Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE PARANAENSE - UNIPAR
JOMAH HUSSEIN ALI MOHD RABAH
CRÍTICA À RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA
Umuarama
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2008
ads:
JOMAH HUSSEIN ALI MOHD RABAH
CRÍTICA À RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA
Dissertação apresentada como requisito
parcial para a obtenção do grau de
mestre no curso de Mestrado em Direito
Processual e Cidadania da Universidade
Paranaense.
Orientador: Prof. Dr. Jônatas Luiz
Moreira de Paula.
Umuarama
2008
JOMAH HUSSEIN ALI MOHD RABAH
CRÍTICA À RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA
Dissertação apresentada como requisito
parcial para a obtenção do grau de
mestre no curso de Mestrado em Direito
Processual e Cidadania da Universidade
Paranaense.
COMISSÃO EXAMINADORA:
Professor Doutor Jônatas Luiz Moreira
de Paula
Professor Doutor Antonio Carlos
Segatto
Professor Doutor Eduardo Augusto
Salomão Cambi
Umuarama, 28 de novembro de 2008.
Aos meus pais,
por razões óbvias.
À minha companheira,
Solange da Silva,
pela tolerância.
Aos meus filhos,
fontes permanentes de esperança.
À profª Drª Mariulza Franco,
em memória
6
AGRADECIMENTOS
Devo a muitos o conteúdo do presente trabalho.
Incontáveis, portanto, seriam os agradecimentos externáveis, se
quisesse ser justo.
Ainda, porém, que correndo o risco da injustiça, não posso deixar
de agradeçer ao meu orientador professor Doutor Jônatas Luiz Moreira de Paula,
pelo estímulo, encorajamento e apreço emprestados.
Ao professor Dr. Zulmar Fachin, a quem devo o reforço do corte
constitucional que, a todo o momento, busquei afirmar e reafirmar durante todo
o desenvolvimento do trabalho. Mas, talvez mais importante ainda, a quem devo
o exemplo do estudioso devotado e da humildade intelectual.
À professora Drª Jussara Suzi Assis Borges Nasser Ferreira, cuja
eloqüência e força de persuação, de certa forma, determinaram o conteúdo
crítico do presente trabalho, reconduzindo-me a antigos trilhos dos quais me
desgarrava, em direção a um tecnicismo pobre e empobrecedor. Com ela,
aprendi algo que me era insuspeito: estudar “dói”!
Ao professor Leonildo Bágio, a quem devo a minha vida
acadêmica, igualmente, não poderia deixar de agradecer, neste momento em que
dou mais um significativo passo nela.
À colega de Mestrado Silvia Mattei, Cooredenadora do Curso de
Direito da Unipar Campus de Toledo, com quem partilhei desgastantes idas e
vindas e que, de um modo ou de outro, contribuiu para que esse trabalho tivesse
cobro.
Ao professor Eduardo Luiz Bussatta, ex-pupilo; hoje, mestre e
interlocutor de todas as horas.
7
- O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele
que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que
formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer.
A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno
e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A
segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas:
tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não
é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço. (CALVINO, Ítalo. As
cidades invisíveis. 2ª ed. 3ª tir. Tradução de Diogo Mainardi.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 150).
8
RABAH, Jomah Hussein Ali Mohd Rabah. Crítica à relativização da coisa
julgada. 2008. Dissertação (Mestrado em Direito Processual e Cidadania) –
Universidade Paranaense.
RESUMO
Analisa a teoria geral da coisa julgada, com especial enfoque aos seus conceitos
(doutrinários e legais), limites (objetivos e subjetivos), natureza jurídica,
fundamentos (sociológico e jurídico) e pertinência atual. No ataque à pertinência
da coisa julgada, volta-se especificamente ao sistema positivo brasileiro,
buscando demonstrar a sua absoluta e inarredável constitucionalização e a
demonstrar, a partir da análise das teses da sua desconsideração/relativização,
que um sistema legal que dela prescinda não pode ser enquadrado como um
sistema pós-moderno, senão um sistema que, implicitamente, resgata a noção de
verdade única do positivismo jurídico estrito, contrariando as exigências do
multiculturalismo corrente.
Palavras-chave: processo, coisa julgada, relativização.
9
RABAH, Jomah Hussein Ali Mohd Rabah. Criticism on the relativization of
res judicata. 2008. Dissertation (Master of Civil Procedure and Citizenship) –
Universidade Paranaense.
ABSTRACT
This analyses the general theory of res judicata, with special focus on its
doctrinaire and legal concepts, objective and subjective limits, legal nature,
sociologic and legal grounds and current relevance. Attacking the pertinence of
res judicata, it focuses specifically on the Brazilian positive legal system,
attempting to demonstrate the absolute and unsurpassable constitucionalization
of res judicata, and to demonstrate, from the analysis of theses about its
disregard/relativization, that a legal system which is able to prescind from it
cannot be qualified as a post-modern system, but as a system which, implicitly,
retrieves the notion of unique truth from strict legal positivism, contradicting the
demands of current multiculturalism.
Keywords: procedure, res judicata, relativization.
10
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................ 12
2 COISA JULGADA ................................................................................... 14
2.1 Conceito ................................................................................................. 14
2.1.1 Um conceito para além da estrita legalidade ....................................... 14
2.1.2 O(s) conceito(s) legal(is) ..................................................................... 15
2.1.2.1 Crítica(s) ao(s) conceito(s) legal(is) ................................................. 21
2.1.2.1.1 As críticas ao conceito de vertente civilista ou da LICC .............. 21
2.1.2.1.2. As críticas ao conceito de vertente processualista ....................... 24
2.1.2.1.2.1 As críticas ao conceito (implícito) do Código de Processo Civil
de 1939 .........................................................................................................
24
2.1.2.1.2.1.1 As premissas teóricas do conceito (implícito) do Código de
Processo Civil de 1939 .................................................................................
24
2.1.2.1.2.1.2 As incongruências do conceito (implícito) do Código de
Processo Civil de 1939 a partir das suas premissas teóricas e as tentativas
de superação .................................................................................................
27
2.1.2.1.2.1.3 Um conceito possível/admissível de coisa julgada no Código
de Processo Civil Brasileiro de 1939 ...........................................................
71
2.1.2.1.2.2 As críticas ao conceito do Código de Processo Civil de 1973 ... 78
2.1.2.1.2.2.1 A imutabilidade como nota característica da coisa julgada;
mas como o quê e de quê .............................................................................
87
2.1.2.2 O (possível) conceito positivado ...................................................... 99
2.2 Detalhamento de alguns aspectos conceituais relevantes ...................... 100
2.2.1 Coisa julgada material e formal .......................................................... 101
2.2.2 Coisa julgada e preclusão .................................................................... 105
2.2.3 Coisa julgada e trânsito em julgado .................................................... 107
2.2.4 Funções positiva e negativa da coisa julgada ...................................... 108
11
2.2.5 Limites objetivos e subjetivos da coisa julgada .................................. 111
2.2.5.1 Limites objetivos da coisa julgada ................................................... 113
2.2.5.1.1 O pedido ........................................................................................ 114
2.2.5.1.2 A causa de pedir ............................................................................ 131
2.2.5.1.3 A extensão objetiva da coisa julgada e eficácia preclusiva............ 166
2.2.5.1.4 A extensão objetiva da coisa julgada e a questão temporal: fatos
novos e relações jurídicas continuativas.......................................................
175
2.2.5.1.5 O objeto litigioso do processo como limite objetivo da coisa
julgada ..........................................................................................................
181
2.2.5.1.6 Os limites objetivos da coisa julgada no processo coletivo .......... 188
2.2.5.1.6.1 Considerações sistêmicas prévias .............................................. 188
2.2.5.1.6.2 Os limites objetivos da coisa julgada no processo coletivo
comum ..........................................................................................................
189
2.2.5.1.6.2.1 O resultado do julgamento como fator condicionante da
formação da coisa julgada ...........................................................................
189
2.2.5.1.6.2.2 Da causa de pedir .................................................................... 190
2.2.5.1.6.2.3 Do pedido ................................................................................ 195
2.2.5.1.6.3 Os limites objetivos da coisa julgada no processo coletivo
especial .........................................................................................................
196
2.2.5.1.6.3.1 Da causa de pedir .................................................................... 197
2.2.5.1.6.3.2 Do pedido ................................................................................ 204
2.2.5.2 Limites subjetivos da coisa julgada .................................................. 205
2.2.5.2.1. Os limites subjetivos da coisa julgada no processo coletivo ........ 220
2.2.5.2.1.1 Considerações sistêmicas prévias .............................................. 220
2.2.5.2.1.2 Os limites subjetivos da coisa julgada no processo coletivo
comum ..........................................................................................................
221
2.2.5.2.1.2.1 Os limites subjetivos da coisa julgada no processo coletivo
comum em face dos litigantes individuais ...................................................
222
12
2.2.5.2.1.2.2 Os limites subjetivos da coisa julgada no processo coletivo
em face dos demais legitimados para as ações coletivas..............................
223
2.2.5.2.1.1.3 Os limites subjetivos da coisa julgada na ação popular .......... 227
2.2.5.2.1.2.4 Os limites subjetivos da coisa julgada nos processos de
índole comum e a questão territorial ............................................................
228
2.2.5.2.1.3 Os limites subjetivos da coisa julgada no processo coletivo
especial .........................................................................................................
230
2.3 Finalidade, fundamento e natureza jurídica da coisa julgada ................. 231
2.3.1 A segurança jurídica como fim último da coisa julgada ..................... 231
2.3.2 A lei como fundamento jurídico último da coisa julgada ................... 236
2.3.3 A natureza jurídica da coisa julgada ................................................... 239
2.4 A coisa julgada na ordem constitucional brasileira ................................ 245
3 ANTECEDENTES HISTÓRICOS ........................................................... 265
3.1 Direito romano ....................................................................................... 265
3.2 Direito comum ....................................................................................... 272
3.3 A coisa julgada no Brasil ....................................................................... 273
3.3.1 Brasil colônia ...................................................................................... 273
3.3.2 Brasil imperial ..................................................................................... 286
3.3.3 Brasil república ................................................................................... 290
4. ACERCA DA RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA .................. 299
4.1 As premissas teóricas (declaradas) da relativização da coisa julgada da
sentença injusta ............................................................................................
299
4.2 A premissa teórica subjacente à relativização da coisa julgada da
sentença injusta: a volta à verdade única positivista ....................................
308
5 CONCLUSÃO .......................................................................................... 346
6 REFERÊNCIAS ........................................................................................ 347
13
1 INTRODUÇÃO
Ultimamente avança, em nosso seio, acirrada controvérsia em
torno da possibilidade de se relativizar a coisa julgada em homenagem à justiça.
Pautada francamente em discurso sincero e progressista, essa tese
tem encontrado considerável aceitação, particularmente no meio daqueles que
teorizam os direitos fundamentais do homem e a imperatividade e supremacia da
Constituição.
De outro lado, vêm a carga aqueles que, contrários à tese,
sustentam que se estaria a propalar de modo irresponsável uma abstrata noção
de justiça que nada mais faz do que atentar contra a coisa julgada e o princípio
da segurança jurídica, também ele constitucional.
O que ocorre, porém, é que, se é bem verdade que não se
vislumbra, nos propaladores da nova tese, nenhum discurso pueril em torno da
noção de justiça, eles, na verdade e ainda que inconscientemente, acabam por
pugnar por um retorno à malsinada noção de verdade única do positivismo
legalista que tanto nos assombrou durante todo o século passado e que só a duras
penas vínhamos conseguindo extirpar de nosso seio jurídico.
É justamente na tentativa de se contextualizar a coisa julgada na
atualidade, enfrentando questões polêmicas envolvendo não só o próprio
esvaziamento ou não do instituto e da sua pertinência ou não para o Direito da
pós-modernidade, a sua constitucionalização ou não, os seus limites, tanto
objetivos quanto subjetivos, além de outros relevantes elementos conceituais, é
que se circunscreve esse trabalho.
O trabalho, em suma, desenvolvido a partir, inclusive, de uma
perspectiva sociológica e multidisciplinar, tenta demonstrar que o instituto da
coisa julgada não só continua a se justificar sociologicamente falando, como
que, também, juridicamente, sendo que, o que subjaz, em última ratio, à
pretensão de relativização da coisa julgada injusta é, nada mais, nada menos, do
14
que a velha noção de verdade única, noção essa que não se coaduna com o
direito por não se compatibilizar com a própria materialidade sobre a qual ele
deita as suas raízes e à ela se conforma.
15
2 COISA JULGADA
2.1 Conceito
2.1.1 Um conceito para além da estrita legalidade
Cremos que, genericamente falando, ou seja, na busca de um
conceito de coisa julgada que vá para além da estrita legalidade e que nos sirva
como uma noção sua da qual possamos nos valer independentemente da adesão
que façamos a uma ou outra corrente doutrinária que têm tentado estabelecer os
precisos limites conceituais que o nosso direito positivo emprestou e empresta,
hoje, à ela, Ovídio Araújo Baptista da Silva logrou alcançar uma formulação
que, pela sua generalidade, presta-se perfeitamente a esse fim, definindo-a
[...] como a virtude própria de certas sentenças judiciais, que as faz
imunes às futuras controvérsias, impedindo que se modifique, ou
discuta, num processo subseqüente, aquilo que o juiz tiver declarado
como sendo “a lei do caso concreto”
1
.
Substituamos, apenas, a palavra “declarado”, empregada por
Ovídio Araújo Baptista da Silva (por razões que futuramente abordaremos), pela
palavra “estabelecido”, por exemplo, de maior generalidade, e aí temos um
conceito do qual podemos nos valer para uma breve, simples e válida noção do
que seja coisa julgada, sem que nos comprometamos previa e desavisadamente
com uma ou outra das doutrinas que, hoje, em meio à acirradas polêmicas,
invocam para si a adequação conceitual do instituto.
É curioso, porém, que um conceito aparentemente tão singelo nos
parâmetros de abstratabilidade em que é colocado, tenha gerado, não só no
direito brasileiro como no estrangeiro, e não só hoje, como ontem, tantas e
acirradas polêmicas, a ponto, inclusive, do direito pátrio vir a optar, como forma
de superação delas, pela espinhosa trilha da conceituação legal, em volta da(s)
1
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Sentença e coisa julgada: ensaios. 3ª ed. rev. e aum. Porto Alegre: Fabris
Editor, 1995, p. 480, grifo do autor.
16
qual(is) se viram e se veêm ainda hoje todos aqueles que vieram ou venham a se
debruçar sobre a matéria.
Qual(is) é(são) esse(s) conceito(s) e se o intento de se aclarar a
matéria a partir da conceituação legal foi alcançado entre nós, é que passamos a
demonstrar adiante.
2.1.2 O(s) conceito(s) legal(is)
Não é da tradição dos sistemas codificados a conceituação das
matérias objeto de regulação, até porque, como afirma José Carlos Moreira
Alves, “[...] Código não é livro de doutrina [...]”
2
. Portanto, ao se codificar,
segue-se como regra “[...] o critério de só [se] conceituar o indispensável”
3
.
Tamanho é, aliás, o peso dessa concepção em nosso seio, que a
advertência não passou despercebida sequer quando da instituição do nosso
vigente Código de Processo Civil, oportunidade em que Alfredo Buzaid, na sua
Exposição de Motivos, se viu obrigado a justificar a sua opção pela adoção de
algumas definições legais - inclusive, como teremos a oportunidade de ver, o de
coisa julgada -, aduzindo que:
À força de ser repetido, passou à categoria de adágio jurídico o
conselho das fontes romanas, segundo o qual omnis definitio in jure
civile periculosa este (D. 50.17.202). Sem se discutir essa
recomendação, de cujo acerto não pomos dúvida, ousamos, contudo,
em vários lugares do projeto, desatende-la, formulando algumas
definições, que reputamos estritamente necessárias
4
.
2
MOREIRA ALVES, José Carlos. A parte geral do Código Civil brasileiro: subsídios históricos para o novo
Código Civil brasileiro. 2ª ed. aum. São Paulo: Saraiva, 2003, p.142.
3
Ibid., loc. cit. Também José Carlos Barbosa Moreira, questiona a utilidade da conceituação legal, quando,
veladamente, critica a iniciativa adotada no Anteprojeto do Código de Processo Civil de 1973 de conceituar, no
seu artigo 507 (atual artigo 467), a coisa julgada, o que o Código de Processo Civil de 1939 não fizera
(BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano
59, nº 416, jun. 1970, p. 10, grifo do autor).
4
BRASIL. Mensagem nº 210, de 2 de Agosto de 1972, do Ministro da Justiça Alfredo Buzaid: Exposição de
Motivos do Código de Processo Civil. Código de Processo Civil: obra coletiva de autoria da Editora Saraiva
com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Luiz Eduardo
Alves de Siqueira. 30ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 5-6.
17
Com relação à coisa julgada, só podemos concluir, portanto, que
a sua conceituação, ao menos desde a consolidação da nossa codificação civil,
passou a ser tida como de natureza indispensável ou estritamente necessária,
dela se ocupando, primeiramente, o Código Civil de 1916
5
, em sua Introdução,
e, na seqüência, a vigente Lei de Introdução ao Código Civil
6
, com a redação
que lhe foi dada pela Lei nº 3.238, de 1º de agosto de 1957
7
, bem como o próprio
Código de Processo Civil vigente
8
.
Assim é que, no plano legal, o Código Civil de 1916, em sua
Introdução
9
, dispunha, em seu art. 3º, § 3º: “Chama-se coisa julgada, ou caso
julgado, a decisão judicial, de que já não caiba recurso”.
Em 1942, com o advento do já mencionado Decreto-Lei nº 4.657,
de 04 de setembro de 1942, institui-se, em definitivo, a Lei de Introdução ao
5
BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Diário Oficial
[da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Rio de Janeiro, RJ, 05 jan. 1916. Seção 1, p. 133.
Disponível em: <https://www6.senado.gov.br/legislação/ListaPublicaçoes.action?id=102644
>. Acesso em: 16
set. 2005.
6
BRASIL. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro.
Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Rio de Janeiro, RJ, 09 set. 1942. Seção
1, p. 01. Disponível em: <https://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del4657.htm
>. Acesso em: 15
set. 2005. Lembrando que a entrada em vigor dessa Lei se deu somente em 24 de outubro de 1942, nos termos do
Decreto-Lei nº 4.707, de 17 de setembro de 1942, que a retificou para suprir a omissão quanto a esse particular
constante do texto original. Cf.: ______. Decreto-Lei nº 4.707, de 17 de setembro de 1942. Dispõe sobre a
vigência da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,
Poder Executivo, Rio de Janeiro, RJ, 18 set. 1942. Seção 1, p. 01. Disponível em:
<https://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del4707.htm
>. Acesso em: 15 set. 2005
7
BRASIL. Lei nº 3.238, de 1º de agosto de 1957. Altera disposições da Lei de Introdução ao Código Civil
Brasileiro. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Rio de Janeiro, RJ, 03 ago.
1957. Seção 2, p. 19.021. Disponível em: <https://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/Leis/L3238.htm
>. Acesso
em: 15 set. 2005.
8
BRASIL. Lei nº 5869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 17 jan. 1973. Seção 1, p. 01. Disponível em:
<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=102373
>. Acesso em 16 set. 2005.
9
Deve-se recordar que o Código Civil de 1916, originariamente, contava com uma Introdução, composta de 21
artigos, com numeração autônoma em relação ao restante do seu texto, antecedendo a sua Parte Geral, e se
prestava, tal qual se presta, hoje, a nossa Lei de Introdução ao Código Civil, a ditar regras de aplicação das
normas jurídicas em geral. Nesse particular, o nosso originário Código Civil, se, por um lado, ao se estruturar a
partir de uma Parte Geral, trilhou, a partir do gênio de Teixeira de Freitas e das teorizações pandectistas alemãs,
o modelo germânico de codificação civil, não deixou, de outro lado, ambiguamente, de render homenagem à
codificação civil napoleônica, ou ao modelo francês, caracterizado pela ausência da parte geral, mas antecedido
por um livro ou título de natureza preliminar destinado justamente a tratar de normas de sobredireito. Portanto,
só em 1942, com o advento do Decreto-Lei nº 4.657, é que a nossa codificação civil adotou, por inteiro, o
modelo germânico, caracterizado não só pela adoção da parte geral, mas, também, pela codificação autônoma
das normas introdutórias de sobredireito. A respeito, consulte-se: MARTINS-COSTA, Judith. O novo Código
Civil brasileiro: em busca da “ética da situação”. In: Diretrizes teóricas do novo Código Civil brasileiro.
______; BRANCO. Gerson Luiz Carlos. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 95. GOMES, Orlando. Introdução ao
direito Civil. 15ª ed. atual. por Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 65.
18
Código Civil (LICC) em um corpo autônomo ao código civil, tal qual a
conhecemos hoje, revogando-se, assim, a parte introdutória do texto original
do Código Civil de 1916.
Malgrado nesse processo de autonomia da denominada
introdução ao Código Civil manter-se, em linha de princípio, a estrutura e o
conteúdo da parte preliminar do Código Civil de 1916, não se distanciando,
portanto, do seu espírito, estranhamente, a referência à coisa julgada foi
simplesmente suprimida nesse novo texto legal, onde o artigo 6º, com alguma
modificação, passou a fazer às vezes do antigo artigo 3º, § 3º, porém, sem mais
reportar-se a ela.
A retomada do conceito, no plano da codificação introdutória ao
nosso ordenamento legal, só veio a ocorrer mais de uma década após, com o
advento da acima mencionada Lei nº 3.238, de 1º de agosto de 1957, quando,
retomando-se, com poucas nuances, a redação originária do artigo 3º da parte
introdutória do então vigente Código Civil, o artigo 6º do Decreto-Lei nº 4.657
também passou a contar com um parágrafo 3º, com a seguinte redação: “Chama-
se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso”.
Restaurava-se, assim, no plano legal - apenas que com pequenas
alterações de ordem ortográfica - exatamente o mesmo conceito de coisa julgada
com o qual contávamos no limiar da consolidação da nossa codificação civil.
Quanto à omissão conceitual em torno do instituto, verificada no
texto originário do Decreto-Lei nº 4.657, conforme explicam Eduardo Espinola
e Eduardo Espinola Filho,
Justificava-se que assim fosse, embora sem o registro de qualquer
alteração no nosso direito positivo quanto a esse ponto, porque a coisa
julgada estava essencialmente compreendida no rol das situações
jurídicas definitivamente constituídas
10
.
10
ESPINOLA, Eduardo. A Lei de introdução ao Código Civil brasileiro: (Dec.-Lei nº 4657, de 4 de setembro
de 1942, com as alterações da Lei nº 3.238, de 1º de agosto de 1957, e leis posteriores): comentada na ordem de
seus artigos, por Eduardo Espinola e Eduardo Espinola Filho. 2ª ed. atual. por Silva Pacheco. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000, v. 1, p. 281.
19
Detalhando essas razões históricas, os mesmos autores,
reportando-se às justificativas apresentadas pela própria comissão elaboradora
do projeto, observam que:
Isso mesmo fez sentir a Comissão que elaborou o anteprojeto da Lei
de Introdução, na sua Defesa a críticas, publicada no vol. 1º (junho de
1943) dos Arquivos do Ministério da Justiça (pág. 53), acentuando
que a abstenção de descer aquela lei à definição, ao contrário do que
fizera a antiga Introdução ao Código civil, é motivada pela
compreensão de que à processual toca a regulamentação do assunto
11
.
É o que, em suma, expunha Rogério Lauria Tucci em texto que,
originariamente escrito sob a égide do Código de Processo Civil de 1939, só nos
veio a lume em 1984:
É de ser esclarecido, finalmente, para que nenhuma dúvida reste, que a
coisa julgada material é qualidade apenas dos efeitos das sentenças
definitivas, quais sejam as que, como vimos, se pronunciam sobre o
meritum causae; e, sobretudo, instituto de direito processual, com o
tornar definitiva, na expressão da palavra, a composição da lide,
aplicados os imperativos da ordem jurídica à situação contenciosa
12
.
Convém registrar que, à época, a natureza processual da coisa
julgada não se mostrava de modo muito claro à doutrina. Jônatas Milhomens,
por exemplo, identificava essa natureza tão somente em relação à denominada
coisa julgada formal e não assim à coisa julgada material (ou substancial, como
também a qualifica). Desse modo, ele simplesmente reduzia a coisa julgada à
impossibilidade da impugnação da sentença no âmbito do processo em que veio
a ser proferida, ou, em última ratio, à preclusão processual:
Costuma-se distinguir entre coisa julgada formal e coisa julgada
material ou substancial.
A coisa julgada formal é de natureza processual, resultando da
extinção dos recursos contra a sentença ou da preclusão dos prazos
para interposição dos recursos.
11
ESPINOLA, Eduardo. A Lei de introdução ao Código Civil brasileiro: (Dec.-Lei nº 4657, de 4 de setembro
de 1942, com as alterações da Lei nº 3.238, de 1º de agosto de 1957, e leis posteriores): comentada na ordem de
seus artigos, por Eduardo Espinola e Eduardo Espinola Filho. 2ª ed. atual. por Silva Pacheco. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000, v. 1, p. 281, nota de rodapé nº 147, grifo do autor.
12
TUCCI, Rogério Lauria. Sentença e coisa julgada civil: parte prática: sentenças da Dra. Maria Lúcia Gomes
Marcos dos Santos, Juíza de Direito da comarca da capital do Estado do Pará. 1ª ed. 2ª tir. Belém: Cejup, 1984,
p. 47, grifo do autor.
20
[...]
A coisa julgada formal é a i[ni]mpugnabilidade da sentença no
processo onde foi proferida.
Não havendo mais recursos contra a sentença, torna-se ela
ininpugnável no processo.
[...]
A sentença passou em julgado – é o sentido processual da coisa
julgada
13
.
Curioso é que o referido autor, ao contrário do que faz ao se
referir à coisa julgada formal, não precisa, de modo algum, porque é que a coisa
julgada material não se revestiria dessa mesma natureza processual, dando
apenas a entender que isso decorreria do fato de que “[...] sua imodificabilidade
e obrigatório conhecimento em qualquer juízo superveniente são efeitos que se
projetam além do processo.”
14
Ou seja: por ela (a coisa julgada material)
transcender ao processo é que não tem essa natureza (processual). Esse seria, em
suma, o argumento justificador da conclusão do autor a respeito, o que não nos
diz muito.
De um modo ou de outro, compreende-se, assim, que a omissão
conceitual no plano legal não se deu por nenhum cochilo do legislador da época,
mas, sim, pela compreensão dos autores do Anteprojeto da LICC de 1942 de que
a conceituação não era adequada no âmbito de uma lei introdutória ao
ordenamento jurídico em geral, nela encontrando-se albergada pela “[...] noção
das situações jurídicas definitivamente constituídas”, a que aludia o art. 6º da
LICC, que contava com a seguinte redação:
A lei em vigor terá efeito imediato e geral. Não atingirá, entretanto,
salvo disposição expressa em contrário, as situações jurídicas
definitivamente constituídas e a execução do ato jurídico perfeito.
Norberto de Almeida Carride, mesmo hoje, reproduzindo esse
modo de pensar, em comentário ao § 3º, do art. 6º da vigente LICC, à luz do art.
13
MILHOMENS, Jônatas. Manual de prática forense (civil e comercial): parte geral (Arts. 1º a 297). 3ª ed.
rev. e atual. Rio de Janeiro, 1957, v. 1, p. 489, grifo em itálico do autor; grifo em negrito nosso.
14
Id., loc. cit, grifo do autor.
21
5º, XXXVI, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, nos diz
que “A coisa julgada é, em certo sentido, um ato jurídico perfeito; assim já
estaria contemplada na proteção deste, mas o constituinte a destacou como um
instituto de enorme relevância na teoria da segurança jurídica”
15
.
Nesse particular, aliás, é curioso notar que José Carlos Barbosa
Moreira, escrevendo já sob o influxo dos debates que cercavam o anteprojeto do
nosso Código de Processo Civil vigente, aparentemente, sufraga - ou, ao menos,
chegou a sufragar - essa noção de coisa julgada como sendo uma situação
jurídica, dizendo que:
O trânsito em julgado é, pois, fato que marca o início de uma situação
jurídica nova, caracterizada pela existência da coisa julgada – formal
ou material, conforme o caso. A consideração da coisa julgada como
situação jurídica permite maior precisão na delimitação dos
conceitos com que estamos lidando. Não há confundir res judicata
com auctoritas rei iudicatae. A coisa julgada não se identifica nem
com a sentença transita em julgado, nem com o particular atributo
(imutabilidade) de que ela se reveste, mas com a situação jurídica em
que passa a existir após o trânsito em julgado. Ingressando em tal
situação, a sentença adquire uma autoridade que – esta sim – se
traduz na resistência a subseqüentes tentativas de modificação do
seu conteúdo
16
.
Daí, saltamos para o vigente Código de Processo Civil, advindo
com a sanção da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, dantes referida, o qual,
não se contentando com a conceituação então vigente e que nos era dada pela
LICC desde 1957, tratou, também ele, de conceituar o instituto. O fez no seu
artigo 467, com a seguinte redação: “Denomina-se coisa julgada material a
eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença não mais sujeita a recurso
ordinário ou extraordinário”.
15
CARRIDE, Norberto de Almeida. Lei de introdução ao código civil anotada: referências à Constituição
Federal, ao Código Civil, ao Código de Processo Civil e a outros atos normativos. São Paulo: Editora Juarez de
Oliveira, 2004, p. 244, grifo nosso.
16
BARBOSA MOREIRA, José Carlos, Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano
59, nº 416, jun. 1970, p. 16-7, grifo em itálico do autor, grifo em negrito nosso.
22
Registre-se que, nesse interregno, contamos com a edição do
antecedente Código de Processo Civil, de 1939
17
, o qual, porém, não fez
qualquer menção conceitual ao instituto, a despeito de contar com um título
(Título XI, do Livro II) especialmente nominado “Da sentença e de sua eficácia”
e outro, ainda, especialmente dedicado à ação rescisória da sentença (Título III,
do Livro VI).
Percebe-se, desse modo, que o nosso sistema legal, ao menos a
partir de 1916 e salvo a breve omissão que mediou os anos de 1941 a 1957, tem
perseverado no conceito legal do que seja a coisa julgada, donde se depreende a
importância que o nosso legislador sempre deu à conceituação legal do instituto,
reputando-a, pode-se dizer, como necessária ao sistema.
Agora, se por um lado, o legislador sempre se mostrou cioso na
fixação legal da conceituação do instituto, aos olhos da doutrina – que, de um
modo geral, não reprovou esse proceder
18
– o(s) conteúdo(s) do(s) conceito(s)
adotado(s) sempre se mostrou(aram) deficiente(s), tecendo-lhe(s), desde o
princípio, significativas críticas, seja ao conceito de vertente civilista, oriundo
das nossas normas introdutórias ao Código Civil, seja ao de vertente
processulista, oriundo do nosso Código de Processo Civil (no caso, o de 1973).
2.1.2.1 Crítica(s) ao(s) conceito(s) legal(is)
2.1.2.1.1 As críticas ao conceito de vertente civilista ou da LICC
Vimos que, modernamente, o conceito legal de coisa julgada nos
foi dado, primeiramente, pelo artigo 3º, § 3º, da parte introdutória do nosso
17
BRASIL. Decreto-Lei nº 1.608, de 18 de setembro de 1939. Código de Processo Civil. Coleção de Leis do
Brasil de 1939, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, RJ, v. 6, p. 311, dez. 1939,
<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=12170
>. Acesso em 17 de set. 2005.
18
É o caso, por exemplo, de Thereza Alvim, que expressamente elogiou a iniciativa de se conceituar o instituto
quando da redação do Código de Processo Civil de 1973, ante as dúvidas que se poderia suscitar em torno dele e
de outros institutos, tanto no plano da doutrina quanto no plano dos tribunais (ALVIM, Thereza. Questões
prévias e os limites objetivos da coisa julgada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 87).
23
Código Civil de 1916, onde ela vinha definada como “[...] a decisão judicial de
que já não caiba recurso”.
Guilherme Estelita, em análise crítica da época, em torno desse
dispositivo, já afirmava que:
A definição é de uma insuficiência flagrante, pois só atende, podemos
dizer, ao aspecto formal da coisa definida. Realmente sem um decisão
judicial irrecorrível não se pode conceber a existência de coisa
julgada. Mas, evidentemente, esse não é o característico principal do
fenômeno a que se dá aquela denominação. Na coisa julgada o que
sobreleva a tudo mais e lhe constitui a essência da mesma, é a
autoridade, é a força, é a eficácia atribuída à decisão judicial. A
inadmissibilidade de recursos é apenas um requisito à aquisição
daquele poder
19
.
A crítica, percebe-se, decorre do fato de que já no principiar do
século passado tinha-se muito clara a distinção da denominada coisa julgada
formal, evidenciada a partir da simples preclusão processual, daquela
denominada coisa julgada material, evidenciada pela imutabilidade, pela sua
característica força de lei.
De fato, à época, Jorge Lafayette Pinto Guimarães já lecionava,
de modo claro e preciso, que:
Duas são as características da coisa julgada: a imutabilidade e a
irrecorribilidade.
Daí a diferenciação que se faz entre coisa julgada material e coisa
julgada formal, pois enquanto esta consistiria na simples
irrecorribilidade, ou, na expressão empregada por Eduardo Couture,
na não impugnabilidade, a segunda acrescenta à irrecorribilidade, que
tem como pressuposto, a imutabilidade
20
.
A deficiência conceitual do artigo 3º, § 3º, da Introdução do
Código Civil de 1916, a doutrina soube, porém, com o grau conceitual que já
acumulava então, suprir a partir da sua conjugação com o quanto prescrevia o
19
ESTELITA, Guilherme. Cousa julgada: fundamento jurídico e extensão aos terceiros. Tese para professor
catedrático. Rio de Janeiro: [s/ed.], 1926, p. 9 apud GUIMARÃES, Jorge Lafayette Pinto. Coisa julgada. In:
CARVALHO SANTOS, J. M. de (Org). Repertório enciclopédico do direito brasileiro. Rio de Janeiro:
Borsoi, [193-?], v. 9, p. 281.
20
CARVALHO SANTOS, J. M. de (Org), loc. cit. É de se registrar, porém, que mais adequado seria se o autor
se referisse à irrecorribilidade como pressuposto da coisa julgada material (tal qual, aliás, a qualifica ao final da
passagem citada) e, não, propriamente, como uma característica sua.
24
artigo 287 do Código de Processo Civil de 1939, segundo o qual: “A sentença
que decidir total ou parcialmente a lide terá força de lei nos limites das questões
decididas”.
É assim que, à luz dessa conjugação, Jorge Lafaytte Pinto
Guimarães concluía que:
Poderemos, pois, reunindo ambos os preceitos legais, definir a “coisa
julgada” como a sentença irrecorrível que decide total ou parcialmente
a lide, e que tem força de lei dentro dos limites das questões
decididas
21
.
Considerando que a Lei de Introdução ao Código Civil
posteriormente sancionada (Decreto-Lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1942),
com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 3.238, de 1º de agosto de 1957, não
fez mais, conforme já exposto acima, que reproduzir o originário conceito
estampado no art. 3º, § 3º, da Introdução ao Código Civil de 1916, o tom da
crítica doutrinária à definição legal, até o advento do Código de Processo Civil
de 1973, seguiu, de um modo geral, esses mesmos contornos. É o que se pode
depreender de José Carlos Barbosa Moreira que, escrevendo muito depois
(1970), mas ainda durante a vigência do Código de Processo Civil de 1939 e,
portanto, sob o influxo do conceito estampado na LICC com a redação que lhe
foi dada pela Lei nº 3.238, de 1957, volta a investir sobre a fórmula adotada pelo
texto legal, dizendo ser ela absolutamente insatisfatória:
Chamar coisa julgada à própria sentença, desde que inatacável
através de recurso, será, na melhor hipótese, empregar linguagem
figurada para indicar o momento em que a coisa julgada se forma. A
expressão, demasiado simplificadora, permite-nos saber quando
começa a existir coisa julgada; nada nos informa, porém, sobre a
essência do fenômeno e sobre o modo como ele atua para
desempenhar sua função específica. Detém-se a regra legal no aspecto
21
GUIMARÃES, Jorge Lafayette Pinto. Coisa julgada. In: CARVALHO SANTOS, J. M. de (Org). Repertório
enciclopédico do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Borsoi, [1947?], v. 9, p. 281, grifo do autor. É de se
observar que Jorge Lafayette Pinto Guimarães, ao proceder a conjugação entre os artigos mencionados, quando
se reporta ao artigo 287 do então vigente Código de Processo Civil, o faz, equivocadamente, reportando-se ao
Código Civil, como se o referido artigo 287 o integrasse.
25
cronológico e deixa totalmente na sombra o aspecto ontológico da
coisa julgada
22
.
A(s) deficiência(s) e, até, a ausência, do(s) conceito(s) legal(is)
verificada(s) sob o influxo da Introdução do Código Civil de 1916 e, bem
assim, posteriormente, da LICC (segundo a redação que lhe foi dada pelo Lei nº
3.238, de 1957), não significa, como abordaremos adiante, que a própria
doutrina tenha deixado de evoluir, nesse interregno, em torno da compreensão
do instituto e que, em suma, veio a desaguar no novo conceito legal erigido com
a sanção do vigente Código de Processo Civil.
2.1.2.1.2 As críticas ao conceito de vertente processualista
2.1.2.1.2.1 As críticas ao conceito (implícito) do Código de Processo Civil de
1939
2.1.2.1.2.1.1 As premissas teóricas do conceito (implícito) do Código de
Processo Civil de 1939
Como já tivemos oportunidade de dizer acima, o Código de
Processo Civil de 1939 não nos legou nenhum conceito explícito em torno da
coisa julgada.
Isso, porém, não quer dizer que, ainda que indiretamente, não
tenha ele, conforme lembra Jorge Lafayette Pinto Guimarães
23
, feito alusão a
uma das duas características que se entendia como integrantes da coisa julgada,
qual seja, a da preclusão, caracterizada pela irrecorribilidade e fundante da dita
22
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano
59, nº 416, jun. 1970, p. 10-1, nota de rodapé nº 5. Também: ARAGÃO, Egas Moniz de. Sentença e coisa
julgada. Porto Alegre: Aide, 1992, p. 189-90.
23
GUIMARÃES, Jorge Lafayette Pinto. Coisa julgada. In: CARVALHO SANTOS, J. M. de (Org). Repertório
enciclopédico do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Borsoi, [1947?], v. 9, p. 281.
26
coisa julgada formal.
Essa alusão decorria do quanto prescrevia o seu art. 289, cuja
redação era do seguinte teor:
Art. 289. Nenhum juiz poderá decidir novamente as questões já
decididas, relativas à mesma lide, salvo:
I - nos casos expressamente previstos;
II - quando o juiz tiver decidido de acordo com a eqüidade
determinada relação entre as partes, e estas reclamarem a
reconsideração por haver-se modificado o estado de fato.
A própria coisa julgada material, vinculada à segunda das duas
características da coisa julgada, qual seja, a imutabilidade, como vimos acima,
vinha proclamada no art. 287 do mesmo Código.
A alusão, contudo, que, na prática, nos remeteria ao conteúdo do
conceito doutrinário corrente à época, de coisa julgada formal e material, não
desautoriza a afirmativa que já fizemos no sentido de que o Código de Processo
Civil de 1939, de fato, não conceituara o que fosse coisa julgada, contentando-
se, quiçá, com aquele (conceito) que então nos era dado pela Introdução ao
Código Civil de 1916.
Conforme alude José Carlos Barbosa Moreira, o Código de
Processo Civil de 1939 teria, assim, seguindo a formulação italiana do então
vigente Códice di Procedura Civile e, não ministrando “[...] propriamente uma
conceituação da coisa julgada [...]”
24
, cingiu-se a “[...] disciplinar de um lado [...]
o momento de sua formação, de outro a área subjetiva por ela coberta”
25
, além
da sua área objetiva de cobertura, já que o nosso Código de Processo Civil de
1939 não deixou, particularmente em seus artigos 287, 288 e 289, de traçar
regras acerca das matérias por ele tidas como abarcadas pela coisa julgada.
24
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano
59, nº 416, p. 11.
25
Ibid., p. 11. Registre-se, ainda assim, que, quanto ao modelo italiano, essa disciplina se deu a partir da
conjugação do artigo 324 da codificação processual com o artigo 2.909 da codificação civil, conforme observa o
próprio José Carlos Barbosa Moreira, e, quanto ao modelo brasileiro, ela se deu a partir da referência às regras
de introdução à codificação civil, como visto anteriormente (item 2.1.2.1.1, supra).
27
Exatamente nesse mesmo sentido aponta Luiz Eulálio de Bueno
Vidigal, observando que:
O Código [de Processo Civil Brasileiro de 1939] não definiu a coisa
julgada em sentido formal. Esse conceito decorre, no entanto da
combinação dos seus arts. 389 [a referência é, em verdade, ao art.
289], 808 e 288. O primeiro, dispondo que, exceto no caso de
sentenças determinativas, nenhum juiz poderá decidir novamente as
questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo nos casos
expressamente previstos. O segundo, especificando, limitativamente,
os recursos admissíveis. O terceiro, negando efeito de coisa julgada
aos despachos meramente interlocutórios e às sentenças proferidas em
processos de jurisdição voluntária e graciosa, preventivos e
preparatórios, e de desquite por mútuo consentimento. Eis aí os limites
da coisa julgada em sentido formal, isto é, da impossibilidade de
modificação de uma decisão por meio de recurso. Esses limites estão,
como se vê, bem mais claramente fixados no atual Código de Processo
Civil [de 1939] do que na fórmula do § 3º da antiga Introdução ao
Código Civil.
A coisa julgada em sentido substancial, que é a propriedade da
sentença passada em julgado de operar em todo processo futuro,
também não se encontra explicitamente definida no Código de
Processo Civil [de 1939]. Mas o seu conceito também facilmente se
deduz dos arts. 288, 289 e 798, nº I, b. Do texto do art. 288 decorre a
contrario sensu, a regra de que as sentenças definitivas proferidas em
processos de jurisdição contenciosa terão efeitos de coisa julgada. O
art. 289 proíbe qualquer juiz de decidir novamente as questões já
decididas relativas à mesma lide. E o art. 798, nº I, b, declarando nula
a sentença proferida contra a coisa julgada, implicitamente reconhece
que a sentença passada em julgado opera em qualquer processo futuro,
o que vem a ser precisamente a coisa julgada substancial
26
.
A partir desses contornos, dispensados pelo Código de Processo
Civil de 1939 no trato da matéria, José Carlos Barbosa Moreira não teve dúvidas
em qualificar o conceito de coisa julgada adotado (implicitamente, volta-se a
frisar), como sendo de “[...] corte sabidamente carneluttiano”
27
, observando, no
que respeita à sua redação, que:
26
VIDIGAL, Luiz Eulálio de Bueno. Da ação rescisória dos julgados. São Paulo: [s. n.], 1948, p. 86 apud
NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 318-9, grifo do autor. Como se
percebe, sem que haja explicação plausível, o autor, na conjugação dos dispositivos legais do Código de
Processo Civil Brasileiro de 1939 a partir dos quais se defluiria o conceito por ele adotado (implicitamente),
simplesmente não faz qualquer referência ao seu art. 287, o qual, sem dúvida, é de capital importância na
formulação desse conceito, fixando, no sistema daquele código os chamados limites da coisa julgada ou a sua
eficácia.
27
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano
59, nº 416, p. 11.
28
O texto do art. 287 é a tradução, algo mutilada, do art. 290 do Projeto
italiano revisto de 1926, no qual se reproduzia ipsis verbis o art. 300
do Projeto preliminar, devido à pena de Carnelutti e assim redigido:
“A sentença que decidir total ou parcialmente uma lide, tem força de
lei nos limites da lide e das questões decididas. Consideraram-se
decididas, se bem que não resolvidas expressamente, todas as
questões, cuja decisão constitua premissa necessária do dispositivo
contido na sentença”
28
.
Em que pese a perfeita identificação das premissas teóricas do
conceito (implícito) de coisa julgada que o Código de Processo Civil Brasileiro
de 1939 adotara, não ocorreu, em relação a ele, o que se poderia esperar dessa
precisa identificação, ou seja: que a doutrina e a jurisprudência, a partir dele,
construíssem um conceito seguro de coisa julgada. Muito ao contrário disso,
identificadas desde logo algumas incongruências de redação, principalmente do
artigo 287 do Código e o seu respectivo parágrafo único, verdadeira balbúrdia
logo se instalou no seio da doutrina pátria em torno da exata extensão que se
deveria dar à coisa julgada, particularmente quanto ao seu chamado alcance ou
limites objetivos. Travou, a partir daí, a doutrina brasileira, uma discussão que,
cremos, até hoje não se encontra completamente superada.
2.1.2.1.2.1.2 As incongruências do conceito (implícito) do Código de
Processo Civil de 1939 a partir das suas premissas teóricas e as tentativas
de superação
Rogério Lauria Tucci corrobora a assertiva de José Carlos
Barbosa Moreira, ao observar que, de fato, o texto do artigo 287 do nosso
Código de Processo Civil de 1939 carecia de imprecisão que decorreria
28
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano
59, nº 416, p. 11, nota de roda-pé nº 8, grifo do autor. O texto do artigo 290 do Projeto do Código de processo
civil italiano de 1926, na passagem citada, encontra-se transcrito em italiano, com a seguinte redação original:
“La sentenza che decide totalmente o parzialmente una lite ha forza di lege nei limiti della lite e della questione
decisa. Si considera decisa, anche se non sai risoluta espressamente, ogni questione la cui risoluzione costituisca
una promessa necessaria della disposizione contenuta nella sentenza”. Tradução extraída de: ALVIM, Thereza.
Questões prévias e os limites objetivos da coisa julgada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 83.
29
[...] decerto, em razão de ter-se suprimido no texto algumas
expressões do ante-projeto PEDRO BATISTA MARTINS (artigo
355) que transcrevera totalmente o artigo 290 do projeto MORTARA
de 1926:
“A sentença que decidir total ou parcialmente a lide terá força de lei
nos limites da lide e das questões decididas.
Parágrafo único – Considerar-se-ão decididas, ainda que não
expressamente resolvidas, todas as questões cuja resolução constitua
premissa necessária da disposição contida na sentença”
29
.
As imprecisões a que alude Rogério de Lauria Tucci, seriam,
basicamente, de duas ordens: a primeira delas, quando o texto dava a entender
que a sentença poderia decidir parcialmente a lide, o que seria de todo
impróprio, já que a sentença, sempre, decide a lide integralmente, ainda quando
haja cumulação de pedidos; a segunda delas, quando o texto adstringe a força de
lei que terá a sentença apenas “[...] nos limites das questões decididas”, já que
tal força não só se daria nos limites das questões decididas, mas também, nos
limites da lide, tal qual evocado no texto do Projeto Mortara do Código de
processo civil italiano de 1926
30
.
Thereza Alvim que também não titubeia ao dizer que o artigo
referido “[...] filia-se ao Projeto Mortara”
31
, não subscreve, porém, a tese de que
a sua redação teria decorrido de eventual equívoco de tradução a partir do texto
italiano, de tal sorte que se, num primeiro plano, tece a mesma crítica
desenvolvida por Rogério Lauria Tucci, em torno das tentativas de interpretação
do texto em questão a partir da pura e simples cumulação de ações, explica, por
outro lado, essa contradição, que para ela é aparente, a partir da pura e simples
possibilidade das partes transigirem sobre parte da lide, incidindo o julgamento
sobre a parte não transigida
32
.
29
TUCCI, Rogério Lauria. Sentença e coisa julgada civil: parte prática: sentenças da Dra. Maria Lúcia Gomes
Marcos dos Santos, Juíza de Direito da comarca da capital do Estado do Pará. 1ª ed. 2ª tir. Belém: Cejup, 1984,
p. 57, grifo do autor.
30
Ibid., p. 58.
31
ALVIM, Thereza. Questões prévias e os limites objetivos da coisa julgada. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1977, p. 71.
32
Ibid., p. 71-2.
30
É óbvio, contudo, que essa tentativa de explicação, dada por
Thereza Alvim, de modo algum se mostra correta e só pode ser explicada por
um distanciamento da teoria de Francesco Carnelutti em seu conjunto,
aparentemente ditado por uma insistente tese autonomista do texto legislativo
pátrio que, se por um lado, conforme veremos adiante, pode até ser admitido por
algum prisma, não se admite por esse em particular.
Celso Neves, nesse sentido, nos observa que:
O Código de Processo Civil Brasileiro [de 1939], ao tratar da eficácia
da sentença, reproduziu texto de dois projetos de Carnelutti, não
adotados na Itália, por excessivamente técnicos, prevalecendo, ali, o
elaborado por uma comissão orientada, principalmente, por
Calamandrei. O art. 287 do nosso Código, segundo o qual a sentença
que decidiu total ou parcialmente a lide terá força de lei nos limites
das questões decididas, inspirou-se, precisamente, no projeto de
Carnelutti. Logo, tem-se de explicar esse texto segundo a técnica de
Carnelutti – sem a deturpação de seu enunciado, resultante da redação
final a que o autor do projeto fôra estranho – considerando-se o seu
conceito de lide e, especialmente, as suas noções sobre processo
integral e processo parcial
33
.
Seguindo esse indicativo e nos reportando diretamente a
Francesco Carnelutti, constata-se, de fato, que a exata compreensão dessas
figuras dentro do contexto global de sua obra, não justificaria espanto algum
diante da redação do dispositivo que, a bem da verdade, não estaria a admitir,
propriamente, uma sentença, final e definitiva, que não esgotasse por inteiro a
lide deduzida, apenas que, nos limites das questões efetivamente deduzidas.
Não se pode esquecer que no sistema carneluttiano, a lide é
definida “[...] como um conflito (intersubjetivo) de interesses qualificado por
uma pretensão contestada (discutida). O conflito de interesses é o seu elemento
material, a pretensão e a resistência são seu elemento formal”
34
, sendo que:
Quando a razão, da pretensão ou da contestação, seja duvidosa, surge
uma questão, a qual, portanto, é a dúvida sobre a razão. Já que a
decisão da lide se obtém resolvendo as questões, as questões são logo
33
NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: RT, 1971, p. 271-2, grifo em itálico do autor, grifo em negrito
nosso.
34
CARNELUTTI, Francesco. Instituições do Processo Civil. Trad. de Adrián Sotero De Witt Batista a partir
da edição espanhola. São Paulo: Classic Book, 2000, v. 1, p. 77.
31
razões de decisão: as razões (da pretensão ou da contestação) passam a
ser questões (do processo), e estas se resolvem em razões (de decisão).
A questão não é a lide; de fato, esta consiste, antes de tudo, em um
conflito de interesses que é estranho à questão; a questão, por sua
vez, consiste em uma dúvida que pode ser estranha à lide. Pode
haver, portanto, questão sem lide (dúvida teórica ou acadêmica), como
também lide sem questões (quando a questão é contestada sem
afirmação de razões, ou sem ser contestada, se torna insatisfeita).
Quando a lide apresenta uma ou mais questões, costuma-se falar de
controvérsia, que é, então, a palavra que se deve usar mais
propriamente para denotar tal espécie de lide
35
.
Assentadas essas premissas e avançando sobre a noção particular
que Francesco Carnelutti externava sobre o processo integral e parcial, temos
que, para ele:
Da distinção entre lide e questão [...] deriva que uma lide pode ser
deduzida no processo de cognição por todas ou por algumas de suas
questões: por exemplo, quem pretende uma herança por vocação
dupla, testamental e legítima, pode pedir perante quem a discuta a
declaração de certeza de seu direito fundamentado sobre uma e sobre a
outra, ou, então, a declaração de certeza de uma só delas: tanto no
primeiro como no segundo dos casos, a lide é sempre uma e sempre a
mesma já que são idênticos os seus elementos (sujeitos, objeto e
pretensão); com efeito, a vocação testamental ou legítima não é a
pretensão mas uma razão desta [...]; mas, supondo que a controvérsia
se estenda a ambos os títulos, no segundo caso, diferentemente do
primeiro, o processo não serve para compor toda a lide, já que não
resolve as questões relativas a uma das vocações. Assim, distingue-se
em relação ao processo de cognição o processo integral do processo
parcial
36
.
Partindo desses pressupostos, “[...] urge [...] observar”, dizia
Francesco Carnelutti,
[...] que se o processo não é integral pode dar-se a pluralidade de
processos de uma única lide; porém, tal pluralidade só é admitida no
sentido da sucessão de um processo a outro, e não no sentido da
acumulação
37
.
35
CARNELUTTI, Francesco. Instituições do Processo Civil. Trad. de Adrián Sotero De Witt Batista a partir da
edição espanhola. São Paulo: Classic Book, 2000, v. 1, p. 86, grifo em itálico do autor, grifo em negrito nosso.
36
Ibid., p. 461-2, grifo do autor.
37
Ibid., p. 462, grifo do autor.
32
Explicando o impedimento da pluralidade a partir da
acumulação de processos, Francesco Carnelutti apontava como fundamento
disso o princípio da unidade do processo, solucionado, já no direito processual
civil italiano da época, com a aplicação do instituto da litispendência, expresso
no caput do art. 39 do Código Italiano de Procedimento Civil de 1940, com o
qual se coartava a possibilidade de que dois processos parciais pela mesma lide
coexistissem, seja perante o mesmo juiz, seja perante juízes diversos
38
.
Francesco Carnelutti chamava a atenção, porém, para o fato de
que o “Pressuposto da litispendência [tal qual era regulado no sistema italiano da
época] é a identidade da lide, não das questões”
39
, não importando, assim, fosse
o processo parcial ou integral; bastante, para a incidência da litispendência, era
que a lide fosse a mesma. Portanto, concluía ele,
[...] a exceção de litispendência tem um alcance mais amplo que a
exceção de coisa julgada; o julgado não se estende além das questões
explícita ou implicitamente decididas enquanto a litispendência
contempla também as questões não deduzidas no processo; isso é
muito natural, porque se um processo parcial está encerrado, proibir
que se desenvolva outro sobre outras questões da lide não seria
possível sem deixar a lide aberta; se está ainda aberta é possível, no
entanto, incluir nele também as novas questões
40
.
Percebe-se, disso tudo, que, no sistema carneluttiano, a referência
a um julgamento parcial da lide, jamais poderia ou pode ser referido a uma
possibilidade de julgamento parcial da lide concretamente deduzida. Nos
limites em que a lide veio a ser deduzida, o julgamento de fundo positivo
extintivo do processo jamais poderia ser parcial, no sentido de que o juiz não
decidisse por inteiro a demanda.
O processo, portanto, é que pode ser parcial, por ter sido apenas
parcialmente deduzida a lide. O pronunciamento, contudo, sempre será total,
quando termine o processo (ou seja, quando implique num pronunciamento com
38
CARNELUTTI, Francesco. Instituições do Processo Civil. Trad. de Adrián Sotero De Witt Batista a partir da
edição espanhola. São Paulo: Classic Book, 2000, v. 1, p. 463.
39
Id., loc.cit.
40
Ibid., p. 465.
33
conteúdo de sentença, propriamente dita, e não de um simples pronunciamento
parcial, de natureza interlocutória). Nesse passo, Francesco Carnelutti é claro:
A regra é que o pronunciamento sobre a causa seja total e,
portanto, tenha caráter definitivo, quando termine e encerre o
processo (art. 277); essa regra se vincula com o princípio em virtude
do qual o juiz “deve pronunciar sobre toda a demanda” (art. 112), ou
seja, sobre todas as questões que se tem de resolver a fim de acolher
ou recusar as conclusões propostas por cada uma das partes.
41
É de se notar que Francesco Carnelutti no principiar da
passagem, ao empregar a palavra regra, deixa margem a exceções a esse
princípio, que, de fato, existiam, mas que não seriam, jamais, compatíveis com o
nosso sistema processual preconizado pelo Código de Processo Civil de 1939 e
que, portanto, jamais poderiam implicar em qualquer dificuldade interpretativa
do seu artigo 287.
Com efeito, uma das exceções, conforme o próprio Francesco
Carnelutti aponta, era aquela do pronunciamento com reserva, na hipótese da
oposição de compensação, previsto no artigo 35 do Código Italiano de
Procedimento Civil de 1940, em que o juiz, falecendo-lhe competência para
decidir sobre a parte ampliada da contenda pela compensação (o crédito oposto,
sendo maior, lhe retiraria a competência para a sua decisão, determinada pela
alçada, por exemplo), poderia, desde que a demanda fosse de fácil acertamento,
ou, quiçá, incontroversa, desde logo decidi-la, subordinando, contudo, a sua
execução a prestação de caução até que o julgamento em torno da compensação
oposta fosse procedido pelo Juiz competente, ao qual deveria ser remetida a
exceção oposta
42
.
É certo que a codificação italiana, antes de 1940, valia-se da
expressão sentença parcial para designar simples pronunciamentos de natureza
nitidamente interlocutória. Mas, mesmo na Itália, distinguia-se perfeitamente a
41
CARNELUTTI, Francesco. Instituições do Processo Civil. Trad. de Adrián Sotero De Witt Batista a partir da
edição espanhola. São Paulo: Classic Book, 2000, v. 2, p. 153, grifo do autor.
42
Ibid., p. 262-3.
34
natureza dessas ditas sentenças parciais, cuja natureza era, efetivamente, de
conteúdo interlocutório, razão pela qual a expressão foi abandonada na
codificação de 1940, conforme explícita referência de Francesco Carnelutti:
O nome de sentença parcial era usado pela mesma lei (arts. 278 e
279, hoje revogado); porém, mais que a sentença, o que é parcial é o
pronunciamento, enquanto a sentença, em relação ao seu conteúdo é
sempre total; por isso o abandono de tal adjetivo no novo texto dos
arts. 278 e 279 deve considerar-se correto. O pronunciamento parcial
sobre a causa tem caráter não definitivo, mas interlocutório, no
sentido de que o juiz pronuncia ao longo do procedimento e não ao
final dele, devendo o procedimento prosseguir para terminar na
solução das outras questões. O caráter parcial do pronunciamento não
deve confundir-se com o do processo [...]: o pronunciamento é parcial
quando só decide em parte, não as questões da lide, mas as questões
da lide deduzidas no processo; pode haver, então, pronunciamento
total em um processo parcial, assim como pronunciamento parcial em
um processo total, ou melhor, integral.
43
Havia, por outro lado, no sistema italiano da codificação de 1940,
uma outra possibilidade de decisão parcial de mérito, de natureza definitiva,
inclusive, decorrente da sua estruturação sobre as bases de uma organização
judiciária assentada na figura do juiz instrutor, com a incumbência de instruir o
processo, e de um órgão colegiado incumbido do seu julgamento.
Assim estruturado o sistema, o que ocorria era que, pura e
simplesmente, se concebia que o órgão colegiado, após ter o juiz instrutor lhe
remetido o processo para julgamento, caso o julgasse deficientemente instruído
em relação a algumas das questões deduzidas pelas partes, porém satisfatório
com relação a outras, proferisse de imediato julgamento quanto àquelas cuja
instrução fosse tida como satisfatória e ordenasse a integração da instrução
quanto às demais, o mesmo ocorrendo quando se constatava a possibilidade de
imediato julgamento quanto à existência de um direito, mas não do seu
montante.
43
CARNELUTTI, Francesco. Instituições do Processo Civil. Trad. de Adrián Sotero De Witt Batista a partir da
edição espanhola. São Paulo: Classic Book, 2000, v. 2, p. 154, grifo do autor.
35
A previsão encontrava-se inserta nos artigos 277 e 278 do
Código Italiano de Procedimento Civil de 1940, aludindo, inclusive, o artigo
278, a uma “Condenação genérica provisória”
44
, censurada por Francesco
Carnelutti, que dizia “[...] aqui a palavra “provisória” é usada sem exatidão, já
que a condenação nesse caso não tem nenhum caráter provisional, mas somente
um caráter parcial”
45
.
À luz desses pronunciamentos, de natureza parcial, Francesco
Carnelutti não se deu por rogado em afirmar que “O pronunciamento de fundo,
seja total ou parcial, dá lugar a uma providência que tem sempre forma de
sentença (art. 279) [...]”
46
.
Isso, contudo, jamais quis significar ou nos autorizaria a afirmar
que esses pronunciamentos parciais, ditos de fundo (ou de mérito), tivessem, no
sistema italiano, o condão de gerar coisa julgada.
É que o art. 339 do Código Italiano de Procedimento Civil de
1940, ao tratar da “Apelabilidade das sentenças”, em sua segunda parte, estatuía
claramente que “As sentenças parciais apenas poderão ser impugnadas ao
mesmo tempo em que a sentença definitiva
47
.
Nota-se, portanto, que essas sentenças ou pronunciamentos
parciais de mérito (ou positivas de fundo, para se adotar a terminologia
carneluttiana) submetiam-se ao princípio da unirrecorribilidade e só
transitavam em julgado, portanto, com a própria sentença dita definitiva (a que
punha fim ao processo com o julgamento positivo de fundo).
44
ITÁLIA. Código Italiano de Procedimento Civil, de 28 de outubro de 1940 apud CARNELUTTI, Francesco.
Sistema de direito processual civil. Trad. de Hiltomar Martins Oliveira a partir da edição Argentina em
espanhol de 1943 traduzida por Alcalá-Zamora e Castilho. São Paulo: Classic Book, 2000, p. 616.
45
CARNELUTTI, Francesco. Instituições do Processo Civil. Trad. de Adrián Sotero De Witt Batista a partir
da edição espanhola. São Paulo: Classic Book, 2000, v. 2, p. 156, grifo do autor.
46
Ibid., p. 156.
47
ITÁLIA, op. cit. apud CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil. Trad. de Hiltomar
Martins Oliveira a partir da edição Argentina em espanhol de 1943 traduzida por Alcalá-Zamora e Castilho. São
Paulo: Classic Book, 2000, p. 632, grifo nosso.
36
Essa é a razão porque Francesco Carnelutti qualificava esses
pronunciamentos como “Atos processuais continuados”, conceituando-os como
aqueles que:
[...] apresentam variedades de ações e de eventos que se mantêm
unidos pela unidade do fim (causa) [...]. Quando se trate de atos
imperativos, a unidade do fim resolve-se na unidade do efeito jurídico
que o ato visa a produzir. Em outras palavras, o ato imperativo é
continuado quando seja necessário uma pluralidade de atos para obter
um efeito jurídico, efeito que cada ato por si só não é idôneo para
produzir
48
.
Exemplificando essa categoria de atos, Francesco Carnelutti cita,
justamente, “[...] a decisão quando, pela oportunidade de resolver as várias
questões em tempos diversos, se fraciona em diversas sentenças (sucessivas)
[...]”
49
.
Sendo ainda mais explícito, após tratar da regra acima referida,
do art. 277, do Código Italiano de Procedimento Civil, assentada no princípio
consagrado pelo art. 112 do mesmo Código, e que, em suma, mandava que o
juiz se pronunciasse, sempre, sobre a totalidade da demanda, Francesco
Carnelutti ponderava que:
[...] essa regra não exclui que a solução de todas as questões possa se
fazer em várias vezes, isto é, com mais de um pronunciamento, e
nesse caso cada um deles é positivo, mas parcial, e as sentenças que
são objeto dos pronunciamentos sucessivos combinam-se em um ato
continuado [...]
50
.
Percebe-se disso tudo que a adequada compreensão do sistema
carneluttiano, assim como do próprio sistema processual positivado sobre o
qual ele foi edificado (no caso, o italiano), jamais justificaria as celeumas
interpretativas e as críticas que foram dirigidas ao art. 287 do nosso Código de
48
CARNELUTTI, Francesco. Instituições do Processo Civil. Trad. de Adrián Sotero De Witt Batista a partir
da edição espanhola. São Paulo: Classic Book, 2000, v. 1, p. 489, grifo do autor.
49
Ibid., p. 489.
50
Id. Instituições do Processo Civil. Trad. de Adrián Sotero De Witt Batista a partir da edição espanhola. São
Paulo: Classic Book, 2000, v. 2, p. 153-4, grifo em negrito, nosso; grifo em itálico, do autor.
37
Processo Civil de 1939, na parte em que aludia ao julgamento total ou parcial da
lide, pela sentença.
Conquanto o referido Código não previu, nem de longe, qualquer
modalidade de pronunciamento parcial positivo de fundo, semelhantes
aqueles que o Código Italiano de Procedimento Civil edificara em seus artigos
35 e 36 e 277 e 278, qualquer interpretação que insinuasse um eventual
equívoco que por aí se assentasse seria absolutamente despropositado, até
porque, como vimos, esses pronunciamentos, além de não produzirem coisa
julgada, mesmo no sistema italiano - senão quando integrados com o
pronunciamento que viesse a por fim ao processo com o julgamento positivo de
fundo -, também, como dito expressamente por Francesco Carnelutti, não
decidiam em parte “[...] as questões da lide [...], e, sim, “[...] as questões da
lide deduzidas no processo [...]”
51
.
Quando, portanto, o artigo 287 do Código de Processo Civil
Brasileiro de 1939, aludia à possibilidade da sentença decidir total ou
parcialmente a lide, isso só poderia, realmente, referir-se à noção carneluttiana
de processo integral e processo parcial; nada mais, nada menos, que, quando
fosse o processo parcial, a coisa julgada aí formada não obstaria a parte de
renovar a demanda a partir de uma nova questão.
Não que não houvesse coisa julgada, mas ela se daria nos limites
das questões da lide deduzidas no processo.
Resumindo, ao contrário do que advogaram vários críticos do
artigo 287 do Código de Processo Civil Brasileiro de 1939, a referência, nele, da
palavra parcialmente, nenhuma imprecisão técnica denunciava, muito ao
contrário disso.
Daí porque, também, se percebe como era cara a referência, para
a exata adequação interpretativa do referido dispositivo legal ao sistema
51
CARNELUTTI, Francesco. Instituições do Processo Civil. Trad. de Adrián Sotero De Witt Batista a partir
da edição espanhola. São Paulo: Classic Book, 2000, v. 2, p. 154, grifo do autor.
38
carneluttiano do qual se abeberara, a expressão nos limites da lide,
inicialmente prevista no projeto do código que se gestava e suprimida do texto
finalmente parido.
Efetivamente, conforme bem visto acima, no sistema
carneluttiano, dizer que a coisa julgada incidirá sobre a lide, sem qualquer
ressalva acerca das questões que a embalaram e sobre as quais se decidiu, seria
simplesmente subvertê-lo em sua essência e dar um alcance à coisa julgada
idêntica à litispendência no sistema da codificação italiana de 1940, jamais
quisto, previsto ou advogado por Francesco Carnelutti.
Portanto, andou-se bem quando não se suprimiu da redação do
referido artigo 287 a referência aos limites das questões decididas, perdendo,
contudo, em precisão o artigo quando se suprimiu a expressão nos limites da
lide, denotando, aí sim, uma imperfeição técnica, em que pese Thereza Alvim
opinar que a sua supressão em nada influiria na precisão do alcance dos limites
da coisa julgada material, já que, malgrado isso,
[...] dando a impressão de que o julgamento sobre todas as questões
teriam força de lei, ou melhor, fariam coisa julgada material [...],
mesmo que ela contivesse essa expressão “nos limites da lide”, o
caput do art. 287, teria a seguinte redação: A sentença que decidir
total ou parcialmente a lide tem força de lei nos limites da lide e, das
questões decididas. Assim, as questões decididas não estariam
necessariamente dentro da própria lide, considerada como mérito, mas
dentro do processo. Ademais, não se excluiria, com isso, a existência
do parágrafo único do art. 287
52
.
Ou seja, para Thereza Alvim, a diferença da redação decorreria
do entendimento de que há questões (tanto questões quanto pontos, que o
Código de Processo Civil de 1939 não diferenciava, estando restrita, dita
52
ALVIM, Thereza. Questões prévias e os limites objetivos da coisa julgada. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1977, p. 72, grifo do autor.
39
diferenciação à doutrina da época
53
) que, a despeito de se constituírem premissas
necessárias para o julgamento da lide, não se encontravam encerradas no seu
âmbito mas que, mesmo assim, deveriam ser abarcadas, necessariamente, pelo
manto da coisa julgada material. Para tanto, bastaria que integrassem o processo;
fossem pertinentes à matéria nele discutida.
Assim, em dizendo a norma, que a sentença que decidir ... a lide terá
força de lei nos limites das questões decididas não poderia nunca
levar à afirmação de que não estivessem todas as questões decididas
albergadas pela proteção da coisa julgada material.
Ainda, se compararmos os textos dos arts. 287 e 288, vemos que esse
último especificava, exatamente os atos do juiz que não faziam coisa
julgada material.
[...]
Mas, evidentemente, as questões mesmo não integrantes da lide
devem ter relação com esta. Essas questões que, se decididas, ficam
revestidas pela autoridade da coisa julgada material, devem integrar o
processo. Isso parece evidente, pois as questões devem ser pertinentes
à matéria discutida
54
.
As razões dessa opção, segundo Thereza Alvim, teriam se dado
em homenagem a uma maior estabilidade jurídica e economia processual, não
tendo, em suma, o artigo 287 do Código de Processo Civil, sido simplesmente
copiado da legislação processual civil italiana, o que ela deixa muito claro
quando afirma que:
O texto do artigo em exame não foi copiado ou traduzido do Projeto
Mortara. A lei foi redigida de tal forma que o bem jurídico, conferido
pela imutabilidade dos efeitos da sentença, ficou mais resguardado,
proporcionando maior estabilidade jurídica à comunidade e aplicando
ao mesmo tempo, regra de economia processual
55
.
Uma coisa, portanto, seria afirmar, como faz Thereza Alvim, que
o artigo 287 do Código de Processo Civil de 1939 filiava-se ao projeto Mortara;
outra, bem diversa, seria impingir-lhe o selo da cópia decorrente de uma
tradução e mal feita, ainda.
53
ALVIM, Thereza. Questões prévias e os limites objetivos da coisa julgada. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1977, p. 78.
54
Ibid., p. 75, grifo do autor.
55
Ibid., p. 78.
40
Nesse passo, Thereza Alvim parece abonar, ainda que
implicitamente, a tese de Machado Guimarães, o qual, segundo Ada Pellegrini
Grinover,
[...] havia sustentado, à luz do art. 287 do código então vigente, que o
conceito de lide poderia ser mais amplo que o de mérito, também
abrangendo a admissibilidade sobre o pedido e, conseqüentemente, as
condições da ação. E, nesse caso, o julgamento de carência de ação
teria força de lei nos limites das questões decididas, podendo a coisa
julgada limitar-se à declaração da inexistência de determinada
condição da ação
56
.
Raciocínio semelhante, a bem da verdade, sustentara, muito
antes, Pedro Batista Martins
57
, que, resgatado por José Frederico Marques, levou
este último a abonar o acerto dessa mesma tese, edificada nos seguintes termos:
Entende Pedro Batista Martins que se o juiz, em havendo cumulação
de ações, decidir de um pedido e entender que a outra pretensão não
poderia ser ajuizada com a primeira em simultaneus processus,
existirá sentença sobre uma parte da lide, caso em que, então, cabe
aplicar-se o que preceitua o art. 287 a respeito de pronunciamento que
decidir parcialmente a lide.
Não nos parece tecnicamente exato esse entendimento. Se o juiz, em
processo cumulativo, decide apenas sobre um dos pedidos, o que se
verificou foi decisão total sobre uma lide, e ausência de decisão de
mérito sobre outra ou outras lides. Salvo se por lide entender-se tudo o
que possa ser objeto do julgamento de mérito.
[...]
Todavia, como o vocábulo lide é no Código empregado, em alguns
textos, com o significado de processo (é o que se dá, por exemplo,
com o litis consórcio e a litis pendência), a interpretação de Pedro
Batista Martins é aceitável. Assim sendo, sempre que o juiz, em
hipótese de cumulação de pedidos, decidir sobre algumas das
pretensões ajuizadas e declarar inadmissível apreciar, naquele
processo, os demais pedidos, a sentença conterá decisão parcial da
lide
58
.
56
GRINOVER, Ada Pelegrini. Notas ao § 1º. In: LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da
sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de
Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito
brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 9..
57
MARTINS, Pedro Batista. Comentários ao Código de Processo Civil. V. III. [s.l.]: [s.n.], 1942, p. 342-3
apud MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. V. IV. 3ª ed. rev. Rio de Janeiro:
Forense, 1969, p. 334-5.
58
MARQUES, op. cit., p. 334-5, grifo do autor.
41
A conclusão de José Frederico Marques, como é óbvio, não
resiste a um confronto sério com a concepção carneluttiana (e aqui é bom
sempre lembrar que se estava a trabalhar com um sistema de premissas teóricas
eminentemente carneluttianas), que, conforme vimos anteriormente, já
identificara no próprio processo civil italiano a diferença de sentidos de que era
dotado o termo lide quando empregado no instituto da litispendência e nem por
isso admitia o emprego desse sentido à hipótese de coisa julgada. Muito ao
contrário disso, tratou de extremar as duas hipóteses como técnicas
absolutamente distintas para a solução do problema da ocorrência de pluralidade
de processos sobre a mesma lide, sucessiva ou cumuladamente, objetivando, na
hipótese da pluralidade de lides se dar cumuladamente, assegurar, sempre, a
unidade do processo de cognição
59
.
A solução oferecida por José Frederico Marques, portanto, é
artificial e arbitrária justamente por não operar as categorias lógicas do sistema a
partir de sua origem e, aí, num primeiro plano, tentar esgotar as hipóteses de
solução, antes de buscar uma que lhe seja externa.
Antes, porém, de transigir com a tese de Pedro Batista Martins,
José Frederico Marques indica como hipótese rigorosa e única de decisão
parcial, no Código de Processo Civil Brasileiro de 1939, aquela em que o “[...]
juiz se limita a decidir o an debeabtur e relega para a liquidação o julgamento a
respeito do quantum debeatur
60
, o que, em parte e dentro de alguns limites,
fez com acerto, já que, de fato, o próprio Francesco Carnelutti a indicava como
hipótese em que a lide seria a mesma, sendo, porém, diversas as questões
61
.
A afirmativa que fazemos, no sentido de que só em parte e
mediante algumas ressalvas a assertiva de José Frederico Marques pode ser tida
como verdadeira decorre, antes de mais nada, do fato de que, à luz da
59
CARNELUTTI, Francesco. Instituições do Processo Civil. Trad. de Adrián Sotero De Witt Batista a partir da
edição espanhola. São Paulo: Classic Book, 2000, v. 1, p. 460 et seq., especialmente p. 463 e 466.
60
MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. V. IV. 3ª ed. rev. Rio de Janeiro:
Forense, 1969, p. 335.
61
CARNELUTTI, op. cit., p. 460 et seq., especialmente p. 465-6.
42
compreensão que Francesco Carnelutti tinha em torno do que seria processo
integral e processo parcial, certamente, esta não seria a única hipótese em que
o fenômeno ocorreria em nosso sistema.
Por outro lado, já dissemos que no sistema carneluttiano, a
referência a um julgamento parcial da lide, jamais poderia ou pode ser referido
a uma possibilidade de julgamento parcial da lide concretamente deduzida.
Nos limites em que a lide veio a ser deduzida, o julgamento de fundo positivo
extintivo do processo jamais poderia ser parcial, no sentido de que o juiz não
decidisse por inteiro a demanda.
A assertiva de José Frederico Marques só seria verdadeira,
portanto, à luz do sistema caneluttiano, se ele, ao afirmar que, aí, haveria uma
“decisão parcial sobre a lide”
62
, estivesse a indicar que a sentença referida ao an
debeatur resolveu (por inteiro) um processo parcial, mas, não, parcialmente o
processo.
Haveria, na hipótese, segundo a terminologia carneluttiana, uma
pluralidade sucessiva de processos em relação à mesma lide para se dirimirem
questões diversas, conforme já visto retro.
E é de se realçar que a concepção carneluttiana, nesse
particular, se conformava perfeitamente com o sistema do Código de Processo
Civil Brasileiro de 1939, o qual, ao regular a execução do julgado, deixava
muito claro em seu artigo 907 que, “Sendo ilíquida a sentença exeqüenda, a
citação terá por objeto a liquidação, que se fará por cálculo do contador, por
arbitramento ou por artigos”, assim como deixava muito claro em seu artigo 916
que “Na liquidação não se poderá modificar ou inovar a sentença liquidada,
nem discutir matéria pertinente à causa principal
63
, regra essa
complementada por aquela inserta no artigo 917, a ditar que “Proferida a
62
MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. V. IV. 3ª ed. rev. Rio de Janeiro:
Forense, 1969, p. 335.
63
Grifo nosso.
43
sentença de liquidação, a execução prosseguirá, independentemente de nova
citação pessoal”
64
.
A questão representada pelo quantum debeatur, como bem se
vê, é inserida em um novo e sucessivo processo, como deixa claro à menção que
o código fazia ao ato citatório a partir do qual ele se desenvolve, dirimido a
partir do proferimento de uma sentença cujo objeto não alcançaria (no sentido
de modificar), de modo algum, o que fora anteriormente decidido na sentença
liquidanda.
A conclusão, diante disso, é óbvia: nos limites da lide e das
questões decididas (e decídíveis), a sentença que encerra a discussão em torno
do an debeatur decide por inteiro o processo a que ele é afeito; é uma sentença
que decide a lide integralmente (nos limites das questões postas e dicidíveis),
apenas que em um processo parcial, porque a lide não veio a ser deduzida (e,
portanto, não podia ser decidida) sobre todas as suas questões.
Qualquer interpretação que vá além disso, em torno da questão
posta (ou seja, do julgamento condenatório genérico e a sua subseqüente
liquidação) e chegue ao ponto de advogar uma decisão parcial ou uma coisa
julgada parcial da lide e das questões deduzidas concretamente no processo,
é equivoca e não pode ser aceita como interpretação válida segundo o sistema
carneluttiano adotado. E se era a isso que José Frederico Marques aludia
quando se referia à “decisão parcial sobre a lide”, ele seguramente se equivocava
também aí.
O fato é que, de uma forma ou de outra, a distinção
carneluttiana entre processo integral e processo parcial, só em parte poderia
ser admitido como abraçado pelo Código de Processo Civil Brasileiro de 1939.
É que, conforme nos diz José Ignácio Botelho de Mesquita, para
Francesco Carnelutti, ter-se-ia o processo integral, “[...] quando o autor pede
64
Grifo nosso.
44
genericamente a produção de um determinado efeito jurídico, sem fazer
sustentar o seu pedido sobre uma ou algumas razões específicas”
65
.
Apesar dizer temer “[...] não haver acompanhado, neste passo, o
pensamento daquele insigne processualista [...]”
66
, José Ignácio Botelho de
Mesquita, a partir da assertiva dada, nos alerta que:
Por mais genérico que seja o pedido do autor, ele sempre far-se-á com
base em determinadas circunstâncias de fato, que, sem dúvida,
limitarão a lide frente ao processo. Tal ausência de limitação do
pedido poder-se-ia manifestar, quando muito, quanto aos fundamentos
jurídicos mas não quanto ao seu suporte fático, pois a lei aplicável,
qualquer que seja, encerra sempre um comando hipotético que exige
para a sua aplicação uma concreta hipótese de fato ou, como
expressivamente dizem os italianos, uma fattispecie di legge
67
.
A partir dessa observação, na visão de José Ignácio Botelho de
Mesquita,
A idéia [de processo integral] de Carnelutti demonstra uma clara
filiação à chamada teoria da individualização, padecendo, pois, dos
efeitos apresentados por esta corrente doutrinária, que se opõe à
chamada teoria da substanciação
68
.
Na forma, portanto, como Francesco Carnelutti concebera o seu
processo integral, dita figura inexistia no sistema do Código de Processo Civil
Brasileiro de 1939, o qual, segundo indica o mesmo José Ignácio de Botelho
Mesquita, entre as duas correntes que fundamentariam a causa de pedir, adotou
“a posição de equilíbrio” (leia-se, segundo o seu entendimento, um teoria
intermediária, situada entre ambas as teorias, mas que, de qualquer sorte, não
teria adotado, exclusivamente, a teoria da individuação da causa de pedir
69
)
65
BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. Sentença e coisa julgada. In: Teses, estudos e pareceres de
processo civil: volume 2: jurisdição e competência, sentença e coisa julgada, recursos e processos de
competência originárias dos Tribunais. ______. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 125.
66
Ibid., loc. cit.
67
Ibid., loc. cit., grifo do autor.
68
Ibid., p. 126.
69
Registre-se que o emprego da expressão “posição de equilíbrio” por José Ignácio Botelho de Mesquita não é
gratuita para indicar a teoria abarcada pelo Código de Processo Civil Brasileiro de 1939, já que, conforme indica
José Rogério Cruz e Tucci, ele, na vigência do referido Código, foi a única voz doutrinária dissonante, a indicar
que o art. 158, III, teria adotado uma teoria intermediária “[...] entre as correntes conflitantes, dando importância
tanto aos fatos constitutivos, como aos elementos de direito, na medida em que sirvam para individuar a
45
retratada no seu artigo 158, III, equivalente ao quanto dita o art. 282, III, do
vigente Código de Processo Civil Brasileiro
70
.
A despeito disso, José Ignácio Botelho de Mesquita não despreza
a distinção feita pelo artigo 287 do Código de Processo Civil Brasileiro de 1939,
entre processo parcial e total, julgando-a de grande valia, apenas, porém,
[...] para significar a possível diferença entre a extensão da lide fora e
dentro do processo. Esta diferença, contudo, somente vai aparecer
num eventual segundo processo sobre a mesma lide, pois até então
ainda não se saberá ao certo se já foram ou não propostas todas as
(possíveis) razões de pedir o mesmo bem
71
.
E tem razão José Ignácio Botelho de Mesquita. Em um código
em que o conceito de coisa julgada só pode ser buscado implicitamente e onde,
ademais, os artigos que dela tratam, espelham sabidamente elementos
doutrinários de um dado e determinado doutrinador (no caso Francesco
Carnelutti), só mesmo analiticamente se pode construir um conceito seguro de
coisa julgada.
Agora, se, analiticamente falando, podemos dizer que a noção de
processo total, nenhuma relevância tinha no sistema do Código de Processo
Civil de 1939, justamente porque adotara uma teoria de causa de pedir com ela
incompatível, o mesmo não se pode dizer da noção de processo parcial. Na
medida em que, na construção carneluttiana, processo e lide não se confundem,
assim como não se confundem lide e questões, é a partir dessa noção de
processo parcial que se mediria, naquele sistema, a eficácia do comando da
pretensão do autor [...]”, tese essa a que se juntou, já na vigência do Código de Processo Civil Brasileiro de
1973, Milton Paulo de Carvalho e Ovídio Baptista da Silva, este último ainda que por fundamento diverso
(CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2001, p. 146-7).
70
BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. Sentença e coisa julgada. In: Teses, estudos e pareceres de
processo civil: volume 2: jurisdição e competência, sentença e coisa julgada, recursos e processos de
competência originárias dos Tribunais. ______. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 126. Acerca da
filiação tanto do Código de Processo Civil Brasileiro de 1939 quanto do de 1973 à teoria da substanciação da
causa de pedir em oposição à teoria da individuação e o próprio significado e alcance dessas teorias, consulte-
se: CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 143 et seq. MOREIRA DE PAULA, Jônatas Luiz. Teoria geral do processo. 3ª
ed. Barueri: Manole, c2002, p. 114 et seq.
46
sentença, ou seja, em última análise, os limites da coisa julgada, os quais em
nenhum momento foram expressamente delimitados pelo código.
Só mesmo a partir da exata compreensão da noção de processo
parcial no sistema carneluttiano, é que podemos afirmar, com José Ignácio
Botelho de Mesquita, a partir do artigo 287 do Código de Processo Civil
Brasileiro de 1939, “[...] que o comando [da sentença] não é eficaz nem a
respeito de uma lide diversa, nem relativamente às porções da mesma lide não
introduzidas em juízo”
72
, assim como que “[...] o comando contido na sentença é
eficaz nos limites da lide e atua sobre esta somente naquele tanto que tenha sido
ajuizado”
73
.
José Ignácio Botelho de Mesquita, porém, não poupou críticas,
assim como os seus colegas acima mencionados, à redação do artigo 287 do
Código de Processo Civil Brasileiro de 1939. Também ele identifica na redação
do artigo uma cópia mal feita do projeto italiano de Ludovico Mortara
74
, onde,
reportando-se às suas conclusões acima citadas, quanto aos limites da eficácia
do comando da sentença que se deflui da exata interpretação do artigo 287 do
Código de Processo Civil Brasileiro de 1939, afirma que:
Embora desejando, manifestamente, exprimir os princípios até aqui
examinados, falhou o legislador pátrio. Não só deixou de inserir o que
havia de imprescindível no texto italiano, como endossou,
desnecessariamente, o que nele havia de supérfluo
75
.
Ao deixar, por exemplo, de reproduzir a expressão “nos limites
da lide”, existente no artigo 290 do projeto Mortara,
[...] o artigo 287 do nosso Código de Processo Civil [de 1939] ficou
absurdamente mutilado, dando a impressão de que o julgamento
71
BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. Sentença e coisa julgada. In: Teses, estudos e pareceres de
processo civil: volume 2: jurisdição e competência, sentença e coisa julgada, recursos e processos de
competência originárias dos Tribunais. ______. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 126.
72
Ibid., p. 131.
73
Id., loc. cit.
74
Id., loc. cit.
75
Id., loc. cit.
47
pronunciado sobre as questões tivesse força de lei; o que na verdade
não ocorre [...]
76
.
“Por outro lado,” diz o mesmo autor,
empregando a expressão “força de lei”, o Código veio a agasalhar
inutilmente uma das expressões mais controvertidas na doutrina, à
qual tem sido atribuídos os significados os mais diversos, servindo
para definir posições doutrinárias absolutamente incompatíveis com
nosso direito. Basta, para sentir-se a enormidade cometida, que se
recorde que, para os alemães, a idéia de “Rechtskraft” envolvia
inclusive a noção de imutabilidade do comando judicial, quando, no
texto brasileiro, a mesma expressão não pretende de forma alguma
encerrar a idéia de imutabilidade, não só porque a lei não possui esta
qualidade, como porque a imutabilidade da sentença vem tratada
especificadamente nos artigos 289 e 798, I, letra “b”, do CPC
77
.
A partir desse passo, prosseguindo em sua análise crítica, o autor
faz uma afirmação que, a despeito da audácia, nos precisaria o quanto o Código
de Processo Civil de 1939, ainda que implicitamente, avançara na consolidação
de um conceito mais preciso de coisa julgada. Diz ele:
Incluindo-se o artigo 287 no capítulo que trata “Da eficácia da
Sentença”, bastaria ao legislador (o que sem muito esforço poderia ter
conseguido) que permanecesse fiel ao objeto daquele título e
substituísse a expressão “força de lei” por “eficácia”. Mas não o fez e
aí se tem o resultado
78
.
É digno de registro que José Ignácio Botelho de Mesquita, ao
fazer tal afirmação, a faz em meio à polêmica atinente aos limites da motivação
do julgado ou à sua imutabilidade, acrescendo, nesse sentido, que o Código de
Processo Civil Brasileiro de 1939, ao situar o seu artigo 287 no capítulo
dedicado ao trato da eficácia da sentença, procedeu exatamente como procedia
Francesco Carnelutti ao tratar da matéria doutrinariamente. Diz ele:
Carnelutti, porém, teve o grande mérito de superar seus antecessores
no colocar a questão [dos limites em que o julgado abrangeria as
decisões das questões]. O problema vem tratado em suas lições na
76
BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. Sentença e coisa julgada. In: Teses, estudos e pareceres de
processo civil: volume 2: jurisdição e competência, sentença e coisa julgada, recursos e processos de
competência originárias dos Tribunais. ______. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 131.
77
Ibid., p. 132.
78
Id., loc.cit.
48
parte referente à eficácia da decisão, sob o título “Do Conteúdo da
Coisa Julgada”, separando-o, pois, da imutabilidade
79
.
Note-se que, a partir dessas passagens, o que se afirma é que o
Código de Processo Civil de 1939 já ensaiara, no plano legislativo, uma
distinção que, a despeito de já corrente no plano doutrinário quando do advento
daquela codificação, ao menos no continente europeu, entre nós, só viria a ser
incorporado no plano legislativo, explicitamente, com o advento do Código de
Processo Civil Brasileiro de 1973. Trata-se da distinção entre os efeitos ou a
eficácia ou, ainda, a obrigatoriedade da sentença e a sua imutabilidade.
Conforme indicam a unanimidade dos autores pátrios
80
, essa
distinção, entre eficácia e imutabilidade da sentença, foi devidamente
aprimorada e difundida no campo da doutrina processual, particularmente da
pátria, por Enrico Tullio Liebman. A respeito, diz Celso Neves:
Em 1935, Liebman publica, em Milão, sua monografia denominada
Efficacia e Autorità della Sentenza. A teoria nova, aí sustentada com
extraordinário brilho, suscitou logo a recensão de Carnelutti e iria
provocar reações da doutrina a que seu eminente autor reagiria, com o
peso de suas convicções e a segurança dos argumentos que delas
retiraria. Essa obra [foi] traduzida por Alfredo Buzaid e Benvindo
Aires para o português e editada em 1945, no Rio de Janeiro. No
prefácio dessa edição brasileira, Liebman, com a humildade científica
que bem traduz as suas dimensões de jurista, qualifica o seu trabalho,
não como uma monografia sobre a coisa julgada, mas “uma
contribuição para o estabelecimento de seu conceito”. E é, realmente,
na reformulação desse conceito que está a essência da obra do
eminente mestre peninsular que com o acervo da sua cultura, tanto
contribuiu para a renovação dos estudos do processo em nosso país
81
.
Não é o momento, ainda, de aprofundarmos a contribuição de
Enrico Tullio Liebman na construção do conceito de coisa julgada que, hoje, é
79
BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. Sentença e coisa julgada. In: Teses, estudos e pareceres de
processo civil: volume 2: jurisdição e competência, sentença e coisa julgada, recursos e processos de
competência originárias dos Tribunais. ______. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 137-8, grifo do
autor.
80
Cf. NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 394, et seq. ARAGÃO,
Egas Moniz de. Sentença e coisa julgada. Porto Alegre: Aide, 1992, passim.
81
NEVES, op.cit., p. 394, grifo do autor.
49
corrente na doutrina pátria e, tampouco, aprofundarmos o dissenso travado entre
ele e Fracesco Carnelutti.
É importante, contudo, deixar assente que, ainda que com uma
perspectiva diversa daquela sustentada por Enrico Túllio Liebman, o fato é que
Francesco Carnelutti, de fato, sustentara, muito antes daquele, uma distinção
entre eficácia da sentença e a sua imutabilidade, ou, como ele dizia, entre
imperatividade e imutabilidade.
Apanhando essa realidade, José Ignácio Botelho de Mesquita nos
expõe que:
Já antes de Liebman, Carnelutti distinguia a eficácia da sentença da
sua imutabilidade; por eficácia entendeu C. [Carnelutti] o efeito
produzido pela declaração judicial sobre a lide, enquanto vem integrar
a norma legal e transformá-la em comando concreto, com projeção
extra-processual consubstanciada na composição do conflito de
interesses surgido entre as partes; imutabilidade, por outro lado, foi
entendida por ele como um efeito relacionado (não com o caráter
imperativo, mas) com a função declaratória da sentença que, para
preencher sua finalidade, deve ser estável. Explica, assim, a
imutabilidade como a proibição dirigida a qualquer juiz de decidir a
lide que um outro juiz já tenha decidido
82
.
Assim,
Carnelutti situa tanto a eficácia como a imutabilidade no mesmo
plano, localizando-as dentro do conceito de autoridade da coisa
julgada. Fazendo uso indevido das expressões consagradas pela
doutrina, designa a primeira com o atributo de coisa julgada material
ou substancial e a segunda com o de coisa julgada formal [quando, na]
realidade as expressões originária, “materielle Rechtskraft” e
“formalle Rechtskraft”, consagradas pela doutrina germânica e
amplamente empregadas pelos processualistas em geral, não possuem
o significado que lhes empresta Carnelutti, mas diversamente, são
entendidas, respectivamente, como a eficácia da sentença frente a um
futuro processo e eficácia frente ao processo de que faz parte [...]
83
.
82
BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. Sentença e coisa julgada. In: Teses, estudos e pareceres de
processo civil: volume 2: jurisdição e competência, sentença e coisa julgada, recursos e processos de
competência originárias dos Tribunais. ______. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 114, grifo do
autor.
83
Id., loc. cit., grifo do autor.
50
José Carlos Barbosa Moreira, na mesma linha de entendimento e
escrevendo ainda na vigência do Código de Processo Civil Brasileiro de 1939,
mas já quando se gestava o vigente código, dizia que o pensamento de
Francesco Carnelutti (não menos do que o de Enrico Tullio Liebman) merecia
consideração à parte “[...] por suas estreitas relações com o nosso direito
processual civil – constituído e “constituendo” [...]”, aduzindo que, quanto à
concepção carneluttiana,
[...] para ser bem compreendida, exige que se tenha em mente a
posição original assumida, na matéria [refere-se à coisa julgada], pelo
ilustre autor, que, distinguindo na sentença a “imperatividade” (ou
eficácia) da imutabilidade, fazia corresponder àquela o conceito de
coisa julgada material, e a esta o de coisa julgada formal. Daí surgiam
duas importantes conseqüências, que singularizaram na literatura
processual o pensamento carneluttiano: de um lado, a coisa julgada
formal ampliava-se conceptualmente para abranger a impossibilidade
de modificar-se a decisão não só no âmbito do mesmo processo, mas
também nos processo futuros; de outro, invertiam-se os termos em que
tradicionalmente se visualizava a relação entre a coisa julgada material
e a coisa julgada formal, para ter-se aquela como antecedente desta, e
não vice-versa, pois a sentença produziria efeitos (isto é, seria
imperativa) desde a sua prolação, antes mesmo de preclusas as vias
recursais (ou seja, antes de tornar-se imutável)
84
.
Nas palavras do próprio Francesco Carnelutti, temos, em suma,
que:
[...] coisa julgada material e coisa julgada formal, não são, em minha
opinião, duas faces mas duas fases do julgamento até o ponto em que
pode haver imperatividade sem imutabilidade e ainda antes desta. Isso
não exclui que, praticamente, a eficácia da sentença imperativa e,
portanto, o benefício que dela deriva para a composição do litígio, seja
tão menor quanto maiores forem as possibilidades de sua mudança
85
.
A bem da verdade, Francesco Carnelutti identifica, no ato de
decidir uma eficácia interna, que qualifica como imperatividade e a conecta
84
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano
59, nº 416, p. jun. 1970, 10-11, grifo do autor.
85
CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil. Trad. de Hiltomar Martins Oliveira a partir
da edição Argentina em espanhol de 1943 traduzida por Alcalá-Zamora e Castilho. São Paulo: Classic Book,
2000, p. 426, grifo do autor.
51
com a coisa julgada material; e uma eficácia externa, que qualifica como a
imutabilidade do julgado e a conecta com a coisa julgada formal
86
.
Note-se, por outro lado, que, qualificando essas eficácias como
efeitos da decisão, Francesco Carnelutti diz que a eficácia interna se
expressaria na medida em que a decisão “[...] impõe aos litigantes, e por isso os
obriga [...]”
87
, daí a imperatividade. Trata-se, nas palavras de Francesco
Carnelutti, de uma ordem de efeitos onde a “[...] decisão vale pelo que manda
[...]”, encontrando a sua “[...] fonte imediata na vontade do juiz [...] que
representa tão apenas a projeção da vontade do juiz [...]” e se é certo “[...] que
também esta eficácia deriva da lei [...]”, não é menos certo que “[...] a lei quer
que o conflito se regule como quer o juiz e, portanto, não constitui [a lei] a não
ser sua fonte mediata
88
.
Haveria, porém uma outra ordem de efeitos da decisão, que se
expressaria na sua capacidade de extinguir a obrigação (e não apenas o poder)
de decidir do juiz das lides que lhe são apresentadas
89
.
Essa segunda ordem de efeitos da decisão, ao contrário da
primeira, não encontraria sua fonte imediata na vontade do juiz, mas, sim, “na
do legislador
90
. A decisão, sob essa ótica, não valeira pelo que ela manda,
como no primeiro caso, e, sim, “pelo que ela é
91
, de tal sorte que “[...] a
eficácia é externa quando compreender não mais o efeito querido pelo juiz
como qualquer outro efeito que uma norma extraia de ter pronunciado ele a
decisão”
92
.
Noutro passo, compreende-se que, a partir dessas idéias,
Francesco Carnelutti não via na imperatividade a manifestação própria do que
86
CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil. Trad. de Hiltomar Martins Oliveira a partir
da edição Argentina em espanhol de 1943 traduzida por Alcalá-Zamora e Castilho. São Paulo: Classic Book,
2000, p. 412-3.
87
Ibid., p. 412.
88
Ibid., p. 413, grifo do autor.
89
Ibid., p. 412-3.
90
Ibid., p. 413, grifo nosso.
91
Id., loc. cit., grifo do autor.
92
Id., loc. cit., grifo do autor.
52
seria coisa julgada. Aí, porém, rendeu-se às terminologias consagradas,
denominando-a de coisa julgada material justamente para extremá-la da
denominada coisa julgada formal, a cuja noção vinculou, em suma, a segunda
ordem de efeitos também gerados, via de regra
93
, pela decisão.
Esse proceder, que, na visão de José Ignácio Botelho de
Mesquita representou uma arbitrária utilização por Francesco Carnelutti desses
conceitos já consagrados, deveu-se, única e exclusivamente pelo fato de que na
época, a expressão coisa julgada era utilizada indistintamente tanto para
reportar-se ao ato de decidir quanto ao efeito de decidir
94
, com o que ele não se
conformava, na medida em que esse modo de proceder não dava conta da
realidade na exata medida em que diversas eram as situações, no próprio direito
italiano, em que a sentença era dotada de imperatividade, mas não de
imutabilidade
95
.
Para Francesco Carnelutti, essas duas ordens de efeitos eram
fenômenos diversos que deviam ser extremados em seus fundamentos, inclusive.
Daí ele dizer:
A imperatividade da decisão é chamada também coisa julgada, em
vez de autoridade de coisa julgada, como afirma a lei (arts. 1.350 e
1.351 do Código Civil), porque [...] a expressão “coisa julgada”
refere-se tanto ao ato quanto ao efeito de decidir. Sem embargo, como
a eficácia da sentença não é unicamente esta de ser imperativa e
também sua outra espécie de eficácia se chama assim, é necessário
distinguir, mediante um atributo, as duas espécies de eficácia, ou
seja, uma e outra coisa julgada. Esta distinção se consegue
contrapondo a coisa julgada material à coisa julgada formal [...], a
imperatividade da decisão representa, exatamente, a coisa julgada
material
96
.
93
Falamos via de regra porque, como já acentuava Francesco Carnelutti, não sendo, a imutabilidade,
característica inexorável da decisão, a coisa julgada formal nem sempre se manifestaria como efeito da decisão,
ao contrário do que ocorreria com a imperatividade (CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual
civil. Trad. de Hiltomar Martins Oliveira a partir da edição Argentina em espanhol de 1943 traduzida por Alcalá-
Zamora e Castilho. São Paulo: Classic Book, 2000, p. 443-6).
94
CARNELUTTI, op. cit., p. 415.
95
Ibid., p. 414 et seq.
96
Ibid., p. 414-5, grifo em negrito, nosso; grifo em itálico, do autor.
53
Em outro passo, voltando a extremar essas duas ordens de efeitos
da decisão, Francesco Carnelutti diz que:
A imutabilidade da sentença se traduz em uma proibição ao juiz de
voltar a decidir o litígio já decidido (ne bis in idem). Esta é, na
realidade, uma eficácia processual da decisão, que completa sua
eficácia material [...], e a ela, em antítese com a coisa julgada
material, dá-se o nome de coisa julgada formal [...]. Vistas assim as
coisas, porém, não se trata da eficácia da decisão ou, pelo menos, da
decisão única, posto que a imutabilidade não pertence à decisão em si
e por si [...]
97
.
Após identificar, outrossim, no artigo 1.350 do Código Civil
Italiano então vigente, a fórmula legal (“teoricamente bastante discutível”
98
, diz
ele) de proibição dessa represtinação da decisão judicial, Francesco Carnelutti
volta a esclarecer que:
Isto quer dizer que a coisa julgada formal é o efeito da preclusão do
direito a provocar a mudança da decisão, ou seja, de impugná-la. E
assim como a coisa julgada material se traduz em um efeito
imperativo, a coisa julgada formal se manifesta em um efeito
preclusivo. Quem não tem, pelo contrário, nada a ver com a preclusão
é a coisa julgada material. Portanto, a distinção deve se estabelecer
mais que entre coisa julgada e preclusão, entre esta e coisa julgada
material, ou seja, em definitivo, entre imperatividade e
imutabilidade
99
.
Tamanha era a ambigüidade com que Francesco Carnelutti via
ser empregada a expressão coisa julgada que ele, inclusive, não se deu por
rogado em qualificá-la como uma promisqüidade
100
.
Disso tudo, fica claro que em Francesco Carnelutti, eficácia e
imutabilidade eram, de fato, coisas absolutamente distintas e, levado ao extremo
97
CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil. Trad. de Hiltomar Martins Oliveira a partir
da edição Argentina em espanhol de 1943 traduzida por Alcalá-Zamora e Castilho. São Paulo: Classic Book,
2000, p. 445, grifo em negrito, nosso; grifo em itálico, do autor.
98
Id., loc. cit.
99
Id., loc. cit., grifo do autor.
100
Id., loc. cit.
54
o seu pensamento, era exatamente essa a conseqüência que se extrairia da exata
interpretação do artigo 287 do Código de Processo Civil Brasileiro de 1939, o
qual, em suma, já teria antecipado, ainda que implicitamente, um conceito legal
de coisa julgada que só com o advento do Código de Processo Civil Brasileiro
de 1973 se explicitaria, conforme teremos a oportunidade de ver adiante.
Não é por menos que, aludindo especificamente ao artigo 287 do
Código de Processo Civil Brasileiro de 1939, José Carlos Barbosa Moreira diz
textualmente que ele reproduziu, em nosso direito processual, a teoria
carneluttiana e, assim, estaria a desvincular, desde então, a eficácia do julgado
de sua imutabilidade:
Reflete-se este último aspecto da interessante construção teórica na
redação do art. 287 do Código pátrio, de corte sabidamente
carneluttiano. Observará o leitor, com efeito, que o dispositivo, em seu
teor literal, não subordina ao trânsito em julgado a manifestação da
eficácia normativa da sentença – ou, segundo a expressão, menos
feliz, do texto, a “força de lei” que a ela se atribui
101
.
O próprio José Carlos Barbosa Moreira aponta, contudo, que esse
ponto não despertou, na vigência do Código de Processo Civil Brasileiro de
1939 “[...] a atenção que se poderia esperar dos comentadores e tratadistas
[...]”
102
, sendo essa, talvez, a razão porque a teoria de Enrico Tullio Liebman
tenha sido recepcionada, por nós, como algo verdadeiramente ímpar e envolta
em uma espécie de frenesi doutrinário.
