas, ainda quando fossem capazes de, se deduzidas, levar o
processo a desfecho diverso.
Como a própria expressão dá a entender, a lei tende a visualisar a coisa julgada
como um fato preclusivo de faculdades processuais, quais sejam, renovações de
questões que possam alterar ou neutralizar os efeitos da sentença por ela
imunizada. Até mesmo as questões que poderiam ter sido conhecidas de ofício pelo
magistrado, como a prescrição, ficam afastadas após o implemento da coisa julgada.
O efeito descrito somente se aplica nos estritos limites do processo em que se
formou a coisa julgada. Caso a questão a ser alegada diga respeito a causa de pedir
ou pedido diverso, não há óbice para que seja levantada em outro processo. De
outro modo, teríamos violação ao direito de acesso à justiça previsto pelo art. 5º,
XXXV, da CF/88, que será objeto de estudo posterior (Cap. 4).
201
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São
Paulo: Malheiros, 2006. p. 245.
86
4.7 LIMITES SUBJETIVOS DA COISA JULGADA
Por fim, resta a delimitação de quais sujeitos a extensão da coisa julgada alcança,
ou seja, se atinge somente as partes que participaram do processo, ou também
terceiros alheios ao mesmo.
Nosso Código de Processo Civil adotou de maneira expressa (art. 472) a
consagrada regra proveniente do direito romano de que somente aos participantes
da relação jurídica processual haverá incidência da coisa julgada. Ficam os
terceiros, portanto, excluídos do seu âmbito de incidência.
Essa regra do antigo direito romano ainda hoje é adotada, pois se encontra atual
como muito bem expõe José Rogério Cruz e Tucci
202
. Ora, as mesmas questões
outrora enfrentadas ainda se põem em estudo, nos dias presentes. “[...] a harmonia
das decisões judiciais e a posição dos terceiros em relação a uma sentença,
proferida inter alios, constituem problemas que sempre foram objeto de grande
preocupação na história da coisa julgada civil.”
203
De todo modo, é possível encontrar fundamento para a regra da limitação da coisa
julgada inter alios no ordenamento jurídico brasileiro atual. Essa regra fundamental
encontra respaldo na mais singela idéia de justiça, porquanto não se afigura
coerente que aquele que não tenha tido oportunidade de desenvolver qualquer
atividade no processo possa ser atingido pela coisa julgada decorrente de decisão
nele proferida. Entendimento contrário consistiria em evidente violação da garantia
constitucional do devido processo legal.
Por outro lado, não podemos ignorar que, em relação a determinada coisa julgada, a
grande maioria dos terceiros jamais serão afetados em sua esfera de direitos e
obrigações. Serão eles terceiros absolutamente indiferentes, e compõem um número
202
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Limites Subjetivos da eficácia da sentença e da coisa julgada.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. pp. 43 e ss.
203
Ibid. pp. 43-44.
87
infinito de pessoas, que nunca poderão se insurgir sobre a decisão imunizada, por
lhes faltar interesse processual.
204
No entanto, não obstante a regra legal expressa, em certos casos a sentença acaba
por projetar efeitos sobre a esfera jurídica de terceiros
205
. Esses seriam terceiros
juridicamente interessados
206
, que Liebman (por meio da análise da doutrina de
Betti) distingue entre: a) sujeitos à exceção de coisa julgada, que devem obedecer-
lha como se partes fossem, pois tiveram participação na relação decidida, seja
mediata ou imediata; e b) não sujeitos à exceção de coisa julgada, os quais,
enquanto titulares de relação incompatível com a decisão, podem desconhecer a
coisa julgada formada entre as partes atuantes no processo
207
.
Estabelecido que, na prática, os terceiros são atingidos por efeitos da sentença, o
preceito da coisa julgada proferida inter alios vale somente como regra geral,
cabendo à doutrina delimitar em que condições esses efeitos se produzem nas
esferas jurídicas dos terceiros. Em outras palavras, aque ponto os terceiros ficam
obrigados a observar sentença proferida em processo de que não participaram.
Mais uma vez, a doutrina pátria recorreu à adoção da teoria de Liebman sobre a
coisa julgada. O Mestre italiano expõe convicção expressa de que deve vigorar o
princípio, segundo o qual a autoridade da coisa julgada vale somente para as partes,
em especial no direito brasileiro, que considera carente de meios para defesa dos
204
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 4. ed. São Paulo:
Malheiros, 2003, vol. III. p. 318. Nessa questão, tomamos vênia para discordar do ilustre doutrinador,
para quem falta ao terceiro absolutamente indiferente legitimidade ad causam. Considerando-se que
a legitimidade ad causam é a pertinência subjetiva da ação, ou seja, é a correspondência entre a
posição das partes na relação jurídica de direito processual e na relação jurídica de direito substancial
deduzida em juízo, não se vê no caso uma pretensa ausência dessa legitimidade. O que há, uma vez
que o terceiro não teve sua esfera jurídica atingida pela decisão acobertada pela coisa julgada, é a
ausência de conflito de interesses, que caracteriza a lide. Dessa feita, se mostra ausente o interesse
processual, na modalidade necessidade. O terceiro é carecedor de ação, mas não por ilegitimidade,
mas sim por ausência de interesse processual.
205
“Daí por que Betti observa que, na seara do processo, idêntico fenômeno também é passível de
ocorrer, ou seja, a sentença proferida em demanda inter alios poderá ter, para o terceiro estranho ao
processo, uma relevância de natureza prejudicial pertinente à relação jurídica da qual seja ele titular.”
(CRUZ E TUCCI, José Rogério. Limites Subjetivos da eficácia da sentença e da coisa julgada.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. Pág. 48)
206
A denominação “terceiro juridicamente interessado” foi adotada pelo Código de Processo Civil, em
seu art. 487, II.
207
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e Autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa
julgada. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. Pág. 91.
88
interesses do terceiro (principalmente pela ausência de figura semelhante à
oposição de terceiro existente no direito italiano)
208
.
Todavia, está na exposição acerca da extensão subjetiva da eficácia natural da
sentença o ponto de maior importância para a questão ora em análise.
Afirma Liebman que a sentença, como ato do Estado, emite sua vontade, pelo que
possui uma eficácia que impõe seja respeitada por todos, partes ou terceiros. Assim,
a sentença produz efeitos também para os terceiros, mas somente se mostra
imutável para as partes.
209
Pela adoção que referida teoria teve na jurisprudência pátria, causando verdadeiro
impacto sobre os terceiros, José Maria Tesheiner teceu importantes críticas ao seu
alcance.
Afirma o jurista, em linhas gerais, que, em virtude do terceiro estar vinculado à
sentença pela eficácia natural da mesma, ocorre verdadeira inversão do ônus da
prova no caso de lesão a direito seu. Como exemplo utiliza reclamação trabalhista
movida em conluio por A contra B a fim de obter sentença que, declarando a
condição de empregado de B há 20 anos, o faz segurado do INSS, com os direitos
correspondentes. Caso não houvesse aplicação da teoria liebmaniana, a sentença
obtida não poderia ser oposta a terceiro, e B deveria propor demanda em face do
INSS tendo o ônus de provar a condição de efetivo empregado de A pelo tempo
declarado. No entanto, pela eficácia natural da sentença, o INSS deve respeitar a
sentença proferida na reclamação trabalhista, cabendo-lhe o ônus de provar o
conluio.
