pensar, sem contradição, em seres que tenham forma e, ao mesmo tempo, não tenham
existência empírica
264
.
Segue-se disso, segundo São Tomás, que se pode saber, por exemplo, o
que é o homem ou o bode-cervo, sem saber se existam, de fato, o homem e o bode-
cervo. Homem e bode-cervo são compostos de matéria e forma (não-assinaladas) e
existência, que estão separadas entre si. Pode-se, por analogia, estabelecer entre eles a
seguinte relação: a essência necessária está para a potência
265
, assim como a existência
está para o ato. Essa doutrina, de origem tomista, ficou conhecida como a doutrina da
distinção real (ou separação) entre a essência e a existência
266
. Com ela, São Tomás
264
Diz São Tomás, no Ente e a Essência, p. 42: “Ora, toda essência ou qüididade pode ser entendida
sem que se compreenda qualquer coisa acerca do seu ser ou existência. Com efeito, posso
compreender o que seja o homem e a fênix, ignorando se possuem ou não existência real. É evidente,
por conseguinte, que a existência difere da essência ou qüididade”.
265
A potência é uma condição necessária para explicar o movimento (já que o movimento é a
atualização da potência). Porém, não é ela, isoladamente, uma condição suficiente para tanto. Para que
haja o movimento, e a conseqüente atualização da potência, é necessária a presença de algo atual que
seja a causa eficiente do movimento (mudança). Segue-se que, se o ato é que traz a potência para o
domínio da existência, ele é anterior – nos vários sentidos do termo – à potência. Segundo David Ross,
em Aristóteles, p. 182-3, o ato precede a potência nos seguintes sentidos: (i) pela noção: se potência é
aquilo que tem a capacidade de passar ao ato, e construtor é aquele que tem a capacidade para
construir, segue-se que ser construtor antecede a capacidade de construir; (ii) pela lógica: como
assinala Ross, o ato é logicamente anterior à potência porque ser capaz de ser B é mais complexo do
que ser B, logo, o segundo precede logicamente o primeiro; (iii) pelo tempo: o ato precede a potência,
porque: A não é potencialmente B, se não tiver a possibilidade de tornar-se atualmente B; porém, isso
será possível a partir da ação de algo já em ato. Logo, a potencialidade de A, para tornar-se B, supõe
uma atualidade. Em conclusão, toda potencialidade supõe uma atualidade. Diz Aristóteles na
Metafísica (IX, 8, 1049 b 25): “Ser em ato deriva do ser em potência por obra de outro ser já em
ato”; (iv) pela substância: o ato também é anterior à potência pela substância – o adulto é anterior à
criança e a galinha é anterior ao ovo, já que os primeiros possuem a forma em ato e os segundos não;
(v) pela finalidade: o ato também é anterior no sentido de que tudo que se atualiza o faz para uma
finalidade. O fim é o ato por meio do qual se adquire a potência. Assim, os animais não vêem para
possuir a vista, mas possuem a vista para ver; da mesma forma, não se age moralmente para ser feliz:
ao contrário, é-se feliz agindo moralmente; (vi) pela eternidade: outro argumento em defesa da
anterioridade do ato frente à potência, é dado por David Ross, em Aristóteles, p. 183: “Contudo, a
prova principal da prioridade da atualidade é a seguinte: o que é eterno é anterior em natureza ao
perecível; e nada é eterno em virtude da potencialidade, pois aquilo que possui a potencialidade de ser
possui também a potencialidade de não-ser, enquanto o que é eterno, por sua própria natureza, nunca
pode deixar de ser”.
266
Explica F. C. Copleston, em Historia de la Filosofía, Vol. II, p. 411: “Porém, São Tomás viu mais
profundamente que Aristóteles: viu que em toda coisa finita existe uma dualidade de princípios, a
dualidade de essência e existência, que a essência é em potência sua existência, que [a essência] não
existe necessariamente, e assim pôde argumentar não meramente até o aristotélico Motor imóvel,
senão até o Ser necessário, Deus criador. São Tomás pôde, além disso, discernir a essência de Deus
como existência, não simplesmente como pensamento que se pensa a si mesmo, senão como ipsum