Essas, contudo, não foram as únicas polêmicas em que se viu
envolto o conceito (implícito) de coisa julgada que se adotara no Código de
Processo Civil Brasileiro de 1939.
Em parte pela deficiente redação dada ao caput do artigo 287 do
Código de Processo Civil Brasileiro de 1939, em que, ao se suprimir a expressão
“nos litimites da lide”, existente no artigo 290 do projeto Mortara, passou a dar
101
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano
59, nº 416, jun. 1970, p. 11, grifo do autor.
102
Id., loc. cit., nota “9”.
55
“[...] a impressão de que o julgamento pronunciado sobre as questões tivesse
força de lei”
103
; e em parte pela redação que foi dada ao parágrafo único desse
mesmo artigo 287, que rezava que “considerar-se-ão decididas todas as questões
que constituam premissa necessária da conclusão”, levando a maior parte dos
seus intérpretes a, segundo José Ignácio Botelho de Mesquita, darem a
impressão de que o Código então vigente agasalhara “[...] a extensão da coisa
julgada à decisão das questões necessária à prolatação do comando”
104
, ou,
trocando em miúdos, que o Código em questão teria estendido os efeitos da
coisa julgada e em especial a imutabilidade do julgado à motivação da decisão.
O problema, nos dizeres de José Ignácio Botelho de Mesquita,
era e é “[...] tratado na doutrina e na jurisprudência como incluído no tema dos
limites objetivos da coisa julgada e é usualmente denominado como o problema
da extensão do julgado à motivação da sentença”
105
e se circunscreveria em se
saber se a motivação do julgado também é abrangida ou não pela coisa julgada,
ou seja, se teria ou não eficácia diante de uma futura lide.
A possibilidade de se atribuir autoridade de coisa julgada à
motivação do julgado teve como grande teórico aquele que, segundo José
Ignácio Botelho de Mesquita
106
, contou com o mérito de ser o primeiro a
sistematizar cientificamente a matéria, qual seja Friederich Karl von Savigny.
Na síntese de Celso Neves,
[...] chega Savigny à conclusão de que a força legal compreende,
também, os motivos da sentença, ou seja: que se deve considerar a sua
força legal em conexão inseparável com as relações jurídicas
afirmadas ou negadas pelo juiz, das quais depende a eficácia prática
da decisão (o ato imposto ao réu ou a rejeição do pedido do autor)
107
.
103
BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. Sentença e coisa julgada. In: Teses, estudos e pareceres de
processo civil: volume 2: jurisdição e competência, sentença e coisa julgada, recursos e processos de
competência originárias dos Tribunais. ______. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 131.
104
Id., loc. cit.
105
Ibid., p. 133-4.
106
Ibid., p. 134.
107
NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 117, grifo do autor.
56
De se observar, porém, que por motivos, compreendidos no
sentido do texto, Friederich Karl von Savigny compreendia tão somente “[...] os
elementos das relações jurídicas controvertidas e da sentença que decide a
lide”
108
. É só a partir dessa estreita compreensão que ele admitia o emprego da
sua máxima: “[...] os elementos da sentença adquirem força legal de coisa
julgada”
109
.
Esses elementos ele nominava de motivos determinantes
objetivos, que fariam coisa julgada, em contraposição aos motivos
determinantes subjetivos, que, ao contrário, não teriam o condão de integrar a
coisa julgada, ou, conforme a exposição que Celso Neves faz do autor:
[...] é possível distinguir-se, entre as considerações que levam o juiz à
sentença, duas espécies de motivos determinantes: os objetivos, que
verdadeiramente integram a relação jurídica, também denominados
elementos; e os subjetivos pelos quais o juiz é pessoalmente levado a
uma firme convicção sobre aqueles elementos, pra afirmá-los ou negá-
los. Com base nessa distinção, afirma Savigny que os motivos
objetivos admitidos pelo juiz (os elementos) adquirem força de coisa
julgada, enquanto que os motivos subjetivos não. Quem afirma a força
legal do motivos tem razão – remata Savigny – se pensa nos motivos
objetivos. Quem a nega tem razão, se se refere aos motivos
subjetivos
110
.
Bem se vê, portanto, que quando se afirma que Friederich Karl
von Savigny, advogava a extensão dos efeitos da coisa julgada sobre a
motivação da decisão, essa extensão não se dava sobre toda ela, mas, tão
somente, sobre os ditos motivos objetivos que ela encerrasse (ou elementos).
Em sentido oposto, ou seja, no campo daqueles que sustentavam
não ser a coisa julgada extensível aos fundamentos da decisão, fossem eles de
que natureza fossem, avultou, desde logo, a figura de Giuseppe Chiovenda,
sustentando que:
A essência da coisa julgada, do ponto de vista objetivo, consiste em
não se admitir que o juiz, num futuro processo, possa, de qualquer
108
SAVIGNY, Friederich Karl von. Sistema del Diritto Romano Attuale. Tradução de Scialoja. Turim: Utet,
1896, p. 389-90 apud NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 117-8.
109
Id., loc. cit. apud NEVES, op. cit., p. 118.
110
NEVES, op. cit, p. 118, grifo do autor.
57
maneira, desconhecer ou diminuir o bem reconhecido no julgado
anterior. Isto posto, deve entender-se [...] que é lícita uma nova
decisão sobre as questões prejudiciais dirimidas no processo
antecedente, e que não constituíram objeto de uma decisão por si
mesmas, mas se resolveram apenas com o escopo de decidir sobre a
demanda do autor. Por mais forte razão, não está o juiz obrigado a
admitir como verdadeiros os fatos considerados como base do
julgador anterior, nem as qualificações que se lhes atribuíram (por
exemplo, que é uma relação comercial ou civil). As questões e as
novas decisões sobre esses pontos somente são excluídas na medida
em que possam ter como resultado volver à discussão e, por
conseguinte, e o que é pior, reduzir ou desconhecer o bem reconhecido
no julgado precedente
111
.
Isso sustentava Giuseppe Chiovenda na exata medida em que
para ele, o objetivo da coisa julgada era evitar o conflito prático entre julgados,
pouco importando o possível conflito teórico que entre eles pudesse haver. Diz
ele, nesse sentido:
Os princípios da coisa julgada excluem, por conseqüência, por si
mesmos, só o conflito prático dos julgados, isto é, decisões diversas
relativamente à própria ação, portanto praticamente incompatíveis.
Não visam eles, porém, nem prescrevem nenhum remédio ao simples
conflito teórico dos julgados, quer dizer, ao caso de decisões
logicamente incompatíveis, mas praticamente conciliáveis. Como,
porém, mesmo o conflito teórico pode ocasionar inconvenientes e
pode revelar-se infenso à dignidade da função jurisdicional,
freqüentemente a lei se esforça por dirimi-lo ou por impedi-lo com
normas expressas nos diversos casos. Lá onde a lei não provê
expressamente, não pode o simples conflito teórico, sem embargo,
obstar à rigorosa aplicação dos princípios da coisa julgada
112
.
Explicando, ainda, a inconveniência de se emprestar uma eficácia
expansiva da coisa julgada no plano objetivo do julgado, Giuseppe Chiovenda
manifestava-se dizendo:
O hábito de considerar a atividade do juiz sobretudo do ponto de vista
do trabalho lógico dispôs os intérpretes a emparelhar todas as
definições de pontos controversos no curso de uma lide, e atribuir-lhes
a todas a mesma autoridade da decisão final. Mas, sabemo-lo, o juiz
não é um lógico qualquer, é um magistrado que provê sobre as
demandas das partes, atuando a vontade da lei relativa a um bem da
111
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução de Paolo Capitanio a partir da
2ª edição italiana [1935?]. Anotações de Enrico Túlio Liebman. 1ª ed. Campinas: Bookseller, 1998, p. 493-4.
112
Ibid., p. 497, grifo do autor.
58
vida. Do ponto de vista prático, deve-se observar que o estender-se a
coisa julgada a todas as questões decididas poderia encerrar alguma
vantagem, porque evitaria algum processo futuro e decisões
contraditórias. Seriam, porém, muito graves os inconvenientes de
semelhante extensão. As partes, ao proporem uma ação ou ao se
defenderem, não teriam mais nenhuma certeza sobre os limites e o
alcance da lide; seriam forçadas a preparar um esforço de ataque e de
defesa efetivamente desproporcionado à sua intenção. Dada, pois, a
necessária distribuição da competência entre juízes diversos, por efeito
da qual cada juiz pode encontrar-se na contingência de resolver
preliminarmente uma questão que, tomada em separado, seria da
competência do outro, e considerada a própria relação existente entre
coisa julgada e competência, por força da qual toda decisão com
autoridade de julgado deve proceder do juiz competente, assistiríamos
a um contínuo suspender da instância para transferi-la de um a outro
magistrado, se a respeito de cada ponto preliminar contestado devesse
o juiz decidir com autoridade de coisa julgada. Daí a necessidade de
manter a coisa julgada nos confins da demanda, e de discernir na
cognição as questões prejudiciais ou motivos, sobre os quais o juiz
decide incidenter tantum, ou seja, com o fim exclusivo de preparar a
decisão final, mesmo quando não se insiram em sua competência, e a
demanda baseada na qual a causa é designada à sua competência e
sobre a qual provê principaliter, com autoridade de julgado (art.
1.351, CC)
113
.
No que tange à tese de Friederich Karl von Savigny, “[...] embora
não fosse consagrada pelo parágrafo 322 da Z.P.O. alemã”
114
, ela não deixou de
repercutir com intensidade no meio jurídico, o que “[...] pode medir-se
principalmente pelo fato de que as teorias posteriores, quando não a endossaram,
dela se serviram como ponto de partida para as suas investigações”
115
, e se é
certo que, a despeito dessa repercussão, “Na Itália, já em 1904, Menestrina
afirmava o consenso unânime dos processualistas no sentido de negar aos
113
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução de Paolo Capitanio a partir da
2ª edição italiana [1935?]. Anotações de Enrico Túlio Liebman. 1ª ed. Campinas: Bookseller, 1998, p. 476-7,
grifo do autor.
114
BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. Sentença e coisa julgada. In: Teses, estudos e pareceres de
processo civil: volume 2: jurisdição e competência, sentença e coisa julgada, recursos e processos de
competência originárias dos Tribunais. ______. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 134.
115
Id., loc. cit.
59
motivos a passagem em julgado”
116
, não é menos certo que, “À luz desse
dispositivo [do artigo 287 do Código de Processo Civil Brasileiro de 1939],
parte da doutrina [brasileira] havia reavivado – com algum disfarce – o velho
pensamento de Savigny, estendendo a coisa julgada aos fundamentos da
decisão[...]”
117
, o que, contudo, não impediu que no Brasil a doutrina majoritária
viesse a se firmar, ainda na vigência do referido código, “[...] no sentido
restritivo, entendendo que a abrangência da coisa julgada se limitava ao
dispositivo da sentença”
118
.
Entre, por exemplo, aqueles que, no Brasil, se filiaram, desde
antes mesmo da edição do Código de Processo Civil Brasileiro de 1939, à tese
ampliativa, pode-se citar Francisco de Paula Batista, para quem a “[...]
autoridade de coisa julgada é restrita à parte dispositiva do julgamento e aos
pontos aí decididos e fielmente compreendidos em relação aos seus motivos
objetivos”, pelo que, dizia ele, “[...] não professo a opinião daqueles que querem
que, na aplicação da coisa julgada, se não atendam aos motivos ou fundamentos
do julgamento”
119
.
116
BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. Sentença e coisa julgada. In: Teses, estudos e pareceres de
processo civil: volume 2: jurisdição e competência, sentença e coisa julgada, recursos e processos de
competência originárias dos Tribunais. ______. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 136.
117
GRINOVER, Ada Pelegrini. Notas ao § 1º. In: LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da
sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de
Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito
brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 10.
118
Id., loc. cit.
119
PAULA BATISTA, Francisco. Compêndio de Teoria e Prática do Processo Civil. São Paulo: [s.n.], 1935,
p. 141, § 185, grifo do autor apud BOTELHO DE MESQUITA, op. cit., p. 138. Equivoca-se, portanto, Enrico
Tullio Liebman quando diz que, entre nós, Francisco Paula Batista teria resolvido o controvertido tema “[...] há
muito tempo e de modo insuperável”, concluindo, após citar a primeira das passagens do autor que
transcrevemos, que para ele “Significa isso que os motivos da sentença não são objeto da coisa julgada, mas
devem ser considerados para entender o verdadeiro e cabal alcance da coisa julgada” (LIEBMAN, op. cit., p. 54,
grifo nosso). Enrico Túllio Liebman parece ter se descuidado da segunda passagem que transcrevemos, onde o
próprio Francisco de Paula Batista, declara expressamente filiar-se aqueles que comungam com o entendimento
de que a coisa julgada é extensiva aos motivos, ainda que objetivos. Aliás, a própria referência de Francisco de
Paula Batista, quando emprega a expressão “motivos objetivos”, bem denunciava a sua filiação à teoria de
Friederich
Karl von Savigny. Registre-se, ainda, que esse erro ele já reproduzira anteriormente, ao anotar a obra
de Giuseppe Chiovenda, quando já filiava Francisco de Paula Batista entre os restritivistas (Cf.: LIEBMAN,
Enrico Tullio. Nota nº 235. In: CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução de
Paolo Capitanio a partir da 2ª edição italiana [1935?]. Anotações de Enrico Túlio Liebman. 1ª ed. Campinas:
Bookseller, 1998, p. 475). No mesmo erro incorrem: Celso Neves, ao filiar o mesmo Francisco de Paula Batista à
tese dos restritivistas, explicando-se o seu erro justamente porque o cita a partir de Enrico Tullio Liebman,
reproduzindo, assim, a falha do mestre. Agrava-se, contudo, o seu erro, quando, ao transcrever a passagem
reproduzida por Enrico Tullio Liebman, que é exatamente a primeira das passagens de Francisco de Paula
60
Com Francisco de Paula Batista, fez coro João Monteiro, apenas
que aderindo à tese esposada por Pietro Cogliolo
120
, o qual, segundo ele, a
despeito de entender como justa a teoria de Friederich Karl von Savigny, ela se
afiguraria como
Insuficiente, já que não contém o critério com que distinguir os
motivos objetivos dos subjetivos: todos os motivos, diz o ilustre
professor de Gênova [Pietro Cogliolo], são subjetivos, no sentido de
haverem movido o espírito do juiz, e são objetivos, no sentido de se
terem externado ou objetivado na sentença.
A res judicata pressupõe o juízo do julgador e este pressupõe a
controvérsia das partes: logo fazem coisa julgada as relações
jurídicas que realmente foram controvertidas e julgadas.
E assim, só fazem coisa julgada os motivos em que tais relações
estiveram expressas como coisa imediata do dispositivo da
sentença
121
.
J. M. de Carvalho Santos era exatamente da mesma opinião de
João Monteiro, explanando, a respeito, que:
O nosso Código de Processo [de 1939], ao que nos parece, aceitou
integralmente a teoria de Savigny, melhorada por Cogliolo.
Considerando decididas, e, pois, com força de coisa julgada, todas as
questões que constituam premissa necessária da conclusão, o nosso
Código acolheu, em última análise, a doutrina de Cogliolo, pois
admite que exista um estreito vínculo entre a conclusão e certos
motivos da sentença.
Batista por nós reproduzida, substitui a expressão “motivos objetivos” por “motivos subjetivos”, deturpando por
completo o sentido do texto originário e que, em suma, não só inverteria a conclusão que se poderia extrair do
texto, como que, também, alargaria ainda mais a adesão de Francisco de Paula Batista à tese da ampliação dos
efeitos da coisa julgada aos motivos do julgado, na medida em que ele a estenderia não só aos motivos
objetivos, mas, também, aos motivos subjetivos, já que não se compreenderia abarcar estes últimos sem que se
abarcasse, também, aqueles, tese essa que, conforme visto, nem mesmo Friederich
Karl von Savigny avalisava
(NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 493); Moacyr Amaral Santos, o
qual, do mesmo modo, transcrevendo apenas a primeira passagem por nós transcrita, de Francisco de Paula
Batista, sonega a segunda, além de não emprestar a devida atenção a expressão final da passagem que ele próprio
transcreve, quando alude aos “motivos objetivos”, de corte nitidamente savignyano (SANTOS, Moacyr Amaral.
Direito Processual Civil. V. 3. 4ª ed. 2ª tir. São Paulo: Max Limonad, 1973, p. 86); e José Frederico Marques,
cujas razões da falha não são identificáveis, na medida em que apenas alude à filiação (suposta) do autor
(MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. V. IV. 3ª ed. rev. Rio de Janeiro:
Forense, 1969, p. 337).
120
COGLIOLO, Pietro. Eccezione di cosa giudicata. Turim: [s.n.], 1883, p. 177 apud MONTEIRO, João.
Teoria do processo civil. Atualizado por J. M. de Carvalho Santos. T. II. 6ª ed. Borsoi: Rio de Janeiro, 1956, p.
770.
121
MONTEIRO, op. cit., p. 770, grifo do autor.
61
No sistema do nosso Código, sem dúvida, somente os motivos
objetivos, que com a conclusão se identifica, podem ter a força de
coisa julgada. Nunca, porém, os motivos meramente subjetivos
122
.
Já dissemos, acima, com suporte em Ada Pellegrini Grinover,
que, de uma forma ou de outra, a doutrina brasileira veio a firmar-se, quanto a
esse particular, no sentido restritivo, mesmo na vigência do Código de Processo
Civil Brasileiro de 1939. Deve-se, contudo, ressalvar que, conforme bem lembra
a mesma autora, ao anotar a obra de Enrico Tullio Liebman, essa convergência
só se deu “[...] após a edição brasileira do livro de Liebman”
123
.
Num sucinto retrospecto, além dos já citados Francisco de Paula
Batista, João Monteiro e J. M. de Carvalho Santos, Enrico Tullio Liebman
indica explicitamente Herotides da Silva Lima, Jorge Americano e Pedro Batista
Martins como comentadores cujo critério era pouco seguro, na abordagem da
matéria, quando da interpretação do artigo 287 do Código de Processo Civil
Brasileiro de 1939
124
.
Mesmo Pontes de Miranda, não deixou de titubear em torno da
matéria, afirmando que o antigo código teria estendido a coisa julgada “[...] às
relações constitutivas do pressuposto da relação de que se trata”
125
, situando o
diploma brasileiro, segundo Ada Pellegrini Grinover, “[...] entre o código
122
CARVALHO SANTOS, J. M. de. Código de processo civil interpretado: artigos 263 a 353. V. IV. 7ª ed.
Freitas Bastos: Rio de Janeiro, [195?], p.147.
123
GRINOVER, Ada Pellegrini. Notas ao § 1º. In: LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da
sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de
Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito
brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 10-11.
124
Ibid., p. 11.
125
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. T. IV. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 102-103.
62
alemão, restritivo (§ 322, ZPO de 1877) e o código português, amplo
(art.660)”
126
.
Por outro lado, se é bem verdade que Moacyr Amaral Santos,
entre outros doutrinadores, conforme alude Ada Pellegrini Grinover, após a
publicação, no Brasil, da obra de Enrico Tullio Liebman, aderiu à tese
restritivista, isso só ocorreu no plano doutrinário, já que esse autor, mesmo
escrevendo em 1973 (e, portanto, já nos estertores do Código de Processo Civil
Brasileiro de 1939), continuou a advogar insistentemente que o Código de
Processo Civil de 1939, pelo seu art. 287, adotara sim, uma tese ampliativa dos
limites objetivos da coisa julgada, ainda que não encampando, propriamente, a
tese de Friederich Karl von Savigny.
Aproximando-se, a bem da verdade, de Pontes de Miranda,
Moacyr Amaral Santos assim esposava o seu entendimento, após render
homenagens à tese de Enrico Túllio Liebman, que professava como acertada:
Entretanto, não se pode olvidar o parágrafo único do art. 287, do
Código de Processo Civil, sem embargo das severas críticas que se lhe
fazem. É a lei a ser entendida e obedecida. Aí se diz que as premissas
necessárias à conclusão se hão por decididas. Enquanto o código
alemão reza que somente o dispositivo da sentença é abrangido pela
coisa julgada, a lei brasileira, havendo por decididas as premissas
necessárias ao dispositivo, vai além daquele código e da sua
doutrina. Havendo por decididas as premissas necessárias à conclusão,
aí vendo decisum, o Código brasileiro estendeu para esse a coisa
julgada
127
.
Em reforço, diz ele ainda:
Com assim estabelecer, o Código não se afeiçoou à doutrina de
Savigny, pois não são os motivos objetivos que são alcançados pela
coisa julgada, mas tão só as premissas necessárias à conclusão.
Também – observa Pontes de Miranda, - “de modo nenhum aderiu à
regra portuguesa (Código de Processo Civil de Portugal, art. 660,
parágrafo único), consoante a qual “consideram-se resolvidas tantos as
126
GRINOVER, Ada Pellegrini. Notas ao § 1º. In: LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da
sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de
Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito
brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 11.
127
SANTOS, Moacyr Amaral. Direito Processual Civil. V. 3. 4ª ed. 2ª tir. São Paulo: Max Limonad, 1973, p.
86, grifo do autor.
63
questões sobre que recair decisão expressa, como as que, dados os
termos da causa, constituírem pressuposto ou conseqüência
necessária do julgamento expressamente proferido”. Certo, a nosso
ver Pontes de Miranda, ao dizer: - “ficou o Código a meio caminho,
que é o do art. 290, do Projeto Mortara”
128
.
A partir da referência que Pontes de Miranda fazia, nesse
particular, ao artigo 290 do Projeto Mortara, tal qual reproduzido por Moacyr
Amaral Santos, o que se conclui, inclusive, é que na visão dele, essa
interpretação ampliativa do artigo 287, parágrafo único, do Código de Processo
Civil de 1939, não decorria de uma deficiente redação do dispositivo pátrio e,
sim, da redação do próprio dispositivo em que ele se espelhou.
Da tese de Pontes de Miranda, comunga, expressamente, José
Frederico Marques, ao dizer que “[...] o projeto Mortara consignou o princípio
agora incorporado ao art. 287, parágrafo único, de nosso Cód. de Proc. Civil”
129
.
Dizendo que, a despeito disso, o dispositivo legal brasileiro não
teria, de fato, abraçado a tese de Friederich Karl von Savigny, entre nós
reproduzida por João Monteiro (e também por Francisco de Paula Batista, como
vimos acima), José Frederico Marques tenta emprestar uma interpretação
restritiva à ele a partir de uma sua conciliação com o artigo 4º do mesmo código,
que reproduzia o princípio do dispositivo (“O juiz não poderá pronunciar-se
sobre o que não constitua objeto do pedido, nem considerar exceções não
propostas para as quais seja por lei reclamada iniciativa da parte”), concluindo
que o “verdadeiro alcance e sentido da norma” seria aquele expendido por
Enrico Tullio Liebman
130
, que, em suma, o tinha como importante tão só para a
determinação do alcance e significado exato do dispositivo (ou seja, como
instrumento de mera interpretação da parte dispositiva), assim como para indicar
128
SANTOS, Moacyr Amaral. Direito Processual Civil. V. 3. 4ª ed. 2ª tir. São Paulo: Max Limonad, 1973, p.
86-7, grifo do autor.
129
MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. V. IV. 3ª ed. rev. Rio de Janeiro:
Forense, 1969, p. 337.
130
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com
aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos
64
que o dispositivo poderia estar, também (por imprecisão técnica do julgador),
inserida na motivação, o que não retiraria o seu conteúdo de disposição,
emprestando, então, um conteúdo substantivo ao termo dispositivo e não
estritamente formal
131
.
A solução dada por José Frederico Marques, ele próprio a debita
ao magistério de Enrico Tullio Liebman, o qual, em passagem que merece ser
transcrita - dada a força e influência que teve na consolidação da interpretação
que se firmou em torno do referido dispositivo legal, assim como no trato que,
subseqüentemente, veio a ser emprestado à matéria no Código de Processo Civil
Brasileiro de 1973 -, sustentava, em franca fidelidade aos ensinamentos da
utilidade prática da coisa julgada de Giuseppe Chiovenda, que:
Importa realçar que a afirmação freqüente segundo a qual se
estenderia a coisa julgada a todas as questões debatidas e decididas, é
duplamente inexata.
Em primeiro lugar, porque se estende também a questões não
debatidas nem decididas: se uma questão pudesse ser discutida no
processo, mas de fato não o foi, também a ela se estende, não
obstante, a coisa julgada, no sentido de que aquela questão não
poderia ser utilizada para negar ou contestar o resultado a que se
chegou naquele processo. Por exemplo, o réu não opôs uma série de
deduções defensivas que teria podido opor, e foi condenado. Não
poderá ele valer-se daquelas deduções para contestar a coisa julgada.
A finalidade prática do instituto exige que a coisa julgada permaneça
firme, embora a discussão das questões relevantes tenha sido
eventualmente incompleta; absorve ela, desse modo, necessariamente,
tanto as questões que foram discutidas como as que o poderiam ser.
Neste sentido dispõe exatamente o parág. Único do art. 287 do Cód.
de Proc. Civil.
Em segundo lugar, pelo contrário, não se abrangem na coisa julgada,
ainda que discutidas e decididas, as questões que, sem constituir
objeto do processo em sentido estrito, o juiz deverá examinar, como
premissa da questão principal (questões prejudiciais em sentido
estrito): foram elas conhecidas, mas não decididas, porque sobre elas
o juiz não sentenciou, e por isso podem ser julgadas livremente em
outro processo, mas para fim diverso do objetivado no processo
anterior; e o resultado desse processo deve permanecer intangível, mas
posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1981, p. 57-8.
131
MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. V. IV. 3ª ed. rev. Rio de Janeiro:
Forense, 1969, p. 337-8, grifo do autor.
65
para qualquer outro efeito subsistem intactas as questões
prejudiciais
132
.
Concluía, ele, então, que:
Por essa razão, ao invés de estabelecer os limites da coisa julgada com
fundamento nas questões discutidas, convém lembrar que o que a
coisa julgada deve assegurar, é o resultado prático e concreto do
processo (ou, em outras palavras, o seu efeito), e nada mais que isso:
e é, pelo contrário, irrelevante a amplitude da matéria lógica discutida
e examinada. Pode esta ter ultrapassado os limites da questão que foi
deduzida no processo como seu objeto, ou pode também ter-se
restringido mais do que ela poderia ter comportado, sem que por isso
se altere o âmbito em que opera a coisa julgada. E para identificar o
objeto (sentido técnico) do processo e, em conseqüência, da coisa
julgada, é necessário considerar que a sentença representa a resposta
do juiz aos pedidos das partes e que por isso (prescindindo da hipótese
excepcional da decisão extra petita) tem ela os mesmos limites desses
pedidos, que ministram, assim, o mais seguro critério para estabelecer
os limites da coisa julgada. Em conclusão, é exato dizer que a coisa
julgada se restringe à parte dispositiva da sentença; a essa expressão,
todavia, deve dar-se um sentido substancial e não formalístico, de
modo que abranja não só a fase final da sentença, mas também
qualquer outro ponto em que tenha o juiz eventualmente provido sobre
os pedidos das partes. Excluem-se, por isso, da coisa julgada os
motivos, mas são eles mesmos um elemento indispensável para
determinar com exatidão a significação e o alcance do dispositivo
133
.
Em outra passagem, Enrico Tullio Liebman, justificando,
inclusive, essa sua interpretação em torno do artigo 287, parágrafo único, do
Código de Processo Civil Brasileiro de 1939, a partir de elementos legais
132
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com
aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos
posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1981, p. 56, grifo do autor.
133
Ibid., p. 57-8, grifo do autor. Digno de registro é o fato de que Enrico Tullio Liebman não faz distinção, em
sua análise crítica do dispositivo, entre “questões” e “razões”, que, quer nos parecer, deve ser empreendida na
sua interpretação para maior precisão ainda das considerações levantadas, tal qual procede José Ignácio Botelho
de Mesquita, para quem “A expressão “questões” está mal empregada. Questões [...] somente se podem
considerar as razões contestadas pelo réu ou apreciadas pelo juiz mesmo sem tal contestação. Se surgiram
questões, todas devem obrigatoriamente ser decididas pelo juiz, não podendo a lei dá-las como decididas. Sendo
assim, não deveria o legislador falar em questões mas sim apenas em razões ou possíveis questões
(BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. Sentença e coisa julgada. In: Teses, estudos e pareceres de
processo civil: volume 2: jurisdição e competência, sentença e coisa julgada, recursos e processos de
competência originárias dos Tribunais. ______. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 128, grifo do
autor).
66
externos à codificação processual brasileira e confrontando-o com o código
italiano então vigente, dizia que:
A lei brasileira é menos rica de disposições sobre o assunto, porque
falta no Código uma gradação de alçada determinada pelo valor da
causa, nem se conhecem numerosas jurisdições especiais. Há todavia,
o art. 93, do Código de Processo Penal, que parece confirmar o
princípio geral explanado no texto (porque prevê a possibilidade de
que o juiz criminal conheça duma questão prejudicial, de competência
do juízo cível, e naturalmente sua decisão não prejudica a questão fora
do processo em que foi examinada), e o art. 92, que valeria como
exceção ao princípio (dispondo que, em caso de apresentar-se uma
controvérsia prejudicial sobre o estado civil das pessoas, não se pode
conhecer incidenter tantum e deve decidir-se pelo juízo cível
134
.
A lição de Enrico Tullio Liebman, não impediu, por exemplo,
que também Jorge Lafayette Pinto Guimarães, mesmo demonstrando dela ter
conhecimento, afirmasse que “O Código de Processo Civil, entre nós vigente, no
art. 287, parágrafo único, voltou, em parte, à doutrina de Savigny, que atenuou
[...]”
135
, no que, “Coincide, aliás, esse dispositivo, com o artigo 660, parágrafo
único do Código de Processo Civil português [...]”
136
, levando, segundo ele, ao
reconhecimento, pela maioria dos nossos processualistas de então, do
[...] abandono, pelo Código, do princípio tradicional, de que a
autoridade da coisa julgada restringe-se à parte dispositiva da
sentença, e não possa ser tomado o dispositivo em questão como
contendo simples regra para interpretação da sentença (o que é objeto
do art. 891, segunda parte, do Código de Processo Civil)
137
.
Esse quadro doutrinário deveras oscilante no trato da matéria,
levou José Ignácio Botelho de Mesquita, escrevendo ainda sob a égide do
134
LIEBMAN, Enrico Tullio. Nota nº 235. In: CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual
civil. Tradução de Paolo Capitanio a partir da 2ª edição italiana [1935?]. Anotações de Enrico Túlio Liebman. 1ª
ed. Campinas: Bookseller, 1998, p. 474-6, grifo do autor.
135
GUIMARÃES, Jorge Lafayette Pinto. Coisa julgada. In: CARVALHO SANTOS, J. M. de (Org). Repertório
enciclopédico do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Borsoi, [1947?], v. 9, p. 285.
136
Id., loc. cit. Percebe-se que o autor, nesse passo, se distancia de Moacyr Amaral Santos, que, conforme acima
visto, com suporte em Pontes de Miranda, via no artigo 660 do Código de Processo Civil Português uma regra
bem mais ampla do que aquela que o Código de Processo Civil Brasileiro de 1939 teria adotado, ficando, o nosso
Código, segundo eles, a meio termo da teoria de Friederich Karl von Savigny e da solução dada pelo Código de
Processo Civil Português.
137
GUIMARÃES, op. cit, p. 286. Nota-se, a partir da referência que o autor faz ao artigo 891, segunda parte do
Código de Processo Civil Brasileiro de 1939, como a solução dada por José Frederico Marques, na interpretação
67
Código de Processo Civil Brasileiro de 1939, à verdadeira exasperação,
afirmando, rudemente, que:
O que se nota, de uma forma geral, entre os autores nacionais é uma
embaraçante imprecisão dos conceitos que antecedem o debate deste
tema. Para a maioria deles, não apareceu nítida, como por exemplo a
Carnelutti, a distinção fundamental entre o processo e a lide, vale
dizer, entre o processo e a realidade concreta, extra-processual, na
qual, as discussões jurídicas e as definições técnicas não
ultrapassariam jamais a natureza de simples meios que esgotaram sua
função com o alcance do fim que propiciem. Faltou-lhes, inclusive, a
magnífica visão do problema que permitiu a Carnelutti e a Liebman
distinguir entre a eficácia e a imutabilidade da sentença.
[...]
A verdade é que a lei brasileira, por copiar o projeto italiano, colocou-
se, sob seu aspecto doutrinário, adiante do legislador pátrio, que não
estava maduro para interpretá-la. O projeto Mortara encerrava uma
vivência profunda dos problemas que (bem ou mal) procurou
solucionar. Esta vivência, contudo, haurida no embate das idéias dos
de lá, não a tiveram os nossos legisladores que, por isto, por não
haverem sido obrigados a tomar uma posição, por assim dizer, bélica,
não estavam em condições de avaliar em profundidade e largura o
inteiro sentido das conclusões que, de empréstimo, adotaram em nosso
Código.
O debate que, na Itália, precedeu o projeto Mortara, somente começou
a repercutir no Brasil após promulgação do Código e a disputa travou-
se para explicar e sustentar os princípios por ele adotados. Trouxemos
então para cá, revivendo-as, as mesmas controvérdias que formaram o
pensamento italiano e, agora, já começamos a encontrar-nos no ponto
de tentar novos passos na explicação do tormentoso problema.
Que nesta senda não falte o sentido intenso da realidade viva do
problema nem o calor, nem a luz, emanados das lições dos ilustres
juristas que, palmilhando as asperezas do mesmo caminho, nos
trouxeram até aqui
138
.
A falta de clareza entre eficácia e imutabilidade, inclusive, veio,
no Código de Processo Civil Brasileiro de 1939, a repercutir, com efeitos
deletérios sobre a construção de um conceito claro de coisa julgada, tanto na
redação do seu artigo 288, quanto no artigo 289, onde, nitidamente,
imutabilidade e eficácia da sentença são confundidos, dando-se a entender que
do artigo, acima indicada, é superficial, quando reduzia o seu papel praticamente à função interpretativa do
julgado.
138
BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. Sentença e coisa julgada. In: Teses, estudos e pareceres de
processo civil: volume 2: jurisdição e competência, sentença e coisa julgada, recursos e processos de
competência originárias dos Tribunais. ______. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 140-1.
68
as sentenças que provêm não teriam eficácia, já que elas, segundo o texto legal,
contariam com o efeito de coisa julgada, assim como que não estivessem, de
modo algum, albergadas pela imutabilidade, o que não era exatamente correto
139
.
O que é singular diante da fala de José Ignácio Botelho de
Mesquita é que ele próprio passa a ser um exemplo emblemático, ao nosso ver,
das considerações críticas que tece em torno da doutrina pátria, quando, após, de
um lado, afirmar que Francesco Carnelutti sempre foi ambíguo no que tange à
imutabilidade ou não da motivação da decisão e da sua extensão; e, por outro
lado, aplaudir a distinção entre eficácia e imutabilidade operada por Francesco
Carnelutti e por Enrico Tullio Liebman; assim como comungar, com esse
último, de que a eficácia extra-processual do julgado só à parte dispositiva diria
respeito, conclui advogando a imutabilidade da motivação do julgado, adstrito e
vinculado instrumentalmente à própria imutabilidade do dispositivo, sem
qualquer eficácia, portanto, extra-processual, ou seja, de produzir efeitos que
transplantem as barreiras do próprio processo onde a sentença venha a ser
proferida
140
. “Vale dizer, limita-se [a fundamentação] à lide e quanto a esta, às
partes que foram deduzidas em juízo”
141
.
A construção toda, o autor faz porquanto, na sua visão, haveria,
entre a motivação e o dispositivo, verdadeira relação de causa e efeito e não
haveria como se admitir permanecessem os efeitos imutáveis se se viesse a
admitir a mutabilidade das suas causas. É nesse sentido, portanto, que a
imutabilidade da motivação se prestaria a, instrumentalmente, assegurar a
imutabilidade do dispositivo, sendo, portanto, “[...] condicionada pela
imutabilidade do dispositivo, existe na medida e segundo os limites em que se
verifica a imutabilidade deste.
139
BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. Sentença e coisa julgada. In: Teses, estudos e pareceres de
processo civil: volume 2: jurisdição e competência, sentença e coisa julgada, recursos e processos de
competência originárias dos Tribunais. ______. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 151-3.
140
Ibid., p. 141-5.
141
Ibid., p. 143.
69
Para ilustrar o acerto e a utilidade prática desse seu raciocínio,
que, na sua ótica, não se prestaria, apenas, para evitar um conflito teórico, e,
sim, prático, entre os julgados, José Ignácio Botelho de Mesquita se vale do
exemplo daquele que, intentando ação possessória de reintegração na posse de
imóvel, sagra-se vitorioso, opondo-se, o esbulhador, tão somente a negar
estivesse na posse do bem
142
.
Diz José Ignácio Botelho de Mesquita que, aí, estaríamos,
nitidamente, diante da hipótese, inclusive, do artigo 287, parágrafo único do
Código de Processo Civil Brasileiro de 1939: o autor deduziu uma razão que não
foi contestada pelo réu e que, portanto, não chegou a se transformar em questão.
A questão que se formara foi outra: estar ou não, o réu, na posse do imóvel. Para
ter, porém, como procedente a ação, o juiz teve, necessária e ainda que
implicitamente decidir sobre a razão posta pelo autor, qual seja, a de que era
possuidor. Haveria, no exemplo, portanto, verdadeira decisão implícita em torno
da razão deduzida pelo autor, qual seja, a de que era possuidor e só por isso ele
estaria sendo reintegrado.
Assim finda a questão, o autor vencedor propõe demanda a
pleitear reparação de anos em face do mesmo réu por conta do esbulho. O réu,
então, opõe-se sob a alegação de que: não houve prova de dano algum; não era,
o autor, o então possuidor do imóvel.
Conclui ele, diante do exemplo, que a segunda tese de defesa, ou
seja, a de que a ação improcederia diante do fato de que o autor não era o então
possuidor do imóvel não seria admissível porque se acabaria por negar algo que
no julgamento anterior já se havia concedido ao autor: a posse do bem.
Para se evitar esse conflito prático, e não teórico, é que se
conferiria a imutabilidade das razões anteriormente decididas, inclusive
implicitamente. Portanto, “[...] torna-se imutável a decisão das questões que,
142
BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. Sentença e coisa julgada. In: Teses, estudos e pareceres de
processo civil: volume 2: jurisdição e competência, sentença e coisa julgada, recursos e processos de
competência originárias dos Tribunais. ______. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 145-9.
70
naquele processo determinaram o efeito que se quer tornar, por sua vez,
insusceptível de modificação
143
.
Quer nos parecer, porém, que Enrico Tullio Liebman nunca
sustentou coisa diversa, quando dizia que:
Na verdade, a coisa julgada abrange a questão última do raciocínio do
juiz, a conclusão de seu silogismo, que constitui a premissa essencial
objetiva, a base lógica necessária do dispositivo: Por exemplo: quando
a sentença condena o réu a pagar cem, passa em julgado também a
declaração de que o réu é devedor de cem a título de mútuo, ou de
preço duma venda e semelhantes; quando anula um contrato, passa em
julgado também a declaração de que o contrato é viciado por dolo,
erro e assim por diante; não, ao contrário, as questões prejudiciais em
sentido estrito, relativas a outras relações ou estados jurídicos, que não
foram objeto da demanda, mas, por encontrar-se numa relação de
antecedente lógico com a conclusão, tiveram que ser examinadas pelo
juiz, não para ser decididas em si mesmas e sim unicamente para
permitir a decisão principal.
144
Alfredo de Araújo Lopes da Costa também já dizia, a partir dos
mesmos ensinamentos de Giuseppe Chiovenda acima reproduzidos e abraçados
por Enrico Tullio Liebman, que, vindo propor o autor vencedor de ação
reivindicatória subseqüente ação confessória de servidão, em face do mesmo réu
“[...] a ele não se pode como prejudicial opor a falta de domínio sobre o prédio
pretendido dominante”
145
e isso porque “A coisa julgada não impede somente
que a mesma questão seja de novo discutida em juízo de modo principal, mas
também de modo incidente, como prejudicial”
146
, com a advertência, porém, de
que “A coisa julgada abrange apenas a decisão sobre o pedido do autor e não
sobre o contradireito do réu”
147
.
143
BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. Sentença e coisa julgada. In: Teses, estudos e pareceres de
processo civil: volume 2: jurisdição e competência, sentença e coisa julgada, recursos e processos de
competência originárias dos Tribunais. ______. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 148, grifo do
autor.
144
LIEBMAN, Enrico Tullio. Nota nº 235. In: CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual
civil. Tradução de Paolo Capitanio a partir da 2ª edição italiana [1935?]. Anotações de Enrico Túlio Liebman. 1ª
ed. V. 1. Campinas: Bookseller, 1998, p. 475-6.
145
LOPES DA COSTA, Antonio Araújo. Direito processual civil brasileiro. 2ª ed. rev., aum. e atual. V. III.
Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 435.
146
Id., loc. cit.
147
Id., loc. cit.
71
Porém, como bem adverte Alfredo de Araújo Lopes da Costa, à
luz do artigo 287 do Código de Processo Civil Brasileiro de 1939 não
estaríamos, jamais, autorizados a admitir a extensão da coisa julgada às relações
jurídicas ditas condicionantes do direito pedido, como é o caso da relação de
parentesco em relação aos alimentos, ou do direito de domínio em relação ao
direito à indenização por danos que é pedida. Diz o autor que, nessas hipóteses,
apesar do juiz, para alcançar o reconhecimento da relação condicionada, ter de
verificar a existência da relação condicionante, “A coisa julgada, porém, só
abrange a relação condicionada”
148
, já que “Foi apenas ela que o autor submeteu
à decisão”
149
.
O que se conclui, portanto, é que, se José Ignácio Botelho de
Mesquita, ao formular a sua teoria de imutabilidade restrita dos fundamentos da
decisão, tentava explicar ou dar conta dessas hipóteses, concordando ou não
com ela, a sua admissibilidade nenhum mal traria para uma lúcida teoria da
coisa julgada que se circunscrevesse às premissas teóricas adotadas pelo Código
de Processo Civil Brasileiro de 1939 em torno dela. Porém, se com isso, de
alguma forma, entendia alcançada pela imutabilidade as relações jurídicas ditas
condicionantes, ou, mesmo, a questão última do raciocínio do juiz formulado
em favor do contradireito apresentado pelo réu em face do autor, a sua teoria
não passou de uma nova, ainda que mitigada/modificada, fórmula de
manifestação da teoria de Friederich Karl von Savigny, inadmissível ao sistema
do código ao qual pretendia aplicá-la.
148
LOPES DA COSTA, Antonio Araújo. Direito processual civil brasileiro. 2ª ed. rev., aum. e atual. V. III.
Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 434.
149
Id., loc. cit.
72
2.1.2.1.2.1.3 Um conceito possível/admissível de coisa julgada no Código de
Processo Civil Brasileiro de 1939
Não é fácil estabelecer-se, retrospectivamente, um conceito sem
que, na sua formulação, não se veja influenciado pelas categorias presentes,
aquelas que emergiram como hegemônicas do embate outrora travado.
O risco, em suma, que se corre de conceituar a coisa julgada que
o Código de Processo Civil Brasileiro de 1939 com a concepção do presente e
não aquela que se tinha então é mais do que considerável, principalmente
quando, como já se teve oportunidade de se ver, as categorias hoje hegemônicas
já influenciavam a doutrina da época e inspiraram a vertente carneluttiana, que
animava os dispositivos legais do código que regravam a coisa julgada.
Em 1943, Enrico Tullio Liebman dizia que:
Na opinião e linguagem comuns, a coisa julgada é considerada, mais
ou menos clara e explicitamente, como um dos efeitos da sentença, ou
como a sua eficácia específica, entendida ela, quer como complexo
das conseqüências que a lei faz derivar da sentença, quer como
conjunto dos requisitos exigidos, para que possa valer plenamente e
considerar-se perfeita
150
.
E, de fato, Jônatas Milhomens, escrevendo em 1957, por
exemplo, era cirúrgico em ditar que “A coisa julgada é o principal efeito da
sentença que decide a causa”
151
, lição essa que, muito antes já a reproduzia João
Monteiro, quando dizia, acerca da força intrínseca ou a função negativa da
sentença, que esta (a sentença) “[...] produz certos efeitos especiais, a saber: [...]
2º) Produz a coisa julgada
152
.
150
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com
aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos
posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1981, p. 57-8, grifo do autor.
151
MILHOMENS, Jônatas. Manual de prática forense (civil e comercial): parte geral (Arts. 1º a 297). 3ª ed.
rev. e atual. Rio de Janeiro, 1957, v. 1, p. 489, grifo em itálico, do autor; grifo em negrito, nosso.
152
MONTEIRO, João. Teoria do processo civil. Atualizado por J. M. de Carvalho Santos. T. II. 6ª ed. Borsoi:
Rio de Janeiro, 1956, p. 598-9, grifo nosso.
73
Assim também entendia Jorge Lafayette Pinto Guimarães,
quando definia “[...] a coisa julgada como a sentença irrecorrível que decide
total ou parcialmente a lide e tem força de lei dentro dos limites das questões
decididas”
153
, reduzindo-a, portanto, à própria sentença, no que não se
distanciava de Alfredo de Araújo Lopes da Costa
154
, quando dizia que a coisa
julgada, tanto a material quanto a formal, seria uma “propriedade da sentença”,
propriedade essa que, materialmente, voltava-se a espraiar os efeitos da sentença
para fora do processo, pelo que também a chamava de coisa julgada externa e
cujo fundamento jurídico (melhor seria dizer legal), seria o artigo 287 do Código
de Processo Civil Brasileiro (de 1939), ao ditar que, superados os prazos
recursais (ou seja, operada a coisa julgada formal), a nenhum juiz era mais dado
decidir novamente as questões decididas.
Ilustrativa do quão arraigada era essa concepção da coisa julgada
como efeito da sentença em nosso seio até a entrada em vigor do Código de
Processo Civil Brasileiro de 1939, foi a reação que, à época, Guilherme Estellita,
em clássica monografia, teve ante a divulgação da obra de Enrico Tullio
Liebman, dizendo que:
Não se pode deixar de reconhecer na construcção de Liebman uma
expressão genuina da doutrina da vontade autoritaria do Estado como
razão juridica da cousa julgada. Basta notar a justificação que elle
offerece da efficacia da sentença perante todos e quaesquer terceiros
como acto do Estado no exercicio da funcção de fazer actuar o direito
subjetivo. Curiosa, não ha duvida, é a distinção feita entre a efficacia
da sentença e a immutabilidade do seu termos (sic) e na qual baseia a
these da cousa julgada ser apenas uma qualidade desses effeitos. Além
de curiosa, seductora na sua simplicidade, a consequencia dahi tirada
para resolver o problema da efficacia da sentença em face dos
terceiros sem envolver na questão a cousa julgada. Evidentemente
mais acceitavel do que a solução carneluttiana de confundir, debaixo
do nome de imperatividade, não só a cousa julgada como a efficacia
da sentença junto aos terceiros. Mas será exacto que a cousa julgada
não seja um effeito, ou melhor, o maior dos effeitos da sentença,
153
GUIMARÃES, Jorge Lafayette Pinto. Coisa julgada. In: CARVALHO SANTOS, J. M. de (Org). Repertório
enciclopédico do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Borsoi, [1947?], v. 9, p. 281-2, grifo em itálico, do autor;
grifo em negrito, nosso.
154
LOPES DA COSTA, Antonio Araújo. Direito processual civil brasileiro. 2ª ed. rev., aum. e atual. V. III.
Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 424.
74
constituindo apenas uma qualidade delles? Não parece, a quem
considere a propria finalidade do processo. Actuação do direito
objectivo, como quer a doutrina, tutela dos direitos subjectivos, como
outros pretendem, de qualquer forma, ao que tende o processo é
eliminar a incerteza existente sobre uma relação jurídica. Mas dizer
isso, importa affirmar que a immutabilidade da sentença é
precisamente o fim ultimo visado pelo processo, pois só atravez della
é que se eliminará aquella mesma incerteza. Si, portanto, a sentença
não serve em ultima analyse a outro objectivo senão ao de fixar a
relação jurídica, ao determinar essa fixação estará, ao mesmo tempo,
produzindo o seu supremo effeito. Assim, como admitir possa negar
que a cousa julgada seja um effeito da sentença, quem precisamente
na immutabilidade da decisão define a cousa julgada? Nem vale
argumentar, como fez Liebman, que os effeitos da sentença são só os
de declarar, constituir ou modificar uma relação jurídica. Não! Além e
acima e antes de todos esses ou de quaesquer outros, está o de fixar a
relação jurídica, pois essa é a condição primeira para uma effectiva
tutela jurídica
155
.
Dizia Enrico Tullio Liebman
156
, que essa concepção da coisa
julgada como efeito da sentença é herança direta do período clássico romano,
onde a coisa julgada não era outra coisa que não a coisa de que se agitou, depois
de julgada devida ou indevida.
Num sistema em que o julgamento resultava em verdadeira
transformação processual, a sentença, enquanto criadora de direito, e da
consumação da ação era o quanto bastava para a caracterização da coisa julgada,
sendo, para os clássicos romanos, “[...] a res iudicata verdadeiramente o único e
exclusivo efeito do iudicatum [...]”
157
.
Para os clássicos romanos, portanto, segundo o mesmo Enrico
Tullio Liebman,
[...] seria errôneo falar a respeito de coisa julgada numa ficção ou
presunção de verdade, visto que era ela o que de mais concreto e real
155
ESTELITA, Guilherme. Cousa julgada: fundamento jurídico e extensão aos terceiros. Tese para professor
catedrático. Rio de Janeiro: [s.n.], 1936, pp. 104-5 apud NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1971, p. 402.
156
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com
aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos
posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1981, p. 2.
157
Ibid., p. 3, grifo do autor.
75
se podia dar, enquanto a sentença não declarava a existência ou
inexistência dum direito, mas criava antes um direito novo
158
.
Isso tudo, porém, já com Justiniano, sofre profunda mudança. Na
exata medida em que o direito romano passa a se publicizar (não se deve
esquecer que no período clássico o processo romano era eminentemente
privado), os efeitos e a autoridade da sentença passam a ser encarados de forma
distinta, “[...] mas, como sempre, manifestaram-se essas transformações do
modo mais discreto e menos aparente, e, em geral, não foram compreendidas em
toda a sua significação, nem mesmo pelos modernos”
159
.
Esse modo de ver, por outro lado, segundo Enrico Tullio
Liebman, aforante a sua imprecisão, não trazia inconvenientes graves até então.
Dizia ele que “[...] enquanto se via na sentença genericamente a declaração do
direito no caso concreto, o efeito desta aplicação e a intensidade com que ele
operava; podiam sem prejuízo confundir-se”
160
.
Essa abordagem dicotômica da sentença (efeitos x autoridade),
segundo Enrico Túllio Liebman, se nos impôs juridicamente na exata medida
“[...] em que se fez a análise do conteúdo e dos efeitos da sentença e se
descobriu que elas podem, conforme o caso, ser de índole diversa”
161
, cujo
mérito, ademais, atribui já a Giuseppe Chiovenda. A partir daí,
Considerar a coisa julgada como efeito da sentença e ao mesmo tempo
admitir que a sentença, ora produz simples declaração, ora efeito
constitutivo, assim de direito substantivo, como de direito processual,
significa, colocar frente a frente elementos inconciliáveis, grandezas
incongruentes e entre si incomensuráveis. Seria, pois, a coisa julgada
um efeito que se põe ao lado deles e no mesmo nível ou se sobrepõe a
158
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com
aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos
posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1981, p. 4, grifo nosso.
159
Id., loc. cit.
160
Id., loc. cit.
161
Id., loc. cit.
76
eles e os abrange? Ou é, pelo contrário, antes uma qualidade desses
efeitos, um modo de ser deles, a intensidade com que se produzem
162
?
Partindo dessas considerações, Enrico Tullio Liebman,
reportando-se aos artigos 1350 e 1351 do Código Civil Italiano então vigente,
dizia que já à época “[...] não se falava de coisa julgada senão para usar uma
forma elíptica, a fim de designar a autoridade da coisa julgada”
163
, o mesmo
podendo-se dizer
[...] das diversas palavras por que se procura explicar a fórmula
legislativa tradicional [do Código Civil Italiano]: imutabilidade,
definitividade, intangibilidade, incontestabilidade, termos que
exprimem todos eles uma propriedade, uma qualidade particular, um
atributo do objeto a que se referem, porque são, por si sós, expressões
vazias, privadas de conteúdo e de sentido
164
.
Daí porque, de modo deveras modesto, Enrico Tullio Liebman
chegou a afirmar que “A linguagem induziu-nos, portanto, inconscientemente, à
descoberta desta verdade”
165
, verdade essa que resumiu na célebre afirmativa de
que “[...] a autoridade da coisa julgada não é o efeito da sentença, mas uma
qualidade, um modo de ser e de manifestar-se dos seus efeitos, quaisquer que
sejam, vários e diversos, consoante as diferentes categorias de sentença.”
166
Tudo isso, como visto anteriormente, Enrico Tullio Liebman
escrevia em plena vigência do Código de Processo Civil Brasileiro de 1939.
Como visto, também, esse modo de ver a coisa julgada, ainda na
vigência do Código de Processo Civil Brasileiro de 1939, passou a contar com o
sufrágio da quase unanimidade da doutrina processual pátria.
162
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com
aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos
posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1981, p. 5.
163
Id., loc. cit., grifo do autor.
164
Id., loc. cit.
165
Ibid., p. 6.
166
Id. loc. cit.
77
O que se pergunta, contudo é: essa concepção de coisa julgada,
era adequada ao Código de Processo Civil Brasileiro de 1939? Teria ele a
adotado, ainda que implicitamente? Era ela com ele compatível?
Retroagindo em nossas análises, pudemos constatar que, de fato,
o Código de Processo Civil de 1939, adotou um corte teórico de natureza
militantemente carneluttiano.
Também pudemos constatar que Francesco Carnelutti operava
com a distinção entre eficácia da sentença e a sua imutabilidade, ou, como ele
dizia, entre imperatividade e imutabilidade.
Essa sua distinção, o próprio Francesco Carnelutti, ao travar a
célebre polêmica com Enrico Túllio Lebman, encerrava-a afirmando, segundo
síntese reproduzida por Celso Neves:
[...] a) que a distinção de Liebman entre eficácia e imutabilidade é
idêntica à sua entre imperatividade e imutabilidade; b) Liebman vê
na imutabilidade a coisa julgada, enquanto Carnelutti vê na
imperatividade a coisa julgada material e na imutabilidade a coisa
julgada formal; c) logo, a distinção entre eficácia e imutabilidade
fora feita por Carnelutti, antes de Liebman; d) desaparece, o desacordo
inicial quanto à extensão da imperatividade, para as partes e para
terceiros, com a supressão, por Liebman, do advérbio igualmente que
determinara a divergência de Carnelutti; e) a eficácia potencial de
Liebman corresponde à eficácia reflexa de Carnelutti que acentua
jamais haver pensado em oposição de terceiro como necessária e não
facultativa
167
.
Não foi por outra razão que José Carlos Barbosa Moreira
afirmava, ainda na vigência do Código de Processo Civil de 1939, que:
No particular, mais próximo de Carnelutti estava, paradoxalmente, o
próprio Liebman, consoante se torna claro para quem atende mais no
fundo do pensamento de cada um do que na forma através da qual ele
se exterioriza. Ambos, realmente admitiam como regular a produção
de efeitos pela sentença antes do trânsito em julgado. Que Carnelutti
chamasse “coisa julgada” (material) precisamente a essa eficácia, e
Liebman preferisse reservar para outro fenômeno a designação, é
pormenor que não elimina a substancial concordância dos dois
escritores em torno deste ponto relevantíssimo: a sentença é eficaz
antes de tornar-se imutável. Nem foi à toa que Carnelutti, talvez com
167
NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 118, grifos do autor.
78
uma pitada de ironia, acabou reduzindo às proporções de simples
“questão de nomes” a divergência de que se originara a celebérrima
polêmica...
168
.
Por isso mesmo, José Carlos Barbosa Moreira, como já vimos
anteriormente, chamava especial atenção à redação do artigo 287 do Código de
Processo Civil Brasileiro de 1939, dizendo que ele em nenhum momento
subordinava a eficácia normativa do julgado ao seu trânsito em julgado
169
.
Também por isso é que José Ignácio Botelho de Mesquita, em
passagem já anteriormente citada, identificava no artigo 287 do Código de
Processo Civil Brasileiro de 1939 apenas o trato da matéria relativa à eficácia da
sentença, retratada na expressão “força de lei”, vindo, a imutabilidade, a ser
tratada pelo mesmo código nos seus artigos 289 e 798, I, letra “b”
170
.
Disso tudo podemos concluir que o Código de Processo Civil
Brasileiro de 1939, adotou , ainda que implicitamente, um conceito de coisa
julgada que buscava a sua identidade na imutabilidade do julgado enquanto
manifestação diversa da eficácia da sentença, e, portanto, que não mais podia ser
reputada como efeito da sentença, assentando, nos mais, a sua extensão, ou
limites, tanto objetivos quanto subjetivos, na noção de lide segundo a vertente
carneluttiana, malgrado a abalizada opinião em sentido contrário de Celso
Neves, o qual durante toda a vigência do Código de Processo Civil Brasileiro de
1939, ao identificar a coisa julgada nos efeitos declaratórios da sentença,
continuou identificando a coisa julgada como efeito da sentença e afirmando,
por via de conseqüência, que “Eficácia e coisa julgada, portanto, coincidem”, na
exata medida em que o efeito declaratório da sentença jamais poderia ser
antecipado. “Só as conseqüências da declaração seriam passíveis de eventual
168
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais, São Paulo,
ano 59, nº 416, p. 12, grifo do autor.
169
Ibid., p. 11, grifo do autor.
170
BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. Sentença e coisa julgada. In: Teses, estudos e pareceres de
processo civil: volume 2: jurisdição e competência, sentença e coisa julgada, recursos e processos de
competência originárias dos Tribunais. ______. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 132.
79
antecipação”, dizia Celso neves, em polêmica que, a bem da verdade, conforme
veremos adiante, até hoje continua em aberto.
Coisa julgada ou, mais precisamente, autoridade da coisa julgada,
seria, em suma, a eficácia externa (para adotarmos a terminologia
carnellutiana) ou a qualidade (para adotarmos a terminologia liebmaniana),
representada pela imutabilidade de que podem se revestir os efeitos da decisão
de mérito em processo contencioso, emprestada a eles pela norma após o seu
trânsito em julgado, ou, quiçá, conforme advogava José Carlos Barbosa
Moreira
171
, após lembrar que todas as decisões fazem coisa julgada, ainda que
formal e que, portanto, deve-se, necessariamente, distinguir-se coisa julgada de
autoridade da coisa julgada, esta seria “[...] a situação jurídica em que passa
[ou pode passar] [a sentença] a existir após o transito em julgado [...] onde
adquire uma autoridade que [...] se traduz na resistência a subseqüentes
tentativas de modificação do julgado”
172
e que diferiria, em absoluto, da eficácia
da decisão, não havendo que se a confundir com a eficácia própria da autoridade
da coisa julgada.
2.1.2.1.2.2 As críticas ao conceito do Código de Processo Civil de 1973
Com o Código de Processo Civil Brasileiro de 1973, a questão
conceitual da coisa julgada veio a ser tratada de modo bem diferente.
De fato, abandonando, expressamente, tal qual consta da sua
Exposição de Motivos, a advertência de Iavolenus estampada no Digesto, no
sentido de que “Toda definição em direito civil é perigosa”
173
, e em que pese a
nova redação dada à LICC (Decreto-Lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1942)
171
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais, São Paulo,
ano 59, nº 416, p. 16-7.
172
Ibid., p. 17.
173
Digesto, 50,17,202 apud BRASIL. Lei nº 5869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil.
Exposição de Motivos. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 17
jan. 1973. Seção 1, p. 01. Disponível em:
<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=102373
>. Acesso em 16 set. 2005.
80
pela Lei nº 3.238, de 1º de agosto de 1957 haver resgatado expressamente o
conceito de coisa julgada, tal qual o fizera o Código Civil de 1916 em sua
introdução – conceito esse, aliás, que a Exposição de Motivos tratou,
igualmente, de censurar explicitamente -, o Código de Processo Civil Brasileiro
de 1973 não deixou de estampar em seu texto expresso conceito a respeito do
instituto, nos termos do seu artigo 467, vazados nos seguintes termos:
“Denomina-se coisa julgada material a eficácia que torna imutável e indiscutível
a sentença não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário”.
Reforçando esse preceito, aditou-se, ainda, o art. 468, onde,
reproduzindo-se a regra que já se verificava no art. 287 do Código de Processo
Civil de 1939, resta dito que: “A sentença que julgar total ou parcialmente a lide,
tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas.”
Na adoção desse conceito, segundo a Exposição de Motivos do
código, da lavra do então Ministro da Justiça Alfredo Buzaid, perfilhou-se “[...]
o conceito de coisa julgada elaborado por Liebman e seguido por vários autores
nacionais”.
174
Assim, se o código anterior apresentava, sobre a matéria, um
conceito (implícito) de corte carneluttiano, agora, passávamos a contar com um
conceito declaradamente de corte liebmaniano.
Entre o que se declarou, porém, e o que resultou na redação do
código, há considerável distância, a por, até, em cheque os termos da Exposição
de Motivos.
Nessa senda, diz Eduardo Talamini que a doutrina nacional tem
apontado que “[...] o nosso Código de Processo Civil, ao definir a coisa julgada,
não adotou literalmente a concepção de Liebman”
175
, observando, ele próprio,
que:
174
BRASIL. Lei nº 5869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 17 jan. 1973. Seção 1, p. 01. Disponível em:
<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=102373
>. Acesso em 16 set. 2005.
175
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 43.
81
No entanto, cumpre notar que o pretenso conceito veiculado no art.
467 não é, em qualquer hipótese, de todo adequado. Sua inadequação
não se põe em face dessa ou daquela concepção teórica (pois se fosse
assim, seria uma inadequação irrelevante; ou, até mesmo, poderia
estar desautorizando a concepção teórica). A pretensa formulação
contida no art. 467 é falha tomando em conta o próprio conceito de
coisa julgada extraível do ordenamento a partir da consideração de
outros dispositivos [...]. Vale dizer, a literalidade do art. 467 é
desautorizada por outras normas contidas no próprio Código
176
.
Assim é que, por exemplo, a disposição legal estaria a conceituar
a coisa julgada material, quando, a bem da verdade, não conceituaria senão a
coisa julgada formal
177
.
Por outro lado, ela induz à crença de que toda e qualquer
sentença cuja possibilidade recursal tenha precluído geraria coisa julgada,
inclusive a material, o que não é verdade. Ao contrário disso, da leitura do artigo
485 do mesmo código, fica claro que somente as sentenças de mérito estão
sujeitas à incidência da coisa julgada material
178
(o que é reforçado por aquilo
que ditam os artigos 468, 267, VI e 268, do mesmo código
179
), e, ainda assim,
quando a cognição, verticalmente falando, não for de natureza sumária
180
.
Por fim, a despeito daquilo que se proclamou na Exposição de
Motivos, no sentido de que o Código de Processo Civil Brasileiro de 1973 havia
abraçado o conceito liebmaniano da coisa julgada, em decorrência de duas
emendas ao seu Projeto, ocorridas, respectivamente, na Câmara dos Deputados e
no Senado, na prática, ele acabou se distanciando da redação originariamente
estampada no Anteprojeto, particularmente da do seu artigo 507 (artigo 507:
“Chama-se coisa julgada material a qualidade, que torna imutável e indiscutível
o efeito da sentença, não mais sujeita a recursos ordinários ou
176
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 44.
177
GRINOVER, Ada Pellegrini. Notas ao § 1º. In: LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da
sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de
Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito
brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 9.
178
TALAMINI, op. cit., p. 31.
179
GRINOVER, op. cit., p. 9-10. ARAGÃO, Egas Moniz de. Sentença e coisa julgada. Porto Alegre: Aide,
1992, p. 241.
180
TALAMINI, op. cit., p. 31 e 53-61.
82
extraordinário”
181
), que veio a ser o vigente artigo 467
182
, onde, efetivamente, se
havia incorporado o proclamado conceito.
Assim é que o vocábulo “qualidade”, originariamente adotado no
artigo 507 do anteprojeto veio a ser substituído por “eficácia”, bem como que
veio a ser suprimido o vocábulo “efeito” e o artigo definido masculino que o
antecedia (“o”)
183
.
Com isso, diz Egas Moniz de Aragão, “[...] ficou consumado o
afastamento da tese inicialmente adotada, apesar de a Exposição de Motivos do
próprio Código [...] haver mantido a afirmação em contrário (nº 10)”
184
,
abraçando, nesse passo, “[...] a tese do Prof. Celso Neves, que relaciona a coisa
julgada à declaração contida na sentença, na linha de pensamento de Hellwig”
185
,
o que restaria muito claro da própria justificativa da Emenda nº 372, apresentada
no Senado, de autoria do Senador Benedito Ferreira e que, acatada pelo Relator
Geral do Projeto, Senador Accioly Filho, legou-nos a vigente redação.
Na sua justificativa, dizia o Senador Benedito Ferreira que:
Muitas discussões se travam em torno da definição da coisa julgada
material. Modernamente, no entanto, resolveu-se pela eficácia, que
torna imutável e indiscutível a sentença e não o seu efeito, na
realidade mero reflexo do ato judicial
186
.
O Senador Acciolly Filho, ao acatar a referida proposição,
justificou a sua adesão afirmando que “A emenda melhora a definição de coisa
julgada, atribuindo-a à eficácia da própria sentença e não só de seu efeitos”
187
.
181
BRASIL. Anteprojeto do Código de Processo Civil, de 11 de janeiro de 1973 apud ARAGÃO, Egas Moniz
de. Sentença e coisa julgada: exegese do código de processo civil: arts. 444 a 475. Rio de Janeiro: Aide, 1992,
p. 238.
182
ARAGÃO, op. cit., p. 238-9.
183
Id., loc. cit.
184
Ibid., p. 239.
185
Id., loc. cit.. Antonio Carlos de Araújo Cintra, corrobora a assertiva de Egas Monis de Aragão ao dizer que
“Considerando a coisa julgada como efeito da sentença, a lei, na realidade, se ajustou à doutrina de Celso Neves,
na linha de pensamento de Hellwig” (CINTRA, Antonio Carlos de Araújo. Comentários ao código de processo
civil: v. IV: arts. 332 a 475. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 297)
186
BRASIL. Emenda nº 372 ao Projeto de lei nº 810, de 1972. Diário do Congresso Nacional, Poder
Legislativo, Brasília, DF, 11 nov. 1972. Seção II, Suplemento ao nº 128, p. 71, grifo do autor apud Aragão, Egas
Moniz de. Sentença e coisa julgada: exegese do código de processo civil: arts. 444 a 475. Rio de Janeiro: Aide,
1992, p. 239.
187
Id., loc. cit.
83
É difícil, de fato, não enxergar, nesses fundamentos, uma franca
adesão à linha de pensamento esposada por Celso Neves, que, partindo de uma
classificação binária das ações - vistas como objetivamente simples (a ação
declaratória, no plano cognitivo e a de execução, no júris-satisfativo) ou
complexas (tanto as constitutivas quanto as condenatórias, onde somente a
declaração pertence ao plano do juízo, pertencendo, a condenação ou a
constituição ao plano da satisfação)
188
-, professava confessadamente, nesse
particular, a concepção de Konrad Hellwig, não vislumbrando, inclusive, um
contraste essencial entre ela e aquela esposada por Enrico Tullio Liebman. Dizia
ele:
Quanto à doutrina contemporânea, é importante que se acentue, de
início, a inexistência de contraste essencial entre a concepção
processualística de Hellwig a respeito da coisa julgada, enquanto
relaciona o seu conceito à eficácia declaratória da sentença, e a
formulação de Liebman, ao defini-la como qualidade de seus efeitos.
Certa a construção de Liebman, a qualificação própria da coisa julgada
seria de todos os efeitos da sentença; certa a proposição de Hellwig,
essa qualificação seria estrita aos efeitos declaratórios da sentença. O
problema fundamental, a nosso ver, está, portanto, em fixar se a coisa
julgada cobre, apenas, o conteúdo declaratório da sentença, como
sugere Hellwig, ou, ao contrário, reveste todos os seus efeitos, como
quer Liebman. Ser ela uma virtualidade da própria eficácia, na
sugestão de Hellwig, ou uma qualificação dessa eficácia, passa a
constituir, assim, problema secundário, insuscetível de afetar a
essência da coisa julgada e, conseqüentemente, a sua função
pragmática
189
.
Daí ele dizer, de modo cirúrgico, após tecer algumas
considerações em torno das atividades judiciais do conhecimento e da execução,
que “A coisa julgada [...] é fenômeno próprio e exclusivo da atividade de
conhecimento do juiz e insuscetível de configurar-se no plano das atividades
executórias, conseqüênciais e consecutivas”
190
.
188
GRINOVER, Ada Pellegrini. Notas ao § 1º. In: LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da
sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de
Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito
brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 12.
189
NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 500, grifo do autor.
190
Ibid., p. 501, grifo do autor.
84
Confrontada essa passagem com o conteúdo da justificativa da
emenda do Senador Benedito Ferreira, não há, de fato, como se negar que ela foi
animada pelas teses que Celso Neves então difundia, o qual, inclusive, tentou
circundar-se da autoridade de Pontes de Miranda, identificando-o como “[...]
declaradamente partidário, nesse particular, da teoria de Hellwig”
191
, no que,
contudo, foi censurado expressamente pelo próprio Pontes de Miranda, quando
da edição dos seus “Comentários” ao Código de Processo Civil de 1973
192
, após,
inclusive, afirmar incidir em erro tanto Konrad Hellwig, quando identifica “[...]
força declarativa e força de coisa julgada material”
193
, quanto Enrico Tullio
Liebman, ao pretender “[...] força de coisa julgada material sem elemento de
declaração”
194
, em que pese, este último, na sua visão, ter prestado “[...] serviço
de cancelar a identificação; mas logo caiu no exagero de teorizar a diferença
entre eficácia e coisa julgada material”
195
.
Extremando a sua concepção com a de Enrico Tullio Liebman,
Celso Neves tecia as seguintes considerações:
Chegados a este ponto, ou temos a coisa julgada como efeito da
sentença, segundo Hellwig e a grande maioria da doutrina, ou temo-la
como qualidade desse efeito, consoante a teoria de Liebman, reduzida
ao conteúdo declaratório da decisão. Nessa alternativa, a nossa opção
é pela primeira hipótese. À semelhança de Eliézer Rosa, ainda não nos
convencemos de que a coisa julgada possa ser uma qualidade dos
efeitos da sentença – conseqüentemente, de seu efeito declaratório. À
parte a observação de que o atributo essencial realiza o próprio ser, o
que permitiu a Liebman distinguir entre eficácia natural da sentença
e coisa julgada foi o fato de ser aquela mutável e implicar, esta
última, na sua imutabilidade, aliado à circunstância de a sentença
produzir efeitos antes do trânsito em julgado, na chamada execução
provisória.
191
NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 501, grifo do autor.
192
MIRANDA, Pontes de. Comentários ao código de processo civil: t. V: arts. 444 a 475. 3ª ed. rev. e aum.
Atualização legislativa de Sérgio Bermudes. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 109-10. A mesma censura e pelas
mesmas razões pode ser dirigida a Ada Pellegrini Grinover, que também identifica Pontes de Miranda como
adepto da teoria de Konrad Hellwig (GRINOVER, Ada Pellegrini. Notas ao § 2º. In: LIEBMAN, Enrico Tullio.
Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com aditamentos relativos ao direito
brasileiro. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos posteriores à edição de 1945 e
notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p.
31).
193
MIRANDA, op. cit., p. 100.
194
Id., loc. cit.
195
Id., loc. cit.
85
Ora, é possível pensar-se na realização antecipada de atos que devam
ser praticados depois do trânsito em julgado. Mas é inadmissível a
mesma antecipação quanto ao que não se pode realizar depois do
trânsito em julgado. A declaração da sentença é suficiente, em si
mesma, como declaração, para realizar a certeza jurídica que
constitui o eu escopo, independentemente de qualquer atividade
ulterior. Logo, em relação a ela, enquanto declaração, não pode
haver antecipação. Só as conseqüências da declaração seriam
passíveis de eventual antecipação, se pedidas na ação ou em
reconvenção, já no plano da tutela executória, precipuamente
conseqüencial e consecutiva
196
.
Avançando ainda mais sobre a pedra angular da teorização de
Enrico Tullio Líebman, a partir da qual ele pode qualificar a coisa julgada como
uma qualidade de que se podiam revestir os efeitos da sentença, o que seja, a
distinção entre eficácia e imutabilidade a partir da constatação de que os efeitos
da sentença eram, perfeitamente, realizáveis antes mesmo do trânsito em julgado
da decisão e, portanto, antes mesmo que ele (o julgado) viesse a ser tido como
imutável, Celso Neves tece as seguintes considerações:
Suposto que a sanção resulte de elemento de condenação peculiar à
atividade de conhecimento do juiz, será coerente invocar-se a
execução provisória para demonstrar a existência de diferença entre a
eficácia da sentença e a coisa julgada. Admitindo-se, entretanto, que a
própria sanção já decorra de atividade jurisdicional executória interior
à sentença – que assume, nesses casos, caráter complexo, na
terminologia de Calamandrei – o argumento falha, porque o efeito
antecipado é elemento da mesma eficácia que a coisa julgada, depois,
revestirá. Eficácia e coisa julgada, portanto, coincidem. O que se
antecipa são os efeitos normais desta. Percebe-se, com isso, que a
antecipação de efeitos exteriores à sentença e, pois, consecutivos ao
processo em que foi proferida, só será concebível quando o resultado
prático pretendido não possa ser alcançado senão ex intervallo,
mediante uma atividade jurisdicional ulterior, normalmente resultante
da coisa julgada. O recurso à analogia, de que se vale Liebman, a
nosso ver, não pode ser adotado. E se a lei, fora da realidade,
estabelecesse a antecipação dos efeitos declaratórios da sentença,
uma de duas: ou teria suprimido a própria coisa julgada, ou teria
disposto inocuamente. Por isso, a nosso ver, os efeitos da declaração
só são suscetíveis de ocorrer depois do trânsito em julgado,
eliminando-se a distinção preconizada por Liebman entre a eficácia
natural da sentença e a coisa julgada. Essa a razão pela qual, no
nosso ver, nas sentenças constitutivas e nas que condenam a prestar
declaração de vontade, os efeitos são sempre resultantes da coisa
196
NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 502, grifo do autor.
86
julgada. Ambas realizam, em sua própria eficácia, o efeito jurídico
pretendido, que, assim, não pode ser antecipado. Se há, nelas, o
mesmo comando, além de incompleto, é insuscetível de surtir efeitos
antecipados, em razão da natureza do provimento. Só a sentença
condenatória, de execução ex intervallo, possibilita a antecipação de
efeitos, porque pressuposto de atividade jurisdicional ulterior que as
demais sentenças não são
197
.
Concluindo, então, o seu raciocínio, Celso Neves diz que:
Nas sentenças de conteúdo heterogêneo – condenatória e
constitutivas – que a par da atividade típica do processo de cognição
apresentam, também, elementos de jurisdição executória, a
executivodade interior, tal como a consecutiva, é estranha à coisa
julgada. Pode dizer-se, à vista disso, que só há um tipo de ação de
conhecimento: a declaratória. As demais, são declaratórias em que se
incluem elementos de execução. E porque esse elemento executório
caracteriza uma tutela apta a realizar as conseqüências práticas a que
tende o julgado, passa ele a determinar o esquema de classificação das
ações.
Assentado que a coisa julgada reveste, apenas, o conteúdo declaratório
da sentença, os demais elementos aparecem como conseqüência do
que se decidiu, já no plano da realização prática de seus efeitos
processuais, reservado à atividade executória do juiz. Daí porque os
elementos resultantes da atividade jurisdicional constitutiva,
posteriores à coisa julgada, não interferem no problema de sua
limitação e explicam as suas extensões pela eficácia própria da
constituição
198
.
Enrico Tullio Liebman não deixou sem resposta essa maneira de
ver a coisa julgada e, em considerações críticas dirigidas diretamente a Konrad
Hellwig, dizia que saltava
[...] à primeira vista o erro lógico em que incorre essa maneira de
sistematizar a coisa julgada ao lado dos outros possíveis efeitos da
sentença; porque se colocam, assim, no mesmo plano coisas
heterogêneas e de qualidade bem diversa. Ao efeito constitutivo da
sentença poder-se-á comparar e contrapor o seu efeito declarativo, isto
é, a sua eficácia de declaração, e não a coisa julgada que se forma
sobre a declaração.
Essa identificação da declaração jurisdicional com autoridade da coisa
julgada, essa penetração de uma na outra, essa redução da eficácia da
primeira à segunda, constitui erro singular de perspectiva, cujo móvel
psicológico não é difícil compreender, porque a incontestabilidade que
a autoridade do julgado confere ao resultado do processo, no caso de
197
NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 502-3, grifos do autor.
198
Ibid., p. 503-4, grifo do autor.
87
provimento de mera declaração, como caráter de necessidade bem
maior do que sucede no caso da sentença constitutiva ou condenatória,
pelo menos no sentido de que a declaração sem coisa julgada se
apresenta destituída de importância e não serve para nada, não tendo
outra utilidade que não seja a de produzir a certeza indiscutível da
existência ou inexistência de uma relação jurídica
199
.
Desse modo, conclui Enrico Tullio Liebman,
Uma coisa é distinguir os efeitos da sentença segundo sua natureza
declaratória ou constitutiva, outra é verificar se eles se produzem de
modo mais ou menos perene e imutável. De fato, todos os efeitos
possíveis da sentença (declaratório, constitutivo, executório) podem,
de igual modo, imaginar-se, pelo menos em sentido puramente
hipotético, produzidos independentemente da autoridade da coisa
julgada, sem que por isso se lhe desnature a essência. A coisa julgada
é qualquer coisa mais que se ajunta para aumentar-lhes a estabilidade,
e isso vale igualmente para todos os efeitos possíveis das sentenças.
Identificar a declaração produzida pela sentença com a coisa julgada
significa, portanto, confundir o efeito com um elemento novo que o
qualifica
200
.
Em termos práticos, Enrico Tullio Liebman lembra que, levada
às suas últimas conseqüências, o ver no efeito declaratório da sentença a coisa
julgada, afastaria todos os demais efeitos da sentença da intangibilidade que a lei
quis emprestar a todos eles e, quanto aos terceiros, chega ao cúmulo de
adstringir a eficácia natural da sentença tão só aos efeitos condenatório e
constitutivo, mas não ao declaratório, que só operaria entre as partes, como se a
sentença declaratória de nulidade de um contrato, por exemplo, não vinculasse,
naturalmente, terceiros outros
201
.
Dadas as discrepâncias das concepções em confronto,
compreensível a frustração que Ada Pellegrini Grinover (declaradamente
liebmaniana quanto a esse particular) externou em torno do conceito firmado
no Código, ao dizer que “Nesse ponto, é de se lamentar que o código, que fez
199
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com
aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos
posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1981, p. 18-9.
200
Ibid., p. 19-20.
201
Ibid., p. 20-23.
88
questão de definir a coisa julgada, o tenha feito em termos de eficácia e não de
qualidade, abandonando a redação do Anteprojeto Buzaid”
202
, e isso a despeito
de continuar a afirmar, em sua Exposição de Motivos, haver-se consagrado o
conceito liebmaniano, desempenhando, hoje (a Exposição de Motivos), o papel
de verdadeira lápide de uma alma descarnada.
O fato é, porém, que, decorridos mais de trinta anos da entrada
em vigor do atual Código de Processo Civil Brasileiro, essa é uma questão que
não resta superada, podendo-se dizer que, conceitualmente falando, é o que resta
a ser solucionado.
2.1.2.1.2.2.1 A imutabilidade como nota característica da coisa julgada; mas
como o quê e de quê?
No sentido de se precisar o objeto da imutabilidade inerente à
coisa julgada, ainda na vigência do Código de Processo Civil Brasileiro de 1939,
inseriu-se na polêmica José Carlos Barbosa Moreira.
Entendendo, antes de mais nada, serem impertinentes ao conceito
de coisa julgada as noções de eficácia e de imperatividade, via a essência da
coisa julgada na imutabilidade do conteúdo da sentença, que poderia se
adstringir nas lindes do próprio processo, quando teríamos a coisa julgada
formal, ou se estender para além dele, quando teríamos a coisa julgada
material
203
.
Com essa concepção, o próprio José Carlos Barbosa Moreira
dizia aproximar-se da fórmula estampada no artigo 2.909 do Código Civil
Italiano então vigente e que reportava expressamente a coisa julgada à
202
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com
aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos
posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1981, p. 65-6.
203
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano
59, nº 416, jun. 1970, p. 14.
89
declaração contida na sentença
204
, dela, contudo, distanciando-se justamente
por não limitar a imutabilidade tão somente ao elemento declaratório do
conteúdo da sentença
205
.
A construção de José Carlos Barbosa Moreira partia, como ele
mesmo aponta, do entendimento de que a condenação, por exemplo, não seria
efeito da sentença, mas, antes “[...] elemento do seu conteúdo
206
. Efeito da
sentença condenatória seria o executório, que teria a condenação como
causa
207
.
Distinguindo, outrossim, coisa julgada de autoridade da coisa
julgada, diz José Carlos Barbosa Moreira que, com o trânsito em julgado da
decisão (fato), cria-se uma situação jurídica nova, caracterizada pela coisa
julgada, que tanto pode ser a formal quanto a material. Nessa nova situação
jurídica, a sentença, portanto, tanto pode ser, ainda, mutável ou não, o que nos
impediria de a identificar com o atributo da imutabilidade. Quando,
ingressando nessa nova situação, a sentença adquire essa imutabilidade,
impedindo futuros ataques ao seu conteúdo, então ela se revestiria da chamada
autoridade da coisa julgada, que “[...] é a que corresponde ao conceito de
imutabilidade”
208
.
Quanto à eficácia da sentença, diz ele, derradeiramente, que ela
[...] nada tem que ver, conceptualmente, nem com coisa julgada, nem
com autoridade da coisa julgada; o único traço comum reside em que
também a primeira, em regra, se subordina, temporariamente, ao
trânsito em julgado. Que, depois, a coisa julgada manifeste, por sua
vez, uma eficácia própria, é fato indiscutível; mas confundir essa
eficácia com a da sentença representaria, já agora, o mais grave talvez
204
Acerca do conteúdo desse dispositivo, com considerações em torno da sua herança alemã e da sua
impertinência com o sistema processual brasileiro, dado o conteúdo do artigo 468 do vigente Código de Processo
Civil, consulte-se: GRINOVER, Ada Pellegrini. Notas ao § 2º. In: LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e
autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com aditamentos relativos ao direito brasileiro.
Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos posteriores à edição de 1945 e notas
relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 32.
205
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais, São Paulo,
ano 59, nº 416, jun. 1970, p. 14.
206
Id., loc. cit., grifo nosso.
207
Id., loc. cit.
208
Ibid., p. 17.
90
de todos os equívocos que permanentemente ameaçam por em xeque a
clareza das idéias na matéria
209
.
Ou seja, a sentença, a depender do seu conteúdo (elemento
condenatório, declaratório, decretatório), gerará os correspondentes efeitos,
como, por exemplo, o executório, (eficácia (executiva) da sentença), efeitos (ou
eficácia) esses que poderão se revestir ou não da eficácia da imutabilidade,
decorrente da autoridade da coisa julgada, conforme ditar o direito positivo,
segundo um critério de discricionariedade legislativa ditadas à luz de
considerações de ordem prática
210
.
Em escrito atual, José Carlos Barbosa Moreira volta a enfrentar o
assunto, deixando claro, novamente, que, nos termos do artigo 467 do vigente
Código de Processo Civil Brasileiro, “[...] o que se torna “imutável e
indiscutível”, com a coisa julgada, é a própria sentença, não os respectivos
efeitos”
211
, pelo que volta a dizer que “[...] para nós a teoria de Liebman é
aceitável só em parte (naquela em que se exclui do rol dos efeitos da sentença a
autoritas rei iudicatae)”
212
.
Retomando, ainda, a assertiva de que a autoridade da coisa
julgada material caracterizaria uma situação jurídica dotada, ela própria, de
uma eficácia peculiar, não identificável com a eficácia da sentença, José Carlos
Barbosa Moreira a explicita como sendo aquela situação dotada de eficácia
preclusiva, assim expondo o seu pensamento:
Há situações jurídicas que, ao se formarem, pressupõem
desconformidade com a situação anterior e delas se diz que têm
eficácia constitutiva. Outras há que, ao contrário, pressupõem
conformidade, ao menos no essencial, com a situação anterior; a
respectiva eficácia é meramente declaratória. Mas ainda há uma
terceira categoria, em que a nova situação jurídica independe da
conformidade ou desconformidade com a anterior; e aí se tem a
eficácia preclusiva. [...] é nessa terceira classe de situações que se
209
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais, São Paulo,
ano 59, nº 416, jun. 1970, p. 17, grifo nosso.
210
Id., loc. cit.
211
Ibid., p. 18, grifo do autor.
212
Ibid., p. 6, grifo do autor.
91
enquadra a coisa julgada material. Desde que ela se configure, já não
há lugar – salvo expressa exceção legal – para indagação alguma
acerca da situação anterior
213
.
Por outro lado, em comento ao artigo 469 do vigente Código de
Processo Civil, fica muito claro que, quando José Carlos Barbosa Moreira fala
que a autoridade da coisa julgada torna imutável o conteúdo da sentença, ele,
a bem da verdade, o restringe ao conteúdo do comando, e não à sentença como
um todo, o que implicaria sua adesão aqueles que pretenderam ver estendida aos
fundamentos da sentença a eficácia da coisa julgada, tese essa jamais esposada
por ele. A seguinte passagem nos dá a exata dimensão do seu pensamento:
O que se protege com a autoridade da coisa julgada material (= o que
se torna imutável) é o resultado final do pleito, mas este fica protegido
(= conserva-se imutável) sejam quais forem as questões que alguém
pretenda suscitar para atacá-lo, ainda que delas se pudesse ter valido,
no primeiro efeito, como arma (de ataque ou de defesa), entretando lá
não utilizada
214
.
Dando os devidos desdobramentos teóricos e práticos da tese de
José Carlos Barbosa Moreira, Eduardo Talamini diz que, assim,
Os efeitos da sentença eventualmente se modificarão ou extinguirão –
quer porque isso deriva da sua normal atuação (p. ex., efeito
condenatório), quer porque, desde que o objeto seja direito disponível,
as partes podem posteriormente ajustar solução diversa (p. ex., as
partes separadas judicialmente em processo litigioso retomam o
vínculo conjugal; remissão da dívida objeto da condenação). Será
impossível, isso sim, a obtenção de outro comando, junto a
qualquer juiz, para aquele mesmo objeto de processo antes
decidido pela sentença revestida da coisa julgada
215
.
213
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais, São Paulo,
ano 59, nº 416, jun. 1970, p. 10-11, grifo do autor.
214
Ibid., p. 9.
215
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 35-6, grifo
nosso. O próprio José Carlos Barbosa Moreira, ainda que em lance não tão didático quanto à passagem de
Eduardo Talamini, diz: “A imutabilidade (ainda ilimitada) do conteúdo da sentença não importa, é óbvio, na
imutabilidade da situação jurídica concreta sobre a qual versou o pronunciamento judicial. Se se julgou que A
devia a B certa importância, nada obsta a que, antes ou depois do trânsito em julgado, A pague a dívida, ou B a
remita, e assim se extingue a relação de crédito declarada pela sentença. Tal circunstância em nada afeta a
autoridade de coisa julgada que esta porventura haja adquirido. A norma sentencial permanece imutável,
enquanto norma jurídica concreta referida a uma determinada situação” (BARBOSA MOREIRA, op. cit., p. 15).
92
Confrontando, porém, o pensamento de José Carlos Barbosa
Moreira com aquele esposado por Enrico Tullio Liebman, Eduardo Talamini,
arrefecendo, de certa forma, o embate entre as respectivas concepções, acentua
que,
Rigorosamente, a crítica de Barbosa Moreira é antes um reparo à
fórmula sintética da tese de Liebman (“coisa julgada é qualidade dos
efeitos”) do que uma oposição ao conteúdo da teoria liebmaniana
como um todo. Do exame geral da exposição feita por Liebman, fica
claro que sua preocupação maior estava em diferenciar efeitos e coisa
julgada. A afirmação de Liebman de que a coisa julgada é “qualidade
dos efeitos” não retrata integralmente tudo o quanto o mestre italiano
expõe em seu ensaio. Afinal, o próprio Liebman reconhecia que a
relação jurídica que foi objeto da sentença pode ser posterioremente
modificada pelas partes, sem que isso afete a coisa julgada (usava
como exemplo um daqueles empregados por Barbosa Moreira: o
pagamento, com o que “perde a condenação todo o valor”). Mas
ainda, em outra passagem Liebman diz mesmo que a “precisa”
definição da coisa julgada é a de “imutabilidade do comando
emergente de uma sentença” (muito embora, a seguir, ao procurar
explicar o sentido da definição, afirme que a definitividade recai não
apenas sobre o ato em si, mas também sobre os seus “efeitos”)
216
.
Lembrando que já em 1930 alguns autores haviam dirigido
críticas a Enrico Tullio Liebman conforme a que lhe é dirigida por José Carlos
Moreira Alves, a partir, contudo, de conclusões bem diversas, Eduardo Talamini
observa que,
Na época, Liebman respondeu-lhes afirmando que a modificação da
relação jurídica objeto do julgado não implicaria alteração dos efeitos
da sentença – que permaneceriam incólumes. Mas, nesse ponto,
Liebman confundiu a eficácia (i.e. a aptidão, a potência, de produzir
efeitos) da sentença, cuja base está contida na sentença, com os
próprios efeitos. Os efeitos consistem na correta repercussão do
decisum sobre a situação objeto de julgamento. Desse modo, se essa
216
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 36, grifo do
autor. Os lances citados por Eduardo Talamini, não passaram despercebidos a José Carlos Barbosa Moreira, o
qual, inclusive fazendo-lhes alusão expressa, diz que: “A referência a ambos os elementos (conteúdo e efeitos)
reflete com maior fidelidade o pensamento de Liebman do que a alusão restritiva, que às vezes se faz nesse
contexto, aos efeitos; vide a passagem do mestre italiano contida em sua última obra (Manuale di diritto
processuale civile. 4ª ed. Milão, v. II, 1981, p. 420: “L´essenza della cosa giudicata è proprio
nell´immutabilità della sentenza, del suo contenuto e dei suoi effetti; ma[i]s conforme, já na clássica
monografia Efficacia ed autorità della sentenza, na qual o problema fora tratado ex professo, a rubrica do § 3º:
L´autorità della cós giudicata come uma qualità della sentenza e dei suoui effetti”, p. 25 da reimpressão da
1ª ed. Milão, 1962” (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos
Tribunais, São Paulo, ano 59, nº 416, jun. 1970, p. 6, grifo do autor).
93
situação, depois de sofrer (ou de estar apta a sofrer) a repercussão da
sentença, pode ainda asssim ser modificada pelas partes, isso
significará que os próprios efeitos estão sendo modificados, extintos
ou impedidos de operar. Então, não serão os efeitos que permanecerão
incólumes, como pretendia Liebman, mas sim e apenas o conteúdo do
decisum anterior: não será possível a emissão de novo comando
jurisdicional a respeito daquele objeto (mesma causa de pedir e
pedido) já decidido. Portanto, o que Barbosa Moreira faz é levar
adiante, aprimorar, a distinção entre efeitos e autoridade da sentença –
sem negar o cerne da tese de Liebman, seja no que concerne a essa
distinção, seja na negativa de limitar a coisa julgada ao efeito
declaratório. Aliás, em um dos últimos ensaios que Liebman publicou
sobre o tema, em 1979, a formulação por ele proposta aproximou-se
significativamente da de Barbosa Moreira: em face da coisa julgada, o
que não se permite às partes “é pretender um novo juízo sobre o que
foi validamente decidido por intermédio de uma sentença que
representa a disciplina concreta da relação jurídica controvertida”
217
.
Assim esclarecida a crítica de José Carlos Barbosa Moreira, de
reprovação tanto à concepção de Celso Neves, quanto à de Enrico Tullio
Liebman, a essa controvérsia toda, veio somar-se, ainda, Ovídio Araújo Baptista
da Silva, também com compreensão diversa de todos os três.
Acerca dele, Eduardo Talamani diz que,
[...] embora concordando parcialmente com a teoria de Liebman e com
a crítica de Barbosa Moreira, opõe-se a determinados aspectos de
ambas. Desse modo, acaba por formular uma tese que em grande
medida se reaproxima daquela original concepção combatida por
Liebman, ainda que com ela não se identifique
218
.
Nessa senda, Ovídio Araújo Baptista da Silva, abraçou Enrico
Tullio Liebman na parte em que ele extremou a coisa julgada dos efeitos da
sentença
219
. Ficou, contudo, com José Carlos Barbosa Moreira, quando este
217
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 36-7, grifo
do autor. Veja-se na nota anterior as observações em torno da percepção de José Carlos Barbosa Moreira em
torno dos passos que Enrico Tullio Liebman deu no sentido apontado por Eduardo Talamini.
218
Ib., p. 37.
219
Diz, com efeito, Ovídio Araújo Baptista da Silva: “Liebman tem razão quando afirma que a coisa julgada não
é propriamente um efeito da sentença, mas uma qualidade posterior que ao efeito se ajunta, para torná-lo
imutável” (SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Sentença e coisa julgada: ensaios. 3ª ed. rev. e aum. Porto
Alegre: Fabris Editor, 1995, p. 104). E, mais recentemente: “Liebman efetivamente tem razão ao afirmar que a
coisa julgada material não pode ser equiparada a um efeito da sentença, semelhante aos efeitos declaratório,
constitutivo, executório, condenatório ou mandamental. Estes cinco são os únicos efeitos que a sentença pode
produzir. A coisa julgada deve ser entendida como uma maneira, ou uma qualidade, pela qual o efeito se
manifesta, qual seja a sua imutabilidade e indiscutibilidade, como afirma Liebman, ou simplesmente sua
94
advoga não ter a coisa julgada o condão de tornar imutáveis os efeitos da
sentença
220
; dele discordando, porém, quando adstringe a imutabilidade da coisa
julgada ao elemento declaratório da sentença
221
.
Conforme Eduardo Talamini aponta, Ovídio Araújo Baptista da
Silva, contudo, não se filiaria com a doutrina clássica germânica que fora alvo
de crítica de Enrico Tullio Liebman e que identificava a coisa julgada com o
próprio efeito declaratório da sentença, na exata medida em que ele “[...] embora
afirmando que a coisa julgada é qualidade que se restringe ao efeito declaratório
da sentença [...] não reputa que a coisa julgada seja indispensável para que a
sentença tenha efeito declaratório”
222
, a ponto de afirmar textualmente - após
dizer que “[...] a grande novidade da doutrina de Leibman [foi] mostrar que não
indiscubilidade, como julgamos preferível dizer” (SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de processo civil:
processo de conhecimento. V. 1. 6ª ed. rev. e atual. com as Leis 10.352, 10.358/2001 e 10.444/2003. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002, p. 482, grifo do autor).
220
Nesse passo, diz Ovídio Araújo Baptista da Silva: “[...] é falsa sua doutrina [de Enrico Tullio Liebman],
quando afirma que a imutabilidade é uma qualidade que atinge a todos os efeitos da sentença, como mostrou,
irretorquivelmente, Barbosa Moreira [...]” (Id. Sentença e coisa julgada: ensaios. 3ª ed. rev. e aum. Porto
Alegre: Fabris Editor, 1995, p. 104, grifo do autor). Também: “Esta última afirmação [de Enrico Tullio Liebman,
quando afirma que, com a coisa julgada, ficarim imutáveis, também, todos os efeitos da sentença], todavia, se
não é incorreta, está pelo menos mal formulada. Os efeitos que a sentença produz são perfeitamente modificáveis
pela vontade das partes, como justamente afirma J. C. Barbosa Moreira [...]” (Id. Curso de processo civil:
processo de conhecimento. V. 1. 6ª ed. rev. e atual. com as Leis 10.352, 10.358/2001 e 10.444/2003. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002, p. 491).
221
A respeito, ele diz que: “Essa conclusão [a de que os efeitos da sentença são mutáveis e de que a
imutabilidade atingiria somente a situação jurídica concreta sobre que se pronunciou o juiz], longe de invalidar a
doutrina tradicional [que concentrava a imutabilidade na eficácia declaratória da sentença], antes a confirma
plenamente, pois o ilustre processualista brasileiro [José Carlos Barbosa Moreira] faz incidir a tônica dessa
imutabilidade a que Liebman denomina autoridade da sentença naquilo que constitui o julgamento dito
realizado pelo juiz, naquilo que o juiz julgou (declarando) existente ou inexistente (no plano do ser ou do não
ser). Ora, se os efeitos constitutivos ou condenatórios podem desaparecer sem ofensa à coisa julgada, parece
lógico concluir-se que a imutabilidade só tenha referência ao que foi declarado, à eficácia declaratória da
sentença. [...] desaparecendo os efeitos constitutivos, ou executivos, ou condenatórios que são absolutamente
mutáveis, e mesmo assim a imutabilidade correspondente à coisa julgada permanecendo inalterada, a conclusão
que se impõe é a de que essa qualidade só se há de referir ao efeito declaratório [...]” (Id. Sentença e coisa
julgada: ensaios. 3ª ed. rev. e aum. Porto Alegre: Fabris Editor, 1995, p. 105, grifo do autor). Também: “[...] se
pode concluir, com Liebman, que a coisa julgada não é um efeito, mas uma qualidade que se ajunta não, como
ele afirma, ao conteúdo e a todos os efeitos da sentença, tornando-a imutável, e sim apenas ao efeito declaratório,
tornando-o imutável, e sim apenas ao efeito declaratório, tornando-o indiscutível (que é o meio de a declaração
tornar-se imutável!) nos futuros julgamentos. [...] Temos, pois, como instrumentos para nossa análise
subseqüente, estes dois elementos obtidos a partir das observações anteriores: I) as sentenças podem ter, e
normalmente têm, mais de uma eficácia, havendo alguns casos em que o respectivo espectro eficacial apresenta
três ou quatro ou, talvez mesmo, as cinco eficácias capazes de serem produzidas pelas sentenças; II) a coisa
julgada material é a qualidade que se adiciona, em dadas circunstâncias, ao efeito declaratório da sentença,
tornando-a indiscutível” (Id. Curso de processo civil: processo de conhecimento. V. 1. 6ª ed. rev. e atual. com
as Leis 10.352, 10.358/2001 e 10.444/2003. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 492-3, grifo do autor).
222
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 38.
95
se pode confundir efeito declaratório com coisa julgada”
223
- que “Pode haver,
efetivamente, efeito declaratório sem coisa julgada”
224
, citando como exemplo
do fenômeno as sentenças proferidas nos procedimentos de jurisdição
voluntária, onde, a despeito de contarem com eficácia declaratória e, portanto,
com aptidão para produzirem efeito declaratório,
[...] por inexistir um conflito de interesse atual, a ordem jurídica não
julga necessário estender até eles a marca de indiscutibilidade inerente
à coisa julgada, o que faz com que a eficácia declaratória de tais
sentenças se rarefaça, a ponto de tornar-se incapaz de produzir a res
iudicata
225
.
Em torno dessa polêmica, em dada altura, Eduardo Talamini
questiona qual seria a relevância prática da sua superação, além, é claro, do puro
e simples rigor conceitual e da exata fixação dos limites subjetivos da coisa
julgada (questão essa dos limites cuja solução, contudo, já fora adequadamente
dada por Enrico Tullio Liebnan).
Eduardo Talamini assim formula a problemática que, no plano
prático, estaria a exigir a adoção de uma ou de outra das teorias:
A definição da coisa julgada como qualidade do conteúdo do decisum
ou como qualidade da declaração ali contida passa pela consideração
(e tomada de posição diante) da seguinte questão: qual a vinculação
das partes ao efeito declaratório da sentença? A indagação pode ser
configurada concretamente nos seguintes termos: tendo a sentença
declarado a inexistência do direito, podem as partes depois
consensualmente estabelecer que o direito existia, extraindo-lhes todos
os efeitos desde o momento em que preteritamente ter-se-ia
constituído?
No âmbito das relações disponíveis, não há dúvidas de que as partes
podem estabelecer o direito. Mas a questão continua posta. Não se
trata de as partes constituírem agora um direito, mas de reconhecerem
sua existência preterida, para todos os fins. Vale dizer: reconhecer a
existência daquilo que a sentença declarou inexistente. Alguém
poderia supor que se trata de uma falsa questão, sob o argumento de
que, nessa hipótese, tanto faria saber se as partes estão de fato
reconhecendo o direito pretérito ou, na verdade, estão apenas, no
presente, constituindo um novo direito que inclui no seu conteúdo a
223
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Sentença e coisa julgada: ensaios. 3ª ed. rev. e aum. Porto Alegre:
Fabris Editor, 1995, p. 210.
224
Id., loc. cit.
225
Id., loc. cit., grifo do autor.
96
dimensão patrimonial que corresponderia à sua existência pretérita (p.
ex., se o crédito negado pela sentença tinha o suposto valor 10, e os
juros que sobre ele teriam incidido desde a constituição, caso ele
existisse, até o ajuste das partes, montariam a 8, as partes, ao
pretensamente “reconhecer” agora a dívida pretérita, estariam, em
verdade constituindo, nesse momento, uma dívida de 18). Mas não é
indiferente concluir em um sentido ou no outro. Pense-se nos casos
em que a exata definição da data de surgimento do direito é relevante
para definir-lhe o regime aplicável ou implicará repercussões perante
terceiros. Considerem-se, ainda, os casos que nem sequer comportam
uma variação do momento de existência do direito ou da relação
jurídica (de modo que ou ela sempre existiu ou não). Portanto, cabe
responder à questão tal como posta”
226
.
Respondendo à questão por ele próprio formulada e aderindo
expressamente à tese esposada, nesse particular, por José Carlos Barbosa
Moreira, Eduardo Talamini nos diz que:
[...] caso a resposta seja negativa, ou seja, caso se considere que as
partes não poderão, mediante consenso, reconhecer a existência
(pretérita) do direito disponível já declarado inexistente pela sentença,
isso significará que a coisa julgada atinge a própria declaração, nos
termos concebidos por Ovídio Baptista da Silva. Já se a resposta for
positiva, ter-se-á como pressuposto que a coisa julgada recai sobre o
conteúdo do comando da sentença, apenas impedindo nova solução
jurisdicional para o objeto anteriormente decidido, mas não perpetua
nem mesmo o efeito declaratório contido na sentença.