210
208
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e Autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa
julgada. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. pp. 110-111, p. 117, notas de Ada Pellegrini Grinover
ao § 5º.
209
“Consiste, pois, a conclusão deste trabalho na demonstração de que a sentença produz
normalmente efeitos também para os terceiros, mas com intensidade menor que para as partes;
porque, para estes, os efeitos se tornam imutáveis pela autoridade da coisa julgada, ao passo que
para os terceiros podem ser combatidos com a demonstração da injustiça da sentença. Usando, de
passagem, da terminologia do Código, poderá dizer-se que tem a sentença para as partes eficácia de
presunção iures et de iure; para os terceiros, pelo contrário, de presunção iuris tantum.” (Ibid. p. 144)
v. também pp. 130 e ss.
210
TESHEINER, José Maria. Autoridade e eficácia da sentença. Crítica à teoria de Liebman. Revista
dos Tribunais, São Paulo, vol. 774, 2000. pp. 66-67.
89
Outrossim, afirma o doutrinador gaúcho que a teoria de Liebman extrapola o tom
ideal quando estende o efeito da sentença a todos sem distinção, e considera
medida suficiente para o equilíbrio da justiça das decisões a concessão da
possibilidade de impugnar a sentença que afetou sua esfera jurídica.
A nosso ver, porém, Liebman vai além do desejado e do desejável,
ao afirmar que a sentença tem uma eficácia, dita natural, que a todos
atinge, ainda que com a ressalva de poderem, alguns, demonstrar a
injustiça da decisão. Vai-se, por exemplo, além de um resultado
socialmente desejável, quando desnecessariamente se estende os
efeitos da sentença a terceiro, atribuindo-lhe o ônus de demonstrar a
injustiça de sentença proferida em processo de que não participou.
211
Parece-nos acertada a crítica analisada. O que é encarado por Liebman como
proteção ao terceiro – pela não submissão à autoridade da coisa julgada na
garantia de impugnação da sentença e demonstração da injustiça sofrida, na
verdade se mostra como um fardo: está se atribuindo ao terceiro o ônus de
demonstrar a injustiça sofrida em processo de que o participou. Nesse ínterim,
nenhuma providência cabe às partes do processo que originou a sentença em
questão, que ocupam posição realmente privilegiada em relação ao terceiro caso
venham a litigar em face do mesmo no que tange à injustiça da sentença.
Em muitos casos, tão difícil é, ao terceiro, demonstrar a injustiça da
sentença alheia que, na prática, o que a ele se pretende estender
não é a eficácia da sentença, mas a própria coisa julgada. Ora, como
disse o próprio Liebman, “não pode certamente um fenômeno
reconhecido como contrário à lei tornar-se legítimo por se lhe atribuir
nome diverso, embora conduza aos mesmos resultados práticos”.
212
No entanto, não concordamos com a radicalidade de Tesheiner, para quem não
uma eficácia natural da sentença.
213
A teoria de Liebman tem bases concretas em
que se fundar, especialmente no que tange às sentenças declaratórias. Assim, o
casal que busca judicialmente o divórcio, tem a dissolução do casamento perante
todos, e não inter partes. Se a força da sentença não se desse erga omnes, não
211
TESHEINER, José Maria. Autoridade e eficácia da sentença. Crítica à teoria de Liebman. Revista
dos Tribunais, São Paulo, vol. 774, 2000. p. 69.
212
Ibid. p. 93.
213
Ibid. p. 92.
90
haveria razão de ser o processo. Da mesma forma, a declaração de nulidade, ou
mesmo de existência ou inexistência de um ato, vigora perante terceiros.
214
Por tal motivo, a crítica de Tesheiner, feita em termos extremados, é por nós acatada
em termos: não obstante a eficácia natural da sentença atribua ao terceiro um fardo,
consubstanciado na impugnação da sentença proferida em processo do qual não
participou, com o qual não concordamos, deve ter sua existência reconhecida, vez
que possui bases concretas em que se fundar.
214
Exemplo retirado de TALAMINI, Eduardo. Coisa Julgada e sua Revisão. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2005. Pág. 97.
91
5 A IMUTABILIDADE DAS SENTENÇAS DE CARÊNCIA DE AÇÃO E
A SEGURANÇA JURÍDICA
5.1 A SEGURANÇA JURÍDICA
A segurança sempre foi considerada pelo homem como algo valioso, podendo
mesmo ser considerada, juntamente com a ordem, a previsibilidade e a certeza que
a compõem, parte integrante da natureza humana.
215
Por tal motivo, a segurança
jurídica também encontra raízes antigas na História, como na Roma antiga de
Cícero, que associava direito e certeza, ou mesmo no pensamento medieval de São
Tomás de Aquino, para quem o direito positivo deve ser estável, compreensível, e
eficaz
216
.
Na formação do moderno Estado de Direito, individualista e liberal, a segurança
jurídica assume o papel de um valor formador do direito e da estruturação social.
Isso porque, carece de sentido a formação de um Estado voltado para a criação e
positivação de um determinado número de direitos individuais, se os cidadãos não
gozam da devida segurança para fruir adequadamente esses direitos. Assim, a
segurança jurídica emerge como o verdadeiro elemento constitutivo do Estado de
Direito, conforme afirma José Joaquim Gomes Canotilho
217
.
Nessa vertente, verifica-se que a segurança jurídica é um valor adjetivo à justiça, ou
seja, não cabe se falar em justiça sem segurança. Do mesmo modo, a segurança
torna-se um valor vazio se o houver justiça a ser garantida. Essas idéias são,
portanto, indissociáveis, devendo atuar sempre em conjunto e de modo
complementar para o perfeito funcionamento da sociedade e do Estado de Direito.
215
“[...] a segurança é uma aspiração comum aos homens. O homem sempre viveu em busca da
certeza das coisas e de garantia de proteção.” (GARCIA FILHO, Altamiro. Segurança jurídica.
Revista Jurídica, Goiânia, n. 2, 2001. p. 26.)
216
VIGO, Rodolfo Luis. Interpretação Jurídica: Do modelo juspositivista-legalista do século XIX às
novas perspectivas. São Paulo: RT, 2005. p. 266.
217
CANOTILHO, JJ Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 6. ed. Coimbra:
Almedina, 2003. p. 257.