Não parece haver razão para rejeitar essa segunda solução: as partes
podem consensualmente responder a existência (pretérita) do direito
ou relação jurídica de caráter disponível já declarada inexistente pela
sentença, assim como podem ter por inexistente (desde a origem) o
direito ou relação disponível declarado existente pelo juiz. Não
poderão, todavia, pretender do juiz declaração ou qualquer outra
providência no sentido oposto à declaração que ele já emitiu. Portanto,
a formulação de Barbosa Moreira parece mais adequada”
227
.
Explicitando ainda melhor o seu entendimento, Eduardo
Talamini insiste em dizer que, sob essa ótica,
226
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 39, grifo do
autor.
227
Ibid., p. 39-40, grifo do autor. Nesse particular, Ovídio Araújo Baptista da Silva, a que alude Eduardo
Talamini, assim se expressa: “[...] enquanto as eficácias constitutiva, ou mandamental, ou executiva, podem ser
objeto de transação ou de renúncia, ou de perdão, nenhum negócio jurídico envolvendo o efeito declaratório da
sentença que importe em renúncia, ou perdão, ou confissão contrária ao que o Juiz declarou, terá qualquer
eficácia jurídica, por ser negócio jurídico absolutamente inválido, por contrário e ofensivo à coisa julgada”
(SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Sentença e coisa julgada: ensaios. 3ª ed. rev. e aum. Porto Alegre: Fabris
Editor, 1995, p. 218).
97
[...] as partes não ficam vinculadas à declaração jurisdicional: podem,
no âmbito das relações disponíveis, abdicar da solução de eliminação
da incerteza dada pelo juiz e consensualmente estabelecer outra;
porém, ainda que estando de acordo entre si, é vedado às partes
obter novo pronunciamento que vá contra o conteúdo do
dispositivo revestido da coisa julgada (e a coisa julgada é questão de
ordem pública, a ser conhecida de ofício no curso do processo [...]).
Isso significa dizer que, mais do que o reconhecimento de uma
relação, as partes dependam de uma providência judicial que elas não
podem produzir extrajudicialmente (ações constitutivas necessárias),
não haverá como se obter tal resultado, pois não será dado ao juiz,
nem mesmo com o consenso entre as partes de que a filiação existe.
Mais do que isso, seria necessário alterar-se o registro público – o que,
todavia, depende de intervenção judicial, vedada pela coisa julgada.
Mas considere-se agora a hipótese inversa, em que a sentença houver
negado a existência da relação de filiação. A despeito disso, as partes
poderão posteriormente, de comum acordo, reconhecer a existência
dessa relação, pois o reconhecimento da filiação independe de
intervenção judicial (C. Civ., art. 1.609, II e III)”
228
.
Não descurando de terceiros que eventualmente poderiam se ver
prejudicados pela abdicação das partes à solução dada pela sentença para a
controvérsia, Eduardo Talamini obtempera que:
De resto, não é de descartar que terceiros juridicamente venham a se
opor à solução consensual dada pelas partes em sentido contrário ao
estabelecido na sentença. Na medida em que um terceiro se revista
mesmo de interesse jurídico e legitimidade para discutir a questão, e
caso ele a leve ao Judiciário, as partes daquele primeiro processo
ficarão vinculadas à anterior coisa julgada. Vale dizer: a coisa julgada
poderá ser invocada contras as partes por um terceiro. Afinal, a coisa
julgada não vincula o terceiro [...], mas, nos seus limites objetivos, a
coisa julgada é oponível pelo terceiro contra as partes a ela
vinculadas. Considere-se o seguinte exemplo: um dos sócios propõe
contra a sociedade ação declaratória de nulidade de assembléia, que é
julgada procedente, formando-se coisa julgada. Depois, esse sócio e a
sociedade chegam a um consenso e reconhecem a validade da
assembléia. Se, em face disso, outro sócio levar a questão a juízo, nem
a sociedade nem o sócio autor da primeira ação terão como se subtrair
da coisa julgada. Nesse processo, o juiz ficará vinculado ao comando
anterior, que reconheceu a nulidade”
229
.
228
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 40-1, grifo
do autor.
229
Ibid., p. 41, grifo do autor.
98
Declinando as premissas teóricas que o levam a assim concluir,
Eduardo Talamini diz com muita propriedade que:
[...] a possibilidade de as partes darem outra solução para a questão
(inclusive, tendo por existente o que se reputou inexistente) não é
afetada nem mesmo pela idéia de que a coisa julgada “imuniza”,
estabiliza, a norma concreta para a situação objeto do processo
[artigo 468 do Código de Processo Civil Brasileiro vigente]. Se a
norma em abstrato não era “cogente” (i.e. não estabelecia posições
jurídicas indisponíveis), a norma concreta da mesma natureza se
reveste. A “maior intensidade” de que a norma em concreto se
reveste, se comparada com a norma em abstrato, está retratada na sua
intangibilidade em face da lei, de novos pronunciamentos
jurisdicionais e, conseqüentemente, da subordinação do vencido.
Todavia, o conteúdo disponível da relação não se altera. Sustentar o
contrário implicaria em atribuir caráter material à coisa julgada e
função criadora de direito à sentença [...]. Já quando a norma abstrata
era “cogente” [...], assim como a parte titular da posição jurídica ativa
não podia dispor dessa posição antes, não poderá igualmente fazê-lo
depois. Nesse sentido, haverá de se submeter cogentemente também à
sentença que declara a norma in concreto (i.e., “atua a vontade
concreta da norma”). A “indisponibilidade” não está na coisa julgada,
mas na norma atuada.
Por sua vez, a “imperatividade” da sentença – aquilo que Liebman
inicialmente chamou de sua “eficácia” natural -, além de não se
confundir com a coisa julgada, tampouco impede as partes de abrir
mão de suas posições jurídicas disponíveis. Significa apenas que a
sentença, como ato estatal, impõe-se mesmo contra a vontade daquele
que sofre os seus efeitos”
230
.
Acercando-se, derradeiramente, do direito material e reportando-
se diretamente ao Código Civil Brasileiro vigente, Eduardo Talamini diz, ainda,
em suporte ao seu entendimento, que
No direito brasileiro, a possibilidade de as partes disporem de outro
modo a respeito da situação jurídica (disponível) que foi objeto do
processo e da sentença que fez coisa julgada é confirmada pela regra
do art. 850 do Código Civil de 2002, correspondente ao art. 1.036 do
diploma anterior: apenas se algum dos transatores não tinha
ciência da anterior coisa julgada é que será nula a transação.
Bem por isso, nos casos em que as partes podem transigir, nada
impede que celebrem um compromisso arbitral para o exame do
mesmo objeto atingido pela anterior coisa julgada. O que não lhes é
dado – repita-se é pretender novo exame pelo Judiciário.
230
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 41-2, grifo
do autor.
99
Por outro lado, quando o direito envolvido é indisponível, a
impossibilidade de as partes, ainda que de comum acordo, darem para
a causa solução diversa da fixada na sentença deriva do fato de que já
se definiu a norma “cogente” in concreto e não é dado às partes não a
cumprir. Isso advém, em primeiro lugar, da própria “eficácia natural”
(“imperatividade”) da sentença. Vale dizer: mesmo que, por força de
alguma norma excepcional, a sentença nessa hipótese não faça coisa
julgada material, as partes não estão autorizadas a simplesmente
ignorá-la: poderão, não havendo coisa julgada, até voltar a juízo pedir
outro pronunciamento, mas não poderão simplesmente desconsiderar a
“norma concreta”. A coisa julgada é apenas o aspecto de
imutabilidade que se adiciona ao comando, impedindo que qualquer
das partes ou ambas em conjunto pretendam ir a juízo meramente
alterá-lo ou obter outro que lhe seja incompatível”
231
.
Da nossa parte, comungamos com os argumentos de Eduardo
Talamini e, em última análise, com o pensamento que José Carlos Barbosa
Moreira tem espraiado a respeito da matéria desde há muito.
Um porém, contudo, objetamos, nesse particular, a Eduardo
Talamini: pensamos – mesmo com o sério risco de incorrermos em erro – que,
sendo o direito disponível e tendo as partes abdicado da solução dada pela
sentença, nem mesmo o terceiro juridicamente interessado poderá invocar, em
seu favor, o conteúdo da sentença atingido pela coisa julgada, sob pena de
malversação do artigo 472 do Código de Processo Civil Brasileiro vigente que é
muito claro ao dizer que a sentença só faz coisa julgada entre as partes perante
às quais é dada “[...] não beneficiando e nem prejudicando terceiros
(grifamos).
Desse modo, entendemos que o terceiro juridicamente
interessado e prejudicado, tal qual faria em situação anterior ao julgado, deverá,
para fazer valer o seu direito, lançar mão das ações próprias de que se valeria se
a abdicação do direito objeto do julgado se desse no curso do processo ou
mesmo antes da sua existência, inclusive, argumentando eventual fraude à
execução ou a credores, se for o caso, competindo-lhe, contudo, a prova de que a
231
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 42-3, grifo
do autor.
100
solução da qual se abdicou era aquela que correspondia com os fatos, dos quais
estaria a se distanciar a nova solução, de nada lhe valendo a sentença, nesse
particular, sob pena, inclusive, de resgate da doutrina que via na sentença
elemento de prova perante terceiros.
Entendimento contrário, a nosso ver, atentaria contra a noção de
utilidade prática da coisa julgada (instrumento de evitação de conflito prático
entre julgados, conforme ensinamento de Giuseppe Chiovenda), assim como
resvalaria para as noções da coisa julgada como instituto de direito material e,
ainda, como criadora de direito, ou, nas palavras do próprio Eduardo Talamini,
acima transcritas, implicaria em “[...]. atribuir caráter material à coisa julgada e
função criadora de direito à sentença”
232
.
2.1.2.2 O (possível) conceito positivado
Esmiuçado(s) o(s) conceito(s) legal(is) positivado(s) pelo nosso
ordenamento jurídico, bem se vê o quão distante nos encontramos daquele
preliminar e singelo conceito, não comprometido com a estrita legalidade, do
quê fosse a coisa julgada, extraído de Ovídio Araújo Baptista da Silva.
E é de se perguntar: à vista dos conceitos legais hoje existentes
em torno da coisa julgada no direito brasileiro, explicitados tanto na Lei de
Introdução ao Código Civil Brasileiro tal qual está a viger hoje, como no Código
de Processo Civil Brasileiro, qual seria o conceito de coisa julgada extraível do
direito positivo brasileiro?
Diante das considerações ulteriores, nos parece mais do que
óbvio que o conceito que nos é legado pela Lei de Introdução ao Código Civil
Brasileiro, se não é incorreto nos seus limites, é absolutamente incompleto.
O mesmo, quer nos parecer, pode ser dito pelo conceito que,
hoje, nos é estampado pelo Código de Processo Civil Brasileiro, em que pese,
232
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 42.
101
pela conjugação de dispositivos outros que se encontram em seu texto, se poder
aproximar de um conceito bem mais rico e próximo da realidade do direito
brasileiro do que aquele que nos é informado pela Lei de Introdução ao Código
Civil Brasileiro.
Os antecedentes históricos que cercaram o conceito durante a
vigência do Código de Processo Civil Brasileiro de 1939, igualmente nos lega
uma gama de informações e de dados consolidados que, conjugados com o texto
do Código de Processo Civil Brasileiro de 1973, se mostram imprescindíveis na
exata delimitação conceitual do instituo hoje e acabam por nos permitir uma
conceituação mais ou menos sólida, em que pese não unânime, como vimos
acima, particularmente por conta da exata alocação da questão da imutabilidade
no julgado, que não se encontra superada na doutrina e que não encontra solução
na literalidade conceitual do código.
Na busca dessa conceituação e tendo-se em conta essas
circunstâncias, já externamos, acima, a nossa adesão à construção conceitual de
José Carlos Barbosa Moreira, que, pela pena de Eduardo Talamini, nos legaria o
conceito de coisa julgada material “[...] como a qualidade de que se reveste a
sentença de cognição exauriente de mérito transitada em julgado, qualidade essa
consistente na imutabilidade do conteúdo do comando sentencial”
233
e que se
manifesta como “[...] um efeito anexo do trânsito em julgado da sentença [...]
diretamente atribuído por norma de lei [...]”
234
.
2.2 Detalhamento de alguns aspectos conceituais relevantes
Para que se compreenda a exata extensão, por outro lado, do
conceito de coisa julgada, seja o proposto, seja das demais variantes conceituais
possíveis (a partir do nosso direito positivo), segundo as correntes acima
233
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 30.
234
Ibid., p. 44.
102
expostas, mostra-se relevante o detalhamento de alguns dos seus aspectos mais
relevantes, comuns às bases conceituais correntes, os quais passamos a expor
adiante, ainda que de forma sintética, dados os limites e o escopo principal do
presente trabalho.
2.2.1 Coisa julgada material e formal
Após dizer que o juiz, ao proferir a sentença, afirma ou nega a
vontade do Estado em garantir um bem da vida a alguém no caso concreto, a isto
se estendendo a coisa julgada (a certeza da existência dessa vontade estatal)
“[...] e, pois, a incontestabilidade do bem reconhecido ou negado”
235
, Giuseppe
Chiovenda ensinava que essa incontestabilidade ulterior se realiza mediante a
“[...] preclusão de todas as questões que se suscitaram e de todas as questões que
se poderiam suscitar em torno da vontade concreta da lei, com o fim de obter o
reconhecimento do bem negado ou do desconhecimento do bem reconhecido”
236
.
Consistindo, outrossim, a preclusão, em um instituto geral de
processo que implica na perda de uma faculdade processual, o que se tem é que,
já no limiar do processo, com a inicial, a parte (autora) decai da faculdade de
deduzir novas questões (senão no todo, ao menos em parte). O mesmo fenômeno
se repete, após, com a faculdade de contestar e assim por diante, até que
sobrevenha a sentença e, derradeiramente, transite em julgado (sentença não
mais sujeita a impugnações). Com ela, há, nos dizeres de Giuseppe Chiovenda
“[...] a preclusão definitiva das questões propostas (ou proponíveis)”
237
.
Assim encarado o processo, a coisa julgada é o cume desse
verdadeiro sistema de preclusões
238
, apenas que se denominando coisa julgada
235
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução de Paolo Capitanio a partir da
2ª edição italiana [1935?]. Anotações de Enrico Túlio Liebman. 1ª ed. Campinas: Bookseller, 1998, p. 449.
236
Ibid., p. 449-50.
237
Id., loc. cit.
238
Daí porque, inclusive, José Carlos Barbosa, qualificar a “[...] coisa julgada material como situação dotada de
eficácia preclusiva” (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Considerações sobre a chamada “relativização” da
coisa julgada material. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre: Síntese, ano 6, nº 33,
103
formal a situação jurídica de que se reveste a sentença em relação ao processo
em que foi proferida, caracterizada pela sua imutabilidade no processo; para
muito além disso, se denomina coisa julgada material a situação jurídica de
que se reveste a sentença não só em relação ao próprio processo em que foi
proferida, como também para qualquer outro processo envolvendo o mesmo
objeto (entendido, aqui, de forma lata) e as mesmas partes nela retratados,
projetando-se, portanto, para o futuro
239
.
Nesse sentido, a coisa julgada formal há de se manifestar em todo
e qualquer processo que venha a ser sentenciado e transite em julgado, sendo,
por outro lado, pressuposto lógico e necessário para que se opere a coisa julgada
material.
Enrico Tullio Liebman, digressando acerca da distinção entre as
duas coisas julgadas, após apontar para a quase inexistência de discordância dos
escritores em torno da matéria
240
, a delineava nos seguintes termos:
É a primeira [a coisa julgada formal] uma qualidade da sentença,
quando já não é recorrível por força da preclusão dos recursos; seria,
por sua vez, a segunda [a coisa julgada material] a sua eficácia
específica, e, propriamente, a autoridade da coisa julgada e estaria
condicionada à formação da primeira.
[...] enquanto todas as sentenças são, sem dúvida, suscetíveis da
primeira, conseguiriam, pelo contrário, a segunda somente as
sentenças que acolhem ou rejeitam a demanda de mérito.
[...] indica, pois, a coisa julgada formal a imutabilidade da sentença
como ato processual, e a coisa julgada substancial indicada (sic) a
mesma imutabilidade, em relação ao seu conteúdo e mormente aos
seus efeitos.
[...] no primeiro caso tem a sentença efeito meramente interno no
processo no qual foi prolatada, e perderá toda a importância com o
jan./fev. 2005, p. 10). Daí porque, também, conforme lembra Ada Pellegrini Grinover, a doutrina brasileira falar
em “[...] “preclusão máxima”, quando se trata de sentença definitiva” (GRINOVER, Ada Pellegrini. Notas ao §
3º. In: LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada:
com aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos
textos posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª
ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 68, grifo do autor).
239
Ver, na atualidade, por todos: SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de processo civil: processo de
conhecimento. V. 1. 6ª ed. rev. e atual. com as Leis 10.352, 10.358/2001 e 10.444/2003. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p. 480-1.
240
Enrico Tullio Liebman não o cita, mas lembremos, nesse particular, conforme anteriormente já visto, que
Francesco Carnelutti foi a grande voz dissonante quanto à essa classificação, quando, vinculando a coisa julgada
formal à imutabilidade da sentença, e a coisa julgada material à sua imperatividade, ele inverteu a ordem de
antecedência lógica entre uma e outra das coisas julgadas com que a doutrina tradicionalmente as brindava.
104
término do processo; no segundo, porém, a sentença, decidindo sobre
a relação deduzida em juízo, destina-se a projetar a sua eficácia
também e sobretudo fora do processo e a sobreviver a este. Mas a
diferença está toda no comando contido na sentença e nos seus
efeitos, não na coisa julgada, que permanece sempre a mesma”
241
.
Eduardo Talamini, fazendo repercutir essa mesma lição de
Enrico Tullio Liebman, de unidade conceitual da coisa julgada, nos diz que:
A rigor, o instituto da coisa julgada é essencialmente apenas um.
Coisa julgada formal e coisa julgada material são duas expressões de
um mesmo e único fenômeno. [...] pode-se dizer que, em ambos os
casos, verifica-se a imutabilidade do comando contido na sentença.
A diferença está no objeto sobre o qual recai essa qualidade – que, em
si, é a mesma. A diversidade reside no teor do comando: a coisa
julgada formal consiste na imutabilidade de um comando que se limita
a pôr fim ao processo; a coisa julgada material consiste na
imutabilidade do comando que confere tutela a alguma das partes, isso
é, que dispõe substancialmente sobre algo que vai além da simples
relação processual”
242
.
Dos doutrinadores pátrios de outrora, entre outros, Jônatas
Milhomens
243
serve como exemplo do quanto essa distinção já era corrente e
perfeitamente assimilada pela doutrina processual brasileira ainda na vigência
do Código de Processo Civil Brasileiro de 1.939, o mesmo podendo-se dizer de
Alfredo Araújo Lopes da Costa
244
, que qualifica, inclusive, a coisa julgada
formal como coisa julgada interna e a coisa julgada material como coisa
julgada externa, justamente para denotar a eficácia intra e extra-processual,
respectivamente, de cada uma das duas modalidades de coisa julgada.
No sistema do Código de Processo Civil Brasileiro vigente, como
já mencionado anteriormente, o artigo 467, a despeito de aludir à coisa julgada
241
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com
aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos
posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1981, p. 60-1, grifo do autor.
242
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 132, grifo do
autor.
243
MILHOMENS, Jônatas. Manual de prática forense: civil e comercial: v. 1: arts. 1º a 297. 3ª ed. rev. e atual.
Rio de Janeiro: Forense, 1957, p. 489.
244
LOPES DA COSTA, Antonio Araújo. Direito processual civil brasileiro. 2ª ed. rev., aum. e atual. V. III.
Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 423-4.
105
material, a bem da verdade, nos dá o conceito do que seja a coisa julgada
formal
245
.
O conceito de coisa julgada material, por outro lado, nos é dada,
igualmente conforme acima dito, pelo Código de Processo Civil a partir da
conjugação dos seus artigos 467 e 485, a partir do que fica claro que somente as
sentenças de mérito estão sujeitas à sua incidência
246
, o que é reforçado por
aquilo que ditam os artigos 468, 267, VI e 268, caput, do mesmo código
247
, e,
ainda assim, quando a cognição, verticalmente falando, não for de natureza
sumária
248
.
Consigne-se que era justamente o fato de que nem toda a
sentença viesse a produzir coisa julgada material é que fazia com que Enrico
Tullio Liebman tomasse o cuidado de dizer que a coisa julgada seria tão só uma
possível (e, por tanto, não inexorável) qualidade do comando contido na
sentença e dos seus efeitos
249
.
A relevância da distinção entre uma e outra das modalidades
reside precipuamente na regra incrustrada no artigo 485 do Código de Processo
Civil Brasileiro vigente, a partir da qual fica claro que as sentenças que se
revestirem de coisa julgada material, só por via de ação rescisória poderão ser
desconstituídas.
Não fosse isso e a distinção não teria utilidade prática alguma (no
sentido de se dizer que, ou todas as decisões seriam rescindíveis, ou nenhuma,
dependendo do modelo legal que viesse a ser utilizado).
245
GRINOVER, Ada Pellegrini. Notas ao § 1º. In: LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da
sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de
Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito
brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 9.
246
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 31.
247
GRINOVER, op. cit., p. 9-10. ARAGÃO, Egas Moniz de. Sentença e coisa julgada. Porto Alegre: Aide,
1992, p. 241.
248
TALAMINI, op. cit., p. 31 e 53-61.
249
LIEBMAN, op. cit., p. 73.
106
2.2.2 Coisa julgada e preclusão
Giuseppe Chiovenda, a nosso ver, formulou de modo insuperável
a distinção entre coisa julgada e preclusão, estabelecendo-a sobre as seguintes
bases:
A coisa julgada contém, pois, em si, a preclusão de qualquer questão
futura: o instituto da preclusão é a base prática da eficácia do julgado;
vale dizer que a coisa julgada substancial (obrigatoriedade nos
futuros processos) tem por pressuposto a coisa julgada formal
(preclusão das impugnações). A relação, portanto, entre coisa julgada
e preclusão de questões pode assim formular-se: a coisa julgada é um
bem da vida reconhecido ou negado pelo juiz; a preclusão de
questões é o expediente de que se serve o direito para garantir o
vendedor no gozo do processo (ou seja, o gozo do bem reconhecido
ao autor vitorioso, a liberação da pretensão adversária ao réu
vencedor).
Ao dizê-lo, afirmamos conjuntamente a profunda, insuperável
diferença existente entre coisa julgada e preclusão de questões.
A coisa julgada é a eficácia própria da sentença que acolhe ou rejeita
a demanda, e consiste em que, pela suprema exigência da ordem e
da segurança da vida social, a situação das partes fixada pelo juiz
com respeito ao bem da vida (res), que foi objeto de contestação, não
mais se pode, daí por diante, contestar; o autor que perdeu não lhe
pode mais reclamar, ulteriormente, o gozo. A eficácia ou a autoridade
da coisa julgada é, portanto, por definição, destinada a agir no
futuro, com relação aos futuros processos.
Pelo contrário, a solução adotada pelo juiz para as questões lógicas
suscitadas no processo, concernentes a pontos processuais ou
substanciais, de fato ou de direito, exatamente por ser preparatória da
decisão de recebimento ou de rejeição, não tem a eficácia peculiar a
esta última; tem somente, eficácia mais restrita, imposta por
exigências de ordem e de segurança no desenvolvimento do
processo e pela necessidade de fixar o resultado do processo que
consiste na preclusão da faculdade de renovar a mesma questão no
mesmo processo
250
.
Ada Pellegrini Grinover - após firmar que a doutrina brasileira,
consagrando a distinção entre coisa julgada material e formal, “[...] costuma
equiparar a coisa julgada formal à preclusão, falando em “preclusão máxima”,
250
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução de Paolo Capitanio a partir da
2ª edição italiana [1935?]. Anotações de Enrico Túlio Liebman. 1ª ed. Campinas: Bookseller, 1998, p. 452-3,
grifo do autor.
107
quando se trata de sentença definitiva”
251
, a ponto de parte da doutrina ter “[...]
até propugnado a supressão do termo “coisa julgada formal”, substituída que
ficaria pela preclusão”
252
-, retoma a distinção e a reafirma dizendo que:
[...] coisa julgada formal e preclusão são dois fenômenos diversos, na
perspectiva da decisão irrecorrível. A preclusão é, subjetivamente, a
perda de uma faculdade processual e, objetivamente, um fato
impeditivo; a coisa julgada formal é a qualidade da decisão, ou seja,
sua imutabilidade, dentro do processo. Trata-se, assim, de institutos
diversos, embora ligados entre si por uma relação lógica de
antecedente-conseqüente
253
.
Eduardo Talamini, por sua vez, também consagrando a distinção,
nos diz que:
A preclusão consiste na perda de uma faculdade ou poder processual
no curso do processo. Pode ser ocasionada: (a) pelo decurso do prazo,
ou pela passagem da fese processual, para exercício do poder ou
faculdade; (b) pelo anterior e exercício do poder ou faculdade; (c) pela
prática de ato logicamente incompatível com o exercício do poder ou
faculdade. Esses três diferentes motivos servem de base para a
classificação tradicional da preclusão: (a) temporal (que abrange
também a “preclusão por fase do processo”) – art. 183; (b) preclusão
consumativa; (c) preclusão lógica (ex., art. 503, par. ún.).
A preclusão e a coisa julgada são institutos inconfundíveis, ainda que
em parte inspirados nos mesmos princípios (segurança jurídica;
proteção da confiança...): a preclusão apenas opera internamente ao
processo; a coisa julgada projeta-se para fora da relação processual em
que se formou. A preclusão destina-se a conferir segurança e
previsibilidade ao jurisdicionado e eficiência à máquina jurisdicional,
no curso do processo. Liga-se à garantia do devido processo legal, no
sentido de processo razoável. A coisa julgada, inspirada em
semelhantes valores, visa a preservar o resultado da atuação
jurisdicional
254
.
Quanto aos pontos de aproximação e de distanciamento entre os
dois institutos, Eduardo Talamini observa que:
251
GRINOVER, Ada Pellegrini. Notas ao § 3º. In: LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da
sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de
Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito
brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 68, grifo do autor.
252
Ibid., p. 68.
253
Id., loc. cit.
254
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 132-3, grifo
do autor.
108
O ponto de contato estrutural enre os dois institutos reside na
circunstância de que, em regra, é a preclusão (temporal, lógica ou
consumativa) da faculdade de recorrer do ato apto a pôr fim ao
processo que implicará o trânsito em julgado, o qual, por sua vez,
acarretará a coisa julgada formal e, conforme o caso, material.
Mas a preclusão apenas terá a aptidão de ocasionar a coisa julgada (e,
ainda assim, sempre de modo indireto) na medida em que concorram
os pressupostos específicos para o advento dessa segunda autoridade.
A simples preclusão da faculdade de exercer um ato destinado a
discutir ou formular uma pretensão ou a preclusão do poder judicial de
exame desse mesmo objeto não são por si só suficientes para implicar
coisa julgada
255
.
Assim, por exemplo, ao deixar, o demandado, de interpor
embargos à execução ou no processo monitório, este decai da faculdade que a lei
lhe confere para manejar esses instrumentos processuais, mas nada o impede de
discutir a dívida em ação própria, justamente porque, aí, a despeito de operar a
preclusão, não se opera a coisa julgada, por não concorrem, nos termos da lei, os
demais requisitos que se exige para a sua formação
256
. Tais exemplos, aliás, não
só demonstram a atualidade da distinção entre um instituto no contexto do
direito positivo brasileiro como, também, a sua utilidade prática.
2.2.3 Coisa julgada e trânsito em julgado
O trânsito em julgado, que se concretizará a partir do momento
em que da sentença não caiba mais nenhum reexame, voluntário ou de ofício,
não se confunde, de modo algum, com a coisa julgada, e, quando muito, indica o
momento em que a coisa julgada ocorre.
Portanto, como diz Eduardo Talamini,
Se, por um lado, não há coisa julgada sem que tenha havido o trânsito
em julgado, por outro, nem sempre o trânsito em julgado traz consigo
a coisa julgada material. Quando muito, pode-se vincular o trânsito em
julgado à coisa julgada formal [...]. Mas, ainda assim, não há
identidade entre os dois conceitos. O primeiro, concerne ao aspecto
cronológico do esgotamento dos meios internos de revisão da
255
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 133.
256
Id., loc. cit.
109
sentença; o segundo diz respeito à autoridade que se estabelece,
impeditiva da reabertura do processo
257
.
Assim, conforme conclui Eduardo Talamini
258
, um (o trânsito em
julgado) estaria em relação à outra (a coisa julgada) como causa e efeito.
É justamente essa distinção que, como vimos anteriormente,
embala, desde há muito, a críticas que se têm formulado sobre o conceito de
coisa julgada que é, até hoje, estampada na Lei de Introdução ao Código Civil
Brasileiro.
2.2.4 Funções positiva e negativa da coisa julgada
Já João Monteiro consagrava essa distinção, dizendo que “[...] a
coisa julgada tem dois sentidos em direito, significando no primeiro deles, o
termo final da demanda, e no segundo a relação de direito resolvida na
sentença [...]”
259
, designando “[...] o primeiro sentido, pela locução – função
positiva, e o segundo – função negativa da coisa julgada
260
.
Esmiuçando-as (as ditas funções), João Monteiro, que também
qualificava a função positiva como força ou valor extrínseco, dizia que esta se
assentava na exata medida em que, transitada em julgado, a sentença “[...]
obriga a todos indistintamente e pode ser coativamente imposta por meio da
execução forçada, a que não só o réu condenado como qualquer outra pessoa
não pode opor”
261
. Assim, a sentença, “Decreto adversus omnes, tem nesta
força a sua função positiva”
262
, ou, em outras palavras,
É a coisa julgada em seu aspecto político ou valor extrínseco. Ato
público, emanado de um dos poderes constitucionais, por ninguém
pode ser impugnado: firma definitivamente o fato, que passa a ter,
adversus omnes, a feição da verdade. Res judicata pro veritate
257
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 32.
258
Id., loc. cit.
259
MONTEIRO, João. Teoria do processo civil. Atualizado por J. M. de Carvalho Santos. T. II. 6ª ed. Borsoi:
Rio de Janeiro, 1956, p. 744, grifo do autor.
260
Id., loc. cit., grifo do autor.
261
Ibid., p. 596, grifo do autor.
262
Id., loc. cit., grifo do autor.
110
habetur. Eis porque dizemos ser positiva esta função da coisa julgada.
Afirmada irrefutavelmente a verdade, todos a devem ter como tal
263
.
Quanto à função negativa, também qualificada por ele como
força ou valor intrínseco, esta “[...] regularmente se apresenta em juízo sob a
forma de exceção; e se diz negativa porque impede a reprodução da demanda
[...]”
264
.
Encarando essas funções como facetas ou modos de expressão
da coisa julgada material, Eduardo Talamini, na esteira de João Monteiro, diz
que ela, sob o aspecto negativo, manifesta-se como pressuposto processual
negativo, nos termos do artigo 267, V, do Código de Processo Civil Brasileiro,
consistindo “[...] na proibição [...] de que qualquer órgão jurisdicional torne a
apreciar o mérito do objeto processual sobre o qual já recai a coisa julgada”
265
;
ao passo que, sob o aspecto positivo, ela se manifesta no sentido de que
O decisum (resultado) sobre o qual recai a coisa julgada terá de ser
obrigatoriamente seguido por qualquer juiz, ao julgar outro processo,
entre as partes, cujo resultado dependa logicamente da solução a que
se chegou no processo em que já houve coisa julgada material
266
.
Daí que, em termos práticos, declarada a existência de um
crédito, a declaração vinculará o julgamento da posterior ação condenatória
proposta, envolvendo as mesmas partes e o mesmo crédito; assim como o
reconhecimento da paternidade, subordinará a solução de futura demanda
alimentar
267
.
Enrico Tullio Liebman, que sintetizava a consagração da
distinção dessa dúplice função da coisa julgada na
[...] afirmação de que a autoridade da coisa julgada já não tem só uma
função negativa, (consumação da ação), mas também e sobretudo
positiva, “enquanto obriga o juiz a reconhecer a existência do julgado
263
MONTEIRO, João. Teoria do processo civil. Atualizado por J. M. de Carvalho Santos. T. II. 6ª ed. Borsoi:
Rio de Janeiro, 1956, p. 745-6, grifo do autor.
264
Ibid., p. 754.
265
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 130.
266
Id., loc. cit.
267
Id., loc. cit.
111
em todas as suas decisões sobre demandas que pressuponham o
julgado”
268
,
com ela não comungava, sustentando que “[...] deve-se dizer que tem a
autoridade da coisa julgada função meramente negativa”
269
, sendo que, para ele,
a “Tal da função positiva, assim chamada, da coisa julgada, com esta nada tem
que ver e é simplesmente a eficácia natural da sentença”
270
, ou seja, ela nada
mais estaria a retratar que a produção daqueles efeitos que são próprios e
naturais da sentença; “[...] a simples produção dos efeitos da sentença perante
outro juiz”
271
, absolutamente independentes da coisa julgada, cuja função é tão
só a imutabilidade de tais efeitos.
Porém, malgrado a autoridade do grande mestre, como bem
lembra Eduardo Talamini, se é bem verdade que a denominada função ou
eficácia positiva da coisa julgada também expressa os efeitos da sentença, como
o declaratório, o constitutivo, não é menos verdade que
[...] esse outro juiz só está obrigado a observar tais efeitos, só se
vincula cogentemente a eles, se o comando de que deles advêm,
estiver acobertado pela coisa julgada. [...] sem a coisa julgada a
“eficácia positiva” não se poria como tal: o juiz do segundo processo
não ficaria vinculado à solução já dada pelo decisum da sentença
anterior à questão que ora funciona como prejudicial. Enfim, é sempre
a autoridade da coisa julgada que faz o juiz ficar vinculado ao
conteúdo do comando anterior seja para negar novo julgamento, seja
para decidir tomando aquele comando como premissa necessária”
272
.
Nessa contenda, quer nos parecer que, de fato, Enrico Tullio
Liebman se equivocara no desprezo da distinção, não se podendo reduzir a
268
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com
aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos
posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1981, p. 58, grifo do autor. (A passagem grifada por Enrico Tullio Liebman trata-se de
citação de: CHIOVENDA, Giuseppe. Princippi di diritto processuale civile. Nápoles: Jovene, 1928, p. 914.
Em tradução brasileira, essa mesma passagem pode ser encontrada em: CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições
de direito processual civil. Tradução de Paolo Capitanio a partir da 2ª edição italiana [1935?]. Anotações de
Enrico Túlio Liebman. 1ª ed. Campinas: Bookseller, 1998, p. 462).
269
Ibid., p. 59.
270
Ibid., p. 60.
271
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 131.
272
Id., loc. cit.
112
função positiva da coisa julgada aos assim denominados efeitos naturais da
sentença.
A utilidade prática, ademais, da distinção, está em bem indicar a
vinculação do juiz ao comando da sentença anterior, sempre que tiver que
sentenciar subseqüente processo de cujo resultado dependa o anterior, alertando,
assim, que a coisa julgada não só impede o juiz a se pronunciar novamente sobre
um caso já decidido, envolvendo as mesmas partes, como que o vincula em um
futuro pronunciamento ao primeiro.
Além disso, e já dentro de um contexto de relativização da coisa
julgada, cuja exata dimensão trataremos adiante, Eduardo Talamini aponta, na
distinção entre as duas funções, para uma utilidade
[...] no terreno da quebra da coisa julgada mediante a aplicação do
princípio da proporcionalidade, especificamente na aplicação do sub-
princípio do “menor sacrifício possível”, que pode conduzir a quebras
parciais
273
,
onde, em suma, preservando-se, a função negativa da coisa julgada, impedindo
novo pronunciamento da matéria, se mitigaria a sua função positiva, no
subseqüente processo cuja solução estaria subordinada àquela anteriormente
dada
274
.
2.2.5 Limites objetivos e subjetivos da coisa julgada
Ao trabalharmos o conceito de coisa julgada, dissemos que ela se
caracteriza por uma qualidade própria, inconfundível com as eficácias próprias
da sentença (declaratória, constitutiva, mandamental, condenatória ou executiva
em sentido amplo), qual seja a imutabilidade da sentença.
“O estudo dos limites [...] da coisa julgada se presta a estabelecer
o que da sentença se reveste daquela qualidade de imutabilidade e o que fica de
273
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 131.
274
Ibid., p. 604-6.
113
fora”
275
(limites objetivos), “[...] recaia ela [a imutabilidade] sobre os efeitos da
sentença (Liebman), sobre o conteúdo do comando (Barbosa Moreira) ou sobre
o efeito declaratório da sentença (Ovídio Baptista da Silva) [...]”
276
, assim como,
quem é atingido por essa imutabilidade, ou seja, a quem ela (a imutabilidade) se
estende (limites subjetivos).
Tais limites nos são dados pelo clássico critério dos tria eadem
ou da tríplice identidade da lide, evidenciada pela identidade de pedido, causa
de pedir e partes
277
, critério esse erigido por Eduardo Talamini, a despeito das
críticas de que é passível, em verdadeiro “[...] modelo “universal” de aferição de
identidade de objetos”
278
, sendo adotado inclusive na common law
279
e
expressamente consagrado como instrumento de identificação de ações,
inclusive para fins de incidência da coisa julgada, pelo artigo 301, §§ 2º e 3º, do
nosso vigente Código de Processo Civil.
Daí porque Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart,
reproduzindo essas mesmas premissas, dizerem que
[...] fica evidente que a extensão objetiva da coisa julgada limita-se à
parte dispositiva da sentença, tornando imutável o seu efeito
declaratório. Todavia, dimensiona-se esta imutabilidade pelo exame
dos três elementos que identificam a ação, ou seja, pela observação
275
LIMA, Paulo Roberto de Oliveira Lima. Contribuição à teoria da coisa julgada. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1997, p. 30, grifo nosso.
276
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 44.
277
Cf. LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. V. III. Tocantins: Intelectus, 2003, p.
175. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução de Paolo Capitanio a partir da
2ª edição italiana [1935?]. Anotações de Enrico Túlio Liebman. 1ª ed. Campinas: Bookseller, 1998, p. 52.
278
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 68, grifo do
autor. Eduardo Talamini indica que, a despeito de acreditar-se que já no período das legis actiones do direito
romano formulavam-se critérios que possibilitassem a identidade do objeto do processo que possibilitassem a
incidência do rem actam agere (indicando que o desenvolvimento de um processo impedia outro posterior com
o mesmo objeto, hipótese em que o agir no segundo processo não poderia conduzir ao resultado almejado pelo
autor e que, assim, seria inútil, em uma construção bastante próxima daquela que, modernamente, vê na coisa
julgada a falta de interesse de agir), “[...] coube à jurisprudência clássica a elaboração precisa de uma série de
critérios destinados a definir se em cada caso havia ou não eadem res, suscetivível de ser atingida pelos efeitos
extintivos e criativos da litis contestatio e da res iudicata”. Assim é que já Juliano aludia à impossibilidade da
repetição da mesma causa pelas mesmas pessoas, ainda que em processo diferente, noção essa que foi
aperfeiçoada por Nerácio, a quem, aludindo expressamente a três elementos de identidade (personae, id ipsum
de quo agitur (aquilo pelo qual se age) e causa próxima actionis), atribui-se a origem da teoria dos tria eadem,
e, posteriormente, por Paulo, que extremou a importância da causa de pedir na actio in personam, onde a
prestação devida poderia ser buscada por mais de um fundamento, todos autônomos, e na actio in rem, onde
todas as causas de pedir entendiam-se deduzidas desde logo, atingindo, a coisa julgada, todos os possíveis
fundamentos (Ibid., p. 204-5, grifo do autor).
279
Ibid., p. 68, grifo do autor.
114
das partes, do pedido e da causa de pedir. Modificado algum destes
elementos, estar-se-á evidentemente diante de uma nova ação, para a
qual nenhuma relevância possui a existência de coisa julgada na
demanda anterior
280
.
Como alerta, porém, Eduardo Talamini, “Essa diretriz geral [da
tríplice identidade], simples em seus termos, dá ensejo a inúmeras dificuldades
concretas [...]”
281
, as quais passamos a abordar, topicamente, adiante.
2.2.5.1 Limites objetivos da coisa julgada
Antes de mais nada, como diz Eduardo Talamini, “A coisa
julgada põe-se objetivamente nos limites do mesmo pedido e mesma causa de
pedir da ‘ação’ julgada pela sentença”
282
. Ou, nos dizeres de Alfredo de Araújo
Lopes da Costa, “Cada fundamento substancia um pedido. É sobre o pedido,
com o fundamento alegado, que se estende a coisa julgada”
283
.
Uma nova ação, portanto, que encerre outro pedido e/ou outra
causa de pedir, não encontrará óbice na coisa julgada, já que “Um pedido
[condenatório] fundado em culpa contratual é diverso do que assentar em culpa
extracontratual”
284
.
Para a exata delimitação objetiva da coisa julgada, portanto, é
capital que se compreenda, exatamente, o que venha a ser, entre nós, tanto o
pedido quanto a causa de pedir, sem o que qualquer vaga noção sobre o assunto
versado restará prejudicada.
280
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 5ª ed.
rev., atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 636. Ao dizerem que a coisa julgada torna imutável
o “efeito declaratório” da sentença, fica evidente que, nesse particular, eles aderem abertamente à tese de Ovídio
Araújo Babtista da Silva, do qual são, aliás, abertos partidários.
281
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 68.
282
Id., loc.cit., grifo do autor. Registre-se que o termo “ação”, nessa passagem, é empregado, segundo o próprio
autor faz questão de observar, como sinônimo de “pretensão” (processual) ou “demanda”, tecnicamente
preferíveis, inclusive.
283
LOPES DA COSTA, Antonio Araújo. Direito processual civil brasileiro. 2ª ed. rev., aum. e atual. V. III.
Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 432.
284
Id., loc. cit.
115
Esmiucemos, então, os contornos de cada um desses dois
elementos identificadores da demanda para que se vislumbre a sua repercussão
no instituto da coisa julgada, a partir, inclusive, da análise de desdobramentos a
eles correlatos.
2.2.5.1.1 O Pedido
Conforme aduz Sérgio Gilberto Porto, “Nada mais representa o
pedido do que a providência que o autor espera ver atendida pelo órgão
jurisdicional”
285
, ou, em outros termos, “[...] a exigência de subordinação de
interesse alheio ao interesse próprio”
286
, ou, ainda, o “[...] resultado (econômico,
social, moral etc, mas revestido de relevância jurídica) pleiteado pelo
demandante”
287
, onde se “[...] exprime aquilo que o autor [como também,
excepcionalmente, o réu
288
] pretende do Estado frente ao réu”
289
.
“Sendo o pedido, pois, o verdadeiro objeto da demanda,
representa [não só] aquilo que o autor pretende obter com a prestação da tutela
jurisdicional reclamada”
290
, como, também, “[...] a conclusão lógica da
exposição dos fatos e dos fundamentos jurídicos que dão suporte à demanda
[...]
291
.
Ordinariamente, o pedido, como objeto da demanda que é, sofre
uma dupla classificação (ou é composto de duplo aspecto, como quer Eduardo
Talamini
292
): é mediato quando referido ao bem jurídico pretendido (o dinheiro
na ação de cobrança ou na reparação civil; o imóvel na reivindicatória; a posse
285
PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada Civil. 3ª ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2006, p. 31.
286
Id., loc. cit.
287
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 69, grifo do
autor.
288
PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. Teoria geral do processo. 3ª ed. rev. e atual. Barueri: Manole, 2002, p.
118.
289
JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de direito processual civil. V. I: teoria geral do direito processual
civil e processo de conhecimento. 18ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 359.
290
PORTO, op. cit., p. 32.
291
Id., loc. cit.
292
TALAMINI, op. cit., p. 69.
116
na reintegratória); é imediato quando referido à modalidade, espécie ou
natureza (como se queira) do provimento ou tutela jurisdicional pretendida, que
será de cunho declaratória, constitutiva, condenatória, executiva ou
mandamental, segundo a classificação quinária das ações que, hoje, encontra-se
relativamente assente
293
.
Esclarecida essa dupla dimensão do pedido (mediato e imediato),
deve-se dizer que
Para efeitos de individualização de demandas, importa destacar que a
variação do pedido, por si só, representa também a variação da ação.
Assim, cumpre observar que, na verdade, o pedido contém dois
objetos, e, para que haja perfeita identidade de ações, é necessário que
ambos os objetos se identifiquem, pois a variação de um deles
importará na variação da demanda e, por decorrência, na
impossibilidade da presença do instituto da coisa julgada
294
.
Por outro lado, como observa Sérgio Gilberto Porto,
Pouco importa se o pedido seja simples, genérico, alternativo ou
sucessivo, pois, para efeitos de coisa julgada sempre estarão presentes
as exigências de identidade absoluta
295
.
Assim, como exemplifica Eduardo Talamini,
[...] se o autor no primeiro processo pleiteia o abatimento no preço
fundado no vício redibitório, e é derrotado no mérito, a coisa julgada
não será óbice à formulação de nova ação, com o mesmo fundamento,
mas em que se peça o desfazimento do negócio. Do mesmo modo, a
rejeição do pedido de resolução do contrato embasado no
inadimplemento da outra parte, não veta nova demanda, em que, em
293
PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada Civil. 3ª ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2006, p. 32. TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, p. 69. PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. Teoria geral do processo. 3ª ed. rev. e atual. Barueri: Manole,
2002, p. 119-20. JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de direito processual civil. V. I: teoria geral do direito
processual civil e processo de conhecimento. 18ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 359.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 5ª ed. rev.,
atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 92-8. GREGO FILHO, Vicente. Direito processual
civil brasileiro. V. 2: atos processuais a recursos e processos nos tribunais. 16ª ed. atual. São Paulo: Saraiva,
2003, p.104. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução de Paolo Capitanio a
partir da 2ª edição italiana [1935?]. Anotações de Enrico Túlio Liebman. 1ª ed. Campinas: Bookseller, 1998, p.
52. SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de processo civil: processo de conhecimento. V. 1. 6ª ed. rev. e
atual. com as Leis 10.352, 10.358/2001 e 10.444/2003. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 233.
PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários ao código de processo civil. V. III: arts. 270 a 331. 8ª. Rio de
Janeiro: Forense, 1998, p.171.
294
PORTO, op. cit., p. 32-3.
295
Ibid., p. 33. A respeito das várias modalidades de pedido citadas na passagem transcrita, consulte-se, entre
outros: JÚNIOR, op. cit., p. 361-5.
117
vista do mesmo inadimplemento, se pleiteie o cumprimento
específico
296
.
Isso ocorre, segundo nos explica Eduardo Talamini porque
Nessas hipóteses, tem-se o fenômeno do “concurso impróprio de
ações” (ou “de direitos”): trata-se de direitos alternativos amparados
no mesmo fundamento. A rejeição da primeira demanda não veda a
segunda, mesmo porque era perfeitamente concebível que os dois
pedidos tivessem sido feitos no mesmo processo, em cumulação
eventual
297
.
Em linha de princípio, tais assertivas podem parecer atentatórias
à praticidade e, quiçá, uma homenagem à perpetuação das demandas, não se
compreendendo porque é que não se poderia extrair da sentença transitada em
julgado que negara a resolução por inadimplemento do negócio, o óbice para a
propositura de nova demanda em que, com fundamento no mesmo
inadimplemento se pleiteasse a execução específica da obrigação.
Quem pensa assim, por óbvio, não dá a devida atenção à
complexidade dos fenômenos jurídicos, bastando, para demonstrar o acerto
desses limites, citar a hipótese em que, por exemplo, a improcedência da
rescisão do contrato tenha se dado pelo reconhecimento, pelo juiz, do
denominado adimplemento substancial do contrato
298
. Assim tida como
improcedente a ação, absolutamente nada impediria que, após, o autor, alegando
aquele mesmo inadimplemento invocado na rescisão, viesse a pleitear a
execução específica da obrigação, como, por exemplo, o pagamento do valor
restante, ou a integralização da execução do objeto contratado, ou, ainda, a
reparação de danos assentada naquele descumprimento.
Segundo, portanto, o fim eminentemente prático da coisa julgada
e não teórico, não se justifica e nem convém que, de qualquer forma, se integre à
296
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 69.
297
Id., loc. cit.
298
Para melhor compreensão do exemplo, a respeito do adimplemento substancial do contrato e a sua
repercussão sobre a resolução dos contratos consulte-se: BUSSATA, Eduardo Luiz. Resolução dos contratos e
teoria do adimplemento substancial. São Paulo: Saraiva, 2007.
118
ela os seus fundamentos (como, aliás, vimos minudentemente alhures), única
forma de se realizar a pretensão de ver a coisa julgada alcançando as hipóteses
mencionadas por Eduardo Talamini.
Mesmo o acolhimento, nos exemplos dados, da primeira
demanda, não impediria, com fundamento na coisa julgada, a propositura da
segunda demanda, que viria a ser obstaculizada pela falta de interesse de agir,
não, porém, com fundamento na coisa julgada, conforme escólio de Enrico
Tullio Liebman, reproduzido por Eduardo Talamini
299
.
Observa, por outro lado, Eduardo Talamini, que estão
compreendidos nos limites objetivos da coisa julgada, a partir da premissa da
identidade de pedidos, o pedido posterior que, por ser mais abrangente, inclui
um anterior já julgado, como é o caso daquele que pede a condenação de 200
quando, sob a mesma causa de pedir, teve ação julgada improcedente em que
pedia a condenação de 1000; ou, mesmo, o caso do pedido de declaração de um
crédito que suceda a improcedência da demanda condenatória em dar quantia
certa
300
.
Duas outras situações implicadas à coisa julgada a partir da
identidade do pedido são mencionadas por Eduardo Talamini
301
, mas que nos
parecem impertinentes, já que os óbices daí derivados para a propositura ou
solução da subseqüente demanda decorreriam de outros fundamentos que
informam a coisa julgada.
299
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 69. A
respeito, diz, de fato, Enrico Túlio Liebman que: “É só no caso de acolhimento da ação A que a ação B passa a
ser improponível e isto ocorre por falta de interesse de agir [...]” (LIEBMAN, Enrico Túlio. Ações
concorrentes. In: Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com aditamentos
relativos ao direito brasileiro. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos posteriores à
edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1981, p. 225, grifo do autor). É de se observar, contudo, que essa solução não conta com a unanimidade
da doutrina, podendo-se citar, por exemplo, José Rogério Cruz e Tucci, para quem, no caso, haveria sim “[...] a
respectiva equivalência, do ponto de vista do direito, das duas pretensões [...] [dada] a identidade da relação de
direito substancial, que conota o concurso de ações” (CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no
processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 229, grifo do autor),
sustentando, em suma que nem sempre é necessária a absoluta equivalência dos três elementos que compõem a
demanda para que se conclua pela equivalência jurídica das demandas.
300
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 70.
301
Id., op. cit. p. 70-1.
119
Assim, ele cita, primeiramente, o caso da procedência de uma
ação condenatória, cuja sentença impediria o subseqüente aforamento da
declaração de inexistência desse mesmo crédito com fundamento em fatos
havidos anteriormente ao aforamento da anterior demanda tida como
procedente. Segundo ele, a demanda subseqüente esbarraria na coisa julgada
porquanto ela encerraria um “[...] pedido de um resultado que [é] prática e
objetivamente incompatível com o resultado estabelecido no decisum
anterior”
302
.
Na mesma situação, insere o exemplo do impedimento que é
gerado quando acolhida a anulação de um contrato, em relação a um posterior
pedido de sua validade.
Pensamos, porém, que, em ambas as hipóteses, o óbice gerado à
propositura da demanda não decorreria propriamente da incompatibilidade
objetiva e prática entre um e outro dos pedidos, e sim da denominada eficácia
preclusiva da coisa julgada, tal qual preconizado pelo art. 474 do Código de
Processo Civil Brasileiro, e cujos contornos serão adiante tratados.
Podemos, assim, até comungar com a idéia de que, distintos os
pedidos, exija-se, para a incidência da eficácia preclusiva da coisa julga, a
presença do aventado impedimento à realização prática do julgamento anterior.
Mas daí a derivar o óbice da coisa julgada ao dito impedimento objetivo e
prático que o novo pedido estaria a trazer para a realização do anterior julgado,
na pior das hipóteses, nos conduz a uma situação de parcial verdade com
conseqüências lógicas certamente não queridas. Ou, em outros termos: não fosse
a eficácia preclusiva da coisa julgada, o dito impedimento nenhum óbice traria à
propositura da segunda demanda, já que a coisa julgada anterior ficaria adstrita
às questões ali efetivamente deduzidas e decididas (e o que é pior: exigindo-se,
para a operacionalização da coisa julgada, que passássemos a nela integrar os
302
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 70, grifo do
autor.
120
fundamentos do julgado, única forma de se saber se na anterior decisão se
solveu ou não uma dada questão de fato invocada pela defesa como óbice à
procedência da demanda).
A segunda hipótese descrita por Eduardo Talamini é aquela em
que o novo pedido se mostre prejudicado pela decisão anterior, que se coloca em
face daquele como uma prejudicial
303
.
Nessa situação, porém, como o próprio Eduardo Talamini
explica, o que se tem não é propriamente um óbice para que a nova demanda
seja processada e julgada, mas sim, a sua subordinação ao julgado anterior,
como desdobramento da denominada função positiva da coisa julgada, já
tratada alhures
304
.
Nesse sentido, a decisão acobertada pela coisa julgada terá de ser
necessariamente observada, conforme explica Eduardo Talamini, na sentença
subseqüente, envolvendo as mesmas partes, desde que, é claro, a decidida
anteriormente se mostre prejudicial à questão principal que se está a julgar
305
.
Para exemplificar a hipótese, Eduardo talamini cita o caso da
investigação de paternidade que, tida como improcedente, cria óbice à
procedência de posterior demanda alimentícia, que deve ser tida como
improcedente, já que o juiz no novo processo estaria vinculado à negativa
anterior
306
.
Francamente, não é o caso, sendo, o exemplo, impróprio, na
exata medida em que aí não haveria sequer julgamento de mérito, para que se
pudesse aventar de uma ação improcedente, como textualmente afirma Eduardo
Talamini.
A ação de alimentos, a bem da verdade, tem como condição
especial a prova pré-constituída da paternidade, pelo que, ausente essa prova (e
303
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 71.
304
Ibid., p. 70.
305
Id., loc. cit.
306
Id., loc. cit.
121
o filho não a terá, já que a ação investigatória anterior foi tida como
improcedente), seria hipótese de manifesta ilegitimidade de parte. Ou seja, a
nova demanda não seria processada ou tida como improcedente porque a
paternidade foi negada, mas, sim, deixaria de ser admitida por ausência de prova
da paternidade, que, aliás, poderia ser suprida a qualquer tempo, como, por
exemplo, o reconhecimento voluntário do pai, quando a sentença de
improcedência, para os fins colimados (de alimentos) nenhuma prestabilidade
mais teria.
A par desse exemplo cuja impropriedade, a bem da verdade, se
dá por razões que, ao nosso ver, nada tem com a função dita positiva da coisa
julgada ou, mesmo, com a eficácia da coisa julgada, Eduardo Talamini cita um
outro, retratado na improcedência de uma ação declaratória de existência de
crédito sucedida por uma ação proposta pelo mesmo autor em face do mesmo
réu objetivando a sua condenação no pagamento do mesmo crédito
307
.
Pelo fato do pedido condenatório ser mais amplo que a simples
declaração, a ação condenatória teria que ser processada e julgada, respeitando-
se, contudo, a decisão anterior, que se mostraria prejudicial à nova decisão,
projetando-se, aí, a função positiva da coisa julgada
308
.
Ora, o que se têem aí são, justamente, pedidos diversos, e se o
segundo julgado fica subordinado à solução havida no primeiro julgado, isso se
dá com fundamento em aspectos outros da eficácia da coisa julgada, de tal sorte
que a menção da hipótese só tem sentido se for para justamente se alertar que,
aí, não há identidade de pedidos e, por isso mesmo, não há o óbice da coisa
julgada para o processamento da segunda demanda, que, contudo e a despeito
disso, tem a sua solução subordinada à anterior. Tratar-se-ia de verdadeira
exceção ao princípio da identidade do pedido como fonte informadora do
instituto da coisa julgada, onde, a despeito da ausência da identidade do pedido,
307
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 70.
308
Id., loc. cit.
122
ainda assim se extrai conseqüências do julgado anterior, não, porém, para o fim
de se obstaculizar o julgamento da posterior demanda.
É de se lembrar, contudo, que a solução dada por Eduardo
Talamini nesse último exemplo, não seria, em tese, admissível para aqueles que
sustentam que a eficácia da coisa julgada incide não sobre o dispositivo
propriamente da sentença e, sim, sobre o conteúdo declaratório a ele
(dispositivo) imediatamente vinculado. Para estes, por certo, a segunda demanda
estaria completamente inviabilizada por ofensa à coisa julgada havida
309
.
Também, quer nos parecer que, levado ao extremo uma das teses
que o próprio Eduardo Talamini reproduz, no sentido de que a procedência do
pedido subseqüente que seja prática e objetivamente incompatível com o
anterior esbarrará na coisa julgada, a ação, no último exemplo dado, não poderia
ser julgada, não sendo o caso de simples subordinação.
É que, considerando que, conforme todos hoje admitem, não há
ação (ou tutela, como se queira) sem carga declaratória, em maior ou menor
grau presente
310
, quando se se depara com uma ação condenatória cuja
procedência tem como pressuposto o reconhecimento da existência ou
inexistência de um débito, já declarado inexistente, quer nos parecer que há aí,
de fato, o pedido de um resultado objetiva e praticamente incompatível com a
declaração já havida.
309
Ver item 2.1.2.1.2.2.1, supra.
310
Nesse sentido, Pontes de Miranda, dizia categoricamente que “[...] não há qualquer sentença em que não haja
elementos declarativo, constitutivo, condenatório, mandamental e executivo [...]”, assim como que “[...] toda a
sentença favorável declara, pelo menos, que podia ser exercida a pretensão à tutela jurídica, ou o interesse do
autor [...]” (MIRANDA, Pontes de Miranda. Tratado das Ações. Tomo I: ação, classificação e eficácia. Atual.
por Vilson Rodrigues Alves. Campinas: Bookseller, 1998, p. 141). Especificamente sobre a ação condenatória,
ele esclarecia, ainda, que: “A ação somente é condenatória porque preponderantemente o é. Ação condenatória é
a ação predominantemente condenatória. Mais se pede condenar do que declarar, do que executar, do que
constituir, do que mandar. Não se há mister pedir em ação nova, que se declare a relação jurídica a que se
prende a condenação: já se declarou, na sentença, imediatamente” (Ibid., p. 138, grifo nosso). Por isso
mesmo, José Miguel Medina diz que: “Quando se condena, há declaração no sentido de que o condenado deve
realizar, em favor da outra parte, alguma atividade (v.g. pagar, entregar, restituir, fazer), porque esta é a
conseqüência jurídica estabelecida pela norma jurídica para aquele caso” (MEDINA, José Miguel. A sentença
declaratória como título executivo: considerações sobre o art. 475-N, inc. I do CPC. In: HOFFMAN, Paulo;
SILVA, Leonardo Ferres da. (coord.). Processo de execução civil – modificações da Lei 11.232/05. São Paulo:
Quartier Latin, 2006, p. 115, grifo do autor).
123
O que se constata, a bem da verdade, é que os doutrinadores
pátrios, sob um ou outro princípio informativo da coisa julgada, em maior ou
menor grau, têm mitigado a exigência de absoluta identidade entre os pedidos
para se extrair, no todo ou em parte, a eficácia da coisa julgada.
Protagoniza-se, assim, ainda que por vias transversas, verdadeira
expansão dos limites da coisa julgada de tal sorte a fazer com que ela alcance
situações que, segundo os termos clássicos, ela não alcançaria.
Apanhado por Rodolfo de Camargo Mancuso, o fenômeno é
registrado nos seguintes termos:
Verdade que essa absoluta adstringência do julgado ao pedido vem
sendo objeto de uma releitura, ao influxo da proposta de uma
jurisdição integral, que possibilite o aproveitamento máximo do
processo instaurado, por modo que através dele se resolva tanto a lide
– estabilizada ao final da fase postulatória – como também eventuais
outros focos de conflito, que venham ampliar o objeto do processo,
seja por intervenção de terceiros, seja mesmo em virtude de possíveis
acordos judiciais. Neste último caso, o inciso III do art. 475-N
possibilita que a homologação judicial abranja “matéria [antes] não
posta em juízo”
311
.
Na esteira do que diz Rodolfo de Camargo Mancuso, há que se
consignar que, diante da mais recente redação do artigo 475 do Código de
Processo Civil Brasileiro, dada pela Lei 11.232, de 22.12.05
312
, que acabou por
renumerá-lo como artigo 475-N, insinuam-se, de fato, alguns entendimentos
doutrinários que, se firmados, mitigam consideravelmente o princípio da
adstringência do julgado ao pedido e, por via de conseqüência, do próprio
princípio da absoluta identidade dos pedidos das demandas que se confrontam
311
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada: teoria geral das ações coletivas. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 422, grifo do autor.
312
BRASIL. Lei nº 11.232, de 22 de dezembro de 2005. Altera a Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 –
Código de Processo Civil, para estabelecer a fase de cumprimento das sentenças no processo de conhecimento e
revogar dispositivos relativos à execução fundada em título judicial, e dá outras providências. Diário Oficial
[da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 23 dez. 2005. Seção 1, pp. 01-02.
Disponível em:
<http://www.in.gov.br/imprensa/jsp/jsp/jornaiscompletos/jornaiscompletos_leitura.jsp#pesquisa
>. Acesso em 26
janeiro 2007.
124
para os fins da exceção de coisa julgada, restando bastante alargados os limites
da eficácia objetiva da coisa julgada.
É que com o advento da nova lei, tal qual constante no inciso I do
mencionado artigo 475-N do Código de Processo Civil, os títulos executivos
judiciais passaram a ser integrados pela “sentença proferida no processo civil
que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou
pagar quantia”.
Apesar da redação estar empregada em termos positivos, no
sentido de dizer que é título executivo judicial a sentença que reconheça a
existência do direito afirmado, conduzindo-nos a crer que somente as sentenças
de procedência e as não declaratórias (puras) estariam aptas a irradiar efeitos
executórios incidentes sobre o bem da vida almejado, como tradicionalmente
sempre ocorreu em nosso direito, não é isso o que vêm apregoando alguns
doutrinadores.
Primeiramente, como vem sustentando José Miguel Garcia
Medina
313
- no que é circundado por Luiz Rodrigues Wambier
314
e Teresa Arruda
Alvim Wambier
315
- o dispositivo mencionado, ao contrário do que ocorria com
o revogado artigo 584, inciso I, do Código de Processo Civil, não se refere “a
sentença condenatória proferida no processo”, e, por isso mesmo, o novo
dispositivo legal teria emprestado executividade também às sentenças
meramente declaratórias, desde que contenha todos os elementos necessários
da relação obrigacional. Ou, nas suas próprias palavras:
A expressão “reconheça a existência de obrigação”, segundo
entendemos, significa que a sentença deve conter todos os elementos
da relação jurídico obrigacional, identificando, precisamente, partes
313
MEDINA, José Miguel Medina. A sentença declaratória como título executivo: considerações sobre o art.
475-N, inc. I do CPC. In: HOFFMAN, Paulo; SILVA, Leonardo Ferres da. (coord.). Processo de execução civil
– modificações da Lei 11.232/05. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 96-126. WAMBIER, Luiz Rodrigues;
WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Medina. Breves comentários à nova sitemática
processual civil, II: Leis 11.187/2005, 11.232/2005, 11.276/2006, 11.277/2006 e 11.280/2006. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2006, p. 165-6.
314
WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sentença civil: liquidação e cumprimento. 3ª ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pp. 42-4. WAMBIER; WAMBIER; MEDINA, op. cit., p. 165-6.
315
WAMBIER; WAMBIER; MEDINA, op. cit., p. 165-6.
125
credora e devedora, natureza e objeto da obrigação, etc. Não deverá
ser considerada título executivo, por exemplo, a sentença que
reconheça, em tese, a existência de obrigação. P. ex., a sentença que
julgar improcedente mandado de segurança, afirmando,
genericamente, que “deve o contribuinte recolher os tributos à
autoridade fiscal competente”, não é, segundo nosso entendimento,
título executivo.
Caso a sentença declaratória contenha todos os elementos da
obrigação, mas não faça referência ao valor devido, admitir-se-á a
liquidação de tal sentença, tal como ocorre com a liquidação da
sentença condenatória
316
.
Esse entendimento, agora reforçado com a ambigüidade do novo
texto legal, no mais, firma-se em precedente jurisprudencial anterior do Superior
Tribunal de Justiça, o qual, em que pese a antiga redação do Código de Processo
Civil, já entendera que a sentença declaratória que contenha “[...] a definição
integral da norma jurídica individualizadora [..]”
317
- ou, segundo quer Athos
Gusmão Carneiro, “[...] dês que [...] nela [na sentença declaratória] estejam
316
MEDINA, José Miguel Medina. A sentença declaratória como título executivo: considerações sobre o art.
475-N, inc. I do CPC. In: HOFFMAN, Paulo; SILVA, Leonardo Ferres da. (coord.). Processo de execução civil
– modificações da Lei 11.232/05. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 122-23, grifo do autor.
317
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 588.202, da 1ª Turma, Brasília, DF, 10 de
fevereiro de 2004. Disponível em:
<http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?processo=588202&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=1
.>.
Acesso em: 26 jan. 2007. A ementa do precedente é a seguinte: “[...] 1. No atual estágio do sistema do processo
civil brasileiro não há como insistir no dogma de que as sentenças declaratórias jamais têm eficácia executiva. O
art. 4º, parágrafo único, do CPC considera "admissível a ação declaratória ainda que tenha ocorrido a violação do
direito", modificando, assim, o padrão clássico da tutela puramente declaratória, que a tinha como tipicamente
preventiva. Atualmente, portanto, o Código dá ensejo a que a sentença declaratória possa fazer juízo completo a
respeito da existência e do modo de ser da relação jurídica concreta. 2. Tem eficácia executiva a sentença
declaratória que traz definição integral da norma jurídica individualizada. Não há razão alguma, lógica ou
jurídica, para submetê-la, antes da execução, a um segundo juízo de certificação, até porque a nova sentença não
poderia chegar a resultado diferente do da anterior, sob pena de comprometimento da garantia da coisa julgada,
assegurada constitucionalmente. E instaurar um processo de cognição sem oferecer às partes e ao juiz outra
alternativa de resultado que não um, já prefixado, representaria atividade meramente burocrática e desnecessária,
que poderia receber qualquer outro qualificativo, menos o de jurisdicional. 3. A sentença declaratória que, para
fins de compensação tributária, certifica o direito de crédito do contribuinte que recolheu indevidamente o
tributo, contém juízo de certeza e de definição exaustiva a respeito de todos os elementos da relação jurídica
questionada e, como tal, é título executivo para a ação visando à satisfação, em dinheiro, do valor devido. [..]”
(grifos nos original). Além do precedente acima, tinha-se: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de
Divergência no Recurso Especial nº 502.618, da 1ª Seção, Brasília, DF, 08 de junho de 2005. Disponível em:
<http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?processo=502618&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=1
.>.
Acesso em: 26 jan. 2007. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 653181, da 2ª Turma,
Brasília, DF, 24 de agosto de 2004. Disponível em:
<http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?processo=653181&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=1
.>.
Acesso em: 26 jan. 2007.
126
definidos os pressupostos do art. 586 – liquidez, certeza e exigibilidade
318
- é
título executivo.
A prevalecer esse tipo de entendimento, por certo, não há mais
como se sustentar, ao menos diante de sentenças declaratórias que preencham os
requisitos apontados, a sua mera eficácia prejudicial a uma subseqüente ação
condenatória, por exemplo. Haveria, aí, verdadeira exceção de coisa julgada,
inclusive para impedir que o próprio beneficiário da ação aforasse subseqüente
ação condenatória.
Como se não fosse isso o bastante, José Miguel Garcia Medina
sustenta, diante dessa nova redação, que mesmo a ação declaratória de
improcedência passaria, doravante, a gerar título executivo em favor do réu em
face do autor derrotado, bastando que, de uma forma ou de outra, ela (a
sentença) preencha os requisitos acima apontados que lhe emprestariam a
qualidade de executiva nas hipóteses de procedência, ou seja, desde que
reconheça a existência de todos os elementos necessários para a exata
individuação da obrigação.
A respeito, o referido autor diz:
Note-se que o inc. I do art. 475-N do CPC exige, para que se esteja
diante de título executivo, que a sentença reconheça a existência de
obrigação. Não exige a norma jurídica que se esteja diante de sentença
declaratória de procedência, necessariamente. Pode ocorrer, assim,
que seja movida ação declaratória de inexistência de dívida e que o
pedido seja julgado improcedente e, caso a sentença de improcedência
proferida em tal ação reconheça, expressamente a existência da
obrigação, pensamos que, também neste caso, terá se formado o título
executivo
319
.
Aceita essa proposição, quer nos parecer que, aí, a identidade do
318
CARNEIRO, Athos Gusmão. Cumprimento da sentença civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 87.
319
MEDINA, José Miguel Medina. A sentença declaratória como título executivo: considerações sobre o art.
475-N, inc. I do CPC. In: HOFFMAN, Paulo; SILVA, Leonardo Ferres da. (coord.). Processo de execução civil
– modificações da Lei 11.232/05. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 122-23.
127
pedido enquanto elemento identificador da ação para fins de evidenciação da
existência da coisa julgada ou não, simplesmente deixa de existir.
O autor derrotado, afinal, estaria impedido de, por exemplo,
propor uma ação condenatória, assim como o próprio réu vencedor estaria,
também ele, impedido de mover ação condenatória.
Ambos estariam agrilhoados à exceção da coisa julgada e isso
decorreria, inexoravelmente, da eficácia condenatória que se passa a emprestar a
esse tipo de sentença.
Novamente, quer nos parecer que se dá, aí, silenciosamente,
um passo considerável para se situar, doravante, a eficácia da coisa julgada
com a sua imutabilidade característica não mais sobre o dispositivo
propriamente da sentença e, sim, sobre o conteúdo declaratório a ele
(dispositivo) imediatamente vinculado.
(Registre-se, ainda, que a questão pode adquirir um vulto ainda
maior na exata medida em que, levada ao extremo a proposição da
executividade da sentença de improcedência proferida em sede de ação
declaratória, nenhuma razão haveria em se negar eficácia executiva e, portanto,
efeitos condenatórios e/ou mandamentais a qualquer outra sentença de
improcedência, que é declaratória (apenas que negativa) por excelência, a partir
do quê todas as sentenças passariam a ser de natureza dúplice!)
Ada Pellegrini Grinover, não chega a se posicionar acerca da
ação declaratória de improcedência à luz do novo artigo 475-N, I, sustentando,
contudo - e dando a entender que se reporta somente à sentença (declaratória) de
procedência – que a sentença referida nesse novo dispositivo processual não se
confundiria com aquela emanada da ação declaratória estampada no artigo 4º do
Código de Processo Civil Brasileiro, a qual considera inapta para gerar eficácia
condenatória/executiva.
128
Para ela, em suma,
[...] a expressão “sentença proferida no processo civil que reconheça a
existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar
quantia” indica não apenas uma declaração, mas também a
condenação, mantendo-se conseqüentemente a categoria da sentença
condenatória, mandamental ou executiva lato sensu e, a seu lado, a da
declaratória tradicional
320
.
Referindo-se, outrossim, aos precedentes acima citados do
Superior Tribunal de Justiça, emprestando eficácia condenatória à sentença
declaratória, ela diz que simplesmente as considera “[...] condenatórias, e não
meramente declaratórias, apesar do rótulo que for dado à ação”
321
.
Está ela, portanto, a dizer que o que vale é o conteúdo real da
sentença e não a sua nomenclatura. Afinal, assim como uma garrafa que
contenha vinagre não passa a conter vinho só porque o seu rótulo o diz, uma
sentença com conteúdo verdadeiramente condenatória não será declaratória só
porque assim se a nomina
322
.
Parece, portanto, que não é de todo adequado o uso sem ressalvas
que Athos Gusmão Carneiro
323
faz justamente do escrito mencionado de Ada
Pellegrini Grinover para abonar a sua franca adesão à tese da executividade das
sentenças declaratórias à luz da nova redação do dispositivo legal.
320
GRINOVER, Ada Pellegrini. Cumprimento da sentença. In: RENAULT, Sérgio Rebello Tamm; Bottini,
Cruz Pierpaolo. (coord.). A nova execução dos títulos judiciais: comentários à lei nº 11.232/05. São Paulo:
Saraiva, 2006, p. 122-26, grifo do autor.
321
Ibid, p. 125.
322
A alusão é tomada de empréstimo de Eros Roberto Grau, o qual referindo-se à linguagem e aos conceitos
jurídicos, nos diz que: “As palavras – observou Hospers [apud Gordillo 1977:2] – são como rótulos que
colocamos nas coisas, para que possamos falar sobre elas: Qualquer rótulo é conveniente na medida em que nos
ponhamos de acordo com ele e o usemos de maneira conseqüente. A garrafa conterá exatamente a mesma
substância, ainda que coloquemos nela um rótulo distinto, assim como a coisa seria a mesma ainda que
usássemos uma palavra diferente para designá-la”” (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a
interpretação/aplicação do direito. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 208, grifo do autor). Daí porque,
segundo o mesmo Eros Roberto Grau, “Podemos [...] apor rótulos convencionais sobre determinadas garrafas ou
fazê-lo de modo arbitrário. Optando pela segunda alternativa, da sua adoção não resultará alteração alguma no
conteúdo do continente arbitrariamente rotulado. Apenas, se o nosso propósito não for o de instalar, no mínimo,
a confusão, cumpre-nos deixar bem esclarecido aos seus potenciais usuários quais conteúdos encontrarão em
cada uma delas” (Ibid., p. 209).
323
CARNEIRO, Athos Gusmão. Cumprimento da sentença civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 89.
129
Nesse sentido, Ada Pelegrini Grinover estaria muito mais
próxima de Araken de Assis, quando ele sustenta que:
Ao abandonar o adjetivo “condenatório” e empregar a expressão
analítica “que reconheça a existência de obrigação” a tais
pronunciamentos, o art. 475-L, I [na verdade, a referência é ao art.
475-N, I], não inovou substancialmente, mas limitou o campo de
incidência da execução, reservando “cumprimento” aos
pronunciamentos mandamental e executivo. De um lado, os elementos
declaratório e constitutivo não comportam execução, pois já entregam,
por si mesmos, os respectivos bens da vida ao vitorioso (certeza e
estado jurídico novo, respectivamente). Por tal motivo, a 4ª Turma do
STJ sublinhou a inutilidade de executar o provimento declarativo. E o
reconhecimento da existência de obrigação dá um passo adiante da
declaração, condenando o réu. Quando se afirma que há execução
baseada em sentença declaratória – por exemplo, o órgão
judiciário “declarou” que Pedro deve “x” a João -, incorre-se em
erro crasso, olvidando que nenhum provimento é “puro” e, no
exemplo aventado, o juiz foi além da simples declaração, emitindo
pronunciamento condenatório
324
.
E esse nos parece ser, também, o entendimento de Luiz
Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, quando explicam que:
A Lei 11.232/2005, desfigurou o conceito de sentença condenatória,
eliminando-a até mesmo dos incisos que indicavam quais seriam os
títulos executivos judiciais. O art. 475-N, introduzido no CPC pela Lei
11.232/2005, ao elencar os títulos executivos judiciais, substituiu o
antigo inciso que se referia exclusivamente à “sentença condenatória
proferida no processo civil” (art. 584, I) por um inciso que diz ser
título executivo judicial “a sentença proferida no processo civil que
reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa
ou pagar quantia” (art. 475-N, I).
É evidente que uma sentença que “reconhece a existência de
obrigação” somente pode ser qualificada a partir da análise dos meios
de execução que lhe conferem particularidade. Isto porque, à distância
dos meios de execução, tais sentenças têm a mesma natureza, como
teriam a mesma natureza todas as sentenças da classificação trinária
caso não fossem peculiarizadas por determinados critérios de ordem
processual.
As sentenças que não bastam por si, isto é, que precisam ser
implementadas quando não são adimplidas voluntariamente –
obviamente devem ser classificadas com base nas formas executivas
que as particularizam. Apenas as sentenças declaratória e constitutiva,
324
ASSIS, Araken de. Cumprimento da sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 204, grifo em negrito
nosso, demais do autor.
130
por serem sentenças satisfativas, livram-se desse modo de
conceituação
325
.
O que, portanto, estaria a justificar a nova redação dada ao artigo
475-N, I, foi a necessidade, conforme explicam os mesmos autores, de se
adequar o rol dos títulos executivos judiciais à nova metodologia adotada pelo
artigo 461 do Código de Processo Civil que nos conduziu à atipicidade dos
meios de execução
326
.
Porém, esses mesmos autores observam que o artigo 475-J do
Código de Processo Civil, segundo a redação que lhe foi dada pela mesma Lei
11.232, de 22/12/05, não conferiu qualquer autonomia judicial à forma de
execução quando na ação se busca o pagamento de quantia certa. Nesse caso, a
letra da lei é clara ao exigir sentença condenatória, emprestando, no mais, à
sentença condenatória a primordial “[...] função [...] de emprestar a tutela pelo
equivalente em dinheiro ao valor da lesão ou da obrigação inadimplida”
327
. Em
termos literais, eles dizem que:
A sentença condenatória, assim como a tutela pelo equivalente, é
neutra em relação ao direito material e aos casos concretos. E é por
esse motivo que foi limitada a uma única forma de execução,
expressamente tipificada na lei, sem dar ao juiz e ao autor qualquer
poder de adequação à tutela específica do direito material e ao caso
concreto.
Portanto, há uma brutal distinção entre as sentenças, permitindo a
definição de três categorias distintas. As sentenças satisfativas, que
independem de execução, aí presentes as sentenças declaratórias e
constitutiva. As sentenças mandamentais e executiva, caracterizadas
pela necessidade de se dar tutela específica ao direito material e aos
diversos casos concretos, e por isso marcadas por uma ampla latitude
de poder de execução. E a sentença condenatória, voltada à tutela que
se contenta com o pagamento de quantia certa, particularmente à tutela
pelo equivalente ao valor da lesão, a qual se liga à execução por
expropriação, isto é, a única forma de execução direta
325
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 5ª ed.
rev., atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 418-9, grifo do autor.
326
Id., p. 420-2.
327
Id., p. 422.
131
expressamente tipificada na lei, sem dar ao juiz qualquer
possibilidade de ajuste ao caso concreto
328
.
O novo sistema, portanto, não comporta, quanto ao pagamento de
quantia certa, senão a típica execução por expropriação, engendrada, no mais,
pela sentença condenatória.
A atipicidade executiva, desse modo, estaria, ainda doravante,
delimitada às sentenças mandamentais e executivas (em sentido lato), não assim,
porém, à satisfação da obrigação pelo equivalente em dinheiro.
A prevalecer, portanto, o entendimento de Ada Pellegrini
Grinover e de Araken de Assis, assim como, parece-nos, o de Luiz Guilherme
Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart (e que entendemos, por ora, o mais correto),
não há que se falar em executividade de sentença declaratória senão
impropriamente e, ainda assim, se de procedência, já que a executividade de
sentença de improcedência será completamente incompatível com o
entendimento por eles esposado e isso simplesmente porque qualquer sentença
de improcedência será, sempre e só, declaratória negativa
329
, não estando, pelo
nosso sistema, o juiz autorizado a nela emitir pronunciamento de efeito
condenatório, mandamental ou outro equivalente, qualquer que seja ele, senão
em relação aos ônus sucumbenciais
330
ou nas hipóteses de pedido contraposto
(artigo 278, § 1º, do Código de Processo Civil Brasileiro e artigo 31 da Lei nº
9.099, de 26/09/95, que regula os Juizados Especiais), reconvenção (artigo 315
do Código de Processo Civil Brasileiro)
331
ou sentenças dúplices (como as
328
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 5ª ed.
rev., atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 422, grifo em negrito, nosso; demais do autor.
329
É a lição de Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, quando
sustentam que: “A sentença meramente declaratória será positiva ou negativa, consoante declare a existência ou
a inexistência da relação jurídica. Sentenças meramente declaratórias de natureza negativa são também
todas as que rejeitam o pedido do autor (com exceção da ação declaratória negativa, caso em que a rejeição
tem conteúdo declaratório positivo)” (CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini;
DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 17ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2001, p.
303, grifo em negrito, nosso; demais do atuor).
330
ASSIS, Araken de. Cumprimento da sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 204.
331
Se bem que a referência à reconvenção, no caso, pode até ser tida como imprópria, já que ela é verdadeira
ação (Cf. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 5ª
132
possessórias (artigo 922 do Código de Processo Civil Brasileiro) e a
consignatória (artigo 899 do Código de Processo Civil Brasileiro), até porque
“Por razões óbvias, dispensa-se [na contestação] o pedido (já que o réu,
enquanto réu, não o faz, mas apenas se defende) [...]”
332
.
É certo que é cedo ainda para que se saiba quais serão,
exatamente, os contornos que prevalecerão na interpretação do artigo em
questão. Não é menos certo, porém, que, a prevalecerem as interpretações que
apontam para a executividade da sentença pronunciada em ação declaratória,
inclusive quando de improcedência, extraindo dela inclusive efeito condenatório
incidente sobre o bem da vida discutido, nos obrigarão a uma profunda
revisão de alguns dos cânones que informam a teoria da coisa julgada entre
nós, particularmente no que tange aos seus limites objetivos e, quiçá,
quanto ao objeto da imutabilidade que lhe é próprio
333
.
ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 151-2.) e a condenação na sentença, aí, não se
dá propriamente em decorrência da improcedência da ação manejada pelo autor e, sim, em função da
procedência da ação proposta pelo réu, que apenas é decidida na própria sentença, mas que em capítulo próprio,
por força do artigo 318 do Código de Processo Civil Brasileiro.
332
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 5ª ed.
rev., atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 142.
333
De fato, só a guisa de exemplo, vale lembrar, com Eduardo Talamini, que quanto aos limites objetivos da
coisa julgada, vistos sob a ótica da causa de pedir, “Merece atenção [...] a diferença que há entre causa de pedir
nas ações declaratórias positivas (“puras” ou acompanhadas de eficácia condenatória, executiva, mandamental
ou constitutiva positiva) e na causa de pedir nas ações declaratórias negativas e desconstitutivas. Quando se pede
a declaração de existência de um direito, estão abrangidos, nos limites do fundamento apresentado, todos os fatos
que possam conduzir à contestação de inexistência, extinção, modificação ou impedimento desse direito. Nesse
âmbito, tem-se uma causa de pedir abrangente, pois para que haja o julgamento de improcedência, pressupõe-se
o afastamento de todo e qualquer motivo que possa conduzir à inexistência, invalidade ou ineficácia do direito.
Já nas ações desconstitutivas e declaratórias negativas (declaração de inexistência, de nulidade, de ineficácia
etc.), a causa de pedir limita-se ao fundamento fático-jurídico coerentemente apresentado para obter o
reconhecimento da inexistência (ou nulidade, ou ineficácia etc.) ou a invalidação do direito do adversário.
Exemplificando: a ação em que se pede a declaração de validade de um contrato, abrange, no âmbito de sua
causa de pedir, a exclusão de todo e qualquer motivo de inexistência, nulidade, anulabilidade, extinção etc. de tal
negócio jurídico. Nesse caso, pelas regras dos arts. 300, 303, e 474 [do CPC], o réu terá o ônus de apresentar
todas essas defesas oportunamente, sob pena de não poder fazê-lo depois. Já quando a ação tem por objeto a
invalidação ou declaração de inexistência desse mesmo contrato, cada possível fundamento da inexistência ou
invalidade constitui uma específica causa de pedir. Se algum deles não for veiculado na ação, poderá ser
formulado mediante outra demanda, pois a sentença só fará coisa julgada em relação às causas de pedir que
foram postas. [Quanto às ações declaratórias negativas, puras ou não, e às desconstitutivas] impõe-se considerar
o princípio geral estabelecido no direito brasileiro segundo o qual a configuração da causa de pedir depende
sempre da narração de fatos específicos pelo autor. Cada fundamento fático-jurídico que possa implicar a
inexistência de um direito, situação ou relação jurídica constitui um causa petendi para a ação declaratória
negativa. A inexistência pode decorrer de inúmeros e diversos fatos extintivos, impeditivos ou constitutivos. São
diferentes, assim, a ação de declaração de inexistência de um débito por ocorrência de pagamento e aquela que
se funda em prescrição ou ainda a que tem por base a inexistência ou nulidade do fato que o constitui (e ainda,
nesse particular, haverá diferentes pretensões conforme os diferentes fatos acarretadores da nulidade ou
133
2.2.5.1.2 A Causa de Pedir
Diz Sérgio Gilberto Porto que
[...] a causa de pedir tem por finalidade pragmática permitir a perfeita
individualização da demanda e a identificação do pedido. No
momento em que contribui para individualizar a demanda, em
verdade, também contribui para definir os contornos do instituto da
coisa julgada, vale dizer: a compreensão do conteúdo e do significado
de causa petendi importa na definição clara dos limites causais da
demanda e, por decorrência, dos limites essenciais da decisão [e] da
coisa julgada
334
.
Na determinação doutrinária do conteúdo, outrossim, da causa de
pedir, historicamente, duas teorias de maior vulto têm se enfrentado: a da
individualização e a da substanciação
335
.
Historicamente, tal qual indica José Rogérigo Cruz e Tucci,
ambas as teorias proviriam das fontes romanas ou, ao menos, a partir delas
foram desenvolvidas, sendo elas: a) a da tríplice identidade (pessoas, causa de
pedir e pedido); e b) a da identidade da relação jurídica, desenvolvida por
inexistência). [...] um direito, relação ou situação jurídica obviamente não pode não existir várias vezes ao
mesmo tempo: sua inexistência será única – o que não impede, todavia, que coexistam diversos fundamentos em
tese aptos a implicar a inexistência, de um modo que um pode ser procedente se o outro não for. Surge daí uma
pluralidade de possíveis demandas. Quando se rejeita a ação anulatória, não se declara a validade do ato: apenas
se declara não haver o direito à invalidação pelo fundamento apresentado. Do mesmo modo, quando se julga
improcedente a ação declaratória negativa, não se declara que o direito, relação ou situação jurídica negado pelo
autor existe: apenas se nega o seu direito a declaração negativa que pretendeu” (TALAMINI, Eduardo. Coisa
julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 76, grifo do autor). Registre-se que as
considerações do autor, conforme teremos oportunidade de detalhar adiante, fincam-se no fato de que, quanto à
causa de pedir, como um dos elementos identificadores da ação, o nosso direito positivo acolheu a denominada
teoria da substanciação, em contraponto a teoria da individualização, o que nos permite afirmar que a tentativa
de emprestar eficácia executiva à sentença de improcedência, sem dúvida alguma, representa mais uma tentativa,
consciente ou inconsciente, de se resgatar, entre nós, a teoria da individualização - ainda que, talvez, atenuada
pela distinção entre os denominados direitos auto e heterodeterminados - a partir de uma interpretação
notoriamente assistemática, eis que assentada em uma dúbia passagem de um dado dispositivo legal que nos
conduziria ao aniquilamento (interpretação aniquilante) de vários outros dispositivos não revogados e que nos
apontam uma interpretação, segundo um contexto sistemático, bem diverso.
334
PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada Civil. 3ª ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2006, p. 33, grifo do autor.
335
CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001, passim.
134
Friederich Karl von Savigny, a partir da entrada em vigor do ZPO alemão, em
1879
336
.
O fato é que, a despeito da seção histórica do direito romano em
três grandes períodos (o da legis actiones, o per formulas e o da
extraordinaria cognitio), os quais, ademais, muito mais do que se sucederem
uns aos outros, muitas vezes se coexistiram
337
,
[...] durante toda a evolução do direito romano, a noção de causa
petendi ou causa actionis foi utilizada, na maioria das vezes, para
identicar duas res in iudicium deductae que, embora tivessem as
mesmas partes e o mesmo petitum, contrastavam-se por encerrarem
fundamentos diferentes, ou ainda, em hipóteses mais freqüentes,
relacionadas com a praxe forense, nas quais os jurisconsultos
procuravam encontrar um critério para verificar se, em duas ações
entre as mesmas pessoas, a causa era idêntica, ou se, na demanda
posterior havia sido deduzida uma nova causa
338
.
Nesse esforço, os romanos conceberam a tria eadem, ou o
critério da tríplice identidade, a partir do qual ter-se-ia identidade de causas e,
portanto, o óbice da coisa julgada, quando duas demandas contivessem as
mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido, critério esse que,
segundo José Rogério Cruz e Tucci, teria contado com precisa indicação do
jurisconsulto Neracio já no período formulário, dizendo que “Quando se
investiga se há eadem res, deve ser considerado o seguinte: personae, id ipsum
de quo agitur (o mesmo pelo qual se age), causa próxima actionis [...]”
339
.
O desenvolvimento do critério da tríplice identidade, no que
tange especificamente à causa de pedir, levou com que os romanos, outrossim,
distinguissem os seus pressupostos quando se tratasse de ações de natureza
pessoal e quando se tratasse de ações reais
340
.
336
CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001, p. 26, 59, 78-83, 88-92.
337
Ibid., p. 30. PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. História do direito processual brasileiro: das origens lusas à
escola crítica do processo. Barueri: Manole, 2002, p. 32-88
338
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 30, grifo do autor.
339
D. 44.2.27, libro VII membranarum apud CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 40, grifo do autor.
340
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 40-3.
135
Assim, o jurisconsulto Paulo, dizia que
[...] as ações pessoais distinguem-se das reais: quando a mesma coisa
me é devida por uma determinada pessoa, cada uma das causas segue
cada uma das obrigações (“singulas obligationes singulae causae
sequuntur”), e nenhuma delas é viciada pela demanda concernente à
outra
341
.
Portanto, nas ações de direito pessoal “[...] o autor tinha o ônus
de precisar a causa obligationes, pela qual se individualizava a causa actionis
[...]”
342
e isso simplesmente porque, nessa modalidade de direito “[...] a mesma
prestação podia ser devida em razão de relações obrigacionais distintas, cada
uma suscetível de ser questionada autonomamente”
343
.
Contrariamente, o mesmo Paulo dizia que, em se tratando de
ações reais, caso ela (a ação)
[...] fosse deduzida sem que o autor tivesse expressado a causa pela
qual a coisa lhe pertencia, todas as causas possíveis de aquisição
estavam implicitamente compreendidas na demanda, porque uma
coisa não pode ser da mesma pessoa por mais de um título
344
.
Desse modo,
Bastava [...] que o demandante precisasse na intentio da actio in rem o
quanto fosse necessário para a concreta identificação da pretensão
deduzida em juízo, ou seja, a afirmação da titularidade de um
direito real com objeto e conteúdo especificamente determinados,
qualquer que fosse a causa de aquisição
345
.
O exemplo reproduzido por José Rogério Cruz e Tucci, tomado
de empréstimo do jurisconsulto Ulpiano, é, nesse sentido, esclarecedor:
Se, porventura, o demandante imaginava ser proprietário ex causa
hereditária, depois de vencido, passasse a acreditar que o seu
domínio derivava ex causa donationis, não lhe era facultado ajuizar
uma segunda ação, uma vez que sua pretensão de proprietário,
341
D. 44.2.14.2, libro LXX ad edictum apud CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil.
2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 41, grifo do autor.
342
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 41, grifo do autor.
343
Id., loc. cit., grifo nosso.
344
D. 44.2.14.2, libro LXX ad edictum apud CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 41, grifo do autor.
345
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 41, grifo em negrito nosso; demais do autor.
136
qualquer que tenha sido o fundamento, é que fora deduzida como
objeto da primeira rei vindicatio
346
.
É de se notar, contudo, a partir da própria passagem acima citada
de Paulo, quando se refere à causa de pedir nas ações reais, que no sistema
romano era perfeitamente possível delimitar a causa de pedir nas ações reais,
vinculando-a a um fato/causa específica, hipótese em que a repetição da
ação seria perfeitamente admissível, desde que fundada em causa diversa,
quando, então, sofreria o mesmo tratamento dispensado às causas
chamadas pessoais. É a lição de José Rogério Cruz e Tucci:
Infere-se [...], porém, da orientação seguida pelos jurisconsultos
clássicos, que o autor poderia limitar a preclusão decorrente da litis
contestatio, e, portanto, da sentença, ao especificar, de modo
minudente, a causa petendi na fórmula, de sorte que, em momento
posterior, pudesse agir alegando um diverso título de aquisição: agere
expressa causa ou adiecta causa
347
.
Além do autor, também “O réu [...] poderia deduzir uma
exceptio, com o intuito de delimitar o âmbito do objeto da actio in rem, e com
isso restringir a cognitio judicial a uma determinada causa actionis
348
.
O resgate histórico das premissas que informavam a causa de
pedir no direito romano se mostra de significativa relevância, quando se aborda
a matéria no presente, na exata medida em que foi a partir dessa distinção entre a
causa de pedir nas ações reais e pessoais que se intuiu, já com o jurisconsulto
Neracio, a distinção entre causa petendi remota e causa petendi próxima
349
e
que “[..] serviria para lastrear, séculos depois, uma séria e interminável polêmica
da dogmática moderna, cuja repercussão passou do campo teórico para o terreno
da práxis
350
.
346
CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001, p. 42, grifo do autor.
347
Id., loc. cit., grifo do autor.
348
Id., loc. cit., grifo do autor.
349
D. 44.2.27, libro VII membranarum apud CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 58.
350
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 59, grifo do autor
137
Ou seja, foi a partir dessas premissas históricas que, em 1879,
com a entrada em vigor do ZPO alemão - e, particularmente, a partir da
expressão “fundamento da pretensão deduzida”, constante em sua exposição de
motivos, assim como da redação do seu § 230, que aludia à necessidade da
inicial indicar com precisão tanto o objeto da demanda quanto o fundamento
da pretensão, além, é claro, do pedido
351
-, os especialistas passaram a entender
“[...] que a regra da eventualidade [na qual se lastreavam os substancialistas]
havia sido relegada a plano secundário”
352
.
A doutrina, então, bifurcou-se em torno da matéria e, até hoje,
assim se encontra delimitada. Firmou-se,
De um lado, a denominada teoria da individualização, pela qual se
entende suficiente, para a fundamentação da demanda, apenas a
especificação da relação jurídica (causa petendi proxima) sobre a
qual se escuda a pretensão; de outro, a chamada teoria da
substanciação, segundo a qual a fundamentação da demanda
corresponde essencialmente ao conjunto de fatos constitutivos e o fato
contrário ao direito (causa petendi remota) que justificam a
pretensão do autor contida em sua afirmação
353
.
Registre-se, outrossim, que os adeptos alemães da
individualização, tal qual professavam os romanos, nas ações lastreadas em
relações obrigacionais, ou seja, de natureza pessoal, continuaram exigindo a
indicação do fato constitutivo do direito, só o dispensando quanto às ações de
conteúdo real
354
.
Por outro lado, quanto à repercussão dessas teorias sobre a coisa
julgada especificamente, José Rogério Cruz e Tucci diz que,
Embora a doutrina alemã estivesse preocupada em desvendar o
conteúdo necessário do libelo, o problema era bem mais profundo,
351
CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001, p. 90.
352
Id., loc. cit..
353
Ibid, p. 59, grifo do autor.
354
Ibid., p. 91.
138
projetando seus reflexos à questão da modificação da demanda e dos
limites objetivos da coisa julgada
355
.
Explicando a repercussão de cada umas das teorias sobre a
limitação objetiva da coisa julgada, Ernesto Heinitz detalha que:
[...] para a teoria da individuação a passagem de um título de
aquisição a outro não constituiria modificação da demanda e,
conseqüentemente, a coisa julgada cobriria todos os possíveis títulos
de aquisição, enquanto para a da substanciação a solução seria
exatamente a oposta [...]
356
.
É fato, também, que, para os adeptos alemães da substanciação, a
natureza da ação aforada nenhuma relevância teria para a determinação dos
contornos da causa de pedir, devendo-se, em qualquer hipótese, fazer “[...] a
precisa indicação, na petição inicial, da causa petenti remota e da causa
petenti proxima [...]”
357
.
Por outro lado, como interpolado acima, os então adeptos da
substanciação “[...] partiam da idéia de que a demanda judicial deveria ser
iniciada contendo toda a matéria litigiosa”
358
, concepção essa que “[...] tinha
como fonte inspiradora os postulados do denominado princípio da
eventualidade (Eventualmaxime), que havia informado o antigo processo
alemão”
359
e cuja essência teórica
[...] encontra-se na realização cumulada, em um único momento, de
atividades processuais de diversa natureza: toda a matéria de ataque e
355
CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001, p. 91.
356
HEINITZ, Ernesto. Considerazioni attuali sui limiti oggetivi del giudicato. Giurisprudenza italiana, [S.I.:
s.n.], I, p. 147, 1955 apud CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 91.
357
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 88, grifo do autor.
358
Id., loc. cit.
359
Ibid., p. 89, grifo do autor.
139
todas as exceções, processuais e substanciais, e a indicação dos meios
de prova dever ser formulados de uma só vez, sob pena de
preclusão
360
.
Volvendo-nos especificamente ao nosso vigente sistema
processual, pode-se, com tranqüilidade, afirmar que é a partir dessas mesmas
premissas teóricas que caminhamos, repercutindo, até hoje, a discussão das duas
correntes que há mais de século se insinuou e se expandiu a partir da Alemanha.
Com efeito, sendo “[...] da tradição do processo brasileiro a
adoção da regra da eventualidade, impondo aos demandantes o dever de propor,
em um mesmo momento, todos os meios de ataque e de defesa”
361
, sob pena de
preclusão, o que é bem demonstrado a partir das regras repercutidas pelos
artigos 294, 321, 264, 517 e 474 do Código de Processo Civil, a maior parte da
doutrina processual pátria, já na vigência do Código de Processo Civil de 1939,
que reproduzia regras equivalentes nos seus artigos 158, 180 e 181, se firmou no
sentido de advogar a adoção, pelo nosso sistema, quanto à causa de pedir, da
teoria da substanciação
362
.
Tudo isso, como afirma José Rogério Cruz e Tucci,
[...] significa que a regra da eventualidade, impondo um sistema rígido
de preclusões, constitui [...] pressuposto da teoria da
substanciação, ao exigir a exposição simultânea, na petição inicial,
dos fatos que fazem emergir a pretensão do demandante (causa
petendi remota) e do enquadramento da situação concreta, narrada in
status assertationis, à previsão abstrata, contida no ordenamento de
direito positivo, e do qual decorre a juridicidade daquela (causa
petendi próxima).
Compreende-se, destarte, o determinismo imanente pelo qual,
historicamente, os ordenamentos caracterizados por tal sistema
preclusivo sempre adotaram um modelo processual polarizado mais
sobre o fato do que sobre o direito, levando, por isso, a idéia de
“substanciação” às últimas conseqüências
363
.
360
CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001, p. 89.
361
Ibid., p. 148.
362
Ibid., p. 148-51.
363
Ibid., p. 151, grifo do autor.
140
Nessa senda, perfilhando declaradamente a adesão do nosso
vigente sistema processual a tese substancialista sem quaisquer ressalvas,
podemos citar, entre outros, Pontes de Miranda
364
, Araken de Assis
365
, Moacyr
Amaral Santos
366
, José Frederico Marques
367
, José Manoel Arruda Alvim
Netto
368
, Humberto Theodoro Júnior
369
, José Joaquim Calmon de Passos
370
,
Wellington Moreira Pimentel
371
, Cândido Rangel Dinamarco
372
e Eduardo
Talamini
373
.
Para todos eles, além, é claro, do próprio sistema preclusivo
adotado pelo Código de Processo Civil Brasileiro, sempre se referindo a fatos, a
adoção da teoria substancialista emanaria cristalino do que dispõe o artigo 282,
inciso III, do Código de Processo Civil Brasileiro, no sentido de que o autor
deve indicar na petição inicial “o fato e os fundamentos jurídicos do pedido”.
É o que didática e ilustrativamente diz José Joaquim Calmon de Passos:
O art. 282, III, exigindo como requisito da inicial a indicação dos fatos
e dos fundamentos jurídicos do pedido, põe o nosso sistema entre os
que reclamam a substanciação da causa de pedir, aliás como já o fazia
o Código de 1939, dispondo em igual sentido no seu art. 158
374
.
364
MIRANDA, Pontes de. Comentários ao código de processo civil. t. IV: arts. 282 a 443. 3ª ed. rev. e aum.
Atualização legislativa de Sérgio Bermudes. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 17.
365
ASSIS, Araken de. Cumulação de Ações. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 117.
366
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. V. 1. 19ª ed. São Paulo: Saraiva,
1997, p. 164.
367
MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. V. 1. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 1983, p.
180.
368
NETTO. José Manoel Arruda Alvim. Manual de direito processual civil. V. 1. 6ª ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1997, p. 416.
369
JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de direito processual civil. V. I: teoria geral do direito processual
civil e processo de conhecimento. 18ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 354.
370
PIMENTEL, Wellington Moreira. Comentários ao código de processo civil. V. III: arts. 270 a 331 e 444 a
475. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979, p. 157.
371
PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários ao código de processo civil. V. III: arts. 270 a 331. 8ª ed.
Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 160
372
DINAMARCO. Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. V. II. São Paulo: Malheiros, 2001,
pp. 127-8.
373
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 73-5.
374
PASSOS, op. cit., p. 160.
141
Apesar, porém, da harmonia com que, segundo Araken de
Assis
375
, reinaria, em nosso sistema, a teoria da substanciação, é fato que
algumas vozes consideráveis têm disso discordado.
Assim, por exemplo, José Rogério Cruz e Tucci
376
, considera que
esses entendimentos seriam parciais, na exata medida em que se apegariam
exclusivamente à letra do artigo 282, III, do Código de Processo Civil,
reconhecendo, porém, que, tradicionalmente, apenas dois juristas pátrios se
colocaram criticamente em face da propagada adesão do nosso sistema
processual à teoria da substanciação, quais sejam: José Ignácio Botelho de
Mesquita e Ovídio Araújo Baptista da Silva.
Para ambos esses autores, o nosso sistema processual teria
adotado, em suma, uma posição intermediária entre as duas teorias,
consubstanciando um tertius genus.
Assim, para José Ignácio Botelho de Mesquita, na medida em
que o artigo 282, III, do Código de Processo Civil, exige, para além da indicação
dos fatos constitutivos, também os fundamentos jurídicos do pedido, o que
deve ser entendido, segundo ele, por “[...] relação jurídica controvertida e o
direito particular dela decorrente [...]”
377
, não haveria como se concluir pela
adesão do nosso sistema processual a qualquer uma das duas teorias
beligerantes. Muito ao contrário disso, para ele, o nosso sistema processual teria
adotado um meio termo entre elas,
[...] dando importância tanto aos fatos constitutivos, como aos
elementos de direito, na medida em que sirvam para individuar a
375
ASSIS, Araken de. Cumulação de Ações. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 117.
376
CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001, p. 146.
377
MESQUITA, José Ignácio Botelho de. A causa petendi nas ações reivindicatórias. Revista de direito
processual, [S.I.: s.n.], nº 06, [?] 1967, p. 197 apud CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 147. Registre-se que apesar de
José Ignácio Botelho de Mesquita haver externado essa opinião ainda sob a égide do Código de Processo Civil
Brasileiro de 1939, já na vigência do atual Código de Processo Civil, teve a oportunidade de voltar a se
manifestar sobre a matéria em parecer por ele emitido diante de um caso concreto, quando voltou a repetir a
mesma opinião, demonstrando, com isso, que continuou a ter o mesmo entendimento, a despeito da reforma
legislativa havida. Pertinente, nesse ulterior escrito, a seguinte passagem: “Elevado à condição de requisito
necessário da inicial tanto a indicação dos fatos como do fundamento jurídico do pedido (CPC, art. 282, III),
adotou o legislador brasileiro posição equilibrada, evitando os excessos condenáveis nos extremos de ambas as
posições” (Id. Conteúdo da causa de pedir. Revista dos Tribunais, São Paulo, nº 564, p. 40-51, out. 1982).
142
pretensão do autor, como resulta da expressão legal ‘de maneira que o
réu possa preparar a sua defesa’, empregada no inc. III, do art. 158, do
CPC
378
.
Deve-se consignar que, conforme nos é indicado por José
Rogério Cruz e Tucci
379
, no desenvolvimento da sua tese, José Ignácio Botelho
de Mesquita, a bem da verdade, fazia repercutir entre nós o pensamento de
Ernesto Heinitz
380
, por ele declaradamente abraçado e sintetizado nos seguintes
termos:
a) Sobre a matéria de fato, seu pensamento situa-se no mesmo plano
de Chiovenda, com a diferença de que a enunciação de Heinitz parece
mais ampla. Enquanto Chiovenda diz taxativamente que o complexo
de fatos se limita à afirmação do fato particular que no âmbito da
relação jurídica dá origem ao direito particular argüido pelo autor e à
afirmação do fato de que decorre o interesse de agir, Heinitz afirma
que os fatos se incluem na causa petendi na medida em que servem
para individuar a razão feita valer. A vantagem deste sobre aquele me
parece estar em que a definição de Heinitz é suficientemente larga
para abranger todos os casos em que (além dos fatos enumerados por
Chiovenda) o fato constitutivo seja necessário à individuação da razão
do autor, sem que, com isto, incorra em falta de coerência, como me
parece acontecer relativamente a Chiovenda. Fatos relevantes por
excelência, para Heinitz, seriam: os fatos constitutivos nas ações em
que se discuta em torno a uma relação jurídica de direito material
particular de natureza relativa, assim entendidos os que podem existir
diversas vezes com o mesmo objeto, e os fatos desta mesma categoria
(constitutivos), nas denominadas ações constitutivas [...].
b) Quanto à relação jurídica afirmada pelo autor em prol de sua
pretensão, Heinitz mostra que ela é relevante quando tal relação é o
próprio objeto da disputa, mas não basta à individualização da razão
feita valer, quando o autor pretenda o reconhecimento de um direito
particular derivado daquela relação. E não basta porque da mesma
relação jurídica podem derivar direitos concorrentes, tendentes à
satisfação do mesmo escopo econômico, dando origem a duas ações
diversas que devem ser distintas entre si ...
c) No que tange ao direito particular feito valer pelo autor (´diritti
singolo´), sua inclusão na causa petendi é necessária. Desde o
momento em que se concluiu com Heinitz que a cada direito
corresponde uma pretensão processual, é de grande relevância
378
MESQUITA, José Ignácio Botelho de. A causa petendi nas ações reivindicatórias. Revista de direito
processual, [S.I.: s.n.], nº 06, [?] 1967, p. 197 apud CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no
processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 146.
379
CRUZ E TUCCI, op. cit., 147.
380
HEINITZ, Ernesto. Considerazioni attuali sui limiti oggetivi del giudicato. Giurisprudenza italiana, [S.I.:
s.n.], I, 1955 apud CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 112, grifo do autor.
143
determinar precisamente qual o direito que o autor pretende fazer
valer, pois a coisa julgada se estenderá somente a ele.
d) O nomen iuris, a qualificação jurídica da relação apresentada pelo
autor, que Zanzucchi considera como simples ponto de vista sem
relação alguma com o conteúdo da causa petendi, pode ter também
sua importância, embora na maioria dos casos seja irrelevante. Tal se
verifica quando se trate de uma relação obrigacional cuja definição
jurídica seja controversa e a indicação técnica da relação controvertida
não se limite a uma descrição, mas contenha especificamente aquela
afirmação do direito do autor que forma objeto da lide; caso este em
que é vedado ao juiz, como à parte, substituir tal relação por outra,
ainda que fiquem inalterados o petitum e o fato constitutivo.
e) As deduções jurídicas são irrelevantes e podem ser alteradas
livremente, distinguindo-se das afirmações indispensáveis para
individualizar a richiesta feita pelo autor, em que aquelas servem
apenas para motivá-la, não para individuá-la; procuram tão-somente
estabelecer um nexo entre a fattispecie da lei e a sua conseqüência
jurídica
381
.
Daí porque José Rogério Cruz e Tucci, reportando-se a Milton
Paulo de Carvalho
382
, que, entre nós, igualmente subscreve a tese de José Ignácio
Botelho de Mesquita, dizer que a tese de Ernesto Heinitz
[...] corresponderia a uma fusão das teorias da substanciação e da
individualização, uma vez que o conteúdo da causa de pedir enfeixaria
não apenas os fatos constitutivos do efeito pleiteado, bem como a
indicação da procedência jurídica daquele efeito, em razão daqueles
fatos
383
.
O fato é que, a bem da verdade, a tese de Ernesto Heinitz, ao
conceber a fusão de ambas as teorias, nada mais buscava do que solucionar o
impasse em que a teoria da individualização se via diante daqueles direitos que,
não sendo absolutos, podiam existir várias vezes sobre a mesma coisa, hipótese
em que o fato constitutivo seria indispensável para precisar a causa de pedir
384
.
A premissa da tese, portanto, era a de que, em relação ao direito
de propriedade, assim como em relação a outros direitos absolutos (relações de
381
MESQUITA, José Ignácio Botelho de. A causa petendi nas ações reivindicatórias. Revista de direito
processual, [S.I.: s.n.], nº 06, p. 197, [?] 1967 apud CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no
processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 112-3, grifo do autor.
382
CARVALHO, Milton Paulo de. Do pedido no processo civil. Porto Alegre: Sérgio Frabris-FIEO, 1992, p.
85 apud CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 113-4.
383
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 114.
384
Id., loc. cit.
144
direito real (de propriedade e de uso e gozo de bens), as de direito de família e as
de estado da pessoa, assim como as que digam respeito a direitos da
personalidade, entre outros), a causa de pedir seria identificada pela sua própria
estrutura e típica qualificação jurídica, sendo absolutamente dispensável o fato
constitutivo. A relação jurídica alegada era o quanto bastava.
De certa forma, portanto, a tese representa um retorno às
premissas já presentes no direito romano, que, como já apontado acima,
extremavam os requisitos da causa de pedir em se tratando, de um lado, dos
direitos reais, e, de outro, dos direitos obrigacionais.
Nesse sentido, diz José Rogério Cruz e Tucci que Ernesto Heinitz
comungaria com Emilio Betti e, com ele, aduzia,
[...] em abono da teoria da individualização, que, na hipótese de a ação
versar sobre direito de propriedade ou sobre outros direitos absolutos,
“identificáveis pela sua própria estrutura”, o fato constitutivo do
direito não integra a causa petendi, embora [...] o mesmo não se
deva dizer com relação aos direitos que possam existir várias vezes
sobre a mesma coisa. Nesse caso, a coisa material é indispensável para
individuar a demanda, “mas deve ser agregado o fato constitutivo”
385
.
A distinção da causa de pedir conforme diga respeito a direitos
absolutos ou relativos, conforme aponta Eduardo Talamini
386
, é, até hoje,
tradicional na doutrina e na jurisprudência italianas, cunhando-se as expressões
direitos heterodeterminados em contraponto aos direitos autodeterminados
para se designar, respectivamente, aqueles direitos ditos relativos (“[...] aqueles
que podem existir simultaneamente várias vezes com o mesmo conteúdo e entre
os mesmos sujeitos.”
387
) e aqueles outros ditos absolutos (aqueles “[...] que num
dado momento podem subsistir uma única vez com o mesmo conteúdo e entre as
mesmas partes”
388
).
385
CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001, p. 114, grifo do autor.
386
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 73-4.
387
Ibid., p. 73.
388
Id., loc. cit.
145
Explicando a partir de exemplos concretos as repercussões
práticas que a aplicação dessa teoria teria sobre os limites objetivos da coisa
julgada, Eduardo Talamini explana que:
[...] pode haver entre as mesmas partes, num mesmo momento,várias
relações de crédito pecuniário de um mesmo valor, por diferentes
fundamentos (um ou vários mútuos, compra e venda, locação etc.).
Mas ninguém se poderá pretender, num dado momento e
simultaneamente, várias vezes proprietário de um mesmo bem. Em
face dessa pretensa distinção, afirma-se que, na primeira hipótese, a
causa de pedir é integrada também pelo fato constitutivo do direito, ao
passo que, na segunda, cinge-se ao próprio conteúdo do direito –
sendo irrelevante para a sua identificação o fato constitutivo do
direito. Dentro dessa concepção, como causa de pedir da ação
reivindicatória, basta a afirmação de que se é o proprietário. O autor
não fica atrelado a um específico fato constitutivo da propriedade,
estando dispensado de alegá-lo na inicial e podendo alegar ora um, ora
outro, no curso do processo – sem que isso viole a estabilidade da
demanda. Em contrapartida, sendo ele derrotado, se viesse a propor
nova ação contra o mesmo réu afirmando-se proprietário do mesmo
bem em época já abrangida pelo processo anterior, haveria coisa
julgada, mesmo se no novo processo ele invocasse um título aquisitivo
absolutamente distinto daquele(s) alegado(s) no processo anterior. Já,
por exemplo, na ação de cobrança, a causa de pedir é identificada pelo
específico fato constitutivo de crédito, de modo que a cada invocação
de um diferente fato constitutivo corresponde uma nova causa de
pedir, alheia aos limites da coisa julgada anterior
389
.
Essa distinção, conforme aponta Eduardo Talamini, não
prevalece no direito brasileiro, onde mesmo em se tratando de direitos absolutos,
“[...] a causa de pedir deve constituir-se pela exposição do(s) fato(s) de que se
origina o direito”
390
. Desse modo, na ação reivindicatória, “[...] mudança do
título aquisitivo invocado implica nova causa de pedir, não atingida pela coisa
julgada no processo anterior”
391
.
389
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 73-4, grifo
do autor.
390
Ibid., p. 74. De modo bem diverso pensa Jônatas Luiz Moreira de Paula, para quem a teoria da substanciação,
no processo civil, teria aplicação, “[...] preferencialmente nas demandas que envolvem questões de direito
pessoal”, ao passo que a teoria da individualização, a despeito da sua aplicação mais restrita, incidiria “[...] na
ações reais, executivas strictu sensu, acidente de trabalho e nas ações cautelares” (PAULA, Jônatas Luiz
Moreira de. Teoria geral do processo. 3ª ed. Barueri: Manole, [2002 a 2003], p. 116-7, grifo do autor).
391
Ibid., p. 74-5.
146
Em termos práticos, Eduardo Talamini observa que essa
orientação não seria só mais vantajosa ao autor, como num primeiro momento
poderia transparecer.
Ela inclusive visa a permitir a adequada formulação de defesa pelo
réu, que não tem de se defender tomando em conta todo e qualquer
hipotético título aquisitivo, mas apenas aquele afirmado pelo autor na
petição inicial
392
.
Em suma, para Eduardo Talamini, a teoria dos direitos
autodeterminados tem sua falha na medida em que, se por uma lado, é certo que
não se concebe que alguém seja proprietário, simultaneamente, de um mesmo
bem, não é menos certo que
[...] são concebíveis fundamentos para a propriedade independentes e
simultâneos de um modo tal que, se um não for procedente, outro
pode ser (ex.: aquisição mediante inscrição imobilária, usucapião e
sucessão). Portanto, a coisa julgada da sentença de improcedência da
ação sobre o direito absoluto não impedirá outra demanda, fundada
em outro pretenso fato constitutivo
393
.
O fato é, porém, que, se é bem verdade que há uma unanimidade
entre nós que o sistema processual positivo brasileiro, por força do art. 282, III,
392
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 75. A
observação de Eduardo Talamini, nesse particular, resgata a observação de José Ignácio Botelho de Mesquita,
por nós acima transcrita, o qual, ainda na vigência do Código de Processo Civil Brasileiro de 1939, dizia que o
sistema adotado no Brasil teria dado “[...] importância tanto aos fatos constitutivos, como aos elementos de
direito, na medida em que sirvam para individuar a pretensão do autor, como resulta da expressão legal
‘de maneira que o réu possa preparar a sua defesa’, empregada no inc. III, do art. 158, do CPC
(MESQUITA, José Ignácio Botelho de. A causa petendi nas ações reivindicatórias. Revista de direito
processual, [S.I.: s.n.], nº 06, [?] 1967, p. 197 apud CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no
processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 147, grifo nosso). E, de fato,
quer nos parecer que é crucial à defesa ter, desde o princípio, a adequada precisão do objeto da demanda, até
mesmo para que ela possa avaliar a oportunidade ou não da resistência ao direito alegado pelo autor; as suas
chances e, quiçá, a vantagem de uma eventual conciliação. O réu não tem e nem pode ter uma bola de cristal
para adivinhar se, para além daquilo que é alegado na inicial, o autor tem ou não razão e não pode ser pego de
surpresa pelo autor que, após ver o seu título destruído pela defesa, maneja outro, absolutamente insuspeito.
Pensar de modo diverso, sem dúvida alguma, significa conceber aquilo que, criticamente, se tem designado por
processo de autor, para identificar a facciosa concepção do processo vista sempre pela ótica do autor. Registre-
se que Júnior Alexandre Moreira Pinto, em recente estudo monográfico, resgatando essa idéia, conclui que “A
causa de pedir e o pedido são componentes do objeto litigioso do processo, já que se tratam de elementos
indissociáveis, possibilitando ao réu o conhecimento dos limites fáticos e jurídicos impostos pelo autor à
demanda, para a efetiva possibilidade de defesa”, mostrando, com isso, que a causa de pedir, de fato, também
desempenha uma função primordial para a operacionalização do contraditório (PINTO, Júnior Alexandre
Moreira. A causa petendi e o contraditório. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 167).
393
Id., loc. cit.
147
do CPC, não prescinde da narração na inicial dos fatos geradores do direito
alegado e que, por isso mesmo, não se filiou à teoria da individualização, não se
encontra plenamente solvida a assertiva de que, por conta disso, o modelo
adotado positivamente corresponderia àquele desenvolvido pelos
substancialistas.
A tese suscitada por José Ignácio Botelho de Mesquita, no
sentido de que o modelo positivo brasileiro representaria um tertius genus
continua a repercutir entre nós, a ponto de Júnior Alexandre Moreira Pinto, em
tese de mestrado recentemente vinda a lume, sob a orientação de José Roberto
dos Santos Bedaque, voltar a sustentar que:
Ao contrário do que expõe parte da doutrina, a lei processual civil
brasileira, ao exigir no art. 282, III, para a elaboração da petição
inicial tanto os fatos quanto os fundamentos jurídicos, adotou não só a
substanciação como também a individualização, uma vez que não há
desprezo à exposição do enquadramento dos fatos articulados pelo
demandante. E os fatos articulados na petição inicial devem ser
apontados na exata profundidade em que o réu não seja surpreendido
na decisão de mérito em fato não submetido ao contraditório
394
.
Por outro lado, mesmo em relação ao contorno dos fatos cuja
alegação se mostra imprescindível na inicial não há um consenso entre os
doutrinadores pátrios.
Com feito, dissemos acima que, além de José Ignácio Botelho de
Mesquita, entre os juristas pátrios, tradicionalmente, apenas Ovídio Araújo
Baptista da Silva se colocou criticamente em face da propagada adesão do nosso
sistema processual à teoria da substanciação.
Quanto a Ovídio Araújo Baptista da Silva, o seu dissenso tem
assento na compreensão de que
[...] os princípios que se extraem de nosso sistema correspondem a
uma atenuação da teoria da substanciação, pois que a lei exige que
394
PINTO, Júnior Alexandre Moreira. A causa petendi e o contraditório. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007, p. 167-8.
148
os fatos sejam expostos como fundamento do pedido, mas tão só os
fatos essenciais
395
.
Partindo dessa premissa ele afirma, então, que o “[...] nosso
Código não se filia à corrente doutrinária da substanciação, como de resto não
acolhe a doutrina contrária, radical, da individualização [...]”
396
, teorias essas
que, no mais, ele reputaria, com suporte em Leo Rosemberg
397
, modernamente
“rejeitadas”.
Professando declaradamente a doutrina de Karl Heinz Schwab
398
,
Ovídio Araújo Baptista da Silva, considerando-a “[...] conforme a nossa lei
[...]”
399
, diz que na identificação de ações e, conseqüentemente, na fixação dos
limites objetivos da coisa julgada,
[...] não é o pedido só que importa, mas o pedido convenientemente
interpretado [...]. E para interpretá-lo [...] deve recorrer-se aos fatos,
ou ao que ele [Karl Heinz Schwab] denomina estado de coisas que
verdadeiramente abrange fatos e relações jurídicas deduzidas ou
deduzíveis
400
.
Desse modo, Ovídio Araújo Baptista da Silva, nitidamente, não
empresta autonomia para a causa de pedir ou para o pedido enquanto elementos
identificadores da ação, advogando que é da conjugação de ambos e, portanto,
da inflexão que um pode ter sobre o outro, que se deflui aquilo que ele qualifica,
com suporte em Karl Heinz Schawab, como objeto litigioso do processo,
entendido como sendo “[...] a petição de uma resolução designada no pedido
[que] necessita, contudo, em qualquer caso, ser fundamentada por fatos”
401
. E é a
395
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Limites objetivos da coisa julgada no direito brasileiro atual. In:
Sentença e coisa julgada: ensaios. 3ª ed. rev. e aum. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995, p. 166, grifo do autor.
396
Id., loc. cit., grifo do autor.
397
ROSEMBERG, Leo. Tratado de derecho processual civil. Tradução argentina da 5ª edição alemã. Buenos
Aires: Ejea, [195-?], p. 166 apud SILVA, op. cit., p. 166.
398
SCHWAB, Karl Heinz. El objeto litigioso em el processo civil. Tradução argentina da 5ª edição alemã de
1954. [S.L.: s.n.], [195-?], p. 243 apud SILVA, op. cit., p. 167.
399
SILVA, op. cit., p. 167.
400
Id., loc. cit., grifo do autor.
401
SCHWAB, op. cit., p. 251 apud SILVA, op. cit., p. 167.
149
partir desse objeto litigioso que se concluirá pela identidade ou não de uma ação
e outra.
Nesse passo, é de se registrar que a doutrina brasileira, desde há
algum tempo, para além das concepções da individualização ou da
substanciação, vem, de fato, forjando uma nova concepção para a delimitação
dos limites objetivos da coisa julgada, assentada na noção de objeto do
processo cunhada por Karl Heinz Schwab
402
.
Nem por isso, porém, essa doutrina tem defluido essa nova
compreensão do fato de que o nosso sistema processual exigiria a exposição
apenas dos fatos ditos essenciais. Tampouco o conjunto da doutrina pátria, à
qual é absolutamente corrente a distinção entre fatos essenciais e secundários,
tem, de qualquer modo, a partir daí, extraído as conclusões a que chega Ovídio
Araújo Baptista da Silva.
A verdade é que Ovídio Araújo Baptista da Silva conjugando a
noção de fato essencial com a teoria de Karl Heinz Schwab e a conectando ao
quanto preconizam os artigos 468 e 474 do Código de Processo Civil brasileiro,
acaba por ampliar indevidamente o alcance objetivo da coisa julgada
403
,
emprestando à noção de objeto do processo uma configuração que, sem dúvida,
o nosso sistema processual não admite. É o que nos observa José Rogério Cruz e
Tucci:
Influenciado [...] pela [...] doutrina de Schwab, Ovídio Baptista da
Silva, ao analisar o art. 474 do Código de Processo Civil, atinente ao
denominado efeito preclusivo da coisa julgada, sustenta que os
horizontes desta alcançariam a solução de todas as “questões
402
Nesse sentido, podemos citar, entre outros doutrinadores pátrios: PINTO, Júnior Alexandre Moreira. A causa
petendi e o contraditório. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 17-53. TALAMINI, Eduardo. Coisa
julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, pp. 79-85. CARVALHO, Milton Paulo de. Do
pedido no processo civil. Porto Alegre: Sérgio Frabris-FIEO, 1992, p. 85 apud CRUZ E TUCCI, José Rogério.
A causa petendi no processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 113-4.
403
Como, de resto, ele assim o faz quando se esforça em vincular a imutabilidade da coisa julgada ao conteúdo
declaratório da sentença e não ao seu dispositivo, propriamente, tal qual visto alhures, percebendo-se, nele, um
constante esforço em se ampliar os limites objetivos da coisa julga, aproximando-se, ainda que o negue, à teoria
da individualização. É Exatamente nesse sentido, aliás, que aponta Júnior Alexandre Moreira Pinto, quando
expressa que Ovídio Araújo Baptista da Silva estaria “Muito próximo da teoria da individuação [...]” (PINTO,
op. cit., p. 38).
150
pertinentes” à lide, decididas explicitamente na sentença (art. 468), ou
mesmo não apreciadas por não terem sido deduzidas pelas partes (art.
474)
404
.
O exemplo que Ovídio Araújo Baptista da Silva dá para ilustrar
os efeitos práticos da sua tese é bastante elucidativo e merece transcrição:
Se alguém ingressa com uma ação de rescisão de um contrato
parciário, como nós imaginamos no exemplo, e descrever na inicial
danos culposos à colheita, em verdade o fundamento de sua demanda
não será apenas o estado de coisas alegado, mas qualquer outra
infração contratual que tenha como pressuposto toda e qualquer
inabilitação técnico-profissional do agricultor capaz de causar
incumprimento do contrato. Dir-se-ia que, ao pedir a rescisão do
contrato, o arrendador (parceiro) sustenta sua demanda numa causa
mais ampla onde os fatos expostos submergem e se dissolvem. A lei,
ao outorgar ação contra o colono que causa danos à gleba e danos à
colheita, supõe, como idéia matriz, para ambas as circunstâncias
indicadas, a condição mais geral incumprimento do contrato por
inabilitação profissional do colono, devendo, então, definir-se a
demanda como “rescisão por infração contratual com base na
inaptidão técnico-profissional do demandado”
405
.
Comentando justamente esse exemplo, Sérgio Ricardo de Arruda
Fernandes – “com manifesto acerto”, segundo José Rogério Cruz e Tucci – diz
que Ovídio Araújo Baptista da Silva:
[...] ampliou o conceito de causa de pedir ao ponto desta passar a
abranger situações que, individualizadas, comporiam causae petendi
distintas. Portanto, não está com a razão ao afirmar, por exemplo, que
numa ação que vise à rescisão de um contrato agrícola com
fundamento em danos à colheita, ocasionados por culpa do lavrador,
estaria acobertada pela coisa julgada a decisão quanto à ocorrência dos
danos culposos à colheita, como também, de todas as possíveis causas
que possam dar lugar à rescisão do contrato sob a alegação de
inadimplemento culposo por parte do demandado, e outras ‘questões
pertinentes’. Tudo sob o efeito da coisa julgada previsto no art. 474 do
CPC. Ficaria à mercê da eqüidade do julgador enquadrar a questão
404
CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001, p. 225, grifo do autor.
405
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Limites objetivos da coisa julgada no direito brasileiro atual. In:
Sentença e coisa julgada: ensaios. 3ª ed. rev. e aum. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995, p. 167, grifo do autor.
151
‘pertinente’ ou ‘discrepante’, quando, então, se aplicaria, ou não, o
efeito preclusivo da coisa julgada
406
.
Assim, em sentido diametralmente oposto aquele sustentado por
Ovídio Araújo Baptista da Silva, José Rogério Cruz e Tucci, partindo da mesma
distinção entre fato essencial e secundário e se reportando à passagem acima
transcrita, de Sérgio Ricardo de Arruda Fernandes, conclui que:
[...] a regra da eventualidade e a respectiva substanciação da demanda
dizem respeito exclusivamente ao fato essencial, ou seja, àquele
delimitado pelo autor na petição inicial, de sorte que se puder ser
deduzida outra questão, ainda para o mesmo pedido, não haverá óbice
álbum para a propositura de outra ação, uma vez que esta não será
idêntica à primeira
407
.
O que se percebe da análise das duas teorias em confronto que
buscam fixar os contornos da causa de pedir é que a doutrina brasileira, em que
pese majoritariamente professar a adoção da teoria da substanciação pelo nosso
sistema legal, não logrou uma adequada equalização do enquadramento da regra
do artigo 282, III, do Código de Processo Civil brasileiro.
Isso, porém, não nos impede de indicarmos, com segurança, que
nenhum doutrinador pátrio, hoje, seja ele adepto de uma ou de outra das duas
correntes, exclui a causa de pedir como elemento integrante do objeto do
processo, juntamente com o pedido, e, portanto, como elemento primordial para
a individualização da demanda, inclusive para os fins da coisa julgada.
Nos dois casos, porém, essa individualização ocorre de forma
absolutamente diversa: “[...] na substanciação, se opera através da diferenciação
dos fatos, enquanto na individuação se dá através do direito”
408
.
406
FERNANDES, Sérgio Ricardo de Arruda. Alguns aspectos da coisa julgada no direito processual civil
brasileiro. Revista de processo, [S.L.], nº 62, p. 87, [entre jan. e dez.] 1991 apud CRUZ E TUCCI, José
Rogério. A causa petendi no processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p.
225-6, grifo do autor.
407
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 226, grifo do autor.
408
PINTO, Júnior Alexandre Moreira. A causa petendi e o contraditório. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007, p. 46.
152
Por outro lado, tendo em vista o modelo legal brasileiro, adotado
pelo art. 282, III, do Código de Processo Civil Brasileiro, o que se constata é que
a doutrina, de um modo geral, para acomodar as exigências ali preconizadas
quanto à causa de pedir aos quadrantes da sua teoria, trataram de classificar a
causa de pedir em causa de pedir próxima e causa de pedir remota,
[...] situando-se a última nos fatos que fazem emergir a pretensão do
demandante, e a primeira na qualificação jurídica destes fatos, ou seja,
na previsão abstrata, contida no ordenamento positivo, e do qual
decorre a jurisdicidade daquela
409
.
A causa de pedir remota, também denominada de particular,
seria, normalmente, integrada não só pelo fato constitutivo do direito do autor
como que, também, pelo fato tido como violador desse direito, donde emergiria
o interesse processual do autor, qualificando, a causa de pedir, a partir desses
409
PINTO, Júnior Alexandre Moreira. A causa petendi e o contraditório. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007, p. 36. Rodolfo de Camargo Mancuso, abordando essa mesma categorização, nos diz que: “No âmbito da
jurisdição singular o elemento causa petendi tem dupla conotação, respondendo tanto à configuração jurídica da
espécie, isto é, ao ponto do ordenamento onde – in abstracto – enquadra-se o fundamento da pretensão, como à
ocorrência no campo fenomenológico, que deflagra a situação de prejuízo real ou virtual. Sob aquele primeiro
enfoque – o fundamento jurídico – a causa de pedir se diz remota, porque por si só não seria suficiente para
justificar a judicialidade da controvérsia, visto não poder o judiciário responder consultas; sob o segundo
enfoque, trata-se do próprio evento que dá concretude àquele histórico de prejuízo ou de perigo, e nesse contexto
a causa de pedir se diz próxima, porque já agora há um ponto de referência claro e tangível (o inadimplemento,
a perda da posse), notando-se que a causa de pedir próxima é que deflagra o interesse de agir, ou seja, a
necessidade-utilidade do acesso à Justiça.” (grifo do autor). Assim, segundo exemplo do mesmo autor, “No
silogismo da petição inicial a causa de pedir remota opera como a premissa maior, exemplo: numa
desapropriação, é a previsão constitucional de que a propriedade imobiliária pode ser repassada do Poder
Público, mediante prévia e justa indenização em dinheiro, sendo a causa próxima o contemporâneo interesse do
Poder Público num dado imóvel, para tal declarado de utilidade pública; a premissa menor é a matéria fática, isto
é a obra pública em andamento a justificar provimento judicial de natureza petitória (pedido imediato) idôneo a
possibilitar a imissão na posse e um provimento mandamental, para a oportuna transferência da propriedade para
o Poder expropriante (pedido mediato); na conclusão desse silogismo, pede-se que, à vista das premissas, seja
acolhida a demanda, nos termos e para os fins enunciados, assim se superando, ao fim e ao cabo, a primitiva
crise de certeza e de satisfação.” (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada: teoria
geral das ações coletivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 432-3, grifo do autor). Registre-se que pode
causar perplexidade o uso que Rodolfo de Camargo Mancuso faz das expressões causa de pedir próxima e
cauda de pedir remota, já que, confrontado com o uso que Júnior Alexantre Moreira Pinto faz dessas mesmas
expressões, constata-se que há a sua inversão: o que para um é causa de perir remota, para o outro é próxima e
vice-versa. O fato, porém, é que a doutrina brasileira usa discrepantemente os termos, sem que os autores,
inclusive, prestem maiores esclarecimentos a respeito. Nesse sentido, Júnior Alexandre Moreira Pinto, adere à
terminologia de José Rogério Cruz e Tucci (CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil.
2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 154), ladeado, entre outros, por: FIGUEIRA
JÚNIOR, José Dias. Comentários ao código de processo civil: v. 4: do processo de conhecimento, arts. 282ª
331, tomo II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 46-8; SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de direito
processual civil: v. 2: processo de conhecimento (2ª parte). São Paulo: Saraiva, 1986, p. 3. Rodolfo de Carmago
Mancuso, por seu turno, encontra-se circundado, entre outros, por: NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria
de Andrade. Código de processo civil comentado elegislação extravagante. 7ªed. rev. e amp. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2033, p. 670-1.
153
dois pontos de vista, como causa ativa e causa passiva, respectivamente, sendo
certo que pode haver causas onde a causa passiva não se apresenta, tal qual se
verifica, por exemplo, nas ações anulatórias por vício de vontade
410
.
Quer nos parecer, diante dessa categorização e diante da regra
positiva brasileira que, sem dúvida, para fins de identificação da demanda, os
fatos são imprescindíveis, não estando, ademais, autorizado, o juiz, a cambiá-los
no curso da demanda, com respeito exclusivo à relação substancial, tal qual
preconizado pelos teóricos da individualização.
É de se registrar, porém, que os próprios substancialistas, diante
da regra positiva brasileira não advogam, propriamente, a exclusividade dos
fatos como elemento identificador da causa de pedir, com total desprezo aos
fundamentos jurídicos do pedido. Falam, eles, apenas em uma preponderância
da matéria fática sobre os fundamentos jurídicos, deduzível a partir
[...] da possibilidade do juiz de modificar a relação jurídica indicada
pelo autor, comportamento este vedado quanto aos tatos. E assim,
entende-se que ao se permitir o câmbio da causa de pedir próxima
estaria a legislação impondo posição de destaque à causa remota,
imodificável no curso da demanda
411
.
Ter-se-ia, aí, a aplicação do velho adágio iura novit curia,
assentado, originariamente, no brocardo naha mihi factum, naho tibi ius,
transmitindo a
[...] idéia de que as normas jurídicas não precisariam de prova, visto
que o juiz deve conhecê-las. Ou seja, a aplicação do direito seria
assunto exclusivo do juiz, e aos fatos não seria necessária a submissão
às regras jurídicas. As partes não estariam obrigadas a subsumir os
fatos por elas invocados. [...] É do Tribunal o monopólio de aplicação
da lei
412
.
Logo, se, pelo princípio da demanda, à parte cabe o monopólio
410
CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001, p. 154-5.
411
PINTO, Júnior Alexandre Moreira. A causa petendi e o contraditório. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007, p. 36-7.
412
Ibid, p. 76.
154
da dedução dos fatos em juízo, segundo a regra iura novit curia, o juiz detém o
monopólio da capitulação legal do fato a ele deduzido
413
, sendo, ademais e por
isso mesmo, irrelevante o nomen iuris que se de à ação.
É justamente a partir dessa ordem de idéias que Eduardo
Talamini diz que “[...] não integram a causa de pedir: nem o nomem iuris
empregado pelo autor nem o enquadramento dos fatos em uma específica
hipótese de incidência normativa (fattispecie)”
414
, no que é circundado por José
Rogério Cruz e Tucci, quando diz que:
Embora o nomen iuris e/ou o fundamento legal porventura invocado
pelo autor possa influenciar o raciocínio do julgador, não há qualquer
impedimento, dada a incidência do aforismo iura novit curia, a que
este requalifique juridicamente a demanda, emoldurando-a em outro
dispositivo de lei: o juiz goza de absoluta liberdade, dentro dos limites
fáticos aportados no processo, na aplicação do direito, sob o
enquadramento jurídico que entender pertinente (art. 126 [do CPC]). E
isto, certamente, ainda que ambos os litigantes estejam concordes com
a tipificação legal deduzida na peça vestibular
415
.
Há, porém, quem destoe desse entendimento comum da doutrina
brasileira, sustentando que a regra iura novit curia não teria o alcance que a
doutrina corriqueiramente lhe tem emprestado.
É o que pensa, por exemplo, Júnior Alexandre Moreira Pinto,
para quem ao juiz, nem sempre é dada a modificação da qualificação jurídica do
fato, e, ainda quando o possa fazer, isso só seria possível observado o
contraditório. Diz ele:
A lei processual pátria, em seu art. 282, III, indica como requisitos da
petição inicial não só a indicação dos fatos, como também dos
fundamentos jurídicos do pedido. E assim também propunha o Código
de 1939, abarcando tais exigências o art. 158. Melhor argumentando,
de acordo com o ordenamento processual brasileiro não basta afirmar
a ocorrência dos fatos, sendo cogente ao autor também declinar a
existência de uma relação jurídica entre as partes litigantes. Ora, se a
413
PINTO, Júnior Alexandre Moreira. A causa petendi e o contraditório. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007, p. 76.
414
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 72, grifo do
autor.
415
CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001, p. 160-1, grifo do autor.
155
prevalência realmente fosse da matéria fática, qual a razão do
legislador erigir, ao mesmo patamar, as duas exigências? A resposta
de boa parte da doutrina a este problema reside na possibilidade do
juiz de modificar a relação jurídica pelo autor, comportamento este
vedado quanto aos fatos. E assim, entende-se que ao se permitir o
câmbio da causa de pedir próxima estaria a legislação impondo
posição de destaque à causa remota, imodificável no curso da
demanda.
Mas justamente neste aspecto específico talvez repouse outro repetido
equívoco da doutrina. [...] de acordo com a regra do contraditório,
nem sempre a causa de pedir remota é imodificável, tampouco a causa
próxima pode ser mudada sem a possibilidade de manifestação das
partes a respeito da nova qualificação jurídica
416
.
Em reforço à sua tese, o referido autor aduz, inclusive, que:
Boa parte da doutrina equivoca-se ao confundir qualificação legal com
qualificação jurídica. Enquanto a primeira traduz a mera indicação do
dispositivo legal invocado pela parte, a segunda representa a
denominada causa de pedir próxima, traduzida como o enquadramento
dos fatos no ordenamento jurídico, isto é, a subsunção daqueles fatos
constitutivos (causa remota) à violação ocorrida no plano material.
Não seria lógico afirmar que a exigência da precisão da qualificação
jurídica se dá exclusivamente quanto ao requisito da petição inicial,
sendo que após tal fase, poder-se-ia livremente modificá-la.
Argumentar que o juiz poderia adotar qualificação jurídica diversa da
exposta na inicial, seria o mesmo que autorizar o conhecimento de
qualificação sem que qualquer enquadramento ao plano jurídico
tivesse sido apresentado na demanda
417
.
Sempre com os olhos postos no contraditório e sem desconhecer
que, efetivamente, o dispositivo legal elencado não integra a causa de pedir
418
, o
mesmo autor chega ao extremo de afirmar que “Se houver alguma hipótese em
que a errônea indicação do dispositivo legal causar qualquer prejuízo à defesa do
réu, a mutação não mais poderá ser admitida”
419
.
Para ilustrar a sua tese de que “de acordo com a regra do
contraditório, nem sempre a causa de pedir remota é imodificável [...]”
420
, o
416
PINTO, Júnior Alexandre Moreira. A causa petendi e o contraditório. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007, p. 36-7.
417
Ibid., p. 82.
418
Ibid., p. 80-1.
419
Ibid., p. 81.
420
Ibid., p. 37.
156
autor em questão cita a hipótese da sentença que acolhe como razões de decidir
fato não declinado na inicial mas que, a despeito disso, foi efetivamente
debatido entre as partes no decorrer do processo, sobre ele realizando-se o
contraditório. A sentença assim proferida não seria nula, porque, em suma, para
além do mero formalismo, houve efetivo contraditório entre as partes, com a
plena realização da defesa, fim último da causa de pedir (permitir que o réu se
defenda adequadamente)
421
.
Quanto, porém, à sua tese de que a qualificação jurídica dos
fatos, assim como a própria qualificação legal indicada na petição inicial, não
poderiam ser alterados livremente pelo juiz, senão quando ausente prejuízo ao
contraditório, nenhum exemplo prático ele colaciona, de tal modo a se aferir a
utilidade prática da tese e, quiçá, dar-lhe razão. No máximo, reportando-se à
aplicação da regra iura novit curia na hipótese de uma nova qualificação legal,
ele aponta que a abertura prévia de prazo para a manifestação das partes
asseguraria a efetividade do contraditório na medida em que “[...] os
contendores se posicionariam a respeito da nova imputação legal, e teriam
eventualmente a possibilidade de influir no convencimento do julgador”
422
.
Ora, quer nos parecer que, quanto à possibilidade de adoção pelo
juiz de causa de pedir remota distinta daquela colacionada pelo autor, Júnior
Alexandre Moreira Pinto trata de uma exceção à regra para atender a verdadeiras
anomalias, na tentativa de salvar um processo onde, ainda que por vias tortas,
cumpriu-se o desiderato do contraditório. É exceção que não infirma a regra
geral sustentada pelos teóricos da substanciação, ainda que venha a ser admitida.
Por outro lado, exigir-se que o juiz, na hipótese de nova
qualificação jurídica ou legal do fato exposto, a submeta à prévia manifestação
das partes, igualmente não afasta a premissa geral de que ao juiz é dada a
possibilidade dessa nova qualificação. E tanto isso é verdade que, concordando
421
PINTO, Júnior Alexandre Moreira. A causa petendi e o contraditório. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007, p. 71-3.
422
Ibid., p. 81.
157
ou não, as partes, com essa nova qualificação, ele (o juiz) não estará impedido
de a aplicar. Exigir-se a realização do contraditório, por si só, não é um óbice
para a aplicação da regra em questão (iura novit curia).
De uma forma ou de outra, para os fins da coisa julgada, a
possibilidade de câmbio da qualificação jurídica do fato no curso da demanda,
tal qual apontado por Eduardo Talamini, se mostra de pouca ou nenhuma
relevância, já que, “[...] rejeitado o pedido fundado numa dada causa de pedir,
não será tal mudança de enquadramento que permitirá a repropositura da
demanda: tal intento esbarrará na coisa julgada”
423
, o mesmo se podendo dizer
na hipótese de procedência da ação, diante de uma eventual alteração da mesma
natureza.
O enquadramento jurídico dado na sentença é que qualificará o
fato, impedindo que, doravante, aquele mesmo fato seja diversamente
qualificado.
Assim, se digo que detenho a posse de um imóvel a título de
arrendamento agrícola e, com fundamento nessa relação fático-jurídica,
reivindico o direito de preferência na aquisição do imóvel, pretensão essa que é
tida como improcedente porque o juiz, dando nova qualificação jurídica ao fato,
entende ser o caso de contrato de parceria, para o qual a conseqüência jurídica
pleiteada não está prevista e, com isso, julga improcedente a demanda, por
óbvio, o autor não estaria autorizado para, com fundamento no mesmo conjunto
de fatos, alegar uma nova relação fático-jurídico apenas os requalificando, e,
assim, pleitear o mesmo direito de preferência com fundamento em um contrato
de parceria.
Em termos práticos, o que interessa é, de fato, o conjunto de fatos
que se evidencia no caso concreto: a detenção consentida da posse direta do
imóvel agrícola, em dado tempo, para uma determinada finalidade, mediante
determinadas contrapartidas. Essa é a relação fático-jurídica que interessa e que
423
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 72.
158
deverá, a nosso ver, informar a existência ou não da coisa julgada. Se a parte a
qualifica como uma relação de parceria agrícola ou de arrendamento, isso é
absolutamente irrelevante. Julgada essa relação fático-jurídica, julgada ela está,
e sempre que ela se repetir, estará abarcada pela coisa julgada.
A qualificação jurídica do fato, a bem da verdade, só é exigida
porque é a partir dela que se materializa o pedido; a conseqüência jurídica
pugnada pelo autor
424
. Ela cumpre um requisito lógico-formal na inicial. E é
425
.
424
CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001, p. 155.
425
É de se registrar que, em algumas situações, essa qualificação jurídica é até difícil de se verificar,
conduzindo-nos à uma dúvida razoável quanto à sua imprescindibilidade para a dedução do pedido. Com efeito,
imagine-se que um credor, que fizera um empréstimo em dinheiro, diante do inadimplemento, dirige-se ao
judiciário deduzindo a sua pretensão nos seguintes termos: “Em tal data, entreguei ao réu tal quantia em
dinheiro, com o compromisso de que ele me a restituísse em tal data, o que não ocorreu, a despeito das cobranças
feitas. Sendo assim, peço que o condene no pagamento da referida quantia, com tais e quais acréscimos.”
Pergunta-se: nessa narrativa, onde está a qualificação jurídica do fato narrado? Em lugar algum. O autor apenas
narra um fato e, diante dele, deduz um pedido. Malgrado isso, dada a sua singeleza, facilmente se constata que o
fato é jurídico, já que conta com conseqüências normativas previstas no ordenamento jurídico, qualificando-se,
notoriamente, como sendo um mútuo. O fato do autor não declinar a qualificação jurídica daquilo que narrou não
o impediu, outrossim, de deduzir o pedido. Agora, a despeito disso, será que alguém ousaria dizer, salvo se em
homenagem a um formalismo bizantino, que a petição assim narrada seria inepta?! Por isso mesmo, pensamos
que, por fundamentos jurídicos só se pode entender como a narrativa de um fato que conte com conseqüências
jurídicas, que se materializam no pedido. Outro exemplo: narro, na inicial, que em tal dia e em tal hora
atravessava, sobre a faixa de pedestres, um cruzamento, quando um veículo automotor, desobedecendo o sinal
que lhe mandava parar, me colhe, daí decorrendo tais e quais danos, em cujo pagamento peço seja o réu
condenado, dada a sua recusa em reparar os danos voluntariamente. Observada essa estrita narrativa, percebe-se
que, sequer de ilícita, genericamente falando, eu teria qualificado a conduta do réu, quanto mais como sendo
culposa. Eu apenas teria descrito a inobservância do sinal. Onde está a qualificação jurídica? Novamente, em
lugar algum! Isso, contudo, impediu que o pedido fosse deduzido? E então: a inicial seria inepta? Quer nos
parecer que de modo algum! E o fundamento jurídico, onde estaria? Justamente na narrativa de um fato que é
jurídico! É óbvio que se eu deduzo um pedido, em tais circunstâncias, é porque eu, previamente, qualifiquei
juridicamente o fato, e essa qualificação pode, de fato, ser inferida a partir do pedido. A qualificação, o
fundamento jurídico da causa, não deixa de estar presente nos exemplos acima, porém, eles não se mostram
explícitos. A qualificação jurídica, assim, nos exemplos dados, é perfeitamente inferida a partir do pedido e é
pressuposta pelo autor, a partir do quê, inclusive, lhe é possível deduzir o pedido. É impossível que o pedido seja
deduzido sem que, de alguma forma, se qualifique juridicamente o fato narrado, ainda que implicitamente. Nesse
sentido, aliás, é de toda pertinente a lição de José Maria Tesheiner, quando assevera que: “A causa petendi
reside no fato jurídico invocado pelo autor como fundamento de seu pedido. Ora, um fato somente é jurídico,
somente produz efeitos jurídicos, na medida em que constitui realização concreta do suporte fático de uma
norma. No caso da reivindicação, o autor, expressa ou implicitamente, invoca o art. 524 do Código Civil,
afirmando o suporte fático nele previsto – é proprietário do bem e outrem injustamente os possui -, donde o
efeito jurídico – poder reavê-lo -, com o uso da força do Estado, se necessário. Observa-se, assim, que a causa
petendi não é mero fato ocorrido no mundo fático, mas fato jurídico, ou melhor, alegação de fato jurídico, que
compreende, a um só tempo e inextricavelmente ligados, elementos de fato e de direito” (TESHEINER, José
Maria. Eficácia da sentença e coisa julgada no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 146-
7). Ou, conforme diz Ronaldo Cunha Campos: “[...] a estrutura da razão é a afirmação do fato jurídico, onde
indissoluvelmente se ligam os aspectos de fato e de direito, sem a possibilidade de artificialmente destacá-los em
dois níveis, ou ordens distintas de alegações” (CAMPOS, Ronaldo Cunha. Limites objetivos da coisa julgada.
2ª ed. Rio de Janeiro: Aide, 1988, p. 47). Concluindo: “Porque o fato somente se define como jurídico na medida
em que produz efeitos jurídicos, pode-se afirmar, como faz Ronaldo[Cunha Campos], que a eficácia jurídica do
159
Ao contrário, portanto, do que parte significativa da doutrina diz
hoje, como acima apontado, no sentido de afirmar que o nosso sistema positivo
teria adotado uma posição doutrinária intermediária, quanto à causa de pedir
(nem substancialista, nem, individualista), pessoalmente, acreditamos que uma
análise sistemática do nosso sistema processual positivado nos conduz, de fato, à
adoção da doutrina da substanciação. E, mesmo que se possa, de alguma forma,
tergiversar a respeito, ao menos para os fins de delimitação objetiva da coisa
julgada, a referida teoria é plenamente satisfatória.
Pode-se, assim, concluir que, com relação à qualificação jurídica
do fato, a despeito dela representar um requisito da inicial, sendo de especial
valor, inclusive, para o exercício do contraditório, é fato que o seu câmbio no
curso do processo, pelo juiz, é perfeitamente possível, ainda que, talvez,
exigindo-se a oportunidade ao contraditório, no que não estamos convencidos.
Isso, porém, nenhuma relevância teria quanto ao regime da coisa julgada, cujos
limites objetivos sempre incidirão sobre a relação fático-jurídica descrita,
inferida a partir do conjunto de fatos narrados na inicial.
Assim concluindo, contudo, para os fins da limitação objetiva da
coisa julgada, não logramos, ainda, resolver por completo os problemas, na
exata medida em que, diante do princípio da denominada eficácia preclusiva da
coisa julgada, a depender dos contornos que emprestarmos ao fato informador
da demanda, essa limitação poderá ser mais ou menos extensa, havendo,
outrossim, uma nítida tendência dos teóricos da individualização a expandir os
contornos da situação fática informadora da demanda e, conseqüentemente, da
eficácia preclusiva.
Explicando melhor: a par da classificação que recai sobre a causa
de pedir, acima mencionada, onde se a distingue em causa próxima e remota,
quanto aos fatos que substanciam a causa de pedir próxima (ou remota, como
fato é elemento do próprio fato enquanto jurídico” (TESHEINER, José Maria. Eficácia da sentença e coisa
julgada no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 147).
160
querem alguns), tornou-se célebre a distinção entre os denominados fato
principal ou essencial ou, ainda, jurídico, e fato secundário, afirmando-se, sob
essa ótica, que:
[...] o fato principal (ou jurígeno) é aquele reputado como causa
eficiente de uma pretensão processual, e além de constituir o objeto da
prova, é o pressuposto inafastável da existência do direito submetido à
apreciação judicial. Já o fato secundário (ou simples) apenas emerge
deste fato constitutivo. Dele não derivam diretamente conseqüências
jurídicas, mas torna certa a existência desse mesmo fato principal. Por
si só, é insuficiente para gerar conseqüências jurídicas. Serve e
informa a existência de um fato principal
426
.
Na distinção entre um e outro desses fatos, Júnior Alexandre
Moreira Pinto, nos dá o seguinte exemplo clássico da doutrina, apanhado de
Proto Pisani:
[...] em acidente de trânsito, a culpa do condutor por excesso de
velocidade é o fato principal; a alta velocidade do automóvel poucos
minutos antes do acidente e o hábito do condutor em dirigir em
excesso de velocidade constituem fatos secundários
427
.
Tradicionalmente, conforme apontado por Júnior Alexandre
Moreira Pinto, a doutrina tem afirmado “[...] que os fatos simples não
constituem elementos obrigatórios da petição inicial, e, por conseguinte,
poderiam estes ser livremente modificados no curso da demanda
428
”, o que,
segundo ele, pode nos conduzir a algumas incongruências, já que, apesar desses
fatos simples não serem, de fato, elementos constitutivos da relação jurídica
alegada, seriam eles que lha dariam a adequada identificação, inclusive para que
o contraditório se realizasse de modo adequado
429
.
Segundo ele, portanto, além do autor afirmar a culpa do condutor
em um acidente de trânsito, deve ele substanciá-la, precisando qual é, de fato, a
426
PINTO, Júnior Alexandre Moreira. A causa petendi e o contraditório. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007, p. 39.
427
PISANI, Proto. Lezioni di diritto processuale civile. 3ª ed. Napoli: Jovene, 1999, p. 432 apud PINTO, op.
cit., p. 39.
428
PINTO, op. cit., p. 40.
429
Id., loc. cit.
161
conduta que assim poderia ser qualificada (a embriaguez, a condução na
contramão, velocidade excessiva)
430
.
E, nesse sentido, quer nos parecer que o autor, de fato, tem razão.
Pensamos que a culpa, a bem da verdade, não é um fato a ser provado. A culpa,
o dolo, a coação, etc., são qualificações, adjetivações, que emprestamos a dados
e determinados fatos.
Com efeito, afirmar-se, dentro de um contexto de
responsabilidade civil subjetiva, que se foi atropelado culposamente por alguém,
é algo deveras abstrato e que retira, do réu, em boa medida, a possibilidade de
concretude da sua defesa, já que teria que se preocupar em demonstrar que de
nenhum modo agiu culposamente; que de nenhum modo agiu de modo imperito,
impudente ou negligente, quando, a bem da verdade, deveria, apenas, preocupar-
se em se defender de um fato concreto que assim pudesse ser qualificado, como,
por exemplo, a inobservância da preferência do pedestre determinada pelo sinal
luminoso que lhe é favorável.
Se, contudo, para os fins do contraditório, a especialização dos
fatos simples é de capital importância, para os fins da limitação objetiva da coisa
julgada, isso nem sempre será relevante, implicando, a matéria, uma questão de
relativa complexidade.
É que, em linha de princípio, segundo a regra do art. 474 do
Código de Processo Civil Brasileiro, que representa, no plano legislativo pátrio,
aquilo que a doutrina qualifica como eficácia preclusiva da coisa julgada,
“passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas
todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento
como à rejeição do pedido”.
Essa eficácia preclusiva, conforme adiante esmiuçaremos, sob a
ótica do autor, incidirá justamente sobre os denominados fatos simples, pelo
430
PINTO, Júnior Alexandre Moreira. A causa petendi e o contraditório. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007, p. 40.
162
que, alegados ou não na inicial, eles não poderão mais ser futuramente
deduzidos. É a lição, entre outros, de Eduardo Talamini:
[...] a circunstância de a causa de pedir, no sistema processual
brasileiro, ser fundamentalmente configurada pelos fatos que
embasam o pedido não afasta a necessidade de diferenciar fatos
essenciais e secundários (ou simples). Vale dizer: há um fato ou um
núcleo de fatos que dá uma configuração mínima elementar à causa de
pedir. Outros tantos fatos são relevantes para a argumentação do
demandante ou para a defesa do demandado, mas estão inseridos no
contexto estabelecido pelo fato ou núcleo de fato essencial. Isso
significa que a simples mudança ou acréscimo de tais fatos
secundários, na formulação de uma nova demanda, não implicará uma
nova causa de pedir, de modo que, sendo idênticas também as partes e
o pedido, haverá coisa julgada
431
.
Vistas as coisas desse modo, tudo parece, em linha de princípio,
bastante singelo: a coisa julgada abarca, preclusivamente, todos os fatos tidos
como simples em relação ao fato núcleo. Assim, conforme exemplifica Eduardo
Talamini,
[...] na ação de indenização por acidente de trânsito, a causa de pedir
diz respeito à responsabilidade civil extraível do evento específico
narrado (um acidente, em determinado momento e lugar, e os danos
dali advindos). Todos os demais detalhes (excesso ou não de
velocidade; embriaguez ou não; desatenção ou não de cada um dos
condutores etc.) são fatos secundários, integrados no núcleo essencial.
A coisa julgada que advier com a sentença final de mérito impedirá
que quaisquer de tais fatos, mesmo que deixaram de ser alegados e
discutidos no processo anterior, sejam depois apresentados como
pretenso fundamento de uma nova ação, entre as mesmas partes,
relativa ao mesmo acidente, e para os exatos mesmos fins
reparatórios (art. 474 [do CPC] [...]). Estar-se-á diante da mesma
causa de pedir
432
.
Os fatos simples, como bem afirma Ronaldo Cunha Campos,
prestam-se à prova do fato jurídico alegado, e, como tal, são substituíveis; ao
contrário do que ocorre com os fatos jurídicos afirmados, que, se substituídos,
implicará na modificação da lide mesma
433
.
431
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 77, grifo do
autor.
432
Ibid., p. 78, grifo do autor.
433
CAMPOS, Ronaldo Cunha. Limites objetivos da coisa julgada. 2ª ed. Rio de Janeiro: Aide, 1988, p. 83-4.
163
É clássico, nesse sentido, o exemplo de Lopes da Costa, da causa
reparatória fundada no incêndio criminoso, onde o fato jurídico é identificado no
fato do réu haver ateado fogo no bem imóvel; o fato secundário, no de ter sido
visto o réu, instantes antes ou depois do incêndio ter se manifestado, nas
proximidades do local na posse de uma tocha
434
.
Conforme assevera José Maria Tesheiner, no exemplo dado por
Lopes da Costa, “O depoimento da testemunha que viu o incendiário com a
tocha na mão pode ser substituído por outros elementos de convicção, sem que
nada se altere na cadeia de fatos [jurídicos] da lide”
435
, e é justamente isso que o
qualificará como secundário, simples motivo da sentença, que, ademais, sequer
fará coisa julgada, nos termos do artigo 469 do Código de Processo Civil
Brasileiro.
Porém, como o próprio Eduardo Talamini adverte, “nem sempre
é simples identificar o fato, ou núcleo de fatos, essencial”
436
.
Reportando-se, por exemplo, ao artigo 363 do Código Civil
Brasileiro de 1916, Eduardo Talamini lembra da polêmica em torno dos indícios
da filiação ali capitulados
437
, diante dos quais expressiva jurisprudência pátria
438
434
CAMPOS, Ronaldo Cunha. Limites objetivos da coisa julgada. 2ª ed. Rio de Janeiro: Aide, 1988, p. 83.
Proto Pisani, citado por José Rogério Cruz e Tucci, dá os seguintes exemplos de fato jurídico e fato
seccundário: “a) em acidente de trânsito, a culpa do condutor por excesso de velocidade é o fato principal; a alta
velocidade do automóvel poucos minutos antes do acidente e o hábito do condutor em dirigir em excesso de
velocidade constituem fatos secundários; b) a lesão física de alguém, provocada por facadas, é o fato essencial na
demanda em que a vítima pleiteia indenização por ato ilícito; já a luta entre os antagonistas, a posse pelo
demandado de uma faca compatível com o ferimento, as manchas de sangue nas roupas do ofensor, a impressão
digital no cabo da faca encontrada na cena do crime são todos fatos secundários” (PISANI, Proto. Lezioni di
diritto processuale civile. Napoli: Jovene, 1994, p. 448-9 apud RCRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa
petendi no processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 153-4).
435
TESHEINER, José Maria. Eficácia da sentença e coisa julgada no processo civil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001, p. 149.
436
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 77.
437
Ibid., p. 78. Segundo o autor, situações semelhantes podem ser buscadas no vigente Código Civil Brasileiro
(BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Seção 1, p. 01. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm>. Acesso em 20 jul. 2007) nos seus artigos 1597
a 1600 (id., loc. cit).
438
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 112.101, da 4ª Turma, Brasília, DF, 29 de junho
de 2000. Disponível em:
<http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=112101&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=4
>.
Acesso em: 22 jul. 2007. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 109.142, da 4ª Turma,
Brasília, DF, 06 de setembro de 2001. Disponível em:
164
assentou entendimento no sentido de que cada um deles representaria uma causa
de pedir autônoma em relação aos demais, entendimento esse que nos levaria a
concluir que, para os que assim entendem, cada um daqueles indícios
representariam um fato essencial.
Na doutrina, Sérgio Gilberto Porto
439
, exprimindo essa mesma
idéia, partindo de três exemplos: a ação de separação fundada na
insuportabilidade da vida em comum decorrente da embriaguez habitual; a
investigação da paternidade fundada no convívio entre a mãe e o suposto pai em
período compatível com a concepção; o despejo por danos provocados no
imóvel, todas julgadas improcedentes, diz textualmente que, sem que haja
qualquer óbice fundado na coisa julgada: a separação pode ser objeto de nova
ação, fundada em adultério; a investigação da paternidade em um escrito; e, por
fim, o despejo, com fundamento na falta de pagamento de alugueres, ainda que,
em todas as hipóteses, tais fatos fossem verificados anteriormente à primeira
demanda.
Segundo ele, isso se daria na exata medida em que, a despeito das
divergências que ainda vicejam na doutrina pátria em torno de qual foi,
exatamente, a teoria que o nosso sistema positivo adotou em relação à causa de
pedir (se da individualização ou se da substanciação, pura ou atenuada), tal qual
apontado acima, “[...] a grande massa doutrinária se define a favor da teoria da
substanciação pura, na qual o conteúdo da causa de pedir é definido pela relação
jurídica afirmada, pelos fatos que a compõem e [...] pelo interesse de agir”
440
,
diante do quê resultaria
[...] evidente que, nas hipóteses aventadas, e em outras tantas, há
variação de causa, frente ao que estabelece a teoria da substanciação e,
portanto, as demandas não se identificam; não podendo, pois, se falar
em coisa julgada nem, muitos menos, em eficácia preclusiva,
<http://www.stj.gov.br/webstj/Processo/JurImagem/frame.asp?registro=199600608997&data=04/02/2002
>.
Acesso em: 22 jul. 2007.
439
PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada Civil. 3ª ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2006, p. 87-8 e 94.
440
Ibid., p. 93.
165
considerando que esta jamais existirá isoladamente, eis que se
constitui exatamente em nítida conseqüência daquela
441
.
Curiosamente, Eduardo Talamini, que, conforme acima
demonstramos, não discorda que o nosso sistema jurídico tenha, de fato, adotado
a teoria da substanciação, em relação à hipótese da investigação de paternidade,
segundos os contornos acima dados, discorda diametralmente da conclusão de
Sérgio Gilberto Porto, assim como da jurisprudência que igualmente a esposa,
entendendo-a incorreta na exata medida em que:
Julgada improcedente a ação de investigação, a coisa julgada impede
qualquer nova ação em que se pretenda o reconhecimento da relação
com base no vínculo biológico. Ficam acobertados por essa autoridade
todos os possíveis argumentos fáticos e jurídicos que poderiam ter
sido empregados na ação anterior (art. 474 [do CPC]). Ao se fazer
essa afirmação, não se está adotando a teoria [...] que distingue
relações autodeterminadas de heterodeterminadas. Trata-se,
apenas, de constatar que existe um único fundamento fático para a
relação jurídica de filiação, quando se pretende que ela seja
reconhecida pelo vínculo biológico (e não pelo vínculo meramente
afetivo): é – seja perdoada a redundância – a própria existência do
vínculo biológico entre pai e filho. Portanto, esse é o fato essencial
para a causa de pedir. Todo o mais é fato secundário
442
.
Do confronto entre o entendimento de Sérgio Gilberto Porto e
Eduardo Talamini, em face dessa específica hipótese-problema (a da
investigação de paternidade), bem se constata que a discrepância na conclusão
se dá, única e exclusivamente, na compreensão do que seja o fato principal,
ainda que ambos partam da mesma premissa teórica. Para Sérgio Gilberto Porto,
fato principal seria quaisquer uma daquelas hipóteses elencadas na revogada
legislação civil a partir das quais se possibilitaria a presunção da paternidade.
Para Eduardo Talamini, ao contrário, fato principal seria a alegação da
existência do vínculo biológico, diante do qual, cada uma daquelas hipóteses de
presunção seriam fatos secundários, argumentos, em suma.
441
Ibid., p. 94.
442
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 78-9, grifo
do autor, grifo do autor, grifo nosso.
166
Já vimos, outrossim, como Ovídio Araújo Baptista da Silva, para
quem a doutrina brasileira teria adotado uma teoria intermediária como
fundamento da causa de pedir, operando a mesma noção de fato simples e
principal, alarga sobremaneira os limites objetivos da coisa julgada mediante a
técnica da preclusão, consumindo com fatos que, ao seu ver, seriam secundários,
como no caso do arrendamento rural, igualmente reproduzido acima.
Do mesmo modo, já vimos alhures como Júnior Alexandre
Moreira Pinto, que também advoga a tese de que, em matéria de causa de pedir,
o sistema positivo teria adotado uma teoria mista, ou de substanciação mitigada,
aproximando-se
443
, portanto, nesse particular, de Ovídio Araújo Baptista da
Silva, deste último discrepa diametralmente no enquadramento concreto do que
seja fato principal e secundário na mesma hipótese exemplificativa do
arrendamento rural anteriormente reproduzida.
Mais curioso ainda, é perceber que, em relação à hipótese da
investigação de paternidade, acima reproduzida, a posição de Eduardo Talamini
acaba por se aproximar, em termos práticos, daquela que Ovídio Araújo Baptista
da Silva reproduz em seu exemplo em torno do arrendamento rural denunciado
por má conservação do solo, onde o fato principal, segundo ele, seria a
inaptidão técnica.
Isso tudo nos mostra que a distinção entre fato principal e fato
secundário, aliada às premissas da eficácia preclusiva da coisa julgada, é, de
fato, uma porta aberta a partir da qual os partidários da teoria da individuação
444
,
443
Dizemos, cautelosamente, aproximando-se, na medida em que as premissas das quais Sérgio Gilberto Porto
parte para alcançar a sua conclusão, como anteriormente visto, não são as mesmas das quais parte Ovídio de
Araújo Baptista da Silva.
444
Como, por exemplo, Jônatas Luiz Moreira de Paula, o qual professa, expressamente, que: “Definidos os
modelos hipotéticos do conteúdo da ação, verifica-se que, a luz da realidade social e dos litigantes, inclina-se
para a adoção da teoria da individualização como regra no sistema processual brasileiro.” Segundo ele, a adoção
da teoria da individauação nos apresentaria as seguintes vantagens que a justificam: “a) atenuação do princípio
da eventualidade e do sistema de preclusão, pois as demandas seriam mais flexíveis, permitindo uma maleável
demonstração dos direitos das partes e, conseqüentemente, da prestação da tutela jurisdicional; b) relativo ao
processo civil, o réu e o executado poderão deduzir direitos em face do autor e do credor e que serão
reconhecidos e acolhidos no próprio processo. Hodiernamente, a conduta do réu é restrita e onerosa, pois deve
estar circunscritos (sic) às hipóteses autorizadoras da reconvenção para postular contra o autor e o devedor estar
restringido à nova regra do § 1º, do artigo 585, do CPC, para reclamar direitos contra o credor; c) em termos
167
declarados ou não, conscientes ou não, ou, mesmo, teóricos a ela alheios, mas
partícipes de uma concepção de ampliação dos limites objetivos da coisa
julgada, se imiscuem forçando os diques construídos pela teoria da
substanciação em torno dos limites objetivos da coisa julgada.
E é, como veremos adiante, por essas e outras razões que, mesmo
autores professadamente substancialistas (atenuados ou não), nos advertem que
o sistema da tríplice identidade, quando muito, pode ser adotado como uma boa
hipótese de trabalho
445
, não se constituindo em um critério absoluto, que deverá
ser complementado, às vezes, por teorias subsidiárias, como a do objeto do
processo
446
ou a da identidade da relação jurídica material posta em causa
447
,
promovendo-se, assim, a adequação da coisa julgada à natureza do direito posto
em causa
448
.
2.2.5.1.3 A extensão objetiva da coisa julgada e eficácia preclusiva
O artigo 474 do vigente Código de Processo Civil Brasileiro diz
que “passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas todas as
alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao conhecimento como à
rejeição do pedido”.
Trata, a regra, como diz Sérgio Gilberto Porto, da aplicação do
princípio da preclusão do dedutível
449
, presentemente denominado como
probatórios, a teoria da individualização permitiria a investigação de direitos ou de relações jurídicas, o que é
mais flexível em comparação à uma investigação de fatos para acomodar-se a um modelo normativo; d) [...]
[possibilidade da] reunião de todas as lides entre as partes numa única demanda – impossível na teoria da
substanciação – o que mostra manifesta economia processual, não só em número de feitos mas em custos
financeiros [...]; e e) via de conseqüência, a jurisdição se efetivará, pois haverá pleno conhecimento acerca da
lide que envolve as partes,alcançando a verdade real sobre o litígio” (PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. Teoria
geral do processo. 3ª ed. Barueri: Manole, [2002 a 2003], p.117-8).
445
CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001, p. 175.
446
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 79-80.
447
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 175.
448
PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada Civil. 3ª ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2006, p. 68.
449
Ibid., p. 90.
168
princípio da eficácia preclusiva da coisa julgada
450
e, no passado, já
denominado sob a censurável expressão de princípio do julgamento
implícito
451
.
Segundo Egas Dirceu Moniz de Aragão,
Trata-se de reflexo do princípio da eventualidade, que entronca no da
preclusão [...]. Com efeito, exige o Código, tanto do autor na petição
inicial (art. 282, III e IV [do CPC]), quanto do réu na contestação
(arts. 300/303 [do CPC]), que indiquem claramente não só o pedido e
a defesa como os fatos e os fundamentos jurídicos em que os
assentam, que constituem suas recíprocas alegações, a fim de sobre
eles versar a disputa, a seu respeito ser produzida a prova e sobre eles
recair o julgamento. Proferido este, portanto, o litígio será examinado
sob todos os seus ângulos e por isso a sentença cobrirá não só o
quanto foi alegado e disputado como também o que deveria tê-lo mas
não foi. Daí ficarem ambas as partes impedidas de opor à sentença
passada em julgado alegações e defesas que não chegaram a ser
submetidas oportunamente ao julgador
452
.
O texto, segundo o mesmo Egas Dirceu Moniz de Aragão,
[...] consagra velho e conhecido preceito dogmático relacionado com a
formação da coisa julgada: tantum indicatum quantum disputatum
vel disputari debebat (tanto foi julgado quanto foi disputado ou devia
ser disputado)
453
.
Não se trata, aqui, daquela preclusão já tratada acima, quando
confrontamos a coisa julgada material e formal
454
e a coisa julgada e a
preclusão
455
.
Quando se fala em eficácia preclusiva da coisa julgada, à luz do
artigo 474 do Código de Processo Civil Brasileiro, fala-se em uma eficácia
extraprocessual (ou eficácia panprocessual), ou seja, que se projeta e opera para
futuros processos, não se adstringindo ao processo onde a decisão foi proferida,
450
TALAMINI, op. cit., p. 86.
451
ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Sentença e coisa julgada: exegese do código de processo civil: arts. 444
a 475. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 324.
452
ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Sentença e coisa julgada: exegese do código de processo civil: arts. 444
a 475. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 325.
453
Ibid., p. 324, grifo do autor.
454
Item 2.2.1, supra.
455
Item 2.2.2, supra.
169
como ocorre quando se fala em coisa julgada formal (eficácia endo ou
intraprocessual)
456
.
Tivemos a oportunidade de demonstrar que o dispositivo legal
em questão contou com antecedente legislativo no polêmico artigo 287 do
Código de Processo Civil Brasileiro de 1939, assim como tivemos a
oportunidade de demonstrar a sua filiação originária ao artigo 290 do projeto
Ludovico Mortara do Código Italiano de Procedimento Civil de 1940, cuja fonte
primária fora o antecedente e preliminar projeto de Francesco Carnelutti
457
, em
que pese Egas Dirceu Moniz de Aragão reputar a sua filiação ao artigo 305 da
codificação processual do Vaticano
458
e Araken de Assis desfiá-la a partir dos §§
616 e 767, III da codificação processual civil alemã (ZPO)
459
.
Advertência reiterada insistentemente pela doutrina, desde
Giuseppe Chiovenda
460
, acerca dessa regra, se dá no sentido de que ela “[...] não
pretende estabelecer que haja o julgamento implícito das alegações que
poderiam haver sido mas não foram realizadas”
461
, idéia essa que estaria a
ofender não só o artigo 5º, XXXV, da Constituição da Republica Federativa do
Brasil, que estabelece a garantia da inafastabilidade da tutela jurisdicional, como
456
GUIMARÃES, Luiz Machado. Preclusão, coisa julgada, efeito preclusivo. In: Estudos de direito
processual civil. ______. Rio de Janeiro: Jurídica/Forense Universitária, 1969, p. 15 apud PORTO, Sérgio
Gilberto. Coisa julgada Civil. 3ª ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 91.
457
Itens 2.1.2.1.2.1.1 e 2.1.2.1.2.1.2, supra.
458
ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Sentença e coisa julgada: exegese do código de processo civil: arts. 444
a 475. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 324. A redação do aludido artigo 305 do Código de Processo Civil do
Vaticano, segundo o autor, seria do seguinte teor: “Passada em julgado a sentença que decide sobre o pedido do
autor e eventualmente sobre o pedido reconvencional e sobre os pedidos incidentais, que tenham sido objeto de
uma decisão específica, reputam-se deduzidas e rejeitadas todas as defesas e exceções que poderiam ter sido
opostas ao acolhimento ou à rejeição desses mesmos pedidos” (Id., loc. cit.).
459
ASSIS, Araken de. Reflexões sobre a eficácia preclusiva da coisa julgada. In: SANEAMENTO do processo:
estudos em homenagem ao Prof. Galeno Lacerda. Porto Alegre: SAFe, 1989, p. 42, nota 69 apud apud PORTO,
Sérgio Gilberto. Coisa julgada Civil. 3ª ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006,
p. 91.
460
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução de Paolo Capitanio a partir da
2ª edição italiana [1935?]. Anotações de Enrico Túlio Liebman. 1ª ed. Campinas: Bookseller, 1998, v.1, p. 461.
461
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 85, grifo do
autor.
170
que, também, o artigo 93, IX, desse mesmo diploma, que assegura o dever
inafastável de fundamentação das decisões
462
.
O que há, conforme ensina Egas Dirceu Moniz de Aragão, é que
as
[...] alegações e defesas não deduzidas ficam atingidas pelo efeito
preclusivo inerente à coisa julgada, porém unicamente nos limites da
lide que foi objeto do processo; nada impede ao interessado propô-
las em novo processo, em que outra seja a lide
463
.
Ou, conforme disse Luiz Machado Guimarães, reportando-se ao
parágrafo único do artigo 287 do Código de Processo Civil Brasileiro de 1939,
quando ainda vigente:
Todas as questões - as deduzidas e as deduzíveis – que constituam
premissas necessárias da conclusão considerar-se-ão decididas, não no
sentido de revestidas da autoridade de coisa julgada, mas no sentido
de se tornarem irrelevantes, se vierem a ser ressuscitadas com a
finalidade de elidir a res iudicata
464
.
Desse modo,
[...] em processo distinto no qual seja discutida pretensão diversa –
outro o pedido ou outra a causa de pedir, ainda que entre as mesmas
partes – a dita alegação ou defesa poderá ser suscitada e deverá ser
levada em consideração na sentença
465
.
Daí, seguem-se os exemplos: a impossibilidade de se buscar a
repetição de indébito ou opor embargos do devedor quando, na ação de cobrança
não se alegou o pagamento outrora havido
466
; a impossibilidade de subtrair-se ao
462
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 85, grifo do
autor. Também: ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Sentença e coisa julgada: exegese do código de processo
civil: arts. 444 a 475. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 325 e 327-8.
463
ARAGÃO, op. cit., p. 328, grifo nosso.
464
GUIMARÃES, Luiz Machado. Preclusão, coisa julgada, efeito preclusivo. In: Estudos de direito
processual civil. ______. Rio de Janeiro: Jurídica/Forense Universitária, 1969, p. 22 apud ARAGÃO, op. cit., p.
327-8, grifo do autor. É o que, igualmente, ensina Eduardo Talamini, dizendo que: “Toda e qualquer alegação,
desde que interna ao limites da causa de pedir e do pedido, torna-se irrelevante depois de formada a coisa
julgada – tenha ou não sido formulada; tenha ou não sido examinada pelo julgador” (TALAMINI, op. cit., p. 86,
grifo do autor).
465
ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Sentença e coisa julgada: exegese do código de processo civil: arts. 444
a 475. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 328, grifo nosso.
466
Id., loc. cit.
171
pagamento imposto pela condenação alegando-se a nulidade do contrato quando
esta não foi alegada no processo de conhecimento
467
. Ao reverso: não estará o
devedor condenado a discutir o pagamento em processo distinto, daí extraindo
os seus consectários legais ou contratuais
468
; não estará, do mesmo modo, o
devedor impedido de discutir a nulidade do contrato em uma ação de cobrança
de uma de várias prestações, ainda que em ação anterior, também de cobrança
de parcelas inadimplidas anteriormente, não alegara a nulidade ou, até, alegara e
fora repelida, já que nesse caso, como, inclusive, alhures já visto
469
, a rejeição se
daria na fundamentação da sentença anterior, que não faz coisa julgada, salvo se
declarada incidentalmente por expressava provocação do réu
470
.
Em suma, a eficácia preclusiva da coisa julgada, tal qual
encontra-se regrada no artigo 474 do Código de Processo Civil Brasileiro, não
tem o condão “[...] de consumir todas as causas aptas a ensejar o acolhimento do
pedido, mas, sim, e tão-somente, as alegações e defesas pertinentes à causa de
pedir deduzida [...]”
471
.
Vimos acima, porém, ao tratarmos dos contornos da causa de
pedir
472
, que a eficácia preclusiva da coisa julgada pode ter uma maior ou menor
amplitude a partir não só da teoria informadora da causa de pedir que se abrace,
como, também, ao contorno que se dê ao que seja o dito fato principal.
Assim é que, por exemplo, adotando-se a teoria da
individualização, a eficácia preclusiva da coisa julgada alcançaria “[...] todos os
fundamentos no acolhimento ou na rejeição de determinado pedido, mesmo
quando não postos em causa [...]”
473
, na exata medida em que “[...] identifica o
467
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 87.
468
ARAGÃO, op. cit., p. 328.
469
Itens 2.1.2.1.2.1.2 e 2.1.2.1.2.2.1, supra.
470
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 87.
471
PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada Civil. 3ª ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2006, p. 88.
472
Item 2.2.5.1.2, supra.
473
PORTO, op. cit., p. 94, grifo nosso.
172
conteúdo da causa de pedir na simples afirmação da existência de relação
jurídica”
474
.
E, mesmo adotando-se a teoria da substanciação, como vimos
acima
475
, conquanto para essa teoria é de capital importância a delimitação do
denominado fato principal, que consumiria, com ele, todos os fatos
secundários, nem sempre se mostra pacífica a delimitação da eficácia
preclusiva da coisa julgada.
Não raro, como demonstrado acima
476
, fatos que, para alguns, são
secundários, para outros, são principais, e, portanto, não precluíveis, na medida
em que se mostram aptos a constituírem uma nova causa de pedir.
Quanto à sua relevância para o instituto da coisa julgada, diz
Eduardo Talamini que a eficácia preclusiva é
[...] uma imposição necessária, uma decorrência lógica, da vigência da
coisa julgada. Idêntica diretriz por-se-ia ainda que a regra do art. 474
não existisse. Não faria sentido consagrar a coisa julgada e, ao mesmo
tempo, abrir o flanco a ataques fundados em questões vencidas
477
.
Operacionalmente, vale a pena lembrar, com Rodolfo de
Camargo Mancuso, que:
[...] a coisa julgada aparece como resultado de um encadeamento e
interação das ocorrências ao longo da relação processual, porque,
embora ela se realize ao final, após a decisão de mérito e a superação
das possibilidades recursais, fato é que a coisa julgada não se
aperfeiçoa de inopino, mas na verdade vem sendo preparada ao
longo de uma série de preclusões, mais ou menos intensas, a partir da
fase postulatória. Nesse sentido, considerem-se: i) pedidos não
formulados e reconvenção não oferecida até o momento da
estabilização do processo precluem, só podendo ser manejados em
processo posterior; (ii) questões (= pontos controvertidos) não
resistidas, igualmente precluem, tornando-se incontroversas, em
decorrência do ônus da impugnação especificada (CPC, art. 302); (iii)
por maior razão, faltando resistência à demanda, dá-se a revelia, que,
tirante as exceções do art. 320, faz presumir verdadeiros os fatos
historiados pelo autor (CPC, art. 319), inclusive podendo levar à
474
PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada Civil. 3ª ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2006, p. 95.
475
Item 2.2.5.1.2, supra.
476
Item 2.2.5.1.2, supra.
477
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 86.
173
compactação do rito (art. 330, II); (iv) provas não requeridas ou não
realizadas no tempo e modo devidos também precluem, e tais
omissões podem determinar o conteúdo do julgado, pois actore non
probandum, réus absolvitur; (v) preliminares e objeções não opostas
no prazo ficam prejudicadas, porque a eficácia preclusiva da coisa
julgada cobre o deduzido e o deduzível (CPC, art. 473, 474); (vi)
superada a instância recursal (ou não instaurada) dá-se um salto de
qualidade nessa escalada de preclusões, alcançando-se a coisa
julgada formal, dita preclusão máxima (CPC, art. 467); (viii) só
então, e ainda na medida em que o permitam as peculiaridades do caso
concreto, chega-se por fim à coisa julgada material, ou auctoritas rei
iudicatae, que estabiliza e imuniza o julgado (CPC, art. 468).
(Relembre-se, outrossim, que as preclusões não recobrem apenas as
faculdades não exercidas oportuno tempore, havendo ainda as que
ocorrem pelas modalidades lógica (CPC, art. 503 e parágrafo único) e
consumativa: o exercício de apenas uma ou algumas das faculdades
processuais incidentes na espécie, faz precluir as demais, como pode
dar-se, v.g., na eventualidade de interposição concomitante dos
recursos extraordinário e especial – CPC, art. 543)
478
.
Não é por outra razão, portanto, que, alhures, afirmamos que,
assim encarado o processo, a coisa julgada é o cume de um verdadeiro sistema
de preclusões
479
, no qual a dita eficácia preclusiva da coisa julgada se imbrica
justamente para emprestar imutabilidade a uma parte desse sistema
preclusivo, ou seja, àquela parte relacionada com a causa de pedir
efetivamente introduzida no processo.
Como bem lembra Júnior Alexandre Moreira Pinto, segundo a
regra da eventualidade,
[...] definida como a obrigatoriedade da apresentação simultânea das
razões pelas partes [...] todas as causas petendi devem de uma só vez
ser introduzidas no processo, por ocasião de uma fase processual, que
no Brasil se dá pela petição inicial. E do mesmo modo o réu, que
deverá trazer em sua contestação toda a matéria de defesa
480
.
Portanto, negligenciada qualquer causa de pedir, com a inicial,
esta estará preclusa e não integrará o julgado, ficando, porém e por isso mesmo,
478
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada: teoria geral das ações coletivas. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 424-5, grifo do autor.
479
Item 2.2.1, supra.
174
infensa à coisa julgada, que estará adstrita à causa de pedir introduzida pelo
autor.
Nos limites da causa de pedir deduzida pelo autor, incidirá,
então, a eficácia preclusiva da coisa julgada, tornando irrelevantes, para o
futuro, todo fundamento (fático ou jurídico) que pudesse manejar para
demonstrar a procedência da sua pretensão.
Quanto ao réu, a eficácia preclusiva da coisa julgada, sempre
adstrita à causa de pedir delimitada pelo autor (lembrando, porém, que o réu
poderá ampliar o objeto do processo, mediante a introdução, por exemplo, de
reconvenção ou pedido contraposto, ou, ainda, de um pedido declaratório
incidental), operará nos moldes do artigo 300 do Código de Processo Civil
Brasileiro, impondo a ele que, além de todas as matérias que tiver em sua
defesa, deverá expor todas as razões de fato e de direito pelas quais se opõe ao
pedido do autor, especificando, outrossim, as provas que pretenda produzir
481
.
A redação do artigo 300 do Código de Processo Civil Brasileiro
leva, nesse particular, a que Júnior Alexandre Moreira Pinto, afirme, inclusive,
que ele impõe “[...] uma maior carga ao demandado do que ao demandante”
482
.
E é, por outro lado, justamente pela rigidez desse sistema
preclusivo, com reflexos materiais (ainda que apenas em parte), que José
Rogério Cruz e Tucci nega peremptoriamente a compatibilidade da teoria da
individualização da causa de pedir com o direito processual posto no Brasil,
sustentando que
[...] a defesa da regra da individuação somente tem valia à luz de um
sistema flexível, em que os fatos constitutivos não integrariam
480
PINTO, Júnior Alexandre Moreira Pinto. Sistemas rígidos e flexíveis: a questão da estabilização da
demanda. In: CRUZ E TUCCI, José Rogério; BEDAQUE, José Roberto dos Santos (Coord.). Causa de pedir e
pedido no processo civil: questões polêmicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 63, grifo do autor.
481
PINTO, Júnior Alexandre Moreira Pinto. Sistemas rígidos e flexíveis: a questão da estabilização da demanda.
In: CRUZ E TUCCI, José Rogério; BEDAQUE, José Roberto dos Santos (Coord.). Causa de pedir e pedido no
processo civil: questões polêmicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 63.
482
Id. A causa petendi e o contraditório. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 42.
175
obrigatoriamente a causa de pedir, e a qualquer momento poderiam ser
alterados (informação verbal)
483
.
É de se dizer, também, que, assim como, por força do artigo 469,
III, do Código de Processo Civil Brasileiro, a eficácia preclusiva não alcança as
questões prejudiciais julgadas incidentalmente, ela não alcança o pedido que não
foi formulado, ainda que pudesse tê-lo sido, eis que, como visto
anteriormente
484
, a coisa julgada só se forma sobre o pedido concretamente
deduzido.
Com muito maior razão, ainda, a eficácia preclusiva não
alcançará, eventual ponto omitido do julgamento, já que, como afirma Egas
Dirceu Moniz de Aragão,
[...] sobre o ponto omisso não recai sentença; por conseguinte não
pode formar-se coisa julgada a seu respeito [...]. Logo, a esse
propósito não será possível pensar na incidência da norma em exame
[refere-se ao artigo 474 do Código de Processo Civil Brasileiro]
485
.
A assertiva ecoa antiga lição de Alfredo de Araújo Lopes da
Costa, no sentido de que “Se a sentença é incompleta, não existe sentença sobre
a parte omissa. A parte não pode recorrer de uma sentença inexistente”
486
.
483
Assertiva sustentada por José Rogério Cruz e Tucci defendida em aula ministrada no curso de pós-graduação
da Universidade de São Paulo apud PINTO, Júnior Alexandre Moreira Pinto. Sistemas rígidos e flexíveis: a
questão da estabilização da demanda. In: CRUZ E TUCCI, José Rogério; BEDAQUE, José Roberto dos Santos
(Coord.). Causa de pedir e pedido no processo civil: questões polêmicas. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002, p. 64.
484
Item 2.2.5.1.1, supra.
485
ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Sentença e coisa julgada: exegese do código de processo civil: arts. 444
a 475. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 326.
486
LOPES DA COSTA, Antonio Araújo. Direito processual civil brasileiro. 2ª ed. rev., aum. e atual. Rio de
Janeiro: Forense, 1959, v. III, p. 321. Mais recentemente, Teresa Arruda Wambier e José Miguel Medina,
sufragaram a mesma idéia, concluindo “[...] no sentido de que o pedido pode [ser, em tal hipótese] reformulado
[...]” isso sob a premissa de que a sentença, nesse caso, é “[...] um ato que pretende ser uma sentença, a que
todavia, falta característica essencial: a decisão propriamente dita. É uma sentença fática e juridicamente
inexistente” (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia Medina. O dogma da coisa
julgada: hipóteses de relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 78-85, grifo do autor). Também
Cândido Rangel Dinamarco, sustenta expressamente que, nos casos de julgamento citra petita referido a
processo em que tenha havido cumulação de pedidos, inferidos ou não da mesma causa de pedir, “A mais
significativa conseqüência prática dessa omissão é que, passando em julgada a sentença, a coisa julgada não
impedirá o autor de voltar a juízo com a pretensão não decidida – porque a auctoritas rei judicatae nada mais é
do que a indiscutibilidade dos efeitos substanciais da sentença e, obviamente, jamais poderia incidir sobre efeitos
que a sentença não houver declarado” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Capítulos de sentença. São Paulo:
Malheiros, 2002, p. 90, grifo do autor). José Carlos Barbosa Moreira, igualmente diz que “[...] não
necessidade de grande esforço dialético para demonstrar que, em relação aos tópicos – ou (na terminologia do
176
Em suma, por todas essas razões, conclui-se que a imposição do
artigo 474 do Código de Processo Civil Brasileiro
[...] só se aplica nos limites da coisa julgada que se formou. Alegações
que constituam ou integrem outra causa de pedir ou que sejam
relevantes para outro pedido que não tenha ficado prejudicado pela
coisa julgada anterior poderão ser formuladas em outro processo – e
isso mesmo quando elas fossem também relevantes para o processo
que já se decidiu. Sustentar o contrário implicaria cercear o direito de
ação do jurisdicionado relativamente a pretensões que ele jamais
formulou antes – o que o art. 5º, XXXV, da Constituição [da
República Federativa do Brasil] não tolera.
487
Afinal, em que pese não haver dúvida que o artigo 474 do
Código de Processo Civil brasileiro desempenha um papel de nítida ampliação
dos limites objetivos da coisa julgada, não se pode
[...] perder de vista os limites da lide (art. 128 do CPC), nem mesmo
pretender a modificação dela (art. 264 do CPC); deve isso sim, ainda
diante do princípio da eventualidade (art. 300 do CPC), ater-se à
tríplice identidade da demanda, cingindo-se a amplitude da defesa ao
parâmetro por esta imposto.
Não se pode perder de vista a adoção indiscutível pelo ordenamento
da teoria da substanciação (art. 282, III, do CPC, por exemplo), a qual
considera os fatos relevantes para a definição do conteúdo da causa de
pedir e, por conseqüência, não há como considerar consumidas todas
as causas capazes de suportar o pedido, sem provocar profunda
ablação na harmonia do sistema que admite a idéia de coisa julgada, a
partir da teoria da tríplice identidade [...].
488
art. 458, III, do Código [de Processo Civil Brasileiro] atual) em relação às questões – integrantes do thema
decidendum e, apesar disso, sem solução no dispositivo, descabe cogitar de formação da coisa julgada
(MOREIRA, José Carlos Barbosa. Item do pedido sobre o qual não houve decisão. Possibilidade de reiteração
noutro processo. In: ______. Temas de direito processual civil: 2ª série. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 241 apud
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. 5ª ed. rev., atual. e ampl. de acordo
com as Leis 10.352/2001, 10.358/2001 e 10.444/2002. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 504, grifo do
autor).
487
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 86-7, grifo
do autor.
488
PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada Civil. 3ª ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2006, p. 95. Não se mostra excessivo, nesse passo, recordar Enrico Tullio Liebman, em passagem
reportada aos limites objetivos da coisa julgada que, dada a sua síntese e clareza, merece lembrança: Acolha-se
[...] com muita cautela a afirmação segundo a qual a coisa julgada se estenderia às questões debatidas e decididas
na sentença. É uma afirmação por um lado muito ampla, por outro muito restrita. É uma afirmação muito ampla,
porque não são cobertas pelo julgado as mais ou menos numerosas questões de fato e de direito que o juiz tem de
examinar para decidir a causa, as quais representaram o caminho lógico por ele percorrido para chegar à
conclusão, mas perdem toda a importância depois que ele pronunciou sua decisão. Entre outras, também as
questões prejudiciais eventualmente surgidas no processo sofrem tratamento análogo. Convém recordar que
como regra as questões prejudiciais são conhecidas incidenter tantum, isto é, são objeto de cognição, mas não
de decisão, com eficácia lógica, porém não imperativa [...]. Apenas a lei o exige, ou se uma parte propõe
demanda análoga, a questão passa a fazer parte do objeto do processo e é decidida em via principal, com
177
2.2.5.1.4 A extensão objetiva da coisa julgada e a questão temporal: fatos
novos e relações jurídicas continuativas
Quando se fala em limites temporais da coisa julgada, nada mais
se busca do que “[...] definir quais fatos, no curso do tempo, estão abrangidos
pela causa de pedir e o pedido postos em juízo e, conseqüentemente, pela coisa
julgada que se formar”
489
.
É claro que, por tudo que já se falou até aqui, mostra-se curial a
assertiva de que quaisquer fatos informadores da causa de pedir ocorridos
anteriormente ao aforamento da ação estarão abrangidos pela coisa julgada,
tenham eles sido alegados ou não pelas partes, por força, justamente, da eficácia
preclusiva da coisa julgada de que acabamos de falar. É o caso, por exemplo, do
pagamento já feito da dívida que, inobstantemente, é cobrada
490
.
Do mesmo modo, é curial que, qualquer fato ocorrido após o
trânsito em julgado e que, de qualquer modo, venham influir no julgado,
igualmente não estará abrangido pela coisa julgada, podendo, o fato, ser
manejado inclusive em sede de impugnação da execução que vier a ser proposta.
É o caso, por exemplo, da extinção da dívida por qualquer um dos modos
admitidos pela lei civil (pagamento, novação, etc). Trata-se, aí, de nova causa de
conseqüência de que a decisão fica coberta pela autoridade da coisa julgada. Por outro lado, a afirmação
mencionada é muito restritiva, porque o vínculo do julgado exclui que se possam fazer valer questões que
poderiam recolocar em discussão a determinação contida na sentença, mesmo se não foram propostas no
processo e não foram objeto de exame por parte do juiz. É isso que se pretende dizer na prática ao afirmar
que a coisa julgada cobre o deduzido e o deduzível. A coisa julgada seria bem vulnerável, se fosse lícito
recolocá-la em discussão com argumentos ou exceções não utilizados anteriormente. Naturalmente, para
qualquer outro fim, diverso daquele de informar o decisum, as questões permanecem não julgadas e podem ser
propostas em outro processo e decididas livremente” (LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual
civil. Tradução da 3ª ed. Italiana. Intelectos: Tocantins, 2003, v. III, p. 178-9, grifo do autor).
489
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 87, grifo do
autor.
490
Ibid., p. 88.
178
pedir
491
.
Pode ser, porém, que fatos novos, com repercussão sobre a causa
de pedir, surjam no curso do processo. Com relação a eles, a coisa julgada os
abarcará ou não? “Ou melhor: qual a linha divisória para que se submetam a um
ou outro regime”
492
?
O artigo 462 do Código de Processo Civil Brasileiro é quem nos
dá esse marco, podendo ser fixado como “[...] o último momento em que era
possível o conhecimento, dentro do processo, dos fatos supervenientes [...]”
493
,
momento esse que se dará, num primeiro momento, quando for o processo
concluso para a sentença e, após proferida, na hipótese de recurso, enquanto não
se esgotar a via recursal ordinária, compreendendo-se, nesse particular, que o
aludido artigo 462, a despeito de referir-se apenas a sentença, abrange, também,
a fase recursal ordinária, inclusive com possibilidade de reabertura da
instrução probatória.
494
Em sede recursal extraordinária (recurso especial e
extraordinário) já não mais caberá a introdução de fatos novos.
A coisa julgada apanhará, portanto, através da sua eficácia
preclusiva, todos os fatos novos ocorrido no curso da demanda até que se
consumem as vias ordinárias.
Qualquer fato ocorrido após esgotada a via ordinária (ainda que,
portanto, o processo não tenha se consumado, pendente que se encontre, por
exemplo, de julgamento de recurso especial, e que, por via de conseqüência, não
haja o trânsito em julgado da sentença), será tido, caso influa sobre a causa de
pedir, como uma causa nova e estranha a coisa julgada que ainda está por se
formar.
491
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 88.
492
Id., loc. cit.
493
Id., loc. cit.
494
Ibid., p. 89.
179
Não é, assim, o trânsito em julgado, em tais situações, que será
tido como termo final para fins de preclusão fática, e, sim, o esgotamento das
vias ordinárias, que se dará com a conclusão do processo para julgamento do
competente recurso (conclusão ao relator no juízo preliminar de admissibilidade,
quando o julgamento de mérito, excepcionalmente, se der em juízo monocrático;
ou conclusão ao relator imediatamente anterior ao pedido de inclusão em pauta
para julgamento, quando a decisão se der pelo órgão colegiado).
Portanto, são abrangidos pela coisa julgada todos os fatos ocorridos
até o momento da conclusão dos autos antes da decisão da fase
recursal ordinária (apelação, reexame necessário, recurso ordinário em
sentido estrito ...) – desde que contidos na causa de pedir já posta em
juízo
495
.
Por outro lado, há aquelas relações ditas continuadas ou
continuativas “[...] que perduram no tempo, de modo que suas posições
jurídicas internas (direitos, deveres, ônus...) podem ser modificados ou
redimensionadas no curso da relação, conforme varie o panorama fático ou
jurídico [...]”
496
. É o caso dos alimentos, cujo montante é sempre fixado
atendendo ao binômio capacidade (do alimentante) x necessidade (do
alimentando); o valor do aluguel, na locação, que deve estar em conformidade
com o valor de mercado; a incapacidade para o trabalho, seja na ação
previdenciária, seja na ação reparatória decorrente da responsabilidade civil
(contratual ou extracontratual); ou em contrato de fornecimento de bens e
serviços segundo as condições de mercado, de agência ou concessão
mercantil
497
.
Ditas relações contam com o regramento específico do artigo
471, inciso I, do Código de Processo Civil Brasileiro, que permite seja a
sentença revista sempre que sobrevier “[...] modificação no estado de fato ou de
495
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 89.
496
Id., loc. cit.
497
Os exemplos, salvo o da responsabilidade aquiliana, são de: TALAMINI, op. cit., p. 93.
180
direito [...]”, norma essa cuja razão de ser está “[...] na conformação estrutural e
na dinâmica do tipo de relação sobre o qual incide [...]”
498
.
Não que não haja, na hipótese, coisa julgada material. Há.
Inclusive nas ações de alimentos, malgrado a redação do artigo 15 da Lei
5.478/1968
499
.
Ocorre, porém, que a sentença e a própria coisa julgada, aí,
sempre estarão referidas aos fatos e ao direito conformados e reconhecidos no
julgado. E nesses estritos limites há coisa julgada, não só formal, como querem
alguns, como material.
500
A superveniência de fato ou de regra que venha a influir na
relação jurídica, nesses casos, é encarada como verdadeira e nova causa de
pedir, que permitirá uma nova decisão, através de uma nova ação, diante da
nova conformação fática e/ou jurídica
501
.
Tanto é assim que a terminologia empregada pelo referido
dispositivo legal, no sentido de que a decisão poderia ser revista, é
correntemente criticada, justamente porque não há, propriamente, qualquer
revisão do julgado.
O que há, nesses casos, é uma nova ação, “[...] uma nova
pretensão, inconfundível com aquela que ficou acobertada pela res
iudicata
502
, onde, a partir da nova situação fática/jurídica, se buscará um novo
julgado.
Tanto há coisa julgada, inclusive material, nessa hipótese, que
não há qualquer possibilidade de se revisar o julgado a partir da sua injustiça,
discutindo-se, por exemplo, que a fixação do valor dos alimentos, dadas as
condições estabelecidas, não poderia ser correspondente a 25% dos ganhos do
alimentante, mas, sim, de 15%, por exemplo.
498
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 89.
499
Ibid., p. 94.
500
Ibid., 90.
501
Id., loc. cit.
502
Id., loc.cit, grifo do autor.
181
Não se poderá, do mesmo modo, querer-se discutir, com
fundamento no referido dispositivo legal, em uma superveniente revisão, a
injustiça da decisão que reconheceu incapacidade total para o trabalho, dada a
perda funcional de um dos seus braços, argumentando-se que a incapacidade
seria somente parcial.
Agora, digamos que o alimentando, no exemplo acima, venha a
ser acometido, supervenientemente, por grave doença, que não só lhe reduz os
ganhos, como que, também, lhe aumente as despesas.
Suponhamos, ainda, que, no caso da incapacitação outrora
reconhecida, haja a regeneração funcional do membro tido como perdido
503
.
Em ambas as hipóteses incidiria, sem dúvida, a regra em
comento, incidência essa que é operacionalizada por uma nova ação, que não
encontra óbice no comando anteriormente proferido, e que valerá a partir da
mudança fática ou jurídica havida, como é o caso da tradicional ação de revisão
de alimentos (note-se que o que se revisa são os alimentos devidos e, não,
propriamente, a sentença outrora proferida), e, no caso da incapacitação que
deixa de existir, da ação de exoneração pura e simples do pensionamento.
Eduardo Talamini, com fundamento no mesmo dispositivo legal
sustenta, por fim, que, em condições específicas, a regra nele encartada seria
aplicável às denominadas relações sucessivas, como as tributárias, por exemplo,
“[...] que, por sua reiteração e homogeneidade, tenham sido julgadas em uma
única sentença”
504
.
503
O Desembargador Sérgio Cavalieri Filho cita um caso com ele ocorrido, em que, 15 (quinze) anos após haver
proferido uma sentença (fundada em laudo pericial) reconhecendo a incapacidade absoluta de um então
estudante de Direito, vítima de um disparo de arma de fogo que atingira a sua cabeça, dando-lhe pensão mensal,
encontrou-o advogando normalmente em seu próprio foro. Supondo a autenticidade do laudo (caso em que a
questão envolveria a própria justiça do julgado), trata-se de exemplo clássico de regeneração da lesão (fala-se,
hoje, inclusive, em plasticidade cerebral, para indicar a capacidade que o cérebro tem em fazer com que regiões
inaproveitadas ou subutilizadas assumam e desempenhem funções de áreas que tenham sido lesadas), que
poderá, com fundamento do artigo 471, I, do Código de Processo Civil Brasileiro, ser reconhecida (CAVALIERI
FILHO, Sérgio. Programa de responsabiliade civil. 4ª ed. rev., aum. e atual. de acordo com o novo Código
Civil. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 135).
504
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 92.
182
A despeito de se reconhecer que cada incidência do tributo
devido, nos sucessivos exercícios ou fatos geradores verificados, constitui uma
dada e específica relação jurídica, ele argumenta que é perfeitamente possível
“[...] haver relações jurídicas múltiplas e sucessivas, porém homogêneas, entre
os mesmos sujeitos”
505
, de tal modo que:
[...] dependendo do objeto do processo, poderá ser emitido decisum
que se aplique às incidências futuras do tributo, enquanto mantidas as
condições fáticas e normativas em que se deu o julgado.
Conseqüentemente, aplicar-se-á também a regra do art. 471, I [do
CPC]
506
.
A polêmica é antiga e acirrada, contando-se, em sentido contrário
à tese sustentada por Eduardo Talamini, com o enunciado da Súmula 239 do
Supremo Tribunal Federal
507
, que tem impedido a aplicação da regra em
comento às relações tributárias sob o argumento de se “[...] excluir os motivos e
fundamentos da sentença”
508
.
2.2.5.1.5 O objeto litigioso do processo como limite objetivo da coisa julgada
Vimos acima que a doutrina, majoritariamente, opina no sentido
de que o nosso sistema legal adotou a teoria de tríplice identidade (partes,
pedido e causa de pedir) para fins de identificação da ação, inclusive para fins de
coisa julgada.
O pedido e a causa de pedir, nesse contexto, conforme também
tivermos a oportunidade de ver, no âmbito da causa de pedir, conformariam os
limites objetivos da coisa julgada, ao passo que as partes nos dariam os seu
limites subjetivos.
505
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 92.
506
Ibid. p. 93, grifo do autor.
507
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 239, da Sessão Plenária, Brasília, DF, 13 de dezembro de 1963.
Disponível em: <http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/nova/pesquisa.asp> . Acesso em: 22 jul. 2007.
508
TALAMINI, op. cit., p. 93.
183
A despeito disso e a despeito dos esforços que têm sido
despendidos, quanto aos limites objetivos da coisa julgada, no sentido de
delinear adequadamente tanto os contornos do pedido quanto da causa de pedir,
de tal modo a dar a adequada resposta, a partir dessa teoria, à multiplicidade dos
fatos que, no dia-a-dia, clamam, perante o judiciário, pelo seu devido
enquandramento, o fato é que, com o passar do tempo, a doutrina, pouco a
pouco, acumulou situações que, dentro de um esquema rígido, não seriam
satisfatória ou de qualquer modo resolvidos com a teoria hegemônica.
Assim é que, por exemplo, Emílio de Andrade Vilhena, cita o
caso de duas ações reivindicatórias sucessivas com identidade subjetiva e
objetiva, divergindo apenas quanto à causa de pedir remota. Improcedente a
primeira demanda, lastreada na tradição, porque reconhecida, em favor do réu,
exceção de usucapião por ele deduzida, também a improcedência da segunda
demanda, fundada em posterior aquisição pelo casamento, seria de rigor. Com
isso, o autor sustenta que a causa excipiendi pode também implicar na inter-
relação de causas e conduzir ao reconhecimento da existência de efeito negativo,
no caso, da coisa julgada.