92
Acerca da relação entre segurança jurídica e justiça, interessante destacar a posição
defendida por Almiro do Couto e Silva, para quem o conflito entre os mencionados
valores jurídicos somente existe se tomarmos a justiça como valor absoluto. Afirma o
jurista:
Do mesmo modo como a nossa face se modifica e se transforma
com o passar dos anos, o tempo e a experiência história também
alteram, no quadro da condição humana, a face da justiça. Na
verdade, quando se diz que em determinadas circunstâncias a
segurança jurídica deve preponderar sobre a justiça, o que se está
afirmando, a rigor, é que o princípio da segurança jurídica passou a
exprimir, naquele caso, diante das peculiaridades da situação
concreta, a justiça material. Segurança jurídica não é, aí, algo que
se contraponha à justiça; é ela a própria justiça. Parece-me, pois,
que as antinomias e conflitos entre justiça e segurança jurídica e
segurança jurídica, fora do mundo platônico das idéias puras, alheias
e indiferentes ao tempo e à história, são falsas antinomias e
conflitos.
218
[grifo nosso]
Desse modo, pela idéia exposta, os embates detectados entre os valores da
segurança jurídica e da justiça seriam, na realidade, inexistentes, vez que a justiça
estaria contida na segurança jurídica que preponderou na solução dada ao caso.
Essa posição, entretanto, não leva em conta que os valores em questão somente
vão preponderar um sobre o outro, dependendo do caso concreto em questão;
nunca um vai conter o outro, como afirma o texto citado.
Com o objetivo de demonstrar o alcance da segurança jurídica, Souto Maior Borges
afirma que a mesma pode ser analisada sob dois aspectos: numa visão ampla,
enquanto valor maior, inspirador do ordenamento jurídico, e numa visão estrita,
como valor constitutivo do ordenamento jurídico
219
. Dessa forma, a segurança
jurídica
[...] pode ser visualizada como um valor transcendente ao
ordenamento jurídico, no sentido de que a sua investigação não se
confina ao sistema jurídico positivo. Antes, inspira as normas que, no
âmbito do direito positivo, lhe atribuem efetividade.
220
218
SILVA, Almiro do Couto e. Princípios da legalidade da administração pública e da segurança
jurídica no Estado de Direito contemporâneo. Revista de Direito Público. São Paulo, n. 84, out.-
dez./1987. p. 47.
219
BORGES, Souto Maior. O princípio da segurança jurídica na criação e aplicação do tributo.
Revista Diálogo Jurídico. Salvador, CAJ Centro de Atualização Jurídica, nº. 13, abril-maio, 2002.
Disponível em www.direitopublico.com.br (Acesso em jan. 2007). p. 1.
220
Ibid. p. 1.
93
Portanto, não obstante a existência indispensável da segurança jurídica como um
valor superior ao ordenamento jurídico, também é possível verificar sua
manifestação como valor a ser extraído da própria ordem jurídica. Muito obstante
sejam diversas as manifestações doutrinárias no sentido de considerar a segurança
jurídica um valor, não parece haver consenso quanto ao que consistiria esse valor,
bem como se seria o mesmo inspirador ou imanente do ordenamento jurídico.
Carlos Blanco de Morais define a segurança jurídica como um valor-pressuposto e
imanente do conceito de direito.”
221
[grifo nosso] Portanto, o jurista não faz menção
de excluir uma das duas acepções da segurança jurídica mencionadas.
Cristina Wójcik Radkowska, por sua vez, defende ser a segurança jurídica um valor,
mas de conteúdo variável. Nesse sentido, para a boa atuação da segurança jurídica,
o legislador deve levar em conta as possibilidades de interpretação da regulação
estabelecida, e é imprescindível que o aplicador tenha uma esfera de liberdade para
sua decisão.
222
Exprimem, ainda, opinião acerca da segurança jurídica se consubstanciar num valor
Ricardo García Manrique
223
, que defende a idéia de que uma crença no valor
moral da segurança jurídica, e na técnica normativa que a assegura, v.g., clareza e
irretroatividade das leis, certeza do direito, etc.; Rafael Ortiz-Ortiz
224
, que afirma
derivar a segurança jurídica da necessidade da coexistência, e aparece na medida
em que a coexistência nos protege; e Juan Vallet de Goytisolo
225
, que apresenta
interessantes referências à seguranças na Escola da Exegese.
221
MORAIS, Carlos Blanco de. Segurança jurídica e justiça constitucional. Revista da Faculdade de
Direito de Lisboa. Coimbra, v. XLI, n. 2, 2000. p. 621.
222
RADKOWSKA, Cristina Wójcik. Entre seguridad jurídica y justicia: los conceptos de contenido
variable. Estudios de Deusto Revista de la Universidad de Deusto. Bilbao, v. 49/2, jul.-
dez./2001.
223
MANRIQUE, Ricardo García. Acerca del valor moral de la seguridad jurídica. Cuadernos de
Filosofia de Derecho. Barcelona, v. 26, 2003.
224
ORTIZ-ORTIZ, Rafael. Introducción a uma teoria de los valores jurídicos. Revista de la Facultad
de Ciências Jurídicas y Políticas. Caracas, n. 101, 1996.
225
GOYTISOLO, Juan Vallet de. La seguridad de la norma jurídica. Estudios de Deusto Revista
de la Universidad de Deusto. Bilbao, v. 34/2, jul.-dez./1986.
94
Na doutrina pátria, Geraldo Ataliba defende que o “direito é por excelência, acima de
tudo, instrumento de segurança”.
226
No entanto, quem defenda que, para que haja a efetiva realização da segurança
jurídica, é preciso objetivá-la
227
. Essa objetivação, todavia, não pode se dar de forma
a tornar as providências objetivas instrumentais estáticas. Afirma Miguel Reale sobre
o tema:
[...] a certeza estática e definitiva acabaria por destruir a
formulação de novas soluções mais adequadas à vida, e essa
impossibilidade de inovar acabaria gerando a revolta e a
insegurança. Chego mesmo a dizer que uma segurança
absolutamente certa seria uma razão de insegurança, visto ser
conatural ao homem – único dotado de liberdade e de poder de
síntese – o impulso para a mudança e a perfectibilidade, o que
Camus, sob outro ângulo, denomina “espírito de revolta”.
228
Assim, para Miguel Reale, a impossibilidade de inovação é fator gerador de
insegurança.
A esse valor positivado (e ressaltamos que a positivação muitas vezes não é
expressa) denominaremos “princípio da segurança jurídica”, tal qual o faz Canotilho
(cf. próximo parágrafo), ainda que, conforme veremos adiante, ele tome, por vezes,
posição de direito fundamental.
Todavia, desde destacamos que a segurança jurídica é, antes de tudo, um valor,
e, mesmo que se procure positivá-la (na realidade a positivação é de instrumentos
assecuratórios de sua realização), ela o perde nunca a qualidade de valor, pois
transcende o ordenamento jurídico. Quando se conclui que a segurança jurídica é
imanente do direito, se está na verdade constatando que a mesma foi responsável
pela formação do mesmo, e sua influência se encontra arraigada em todas as suas
vertentes.
226
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: RT, 1985. pp 156-157.
227
CAMPOS, Hélio Silva Ourem. Segurança jurídica: valores e expressões objetivas. Revista da
ESMAPE. Recife, v. 9, n. 20, tomo I, jul.-dez./2004.