509
No extremo oposto, poder-se-ia alegar que, conquanto a exceção,
no caso, seja reconhecida incidentalmente, inexistiria a coisa julgada. Quanto, a
isso, vale lembrar que, na atualidade contamos com pelo menos duas hipóteses
em que o usucapião reconhecido em sede de defesa gera título hábil para o
registro: de um lado, o usucapião especial rural nos termos do artigo 7º da Lei nº
6.969, de 10 de dezembro de 1981
510
; e, de outro lado, o usucapião coletivo
urbano, tal qual consta do artigo 13 da Lei nº 10.257, de 10 de setembro de 2001
509
VILHENA, Paulo Emílio de Andrade. Conexidade pela causa excipiendi e individuação da causa. Revista
dos Tribunais, São Paulo, nº 395, p. 31, [entre jan. e dez.] 1968 apud CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa
petendi no processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 227.
510
BRASIL. Lei nº 6.969, de 10 de dezembro de 1981. Dispões sobre a aquisição, por usucapião especial, de
imóveis rurais, altera a redação do § 2º do art. 589 do Código Civil e dá outras providências. Estatuto da Terra:
obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto e Márcia
Cristina Vaz dos Santos Windt. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 293-5, 1997.
184
(Estatuto da Cidade
511
). Assim, quer nos parecer que, realmente, fica difícil
negar que, ao menos nesses dois casos específicos e ao menos em relação ao
reivindicante em face do qual a exceção veio a ser reconhecida, a eficácia da
coisa julgada, realmente, se faz presente
512
, ainda que se queira, portanto,
discordar da assertiva do autor em geral. Seria, de fato, imponderável que,
perante o autor, se adquirisse a propriedade, inclusive mediante registro
imobiliário da sentença e se admitisse que ele (autor) viesse a se declarar
proprietário no futuro. Ele, nesse caso, sequer adquiriria, mesmo no plano
formal, a propriedade pelo casamento, se a sentença viesse a ser registrada. E
não é o fato da sentença não ter sido registrada que vai alterar, no mais, a
substância das coisas.
Do mesmo modo, conforme apanhado por José Rogério Cruz e
Tucci, Vicente Greco Filho, cita dois casos em que o nosso sistema admite a
presença da eficácia negativa da coisa julga sem que haja a tríplice identidade. É
o caso da sentença de liquidação em desacordo com o a sentença liquidanda, em
que há ofensa a coisa julgada sem que haja identidade do pedido e da causa de
pedir com a ação que implicou na sentença; assim como é o caso da sentença
que ofende a coisa julgada formada entre as mesmas partes em torno de relação
jurídica prejudicial, onde também há ofensa a coisa julgada sem que a tríplice
identidade esteja presente
513
.
511
Id. Lei nº 10.257, de 10 de setembro de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal,
estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Estatuto da cidade (Lei nº 10.257, de 10
de julho de 2001): obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo
Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. São Paulo: Saraiva, p. 23-50, 2001.
512
Não se está, aqui, a afirmar que a sentença proferida em sede de defesa no usucapião especial rural ou
coletivo urbano gere eficácia de coisa julgada erga omnes. Não se pode perder de vista que, em sede de defesa
não se instaura a via editalícia, pelo que, mesmo registrável, a sentença só gerará a eficácia de coisa julgada em
face de quem ela vier a ser proferida, e, jamais, em face de terceiros outros, como os confinantes e, até mesmo o
proprietário consignado na matrícula, na hipótese em que o usucapião vier a ser reconhecido em sede de defesa
possessória deduzida por possuidor diverso daquele que figura como proprietário no registro imobiliário. Para
maiores detalhes acerca desse particular, consulte-se a excelente abordagem de RIBEIRO, Benedito Silvério.
Tratado de Usucapião. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 2, p. 1319-22 e 1340-69.
513
GRECO FILHO. Vicente. et al. Comentários ao Código de Proteção do Consumidor. São Paulo: Saraiva,
1991, p. 362 apud CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 227-8.
185
Há também a hipótese da ação de usucapião extraordinária, onde,
por se dispensar o título aquisitivo da posse, em última instância, o nosso
ordenamento teria adotado, excepcionalmente, a teoria da individualização pura,
no que tange à causa de pedir
514
.
O fundamento jurídico estrito, em outras oportunidades, pode ser
determinante para a identificação da causa de pedir, como ocorre com a ação
direta de inconstitucionalidade ou da ação rescisória quando fundada na violação
de literal disposição de lei (artigo 485, V, do Código de Processo Civil
Brasileiro).
515
Essas e outras situações materiais fizeram com que Vicente
Greco Filho, por exemplo, afirmasse que “[...] a tríplice identidade é
indispensável para a identificação das ações, mas não serve para a objeção de
coisa julgada, que tem uma aplicação mais ampla”
516
, no que, em última razão, é
acompanhado por Eduardo Talamini, quando diz que
[...] a simples consideração isolada ora do pedido, ora da causa de
pedir, é insuficiente para solução dos problemas atinentes aos limites
objetivos da coisa julgada (como de resto também o é para as questões
referentes a litispendência, conexão, continência etc.)
517
.
Não desconhecendo essa realidade, José Rogério Cruz e Tucci
admite que “[...] em várias situações concretas, a teoria da tríplice identidade
desponta insuficiente para desempenhar o papel que lhe é reservado no
514
CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001, p. 226-7. Deve-se mencionar, contudo, que o autor fala, na hipótese, apenas em um
abrandamento da teoria da substanciação e, não propriamente, na adoção da teoria da individualização, o que,
contudo, não o impediu de concluir que “[...] [o fato essencial], na ação de usucapião extraordinária, se resume
[...] na alegação da posse mansa, pacífica e ininterrupta pelo prazo de vinte anos, de sorte que a não-
comprovação desse fato constitutivo, qual seja a posse longeva, implica na improcedência do pedido,
acarretando ao autor, por força da coisa julgada, a conseqüência de jamais poder ajuizar outra demanda
vizando à declaração de usucapião extraordinária em situação substancial pretérita” (Id., loc. cit., grifo
nosso). Ou seja, apesar dele falar, apenas, em uma atenuação da teoria da substanciação, para os fins da coisa
julgada, a conseqüência prática que ele extrai da peculiaridade da causa de pedir nessa hipótese é, em tudo,
idêntica àquela que deduziríamos da tese da individualização. No mais, pelas mesmas razões, somos levados a
concluir que a improcedência da demanda da ação de usucapião especial rural e urbano, implicaria nas mesmas
conseqüências, já que também aí se dispensa o justo título.
515
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 74.
516
GRECO FILHO. Vicente. et al. Comentários ao Código de Proteção do Consumidor. São Paulo: Saraiva,
1991, p. 362 apud CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 228.
517
TALAMINI, op.cit., p. 79.
186
confronto de duas ou mais ações”.
518
Mesmo nessas situações excepcionais, José
Rogério Cruz e Tucci insiste no sentido de dizer que a tríplice identidade não
deixa de ser “[...] uma boa hipótese de trabalho [...]”
519
, ainda que não absoluta,
e se se demonstrar inadequada, “[...] deve ser relegada a segundo plano,
empregando-se, em seu lugar, a teoria da identidade da relação jurídica”.
520
Como diz Júnior Alexandre Moreira Pinto, não se trata, nesses
casos, de se buscar estabelecer “[...] qualquer diferenciação na órbita processual
imposta pela legislação [...]”
521
, mas, sim, atentar-se ao material fático-jurídico
que “[...] decorre da peculiaridade do direito material em discussão [...] por
específicas características do direito material envolvido”
522
. Afinal, é “[...]
simples [a] constatação de que o direito não cria a realidade, mas serve a ela
[...]”
523
.
Diz Eduardo Talamini que para a adequada solução dos limites
os objetivos da coisa julgada não há como deixar de voltar “[...] os olhos [...]
também para a situação carente de tutela, i. e., a situação externa ao processo
em relação à qual a tutela pretendida deve operar”
524
.
Na tentativa de melhor adequar o instrumental técnico-jurídico
para a fixação dos limites da coisa julgada, a doutrina tem falado, em tempos
mais recentes, na adoção da categoria mais abrangente do objeto litigioso do
processo, constituído pela pretensão processual, não sob o aspecto material
(exigibilidade de uma prestação), mas sim “[...] identificada pela consideração
conjugada do mecanismo processual de tutela pretendido (a providência
518
CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001, p. 213.
519
Id., loc. cit.
520
Ibid., p. 213.
521
PINTO, Júnior Alexandre Moreira. A causa petendi e o contraditório. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007, p. 45.
522
Id., loc. cit.
523
PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada Civil. 3ª ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2006, p. 69.
524
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 79, grifo do
autor.
187
processual concreta) com a situação carente de tutela (a situação trazida de
fora do processo)
525
.
Explicando essa construção teórica, Eduardo Talamini expõe
que:
No pedido, é formalmente veiculada essa pretensão. Por outro lado, a
causa de pedir é elemento indispensável para que a pretensão seja
adequadamente identificada, embora a causa de pedir, em si, não
constitua o objeto ou parte do objeto do processo. [...] a causa de pedir
está para a pretensão assim como a vida de uma pessoa está para essa
pessoa. Não se pode dizer que a vida de alguém seja alguém. Um
aspecto é o ser, sua essência, seu espírito; o outro, sua experiência.
No entanto, não há como tentar compreender o que alguém é ou foi
senão compreendendo sua vida, o que fez, disse, pensou, deixou de
fazer... Qualquer tentativa de compreensão que prescinda disso, será,
quando muito, um simples retrato, um resumo de dados burocráticos
(nome, endereço, documento de identificação, telefone...) ou coisa que
o valha. Do mesmo modo, a tentativa da compreensão e identificação
da pretensão processual sem a consideração da causa de pedir incidiria
no mesmo defeito. Negar que a causa de pedir seja relevante para a
identificação da pretensão e do objeto do processo implicaria, p. ex.,
afirmar que, quando um dos cônjuges formula reconvenção na ação de
separação por um fundamento culposo imputável ao outro, não se teria
uma nova pretensão nem a ampliação do objeto do processo – o que,
obviamente, não é concebível
526
.
Na determinação do conteúdo desse objeto,
[...] o aspecto fundamental está em reconhecer que o objeto do
processo não tem como ser configurado como algo estritamente
processual e divorciado da situação sobre a qual a tutela deverá
operar. E é a causa de pedir que estabelece essa ligação [...] [devendo-
se considerar] todas as pretensões processuais formuladas – não
apenas na petição inicial (cumulação objetiva e subjetiva de
demandas), como também as possíveis de se apresentar no curso do
processo; sejam elas entre as próprias partes originais (v.g.
reconvenção, ação declaratória incidental, contraposição de pedido no
procedimento sumário...), sejam as que se veiculam em determinadas
525
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 79, grifo do
autor. Também Ricardo de Barros Leonel, que identifica o “[...] objeto litigioso do processo com a pretensão
processual (pedido), delineado pela causa de pedir (fundamentos para a demanda)” (LEONEL, Ricardo de
Barros. Objeto litigioso do processo e o princípio do duplo grau de jurisdição. In: CRUZ E TUCCI, José
Rogério; BEDAQUE, José Roberto dos Santos (Coord.). Causa de pedir e pedido no processo civil: questões
polêmicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 366).
526
Ibid., p. 80, grifo do autor. Também: PINTO, Júnior Alexandre Moreira. A causa petendi e o contraditório.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 22-34.
188
espécies de intervenção de terceiros (denunciação da lide, oposição
etc.)
527
.
Para maior precisão, distingue-se, nesse particular, o denominado
objeto litigioso do processo, adstrito ao mérito, com aquele outro, denominado
simplesmente objeto do processo, de conteúdo mais amplo, abarcando toda e
qualquer matéria de fato ou de direito que deva ser objeto de decisão pelo juiz
na condução do processo até a sua extinção, sejam elas de mérito ou não.
528
Busca-se, com essa nova categorização, uma interação entre
direito e processo, onde a causa de pedir se presta a estabelecer o elo entre o
direito material cuja violação se afirma e o juízo, a partir da situação
substancial que é levada à sua cognição
529
.
Referindo-se a Elio Fazzalari
530
, José Rogério Cruz e Tucci,
outrossim, acentua que essa situação carente de tutela,
[...] no transcorrer do iter procedimental, apresenta-se de modo
diferenciado: na petição inicial da ação de conhecimento, por
exemplo, exsurge como afirmação do autor; transforma-se, em
seguida, em objeto das alegações, das provas e do debate, ou seja do
contraditório; por fim, no momento em que o juiz verifica a sua
527
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 81, grifo do
autor. Também Ricardo de Barros Leonel, ao dar os contornos do objeto litigioso do processo, diz que: “[...]
objeto litigioso [...] é o mérito, assim entendido o pedido do autor formulado na inicial ou nas oportunidades em
que o ordenamento jurídico lhe permita ampliação ou modificação; o pedido do réu na reconvenção; o pedido do
réu formulado na contestação nas chamadas ações dúplices; o pedido do autor ou do réu nas ações declaratórias
incidentais (sobre questões prejudiciais); o pedido do autor ou do réu contra terceiro na denunciação da lide; o
pedido do réu no chamamento ao processo; o pedido do terceiro contra o autor e o réu, formulado na oposição”
(LEONEL, Ricardo de Barros. Objeto litigioso do processo e o princípio do duplo grau de jurisdição. In: CRUZ
E TUCCI, José Rogério; BEDAQUE, José Roberto dos Santos (Coord.). Causa de pedir e pedido no processo
civil: questões polêmicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 352).
528
Precisando essa distinção, Sydney Sanches diz que: “[...] o objeto do processo é toda matéria de fato ou de
direito relacionada aos pressupostos processuais (inclusive, portanto, o próprio procedimento), às condições da
ação (possibilidade jurídica, interesse de agir e legitimidade de partes) e ao próprio mérito (inclusive questões
prévias), que deva ser examinada pelo juiz, provocado pela partes ou ex officio, seja como simples operação de
conhecimento (cognitio), seja como julgamento propriamente dito (judicium), seja em caráter incidental, seja
em caráter principal. Enfim, o objeto do processo é o gênero, a que se filia a espécie objeto litigioso do processo
[...], aquele sobre o qual versará o judicium (não apenas a cognitio) [e que] é limitado sempre por um desses
pedidos do autor, do réu ou de terceiro [cumulação objetiva na reconvenção, chamamento, denunciação, pedido
do réu nas ações dúplices, pedidos em sede de declaratória incidental e oposição]” (SANCHES, Sydney. Objeto
do processo e objeto litigioso do processo. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo, São Paulo, nº 55, nov.-dez. 1978, p. 22-3 apud LEONEL, op.cit., p. 352-3, grifo do autor).
529
CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001, p. 127.
530
FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale. 4ª ed. Padova: Cedam, 1986, p. 228 e 232. Id.
Processo civile (dir. vig.). In: ENCICLOPEDIA del diritto: v. 36. Milano: Giuffrè, 1987, p. 149-50R.
189
existência, manifesta-se como situação declarada ou negada pelo
órgão jurisdicional
531
.
No plano da sua limitação objetiva, “A coisa julgada material
atingirá, em síntese, o objeto [litigioso] do processo [...]”
532
, entendido como
“[...] pretensão processual, pedido, delineado, delimitado, iluminado pela causa
de pedir”
533
.
2.2.5.1.6 Os limites objetivos da coisa julgada no processo coletivo
2.2.5.1.6.1 Considerações sistêmicas prévias
Gregório Assagra de Almeida advoga a bipartição do processo
coletivo brasileiro em processo coletivo comum e especial, o primeiro deles,
destinado à tutela jurisdicional do direito subjetivo coletivo em sentido amplo,
e o segundo, à tutela jurisdicional do direito objetivo, ou seja, da
constitucionalidade das leis
534
.
O primeiro deles, ou seja, o processo coletivo comum, seria
informado, hoje, por um microssistema autônomo integrado pelo Código de
Defesa do Consumidor (CDC)
535
e pela Lei da Ação Civil Pública (LACP)
536
, os
531
CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001, p. 127, grifo do autor.
532
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 81, grifo
nosso.
533
LEONEL, Ricardo de Barros. Objeto litigioso do processo e o princípio do duplo grau de jurisdição. In:
CRUZ E TUCCI, José Rogério; BEDAQUE, José Roberto dos Santos (Coord.). Causa de pedir e pedido no
processo civil: questões polêmicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 404.
534
ALMEIDA, Gregório Assagra. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual
(princípios, regras interpretativas e a problemática da sua interpretação e aplicação). São Paulo: Saraiva, 2003, p.
137-41 e 530-59.
535
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispões sobre a proteção do consumidor e dá outras
providências. Interesses difusos e coletivos: obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de
Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Luiz Eduardo Alves de Siqueira. 3ª ed.
atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, p. 268-93, 2001.
536
Id. Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985. Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos
causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e paisagísitico
(Vetado) e dá outras providências. Interesses difusos e coletivos: obra coletiva de autoria da Editora Saraiva
com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Luiz Eduardo
Alves de Siqueira. 3ª ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, p. 153-160, 2001.
190
quais constituiriam um conjunto de normas de sobredireito processual coletivo
comum onde o Código de Processo Civil contaria com aplicação meramente
subsidiária
537
.
2.2.5.1.6.2 Os limites objetivos da coisa julgada no processo coletivo comum
2.2.5.1.6.2.1 O resultado do julgamento como fator condicionante da
formação da coisa julgada
Adotando essa bipartição do direito coletivo, que nos parece
bastante elucidativa, há que se observar, quanto ao dito processo coletivo
comum, que as peculiariedades dos denominados direitos coletivos em sentido
amplo, implicaram, antes de mais nada, que a coisa julgada, nesse sistema, fosse
concebida segundo o resultado do julgamento, ou seja, secundum eventum
litis.
Assim, em se tratando de direitos coletivos em sentido estrito
(referidos à tutela de direitos limitados a grupo, categoria ou classe de pessoas,
ligadas entre si ou com a parte adversa por uma relação jurídica base)
538
, bem
como em se tratando de direitos difusos (referidos a um conjunto indeterminado
de pessoas (a toda a coletividade ou parcela significativa dela, mas
indeterminada) ligadas por circunstâncias de fato)
539
, a coisa julgada não se
formará se a sentença for de improcedência por insuficiência de provas,
537
ALMEIDA, Gregório Assagra. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual
(princípios, regras interpretativas e a problemática da sua interpretação e aplicação). São Paulo: Saraiva, 2003, p.
582-4.
538
Art. 81, II, do CDC. Para maiores detalhes acerca do conceito de direito coletivo em sentido estrito, veja-se:
MAZZILLI, Hugo Nigro Mazzili. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor,
patrimônio cultural, patrimônio público eoutros interesses. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 47-8. LEONEL, Ricardo
de Barros. Manual do processo coletivo: de acordo com a Lei 10.444/02. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2002, p. 105-07.
539
Art. 81, I, do CDC. Para maiores detalhes acerca do conceito de direito difuso, veja-se: MAZZILLI, op. cit.,
p. 46-7. LEONEL, op. cit., p. 98-105.
191
hipótese em que qualquer dos legitimados coletivos poderá repropor a ação
desde que fundada em nova prova
540
.
Em se tratando, porém, dos denominados direitos individuais
homogêneos (referidos a grupos, categorias ou classes de pessoas determinadas
ou, ao menos, determináveis, em que se compartilha interesses emergidos de
uma origem comum)
541
, haverá coisa julgada, seja em se tratando de
procedência seja em se tratando de improcedência da ação, independentemente
do fundamento
542
.
É claro que, em quaisquer das hipóteses de formação da coisa
julgada, no processo coletivo comum ela se expressa de forma bastante peculiar
quantos aos seus limites subjetivos se confrontada com o regime geral da coisa
julgada verificada no processo voltado à tutela de direito individuais, conforme
adiante se verificará, bastando antecipar que no regime coletivo ela não se dá
nos estreitos limites verificados na tutela de direitos individuais, onde a tônica é
a restrição da eficácia às partes entre as quais a sentença é proferida.
A despeito dessas peculiaridades, quanto à identidade das
demandas coletivas, conforme indica Ricardo de Barros Manoel, também se
aplica o princípio da tríplice identidade, tal qual preconizado pelo Código de
Processo Civil, subsidiariamente aplicado, de tal modo que também aí, no plano
dos limites objetivos da coisa julgada, a solução se dá com a identidade da causa
de pedir e do pedido
543
.
540
Art. 103, I e II, do CDC, Art. 18 da Lei de Ação Popular (LAP (BRASIL. Lei nº 4.717, de 29 de junho de
1965. Regula a ação popular. Interesses difusos e coletivos: obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a
colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Luiz Eduardo Alves de
Siqueira. 3ª ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, p. 35-40, 2001)) e 16 da LACP.
541
Art. 81, III, do CDC. Para maiores detalhes acerca do conceito de direito individual homogêneo, veja-se:
MAZZILLI, Hugo Nigro Mazzili. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor,
patrimônio cultural, patrimônio público eoutros interesses. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 48-9. LEONEL, Ricardo
de Barros. Manual do processo coletivo: de acordo com a Lei 10.444/02. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2002, p. 108-113.
542
Art. 103, III e § 2º do CDC.
543
LEONEL, op. cit., p. 228.
192
2.2.5.1.6.2.2 Da Causa de pedir
Nessa senda, com relação especificamente à causa de pedir,
Ricardo de Barros Manoel, aduz que, de um modo geral ela não apresenta, nas
causas coletivas, nenhuma diversidade essencial se confrontada com os seus
contornos dentro do contexto das demandas individuais, “[...] não havendo,
destarte, diversidade ontológica entre as hipóteses consideradas”
544
.
Ricardo de Barros Manoel, detecta, porém, uma tênue – segundo
ele – diferença “[...] de natureza quantitativa na formulação da causa de pedir
na demanda coletiva”
545
.
Nesse sentido, segundo ele,
Enquanto numa ação individual é factível que a substanciação desça a
minúcias do fato, que são inerentes à própria relação jurídica de cunho
material e individual, isto não se verifica com tamanho rigor na
demanda coletiva, onde a substanciação acaba tornando-se mais tênue,
recaindo apenas sobre aspectos mais genérico da conduta impugnada
na ação
546
.
É na debilidade da especificação dos fatos, portanto, que, dentro
do contexto coletivo, segundo o autor, se dá a principal diferença no enfoque da
causa de pedir se comparada com os seus contornos no plano da tutela
individual. “A descrição fática – segundo ele – deve ser formulada no limite da
suficiência para a demonstração da situação material mais ampla, decorrente da
própria essência dos interesses metaindividuais”
547
.
Também e pelas mesmas razões, a causa de pedir próxima,
retratada nos fundamentos jurídicos, terá, segundo o mesmo autor, “[...]
contornos menos específicos, pois os interesses metaindividuais são menos
544
LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo: de acordo com a Lei 10.444/02. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 232.
545
Id., loc. cit., grifo nosso.
546
Id., loc. cit.
547
Id., loc. cit.
193
delimitados e com lineamentos menos nítidos que os direitos subjetivos de
cunho individual”
548
.
Dada a peculiar mutabilidade e conflituosidade interna
549
inerentes aos direitos coletivos, Ricardo de Barros Manoel nos chama a atenção,
ainda quanto à causa de pedir próxima, ao fato de que ela assume, no mais das
vezes, contornos políticos, dando-se a solução da lide pela opção de alternativas
verdadeiramente políticas
550
. Os conflitos equacionados coletivamente não se
encerrariam, assim, dentro de um contexto rigidamente jurídico, o que conduz a
fundamentação jurídica da causa a um campo nitidamente valorativo incomum
nas causas individuais. Melhor dizendo:
[...] em virtude do dinamismo, da mutabilidade e da conflituosidade
dos interesses supra-individuais, [o autor] deverá declinar argumentos
de cunho não estritamente jurídico, mas sim axiológico, pois o
acolhimento ou rejeição de uma demanda coletiva reflete por vezes o
exercício, pelo Poder Judiciário, de opção entre valores igualmente
relevantes, verdadeiras escolhas políticas, anteriormente deixadas ao
largo da jurisdição, deferidas exclusivamente aos poderes Executivo e
Legislativo.
Em virtude desta peculiaridade das demandas coletivas –
equacionamento de conflitos não exclusivamente jurídicos, mas de
certo modo políticos, em grau de máxima conflituosidade e com
realização de opções fundamentais -, torna-se necessária na causa de
pedir próxima a indentificação não só do fundamento jurídico, mas
também do fundamento axiológico, valorativo, demonstrando a real
importância prática do acolhimento da pretensão, militando para sua
aceitação
551
.
Exemplificando a diferença argumentada, o autor confronta a
causa de pedir em uma ação de despejo, de contorno individual, e em uma ação
onde se discute a execução de uma grande obra pública, de contorno coletivo:
Em uma ação de despejo por falta de pagamento, na inicial deve ser
declinada a relação contratual existente entre as partes (fato jurígeno),
548
LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo: de acordo com a Lei 10.444/02. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 232.
549
Para a exata compreensão dessas duas peculiaridades dos direitos coletivos (ou meta-individuasi) consulte-se:
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 4ª ed. rev. e atual. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 91-100.
550
A respeito de como e porque isso se dá no âmbito dos direitos coletivos, consulte-se: MANCUSO, op. cit., p.
101-07.
551
LEONEL, op. cit., p. 232-3.
194
a ocorrência da situação concreta demonstradora de violação de
obrigações contidas na relação contratual (falta de pagamento, ou seja,
o fato violador), e, em seguida, os fundamentos jurídicos do pedido
(como conseqüência lógica dos fatos, a rescisão do contrato e a
necessidade de desocupação e devolução do imóvel).
Na demanda coletiva, a coloração da causa de pedir vem traçada com
tonalidades diversas. [...] Suponha-se [diante da hipótese em que a
Administração Pública pretenda executar uma obra argumentando que
ela trará benefícios à comunidade em geral] que sejam evidentes os
malefícios a serem suportados pelo meio ambiente local, como a lesão
a um sítio arqueológico, a uma área de riqueza ambiental incomum,
ou o equilíbrio de todo o ecossistema. Na elaboração da causa de pedir
próxima, além dos fundamentos jurídicos atinentes à preservação dos
interesses relacionados ao meio ambiente, será crucial a inserção de
fundamentos axiológicos, políticos ou sociológicos não apenas ad
colorandam, pois poderão ser preponderantes na operação lógica
realizada pelo magistrado para fins de acolhimento ou rejeição da
demanda.
A ausência de tais dados na elaboração da causa próxima não
chegará a configurar a inépcia da inicial, mas implicará deficiente
fundamentação, militando contra o êxito da empreitada
judicial
552
.
Desdobrando as conseqüências dessa deficiente formulação da
causa próxima, o autor, acaba, então, por aduzir que:
[...] a demanda poderá ser julgada improcedente por insuficiência de
provas da importância da pretensão (fundamento axiológico).
Posteriormente, renovada por qualquer um dos legitimados – até
mesmo pelo que ajuizou a primeira ação – com nova
fundamentação, explicando-se a questão valorativa da realização
da correta opção política, viável será o êxito e o acolhimento do
pleito
553
.
Concluindo, segundo ele, no caso referido,
A fundamentação valorativa [...] não configura dados
simplesmente secundários do conflito, como poderia parecer à
primeira vista, mas dados essenciais, servindo à individualização
da demanda coletiva, pois sua ausência implica a identificação de
ação diversa, com causa petendi parcialmente – não integralmente -
idêntica
554
.
552
LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo: de acordo com a Lei 10.444/02. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 233-4, grifo do autor, grifo nosso.
553
Ibid., p. 234, grifo do autor, grifo nosso.
554
Id., loc. cit., grifo nosso, grifo do autor. O autor ainda dá um outro exemplo elucidativo: “[...] imagine-se
ação coletiva impugnando a realização de obra municipal de simples deleite, v.g., um parque aquático, enquanto
195
Sem querermos desconhecer a polêmica que o pensamento do
autor pode, eventualmente, encerrar, ele não só nos parece bastante pertinente,
como que, também, nos instiga a indagar até que ponto tais fundamentos seriam,
mesmo, jurídicos ou fáticos (e, portanto, integrantes da causa de pedir remota e
não próxima), nos obrigando, inclusive, a repensar, dentro do contexto da tutela
coletiva, a noção não só do que seja fato, direcionando-nos a uma noção de fato
como sendo fato social (sociologicamente falando), com o que seja fato
principal e secundário que, seguramente, não podem ser aquelas mesmas com
que contamos na ordem da tutela individual.
Seja de que forma for, sem dúvida, a causa de pedir, na tutela
coletiva, seja próxima, seja remotamente, não pode ser pensada, exatamente, nos
mesmos moldes em que ela o é na tutela individual, e, por isso mesmo, quando
se pensa nos limites objetivos da coisa julgada no âmbito da coisa julgada, ainda
que se reconheça que as premissas básicas para tanto sejam as mesmas tanto na
tutela coletiva quanto na individual, não se pode reduzir a questão à identidade
absoluta. Afinal, voltando a lembrar o que acima foi dito: a tutela coletiva
engendra um microssistema processual próprio justamente pelas peculiaridades
do direito tutelado, de tal sorte que a aplicação do sistema processual que
informa a tutela individual sempre se dá subsidiariamente, acomodando-se aos
princípios e natureza próprios da tutela e dos interesses coletivos.
Concluindo, no que tange aos limites objetivos da coisa julgada
no âmbito da tutela coletiva vistos sob a ótica da causa de pedir, podemos,
seguramente, afirmar que eles se dão de modo muito mais fluido do que no
âmbito da tutela individual, na exata medida em que aquilo que, aparentemente,
no município é visível a carência total de infra-estrutura de saúde pública e saneamento básico – ausência de
sistema de tratamento adequado de água, de esgotos, de hospitais ou postos de saúde para atendimento de
emergência etc. Nesta situação há inversão de prioridades no que atina com as opções do administrador público,
sendo possível o controle da situação por parte do Poder Judiciário, por desrespeito aos princípios
administrativos da legalidade e da moralidade. Imprescindível será, para a correta fundamentação da demanda, a
exposição dos fundamentos jurídicos e axiológicos do conflito, que permitam a identificação da relevância do
acolhimento da pretensão, i. é, do benefício supra-individual, em detrimento da opção realizada pelo
administrador.” (LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo: de acordo com a Lei 10.444/02.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 234-5).
196
não passaria, tradicionalmente, de simples argumentos persuasivos, pode, aí,
usufruir do status de verdadeira causa de pedir (próxima ou remota, pouco
importa) de tal modo a extremar uma ação de outra.
2.2.5.1.6.2.3 Do pedido
Quanto, por outro lado, ao pedido, como elemento identificador
da demanda coletiva e, conseqüentemente, delimitador da coisa julgada sob o
seu aspecto objetivo, segundo asseverado por Ricardo de Barros Leonel, “[...]
verifica-se que não encontra maior diversidade do que ocorre nas ações
individuais”
555
, sem qualquer preocupação com as variadas classificações que
esse elemento identificador da ação possa comportar, já que
[...] tanto o pedido imediato [...] como o mediato [...] ostentam a maior
amplitude de hipóteses possíveis, pois nas demandas coletivas são
admissíveis todas as espécies de ações [...] e, portanto, de pedidos
556
.
Vale a pena destacar, porém, que, conforme alerta Hugo Nigro
Mazzilli, um único fato ou conjunto de fatos ou uma única relação jurídica
poderão implicar no aparecimento de interesses/direitos meta-individuais de
mais de uma categoria (difusos, coletivos em sentido estrito e individuais
homogêneos), passíveis de serem deduzidos, inclusive, em uma única ação
(desde que preenchido o requisito da legitimação ativa, é claro), gerando
verdadeira cumulação de ações coletivas
557
.
555
LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo: de acordo com a Lei 10.444/02. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 235.
556
Id., loc.cit.
557
MAZZILLI, Hugo Nigro Mazzili. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor,
patrimônio cultural, patrimônio público eoutros interesses. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 51. O autor cita os
seguintes exemplos: “[...] a) um aumento ilegal de prestações num consórcio envolve, ao mesmo tempo, uma
lesão a interesses coletivos, no que diz respeito à própria ilegalidade do aumento, e uma lesão a interesses
divisíveis, no que diz respeito à restituição de eventuais valores pagos a mais; b) de um acidente ecológico, como
o de Chernobyl, podem resultar danos difusos ao meio ambiente como um todo, e, ao mesmo tempo, danos
individuais homogêneos e divisíveis para os moradores da região; c) se uma série de produtos é fabricada com o
mesmo defeito, os lesados têm interesse individual homogêneo em obter uma reparação divisível, mas a
pretensão de proibir a venda do produto diz respeito a interesses difusos” (Ibid., p. 51-2).
197
Quando isso ocorre, é justamente a partir do pedido
concretamente formulado que se apura a natureza do direito coletivo cuja tutela
se busca. Ou seja:
Se a ação civil pública ou coletiva pedir a reparação indivisível em
proveito de grupo indeterminável, os interesses ali discutidos serão
difusos; se a reparação objetivada for indivisível, mas de grupo
determinável, e estiver sob ataque apenas a relação jurídica básica,
que deva ser decidida de maneira uniforme para todos os integrantes
do grupo, os interesses são coletivos, em sentido estrito; se a
reparação objetivada for divisível entre os integrantes do grupo lesado,
então os interesses são individuais homogêneos
558
.
Essa particularidade, quer nos parecer, pode trazer alguma
discussão específica em se saber até que pondo haveria identidade entre uma
ação cujo objetivo, por exemplo, fosse fazer cessar a emissão de poluentes (que
a enquadraria dentro da categoria de tutela de direitos difusos), e outra, cujo
objetivo fosse obter a reparação dos danos causados por essa mesma emissão
(que a enquadraria, a depender de quem estivesse a promover a ação, na
categoria da tutela coletiva (em sentido estrito) ou de direitos individuais
homogêneos).
A dificuldade surgiria na media em que, julgada improcedente,
por exemplo, aquela ação cujo objetivo fosse fazer cessar a emissão de
poluentes, e desde que a improcedência não se dê pela falta de provas, essa
decisão, no plano coletivo, faria coisa julgada em relação a todos os legitimados
coletivos. Ocorre, porém, que o pedido, seja o imediato, seja o mediato, da
subseqüente ação objetivando a reparação de danos, não seria idêntico ao
anterior, ainda que o pressuposto fático e jurídico (a causa de pedir) invocados
para a procedência da demanda sejam exatamente os mesmos.
Apesar da aparente dificuldade que a hipótese apresenta, quer nos
parecer que não há razão alguma para, no caso - e considerando que a coisa
julgada objetiva evitar o conflito prático e não teórico entre demandas - dar-se
198
tratamento diverso daquele que se dá no plano individual: se o pedido não é
idêntico, não há identidade de demandas.
2.2.5.1.6.3 Os limites objetivos da coisa julgada no processo coletivo especial
2.2.5.1.6.3.1 Da causa de pedir
Seguindo o modelo bipartido do direito coletivo, acima indicado,
quanto ao dito processo coletivo especial, de tutela do direito objetivo, algumas
peculiaridades merecem ser destacadas.
Primeiramente é de se observar que, diversamente do que ocorre
no processo coletivo comum, no plano especial, a coisa julgada, em tese, se
formaria tanto na hipótese de procedência quanto na de improcedência da
demanda, desde que, é claro, tenha-se enfrentado o mérito
559
.
Dissemos em tese porque, ao contrário do que ocorre no plano da
tutela coletiva comum, onde há regra específica regulando a coisa julgada
segundo o resultado do julgamento, aqui, não há regra equivalente.
A despeito disso, as mesmas razões, acima vistas, que levam a
doutrina a emprestar um colorido especial à causa de pedir próxima na tutela
coletiva comum, de tal modo a nela incluir fatores de ordem até mesmo política,
558
MAZZILLI, Hugo Nigro Mazzili. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor,
patrimônio cultural, patrimônio público eoutros interesses. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 51.
559
Registre-se que as ações de controle concentrado de constitucionalidade contam com uma série multifacetada
de condições específicas que irão inviabilizar a apreciação de mérito, caso não preenchidas, como é o caso da
ausência da denominada e polêmica pertinência temática, quando exigida (como, por exemplo, em relação a
Mesa da Assembléia Legislativa, os Governadores de Estado e a confederação sindical ou entidade de classe de
âmbito nacional, tidos pelo Supremo Tribunal Federal, à luz do art. 103 da Constituição Federal, como
legitimados interessados ou especiais, para fins de propositura da ação direta de insconstitucionalidade, sujeitos,
portanto, a demonstrar interesse processual. Cf.: ALMEIDA, Gregório Assagra. Direito processual coletivo
brasileiro: um novo ramo do direito processual (princípios, regras interpretativas e a problemática da sua
interpretação e aplicação). São Paulo: Saraiva, 2003, p. 251-2), ou da ausência do dissídio jurisprudencial,
exigido na ação declaratória direta de constitucionalidade, nos termos do art. 14, III, da Lei nº 9.868, de 10 de
novembro de 1999 (BRASIL. Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento
da ação direita de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante e Supremo
Tribunal Federal. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 11 nov.
1999. Seção 1, p. 01. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br.ccivil_03/LEIS/L9868.htm
>. Acesso em 26
janeiro 2007).
199
as quais, variando, implicariam na variação da própria causa de pedir, também
aqui, no plano da tutela coletiva especial, conduzem a que se sustente a
possibilidade de se repetir a ação nas hipóteses de improcedência da ação.
Para melhor compreendermos a questão, convém lembrar, com
Eduardo Talamini, que, ao contrário do que ocorre no regime geral dos limites
objetivos da coisa julgada, onde, com a adoção da teoria da substanciação, a
causa de pedir é integrada tanto pelos fatos quanto pelos fundamentos jurídicos,
não se confundindo, outrossim, esses últimos, com a simples remissão legal,
[...] excepcionalmente, há ações em que a identificação da causa de
pedir pode depender do fundamento jurídico estrito, [tal qual ocorre
com a] ação direta de inconstitucionalidade [e a] ação rescisória ex art.
485, V, [do Código de Processo Civil Brasileiro], etc.[...]
560
.
A partir dessa assertiva, seríamos, sem dúvida, levados a crer
que, pedida a inconstitucionalidade de tal dispositivo legal (ou conjunto de
dispositivos; ou de uma lei), julgada a ação, o pleito dessa inconstitucionalidade
não poderia mais ser repetido.
A questão, porém, não é (e nem deve ser) tão singela.
Conforme aduz Luís Roberto Barroso, julgada procedente a ação
direta de inconstitucionalidade, seja por conta da eficácia preclusiva, seja por
conta da eficácia vinculativa, não teria, de fato, qualquer sentido em se
ressuscitar a questão, seja para se declarar, novamente, a sua
inconstitucionalidade, o que seria bizarro; seja para declarar a sua
constitucionalidade, o que implicaria em querer reavivar o que já fora
fulminado
561
; seja admitindo-se a desconsideração da decisão como premissa
560
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 74, grifo do
autor.
561
Nesse particular, é de se lembrar que, nos termos do artigo 24 da Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, as
ações diretas declaratórias tanto de constitucionalidade quanto de inconstitucionalidade são de natureza dúplice,
de tal modo que a improcedência da declaração de inconstitucionalidade implica em que o dispositivo
impugnado seja tido como constitucional e vice-versa.
200
necessária para julgamentos posteriores, o que implicaria em esvaziar-se o
próprio ser do controle abstrato de validade da norma
562
.
Em suma, “a declaração de inconstitucionalidade opera efeito
sobre a própria lei ou ato normativo, que já não mais poderá ser validamente
aplicada”
563
.
Não é o que se verifica, porém, quando há a improcedência da
demanda declaratória de inconstitucionalidade (ou a procedência da demanda
declaratória de constitucionalidade), onde nada ocorre com a lei, que se mantém
tal qual ela sempre esteve. Para Luís Roberto Barroso, nesse caso,
Parece totalmente inapropriado que se impeça o Supremo Tribunal
Federal de reapreciar a constitucionalidade ou não de uma lei
anteriormente considerada válida, à vista de novos argumentos, de
novos fatos, de mudanças formais ou informais no sentido da
Constituição ou da transformação da realidade que modifiquem o
impacto ou a percepção da lei. Portanto, o melhor entendimento na
matéria é o de que podem os legitimados do art. 103 [da Constituição
de República Federativa do Brasil] propor ação tendo por objeto a
mesma lei e pode a Corte reapreciar a matéria. O que equivale a dizer
que, no caso de improcedência do pedido, a decisão proferida não se
reveste da autoridade da coisa julgada material
564
.
A despeito de concordarmos com as premissas das quais parte
Luís Roberto Barroso para sustentar que a hipótese em que se dá pela
constitucionalidade da lei apresenta peculiaridades que a extremam daquela que
dá pela inconstitucionalidade, a exigir tratamento díspare em matéria de coisa
julgada, vemos uma flagrante impropriedade na sua conclusão, ao afirmar que a
decisão de improcedência proferida na ação declaratória direta de
inconstitucionalidade não faria coisa julgada. Há, aliás, verdadeiro contra-senso
lógico nessa sua assertiva quando confrontada com o corolário lógico que,
segundo ele, daí adviria, no sentido de que:
Naturalmente, nada impede que, entendendo não ter havido qualquer
situação apta a justificar uma reapreciação do tema, o STF possa
562
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática
da doutrina e análise crítica da jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 151 e 186-7.
563
Ibid., p. 151.
564
Ibid., p. 152-3.
201
rejeitar o pedido de forma sumária, invocando a decisão precedente na
matéria
565
.
Não nos parece, de fato, adequado que, de um lado, se afirme
inexistir a coisa julgada e, de outro, se afirme que o Supremo Tribunal Federal
poderia deixar de reapreciar a matéria invocando a decisão anterior, já que isso
implicaria, exatamente, em se entrincheirar na autoridade da coisa julgada.
O que há e deve haver, aí, é justamente o trato específico da
causa de pedir, sob o seu aspecto próximo ou remoto (como se queira), pelas
razões já delineadas acima, quando tratamos da causa de pedir no processo
coletivo comum
566
.
Desse modo, o Supremo Tribunal Federal só estaria autorizado a
reapreciar a matéria se vislumbrasse, na causa de pedir da nova ação,
fundamentos diversos daqueles anteriormente invocados, diversidade essa que,
contudo, é buscada num plano jamais suspeitado no âmbito da tutela individual,
que é o plano do sentido da constituição, determinado pela conjugação de uma
infinidade de elementos, inclusive de valores os mais variados: éticos, políticos,
comportamentais, institucionais etc.
Se o fundamento para a apreciação da inconstitucionalidade de
norma que já passara por esse crivo é a diversidade da causa de pedir, por óbvio,
é absolutamente inadequado afirmar-se a inexistência, nessa hipótese, da coisa
julgada. Ela existe, apenas que sujeita a contornos específicos de identidade das
sucessivas ações informada pela especial natureza da causa de pedir.
Sérgio Gilberto Porto, porém, destaca que a causa de pedir no
controle concentrado de constitucionalidade é aberta, justamente porque,
dando-se, o controle, em abstrato, a ação
[...] tem por causa de pedir não um fato ou um conjunto de fatos como
exige a jurisdição ordinária (282, III, CPC), mas está em causa uma lei
565
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática
da doutrina e análise crítica da jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 153.
566
2.2.5.1.6.2.2, supra.
202
ou um ato frente à ordem jurídica constitucional, sem que esteja a
reger uma certa situação concreta
567
.
Materializando essa premissa em termos práticos, o Supremo
Tribunal Federal, no julgamento de uma das tantas ações que questionaram a
constitucionalidade da lei que permitia a privatização da Companhia Vale do
Rio Doce, acabou por assentar que
[...] o Tribunal não poderia apreciar novamente o pedido, mesmo que
com base em outra fundamentação constitucional, já que no controle
concentrado de constitucionalidade a causa de pedir é aberta. A Corte,
assim, não está vinculada aos fundamentos jurídicos expostos pelo
autor. [...] em ação direta o controle se dá de forma abstrata. Não se
considera o caso concreto
568
.
Com a devida vênia, não comungamos com esse entendimento.
Pode-se, com efeito, até imaginar-se uma causa de pedir aberta,
como sustenta o Supremo Tribunal Federal, a admitir, em suma, que o tribunal
não esteja adstrito, no julgamento, aos fundamentos invocados pelo autor,
semelhantemente do que sustentam os teóricos dos denominados direitos
autodeterminados ou da substanciação, no âmbito da tutela individual.
Daí, porém, a admitir que no controle abstrato direto de
constitucionalidade, porque se julga a ordem constitucional, não há vinculação
alguma com uma realidade fática, é algo no mínimo bizarro, a encabular até
mesmo Hans Kelsen. Afinal, a constituição não é algo que paira no ar, como o
personagem de contos que nele se sustem puxando os próprios cabelos.
É obvio que quando se julga uma ordem constitucional está-se
referido, na pior das hipóteses, a uma materialidade social. Uma materialidade
complexa, constituída pela acumulação desigual de tempos, tanto no que tange
aos objetos quanto às técnicas (e, portanto, ao próprio direito, que é um sistema
567
PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada civil. 3ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2006, p. 118.
568
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1584-UF, Brasília, DF, 23 de
abril de 1997. Disponível em:
<http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudência.asp?s1(ADI$.SCLA.%20E%201584.NUME.)
%20OU%20(ADI.ACMS.%20ADJ2%201584.ACMS.)&base=baseAcordaos>. Acesso em 29 jan. 2008.
203
técnico, que com os sistemas de objetos se relaciona num constante processo de
mútua determinação)
569
.
569
Com efeito, Milton Santos, qualificando as leis, impostos, relações trabalhistas, etc, como meios técnico-
científico-informacional (SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo; razão e emoção. São
Paulo:Edusp, 2002, p. 247-8), integrando o que ele qualifica de sistema de ações, em concurso com o que ele
qualifica de sistema de objetos, ambos integrando a conformação do espaço (Ibid., p. 213-43), explica que o
sistema de ações tanto é integrado por uma tecnoesfera (meios técnicos existentes) quanto por uma psicoesfera
(“reino da idéias, crenças, paixões e lugar de produção de um sentido”), ambos compondo o meio ambiente - ou,
como ele diz, a materialidade do teritório (ibid., p. 255-6). Explica, ainda, que toda forma é, também,
conteúdo, de tal modo que o que existe, geograficamente, são formas-conteúdos, onde “[...] o significado do
objeto provém de sua função [...]” e que, por isso mesmo, “Forma e causa, forma e vida, devem ser tomadas em
sua unidade. Buscar interpretá-la separadamente pode conduzir a graves erros de julgamento, já que nem a
forma, nem a vida têm existência autônoma [...] [implicando na] inseparabilidade do continente e do conteúdo
[...] [cuja] separação destrói a unidade de um e de outro. A lógica do objeto provém da sua unidade.” (Ibid., p.
99-100). Desse modo, “Se o espaço é – diz ele - [...] um resultado da inseparabilidade entre sistemas de objetos e
sistemas de ações, devemos causticar [...] o equívoco epistemológico, herdado da modernidade, de pretender
trabalhar a partir de conceitos puros [...]”. A separação entre um poder ciêntífico como afetado às coisas e de um
poder político afetado aos sujeitos, paradoxo sobre o qual se assenta a modernidade e que, em última instância,
conduz à “[...] separação total entre natureza e cultura” é descabida e “Já que a realização concreta da história
não separa o natural e o artficial, o natural e o político, devemos propor um outro modo de ver a realidade,
oposto a esse trabalho secular de purificação, fundado em dois pólos distintos. No mundo de hoje, é
freqüentemente impossível ao homem comum distinguir claramente as obras da natureza e as obras dos homens
e indicar onde termina o puramente técnico e onde começa o puramente social. De fato, os objetos técnicos com
que diariamente lidamos “não são carne nem peixe”, eles são um ente intermediário em que se associam
“homens, produtos, utensílios, máquinas, moedas”” (ibid., p. 101). Espacialmente falando, portanto, a forma-
conteúdo de que fala Milton Santos é um ser híbrido, um misto de técnica e cultura, que, inserida num processo
dialético de determinação e determinabilidade mútua, “A cada evento, a forma se recria. Assim, a forma-
conteúdo não pode ser determinada, apenas, como forma, nem apenas como conteúdo. Ela significa que o
evento, para se realizar, encaixa-se na forma disponível mais adequada a que se realizem as funções de que é
portador. Por outro lado, desde o momento em que o evento se dá, a forma, o objeto que o acolhe ganha uma
outra significação, provinda desse encontro. Em termos de significação e de realidade, um não pode ser
entendido sem o outro, e, de fato, uma não existe sem o outro” (ibid., p. 102-3). “A idéia- de forma-conteúdo –
diz Milton Santos - une o processo e o resultado, a função e a forma, o passado e o futuro, o objeto e o sujeito, o
natural e o social [...] [pressupondo] o tratamento analítico do espaço como um conjunto inseparável de sistemas
de obejtos e sistemas de ações” (ibid., p. 103). Nesse conjuto, por fim, duas questões devem ser tidas como
capitais para a adequada complexidade da materialidade social que Milton Santos tanto insiste em firmar e que
nós consideramos fundamentais para que, como operadores do direito, não nos percamos em um presente
metafísico: 1º) o espaço deve ser visto como “um sistema de valores”; 2º) o espaço deve ser vito como, “uno e
múltiplo” (Ibid., p. 104). A essas duas premissas fundamentais, deve-se aditar, ainda, que: 1º) o espaço,
justamente por ser uno e múltiplo, não pode ser visto como um plano (como sucessão ou tempo histórico), e,
sim, como rugosidade, significando que “[...] ao que fica do passado como forma, espaço construído, paisagem,
o que resta do processo de supressão, acumulação, superposição, com que as coisas se substituem e acumulam
em todos os lugares [...]. Em cada lugar, pois, o tempo atual se defronta com o tempo passado, cristalizado em
formas [que são, também e sempre, conteúdo]” (ibid., p. 140). Ou seja, o espaço, o presente, não é uma espécie
de síntese de tempos passados mas, sim, um acúmulo desigual de tempos, que implica uma “[...] forma de ver
o tempo como simultaneidade: pois não há nenhum espaço em que o uso do tempo seja idêntico para todos os
homesns, empresas e instituições” (ibid., p. 159); 2º) como conseqüência, o evento deve ser tido como um
instante espacial (ibid., p. 144-5), um ponto no espaço-tempo, de tal modo que “[...] não há evento [como
elemento ou conjunto (situações)] senão no lugar preciso em que estou e no instante preciso em que o
reconheço” (DIANO, Carlo.
Forme et événement, principles por une interpretation du monde grec. Paris:
L’Eclat, 1994, p. 67-79 apud SANTOS, op. cit. p. 154); 3º) do mesmo modo, considerando que os eventos não
só supõem a ação humana como que se dão num espaço assente no concurso de sistemas de objetos e de ações,
“Os eventos são idéias e não apenas fatos” (SANTOS, op. cit., p. 147-8); e 4º) se os eventos são idéias, então, a
realidade, o espaço, visto como o aqui e o agora, prenhe de virtualidades, “[...] inclui a ideologia e a ideologia é
também real. A ideologia, outrora considerada como falsa, portanto não-real, de fato não é algo estranho à
realidade, nem é aparência apenas. Ela é mais do que aparência, porque ela é real. Quando, num lugar, a essência
se transforma em existência, o todo em partes e, assim, a totalidade se dá de forma específica, nesse lugar a
204
Assim, voltamos a insistir: há sim, um núcleo fático a embasar o
julgamento no controle concentrado de constitucionalidade, apenas que esse fato
é um fato social e não um fato jurídico concebido em termos de direito
subjetivo.
Isso nos leva a concluir que, partindo de uma noção de causa de
pedir aberta, é até plausível concebermos um sistema preclusivo absoluto (à
semelhança do que sustentam os teóricos da individualização no âmbito da
tutela de direito individual) em torno da causa de pedir no controle concentrado
de inconstitucionalidade, porém, não perene: na medida em que houver
modificação dessa materialidade social que informou o pretérito sentido que se
emprestou à constituição, uma nova causa de pedir se impõe
570
.
É o que, aliás, sustenta Gilmar Ferreira Mendes, assentado em
copiosa doutrina alemã, afirmando que,
Em síntese, declarada a constitucionalidade de uma lei, ter-se-á de
concluir pela inadmissibilidade de que o Tribunal se ocupe, uma vez
mais, da aferição de sua legitimidade, salvo no caso de significativa
mudança das circunstâncias fáticas ou de relevante alteração das
concepções jurídicas dominantes
571
.
história real chega também com símbolos. Desse modo, há objetos que já nascem como ideologia e como
realidade ao mesmo tempo. É assim que eles se dão como indivíduos e que eles participam da realidade social.
Nessa condições, a totalidade social é formada por mistos de “realidade” e “ideologia”. É assim que a história se
faz. [...] tanto essa parte dita real, como essa parte dita falsa da estrutura têm um papel motor e ... estrutural. A
ideologogia é um nível da totalidade social e não apenas é objetiva, real, como cria o real. Sendo, na origem, um
real abstrato, cada vez mais se manifesta como real concreto, na medida em que a vida social se complica”
(SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo; razão e emoção. São Paulo:Edusp, 2002, p. 126-7).
570
Nesse sentido, Milton Santos, referindo-se aos eventos, entendidos como um instante espacial, um ponto
no espaço-tempo irrepetível (ver nota anterior), observa que “Os eventos não se dão isoladamente mas em
conjuntos sistêmicos – verdadeiras “situações” – que são cada vez mais objeto de organização: na sua instalação,
no seu funcionamento e no respectivo controle e regulação. Dessa organização vão depender, ao mesmo tempo, a
duração e a amplitude do evento. Do nível de organização depende a escala de sua regulação e a incidência sobre
a área de ocorrência do evento” (Ibid., p. 149). Do mesmo, portanto, que um acidente de trânsito se presta como
evento da causa de pedir de uma ação individual, de tutela do direito subjetivo da vítima, as ações coletivas,
inclusive de controle concentrado e abstrato de contitucionalidade, não deixam de ter como causa de pedir um
evento, apenas que visto como situação, onde, por óbvio, a carga simbólica/ideológica se mostra muito mais
presente, inclusive, na conformação da forma cristalizada que, em útlima análise, caracterizará essa situação,
do que aquela que diz respeito ao evento represntado por um acidente de trânsito envolvendo um particular
qualquer. O fato é, porém, que, como diz Milton Santos, também essa situação é irrepetível e ficará sujeita a
uma duração.
571
MENDES, Gilmar Ferreira. Argüição de descumprimento de preceito fundamental: comentários à Lei nº
9.882, de 3-12-1999. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 182. Também Eduardo Talamini comunga com essa idéia,
partindo, inclusive, das lições de Girlmar Ferreira Mendes. Nesse sentido, ele diz que: “Se fosse utilizar a dicção
tradicional acerca das ações (de discutível aplicação às “ações” diretas), falaríamos em “nova causa de pedir”, de
205
A assertiva de que a causa de pedir, no controle direto de
constitucionalidade é aberta, nos leva, contudo, a indagar até que ponto a
identidade das causas, aí, teria que ser buscada não propriamente - ou só -
na causa de pedir articulada com a inicial, mas, sim, tal qual ela restou
desenhada na própria decisão, conduzindo-nos, inclusive, a afirmarmos que
a fundamentação da decisão integraria os limites objetivos da coisa julgada
(os limites objetivos, portanto, não estariam adstritos à parte conclusiva do
julgado), a semelhança do que alguns sustentam ocorrer no uso da técnica da
interpretação conforme a constituição sem redução de texto
572
.
2.2.5.1.6.3.2 Do pedido
No que tange, finalmente, ao pedido como elemento objetivo de
identificação de demandas no plano do processo coletivo especial, evidencia-se
que o seu papel e importância, aqui, segue, em linhas gerais, o regime comum já
visto acima, quando tratamos da tutela individual e coletiva comum, com um
único porém: dada a peculiaridade do processo coletivo especial, cujo objeto é o
controle objetivo do direito, não há que se falar, nesse ambiente de tutela, em
pedido mediato em contraponto ao imediato, na exata medida em que não há
um bem jurídico pretendido (o dinheiro na ação de cobrança ou na reparação
civil; o imóvel na reivindicatória; a posse na reintegratória). Pertinente é
somente o pedido imediato, referido à modalidade, espécie ou natureza (como
se queira) do provimento ou tutela jurisdicional pretendida, que será de cunho
modo que o novo pronunciamento não estaria atingindo a “coisa julgada” da ação direta anterior” (TALAMINI,
Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 477-8, grifo do autor).
572
Nesse sentido é a lição de Gregório Assagra de Almeida: “A adoção dos efeitos vinculatórios (art. 28,
parágrafo único, da Lei 9.868/99) aos casos de controle abstrato da constitucionalidade com a utilização da
técnica da interpretação conforme a Constituição conduz à conclusão de que esses efeitos atingem também a
parte da fundamentação da decisão, não se restringindo os limites objetivos da coisa julgada, nessa hipótese, à
parte conclusiva do acórdão” (ALMEIDA, Gregório Assagra. Direito processual coletivo brasileiro: um novo
ramo do direito processual (princípios, regras interpretativas e a problemática da sua interpretação e aplicação).
São Paulo: Saraiva, 2003, p. 200, grifo do autor). Também Eduardo Talamini comunga com essa tese, se bem
que de forma bem mais ampla, já que, para ele, sendo a causa de pedir, no controle concentado, tida como aberta
206
eminentemente declaratório, com pequena carga constitutiva, quando se tratar de
declaração de inconstitucionalidade ou constitucionalidade com a utilização da
técnica da interpretação conforme a Constituição sem redução de texto, ou, em
termos, mandamental, na declaração direta de inconstitucionalidade por omissão
(dado, é claro, a deformação que esse tipo de controle de constitucionalidade
sofreu em nosso sistema legal, já que, tecnicamente falando, a sua carga deveria
ser eminentemente declaratória e constitutiva, com pequena carga
mandamental)
573
. O certo, porém, é que não há qualquer bem da vida a ser
perseguido nessa modalidade de tutela.
2.2.5.2 Limites subjetivos da coisa julgada
Reportando-se a Aldo Attardi
574
, José Rogério Cruz e Tucci, bem
adverte que
[...] a questão dos limites subjetivos da coisa julgada [...] é um
problema de direito positivo, e que, por essa razão, não é relevante
para a sua solução, qualquer orientação doutrinária que se pretenda
seguir. Basta que o legislador disponha expressamente que, numa
determinada situação, respeitada a garantia do direito de defesa, o
decisum repercuta na esfera de direito de alguns sujeitos e não na de
outros.
575
Partindo-se dessa crucial premissa e reportando-nos desde logo
ao sistema brasileiro positivado, o que se tem, segundo a regra geral da primeira
parte do artigo 472 do Código de Processo Civil, é que a coisa julga opera
apenas em face das partes que figuraram no processo.
Não, é claro, que os efeitos da sentença não possam atingir
terceiros. Porém, como diz Eduardo Talamini,
a motivação do acórdão sempre será relevante para se estabelecer o exato alcance da decisão (TALAMINI,
Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 451-2 e 464).
573
ALMEIDA, Gregório Assagra. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual
(princípios, regras interpretativas e a problemática da sua interpretação e aplicação). São Paulo: Saraiva, 2003, p.
204-5.
574
ATTARDI, Aldo. Diritto processuale civile: v. 1: parte geral. Padova: Cedam, 2003, p. 493.
575
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Limites subjetivos da eficácia da sentença e da coisa julgada civil. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 26, grifo do autor.
207
[...] na medida em que tais efeitos repercutam na sua [do terceiro]
esfera jurídica de modo a conferir-lhe interesse e legitimidade para
agir, não fica impedido de buscar outro pronunciamento jurisdicional,
em sentido diverso daquele emitido no processo de que não
participou, sem que se lhe possa opor a coisa julgada. Caberá ao
terceiro demonstrar a sua razão – o que passará pela demonstração do
desacerto da anterior sentença, no ponto em que os efeitos dela o
atinjam.
576
A regra geral é, portanto, no que tange aos seus limites
subjetivos, que “[...] o terceiro é atingido pelos efeitos da sentença, mas não pela
coisa julgada”
577
, norma essa que “[...] é corolário das garantias constitucionais
da inafastabilidade da tutela jurisdicional, do devido processo legal, do
contraditório e da ampla defesa [...]”
578
, tal qual preconizado pela Constituição
da República Federativa do Brasil em seu artigo 5º, incisos XXXV, LIV e LV
579
.
Historicamente falando, pode-se, entre nós, debitar a Enrico
Tullio Liebman a adequada formulação e difusão dos limites subjetivos da coisa
julgada, na exata medida em que extremou os efeitos da sentença e a autoridade
da coisa julgada
580
, figuras essa que “[...] no pensamento comum, estiveram,
desde tempos imemoriais, confundidas e misturadas”
581
.
Em resumo, segundo a difundida concepção liebmaniana, o
princípio geral que rege os limites subjetivos da coisa julgada
[...] é o de que terceiros, alcançados pela eficácia da sentença, não
porém, pela autoridade da coisa julgada, podem defender-se do
prejuízo que a sentença injusta lhes produz, quando são titulares de
interesse jurídico que se acha em conflito com o que nela foi
declarado
582
.
576
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 97.
577
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 96.
578
Id., loc. cit.
579
Id., loc. cit.
580
Id., loc. cit. CRUZ E TUCCI, José Rogério. Limites subjetivos da eficácia da sentença e da coisa julgada
civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 24-5.
581
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com
aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos
posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1981, p. 141.
582
Ibid., p. 149.
208
O interesse, contudo, que legitima o terceiro injustiçado insurgir-
se contra a eficácia natural da sentença (ou os seus efeitos) e dele afasta, em
suma, a autoridade da coisa julgada, é aquele denominado jurídico, não
bastando, portanto, mero prejuízo econômico, como bem explica o próprio
Enrico Tullio Liebman, referindo-se às ações de estado e aos credores
eventualmente afetados nos seus créditos:
Tal [referindo-se à presença de interesse jurídico] não é, normalmente,
a situação dos terceiros em face da sentença em matéria de estado,
nem dos credores em face da sentença proferida contra seu devedor,
porque são titulares de interesse subordinado ao das partes e de
conteúdo meramente econômico: eles devem respeitar e acatar a
sentença, tal como foi pronunciada, sem lhe poder discutir o
fundamento
583
.
Por isso mesmo, Eduardo Talamini nos esclarece que
[...] o cerne da questão não está apenas em definir quando a coisa
julgada atinge terceiro [...]. Grande parte do problema reside em saber
quando os efeitos da sentença implicam propriamente
repercussões jurídicas na esfera do terceiro e, ainda, quando esse
terceiro detém legitimidade e interesse jurídico para agir em juízo
em nome próprio, pretendendo pronunciamento que se contraponha
aos efeitos do anterior. Afinal, pode haver casos em que terceiros
sofram mera mera repercussão fática (econômica, p. ex.) dos efeitos
da sentença (v.g., o credor de uma das partes que vê o patrimônio dela
diminuir com a sucumbência – o que amplia as chances de insucesso
na satisfação de seu crédito). Pode ainda ocorrer que os efeitos da
sentença repercutam juridicamente sobre a esfera de terceiro, mas ele
não seja, mesmo assim, titular de posição jurídica que lhe permita
direta e autonomamente pleitear em juízo resultado diverso (v.g. o
sublocatário em face do locador [...]. Em todos esses casos, poderia
parecer que os terceiros ficam vinculados à coisa julgada formada
em processo alheio. Mas não. O que se tem é a impossibilidade de
eles discutirem aquele resultado em juízo não pelo óbice da coisa
julgada e sim por falta de legitimidade ad causam. Nos casos em
que tal legitimidade se faça presente, a coisa julgada, em regra, não
será obstáculo
584
.
583
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com
aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos
posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1981, p. 149.
584
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 98, grifo
nosso.
209
Segundo Rogério Cruz e Tucci, na construção da corrente
fórmula regente dos limites subjetivos da coisa julgada, guarda, ainda, grande
atualidade a milenar lex Saepe do Direito Romano, reproduzida por Macro em
fragmento do Digesto, a qual preconizava que “Muitas vezes se determinou que
a coisa julgada em relação a uns não prejudica a outros”
585
.
Sedimentando-se, a regra veio a ser reproduzida no ano de 289
em uma das constituições de Diocleciano e Maximiniano, ditando-se que “É de
evidentíssimo direito..., que não se pode prejudicar aqueles que não estiveram
reunidos no processo”
586
.
Conforme observa, porém, José Rogério Cruz e Tucci, já entre os
romanos detectou-se a possibilidade de que a solução de uma demanda pudesse
repercutir prejudicialmente na esfera jurídica de terceiro. Eles procederam,
então, a distinção entre terceiros que, sabedores da existência do processo entre
alheios, eram pelo resultado atingidos; e de terceiros outros que, na mesma
situação, não o eram
587
.
Assim, Macro, na mesma passagem do Digesto acima
mencionada (D. 42.1.63), segundo José Rogério Cruz e Tucci, catalogava, entre
os terceiros não atingidos, o herdeiro do devedor, ainda que ciente do processo,
ante sentença negativa proferida em face de co-herdeiro pelo credor; o
condômino ou co-herdeiro ante derrota sofrida por outro condômino ou co-
herdeiro; o reivindicante de um fundo de alguém que houvesse vencido
demanda dominial anterior com outrem. Entre os terceiros atingidos, Macro
catalogava o credor pignoratício, o marido titular do dote e o comprador
possuidor do objeto adquirido, diante de uma sentença desfavorável proferida
contra o devedor, o sogro ou a mulher e o vendedor, respectivamente, desde que,
sabedores do processo onde eles litigaram, como autores ou como réus, e que,
585
D. 42.1.63, libro 2 de appellationibus apud CRUZ E TUCCI, José Rogério. Limites subjetivos da eficácia
da sentença e da coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 46.
586
C. 7.56.3 apud CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 46.
587
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 48.
210
assim sabedores, admitissem, mesmo implicitamente, estarem em juízo; e aquele
que interviesse num processo de terceiros envolvendo um liberto que julgava
seu e ele fosse declarado escravo ou mesmo liberto de outro
588
.
No direito medieval, o direito comum resgata e consolida as
premissas do direito romano, tomando a lex Saepe como matriz da
inoponibilidade da coisa julgada a terceiros, catalogando, os glosadores e
comentadores, ao lado das exceções de Macro, outras mais
589
.
A adoção da matriz romana não impediu, contudo, que se
consolidasse, nesse mesmo período, a exceção da oponibilidade geral das
sentenças atinentes às ações de estado
590
, ditas sentenças facit ius, ou seja, que
fazem direito, em oposição àquelas outras pro veritate habetur, ou seja, que
era tida como verdade, mesmo que eventualmente estivesse em desacordo com
ela
591
.
Do mesmo modo, teria sido nesse mesmo período que, a partir de
uma glosa de Acúrsio, surgiu como remédio processual em favor do terceiro
prejudicado que não interveio no processo a denominada oposição de
terceiro
592
.
No Brasil, durante o período reinol, a matriz introduzida pela lex
Saepe romana prevaleceu soberana, a ela rendendo-se as três Ordenações que se
sucederam até a consolidação da legislação civil brasileira, as quais, igualmente,
incorporaram o recurso de terceiro prejudicado, assim como a oponibilidade
588
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Limites subjetivos da eficácia da sentença e da coisa julgada civil. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 49.
589
Ibid., p. 50.
590
Ibid., p. 51.
591
ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Sentença e coisa julgada: exegese do código de processo civil: arts. 444
a 475. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 287.
592
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 51.
211
geral das sentenças proferidas sobre o estado de pessoa
593
.
Conforme observa Egas Moniz de Aragão, essa mesma regra
veio reproduzida no artigo 501 da Consolidação Ribas e, segundo ele, malgrado
não haver sido reproduzida em nossos Códigos estaduais, durante a fase da
estadualização da codificação processual civil brasileira, e, tampouco, haver sido
reproduzida no Código de Processo Civil de 1939, ela jamais deixou de ser
respeitada no direito pátrio, até vir, novamente, em 1973, a ser (rein)serida na
nossa codificação processual civil
594
.
O fato é, porém, que, conforme visto acima, desde o Direito
Romano, cotalogavam-se exceções à matriz introduzida pela lex Saepe, de
modo que, ainda que se atribuísse valor absoluto à coisa julgada, a doutrina
admitia que, excepcionalmente, terceiros poderiam ser alcançados pela coisa
julgada formada entre partes diversas.
Buscando uma solução teórica para esse fenômeno, a doutrina
moderna, durante a elaboração do Código Civil de Napoleão, que reafirmaria,
em seu artigo 1531, o valor absoluto da coisa julgada
595
, reduziu a discussão em
se saber se os terceiros, entre os quais uma segunda demanda foi instaurada,
podiam ou não ser considerados as mesmas pessoas entre as quais a demanda
anterior fora solucionada. Cindindo-se o conceito de parte em um sentido
material e outro processual, sustentava-se que o que importava era a qualidade
com que se litigava no processo e não propriamente quem litigava.
Nessa esteira, Robert-Joseph Pothier, admitia a extensão da coisa
julgada aos sucessores à título particular e aos co-titualres de obrigações e
direito indivisíveis; aos fiadores, diante de sentença favorável ou condenatória
593
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Limites subjetivos da eficácia da sentença e da coisa julgada civil. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 52-3.
594
ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Sentença e coisa julgada: exegese do código de processo civil: arts. 444
a 475. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 288-9. Também: CRUZ E TUCCI, José Rogério. Limites subjetivos da
eficácia da sentença e da coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 53.
595
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 54-5.
212
ao/do afiançado; aos legatários, diante de sentença de nulidade do testamento
proferida em face herdeiro testamentário
596
.
A doutrina dessa época, conforme diz José Rogério Cruz e Tucci,
com suporte em Giovanni Pugliese
597
, estava convencida de que tanto nos
exemplos dados por Robert-Joseph Pothier como
[...] em hipóteses análogas, o sujeito em face de quem havia sido
proferida a sentença, e o sujeito, a quem ou por quem ela era oponível,
constituíam a mesma pessoa, de modo que o problema da expansão
da coisa julgada em relação a terceiros se resumia em saber se aqueles,
entre os quais se instaurava a segunda demanda, deviam ou não ser
considerados as mesmas pessoas entre as quais a precedente sentença
havia sido proferida
598
.
À essa concepção, sucedeu aquela denominada teoria da
representação que, surgida no decorrer do século XIX e capitaneada por
Friederich Karl von Savigny
599
, sustentava que, “[...] em alguns casos, a coisa
julgada se expandia a terceiros que podiam ser considerados representados no
processo por uma das partes”
600
. Os exemplos eram o do filho, representado pelo
pai em uma ação de estado; o do legatário, diante de sentença confirmatória da
validade do testamento em demanda envolvendo os legítimos herdeiros e o
testamentário; o do credor pignoratício, diante de ação patrocinada pelo
devedor; o do marido, diante de ação dotal promovida ou contestada pela mulher
ou sogro; o do comprador, na reivindicação feita contra o vendedor que deu
causa à evicção; além do co-proprietário que tanto pode ser beneficiado por
sentença favorável obtida por seu condômino em ação, por exemplo, confessória
ou negatória de servidão, ou prejudicado, em caso de derrota, desde que tenha,
596
POTHIER, Robert-Joseph. Tratado das obrigações pessoaes e recíprocas nos pactos, contractos,
convenções: t. 2. Tr. port. José Homem Correa Telles. Lisboa: Tip. Antonio José da Rocha, 1849, p. 331 et seq.
apud CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 54-5.
597
PUGLIESE, Giovanni. Giudicato civile (storia). In: ENCICLOPÉDIA del diritto. v. 18. Milano: Giuffrè,
1968, p. 784, apud CRUZ E TUCCI, José Rogério. Limites subjetivos da eficácia da sentença e da coisa
julgada civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 55.
598
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 55, grifo do autor.
599
SAVIGNY, Friederich Karl von. Sistema del Diritto Romano Attuale: v. 6. Tradução de Scialoja. Turim:
Utet, 1896, p. 508-9 apud CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 55-6.
600
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 55-6.
213
de alguma forma, tomado conhecimento da demanda, pouco importando se nela
interveio ou não, em que pese que, a falta de conhecimento, não ensejasse a
desconstituição do julgado, mas tão só um direito de ressarcimento em favor do
condômino representado
601
.
Seguiu-se, então, a teoria da eficácia reflexa dos atos jurídicos,
que teve como ícone intelectual Rudolf von Ihering
602
.
Assentando-se, basicamente, sobre três postulados, essa teoria
distinguia, primeiramente, a eficácia direta da eficácia reflexa da coisa julgada.
A direta, só as partes atingia
603
; a reflexa, em caráter excepcional (involuntária e
ondularmente), atingia terceiros
604
. Num segundo plano, postulava que essa
eficácia reflexa nem derivava, propriamente, da lei, nem da decisão do juiz, mas,
sim, como corolário lógico do direito material versado no julgado. Ou seja, eram
gerados, sem unicidade e/ou homogeneidade “[...] pela natureza da relação
jurídica, pela lei ou pela lógica”
605
. E, por fim, postulava que essa eficácia
reflexa adviria, genericamente, sobre o terceiro que mantivesse um vínculo
jurídico com o objeto da causa anterior “[...] sob a forma de um nexo de
prejudicialidade”
606
, como o que se dá nas hipóteses de identidade de situações
jurídicas (co-propriedade); ou de conexão (relação emergida de hipoteca); ou,
ainda de interesses paralelos (herdeiro e legatário)
607
.
A par, portanto, dos efeitos naturais que advém do ato jurídico
(que emanam do seu conteúdo próprio, da sua determinação e da sua função),
circunscritos às partes, para essa teoria, terceiros outros poderão ser atingidos
601
SAVIGNY, Friederich Karl von. Sistema del Diritto Romano Attuale: v. 6. Tradução de Scialoja. Turim:
Utet, 1896, pp. 510-8 apud CRUZ E TUCCI, José Rogério. Limites subjetivos da eficácia da sentença e da
coisa julgada civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 57-8.
602
Cf.: CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 59-63.
603
IHERING, Rudolf von. Dês effets reflexes ou de la réaction exercée sur lês tiers par lês faits juridiques. In:
______. Études complémentaires de l’esprit du droit romain. Tradução francesa de Octave de Meulenaere.
Paris: Libr. A. Maresq, 1903, p. 239-240 apud CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 61-2.
604
Id., loc. cit. apud CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 61-2.
605
Ibid., p. 243 et sequent e 261 et sequent apud CRUZ E TUCCI, op.cit., p. 62.
606
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 100.
607
IHERING, op. cit., p. 243 et sequent e 261 et sequent apud CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 62.
214
por efeitos reflexos, não desejados mas inevitáveis, “[...] por força de nexos de
interdependência existentes entre os relacionamentos jurídicos”
608
.
Deslocando-se, de certa forma, o foco da questão do direito
material para o processual, a partir de teorizações de Adolf Wach, seguiu-se,
para a explicação do fenômeno, a teoria reflexa da coisa julgada a terceiros,
originariamente repercutida, entre outros, por Albrecht Mendelssohn Bertholdy
e Giuseppe Chiovenda, e, posteriormente, por Emilio Betti e Francisco
Carnelutti de um lado e por Enrico Allorio de outro
609
.
Ainda que se possa considerar complexo e temerário estabelecer-
se um denominador comum às teorizações desses teóricos todos, de vulto e
originalidade inquestionáveis na construção do arcabouço teórico do direito
processual civil e, especificamente, para a construção da teoria da coisa julgada
em geral, parece certo que sob o manto delas subjazem as premissas de que:
[...] para a compreensão do fenômeno da eficácia ultra partes da
sentença e da extensão da coisa julgada, torna-se importante distinguir
entre os terceiros juridicamente indiferentes à decisão proferida no
processo do qual não participaram e os terceiros juridicamente
interessados, que têm algum interesse no resultado da demanda; [e
que] dentre estes [terceiros juridicamente interessados] há aqueles que
são titulares de relação jurídica compatível com aquela decidida, mas
que podem sofrer um prejuízo de fato; e há terceiros titulares de uma
relação jurídica incompatível com aquela que é objeto da sentença.
610
Os terceiros juridicamente indiferentes, são aqueles que só de
fato são atingidos pela coisa julgada, como é o caso do credor quirografário em
face da coisa julgada formada contra o devedor comum. Há, aí, uma sujeição
imprópria, e, juridicamente falando, a coisa julgada lhes é indiferente
611
.
Já os terceiros juridicamente interessados, quando titulares de
direito incompatível com a sentença (como o do fiador em relação à condenação
608
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Limites subjetivos da eficácia da sentença e da coisa julgada civil. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 61.
609
Cf.: CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 63-85.
610
Ibid., p. 100, grifo do autor.
611
Ibid., p. 71.
215
do devedor; o do comprador em relação à reivindicação promovida em face do
vendedor), a coisa julgada lhes é irrelevante, juridicamente falando, não lhes
sendo oponível, portanto. Quando, porém, titulares de direito compatível com
aquele decidido por subordinação jurídica à posição jurídica das partes (como se
daria na sucessão, na substituição processual, na conexão incindível ou
concorrência alternativa e na dependência necessária), a coisa julgada lhe é
relevante, os abrangendo
612
.
A todo esse largo espectro teórico da eficácia reflexa da coisa
julgada, sucedeu-se, finalmente, a teoria da eficácia natural edificada por
Enrico Tullio Liebman e cujo grande mérito foi, como já dito acima, cindir o
plano dos efeitos (ou da eficácia) da sentença do da sua imutabilidade, para dizer
que a eficácia da sentença estende-se, naturalmente, a todos (partes e terceiros),
enquanto que a sua imutabilidade, que não é efeito da sentença, mas, sim, uma
qualidade que se lhe empresta (assim como aos seus efeitos
613
), jamais atingirá
os terceiros ditos juridicamente interessados, que sempre a ela poderão opor-
se
614
.
Após a concepção liebmaniana, segundo anota José Rogério
Cruz e Tucci, desenvolveram-se, ainda, teorias tidas por ecléticas, como as
concebidas por Giovanni Pugliese e Federico Carpi, o primeiro deles,
sustentando que, à luz do art. 2909 do Código Civil italiano, o terceiro atingido,
é equiparado à parte, tratando-se de uma hipótese legal de extensão da coisa
julgada a uma categoria de sujeitos que, sob o prisma jurídico, detém relações
dependentes com a das partes litigantes e que, por isso mesmo, são considerados
parte no direito material e, por via de conseqüência, ficam encartados na
612
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Limites subjetivos da eficácia da sentença e da coisa julgada civil. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 72.
613
Deve-se lembrar que a assertiva da coisa julgada como uma qualidade que se agrega aos efeitos da sentença
não passou incólume a críticas no nosso direito, encontrando já adequada solução teórica e prática, conforme por
nós exposto no item 2.1.2.1.2.2.1,supra.
614
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com
aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos
posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1981, p. 15-149.
216
categoria dos aventi causa (de largo espectro), a que alude o referido
dispositivo legal; o segundo, sustentando a inexistência de uma eficácia ultra
partes da sentença, preferindo adotar a noção de alargamento da coisa julgada,
que ocorre, pura e simplesmente, por estrita opção legislativa, como forma de
realizar um interesse supraindividual e onde o interesse particular é tutelado
como um mero instrumento para a realização de interesse público, como ocorre
no direito de família e na legitimação por categoria, hipóteses em que a
jurisdição é provocada por pessoas que não são os titulares da relação jurídica
(as associações, na legitimação por categoria; e o Ministério Público, no direito
de família)
615
.
Ainda, segundo o mesmo José Rogério Cruz e Tucci surgiram
teorias restritivas, como as de Girolamo Monteleone e Corrado Vocino, os
quais, alarmados com uma tendência expansionista da coisa julgada,
incrementada pelas teorizações de Giovanni Pugliese, passam a sustentar que,
não há que se falar em extensão ultra partes da sentença, reflexa ou indireta,
senão diante de expressa previsão legal, sob pena de quebra do direito ao
contraditório. E, diante disso, inócua é a teorização de eficácias reflexas ou o
que o valha, já que, quando a coisa julgada atinge um terceiro, ela o atinge a
partir do próprio fenômeno da sua autoridade, decorrente de previsão legal
616
.
No Brasil, conforme assevera José Rogério Cruz e Tucci,
[...] a par da adesão expressada na Exposição de Motivos do vigente
Código de Processo Civil, a moderna doutrina é francamente
favorável à tese de Liebman, sobretudo no que se refere ao perfil
conceitual
617
.
615
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Limites subjetivos da eficácia da sentença e da coisa julgada civil. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 92-6.
616
Ibid., p. 96-9.
617
Ibid., p. 90, grifo do autor. Deve-se, porém, recordar que, conforme indicado acima (item 2.1.2.1.2.2, supra),
a nossa codificação processual civil apresentaria um descompasso entre aquilo que ela professa em sua
Exposição de Motivos (no sentido de que o arcabouço legal da coisa julgada fora edificado sob bases
liebmanianas) e aquilo que efetivamente foi legislado (no sentido de que o conceito legal efetivamente adotado
o foi em termos de eficácia e não de qualidade).
217
Por conta disso, desfiando os corolários lógicos que emanam
desse arcabouço teórico, na feliz síntese de José Rogério Cruz e Tucci, pode-se
afirmar que, quanto aos limites subjetivos da coisa julgada, a questão pode, entre
nós, assim ser sintetizada:
[...] a eficácia não se confunde com a autoridade da coisa julgada; os
efeitos que emanam da sentença não estão condicionados ao
respectivo trânsito em julgado; a distinção entre eficácia direta e
eficácia reflexa (da sentença ou da coisa julgada) encontra-se
superada, porque aquela que pode afetar um terceiro em nada se
diferencia da que é produzida entre as partes; a extensão ultra partes
dos efeitos da sentença verifica-se quando houver um nexo de
prejudicialidade entre a causa decidida e a relação jurídica que
envolve o terceiro; o terceiro prejudicado, nestas condições, para
afastar a eficácia do decisum, ligitima-se a recorrer às vias
processuais adequadas; tendo-se em vista a posição jurídica de
subordinação do terceiro ou a natureza do direito material em jogo, é a
própria imutabilidade do comando da sentença que acaba atingindo
aquele que não participou do processo; [e] havendo prejuízo ao
terceiro, a coisa julgada deve ser considerada res inter alios;
trazendo-lhe benefício, o terceiro, de um lado, não estará obrigado a
valer-se da posição de vantagem que lhe foi propiciada pela sentença;
e, de outro lado, não pode opor-se ao julgado, porque é carecedor de
interesse processual para insurgir-se contra a coisa julgada
618
.
Aparentemente, a segunda parte do artigo 472 do Código de
Processo Civil, ao tratar da coisa julgada nas causas relativas ao estado da
pessoa, encerraria uma exceção à regra geral da inoponibilidade da coisa julgada
em face de terceiros.
Como pondera, porém, Eduardo Talamini, os terceiros
mencionados no dispositivo legal, a bem da verdade são aqueles mesmos
interessados (ou seja, que detinham interesse jurídico direto na questão de
estado objeto do processo) nele aludidos e que, citados, assumiram a posição de
parte. É em relação à eles (interessados jurídicos na ação de estado, ou qualquer
outro interessado jurídico em hipótese de litisconsorte passivo necessário) que a
coisa julgada se formará. Não assim em relação a terceiros outros quaisquer, a
618
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Limites subjetivos da eficácia da sentença e da coisa julgada civil. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 100-1, grifo do autor.
218
quem, em verdade, o julgado é indiferente, já que lhes faleceria interesse e,
portanto, legitimidade, para discutirem a questão
619
.
Considerando, por fim, como dito acima, que, hoje, o
fundamento à restrição da extensão da coisa julgada ao terceiro é concebido no
plano constitucional (artigo 5º, incisos XXXV e LV, da Constituição Federal),
haveria, segundo parte da doutrina, um importante porém a ser oposto à tese
genérica da eficácia natural erga omnes de Enrico Tullio Liebman
620
.
É que Enrico Tullio Liebman, ao conceber essa sua teoria, a
fizera à luz do direito italiano, que conferia ao terceiro juridicamente interessado
o instrumento da oposição de terceiros
621
.
Daí porque, ao cogitar da oponibilidade do terceiro prejudicado à
eficácia natural da sentença, ele o fazia referindo-se ao ônus que teria esse
terceiro de demonstrar a injustiça da sentença
622
.
Entre nós, contudo, a regra existente que estaria a acorrer esse
terceiro seria, após o trânsito em julgado da sentença (antes disso ele poderia
tanto se valer da apelação quanto da assistência e dos demais institutos típicos
previstos no Código de Processo Civil Brasileiro), em tese, aquela insculpida no
artigo 487, II, do Código de Processo Civil, a qual, em suma, está a lhe outorgar
a via rescisória para a desconstituição do julgado
623
.
Duas questões aí se suscitam: primeiramente, que a ação
rescisória só pode ser manejada nos casos taxativamente previstos no artigo 485
do Código de Processo Civil, o que não ocorria com a oposição do terceiro
prejudicado no direito italiano (as hipóteses de defesa, portanto, em sede de ação
rescisória, estariam restritas, se imaginadas em face da via cognitiva comum do
processo de conhecimento, configurando-se verdadeiro cerceamento de defesa);
619
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 119-21.
620
Cf.: CRUZ E TUCCI, José Rogério Cruz e. Limites subjetivos da eficácia da sentença e da coisa julgada
civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 118-9.
621
Ibid., p. 120.
622
Ibid., p. 121.
623
Id., loc.cit.
219
e, em segundo lugar, a ação está sujeita a um prazo decadencial de dois anos,
contados do trânsito em julgado da decisão (artigo 495 do Código de Processo
Civil), o que, igualmente inocorria no direito italiano
624
.
Justamente por isso, José Rogério Cruz e Tucci sustenta que esse
terceiro, a bem da verdade, poderia se valer não só da ação rescisória, tal qual
preconizado pelo artigo 487, II, do Código de Processo Civil, como que,
também, poderia valer-se da impugnação da sentença, na fase executiva (artigo
475-L, incisos I, II e IV, do Código de Processo Civil), além da ação
declaratória de nulidade da sentença
625
.
A hipótese suscitada não passou despercebida, também, a
Eduardo Talamini, o qual observa que, em face da regra do artigo 472 do
Código de Processo Civil Brasileiro,
[...] que exclui a submissão de terceiros à autoridade da coisa julgada,
chega-se a pôr em dúvida a utilidade da regra que atribui a terceiros a
legitimidade para propor ação rescisória (art. 487, II). Argumenta-se
que, não estando eles sujeitos à coisa julgada, não precisariam se valer
da rescisória para obter outra solução para a causa, já decidida pela
sentença em relação à qual são terceiros
626
.
Malgrado essa impressão, Eduardo Talamini pondera que a
referida
[...] regra do art. 487, II, tem, sim, uma fundamental importância para
determinados terceiros. E não se está aqui a falar dos terceiros que
intervieram no processo, e portanto se tornaram partes, nem dos
sucessores das partes que se submetam propriamente à coisa julgada
624
CRUZ E TUCCI, José Rogério Cruz e. Limites subjetivos da eficácia da sentença e da coisa julgada civil.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 121-3. Anote-se que a incompatibilidade sistêmica comentada
fora identificada e anotada pelo próprio Enrico Tullio Lebman, em que pese escrevendo durante a vigência do
Código de Processo Civil Brasileiro de 1939, quando a rescisória não estava taxativamente posta à disposição do
terceiro interessado atingido, em que pese a doutrina já sustentar a sua legitimidade para a promoção da ação
(LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com
aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos
posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1981, p. 147-9).
625
CRUZ E TUCCI, op. cit., p. 123-4. Nesse particular, José Rogério Cruz e Tucci, repercute a opinião de:
GRINOVER, Ada Pellegrini. Notas ao § 5º. In: LIEBMAN, op. cit., p. 117-9. YARSHELL, Flávio. Ação
rescisória: juízos rescindente e rescisório. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 146.
626
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 121.
220
(inclusive, os sucessores são postos ao lado das partes, na regra sobre
legitimidade ativa da rescisória – art. 487, I)
627
.
Do mesmo modo, não se pode admitir que a referida regra diga
respeito aos litisconsortes passivos necessários, já que, em relação a eles, a sua
sonegação implicará, conforme o próprio Eduardo Talamini admite, na
ineficácia até em face daqueles que figuraram no processo, segundo a regra
geral seja do artigo 47 do Código de Processo Civil Brasileiro, afigurando-se,
inclusive, em face do terceiro não citado, como sentença inexistente, podendo,
tanto um, quanto o outro, opor-se à sentença independentemente de ação
rescisória
628
.
No entanto, Eduardo Talamini observa que, primeiramente,
[...] não é razoável rejeitar por completo a possibilidade de o terceiro
valer-se da rescisória mesmo quando ele estiver legitimado a propor
uma ação versando diretamente sobre o mesmo objeto já decidido na
sentença proferida no processo em que não foi parte
629
.
A regra em comento, aí, não seria imprescindível, porém, útil,
ainda que subsidiariamente.
A regra deixa, contudo, de ser meramente útil para passar a ser
imprescindível nos “[...] casos em que o substituído fica diretamente
subordinado à coisa julgada produzida no processo de que participa o seu
substituto processual, embora não sendo parte”
630
.
Do mesmo modo, ela se mostra imprescindível para o terceiro
que, embora atingido pela eficácia do julgado, não conta com legitimidade para,
direta e autonomamente discutir a questão em juízo, em nome próprio, o que lhe
627
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 121.
628
Ibid., p. 120 e 345-6.
629
Ibid., p. 121.
630
Id., loc. cit. Nessas condições, enquadrar-se-iam, entre outros, os seguintes caso, segundo o autor: “(a) a
substituição processual do adquirente ou cessionário pelo cedente ou alienante, nos termos do art. 42 [e desde
que observados os critérios exigidos para tanto]; (b) a substituição processual prevista no art. 3º da Lei
1.533/1951; (c) a substituição processual da sociedade pelo sócio, na hipótese do art. 159, § 3º, da Lei
6.404/1976” (Ibid., p. 115). Para um detalhamento dos pressupostos exigidos para que o adquirente ou
cessionário sejam tidos como representados pelo cedente ou alienante ver: TALAMINI, op. cit., p. 110-3.
221
acarretaria a ilegitimidade ativa para autuar em juízo, manejando ação com
idêntico objeto da ação já decidida
631
.
É o que ocorre, por exemplo, com aquele cuja relação jurídica é
dependente daquela que foi discutida no processo, como nas obrigações
acessórias em geral, ente elas, a relação da sublocação, que é atingida pela
rescisão do contrato de locação sem que o sublocatário tenha legitimidade para
propor, em nome próprio, qualquer ação em face do locador, defendendo a
prevalência do vínculo obrigacional principal (a locação)
632
.
Nessas duas hipóteses e em outras assemelhadas (como, por
exemplo, a do detentor de penhora sobre crédito que, diante da omissão do
titular do crédito penhorado, toma a iniciativa de realizar o crédito), em linha de
princípio, transitada em julgado a ação, só pela via da ação rescisória poderá ele
fazer valer a sua pretensão, revelando-se “[...] crucial a legitimidade ativa para a
rescisória ex vi do inciso II do art. 487”
633
.
Percebe-se, portanto, que, segundo o que sustenta Eduardo
Talamini, ao contrário do que dá a entender José Rogério Cruz e Tucci, nem
todo o terceiro estaria livre da regra do artigo 487, II do Código de Processo
Civil Brasileiro, havendo, em suma, aqueles que não se furtariam à
imutabilidade do julgado, sem que, em tese, se ofendesse os princípios
constitucionais da inafastabilidade do controle judicial ou do contraditório.
2.2.5.2.1 Os limites subjetivos da coisa julgada no processo coletivo
2.2.5.2.1.1 Considerações sistêmicas prévias
Dissemos acima, ao tratarmos dos limites objetivos da coisa
julgada no processo coletivo
634
, que a doutrina tende a cindir a tutela coletiva em
631
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 121-2.
632
Ibid., p. 122.
633
Id., loc. cit., grifo do autor.
634
Item 2.2.5.1.6.1, supra.
222
um dito processo coletivo comum e outro, dito especial. O primeiro deles,
destinar-se-ia à tutela jurisdicional do direito subjetivo coletivo em sentido
amplo, e o segundo, à tutela jurisdicional do direito objetivo, ou seja, da
constitucionalidade das leis
635
.
O processo coletivo comum, seria informado, hoje, no plano
infraconstitucional, por um microssistema autônomo integrado pelo Código de
Defesa do Consumidor e pela Lei da Ação Civil Pública, os quais constituiriam
um conjunto de normas de sobredireito processual coletivo comum onde o
Código de Processo Civil contaria com aplicação meramente subsidiária
636
.
Essa bipartição, por nós adotada no trato dos limites objetivos da
coisa julgada, mostra, igualmente, a sua pertinência na análise dos limites
subjetivos, já que, conforme teremos a oportunidade ver, há peculiariedades nos
dois planos que não aconselham a sua redução.
2.2.5.2.1.2 Os limites subjetivos da coisa julgada no processo coletivo
comum
Assim, adotado o critério bipartido da tutela coletiva, é de se
afirmar, num primeiro plano, que, quanto ao dito processo coletivo comum,
modelando-se em Eduardo Talamini, a análise da matéria pode ser sistematizada
a partir da análise dos seguintes fatores:
(a) os limites subjetivos da coisa julgada no processo coletivo em face
dos litigantes individuais; (b) os limites subjetivos da coisa julgada no
processo coletivo em face dos demais legitimados para ações
coletivas; (c) os limites subjetivos da coisa julgada na ação popular
637
.
635
ALMEIDA, Gregório Assagra. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual
(princípios, regras interpretativas e a problemática da sua interpretação e aplicação). São Paulo: Saraiva, 2003, p.
137-41 e 530-59.
636
Ibid., p. 582-4. Abonando essa assertiva, Eduardo Talamini, diz que esse microssistema é justificado e
informado “[...] em alguns casos, por expressa determinação legal (Lei 7.347/1985, art. 21; CDC, art. 90; Lei
8.069/1990, art. 224; Lei 7.853/1989, art. 7º; Lei 7.913/1989, art. 3º etc), em outros, por imposição sistemática
destinada a permitir que garantias fundamentais tenham aplicação imediata, nos termos do art. 5º, § 1º, da
Constituição (é o caso do mandado de segurança coletivo)” (TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua
revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 124).
637
TALAMINI, op. cit., p. 123.
223
2.2.5.2.1.2.1 Os limites subjetivos da coisa julgada no processo coletivo
comum em face dos litigantes individuais
O princípio geral que se observa, quanto aos litigantes
individuais, é o de que eles jamais serão prejudicados pela coisa julgada
formada no processo coletivo, salvo se nele houverem intervido. É a regra que
se extrai da conjugação dos artigos 103, III, e §§ 1º a 3º, e 104 do Código de
Defesa do Consumidor.
Ao contrário disso, quando se der pela procedência da ação
coletiva, a coisa julgada forma-se erga omnes, para beneficiar o litigante
individual na tutela dos denominados direitos individuais homogêneos ou
difusos, e ultra partes, para beneficiar o litigante individual na tutela dos
denominados direitos coletivos em sentido estrito (limitada, portando, ao grupo,
categoria ou classe enfeixados por uma mesma relação jurídica base)
638
. É a
regra que se extrai da do artigo 103, I a III e §§ 1º a 3º, do Código de Defesa do
Consumidor
639
.
Daí porque se afirmar, genericamente, que, no caso de
procedência da ação coletiva na tutela coletiva comum, a coisa julgada se forma
erga omnes ou ultra partes, porém, in utilibus
640
.
638
Acerca da noção conceitual de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, ver item 2.2.5.1.6.2.1,
supra, especialmente as referências das notas 538, 539 e 541, supra.
639
Registre-se, contudo, que Eduardo Talami, sustenta que tais hipóteses são de extensão da eficácia da
sentença, operacionalizável a partir da regra do artigo 97 do Código de Defesa do Consumidor e, não,
propriamente, de extensão da coisa julgada em relação ao litigante individual. Até porque, sustenta ele, o
demandante individual, segundo a técnica da tutela coletiva em geral, foi parte no processo e, por regra, estaria
desde logo sujeito à coisa julgada. Portanto, pertinentes, seriam as regras da sua exclusão à autoridade da coisa
julgada, e, não, para nela o incluir (TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005, p. 124-6).
640
ALMEIDA, Gregório Assagra. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual
(princípios, regras interpretativas e a problemática da sua interpretação e aplicação). São Paulo: Saraiva, 2003, p.
356-7.
224
2.2.5.2.1.2.2 Os limites subjetivos da coisa julgada no processo coletivo em
face dos demais legitimados para as ações coletivas
Conforme vimos acima
641
, a regra geral que norteia a formação
da coisa julgada material em sede tutela coletiva é a de que ela se dá secundum
eventum litis (segundo o resultado do julgamento) ou, segundo outros,
secundum eventum probationis
642
.
Desse modo, em sendo julgada improcedente a ação por
insuficiência de provas, não há, simplesmente, formação de coisa julgada
material.
Nas demais hipóteses, seja de improcedência, seja de procedência
da demanda coletiva - onde a coisa julgada material, em suma, se forma -, a
regra geral é a de que tanto as partes do processo em que ela se formou, quanto
os demais legitimados (em tese) para o aforamento da ação (coletiva, bem
entendido, já que, conforme visto acima, os legitimados para a ação individual
não serão jamais prejudicados pelo resultado da ação coletiva
643
) serão atingidos
por ela.
Quanto aos legitimados coletivos, portanto, nas hipóteses em que
a coisa julgada material se forma, a regra geral é que ela “[...] se estende para
além das partes do processo”
644
.
É o que se extrai da conjugação dos artigos 103, I e II, do Código
de Defesa do Consumidor, 16, da Lei nº 7.347/1985 e 4º da Lei nº 7.853/1989.
Em que pese sustentar-se ser essa a regra geral para a tutela dos
direitos coletivos in genere, há considerável polêmica em torno da sua
incidência no que tange aos direitos individuais homogêneos, já que o Código de
Defesa do Consumidor, em seu artigo 103, III, referindo-se especificamente a
essa modalidade de direitos, se limita a dizer, conforme observa Eduardo
641
Item 2.2.5.1.6.2.1, supra.
642
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 127-8.
643
Item 2.2.5.1.6.2.1, supra.
644
TALAMINI, op. cit, p. 128.
225
Talamini, que a coisa julgada se formará apenas no caso de procedência do
pedido, “[...] do que se poderia pretender extrair que não há coisa julgada
nenhuma em caso de improcedência”
645
.
Buscando uma adequada solução para a dúvida que daí surge,
Eduardo Talamini, apesar da literalidade do dispositivo, sustenta que,
Todavia, cabe reconhecer que a sentença de improcedência faz coisa
julgada, quando menos, em face daqueles que figuram como partes no
processo. Não é concebível que aquele que já propôs a ação coletiva
ex art. 81, par. ún., III, venha simplesmente repeti-la. A interpretação
mais adequada do dispositivo é a seguinte: a abrangência erga omnes
ocorre apenas no caso de procedência; porém, configura-se a coisa
julgada inter partes, em qualquer hipótese de sentença de mérito
646
.
Essa interpretação, sem dúvida, guarda coerência com a
concepção que o referido autor tem da natureza jurídica dessas regras todas do
Código de Defesa do Consumidor que, a despeito de se referirem aos limites da
coisa julgada, a bem da verdade estariam a regular hipóteses de extensão ou não
da eficácia da sentença a terceiros, raciocínio a partir do qual se poderia afirmar
que o referido artigo 103, III, do Código de Defesa do Consumidor estaria
apenas dizendo que a eficácia da sentença só seria extensível a terceiros no caso
de procedência do pedido. Do mesmo modo, guarda coerência com a sua
correlata concepção de que o demandante individual, segundo a técnica da tutela
coletiva em geral, foi parte no processo e, por regra, estaria desde logo sujeito à
coisa julgada. Portanto, pertinentes, seriam as regras da sua exclusão à
autoridade da coisa julgada, e, não, para nela o incluir, cumprindo, assim, a
regrado artigo 103, III, do Código de Defesa do Consumidor, justamente o papel
de exclusão do demandante individual da autoridade da coisa julgada
647
.
Mesmo que não se queira comungar com Eduardo Talamini
quanto à exata natureza jurídica dessas normas, que, insertas no Código de
645
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 129, grifo
do autor.
646
Id., loc. cit.
647
Nota nº 639, supra.
226
Defesa do Consumidor, estão a tratar da coisa julgada, particularmente daquelas
referidas ao demandante particular, parece-nos que duas relevantes razões
militam em favor da interpretação que ele empresta à regra do referido artigo
103, III, do Código de Defesa do Consumidor.
A primeira delas é a de que, como visto acima
648
, a regra geral
em matéria de limitação subjetiva da coisa julgada é a de preservar o estranho ao
processo para evitar que ele seja prejudicado sem ter dele participado e,
portanto, sem que ele tenha tido a oportunidade de se inserir no contraditório
instaurado.
Sendo essa a regra geral, realmente, não se vislumbraria, no caso
concreto, qualquer razão para se excluir o demandante legitimado e que
participou do processo da autoridade da coisa julgada.
Dito isso, não se pode esquecer que, conforme sustenta Gregório
Assagra de Almeida, a despeito do processo coletivo comum ser composto, hoje,
por um sistema coordenado e de principiologia própria integrado pelo Código de
Defesa do Consumidor e pela Lei da Ação Civil Pública, não é menos verdade
que, tanto a Lei da Ação Civil Pública, em seu artigo 19, quando o Código de
Defesa do Consumidor, em seu artigo 90, prevêem a aplicabilidade subsidiária
do Código de Processo Civil a esse sistema. É certo que,
[...] para que isso ocorra, deve existir dupla compatibilidade, formal
(inexistência de disposição legal sobre a matéria no direito processual
coletivo comum) e material (a regra do CPC só será aplicável se não
ferir o espírito do direito processual coletivo comum e, portanto, não
colocar em risco a efetivação da tutela jurisdicional coletiva adequada.
Se colocar em risco a efetividade do respectivo direito coletivo
tutelado, essa aplicabilidade deverá ser rechaçada pelo operador do
direito [...]
649
.
No caso, quanto ao litigante coletivo que foi o titular da ação, não
se vê, realmente, qualquer relevante razão principiológica do processo coletivo
648
Item 2.2.5.2, supra.
649
ALMEIDA, Gregório Assagra. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual
(princípios, regras interpretativas e a problemática da sua interpretação e aplicação). São Paulo: Saraiva, 2003, p.
583, grifo do autor.
227
comum
650
que pudesse afastar a incidência subsidiária do artigo 472, primeira
parte, do Código de Processo Civil, quanto mais que, tal qual sustenta Gregório
Assagra de Almeida, o instituto da coisa julgada material não deixa de ser
estruturalmente fundamental para o direito processual coletivo comum,
[...] pois é por seu intermédio que se alcançará o resultado útil do
processo coletivo. É por seu intermédio que ocorrerá a pacificação
social de forma potencializada
651
.
E, de fato, conforme adiante veremos, a pedra angular da
justificação teórica da coisa julgada material é, justamente, a pacificação social a
partir da estabilização e finalização dos conflitos surgidos em sociedade. Na
tutela coletiva, o que se busca é, justamente, se potencializar esse fim e, sob
essa premissa, não se vê, realmente, qualquer justificação plausível para se
admitir a reiteração indeterminada, pelo próprio demandante coletivo que
figurou no processo, da demanda que foi tida como improcedente, inclusive na
hipótese da improcedência não se assentar na mera insuficiência de provas.
A segunda razão porque entendemos ser adequada a interpretação
de Eduardo Talamini em torno do artigo 103, III, do Código de Defesa do
Consumidor, se assenta no fato de que a interpretação literal do referido
dispositivo legal nos conduziria à pura e simples negação da coisa julgada
material na hipótese, o que não se poderia conceber a partir do status
constitucional de que goza o instituto
652
; seria o caso, portanto, de uma
interpretação aniquilante da norma constitucional que assegura o instituto
(artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal), o que não se admite de modo
650
Acerca dos fins e princípios fundamentais que norteiam o processo coletivo comum, consulte-se: ALMEIDA,
Gregório Assagra. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual (princípios,
regras interpretativas e a problemática da sua interpretação e aplicação). São Paulo: Saraiva, 2003, p. 137-56 e
560-79.
651
ALMEIDA, op. cit., p. 554, grifo do autor, grifo nosso.
652
Nesse particular, é de se lembrar que já Enrico Tullio Liebman, sustentava que “[...] o instituto da coisa
julgada pertence ao direito público e mais precisamente ao direito constitucional” (LIEBMAN, Enrico Tullio.
Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com aditamentos relativos ao direito
brasileiro. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos posteriores à edição de 1945 e
notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p.
55).
228
algum, quanto mais que a coisa julgada, no plano constitucional, conforme
adiante veremos com maiores detalhes, encontra-se diretamente referida a um
plano estritamente principiológico, na medida em que se vincula ao
princípio/valor da segurança jurídica, plano esse (principiológico) onde os
conflitos não são solvidos segundo um padrão hierárquico mas, sim, de
sopesamento e, portantanto, de coexistência necessária
653
.
2.2.5.2.1.2.3 Os limites subjetivos da coisa julgada na ação popular
Do que se infere do artigo 18 da Lei nº 4.717/1965 (Lei de Ação
Popular), os limites subjetivos da coisa julgada no âmbito da ação popular é
praticamente idêntico ao das ações coletivas voltadas à tutela dos interesses
difusos e coletivos (em sentido amplo)
654
.
No caso de improcedência da demanda assentada na declaração
da licitude do ato impugnado, a sentença não só produz coisa julgada, como que
a produz com eficácia erga omnes, impedindo, inclusive, que populares outros
que não figuraram na demanda a repitam, respeitados, é claro, os limites da
causa de pedir e do pedido
655
.
De resto, assim como nas ações coletivas em geral, voltadas para
a tutela de direitos difusos ou coletivos (em sentido amplo), na ação popular, a
sentença de improcedência fundada na falta de provas, não faz coisa julgada (a
lei, portanto, adotou, conforme observa Gregório Assagra de Almeida, “[...] o
sistema da coisa julgada secundum eventum litis [...]”, agasalhado,
posteriormente, tanto pela Lei de Ação Civil Pública, (artigo 16), quanto pelo
653
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 50-67.
654
Ibid., p. 129.
655
Id., loc. cit.
229
Código de Defesa do Consumidor (artigo 103)
656
); ao passo que a de
procedência faz coisa julgada oponível erga omnes
657
.
2.2.5.2.1.2.4 Os limites subjetivos da coisa julgada nos processos de índole
coletiva comum e a questão territorial
Como aponta José Rogério Cruz e Tucci, a contar de 1997, com a
Edição da Medida Provisória nº 1.570-4, de 22 de julho de 1997, o Poder
Executivo Federal passou a empreender uma verdadeira cruzada com o objetivo
de restringir a eficácia erga omnes regulada pelo artigo 16 da Lei nº 7.347/1985
(Lei de Ação Civil Pública)
658
.
Tratou-se (e trata-se) de uma “[...] opção de cunho
eminentemente político [pelo qual se] procurou conter a ameaça que a tutela
coletiva representa ao Estado [...]”
659
, segundo, é claro, a opinião dos agentes
políticos então (e os que ainda estão) de plantão.
Em suma, desencadeada que foi essa ação restritiva pela referida
Medida Provisória, o Executivo Federal nela perseverou, consagrando a norma
inicial na Lei nº 9.494/97, a partir da qual se deu nova redação ao mencionado
artigo 16 da Lei de Ação Civil Pública, restringindo-se a eficácia erga omnes da
sentença aos “[...] limites da competência territorial do órgão prolator [...]”
660
.
Aprofundando a restrição, editou-se, na seqüência, a Medida
Provisória 1798-1, de 11 de fevereiro de 1999, a qual, após sucessivas reedições,
acabou sendo perenizada pela Emenda Constitucional nº 32, de 11 de novembro
656
ALMEIDA, Gregório Assagra. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual
(princípios, regras interpretativas e a problemática da sua interpretação e aplicação). São Paulo: Saraiva, 2003, p.
414, grifo do autor.
657
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 129.
658
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Limites subjetivos da eficácia da sentença e da coisa julgada civil. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 323-4.
659
Id., loc.cit., grifo do autor.
660
BRASIL. Lei nº 9.494, de 10 de setembro de 1997. Disciplina a aplicação da tutela antecipada contra a
Fazenda Pública, altera a Lei nº 7347, de 24 de julho de 1985 e dá outras providências. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 10 set. 1997. Seção 1, p. 20.159. Disponível
em: <http://www6.senado.gov.br/sicon/ListaReferências.action?codigoBase=2&codigoDocumento=146891
>.
Acesso em: 20 mai. 2008.
230
de 2001
661
. Com a edição dessa Medida Provisória, a Lei nº 9.494/97 passou a
contar com um novo artigo, o 2º-A, com o qual a eficácia das sentenças de
procedência proferidas em sede de ação promovida por entidade associativa
objetivando a tutela de direitos coletivos em sentido estrito e individuais
homogêneos, passou a estar adstrita aos substituídos que, na data da propositura
da ação, estivessem domiciliados no âmbito da competência territorial do órgão
prolator da decisão
662
.
Em tese, outrossim, o âmbito de competência territorial do órgão
prolator, para fins de tutela coletiva, seria o definido no artigo 93, inciso II, do
Código de Defesa do Consumidor, tendo competência estadual ou nacional nos
termos ali ditados e, não, propriamente, segundo a competência territorial
atribuída para fins de organização judiciária
663
.
As restrições criadas seguem sofrendo severas críticas, seja de
ordem técnica, seja pelo vício da inconstitucionalidade
664
, sem que, contudo, o
Poder Judiciário tenha deixado de as aplicar
665
, em uma interpretação
verdadeiramente cortesã e salvacionista dos interesses estritos do Estado,
prestigiando uma regra que, em última instância, estabelece
[...] confusão entre a amplitude da demanda, conforme a causa de
pedir e o pedido deduzido em juízo (objeto litigioso do processo) e
competência territorial, simples critério adotado pelo legislador para a
661
BRASIL. Medida Provisória nº 1.798-1, de 11 de feveriero de 1999. Acresce e altrera dispositivos das Leis
s
5.869, de 11 de janeiuro de 1973. 8.437, de 30 de junho de 1992, 9.028, de 12 de abril de 1995, 9.494, de 10
de setembro de 1997 e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder
Executivo, Brasília, DF, 12 fev. 1999. Seção 1, p. 45. Disponível em:
<http://www2.camara.gov.br/internet/legislacao/legin.html/visualizarNorma.html?ideNorma=369445
>. Acesso
em: 20 mai. 2008.
662
CRUZ E TUCCI, José Rogério. Limites subjetivos da eficácia da sentença e da coisa julgada civil. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 324-5.
663
Ibid., 2006, p. 326.
664
Ver, nesse sentido, as considerações críticas de LEONEL, Ricardo de Barros Leonel. Manual do processo
coletivo: de acordo com a Lei 10.444/02. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 174-180.
665
Cf.: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Declaraão no Recurso Especial nº 640.695, da 1ª
Turma, Brasília, DF, 28 de junho de 2005. Disponível em:
<http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=resp+640695&&b=ACOR&p=true&t=&I=10&i=15
88202&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=1>. Acesso em: 20 mai. 2008. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.
Recurso Especial nº 586991, da 1ª Turma, Brasília, DF, 03 de fevereiro de 2004. Disponível em:
<http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=((‘RESP’.clap.+ou+’RESP’.clas.)+e+@num=’58699
1’)+ou+(‘RESP’+adj+’586991’.suce.)>. Acesso em: 20 mai. 2008.
231
repartição da jurisdição, com fixação dos seus limites com relação a
cada órgão judicial
666
.
2.2.5.2.1.3 Os limites subjetivos da coisa julgada no processo coletivo
especial
Na lição de Luís Roberto Barroso, “Os limites subjetivos da coisa
julgada na declaração de inconstitucionalidade não são controvertidos: sua
eficácia é para todos.”
667
É o que, ademais, se extrai dos expressos termos do artigo 28 da
Lei nº 9.868/99, valendo, a regra, para qualquer uma das técnicas conhecidas de
controle concentrado de constitucionalidade, quais sejam: a declaração de
inconstitucionalidade ou constitucionalidade, ainda que através da interpretação
conforme a Constituição ou da declaração parcial de inconstitucionalidade sem
redução de texto
668
.
Doutrinariamente, a solução legislativa pela
[...] extensão erga omnes da autoridade da coisa julgada explica-se
[...] por força do fenômeno da substituição processual [...]. As
pessoas e órgão constantes do art. 103 da Constituição atuam com
legitimação extraordinária, agindo em nome próprio, mas na defesa do
interesse da coletividade. Por essa razão é que os efeitos da decisão
têm caráter geral, e não apenas entre as partes do processo, como é a
regra
669
.
O mesmo artigo 28 da Lei nº 9.868/99, a par de ditar que a
decisão, em casos tais, tem eficácia contra todos (e, ao assim fazer, consagrar a
eficácia erga omnes), diz que ela (a decisão) terá efeito vinculante. Malgrado
um primeiro ataque à matéria nos induzir a incluir esse efeito no âmbito dos
666
LEONEL, Ricardo de Barros Leonel. Manual do processo coletivo: de acordo com a Lei 10.444/02. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 177.
667
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática
da doutrina e análise crítica da jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 155. Também: MENDES, Gilmar
Ferreira. Argüição de descumprimento de preceito fundamental: comentários à Lei nº 9.882, de 3-12-1999.
São Paulo: Saraiva, 2007, p. 183.
668
MENDES, op. Cit., p. 183-4.
669
BARROSO, op. cit. p. 155, grifo do autor.
232
limites subjetivos da coisa julgada, o fato é que se tratam de manifestações
completamente distintas. Como diz Luís Roberto Barroso, “[...] a coisa julgada
[...] impede novo pronunciamento judicial sobre a mesma matéria; já o efeito
vinculante obriga à adoção da tese jurídica sobre a mesma matéria firmada [...]”,
de modo que “[...] a coisa julgada preclui a possibilidade de o próprio órgão
julgador rever a matéria; o efeito vinculante não impede que o órgão prolator
possa reapreciar a matéria”
670
.
O estudo do efeito vinculante, portanto, se insere dentro do
contexto da eficácia ou dos efeitos da sentença e não, propriamente, no âmbito
da coisa julgada
671
, o mesmo se podendo afirmar quanto à repercussão do
julgado no plano concreto (ou seja, sobre situações já constituídas)
672
, assim
como quanto aos efeitos ou limites temporais da decisão
673
, razão porque
deixamos de tecer maiores considerações sobre tais questões, que extrapolam os
limites da análise do trabalho que desenvolvemos.
2.3 Finalidade, fundamento e natureza jurídica da coisa julgada
2.3.1 A segurança jurídica como fim último da coisa julgada
Escrevendo em 1942, Eduardo J. Couture, observava que:
Os atos jurídicos, em geral, são suscetíveis de revogação ou de
modificação quando se verifica que não correspondem às exigências
econômicas ou sociais do tempo e do lugar. Um contrato que não
funciona bem rescinde-se e substitui-se por outro; um regulamento
que não satisfaz derroga-se e faz-se outro melhor; uma lei inadaptada
às necessidades atuais revoga-se e sanciona-se outra em seu lugar. Na
mesma ordem de idéias, uma sentença que não satisfaça a
670
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática
da doutrina e análise crítica da jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 157.
671
Para maiores detalhes acerca do conceito de efeito vinculante e dos seus limites objetivos e subjetivos,
inclusive no âmbito cautelar, consulte-se: MENDES, Gilmar Ferreira. Argüição de descumprimento de
preceito fundamental: comentários à Lei nº 9.882, de 3-12-1999. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 186-209.
672
BARROSO, op. cit., p. 165-6. MENDES, op. cit., p. 184-5.
673
Ibid., p. 160-5. MENDES, op. cit., p. 212-86.
233
necessidade de justiça deve substituir-se por outra que tenha
aquela qualidade
674
.
Porém, como pondera o mesmo autor, “[...] a natureza especial
da sentença reclama um elemento que não se pode exigir nem da lei nem do
contrato: a necessidade de certeza
675
.
Prosseguindo, diz o autor que:
Evidentemente, convém que as sentenças sejam rigorosamente justas:
somente assim a atividade jurisdicional não será uma fórmula sem
sentido. Por uma questão de justiça, seria mister deixar sempre aberta
no processo uma possibilidade de reiteração e outorgar uma série
ilimitada (quanto à forma e ao tempo de interposição) de recursos,
com o objetivo de reparar os vícios que com o andar do tempo se
viessem encontrando na sentença.
Mas, ao lado da necessidade de justiça surge a necessidade de
certeza. Esta exige que se declare de uma vez por todas qual é a
justiça, ou seja, qual é o direito que o Estado reconhece.
Toda a matéria dos recursos não é mais que uma luta entre essas duas
exigências. As sentenças devem ser justas, mas obrigar a parte a
gastar a vida inteira até chegar à sentença definitiva seria também
uma forma de injustiça
676
.
A necessidade dessa certeza jurídica, como observa o mestre
uruguaio, nos conduziria a crer na “[...] necessidade histórica ou jurídica da
coisa julgada [...]”
677
, no sentido de não se conceber a jurisdição sem a coisa
julgada, ou seja,
[...] que a coisa julgada é um instituto de razão natural ou de direito
natural, imposto pela essência mesma do direito e sem o qual este
seria ilusório; que sem ele, a incerteza reinaria nas relações sociais e o
caos e a desordem seriam a regra nos fenômenos jurídicos
678
.
É nessa ordem de idéias que o autor situa, historicamente, por
exemplo, a glosa atribuída à Scassia, consagradora da máxima: “A coisa julgada
674
COUTURE, J. EDUARDO. Fundamentos do direito processual civil. Traduzido por Benedicto Giaccobini
a partir da edição em espanhol de 1942. Campinas: Red Livros, 1999, p. 270, grifo nosso.
675
Id., loc. cit., grifo nosso.
676
Id., loc. cit., grifo nosso.
677
Ibid., p. 329.
678
Id., loc. cit.
234
faz do branco preto; origina e cria as coisas; transforma o quadrado em redondo;
altera os laços do sangue e transforma o falso em verdadeiro”
679
.
Malgrado essa primeira impressão, Eduardo J. Couture trata de
desmistificá-la, afirmando-a relativa, observando que, se é certo “[...] que na
sistemática do direito a necessidade de certeza é imperiosa [...]” e que “[...] toda
a matéria do controle da sentença não é outra coisa [...], senão uma luta entre as
exigências da verdade e as exigências da certeza”, não é menos verdade que
“uma maneira de não existir do direito seria a de não se saber nunca em que
consiste”
680
; o que não impede, outrossim, segundo ele, que a necessidade de
certeza, ceda, “[...] em determinadas condições, ante a necessidade de que
triunfe a verdade”
681
.
Portanto, conclui Eduardo J. Couture,
A coisa julgada não é de razão natural. Antes, a razão natural
pareceria aconselhar o contrário: que o escrúpulo de verdade fosse
mais forte que o escrúpulo de certeza; e que sempre, em face de uma
nova prova, ou de um fato novo fundamental e antes desconhecido, se
pudesse percorrer de novo o caminho já andado, a fim de restabelecer
o império da justiça
682
.
Demonstrando essa não naturalidade da coisa julgada, assim
como a diversidade da concepção/conceito de coisa julgada seja historicamente,
seja no presente (em 1942, quando ele escrevia, é claro), o autor, em breve
síntese do instituto, lembra que:
[...] o direito romano teve da coisa julgada uma noção completamente
diversa da atual, dado o caráter rigorosamente privado do processo;
mais que a conclusão do feito pela coisa julgada, interessava ao direito
processual romano o início do mesmo pela litiscontestatio; certos
estudos feitos sobre o direito processual norueguês primitivo
demonstram que o instituto da coisa julgada lhe era desconhecido, e
que em face de um novo elemento de convicção era sempre possível
rever o caso já decidido; o direito espanhol e o direito colonial
americano não tinham da coisa julgada uma noção tão rigorosa como
679
COUTURE, J. EDUARDO. Fundamentos do direito processual civil. Traduzido por Benedicto Giaccobini
a partir da edição em espanhol de 1942. Campinas: Red Livros, 1999, p. 329.
680
Id., loc. cit.
681
Ibid., p. 330.
682
Id., loc. cit.
235
a atual: as Partidas admitiam a revogação, a todo tempo, da sentença
proferida contra o patrimônio do Rei, e no Espelho a coisa julgada tem
um caráter tão frágil, que o feito pode ser renovado dentro de um
prazo de 20 anos, se foi decidido com base em falso testemunho ou
em falsos documentos; os prazos de executoriedade das Leis das
Índias contavam-se por meses e anos, e não por dias; o direito anglo-
americano tem desta matéria uma noção inteiramente diversa da do
direito continental europeu, de vez que naquele a sentença faz coisa
julgada imediatamente depois de proferida, sem prejuízo da sua
revisão posterior; no direito penal a coisa julgada não existe no
sentido de imutabilidade, ou seja como impedimento a que seja revisto
um processo findo em face de um novo elemento fundamental de
convicção; no contencioso administrativo o exercício normal dos
recursos hierárquicos não obsta à revisão ordinária das decisões finais
da Administração; tampouco existe coisa julgada na jurisdição
voluntária; etc
683
.
Desse modo, o que se conclui, segundo Eduardo J. Couture, é
que “a coisa julgada é, em resumo, uma exigência política e não propriamente
jurídica; não é de razão natural, mas sim de exigência prática
684
.
É sufragando essa mesma linha de idéias que Enrico Tullio
Liebman, reiteradamente, insistia que:
Deve-se reconhecer logicamente que o efeito declaratório ou
constitutivo que uma sentença pode produzir é coisa bem diversa da
maior ou menor possibilidade de que ele, uma vez produzido, possa
ser contestado, infirmado ou revogado. A incontestabilidade é um
caráter logicamente não necessário, que pode conferir-se ao próprio
efeito sem lhe modificar a sua própria natureza íntima.
[...]
Para pensar diversamente, dever-se-ia sustentar que a coisa julgada
fosse caráter essencial e necessário da atividade jurisdicional e,
portanto, impossível imaginar o efeito da sentença independentemente
da coisa julgada. Mas a opinião dominante é concorde em justificar o
instituto por meio de considerações práticas e de utilidade
social
685
.
683
COUTURE, J. EDUARDO. Fundamentos do direito processual civil. Traduzido por Benedicto Giaccobini
a partir da edição em espanhol de 1942. Campinas: Red Livros, 1999, p. 330-1, grifo nosso.
684
Ibid., p. 331, grifo nosso.
685
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com
aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos
posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1981, p. 38-9, grifo nosso.
236
Criticando diretamente a Arturo Rocco, para quem, muito
diversamente, “[...] o juiz já não seria juiz e a sua função não judicante mas
consultiva, se não fosse a sua decisão obrigatória e irretratável [...]”
686
, Enrico
Tullio Liebman reforça a linha de seu entendimento ao aduzir que
[...] pode a sentença ser obrigatória ainda sem ser irretratável, e valer,
enquanto não for modificada. Nem “das normas fixas e imutáveis da
lógica judiciária” pode deduzir-se que as decisões devam permanecer
“firmes, imutáveis e invioláveis como a própria verdade, a própria
razão, a própria justiça”, visto que, sem dúvida, mutável é o
conhecimento e a formulação da verdade e da justiça, tanto que se
considera a coisa julgada, pelo contrário, como um limite imposto por
exigências da vida à indefinida procura da verdade e da justiça. Não
mais concludente é, por fim, considerar a sentença como “palavra da
lei”, porquanto pode ser precisamente a lei em todo o tempo ab-rogada
por uma lei posterior
687
.
Na atualidade, Eduardo Talamini, repercutindo a atualidade dessa
concepção, diz, exatamente, que:
Apenas se revestem da coisa julgada material os atos em relação aos
quais a lei expressamente atribui essa autoridade. Não se trata de
qualidade inerente a todo ato jurisdicional; nem de escopo essencial
do processo. São perfeitamente concebíveis manifestações da função
jurisdicional que não se tornem imutáveis. Mais ainda, é em tese
imaginável sistema processual cujos pronunciamentos sejam sempre
passíveis de revisão – sem que por isso se afaste sua natureza
jurisdicional. A atribuição da autoridade da coisa julgada decorre de
opção política entre dois valores: a segurança, representada pela
imutabilidade do pronunciamento, e o ideal de justiça, sempre passível
de ser buscado enquanto se permita o reexame do ato. E é unicamente
nos limites dessa escolha operada pelo legislador que haverá coisa
julgada. Daí a idéia da coisa julgada como um dado político
688
.
Concluindo-se, pode-se afirmar que o fim último da coisa julgada
é a segurança jurídica e, por isso mesmo, tem por fundamento sociológico uma
razão prática, pragmática.
686
ROCCO, Arturo. Tratado della cosa giudicata. In: Opere Giuridiche. ______. v. II. Roma: [s.n.], 1932, p.
205 et seq. apud LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa
julgada: com aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires.
Tradução dos textos posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini
Grinover. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 39, grifo do autor.
687
LIEBMAN, op.cit., p. 39, grifo do autor.
688
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 46-7.
237
2.3.2 A lei como fundamento jurídico último da coisa julgada
Assentada essa concepção eminentemente prática da coisa
julgada, longe vai, outrossim, o tempo em que se buscava justificar/fundamentar
a coisa julgada a partir de abstratos esquemas teóricos assentados numa
hipotética ficção de verdade, como propugnava Friederich Karl von Savigny
689
,
ou de presunção da verdade, como defendido por Robert Joseph Pothier
690
, entre
outras teorias de menor envergadura
691
.
Muito ao contrário disso, já Eduardo J. Couture concluía que
“não sendo a coisa julgada [...] de razão natural, é a lei que lhe confere
existência e lhe fixa a eficácia” e, sendo assim, “[...] a própria lei poderia privá-
la de sua força, como de fato acontece em matéria penal”
692
.
Ou, como diz Eduardo Talamini, na medida em que a coisa
julgada é tida como um dado político, “cabe à lei disciplinar o campo de
incidência, as condições de formação, os limites objetivos e subjetivos, os meios
de revisão e todos os demais aspectos do instituto [...]”, sendo, portanto, “[...]
sempre possível a sua (re)modelação infra-constitucional”
693
.
Mostra-se, em suma, pertinente, nessa ordem de idéias, a
assertiva de Celso Neves, no sentido de que, sendo o fundamento da coisa
julgada eminentemente prático, é nesse mesmo plano que “[...] devem ser
consideradas as construções doutrinárias com que se tem intentado justificar –
ou, pelo menos explicar – a sua adoção, neste ou naquele sistema jurídico”
694
.
689
SAVIGNY, Friederich Karl von. Sistema del Diritto Romano Attuale. v. VI. Tradução de Scialoja. Turim:
[s.n.], [1886 ou 1889], § 280 apud NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971,
p. 107-9.
690
POTHIER, Robert Joseph. Oeuvres. t. II. 2ª ed. Paris: [s.n.], 1861, p. 469 apud NEVES, op. cit., p. 131.
691
Para um breve apanhado de algumas dessas outras teorias, consulte-se: NEVES, Celso. Coisa julgada civil.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 331-44.
692
COUTURE, J. EDUARDO. Fundamentos do direito processual civil. Traduzido por Benedicto Giaccobini
a partir da edição em espanhol de 1942. Campinas: Red Livros, 1999, p. 340.
693
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 52.
694
NEVES, op. cit., p. 431.
238
Não é por outra razão, outrossim, que Eliezer Rosa, com muita
acuidade, disse que o “[...] fundamento político social da coisa julgada pode ser
qualquer pensamento dominante na época”
695
, sendo certo, portanto, que:
Cada sistema jurídico diz [...] se nele deve operar, ou não, a coisa
julgada, na dupla função que a doutrina atribui a essa figura jurídica.
As próprias razões que elevam o Estado “A”, ou o Estado “B”, a
adotá-la, podem variar, porque concernentes a variáveis concepções
sócio-políticas. A preocupação do acerto, o fetichismo pela sentença
sempre justa, assim como pode levar à multiplicação das vias de
recurso, pode conduzir, também, à postergação da coisa julgada, pelo
temor de revestir a sentença injusta com o manto da autoridade do
Estado.
Resultando a coisa julgada de uma atitude do legislador que optou
pela ponta que lhe pareceu menos aguda do dilema – ou sentença
injusta ou insegurança extrínseca das relações jurídicas – tem ela, a
par de uma explicação política, pressuposto jurídico
696
.
E esse pressuposto jurídico, como já o dissemos, não é outro
que não a lei. Ou, nas palavras de Eliezer Rosa: “[o] fundamento jurídico da
coisa julgada há de ser um fundamento legal. Se não estiver na lei, não está
neste mundo, não há coisa julgada”
697
, “[...] não obstante a sua explicação
doutrinária tenha variado, de autor para autor, de época para época”
698
.
Não é de se estranhar, portanto, que, no plano sociológico, a
coisa julgada tenha sido fundamentada, outrora, como expressão da verdade
(ainda que formal, para alguns), justamente quando ebuliam os sistemas
científicos, em meio do que, também o direito, assim como outras manifestações
do conhecimento humano não identificadas com as ciências naturais e o método
científico a elas inerentes, buscavam adquirir o seu status científico
699
.
695
ROSA, Eliezer. Pequenos apontamentos de processo civil. Revista de Direito Processual Civil, [s. L.], nº 1,
p. 62, [196-?] apud NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 431.
696
NEVES, op. cit., p. 431, grifo nosso.
697
ROSA, op.cit., p. 62 apud NEVES, op. cit., p. 432.
698
NEVES, op. cit., p. 432.
699
Acerca da metódica científica da modernidade e a sua inflexão sobre os estudos da humanística (ciências
humanas em geral), veja-se: SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 2ª ed. São Paulo:
Cortez, 2004, passim. Para uma visão crítica do reflexo dessa metódica (da ciência moderna) no direito (onde
repercute como metódica positivista), veja-se: MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à
teoria e metódica estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 09-142. MICHELON
JÚNIOR, Cláudio Fortunato. Aceitação e objetividade: uma comparação entre as teses de Hart e do positivismo
precedente sobre a linguagem e o conhecimento do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, passim.
239
Do mesmo modo, não é de se estranhar que hoje, tendo o campo
do direito se identificado, cientificamente, com os sistemas
tópico/argumentativos
700
, combinados ou não com uma metódica
701
, se assente,
sem mais, a coisa julgada, num plano meramente prático (sociologicamente
falando) e legal (juridicamente falando).
Mais ainda: sob a inflexão da noção de Estado Democrático de
Direito, assente num modelo legal proeminentemente constitucionalizado
702
, não
é de se estranhar que, como adiante veremos, hoje, se construa uma
fundamentação jurídica para a coisa julgada que não é meramente legal, e, sim,
constitucional.
700
Para uma panorâmica sobre o conhecimento tópico no direito, veja-se: ROESLER, Cláudia Rosane. Theodor
Viehweg e a ciência do direito: tópica, discurso, racionalidade. Prefaciado por Tércio Sampaio Ferraz Júnior.
Florianópolis: Momento Atual, 2004, passim. Sustentando, inclusive, a prudência como nota característica do
saber em geral (inclusive o jurídico), veja-se: SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências.
2ª ed. São Paulo: Cortez, 2004, p. 59-92.
701
A referência, aqui, à metódica se dá em especial à Friedgrich Müller, que sustenta um especial conhecimento
jurídico de natureza tópica/metódica, no caso, denominada estruturante (MÜLLER, Friedrich. O novo
paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007, p. 101-3).
702
Nesse sentido, tratando da manipulação do texto constitucional para a solução do caso concreto, Friedrich
Müller diz que: “Concretizar [a Constituição] não significa aqui, portanto, à maneira do positivismo antigo,
interpretar, aplicar, subsumir silogisticamente e concluir. E também não, como no positivismo sistematizado da
última fase de Kelsen, individualizar uma norma jurídica genérica codificada na direção do caso individual
mais restrito. Pelo contrário, concretizar, significa: produzir diante da provocação pelo caso de conflito social,
que exige uma solução jurídica, a norma defensável para esse caso no quadro de uma democracia e de um Estado
de Direito” (MÜLLER, op. cit., p. 150, grifo do autor). Acerca, especificamente, da centralidade (ou
supremacia)/normatividade/materialidade da Constituição na perspectiva do Estado pós-liberal, Júlio César
Finger, aduz que: “A Constituição, que no paradigma burguês era desinteressada quanto às relações sociais,
passa a preocupar-se com elas, incorporando valores que, ao mesmo tempo, vão sendo expressos no
ordenamento. A Lei fundamental então é que positiva os direitos concernentes à justiça, segurança, liberdade,
igualdade, propriedade, herança etc., que antes estavam no Código Civil. [...] A Constituição, que já era encarada
como lei fundamental, fruto da modernidade política e do racionalismo iluminista, todavia considerada somente
como estatuto da vida política do Estado, passou a expressar essa supremacia também no campo normativo.
Como conseqüência, o centro do ordenamento passou a ser [...] a Constituição. Esta, na qualidade de lex
superior, é que unifica em torno de si todo o complexo de normas que compõe o ordenamento jurídico,
expressando uma ordem material de valores. A condição de norma superior do ordenamento jurídico, ostentada
pela Constituição, é revelada basicamente por duas razões: (i) por se constituir em fonte primária das normas
jurídicas, fonte das fontes; e (ii) por expressar uma intenção fundacional, com pretensão de permanência
(revelada pela “rigidez”). Esta rigidez, a seu turno, vai assegurar uma superlegalidade material. Como
corolário dessa supremacia, entende-se que a Constituição exige que todos os atos praticados sob a sua égide a
ela se conformem, sob pena de inexistência, nulidade, anulabilidade ou ineficácia (princípio da
constitucionalidade). Conseqüentemente, também, à idéia de hierarquia normativa, é a das normas
constitucionais constituírem heterodeterminações negativas (oferecendo limites à legislação infraconstitucional)
e positivas (conformando também o conteúdo material das normas hierarquicamente inferiores). Nesse sentido,
todo o direito infraconstitucional é direito constitucionalizado [...]. Logo, a Constituição é lei fundamental
portadora de valores materiais” (FINGER, Júlio César. Constituição e direito privado: algumas notas sobre a
chamada constitucionalização do direito civil. In:. A Constituição concretizada: construindo pontes com o
240
2.3.3 A natureza jurídica da coisa julgada
Durante muito tempo discutiu-se
[...] se o julgado implica alteração nas relações jurídicas deduzidas no
processo, conferindo-lhes uma feição nova ou, de outra forma, se atém
a uma preceituação de índole exclusivamente processual. Em outros
termos, se a coisa julgada altera, em sua essência mesma, a relação
jurídica decidida, ou limita-se – quanto a essa relação – a uma
qualificação processual, vinculativa para as partes e para os órgãos
jurisdicionais
703
.
A depender da resposta que se dava a questão, a doutrina filiava-
se a duas correntes majoritárias a saber: os substancialistas (ou civilistas),
sustentando que a coisa julgada criaria um novo direito (constituiria o direito) e,
por isso mesmo, o vínculo resultante da coisa julgada seria de natureza material;
e, de outro lado, os publicistas (ou processualistas), sustentando ser ela um
fenômeno exclusivamente de índole processual, cujo fim é a eliminação da
incerteza jurídica que recai sobre um caso concreto
704
.
Quer nos parecer óbvio que a concepção civilista, assentada na
idéia de que a coisa julgada criaria um direito novo (ou, mesmo, como queria a
corrente dualista de direito material: reconheceria (declararia) um direito pré-
existente, no caso da sentença justa; e constituiria um novo direito no caso da
sentença injusta, proferida em desacordo com o real direito pré-existente
705
),
evidentemente, só se coadunaria com uma concepção que visse na coisa julgada
um efeito do julgado e, não, uma qualidade sua.
Não há, de fato, como se chancelar a concepção civilista a partir
público e o privado. SARLET, Ingo Wolfgan (Org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 93-4, grifo
do autor).
703
NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 434.
704
Ibid., p. 433-42. LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a
coisa julgada: com aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires.
Tradução dos textos posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini
Grinover. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 42.
705
NEVES, op. cit., p. 441-2. COUTURE, J. EDUARDO. Fundamentos do direito processual civil.
Traduzido por Benedicto Giaccobini a partir da edição em espanhol de 1942. Campinas: Red Livros, 1999, p.
336-8. LIEBMAN, op.cit., p. 42-3.
241
do momento em que se conceba a coisa julgada como qualidade que se junta à
sentença com o transito em julgado para, tão somente, imunizá-la de futuras
modificações. A coisa julgada, em suma, nem declara, nem constitui nada. Ela
apenas cria uma situação jurídica de imutabilidade.
De uma forma ou de outra, como observa Celso Neves, com o
desenvolvimento, a contar do século XIX, da teoria da autonomia da ação, assim
como do próprio processo, “[...] a partir das modernas teorias de Bülow, Wach,
Degenkolbe Plötz [...]”
706
, firmou-se entendimento pleno no sentido de que a
coisa julgada, assim como a própria sentença, são fenômenos estritamente
processuais e, por conseguinte, de direito público.
Ainda que se mantendo fiel à tese de que a coisa julgada seja
efeito da sentença, como já vimos alhures
707
, isso não impediu, por exemplo,
que Celso Neves, sob o influxo da nova concepção processual, ditasse que:
Figura de direito público, o processo serve, portanto,
instrumentalmente, à realização do direito objetivo e os efeitos que
dele decorrem são, precipuamente, efeitos de direito público
processual que, entretanto, se relacionam à lide e, pois, à relação
jurídica que objetivamente, a integra. A declaração da sentença sobre
a composição da lide realizada pelo direito objetivo, tendo por
pressuposto os fatos que, na medida de sua transposição para o
processo, entram na limitação objetiva do thema decidendum,
constitui juízo sobre a relação controvertida que só processualmente
tem eficácia, mantendo-se, assim, no plano do direito público. Como
tal, sempre no plano do processo em que deixou de existir a
controvérsia, vincula as partes e os órgãos jurisdicionais. Só aí a
certeza produzida pela sentença é essencial, sendo despiciendo, quanto
a ela, o convencimento das partes sobre o acerto ou eventual desacerto
da decisão.
Mesmo quando se entenda que o objeto do processo é, tão-somente, a
realização do direito subjetivo dos litigantes, o juízo continuará sendo
ato estatal, de direito público, sem a finalidade de alterar a relação de
direito privado sobre a qual versa, destinado, apenas, a eliminar a
incerteza estabelecida pela controvérsia, dado este também exterior à
relação jurídica sobre que incide
708
.
Daí, ele concluir que:
706
NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 443.
707
Ver itens 2.1.2.1.2.1.3 e 2.1.2.1.2.2.1, supra.
708
NEVES, op. cit., p. 440-1, grifo do autor.
242
A coisa julgada é, pois, um fenômeno de natureza processual, com
eficácia restrita, portanto, no plano processual, sem elementos de
natureza material na sua configuração, teleologicamente destinada à
eliminação da incerteza subjetiva que a pretensão resistida opera na
relação jurídica sobre que versa o conflito de interesses. Como dado
pré-processual de caráter subjetivo, essa incerteza não afeta a essência
da relação jurídica controvertida, de caráter objetivo. A ela,
simplesmente, se relaciona, porque nela está o objeto do juízo das
partes. Assim também a coisa julgada que apenas se relaciona à res
iudicium deducta por constituir esta o objeto do juízo estatal
709
.
Retomando a discussão em termos atuais, Eduardo Talamini,
chancelando a concepção estritamente processual da coisa julgada, “[...] como
efeito do trânsito em julgado da sentença”
710
que é, sustenta que:
A sentença não constitui o direito do vencedor ao reconhecer que ele
tem razão. Mesma as sentenças com eficácia principal constitutiva
declaram que o vencedor é titular de determinado direito potestativo,
para no momento lógico subseqüente constituir a situação jurídica a
que ele tem (rectius: já tinha) direito. A situação jurídica que se
constitui com o advento da coisa julgada não concerne ao direito
material, mas ao processo. É a proibição de que se emita novo
comando jurisdicional sobre o mesmo objeto processual e, ainda, a
determinação de que se adote o comando anterior como premissa
inafastável nos pronunciamentos jurisdicionais proferidos nos
processos subseqüentes para os quais o objeto do processo anterior
funcione como questão prejudicial. Em ambos os casos, trata-se de
diretrizes cogentes para os órgão da jurisdição e para o exercício
das garantias jurisdicionais. Nesse sentido, a concepção exposta [a
coisa julgada como uma nova situação jurídica engendrada a partir do
trânsito em julgado da sentença] está mais próxima da teoria
processual da coisa julgada
711
.
É de se notar que Edaurdo Talamini afirma, cautelosamente, que
a natureza jurídica da coisa julgada está “[...] mais próxima da teoria
processual”, evitando, com isso a assertiva categórica de que ela é estritamente
processual.
Justificando-se, ele aduz que não haveria como se
[...] ignorar que o instituto situa-se no limite entre o direito material e
o processo, quando incide sobre as sentenças de mérito: perpetua-se
709
NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 442, grifo do autor.
710
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 45.
711
TALAMINI, op. cit., p. 45-6, grifo do autor.
243
um ato de poder jurisdicional que incidiu sobre a esfera jurídico-
material, sobre a vida do jurisdicionado
712
.
Haveria, aí, uma espécie de zona cinzenta, determinada pela “[...]
íntima relação que existe entre direito e processo; entre o processo e a relação
nele deduzida”
713
, situação essa que, como disse Celso Neves, poderia nos
assinalar, “[...] para a coisa julgada, uma posição ambivalente, com
conseqüências diretas, no plano processual, e conseqüências indiretas, no plano
do direito material [...]”
714
.
Como vimos acima, porém, o reconhecimento dessa (aparente)
ambigüidade não impediu que Celso Neves se manifestasse pela natureza
processual da coisa julgada, assim como que Eduardo Talamini, a despeito da
cautela que demonstra nos tempos atuais, chancelasse essa mesma concepção,
explicando que essa proximidade (entre direito material e processo), por si só,
[...] não faz da coisa julgada fenômeno de direito material (caso
contrário, não apenas a coisa julgada, mas a própria sentença de
mérito e o processo como um todo, em sua função nuclear de prestar
tutela jurídica, teriam caráter substancial – com o que estaria abolida a
autonomia do direito processual)
715
.
Eduardo Talamini tem razão, porém, quando encerra a sua
análise sobre a questão dizendo que essa situação fronteiriça da coisa julgada,
“[...] é o que basta para evidenciar o quanto o tema está longe de ser uma
questão técnica interna ao processo”
716
.
Deve-se, nessa senda, lembrar que, se inserindo na polêmica,
Enrico Tullio Liebman chegou mesmo a declarar que a discussão travada nesses
termos estava mal posta e, por isso mesmo, seria infrutífera.
Realmente [dizia ele], o problema de saber se a declaração contida
numa sentença (somente sobre aquela se discute) apresenta eficácia
712
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 46.
713
NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 437.
714
Id., loc. cit.
715
TALAMINI, p. 46.
716
Id., loc. cit.
244
modificativa, e não meramente declarativa das relações jurídicas
substanciais, nada tem que ver, propriamente, com a coisa julgada,
constituindo, pelo contrário, questão muito mais geral: a da posição e
destinação do processo em sua função essencial e constante em face
da lei e no ordenamento jurídico. Com a solução que se der a essa
questão [...] será fácil determinar a natureza dos efeitos da sentença;
sobre estes, depois, quaisquer que sejam, operará a coisa julgada, para
torná-los imutáveis. Mas a coisa julgada, por si só, não é nem
processual nem material
717
.
Na medida, outrossim, que Enrico Tullio Liebman, após fazer
essa curial afirmação, no sentido de que a coisa julgada nem é processual e nem
é material, não esclarece, propriamente, qual seria a sua natureza, seria-mos
inclinados a dizer que ele a lançou, quanto a esse particular, numa espécie de
limbo, contentando-se em afirmar que “[...] o instituto da coisa julgada pertence
ao direito público e mais precisamente ao direito constitucional.”
718
Ada Pellegrini Grinover, porém, após anotar que “no Brasil, a
concepção processual da coisa julgada é nitidamente prevalente, como reflexo
da teoria dualista do ordenamento jurídico, igualmente dominante”
719
, justifica a
concepção do velho mestre na medida em que a denominada função positiva da
coisa julgada, entre nós, não teria sentido de ser, já que no sistema brasileiro, ao
contrário do que ocorria com o sistema italiano, a partir do qual as discussões
em torno da matéria foram erigidas e exportadas, a coisa julgada impede, em
absoluto, um novo pronunciamento do Poder Judiciário sobre a matéria. E tanto
isso é verdade que a segunda sentença, no nosso sitema, sempre será rescindível,
pouco importando se conforme ou não com o anterior julgado, tal qual
preconizado no artigo 485, IV, do vigente Código de Processo Civil Brasileiro.
717
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com
aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos
posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1981, p. 43-4.
718
Ibid., p. 55.
719
GRINOVER, Ada Pellegrini. Notas ao § 3º. In: LIEBMAN, op. cit., p. 65.
245
No sistema italiano, ao contrário, como dito, a segunda sentença só seria
rescindível se desconforme à primeira
720
.
Seria na exata medida, portanto, em que no nosso sistema legal
prevalece a função meramente negativa da coisa julgada, que se perderia o
sentido da controvérsia entre a concepção material ou processual.
Não é o caso, portanto, de se concluir que Enrico Tullio Liebman
lançara ao limbo a natureza jurídica da coisa julgada, mas, simplesmente de se
esclarecer que, na sua concepção, dado o sistema legal brasileiro, essa discussão
não teria qualquer sentido de ser. Como esclarece Ada Pellegrini Grinover, ela
há de ser, inexoravelmente, processual
721
.
Já tivemos alhures, porém, a oportunidade de demonstrarmos o
quanto a tese de Enrico Tullio Liebman, no seu desprezo à utilidade da função
positiva da coisa julgada no sistema processual brasileiro, está longe de poder
ser sufragada sem maiores críticas, sendo, mesmo, equivocada
722
.
Logo, ao contrário do que sustentara Enrico Tullio Liebman, o
nosso sistema legal não prescinde do esclarecimento da exata natureza jurídica
da coisa julgada, se material ou processual, por mais espinhosa que a questão
possa ser, não deixando de ter uma boa dose de sentido, igualmente, a cautela
com que Eduardo Talamini declara ser ela processual.
Para se compreender a cautela de Eduardo Talamini, assim como
o acerto com que ele se manifesta quando diz que a polêmica em torno do
assunto estaria longe de acabar, basta apontar que, escrevendo recentemente,
Cândido Rangel Dinamarco insere o instituto em meio a uma simbiose
720
GRINOVER, Ada Pellegrini. Notas ao § 3º. In: LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da
sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de
Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito
brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 66-7.
721
Ibid., p. 67.
722
Ver as considerações expendidas no item 2.2.4, supra.
246
processual-material, declarnado-a (a coisa julgada material) como de direito
processual material. Nesse particular, diz ele que:
As normas técnicas do processo limitam-se a reger os modos como a
coisa julgada se produz e os instrumentos pelos quais é protegida a
estabilidade dessas relações, mas a função que elas desempenham não
vai além disso: a coisa julgada material, uma vez que diz respeito
muito de perto à efetividade da tutela jurisdicional definitiva e
irrevogável, é um instituto de direito processual material e não
confinado às técnicas estruturais do processo
723
.
Da nossa parte, a despeito das controvérsias que a matéria
continua a suscitar, cremos que a concepção de que a natureza jurídica da coisa
julgada é processual continua sendo a mais acertada, segundo o modelo
brasileiro, concepção essa que, no mais, tem a grande vantagem de evitar
eventuais excessos que se possa extrair da concepção materialística, como
aquela, por exemplo, de tornar indisponível às partes o direito declarado, mesmo
em se tratando de direitos disponíveis, como querem alguns daqueles que
limitam a autoridade da coisa julgada à declaração contida na sentença
724
.
2.4 A coisa julgada material na ordem constitucional brasileira
Ao apontarmos, acima, a lei como fundamento jurídico último da
coisa julgada material
725
, com Eduardo J. Couture, afirmamos que “não sendo a
coisa julgada [...] de razão natural, é a lei que lhe confere existência e lhe fixa a
eficácia” e, sendo assim, “[...] a própria lei poderia privá-la de sua força, como
de fato acontece em matéria penal”
726
.
Reforçando a assertiva, aditamos, ainda, com Eduardo Talamini,
que, na medida em que a coisa julgada é tida um dado político, “cabe à lei
723
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. v. III. São Paulo: Malheiros, 2001,
p. 303.
724
A respeito do objeto da imutabilidade inerente à coisa julgada material, veja-se o item 2.1.2.1.2.2.1, supra.
725
Conforme item 2.3.2, supra.
726
COUTURE, J. EDUARDO. Fundamentos do direito processual civil. Traduzido por Benedicto Giaccobini
a partir da edição em espanhol de 1942. Campinas: Red Livros, 1999, p. 340.
247
disciplinar o campo de incidência, as condições de formação, os limites
objetivos e subjetivos, os meios de revisão e todos os demais aspectos do
instituto [...]”, sendo, portanto, “[...] sempre possível a sua (re)modelação infra-
constitucional”
727
.
Nessa mesma linha de idéia, podemos ajuntar Enrico Túlio
Liebman, quando ele diz que a assertiva de que sequer o Estado, através do seu
legislador, está imune à normação concreta estabelecida pela coisa julgada
728
,
para logo em seguida ponderar que:
Não se quer dizer com isso, naturalmente, que a lei não possa de modo
expresso modificar o direito também para as relações já decididas com
sentença passada em julgado; pode a lei certamente fazer também isso,
mas uma disposição sua em tal sentido teria a significação de uma ab-
rogação implícita – na medida correspondente – da norma que
sancionou o princípio da autoridade da coisa julgada. Isto é, uma lei
nova pode excepcionalmente e com norma expressa ter, não só
eficácia retroativa, mas também aplicação às relações já decididas
com sentenças passadas em julgado; isso porém, não significaria um
grau maior de retroatividade, e, sim, antes, uma abolição parcial da
autoridade da coisa julgada acerca das mesmas sentenças, cujo
comando, perdendo o atributo da imutabilidade, cairia em face das
novas regras dispostas pela lei para as relações já decididas
729
.
Lembremos, outrossim, que ao abordarmos o fundamento
sociológico da coisa julgada, afirmamos que, em termos estritamente teóricos, é
perfeitamente possível conceber-se um sistema jurídico que, até mesmo, pudesse
prescindir da coisa julgada, como, de fato, historicamente falando, o direito dela
já prescindiu outrora
730
.
Diante de tais considerações, mostra-se de grande pertinência a
seguinte indagação: segundo o nosso sistema jurídico, é dado, ao legislador,
727
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 52.
728
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos sobre a coisa julgada: com
aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos
posteriores à edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini Grinover. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1981, p. 54.
729
Ibid., p. 54-5, grifo do autor.
730
Conforme item 2.3.1, supra.
248
particularmente o infraconstitucional (mas não só), simplesmente abolir a coisa
julgada, retirando dela a nota característica da imutabilidade?
Goza, em suma, o legislador, de irrestrita liberdade nessa sua
escolha política, ou não, como indaga Eduardo Talamini
731
?
Na medida em se afirma que a coisa julgada material nada tem de
natural, tratando-se, simplesmente, de uma opção de cunho político do
legislador
732
, é obvio que a possibilidade dessa supressão seria perfeitamente
admissível em um sistema que tivesse como fundamento legal do instituto o
plano infraconstitucional.
Por isso mesmo, se mostra de grande pertinência indagarmos do
fundamento constitucional da coisa julgada no Brasil de hoje, já que, a depender
da resposta que dermos a essa questão estaremos, como corolário lógico,
fixando o seu próprio grau de pertinência ao sistema.
Assim posta a questão, é de se dizer, de plano, que a coisa
julgada, hoje, encontra expressa referência na Carta Constitucional brasileira
vigente, na cláusula do seu artigo 5º, XXXVI, que diz: “a lei não prejudicará o
direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
A partir da dicção desse dispositivo constitucional, não pode
restar qualquer dúvida, entre nós, que a coisa julgada conta com assento
constitucional e assim deve ser tratada.
A questão, aparentemente pacífica, adquire, porém, contornos
ácidos quando se indaga se a Constituição Brasileira, a partir desse dispositivo,
teria consagrado o princípio da intangibilidade da coisa julgada ou não.
É que há quem sustente que a Constituição Federal brasileira, a
partir da dicção do seu artigo 5º, XXXVI, institui simples regra de direito
intertemporal, voltada a tutelar a coisa julgada material “[...] contra atuação
731
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 53.
249
direta do legislador, contra ataque direto da lei”, de tal modo que “a lei não pode
desfazer (rescindir ou anular ou tornar ineficaz) a coisa julgada”
733
.
Desse modo, segundo essa concepção, a proteção constitucional,
nos limites do referido dispositivo legal, “[...] não impede [...] que a lei
preordene regras para a sua rescisão mediante atividade jurisdicional”
734
.
Os que assim pensam, no Brasil, têm como matriz comum o
precursor trabalho de Paulo Roberto de Oliveira Lima, cujos argumentos são os
seguintes:
A inserção da regra, dentro do art. 5º da Constituição, atinente aos
direitos e garantias individuais, de certa forma explica a desmedida
extensão que alguns refletida ou irrefletidamente teimam em
emprestar ao instituto.
Consoante se observa da leitura do dispositivo, a regra nele insculpida
se dirige ao legislador ordinário. Trata-se, pois, de sobre-direito, na
medida em que disciplina a própria edição de outras regras jurídicas
pelo legislador ou seja, ao legislar é interdito ao Poder legiferante
“prejudicar” a coisa julgada. É esta a única regra sobre “coisa julga”
que adquiriu foro constitucional. Tudo o mais no instituto é matéria
objeto de legislação ordinária.
A interpretação do dispositivo constitucional não oferece dificuldades.
Em princípio, utilizando-se do método gramatical de hermenêutica,
poder-se-ia chegar a duas conclusões interpretativas absolutamente
diferentes. A utilização dos demais métodos de hermenêutica, porém,
deixa evidenciada a certeza do entendimento correto do dispositivo.
Realmente, apenas pela leitura apressada dos termos do anunciado
inciso XXXVI, se poderia chegar a duas interpretações, quais sejam:
a) “A lei não pode prejudicar a coisa julgada”, ou seja, a lei não pode
atribuir ao instituto da coisa julgada estrutura e limites que lhe
emprestem menor amplitude. O instituto da coisa julgada, valioso aos
olhos da Constituição, mereceria do legislador infraconstitucional toda
732
Conforme item 2.3.1, supra.
733
CARRIDE, Norberto de Almeida. Lei de introdução ao Código Civil anotada: referências à Constituição
Federal, ao Código Civil, ao Código de Processo Civil e a outros atos normativos. São Paulo: Editora Juarez de
Oliveira, 2004, p. 244. Na mesma linha de pensamento militam: VALDER DO NASCIMENTO, Carlos. Coisa
julgada inconstitucional. In:. Coisa julgada inconstitucional. ______ (Coord.). 5ª ed. rev. e ampl. Rio de
Janeiro: América Jurídica, 2005, p. 7-8. DELGADO, José Augusto. Efeitos da coisa julgada e os princípios
constitucionais. In: Coisa julgada inconstitucional. VALDER DO NASCIMENTO, Carlos (Coord.). 5ª ed. rev.
e ampl. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2005, p. 36-40. THEODORO JÚNIOR, Humberto; CORDEIRO DE
FARIA, Juliana. A coisa julgada inconstitucional e os instrumentos processuais para seu controle. In:. Coisa
julgada inconstitucional. VALDER DO NASCIMENTO, Carlos (Coord.). 5ª ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro:
América Jurídica, 2005, p. 88-9. BERALDO, Leonardo de Faria. A flexibilização da coisa julgada que viola a
constituição. In:. Coisa julgada inconstitucional. VALDER DO NASCIMENTO, Carlos (Coord.). 5ª ed. rev. e
ampl. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2005, p. 175-7.
734
Ibid., p. 244. Também: VALDER DO NASCIMENTO, op. cit., p. 7-8. DELGADO, op. cit., p. 36-40.
THEODORO JÚNIOR, op. cit., p. 88-9. BERALDO, op.cit., p. 175-7.
250
a atenção, de modo a preservar-lhe a extensão. Assim, seria
inconstitucional toda disposição infraconstitucional que de qualquer
forma diminuísse a importância do instituto, reduzisse sua incidência
ou dificultasse a sua formação. Por muito maior razão seria
inconstitucional o dispositivo que permitisse o ataque à coisa julgada,
criando remédio jurídico-processual hábil a desconstituí-la. Enfim, por
esta interpretação, a Constituição protegeria o instituto da coisa
julgada.
b) “A lei não pode prejudicar a coisa julgada”, ou seja, a lei não pode
alterar o conteúdo do julgado, após a formação da coisa julgada.
Editada a sentença sobre determinado caso concreto, é irrelevante que
a lei disciplinadora do tema seja alterada, dado que a solução prescrita
pela sentença, ainda que tenha de produzir seus efeitos no futuro, é
intocável, não se lhe podendo opor comando diferente, ainda que
editado por lei. O bem jurídico da “quietude”, da “segurança” e da
“paz” foi valorizado de tal forma pelo legislador constituinte, que este
interditou ao legislador ordinário editar normas agressoras a casos já
decididos pelo Judiciário. Nova disciplina jurídica do fato somente
incidirá para os casos não julgados. Assim, por esta interpretação, a
Constituição protegeria o teor do julgado.
Das duas interpretações literais (gramaticais) possíveis, a segunda é
aquela que efetivamente corresponde a mensagem legal. Observe-se,
por primeiro, que o referenciado inciso XXXVI não proíbe a lei de
prejudicar o “instituto da coisa julgada”, mas, sim, de malferir a “coisa
julgada”. Assim, mesmo a interpretação gramatical tende a prestigiar
o segundo entendimento. A Constituição interditou o ataque ao
comando da sentença, protegendo a imutabilidade do julgado,
tornando-o imune a alterações legislativas subseqüentes.
A igual solução chega-se através da interpretação sistemática. É que a
proteção da coisa julgada foi estabelecida na Carta Política, em
dispositivo único que trata cumulativamente da coisa julgada, do ato
jurídico perfeito e do direito adquirido, prescrevendo-lhes idêntico
regime jurídico. E é fora de questão que a Constituição não visou
defender o “instituto” do direito adquirido, nem o do ato jurídico
perfeito. Em qualquer dos casos, o desejo do constituinte foi o de
impedir que lei nova tivesse o condão de alterar direito já adquirido ou
ato jurídico já celebrado. Trata-se, aqui, do princípio da não-surpresa e
da irretroatividade da lei. A lei, sabe-se, somente incide sobre fatos
ocorridos após sua vigência, daí porque as relações jurídicas formadas
sob o império da lei anterior devem ser resolvidas segundo os seus
comandos. Aliás, a própria fenomenologia do surgimento dos direitos
assegura essa irretroatividade que é decorrência lógica inarredável da
essência do sistema. É que a existência de direitos subjetivos
pressupõe a do fato jurídico (lato sensu), e a deste, a da regra jurídica.
Sem a regra jurídica previamente vigente, para incidir quando da
ocorrência da concreção do suporte fático hipotético, não há
incidência, nem fato jurídico, nem relação jurídica. E nem dever, nem
pretensão, nem obrigação, nem ação, nem exceção.
Também assegura a correção da segunda tese a observação dos
institutos processuais que sempre conviveram com a regra
251
constitucional em comento. Prevalecesse a primeira tese (proteção
constitucional da amplitute do instituto da coisa julgada) e a ação
rescisória seria inconstitucional, dado que se trata de remédio jurídico
que tem como único objetivo destruir a coisa julgada. Da mesma
forma seria inconstitucional o instituto da revisão criminal, dado que a
revisão pode ser requerida a qualquer época, não se lhe podendo opor
o instituto da coisa julgada.
Consoante se observa, é perfeitamente constitucional a alteração do
instituto da coisa julgada, ainda que a mudança implique restringir-se
a aplicação, na criação de novos instrumentos de seu controle, ou até
na sua supressão, em alguns ou todos os casos.
O que a Carta Política inadmite é a retroatividade da lei para influir na
solução dada, a caso concreto, por sentença de que já não caiba
recurso.
De outra parte, qualquer alteração do instituto mesmo da coisa
julgada, determinando seu enfraquecimento ou dilargando as hipóteses
onde se admite o ataque ao julgado, não incide no que pertine às
sentenças já transitadas em julgado, visto que também, neste
particular, rege a lei vigorante ao tempo em que o trânsito em julgado
se deu.
Como se vê, a proteção constitucional da coisa julgada é mais tímida
do que se supõe, sendo perfeitamente compatível com a existência de
restrições e de instrumentos de revisão e de controle dos julgados. A
proteção constitucional da coisa julgada não é mais do que uma das
muitas faces do princípio da irretroatividade da lei
735
.
A questão data venia (e para a nossa sorte!) não é tão singela.
Com efeito, para muito além do artigo 5º, XXXVI, da
Constituição Federal, os teóricos constitucionais pátrios, de um modo geral,
situam o fundamento constitucional da coisa julgada no princípio
(constitucional) da segurança jurídica, inerente, inclusive, à própria noção do
Estado Democrático de Direito.
Assim é que, por exemplo, Luís Roberto Barroso, em que pese
situar-se entre aqueles que, em tese, admitem a mitigação da coisa julgada, o faz
sem declinar da dignidade constitucional da coisa julgada, para todos os fins,
735
LIMA, Paulo Roberto de Oliveira. Contribuição à teoria da coisa julgada. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1997, p. 84-6, grifo do autor.
252
tanto que só admite essa mitigação sempre no próprio âmbito da constituição,
em caso de conflito de valores, a partir da técnica da ponderação
736
.
Diz ele, que:
Como se depreende intuitivamente, a proteção da coisa julgada é a
materialização, sob a forma de uma regra explícita, do princípio da
segurança jurídica, em cujo âmbito se resguardam a estabilidade das
relações jurídicas, a previsibilidade das condutas e a certeza jurídica
que se estabelece acerca de situações anteriormente controvertidas. De
fato, o fim da situação litigiosa e o restabelecimento da paz social são
valores relevantes para a sociedade e para o Estado, e em seu nome se
impede a reabertura da discussão, mesmo diante da alegada injustiça
da decisão. Daí por que, no Brasil, a coisa julgada, de longa data,
deixou de ser apenas um instituto de direito processual para adquirir
status constitucional
737
.
Sustentando o absoluto valor constitucional da coisa julgada,
Eduardo Talamini aduz que
É impossível dar ao inciso XXXVI do art. 5º estrito significado de
mecanismo meramente instrumental à garantia de irretroatividade das
leis. Mesmo se fosse possível dizer que o teor literal do dispositivo se
restringe a isso (e não se restringe [...]), haveria de se aplicar a
máxima de hermenêutica pela qual as normas sobre direitos e
garantias fundamentais merecem interpretação extensiva. Além disso,
basta comparar a disposição com outras contidas no próprio art. 5º da
Constituição: o inciso XXXV prevê apenas que a “lei não excluirá” o
acesso à justiça – e no entanto ninguém duvida que a garantia ali
consagrada vai muito além disso, impondo a qualquer aplicador do
direito o respeito a todas as derivações da inafastabilidade da tutela
jurisdicional; o caput do art. 5º refere-se apenas à igualdade “perante
a lei”, mas reconhece-se facilmente a incidência do princípio da
isonomia em todo e qualquer momento de aplicação do direito. Tal
como nesses casos, a coisa julgada não é mencionada como simples
limite, baliza, da atividade legislativa. A referência no texto da
Constituição implica outras conseqüências
738
.
Ademais, conforme adita o mesmo autor,
736
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática
da doutrina e análise crítica da jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 171-3.
737
Ibid., p. 171, grifo do autor. Registre-se que, conforme lembra o autor, a coisa julgada foi consagrada
constitucionalmente, pela primeira vez em nosso sistema, pela Carta de 1934, em seu artigo 113,3, e, salvo
variações de natureza estritamente ortográfica, a redação lá consagrada foi reproduzida nas demais Cartas que a
sucederam, inclusive a de 1988, ora vigente (Id., loc. cit.).
738
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 50-1, grifo
do autor.
253
A afirmação de que não é dado à lei suprimir a coisa julgada que já se
tenha formado implica também o princípio geral de que o aplicador da
lei não pode, ele mesmo, desrespeitar a coisa julgada. [...] Não faria
sentido limitar a atividade do legislador para o fim de proteger a coisa
julgada e, ao mesmo tempo, deixar o aplicador da lei livre para agir
como bem entendesse. Trata-se de conjugar o art. 5º, XXXVI, com o
princípio constitucional da legalidade (art. 5º, II). Assim fica
definitivamente afastada a idéia de que o inciso XXXVI do art. 5º
estaria tratando unicamente de irretroatividade das leis. Ainda que não
mediante fórmula explícita, o dispositivo consagra como garantia
constitucional o próprio instituto da coisa julgada. E, revestindo-se
de tal condição, a coisa julgada não pode ser suprimida da
Constituição nem sequer mediante emenda constitucional (CF, art. 60,
§ 4º, IV). Por um lado, a coisa julgada constitui uma garantia
individual: na perspectiva do jurisdicionado, ela se presta a conferir
estabilidade à tutela jurisdicional obtida. Por outro, a coisa julgada
tem também o caráter de garantia institucional, objetiva: prestigia a
eficiência e a racionalidade da atuação estatal, que desaconselham, em
regra a repetição de atividade sobre um mesmo objeto
739
.
Registre-se que, quando Eduardo Talamini afirma que não faria
sentido permitir-se ao julgador obrar aquilo que ao próprio legislador está
interditado, nada mais faz que repercutir diretriz geral sufragada pela doutrina e
pela jurisprudência constitucional alemãs que Robert Alexy expressa nos
seguintes termos: “Nenhum tribunal pode tomar por base para a sua decisão uma
regra que ‘nem sequer o legislador poderia ordenar’”
740
.
Não se nega, com isso, que a precisa conformação do instituto
cabe ao legislador infraconstitucional. Contudo, fica cabalmente obstada a
possibilidade de que ele, ao proceder essa conformação, venha a espancar
situações já acobertadas pela coisa julgada material. “As alterações no regime da
coisa julgada não podem servir para desfazer nem facilitar o desfazimento
daqueles comandos jurisdicionais já acobertados em concreto [...]”
741
pela
739
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 52-3, grifo
do autor.
740
ALEXY, Robert. Direito constitucional e direito ordinário. Jursidição constitucional e jurisdição
especializada. Trad. L. A. Heck. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 57 apud TALAMINI, op. cit., p. 51,
grifo do autor.
741
TALAMINI, op. cit., p. 52, grifo do autor.
254
autoridade da coisa julgada (o que o próprio Paulo Roberto de Oliveira Lima
admite como interditado pelo legislador, como visto acima).
A par disso, como diz o mesmo Eduardo Talamini,
Não parece razoável supor que o legislador constitucional possa vir a
abolir integralmente a coisa julgada, consagrando a possibilidade
permanente de revisão de todo e qualquer pronunciamento da
jurisdição. Nem mesmo se essa abolição total tivesse eficácia ex nunc,
de modo a preservar as coisas julgadas anteriormente estabelecidas,
ela seria admissível. Muito embora do ponto de vista lógico-jurídico
seja perfeitamente concebível um modelo processual despido da coisa
julgada, o direito constitucional positivo brasileiro afasta essa
possibilidade. A Constituição impõe a premissa de que o modelo
processual jurisdicional contemplará a coisa julgada – ainda que
remetendo ao legislador infraconstitucional, dentro de certas
condições, a liberdade de definição dos atos que serão revestidos
dessa estabilidade. Esse é mais um dos significados extraíveis do
inciso XXXVI do art. 5º
742
.
A atividade do legislador infraconstitucional, portanto, encontra
limites na própria constituição e a ela deve se submeter.
A partir, portanto, do artigo 5º, inciso XXXVI, sem dúvida, lhe é
vedada, desde logo, a possibilidade de fazer retroagir a lei em prejuízo da coisa
julgada já consumada; assim como lhe é vedada a supressão in totum da coisa
julgada, ainda que com eficácia apenas futura
743
.
A assertiva, porém, de que a coisa julgada é instituto que tem a
sua sede na Constituição, assim como nos leva a dela (Constituição) extrair os
limites para a sua supressão, nos obriga a dela também extrairmos os limites
da sua própria previsão
744
.
Assim, em que pese a coisa julgada ser uma opção do legislador,
ele, ao fazê-la, segue, igualmente, parâmetros constitucionais, tal qual, por
exemplo, aqueles ditados pelos princípios do contraditório, do devido processo
742
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 52-3, grifo
do autor.
743
Ibid., p. 53.
744
Ibid., loc. cit.
255
legal e da inafastabilidade da tutela jurisdicional, conducentes, por óbvio, a
excluir os terceiros da sua autoridade, assim como, em última instância, aqueles
provimentos de cognição não exauriente
745
.
Em reforço à tese da irrestrita constitucionalidade da coisa
julgada em nosso sistema, inclusive para vincular o legislador
infraconstitucional na conformação ordinária do instituto, deve ser realçada,
ademais, a sua íntima vinculação, como já dito acima, ao princípio da segurança
jurídica, ele próprio contando com sede constitucional.
Ingo Wolfgang Sarlet, tratando especificamente da eficácia do
direito fundamental à segurança jurídica, diz, com absoluta propriedade, que,
Mesmo que se saiba, pelo menos desde Heráclito, “que a
imutabilidade não é um atributo das coisas deste mundo, que nada está
em repouso e tudo flui” e que também para o Direito tal destino se
revela inexorável, igualmente é certo de que o clamor das pessoas por
segurança (aqui ainda compreendida num sentido amplo) e – no que
diz com as mudanças experimentadas pelo fenômeno jurídico – por
uma certa estabilidade das relações jurídicas, constitui um valor
fundamental de todo e qualquer Estado que tenha a pretensão de
merecer o título de Estado de Direito, de tal sorte que, pelo menos
desde a Declaração dos Direitos Humanos de 1948 o direito (humano
e fundamental) à segurança passou a constar dos principais
documentos internacionais e em expressivo número de Constituições
modernas, inclusive na nossa Constituição Federal de 1988, onde um
direito geral à segurança e algumas manifestações específicas de um
direito à segurança jurídica foram expressamente previstas no artigo
5º, assim como em outros dispositivos da nossa Lei Fundamental
746
.
Desse modo, para ele, “[...] a possibilidade de confiar na eficácia
e, acima de tudo, na efetividade dos direitos que lhe são assegurados pela ordem
jurídica já integra, de certo modo, um direito à segurança [...]”
747
como uma
espécie de cláusula geral inerente a todo e qualquer sistema jurídico afeto a um
Estado de Direito e “[...] que abrange uma série de manifestações específicas,
745
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 57-61.
746
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa
humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro. Mundo
Jurídico, São Paulo, jul.2005, p. 1. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br/cgi-bin/upload/texto856-
rtf>. Acesso em: 25 jan. 2007, grifo do autor.
747
Ibid., p. 2.
256
como é o caso da segurança jurídica, da segurança social, da segurança
pública,da segurança pessoal, apenas para referir as mais conhecidas”
748
.
Por isso mesmo, conforme sustenta o mesmo Ingo Wolfgang
Sarlet,
Certo é que havendo, ou não, menção expressa a um direito à
segurança jurídica, de há muito, pelo menos no âmbito do pensamento
constitucional contemporâneo, se enraizou a idéia de que um autêntico
Estado de Direito é sempre também – pelo menos em princípio e num
certo sentido – um Estado da segurança jurídica, já que, do contrário,
também o “governo das leis” (até pelo fato de serem expressão da
vontade política de um grupo) poderá resultar em despotismo e toda a
sorte de iniqüidades. Com efeito, a doutrina constitucional
contemporânea, de há muito e sem maior controvérsia no que diz com
este ponto, tem considerado que a segurança jurídica passou a ter o
status de subprincípio concretizador do princípio fundamental e
estruturante do Estado de Direito. Assim, para além de assumir a
condição de direito fundamental da pessoa humana, a segurança
jurídica constitui simultaneamente princípio fundamental da ordem
jurídica estatal e, para além desta, da própria ordem jurídica
internacional
749
.
Referindo-se especificamente ao nosso sistema, o mesmo autor
aduz que:
No caso da ordem jurídica brasileira, a Constituição Federal de 1988,
após mencionar a segurança como valor fundamental no seu
Preâmbulo, incluiu a segurança no seleto elenco dos direitos
“invioláveis” arrolados no caput do artigo 5º, ao lado dos direitos à
vida, liberdade, igualdade e propriedade. Muito embora em nenhum
momento tenha o nosso Constituinte referido expressamente a um
direito à segurança jurídica, este (em algumas de suas manifestações
mais relevantes) acabou sendo contemplado em diversos dispositivos
da Constituição, a começar pelo princípio da legalidade e do
correspondente direito de a não ser obrigado a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa senão em virtude de lei (artigo 5º, inciso II), passando
pela expressa proteção do direito adquirido, da coisa julgada e do ato
jurídico perfeito (artigo 5º, inciso XXXVI) [...] e das garantias do
devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º,
incisos LIV e LV), apenas para referir algumas das mais relevantes,
limitando-nos aqui aos exemplos extraídos do artigo 5º, que, num
748
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa
humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro. Mundo
Jurídico, São Paulo, jul.2005, p. 3. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br/cgi-bin/upload/texto856-
rtf>. Acesso em: 25 jan. 2007, grifo nosso.
749
Ibid., p. 4-5, grifo do autor. Aqui, a bem da verdade, o autor curva-se à lição de: CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Direto Constitucional e teoria da constituição. 5ª ed. Coimbra: Almedida, 2002, p. 257.
257
sentido amplo, também guardam conexão com a noção de segurança
jurídica
750
.
O fato, portanto, de estarmos inseridos numa espécie de era da
incerteza, que se aguda com o pleno reconhecimento de um multiculturalismo
inerente à sociedade humana, não retira o mérito da segurança jurídica na
atualidade. Muito ao contrário disso,
[...] justamente em face da instabilidade institucional, social e
econômica vivenciada (e não estamos aqui em face de um fenômeno
exclusivamente nacional), que inevitavelmente tem resultado numa
maratona reformista, igualmente acompanhada por elevados níveis de
instabilidade, verifica-se que o reconhecimento, a eficácia e a
efetividade do direito à segurança cada vez mais assume papel de
destaque na constelação dos princípios e direitos fundamentais
751
.
Por outro prisma, restando claro que a nossa Constituição Federal
agasalha o princípio da segurança jurídica e que, entre uma das suas
manifestações, esta o amparo à coisa julgada, que tem nele o seu fundamento
constitucional último, não há como se deixar de realçar que a segurança jurídica,
tal qual todo e qualquer outro direito fundamental, não só se manifesta em uma
dimensão subjetiva como que, também, objetiva, na precisa lição de Dimitri
Dimoulis e Leonardo Martins
752
.
Desse modo, os direitos fundamentais não só se manifestam
como direitos individuais (dimensão subjetiva), significando “[...] a proteção da
confiança do cidadão nesta continuidade da ordem jurídica no sentido de uma
segurança jurídica individual das suas próprias posições jurídicas”
753
, como que,
também, se manifestam como dever objetivo do Estado (dimensão objetiva)
754
,
750
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa
humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro. Mundo
Jurídico, São Paulo, jul. 2005, p. 5. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br/cgi-bin/upload/texto856-
rtf>. Acesso em: 25 jan. 2007, grifo do autor.
751
Ibid., p. 7, grifo do autor.
752
DIMOULIS, Dimitri; Martins, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2007, p. 116-31.
753
SARLET, op. cit., p. 9-10.
754
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direto Constitucional e teoria da constituição. 5ª ed. Coimbra:
Almedida, 2002, p. 1238-51.
258
e, sob essa ótica, incide “[...] em face de qualquer ato de qualquer órgão
estatal”
755
, inclusive, portanto, do próprio Poder Judiciário, deles exigindo “[...]
um patamar mínimo de continuidade do (e, no nosso sentir, também no)
Direito”
756
.
O fato é, portanto, que
[...] os direitos fundamentais não se limitam à função precípua de
serem direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do poder
público, mas que, além disso, constituem decisões valorativas de
natureza jurídico-objetiva da Constituição, com eficácia em todo o
ordenamento jurídico e que fornecem diretrizes para os órgãos
legislativos, judiciários e executivos. Em outras palavras [...] os
direitos fundamentais passaram a apresentar-se no âmbito da ordem
constitucional como um conjunto de valores objetivos básicos e fins
diretivos da ação positiva dos poderes públicos, e não apenas garantias
negativas dos interesses individuais [...]
757
.
Não se trata, aqui, de simplesmente se afirmar, como esclarece
Ingo Wolgang Sarlet, “[...] que qualquer posição jurídica subjetiva pressupõe,
necessariamente, um preceito de direito objetivo que a preveja”
758
. Para muito
além disso,
A faceta objetiva dos direitos fundamentais [...] significa, isto sim, que
às normas que prevêem direitos subjetivos é outorgada função
autônoma, que transcende esta perspectiva subjetiva, e que, além
disso, desemboca no reconhecimento de conteúdos normativos e,
755
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa
humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro. Mundo
Jurídico, São Paulo, jul. 2005, p. 9. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br/cgi-bin/upload/texto856-
rtf>. Acesso em: 25 jan. 2007.
756
Id., loc. cit., grifo do autor.
757
Id. A eficácia dos direitos fundamentais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 143.
758
Id., loc. cit. Nesse sentido, o autor referido lembra, inclusive, que “[...] toda norma que contém um direito
fundamental constitui sempre direito objetivo, independentemente da viabilidade de uma subjetivação” (Ibid.,
nota 321, p. 144).
259
portanto, de funções distintas aos direito fundamentais [...]
759
.
Dentre as manifestações da faceta objetiva dos direitos
fundamentais que se pode desdobrar da sua faceta subjetiva, Ingo Wolfgang
Sarlet inventaria três aspectos que julga capitais e que demandam menção na
quadra da análise que se desdobra.
O primeiro deles é justamente aquele, pincelado acima, que
indica que
[...] ao significado dos direitos fundamentais como direitos subjetivos
de defesa do indivíduo contra o Estado corresponde sua condição
(como direito objetivo) de normas de competência negativa para os
poderes públicos, no sentido de que o status fundamental de liberdade
e igualdade dos cidadãos se encontra subtraído da esfera de
competência dos órgãos estatais, contra os quais se encontra também
protegido, demonstrando que também o poder constitucionalmente
reconhecido é, na verdade, juridicamente constituído e desde sua
origem determinado e limitado, de tal sorte que o Estado somente
exerce seu poder no âmbito do espaço de ação que lhe é colocado à
disposição
760
.
Trata-se, aqui, segundo Ingo Wolfgang Sarlet
[...] de uma função objetiva reflexa de todo direito fundamental
subjetivo, que, todavia, não exclui os efeitos jurídicos adicionais e
autônomos inerentes à faceta objetiva [...] incluída aqui a existência de
posições jurídicas fundamentais com normatividade restrita à
perspectiva objetiva
761
.
Em conclusão,
Com base nesta premissa [...] a perspectiva objetiva dos direitos
fundamentais constitui função axiologicamente vinculada,
demonstrando que o exercício dos direitos subjetivos individuais está
condicionado, de certa forma, ao seu reconhecimento pela
comunidade na qual se encontra inserido e da qual não pode ser
dissociado, podendo falar-se, neste contexto, de uma responsabilidade
comunitária dos indivíduos. É neste sentido que se justifica a
afirmação de que a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais não
só legitima restrições aos direitos subjetivos individuais com base no
759
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
p. 144.
760
Ibid., p. 145, grifo do autor.
761
Ibid., p. 146.
260
interesse comunitário prevalente, mas também que, de certa forma,
contribui para a limitação do conteúdo e do alcance dos direitos
fundamentais, ainda que deva sempre ficar preservado o núcleo
essencial destes
762
.
O segundo aspecto objetivo-valorativo desfiado por Ingo
Wolfgang Sarlet a partir da perspectiva subjetiva dos direitos fundamentais, é
aquele que aponta para uma
[...] eficácia dirigente que estes (inclusive os que precipuamente
exercem a função de direitos subjetivos) desencadeiam em relação aos
órgãos estatais. Neste contexto é que se afirma conterem os direitos
fundamentais uma ordem dirigida ao Estado no sentido de que a este
incumbe a obrigação permanente de concretização e realização dos
direitos fundamentais [...] [independentemente da] existência de
normas (princípios ou regras) de direitos fundamentais específicas de
cunho impositivo, que – exclusivamente ou para além de consagrarem
direito subjetivo individual – impõem ao legislador (ao menos em
primeiro plano) a concretização de determinadas tarefas, fins e/ou
programas mais ou menos genéricos
763
.
Por último,
[...] os direitos fundamentais, na condição de normas que incorporam
determinados valores e decisões essenciais que caracterizam a sua
fundamentalidade, servem, na sua qualidade de normas de direito
objetivo e independentemente de sua perspectiva subjetiva, como
parâmetro para o controle de constitucionalidade das leis e demais
atos normativos estatais
764
.
Dissemos acima, por outro lado, que os direitos fundamentais, na
sua faceta objetiva, acabam por implicar no reconhecimento de conteúdos
normativos que desdobram funções distintas a eles próprios.
Dentre essas funções, Ingo Wolgang Sarlet destaca o
desenvolvimento da categoria de proteção do Estado, da dimensão organizatória
762
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
p. 146, grifo nosso.
763
Ibid., p. 147.
764
Id., loc. cit.
261
e procedimental dos direitos fundamentais, além da problemática de sua eficácia
provada, sem contar outras funções ainda controvertidas
765
.
Trata-se, aqui,
[...] do desenvolvimento de novos conteúdos que podem integrar [...] a
perspectiva jurídico-objetiva sob o aspecto de sua caracterização como
um reforço (no sentido de complementação) da eficácia normativa dos
direitos fundamentais [...] na qualidade de efeitos potencialmente
autônomos, no sentido de não necessariamente atrelados aos direitos
fundamentais consagradores de direitos subjetivos
766
.
Assim, Ingo Wofgang Sarlet, diz que,
Como primeiro desdobramento de uma força objetiva autônoma dos
direitos fundamentais, costuma apontar-se para o que a doutrina alemã
denominou de uma eficácia irradiante [...] dos direitos fundamentais,
no sentido de que estes, na sua condição de direito objetivo, fornecem
impulsos e diretrizes para a aplicação e interpretação do direito
infraconstitucional, o que, além disso, apontaria para a necessidade de
uma interpretação conforme aos direitos fundamentais, que, ademais,
pode ser considerada – ainda que com restrições – como modalidade
semelhante à difundida técnica hermenêutica da interpretação
conforme à Constituição. Associada a este efeito irradiante dos
direitos fundamentais, encontra-se a problemática da sua eficácia na
esfera privada, também abordada sob a denominação de eficácia
horizontal dos direitos fundamentais, [...] [consistente na] idéia dos
direitos fundamentais irradiarem efeitos também nas relações privadas
e não constituírem apenas direitos oponíveis aos poderes públicos
[...]
767
.
De outro modo, dado
[...] estar intimamente vinculada à noção de que existem normas
definidoras de direitos fundamentais que, inobstante exerçam
finalidade protetora de determinados bens jurídicos fundamentais
reconduzíveis, direta ou indiretamente, ao valor da dignidade da
pessoa humana, mas que não são suscetíveis de uma subjetivação,
assume especial relevo, no contexto da perspectiva objetiva dos
direitos fundamentais, a figura das garantias institucionais, [...] no
sentido de que existem determinadas instituições (direito público) ou
765
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
p. 147.
766
Ibid., p. 147.
767
Ibid., p. 148.
262
institutos (direito privado) que, por sua importância, devem estar
protegidas contra a ação erosiva do legislador
768
.
Ingo Wolfgang Sarlet, também indica que
Outra importante função atribuída aos direitos fundamentais e
desenvolvida com base na existência de um dever geral de efetivação
atribuído ao Estado, por sua vez agregado à perspectiva objetiva dos
direitos fundamentais, diz com o reconhecimento de deveres de
proteção [...] do Estado, no sentido de que a este incumbe zelar,
inclusive preventivamente, pela proteção dos direitos fundamentais
dos indivíduos não somente contra os poderes públicos, mas também
contra agressões provindas de particulares e até mesmo de outros
Estados. Esta incumbência, por sua vez, desemboca na obrigação de o
Estado adotar medidas positivas da mais diversa natureza (por
exemplo, por meio de proibições, autorizações, medidas de natureza
penal, etc.), com o objetivo precípuo de proteger de forma efetiva o
exercício dos direitos fundamentais
769
.
Por fim, Ingo Wolfgang Sarlet aduz que,
[...] como último importante desdobramento da perspectiva objetiva
[...] [deve-se mencionar] a função outorgada aos direitos fundamentais
sob o aspecto de parâmetros para a criação e constituição de
organizações (ou instituições) estatais e para o procedimento [...]
[apontando] para uma formatação do direito organizacional e
procedimental que auxilie na efetivação da proteção aos direitos
fundamentais, de modo a se evitarem os riscos de uma redução do
conteúdo material [...] [já que] os direitos fundamentais são, ao
mesmo tempo e de certa forma, dependentes da organização e do
procedimento (no mínimo, sofrem uma influência da parte destes),
mas simultaneamente também atuam sobre o direito procedimental e
as estruturas organizacionais.
Tendo em vista que os deveres de proteção do Estado podem, por
vezes, concretizar-se por meio de normas dispondo sobre o
procedimento administrativo ou judicial, bem como pela da criação de
órgãos, constata-se, desde já, a conexão que pode existir entre estas
duas facetas da perspetiva jurídico-objetiva dos direitos
fundamentais
770
.
Dito isso tudo, com a devida vênia, não há como se encarar com
a necessária seriedade a tese de que o legislador infraconstitucional não esteja
768
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
p. 149.
769
Ibid., p. 149-50.
770
Ibid., p. 150-1.
263
subordinado, na conformação da coisa julgada, à vedação constitucional da sua
quebra, que só diretamente prevaleceria.
A assertiva que Paulo Roberto de Oliveira Lima formula, no
sentido de que a Constituição brasileira não interditaria, propriamente, à lei um
prejuízo ao instituto da coisa julgada (ou seja, que ela “[...] não proíbe a lei de
prejudicar o “instituto da coisa julgada”), mas, sim, de ferir a coisa julgada, é,
no mínimo, de uma superficialidade assombrosa, assim como é de uma
superficialidade assombrosa a própria fórmula de interpretação do texto
constitucional que ele formula para se chegar a esse resultado, já que, em última
instância, ele se contenta com a pura e simples interpretação literal do texto
constitucional. E quando busca lhe emprestar uma maior credibilidade, a partir
de uma suposta interpretação sistemática, parte de uma premissa falsa, qual seja,
a de que o próprio instituto da rescisão do julgado seria inconstitucional, caso se
viesse a conceber que a Constituição protegesse o instituto da coisa julgada.
A questão, porém, não pode ser posta nesses termos. Ao se
afirmar que a coisa julgada é protegida enquanto um instituto constitucional,
como instrumento, inclusive, de realização do direito fundamental à segurança
em geral e a jurídica em especial, o que se quer afirmar é que ao legislador
infraconstitucional é vedada toda e qualquer possibilidade de retirar da coisa
julgada material aquilo que ela tem de essencial, que é por fim aos litígios e
emprestar um mínimo de estabilidade e, conseqüentemente, de segurança aos
cidadãos.
Não seriam, assim, tidas como inconstitucionais medidas
relativizadoras da coisa julgada como aquelas que, dentro de um prazo razoável
e diante de fundadas razões de justiça, diferem a imutabilidade do julgado; ou
que não emprestam a imutabilidade ao julgado quando ausente o contraditório
(como no caso da revelia) ou quando a cognição for restrita.
264
Como já dito e se volta a dizer: o legislador infraconstitucional,
ao normatizar o instituto, não tem, de modo algum, liberdade plena na sua
conformação. Como diz Eduardo Talamini, ele “[...] segue parâmetros
constitucionais”
771
, ditados em última instância por princípios tidos como de
caráter fundamental, como é o caso do princípio da segurança jurídica e todos
aqueles outros que dele decorrem, como o contraditório, a ampla defesa, a coisa
julgada...
O multiculturalismo hoje prevalecente, assim como a
variabilidade do direito no espaço, nos conduz, é certo, como diz Eduardo
Talamini, à superação da idéia de que todos os princípios
jurídicos/constitucionais pudessem convergir a um núcleo essencial, apontando
para uma visão unitária, monista
772
. Ao contrário disso, não se hierarquizam
mais valores e princípios. Eles concorrem entre si, aí se inserindo a segurança
jurídica
773
, o que, por óbvio, nos conduz à sua temperança, porém, sempre
dentro da quadra constitucional e excluída qualquer hierarquização prévia (que
será, sempre e inexoravelmente, abstrata) ou mecanismo conducente à sua
supressão, ainda que indireta.
Afinal, como diz Eduardo Talamini, com assento em Recaséns
Siches,
O Direito deve também expressar outros valores, até mais
importantes, tais como a justiça e o bem comum. Porém, o Direito não
os contém em seu conceito: pode haver Direito injusto ou Direito que
não atenda ao interesse comum; todavia, sem a segurança jurídica e
certeza de sua impositividade, não há Direito, nem bom nem mau
774
.
771
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 53.
772
Ibid., p. 66.
773
Ibid., p. 66-7.
774
Ibid., p. 66, grifo do autor. Daí porque Rodolfo Luis Vigo dizer claramente que: É indubitável que a eventual
absorção da segurança pela justiça seria, em definitivo, em detrimento da segurança jurídica, não obstante todas
as explicações que se poderiam fazer. Igualmente estamos convictos de que, como salientou a modernidade, o
fator de previsibilidade jurídica é uma conquista que favorece a constituição de um melhor direito a serviço do
homem e da sociedade” (VIGO, Rodolfo Luis. Interpretação jurídica: do modelo juspositivista-legalista do
século XIX às novas perpectivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 288).
265
A forma jamais é forma. Toda forma encerra um conteúdo. O
que há é uma forma-conteúdo
775
. E,
A cada evento, a forma se recria. Assim, a forma-conteúdo não pode
ser considera, apenas, como forma, nem apenas como conteúdo. Ela
significa que o evento, para se realizar, encaixa-se na forma disponível
mais adequada a que se realizem as funções de que é portador. Por
outro lado, desde o momento em que o evento se dá, a forma, o objeto
que o acolhe ganha uma outra significação, provinda desse encontro.
Em termos de significação e de realidade, um não pode ser entendido
sem o outro, e, de fato, um não existe sem o outro. Não há como vê-
los separadamente
776
.
Isso nos chama a atenção para o fato de que vivemos, ainda, sob
o influxo do movimento republicano, evento histórico que nos legou a forma
constitucional vigente.
Isso, igualmente, nos chama a atenção que não há um único
constitucionalista que assim possa ser qualificado no presente que não sustente
que, entre as funções que essa forma histórica que nos foi legada ainda
desempenha está não só a clássica noção de garantia e proteção, a partir da
qual se realiza a limitação do poder
777
, como que, também, aquela de ordem e
ordenação, que implica na conformação do Estado como um Estado de
775
Reproduzimos, aqui, uma categoria conceitual de Milton Santos, assentada na noção de que é um “[...]
equívoco epistemológico, herdado da modernidade, [...] pretender trabalhar a partir de conceitos puros” ao ponto
de se conceber “[...] a separação total entre natureza e cultura”. Muito ao contrário disso, “[...] a realização
concreta da história não separa o natural e o político [...], de tal modo que todo e qualquer objeto, todo sistema e
toda estrutura, devem ser tidos como híbridos, realidades “[...] mistas e contraditórias de objetos e de relações
que não podem existir separadamente” (SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e
emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002, p.100-3, grifo do autor). Para maiores detalhes,
consulte-se a nota 569, supra.
776
SANTOS, op. cit., p.102-3. No plano do dirieto, ainda que implicitamente, Cláudia Rosane Roesler, fasendo
repercutir o pensamento de Theodor Viehweg, sustenta que toda dogmática, conta, em sua base, com uma
ideologia jurídica, “[...] cujo conteúdo são as opiniões fixadas sobre o que é justo num determinado momento
histórico para uma determinada sociedade”. Por outro lado, “Não importa – diz ela- como essa opinião vem a ser
elaborada e quais sejam os seus princípios de legitimação. Toda organização social que se pretende
racionalizável prepara e fundamenta uma dogmática jurídica, cuja estrutura de pensamento é determinada
por esta sua função” (ROESLER, Cláudia Rosane. Theodor Viehweg e a ciência do direito: tópica, discurso,
racionalidade. Prefácio de Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Florianópolis: Momento atual, 2004, p. 46. Grifo
nosso).
777
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direto Constitucional e teoria da constituição. 5ª ed. Coimbra:
Almedida, 2002, p. 1422.
266
Direito
778
, funções essas que, ademais, perdem qualquer sentido de ser quando
se prescinde de uma geral noção de segurança, inclusive a jurídica.
Conceber-se, portanto, um sistema normativo que, ainda que
indiretamente, prescinda por completo da coisa julgada é atentar contra uma das
funções da vigente forma histórico-constitucional que nos foi legada pelo
movimento republicano.
Não é para menos, portanto, que Nelson Nery Júnior reduziu as
teses tendentes à desconsideração da coisa julgada como uma manifestação
nazista/totalitária
779
... As funções de que aquele evento histórico (totalitário) era
portador exigia uma forma (conteúdo) constitucional diversa... Esvazie-se o
conteúdo do Estado Republicano, Democrático e de Direito e a forma que se
terá não será nem republicana, nem democrática e nem de direito...
E que sirva de alerta: aforante o totalitarismo (como bem
apanhado por Nelson Nery Júnior), ainda está por vir o evento histórico que
prescinda da forma republicana (leia-se: da segurança jurídica)!
3 RETROSPECTO HISTÓRICO
3.1 Direito romano
Como afirmamos acima, com Eduardo J. Couture
780
, a coisa
julgada não foi uma noção inerente e, muito menos, constante, na sua realização
histórica.
É fato, porém, que ela já se manifestava no Direito Romano,
ainda que com variabilidade, na medida em que ele foi se publicizando
781
.
778
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direto Constitucional e teoria da constituição. 5ª ed. Coimbra:
Almedida, 2002, p. 1422-3.
779
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6ª ed. atual., amp. e reformulada da 5ª ed.do livro
Princípios fundamentais – Teoria geral dos recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, pp. 509-10.
267
Como observa Eduardo Talamini, Roma variou os seus modelos
históricos nas suas três grandes fases históricas do processo: arcaica, à qual
correspondeu o processo das ações da lei; clássica, à qual correspondeu o
processo formular; e pos-clássica, à qual correspondeu o processo da cognitio
extraordinem
782
.
Os dois primeiros modelos integraram o ordo iudiciorum
privatorum e tinham como característica seguir um procedimento bi-partido: o
primeiro, desenvolvido perante o pretor e que se extinguia com a litis
contestatio; e a segunda, desenvolvida perante o iudex (um árbitro particular),
incumbido de instruir e julgar a causa nos limites definidos na litis
contestatio
783
.
Na medida em que o iudex era investido pelas partes na litis
contestatio e não de ato estatal (daí o seu caráter privado; ele era, propriamente
um árbitro particular escolhido pelas partes e instituído pelo magistrado,
presidente da primeira fase), a decisão proferida podia ser imotivada e era
irrecorrível
784
.
No último caso, o procedimento se dava em uma única fase, sob
a direção de autoridade única, investida pelo Estado (daí o caráter público do
processo)
785
. Nesse período, as decisões passam a ser motivadas e recorríveis
786
.
780
Item 2.3.1,supra.
781
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 198.
782
Ibid., p. 197. É de se registrar, porém, que, conforme o próprio autor observa, no que é circundado por
Jônatas Luiz Moreira de Paula (PAULA, Jônatas Moreira Luiz. História do Direito Processual Brasileiro: das
origens lusas à escola crítica do processo. Barueri: Manole, 2002, p. 33) essas construções não se sucederam de
modo absoluto no tempo, mas, ao contrário, coexistiram durante algum tempo, enquanto se gestavam, nasciam e
adquiriam maturidade (Ibid., loc. cit.). Temporalmente, Jônatas Luiz Moreira de Paula aponta que o período das
legis actiones vigorou entre a fundação de Roma (754 a.C) até a queda da República (509 a.C.), contando como
principal fonte a Lei das XII Tábuas; o das per formulas se pronuncia com o declínio da República e se estende
até o reinado do Imperador Diocleciano (285-305 d.C), tendo contado com dois significativos instrumentos
legais a lhe dar o tom: a Lex Aebutia, em 149-126 a.C, e a Lex Julia Privatorum, em 17 a.C); e, finalmente, o
da extraordinária cognitio, se inicia com o principado (27 a.C.) e se finda com a queda do Império Romano do
Ocidente, em 568 d.C. (Ibid., op. cit., p. 32-3).
783
Ibid., p. 197. PAULA, op. cit., p. 33-68. NEVES, Celso. Coisa Julgada Civil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1971, p. 11.
784
Ibid., p. 197. PAULA, op. cit., p. 36 e 65.
785
TALAMINI, op. cit., p. 198. PAULA, op. cit., p. 71-3 e 85-6. NEVES, op. cit., p. 27-9.
786
Ibid., p. 198. PAULA, op.cit., p. 71-3 e 85-6.
268
Em que pese os registros históricos não serem adequados quanto
ao período arcaico, haveria indicativos que o simples agir das partes criava um
efeito preclusivo à parte que o impedia de buscar rediscutir a causa,
idependentemente da sentença
787
. Esse agir era tido como exercido pela litis
contestatio
788
, à qual vinculava-se o efeito consuptivo, “[...] expresso pela regra
obstativa de nova legis actio
789
, conhecível de ofício (não se exigia, portanto, a
oposição de exceção) pelo pretor ainda na primeira fase do procedimento no
caso de uma precedente litis contestatio
790
. Daí porque se aludia “[...] a rem
actam agere para indicar um ato que não poderia absolutamente conduzir ao
resultado pretendido pelo autor e que, assim, seria inútil”
791
.
No período clássico, a litis contestatio se firma e adquire novos
ares. Além de se revestir de forma escrita, passa a vincular as partes à futura
decisão e ela própria também passa a extinguir a relação jurídica controvertida,
absorvida pela relação processual por ela instituída/criada (daí o seu caráter de
novação: extinguia o direito controvertido e constituía o vínculo
obrigacional)
792
. Não era mais o agir que extinguia a relação jurídica
787
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 198-9.
NEVES, Celso. Coisa Julgada Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 10-2.
788
Ibid., p. 198-9.
789
NEVES, op. cit., p. 11.
790
Ibid., p. 12. Vale o registro, porém, que o próprio Celso Neves faz, no sentido de que, extraordinariamente, a
denegação da ação, sob o fundamento de haver coisa julgada, poderia ser delegada para a segunda fase do
processo, ainda durante o período em que vigorou o sistema das legis actiones, hipótese que se operava mediante
exceção. Esse proceder, segundo ele, implicou na paulatina generalização da exceptio, dado “[...] o contínuo
aumento e crescente complexidade das relações jurídicas, ao unus praetor, passou a ser, em muitos casos, quase
impossível apurar a identidade dos litígios, tornando-se então necessário, nesses casos, transferir ao iudex a
solução dessa questão prejudicial – de que dependia o exercício da ação – mediante uma sponsio praeiudicialis,
elo evolutivo, nesse particular, entre o sistema das legis actiones e o formular.” (Ibid., p. 11, grifo do autor).
791
TALAMINI, op. cit., p. 199.
792
Jônatas Luiz Moreira de Paula expõe nos seguintes termos as transformações experimentadas pela litis
contestatio no período formulário: “Enquanto que, no período das legis actiones, a litis contestatio fixava com
precisão os termos do litígio, no período per formulas essa função perdeu importância, em vista dos termos do
litígio estarem expressos na fórmula. No período formulário, são efeitos decorrentes da litis contestatio em
relação à actio: a) em certos casos, a exclusão automática e direta sobre a faculdade de instaurar a actio
(potestas agendi), o que revela seu efeito consuntivo, porque a actio se extingue ipso iure. Mas esse efeito não
se produz na actiones in rem, em vista da litis contestatio celebrada contra uma pessoa na primeira ação, não
extinguir a actio contra outra pessoa; b) efeito excepcional à regra do ne bis in idem, com os iudicia quod
império continentur e nos processos de actiones in rem. Em relação ao litígio, a litis contestatio apresentava
os seguintes efeitos: a) definir precisamente os termos fixados, proporcionando a base da sentença. Com isso, a
litis contestatio fixa: a.1) as parte que intervêm no processo e o juiz que decidirá o litígio; a.2) o objeto da
relação litigiosa; a.3) a qualidade das partes que intervêm no processo, definindo seus pólos no processo; b)
269
controvertida, e, sim, a litis contestatio
793
. Ou por consumação, ou por exceção
inserida na fórmula, o segundo processo, tendo por objeto a mesma causa, seria
extinto
794
.
Nesse período,
[...] a coisa julgada era compreendida como o próprio resultado, o
estado jurídico advindo da sentença. A res iudicata, o próprio nome
diz, era a situação em que se encontrava a “coisa” (o bem de vida
objeto do litígio), uma vez julgada. A coisa julgada não era, assim, um
dos efeitos do julgamento, nem qualidade desses efeitos ou algo que o
valha. A coisa julgada era o próprio e único efeito do julgamento.
[...] como não cabiam recursos, a simples existência da sentença
configura esse resultado – de modo que nem se concebia qualquer
distinção entre o iudicatum, seus efeitos e sua estabilidade
795
.
estabilização da relação litigiosa, que a torna intangível ou insensível a qualquer alteração que venha a produzir-
se nos seus elementos até a sentença. Daí que: b.1) o direito invocado pelo demandante, que constitui o objeto da
relação litigiosa, deve pertencer-lhe no momento da litis contestatio, momento em que a sua existência ou
inexistência deve ser apreciada; b.2) nenhum ato posteriormente realizado pode modificar a posição do
demandante e do demandado. Com a celebração da litis contestatio, seguia-se o procedimento in iure,
destinado, principalmente,à instrução da sentença.” (PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. História do Direito
Processual Brasileiro: das origens lusas à escola crítica do processo. Barueri: Manole, 2002, p. 63-4, grifo do
autor).
793
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 200.
794
Eduardo Talamini detalha do seguinte modo essa duplicidade extintiva: “A extinção poderia ocorrer de dois
modos diferentes, a depender do tipo da ação. Nesse ponto, cabe considerar a coexistência de uma duplicidade
de ordenamentos, estabelecida pela lex Iulia iudiciorum privatorum ao legalizar o processo formular: ius civile
e ius honorarium. O primeiro dizia respeito ao iudicium legitimum, que era o processo que cumpria os
pressupostos das anteriores legis actiones (cidadania romana de ambas as partes, desenvolvimento do processo
em Roma e nomeação de um unus iudex romano). O segundo concernia ao iudicium império continens, que,
por não atender a esses requisitos, era regido pelo direito pretoriano. Nas ações in ius (nos iudicia legitima)
atinentes a direitos obrigacionais, a litis contestatio implicava a extinção ipso iure da relação objeto da
controvérsia. O vínculo processual absorvia o direito controvertido. A litis contestatio implicava uma nova
relação entre os litigantes, que se substituía à anterior: eis a novatio necessária. Já nos casos sujeitos ao ius
honorarium, não se punha automaticamente semelhante efeito. Mas razões de conveniência pública e eqüidade
levaram o pretor a passar a conceder uma exceção ao réu, que lhe permitia extinguir o segundo processo que se
formasse com o mesmo objeto e entre as mesmas partes. Era a exceptio in iudicium deducta vel de re iudicata,
que haveria de ser inserida na fórmula do segundo processo. No primeiro caso, -se a extinção consumptiva (ou
“consumativa”) da relação controvertida; no segundo, uma extinção preclusiva mediante o exercício da exceção.
Além disso, e mesmo que se tratasse de um iudicium legitimum, o efeito consumativo ipso iure não ocorria, se
o conflito não versasse sobre uma relação obrigacional. Apenas essas, por sua estrutura jurídica, tinham como ser
automaticamente extintas e absorvidas pela litis contestatio. Já nos direitos de outra natureza, como os reais e os
hereditários, essa absorção seria inviável pela falta de homogeneidade entre a estrutura desses direitos, erga
omnes, e o vínculo bilateral da litis contestatio: p. ex., o titular de um direito real não teria apenas uma única e
específica ação contra um réu, mas tantas quantas fossem os que pretendessem violar o seu direito. Por isso,
também nesses casos o pretor concedida a exceptio rei iudicatae vel in iudicium deductae” (Ibid., p. 200-1,
grifo do autor). Para uma análise histórica e casuística mais detalhada, no mesmo sentido do texto, ver: NEVES,
Celso. Coisa Julgada Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 13-27.
795
TALAMINI, op. cit., p. 200-1, grifo do autor. NEVES, op. cit., p. 28.
270
Na identidade do segundo processo, já era corrente, outrossim,
nesse período, a noção da tríplice identidade: parte, pedido e causa de pedir
796
.
Com a definitiva publicização do processo, ocorrida na fase pós-
clássica, a litis contestatio sai de cena. Os seus efeitos extintivos/novatórios
passam a se concentrar, todos, na sentença
797
.
Apesar da generalização recursal ocorrida nessa fase, continuou
corrente a noção da coisa julgada como sendo a própria sentença, o seu
proferimento, não se a vinculando ao trânsito em julgado
798
. Ela (a coisa
julgada), em seus efeitos tanto preclusivos (função negativa ou impeditiva)
quanto prejudiciais (função positiva)
799
– já bem delineados na época -, ficava
suspensa com a apelação
800
.
796
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 204. Para
maiores detalhes a respeito da identidade de causas nesse período, consulte-se os itens 2.2.5 a 2.2.5.1.2 e 2.2.5.2,
supra.