228
REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito situação atual. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
1994. p. 87.
95
Para José Joaquim Gomes Canotilho, o princípio geral da segurança jurídica é
composto por duas dimensões específicas: a segurança jurídica e a proteção da
confiança. Segundo esse autor, a segurança jurídica está relacionada com os
elementos objetivos da ordem jurídica, incluindo a garantia de estabilidade jurídica e
a segurança de realização do direito. A proteção da confiança, por sua vez, tem
relação com elementos subjetivos da ordem jurídica, em especial a previsibilidade
dos indivíduos quanto aos efeitos jurídicos aplicáveis em sua esfera de direitos
229
.
É possível vislumbrar que a segurança jurídica está presente no ordenamento
constitucional brasileiro sob tríplice manifestação: como valor, como princípio e como
direito fundamental.
Em primeiro lugar, a segurança jurídica está presente como valor inspirador das
regras formadoras do ordenamento jurídico, sendo transcendente ao mesmo. Essa
acepção da segurança já foi abordada anteriormente.
Ademais, a segurança jurídica tem a função de princípio norteador do Estado
democrático de direito brasileiro. Nesse âmbito ela tem previsão expressa no texto
do preâmbulo da Constituição Federal de 1988, que afirma:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia
Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado
a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade
e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e
comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução
pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a
seguinte Constituição da República Federativa do Brasil. [grifo nosso]
Por fim, temos a segurança jurídica como direito fundamental prevista
expressamente no caput do art. 5º da CF/88. Vejamos.
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
229
CANOTILHO, JJ Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 6. ed. Coimbra:
Almedina, 2003. p. 257.
96
Desse modo, podemos dizer que a segurança jurídica é um princípio multifacetado,
com atuação e influência em todo o direito.
A esse propósito, afirma JoJoaquim Gomes Canotilho que as mais importantes
manifestações do princípio da segurança jurídica são:
(1) relativamente a actos normativos - proibição de normas
retroactivas restritivas de direitos ou interesses juridicamente
protegidos; (2) relativamente a actos jurisdicionais inalterabilidade
do caso julgado; (3) em relação a actos da administração
tendencial estabilidade dos casos decididos através de actos
administrativos constitutivos de direitos.
230
É importante ressaltar que, no presente trabalho, discorremos acerca do alcance da
segurança jurídica no que tange às decisões judiciais. Ora, é de extrema importância
que a segurança se manifeste em toda a atividade jurisdicional. Entretanto, a maior
atuação da segurança nesse âmbito se por meio da garantia constitucional da
coisa julgada, prevista no art. 5º, XXXVI, da CF/88: “a lei não prejudicará o direito
adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.”.
Verifica-se, assim, que a ordem constitucional propôs-se a tutelar a prestação
jurisdicional definitivamente entregue, garantindo a estabilidade dos julgados,
conferindo certeza ao titular do direito reconhecido pelo provimento jurisdicional.
Sendo assim, não a coisa julgada se apresenta em nosso ordenamento jurídico
como uma garantia individual, mas também representa um dos pilares de
sustentação da segurança jurídica, além de constituir-se como um personagem
indispensável ao desenvolvimento da Jurisdição.
Portanto, passaremos a analisar a relação da segurança jurídica e da coisa julgada,
bem como da incidência da coisa julgada material nas sentenças de carência de
ação como fator gerador de segurança jurídica.
230
CANOTILHO, JJ Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 6. ed. Coimbra:
Almedina, 2003. Pág. 257.
97
5.2 SEGURANÇA JURÍDICA, COISA JULGADA E REALIDADE SOCIAL
A sociedade é uma instituição complexa, permeada por uma diversidade de relações
entre indivíduos que devem, de alguma forma, ser reguladas para que se evite a
desordem total.
O direito tem a função precípua e indispensável de regular os diferentes interesses
que os homens manifestam na vida comunitária, não sendo possível se negar a
existência de uma íntima correlação entre a sociedade e o direito. Por essa razão, o
direito pode ser considerado como uma forma de controle social.
Contudo, é necessário se admitir que, isoladamente, as normas reguladoras não
resolvem os conflitos sociais, uma vez que, muitas vezes, os comandos normativos
não são cumpridos voluntariamente. Além disso, acrescenta-se a esse fato que a
indefinição de situações jurídicas entre pessoas é sempre motivo de insatisfação e
acaba por gerar a instabilidade social
231
, demonstrando a necessidade do direito
objetivo encontrar uma forma efetiva de pacificação dos litígios que surgem entre os
indivíduos.
No direito primitivo, concebia-se a justiça privada como forma de compelir o
indivíduo à observância das normas jurídicas, e nesse contexto a execução dos
direitos era efetivada pelo próprio interessado. Esse exercício do direito levava,
naturalmente, a uma série de conseqüências indesejáveis, pois os conflitos eram
resolvidos, não raras vezes, com parcialidade e excessos. Essa era a chamada
autotutela, onde cada um defendia os seus interesses como pretendesse.
Com a evolução social, o homem buscou outras soluções como a autocomposição e
juízo arbitral. A primeira fundava-se em concessões recíprocas entre as partes em
litígio, as quais abriam mão de suas pretensões, ou de parte delas. Os juízos
arbitrais podiam ser facultativos ou obrigatórios. Nos facultativos, as partes tinham
autonomia para a escolha de um árbitro, que, então, teria competência para o
231
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria geral do processo. 20. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2002. pp. 19-23.
98
julgamento.
232
Posteriormente, os juízos arbitrais passaram a ser obrigatórios, aumentando a
intervenção do Estado na pacificação dos conflitos, até que finalmente instalou-se a
tendência no sentido de chegar ao Estado todo o poder de dirimir conflitos.
233
Assim, o Estado passou a assumir a responsabilidade pela aplicação do direito e a
manutenção da ordem social. A partir daí, surge o conceito da jurisdição e a
possibilidade do indivíduo buscar a tutela jurisdicional sempre que se entendesse
lesado em algum direito seu.
A jurisdição é o poder-dever que tem o Estado de prestar a tutela jurisdicional, em
substituição às partes, fazendo atuar a vontade da lei.
O conceito clássico de jurisdição foi formulado por Giuseppe Chiovenda:
Pode definir-se a jurisdição como a função do Estado que tem por
escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio de uma
substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade de
particulares ou de outros órgãos públicos, no afirmar a existência
da vontade da lei, já no torná-Ia praticamente efetiva.
234
Atualmente, a idéia de exclusividade absoluta do Estado na solução dos conflitos
tem sido um pouco contestada pelo aparecimento de meios alternativos de
pacificação social, como a utilização da arbitragem ou mesmo a conciliação
extraprocessual. Essa observação deve ser feita, porém, como exceção à regra, que
continua sendo o monopólio do controle jurisdicional pelo Estado.
232
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de direito processual civil. 2. ed. rev. e atual. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, v. 1. p. 100.
233
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria geral do processo. 20. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 24.
234
“[...] Dissemos, antes de tudo, que a jurisdição é exclusivamente uma função do Estado, isto é,
uma função da soberania do Estado. A soberania é o poder inerente ao Estado, quer dizer, à
organização de todos os cidadãos para fins de interesse geral. Mas esse poder único insere três
grandes funções: a legislativa, a governamental (ou administrativa) e a jurisdicional. Todas três
irradiam do Estado; em especial, emana exclusivamente do Estado a jurisdição. Hoje não se admite
mais que, no território do Estado, institutos ou pessoas diversas do Estado constituam órgãos para
atuação da lei, como acontecia noutras eras, particularmente a favor da Igreja, cujos juizes
sentenciavam em muitas matérias (especialmente nas relações entre eclesiásticos) com efeitos civis
também." (CHIOVENDA. Giuseppe. Instituições de direito processual civil. 2. ed. Campinas:
Bookseller, 2000, v.II. pp. 8-9.).
99
Assim, sempre que houver resistência de outrem a uma legítima pretensão, é viável
buscar a proteção do Estado. E é a ação o meio através do qual se exercita o direito
de pedir a tutela jurisdicional.
Vedada em princípio a autodefesa e limitadas a autocomposição e a
arbitragem, o Estado moderno reservou para si o exercício da função
jurisdicional, como uma de suas tarefas fundamentais. Cabe-lhe,
pois, solucionar os conflitos e controvérsias surgidos na sociedade,
de a acordo com norma jurídica reguladora do convívio entre os
membros desta. Mas a jurisdição é inerte e não pode ativar-se sem
provocação, é de modo que cabe ao titular da pretensão resistida
invocar a função jurisdicional, a fim de que esta atue diante do caso
concreto. Assim fazendo, o sujeito do interesse estará exercendo um
direito (ou, segundo parte da doutrina, um poder), que é a ação, para
cuja satisfação o Estado deve dar a prestação jurisdicional. Ação,
portanto, é o direito ao exercício da atividade jurisdicional (ou o poder
de exigir este direito).
235
A tutela jurisdicional é provocada pelo particular através do exercício do direito de
ação e pode ser prestada através do provimento de conhecimento, cautelar e
execução. Dessa forma, o Estado tomou para si a função de pacificar os conflitos
surgidos no meio social.
Ademais, sabemos que o primeiro objetivo do Estado é a promoção do bem comum,
que é um conceito indissociável da certeza nas relações jurídicas.
236
Por isso, a
coletividade precisa também daquilo que se convencionou chamar segurança
jurídica.
No que toca aos provimentos jurisdicionais, é necessário que a certeza assegurada
nos mesmos transpareça como algo garantido e intangível. Caso contrário, permitir-
se-ia que os conflitos intersubjetivos fossem eternamente discutidos, com a
possibilidade de uma lide perpétua e impeditiva de uma pacificação social por meio
do Estado.
235
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel.
Teoria geral do processo. 20. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 247.
236
"Intimamente vinculada à noção de bem comum, que é o principal objetivo do Estado Moderno,
está aquela certeza nas relações jurídicas. Sendo o direito administrado pelo Estado, como meio de
obter a paz social, e sabendo-se que a razão teleológica do Estado é a consecução do bem comum,
tem-se que este só será obtido no momento em que as relações de direito entre os indivíduos
estejam impregnadas de certeza, palavra aqui entendida em sentido filosófico, ou seja, a segurança
de um conhecimento e, complementarmente, a garantia que um conhecimento oferece a verdade.”
(SOUSA, João Bosco Medeiros. Coisa julgada e certeza nas relações jurídicas. Revista Forense, Rio
de Janeiro, n. 289, p. 441-443, jan.l/ar. 1985. p. 442.)
100
Consubstanciou-se, então, a necessidade de relações sociais estáveis,
fundamentadas em decisões judiciais definitivas. Somente assim a sociedade teria a
dita segurança jurídica, ou seja, a certeza de que os provimentos jurisdicionais são
vinculantes e imutáveis pelo tempo, constituindo uma verdadeira garantia àqueles
que tenham tido o direito subjetivo tutelado pelo Judiciário.
O instrumento processual utilizado para fins de garantir a segurança jurídica é a
preclusão e, em seu grau máximo, a coisa julgada. É a res judicata o instituto que
garante a imutabilidade das decisões judiciais, tornando os seus efeitos
(declaratório, constitutivo, condenatório e mandamental) imunes a futuras
alterações, de forma que não possam mais ser questionados ou discutidos no
âmbito da mesma ou de outras relações processuais.
237
A coisa julgada material é atributo indispensável ao Estado
Democrático de Direito e à efetividade do direito fundamental de
acesso ao Poder Judiciário obviamente quando se pensa no
processo de conhecimento.
[...]
Ou seja, de nada adianta falar em direito de acesso à justiça sem dar
ao cidadão o direito de ver o seu conflito solucionado
definitivamente.
238
A coisa julgada tem respaldo na sua função jurídica e política. Politicamente, a coisa
julgada justifica-se enquanto mecanismo destinado a dar segurança às relações
atingidas pela sentença e tomar seguros e eficazes os pronunciamentos
jurisdicionais, de maneira a que se solução definitiva aos conflitos,
restabelecendo assim a paz social. A imutabilidade das decisões judiciais tem por
escopo reforçar a confiança pública nos julgamentos.
237
“A segurança jurídica que dela [da coisa julgada] se irradia garante ordem à organização e ao
funcionamento do sistema jurídico; assegura, também, uma situação de clara e precisa
cognoscibilidade aos direitos das partes e confere, ainda, estabilidade e previsibilidade ao direito
invocado; em suma, traduz a meta final e definitiva da reivindicação dos cidadãos perante o poder
jurisdicional do Estado, na defesa da processualidade e da decibilidade dos seus direitos subjetivos e
objetivos.
[...]
Certamente, o princípio da segurança jurídica da coisa julgada qualifica a entrega dos serviços da
prestação jurisdicional uma vez que torna possíveis e estáveis os valores jurídicos da coexistência
social.” (PILATI, Adriana Fasolo. Segurança jurídica: significado constitucional da coisa julgada.
Justiça do direito. Passo Fundo, v. 15, n. 15, 2001. p. 104.)
238
MARINONI, Luiz Guilherme. O Princípio da Segurança dos Atos Jurisdicionais (A Questão da
Relativização da Coisa Julgada Material). Revista Jurídica, São Paulo, nº. 317, Ano 52, mar. de 2004.
pp. 16-17.
101
Em seu aspecto jurídico, é técnica que possibilita o fim do processo e impede a
rediscussão sobre a matéria. Isso porque o Estado, para dizer em definitivo o direito,
contenta-se, ao menos no que tange ao processo civil, com verdade formal. O
julgador decide o litígio com base nos dados e elementos que se encontram nos
autos, de modo que a sentença expressa uma verdade relativa.
Na realidade, a coisa julgada não é uma "ficção da verdade". Antes disso, simboliza
a afirmação, pelo Estado, da vontade da lei no caso concreto, e é com a tutela
jurisdicional definitiva que se determina esta vontade, ainda que não reflita a
verdade real, legitima-se por representar a autoridade do Estado, que é exigida pela
ordem pública.
239
Essa é a lição de Chiovenda sobre a justificação da coisa julgada:
Os romanos a justificavam com razões inteiramente práticas, de
utilidade social. Para que a vida social se desenvolva o mais possível
segura e pacífica, é necessário imprimir certeza ao gozo dos bens da
vida, e garantir o resultado do processo. [...] Entendido o processo
como instituto público destinado à atuação da vontade da lei em
relação aos bens da vida por ela garantidos, culminante na
emancipação de um ato de vontade (a pronuntiatio iudicis) que
condena ou absolve, ou seja, reconhece ou desconhece um bem da
vida a uma das partes, a explicação da coisa julgada se pode
divisar na exigência social da segurança no gozo dos bens.
240
Outrossim, a coisa julgada tem status de garantia constitucional. Desse modo, a
coisa julgada material não é instituto confinado ao direito processual. Ela tem, acima
de tudo, o significado político institucional de assegurar a firmeza das situações
jurídicas, tanto que erigida em garantia constitucional. Uma vez consumada, reputa-
se consolidada no presente e para o futuro a situação jurídico-material das partes,
relativa ao objeto do julgamento. Toda possível dúvida está definitivamente
dissipada, quanto ao modo como aqueles sujeitos se relacionam juridicamente na
vida comum, ou quanto à pertinência de bens a um deles.
239
[...] Nestas condições, mesmo quando a sentença o seja a expressão da verdade objetiva,
constitui de qualquer modo a expressão da verdade subjetiva, com a qual se contenta o Estado.
Transitada em julgado, não possibilidade de erro do ponto de vista jurídico: a coisa julgada é
sempre conforme o direito, é sempre a expressão da autoridade do Estado." (REZENDE FILHO,
Gabriel José Rodrigues de. Curso de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 1960, v. III. p.
51.).
240
CHIOVENDA. Giuseppe. Instituições de direito processual civil. 2. ed. Campinas: Bookseller,
2000, v. I. p. 447.
102
Dito isso sobre o papel da coisa julgada na conjuntura jurídica e social, é admissível
se afirmar que a res judicata ainda é a solução mais eficiente que foi encontrada
pelo direito para garantir a segurança jurídica, tanto é que a própria ordem
constitucional conferiu-lhe legitimidade, elevando-a a garantia imodificável.
241
No entanto, é necessário salientar que a coisa julgada, muito embora não seja esse
o propósito do presente trabalho, pode comportar abrandamento no seu caráter
absoluto.
Isso porque uma sentença pode não necessariamente refletir a realidade fática. As
decisões judiciais são proferidas com base nos elementos constantes dos autos e no
exercício racional do julgador, donde se passou afirmar que os julgamentos
correspondem à afirmação do Estado por meio da vontade da lei. Assim por
exemplo, a deficiente produção de provas, o erro lógico do juiz ou mesmo as
limitações do processo podem levar a julgamentos equivocados.
O mestre italiano Piero Calamandrei vislumbrava a contradição do sistema da
preclusão:
Também aqui se encontram em jogo duas exigências opostas: de
uma parte, eso interesse em alcançar a verdade, que aconselha a
deixar, até o momento da decisão definitiva, a porta aberta a todas
as deduções mesmo tardias, porque estas podem proporcionar ao
juiz novos elementos de convicção, que favoreçam aos fins da
justiça; de outra parte, está o interesse na rapidez e na boa fé
processual, que exige que as partes não prolonguem o processo com
um gotejar bem dosado de deduções guardadas em reserva, e quer
que as mesmas, desde o início, esvaziem o saco de suas razões,
sem preparar os expedientes para surpresas de última hora. Num
sistema processual que satisfaça plenamente a primeira exigência,
corre-se o risco, por amor à verdade, de deixar livre o campo à tática
dilatória. Enquanto que se satisfaz plenamente à segunda exigência,
corre-se o risco, por amor à rapidez, de sacrificar a justiça.
242
A coisa julgada torna os efeitos da sentença definitivos e inquestionáveis, que
devem, em tese, ser mantidos a despeito da correção do julgado e de sua
241
“A maior garantia do Estado democrático de direito reside no instituto da coisa julgada, que se
reserva, tão-somente, ao Judiciário, para segurança jurídica de todos, no exercício da cidadania.”
(PRUDENTE, Antônio Souza. Poder Judiciário e segurança jurídica. Revista de Informacao
Legislativa.
Brasília, v.29, n.115, jul.-set./1992. p. 579.)
242
CALAMANDREI, Piero. Direito processual civil. Campinas: Bookseller, 1999, v. I. p. 309.
103
repercussão social, tudo em prol do valor da segurança jurídica.
243
Mas isso pode gerar na realidade social uma série de problemas. Exemplos
emblemáticos vêm ocorrendo em relação às ações de investigação de paternidade
com trânsito em julgado, depois da descoberta e utilização do exame de DNA.
Temos nesses casos uma situação em que se confrontam de um lado a
definitividade coisa julgada, e de outro, a certeza da injustiça do provimento
jurisdicional.
Do mesmo modo, é sempre possível se questionar a rigidez da coisa julgada em
face de julgamentos que se confrontam com os princípios da razoabilidade e até
mesmo da moralidade pública.
Inclusive, é necessário que isso aconteça, porque a segurança jurídica não é o único
valor que a coletividade impõe. Existem outros, como por exemplo a moralidade, a
justiça e a confiança na inteireza das decisões judiciais que também funcionam
como diretrizes consideradas obrigatórias pela sociedade e pela norma
constitucional.
Até mesmo a celeridade, que é o outro valor que se visa a garantir, juntamente com
a imutabilidade das decisões, deve ser tomada com reservas. A rapidez na
prestação jurisdicional encontra o seu contraponto na produção de resultados pela
atuação do Estado com a devida ponderação.
Sob o prisma sociológico, a obediência a uma norma jurídica depende do quanto
seja ela adequada à realidade social e aos seus valores positivos: será eficaz a
norma que corresponder ao querer coletivo da sociedade que visa regular. Sem isso,
243
"O raciocínio sobre os fatos é obra da inteligência do juiz, necessária como meio de preparar a
formulação da vontade da lei. Por vezes, como verificamos (nas provas legais), o juiz não pode
sequer raciocinar sobre os fatos. O juiz, porém, não é somente um lógico, é um magistrado. Atingindo
o objetivo de dar formulação à vontade da lei, o elemento lógico perde, no processo, toda
importância. Os fatos permanecem o que eram, nem pretende o ordenamento jurídico que sejam
considerados como verdadeiros aqueles que o juiz considera como base da sua decisão; antes, nem
se preocupa em saber como se passaram as coisas, e se desinteressa completamente dos possíveis
erros lógicos do juiz; mas limita-se a afirmar que a vontade da lei no caso concreto é aquilo que o juiz
afirma ser a vontade da lei." (CHIOVENDA. Giuseppe. Instituições de direito processual civil. 2.
ed. Campinas: Bookseller, 2000, v.I. p. 449).
104
a norma reveste-se meramente de eficácia jurídica, mas não social, porquanto
inadequada à realidade fática.
É inquestionável que a previsão da coisa julgada, na qualidade de norma jurídica,
possui eficácia. Não se pretende, com as colocações supramencionadas, dizer que
o preceito legal que a estabelece não é observado ou que não deve sê-Io.
Contrariamente, pode-se com segurança afirmá-Ia como norma jurídica dotada de
aplicabilidade e eficácia.
O preceito da coisa julgada teeficácia conquanto seja coincidente com os demais
princípios adotados pela carta constitucional. No momento em que a eles se
contraponha, resta a dúvida sobre o quão rigidamente deve ser aplicado pelos
órgãos jurisdicionais.
A idéia não é desdizer a Constituição Federal e sobrepujar a coisa julgada. É antes
encontrar a proporção certa de sua aplicação para que seja plenamente eficaz.
Feitas as necessárias considerações acerca da questão posta, indispensável
investigar se a incidência da coisa julgada material nas sentenças de carência de
ação é fator gerador de segurança jurídica.
5.4 A IMUTABILIDADE DAS SENTENÇAS DE CARÊNCIA DE AÇÃO
COMO FATOR GARANTIDOR DA SEGURANÇA JURÍDICA
Conforme tivemos oportunidade de expor, a coisa julgada material imuniza os efeitos
substanciais da sentença, impedindo a repropositura da demanda, e viabilizando a
revisão do julgado por meio de ação rescisória (quando cabível).
As sentenças declaratórias de carência, como vastamente analisado no presente
trabalho, têm eficácia material extraprocessual. As sentenças de carência por
ilegitimidade de parte, e por ausência de interesse processual apresentam solução
105
parcial da lide, enquanto a impossibilidade jurídica da demanda implica na definição
completa do litígio no início do processo.
Portanto, evidente é a produção de efeitos materiais pela decisão de carência, que
não pode ser ignorada. Ainda que a solução da lide não seja total, vez que a
procedência do pedido não foi objeto de análise, não se pode negar que a demanda
efetivamente deduzida em juízo (e não a chamada lide possível) teve um resultado
que deve tornar-se definitivo. Se a solução da lide é total, no caso de impossibilidade
jurídica, a sua imutabilidade é inquestionável.
Não há, dessa forma, vidas acerca da incidência da autoridade da coisa julgada
material sobre a sentença de carência de ação. Isso implica na vedação à
repropositura da demanda já definitivamente decidida, que somente poderá ser
atacada pela via da ação rescisória.
Lembramos que a imutabilidade da sentença de carência de ação implica numa
interpretação restritiva do art. 268 do CPC. Isso porque esse dispositivo legal prevê
a possibilidade de repropositura da demanda sem restrições. Uma vez que o artigo
de lei é aplicável a todas as hipóteses de extinção previstas no art. 273 do CPC, não
levando em conta as particularidades de cada caso previsto, entendemos que o
legislador deixou aberto caminho para a aplicação da técnica hermenêutica mais
adequada para cada situação.
No caso das sentenças de carência, a repropositura somente poderá ser permitida
caso sejam alterados, ou corrigidos, os aspectos definitivamente julgados. Essa
interpretação não vai de encontro à imutabilidade provocada pela coisa julgada
material, uma vez que, realizadas as alterações, se estará na realidade propondo
uma nova demanda.
Destacamos, mais uma vez, que, se o objetivo da técnica das condições da ação é a
economia processual, evitando o prolongamento e a proliferação de demandas
inúteis, a repropositura através da repetição do processo julgado é medida
totalmente contrária ao fim do instituto.
106
Ademais, impende salientar que a sentença de carência contém juízo de valor sobre
a relação material deduzida em juízo, que somente não se aprofundou, pois não
houve necessidade para a solução do processo. Em outras palavras, a cognição
realizada, embora superficial, foi suficiente para revelar que a tutela jurisdicional
pedida não poderia ser entregue pelo Estado-juiz.
Por tais motivos, a imutabilidade do julgado se faz medida indispensável para a
restauração do equilíbrio nas relações jurídicas na sociedade. Caso não houvesse a
incidência da coisa julgada, a situação substancial já decidida poderia ser reproposta
infinitas vezes pela parte que não foi contemplada com a tutela que almejada,
perturbando seu oponente processual e a paz social, e correndo o risco de encontrar
um magistrado que não perceba o não cabimento de plano de sua pretensão e
acabe por lhe conferir a tutela jurisdicional.
Portanto, a imutabilidade das sentenças de carência é fator que assegura a certeza,
a estabilidade e a previsibilidade dessas decisões e do direito nelas veiculado, e,
desse modo, garante a segurança jurídica.
Não que se duvidar, assim, que a incidência de coisa julgada material é fator
garantidor de segurança jurídica.
5.5 POSICIONAMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ACERCA DO TEMA
A posição externada no presente trabalho, acerca da incidência da coisa julgada
material nas sentenças que extinguem o processo sem julgamento de mérito por
carência de ação, vem sendo adotada, ainda que não de forma majoritária, no
Superior Tribunal de Justiça.
As principais manifestações da imutabilidade das sentenças de carência de ação
encontradas nos julgados do STJ acerca do tema são a vedação à repropositura
automática da causa, e a permissão à utilização da ação rescisória para
desconstituição do julgado.
107
Em virtude da importância com que se coloca o tema, passaremos a analisar alguns
dos principais julgados que trataram do assunto.
No REsp 45.935-4/SP, relatado pelo Mininstro Nilson Naves, julgado em
04.10.1994, ficou decidido que não é lícito que o autor intente de novo a ação,
quando houve ausência de interesse processual. Em voto sucinto, afirmou o
Excelentíssimo Min. Relator, ainda, que a extinção da ação por ser idêntica àquela
em que ficou declarada a carência não ofende o art. 268 do CPC. A tese do Relator
foi acatada por unanimidade.
Entendemos que, na decisão em análise, houve verdadeira incidência da coisa
julgada material sobre a decisão de carência, não obstante o acórdão não se utilize
do termo. Ademais, a interpretação realizada do art. 268 do CPC foi restritiva, pois
não foi admitida a repropositura pura e simples da demanda, i.é, sua mera repetição.
O REsp 103.584- SP, relatado pelo Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, e
julgado em 05.06.2001, por sua vez, traz em sua ementa menção expressa à coisa
julgada, afirmando que, se o autor se limita a re-propor ação da qual fora julgado
carente, estará ofendendo a coisa julgada. Se apóia no art. 471 do CPC, segundo o
qual nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas.
A vedação da repropositura da demanda também foi veiculada no REsp 191934/SP,
relatado pelo Ministro Barros Monteiro e julgado em 21.09.2000. A ementa desse
julgado, cuja íntegra do acórdão, infelizmente, não está disponível no site do STJ,
afirma que é inadmissível a repropositura automática da ação, com reprodução
integral da demanda anterior, ainda que esse último processo tenha sido declarado
extinto sem julgamento do mérito, por ausência de interesse processual.
É possível verificar, desse modo, que o Superior Tribunal de Justiça vem
considerando sistematicamente as sentenças de carência de ação imutáveis, uma
vez que veda sua repropositura automática. Lembramos, oportunamente, que o
ajuizamento da demanda com a reparação do vício apontado na decisão imutável
implica na propositura de nova demanda, pois terá, então, ocorrido alteração de
algum dos elementos da demanda (partes, causa de pedir ou pedido).
108
No REsp nº 216.478/SP, relatado pelo Ministro João Otávio de Noronha e julgado
em 19.04.2005, Se o órgão julgador, ao examinar as condições da ação, aprofunda-
se na análise do direito material, incursiona no mérito da questão, possibilitando,
assim, o reexame do respectivo julgado em sede de ação rescisória.
Afirma o Excelentíssimo Min. Relator em seu voto:
Diante disso, não resta dúvida de que foram tratados temas ínsitos
ao mérito da controvérsia, ainda que a conclusão do julgado tenha
sido pela ausência de legitimidade do autor para a propositura da
ação repetitória, o que, a meu ver, legitima a prolação da sentença
de improcedência. Com efeito, entendo que o acórdão impugnado,
ao concluir que, na sentença prolatada, não houve julgamento de
mérito e, por isso, não é ela passível de revisão em sede ação
rescisória, conferiu interpretação equivocada ao preceito inscrito no
art. 267, VI, do CPC ("Art. 267 - Extingue-se o processo sem
julgamento de mérito; VI - quando não ocorrer qualquer das
condições da ação como a possibilidade jurídica, a legitimidade das
partes e o interesse recursal. "). No caso, como dito, a motivação
consignada na sentença adentrou na análise do direito material
aplicável, incursionando, por conseguinte, no exame do mérito do
litígio. Cabível, portanto, o reexame do julgado na via da ação
rescisória.
Muito embora entenda o acórdão que a tênue linha que separa as condições da
ação do mérito foi ultrapassada, pois teria havido cognição profunda no caso
analisado, não deixa a decisão de conferir coisa julgada material à sentença de
carência, permitindo que sua imutabilidade fosse atacada tão e somente por ão
rescisória.
Pelo exposto, é possível verificar que o Superior Tribunal de Justiça vem adotando
posicionamento que se coaduna com as idéias defendidas no presente trabalho.
Passaremos, portanto, às proposições conclusivas acerca dos temas que foram
discutidos ao longo da narrativa.
109
6 CONCLUSÃO
A ação é plena e suficientemente prevista na Constituição Federal, e seu conteúdo
consiste no direito a um processo justo, ou seja, conduzido de acordo com o devido
processo constitucional.
Não subsiste a diferença entre um direito de ação constitucional, e um direito de
ação processual. Qualquer previsão infraconstitucional acerca do instituto deve estar
de acordo com a configuração que lhe deu a CF/88, sendo que as regras acerca do
tema inseridas no Código de Processo Civil devem ser entendidas como mera
técnica processual, destinadas a dar melhor alcance ao direito de ação.
A análise das condições da ação deve se dar in statu assertionis, na petição inicial.
Ultrapassado esse momento processual, teremos análise do mérito.
Sentença de mérito é aquela que acolhe ou rejeita o pedido formulado pelo autor.
As condições da ação não são categoria estranha ao mérito. Por outro lado, também
não é possível afirmar que elas integram o mérito, generalizadamente. A análise de
cada uma das condições da ação se relaciona com a relação jurídica de direito
material de uma forma particularizada, o que pode sim gerar uma decisão total de
mérito, ou uma decisão que o resolva apenas parcialmente.
A impossibilidade jurídica do pedido é uma improcedência prima facie. Não há
diferença ontológica entre a sentença que declara sua carência e a sentença de
mérito (improcedência).
Na declaração de carência por ilegitimidade não ocorre exame integral do litígio, pois
não necessidade do mesmo para que se verifique que o autor não é titular do
direito que procurava ver tutelado. Entretanto, apesar de não haver uma resposta de
mérito (ao pedido formulado), uma conclusão acerca daquela demanda deduzida
em juízo.
110
A análise do interesse processual sob o ângulo da adequação é desvinculada de
elementos da relação de direito substancial. Ele deve ser desconsiderado caso não
seja identificado oportunamente e se o julgamento de mérito se mostre possível.
Sob o ângulo da necessidade, o interesse deverá ser analisado conforme o tipo de
tutela jurisdicional requerido. Nas demandas condenatórias e constitutivas, ele nada
mais é do que um aspecto do direito material deduzido em juízo.
Nas demandas declaratórias, entretanto, o interesse de agir é constituído por fatos
estranhos à relação material que se almeja seja objeto de declaração. Seu exame
pode depender de atividade instrutória. Caso essa atividade demonstre a existência
(ou inexistência) do direito, deve ser superada a carência e proferida sentença de
mérito, acolhendo o pedido de tutela declaratória.
Devemos encarar as condições da ação como mera técnica processual, como um
filtro no limiar do processo para que demandas inúteis não prolonguem o curso
procedimental.
Sendo a coisa julgada material é a imutabilidade dos efeitos substanciais da
sentença, não obstante o que a lei processual civil preceitua, a sentença declaratória
de carência de ação é apta a produzi-la.
É necessário fazer uma interpretação restritiva do art. 268 do CPC. Assim, no caso
das sentenças de carência, a repropositura somente poderá ser permitida caso
sejam alterados, ou corrigidos, os aspectos definitivamente julgados. Realizadas
as alterações, se estará na realidade propondo uma nova demanda.
A coisa julgada se consubstancia numa garantia constitucional, e não num instituto
processual.
A res judicata ainda é a solução mais eficiente que já foi encontrada pelo direito para
garantir a segurança jurídica.
111
A segurança jurídica é um valor transcendente ao ordenamento jurídico. Quando se
conclui que a segurança jurídica é imanente do direito, se está na verdade
constatando que a mesma foi responsável pela formação do mesmo, e sua
influência se encontra arraigada em todas as suas vertentes.
A segurança jurídica está presente no ordenamento constitucional brasileiro sob
tríplice manifestação: como valor, como princípio e como direito fundamental.
A imutabilidade das sentenças de carência é fator que assegura a certeza, a
estabilidade e a previsibilidade dessas decisões e do direito nelas veiculado, e,
desse modo, garante a segurança jurídica.
O posicionamento que garante a incidência de coisa julgada material nas sentenças
de carência de ação vem sendo adotado pelo Superior Tribunal de Justiça em
diversos julgados, o que corrobora a robustez das idéias defendidas no trabalho.
112
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