797
Nesse sentido, Eduardo Talamini aduz que durante a extraordinaria cognitio a litis contestatio contiuou
“[...] existindo como ato ou momento processual, mas já sem nenhuma especial eficácia. Parte dos efeitos que
dela advinham foi transferida para o momento inicial do processo (estabelecimento da litispendência, interrupção
da prescrição, atribuição de caráter litigioso ao bem em disputa etc.). Os demais efeitos, atinentes à extinção e
novação da relação controvertida, foram todos concentrados na res iudicata. Em certo sentido, esse foi o
complemento do processo de paulatina publicização da res iudicata. Sua força deixou de se basear numa relação
obrigacional, passando a fundar-se na atuoridade do Estado” (TALAMINI, op. cit., p. 205-6, grifo do autor). Do
mesmo modo, Jônatas Moreira de Paula esclarece que a litis contestatio, a bem da verdade, sofre, nesse período,
profunda mutação, o que se deu “[...] na medida em que o magistrado assumiu exclusivamente o conhecimento e
a decisão do litígio e a fórmula desapareceu. A litis contestatio perdeu seu caráter contratual, assumindo um
determinado momento processual, averiguado perante a presença das partes junto ao magistrado, com a
exposição da pretensão do autor através da narratio e do réu, com a responsio e a contradictio. É o primeiro
momento processual [em] que se examina o contraditório.” (PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. História do
Direito Processual Brasileiro: das origens lusas à escola crítica do processo. Barueri: Manole, 2002, p. 80, grifo
do autor). Para maiores detalhes sobre os efeitos da litis contestatio no processo extraordinário, consulte-se:
PAULA, op. cit., p. 80-1. Acerca, especificamente, dos novos contornos que a sentença adquire na
extraordinaria cognitio, ver: NEVES, Celso.Coisa Julgada Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p.
27-9.
798
TALAMINI, op. cit., p. 206. Essa assertiva reducionista não impediu que Celso Neves extremasse a
concepção da coisa julgada prevalecente no período clássico e pós clássico, dizendo que: “Enquanto a coisa
julgada, no período clássico é a res, a questão sobre que versa o idicatum e que permite falar-se de uma res de
qua agitur, de uma res in iudicium deducta e, conseqüentemente, de uma res iudicata, no processo extra
ordinem esta última expressão, paralelamente ao conceito novo de sententia [que passa a corresponder ao
exercício da iuridictio, como expressão do exercício da função jurisdicional do Estado, conferida aos
magistrados] – porque deixa de ser um antecedente lógico do iudicatum para constituir-se no próprio ato do
magistrado” (NEVES, op. cit., p. 28, grifo do autor).
799
Acerca da precisa noção dessas funções veja-se o item 2.2.4, supra.
800
TALAMINI, op. cit., p. 206-7.
271
A coisa julgada era tida, segundo a máxima de Ulpiano, como
verdade, a indicar a sua autonomia na constituição da relação jurídica afirmada
na decisão
801
.
Quanto à desconstituição do julgado, durante o período em que
predominou o processo privado, em que a irrecorribilidade era a regra, a
sentença era desconstituída tal qual os negócios jurídicos em geral. Sempre que
impregnada por qualquer vício que a tornava nula, era tida como sentença
nenhuma, passível de desconstituição independentemente de qualquer termo,
tanto em sede de defesa, na execução, como em ação autônoma, mediante a
propositura de nova ação onde se alegasse a inexistência de coisa julgada
802
.
Moacyr Lobo da Costa observa, porém, que
Os diferentes motivos de nulidade da sentença no regime da Ordo,
eram atinentes, tão-somente, aos pressupostos processuais que o
ordenamento exigia para que se pudesse constituir, desenvolver e
concluir um processo com uma sentença válida.
Assinale-se, por outro lado, que, nesse período, os motivos de
nulidade da sentença não diziam respeito, jamais, à intrínseca injustiça
do julgado, à inobservância do direito substancial, ou ao mérito da lide
decidida
803
.
Mesmo no período pós-clássico, em que a recorribilidade se
generalizou e o processo consolidou o seu caráter público, não se afastou essa
possibilidade de desconstituição do julgado, por vias incidentais ou ordinárias
804
.
801
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 207-8.
802
Ibid., p. 208-9. Moacir Lobo da Costa, ensina que, durante o período em que prevaleceu o processo privado
romano, na actio iudicatti, o devedor poderia defender-se incidentalmente, por meio da infitiatio (infitiari =
defender-se), através da qual alegava-se a nulidade, buscando a desconstituição da sentença. Esse era o meio
defensivo pelo qual se buscava a desconstituição do julgado nulo. A par disso, o devedor poderia antecipar-se à
actio iudicatti e, diretamente, valer-se da revocatio in duplum, que era um remédio processual caracterizado
pela iniciativa do devedor (meio ofensivo e não defensivo, portanto) na busca da declaração de nulidade do
julgado, sujeitando-se, contudo, a pena do pagamento em dobro, na hipótese de insucesso. E esses eram,
portanto, os dois meios pelos quais o devedor poderia vir a desconstituir o julgado nulo nesse período histórico
do direito romano (LOBO DA COSTA, Moacir. A revogação da sentença: gênese e genealogia. São Paulo:
Ícone, 1995, p. 14).
803
LOBO DA COSTA, op. cit., p. 13, grifo do autor.
804
De fato, conforme afirma Moacir Lobo da Costa, “O princípio consagrado no direito clássico, de que a
sentença resultante de um julgamento nulo era considerada juridicamente inexistente, todavia, permaneceu
válido [no sistema da cognitio extra-ordinem]. O novo sistema processual não introduziu qualquer modificação
no tocante à inexigibilidade da obrigação de cumprir a condenação imposta por sentença nula” (LOBO DA
COSTA, op. cit., p. 19, grifo nosso).
272
Sistematizou-se, então, que a apelação reservava-se à discussão da injustiça ou
não do julgado, noção essa intimamente vinculada à valoração da prova; já as
demais hipóteses conducentes à inexistência em geral dos negócios jurídicos, e,
num momento já adiantado desse período, à própria ofensa ao direito objetivo
(inovação significativa, já que, como mencionado acima, a simples ofensa ao
direito material, ainda que objetivo, no sistema da Ordo, não tinha o condão de
invalidar a sentença), continuaram implicando na noção de sentença inexistente,
passível de desconstituição por via incidental ou ordinária
805
.
Conquanto no final da época clássica, tal qual consta da
Constituição de Alexandre Severo (222 d.C.), formulara-se o princípio segundo
o qual era nula a sentença proferida contra anterior coisa julgada, sentenciar
contra ela “[...] equivalia a sentenciar contra o próprio direito objetivo”
806
,
inserindo-se, portanto, a ofensa à coisa julgada, a partir daí, no rol das hipóteses
da sentença que era nenhuma.
Num contexto extraordinário e eminentemente subsidiário,
paralelamente à infitiatio e a revocatio in duplum, firmou-se, por criação
pretoriana, para amparar eqüitativamente direitos perfeitamente constituídos
diante do ius civile, a denominada (ação) restitutio in integrum, em que não se
anulava o ato (negócio ou sentença, não importa), porém, se mandava que as
partes fossem restituídas ao estado anterior, como forma de se realizar justiça.
Ao contrário, porém, do que ocorria com a sentença inexistente, aqui, o remédio
se submetia, normalmente, ao prazo ânuo para o seu exercício, contado da
perfectibilização do ato. Não contando, inicialmente, com qualquer eficácia
suspensiva do julgado, até mesmo nesse particular ela se viu investida, ainda
durante o período pós-clássico
807
.
805
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 210-11.
LOBO DA COSTA, Moacir. A revogação da sentença: gênese e genealogia. São Paulo: Ícone, 1995, p. 68-9.
806
TALAMINI, op. cit., p. 211.
807
Ibid., p. 211-4. Mais detalhadamente, Moacir Lobo da Costa, o qual observa que, originariamente, a
restitutio in integrum surgiu como remédio extraordinário para tutelar o interesse daqueles que foram
prejudicados em razão da ausência no interesse ou a serviço de Roma (LOBO DA COSTA, op.cit. p. 25-75).
273
3.2 Direito comum
Superado o período romano, durante o denominado direito
comum, poucas novidades se granjearam às noções romanas, até mesmo pela
particular vinculação que se estabelecia entre um e outro direito.
Eduardo Talamini, porém, destaca que, nesse período, há nítida
distinção entre sentença e coisa julgada, que passa a ser tida como existente
somente após o trânsito em julgado; assenta-se, outrossim, a noção da coisa
julgada como prova, de tal modo a impedir nova prova sobre uma questão já
decidida; do mesmo modo, forja-se a noção da sentença que faz direito, e, por
isso mesmo, se opõem a terceiros naturalmente, como é o caso das ações de
estado da pessoa; não só se manteve a noção da sentença que era nenhuma, do
direito romano, como que as hipóteses a ela sujeitas restaram ampliadas, nela
incluindo-se, até mesmo, situações tidas como injustas ou iníquas,
tradicionalmente submetidas à apelação; e, finalmente, como reação à ampliação
da desconstituição ordinária ou incidental do julgado, o desenvolvimento e
consolidação da distinção ente a sentença inexistente e a inválida, ficando, esta
última hipótese, sujeita a prazo preclusivo, ao passo que a outra não
808
.
Conforme o mesmo autor, só num segundo momento é que ele teria se disseminado como medida de proteção
para casos de justo impedimento em geral e, depois mais, se consolidado como remédio extraordinário assentado
na pura e simples eqüidade, quando “Além do critério abstrato e genérico da aequitas não existia norma para
disciplinar a concessão da restitutio” (LOBO DA COSTA, Moacir. A revogação da sentença: gênese e
genealogia. São Paulo: Ícone, 1995, p. 32, grifo do autor).
808
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 215-220.
274
3.3 A coisa julgada no Brasil
3.3.1 Brasil colônia
No que tange ao Brasil, a noção de coisa julgada foi aplicada,
inicialmente, através das ordenações afonsinas, vigentes em Portugal quando do
descobrimento do território brasileiro
809
.
Marcadamente influenciada pelo direito romano e comum, as
noções que as tais ordenações repercutiam, eram, basicamente aquelas extraídas
dessas fontes, incorporando-se, inclusive, no nosso sistema, a mesma noção
alhures desenvolvida de sentença nenhuma, em que pese impor que a sentença
que dispor contra direito da parte (ou seja, implicava em mera valoração da
prova), não se sujeitar ao regime da nulidade. Só a sentença proferida contra o
direito expresso, além das hipóteses expressamente previstas, eram tidas como
redundantes em sentença nula. Ao rei, contudo, era concedida a possibilidade
de, através de graça especial, revisar qualquer julgado
810
.
Esses contornos gerais não se alteraram com as subseqüentes
ordenações Manuelinas (1514) e Filipinas (1603)
811
.
A forte influência do direito romano sobre o direito reinol pode
ser facilmente compreendido na medida em que as ordenações sempre contaram
com regras que o impunham como direito supletório, assim como eram impostas
como direito supletório (além do Direito Canônico
812
) as glosas de Accursio e de
809
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 242.
810
Ibid., p. 243-9. NEVES, Celso. Coisa Julgada Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 62-8. LOBO
DA COSTA, Moacir. A revogação da sentença: gênese e genealogia. São Paulo: Ícone, 1995, p. 140-63.
811
Ibid., p. 250-63. NEVES, op. cit., p. 68-90. LOBO DA COSTA, op. cit., p. 163-85.
812
NEVES, op. cit., p. 69.
275
Bártolo de Saxoferrato, edificadores, em significativa medida, do direito
comum, erigido tendo por pedra angular o direito romano
813
.
A influência dos Direitos Canônico e Romano sofreu, porém,
importante solução de continuidade com as reformas pombalinas (meados do
séc. XVIII), de notória inspiração iluminista
814
.
No plano legislativo, durante esse período, adquiriu notória
celebridade a denominada Lei da Boa Razão, de 18 de agosto de 1769, cujas
prescrições se deram
[...] no sentido de impor a predominância do direito pátrio e limitar a
eficácia subsidiária do direito romano, e de retirar dos juízes e
tribunais o conhecimento de questões atinentes ao direito canônico,
que ficam reservadas com exclusividade para a jurisdição dos
tribunais eclesiásticos [...]
815
.
Segundo Keila Grinberg, as ações pombalinas se inseriram
dentro de um notório contexto de fortalecimento do Estado nacional português,
onde a uniformização legislativa e interpretativa era o tom e do qual, de certa
forma, já as ordenações foram protagonistas. Nesse sentido, reportando-se aos
estudos de Sidney Chalhoub
816
e Hebe Maria Mattos
817
, dentro do contexto da
luta anti-escravista no Brasil e, mais particularmente, dentro do contexto das
813
Nesse sentido, Celso Neves, referindo-se a Bártolo de Saxoferrato (século XIV), que pertenceu ao ciclo dos
pós-glosadores (Accursio pertence ao ciclo dos glosadores, propriamente ditos) e foi professor da universidade
de Pisa e Perugia e um dos mais renomados comentadores da compilação justiniana, registra que “[...] as suas
glosas e opiniões supriam, depois das de Accursio, as lacunas da legislação Afonsina, Manuelina e Filipina, até a
lei da Boa Razão, de 18 de agosto de 1769” (NEVES, Celso. Coisa Julgada Civil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1971, p. 59).
814
LOBO DA COSTA, Moacir. A revogação da sentença: gênese e genealogia. São Paulo: Ícone, 1995, p.
185-7.
815
Ibid., p. 187. Celso Neves, registrando a importância histórica da Lei da Boa Razão na consolidação do
direito pátrio, observa que: “O direito português é o mesmo da Península Ibérica, desde antes da dominação
romana até a fundação da monarquia quando se inicia, através das leis gerais, a sua unificação, calcada nos
princípios romanos que levariam à adoção das glosas de Accursio e Bártolo como fontes subsidiárias, até que,
através da “opinião comum”, se chegasse, na segunda metade do século XVIII, à “Boa Razão” estabelecida pela
lei pombalina de 18 de agosto de 1789” (NEVES, op. cit., p. 62, grifo do autor).
816
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
817
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil séc.
XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
276
denominadas ações de liberdade, que objetivavam, por meio do Direito,
conceder a liberdade a escravos, Keila Grimberg diz que ambos:
[...] destacaram a forma como advogados e juízes exploraram a
legislação em vigor na época, argumentando que a multiplicidade de
leis existentes foi usada com o objetivo político de favorecer a
libertação de escravos. Neste sentido, foi Chalhoub quem levou mais
longe suas afirmações; citando batalhas jurídicas ocorridas em
algumas ações de liberdade para mostrar como se davam os embates
entre o direito de propriedade e os princípios de liberdade nos foros
judiciários, ele conclui que, dadas as várias possibilidades de
entendimento dos textos legais, cada advogado e cada juiz
interpretavam estas normas de acordo com as suas próprias posições
políticas
818
.
Desdobrando os corolários teórico/jurídicos das conclusões de
Sidney Chalhoub, Keila Grimberg aduz que:
Em termos mais gerais, a questão formulada a partir das conclusões de
Chalhoub tem relação com a própria constituição do direito brasileiro
no século XIX: afinal, será possível extrair proposições sobre as
motivações políticas de um advogado ou juiz a partir de suas condutas
profissionais? A polêmica é antiga, que diz respeito ao caráter de
verdade passível de ser extraído de uma argumentação jurídica, o que
tem a ver, portanto, com a própria concepção de direito e retórica
jurídica. A discussão pode ser remontada às formulações de
Aristóteles sobre a distinção entre o conhecimento apodítico, que
aspira à verdade absoluta através da dedução lógica ou da
experimentação empírica, e o conhecimento dialético-retórico, que
recorre à argumentação para defender o que é plausível e razoável. O
discurso do Direito, de natureza argumentativa, estaria inscrito nesta
segunda concepção, e o papel de seus agentes profissionais, entre eles
os advogados, seria o de deliberar a partir de opiniões razoáveis,
geralmente aceitas a partir de enunciados normativos gerais, mas não
necessariamente de enunciar a verdade por intermédio de seus
arrazoados
819
.
Sidney Chalhoub sustenta que, na época, dadas as fontes
jurídicas predominantes em nosso Direito e dada justamente a concepção
argumentativa do direito então predominante, os operadores do direito atuavam
em um “campo aberto de possibilidade” interpretativa, onde, inclusive,
818
GRIMBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio
Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 234.
819
Ibid., p. 234-5.
277
“interpretações conflitantes de regras gerais de Direito tinham importantes
significados políticos”
820
, quanto mais em causas de cunho/interesse
eminentemente geral e político, como era a questão da abolição da escravatura.
As regras abertas, em suma, que até então predominavam nas fontes
informativas do Direito brasileiro, eram uma porta aberta para a militância
política para os adeptos da liberdade, que, delas, souberam valer
821
.
Tornou-se célebre, por exemplo, o uso que os defensores da
liberdade dos escravos fizeram, durante todo o século XIX, na discussão da
denominada liberdade condicional
822
, da genérica regra do § 4º, do Título 11,
do Livro 4 das Ordenações Afonsinas, a qual, excepcionando a epígrafe do
referido Título, que dispunha “Que ninguém seja constrangido a vender seu
herdamento e coisas, que tiver, contra sua vontade”, dizia que “[...] em favor da
liberdade são muitas coisas outorgadas contra as regras gerais de direito [...]”
823
,
regra essa reproduzida, inclusive, a partir do direito justinianeo
824
.
O fato é que,
O tema da autonomia interpretativa de advogados e magistrados já era
velho até mesmo no século XIX. Havia séculos que ele ocupava as
mentes de juristas em todos os países europeus cuja tradição jurídica
remontava ao direito romano-canônico; mais exatamente, desde que o
chamado direito comum começou a ser substituído por aquelas fontes
que eles consideravam ser verdadeiramente nacionais. A questão era
que o uso do direito romano facultava a advogados e juízes uma
grande variedade de fontes e recursos para serem usados na retórica
jurídica e na tomada de decisões, o que inviabilizava qualquer projeto
de unificação da Justiça. Portanto, reduzir as fontes de direito e adotar
normas para regulamentar a atividade jurídica faziam parte de uma
mesma problemática, que, em Portugal, pode ser remontada ao século
XV, quando da organização das Ordenações Afonsinas e,
820
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 106.
821
GRIMBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio
Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 235.
822
Acerca dos exatos contornos da discussão histórica da liberdade condicional do escravo no Brasil, veja-se:
GRIMBERG, op. cit., passim.
823
ALMEIDA, Candido Mendes de (org.). Ordenações filipinas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.
Edição Fac-similar à de 1870 apud GRIMBERG, op. cit., p. 217 e 367.
824
GRIMBERG, op. cit., p. 214.
278
conseqüentemente, da tentativa de unificação da Justiça e da
administração do Estado português
825
.
E, de fato, se nos atentarmos ao texto do Título 64, Livro 3, das
Ordenações Filipinas, veremos que ele é expresso ao ditar a supletividade tanto
do Direito Canônico - somente quando se tratar, inclusive, de conduta
pecaminosa -, quanto das Leis Imperiais (Direito Romano) e das Glosas. O caso,
em suma, deveria ser julgado, em linha de princípio, pela “[...] Lei de nossos
Reinos, ou estilo de nossa Corte, ou costume em os ditos Reinos, ou em cada
uma parte deles longamente usado, e tal que por Direitos se deva guardar”
826
.
Como diz Keila Grinberg, “Na prática, porém, o que acontecia
era uma inversão dos critérios: a primazia era do direito romano, e o nacional
acabava servindo como subsidiário”
827
.
A concepção racionalista que desembocou no largo processo de
codificação do direito europeu durante o século XIX, cujo marco foi, sem
dúvida, o Código Civil Francês de 1804, tinha como pedra angular a concepção
de que a lei era o repositório do direito; a sua criação era obra exclusiva do
legislador; e a sua interpretação, quando necessária (o que só se admitia como
exceção), deveria se cingir a um raciocínio meramente lógico
828
. Foi exatamente
a essa concepção que a Lei da Boa Razão rendeu tributo, buscando não só
centralizar a produção do Direito, concentrando-a na lei, como que, igualmente,
restringir a sua interpretação, eliminando, fundamentalmente, a doutrina como
fonte do Direito
829
.
Como pondera Keila Grimberg,
Esta concepção, no entanto, levou muitas décadas para se estabelecer
no meio jurídico; até pelo menos a metade do século XIX, as obras de
825
GRIMBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio
Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 235-6.
826
ALMEIDA, Candido Mendes de (org.). Ordenações filipinas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.
Edição Fac-similar à de 1870 apud GRIMBERG, op.cit., p. 371.
827
GRIMBERG, op. cit., p. 236.
828
Ibid., p. 239.
829
Ibid., p. 237.
279
doutrina eram escritas por juristas ainda imbuídos do uso tradicional
do direito romano, que, embora concordassem com a subordinação ao
direito nacional, não admitiam o “princípio da exclusividade da lei
como fonte de Direito; para eles, a lei retirava sua força do Direito, e
não o Direito da lei.”. Estes pensadores, fundadores da chamada
“escola histórica”, principalmente na Alemanha, defendiam que era
importante interpretar as codificações civis à luz do direito romano,
como fez Savigny, que em 1814 publicou a obra Über den Beruf
unserer Zeit für Gesetzgebund und Rechtwissenschaft (“Sobre a
tendência do nosso tempo para a legislação e a ciência doDireito”), na
qual combatia a tendência que tinha preconizado a necessidade de
codificação do direito civil alemão
830
.
O fato é que,
Na segunda metade do século XVIII, nada disso estava de acordo com
as pretensões políticas do Estado português, nem com as discussões
jurídicas travadas no momento em toda a Europa. Na frança pós-
830
GRIMBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio
Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 239-40, grifo do autor. A passagem citada pela
autora na transcrição é de: GILISSEN, John, Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1988, p. 514.
Para demonstrar o acerto dessa sua assertiva, Keila Grimberg cita como exemplo o
então proeminente jurista Correia Telles, o qual, mesmo após as profundas reformas introduzidas no ensino
jurídico português em 1772, reforma essa tendente a firmar no seio jurídico as teses racionalistas/positivistas do
direito que então se projetavam sobre as américas em geral a partir do continente Europeu, obteve, em 1815,
autorização da Mesa do Desembargo do Paço para publicar a sua tradução da clássica obra de J. Domat (1625-
1696), intitulada “Teoria da interpretação das leis”. Sendo ele (J. Domat) um notório jusnaturalista, professava
declaradamente a supremacia da justiça univesal e da eqüidade sobre quaisquer outros elementos na
interpretação da lei, como deixa ver o seguinte trecho: "§ 1. É absolutamente preciso interpretar as leis em um
dos dois casos: 1º quando na Lei se encontra alguma obscuridade, alguma ambigüidade, ou falta de expressão:
quando o sentido da Lei é claro nos termos, mas conduzir-nos-ia a conseqüências falsas, e dicisões injustas (...).
A evidência da injustiça, que deste sentido aparente resultaria, obriga-nos então a descobrir pela interpretração
não o que a lei diz, mas o que a lei quer, obriga-nos também a julgar pela sua intenção e limites, que o seu
sentido deve ter. (...) § 3º (...) a eqüidade natural (que é o espírito univesal da justiça) forma todas as Leis, e
assina a cada uma seu próprio uso: o conhecimento dessa eqüidade, e a vista geral deste espírito das Leis é pois o
primeiro funfamento do uso, e da interpretação de qualquer Lei em particular. § 6º Portanto para fazer bom uso
da eqüidade na interpretação das Leis não basta prescindir o que a luz da razão descobre razoável na expressão,
ou extensão, que qualquer Lei pode ter; mas é preciso a este sentimento juntar ainda uma vista geral da eqüidade
universal, para poder discernir se nos casos ocorrentes algumas outras Leis demandam ou não uma justiça
diferente, a fim de não aplicar alguma fora de seus limites, ou fato a que ela não quadra. Sendo em fins as Leis
naturais hão de conciliar-se pela extensão e limites da sua verdade: sendo positivas há de nelas acomodar-se a
eqüidade à intenção do Legislador.” (DOMAT, J. Theoria da Interpretação das Leis. Tradução de José
Homem Correia Telles, in Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, vol. LV, 1979, p. 139-
41 apud GRIMBERG, op. cit., p. 240). Numa época em que as publicações de escritos tinham que contar com
expressa autorização governamental, é, de fato, peculiar a autorização que José Homem Correia Telles obteve
para a publicação da sua tradução da obra de J. Domat, na medida em que o seu conteúdo atentava
flagrantemente com as refeormas introduzidas no ensino do direito pelo Estado Português a partir das reformas
pombalinas. O fato pode, realmente, ser um indicativo sério do quanto a perpectiva jusnaturalista e
argumentativa do direito, apesar de todos os esforços oficiais, ainda impregnava o senso teórico comum dos
juristas da época, para nos valermos do aparato conceitual de Lênio Luiz Streck (STRECK, Lenio Luiz.
Tribunal do Júri: símbolos e rituais. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, passim).
280
revolucionária, Robespierre defendia a abolição da palavra
“jurisprudência” da língua francesa [...]
831
,
afinal de contas, dizia ele, “[...] num Estado que tem uma Constituição, uma
legislação, a jurisprudência dos tribunais não é outra coisa senão a lei”
832
. A
criação da Corte de Cassação francesa, ocorrida em 1790, foi determinada,
segundo Keila Grimberg, por esse espírito e não teve outra finalidade que não
“[...] cassar toda decisão judicial que tivesse feito uma interpretação errada, não-
autorizada, da lei”
833
.
Por essas mesmas razões, diz Keila Grimberg,
[...] os arquitetos da reforma pombalina em Portugal entendiam ser
fundamental delimitar ao máximo o corpo de leis que servia como
base para tomada de decisões, e também estabelecer em que consistia
a atividade de interpretação
834
.
Segundo Antonio Manuel Hespanha, o controle na atividade
interpretativa então se impunha na exata medida em que
[...] aquilo que os juristas entendem ser o direito vigente, objeto do seu
trabalho construtivo, está longe de coincidir com aquilo que o poder
político autoritariamente lhes definira como tal
835
.
Em suma,
[...] a questão do reinado de D. José, tendo à frente o Marquês de
Pombal era fortaleceer o Estado nacional, por intermédio do poder
absoluto, da centralização administrativa, da preocupação com a
educação laica e da expulsão dos jesuítas, tidos como “inimigos da
independência nacional, contra a coroa, contra a fé e contra a
verdadeira cultura”. A disputa contra os jesuítas englobava várias
frentes, entre elas o estabelecimento de censura e fiscalização oficiais
de publicações nacionais e estrangeiras, as reformas educaicionais e
jurídicas. Havia excesso de legislação avulsa, o que aumentava as
possibilidades de interpretações díspares, e carência de respostas
legais a situações concretas. Era premente, portanto, uma reforma, não
831
GRIMBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio
Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 236.
832
GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 505
apud GRIMBERG, op. cit., p. 236.
833
GRIMBERG, op. cit., p. 236.
834
Id., loc. cit.
835
HESPANHA, Antonio Manuel. Panorama histórico da cultura jurídica européia. Lisboa: Publicações
Europa-América, 1997, p. 73 apud GRIMBERG, op. cit., p. 237.
281
só do ensino, mas também de toda a estrutura jurídica. Era preciso
limitar as fontes utilizadas por juízes, na tentativa de eliminar a
doutrina e limitar a interpretação, e condicionar a vigência do direito
romano à sua conformidade com a boa razão. A utilização dos Index
romanos passou a ser vista como um atentado ao projeto do Estado
português
836
.
As razões explicitadas por Dom José quando da edição da sua
carta de lei datada de 3 de novembro de 1768, que reformulou a concessão das
chamadas revistas, restringindo-as, deixam evidente o empenho com que o
Estado português buscou limitar as fontes do direito e as possibilidades
interpretativas, assim como são bastante sugestivas das motivações que
determinaram essa limitação. O texto é o seguinte:
Dom José por Graça de Deus Rei de Portugal, e dos Algarves,
d’aquém, e d’além Mar, em África Senhor de Guiné, e da Conquista,
Navegação, Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia, e da Índia etc.
Faço saber aos que esta Carta de Lei virem, que em Consulta da Mesa
do Desembargo do Paço Me foi presente, que sendo justa, saudável, e
dirigida ao sossego público (estabelecida na autoridade da coisa
julgada) a Ordenação do Livro terceiro,Título noventa e cinco, que
proibiu nesse Reino as Revistas fora dos casos de manifesta nulidade,
ou inustiça notória, tem grassado neste últimos tempos o abuso de se
escrever, e julgar por alguns Praxistas e Informantes, que basta
qualquer injustiça; e por outros, que basta haver-se julgado por
opiniões; e doutrinas contrárias às que eles teriam seguido se
houvessem proferido as Sentenças, de que se recorre, para as
rescindirem; fazendo se valer, para se sustentar o referido abuso, as
doutrinas de Jurisonsultos estrangeiros, sem atenção à extraordinária
diversidade que há entre a ordem do processo, a circunspecta forma de
julgar neste Reino as coisas ordinárias, em que solidamente se fundou
a sobredita Ordenação, para só permitir as Revistas por via da graça
naqueles referidos dois casos, e entre as diversas constituições, e
forma sumária, e verbal dos processos dos Paízes, em que escreveram
os sobreditos Jurisconsultos estrangeiros, onde as Revistas, ou
segundas Suplicações são favoráveis, e tão ordinárias como as
Apelações; quando nestes Reinos, muito pelo contrário, são as
mesmas Revistas tão exorbitantes, odiosas, e extraordinárias, que
somente se podem suplicar por via de especial graça; a qual seria
inadmissível nos termos do referido abuso; sendo que as Sentenças,
que não contém nulidade, ou injustiça notória, passam em coisa
julgada, e se não podem tornar a meter em disputa contra a disposição
836
GRIMBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio
Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 237, grifo do autor. A passagem citada pela
autora na transcrição é de: MACHADO, Lourival Gomes. Tomás Antônio Gonzaga e o direito natural. São
Paulo: Martins Fontes, 1968, p. 81.
282
da mesma Lei no Livro terceiro, Título setenta e cinco, que declara
insanavelmente nulas todas as Sentenças proferidas contra outras, que
passaram em coisa julgada; devendo concordar-se as Minhas Leis,
como concebidas com o mesmo espírito de Justiça e não implicar com
o abuso de umas delas, o que se acha por outras decidido; dando-se
causa com esta desordem a se multiplicarem, e perpetuarem discórdias
nas famílias, perplexidade, e perturbação no domínio dos bens,
quando os possuidores deles, aos quais são julgados definitivamente
depois de dilatados anos de contendas judiciais, se consideram mais
seguros à Sombra das Sentenças.
Querendo Eu obviar aos sobreditos abusos: E conformando-Me com a
dita Consulta, e com os pareceres de outros muitos Ministros do Meu
Conselho, e Desembargo, muitos doutos, tementes a Deus, e zelosos
do serviço de Deus, e Meu, que mandei ouvir sobre esta matéria: Sou
Servido ordenar o seguinte [...]
837
.
Do mesmo tom são as justificativas repercutidas quando da
edição da Lei da Boa Razão:
Declarando aautoridade do Direito Romano, e Canônico, Assentos,
Estilos e Costumes
D. José por graça de Deus, Rei de Portugal, e dos Algarves, d’aquém,
e d’além Mar em África, Senhor da Guiné, e da Conquista,
Navegação, Commércio da Ethiopia. Arábia, Persia e da India etc.
Faço saber aos que esta minha Carta de Lei virem, que por quanto
depois de muitos anos temsido umdos mais importantes objetos da
atenção, e do cuidado de todas as Nações polidas da Europa o de
precaverem com sábias providências as interpretações abusivas, que
ofendem a magestade das Leis; desautorizam a reputação dos
Magistrados; e tem perplexa a justiça dos litigantes; de sorte que no
direito, e domínio dos bens dos Vassalos não possa haver aquela
provável certeza, que só pode conservar entre eles o público sossego:
Considerando eua a obrigação, que tenho de procurar aos Povos, que a
Divina Onipotência por debaixo da minha proteção, toda a possível
segurança nas suas propriedades; estabelecendo com ela a união, e paz
entre as famílias, de modo, que umas não inquietem as outras com as
injustas demandas, a que muitas vezes são animadas por prívolos
pretextos tirados das extravagantes sutilezas, com que aqueles, que as
aconselham, e promovem, querem temerariamente entender as Leis
mais claras, e menos suscetíveis de inteligências, que ordinariamente
são opostas ao espírito delas, e que nelas se acha literalmente
significado por palavras exclusivas de tão sediciosas, e prejudiciais
cavilações:
Tendo ouvidosobre este grave, e delicado negócio um grande número
de Ministrosde meu Conselho, e Desembargo, de muito timorata
consciência, muito selosos do serviço de Deus, e meu; e muito doutos,
837
REINO DE PORTUGAL. Carta de lei de D. José, de 3 de novembro de 1768 apud LOBO DA COSTA,
Moacir. A revogação da sentença: gênese e genealogia. São Paulo: Ícone, 1995, p. 189, ortografia atualizada
por nós.
283
e versados nas ciências dos Direitos Publico, e Diplomatico, de que
depende a boa, e sã Legislatura; da Leis Patrias, dos louváveis
costumes destes Reinos; das Leis dos antigos Romanos vulgamente
chamadas Direito Civil; e de todas as Nações iluminadas, que hoje se
conhecem; foi por todos nas repetidas Sessões (que se tiveram sobre a
materia) uniformemente assentado, que o meio mais próprio, e eficaz
para se ocorrer às sobreditas interpretações abusivas, é qaue o Senhor
Rei D. Manoel de gloriosa memória (reputando justamente as mesmas
interpretações por crimes graves) deixou estabelecido pelo liv. 5 tit 58
par 1 de sua Ord.; e que dela se transportou para o liv 1 tit 4 par 1, tit 5
par 5, da Compilação das Ordenações publicada no ano de 1602; e
para o par 8 da Reformação do ano de 1603; se eu fosse servido
excitar e eficazmente a disposição dos ditos parágrafos, de sorte que
constituam impreteríveis regras para os Julgadores; e fosse declará-
los, e modificá-los de modo que mais não possam cair em
esquecimento, nem suspender-se, alterar-se ou reduzir-se a termos de
questão a observância deles nos casos ocorrentes. Quero, mando, e é
da minha vontade, que daqui em diante se observe aos ditos respeitos
o seguinte [...].
838
Dentro desse contexto político, a despeito da coisa julgada não
ter sofrido tratamento específico diferenciado daquele com o qual até então
contava, ela teve, ainda que indiretamente, a sua característica primeira – a
imutabilidade – reforçada.
Com o firme propósito de dar maior estabilidade jurídica e, de
certa forma, de orientar (digirir) a solução dos casos concretos a partir de
conteúdos jurídicos (na verdade, políticos, apenas que alegorizados
juridicamente) específicos, eleitos como sendo os de correta razão, o Estado
português, resumidamente, agiu em três frentes. Primeiramente, buscou reduzir
as fontes do direito, elegendo como primárias as Leis do Reino e eliminando a
doutrina como tal (como fonte)
839
, a par de, como dito acima, situar o direito
838
REINO DE PORTUGAL. Lei de 18 de Agosto de 1769 (Lei da Boa Razão) apud GRIMBERG, Keila. O
fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, pp. 373-4, grifo do autor; ortografia atualizada pelo autor.
839
Keila Grimberg, diz textualemente que na tentativa de car cobro à diversidade de interpretações jurídicas,
“[...] a primeira proposta para a questão da interpretação foi a eliminação completa da doutrina. O juiz não
poderia interpretar, apenas aplicar a lei em seu sentido literal; se, por acaso esta interpretação literal fosse contra
a eqüidade, o rei determinaria seu melhor uso. Esta utilização da legislação, porém, nunca deveria criar
jurisprudência: a cada caso semelhante, novo apelo ao soberano deveria ser feito” (GRIMBERG, op. cit., p. 237-
8).
284
romano como subsidiário e contingenciar o canônico ao estrito âmbito dos
tribunais eclesiásticos.
Num segundo plano, tratou de centralizar na Casa de Suplicação
de Lisboa a produção de assentos passíveis de utilização pelas cortes do reino,
buscando-se, com isso, tornar prática a uniformização da aplicação do direito,
reduzindo-se, em última instância, a questão da interpretação do direito à sua
simples uniformização
840
.
Por último, aboliu-se, pela lei de 3 de novembro de 1768
(portanto já antes da edição da Lei da Boa Razão), a denominada Revista de
Justiça, que até então concorria com a Revista de Graça Especial. Com isso,
[...] a sentença proferida com fundamento em falsa prova, testemunhal
ou documental, ou que fosse fruto de suborno do juiz, só poderia ser
revogada pela via ordinária, per viam nullitatis, pois não podia mais
ser objeto de revisão
841
.
A partir desse marco, portanto,
A concorrência dos dois remédios, previstos nas Ordenações [os das
Revistas de Justiça e de Graça Especial] [...] desapareceu, só
subsistindo o meio ordinário, que, em substância, era a antiga querela
840
Keila Grimberg esclarece, nesse sentido, que: “A limitação maior, no entanto, foi a da elaboração de leis.
Agora, apenas a Casa de Suplicação de Lisboa – e não mais os Tribunais da Relação do Porto, de Goa, da Bahia
e do Rio de Janeiro – poderia proferir assentos passíveis de utilização por outras cortes. Assim, a questão da
interpretação, naquele momento, ficou reduzida ao esforço da uniformização das sentenças” (GRIMBERG,
Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 238). Não que os assentos da Casa de Suplicação criassem lei. Muito
pelo contrário. A Lei da Boa Razão, ao confirmar a ordenação (Filipina) livro 1, título 5, § 5, dixava claro que os
seus (da Casa de Suplicação) “[...] assentos não deveriam mudar o sentido da lei, apenas interpretá-la de acordo
com a legislação existente, não constituindo, portanto, direito novo.” (Ibid., p. 248). Não é, portanto, mera
coincidência que em tempos de globalização, os seus paladinos venham a advogar, no Brasil, a dita súmula
vinculante, sob o argumento de que a diversidade interpretativa no âmbito do Poder Judiciário, atenta contra a
planificação econômica e a segurança nos investimentos e, em última instância, contra o desenvolvimento
econôpmico do País, a partir da sua integração ao fluxo mundial de capitais, que exige, acima de tudo,
previsibilidade, buscada, justamente a partir da centralização e do engessamento interpretativo do direito.
Também não é por mero acaso que esses fins últimos, de natureza nitidamente políticos/econômicos tenham
sido travestidos, assim como no passado, de uma roupagem técnico/jurídica para se justificar: a celeridade da
justiça, etc. O direito, afinal, sempre teve dificuldade de confessar que nada mais é do que uma técnica social que
não se presta a si mesmo, e, sim, a fins que lhes são externos, fins esses que, numa sociedade divididade em
classes, sempre serão inconfessáveis, já que o direito se legitima e sempre se legitimou a partir da premissa de
que é uma técnica predisposta à realização do bem comum.
841
LOBO DA COSTA, Moacir. A revogação da sentença: gênese e genealogia. São Paulo: Ícone, 1995, p. 200,
grifo do autor.
285
nullitatis do direito intermédio, herdada da Lei das Sete
Partidas[...]
842
.
Conforme esclarece Moacyr Lobo da Costa, a Revista de Justiça,
a despeito de tratar-se de um recurso que era interposto perante o Desembargo
do Paço, não só era processada em autos apartados, como que também
comportava ampla instrução probatória, “[...] tendo a natureza de recurso sob a
forma de ação ordinária com a finalidade de promover a revisão da sentença
impugnada [...]”
843
. Não se submetia, porém, a qualquer prazo preclusivo, ao
contrário do que ocorria com a Revista de Graça Especial, cujo prazo para
interposição era de dois meses
844
(salvo quando interposta contra sentença
proferida pela Relação da Índia, quando o prazo era de dois anos
845
). Quanto à
querela nullitatis, ela, igualmente,
[...] era destinada a anular a sentença em idêntica situação e pelos
mesmos motivos, [sendo que] o processo adotado pela praxe era
formalmente o mesmo da Revista de Justiça, embora sem previsão
legal específica
846
.
Percebe-se, desse modo, que a querela nullitatis, era um
procedimento concorrente em relação à Revista de Justiça, cuja existência,
contudo, se justificava como remédio destinado à revogação da sentença
proferida em juízo inferior
847
e situações outras que, igualmente, não admitiam a
revista por restrições de alçada ou tripla confirmação do julgado, nos casos
expressamente previstos
848
.
Com a supressão da Revista de Justiça, das duas revistas até
então existentes, a partir da Lei de 3 de novembro de 1768, remanesceu apenas a
de Graça Especial, cuja interposição, como dito acima, não só estava submetida
842
LOBO DA COSTA, Moacir. A revogação da sentença: gênese e genealogia. São Paulo: Ícone, 1995, p. 200,
grifo do autor.
843
Ibid., p. 201.
844
Ibid., p. 182.
845
Ibid., p. 176.
846
Ibid., p. 201.
847
Ibid., p. 179.
848
Ibid., p. 177.
286
a prazos, como que, também, aos casos expressos de nulidade, previstos no
Livro terceiro das Ordenações Filipinas, Títulos setenta e cinco e noventa e
cinco, ou de notória injustiça, locução essa que passou a ser compreendida
como a senteça que julga contra direito expresso, ou seja, contra o
[...] Direito Pátrio dos Meus Reinos, e não as Leis Imperiais, ou
Direito Civil, de que resultaria a mesma perplexidade do domínio, e
incerteza do direito das partes, que é da Minha Paternal Intenção
evitar quando possível for: E isto, não obstante a outra Ordenação do
Livro terceiro, Título setenta e quatro
849
.
Fora disso, a revogação da sentença só poderia se dar através da
denominada Revista de Graça Especialíssima, reservada pela Lei de 3 de
novembro de 1768 em favor de El-Rei para os casos de intempestividade da
Revista de Graça Especial, cuja admissibilidade estava sujeita ao seu esclusivo
talente
850
.
A supressão da Revista de Justiça, segundo Moacyr Lobo da
Costa, se deu com a “[...] manifesta determinação de reduzir a revição das
sentenças à condição de remédio extraordinário dependente da graça do rei”
851
, o
que nos autoriza a concluir, sem sombra de dúvidas, que a supressão desse
remédio, conjugada com a limitação das fontes do direito e a uniformização da
interpretação do direito a partir das técnicas de centralização e de vinculação das
decisões, limitou sobremaneira a possibilidade de revisão da sentença.
Com isso, deu-se um grande passo para, conforme apontado por
Moacyr Lobo da Costa, a extraordinarização da revogação da sentença, onde o
recurso da Revista de Graça Especial adquire as características do que hoje
conhecemos como Recurso Especial, afastando-se quase que por completo a
possibilidade de se desncontituir a sentença transitada em julgado pela via
849
REINO DE PORTUGAL. Carta de lei de D. José, de 3 de novembro de 1768 apud LOBO DA COSTA,
Moacir. A revogação da sentença: gênese e genealogia. São Paulo: Ícone, 1995, p. 190, ortografia atualizada
por nós.
850
LOBO DA COSTA, op. cit, p. 176.
851
Ibid., p. 201.
287
recursal (dizemos quase na medida em que a Revista de Graça Especialíssima,
ainda contitunou, em caráter excepcionalíssimo, como o seu próprio nome
indica, a permitir a desconstituição do julgado transitado em julgado pela via
recursal).
3.3.2 Brasil imperial
A técnica (e a ideologia que a inspirou) introduzida pela Lei de 3
de novembro de 1768 e confirmada pela Lei da Boa Razão, no sentido de
restringir a desconstituição da sentença pela via recursal aos casos de formal
contradição à lei, dela excluindo qualquer hipótese de instrução, se impôs como
tendência legislativa que, pode-se dizer, consagrou o sitema adotado,
posteriormente, pela nossa codificação processual civil de 1939 e a vigente.
Nesse sentido, é de se observar que a Independência não trouxe
significativa modificação ao sistema processual até então vigente, na medida em
que a Assembléia Constituinte e Legislativa do Império, aprovando uma lei que,
na prática, visava a consolidar a legislação que continuaria vigente após o ato de
independência, e que veio a ser promulgada em 20 de outubro de 1823 pelo
imperador, manteve a regência do processo civil pelo Livro 3º das Ordenações
Filipinas, além das leis extravagantes produzidas posteriormente, entre as quais
cita-se a Lei de 3 de novembro de 1768 e a Lei da Boa Razão
852
.
Com a Carta Constitucional de 1824, previu-se a criação do
Supremo Tribunal de Justiça, com sede na capital do Império, a quem passaria a
competir, entre outras coisas, o julgamento dos recursos de Revistas
853
.
852
LOBO DA COSTA, Moacir. A revogação da sentença: gênese e genealogia. São Paulo: Ícone, 1995, p.
238.
853
Ibid., p. 238.
288
Seguindo a orientação constitucional, de fato, a nova Corte foi
criada em 18 de novembro de 1828, passando, as revistas, a partir de então, a
serem por ela julgados
854
.
Os casos em que a revista teria cabimento, segundo o contido no
artigo 6º da lei que criou a nova corte continuaram a ser, rigorosamente, os
mesmos que a reforma pombalina previu, ou seja, nos “[...] casos de manifesta
nulidade ou injustiça notória, nas sentenças proferidas por todos os Juízos em
última instância”
855
.
A sua interposição permaneceu subordinada a prazo, no caso, de
10 (dez) dias, segundo, também, o modelo inaugural pombalino
856
.
Por decreto editado em 9 de novembro de 1830, o procedimento
a ser observado na distribuição, admissibilidade e julgamento do recurso de
revista foi devidamente disciplinado, juntamente com o recurso de apelação
857
.
Nele ficou consagrado que, salvo as decisões proferidas pelo Senado e aquelas
oriundas do próprio Supremo Tribunal, todas as demais decisões proferidas em
última instância estariam sujeitas ao Recurso de revista, inclusive aquelas
proferidas pelos tribunais eclesiásiticos (salvo se as matérias fossem de natureza
estritamente espiritual), hipótese em que, inclusive, não se aplicava o prazo
preclusivo para a sua interposição
858
. “Era”, segundo observa Moacyr Lobo da
Costa, “a consagração da supremacia da jursidição do Supremo Tribunal de
Justiça sobre os juízos privilegiados, inclusive os ecleciásticos”
859
.
Quanto aos dois casos de manifesta nulidade, ou injustiça
854
LOBO DA COSTA, Moacir. A revogação da sentença: gênese e genealogia. São Paulo: Ícone, 1995, p.
238. Cabe ressaltar, porém, que, segundo o autor, pela sistemática introduzida, não era, propriamente, o Supremo
Tribunal de Jusitça quem procedia o novo julgamento de mérito da causa. A ele competia, tão-somente, decidir
sobre a “[...] procedência, ou não do recurso de revista”. O novo julgamento do mérito da causa, admitida a
revista, tinha “[...] lugar na Relação revisora para a qual for enviado o processo.” (Ibid., p. 245-6).
855
Id., loc. cit.
856
Id., loc. cit.
857
Ibid., p. 239.
858
Id. loc. cit.
859
Id. loc. cit.
289
notória, em que a revista teria cabimento, o decreto não deixou
dúvidas: eles só seriam reputados verificados nos termos da carta de lei de 3 de
novembro de 1768, §§ 2º e 3º
860
.
Consagrando-se, porém, o novo princípio da legalidade em que
passava a se fundar a monarquia, agora de matiz constitucinal, nas hipóteses de
fundada dúvida sobre a adminissibilidade ou não da revista, o Supremo Tribunal
de Justiça deveria submeter a apreciação da questão ao Poder Legislativo,
através do governo, ficando, assim, substituída pelo legislativo a figura do rei, a
quem competia, anteriormente, solucionar o impasse
861
. Desse modo,
O traço específico, no direito lusitano, que atribuía à revista o caráter
de um recurso extraordinário, em confronto com os recursos
ordinários, era sua índole graciosa, de súplica que ficava na
dependência da graça do rei.
O sistema instituído na Constituição do Império e na lei que criou o
Supremo Tribunal de Justiça foi outro, atribuindo à revista a condição
de recurso jurídico de base legal.
Ocorreu a substituição da graça do rei pelo poder da lei
862
.
Dissemos acima que, com as reformas pombalinas, a Casa de
Suplicação de Lisboa passou a deter, literalmente, a faculdade de limitar a
jurisprudência a partir dos seus assentos, que, na prática, passaram a ter força de
lei (ou vinculante, para se estabelecer uma ponte com a atual terminologia que
adjetiva esse tipo de técnica).
A constitução imperial, contudo, ao prever a criação do Supremo
Tribunal de Justiça e a ele afetar o julgamento das revistas, não previu regra
semelhante
863
, desencadeando-se, desde então, a celeuma em torno da eficácia
vinculante das decisões da nova Corte em sede de revista.
860
LOBO DA COSTA, Moacir. A revogação da sentença: gênese e genealogia. São Paulo: Ícone, 1995, p. 239.
861
Ibid., p. 239.
862
Ibid., p. 249.
863
GRIMBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio
Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 248.
290
O movimento político conservador que assumiu o governo tão-
logo declarada a maioridade de D. Pedro II, rapidademente se lançou contra as
reformas liberais que vinham sendo introduzidas no País, inspiradas, inclusive,
pela Carta de 1824
864
.
O primeiro grande alvo legislativo dos conservadores foi o
Código de Processo Criminal de 1832 e a Disposição Provisória que dispunha
sobre a administração da Jusiça Civil
865
.
O ano de 1841 foi especialmente marcado pelo movimento
conservador, o qual não só fez aprovar uma reforma do Código de Processo
Criminal, ampliando os poderes investigatórios do executivo
866
, como que,
também, apresentou
“[...] um projeto de lei [em que se] tentava estabelecer que o Supremo
Tribunal de Justiça fosse autorizado a dar assentos com força de lei,
isto é, a estabelecer que suas resoluções fossem consideradas como
leis pelos juízes dos tribunais de primeira e segunda instância de todo
o Império, como acontecia com os assentos da antiga Casa de
Suplicação”
867
.
É a velha lógica pombalina: centralizar para controlar.
A tentativa do governo em restabelecer a interpretação
vinculante, contudo, não alcançou êxito, ao menos não num primeiro momento
e, muito menos nos moldes pretendidos. Não se dando por vencido, o governo
continuou a perseverar na matéria, até que, na condição de Ministro da Justiça,
Nabuco de Araújo, em 7 de novembro de 1856 chegou ao extremo de
confeccionar uma circular que facultava ao governo “[...] o exercício de
interpretação em alguns casos”, com o quê, segundo Keila Grimberg, “[...] o
864
LOBO DA COSTA, Moacir. A revogação da sentença: gênese e genealogia. São Paulo: Ícone, 1995, p. 244.
865
Ibid., p. 239.
865
Ibid., p. 244.
866
Id., loc. cit.
867
GRIMBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio
Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 248.
291
processo de cerceamento da interpretação tomou grande impulso”
868
. O fato é,
porém, que a força vinculante que anteriormente se emprastava às decisões da
Casa de Suplicação não voltou a ser consagrada, malgrado o empenho do
governo.
Em 1871, nova reforma judiciária foi procedida, incumbindo-se,
na oportunidade, o concelheiro Antonio Joaquim Ribas, proceder a reunião e
consolidação das leis processuais civis vigentes no país
869
.
O trabalho desenvolvido, que passou a ser conhecido como
Consolidação Ribas, foi aprovada pelo Poder Executivo em dezembro de
1876
870
.
Nela, o recurso de revista voltou a ser tratado, sem qualquer
alteração em relação ao regime anterior. Nos termos do art. 1611, a revista
continuou a er concedida “[...] nas causas cíveis das sentenças proferidas em
todos os juízos em última instância quando se verificar um dos dois seguintes
casos: manifesta nulidade ou injustiça notória”
871
.
Quanto à presença dos dois pressupostos (nulidade manifesta ou
notória injustiça), a Consolidação, em seu art. 1613, ditava que eles “[...] só se
julgarão verificados nos precisos termos da carta de lei de 3 de novembro de
1768”
872
, notabilizando-se, uma vez mais, a força dos predicados pombalinos.
3.3.3 Brasil república
A Consolidação Ribas vigeu até 1890, quando, pelo decreto nº
763, de 19 de setembro, já consagrada a República, o processo das causas cíveis
868
GRIMBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio
Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 249-50.
869
LOBO DA COSTA, Moacir. A revogação da sentença: gênese e genealogia. São Paulo: Ícone, 1995, p. 244.
870
Ibid., p. 245.
871
Id., loc. cit.
872
Id., loc. cit.
292
passou a ser regulado pelo regulamento nº 737, de 25 de novembro de 1850,
aplicável até então as causas comerciais
873
.
Com isso, conforme apontado por Moacyr Lobo da Costa, a
República operou “[...] a reunificação do sistema processual, que se havia
bipartido, no Império, em processo civil e processo comercial.”
874
No que tange ao recurso de revista, a nova regulamentação não
trouxe inovação alguma, ao menos quanto à competência para o seu julgamento
e o procedimento a ser observado. É que o art. 666 do Regulamento contentava-
se em estabelecer que “[...] a interposição da revista nas causas comerciais, a
remessa dos autos e o julgamento do recurso no Supremo Tribunal serão
julgados pelo mesmo modo que nas causas cíveis”
875
. Considerando que o
Regulamento era de 1850, isso implicava em dizer que a revista continuava
regulada, nesses particulares, pela lei de 18 de novembro de 1828, que criou o
Supremo Tribunal de Justiça e pelo decreto editado em 9 de novembro de 1830,
que disciplinou o processamento da revista.
As hipóteses em que o recurso teria cabimento, contudo, sofreu
significativa modificação:
A tradicional dicotomia herdada do direito lusitano – nulidade
manifesta ou injustiça notória -, que autorizava a interposição do
recurso de revista nas causas cíveis, foi, então, superada nas causas
comerciais.
O artigo 667 [do Regulamento 737, de 1850] prescreve,
terminantemente, que o “Supremo Tribunal de Justiça só concederá
revista por nulidade do processo, ou por nulidade da sentença, nos
termos declarados no Título II, Capítulo I – Das nulidades”.
A inovação representou aperfeiçoamento em relação ao recurso de
revista no processo comercial, que, agora, só podia ser interposto com
fundamento em algum dos motivos de nulidade expressamente
declarados nesses artigos.
873
LOBO DA COSTA, Moacir. A revogação da sentença: gênese e genealogia. São Paulo: Ícone, 1995, p. 245.
874
Id., loc. cit.
875
Ibid., p. 268-9.
293
Desaparecia, assim, o casuísmo que presidia ao cabimento da revista
no processo civil [...]
876
.
Os casos de nulidade da sentença, que eram quatro, vinham
elencadas no artigo 680 do Regulamento, quais sejam:
1º, ter sido dada por juiz incompetente, suspeito, peitado ou
subornado; 2º, ter sido proferida contra expressa disposição da
legislação comercial – a ilegalidade da decisão, e não dos motivos e
enunciado dela, constitui essa nulidade; 3º, ter sido fundada em
instrumentos ou depoimentos julgados falsos em juízo competente; 4º,
sendo o processo em que ela foi proferida anulado em razão das
nulidades referidas no capítulo antecedente
877
.
No artigo 681, o Regulamento especificava os meios pelos quais
as hipóteses de nulidade (elencadas no artigo 680) poderiam ser argüidas:
apelação; revista; embargos à execução; ação rescisória, desde que a sentença
proferida não o fosse em grau de revista
878
.
A apelação e a revista eram manejados, respectivamente, em face
da sentença de primeiro grau e em face de acórdão do Tribunal da Relação,
antes do trânsito em julgado. Os embargos e a ação rescisória eram remédios
especiais passíveis de manejo após o trânsito em julgado, respectivamente, em
face da sentença de primeiro grau e de acórdão do Tribunal da Relação
879
.
O que se percebe, a partir desse retrospecto histórico, é que,
Durante quarenta anos (1850 a 1890) coexistiram nas lides forenses,
lado a lado, dois sistemas processuais; o velho sistema herdado do
Livro III das Ordenaçãoe Filipinas, com as normas específicas do
Título XX, a disciplinarem a Ordem do Juízo no processo das causas
cíveis, com as modificações introduzidas pela Disposição Provisória
acerca da administração da justiça civil, de 29 de novembro de 1832, e
pela lei nº 261, de 3 de dezembro de 1841 e seu Regulamento o
decreto nº143, de 15 de março de 1842, e o novo sistema instituído
876
LOBO DA COSTA, Moacir. A revogação da sentença: gênese e genealogia. São Paulo: Ícone, 1995, p.
267, grifo nosso.
877
Id., loc. cit..
878
Ibid., p. 268.
879
Id., loc. cit.
294
pelo Regulamento nº 737, de 1850, para o processo das causas
comerciais
880
.
No que diz respeito especificamente
[...] à revogação da sentença por motivo de nulidade, a diferença mais
importante entre os dois sistemas residia em que o recurso de revista,
no processo civil, só era admitido nos casos de manifesta nulidade ou
injustiça notória (lei de 18 de setembro de 1828, art. 6º), o que
impunha aos advogados brasileiros [...] “a ingente tarefa de enquadrar
em algum desses dois gêneros os casos ocorrentes na prática, para
possibilitar a interposição do recurso”, enquanto no processo
comercial o recurso só será concedido pelo Supremo Tribunal por
nulidade do processo, ou por nulidade da sentença, nos termos
declarados no Título II, Capítulo “Das Nulidades” (artigo 667), ou
seja, naqueles casos taxativamente enunciados
881
.
Segundo, portanto, esse dicotômico sistema,
No processo civil, que continuava regido pelas normas do Livro III
das Ordenações Afonsinas, vigia o princípio estabelecido no Título
LXXV, que a sentença que é poir direito nenhuma, nunca em tempo
algum passa em coisa julgada, mas em todo tempo se pode opor
contra ela, que é nenhuma e de nenhum efeito, e portanto não é
necessárioser dela apelado.
Princípio tradicional no direito lusitano (Afonsinas, Liv. III, Tít.
LXXVIII, Manuelinas, Liv. III, Tít. LX) que não foi revogado pelas
leis brasileiras [...]
882
.
Como nenhuma, o Título LXXV, do Livro III, da Ordenações
Afonsinas reputava a sentença
[...] quando dada sem a parte primeiro ser citada, ou é contra outra
sentença já dada, ou foi dada por peita ou preço que o juiz houve, ou
por falsa prova, ou se eram muitos juizes delegados, alguns deram
sentença sem os outros, ou se foi dada por juiz incomptente em todo,
ou em parte,ou quando foi dada contra direito expresso,assim comose
o juiz julgasse direitamente que o menor de quatorze anos podia fazer
testamente, ou podia ser testemunha, ou outra coisa semelhante, que
seja contra nossas Ordenações, ou contra direito expresso
883
.
880
LOBO DA COSTA, Moacir. A revogação da sentença: gênese e genealogia. São Paulo: Ícone, 1995, p. 270,
grifo do autor.
881
Id., loc. cit., grifo do autor.
882
Ibid., p. 270-1, grifo do autor.
883
Ibid., p. 271.
295
Por isso mesmo, como vimos acima, admitia-se a concorrência
do recurso de revista e o meio ordinário da ação de nulidade como meios hábeis
para a desconstituição da sentença tida como nenhuma. O alcance da regra,
outrossim, era absoluta; dela, nenhuma senteça escapava, mesmo que proferida
em grau de revista
884
.
Era a sobrevivência do velho remédio ordinário da querela
nullitatis que, forjado pelo Direito Romano, prevaleceu no “[...] direito
estatutário do século XIII, que ingressou no direito lusitano [e no brasileiro] por
intermédio da lei das Sete Partidas no século XIV [...]”
885
.
Esse modelo sofreu, em certa medida, solução de continuidade
com o sistema instituído pelo Regulamento nº 737, de 1850, para o processo das
causas comerciais.
É que ao disciplinar, no seu artigo 681, os meios pelos quais se
poderia buscar a nulidade do julgado, no § 4º, previu-se a ação rescisória, desde
que a sentença não fosse proferida em grau de revista
886
.
Percebe-se, desse modo, que, nas causas comercias, a partir da
vigência do referido Regulamento, se o caso viesse a ser apreciado pelo
Supremo Tribunal de Justiça em sede de revista, essa decisão, transitada em
julgado, não era mais passível de desconstituição, ao contrário do clássico
modelo que até então vigia, que subordinava mesmo essas decisões ao regime
ordinário da querela nullitatis.
Portanto, em 1890, quando, pelo decreto nº 763, de 19 de
setembro, o processo das causas cíveis passou a ser regulado pelo dito
regulamento nº 737, de 25 de novembro de 1850, acabou-se por consagrar, no
plano legislativo, esse mesmo sistema às causas cíveis.
884
LOBO DA COSTA, Moacir. A revogação da sentença: gênese e genealogia. São Paulo: Ícone, 1995, p. 271.
885
Ibid., p. 258.
886
Ibid., p. 268.
296
Com isso, a bem da verdade, deu-se cabo a uma celeuma que
crassava nos tribunais pátrios desde, pelo menos, 1830.
É que, desde 1828, por conta da edição da lei que criara o
Supremo Tribunal de Justiça, passaram a surgir vozes que sustentavam o
incabimento da ação de nulidade da sentença. Entendiam, essas pessoas, que a
nova lei “[...] virtualmente revogou os diversos títulos de nossas ordenações e
mais leis que autorizavam o uso das sobreditas ações [rescisória e de nulidade da
sentença]”
887
.
Em sentido contrário, outros, ainda que admitindo a dubiedade
que a nova legislação criara acerca do cabimento de tais ações, como era o caso
de José Antonio Pimenta Bueno, preferiam sustentar que só mesmo no caso de
absoluta imcompatibilidade com a nova sistemática das revistas é que se poderia
ter como incabível as ditas ações “[...] mas não nos casos em que não só deixam
de ser incompatíveis, mas em que a lei as deveria criar quando mesmo elas ainda
não existissem autorizadas”
888
.
Diante da polêmica,
No ano de 1878, o Supremo Tribunal enfrentou a questão por duas
vezes e proferiu duas decisões, que firmaram a jurisprudência a
respeito, assentando o entendimento de que a disposição do § 4º do
art. 681 do reg. nº 737, de 1850, é aplicável tanto às causas comerciais
como às causas cíveis, por não conter uma simples fórmula do
processo em juízo comercial, mas sim a verdadeira inteligência da lei
de 18 de setembro de 1828 e decreto de 10 de dezembro de1830
889
.
887
BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos sobreas formalidades do Processo Civil. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Typographia Nacional, 1858, p. 119 apud LOBO DA COSTA, Moacir. A revogação da sentença:
gênese e genealogia. São Paulo: Ícone, 1995, p. 258.
888
Id., loc. cit. apud LOBO DA COSTA, op. cit., p. 258. Os casos em que, para José Antonio Pimenta Bueno, a
ação de nulidade ou rescisória continuou a ser admitida, por ausência de incompatibilidade, seriam quatro: 1)
quando a sentença fosse dada por peita, suborno ou prevaricação do juiz; 2) quando a sentença fosse dada com
base em documento falso, desde que a falsidade fosse descoberta depois de prolatada a sentença e desde que dela
não coubesse mais quaisquer recursos; 3) quando documentos tidos como novos, porque descobertos pela parte
depois de dada a sentença (ou porque a parte não os conhecia ou porque foram ocultados pela parte contrária),
depois de vencidos os recurso cabíveis, demonstrem inveracidade da prova tida em conta pela sentença; 4)
quando a sentença tiver sido dada a revelia da parte e esta provar que a citação inexistiu ou foi falsa (Ibid., p. 122
apud LOBO DA COSTA, op. cit., p. 259-60).
889
LOBO DA COSTA, op. cit., p. 263.
297
Disso se conclui que, em 1890, o decreto nº 763, de 19 de
setembro, apenas consagrou no plano legislativo aquilo que o Supremo Tribunal
de Justiça já havia consagrado jurisprudencialmente, vedando em absoluto,
também nas causas cíveis, a ação rescisória quanto à sentença proferida em sede
de revista, ou seja, “[...] à sentença que decidiu sobre a nulidade da sentença
recorrida, e que foi objeto do recurso de revista, com a finalidade de tornar
definitivo e irrecorrível o julgamento da nulidade argüida”
890
.
O que se percebe, em suma, é que, mesmo com a independência
de Portugal e a subseqüente edição de uma série de leis visando regular os
procedimentos judiciais no Brasil, dentre as quais avulta a edição do
Regulamento 737 de 1850, e, posteriormente, a Consolidação Ribas, de 1876, no
que tange ao regime da coisa julgada, basicamente, não se rompeu com o regime
das ordenações.
Podemos arriscar a dizer que, da Independência (quiçá da
reforma Pombalina) até a proclamação da Repúlbica, o que temos é a história da
rescisão da sentença e, não, propriaprente, a história da coisa julgada, ainda que
essa história toque na capital questão da imutabilidade do julgado, que é a sua
pedra angular.
Quanto a todo o resto, ou seja, quanto aos limites objetivos e
subjetivos do julgado e, mesmo, alcance preclusivo do julgado, a coisa julgada
continuou conformada pelo Direito Romano, com as pálidas contribuições que o
Direito Canônico nos legara durante a Idade Média
891
.
890
LOBO DA COSTA, Moacir. A revogação da sentença: gênese e genealogia. São Paulo: Ícone, 1995, p. 264.
891
Eduardo Talamini, sintetiza que, na Consolidação Ribas, “O instituto da coisa julgada estava delineada no art.
497, que previa entre os “effeitos da sentença definitiva” o de “fazer certo o direito entre as partes” (§ 2º). Os
limites objetivos da coisa julgada estavam traçados nos arts. 582 (c/c art. 575) e 583: a “excepção peremptoria de
cousa julgada” (art. 581, § 1º) não era oponível quando nova ação pessoal era reproposta com fundamento
diverso do da anterior (arts. 583, § 1º e 575, § 2º), quando na ação real era invocado título de propriedade
superveniente à primeira sentença (art. 583, § 2º) e quando na segunda ação se atribuía à propriedade uma
origem diferente da que foi alegada na primeira ação (arts. 583, § 3º e575, § 2º). Os limites subjetivos também
foram disciplinados de modo sistemático (arts. 501 e 575, § 3º)” (TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua
revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 268-9). Dessa síntese, justiça seja feita, consta-se que a
Consolidação Ribas, quanto aos limites objetivos da coisa julgada, distanciou-se do modelo romano (repercutido
ainda hoje pela teoria dos direitos ditos autodeterminados) que, em relação aos direitos reais desprezava, para a
298
A grande novidade consolidada nesse período, e que se deu mais
especificamente com o advento do Regulamento 737, de 1850, foi a
consolidação da noção de invalidade em contraponto à noção até então
prevalecente, de nada jurídico, para os casos de nulidade da senteça, com a
adoção, segundo o seu artigo 681, da palavra rescisória para adjetivar a ação
própria voltada a desconstituir a sentença assim viciada. Desse modo,
[...] levando adiante tendência que de há muito se notava, a “nulidade”
perdia definitivamente seu sentido original, romano, de nada jurídico,
para se transformar em invalidade. A sentença haveria de ser
desconstitída, rescindida, e não apenas declarada nula
892
.
Com a Constituição de 1891, o recurso de revista foi substituído
pelo Recurso Extraordinário, que passou a ser reservado, exclusivamente, para o
controle, em última instância, da aplicação do direito objetivo, de tal modo a
“[...] garantir a inteireza do ordenamento jurídico federal”
893
. As demais
hipóteses em que se autorizava o manejo da revista, foram, assim, afastadas do
âmbito desse recurso extremo. Só a “[...] violação de direito expresso (violação
do direito objetivo que passa a ser aferida independentemente de revisão
probatória)”
894
, já albergada pela revista, continua, assim, a informar o
cabimento do novo recurso. De resto, conforme esclarece Eduardo Talamini,
[...] consolidou-se a idéia de que o recurso extraordinário é remédio
interno ao processo em que a decisão foi proferida e que,
identidade de causas, a origem do direito que se invocava (cf. exposto supra, no item 2.2.5.1.2). Quanto ao
Regulamento 737, de 1850, Eduardo Talamini pontua que “[...] a coisa julgada era tratada como exceção (art. 74,
§ 4º) que para proceder, carecia do “requisito da identidade de cousa, causa e pessoa” (art. 92, primeira parte) –
identidade essa, porém, a ser “regulada pelo Direito Civil (art. 92, segunda parte). O art. 185 qualificava ainda a
coisa julgada como “presunção legal absoluta”, inspiradona conotação probatória atribuída ao instituto pela
doutrina do direito comum e que vingou na França [...]” (Ibid., p. 269, grifo do autor.). Na medida em que, no
sistema das Ordanções, como visto acima, a sentença proferida contra a coisa julgada era tida como nenhuma,
princípio esse herdado do final da época clássica do direito romano, tal qual consta da Constituição de Alexandre
Severo (222 d.C.), onde formulara-se o princípio segundo o qual era nula a sentença proferida contra anterior
coisa julgada, sentenciar contra ela “[...] equivalia a sentenciar contra o próprio direito objetivo” (TALAMINI,
Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 270-5), percebe-se que, nesse
particular, houve efetiva ruptura do sistema até então prevalecente.
892
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 269, grifo do
autor
893
Ibid., p. 271.
894
Id., loc. cit.
299
conseqüentemente, é uma via de controle da sentença anterior ao seu
trânsito em julgado
895
,
concepção essa que, no mais, guarda absoluta consonância com a idéia que se
adotava de rescindibilidade em geral das sentenças, e, conseqüentemente, de
trânsito em julgado em geral dos julgados. Afinal, a sentença que era um nada
jurídico e, portanto, não passível de trânsito em julgado, deixava de existir.
Superada a pulverização processual que se seguiu à
estadualização do processo civil, instroduzida pela Constituição Federal de
1891
896
, sobreveio a edição do Código Civil de 1916, com o qual se
[...] deu mais um passo no sentido da transformação da sentença
“nenhuma” em sentença inválida, ao estabelecer um prazo específico
para a ação rescisória, bem mais curto do que o da prescrição
ordinária: cinco anos (art. 178, § 10, VIII). Assim, estava quase
integralmente superada a noção de que a sentença nula é “nenhuma” e
não transita em julgado
897
.
“Como resquício do anterior modelo – esclarece Eduardo
Talamini - restava apenas a figura dos embargos (à execução) “de nulidade””,
mas que já não se adequava à nova ordem introduzida pela codigicação civil e
que só continuava a ser reproduzida pela doutrina “[...] por não se notar
claramente a evolução havida [a par tir do quê] continuavam sendo feitas
afirmações mais consentâneas com o antigo sistema”
898
.
A coisa julgada, após o advento da codificação civil brasileira e
as inovações com ela trazidas, veio, finalmente, a adquirir, definitivamente, os
contornos que atualmente sustenta, com a edição da Constitução Federal de
1934 e, posteriormente, do Código de Processo Civil de 1939
899
.
895
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 271, grifo do
autor.
896
Segundo Eduardo Talamini, “Os Códigos estaduais seguiram basicamente as diretrizes já delineadas pelo
Regulamento 737 [e] alguns Estados, que não editaram códigos próprios, permaneceram aplicando o
Regulamento 737” (TALAMINI, op. cit., p. 271).
897
TALAMINI, op. cit., p. 274, grifo do autor.
898
Id., loc. cit., grifo do autor.
899
Ibid., p. 270-5.
300
4 ACERCA DA RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA
4.1 Das premissas teóricas (declaradas) da relativização da coisa julgada da
sentença injusta
Pode-se afirmar, com considerável probabilidade de acerto que a
publicação entre nós, por Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia
Medina, da obra intitulada “O dogma da coisa julgada: hipóteses de
relativização”
900
, tem adquirido considerável vulto a discussão em torno da
possibilidade de se rescindir/desconstituir julgados mesmo superado o prazo
previsto em lei para a ação rescisória.
É evidente que os autores em questão não introduziram, no
direito pátrio, nenhuma novidade, algo que fosse absolutamente desconhecido
dos estudiosos do direito, bastando citar, por exemplo, a obra coordenada por
Carlos Valter do Nascimento colacionando, em torno da coisa julgada
inconstitucional, estudos contemporâneos de doutrinadores do porte de Cândido
Rangel Dinamarco, Humberto Theodoro Júnior, José Augusto Delgado e Juliana
Cordeiro Faria
901
.
Tiveram, contudo, a nosso ver, dado, inclusive, o renome com
que contam hoje no nosso meio jurídico, o mérito de resgatar determinadas
hipóteses que, efetivamente, não se submetem ao regime jurídico da coisa
julgada, como é o caso das sentenças juridicamente inexistentes
902
e daquelas
fundadas em cognição parcial e sumária
903
, mas que o dogma da coisa julgada,
muitas das vezes, faz obliterar o senso teórico comum dos juristas a ponto de,
quando pouco, dificultar-se em muito a operacionalização dessas categorias na
prática forense cotidiana.
900
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia Medina. O dogma da coisa julgada:
hipóteses de relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
901
VALDER DO NASCIMENTO, Carlos (Coord.). Coisa julgada insconstitucional. 2ª ed. Rio de Janeiro:
América Jurídica, 2003.
902
WAMBIER; MEDINA, op. cit., p. 26 et. seq.
903
Ibid., p. 86 et. seq.
301
Resgataram, os autores, igualmente, a instigante questão em
torno da coisa julgada inconstitucional, assim tida em decorrência de
superveniente declaração, em sede de controle concentrado, de
inconstitucionalidade ou constitucionalidade da norma tida em conta na
sentença
904
; bem como a polêmica questão da reabertura dos casos de
investigação de paternidade em virtude da superveniente possibilidade de
realização do exame de DNA
905
; além de questões outras de grande relevância
mas de menor polêmica.
Registramos, assim, que a obra em questão, não é e nem pode ser
tida como uma espécie de baluarte contra a coisa julgada, no sentido de que o
vocábulo relatividade empregado no título da obra a vincularia em uma cruzada
contrária ao regime jurídico da coisa julgada.
A intenção dos autores, quer nos parecer, foi, fundamentalmente,
desmistificar a coisa julgada e não com ela romper, no sentido de pura e
simplesmente renegá-la pela inutilidade.
Sem dúvida, contudo, ela voltou a chamar a atenção e deixou em
aberto, em nosso direito, a questão da injustiça do julgado e a sua não sujeição,
em tese, ao regime jurídico da coisa julgada.
Note-se, porém, que, hoje, quanto à questão da declaração
superveniente da inconstitucionalidade ou constitucionalidade de norma e a sua
repercussão sobre julgados precedentes, ela, a nosso ver, perde, desde há algum
tempo, considerável relevância, na exata medida em que o art. 27 da Lei nº
9.868/99, passou a autorizar o STF a manipular os efeitos da sua decisão,
restringindo, assim, no tempo, a sua eficácia, podendo, até, emprestar-lhe,
portanto, efeitos meramente ex nunc. É certo que a regra não extirpa as atuais
celeumas em torno da possibilidade ou não da desconstituição de julgados
previamente proferidos com base na norma suprimida ou confirmada, mas, sem
904
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia Medina. O dogma da coisa julgada:
hipóteses de relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 39 et seq.
905
Ibid., p. 188 et. seq.
302
dúvida, as reduz consideravelmente (sem querer, aqui, diga-se, perquirir acerca
da eventual inconstitucionalidade do próprio art. 27 da Lei nº 9.868/99).
Também com relação ao DNA, tanto a doutrina quanto a
jurisprudência rapidamente tenderam a se inclinar em admiti-lo como
documento novo, com fundamento no art. 485, inciso VII, do CPC, com
contagem do prazo somente a partir do momento em que o exame poderia ser
produzido, superando, a nosso ver, aquilo que havia de mais polêmico em torno
da matéria, qual seja, a não submissão da sentença de investigação de
paternidade ao regime jurídico da coisa julgada
906
.
A questão, contudo, da injustiça do julgado e a sua (in)aptidão
para a geração dos efeitos da coisa julgada estava posta, ainda que de forma
restrita e muito mais prospectiva do que conclusiva, desencadeando, como já
dito, considerável debate superveniente.
Entre as várias reações havidas, duas, em particular, nos
interessam para confronto e desenvolvimento das nossas considerações, dado o
vulto dos seus protagonistas: a de Ovídio Araújo Baptista da Silva
907
e a de Luiz
Guilherme Marinoni
908
.
Ovídio Araújo Baptista da Silva, partindo das considerações
lançadas pelos articulistas que integram a obra coordenada por Carlos Valder do
Nascimento
909
, identifica, em suma, o movimento tendente em admitir a plena
desconstituição do julgado tido como injusto, como um retorno a valores pré-
modernos do direito medieval ou mesmo romano, onde “[...] a sentença nula era
de fato nenhuma (nullum), não carecendo, como o nulo moderno, ser
desconstituído”
910
.
906
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia Medina. O dogma da coisa julgada:
hipóteses de relativização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 170 et. seq.
907
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Coisa julgada relativa? Revista Jurídica, Porto Alegre, nº 316, p. 07-18,
fev. 2004.
908
MARINONI, Luiz Guilherme. O princípio da segurança dos atos jurisdicionais (a questão da relativização da
coisa julgada material). Revista Jurídica, Porto Alegre, nº 317, p. 15-33, mar. 2004.
909
VALDER DO NASCIMENTO, Carlos (Coord.). Coisa julgada insconstitucional. 2ª ed. Rio de Janeiro:
América Jurídica, 2003.
910
SILVA, op. cit., p. 18.
303
Não chega, contudo, a externar qualquer opinião, seja positiva,
seja negativa, em torno desse movimento, apenas, indagando, ao fecho de seu
artigo, se o movimento permitiria que a modernidade se negasse a si própria,
sem destruir-se, ou se se trataria de um movimento de superação da
modernidade
911
.
Dada, por óbvio, a relevância da questão tratada e dada a
envergadura do autor em questão, quer nos parecer deveras modesta a sua
contribuição, talvez, retratando, justamente, a cautela que ela exigiria para que,
desde logo, não se soterrasse algo tão relevante à humanidade e ao direito: a
discussão da relevância da justiça dentro do contexto jurídico-normativo.
O fato, porém, é que Ovídio Araújo Baptista da Silva, escreve
silenciando-se.
Em sentido diametralmente oposto, Luiz Guilherme Marinoni
912
,
opõe-se ferozmente à tese, alegando, em suma, que a coisa julgada material é
garantia insculpida no art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, “[...] é
garantia constitucional do cidadão diante do Estado (em geral) e dos
particulares”, para, logo em seguida, arrematar que:
A coisa julgada não pode ser colocada no mesmo plano do direito que
constitui o objeto da decisão à qual adere. Ela é elemento integrante
do conceito de decisão jurisdicional, ao passo que o direito é apenas o
seu objeto. Não há dúvida que os direitos podem, conforme o caso, ser
contrapesados para fazer surgir a decisão jurisdicional adequada, mas
a própria decisão não pode ser oposta a um direito, como se ao juiz
pudesse ser conferido o poder de destruir a própria estabilidade do seu
poder, a qual, antes de tudo, é uma garantia do cidadão.
[...]
Note-se que a idéia de se dar ao juiz o poder de balancear um direito
com a coisa julgada material elimina a essência da coisa julgada como
princípio garantidor da segurança jurídica, passando a instituir um
sistema aberto.
Contudo, a própria razão de ser da coisa julgada impede que se
imagine um sistema desse tipo, em que o juiz possa analisar, diante do
911
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Coisa julgada relativa? Revista Jurídica, Porto Alegre, nº 316, fev.
2004, p. 18.
912
MARINONI, Luiz Guilherme. O princípio da segurança dos atos jurisdicionais (a questão da relativização da
coisa julgada material). Revista Jurídica, Porto Alegre, nº 317, mar. 2004, p. 29.
304
caso concreto, se ela deve, ou não prevalecer. Um sistema aberto não
se concilia com a natureza da coisa julgada material.
Ademais, a possibilidade de o juiz desconsiderar a coisa julgada
diante de determinado caso concreto certamente estimulará a
eternização dos conflitos e colaborará para o agravamento, hoje quase
insuportável, da “demora da justiça”, caminhando em sentido
diretamente oposto àquele apontado pela doutrina processual
contemporânea
913
.
Em suas conclusões, Luiz Guilherme Marinoni, a despeito da
pertinência das suas considerações em geral, para o suporte das suas assertivas,
acaba, lamentavelmente, pecando, primeiramente, porque, no afã de
desprestigiar os seus antagonistas, ao revés de criticá-los, simplesmente os
ridiculariza, lançando-lhes a pecha de sensacionalistas, quando diz que eles,
“Com um apelo quase que sensacionalista, [pretendem] fazer crer que os juristas
nunca se preocuparam com a justiça das decisões jurisdicionais [...]”
914
. Não
quer nos parecer que essa seja a questão. A mudança de enfoque do que
eventualmente venha a ser justiça não equivale a dizer que os demais com ela (a
justiça) não se preocupavam.
Na seqüência, também, Luiz Guilherme Marinoni lança ácida
crítica aos seus detratores dizendo que:
A “tese da relativização” contrapõe a coisa julgada material ao valor
da justiça, mas surpreendentemente não diz o que entende por
“justiça” e sequer busca amparo em uma das modernas contribuições
da filosofia do direito sobre o tema. Aparentemente parte de uma
noção de justiça como senso comum, capaz de ser descoberto por
qualquer cidadão médio (l´uomo della strada), o que a torna
imprestável ao seu propósito, pois sofre de evidente inconsistência,
nos termos a que se refere CANARIS
915
.
Aí, a crítica até tem boa dose de acerto, não fosse, porém, a sua
generalidade, que faz grave injustiça àqueles, por exemplo, que vão buscar, de
forma muito bem articulada e fundamentada, o piso mínimo de justiça na
913
MARINONI, Luiz Guilherme. O princípio da segurança dos atos jurisdicionais (a questão da relativização da
coisa julgada material). Revista Jurídica, Porto Alegre, nº 317, mar. 2004, p. 30.
914
Ibid., p. 31.
915
Id., loc. cit.
305
própria constituição e, especialmente, na dignidade da pessoa humana, a partir
da consagração dos direitos fundamentais do homem
916
.
O que é mais grave, porém, é que Luiz Guilherme Marinoni,
aparentemente querendo se valer, em face dos seus detratores, muito mais do
critério da autoridade do que propriamente dos fundamentos, acaba, em suas
derradeiras considerações, reportando-se à noção de justiça que se deve ter,
valendo-se de uma passagem de Gustav Radbruch que é a negação de tudo o que
se poderia imaginar como sendo algo próximo da justiça nos tempos hodiernos.
A passagem é a seguinte:
O grande filósofo alemão GUSTAV RADBRUCH há muito já
criticava a inconsistência que advém da falta de uma concepção
adequada de justiça, quando dizia que a “disciplina da vida social não
pode ficar entregue, como é óbvio, às mil e uma opiniões dos homens
que a constituem nas suas recíprocas relações. Pelo fato de esses
homens terem ou poderem ter opiniões e crenças opostas, é que a vida
social tem necessariamente de ser disciplinada duma maneira
uniforme por uma força que se ache colocada acima dos
indivíduos”
917
.
Essa passagem, a bem da verdade, ao revés de comprometer os
seus detratores ou quaisquer outros, compromete a própria noção de justiça do
autor.
É que essa concepção era esposada por Gustav Radbruch
justamente no período teórico em que professava um exacerbado relativismo
positivista, posteriormente por ele próprio renegado, após a catástrofe nazi-
facista.
A noção de justiça (bela, diga-se de passagem) que Gustav
Radbruch nos legou não foi aquela esposada em seu “Filosofia do Direito”, de
onde Luiz Guilherme Marinoni retira a sua citação, e, sim, em seu escrito pós-
916
Somente à guisa de exemplo, citamos dois artigos que retratam a seriedade com que, entre outros temas, a
coisa julgada inconstitucional vem sendo tratada: GARCIA, Maria. A inconstitucionalidade da coisa julgada.
Revista de direito constitucional e internacional, São Paulo, nº 47, p. 48-54, abr.-jun. 2004. BARROS,
Evandro Silva. A coisa julgada inconstitucional e limitação temporal para a propositura da ação rescisória.
Revista de direito constitucional e internacional, São Paulo, nº 47, p. 55-98, abr.-jun. 2004
917
MARINONI, Luiz Guilherme. O princípio da segurança dos atos jurisdicionais (a questão da relativização da
coisa julgada material). Revista Jurídica, Porto Alegre, nº 317, mar. 2004, p. 31.
306
guerra intitulado “Arbitrariedad legal y derecho supra legal”
918
, a partir do qual
constrói a tese do anti-direito, da arbitrariedade legal ou das leis que não são
direito. Sinteticamente, Plauto Faraco de Azevedo, assim descreve o giro
copernicano de Gustav Radbruch e a sua essência a partir do pós-guerra:
A situação em que se viram juízes e juristas, imbuídos do positivismo
jurídico, à época do nacional socialismo, constitui paradigma da
dissociação da atividade jurisdicional de rudimentares critérios de
justiça e de suas conseqüências.
Com base nessa experiência, Gustav Radbruch, que, em 1934,
expusera e defendera uma concepção relativista do direito, que
desemboca e é a contraparte do positivismo, e que na sua
Rechtsphilosoprhie reserva um papel restrito ao juiz, veio a repensar e
a refazer essa linha de pensamento em notável manuscrito, no após-
guerra.
A análise levada a efeito por Radbruch tem em vista os
acontecimentos do nacional-socialismo na medida em que se
relacionam com o direito, apoiando-se em decisões judiciárias
prolatadas àquela época, notadamente em matéria penal, e no seu
reexame, no após-guerra.
Dela ressalta que o “positivismo jurídico, com seu ponto de vista de
que ´antes de tudo se há de cumprir as leis´, deixou inermes os juristas
alemães frente às leis de conteúdo arbitrário e injusto”. Segundo esta
concepção, o fundamento das normas jurídicas residiria no fato de
dispor-se da força necessária para impor a sua observância. Mas, essa
circunstância pode, talvez, servir para fundar um “ter que” (müssen),
jamais um “dever” (sollen) ou um “valor” (gelten). É que “toda
norma jurídica contém um valor, independentemente de seu
conteúdo, pois sua simples existência enseja ao menos a segurança
jurídica. Mas esta não é nem o único, nem o valor decisivo que
cumpre ao Direito realizar. Junto a ela há outros valores que são a
conveniência e a justiça
919
.
Pouco adiante, o mesmo Plauto Faraco de Azevedo indica que:
O reexame a que Radbruch submeteu suas idéias relativamente à
obrigatoriedade do direito, particularmente no que respeita ao dever de
obediência do juiz à ordem jurídica, é amplo e resultou no abandono
da concepção positivista.
Examinando o ordenamento jurídico nacional-socialista, chegou a
elaboração do conceito de “arbitrariedade legal” ou de “leis que não
são direito”. Reconheceu ser impossível estavelecer uma linha
918
RADBRUCH, Gustav. Arbitrariedad legal y derecho supra legal (Gesetzliches Umrecht und
Übergesetzliches Recht. Trad. por Maria Isabel Azareto Vásquez. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1962 apud
AZEVEDO, Plauto Faraco de. Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica. Porto Alegre: Sérgio Antonio
Fabris Editor, 1989, p. 64.
919
. AZEVEDO, Plauto Faraco de. Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica. Porto Alegre: Sérgio Antonio
Fabris Editor, 1989, p. 64-65, grifo em negrito, nosso; demais, do autor.
307
divisória precisa entre as leis que não exprimem o direito,
configurando a “arbitrariedade legal”, e aquelas que, apesar de seu
conteúdo injusto, conservam a validade
920
.
Apesar dessa dificuldade expressamente reconhecida, conforme
nos informa Plauto Faraco de Azevedo, Gustav Radbruch não deixou de
informar alguns parâmetros que ele entendia configuradores daquilo que
concebia como arbitrariedade legal, v.g.:
Quando não se pretende de nenhum modo realizar a justiça, uma vez
que a igualdade, que constitui seu núcleo, é conscientemente deixada
de lado na formulação do direito positivo, as normas assim elaboradas
não constituem apenas direito injusto, mas carecem da própria
natureza jurídica. Não se pode definir o direito, inclusive o direito
positivo, senão como uma ordem estabelecida para servir a justiça.
Aferidos segundo esse padrão, setores inteiros do direito nacional-
socialista não atingirão jamais a categoria de direito válido
921
.
E mais, exemplificando, Gustav Radbruch indica algumas leis
que, na sua expressão, “não são direito”, relacionados por Plauto Faraco de
Azevedo:
[...] as determinações que pretendiam atribuir ao partido nacional-
socialista a totalidade do Estado, porquanto todo partido é
necessariamente uma parte que se insere e vive no Estado; todas as
leis que estipulavam tratamento infrahumano ou negavam direitos
humanos a certos homens; as disposições que estabeleciam penas sem
consideração à diferente gravidade dos delitos, cominando igual pena
a ações da mais diversa gravidade, amiúde a pena de morte, tudo com
o fito de atender a necessidades momentâneas de intimidação
922
.
A reviravolta filosófica de Gustav Radbruch, no sentido
apontado, também é apanhada por Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique
Pierangeli, os quais, fazendo repercutir as suas (de Gustav Radbruch)
concepções filosóficas no campo do direito penal, observam que:
920
AZEVEDO, Plauto Faraco de. Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica. Porto Alegre: Sérgio Antonio
Fabris Editor, 1989, p. 67.
921
RADBRUCH, Gustav. Arbitrariedad legal y derecho supra legal (Gesetzliches Umrecht und
Übergesetzliches Recht. Trad. por Maria Isabel Azareto Vásquez. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1962, p. 37-8
apud AZEVEDO, op. cit., p. 67-8.
922
Ibid., p. 30-1 apud AZEVEDO, op. cit., p. 68, nota 109.
308
Gustav Radbruch foi o artífice da teoria da criação da conduta pelo
direito. Foi um positivista jurídico; chegando ao positivismo jurídico
por via do neokantismo sul-ocidental. Afirmava que o juiz devia fazer
um sacrificium intellectualis: “Nos afastamos do pregador que prega
contra seu sentimento jurídico, em homenagem à segurança jurídica
dos cidadãos”. Por este caminho quase identificava poder e direito.
Passada a Segunda Guerra Mundial, em seus últimos anos, Radbruch
dá um giro violento contra o positivismo jurídico, totalmente alheio ao
neokantismo. Nesta dramática denúncia do positivismo jurídico,
afirma Radbruch, em 1945, que este movimento “tem deixado os
juristas e o povo indefesos contra as leis arbitrárias, cruéis e
criminosas”
923
.
No mesmo sentido, Dimitri Dimoulis, fazendo-se valer de
hipotético parecer do igualmente hipotético “Prof. Golenage”, sintetiza a
derradeira concepção de Gustav Radbruch nos seguintes termos:
O direito injusto não é direito. Eis a minha posição. O direito objetiva
impor a justiça, como sustentam, retomando a antiga tradição, os
juristas alemães, que desde Gustav Radbruch até Robert Alexy tiraram
lições da dramática história daquele país, onde o nazismo apresentou
como direito as piores barbaridades e injustiças do mundo
924
.
Percebe-se, portanto, que Gustav Radbruch, após a hecatombe
nazista, ao contrário do que é afirmado por Luiz Guilherme Marinoni, fiando-se
em texto renegado por aquele, introduziu como requisito de validade de
qualquer norma ou ato judicial o elemento justiça, buscando, inclusive, fixar-lhe
os patamares mínimos.
Nessa senda é que José Joaquim Gomes Canotilho, ao se referir à
dignidade da pessoa humana como uma das esferas constitutivas da República
Portuguesa - esfera essa que, no mais, guarda, igualmente, identidade com a
923
ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal: parte geral. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 326, grifo do autor. Os autores não indicam, na passagem citada, o
local de onde extraíram as transcrições atribuídas a Gustav Radbruch, tornando impossível, assim, que se a
indique, conforme tecnicamente se exige.
924
DIMOULIS, Dimitri. Opinião do Prof. Goldenage. In: O caso dos denunciantes invejosos: introdução
prática às relações entre direito, moral e justiça. Com a tradução de texto de Lon L. Fuller, parte da obra The
morality of law. ______. 3ª ed., rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 58. Luiz
Fernando Coelho também redime Gustav Radbruch do seu positivismo inicial observando, a seu respeito, que:
“Foi nesse mesmo contexto de valoração ética do direito [ocorrido após a 2ª Grande Guerra] que ocorreu a
conversão jusnaturalista de Radbruch [...]” (COELHO, Luiz Fernando. Saudade do futuro: transmodernidade,
direito e futuro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2001, p. 81).
309
Constituição da República Brasileira -, depois da indagação do que é que se
deve entender por uma República pautada na dignidade da pessoa humana,
responde que:
A resposta deve tomar em consideração o princípio material
subjacente à idéia de dignidade da pessoa humana. Trata-se do
princípio antrópico que acolhe a idéia pré-moderna e moderna da
dignitas-hominis (Pico della Mirandola) ou seja, do indivíduo
conformador de si próprio e da sua vida segundo o seu próprio projeto
espiritual (plastes et fictor). Perante as experiências históricas da
aniquilação do ser humano (inquisição, escravatura, nazismo,
stalinismo, polpotismo, genocídios étnicos) a dignidade da pessoa
humana como base da República significa, sem transcendências ou
metafísicas, o reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do
indivíduo como limite e fundamento do domínio político da
República
925
.
Trata-se de um piso vital mínimo que se buscou, portanto,
estabelecer a partir da segunda grande guerra como o mínimo indispensável de
garantias/prerrogativas/direitos a todo e qualquer ser humano pelo tão só fato de
ser humano.
Malgrado o excesso e o equívoco cometidos, o fato é que Luiz
Guilherme Marinoni, em sua crítica, apanha aquilo que é essencial à discussão,
ou seja, a dificuldade de se compatibilizar essa relativização da coisa julgada a
partir de um critério de justiça da decisão sem que abalemos o princípio da
segurança que é inerente à própria noção de jurisdição e de Estado Democrático
de Direito.
4.2 A premissa teórica subjacente à relativização da coisa julgada da
sentença injusta: a volta à verdade única positivista
Apesar do mérito da crítica de Luiz Guilherme Marinoni quando
apanha a dificuldade de se compatibilizar a tesse da relativizição com o
princípio da segurança jurídica e da noção última da própria jurisdição e de
925
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direto Constitucional e teoria da constituição. 5ª ed. Coimbra:
Almedida, 2002, p. 225, grifo do autor.
310
Estado Democrático de Direito, a nosso ver, ela acaba por pecar quando não
ataca aquilo que, em suma, queremos crer, é o grande equívoco daqueles que
sustentam a possibilidade de sujeição de qualquer sentença que seja, para a sua
validade, a uma abstrata noção de justiça: ao assim procederem, acabam por
volverem-se, literalmente falando, à noção de verdade única, apenas que a
transferindo da norma abstrata, onde a depositavam os positivistas, para a norma
concreta, ou a norma de decisão.
E aí, bem já se pode depreender que também os prognósticos
aventados por Ovídio Araújo Baptista da Silva não se mostram precisos em
torno do assunto, já que, em verdade, a adoção, sem mais, dessa teoria, não nos
lança a qualquer período pré-moderno e, tampouco, nos lança a uma pós-
modernidade qualquer, de nós desconhecida.
Muito ao contrário disso, inadvertidamente, ela acaba por nos
reintroduzir justamente a noção da modernidade mesma e da sua objetividade
jurídica peculiar, assentada, primordialmente, em uma noção de verdade única,
objetiva. Como diz Cláudio Fortunato Michelon Júnior:
O valor fundamental para a ciência moderna é a certeza, e a
primeira providência para afastar o perigo das incertezas é exilar as
aparências (leia-se “as percepções e sensações” ou “as qualidades
secundárias” ou “a subjetividade”) em um mundo do qual a Ciência
não deve ocupar-se (o mundo interior de cada um). O exílio da
aparência “objetiva” o mundo, transformando-o em algo
absolutamente mensurável e, portanto, cognoscível
926
.
E é interessante perceber que essa questão, de modo algum, é
estranha ao pensamento de Ovídio Araújo Baptista da Silva, o qual, retomando
antigo pensamento de Piero Calamandrei, assente na noção de decisões
discricionárias, a partir da revisão de Karl Engisch, já observava em escrito
anterior que, hoje, não há como se negar a possibilidade de se emprestar
926
MICHELON JR, Cláudio Fortunato. Aceitação e objetividade: uma comparação entre as teses de Hart e
do positivismo precedente sobre a linguagem e o conhecimento do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004, p. 49, grifo em negrito, nosso; demais, do autor.
311
idêntico valor a decisões diferentes, ainda que opostas, para um mesmo caso
concreto
927
.
José Fábio Rodrigues Maciel, em percuciente crítica à tradicional
noção de segurança jurídica, confirmando a lucidez da análise que outrora
Ovídio Araújo da Silva Baptista já lançava, nos coloca que:
A principal questão colocada pela segurança jurídica formal é o fato
de a lei tratar igualmente a todos, o que permite ao conceito
“segurança jurídica” fincar seus alicerces no fato de se fazer cumprir
a lei dentro de sua previsibilidade e certeza, sob pena de se
enfraquecerem as instituições. Nota-se com clareza a distância que
começa a tomar em relação à justiça concreta, embasada na eqüidade e
na igualdade (tratar de maneira diferente os desiguais). Afasta-se
também da segurança jurídica entendida fenomenologicamente, que é
aceitar a existência de várias verdades para casos semelhantes, desde
que fundamentadas e cuja argumentação forneça também os critérios
adotados, para que se possa avaliar a razoabilidade da decisão tomada.
A segurança jurídica formal, aplicada de forma isolada, acaba por
enfraquecer as instituições, ao invés de fortalecê-las
928
.
Em reforço, esse mesmo autor ainda observa que:
Levando em consideração a segurança jurídica material, depreende-se
que só se atinge a real segurança jurídica aceitando a diversidade de
interpretações, as diferenças culturais e a constante modificação do
direito. [...]
Parte-se da premissa de que a norma é segura, e ao mesmo tempo
cobra-se que seja ela interpretada por várias pessoas, inclusive de
culturas e valores diferentes, exigindo-se que a interpretação seja, pelo
menos, semelhante. Melhor seria aceitar a decisão baseada em valores,
pautada nos princípios jurídicos, limitando a ideologização mas
entendendo as diferenças culturais e aceitando o fato da não existência
de verdades absolutas. O simples fato de prescrever normas não
garante que teremos um sistema justo e equilibrado, já que mais
importante que a positivação é o real sentido que será dado aos textos
jurídicos, como serão aplicados
929
.
927
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Da sentença liminar à nulidade da sentença. Rio de Janeiro: Forense,
2001, p. 204 e 205.
928
MACIEL, José Fábio Rodrigues. Teoria Geral do Direito: segurança, valor, hermenêutica, princípios,
sistema. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 36, grifo do autor.
929
Ibid., p. 36-7.
312
José Fábio Rodrigues Maciel observa que há uma
horizontalização cada vez maior do direito, “[...] com itens hiperespecializados
que propiciam a existência de razão para ambas as partes”
930
.
Nota-se, assim, que, a bem da verdade, conceber a segurança
jurídica a partir de um critério de justiça verdadeira, é concebermos que
uma verdade a ser buscada.
Concluímos, portanto, que o fundamento da dita relativização
da sentença injusta é, nada mais, nada menos, que o valor segurança jurídica
compreendido dentro e segundo um contexto de verdade única, prestando-
se, em última análise, como instrumento ideológico às maiorias
momentâneas, reais ou de fato, noção essa de verdade judicial, ademais,
incompatível com a moderna concepção sócio-jurídica multicultural e
mutante.
E, de fato, Eros Roberto Grau, talvez mais do qualquer outro em
nossa doutrina jurídica, desde há muito dizia e diz:
Nego peremptoriamente a existência de uma única resposta correta
(verdadeira, portanto) para o caso jurídico – ainda que o intérprete
esteja, através dos princípios, vinculado pelo sistema jurídico. Nem
mesmo o Juiz Hércules [Dworkin] estará em condições de encontrar
para cada caso uma resposta verdadeira, pois aquela que seria a única
resposta correta simplesmente não existe.
O fato é que, sendo a interpretação convencional, não possui realidade
objetiva com a qual possa ser confrontado o seu resultado (o
interpretante), inexistindo, portanto, uma interpetação objetivamente
verdadeira [Zagrebelsky]
931
.
Mesmo Hans Kelsen, correntemente execrado como pernicioso
positivista, sempre teve a lucidez de afirmar, nessa mesma linha de idéias, que:
A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo
cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e
em todos os casos, uma só interpretação: a interpretação “correta”.
Isto é uma ficção de que se serve a jurisprudência tradicional para
consolidar o ideal da segurança jurídica. Em vista da
930
MACIEL, José Fábio Rodrigues. Teoria Geral do Direito: segurança, valor, hermenêutica, princípios,
sistema. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 45.
931
GRAU, Eros Roberto Grau. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 2ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2003, p. 36.
313
plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente
é realizável aproximativamente
932
.
Alf Ross, outro notório juspositivista identificado com o realismo
escandinavo, não é menos candente (a despeito do seu positivismo) ao afirmar
que “[...] nenhuma situação concreta enseja uma aplicação única da lei”
933
,
esclarecendo, ainda, que
Isto é verdade, inclusive, naqueles casos nos quais existe uma regra
definida, expressa em termos relativamente fixos; e é verdade,
certamente, num grau ainda maior, quando o caso é julgado de acordo
com padrões jurídicos ou sob forma discrecional (sic). Há sempre uma
margem de extensão variável e quando uma decisão cai dentro dessa
margem, ninguém a chamaria de injusta, nem sequer em sentido
objetivo. Poder-se-ia qualificá-la de “equivocada” no sentido de que
quem emite a opinião teria aplicado a lei sob forma diversa
934
.
Abordando especificamente a questão da discricionariedade
judicial, acima referida por Alf Ross, também Hans Kelsen nos adverte que o
espectro de decisões possíveis válidas para um mesmo caso concreto pode ter é
932
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 6ª ed. 4ª tir. São Paulo:
Martins Fontes, 1998, p. 39, grifo do autor. Em outra passagem, a mesma idéia é afirmada por Hans Kelsen nos
seguintes termos: “Se existe algo que a história do conhecimento humano nos pode ensinar é como têm sido vãos
os esforços para encontrar, por meios racionais, uma norma absolutamente válida de comportamento justo, ou
seja, uma norma que exclua a possibilidade de também considerar o comportamento contrário como justo. Se
podemos aprender algo da experiência espiritual do passado é o fato de que a razão humana só consegue
compreender valores relativos. Isso significa que o juízo, por meio do qual algo é declarado como justo, nunca
poderá ser emitido com a reivindicação de excluir a possibilidade de um juízo de valor contrário. Justiça absoluta
é um ideal irracional. Do ponto de vista do conhecimento racional existem somente interesses humanos e,
portanto, conflitos de interesses. Para solucioná-los, existem apenas dois caminhos: ou satisfazer um dos
interesses à custa do outro, ou promover um compromisso entre ambos. Não é possível comprovar que
somente uma, e não a outra solução seja justa. Se se pressupõe a paz social como valor maior, a solução do
compromisso pode ser vista como justa. Mas também a justiça da paz é uma justiça relativa, não absoluta” (Id. O
que é justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. 3ª ed. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 2001, p. 23, grifo nosso). Ainda uma vez mais, Hans Kelsen reafirma a mesma idéia, dizendo
que: “A aplicação do Direito por uma autoridade jurídica, assim como a descrição do Direito pelo cientista
jurídico, implica uma interpretação do Direito. Interpretar uma norma jurídica é encontrar seu significado. É uma
exigência da técnica jurídica que uma norma jurídica seja formulada tão claramente quanto possível, para que
seu significado seja inquestionável. Contudo, como a maioria das regras jurídicas é expressa em linguagem
humana, e a linguagem humana é freqüentemente ambígua, pode-se aquiescer a essa exigência apenas
aproximadamente. Portanto, muitas vezes mais de um significado pode ser encontrado em uma norma jurídica. A
doutrina de que uma norma jurídica tem efetivamente apenas um significado e de que existe um método
científico que nos capacita sempre a descobrir o seu único significado correto é uma ficção usada pela
ciência jurídica tradicional para sustentar a ilusão da segurança jurídica” (Ibid., p. 366, grifo nosso).
933
ROSS, Alf. Direito e justiça. 1ª reimpressão. Trad. Edson Bini. Rev. téc. Alysson Leandro Mascaro. Bauru:
Edipro, 2003, p. 330.
934
Id., loc. cit., p. 330, grifo do autor.
314
significativamente ampliado quando a própria norma não estampa uma regra
definida, que é o que ocorre quando o juiz se encontra diante de poderes
discricionários. Nessas situações, ele nos diz que:
Normalmente, ela [refere-se à função de um tribunal] é muito mais
intimamente determinada por uma norma jurídica superior – um
estatuto ou uma regra de Direito consuetudinário – do que a função
legislativa pela constituição. Mas há sempre uma esfera de arbítrio
mais ampla ou mais estreita, deixada pela norma jurídica superior à
função criadora de Direito de um tribunal e, dentro dessa esfera de
arbítrio, a decisão judicial pode ser, e efetivamente é, determinada
por outras normas que não as de Direito positivo. Ao criar uma
norma individual pela jurisprudência, o tribunal tem sempre a escolha
de diferentes decisões possíveis dentro da estrutura da norma geral
que determina a função judicial. O tribunal pode preferir uma ou outra
porque considera uma justa e a outra injusta
935
.
Como se não bastasse a ambigüidade da própria linguagem que
vaza a norma jurídica, como fator determinante da impossibilidade de uma
interpretação normativa unívoca, Hans Kelsen nos alerta que a diversidade dos
métodos interpretativos, que por regra não são positivados, acabam por
potencializar ainda mais a multiplicidade de interpretações válidas que são
inerentes à aplicação do direito, esclarecendo, inclusive, que, ainda quando um
método fosse obrigatório, as interpretações fornecidas poderiam ser múltiplas,
além de contraditórias
936
.
Levando ao extremo essa sua concepção, Hans Kelsen deixa
muito claro que a interpretação do Direito, quando feita pelo órgão responsável
pela aplicação do direito, é uma interpretação política, de natureza autêntica,
pouco compatível, certamente, com a unívoca noção de verdade judicial. A
respeito, é esclarecedora a seguinte passagem do autor:
A escolha de um dos vários significados de uma norma jurídica por
uma autoridade jurídica em sua função aplicadora de Direito é um ato
criador de Direito. Na medida em que essa escolha não é determinada
por uma norma superior [ou seja, por uma norma editada com o
935
KELSEN, Hans. O que é justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. 3ª ed. Trad. Luís
Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 366, grifo nosso.
936
Ibid., p. 367.
315
propósito específico de ditar a interpretação de outra norma, também
designada como lei declarativa], é uma função política. Pois a
escolha entre os diferentes significados de uma norma jurídica, se não
é determinada por uma norma jurídica superior, pode ser, e
efetivamente é, determinada por outras normas não-jurídicas, isto é,
por normas políticas. Portanto, a interpretação automática do
Direito por uma autoridade jurídica pode ser caracterizada como
interpretação política
937
.
Assentado na noção de decidibilidade, cunhada por Tércio
Sampaio Ferraz Júnior, Fábio Ulhoa Coelho, após negar o caráter científico do
direito enquanto um campo de estudo voltado a “[...] circunscrever as decisões
fundamentáveis nas normas jurídicas em vigor”
938
, bem nos esclarece que:
[...] as respostas que [o estudioso] apresentar às questões pertinentes a
esse desiderato não serão nem verdadeiras, nem falsas. Serão mais ou
menos aptas ou inaptas a demonstrar que a decisão z pode ser
sustentada na norma x. Não existe - esta é a premissa de qualquer
esforço anticientificista no campo do saber jurídico – uma verdadeira
interpretação da norma jurídica capaz de excluir as demais
interpretações, as falsas. Existem interpretações mais ou menos
justas, mais ou menos adequadas à pacificação social, mais ou
menos eficientes do ponto de vista econômico, mais ou menos
repudiadas pelos doutrinadores e julgadores que convivem no
conhecimento jurídico, a despeito de seus conflitos, contrariedades ou
contraditoriedades. Se for razoavelmente convincente, utilizando-se
dos recursos argumentativos aceitos pela comunidade jurídica, o
estudioso estará construindo um conhecimento tecnológico
939
.
No nosso modo de ver, portanto, à essa noção de justiça, que a
qualquer momento pode ser invocada para se desconstituir um julgado, resta
ínsita a noção do velho positivismo (ou da “jurisprudência tradicional”, para nos
valermos da expressão de Hans Kelsen) de um presente unidimensional que
hoje já não mais persiste, incumbindo aos operadores do Direito, para que se
faça a efetiva Justiça, libertarem-se desses ultrapassados conceitos, rompendo
com a redoma outrora edificada e que ainda nos é reproduzida por boa parte da
937
KELSEN, Hans. O que é justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. 3ª ed. Trad. Luís
Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 367, grifo nosso.
938
ULHOA COELHO, Fábio. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 5.
939
Ibid., p. 6, grifo do autor.
316
doutrina corrente e que continua a ser aplicada na maioria das vezes de forma
mecânica.
Não há, de fato, todas as vezes que imaginamos o presente,
como deixar de o relacionar com as noções do “aqui” e do “agora”, “[...] a
atualidade em sua dupla dimensão espacial e temporal”, nos magistrais dizeres
de Milton Santos
940
.
Mas, o “aqui” e o “agora”, sobre o qual deve debruçar-se seja o
legislador, seja, ainda e em maior grau, o julgador, o aplicador do Direito, não é
e nem pode ser algo metafísico, de existência além-túmulo.
O “aqui” e o “agora” é constituído de pessoas e coisas e das
relações que aquelas estabelecem entre si e sobre e/ou com essas. Legisla-se e
decide-se, em suma, sobre uma materialidade, sobre o espaço do homem,
sobre uma materialidade social.
O presente, em suma, pode ser resumido na própria noção de
espaço.
Assim reduzido o presente sobre o qual deve debruçar-se o
operador do Direito, cumpre-nos indagar: o quê, afinal, vem a ser esse
“espaço” objeto de análise do operador do direito?
Milton Santos, em síntese invejável, nos diz que “... o espaço é a
acumulação desigual de tempos”
941
.
Daí porque o presente, como algo homogêneo, que diz respeito a
todos de uma mesma forma, simplesmente inexiste, assim como inexistem essas
tão invocadas e endeusadas noções de justiça, abstratamente falando, assim
como, de fato, não se pode falar em moralidade comum, da opinião do homem
médio, e etc, tal qual aludido por Luiz Guilherme Marinoni em sua crítica,
conforme acima indicado
942
.
940
SANTOS, Milton. Pensando o Espaço do Homem. 2ª ed. São Paulo: Hucitec, 1.986, p. 10.
941
Ibid., p. 5.
942
Nota 915, supra.
317
Esses tempos acumulados, do mesmo modo que produzem uma
materialidade social peculiar, própria, inconfundível com a de outras épocas,
também engendram, mesmo no presente, ou seja, numa mesma época e
localidade, uma diversidade sem precedentes de usos e costumes, de relações
sociais, de visões e de compreensão de mundo que não são confluentes, muito
pelo contrário.
Nos felizes dizeres do tão e injustamente execrado Karl Marx,
por mais que consideremos mortos os nossos antepassados, os seus fantasmas
insistem em nos atormentar no presente, nele se enraizando e nos enfeixando.
Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem;
não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com
que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A
tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o
cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em
revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu,
precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens
conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado,
tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as
roupagens, a fim de apresentar e [sic] nessa linguagem emprestada
943
.
Daí porque Milton Santos dizer que:
O passado passou, e só o presente é real, mas a atualidade do espaço
tem isto de singular: ela é formada de momentos que foram, estando
agora cristalizados como objetos geográficos atuais; estas formas-
objetos, tempo passado, são igualmente tempo presente enquanto
formas que abrigam uma essência, dada pelo fracionamento da
sociedade total. Por isso, o momento passado está morto como
‘tempo’, não porém como ‘espaço’; o momento passado já não é, nem
voltará a ser, mas sua objetivação não equivale totalmente ao passado,
uma vez que está sempre aqui e participa da vida atual como forma
indispensável à realização social. ‘Todavia, estamos acostumados a
pensar que o passado está morto, e que nada do passado pode ser
também presente’, escreveu Bertrand Russel (1948, 1966, p. 231).
Para apreender o presente, é imprescindível um esforço no sentido de
voltar as costas, não ao passado, mas às categorias que ele nos legou.
Conservar categorias envelhecidas equivale a erigir um dogma, um
conceito. E, sendo histórico, todo conceito se esgota no tempo. Se
quisermos apreender o 'presente como história’ de Lukács e Sweezy,
devemos ver o passado como algo que encerra as raízes do presente,
943
MARX, Karl. O 18 Brumário e as cartas a Kugelmann.São Paulo: Paz e Terra, 2.002, p. 21.
318
sob pena de nos perdermos num presente abstrato, irreal e impotente
(Della Volpe, 1974, p. 292)
944
.
Em escrito mais recente, partindo de uma peculiar noção de
técnica, ou melhor, das técnicas, vistas como “[...] um conjunto de meios
instrumentais e sociais com os quais o homem realiza sua vida, produz e, ao
mesmo tempo, cria espaço”
945
e que, portanto, é “[...] parte do território, um
elemento de sua constituição e da sua transformação”
946
e “[...] a principal forma
de relação entre o homem e a natureza, ou melhor, entre o homem e o meio
[...]”
947
, Milton Santos, em reforço a sua clássica noção do espaço como acúmulo
não linear do tempo (ou tempos), nos faz ver que:
No domínio das relações entre técnicas e espaço, uma primeira
realidade a não esquecer é a da propagação desigual das técnicas [que]
sugere [que o] processo de difusão das técnicas e [da] sua implantação
[se dá de forma] relativa e sobre o espaço. Num mesmo pedaço de
território, convivem subsistemas técnicos diferentemente datados,
isto é, elementos técnicos provenientes de épocas diversas
948
.
Desdobrando essa noção de presente no campo do Direito, logo
nos avulta o quanto, em verdade, é árdua a tarefa de se legislar e, mais ainda, a
de se aplicar o direito a um caso concreto, sem que nos percamos num “[...]
presente abstrato, irreal e impotente”
949
.
Como, afinal, compatibilizar, com esse presente multifacetado,
uma norma que pressupõe, no discurso positivista, uma noção (única) de
justiça? Justiça de quem? Para quem? E mais ainda: quem, afinal, está apto a
medir essa justiça? O autor desse trabalho? O Promotor? O Advogado? Os
doutos Magistrados? Ou será o catador de papel, o favelado, o castanheiro das
profundezas da Amazônia? Qual é, afinal, o senso de justiça, em termos de
944
SANTOS, Milton. Pensando o Espaço do Homem. 2ª ed. São Paulo: Hucitec, 1.986, p. 10.
945
Id. A natureza do espaço. São Paulo: Edusp, 2002, p. 29.
946
Id., loc. cit.
947
Id., loc. cit.
948
Id., loc. cit.
949
Id. Pensando o Espaço do Homem. 2ª ed. São Paulo: Hucitec, 1.986, p. 10.
319
valores culturais e morais, que se pode estabelecer como sendo comum entre o
Diretor Executivo da “Sony” no Brasil e um bóia-fria qualquer, por exemplo?
A verdade é que essa “[...] acumulação desigual de tempos”
950
,
tem, como consectário lógico, o acúmulo desigual de interesses, de conceitos
morais e culturais que não podem ser nivelados senão à custa de uma
nefasta imposição e segregação cultural. A média, que acaba por se
estabelecer, inexoravelmente, nesse tipo de proceder, que parte de uma noção
abstrata, não será outra que não a daqueles que detêm poder para estabelecê-la, e
o farão, por óbvio, segundo a sua visão de mundo, que tenderão adotar como
sendo a comum.
Na história do direito da propriedade, essa imposição de visão de
mundo da parcela social dominante sobre as demais, talvez mais do que em
qualquer outro campo do direito, é perceptível de forma bastante evidente. É
notório, por exemplo, como, com a Revolução Francesa e, posteriormente, com
o Code Napoléon, se firmou ser a propriedade um direito natural, sagrado e
inviolável, numa aliança da propriedade com Deus que almejou, no campo do
direito objetivo, única e exclusivamente a garantia de um direito absoluto de uso
e gozo, inatingível por qualquer pessoa, numa concepção, em favor da classe
então emergente, de cunho exclusivamente particular, que superava o interesse
público, com uma completa inversão de valores que só veio a ser roída, em
nosso País, a partir da Constituição Federal de 1.988, quando a noção de função
social da propriedade foi resgata com um vigor mais intenso do que nas Cartas
anteriores.
Durante longos anos, essa concepção do Direito de Propriedade
reinou absoluta, não só como senso comum, como, também, um direito natural
da sociedade. Hoje, vemos que não havia e não há nada mais falso. E não que as
coisas, no plano material, hajam mudado. Elas, hoje, no que é fundamental, são
exatamente as mesmas de quando esse conceito de propriedade foi forjado,
950
Pensando o Espaço do Homem. 2ª ed. São Paulo: Hucitec, 1.986, p. 5.
320
sendo, portanto, o conceito, falso desde o seu princípio. Afinal, como diz Alf
Ross,
[...] o direito natural do século XVIII pregou um individualismo e
liberalismo extremos. A inviolabilidade da propriedade privada e a
ilimitada liberdade contratual foram os dois dogmas que o século XIX
herdou do direito natural, dogmas que foram afirmados na prática dos
tribunais norte-americanos para invalidar muitas leis de caráter
social
951
.
Ilustrando concretamente as suas assertivas, Alf Ross lembra, por
exemplo, que,
Ainda em 1922 a Corte Suprema dos Estados Unidos (no caso Adkin)
declarou a inconstitucionalidade de uma lei do Distrito de Colúmbia
sobre salários mínimos para mulheres apresentando o fundamento de
que essa lei – que fora sancionada para assegurar às mulheres (com a
pior das remunerações) uma condição mínima de subsistência e livrá-
las de cair na semi-prostituição – violava o direito natural dessas
mulheres de celebrar contratos livremente
952
.
Em síntese, nas palavras de Alf Ross,
O nobre manto de direito natural foi utilizado no decorrer do tempo
para defender todo tipo concebível de exigências, que surgem,
evidentemente, de uma situação vital específica ou que são
determinadas por interesses de classe econômico-políticos, pela
tradição cultural da época, por seus preconceitos e aspirações – em
síntese: para defender tudo aquilo que constitui o que se chama
geralmente de uma ideologia
953
.
Hans Kelsen também confirma a assertiva, quando diz que:
A maioria dos representantes da doutrina do Direito natural afirmava
que a propriedade individual, essa base da ordem social feudal e
capitalista, era um Direito natural – portanto, sagrado, inalienável –
que a natureza ou a razão haviam conferido ao homem; que, por
conseguinte, a propriedade coletiva ou a comunhão de bens, ou seja, o
comunismo, eram contra a natureza e a razão e, assim, injustas.
Todavia, o movimento do século XVIII que desempenhou certo papel
de relevância na Revolução Francesa e que visava à extinção da
propriedade individual e à implantação de uma ordem social
comunista também recorria ao Direito natural. Seus argumentos
951
ROSS, Alf. Direito e justiça. 1ª reimpressão. Trad. Edson Bini. Rev. téc. Alysson Leandro Mascaro. Bauru:
Edipro, 2003, p. 303.
952
Ibid., p. 303-4, grifo nosso.
953
Ibid., p. 302.
321
possuem a mesma força comprobatória com a qual a propriedade
individual, na ordem social vigente, era defendida, isto é,
absolutamente nenhuma
954
.
Não é para menos, portanto, que Alf Ross, diante das funções
reais desempenhadas historicamente pelo direito natural, chega afirmar
acidamente que tal qual “[...] uma prostituta, o direito natural está [e esteve, de
fato] a disposição de todos. Não há ideologia que não possa ser defendida
recorrendo-se à lei natural”
955
, ou, dito de outro modo, por Hans Kelsen:
“Através dos métodos da doutrina do Direito natural, que se baseiam em um
sofisma, pode-se comprovar tudo e, portanto, nada”
956
.
E nem é por outra razão que Lênio Luiz Streck afirma a
atualidade da discussão “[...] do papel da ideologia na sociedade e,
principalmente no direito”
957
, ideologia essa que, segundo os dizeres de Marilena
de Souza Chauí,
[...] não é apenas a representação imaginária do real para servir ao
exercício da dominação em uma sociedade fundada na luta de classes,
como não é apenas a inversão imaginária do processo histórico na
qual as idéias ocupariam o lugar dos agentes históricos reais. A
ideologia, forma específica do imaginário social moderno, é a
maneira necessária pela qual os agentes sociais representam para
si mesmos o aparecer social, econômico e político, de tal sorte que
essa aparência (que não devemos simplesmente tomar como
sinônimos de ilusão ou falsidade), por ser o modo imediato e
abstrato de manifestação do processo histórico, é o ocultamento
ou a dissimulação do real. A sistematicidade e a coerência
ideológicas nascem de uma determinação muito precisa: o discurso
ideológico é aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a
diferença entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma
lógica da ideificação que unifique pensamento, linguagem e realidade
para, através dessa lógica, obter a identificação de todos os sujeitos
sociais com uma imagem particular universalizada, isto é, a imagem
da classe dominante. Universalizando o particular pelo apagamento
das diferenças e contradições, a ideologia ganha coerência e força
porque é um discurso lacunar e não pode ser preenchido. Em outras
954
KELSEN, Hans. O que é justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. 3ª ed. Trad. Luís
Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 23.
955
ROSS, Alf. Direito e justiça. 1ª reimpressão. Trad. Edson Bini. Rev. téc. Alysson Leandro Mascaro. Bauru:
Edipro, 2003, p. 304.
956
KELSEN, op. cit., p. 23.
957
STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri: símbolos e rituais. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
1998, p. 38.
322
palavras, a coerência ideológica não é obtida malgrado as lacunas,
mas, pelo contrário, graças a elas
958
.
Ibn Khaldun, muito antes de Karl Marx, já professava uma
verdade que é inegável: “As diferenças que se observam nos usos e nas
instituições dependem da maneira como cada um deles provê a própria
subsistência”
959
. Ou, dito de outra forma: o modo com o qual o homem se
relaciona com o meio que o cerca determina o seu ser.
Nesse contexto, a natureza humana é, sem dúvida,
[...] o efeito perpetuamente modificado de um devir histórico cuja
causa reside “fora” do homem. Para existir, este deve alimentar o seu
organismo tirando da “natureza exterior” as substâncias
indispensáveis, o que pressupõe uma certa ação desse homem sobre a
natureza. Mas, “ao mesmo tempo que atua por este movimento sobre a
natureza exterior e a modifica, modifica a sua própria natureza” (K.
Marx, ‘O Capital, t. I)
960
.
Não é por outra razão, aliás, que Mikhail Bakhtin, após reduzir a
palavra a um “[...] fenômeno ideológico por excelência”
961
, de função
estritamente significante
962
, sustenta que:
A realidade dos fenômenos ideológicos é a realidade objetiva dos
signos sociais. As leis dessa realidade são as leis da comunicação
semiótica e são diretamente determinadas pelo conjunto das leis
sociais e econômicas. A realidade ideológica é uma superestrutura
situada imediatamente acima da base econômica. A consciência
individual não é o arquiteto dessa superestrutura ideológica, mas
apenas um inquilino do edifício social de todos os signos
ideológicos
963
.
Noutras palavras, Mikhail Bakhtin nos ensina que:
Todo signo [...], como sabemos, resulta de um consenso entre
indivíduos socialmente organizados no decorrer de um processo de
958
CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 7ª ed. São Paulo: Cortez,
1997, p. 3, grifo nosso.
959
KAHLDUN, Ibn. Prolegomènes, I, p. 254, apud LACOSTE, Yves. Ibn Khaldun: nascimento da história.
Passado do Terceiro Mundo. São Paulo: Ática, 1991, p. 78.
960
PLKEKHÁNOV, Gueórgui. Obras Escolhidas. Moscou: Ed. Progresso, 1987, p. 108, grifo do autor.
961
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 11ª ed. São Paulo: Ed. Hucitec, 2004, p. 36, grifo
do autor.
962
Id, loc. cit.
963
Id., loc. cit.
323
interação. Razão pela qual as formas do signo são condicionadas
tanto pela organização social de tais indivíduos como pelas
condições em que a interação acontece. Uma modificação destas
formas ocasiona uma modificação do signo
964
.
Assim é que Mikhail Bakhtin, após insistir no sentido de que
“Realizando-se no processo da relação social, todo signo ideológico, e portanto
também o signo lingüístico, vê-se marcado pelo horizonte social de uma época
e de um grupo social determinados”
965
, sintetiza que:
O ser, refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se
refrata. O que é que determina esta refratação do ser no signo
ideológico? O confronto de interesses sociais nos limites de uma só e
mesma comunidade semiótica, ou seja: a luta de classes.
Classe social e comunidade semiótica não se confundem. Pelo
segundo termo entendemos a comunidade que utiliza um único e
mesmo código ideológico de comunicação. Assim classes sociais
diferentes servem-se de uma só e mesma língua. Conseqüentemente,
em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor
contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de
classes
966
.
E é exatamente por isso que Walter Benjamin diz que o direito
“[...] reconhece a decisão espacial temporalmente determinada como categoria
metafísica [...]”
967
, reconhecimento esse que, conforme argutamente apontado
por Giorgio Agamben
968
, a partir do próprio Walter Benjamin, corresponde “[...]
a peculiar e desmoralizante experiência da indecidibilidade última dos sistemas
jurídicos”
969
.
964
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 11ª ed. São Paulo: Ed. Hucitec, 2004, p. 44, grifo
do autor.
965
Id., loc. cit., grifo do autor, grifo nosso.
966
Ibid., p. 46, grifo do autor.
967
BENJAMIN, Walter. Crítica da violência: crítica do poder. In: Documentos de cultura, documentos de
barbárie. BOLLE, Willi (Org. e apres.). São Paulo: Cultrix, 1986, p. 189 apud AGAMBEN, Giorgio. Estado de
exceção. Tradução de Iraci D. Poletti. São Paulo: Boitempo, 2004 (Estado de sítio), p. 85.
968
AGAMBEN, op. cit., p. 85.
969
BENJAMIN, op. cit., p. 196 apud AGAMBEN, loc. cit. Cláudia Rosane Roesler, baseando-se no modelo
retórico de Theodor Viehweg, observa que o direito, enquanto instrumento prático, só se viabiliza
operacionalmente a partir de uma suspensão do juízo investigatório. “O saber jurídico – diz ela – não pode ser
desenvolvido apenas zeteticamente [segundo um campo dito científico], porque isto o impediria de fornecer
respostas aos problemas colocados pela sociedade, na medida mesma em que esse enfoque salienta sobretudo a
reflexividade nas questões que coloca. Como o direito é instrumento de controle de comportamentos e precisa
fornecer decisões para os conflitos sociais, a reflexividade excessiva constitui um perigo para sua capacidade de
dar respostas” (ROESLER, Cláudia Rosane. Theodor Viehweg e a Ciência do Direito: tópica, dircurso,
324
Ora, em que pese, como diz Mikhail Bakhtin, a palavra ver-se
marcada “[...] pelo horizonte social de uma época e de um grupo social
determinados” (o que é de capital importância ao direito, já que é a partir da
palavra que os textos, inclusive os normativos, se fazem conhecer), realidade
essa que já nos traria um quadro sociológico deveras adverso para se extrair
qualquer noção de verdade ou de justiça únicas (adequado, porém, à
indecidibilidade de Walter Benjamin), o fato é que, salvo em linhas gerais de
grande abstração e abarcando períodos históricos relativamente longos,
constituindo-se, o espaço (a época, de Mikhail Bakhtin), em um acúmulo
desigual de tempos, desigualmente se dará essa luta pela existência. Desse
modo, a própria natureza humana, mesmo considerando-se um diminuto espaço,
se manifestará diferencialmente, ainda que dentro de uma mesma classe social,
o que torna a materialidade social ainda mais multifacetada (e, portanto, muito
mais a sério deve-se ter em conta a advertência da “indecidibilidade última [dos]
problemas jurídicos”, como apontado por Walter Benjamin).
É importante que hoje se reconheça que “A interpretação é
sempre constitutivamente histórica, não podendo desligar-se do seu tempo, lugar
e sujeitos implicados na mesma”, assim como que, “Ao fixar os direitos e
deveres, o interprete fala a partir de uma sociedade, com suas modalidades,
conflitos, frustrações, virtudes etc.”
970
.
Essas assertivas, porém, podem não passar de meras categorias
metafísicas se não compreendemos exatamente o que é e como é constituída a
materialidade social na qual o intérprete se insere e sobre a qual ele deve falar.
A acumulação desigual de tempos, da qual vimos falando, faz
com que se perpetuem no presente idéias e visões de mundo não mais
racionalidade. Prefácio de Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Florianópolis: Momento Atual, 2004, p. 188). Se
considerarmos isso como verdadeiro (e nos parece que se trata de algo irrefutável), mais aguda – e
desmoralizante – seria essa característica indecidibilidade última dos sistemas jurídicos em geral a que Walter
Benjamin alude.
970
VIGO, Rodolfo Luis. Interpretação jurídica: do modelo juspositivista-legalista do século XIX às novas
perpectivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 168.
325
compatíveis com o próprio modo de produção dominante, eis que aquele modo
que é superado ainda logra, via de regra e por certo tempo, coexistir com ele,
tornando, assim, o horizonte social de Mikhail Bakhtin, deveras elástico, seja
visto sob o ângulo de uma época, ou de um grupo social.
Como se não bastasse a divisão da sociedade em classes e a
natural (e irreconciliável) luta de interesses que ela implica, perpetua-se, assim,
um descompasso entre as condições objetivas de produção dominantes e as
manifestações subjetivas do homem, até mesmo porque elas (as manifestações
subjetivas), ainda encontrando lastro dentro dessa dominação em manifestações
objetivas do modo de produção que falece, prolongam-se no tempo.
Há mais de um século, por exemplo, extirpou-se com o modo
escravista de produção, calcado na mão de obra negra.
Nem por isso, contudo, conseguiu-se, até hoje, suplantar de todo
e de todos as mentalidades que a engendraram e a tornaram possível: a
coisificação do negro e a necessária subtração de sua humanidade,
considerando-o um ser inferior, um desigual, o que tornava possível a sua
subjugação.
Do mesmo modo, a expansão global territorial, há mais de três
séculos encerrou-se, e, com ele, o direito de conquista. Nem por isso, suplantou-
se as mentalidades que a engendraram e a tornaram possível, mediante a mesma
coisificação que se fez com o negro, recaindo, contudo, essa, sobre os nativos,
tidos como seres inferiores, preguiçosos, etc., incapazes de subsistirem por si
sós, sendo, portanto, de seus próprios interesses a subjugação. E é, por incrível
que se pareça, essa mesma mentalidade que hoje dá lastro à globalização neo-
liberal que arrasta barreiras e fronteiras nacionais, alardeando a expansão da
modernidade que os nativos não teriam condições de desenvolverem por conta
própria.
E nem se queira dizer que essas mentalidades são típicas da plebe
ignara. Em nosso País, talhou mesmo não poucas celebridades científicas, como
326
é o caso de Raymundo Nina Rodrigues, positivista de triste memória e que até
hoje é badalado em nosso meio jurídico, a ponto de possuir-mos em sua
homenagem a nominação de um dos mais célebres Institutos Médicos Legais do
País (Instituto Médico Legal Nina Rodrigues)
971
.
O fato, em suma, é que o presente, em verdade, encerra conflitos
de interesses e mentalidades irreconciliáveis, a despeito da pretensão do
legislador e do positivismo em querer talhar uma justiça universal. A
acumulação desigual de tempos, simplesmente torna isso impossível.
Assim, se já as categorias que nos são legadas pelos estudos
lingüísticos, nos indicavam a absoluta impossibilidade de se firmar uma
verdade jurídica e, por via de conseqüência, entendemos, também uma noção
de justiça, as modernas categorias da geografia social, particularmente a partir
das categorias que nos são legadas por Milton Santos, tornam essas premissas
ainda mais etéreas.
Mesmo operando-se com a categoria aberta dos direitos
fundamentais, que já é um grande avanço, continuamos a crer que essa pretensão
encerra, de uma forma ou de outra, um conteúdo ideológico, no mínimo,
perigoso. Afinal, as categorias abertas, devem ser preenchidas, sejam elas
quais forem...
Bem vimos acima, por exemplo, como a categoria do direito
natural foi historicamente preenchida de tal sorte a legitimar as mais
conservadoras manifestações sócio-econômicas no campo jurídico.
Alf Ross, aliás, comentando especificamente o princípio de
justiça e, mais especificamente ainda, o princípio de justiça visto a partir do
postulado da igualdade, afirma com absoluta propriedade que
971
A respeito de algumas teses difundidas por Raymundo Nina Rodrigues - discípulo declarado de Cesare
Lombroso e por este reconhecido como tal -, de cunho eminentemente racistas e que, a despeito de terem sido
gestadas e herdadas do período escravista e colonialista, ainda repercutem em nosso sistema repressor,
particularmente no senso comum policial (mas não só), leia-se: SILVA JÚNIOR, Hédio. Direito penal em preto
e branco. Revista brasileira de ciências criminais, São Paulo, nº 27, p. 327-338, jul.-set. 1999.
327
[...] a pura exigência formal de igualdade não significa em si muito e
que a pura exigência formal de igualdade não significa em si muito e
que o conteúdo prático da exigência de justiça depende de
pressupostos que são externos ao princípio de igualdade, a saber, os
critérios que determinam as categorias às quais se deve aplicar a
norma de igualdade. Não representa muito sustentar que as
remunerações e os impostos deverão ser estabelecidos com igualdade.
São fórmulas vazias, a menos que se defina, adicionalmente,
mediante qual critério dever-se-á determinar o que se entende por
“com igualdade”
972
.
Desconhecer essa realidade importa, como já dito, julgar ou
teorizar não sobre o real, o concreto, mas sobre uma abstração.
Plauto Faraco de Azevedo, atento a esse contexto, bem assevera
que:
A pretendida neutralidade diante dos valores e das circunstâncias em
que a lei é elaborada resulta num lavar-de-mãos diante de sua eventual
iniqüidade e num dizer-amém à legalidade, seja ela qual for. Por essa
forma, prepara-se o jurista a assimilar qualquer quadro histórico de
onde advenham as leis.
É no que dá a construção de uma ciência que, para erigir-se, privilegia
a tal ponto as normas, em sua organização escalonada na ordem
jurídica, que termina por esquecer o social e as contingências humanas
em função de que, afinal, existe a ordem jurídica. Em conseqüência, se
essa ciência pura de normas voltar-se contra os homens, pouco
importa, pois o de que ela cuida primacial e ciosamente é da sua
cientificidade.
É indispensável que tanto o direito quanto a sua teorização não
percam jamais o sentido da realidade. Não se pode esquecer, por outra
parte, que a concepção geral que se tem da ciência, em
determinada época, está condicionada por toda a estrutura social.
“A ciência não é uma atividade que opera no vazio, mas uma
‘atividade social’” [...]
973
.
Daí porque, em suma, entendemos que a denominada sentença
injusta e a relativização da coisa julgada em relação a ela, é algo que,
simplesmente, resgata, na prática, a equivocada noção de univocidade do direito,
972
ROSS, Alf. Direito e justiça. 1ª reimpressão. Trad. Edson Bini. Rev. téc. Alysson Leandro Mascaro. Bauru:
Edipro, 2003, p. 317-8, grifo em negrito nosso, grifo em itálico do autor. Orlando Gomes, em escrito pouco
difundido, repercutindo essa mesma idéia, afirma que: “A idéia do Direito natural fermenta num conceito vazio
de conteúdo, que se tem procurado rechear, através dos tempos, com princípios abstratos ou crenças religiosas. É
ao preço de extrema generalidade que a teoria consegue sua clareza [...]” (GOMES, Orlando. Marx e Kelsen. In:
Raízes históricas e sociológicas do Código Civil Brasileiro. ______. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 94).
328
dentro de um contexto positivista que já nos legou dissabores vários enquanto
impregnou o senso de normatividade a partir do estrito legalismo e, hoje, se
insinua, novamente e a partir de vozes progressistas, em nosso seio, trazendo
consigo todos os riscos que ela representa para uma adequada operacionalização
do direito.
Sendo a noção de justiça algo claramente vago, cujo conteúdo
sempre derivará, explícita ou implicitamente, de “[...] critérios materiais
pressupostos”
974
, invocá-la como fundamento de validade do julgado é, tal qual
diz Alf Ross,
[...] como dar uma pancada na mesa: uma expressão emocional que
faz da própria exigência um postulado absoluto. Não é o modo
adequado de obter entendimento mútuo. É impossível ter uma
discussão racional com quem apela para a “justiça”, porque nada diz
que possa receber argumentação a favor ou contra. Suas palavras são
persuasão, não argumentos [...]. A ideologia da justiça conduz à
intolerância e ao conflito, visto que, por um lado, incita à crença de
que a exigência de alguém não é meramente a expressão de um certo
interesse em conflito com interesses opostos, mas, sim, que possui
uma validade superior, de caráter absoluto; e, por outro lado, exlui
todo argumento e discussão racionais que visem a um acordo. A
ideologia da justiça é uma atitude militante de tipo biológico-
emocional, para a qual alguém incita a si mesmo à defesa cega e
implacável de certos interesses
975
.
Por outro lado, tal qual já afirmado alhures e reafirmamos,
Visto que a idéia formal de igualdade ou justiça carece de todo
significado, é possível advogar a favor de qualquer postulado material
em nome da justiça. Isto explica porque todas as guerras e conflitos
sociais [...] foram travados em nome da exaltada idéia de justiça
976
.
É justamente por essa capacidade camaleônica do direito natural
de prestar-se “a objetivos colidentes”
977
que Orlando Gomes dizia que “[...] a
973
AZEVEDO, Plauto Faraco de. Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica. Porto Alegre: Sérgio Antonio
Fabris Editor, 1989, p. 54, grifo nosso.
974
ROSS, Alf. Direito e justiça. 1ª reimpressão. Trad. Edson Bini. Rev. téc. Alysson Leandro Mascaro. Bauru:
Edipro, 2003, p. 319.
975
Ibid., p. 320.
976
Id., loc. cit.
977
GOMES, Orlando. Marx e Kelsen. In: Raízes históricas e sociológicas do Código Civil Brasileiro. ______.
São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 96.
329
idéia do Direito natural é lâmina de “gilete”; corta dos dois lados, porque
também serve aos contentes”
978
. Presta-se “[...] para todos os apetites -, dos que
têm fome de eticidade aos que se contentam em enganar o estômago”
979
.
Com José Fábio Rodrigues Maciel, afinal, concluímos que:
A COISA JULGADA, um dos itens relacionados à segurança jurídica,
transmite uma verdade que não mais pode ser questionada. Importante
notar que, para a fenomenologia, deve haver possibilidade de ocorrer
mais de uma verdade, e todas elas vão fazer coisa julgada. O ideal do
direito NÃO é a certeza, e sim a não-surpresa, que vem por
intermédio de um sistema estável, flexível e aberto às modificações
sempre que necessário. Com isso, mais a procedimentalização do
direito, que evita arbitrariedades por parte dos intérpretes, pode-se
perfeitamente dar vazão à angústia, tendo um sistema baseado em
princípios e que suporte as mudanças inerentes ao seio social, que
acabam por se refletir no mundo jurídico
980
.
Ao nos valermos, dentre outros, de notórios juspositivistas para
repudiarmos qualquer noção de uma possível justiça absoluta, temos plena
consciência dos riscos de se nos imputar uma espécie de relativismo niilista,
amoral e até imoral: a grande crítica endereçada, até hoje, aos juspositivistas de
um modo geral, mesmo nas suas vertentes mais atuais
981
.
Diante dessa crítica, até mesmo Hans Kelsen, do alto de seu
purismo jurídico, de certo modo, tergiversou, quando, defendendo-se,
sustentou que:
O princípio moral que fundamenta – ou do qual se pode deduzir – uma
doutrina relativista de valores é o da tolerância: é a exigência de
compreender com benevolência a visão religiosa ou política de outros,
mesmo que não a compartilhemos, e, exatamente porque não a
compartilhamos, não impedir sua manifestação pacífica.
978
GOMES, Orlando. Marx e Kelsen. In: Raízes históricas e sociológicas do Código Civil Brasileiro. ______.
São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 96, grifo do autor.
979
Id., loc. cit.
980
MACIEL, José Fábio Rodrigues. Teoria Geral do Direito: segurança, valor, hermenêutica, princípios,
sistema. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 147, grifo do autor.
981
Luiz Fernando Coelho, por exemplo, criticando o empirismo, o neoliberalismo e, de um modo geral, o
relativismo na teoria da justiça, particularmente a partir da vertente lingüística (de atualidade inquestionável),
afirma que: “[...] na época atual a influência da filosofia da linguagem tem sido decisiva para o predomínio da
[...] orientação [...] lingüístico-semiológica [do direito], o que faz a noção de justiça recair, se não num
nominalismo revivido, num relativismo lingüístico que destrói qualquer tentativa de fundamentação mais
consitente da justiça que não seja um transcedentalismo renovado” (COELHO, Luiz Fernando. Saudade do
futuro: transmodernidade, direito e futuro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2001, p. 120).
330
Obviamente, uma visão de mundo relativista não resulta o direito à
tolerância absoluta, somente à tolerância no âmbito de um
ordenamento jurídico positivo, que garanta a paz entre os submetidos
a essa justiça, proibindo-lhes qualquer uso da violência, porém não
lhes restringindo a manifestação pacífica de opiniões. Os mais altos
ideais morais foram comprometidos pela intolerância daqueles que os
defenderam. Nas fogueiras acesas pela Inquisição espanhola na defesa
da religião cristã não foram queimados somente os corpos dos
hereges, mas também sacrificado um dos ensinamentos mais notáveis
de Cristo: não julgues, para não seres julgado. Já nas terríveis lutas
religiosas do século XVII, nas quais a igreja perseguida só estava de
acordo com a perseguidora na vontade de destruir a outra, Pierre
Bayle – um dos grandes libertadores do espírito humano – fazia
objeção àqueles que acreditam poder melhor defender uma ordem
religiosa ou política vigente por meio da intolerância aos heterodoxos:
“Toda desordem surge não da tolerância, mas da intolerância.” [...] Se
a democracia é uma forma de governo justa, ela só o é por significar
liberdade, e liberdade significa tolerância. Mas a democracia pode
continuar tolerante, se precisar se defender de intrigas anti-
democráticas? Pode! – na medida em que não reprimir demonstrações
pacíficas de opiniões antidemocráticas. É exatamente nessa tolerância
que reside a diferença entre democracia e autocracia. Teremos o
direito de negar a autocracia e de ter orgulho de nossa forma de
governo democrática apenas enquanto mantivermos essa diferença. A
democracia não poderá se defender se isso implicar desistir de si
própria. Mas é direito de todo governo, mesmo democrático, reprimir
com violência e evitar, pelos meios adequados, tentativas de derrubá-
lo com uso de violência. O exercício desse dirieto não entra em
contradição nem com o princípio da democracia, nem com o princípio
da tolerância. Por vezes, pode parecer difícil traçar um limite claro
entre a propagação de certas idéiais e a preparação de uma insurreição
revolucionária. Mas a possibilidade de manter a democracia depende
da possibilidade de encontrar tal limite. É possível, também, que tal
delimitação contenha um certo perigo. É da natureza e da honra da
democracia, contudo, arcar com tal perigo: e se ela não puder fazê-lo
não será digna de ser defendida.
Uma vez que democracia, de acordo com sua natureza mais profunda,
significa liberdade, e liberdade significa tolerância, nehuma outra
forma de governo é mais favorável à ciência que a democracia. A
ciência só pode prosperar se for livre; ela será livre não somente
quando o for externamente, ou seja, quando estiver independente de
influências políticas, mas também quando o for interiormente, quando
houver total liberdade no jogo do argumento e do contra-argumento.
Nenhuma doutrina pode ser reprimida em nome da ciência, pois a
alma da ciência é a tolerância
982
.
982
KELSEN, Hans. O que é justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. 3ª ed. Trad. Luís
Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 24-5, grifo nosso.
331
Sintetizando a conclusão última a que chegara em torno das suas
pesquisas acerca da justiça, Hans Kelsen ainda diz:
Iniciei este ensaio com a questão: o que é justiça? Agora, ao final,
estou absolutamente ciente de não tê-la respondido. A meu favor,
como desculpa, está o fato de que me encontro nesse sentido em ótima
companhia. Seria mais do que presunção fazer meus leitores
acreditarem que eu conseguiria aquilo em que fracassaram os maiores
pensadores. De fato, não sei e não posso dizer o que seja justiça, a
justiça absoluta, esse belo sonho da humanidade. Devo satisfazer-me
com uma justiça relativa, e só posso declarar o que significa justiça
para mim: uma vez que a ciência é minha profissão e, portanto, a coisa
mais importante em minha vida, trata-se daquela justiça sob cuja
proteção a ciência pode prosperar e, ao lado dela, a verdade e a
sinceridade. É a justiça da liberdade, da paz, da democracia, da
tolerância
983
.
São considerações que, de certo modo, não deixam de ser um
prato cheio aos jusnaturalistas de todos os matizes, na medida em que elas, de
um modo ou de outro - ainda que Hans Kelsen advirta tratar-se de concepção
estritamente pessoal e, portanto, sem qualquer caráter de objetividade – apontam
para um valor último a informar a justiça e, portanto, uma - no mínimo aparente
- transigência com o direito natural.
A transigência de Hans Kelsen, porém, a nosso ver, não é de
estranhar e pode ser debitada justamente ao seu liberalismo político manifesto,
que o conduz à rejeição absoluta da divisão da sociedade em classes e da luta
entre elas que essa mesma divisão engendra; convicção essa que, no plano da
ciência, repercute na sua confessada crença na neutralidade científica, própria do
positivismo e do liberalismo em geral.
Os interesses em conflito, para Hans Kelsen, são interesses de
grupos, de indivíduos; jamais de classe. Por isso mesmo, eles sempre serão
conciliáveis. Ao rejeitar a luta de classes, não lhe resta outra solução senão
983
KELSEN, Hans. O que é justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. 3ª ed. Trad. Luís
Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 25.
332
emprestar à justiça uma concepção evolucionista (que é a negação da ruptura
social; do salto dialético-marxista), assegurada pela tolerância.
Nesse sentido, pensamos que o que poucos percebem, é que a
problemática não é tanto a concepção que Hans Kelsen tem do direito. Muito
menos a sua concepção em torno da interpretação do direito e a sua aplicação ao
caso concreto, onde, como vimos, ele opera com categorias que dão conta da
plurivocidade do direito no ato da sua aplicação; da negação de uma verdade
interpretativa; e, até, do conteúdo político da decisão concretamente
proferida.
Ou seja, aquilo que muitos, hoje, repercutem com estritende
alarde criticista, no sentido de denunciar as motivações ideológico-políticas da
decisão judicial, Hans Kelsen sempre encarou com naturalidade!
O problema da concepção kelseniana do direito não está na sua
aplicação, e, sim, na concepção que ele tem da ciência do direito.
Deixemos que ele próprio se explique:
Mesmo que um método de interpretação seja obrigatório, ele pode
fornecer significados diferentes e contraditórios. Ao aplicar uma
norma, a autoridade jurídica escolhe um desses significados e, assim,
atribui a ele força de Direito. Isso pode ser chamado uma interpretação
autêntica, embora na linguagem tradicional esse termo seja usado
apenas para designar uma norma jurídica cujo propósito expresso é
interpretar outra norma anterior, não a interpretação implícita na
aplicação da norma. A escolha de um dos vários significados de uma
norma jurídica por uma autoridade jurídica em sua função aplicadora
de Direito é um ato criador de Direito. Na medida em que essa escolha
não é determinada por uma norma superior, é uma função política.
Pois a escolha entre os diferentes significados de uma norma jurídica,
se não é determinada por uma norma superior, pode ser, e
efetivamente é, determinada por outras normas não-jurídicas. Isto é,
por normas políticas. Portanto, a interpretação automática do Direito
por uma autoridade jurídica pode ser caracterizada como
interpretação política. Por outro lado, a tarefa de um cientista
jurídico que interpreta um instrumento jurídico é demonstrar seus
possíveis significados e deixar à autoridade jurídica competente a
escolha, segundo princípios políticos, do que essa autoridade julga
mais adequado. Ao mostrar as possibilidades que a lei a ser aplicada
abre à autoridade jurídica, o cientista jurídico serve cientificamente à
333
função aplicadora do direito; ao revelar a ambigüidade e, assim, a
necessidade de melhorar a redação, serve à função criadora de Direito
de maneira científica. Se o cientista jurídico recomenda à
autoridade jurídica um dos diferentes significados de uma norma
jurídica, ele tenta influenciar o processo criador de Direito e
exerce uma função política, não científica; se ele apresenta essa
interpretação como a única correta, está atuando como um
político disfarçado de cientista. Está escondendo a realidade jurídica.
Mas a ciência tem de revelar a realidade; apenas ideologias políticas
tentam ocultá-la. Portanto, a interpretação científica do Direito, que
é a interpretação do Direito por um cientista jurídico, pode ser
caracterizada como uma interpretação jurídica – em
contraposição à interpretação aplicada por uma autoridade
jurídica. Ao preferir uma das diversas interpretações posíveis, à
exclusão de outras, a segunda pode ser caracterizada como uma
interpretação política.
984
A ciência do direito, portanto, neutra que é, como toda e
qualquer ciência, com o seu conteúdo de verdade, sempre será a nossa
salvaguarda! (Segundo Hans Kelsen, bem entendido!).
O oráculo do juiz, portanto, enquanto autoridade incumbida de
aplicar o direito, não seria a lei, mas, sim, o cientista do direito! Dele se extrairá
a verdade (ainda que múltiplas; mas todas verdadeiras: uma espécie de unidade
na diversidade).
A acepcia moral kelseniana, portanto, não está, propriamente, na
sua concepção do direito. Está na sua concepção científica e na relação que ele
estabelece entre o cientista do direito e a autoridade aplicadora. Está na
interdição do cientista em opinar acerca da solução adequada entre as variantes
possíveis e, mais ainda, na crença de que, ao descartar algumas das variantes, ele
não tenha agido politicamente.
A pureza kelseniana do direito se encerra, na verdade, na
concepção da pureza científica sobre a qual ela é edificada; e o alvo de
qualquer crítica séria que a ela se dirija não deve se assentar no pretenso
isolamento que ele faz entre direito e política, ou direito e justiça. Esse
984
KELSEN, Hans. O que é justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. 3ª ed. Trad. Luís
334
isolamento não é outra coisa que não o fruto do mito da neutralidade científica
em geral, do qual Hans Kelsen é convicto adepto.
O que queremos dizer com issso é que, por exemplo, as
concepções da eugenia nazista, não se insinuaram e repercutiram no direito
alemão entre a Primeira e a Segunda Grande Guerra por conta de um suposto
niilismo jurídico então prevalecente.
Isso ocorreu, muito ao contrário, porque cientistas militantes da
biologia e da medicina em seus vários ramos, inclsuvive o genético, a partir dos
Estados Unidos e já no limiar do século XX, desenvolveram toda uma teoria de
eugenia social de cunho indisfarçavelmente racista que, exportada para a
Europa, culminou na eugenia nacional socialista alemã, além de vários outros
programas não menos execráveis na França, Suíça, Noruega, etc
985
.
Foi a crença na cientificidade desse conhecimento eugênico, e,
em última instância, no seu conteúdo de verdade que permitiu com que esses
programas eugênicos adquirissem foros de juridicidade.
O caso do notável Juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos,
Oliver Wendell Holmes Jr., “[...] defensor – nas palavras de Edwin Black - do
mais nobre ideal de jurisprudência americana [...]”
986
, é emblemático.
A ele coube, em 1927, quando já contava com 87 anos, o relato
do caso Buck v. Bell, que envolvia o pedido de esterilização de uma senhora tida
como imbecil, formulado pelas autoridades sanitárias do Estado da Virgínia,
com base em uma lei local, cuja constitucionalidade era questionada pela
primeira vez junto à Corte Suprema, pelo que o julgamento era tido como
Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 367-8, grifo nosso.
985
Acerca do limiar das concepões eugênicas nos Estados Unidos e o seu posterior desenvolvimento da Europa,
consulte-se o muito bem documentado trabalho de: BLACK, Edwin. A guerra contra os fracos: a eugenia e a
campanha norte-americana para criar uma raça superior. Tradução de Tuca Magalhães. São Paulo: A Girafa
Editora, 2003.
986
BLACK, op.cit., p. 211.
335
verdadeiro batismo de sange das leis eugenistas que entam pululavam pelo país
afora
987
.
Em 2 de maio de 1927, o juiz Holmes redigiu a sentença
proferida, que contou com um único voto discordante:
Carrie Buck é uma mulher branca débil mental, internada na Colônia
do Estado, acima mencionado, na forma devida. É filha de mãe débil
mental, presente na mesma instituição, e mãe de uma filha ilegítima
débil mental. Tinha dezoito anos à época de seu julgamento no
circuito da corte, na parte final de 1924. Um Ato da Virgínia,
aprovado em 20 de março de 1924, declara formalmente que a saúde
do paciente e o bem-estar da sociedade podem ser promovidos, em
certos casos, pela esterilização de deficientes mentais, sob
salvaguardas cuidadosas... sem dor severa, ou perigo substancial para
a vida; que a comunidade está sustentando em várias instituições,
muitas pessoas deficientes que, se forem agora liberadas, poderão se
tornar uma ameaça, mas se forem incapazes de procriar poderão ser
liberadas com segurança, e se tornarem pessoas auto-sustentáveis,
com benefício para elas mesmas e para a sociedade; e que a
experiência já demonstrou que a hereditariedade desempenha uma
parte importante na transmissão da insanidade, da imbecilidade, etc.
[...].
Nós já vimos mais de uma vez que o bem-estar público pode exigir as
vidas de seus melhores cidadãos. Seria estranho se não pudesse exigir
daqueles que enfraquecem a força do estado, por esses sacrifícios
menores, freqüentemente não sentidos como tal por aqueles a quem
diz respeito, para prevenir de sermos submersos pela
incompetência
988
.
No arremate, o celébre juiz ainda aduziu:
É melhor para todos no mundo que, em vez de esperar para executar
descendentes degenerados por crimes, ou deixar que morram de fome
por causa de sua imbecilidade, a sociedade possa impedir os que são
realmente incapazes de continuar a espécie. O princípio que sustenta a
vacinação compulsória é amplo o bastante para cobrir o corte das
trompas de Falópio.
Três gerações de imbecis são suficientes
989
.
987
BLACK, Edwin. A guerra contra os fracos: a eugenia e a campanha norte-americana para criar uma raça
superior. Tradução de Tuca Magalhães. São Paulo: A Girafa Editora, 2003, p. 211-3.
988
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Buck contra Bell 274 U.S. 200 (1927) apud BLACK, op. cit., p. 213-4.
É digno de nota que, segundo Edwin Black, dentre os membros que compunham a Suprema Corte dos Estados
Unidos e que participaram do julgamento, havia o juiz Louiz Brandeis, advogado judeu de grande projeção e tido
como combativo defensor dos direitos humanos. Não foi dele, porém, o voto discordante, atribuído ao juiz Pierce
Butler... (Ibid., p. 213).
989
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Buck contra Bell 274 U.S. 200 (1927) apud BLACK, op. cit., p. 215.
336
E foi assim que a Suprema Corte daquele país que se costuma
identificar como sendo o panteão da democracia e das liberdades civis, permitiu
a esterilização de Carrie Buck, executada ao meio-dia, em 19 de outubro de
1927
990
, muito antes, portanto, do advento da hecatombe nazista.
Não é o caso, aqui, de se aprofundar acerca de quais eram os
paradigmas científicos adotados para a caraterização da imbecilidade que, à
época, justificavam as práticas eugênicas, que iam desde a esterilização, até a
retirada dos filhos da guarda da família e o subseqüente internamento em
orfanatos ou a custódia a famílias outras, que deles se valiam, via-de-regra,
como mão de obra doméstica, pura e simplesmente, sem contar a interdição para
o casamento
991
.
Vale, porém, registrar que, não só a simples pobreza e a
mendicância eram admitidas como prova de manifestação de incapacidade e
imbecilidade (o fracasso econômico, em suma, era a manifestação cabal da
inapetência social da pessoa), como que, também, a prostituição, a prática de
crimes e a misceginização de raças, que era o pilar para a interdição ao
casamento
992
.
Nada, portanto, havia de científico na própria aferição da
imbecilidade argumentada no julgamento perante a Suprema Corte, o que serve
para demonstrar o quanto de absurdo tinha a decisão referida, maculada não só
por uma petição de princípio de humanidade como que, também, pelos métodos
de aferição do seu fundamento (a imbecilidade reconhecida).
O fato é, ainda, que o juiz em questão, a despeito da polidez com
que redigiu a famigerada sentença, em suas manifestações privadas sempre foi
ainda mais eloqüente quanto às suas motivações.
990
BLACK, Edwin. A guerra contra os fracos: a eugenia e a campanha norte-americana para criar uma raça
superior. Tradução de Tuca Magalhães. São Paulo: A Girafa Editora, 2003, p. 215.
991
Ibid., passim.
992
Ibid., passim.
337
Conforme Edwin Black diz, ele corriqueiramente descompunha
os “fazedores de bem”
993
, e zombava entre amigos, em 1909: “Eu duvido que
haveria um abalo no governo se todos os cortiços fossem queimados com
querosene”. Ainda, em correspondência datada de 1915, dirigida ao reitor da
Escola de Direito de Harvard, ele novamente gracejava do “[...] sentimentalismo
mole de uma grande minoria [de pessoas, que] me dão vontade de vomitar [...]”,
repreendendo aqueles “[...] que acreditam em ascendência e progresso – que
falam de soerguimento social, que pensam [...] que o universo não é mais
predatório. Oh, tragam-me uma bacia”
994
.
Agora, pergunta-se: donde teriam surgido tais convicções que
esse notório juiz liberal ostentava? Edwin Black nos dá a dica:
[...] o velho juiz de 87 anos havia sido, de muitas maneiras, marcado
pela Guerra Civil e modelado eticamente pelo século XIX. Enquanto
se recuperava de seus ferimentos em Chancellorsville, suas leituras
incluíram o Social Statics (A estatística social), de Spencer, o ponto
culminante do sistema que advogava o darwinismo social, e que tão
significativamente influenciara o pensamento de Galton. Spencer
argumentava que o forte dominava o fraco, e acreditava que as
limitações humanas e a caridade, em si mesmas, eram falsas e contra a
natureza. De fato, a série de palestras de Holmes em 1881, reunidas no
livro A lei comum, também afirmava que a idéia de direitos herdados
era “intrinsecamente absurda”
995
.
É sobre a ciência, portanto, que o velho juiz tinha os seus olhos
postos quando condenou aquela pobre (pobre, literalmente falando, e não
imbecil como se a qualificava!) senhora à castração e à perda da filiação
996
.
O juiz que assim procedia, era aquele mesmo que,
concomitantemente, “[...] via a lei como a expressão viva e orgânica do povo,
993
BLACK, Edwin. A guerra contra os fracos: a eugenia e a campanha norte-americana para criar uma raça
superior. Tradução de Tuca Magalhães. São Paulo: A Girafa Editora, 2003, p. 212.
994
HOWE, Mark De Wolfe. Justice Oliver Wendell Holmes: The Shaping Years 1841-1870. Cambridge,
MA: The Belknap Press of Harvard University Press, 1957, p. 25 apud BLACK, loc. cit.
995
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Buck contra Bell 274 U.S. 200 (1927) apud BLACK, op. cit., p. 211.
996
A sua filha, de tenra idade, foi dada à uma família, da qual passou a ser empregada, morrendo em 1932, aos
oito anos de idade, de doença infecciosa (Cf.: BLACK, op. cit. 215).
338
não apenas como um código estéril”
997
e dizia que:
A vida da lei não tem sido lógica: tem sido experiência. [...]. As
necessidades sentidas pela época, as teorias prevalecentes da moral e
da política, as instituições de política pública, declarados ou
inconscientes, mesmo os preconceitos que os juízes partilham com
seus semelhantes têm tido mais a ver que o silogismo para determinar
as regras pelas quais os homens são governados. A lei incorpora a
história do desenvolvimento da nação ao longo dos séculos, e não
pode ser tratada como se contivesse apenas os axiomas e os corolários
de um livro de matemática
998
.
É triste reconhecer que o velho juiz é a prova histórica dessa
verdade e que, ele próprio, cônscio de todas essas condicionantes, não tenha
conseguido se precaver do vírus eugenista, o que só demonstra o quão objetivas
são essas condicionantes.
Atento a essa realidade histórica pouco difundida na atualidade,
Giorgio Agamben também toca na ferida científica das práticas nazistas,
observando que:
A leitura dos testemunhos das VP [cobaias humanas] sobreviventes e
dos próprios acusados e, em alguns casos, dos protocolos conservados
é uma experiência tão atroz, que a tentação de cosiderar estes
experimentos unicamentecomo atos sádico-criminais que nada têm a
ver com a pesquisa científica é muito forte. Infelizmente isto não é
possível. Para começar, alguns (por certo não todos) dentre os
médicos que haviam conduzido os experimentos eram pesquisadores
assaz conhecidos na comunidade cietífica: o professor Glauberg, por
exemplo, responsável pelo programa sobre a esterilização, era, entre
outros, o idealizador do test (dito justamente, de Glauberg) sobre a
ação do progesterona, que até poucos anos atrás ainda era usado
correntemente na ginecologia; os professores Schröder, Becker-
Freyting e Bergblöck, que dirigiam os experimentos sobre a
potabilidade da água marinha, gozavam de tão boa reputação
científica que, em 1948, após a condenação, um grupo de cientistas de
vários países dirigiu a um congresso internacional de medicina uma
petição para que eles “não fossem confundidos com os outros médicos
criminosos condenados em Nuremberg”; e, durante o processo, o
professor Vollhardt, professor de química médica da universidade de
Frankfurt, não suspeito de simpatia pelo regime nazista, testemunhou
997
BLACK, Edwin. A guerra contra os fracos: a eugenia e a campanha norte-americana para criar uma raça
superior. Tradução de Tuca Magalhães. São Paulo: A Girafa Editora, 2003, p. 210.
998
HOLMES JÚNIOR, Oliver Wendel. The common law. Boston: Little, Brown and Company, 1881;
reimpressão, 1923, p. 1 apud BLACK, op. cit., p. 209-10.
339
diante do tribunal que “do ponto de vista científico, a preparação
destes experimentos havia sido esplêndida”; curioso adjetivo, se
pensarmos que, no curso do experimento, as VP chegaram a um tal
grau de prostração que por duas vezes tentaram sugar água doce de
um pano de chão.
Decididamente mais embaraçosa é, além disso, acircunstância (que
resulta de forma inequívoca da literatura científica anexada pela
defesa e confirmada pelos peritos do tribunal [de Nuremberg]) de que
experimentos com detentos e condenados à morte haviam sido
conduzidos muitas vezes e em larga escala, no nosso século (século
XX), em particular nos próprios Estados Unidos (o país de onde
provinha a maior parte dos juízes de Nuremberg). Assim, nos anos
vinte, oitocentos detentos nos cárceres dos Estados Unidos haviam
sido infectados com o plasmódio da malária na tentativa de encontrar
um antídoto para o paludismo. Exemplares, na literatura científica
sobre a pelagra, eram considerados os experimentos conduzidos por
Goldberger em 12 detentos estadunidenses condenados à morte, aos
quais tinha sido prometido, se sobrevivessem, um indulto da pena.
Fora dos USA, as primeiras pequisas com culturas do bacilo do
beribéri haviam sido conduzidas por Strong, em Manila, em
condenados à morte (os protocolos dos experimentos não mencionam
se tratavam-se ou não de voluntários). A defesa citou ainda o caso do
condenado à morte Keanu (Havaí), que havia siudo infectado com
lepra sob a promessa de graça e tinha falecido em conseqüência do
experimento
999
.
Com isso, queremos dizer que, se no plano da decidibilidade, a
teoria de Hans Kelsen poderia, de fato, ser tratada dentro de um contexto
relativista, no plano cognitivo, isso de modo algum se verifica.
A concepção científica de Hans Kelsen é essencialmente
positivista e, nesse contexto, crê na neutralidade científica e, portanto, na
capacidade dessa ciência, inclusive da ciência do direito, de produzir verdades.
Em última instância, portanto, Hans Kelsen introduz pelas portas
dos fundos, aquilo que ele expulsa pela porta da frente: o político. Afinal de
contas, nada há de mais político do que o discurso da neutralidade científica, a
partir do qual se molda o “[...] sistema de uma cientificidade natural
1000
que
999
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2ª reimpressão. Tradução de Henrique
Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 163-4, grifo do autor.
1000
SCHMITT, Carl. O conceito do político. Apresentação de Hans Georg Flickinger. Tradução de Álvaro L.
M.Valls. Pretrópolis: Vozes, 1992, p. 114, grifo do autor.
340
busca no discurso técnico-científico “[...] o solo absoluta e definitivamente
neutro. Pois aparentemente não existe nada de mais neutro do que a técnica”
1001
.
Na medida, ainda, que Hans Kelsen busca na liberdade o seu
fundamento de validade da neutralidade, na prática e em última instância ele
naturaliza nada mais nada menos do que o modelo político liberal, valendo,
aqui, aquela mesma crítica que Luiz Fernando Coelho dirige a John Ralws e
Ronald Dworkin, quando diz que eles, ao elegerem a liberdade como paradigma
último da justiça, acabam por justificar a estratificação social e que, por isso
mesmo, “[...] podem ser considerados os ideólogos do neoliberalismo”
1002
.
Hans Kelsen, portanto, através do seu dircurso científico
positivista, naturaliza o mito da neutralidade científica, de cunho eminentemente
político, e, através desse mito, introduz no plano do direito justamente aquilo
que, no plano da aplicação do direto ele sustenta não ser possível: a existência
de uma verdade; a verdade científica, que, por ser neutra, não é política...
Ao contrário do que apregoa esse mito, porém, Boaventura de
Sousa Santos bem esclarece que:
As idéias da autonomia da ciência e do desinteresse do conhecimento
científico, que durante muito tempo constuíram a ideologia
espontânea dos cientistas, colapsaram perante o fenômeno global da
industrialização da ciência a partir sobretudos das décadas de trinta e
quarenta. Tanto nas sociedades capitalistas como nas sociedades
socialistas de Estado do leste europeu, a industrialização da ciência
acarretou o compromisso desta com os centros de poder econômico,
social e político, os quais passaram a ter um papel decisivo na
definição das prioridades científicas.
A industrialização da ciência manifestou-se tanto ao nível das
aplicações da ciência como ao nível da organização da investigação
científica. Quanto às aplicações, as bombas de Hiroshima e Nagasaki
foram um sinal trágico, a princípio visto como acidental e fortuito,
mas hoje, perante a catástrofe ecológica e o perigo do holocausto
nuclear, cada vez mais visto como manifestação de um modo de
produção da ciência inclinado a transformar acidentes em ocorrências
sistemáticas.
1001
SCHMITT, Carl. O conceito do político. Apresentação de Hans Georg Flickinger. Tradução de Álvaro L.
M.Valls. Pretrópolis: Vozes, 1992, p. 114.
1002
COELHO, Luiz Fernando. Saudade do futuro: transmodernidade, direito e futuro. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2001, p. 142.
341
[...]
No domínio da organização do trabalho científico, a industrialização
da ciência produziu dois efeitos principais. Por um lado, a comunidade
científica estratificou-se, as relações de poder entre cientistas
tornaram-se mais autoritárias e desiguais e a esmagadora maioria dos
cientistas foi submetida a um processo de proletarização no interior
dos laboratórios e dos centros de investigação. Por outro lado, a
investigação capital-intensiva (assente em instrumentos caros e raros)
tornou impossível o livre acesso ao equipamento, o que contribui para
o aprofundamento do fosso, em termos de desenvolvimento científico
e tecnológico, entre os países centrais e os países periféricos”
1003
.
Portanto, Devemos reconhecer, com Carl Schmitt,
[...] o sentido puramente político desta pretensão de uma “pureza
apolítica” [que] constitui um maneira típica e muito intenciva de fazer
política rotular o adversário de político, enquanto a gente se define
como não-político (isto é, aqui: científico, justo, objetivo, imparcial
etc.)
1004
.
No plano do direito, podemos dizer que foi justamente essa
naturalização da neutralidade científica operada com o discurso da
modernidade que, como é apontado por Luiz Fernando Coelho, conduziu a uma
“[...] crescente identidade entre a norma jurídica e a técnica [...], [onde aquela]
passa a ser enunciada por proposições anancásticas [...] [ou seja], passa a ser
vista tão somente como uma relação anancástica de meios e fins”
1005
.
Para muito além disso, podemos também dizer que é sob o
influxo desse mesmo discurso que, desde a Primeira Guerra Mundial, o plano
econômico da sociedade foi equiparado ao estado de guerra para fins de
carcacterização do estado de exceção que passou a informar toda uma ténica de
intervenção do governo no plano legislativo, da qual a medida provisória é
apenas um dos exemplos, e que acabou por governamentalizar as repúblicas
modernas (parlamentares, em linha de princípio), num processo de verdadeira
ordinarização do Estado de Sítio na atualidade, na feliz síntese de Giorgio
1003
SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2004, p. 56-8.
1004
SCHMITT, Carl. O conceito do político. Apresentação de Hans Georg Flickinger. Tradução de Álvaro L.
M.Valls. Pretrópolis: Vozes, 1992, p. 44, grifo do autor.
342
Agamben
1006
e que só vem a confirmar o que Boaventura de Souza Santos
preconizava ao dizer que, no plano da aplicação, a ciência se inclinava , desde a
Segunda Guerra Mundial, “[...] a transformar acidentes em ocorrências
sistemáticas”
1007
.
Explicando esse atual fenômeno de ordinarização do estado de
sítio, Giorgio Agamben observa que:
Como era previsível, a ampliação dos poderes do executivo na esfera
do legislativo [verificados durante as duas Grandes Guerras]
prosseguiu depois do fim das hostilidades e é significativo que a
emergência militar então desse lugar à emergência econômica por
meio de uma assimilação entre guerra e economia. [...] [Assim],
conforme uma tendência em ato em todas as democracias ocidentais, a
declaração do estado de exceção é substituída por uma generalização
sem precedentes do paradigma da segurança como ténica normal do
governo
1008
.
Esse (aparente) inocente fenômeno, cujo fim último seria,
justamente, assegurar a estabilidade econômica da população em geral, mostrou,
conforme indica Giorgio Agamben, a sua verdadeira face durante a crise
generalizada de 1968, quando, na Alemanha,
[...] a “grande coalizão entre democratas cristãos e socialdemocratas
votou uma lei de integração da constituição [...] que introduzia o
estado de exceção (definido como “estado de necessidade interna”
[...]). Por uma inconsciente ironia, pela primeira vez na história do
instituto a declaração do estado de exceção era, porém, prevista
não simplesmente para a salvaguarda da segurança e da ordem
pública, mas para a defesa da “constituição liberal-democrata”. A
democracia protegida tornava-se, agora, a regra
1009
.
1005
COELHO, Luiz Fernando. Saudade do futuro: transmodernidade, direito e futuro. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2001, p. 69-71.
1006
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poletti. São Paulo: Boitempo, 2004 (Estado
de sítio), p. 24-33.
1007
SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2004, p. 57.
1008
AGAMBEN, op. cit., p. 26-8.
1009
Ibid., p. 30, grifo nosso.
343
O vírus científico da neutralidade, aqui, se faz presente
justamente na identificação do estado de necessidade, que passa a justificar o
estado de exceção, como um dado técnico, aferido a partir da economia
enquanto ciência, objetivando-o e ocultando a avaliação moral e política na qual
ele implica.
Mas – como diz Giorgio Agamben – a aporia máxima, contra a qual
fracassa, em última instância, toda a teoria do estado de necessidade,
diz respeito à própria natureza do estado da necessidade, que os
autores continuam, mais ou menos inconscientemente, a pensar como
uma situação objetiva. Essa ingênua concepção, que pressupõe uma
pura factualidade que ela mesma criticou, expõe-se imediatamente às
críticas dos juristas que mostram como a necessidade, longe de
apresentar-se como um dado objetivo, implica claramente um juízo
subjetivo e que necessárias e excepcionais são, é evidente, apenas
aquelas circunstâncias que são declaradas como tais
1010
.
Ao contrário, então, do que a neutralidade técno-científica induz
a crer,
O conceito de necessidade é totalmente subjetivo, relativo ao
objetivo que se quer atingir. Será possível dizer que a necessidade
impõe a promulgação de uma dada norma, porque, de outro modo, a
ordem jurídica existente corre o risco de se desmoronar; mas é
preciso, então, estar de acordo quanto ao fato de que a ordem existente
deve ser conservada. Um movimento revolucionário poderá declarar a
necessidade de uma nova norma, abolindo os intitutos vigentes
contrários às novas exigências; mas é preciso estar de acordo quanto
ao fato de que a ordem existente deve ser derrubada, em conformidade
com as novas exigências. Num caso como no outro [...] o recurso à
necessidade implica uma avaliação moral ou política (ou, de toda
forma, extrajurídica) pela qual se julga a ordem jurídica e se
considera que é digna de ser convervada e fortalecida, ainda que à
custa de sua eventual violação. Portanto, o princípio da
necessidade é sempre, em todos os casos, um princípio
revolucionário
1011
.
O fato é que, conforme esclarece Terry Eagleton, apesar da
ciência não poder ser reduzida à pura ideologia (afinal, como diz ele, seria difícil
1010
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poletti. São Paulo: Boitempo, 2004 (Estado
de sítio), p. 46, grifo nosso.
1011
BALLADORE-PALLIERI, G. Diritto costituzionale. Milano: Giuffré, 1970, p. 168 apud AGAMBEN,
Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poletti. São Paulo: Boitempo, 2004 (Estado de sítio), p. 46-7,
grifo nosso.
344
reduzir pesquisas sobre o pâncreas como simples reprodução de interesses
burgueses, assim como a topologia algébrica como instrumento de legitimação
do estado capitalista
1012
), ela
[...] está profundamente marcada pela ideologia e inserida na ideologia
– no sentido mais neutro do termo, como toda uma maneira
socialmente determinada de ver ou, às vezes, no sentido mais
pejorativo de mistificação. Na moderna sociedade capitalista, o que é
ideológico na ciência não é apenas esta ou aquela hipótese particular,
mas todo o fenômeno social da própria ciência. A ciência como tal – o
triunfo de maneiras tecnológicas, instrumentais de ver o mundo – atua
como uma parte importante da legitimação ideológica da burguesia,
que é capaz de traduzir questões morais e políticas em questões
técnicas solucionáveis pelos cálculos especialistas. Não é preciso
negar o conteúdo cognitivo genuíno de boa parte do discurso
científico para afirmar que a ciência é um potente mito moderno
1013
.
O que se deve entender, em suma, é que
Como toda forma de experiência organizada de acordocom objetivos e
valores, a ciência possui normas, hábitos, técnicas e práticas com as
quais procura atingir esses objetivos de acordo com os valores
1014
.
Por isso mesmo, “[...] o discurso científico, apesar de sua
pretensão de objetividade e evidência, é retórico”
1015
. E isso macula toda e
qualquer “[...] pretensão de que as afirmações científicas sejam baseadas numa
espécie de evidência que lhe garantiria a aceitação racional sem que nenhum
meio persuasivo esteja nisso implicado”
1016
.
Na sua crítica da economia política – conforme nos diz Hans Georg
Flickinger -, Karl Marx recorreu ao duplo sentido do falar da
“economia política”: além da economia capitalista incorporar
considerações políticas nas suas decisões, ela tenta tornar seus
cálculos econômicos os princípios do agir político. É óbvio que, pela
substituição de critérios políticos por aqueles da racionalidade
1012
EAGLETON, Terry. Ideologia. Tradução de Silvana Vieira e Luís Carlos Borges. São Paulo: Unesp:
Boitempo, 1997, p. 126.
1013
Id., loc. cit., grifo nosso.
1014
ROESLER, Cláudia Rosane. Theodor Viehweg e a ciência do direito: tópica, discurso, racionalidade.
Prefácio de Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Florianópolis: Momento atual, 2004, p. 46.
1015
Ibid., p. 47.
1016
Id., loc. cit.
345
econômico-capitalista, a sociedade liberal-burguesa perdeu a
possibilidade de refletir sobre um lugar autônomo do político
1017
.
No direito, o cientificismo natural-neutralista opera da mesma
forma, apenas que os critérios políticos, aqui, ele os faz substituir por
racionalidades ainda mais opacas, já que supostamente autônomas mesmo da
racionalidade econômico-capitalistas, que é, em última análise, inexistente
enquanto tal.
Daí porque Tércio Sampaio Ferraz Júnior dizer que:
O discurso dogmático sobre a decisão não é só um discurso
informativo sobre como a decisão deve ocorrer, ma um discurso
persuasivo sobre como se faz para que a decisão seja acreditada pelos
destinatários. [...] Por isso a verdade decisória acaba se reduzindo,
muitas vezes, à decisão prevalecente, com base na motivaçãoque lhe
dá suporte
1018
.
Friedrich Muller, buscando construir um novo paradigma do
direito, indaga se não seria o modo pelo qual se formula a pergunta pela justiça
que definiria “[...] as tranformações epocais na ciência jurídica”, ou se, ao
contrário, seria “[...] a posição diante do direito natural [que] define as
transformações epocais da ciência jurídica”
1019
. À primeira das suas auto-
indagações ele dá a seguinte resposta:
[...] a estrela polar da justiça é comum ao direito de todos os tempos,
sem que alguma vez tenha levado a um fundamento confiável. Na
terminologia de Kant, “justiça” é apenas uma idéia regulativa, mas
nenhum dado, nenhum objeto que poderia conferir ao direito a solidez
prática;
à segunda, ele diz que:
[...] a história do direito natural até os nossos tempos, tal como foi
apreendida pela ciência, não oferece mais do que um caos catalogado.
1017
FLICKINGER, Hans Georg. A luta pelo espaço autônomo do político: apresentação. In: SCHMITT, Carl. O
conceito do político. Apresentação de Hans Georg Flickinger. Tradução de Álvaro L. M.Valls. Pretrópolis:
Vozes, 1992, p. 25, grifo do autor.
1018
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Ferraz. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed. São
Paulo: Atlas, 1994, p. 344.
1019
MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturante do direito.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 09.
346
Assim como a justiça, o direito natural também é um problema
enquanto houver conflitos entre os homens e enquanto houver
ordenamentos jurídicos positivos. Mas ele não é mais nenhum fator
concreto que respalde o fazer dos juristas
1020
.
A sentença, como já dissemos anteriormente, só pode ser vista
como um ato de suspensão reflexiva, na exata medida em que “[...] a ação requer
que se pare as perguntas e se forneça respostas, que são, nesse sentido,
dogmatizadas”
1021
. Nada há, aí, de verdade/falsidade.
Vistas as coisas desse modo, em suma, é o modernismo
positivista que, com roupagens diversas - a relativização da coisa julgada a partir
de um critério de justiça da decisão – nos oblitera as mentes e se insinua em
nosso seio. Fechemos-lhe as portas antes que seja tarde demais...
1020
MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturante do direito.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 09.
1021
ROESLER, Cláudia Rosane. Theodor Viehweg e a ciência do direito: tópica, discurso, racionalidade.
Prefácio de Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Florianópolis: Momento atual, 2004, p. 209.
347
5 CONCLUSÃO
À guisa de conclusão pode-se afirmar que, a revisitação às
noções básicas e fundamentais da coisa julgada, e, particularmente, quando
revestida da necessária constitucionalização da doutrina clássica, nos denota um
instituto suficientemente dinâmico para dar conta das exigências do pluralismo
pós ou transmoderno, como se queira, sem que se perca a nessária segurança
jurídica da qual ela sempre foi instrumento.
A adequada manipulação dos seus limites, tanto objetivos quanto
subjetivos, com a constitucionalização das hipóteses de identificação da lide
(pedido, parte e causa de pedir), mostra-se apta para dar conta de realidades
valorativas, inclusive no âmbito do processo coletivo, esteja ele voltado à tutela
do direito objetivo ou subjetivo.
A pretensão, sob o influxo do discurso da pós-modernidade, de se
afastar do regime geral da desconstituição de julgados a denominada coisa
julgada injusta, por importar na valoração de um termo absolutamente
indeterminado, qual seja, a justiça, implica, em última análise, admitirmos uma
noção de justiça unívoca e, portanto, a-histórica, resgatando, desse modo, uma
noção do velho positivisto jurídico que sempre advogou a premissa da verdade
única e, portanto, única decisão válida.
Essa (a verdade única), já não é mais referencial para qualquer
critério válido de decidibilidade. Tampouco é critério válido para o
estabelecimento do princípio da segurança jurídica, pautada, em suma, dentro
desse novo sistema de multiplicidade de decisões possíveis válidas, a partir, tão
somente de um critério de não surpresa, alcançado não a partir de uma verdade
única/certeza, e, sim, a partir de regras estatuídas para o surgimento dessas
certezas que sejam claras e embasadas nos adequados princípios jurídicos.
348
6 REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poletti. São
Paulo: Boitempo, 2004 (Estado de sítio).
______, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2ª reimpressão.
Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
ALMEIDA, Gregório Assagra. Direito processual coletivo brasileiro: um novo
ramo do direito processual (princípios, regras interpretativas e a problemática da
sua interpretação e aplicação). São Paulo: Saraiva, 2003.
ALVIM, Thereza. Questões prévias e os limites objetivos da coisa julgada.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977.
ALVIM NETTO. José Manoel Arruda. Manual de direito processual civil. V.
1. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
ARAGÃO, Egas Moniz de. Sentença e coisa julgada. Porto Alegre: Aide,
1992.
ASSIS, Araken de. Cumprimento da sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
______, Araken de. Cumulação de Ações. 2ª ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1995.
ATTARDI, Aldo. Diritto processuale civile: v. 1: parte geral. Padova: Cedam,
2003.
AZEVEDO, Plauto Faraco de. Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica.
Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1989.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 11ª ed. São Paulo:
Ed. Hucitec, 2004.
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista
dos Tribunais, São Paulo, ano 59, nº 416, jun. 1970.
______ MOREIRA, José Carlos. Considerações sobre a chamada
“relativização” da coisa julgada material. Revista Síntese de Direito Civil e
Processual Civil, Porto Alegre: Síntese, ano 6, nº 33, jan./fev. 2005.
BARROS, Evandro Silva. A coisa julgada inconstitucional e limitação temporal
para a propositura da ação rescisória. Revista de direito constitucional e
internacional, São Paulo, nº 47, pp. 55-98, abr.-jun. 2004
349
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito
brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência.
São Paulo: Saraiva, 2004.
BLACK, Edwin. A guerra contra os fracos: a eugenia e a campanha norte-
americana para criar uma raça superior. Tradução de Tuca Magalhães. São
Paulo: A Girafa Editora, 2003.
BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. Sentença e coisa julgada. In: Teses,
estudos e pareceres de processo civil: volume 2: jurisdição e competência,
sentença e coisa julgada, recursos e processos de competência originárias
dos Tribunais. ______. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
BRASIL. Mensagem nº 210, de 2 de Agosto de 1972, do Ministro da Justiça
Alfredo Buzaid: Exposição de Motivos do Código de Processo Civil. Código de
Processo Civil: obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração
de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Luiz
Eduardo Alves de Siqueira. 30ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
______. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos
do Brasil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder
Executivo, Rio de Janeiro, RJ, 05 jan. 1916. Seção 1, p. 133. Disponível em:
<https://www6.senado.gov.br/legislação/ListaPublicaçoes.action?id=102644
>.
Acesso em: 16 set. 2005.
______. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução ao
Código Civil Brasileiro. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,
Poder Executivo, Rio de Janeiro, RJ, 09 set. 1942. Seção 1, p. 01. Disponível
em: <https://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del4657.htm
>.
Acesso em: 15 set. 2005.
______. Decreto-Lei nº 4.707, de 17 de setembro de 1942. Dispõe sobre a
vigência da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Rio de Janeiro, RJ, 18 set.
1942. Seção 1, p. 01. Disponível em:
<https://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del4707.htm
>. Acesso
em: 15 set. 2005.
______. Lei nº 3.238, de 1º de agosto de 1957. Altera disposições da Lei de
Introdução ao Código Civil Brasileiro. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Poder Executivo, Rio de Janeiro, RJ, 03 ago. 1957. Seção
2, p. 19.021. Disponível em:
<https://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/Leis/L3238.htm
>. Acesso em: 15
set. 2005.
350
______. Lei nº 9.494, de 10 de setembro de 1997. Disciplina a aplicação da
tutela antecipada contra a Fazenda Pública, altera a Lei nº 7347, de 24 de julho
de 1985 e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do
Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 10 set. 1997. Seção 1, p. 20.159.
Disponível em:
<http://www6.senado.gov.br/sicon/ListaReferências.action?codigoBase=2&codi
goDocumento=146891>. Acesso em: 20 mai. 2008.
______. Lei nº 5869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo
Civil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo,
Brasília, DF, 17 jan. 1973. Seção 1, p. 01. Disponível em:
<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=102373
>.
Acesso em 16 set. 2005.
______. Decreto-Lei nº 1.608, de 18 de setembro de 1939. Código de Processo
Civil. Coleção de Leis do Brasil de 1939, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro,
RJ, v. 6, p. 311, dez. 1939,
<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=12170
>.
Acesso em 17 de set. 2005.
______. Lei nº 6.969, de 10 de dezembro de 1981. Dispões sobre a aquisição,
por usucapião especial, de imóveis rurais, altera a redação do § 2º do art. 589 do
Código Civil e dá outras providências. Estatuto da Terra: obra coletiva de
autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto e
Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 293-5, 1997.
(Coleção Saraiva de legislação).
______. Lei nº 10.257, de 10 de setembro de 2001. Regulamenta os arts. 182 e
183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá
outras providências. Estatuto da cidade (Lei nº 10.257, de 10 de julho de
2001): obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio
Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes.
São Paulo: Saraiva, p. 23-50, 2001. (Coleção Saraiva de legislação).
______. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispões sobre a proteção do
consumidor e dá outras providências. Interesses difusos e coletivos: obra
coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de
Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Luiz Eduardo Alves de
Siqueira. 3ª ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, p. 268-93, 2001. (Coleção
Saraiva de legislação).
______. Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985. Disciplina a ação civil pública de
responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e
direitos de valor artístico, estético, histórico e paisagísitico (Vetado) e dá outras
providências. Interesses difusos e coletivos: obra coletiva de autoria da Editora
351
Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina
Vaz dos Santos Windt e Luiz Eduardo Alves de Siqueira. 3ª ed. atual. e ampl.
São Paulo: Saraiva, p. 153-160, 2001. (Coleção Saraiva de legislação).
______. Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965. Regula a ação popular. Interesses
difusos e coletivos: obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a
colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos
Windt e Luiz Eduardo Alves de Siqueira. 3ª ed. atual. e ampl. São Paulo:
Saraiva, p. 35-40, 2001. (Coleção Saraiva de legislação).
______. Lei nº 11.232, de 22 de dezembro de 2005. Altera a Lei nº 5.869, de 11
de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, para estabelecer a fase de
cumprimento das sentenças no processo de conhecimento e revogar dispositivos
relativos à execução fundada em título judicial, e dá outras providências. Diário
Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF,
23 dez. 2005. Seção 1, pp. 01-02. Disponível em:
<http://www.in.gov.br/imprensa/jsp/jsp/jornaiscompletos/jornaiscompletos_leitu
ra.jsp#pesquisa>. Acesso em 26 janeiro 2007.
______. Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999. Dispõe sobre o processo e
julgamento da ação direita de inconstitucionalidade e da ação declaratória de
constitucionalidade perante e Supremo Tribunal Federal. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 11 nov. 1999.
Seção 1, p. 01. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br.ccivil_03/LEIS/L9868.htm
>. Acesso em 26 janeiro
2007.
______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 588.202, da 1ª
Turma, Brasília, DF, 10 de fevereiro de 2004. Disponível em:
<http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?processo=588202&&b=A
COR&p=true&t=&l=10&i=1.>. Acesso em: 26 jan. 2007.
______. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Divergência no Recurso
Especial nº 502.618, da 1ª Seção, Brasília, DF, 08 de junho de 2005. Disponível
em:
<http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?processo=502618&&b=A
COR&p=true&t=&l=10&i=1.>. Acesso em: 26 jan. 2007.
______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 653181, da 2ª Turma,
Brasília, DF, 24 de agosto de 2004. Disponível em:
<http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?processo=653181&&b=A
COR&p=true&t=&l=10&i=1.>. Acesso em: 26 jan. 2007.
______. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário
Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF,
352
11 jan. 2002. Seção 1, p. 01. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm>. Acesso em 20
jul. 2007.
______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 112.101, da 4ª
Turma, Brasília, DF, 29 de junho de 2000. Disponível em:
<http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=112101&&b=ACO
R&p=true&t=&l=10&i=4>. Acesso em: 22 jul. 2007.
______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 109.142, da 4ª
Turma, Brasília, DF, 06 de setembro de 2001. Disponível em:
<http://www.stj.gov.br/webstj/Processo/JurImagem/frame.asp?registro=199600
608997&data=04/02/2002>. Acesso em: 22 jul. 2007.
______. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Declaraão no Recurso
Especial nº 640.695, da 1ª Turma, Brasília, DF, 28 de junho de 2005. Disponível
em:
<http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=resp+640695&&b=
ACOR&p=true&t=&I=10&i=1588202&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=1>.
Acesso em: 20 mai. 2008.
______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 586991, da 1ª Turma,
Brasília, DF, 03 de fevereiro de 2004. Disponível em:
<http://www.stj.gov.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=((‘RESP’.clap.+ou+’
RESP’.clas.)+e+@num=’586991’)+ou+(‘RESP’+adj+’586991’.suce.)>. Acesso
em: 20 mai. 2008
______. Supremo Tribunal Federal. Súmula 239, da Sessão Plenária, Brasília,
DF, 13 de dezembro de 1963. Disponível em:
<http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/nova/pesquisa.asp
> . Acesso em: 22 jul.
2007.
______. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº
1584-UF, Brasília, DF, 23 de abril de 1997. Disponível em:
<http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudência.asp?s1(ADI$.S
CLA.%20E%201584.NUME.)%20OU%20(ADI.ACMS.%20ADJ2%201584.A
CMS.)&base=baseAcordaos>. Acesso em 29 jan. 2008.
______. Medida Provisóeia nº 1.798-1, de 11 de feveriero de 1999. Acresce e
altrera dispositivos das Leis nº
s
5.869, de 11 de janeiuro de 1973. 8.437, de 30
de junho de 1992, 9.028, de 12 de abril de 1995, 9.494, de 10 de setembro de
1997 e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do
Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 12 fev. 1999. Seção 1, p. 45. Disponível
em:
353
<http://www2.camara.gov.br/internet/legislacao/legin.html/visualizarNorma.htm
l?ideNorma=369445>. Acesso em: 20 mai. 2008.
BUSSATA, Eduardo Luiz. Resolução dos contratos e teoria do
adimplemento substancial. São Paulo: Saraiva, 2007.
CAMPOS, Ronaldo Cunha. Limites objetivos da coisa julgada. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Aide, 1988.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direto Constitucional e teoria da
constituição. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2002.
CARNEIRO, Athos Gusmão. Cumprimento da sentença civil. Rio de Janeiro:
Forense, 2007.
CARNELUTTI, Francesco. Instituições do Processo Civil. Trad. de Adrián
Sotero De Witt Batista a partir da edição espanhola. São Paulo: Classic Book,
2000, v. 1.
______, Francesco. Instituições do Processo Civil. Trad. de Adrián Sotero De
Witt Batista a partir da edição espanhola. São Paulo: Classic Book, 2000, v. 2.
CARRIDE, Norberto de Almeida. Lei de introdução ao código civil anotada:
referências à Constituição Federal, ao Código Civil, ao Código de Processo
Civil e a outros atos normativos. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2004.
CARVALHO, Milton Paulo de. Do pedido no processo civil. Porto Alegre:
Sérgio Frabris-FIEO, 1992, p. 85.
CARVALHO SANTOS, J. M. de. Código de processo civil interpretado:
artigos 263 a 353. V. IV. 7ª ed. Freitas Bastos: Rio de Janeiro, [195?].
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabiliade civil. 4ª ed. rev.,
aum. e atual. de acordo com o novo Código Civil. São Paulo: Malheiros, 2003.
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história da últimas décadas da
escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras
falas. 7ª ed. São Paulo: Cortez, 1997.
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução de
Paolo Capitanio a partir da 2ª edição italiana [1935?]. Anotações de Enrico
Túlio Liebman. 1ª ed. Campinas: Bookseller, 1998.
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo. Comentários ao código de processo civil:
v. IV: arts. 332 a 475. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
354
______, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini;
DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 17ª ed. rev. e
atual. São Paulo: Malheiros, 2001.
COELHO, Luiz Fernando. Saudade do futuro: transmodernidade, direito e
futuro. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2001.
COUTURE, J. EDUARDO. Fundamentos do direito processual civil.
Traduzido por Benedicto Giaccobini a partir da edição em espanhol de 1942.
Campinas: Red Livros, 1999.
CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 2ª ed. rev.,
atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
______, José Rogério. Limites subjetivos da eficácia da sentença e da coisa
julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
______, José Rogério; BEDAQUE, José Roberto dos Santos (Coord.). Causa de
pedir e pedido no processo civil: questões polêmicas. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002.
DIMOULIS, Dimitri. O caso dos denunciantes invejosos: introdução prática às
relações entre direito, moral e justiça. Com a tradução de texto de Lon L. Fuller,
parte da obra The morality of law. 3ª ed., rev. e atual. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2006.
______, Dimitri; Martins, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais.
São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2007.
DINAMARCO. Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. V. II.
São Paulo: Malheiros, 2001.
______, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. V. III. São
Paulo: Malheiros, 2001.
______, Cândido Rangel. Capítulos de sentença. São Paulo: Malheiros, 2002.
EAGLETON, Terry. Ideologia. Tradução de Silvana Vieira e Luís Carlos
Borges. São Paulo: Unesp: Boitempo, 1997.
ESPINOLA, Eduardo. A Lei de introdução ao Código Civil brasileiro: (Dec.-
Lei nº 4657, de 4 de setembro de 1942, com as alterações da Lei nº 3.238, de 1º
de agosto de 1957, e leis posteriores): comentada na ordem de seus artigos, por
Eduardo Espinola e Eduardo Espinola Filho. V. 1. 2ª ed. atual. por Silva
Pacheco. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
355
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Ferraz. Introdução ao estudo do direito: técnica,
decisão, dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994.
FINGER, Júlio César. Constituição e direito privado: algumas notas sobre a
chamada constitucionalização do direito civil. In: A Constituição concretizada:
construindo pontes com o público e o privado. SARLET, Ingo Wolfgan (Org.).
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.
GARCIA, Maria. A inconstitucionalidade da coisa julgada. Revista de direito
constitucional e internacional, São Paulo, nº 47, pp. 48-54, abr.-jun. 2004.
GOMES, Orlando. Introdução ao direito Civil. 15ª ed. atual. por Humberto
Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
______, Orlando. Marx e Kelsen. In: Raízes históricas e sociológicas do
Código Civil Brasileiro. ______. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
GRAU, Eros Roberto Grau. Ensaio e discurso sobre a
interpretação/aplicação do direito. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
GREGO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. V. 2: atos
processuais a recursos e processos nos tribunais. 16ª ed. atual. São Paulo:
Saraiva, 2003.
GRIMBERG, Keila. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito
civil no tempo de Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Cumprimento da sentença. In: RENAULT, Sérgio
Rebello Tamm; Bottini, Cruz Pierpaolo. (coord.). A nova execução dos títulos
judiciais: comentários à lei nº 11.232/05. São Paulo: Saraiva, 2006.
GUIMARÃES, Jorge Lafayette Pinto. Coisa julgada. In: CARVALHO
SANTOS, J. M. de (Org). Repertório enciclopédico do direito brasileiro. Rio
de Janeiro: Borsoi, [193-?], v. 9, p. 281.
ITÁLIA. Código Italiano de Procedimento Civil, de 28 de outubro de 1940. In:
CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil. Trad. de
Hiltomar Martins Oliveira a partir da edição Argentina em espanhol de 1943
traduzida por Alcalá-Zamora e Castilho. São Paulo: Classic Book, 2000.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado.
6ª ed. 4ª tir. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
______, Hans. O que é justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da
ciência. 3ª ed. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
356
LACOSTE, Yves. Ibn Khaldun: nascimento da história. Passado do
Terceiro Mundo. São Paulo: Ática, 1991.
LEONEL, Ricardo de Barros. Objeto litigioso do processo e o princípio do
duplo grau de jurisdição. In: CRUZ E TUCCI, José Rogério; BEDAQUE, José
Roberto dos Santos (Coord.). Causa de pedir e pedido no processo civil:
questões polêmicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
______, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo: de acordo com a Lei
10.444/02. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença: e outros escritos
sobre a coisa julgada: com aditamentos relativos ao direito brasileiro. Tradução
de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos posteriores à edição
de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigente, de Ada Pellegrini
Grinover. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
______, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. V. III. Tocantins:
Intelectus, 2003.
LIMA, Paulo Roberto de Oliveira Lima. Contribuição à teoria da coisa
julgada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
LOBO DA COSTA, Moacir. A revogação da sentença: gênese e genealogia.
São Paulo: Ícone, 1995.
LOPES DA COSTA, Antonio Araújo. Direito processual civil brasileiro. 2ª
ed. rev., aum. e atual. V. III. Rio de Janeiro: Forense, 1959.
MACHADO, Lourival Gomes. Tomás Antônio Gonzaga e o direito natural.
São Paulo: Martins, 1968.
MACIEL, José Fábio Rodrigues. Teoria Geral do Direito: segurança, valor,
hermenêutica, princípios, sistema. São Paulo: Saraiva, 2004.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação
para agir. 4ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.
______, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada: teoria geral
das ações coletivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo
de conhecimento. 5ª ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2006.
357
______, Luiz Guilherme. O princípio da segurança dos atos jurisdicionais (a
questão da relativização da coisa julgada material). Revista Jurídica, Porto
Alegre, nº 317, pp. 15-33, mar. 2004.
MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. V. IV. 3ª
ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 1969.
______, José Frederico. Manual de direito processual civil. V. 1. 10ª ed. São
Paulo: Saraiva, 1983.
MARTINS-COSTA, Judith. O novo Código Civil brasileiro: em busca da “ética
da situação”. In: Diretrizes teóricas do novo Código Civil brasileiro. ______;
BRANCO. Gerson Luiz Carlos. São Paulo: Saraiva, 2002.
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no
sudeste escravista – Brasil séc. XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
MARX, Karl. O 18 Brumário e as cartas a Kugelmann.São Paulo: Paz e
Terra, 2.002.
MAZZILLI, Hugo Nigro Mazzili. A defesa dos interesses difusos em juízo:
meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público eoutros
interesses. São Paulo: Saraiva, 2002.
MEDINA, José Miguel. A sentença declaratória como título executivo:
considerações sobre o art. 475-N, inc. I do CPC. In: HOFFMAN, Paulo; SILVA,
Leonardo Ferres da. (coord.). Processo de execução civil – modificações da
Lei 11.232/05. São Paulo: Quartier Latin, 2006.
MENDES, Gilmar Ferreira. Argüição de descumprimento de preceito
fundamental: comentários à Lei nº 9.882, de 3-12-1999. São Paulo: Saraiva,
2007.
MESQUITA, José Ignácio Botelho de. Conteúdo da causa de pedir. Revista dos
Tribunais, São Paulo, nº 564, pp. 40-51, out. 1982.
MICHELON JÚNIOR, Cláudio Fortunato. Aceitação e objetividade: uma
comparação entre as teses de Hart e do positivismo precedente sobre a
linguagem e o conhecimento do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
MILHOMENS, Jônatas. Manual de prática forense (civil e comercial): parte
geral (Arts. 1º a 297). V. 1. 3ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro, 1957.
MONTEIRO, João. Teoria do processo civil. Atualizado por J. M. de Carvalho
Santos. T. II. 6ª ed. Borsoi: Rio de Janeiro, 1956.
358
MOREIRA ALVES, José Carlos. A parte geral do Código Civil brasileiro:
subsídios históricos para o novo Código Civil brasileiro. 2ª ed. aum. São Paulo:
Saraiva, 2003.
MOREIRA DE PAULA, Jônatas Luiz. Teoria geral do processo. 3ª ed.
Barueri: Manole, 2002.
______, Jônatas Luiz. História do Direito Processual Brasileiro: das origens
lusas à escola crítica do processo. Barueri: Manole, 2002.
MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e
metódica estruturante do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
NERY JÚNIOR, Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6ª ed. atual., amp. e
reformulada da 5ª ed.do livro Princípios fundamentais – Teoria geral dos
recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
______, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil
comentado elegislação extravagante. 7ªed. rev. e amp. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2003.
NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971.
PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários ao código de processo civil.
V. III: arts. 270 a 331. 8ª. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
PIMENTEL, Wellington Moreira. Comentários ao código de processo civil. V.
III: arts. 270 a 331 e 444 a 475. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1979.
PINTO, Júnior Alexandre Moreira Pinto. Sistemas rígidos e flexíveis: a questão
da estabilização da demanda. In: CRUZ E TUCCI, José Rogério; BEDAQUE,
José Roberto dos Santos (Coord.). Causa de pedir e pedido no processo civil:
questões polêmicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
______, Júnior Alexandre Moreira. A causa petendi e o contraditório. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
PLKEKHÁNOV, Gueórgui. Obras Escolhidas. Moscou: Ed. Progresso, 1987.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado das Ações. Tomo I:
ação, classificação e eficácia. Atual. por Vilson Rodrigues Alves. Campinas:
Bookseller, 1998.
______, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. T.
IV. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959.
359
______, Francisco Cavalcanti. Comentários ao código de processo civil: t. V:
arts. 444 a 475. 3ª ed. rev. e aum. Atualização legislativa de Sérgio Bermudes.
Rio de Janeiro: Forense, 1997.
PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada Civil. 3ª ed. rev., atual. e amp. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
ROESLER, Cláudia Rosane. Theodor Viehweg e a ciência do direito: tópica,
discurso, racionalidade. Prefaciado por Tércio Sampaio Ferraz Júnior.
Florianópolis: Momento Atual, 2004.
ROSS, Alf. Direito e justiça. 1ª reimpressão. Trad. Edson Bini. Rev. téc.
Alysson Leandro Mascaro. Bauru: Edipro, 2003.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 2ª ed. São
Paulo: Cortez, 2004.
SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil: v. 2:
processo de conhecimento (2ª parte). São Paulo: Saraiva, 1986.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002.
______, Milton. Pensando o Espaço do Homem. 2ª ed. São Paulo: Hucitec,
1.986.
SANTOS, Moacyr Amaral. Direito Processual Civil. V. 3. 4ª ed. 2ª tir. São
Paulo: Max Limonad, 1973.
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. V. 1.
19ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança
jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de
retrocesso social no direito constitucional brasileiro. Mundo Jurídico, São
Paulo, jul. 2005. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br/cgi-
bin/upload/texto856-rtf>. Acesso em: 25 jan. 2007.
______, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2ª ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado.
SCHMITT, Carl. O conceito do político. Apresentação de Hans Georg
Flickinger. Tradução de Álvaro L. M.Valls. Pretrópolis: Vozes, 1992.
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Sentença e coisa julgada: ensaios. 3ª ed.
rev. e aum. Porto Alegre: Fabris Editor, 1995.
360
______, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de processo civil: processo de
conhecimento. V. 1. 6ª ed. rev. e atual. com as Leis 10.352, 10.358/2001 e
10.444/2003. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
______, Ovídio Araújo Baptista da. Coisa julgada relativa? Revista Jurídica,
Porto Alegre, nº 316, pp. 07-18, fev. 2004.
______, Ovídio Araújo Baptista da. Da sentença liminar à nulidade da
sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
SILVA JÚNIOR, Hédio. Direito penal em preto e branco. Revista brasileira de
ciências criminais, São Paulo, nº 27, pp. 327-338, jul.-set. 1999.
RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de Usucapião. 2ª ed. São Paulo: Saraiva,
1998, v. 2.
STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri: símbolos e rituais. 3ª ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1998.
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005.
TESHEINER, José Maria. Eficácia da sentença e coisa julgada no processo
civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. V. I:
teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. 18ª ed. rev. e
atual. Rio de Janeiro: Forense, 1996.
TUCCI, Rogério Lauria. Sentença e coisa julgada civil: parte prática: sentenças
da Dra. Maria Lúcia Gomes Marcos dos Santos, Juíza de Direito da comarca da
capital do Estado do Pará. 1ª ed. 2ª tir. Belém: Cejup, 1984. (Coleção Teoria e
Prática, v. 1).
ULHOA COELHO, Fábio. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 2003.
VALDER DO NASCIMENTO, Carlos (Coord.). Coisa julgada
insconstitucional. 2ª ed. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003.
______, Carlos (Coord.). Coisa julgada inconstitucional. 5ª ed. rev. e ampl.
Rio de Janeiro: América Jurídica, 2005.
WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; MEDINA,
José Miguel Medina. Breves comentários à nova sitemática processual civil,
II: Leis 11.187/2005, 11.232/2005, 11.276/2006, 11.277/2006 e 11.280/2006.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
361
______, Luiz Rodrigues. Sentença civil: liquidação e cumprimento. 3ª ed.
rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. 5ª
ed. rev., atual. e ampl. de acordo com as Leis 10.352/2001, 10.358/2001 e
10.444/2002. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
______, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia Medina. O
dogma da coisa julgada: hipóteses de relativização. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2003.
YARSHELL, Flávio. Ação rescisória: juízos rescindente e rescisório. São
Paulo: Malheiros, 2005.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito
penal: parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo