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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: SOCIEDADE E REGIÃO
“SOU PARANAÍBA PRA CÁ”:
LITERATURA E SOCIEDADE EM CORA CORALINA
Autor: Clovis Carvalho Britto
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Cristina Teixeira Machado
Goiânia
2006
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CLOVIS CARVALHO BRITTO
“SOU PARANAÍBA PRA CÁ”:
LITERATURA E SOCIEDADE EM CORA CORALINA
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade
de Ciências Humanas e Filosofia, da
Universidade Federal de Goiás, como um dos
requisitos para obtenção do título de Mestre
em Sociologia, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª
Maria Cristina Teixeira Machado.
Goiânia
2006
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A
Nery Seixo de Brito e Mariana Matildes de Carvalho
In Memoriam
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AGRADECIMENTOS
Muitas foram as mãos que estiveram juntas com as minhas no período de
elaboração deste texto. Algumas que me acompanham desde sempre entre as
cercas vivas da cidade de Goiás. Outras que encontrei ao longo da pesquisa e que
compartilharam comigo suas sensibilidades. Mãos de semeadores que tanto
agradeço e com as quais divido agora os júbilos da colheita.
À poetisa Cora Coralina, pelo legado e exemplo.
À professora orientadora Dra. Maria Cristina Teixeira Machado, pela
generosidade e incentivo constante. Graças à sua orientação segura, consegui
concluir um desafio que, muitas vezes, parecia ser maior que eu. A ela sou
imensamente grato.
Aos professores Dra. Mariza Veloso Motta Santos, Dra. Solange Fiúza
Cardoso Yokozawa e Dr. Luiz Mello de Almeida Neto, grandes interlocutores, pelas
sugestões, essenciais à melhoria do texto.
Aos professores Dr. Pedro Célio Alves Borges e Dr. Jordão Horta Nunes,
coordenador e ex-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia, e
aos professores da linha de pesquisa Cultura, Discurso e Práticas Simbólicas, pelo
estímulo e aprendizado.
À professora Ms. Marlene Gomes de Vellasco, representando os membros
da Associação Casa de Cora Coralina e do Museu Casa de Cora Coralina, por ter
possibilitado o acesso ao acervo documental, pelo apoio contínuo e cumplicidade.
Sou eternamente agradecido a todos os que compartilham comigo a vida na Casa
Velha da Ponte.
À professora Ms. Darcy França Denófrio, pelo exemplo e contribuições
para este trabalho.
Aos colegas de mestrado, Alexssandra de Oliveira Terribelle, Carlos
Henrique Gomes Pimenta, Cláudia Glênia Silva de Freitas, Josué Pires de Carvalho,
Marisa Souza Neres, Neves Luiz da Silva, Rafaela Dallagnol, Rodrigo Della Corte,
Rosana Rocha Craveiro e Vanilda Maria de Oliveira, por compartilharem a estada
em Goiânia e a experiência na Universidade Federal de Goiás.
Aos amigos, Amália da Silva Camelo Pinto, Antolinda Baia Borges,
Fabrício Pessoni, Jurema de Brito Gonçalves, Maria José da Silva Rezende, Maria
de Fátima Cançado, Maria Lúcia Pardi, Marlene Gomes de Vellasco, Rosiane do
Nascimento Cardoso, Thainá Assis Lobo e Telma das Graças Godinho, pela força
silenciosa na construção dos meus caminhos.
À Carla Simone Seixo de Brito, pela acolhida em Goiânia e pelo carinho de
sempre.
Aos meus familiares, em especial a Ana Maria Seixo de Brito.
5
RESUMO
A proposta que este trabalho desenvolveu esteve orientada para o universo social
da obra da poetisa goiana Cora Coralina. A pesquisa analisa como a poetisa retrata
a história e a realidade social de seu tempo sob uma perspectiva sociológica.
Fundamenta-se em uma extensa bibliografia construída sobre a obra da autora,
na própria obra e em documentos levantados pela pesquisa e que compõem o
acervo da escritora, atualmente sob a guarda da Casa de Cora Coralina na cidade
de Goiás. Sua singularidade, entre as análises realizadas, está na perspectiva
sociológica que orientou a realização da proposta. Além disso, ao se fundamentar
em uma intensa pesquisa no acervo da poetisa, o trabalho traz à luz, para o domínio
público, uma série de escritos inéditos da autora.
6
ABSTRACT
The proposal that this work developed was guided for the social universe of the
workmanship of the goiana poetess Cora Coralina. The research analyzes as the
poetess portraies the history and the social reality of its time under a sociological
perspective. It is based on an extensive constructed bibliography already on the
workmanship of the author, on the proper workmanship and documents raised for the
research and that they compose the archive of the writer, currently under the guard of
the Casa de Cora Coralina in the city of Goiás. Its singularity, between the carried
through analyses already, is in the sociological perspective that guided the
accomplishment of the proposal. Moreover, to if basing on an intense research in the
archive of the poetess, the work brings to the light, for the public domain, a series of
unknown writings of the author.
7
LISTA DE ABREVIATURAS
PBG..................................Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais
MLC..................................Meu Livro de Cordel
VC.....................................Vintém de Cobre: Meias Confissões de Aninha
ECV...................................Estórias da Casa Velha da Ponte
MV....................................Os Meninos Verdes
TCV...................................O Tesouro da Casa Velha
MO.....................................A Moeda de Ouro que um Pato Engoliu
PAP...................................O Prato Azul-Pombinho
VBG...................................Villa Boa de Goyaz
MP.....................................Os Melhores Poemas de Cora Coralina
8
SUMÁRIO
LEMBRAAS DE ANINHA.....................................................................................10
Por que Cora Coralina?..............................................................................................11
Pressupostos Teórico-Metodológicos........................................................................18
1 BÚZIO NOVO: A LUTA PELA INSERÇÃO NO CAMPO LITERÁRIO
BRASILEIRO.............................................................................................................24
1.1 Variação: Ilusão biográfica, posições e disposições............................................25
1.2 Entre românticos e modernos: a sociologia de uma geração ponte....................37
1.3 O cântico da volta: uma posição a ser construída................................................45
1.4 Traço de união: epístolas e distinções.................................................................59
2 MOINHO DO TEMPO: O LEGADO E A CRÍTICA.................................................70
2.1 O poeta e a poesia: obras, ressalvas e prefácios................................................71
2.2 Confissões partidas: campo literário – primeiras e segundas (im) pressões.......90
3 DAS CANTIGAS DO BECO: LITERATURA E SOCIEDADE..............................108
3.1 Becos de Goiás: cenários, personagens e destinos..........................................115
3.2 Beco da Vila Rica: baliza da cidade...................................................................135
3.3 O Beco da Escola: educação e tradição............................................................149
3.4 Cantigas do Beco, Metáforas da Vida................................................................158
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................167
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E FONTES.....................................................174
9
10
LEMBRANÇAS DE ANINHA
Nós temos medo de ser originais. Sermos os primeiros.
Preferimos a estrada palmilhada, a retaguarda cômoda.
Temos medo de conquistas novas no campo do idealismo.
Vamos chanfrando, rotineiros.
Tempos virão, transformando a mentalidade materialista
deste fim de milênio. O estudante universitário do futuro
se integrará na dimensão maior de suas universidades
e será sensível ao valor dos símbolos ofertados nestas páginas...
A rotina é uma força impeditiva, massificadora, que circunscreve.
Ninguém quer ser o primeiro a romper a crosta, criar algo novo.
Como obscuro semeador, cumpro o dever de semear,
semeando sempre, sem contar com os júbilos da colheita.
Cora Coralina
(Exaltação de Aninha – A universidade, VC, p. 161-162)
11
POR QUE CORA CORALINA?
Em 2006, a comemoração do cinqüentenário da volta de Cora Coralina à sua
terra natal, considerando a relevância de sua participação e representação na
cultura brasileira, assumiria ares de justificativa para uma empreitada acadêmica.
Todavia, não seria justo pretender condensar essa importância nestas iniciais linhas,
pois antes de comemorar torna-se necessário compreender os motivos e os
significados da rememoração e identificar o complexo de relações que tornaram a
poetisa um ícone de Goiás.
A escolha da obra de Cora Coralina como objeto de estudo o constituiu
tarefa fácil. Apesar de, em seus poemas, confidenciar ser “uma mulher como outra
qualquer”, essa afirmação está longe de adquirir veracidade e a análise aprofundada
sobre sua vida e legado transformou-se em um exercício de responsabilidade, pois
tivemos que recriar, a partir das pegadas deixadas, uma trajetória iniciada entre as
cercas vivas de Goiás, desenvolvida na rota inversa da dos bandeirantes paulistas,
amadurecida na volta às origens entre pedras e doces, e eternizada na literatura
brasileira.
A partir de sua poética, Cora conseguiu revelar entraves acenados e
negligenciados pela historiografia, descrevendo nas tematizações e denunciando
através dos personagens, cenas e bastidores significativos à compreensão da
sociedade goiana.
Inicialmente convém destacarmos o período em que a literata viveu (1889-
1985), marcado por distintas influências sociais, culturais, econômicas e políticas,
num processo de quase um século. Machado (2002), ao interpretar a obra de Lima
Barreto, afirma que o escritor
desenvolveu grande sensibilidade sociológica por estar assim como os clássicos da
Sociologia estreitamente vinculado às condições de emergência e configuração da
sociedade capitalista no Brasil. A emergência da sensibilidade sociológica estaria, desta
forma, atrelada às transformações que caracterizam o processo de formação e consolidação
da modernidade, mesmo que ocorrendo em momentos e locais diferentes (p. 8).
Consideramos que esse contexto de mudanças força apontar pontos de
contato da poetisa com pensadores que se engajaram em um projeto social, fazendo
de sua obra instrumento de representação dos anseios e tensões dos
12
tradicionalmente silenciados. Apesar de outros autores de sua época também terem
se enveredado para uma abordagem de temáticas sociais, como Euclides da Cunha,
Lima Barreto, Monteiro Lobato, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Rachel de
Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos e Carlos Drummond de Andrade, a
escolha de Cora Coralina se justifica porque sua poesia “assumiu cor local, adotou o
tom coloquial que se buscou e um nacionalismo jamais simplório” (DENÓFRIO,
2004a, p. 29), tornando-se referência para a compreensão do espírito “aquém-
Paranaíba”.
Superando o anonimato no campo literário, a partir do lançamento de seu
primeiro livro (1965), e em anos subseqüentes, a autora foi adquirindo espaço,
conquistando parte da crítica e o aval de Bernardo Élis, Jorge Amado, Carlos
Drummond de Andrade, Oswaldino Marques, dentre diversos outros nomes, que
apontaram para a importância do seu legado como registro histórico-social do
interior brasileiro.
Nesse itinerário, os críticos sempre consideraram a necessidade de uma
análise sociológica, como comprovam trechos extraídos de prefácios dos livros da
poetisa:
Quando os folcloristas, os historiadores, os sociólogos, os psicólogos e os memorialistas
atingirem ao vel do registro com arte, preservada a realidade, estarão chegando ao plano
precursor que estes poemas alcançaram (J. B. Martins Ramos, 2001, p. 11).
As produções (...) são documentos na medida em que funcionam como traslado dos gestos e
dos vínculos ritualizados do grupo social, no seu defrontear intersubjetivo (Oswaldino
Marques, 2001, p. 16).
Na estrada que é Cora Coralina passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os
miseráveis de hoje. O verso é simples, mas abrange a realidade vária (Carlos Drummond de
Andrade, 2001, p. 8).
Sua obra tardia melhor dizendo, que nos foi dado conhecer tardiamente é expressão
literária de alto nível e apresenta, igualmente, conteúdo sociológico inigualável (Lena Castello
Branco Ferreira Costa, 1997, p. 18).
Cora soube expressar sua memória em verdadeira expressão de arte, dando-lhe a forma de
contos ou poemas que são registros históricos sociais de uma época que já vai muito longe e
da qual ela mesma foi personagem (Dalila Teles Veras, 2000, p. 6).
A obra poética de Cora se constitui, de ponta a ponta, como um ‘juízo’ firme e afirmante de
uma realidade vivida no quotidiano (Saturnino Pesquero Ramon, 1997, p. 30).
Possibilita um manancial de preciosas informações e inferências, de modo especial, a
educadores, sociólogos, psicólogos e psicanalistas (Darcy França Denófrio, 2004, p. 10).
13
Múltiplas vozes acenaram, desde 1965, para a dimensão social da obra de
Cora Coralina e para a necessidade de uma análise que investigasse em que
medida suas criações registrariam e descortinariam aspectos significativos de sua
sociedade. Porém, até o momento, nenhuma pesquisa sociológica sobre sua poética
havia sido realizada. Nesse sentido, torna-se relevante elencarmos alguns dos
prováveis motivos que teriam desestimulado as empreitadas, fornecendo indícios
para que o presente trabalho possa tentar superá-los.
A princípio, sua obra foi concebida como portadora de uma temática que
representava uma velhinha frustrada e queixosa. Em inúmeros “desabafos”,
encontrados nos diários e correspondências de seu acervo pessoal, não é raro
encontrar a referência: “Tenho medo, sabe de quê? Da comiseração. O livro da
velhinha, vamos dar palmas a ela. Coitada... Digo a você, prefiro uma pedrada
certeira que me quebre de vez” (DENÓFRIO, 2004b, p. 347). Desse modo, as
análises foram sendo adiadas, talvez por se considerar o legado de Cora como
simplório, inexpressivo ou, na melhor das hipóteses, apenas curioso.
Para Omar da Silva Lima (2004), um dos motivos de o nome da poeta, apesar
de algum reconhecimento crítico alçado, não constar nas grandes historiografias
canônicas, a exemplo da História concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi,
restringindo-se apenas à historiografia literária de Goiás, consiste em uma objeção
relativa à sua marca provinciana e intelectual. De acordo com Heloisa Marques
Miguel (2003), existem escassos estudos formais e temáticos que contribuem para a
inclusão de Cora Coralina no panorama da poesia brasileira, visto que “poucas
vezes Cora tem sido posta no lugar que lhe cabe no panorama nacional da poesia
moderna” (p. 12), ressaltando que o aparente contraste de gêneros poderia indicar,
em uma avaliação sem critério, uma falta de maturidade literária da escritora. Outras
restrições, a exemplo da avaliação de Gilberto Mendonça Teles (1969), se referem
ao tom lírico narrativo dos poemas e a falta de densidade poética, considerando a
escriba goiana como “mais prosadora do que poeta”. Andréa Ferreira Delgado
(2003) aponta a necessidade de avaliar o acervo pessoal da autora para a
identificação das influências recebidas e a configuração da obra, assinalando, à
época de sua investigação, como fatores impeditivos ao aprofundamento de
análises, a indisponibilidade de tempo e recursos e o precário estado de
organização em que se encontravam os documentos. Alguns pesquisadores, como
14
Luiza Lobo (2002), destacam dificuldades para a obtenção de fontes, considerando
escassa a bibliografia sobre a poetisa.
De acordo com Saturnino Pesquero Ramon (2003), a poetisa se constituiu na
“épica personagem de ser si mesma”, transformando Aninha, a menina feia da Ponte
da Lapa, em seu “personagem” mbolo. A instituição de Aninha e Cora Coralina
como personagens
1
, aliada a outros fatores, contribuiu para a construção de um mito
em torno da autora. Segundo José Mendonça Teles (2001):
Não se sabe o que é mais admirável, nesta Cora que estreou na literatura, publicando seu
primeiro livro, numa idade em que a maioria dos escritores abandona sua pena: se a sua
lírica singela, mas expressiva, ou se a forte personalidade, que agigantava a figura humana,
apoiada em muletas. Transfigurada pelo fogo sagrado do verbo, incendiada pela emoção
poética, Cora Coralina dava a impressão de ser uma força vital, uma explosão da natureza,
quando erguia-se trêmula, mas segura, para dizer seus versos. Os auditórios silenciavam-se
reverentes, quando ela aparteava sonolentas reuniões literárias, desafiando oradores,
questionando conceitos modorrentos. (...) Franca, honesta até o limite da indelicadeza. Cora,
muitas vezes deixava em constrangimento seus interlocutores. (...) Cora partiu. Ficou o mito
(p. 44-45 e 91).
Não se pode desprezar que o processo de construção do mito dificultou uma
discussão mais rigorosa da obra, fato ressaltado pelo poeta e crítico Gilberto
Mendonça Teles. A riqueza e lucidez das avaliações justificam a longa citação:
Quanto a Cora Coralina, os seus poemas constituem um belo mito literário de Goiás e por
que não? de todo o Brasil. E, como todo o mito foi criando a sua própria estrutura, uma
superestrutura, uma linguagem estratosférica, que impede que a obra seja realmente
compreendida, e estudada. E como se iniciou tudo isto? Através de um duplo movimento:
Primeiro, com a sua saída de Goiás: Cora Coralina (cujo nome literário por si possui um
encantamento mítico-poético) saiu da cidade de Goiás (que também por si é um berço de
mitos) ainda muito nova, em 1911, numa aventura que deixou seus habitantes boquiabertos,
criando-se um sentido evhemerista para a base do mito. Segundo, com sua volta a Goiás, 45
anos depois, em 1956. Com isto o tecido mítico estava quase pronto: só faltava um
ingrediente de ordem superior que o reavivasse. E isto se deu com o reinício da publicação
de seus poemas e uma série de pequenos acontecimentos oportunos, como a crônica do
Drummond, em que se fala mais da mulher de 70 anos e dos temas do que da sua linguagem
e quando toca no verso parece desconversar, dizendo apenas: ‘o verso é simples, mas
abrange a realidade vária’. A partir daí fala de sua ‘consciência humanitária [...] que o seu
verso consegue exprimir o vivamente em forma antes artesanal do que acadêmica’. (...) As
feministas precisavam de uma referência como Cora Coralina e a tomaram como símbolo do
1
Ao longo deste trabalho, ao citar a literata, utilizamos as referências Cora Coralina e Aninha sem
distinguir essas personagens, com o intuito de evitar repetições e promover a aproximação do leitor.
Todavia, estudos literários têm estabelecido a divisão para visualizar o processo de composição da
obra. Segundo assinala Solange Yokozawa (2002b), quando a poetisa revisita poeticamente a
infância, ela o fala em nome de Cora. Cora Coralina é a autora empírica que assina os versos e,
nos poemas autobiográficos dedicados a infância, Aninha é sua personagem, uma máscara lírica
utilizada pela escritora dentro da multiplicidade de eus”: um eu de raízes confessionais que
transcenderia o mero biografismo.
15
movimento das mulheres. Cora, inteligentemente, aceitou as homenagens do movimento,
escrevendo muitos de seus poemas sobre este tema. Estava assim consolidado o mito. Desta
maneira quem quer que escreva hoje sobre Cora Coralina está ‘dirigido’ pela linguagem
mítica, que é simbólica e, como tal, opressora, vertical e impositiva, de cima para baixo. A
especulação crítica perde a sua liberdade e o estudioso não se dá conta de que está
escrevendo o ‘esperado’. Escreve-se sobre a mulher e não sobre a sua obra, que vai ficando
‘invisível’. (...) A crítica não tem a função emotiva de confirmar o que se disse, e sim a de
examinar a obra, reexaminá-la e trazer contribuições que justifiquem o seu valor. (...) E o
problema vai rolando até que um dia apareça alguém que faça um esforço digno do nome e
do mito de Cora Coralina, sem o malabarismo de citar Deus e todo o mundo para justificar o
inexplicável. (..) Para isto é preciso partir apenas da sua obra (...) e levantar o que ela
publicou em revistas e jornais, antes de voltar para Goiás na primeira fase do mito. Em
seguida, ver os seus livros e os poemas inéditos, num trabalho preliminar (...) e depois
analisar seus poemas, a partir da linguagem deles, sem lançar mãos de teorias inadequadas
(de gêneros e gerações) e enfrentar os textos como eles são, mostrando o seu valor pelo
modo com que foram produzidos e estruturados. Daí, tenho certeza, sairá o um antimito,
mas uma Cora Coralina digna de ser realmente reverenciada como signo (não um símbolo)
da cultura goiana (In: Plataforma para a poesia – trilhas literárias, 2004).
A dificuldade de divulgação e a distância do eixo Rio-São Paulo contribuíram
consideravelmente para o anonimato da obra, permanecendo praticamente
esquecida durante treze anos. A poetisa não possuía condições para promover seus
livros, vendia-os em sua residência sem maiores pretensões, “sem ajuda e sem
esperança” (Meu Vintém Perdido, VC, p. 52). Muitas vezes, as pessoas iam
conhecer a doceira mais famosa de Goiás e recebiam a informação de que a mesma
também havia se aventurado pelos caminhos da literatura. Isso até que a
Universidade Federal de Goiás realizasse uma segunda edição de Poemas dos
Becos de Goiás e Estórias Mais, em 1978, e que a obra chegasse às mãos do poeta
Carlos Drummond de Andrade, fatos que elevaram a menina feia da Ponte da Lapa
e a colocaram, juntamente com sua cidade natal, no circuito literário brasileiro. Esse
aspecto, aliado à idade e dificuldade de enquadramento geracional, também foi
avaliado por Denófrio (2004a):
Sua longevidade e estréia extremamente tardia, a absorção de códigos estéticos ao longo do
tempo muito dilatado em que viveu, dificultam o seu enquadramento geracional, o que
também não apresenta nenhum problema. Muitos nomes importantes não pertencem a
nenhuma constelação dentro da literatura brasileira. Antes, figuram isolados, como estrelas
solitárias. Cora Coralina, de fato, não está com os dois pés no Modernismo brasileiro, de
que muito se beneficiou, e nem nessa geração que coincide com a sua estréia. (...) Como
uma singela sempre viva atravessou quase um século no anonimato, mas sempre viva” (p.
30).
Fica claro que os motivos citados podem ter contribuído de forma efetiva para
que muitos críticos se silenciassem ou desmerecessem a obra da poetisa e para que
algumas abordagens não fossem realizadas, a exemplo de uma investigação
16
sociológica. Para a realização de um trabalho dessa natureza tornava-se necessário
avaliar a trajetória social da autora, a luta pela inserção no campo literário brasileiro
e suas conseqüentes interações com demais agentes em busca da distinção, revisar
a crítica e o legado e reconstruir as cenas desenvolvidas pela poetisa aproximando
texto poético e contexto social. Evidentemente, seriam necessárias leituras das
obras, acesso à fortuna crítica, ao acervo pessoal da literata e a estudos sobre a
história e a sociedade da cidade de Goiás nos diversos períodos retratados.
Além da obra se constituir em representação da sociedade em Goiás entre os
séculos XIX e XX, a própria vida da escritora, seu compromisso com os obscuros e
sua crítica social, dentre outras características, justificariam inúmeras abordagens
testemunhadas em sua herança.
Visando tentar superar as dificuldades apontadas e realizar um diálogo
autora/produção/contexto, de forma que os elementos estivessem intimamente
relacionados e não hierarquizados, partindo da obra para uma aproximação com a
realidade, definimos o objetivo geral do presente trabalho: a interpretação
sociológica das produções de Cora Coralina que evocam a temática dos becos,
utilizando como fio condutor Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais (1965),
devido ser o livro que lançou a autora no cenário nacional, que gerou avaliações
críticas apontando para um forte caráter social, além de ser considerado, do ponto
de vista estético, o seu melhor trabalho. A própria Cora forneceu um caminho e
indicou estar consciente dessas características em sua obra:
Alguém deve rever, escrever e assinar os autos do Passado antes que o Tempo passe tudo a
raso.
É o que procuro fazer para a geração nova, sempre atenta e enlevada nas estórias, lendas,
tradições, sociologia e folclore de nossa terra.
Para a gente moça, pois, escrevi este livro de estórias. Sei que serei lida e entendida
(Ao Leitor, PBG, p. 25, grifos meus).
Somando às justificativas apresentadas, convém destacarmos ainda algumas
implicações pessoais que condicionaram a escolha do itinerário. Para evitar uma
descrição marcada pelo sentimentalismo, ressaltamos apenas uma estreita relação
do pesquisador com a obra, a autora e o seu contexto. O fato de pertencer aos
“Reinos da cidade de Goiás” poderia contribuir para a compreensão da escolha do
objeto, somado também ao profundo respeito à história de vida e ao legado da
poetisa. Se não bastasse, o trabalho de quase dez anos no acervo da escritora,
17
culminando com a organização de todos os documentos, muitos deles ainda
inéditos, como anotações, diários, correspondências, matérias de jornal, material
midiático, homenagens e produção intelectual, e a estreita relação com as pessoas
que conviveram com a poetisa em seus últimos trinta anos de vida, contribuíram
para um compartilhamento de sonhos, ideais e propostas. O intuito foi efetuar
conquistas novas no campo da sociologia e, o por acaso, comungamos com a
justificativa de Marlene Vellasco (1990): “ao escolhermos como objeto de estudo a
obra da poetisa Cora Coralina, levamos em consideração, além do lado sentimental,
da vivência cotidiana, da comunhão permanente de idéias e convívio íntimo desde a
infância, ter sido Cora Coralina um símbolo de resistência e de humanidade” (p. 8).
18
PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
O poema, entendido como forma de representação social, fornece elementos
importantes para a reconstrução de relações efetuadas em determinados períodos e
espaços sociais e o pesquisador, através da ‘interpretação de uma interpretação’,
detém a faculdade de recompor um significativo aparato de informações. Nesse
sentido, a obra de Cora Coralina tem muito a revelar por constituir registro das
implicações e contradições de quase dois séculos da sociedade de Goiás.
Para conduzir a presente pesquisa, elegemos como referência principal o livro
Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais (1965) e, a partir dele, dialogamos com
outras fontes que auxiliaram a construção do objeto.
A utilização do acervo pessoal da poetisa complementou o trabalho de
aproximação do texto ao contexto histórico e contribuiu para a reconstrução de parte
de sua vida e obra, enriquecendo e oferecendo instigantes caminhos à condução da
investigação. Os “papéis de circunstância”
2
do acervo do Museu Casa de Cora
Coralina, compostos de aproximadamente dez mil documentos entre livros, revistas,
fotografias, diários, produção intelectual, jornais e correspondências, constituíram em
porto seguro quando, algumas vezes, surgiram indefinições sobre os caminhos a
seguir na estrada que é Cora Coralina. Seu plano de arranjo documental encontra-se
subdivido nas séries Correspondência Familiar, Correspondência Pessoal,
Correspondência de Terceiros, Produção Intelectual da Titular, Produção Intelectual
de Terceiros, Documentos Pessoais, Diversos e Documentos Complementares
3
.
2
A autora começou a selecionar o que deveria ser deixado para a posteridade, fornecendo as bases
para a instituição do plano de arranjo atual do museu, intitulando seu acervo de Papéis de
Circunstância: “Um dia... (...) passei a juntar os meus papéis de circunstância. (...) eram todos
aqueles papéis que pertenciam a ela, que existiam na casa ou que ali foram deixados por meu pai,
tios e parentes, falecidos ou ausentados. (...) Cumpria-se guardar respeitosamente como lembrança.
(...) Cartas e mais cartas, enfeixadas, amarradas, coordenadas. (...) Tudo ali era de grande
circunstância” (Papéis de Circunstância, ECV, p. 87-98).
3
O plano de arranjo com suas subdivisões está organizado da seguinte forma: Fundo Cora Coralina -
a) Correspondência Familiar: Ascendentes e Descendentes; b) Correspondência Pessoal: Escritores,
Escritores Goianos, Afilhados, Jornalistas, Presidentes da República, Ministros de Estado,
Governadores, Secretários de Estado, Prefeitos, Vereadores, Deputados, Cônsules e Embaixadores,
Artistas, Instituições de Ensino, Autoridades Eclesiásticas, Universidades, Procuradores de Justiça,
Instituições Culturais, Ordens e Conselhos, Amigos, Admiradores, Medalhas, Troféus, Ordens de
Mérito, Homenagens, Penitenciárias, Presidiários, Instituições Sociais, Instituições Bancárias,
Senadores, Juízes e Desembargadores, e Livrarias e Editoras; c) Correspondência de Terceiros; d)
Produção Intelectual da Titular: Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, Meu Livro de Cordel,
Vintém de Cobre, Estórias da Casa Velha da Ponte, Os Meninos Verdes, O Tesouro da Casa Velha,
19
Enriquecendo a pesquisa também utilizamos correspondências fornecidas pela
Fundação Casa de Jorge Amado e Fundação Casa de Rui Barbosa, e dissertações e
teses gentilmente cedidas pelas bibliotecas da Universidade Federal de Goiás,
Universidade Católica de Goiás, Universidade Estadual de Campinas, Universidade
Presbiteriana Mackenzie, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e
Universidade de Brasília.
Compartilhamos essas inúmeras fontes ao longo da abordagem, no corpo do
texto e nas notas de rodapé, devido à riqueza do material e, muitas vezes, ao seu
anonimato
4
. Convém destacarmos que os documentos não trabalhados nos estudos
sobre a vida e obra de Cora Coralina e nem publicados em livros, revistas e jornais
consultados, foram assinalados como inéditos; e que os títulos da dissertação, dos
capítulos e dos subitens foram extraídos de trechos de poesias ou dos títulos dos
poemas da autora.
A viagem pelo universo de Aninha se respaldou em duas referências teóricas
básicas desenvolvidas nos capítulos que compõem este trabalho. Procuramos
evidenciar as orientações das obras de Pierre Bourdieu (1996) relativas à sociologia
da arte e ao campo literário e a perspectiva de Antônio Cândido (1976) sobre as
relações entre literatura e sociedade.
De acordo com as formulações de Bourdieu (1996a), a autonomia da arte e do
artista se constitui em uma autonomia relativa em um espaço de jogo (campo)
pautado sobre determinadas condições. Compreendendo o campo como espaço
social de relações objetivas e observando os capitais progressivamente acumulados
A Moeda de Ouro que um Pato Engoliu, Villa Boa de Goyaz, Inéditos, Depoimentos Transcritos,
Publicações e Referências Esparsas, Discursos, Mensagens e Dedicatórias; e) Produção Intelectual
de Terceiros; f) Documentos Pessoais: Certidão de Batismo, Contratos de Edição, Recibos, Diplomas,
Processos (Inventário), Dia do Vizinho, Dia do Cozinheiro, Receitas (Doces), Pensão, Empréstimos,
Documentos Bancários, Notas Fiscais, Benção Papal, Contratos, Doações e Cartão de Visita; g)
Diversos: Convites, Receitas Médicas, Exames Laboratoriais, Radiografias, Atas, Capas de Livros e
Cadernos, Folhas de Rosto com Dedicatórias, Folhetos, Impressos de Cunho Religioso, Seu Vicente,
Maria Grampinho, Calendários, Envelopes, Genealogia, Anotações e Livro-caixa; e h) Documentos
Complementares: Poemas em Homenagem Póstuma, Votos de Pesar, Livros de Assinaturas no
Velório, Decretos, Selos, Fortuna Crítica, Ata da Associação Casa de Cora Coralina e Homenagens
Póstumas.
4
Esperamos, dessa forma, fornecer informações sobre a obra e o pensamento da artista que possam
contribuir a outras pesquisas. Nesse sentido, utilizaremos a estratégia adotada por Andréa Ferreira
Delgado (2003) em sua tese que, na tentativa de obter a cumplicidade do leitor, instituiu ao longo da
narrativa a recorrência reiterada às fontes. A apresentação seria desenvolvida não apenas para
compartilhar um percurso interpretativo, mas porque a leitura das fontes pode suscitar ao leitor outros
itinerários de aproximação e apreensão do objeto de pesquisa” (p. 7).
20
pode-se indagar até que ponto uma obra é reflexo das situações vivenciadas pelo
autor e forma de resistência, de contestação aos ditames dos legitimados e
estabelecidos.
As lutas pela distinção travadas nesse espaço de possíveis seriam o motor do
campo e, tais disputas e mecanismos de manutenção de poder, necessariamente,
implicariam reflexos nos agentes envolvidos - no caso do campo literário, nos
escritores, nas obras, no público leitor, mediadores, dentre outros. Para tanto, se
torna fundamental a análise da crença, “a fabricação material do produto,
transfigurado em ‘criação’, com isso desviando a busca, para além do artista e de sua
atividade própria, das condições dessa capacidade demiúrgica” (p. 193) e das
relações ocorridas no seio do campo: todo o “conjunto daqueles que contribuem para
o ‘descobrir’ e consagrar enquanto artista ‘conhecido’ e reconhecido críticos,
prefaciadores, marchands etc.” (p. 193). No entendimento do autor
pressupõe-se que compreender a obra de arte seria compreender a visão do mundo própria ao
grupo social a partir ou na intenção do qual o artista teria composto sua obra e que,
comanditário ou destinatário, causa ou fim, ou os dois ao mesmo tempo, ter-se-ia de alguma
maneira exprimido através do artista, capaz de explicitar à sua revelia verdades e valores dos
quais o grupo expresso não é necessariamente consciente (p. 230).
Porém, apesar da luta ser o motor do campo, preceitua que em seu interior só
podem surgir revoluções parciais visando à destruição da hierarquia, mas não das
regras do jogo. A luta pela dominação, além de mover o campo, contribuiria para
uma reestruturação constante:
a oposição entre direita e a esquerda, entre a retaguarda e a vanguarda, o consagrado e o
herético, a ortodoxia e a heterodoxia, muda constantemente o conteúdo substancial, mas
permanece estruturalmente idêntica. Os recém-chegados podem destituir os antigos
porque a lei implícita do campo é a distinção, em todos os sentidos do termo: a última
diferença (1983, p. 157).
Bourdieu demonstra que os determinismos sociais que deixam marcas na obra
de arte são exercidos, por um lado, através do habitus do produtor, remetendo assim
às condições sociais de sua produção enquanto sujeito social (educação familiar,
escolar, por exemplo) e enquanto produtor (estilo, contatos profissionais etc) e, por
outro lado, através das demandas e das coerções sociais inscritas na posição que ele
ocupa no campo de produção.
21
O que se chama “criação” seria o encontro de um habitus socialmente
constituído e uma certa posição instituída ou possível na divisão do trabalho de
produção cultural (e na divisão do trabalho de dominação), trabalho através do qual o
artista realiza sua obra e, inseparavelmente, se faz como artista. O habitus seria,
nesse entendimento, um princípio “gerador e unificador que reduz as características
intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em um
conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas” (1996a, p. 2). Das
orientações, observamos que, se o sujeito da obra é um habitus em relação a um
campo, o que deve ser avaliado não é o artista singular, mas o campo da produção
artística em seu conjunto. A sociologia não poderia compreender a obra de arte e,
principalmente, aquilo que acarretaria sua singularidade, se elegesse como objeto o
autor e sua obra em estado isolado. Desse modo, devemos considerar o campo
literário como um campo de forças que age sobre aqueles que estão em seu interior,
de uma forma diferenciada de acordo com a posição ocupada, provocador de
concorrências que tendem à conservação ou transformação.
Segundo os estudos de Antônio Cândido, em Literatura e Sociedade (1976), a
sociologia moderna deveria analisar os tipos de relações e os fatos estruturais ligados
à vida artística, sejam como causa ou como conseqüência. Para tanto, seria
necessário investigar as influências concretas apresentadas pelos fatores de ordem
sócio-cultural, cujos mais decisivos se ligariam à estrutura social, aos valores e
ideologias e às técnicas de comunicação.
Sua análise revela que os aspectos relativos à estrutura social se
manifestariam de forma mais visível na definição da posição social do artista ou nos
grupos receptores, valores e ideologias poderiam ser extraídos na forma e no
conteúdo da obra, e as técnicas de comunicação se demonstrariam na avaliação da
sua fatura e transmissão: “todo o processo de comunicação pressupõe um
comunicante, no caso o artista; um comunicado, ou seja, a obra; um comunicando,
que é o blico a que se dirige; graças a isso define-se o quarto elemento do
processo, isto é, o seu efeito” (p. 21). Em seu entendimento, devemos analisar
sociologicamente a produção em seus quatro momentos: a) o criador que através de
uma necessidade particular a orienta conforme as influências de seu tempo; b) a
definição de determinadas temáticas; c) a utilização de certas formas; e d) o resultado
dessa síntese e sua ação sobre o meio.
22
O crítico apresenta as modalidades mais comuns de estudos sociológicos
baseados na literatura como fonte do conhecimento:
a) trabalhos que procuram relacionar o conjunto de uma literatura, um período,
um gênero, com as condições sociais;
b) estudos que procuram verificar a medida em que as obras espelham ou
representam a sociedade, descrevendo os seus vários aspectos;
c) estudos da relação entre a obra e seu público;
d) estudos sobre a posição social do escritor, procurando relacionar a sua
posição com a natureza da sua produção e ambas com a organização da
sociedade;
e) investigação da função política das obras e dos autores, em geral com
intuito ideológico marcado;
f) investigação hipotica das origens, seja da literatura em geral, seja de
determinados gêneros.
Antônio Candido percebe nessas modalidades um deslocamento do foco da
análise do texto para a sociedade, em que o externo ao texto permaneceria externo.
Sem invalidá-las, aponta para uma abordagem que recupere os elementos externos
no interior da obra, ou seja, que encontre o social como fator da própria construção
artística.
Em sua proposta, destaca que a obra literária poderia ser compreendida na
fusão do texto e do contexto, fornecendo subsídios à interpretação dos dois
momentos. Segundo afirma, as modalidades de estudo sociológico não deveriam ser
utilizadas como orientação estética, mas como teoria e história sociológica da
literatura Sociologia da Literatura -, o que possibilitaria, a partir do texto literário,
encontrar imagens e enunciações que evidenciariam as interconexões entre literatura
e sociedade.
Pautando-se nessas referências teórico-metodológicas, organizamos a
presente pesquisa em três capítulos.
O primeiro capítulo trabalha a inserção de Cora Coralina no campo literário
brasileiro, segundo as orientações de Pierre Bourdieu sobre campo e lutas em prol
da distinção. Reconstruindo a trajetória social da literata pretendemos reunir a maior
quantidade de informações sobre seu capital social e simbólico herdado,
observando, desse modo, a posição ocupada pela poetisa. Avaliando as influências
23
familiares, educacionais e literárias a partir de correspondências, manuscritos e
produções de seu período inicial, buscamos revelar os mecanismos travados para a
inserção até a publicação de seu primeiro livro. Em seguida, a partir da análise das
correspondências de Cora com escritores legitimados nacionalmente, recompomos
as estratégias para a permanência e distinção, abrindo caminhos para a
compreensão dos conteúdos sociológicos presentes em sua obra.
Continuando a adotar as formulações de Bourdieu, o segundo capítulo avalia
a crítica e o legado, desnudando as lutas desenvolvidas pelos agentes no campo da
produção artística em seu conjunto, em busca da última diferença legítima. A
princípio, identificamos as características gerais das obras, das ressalvas e prefácios
e as datas em que as criações foram realizadas. Posteriormente, as impressões
críticas geradas pelo campo, desde o período das primeiras incursões da escritora
até a atualidade, demonstrando a necessidade de uma interpretação sociológica e
apontando o retrato que os críticos construíram sobre a poetisa e sua obra.
O terceiro capítulo descortina a obra de Cora propriamente dita a partir dos
poemas Becos de Goiás, Do Beco da Vila Rica e O Beco da Escola, publicados no
livro Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais (1965), e da poesia inédita Das
Cantigas do Beco. Nele, dialogamos com as referências de Pierre Bourdieu, sobre
obras culturais e campo literário, e de Antônio ndido, verificando como a obra
espelha a realidade de seu tempo, buscando, assim, tecer uma análise sociológica
pautada nas interconexões entre literatura e sociedade.
24
1
BÚZIO NOVO: A LUTA PELA INSERÇÃO NO CAMPO LITERÁRIO
BRASILEIRO
Perguntas feitas a Aninha
Com muita delicadeza algumas pessoas, visitantes, turistas têm me feito
interessantes perguntas. Assim tipo: “a senhora não leve a mal, quantos anos a senhora tem?”.
Querem ouvir de mim mesma, os números, datas e signos. Dessas dicas os números não dou.
Seria cretinice da minha parte. (...) Outra melhor, maior em tamanho,
enorme de não caber resposta fácil, na hora, aliás resposta implícita,
anexada a pergunta assim delicadinha, macia, fala amenizada:
“- Dona Coralina, foi a senhora mesma quem escreveu este livro?...”
Meu Deus! O tamanho da pergunta, assim de arrasar num sufoco, não tivesse eu
a minha cultivada rudeza em reação. Para umas: “não, este livro foi psicografado”,
e como a dona da pergunta não está a par dos grandes livros do Chico Xavier,
reage com conclusão: “Não sabia!”. Coitadinha, a outros me alongo: “Um dia levei esses originais
sem referência, abono, apresentação ou um corriqueiro prefácio bem assinado, levei a José Olympio,
ele recebeu, leu e publicou... e nunca jamais me perguntou – ‘Foi a senhora que escreveu?’”. Hoje
com o livro na mão visível a chancela das editoras ainda alguns
perguntam se foi eu quem o escreveu. Faça pergunta melhor...
Reação: “– Não estou perguntando não é por mal, se alguém ajudou a senhora...”.
Piso em cima: “e você acha que alguém precisaria de me ajudar a escrever?”.
A gente é ou não é, isso de ajudar a escrever e um assinar não existe, e vamos mudando o assunto.
Homens e mulheres têm me feito a cândida pergunta. No fundo, explico: Tão velha, tão gasta, tão
pobre, bagaço de gente, suspeitam, não querem aceitar, poucos, felizmente; mas atuantes. Isso de
velha foi o que me deram de sobejo, em destruição, tempos... No fundo começaram não teve jeito,
nem esmoreci, nem fui destruída, nem apagaram o conteúdo do livro.
Cora Coralina
(Caderno/Diário n. ° 15, 1978, p. 7-8)
25
1.1 VARIAÇÃO: ILUSÃO BIOGRÁFICA, POSIÇÕES E DISPOSIÇÕES
Em A ilusão biográfica, Pierre Bourdieu considera que no habitus pode ser
encontrado o princípio de unificação das práticas e das representações vivenciadas
em manifestações sucessivas. A realização de um relato de vida se afastaria das
trocas íntimas entre familiares e confidências na medida que se aproximaria de um
discurso oficial de apresentação orientado pela relação entre habitus e mercado,
onde “a própria situação da interpretação contribui inevitavelmente para determinar o
discurso coligido” (1996b, p. 189).
Segundo suas análises, os acontecimentos biográficos seriam colocações e
deslocamentos ocorridos em espaço social, possibilitando observar os diversos
capitais em jogo. A mudança e a tomada de posições se conduziriam pela relação
objetiva entre sentido e valor num espaço orientado onde
não podemos compreender uma trajetória (isto é, o envelhecimento social que, embora o
acompanhe de forma inevitável, é independente do envelhecimento biológico) sem que
tenhamos previamente construído os estados sucessivos do campo no qual ela se
desenrolou e, logo, o conjunto de relações objetivas que uniram o agente considerado pelo
menos em certo mero de estados pertinentes ao conjunto dos outros agentes envolvidos
no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço de possíveis (p. 190).
Na perspectiva de Norbert Elias (1995), as ações e omissões resultariam da
influência da sociedade em que o indivíduo está inserido, desconstruindo a visão
caracterizadora do “gênio criador” ou gênio do artista”. O desenvolvimento da
personalidade individual (psicogênese) e da sociedade (sociogênese) possibilitaria a
concessão de processos civilizadores e descivilizadores. As tensões provocadas
pelos processos resultariam em competição, diferenciação das funções,
interdependência, em um controle externo e, depois, num autocontrole no
desenvolvimento das estruturas e da personalidade. Em outras palavras, as
mudanças contínuas da estrutura social sugeririam a mudança no “padrão de
comportamento e a constituição psíquica dos povos” (1994, p. 16).
Essas orientações, sobre a influência do contexto social e o conjunto das
relações objetivas que condicionam o agente, constituem o fio condutor que
permeará o presente capítulo: a trajetória de inserção de Cora Coralina no campo
literário brasileiro e sua luta pela distinção. Com esse propósito, tentaremos
reconstituir o ponto de vista da poetisa goiana, entendido como o ponto
26
representativo do espaço social no qual sua visão de mundo foi formada,
desvendando “princípios esquecidos ou renegados, da liberdade intelectual”
(BOURDIEU
,
1996a, p. 64).
A reconstituição da origem social da escritora juntamente com o capital social
herdado e a busca pela inserção no campo promove, de acordo com Ênio Passiani,
a explicitação de “todo seu capital social e simbólico acumulado ao longo desse
percurso para, assim, coligir mais informações que contribuam para depreender a
posição” (2003, p. 109). A trajetória social de um literato:
não todas as respostas que procuramos ou responde a todas as questões
sociologicamente relevantes, mas, desde que cotejada com os estados correspondentes da
estrutura do campo que se determinam em cada momento histórico, oferece elementos que
permitem analisar as tomadas de posição e as disposições do agente social em razão da
posição ocupada no campo, que, por sua vez, torna-se inteligível se vislumbrarmos a
trajetória (social) percorrida pelo agente; trajetória e posição constituem uma relação
dialética, na qual não é possível entender uma sem nos ocuparmos necessariamente da
outra (p. 109-110).
A avaliação de uma trajetória em que vida e obra são indissociáveis, também
é ressaltada por Maria Cristina Teixeira Machado ao considerar que a origem social
de um intelectual torna-se relevante “por nos fornecer informações preciosas sobre
os impulsos grupais que deixam transparecer em suas obras” (2002, p. 55). Citando
Mannheim afirma que
se não podemos pela origem social obter todos os dados para a compreensão completa do
desenvolvimento mental de um indivíduo, podemos pelo menos levantar alguns fatores que
nos esclareçam sobre sua predisposição particular para enfrentar e experimentar
determinadas situações. Não podemos explicar padrões dominantes de ideação, sob
circunstâncias historicamente conhecidas, sem contar com elementos de histórias de vida,
estreitamente relacionadas a dados sobre as origens social, de classe ou vocacional, no
estudo de intelectuais representativos (p. 55).
De acordo com esse entendimento, torna-se necessário seguirmos os
caminhos de Cora Coralina, observando o capital simbólico acumulado, suas
relações e posições no campo literário, pistas para recuperarmos e investigarmos
sua trajetória social.
27
Anna Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas
5
, nascida em 20 de agosto de 1889
na “Casa Velha da Ponte”, em Goiás, e falecida em 10 de abril de 1985, em Goiânia,
descendia de uma tradicional família, possuidora de sesmarias e projeção política. A
poetisa era filha de “mãe goiana (...) descendente de portugueses”, da genealogia
do bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, e de pai “nascido na Paraíba do Norte”
(Lampião, Maria Bonita... e Aninha, VC, p. 78).
Sua mãe Jacyntha Luiza do Couto Brandão Peixoto
6
, apelidada de Senhora,
era filha de Honória e Joaquim Luís do Couto Brandão. De acordo com Maria José
Goulart Bittar, existia uma discriminação educacional na sociedade goiana e
os filhos do sexo masculino da família Couto Brandão, estudam no Rio de Janeiro, em Ouro
Preto e na Europa. As filhas permanecem na cidade de Goiás. Mesmo assim, D. Jacyntha
adquire uma cultura considerável para a época. De seus irmãos, um formou-se em medicina
na Europa e outro, em odontologia em Ouro Preto. (...) D. Jacyntha espanhol e italiano e
fala fluentemente francês. Intelectual, perde-se em intermináveis leituras e, até hoje o fato de
ter lido todos os livros da Biblioteca Pública de Goiás é sempre lembrado. Considerando-se
as possibilidades da época, como as dificuldades de comunicação e atrasos do correio, está
sempre bem informada assinante que é dos jornais O Paiz, O Jornal e Correio da Manhã, do
Rio de Janeiro. (...) D. Jacyntha mantém intercâmbio comercial com grandes magazines
franceses, dos quais recebe cosméticos, perfumaria, remédios e obras de arte. Da França
recebe também jornais e revistas (2002, p. 153 e 158).
Dos seus três casamentos, D. Jacyntha teve quatro filhas: do primeiro,
Vicência, do segundo, Helena e Anna, e do último Adda, experiência traduzida em
poesia:
Minha mãe, muito viúva, isolava-se no seu mundo de
frustrações,
ligada maternalmente à caçula do seu terceiro casamento
(Menina Mal-amada, VC, p. 116).
Ao nascer frustrei as esperanças de minha mãe.
Ela tinha já duas filhas, do primeiro e do segundo
casamento
com meu Pai.
Decorreu sua gestação com a doença irreversível de meu Pai,
5
Conforme entrevista concedida à escritora Yêda Schmaltz em 1982: O meu nome é Anna Lins dos
Guimarães Peixoto Brêtas. Anna com dois enes, não dispenso a partícula dos e também não
dispenso o chapeuzinho do Brêtas e não gosto que errem meu nome: quem o escrever, que o
escreva com todas as letras”.
6
No acervo da escritora existem três documentos referentes/escritos por D. Jacyntha Luiza do Couto
Brandão Peixoto (4/11/1864-1/4/1936): 1) Um cartão com os dizeres: “Annica. Não mais habitas nesta
casa, mas continuas a habitar num sacrário que nela existe e que é o coração de tua mãe.
Lembrança afetuosa do dia 20 de agosto de 1912. De tua mãe; 2) Carta escrita em 1920; e 3)
Telegrama de Adda com o seguinte teor: “Mãe nas últimas, siga urgentíssimo. Adda. 9 h 30.
1/11/1935” (Inéditos).
28
desenganado pelos médicos.
Era justo o desejo de um filho homem
e essa contradição da minha presença (p. 114).
Os valores circulantes em Goiás à época do nascimento e adolescência de
Aninha se caracterizavam pelo preconceito a tudo o que se destoava dos valores
ditados pela “boa sociedade” e pelo apego às convenções sociais e a terra, sendo
agravados com a transferência da capital para Goiânia, em 1933. No entanto, a
partir do século XIX, instaurou-se um ambiente propício ao desenvolvimento das
letras e as famílias tradicionais, ao enviarem seus filhos para os estudos na Europa
e na Corte, promoveram uma “europeização” dos costumes, pois “regressavam
trazendo maneiras elegantes e fidalgas. Cultivavam as artes, o latim e a retórica. O
francês era a língua de bom-tom: todos a falavam em sociedade” (MENDONÇA,
1981, p. 19).
Sobre o lado paterno da poetisa, as informações se referem a um homem
nascido na cidade de Areia, na Paraíba, formado na faculdade de direito do Recife,
doente e casado com uma mulher quarenta e três anos mais nova. Órfã de pai, a
escritora foi criada em meio a oito mulheres numa infância vivenciada por inúmeras
dificuldades:
A falsa aparência de uma casa grande. Morada de gente envelhecida, injustiçada, incapaz de
reagir, empobrecida, triste, cevando um masoquismo inconsciente e mazombo. Cerradas
portas e janelas, resguardando de olhar estranho o desmazelo e a pobreza que se instalavam
(Casa Velha da Ponte, ECV, p. 11).
Quando me entendi por gente (...) entrava-se, decididamente, na linha da decadência
econômica e financeira que alguns maus empreendimentos apressaram. Faltava dinheiro
para tudo. Credores mandavam cobrar na porta. Minha mãe se escondia; humilhada,
mandava dizer que não estava em casa. Aos poucos foram saindo em penhores onerosos,
donde nunca mais voltaram, jóias, diamantes, coleção de antigas moedas de ouro, relógios
Patek Filipe, livros valiosos de meu pai. (...) Vazia do seu melhor e valioso conteúdo, sobrou
ainda, na casa e na família, não pouco orgulho e muita empáfia (Papéis de Circunstância,
ECV, p. 96).
A morte do pai aos sessenta e oito anos de idade, um mês e vinte e cinco
dias após a data de nascimento da poetisa, veio dificultar sua ascensão social, se
aliando à ausência de um incentivo educacional formal. A autora confidencia
informações na carta dirigida a Augusto Lins:
Meu pai Desembargador Francisco de Paula Lins dos Guimarães Peixoto, depois de longa
passagem por tantas comarcas como Juiz Municipal e de Direito, até numa certa comarca de
nome Chique-chique, na Bahia, minha mãe contava, viu terminar sua carreira de Magistrado
29
neste longínquo Estado, isto em 1884. Aqui morreu. Deixou 2 filhas Helena e Anna. Minha
irmã mais velha faleceu em 62 e eu aqui, vivendo anos extras, excedentes da melhor
semente da vida humana em nosso país. Admirável que um homem nascido em 1815 (lá está
na pedra do seu túmulo)
7
tenha ainda uma filha viva nestes dias de 1965. Meu pai veio
solteiro e idoso para Goiás. Minha mãe era viúva. Mau pai casou-se tarde. Daí a filha
sobrevivente (Inédito).
Da família, Anna Lins herdou importante capital intelectual observando, além
da trajetória intelectual materna, a tradição nas letras do tenente-coronel João José
do Couto Brandão e do poeta Luís Ramos de Oliveira Couto, iniciador da terceira
fase da literatura goiana
8
com os seguintes livros publicados: Violetas (1904), Lilases
(1913) e o poema Moema (1924). No acervo existem manuscritos que reafirmam a
informação de Marlene Vellasco ao considerar que: “pelo lado paterno era prima em
segundo grau do poeta parnasiano Olavo Bilac” (1990, p. 12). Todavia, apesar do
escritor possuir um dos sobrenomes herdados por Aninha (Olavo Brás dos
Guimarães Bilac) não existem outros documentos, além dos depoimentos e
anotações da poetisa, que contribuam com essa afirmação. O que se evidencia
foram os obstáculos encontrados em razão do seu parentesco com Luís do Couto:
Meus pruridos literários, os primeiros escritinhos,
sempre rejeitada.
Não, ela não. Menina atrasada da escola da mestra
Silvina...
Alguém escreve para ela... Luís do Couto, o primo.
Assim fui negada, pedrinha rejeitada, até a saída de Luís
do Couto
para São José do Duro, muito longe, divisa com a Bahia.
Ele nomeado, Juiz de Direito.
Vamos ver, agora, como faz a Coralina... (Menina Mal-amada, VC, p. 116).
De acordo com Darcy Denófrio:
Eram tempos difíceis. Depois da libertação dos escravos e da proclamação da República, o
país, acostumado à mão-de-obra gratuita, teve de encontrar, a duras penas, outros caminhos.
A classe dia empobrecida, a que pertencia Aninha, tornou-se mais pobre ainda. Cora
7
Contrariando a afirmação, encontramos na lápide do pai da poetisa os dizeres: “Francisco de Paula
Lins dos Guimarães Peixoto. Nascido em Parahyba 28/12/1821. Falecido em Goyaz 15/10/1889”.
8
Gilberto Mendonça Teles (1964), ao estudar a poesia em Goiás, realiza uma divisão metodológica
em seis períodos: 1) De 1726 a 1830 Idéias estéticas predominantemente acadêmicas e arcádicas;
2) De 1830 a 1903 – Transição clássico-romântica, com predomínio do romantismo nos fins do século
XIX e início do XX; 3) De 1903 a 1930 Presença do romantismo e incorporação de idéias
parnasianas e simbolistas, concluindo o período com predomínio absoluto do parnasianismo; 4) De
1930 a 1942 – Período de transição que pode ser considerado como um pré-modernismo; 5) De 1942
a 1956 Modernismo; 6) De 1956 à atualidade Período de continuidade com o modernismo, mas
também de atualizações.
30
Coralina fala em fome. E, talvez por isso mesmo, tenha construído, em parte de sua obra, um
canto solidário aos despossuídos e se engajado (2004b, p. 339).
Apesar das dificuldades, se desenvolvia em Goiás um solo fértil para a
produção literária feminina. Em 1832, José Rodrigues Jardim criou a escola de
meninas de Goiás com a cadeira de “primeiras letras do sexo feminino da Capital”;
em 1847 foi criado o Lyceu Goiano, segundo estabelecimento de ensino secundário
do Brasil que, de acordo com Maria Augusta Calado Rodrigues (1982), possuía as
cadeiras de latim, francês, retórica e poética, metafísica, ética, geografia, geometria,
música, lógica, aritmética, história e filosofia racional e moral; destaca-se também
em 1889 a criação do Colégio Santana pelas dominicanas francesas. Fato
importante foi o surgimento da Academia de Goiás em 1904, cuja presidência era
ocupada pela escritora Eurídice Natal, fomentando que a escrita feminina obtivesse
aceitação na sociedade.
Gilberto Mendonça Teles descreve que os movimentos em prol da Abolição e
da República formaram em Goiás um ambiente que não admitia a clausura e a
ausência de instrução historicamente destinada as mulheres. O autor demonstra o
surgimento de movimentos em prol da emancipação feminina citando uma carta
publicada no Jornal O Goyaz, na edição de 23 de maio de 1890:
Cidadão. A propaganda que o Goyaz inicia em favor da mulher de fazer rápidos
progressos e triunfará mais cedo do que geralmente se presume. Atravessamos um período
revolucionário em que as idéias sãs e humanitárias desenvolvem-se e culminam com
espantosa facilidade e se impõem aos espíritos os mais rebeldes e retrógrados. Não admir.
no primeiro período de nossa vida nacional dominaram, como era natural, os princípios de
ordem e autoridade; no segundo, porém, em que estamos, imperam os de autonomia e
liberdade. A ocasião é, pois, mais que oportuna para a propaganda da idéia (não digo nova,
porque é do tempo de Platão) da igualdade econômica, social e política aos dois sexos.
Avante! Se o belo sexo goiano quiser ouvir-me (já me julgo com o direito de fazer-me ouvir
pela minha idade, experiência e posição social) formará um partido para vos auxiliar na vossa
gloriosa cruzada. Se ensurdecer-se ao meu apelo, continuarei apesar disto a prestar o meu
fraco concurso à grande causa que se pleiteia perante o tribunal da consciência pública, no
nosso país. De vossa constante leitora. S. B. Goiás, 20 de maio de 1890 (1995, p. 48).
Também merece referência a fundação do Gabinete Literário Goiano em
1864, biblioteca onde D. Jacyntha e suas filhas freqüentavam e participavam de
reuniões literárias:
O Gabinete, como é carinhosamente chamado, nunca deixou de atender aos seus
associados com estantes plenas de obras filosóficas, literárias e científicas. Os melhores
originais, de importantes autores em língua portuguesa, francesa e italiana, além de
dicionários, enciclopédias, compêndios de história e medicina, jornais e revistas brasileiros e
31
estrangeiros, estavam disponíveis. Era, ainda, o Gabinete o ponto de encontro da mocidade
vilaboense e o palco de inúmeras conferências sobre os mais diversos assuntos, permitindo
que a Província participasse dos movimentos literários das metrópoles (BRASIL, 1999, p. 20).
Nessa fase surgem inúmeros jornais, inclusive femininos, a exemplo de A
Rosa (1907) e O Lar (1926), além de uma intensa movimentação editorial na qual é
publicado o livro Coroa de Lírios da escritora Leodegária de Jesus, em 1906.
A tradição da família de Aninha era que as mulheres estudassem apenas as
primeiras séries do primário nas residências das denominadas “mestras”:
tive na vida uma escola primária de uma antiga mestra que tinha sido mestra de minha
mãe, Mestra Silvina. Aposentada, com aposentadoria pequena, insuficiente para a sua
sobrevivência, abriu uma escolinha particular e suas ex-alunas matricularam seus filhos
como no meu caso. Na minha escola primária, eu não fui nunca uma aluna da frente. A
escola tinha bancos compridos sem encostos, afastados da parede porque a mestra não
aceitava que a criança recostasse. Nessa escola, fui sempre do banco das mais atrasadas,
sempre! Tive muita dificuldade para aprender, ou a escola não me servia, ou eu não servia
para a escola, até hoje não defini muito bem. A mestra era sempre muito paciente, mas,
cansada, tinha ensinado a uma geração antes da minha, merecia um descanso que a
condição financeira não lhe permitia. De modo que eu ia ficando no banco das atrasadas até
não sei quando. Um dia aprendi alguma coisa e fui passando para o banco da frente com
muito vagar, muita demora, muito esforço, acho que mais dela do que meu. Eu me lembro
que não me esforçava tanto, não tinha estímulo. Entrei nesta escola aos cinco anos de idade
(CORALINA, 1981, p. 142).
Não existem certezas sobre a sua instrução formal, os críticos apontam a
segunda ou a terceira série do primário. Sabe-se que a escola da Mestra Silvina
funcionava na Rua Direita n. ° 13 e que eram utilizados como didática debuxos
(esboços de letras a serem recobertas), que “padronizavam” a caligrafia dos alunos
9
.
Por esses registros, observa-se que o aprendizado das primeiras letras não foi nada
fácil para a poetisa.
Em uma das poesias escreve que enviava seus primeiros textos para o
suplemento do Jornal O País, no Rio de Janeiro, onde eram editados ao lado de
colaboradores como Carlos de Laet, Arthur Azevedo, Carmem Dolores e Júlia Lopes
de Almeida.
Acreditava-se que a sua primeira produção era uma crônica sobre o Cometa
Halley publicada no Jornal A Rosa em 1907
.
Todavia, localizamos no Jornal Tribuna
Espírita, do Rio de Janeiro, a crônica José Olympio Xavier de Barros, sobre o
9
A biografia da Mestra, escrita no livro A mulher, a história e Goiás (BRITTO,1982), informa que
Ermelinda Xavier de Brito nasceu em 1835 e faleceu em 1920. Residia com sua irmã Amélia, que era
cega, e sua escola se destacava pelas cantigas de tabuada que eram realizadas em coro. Estudaram
com Cora os escritores Victor de Carvalho Ramos e Hugo de Carvalho Ramos.
32
pioneiro do espiritismo em Goiás, escrita em 31 de dezembro de 1905, quando Anna
Lins possuía dezessete anos.
Mas, sem dúvida, foi o conto Tragédia na Roça, publicado no Anuário do
Professor Ferreira, em 1910, que propiciou seu reconhecimento público, chegando o
crítico a mencionar que era “a maior escritora do nosso Estado, apesar de não
contar ainda com 20 anos de idade”.
A autora afirmava que, no início do século, quando começou a publicar nos
jornais, se sentia rejeitada em razão do campo literário ser restrito (SCHMALTZ,
1982). Talvez, essa dicotomia traduza o sentimento das mulheres de Goiás que,
mesmo vivendo em um ambiente favorável ao desenvolvimento das letras, se
sentiam pequenas se comparadas aos escritores. Em 1907, surgiu um jornal
feminino como estratégia para a obtenção da distinção, que não eram aceitas “no
grupo fechado”. Apesar do avanço com a criação do jornal A Rosa, tornava-se
necessário publicar produções masculinas ao lado das crônicas e poemas das
autoras. Do mesmo modo, a gerência do jornal era administrada por Heitor Fleury e
o intelectual Josias Santana era seu redator-chefe, espécies de índex das escritoras.
Teles informa que A Rosa pode ser considerado veículo das idéias literárias
goianas e era dirigido por Rosa Santarém Godinho Bello, Alice Augusta de Santana
Coutinho, Leodegária de Jesus e Cora Coralina
10
. O autor revela que era impresso
em papel cor-de-rosa e que suas dirigentes ofereciam bailes onde as moças
participavam vestidas de rosa e “só se podia falar em francês. Era o toque de
refinamento” (1995, p. 50). O jornal possuía rosas estilizadas na capa e trazia as
seguintes informações em seu expediente: “A Rosa é órgão literário e tem por fim
único e exclusivo desenvolver as belas letras em nosso meio. Sai três vezes por mês
10
O pesquisador Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado (2003), em sua dissertação sobre as
precursoras da literatura em Goiás, destaca também a participação das escritoras Illydia Maria Perillo
Caiado e Judith Fleury e de Luís do Couto, Eugênio Leal da Costa Campos, José Hermano, João de
Oliveira, Joaquim Antunes, João Nascimento, e colaboradores do Rio de Janeiro, então capital
federal. Cora afirma em entrevista ao escritor Miguel Jorge, em 1968: “O jornal a Rosa despertou um
enorme interesse não entre os escritores, como também em toda a cidade, que ficou ligada a ele.
Contudo, não havia uma consciência plena desse valor, como nos dias de hoje. O sr. Heitor
Fleury, pai de Rosarita Fleury era o elemento de ligação entre as oficinas e os escritores.
Interessadíssimo na elaboração do jornal. Muito delicado, constituía um estímulo para nós, que o
chamávamos pelo apelido de ‘Pery’”.
33
e é propriedade de seu gerente”. Curiosamente, desde as primeiras incursões no
campo literário, a escritora já utilizava o pseudônimo de Cora Coralina
11
:
Quando eu comecei a escrever, por muita vaidade e ignorância, nesta cidade havia muita
Anna. Sant’Anna é a padroeira daqui. E quando nascia uma menina davam-lhe logo o nome
de Anna. Nascia outra era Anna. De modo que a cidade era cheia de Anna, Aninha, Anita,
Niquita, Niquinha, Nicota, Doca, Doquinha, Doquita, tudo isso era Anna. Vo ia procurar
saber era Anna. Então eu tinha medo que a minha glória literária fosse atribuída a outra Anna
mais bonita do que eu. Então procurei um nome que não tivesse xará. Olhei pela cidade, corri
as minhas recordações, indaguei como chamava tal moça, assim, assim, filha de fulano...
Não achei nenhuma Cora. optei por Cora. Depois Cora era pouco, achei Coralina e aí
juntei Cora Coralina e passei a me identificar por Cora Coralina. Porque meu nome Anna é
muito comprido: Anna Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas, sendo Brêtas de meu marido.
Então Cora Coralina é mais fácil. Se fosse Anna tinham que perguntar: “Mas qual é essa
Anna? Essa Anna é aquela e tal, filha de fulana”. Custoso né? E Cora Coralina é mais fácil.
Falou Cora Coralina, boa ou ruim, é ela mesma (Especial Literatura, 1985).
A autora informa que começou a escrever aos quatorze anos de idade: “mas
não tinha leitura, não tinha vivência, nada para escrever, um pouco de
imaginário”. Juntamente com as publicações em jornais, participava do Clube
Literário Goiano localizado no “Sobrado dos Vieiras”:
Um grupo de gente moça
se reúne ali.
“Clube Literário Goiano”.
Rosa Godinho.
Luzia de Oliveira.
Leodegária de Jesus,
a presidência.
Nós, gente menor,
sentadas, convencidas, formais.
Respondendo à chamada.
Ouvindo a leitura da ata.
Pedindo a palavra.
Levantando idéias geniais.
11
Apesar de inúmeras tentativas de interpretação do pseudônimo convém suscitarmos que o nome
Cora vem da mitologia grega. Segundo consta no livro A Grécia: mitos e lendas de Alain Quesnel
(1996), Cora era a filha única de Deméter, deusa dos trigais e das colheitas. Raptada por Hades,
deus dos mortos e dos mundos subterrâneos, irmão de Zeus, é levada para o reino dos infernos.
Revoltada, Deméter proíbe o nascimento das colheitas e das plantas até que a filha seja encontrada.
Preocupado Zeus envia o mensageiro Hermes para que traga Cora de volta desde que não tenha
comido nenhum alimento dos mortos. Todavia, Cora havia comido sete grãos de uma romã. Deméter
ameaça deixar a terra estéril para sempre e Zeus propõe uma solução: que durante três meses do
ano Cora estaria em baixo da terra com o marido Hades e receberia o nome de Perséfone “a que
causa a destruição” e nos nove meses restantes ficaria com sua mãe. O autor conclui observando
que é por isso que, na primavera e no verão, quando Cora está com Deméter, esta cobre a terra de
uma vegetação luxuriante e verde, no outono, quando se aproxima a hora da partida, Deméter fica
triste, as plantas deixam de crescer, as folhas secam. Mas, quando a filha se transforma na
inquietante Perséfone, a deusa, desesperada, amaldiçoa o solo. E nada cresce durante os três
meses que os homens chamam inverno.
34
Encerrada a sessão com seriedade,
passávamos à tertúlia.
O velho harmônio, uma flauta, um bandolim.
Músicas antigas. Recitativos.
Declamavam-se monólogos.
Dialogávamos em rimas e risos (Velho Sobrado, PBG, p. 87-88).
A fama da poetisa como exímia declamadora extrapolava as reuniões do
clube, como podemos comprovar pelos trechos da carta do escritor Victor de
Carvalho Ramos e do artigo de Josias Santana, publicado no jornal A Rosa, na
edição de 24 de setembro de 1908:
Uberaba, 16 de junho de 1956. Prezadíssima compatrícia Cora Coralina. (...) A última
lembrança que tenho de você é de quando, encantado, lhe vi recitar no baile do Liceu, uma
das poesias de Olavo Bilac e um trecho de Theophile Gautier, se não me engano. Como os
versos bilaquianos viviam na sua emoção! Com os mais sinceros agradecimentos do Victor
de Carvalho Ramos (Inédito).
Croniqueta. Não me lembro de ter havido em Goyaz uma festa o bonita, o agradável
como foi a Soirée Rose. (...) A senhorita Anna Lins dos Guimarães Peixoto apreciada Cora
Coralina discorreu sobre a beleza e foi de uma felicidade [...] A sua voz suave, melodiosa,
facilitou a exposição, o gênio observador pesquisou todos os labirintos em que pode palpitar
a beleza. Trouxe o riso aos lábios do auditório por diversas vezes com a sua Maniere Exquise
de julgar, de apreciar as coisas, (...) Cora Coralina patenteou mais uma vez com a sua
palestra, a sua vasta erudição, a profundidade de conhecimentos literários que tem, pôs em
evidência o seu gosto artístico, as suas predileções de estética.(...) Josias Santana.
Josias Santana, ao descrever a palestra, contribuiu para que descobríssemos
no acervo da autora uma de suas primeiras criações. Pode-se afirmar que A Beleza
Feminina, apresentada em 10 de setembro de 1908 na Soirée Rose, consiste em
uma das mais antigas produções de Cora que se têm documentadas:
Gentilíssimas senhoras. Meus senhores. Se me atrevo ante este auditório a vestir o clamyde
dos oradores, e usar da palavra para fazer esta dissertação sobre a beleza feminina, é
somente buscar junto aos fatores desta festa comemorativa, expressar o imenso prazer que
sinto, ao ver erguer-se vitorioso, o seo santelmo da literatura goiana. Sentia a pena me
vergar nas mãos, e o braço tremer, quando a escrevia; hoje encolho-me transida e pequenina
perante a responsabilidade que assumo e da qual desejaria me tirar com galhardia. Não vos
falarei pela voz sonora e estrelada das rimas, como bem quisera; o, a minha prosa
fatigante, combalida, e sem o colorido oriental da forma, ferirá os vossos ouvidos, como as
cordas de um instrumento desafinado, dedilhado, por mãos inábeis. (...) Soerguendo o
reposteiro dos séculos, penetrando no vasto e sombrio recinto da antiguidade, atônita,
ofuscada, deslumbram-me as Phryneas, Aspásias, Helenas, Cleópatras, Haydias. (...) A
pátria da beleza e que lhe rendia culto exagerado, era a antiga Grécia. (...) As gregas em
geral eram louras e foram as mulheres mais belas e perfeitas da antiguidade. Os gregos
consideravam a mulher morena como um gênio diabólico. A maior parte das belezas que
atravessaram os culos, eram louras. Cleópatra foi cognominada a “bela dos cabelos de
fogo”. Maria Stuart era loura; louras também foram Izabel de Inglaterra, Lavalliere, de
Chevrouse, Ninon de Lenclos, Lucrecia Borgia e muitas outras. Conta Lord Byron (...) qual é
a mais formosa? A morena ou a loura? Disse o poeta: “Escorre-lhe de cima um sol dourado,
35
se do flavo cabelo o pente arranca, e é todo o corpo em Xeres lavado”. (...) Eva... Eva que
pintam hirsuta, de pele áspera e eriçada como dos animais felinos, segundo a gênesis, a
primeira mulher que Deus criou, não devia ter sido linda nem encantadora... Ou... talvez fosse
formosa! (...) Era verdadeira idolatria na Grécia (...) os poetas cantavam-na em estrofes, os
estatuários gravavam-na em mármore e bronze de forma que a eternizassem através das
épocas. (...) Que a formosura seja a causa desse sentimento, afirmou Maciel Monteiro neste
soneto: “Formosa qual pincel em tela fina. Debuxar jamais pôde ou nunca ousara. Formosa
qual jamais desabrochara. Em primavera rosa purpurina”. (...) A mulher pode imperar pela
beleza do corpo ou pela beleza da alma. (...) Escreveu Theophile Gautier: “Nunca pedi as
mulheres mais que uma coisa: a beleza, e de bom grado dispenso o espírito e a alma”. Para
mim a mulher que é bela tem sempre espírito: tem o espírito de ser bela. (...) A beleza é a
harmonia, e uma pessoa igualmente feia em tudo, é menos desagradável de contemplar-se
que uma mulher desigualmente bela! É esta também a opinião de Castro Alves que disse
ser a beleza preferível à virtude. (...) Disse bem Ernesto Legouve: “Uma beleza por extremo
rara, é o dom mais precioso que uma mulher pode receber do céu”. (...) Todas as mulheres
deviam entoar um hino de graças a Deus, se bem que seja o primeiro presente que a
natureza dá, e o primeiro que arrebata segundo diz ri, nem por isso é o menos desejado.
(...) Dirceu pintou Marília nestes versos: “Para pintares Glaucestes, os seus lábios graciosos,
entre as flores tem o cravo, entre as pedras a gramada, e para os olhos formosos a estrela da
madrugada!. A beleza tem um lúgubre cortejo de inimigos. Primeiramente o tempo, seu
maior destruidor, que cada dia lhe rouba um encanto, destruindo-a aos poucos. As moléstias
que fazem verdadeira derrocada, os panos, as sardas, espinhas, varíolas, erupções etc,
desfiguram um rosto a ponto de não ser reconhecido. (...) Olavo Bilac o primoroso estatuário
da forma, cinzelou no verso (...) “A Grécia inteira admira aquela formosura original que
inspira”. (...) É como disse Theophile Gautier: “Não compreendo uma mulher formosa que
não tenha cavalos, carros, lacaios etc”. (...) A beleza foi feita para aparecer; a fealdade para
ser oculta. A primeira é adorno, a segunda mácula. A beleza é astro, a fealdade pedra! (...) A
beleza deve ser severa, quase sombria, deve assemelhar-se às estátuas. Bem expressou
Charles Baudelaire neste soneto: “Je suis belle, o mortels! Comme un rêve de pierre, Et mon
sien, ou chacun s’est muertri tour a tour, Est fait pour inspirer au poete un amour. Eternel et
muet ainsi que la matiére. Je trone dans lazar comme un sphinse incompry, J’unis un cour de
neige a la blancheur de cignes, Je hais mouvemant que déplace les lignes, Et jamais je ne
pleure et jamais je ne rir”. (...) A mulher que não teve um átomo de beleza aos 20 anos, pode
se considerar maldita pela natureza! Disse Saint-Evremont: “Podeis dizer de uma mulher
que ela engana o marido ou o amante; mas dizei ao mesmo tempo que é formosa. Não se
zangará convosco, apenas se ressentirá por convenção”. (...) Não há gosto tão extravagante
para a beleza feminina como dos hindus. Diz Monsieur de Bayle, o historiador da literatura
indiana (grifos meus) (Inédito).
O texto permite investigar algumas tendências características do período
inicial de Cora Coralina: a escrita em prosa, influência francesa e clássica, palavras
leves, românticas, assuntos considerados do universo feminino, revisão histórica,
inúmeras citações, inclusive bíblicas, além da referência a poetas expoentes do
arcadismo, romantismo e parnasianismo brasileiro e mundial. É evidente a
contribuição de Olavo Bilac, Castro Alves, Lord Byron, Tomas Antônio Gonzaga,
Maciel Monteiro, Ernesto Legouve, Méri, Saint-Evremont, Monsieur de Bayle,
Charles Baudelaire e Theophile Gautier no início de sua trajetória. Também podem
ser citados outros escritores, relembrados pela poetisa em entrevistas, como
Almeida Garret, Camões, Gregório de Matos, Basílio da Gama e Ramalho Ortigão.
36
Segundo Teles (1964), na literatura realizada na terceira fase em Goiás, as
idéias românticas começavam a se mesclar com influências parnasianas e
simbolistas, ocasionando um anacronismo em relação à literatura nacional. O
romantismo ultrapassado por volta de 1870, somente em 1900 atingiria sua fase
áurea em Goiás, observando que até 1930 existia um predomínio absoluto do
parnasianismo.
Alfredo Bosi explica que no romantismo o todo seria mais que uma reunião de
partes caracterizadas por inúmeras temáticas: “o mar e a pátria, a natureza e a
religião, o povo e o passado” (1994, p. 91). Citando Karl Mannheim, diz que o
descontentamento com as estruturas novas pautadas na decadência da nobreza e
na impossibilidade de ascensão da burguesia conduziu para um movimento com
representações saudosistas e revolucionárias.
Cora, como os demais autores, reproduzia as influências anacrônicas
reinantes em Goiás com um eu romântico que “objetivamente incapaz de resolver os
conflitos com a sociedade, lança-se à evasão. No tempo, recriando uma Idade Média
gótica e embruxada. No espaço, fugindo para ermas paragens ou para o Oriente
exótico” (p. 93). E, na visão de Bosi, essa fuga pode ser avaliada como uma forma
de resistência: o descomprometimento com a sociedade e a busca pelos valores da
Idade Média seriam formas encontradas pelos românticos de negar as relações com
as quais discordavam.
37
1.2 ENTRE ROMÂNTICOS E MODERNOS: A SOCIOLOGIA DE UMA GERAÇÃO
PONTE
O romantismo contribuía para uma relativa aceitação das criações femininas
com temáticas que não “incomodavam” os detentores de capital. Todavia, mesmo
em um ambiente favorável à produção literária feminina, a família de Cora limitava
suas publicações que forçavam assumir visibilidade em Goiás.
Cora Coralina, apesar da falta de estímulos, considerada “romântica”,
12
se
continuasse vivendo em Goiás, provavelmente publicaria seus livros, como ocorreu
com Leodegária de Jesus.
13
Dois fatos, porém, retardariam essa possível
publicação: o primeiro foi a Revolução Branca, período situado entre 1913 e 1924,
em que nenhum livro foi publicado devido à ”transição entre o ‘bulhonismo’ e o
‘caiadismo’, que iria dominar por vinte anos, até a Revolução de 1930, e que parece
haver sufocado qualquer movimento intelectual” (TELES, 1995, p. 51). O segundo e
mais significativo foi sua gravidez:
A poetisa viveu 45 anos fora de Goiás. Apaixonou-se por um advogado, formado pela
renomada Escola do Largo de São Francisco de São Paulo, que havia assumido o cargo de
chefe de polícia na cidade de Goiás, dr. Cantídio Tolentino de Figueiredo Brêtas, e fascinou a
jovem goiana. Quando soube que ele vinha de um primeiro casamento, o que, à época, era
um dos maiores tabus, dona Jacyntha, que antes apoiava, passou a fazer forte oposição ao
namoro. A jovem engravida-se e a mãe planeja levá-la para a fazenda Paraíso, fazendo
gestões para que o advogado desapareça do lugar. Cora Coralina, sem dizer nada a
ninguém, praticamente arquiteta um plano de fuga e ambos deixam Goiás. (...) Se ela
acompanhou o homem que amava, dando a impressão de estar rompendo violentamente os
padrões da época, foi porque não lhe deixaram alternativa e somente o fez para salvar o
12
Em entrevista a Vicente Fonseca em 1982 a poetisa diz: “Havia nesta cidade de Goiás um conceito
de que moça romântica não casava e a moça romântica era a que lia, que gostava de poesia, que
recitava, declamava poemas e tal. De modo que minha e tinha quatro filhas. Uma pobreza muito
grande, viúva, renda nenhuma, vivendo mais da graça de Deus e de muito pouco conteúdo. E ela
então tinha medo, primeiro que não me casasse, por causa da minha pecha de romântica e depois
tinha medo que o meu mau de romântica contaminasse minhas irmãs e ela ficasse com uma turma de
quatro filhas coroas, sem futuro nenhum. (...) O medo que elas tinham é que a moça romântica não
ajudasse, não fosse uma boa dona-de-casa. Era o medo que havia da família do rapaz é que a
moça romântica, que podia casar com o seu sobrinho, filho, neto, o que fosse, não fosse uma boa
dona-de-casa, porque a dona-de-casa do passado tinha que ajudar o seu marido dentro da sua casa,
sem sair da sua casa”.
13
No estudo comparativo entre Cora Coralina e Leodegária de Jesus, primeira goiana a publicar um
livro, Coroa de Lírios (1906), Denófrio (2004a, p. 17) afirma que “a ausência de um ensino formal,
como aquele ministrado no Colégio Sant’Ana, jamais a prejudicou. Antes trouxe-lhe benefícios. Seu
texto não ganhou aquela rigidez formal que, teria adquirido em contato com as irmãs francesas. Não
houve também censores (ou índex) para suas leituras. (...) Não é de se estranhar, portanto, que um
vetor erótico atravesse a obra poética de Cora Coralina, contrariamente ao que se na obra de
Leodegária, mais regida por Tanatos”.
38
amor em que acreditava. Não quis fazer acintosa oposição à moral de ferro então vigente
nem escandalizar à sociedade extremamente preconceituosa de seu tempo (DENÓFRIO,
2004b, p. 342-345).
Esse fato marcou profundamente a vida literária da autora, que a mudança
para São Paulo, em 1911, contribuiu ao recebimento das influências que
posteriormente refletiria em suas obras. No acervo, além de algumas produções nos
jornais O Estado de São Paulo, no Informativo de Jaboticabal, no jornal O Andradina
e na revista A Informação Goyana, existem poucas referências sobre os quarenta e
cinco anos em que Cora morou em São Paulo
14
.
A poesia de Cora exprime um sentimento que conduziu sua vida: “geração
ponte, eu fui, posso contar” (VC, p. 34). Saindo de um ambiente que, segundo Teles
(1964), era pautado no romantismo e com influências parnasianas e simbolistas,
depois de pertencer à geração vivenciadora da transição Monarquia-República,
agora receberia influências que gestavam o modernismo.
14
Cora Coralina residiu nas cidades de Jaboticabal, Penápolis, Andradina e na capital nas ruas dos
Gusmões, Marajó no Brás, Pires da Mota na Aclimação, Pinheiros e Marquês de Itu e somente se
casou oficialmente em 1926, oito anos antes de ficar viúva. Teve seis filhos: Paraguassu Amarillis
Brêtas (28/5/1912), Cantídio Brêtas Filho e Enéias Brêtas (21/4/1917), Maria Ísis Brêtas (19/2/1918),
Jacyntha Philomena Brêtas (30/3/1921) e Vicência Brêtas (24/9/1928). Os filhos Enéias e Maria Ísis
faleceram recém-nascidos. A escritora também criou Guajajarina que era filha do marido com uma
índia descendente da tribo Guajajaras. Sobre o período em São Paulo as falas em entrevistas são
parecidas: Casei-me em 1910 e um ano depois deixei Goiás e fui para São Paulo com meu marido,
que o era goiano. No Estado de São Paulo vivi 45 anos da minha vida, encaixada e sem voltar à
minha terra. voltei a Goiás em 1956. Em São Paulo tenho quatro filhos, quinze netos e quinze
bisnetos e tem 21 anos que voltei a minha terra, que sempre esteve presente ao meu emocional.
Nunca me apaulistei, nunca deixei de ser mulher goiana e mais que tudo, mulher sertaneja, com
todas as marcas de uma mulher sertaneja que me orgulho” (Eis uma goiana, 1977). São referências
sobre a autora nessa fase: ingresso na Associação das Irmãs de Caridade de Jaboticabal (1912);
venda de mudas de jacarandá para a arborização de cidades no interior paulista (1917); cultivo de
rosas e luta para a implantação de uma escola de Agronomia em Jaboticabal (1918); filiação a
Associação Brasileira de Imprensa (1922); viagens ao Rio de Janeiro (1919 e 1926); presença na
entrada de Getúlio Dorneles Vargas, chefe político da Revolução, na esquina da Rua Direita com a
Praça Patriarca (1930); participação na Revolução Constitucionalista como enfermeira e costureira,
doação da aliança para o Governo de São Paulo na campanha “Ouro para o bem de São Paulo” e
luta para a criação de um partido feminino, escrevendo o manifesto da agremiação (1932); abertura
de uma pensão para estudantes na capital, ingresso na Associação de Amigos de Pinheiros e venda
de livros para a Editora José Olympio (1934); ingresso na Ordem Terceira da Penitência de São
Francisco com o nome de Irmã Conceição e direção de um Asilo (1937); abertura da loja Casa dos
Retalhos (1938); abertura da loja de tecidos Casa Borboleta, compra de terras e montagem de um
sitio na cidade de Alfredo de Castilho (1939); cultivo de hortaliças e participação em comícios pela
União Democrática Nacional candidatando-se a vereadora (1941) (Cronologia realizada com dados
do acervo da autora).
39
Em 1919, iniciou o envio de artigos para a revista A Informação Goyana,
escrita por goianos e publicada no Rio de Janeiro sob a direção de Henrique Silva
15
.
Mudanças em seu estilo e temáticas se observam (começa a escrever em
versos e insere nas obras temas de cunho político e social) e nos jornais paulistas e
revistas cariocas poderiam ser encontradas publicações de sua autoria como:
Doces..., Rio Vermelho, Ipê Florido e Um milagre: lenda de Goyaz (A Informação
Goyana, 1919); Idéias e Comemorações (O Estado de o Paulo, 1921); Árvores
(Jaboticabal, 1922); Dominicais (A Informação Goyana, 1924); O Homem e a terra e
Terra (O Andradina, 1944) e A hora presente e Búzio novo (O Andradina, 1946)
16
.
A cidade de São Paulo vivia em um período de agitadas mudanças
intelectuais, especialmente com a chegada das vanguardas européias na pintura e
nas letras. Segundo as análises de Alfredo Bosi (1994), as idéias pré-modernistas ou
modernistas fortaleciam-se desde o início do século e o que a crítica nacional
considera como modernismo se relacionaria a um período datado e público que se
impôs como um divisor de águas: a Semana de Arte Moderna, realizada em
fevereiro de 1922. Em suas interpretações, comenta as tentativas de
enquadramento geracional oriundas da tendência:
Se por Modernismo entende-se exclusivamente uma ruptura com os códigos literários do
primeiro vintênio, então não houve, a rigor, nenhum escritor pré-modernista. Se por
Modernismo entende-se algo mais que um conjunto de experiências de linguagem, se a
literatura que se escreveu sob o seu signo representou também uma crítica global a
estruturas mentais das velhas gerações e um esforço de penetrar mais fundo na realidade
brasileira, então houve, no primeiro vintênio, exemplos probantes de inconformismo cultural
(p. 332).
A essa efervescência ideológica, que iria culminar no Modernismo, aliam-se
os preparativos para a comemoração do centenário da Independência. Por essa
razão, o jornal O Estado de São Paulo, em 3 de outubro de 1921, publicou um artigo
intitulado Idéias e Comemorações de autoria de Cora Coralina, dedicado “ao dr.
15
A edição de 15 de fevereiro de 1919 da revista informava: “Cora Coralina é o pseudônimo de uma
escritora brilhante que, com o maior entendimento A Informação Goyana registra aqui entre seus
colaboradores a partir do presente número. Seus trabalhos como Ipê Florido, evocam sempre
paisagens ou coisas da longínqua terra que ela deixou na mocidade”.
16
É inédita a reunião e identificação das publicações da autora realizadas em jornais e revistas de
São Paulo e do Rio de Janeiro. Em entrevista a Vicente Fonseca, em 1982, a poetisa diz: Através
dos longos anos aa publicação deste livro eu sempre escrevi alguma coisa: espaço em jornais, em
revistas, fora de Goiás, porque vivi 45 anos longe desta minha terra, de modo que nesse tempo todo
eu estive ligada a literatura”.
40
Monteiro Lobato”. No artigo, sugeria a exibição de filmes retratando a cultura de
todos os estados da Federação, o que atrairia turistas e divulgaria as belezas do
país:
(...) Que seria de S. Paulo abrir um grande cinema ao ar livre ou mesmo em imenso salão
para isso construído em caráter embora transitório, onde fossem passados “films” de todos os
21 Estados do Brasil, no sentido de fazer estes conhecidos dos estrangeiros que virão encher
esta capital, sôfregos de tudo ver, como também dos próprios nacionais! E que poderoso
veículo para a vulgarização dos nossos produtos, riquezas naturais desconhecidas, tantas
inexploradas, todas e onde a legenda dos quadros fosse simultaneamente grafadas em
francês, italiano, espanhol e português! E viria em primeiro plano S. Paulo com o esplendor
dos seus cafezais compactos, em todas as fases do plantio, cultura, florescência, colheita,
exportação, enriquecendo direta e indiretamente o país, o Estado, o município, o fazendeiro e
o colono. As suas indústrias prosperam, suas cidades de cinco anos aparelhadas e feitas
para a vida de cidades grandes. Depois Minas com o seu industrialismo de laticínios, seus
rebanhos médios e suas velhas tradições históricas. Bahia com sua cultura de cacaueiros,
toneladas de exportação (...) Paraná com sua erva mate, suas madeiras de lei e sua seiva
maravilhosa. Rio Grande do Sul com as charqueadas, suas indústrias adiantadas (...) e o
interessante gaúcho de poncho amplo e chapéu largo. Pernambuco e Alagoas com suas
grandes usinas açucareiras. O Amazonas com sua borracha, dando-nos curiosos e inéditos
aspectos da vida dos seringais. Mato Grosso com sua ferocidade de terras virgens, abertas, a
remunerar todas as iniciativas do homem, seja criando, seja plantando. E Goyaz, o olvidado,
o desconhecido Goyaz, perdido e isolado no centro do Brasil, mais ignorado dos próprios
brasileiros do que todos os outros Estados da Confederação, relegado sempre na distribuição
dos favores oficiais, vivendo vida inteiramente à parte progredindo mais pelo instinto natural
das coisas do que pelo consenso dos governos que desconhecem impatrioticamente as
possibilidades econômicas do Brasil Central (...) e seriam ainda mais conhecidas suas
riquezas naturais inexploradas todas, seus rios navegáveis (...) e o seu Rio Araguaia, o mais
belo rio do mundo, como o adjetivou Couto de Magalhães (...) e todos os outros Estados
passariam sucessivamente (...) incentivados pela comissão de festejos, a revelar os “films”
sensacionais do Grande Cinema do Centenário.
Um dia após a publicação, o escritor Monteiro Lobato respondeu:
São Paulo 4. out. 921. Exma. Colega D. Cora Coralina. Recebi sua gentilíssima carta de 25, e
antes de mais cumpre-me agradecer a simpatia que demonstra para com este humilde
rabiscador. Quanto ao negócio do Estado creio que a Sra. se dirigiu mal duas vezes: a 1.ª
mandando sua colaboração para lá, para um jornal ranzinza e “enjoado” e abarrotado de
matéria; 2.° dirigindo-se a mim para obter a publicação, quando nenhuma ligação tenho com
tal folha. o obstante, a primeira vez que for falarei do seu artigo ao Amadeu. O melhor,
porém, seria remeter-me cópia dele, que eu falo-i-a publicar. E sem mais, dona Cora,
pedindo-lhe que creia na muita simpatia deste seu colega, subscrevo-me. Monteiro Lobato.
Ênio Passiani comenta serem notórios na obra de Monteiro Lobato alguns
elementos antecipatórios do movimento de 22, tornando-o um dos adversários dos
modernistas: “se o modernismo se pretendia um divisor de águas na história cultural
do país, não era possível reconhecer nos escritores da geração anterior as raízes da
Semana de 22” (2003, p. 57).
41
Na Revista do Brasil Lobato pretendia acolher “novos” escritores que
apresentassem em suas obras “coragem para romper com os francesismos e
inaugurar uma estética nacional, cujos livros tratassem de um mergulho na cultura
brasileira, pesquisando, questionando e descobrindo-a” (p. 63). A sua intenção era
construir, a partir da palavra, a nacionalidade brasileira, entendimento que dialoga
com a obra de Cora Coralina:
Eu me libertei da dificuldade poética depois do modernismo de 22, mas não acompanhei
o movimento.o sei como – não posso explicar como - me achei dentro daquela mudança.
Em primeiro lugar, poesia para mim é comunicação; em segundo lugar é invenção, porque
o gênio cria. Hoje nós temos que achar a poesia na realidade da vida e a vida toda é poesia.
Porque onde há vida, poesia. Poesia para mim é um ato visceral. É um impulso que vem
de dentro e se eu não obedecê-lo me sinto angustiada. (...) Todo o poeta é meu preferido.
Gosto dos poetas de 22. Mas para mim o fundamental é a poesia que busque inspiração na
realidade. Não suporto os poetas do imaginário que fazem sua arte do caracol das palavras
(Revista Análise, 1984, p. 10-11, grifos meus).
Passiani (2003), chama a atenção de que para Monteiro Lobato a literatura
deveria permitir um mergulho na realidade nacional e tornar possível a criação de
uma consciência genuína sobre o país, com suas mazelas e potencialidades. A
proposta convergiria para a incorporação da linguagem coloquial, regionalismos e
tornar o folclore uma temática literária. Segundo suas análises, “essa proposta não
era exclusiva de Lobato, mas de todo um círculo de intelectuais militantes
denominados acertadamente de ‘mosqueteiros’ por Nicolau Sevcenko, que lutavam
arduamente para criar um saber próprio sobre o Brasil” (p. 71, grifos meus).
Citando Alaor Barbosa, Passiani observa a reavaliação que os críticos têm
dispensado à obra de Monteiro Lobato por muito tempo considerada como
regionalista. A crítica atualmente percebe que a narrativa e linguagem próximas da
oralidade sugerem o diálogo do escritor com o movimento literário pré-modernista.
Os estudiosos também têm reavaliado a obra de Cora Coralina. De acordo
com Yokozawa (2002b), deve-se insistir na relação da poetisa com a tradição
literária moderna e modernista, desconstruindo as análises críticas que destacam
um insulamento da autora e o mito construído pelas afirmações da própria Cora ao
reiterar esse desprendimento. Segundo entende, Cora Coralina seria a grande
continuadora do modernismo em Goiás, retomando uma tradição iniciada, em
poesia, por José Godoy Garcia, José Décio Filho, Domingos Félix de Sousa e
Bernardo Élis (Primeira Chuva). Observa que nos momentos de maior
42
individualidade e originalidade de sua obra, a exemplo de quando eleva os
marginalizados dos becos de sua cidade,
a poetisa fala em uníssono com a tradição literária moderna e modernista, de modo a
corroborar com a tese de T. S. Eliot de que o poeta teria os passos melhores e mais
significativos não naqueles aspectos de sua obra em que ele menos se parece com qualquer
outro, como gosta de insistir certa tendência, mas naqueles onde ‘os poetas mortos, seus
antepassados, mais vigorosamente afirmam a sua imortalidade’ (p. 8).
Todavia, não é nossa intenção afirmar ou enquadrar a produção da poetisa
goiana em uma determinada tendência, tarefa para a crítica literária. O objetivo
central, orientado pela perspectiva sociológica, consiste em levantarmos algumas
pistas e prováveis confluências que imprimiram marcas significativas em sua obra.
De acordo com esse entendimento, um mês antes da Semana de 22 foi
enviada outra carta à poetisa:
São Paulo, 10.1.922. Exma. Sra. (ou Stª?) Cora Coralina. hoje respondo à sua de 30 de
Dez. porque estive fora, de férias. Se li o seu artigo no Estado? Li-o, sim, e lembro-me muito
bem dele. (...) Recebi as suas tiras de saudade sobre o Rio Vermelho. Li-as com especial
carinho, pois de muito que, apesar de viver com o tempo contado, leio tudo o que traz a
sua assinatura. Conheci-a da Rev. Feminina, e tanta espontaneidade vi em seus escritos que
telefonei à redação indagando quem era D. Cora. (...) Quis até escrever-lhe para Goyaz,
convidando-a para colaborar na Revista do Brasil. Vieram mil atrapalhações e o quis ficou
não quis. Hoje a Sra. antecipou-me e veio para a revista. (...) que preferência a artigos de
estudo, de observações sociológicas (...) espero que mande para a R. do B. algumas linhas
próprias sobre tanta coisa que seu espírito está apto a tratar. Mando-lhe o programa da
Revista, que tracei tempos, e onde assinalei numerosas sugestões que lhe poderão guiar.
(...) Aguardo as suas ordens, e peço que disponha deste humilde criado e velho admirador.
M. Lobato.
Salienta o professor Cassiano Nunes
17
que a idéia de Cora Coralina se revela
“lobatiana no seu projeto, avançado para a época, de comemoração da data magna.
(...) Lobato a recebe como diretor da admirável Revista do Brasil, que, fundada por
uma turma de intelectuais ligados ao Estado [jornal O Estado de São Paulo] de
encontrar em Lobato seu grande diretor” (1997, p. 1). Para o autor, Cora possui
pontos de contato com Lobato: “essa grande vocação de escritor, que sacrificou, em
boa parte, a realização de sua obra tentando ‘mudaro Brasil”, observa ainda que
17
Em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo (1997) um dos maiores especialistas na obra
de Monteiro Lobato, o professor Cassiano Nunes, questiona: “Teria Cora Coralina aceito o honroso
convite de Lobato? É bem possível que sim, tanto mais que tinha paixão pelas Letras. Quando andei
lendo coleções de jornais paulistanos, da década de 20, recordo-me de ter visto num deles
colaboração da escritora de Goiás”.
43
esse era um “idealismo aparentemente insensato, pois colide com os frios interesses
da oligarquia” (p. 1).
Encontrando um ambiente propício à produção e estando em contato com as
obras dos modernistas, a assimilação das tendências foi inevitável para Cora
Coralina. Afirmações de que somente conseguiu escrever poesia após o movimento,
caracterizam sua importância na vida intelectual da autora:
A literatura mudou muito de 22 para cá. Hoje, eu mesma que venho de um passado, não
procuro mais a leitura de velhos poetas, tanto quanto possível convivo intelectualmente com
os novos e parece que a minha literatura é mais dos novos do que do passado, embora nela
eu reveja o passado, porquanto tenho uma grande vivência e é na minha vivência que
encontro os temas de melhor expressão, sensibilidade. E devo dizer que a minha vivência é
muito rica, muito poderosa e eu não tenho ainda descido ao fundo dela (CORALINA, 1981, p.
141).
Nesse aspecto, a análise da biblioteca pessoal da poetisa
18
revela algumas
tendências do campo literário à época em que residia em São Paulo.
Convém inicialmente, destacarmos o livro Anthologia – leitura de trechos bons
datado de 1922. A obra, ainda não “contaminada” pelas influências do modernismo,
considera representantes da literatura brasileira autores como Raimundo Correa,
Machado de Assis, José de Alencar, Olavo Bilac, Castro Alves, Antônio Vieira,
Aluízio de Azevedo, Carlos de Laet, Visconde de Taunay e Monteiro Lobato.
Demonstrando o espírito de mudanças provocado pelo modernismo, o livro
Crítica de Humberto de Campos, de 1935, ressalta características de escritores
como Graça Aranha, Fernando de Azevedo, Mário de Lima, Álvaro Moreira e Jorge
de Lima. A crítica A poesia nova retrata essas inquietações:
18
São livros do período em que a poetisa viveu em o Paulo: Terras do sem fim e Seara Vermelha
de Jorge Amado (1942 e 1954); Curso secundário de latim (1935); Coleção Crítica de Humberto de
Campos (1935); A poesia cumprimenta os amigos de Armando da Silva Carmello (1922); A vocação
de Vitorino Lapa de Galeão Coutinho (1942); Três memórias históricas de Sebastião Fleury Curado
(1936); O jogador e Noites brancas de Dostoiewsky (1945 e 1948); O avarento de Bandeira Duarte
(1944); Ermos e Gerais de Bernardo Elis (1944); Madame Bovary de Gustavo Flaubert (1944);
Homens e temas do Brasil de Afonso Arinos de Melo Franco (1944); Bazar de ritmos de J. Araújo
Jorge (1934); Grafia moderna (1931); Antologia para a juventude e Vibrações líricas de Guerra
Junqueira (1950); Mana Maria de Antônio Alcântara Machado (1936); Terras mortas de Xavier
Marques (1936); A pátria brasileira de Olavo Bilac e Coelho Neto (1926); Miragem de Coelho Neto
(1926); Antologia Goiana de Veiga Neto (1944); Dente de Ouro e O crime daquela noite de Menotti
Del Picchia (1946 e 1948); Novelas extraordinárias de Edgar Allan Poe (1945); Últimas páginas de
Eça de Queiroz (1937); Três caminhos de Marques Rebello (1933); Usina de José Lins do Rego
(1936); O livro de Augusto Rios (1941); A megalomania literária de Machado de Assis de H. Silva
(1949); Leréias de Valdomiro Silveira (1945); Dias de guerra e de sertão de Visconde de Taunay
(1927); Boa nova, Poetas redivivos e Jesus no lar de Francisco Cândido Xavier (1941, 1945 e 1949);
O sonho de Emilio Zola (1947) e O livro das noivas (1929).
44
Em dois ou três estudos publicados sobre a poesia modernista este ano, tenho eu emitido a
minha opinião desapaixonada e leal a propósito do movimento literário de que essa poesia é,
por toda a parte, a expressão mais viva e legítima. E cada vez me cabe examinar a matéria,
tenho-o feito sobre um novo aspecto, à luz de novos argumentos, partindo de novas fontes
para chegar, sempre, à mesma conclusão: a capitulação final dos rebeldes, mas com a vitória
parcial dos ideais que os animam (...). O modernismo não conseguirá fixar-se, impondo
integralmente as suas normas, a sua técnica, a sua interpretação singular da poesia. A
literatura tradicional acabará, porém, aceitando algumas das suas sugestões, utilizando
diversas das suas fórmulas, adotando muitos dos seus cânones e, quando se fizer a história
deste século, por abençoar a rebeldia de que lhe resultou a evolução. (...) Todos os
movimentos literários têm, sempre, um chefe, um mestre, um inspirador. Este, que não é
mais que uma dissidência do futurismo, surgiu sem programa, sem bases, sem generais. Daí
as manifestações de arte bizarras, brilhantes, mas contraditórias, de modo a nos
encontrarmos, de súbito, diante de dois artistas como os srs. Álvaro Moreira e Jorge de Lima,
autores, um de um livro de prosa, outro, de um livro de versos, sem sabermos, ao certo, qual
dos dois é o prosador, e qual o poeta (p. 267 e 276).
A dificuldade destacada por Humberto de Campos, por anos permeou as
definições críticas sobre o legado de Cora no que concerne ao enquadramento
geracional e nas afirmações de que a autora escrevia poemas em forma de prosa e
prosa em forma de poesia. A poetisa relata a semelhança de seu estilo com o
desenvolvido pelos modernistas em entrevista a Vicente Fonseca em 1982:
Escritores como Manuel Bandeira, Oswald de Andrade e outros (...) eu também nunca me
interessei muito pela leitura porque me disseram que a minha poesia é daquele tipo, daquele
tipo, e eu tive medo que houvesse uma interferência psicológica, uma imitação, assimilação e
prefiro ficar onde estou.
Entre leituras, crônicas e poesias, Cora Coralina teve em São Paulo uma vida
“mais doméstica do que intelectual”. Nos intervalos, entre seu cotidiano com os filhos
e o marido e quando não estava desenvolvendo trabalhos assistenciais, a poetisa
escrevia na esperança de um dia ver seus textos publicados. Sobre esse hábito a
escritora Lygia Fagundes Telles considera que:
Não era à toa que as mulheres disfarçavam a inteligência que repelia pretendentes ao invés
de atraí-los, mulher inteligente chegava a assustar: Tia L. escondia sua poesia, quis guardá-la
para a morte... Escrevia os poemas escondida, fechada no quarto, a letra tremida, a tinta
roxa. (...) Mas quem ousava desafiar a família e a sociedade? (Houve-as, porém) e na
maioria, esquecidas. (...) e a expressão que uso hoje para designar as mulheres daquele
tempo mulher goiabada tem sua origem na imagem de minha mãe, mexendo naquele
doce. Quando mocinhas, elas podiam escrever seus pensamentos e estados d’alma... nos
diários de capa acetinada... Depois de casadas, não tinha mais sentido pensar sequer em
guardar segredos, que segredo de mulher casada só podia ser bandalheira. Restava o
recurso do cadernão do dia-a-dia, onde de mistura com os gastos da casa
cuidadosamente anotados e somados no fim do mês, elas ousavam escrever alguma
lembrança ou uma confissão que se juntava na linha adiante com o preço do de
café e da cebola. Os cadernos caseiros da mulher goiabada (1997, p. 59-60, grifos meus).
45
1.3 O CÂNTICO DA VOLTA: UMA POSIÇÃO A SER CONSTRUÍDA
Cora se dedicava à venda de livros para a Editora José Olympio e lia
constantemente obras de autores brasileiros com as inovações modernistas.
Escrevendo poemas e contos e, viúva, a escritora ainda residiria mais vinte anos no
interior paulista. Em 1956 decidiu retornar a Goiás
19
, justificando-se:
Sai desta cidade em 25 de novembro de 1911 e voltei em 22 de março de 1956. Deixei filhos,
nora, genros, netos e bisnetos. A força da terra, das raízes que me chamavam eram mais
fortes e sobrepôs a todos esses afetos familiares. Quando eu voltei, não tinha intenção de
permanecer, tinha a intenção de matar saudades velhas e carregar saudades novas (Especial
Literatura, TVE, 1985).
Quando voltou não possuía mais os vínculos com o campo literário goiano e
estava idosa. Segundo Norbert Elias, o fato de “que as pessoas se tornam diferentes
quando envelhecem é muitas vezes visto, como um desvio da norma social. Os
outros, os grupos de ‘idade normal’, muitas vezes têm dificuldades em se colocar no
lugar dos mais velhos” (2001, p. 79-80). A identificação com os velhos provoca
dificuldades para os de outras faixas etárias e a
experiência das pessoas que envelhecem o pode ser entendida a menos que percebamos
que o processo de envelhecimento produz uma mudança fundamental na posição de uma
pessoa na sociedade, e, portanto, em todas as suas relações com os outros. O poder e o
status das pessoas mudam, rápida ou lentamente, mais cedo ou mais tarde, quando elas
chegam aos sessenta, aos setenta, oitenta ou noventa anos (p. 83).
A poetisa aflorou lembranças de uma mulher que havia rompido com os
padrões de sua época e que, agora, regressava apresentando costumes externos
aos cultivados em Goiás. Em seu retorno, Cora publicou algumas poesias e contos
em jornais e lançou a crônica O Cântico da Volta.
20
Um grupo de escritores a
19
O motivo inicial do retorno é descrito pela filha da poetisa: “Já se passaram vinte anos da morte de
Senhora Jacyntha. Cora tem que ir, de qualquer jeito, para Goiás, caso contrário perderá a casa onde
nasceu – que, na verdade, são duas geminadas – que pertence a ela, Peixotinha e aos filhos de Adda
e Sinhá. Se não for tomar posse, a Lei do Usucapião será aplicada e seu cunhado, que ali mora, terá
direito a ela” (TAHAN, 2002, p. 204).
20
Cora diz no Especial Literatura realizado pela TVE, em 29 de janeiro de 1985: “Fui ficando, ficando
e enfim considerei que o melhor lugar para eu viver era a minha velha terra. A primeira mensagem
minha foi o Cântico da Volta, que eu escrevi e mandei publicar num folhetinho. Foi uma espécie de
ligação com a minha gente. E daí, então, foi se abrindo dentro de mim, como se tivesse um
porãozinho dentro, e as coisas foram saltando de dentro, as recordações, as lembranças, aquelas
velhas figuras, velha paisagem, velhos costumes, tudo isso foi saindo de mim e eu comecei a
escrever o primeiro livro”.
46
recebeu em Goiânia, ocasião em que distribuiu o folheto que serviu como estratégia
para demonstrar que mais uma literata buscava posição
21
:
Está entre nós a escritora goiana Cora Coralina. Personalidade destaque nas nossas letras,
foi Cora Coralina figura marcante em épocas passadas, quando com Eurico Curado, Luis do
Couto, Pedro Gomes, Moisés Santana e outros, dominavam meios culturais do nosso Estado,
no setor da polêmica jornalística, da poesia, do conto, enfim, através das diversas facetas da
atividade intelectual, representara à época o que de mais importante tinha Goiás. Longe de
sua terra natal por longos anos, foi Cora Coralina homenageada pela intelectualidade goiana,
por iniciativa da A. B. D. E., de Goiás, em dias da semana passada com um coquetel no
restaurante Bamboo. (...) Neste suplemento da Folha de Goyaz estampamos poesias de Cora
Coralina lidas por ocasião do coquetel a que nos referimos (Literatura em Goiás,1956, p.
1).
Apesar do reconhecimento de alguns escritores goianos, eles homenageavam
uma “figura marcante em épocas passadas” pertencente a um grupo superado que
“dominava os meios culturais”. Cora representaria uma época passada e, por isso, a
justificativa da deferência. O que o previam era que a poetisa continuava
escrevendo e, surpreendentemente, além de publicar o Cântico da Volta, declamou
poesias pertencentes a um livro inédito.
De acordo com Bourdieu (1996a), num mesmo campo habitus se chocam. As
composições sociais dos indivíduos se interagem e, através da avaliação dos
diferentes habitus, podemos perceber tanto elementos individuais, quanto sociais
que condicionaram os agentes. Em A poesia em Goiás, Teles (1968) demonstra
essa tensão existente no campo literário. Inicialmente, transcreve o manifesto do
grupo Os Quinze, composto por poetas que se identificavam com a Geração de 45,
e escrito por A. G. Ramos Jubé, em 1957, que tentava negar a existência de
rivalidades e prepotências entre escritores dentro do movimento literário goiano.
Teles, acena que apesar de Bernardo Élis, que liderava os escritores goianos, tentar
não demonstrar a luta entre velhos e novos, essa luta existia: “Foi talvez uma luta
íntima em que alguns teimavam em não se ver superados e outros trabalhavam por
emparelhar-se com o escritor ‘consagrado da província’. Foi talvez rivalidade. Mas
21
Os escritores mais jovens conheceram Cora através dessa crônica. Em muitos depoimentos
observamos tais referências, a exemplo do que escreve Marietta Telles Machado: “A primeira vez que
ouvi falar em Cora Coralina, fazia eu o curso Clássico no Liceu de Goiânia, em 1956, e ela voltava de
São Paulo, distribuindo um folheto ‘O cântico da volta’, do qual eu ganhei um exemplar autografado.
No seu retorno às raízes, depois de 45 anos, foi recebida festivamente pelos intelectuais goianos”
(2000, p. 164).
47
foi luta. Tanto que de para outras foram as vozes que se ouviram,
principalmente na poesia” (p. 202).
Por muitos anos a autora permaneceria no anonimato, publicando
esporadicamente em jornais algumas de suas criações. Em seu poema Voltei,
descreve esse sentimento:
Voltei. Ninguém me conhecia. Nem eu reconhecia
alguém.
Quarenta e cinco anos decorridos.
Procurava o passado no presente e lentamente fui
identificando a minha gente (Voltei, VC, p. 135).
A publicação de seu primeiro livro, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias
Mais, ocorreu somente em 1965, quando a poetisa estava com 75 anos. Até essa
data, encontrou um campo fechado e preconceituoso contribuindo para que
desenvolvesse textos de rico conteúdo sociológico. De uma forma consciente
escrevia para “dar que falar às bocas de Goiás” (o conte pra ninguém, MLC, p.
102).
O estilo resistente é uma das estratégias de subversão que ocasionam lutas e
promovem mudanças. A autora refletia em suas produções as mazelas,
comportamentos, compromissos e descompromissos da sociedade a que pertencia,
assumindo o encargo de apresentar vozes tradicionalmente silenciadas. Conforme
diz na entrevista a Vicente Fonseca em 1982:
Ninguém quer um artigo meu neste sentido em jornal. escrevi sobre outros problemas e
eles me põem de lado. Eles têm medo da minha opinião porque eu falo o que os outros
queriam dizer e não tem coragem e como eu não tenho sobrinho funcionário público, não
tenho filho empregado público, não tenho neto funcionário público, não tenho ninguém em
Goiás, eu tenho a liberdade para dizer o que eu quero. [Quer dizer então que a senhora é
aceita na poesia...] Relativamente, desde que eu não saia do meu campo, que eu não saia do
meu campo poético. [Quer dizer, a senhora então não entra na política justamente para não
ser...] Justamente para o ser marginalizada. Eu sei da minha franqueza e não faço mais,
não me agrupo, não sou esquerdista porque tenho muita idade. Se eu fosse mais moça eu
seria. [Seria uma revolucionária?] Não digo a quando seria revolucionária, mas que eu
debateria muitos problemas, defenderia muitos pontos de vista, isso eu defenderia mesmo
(grifos meus).
O “apagamento poético” contribuiu para que Cora realizasse o que Alfredo
Bosi considera poesia-resistência, vinculando poesia e “mundo-da-vida”. As palavras
concretas e figuras relacionariam a fala do poeta a um campo singular de
experiência tematizado pelo texto na medida que avança. Em sua interpretação, é
48
como se “pela palavra, fosse possível ao poeta (e ao leitor) reconquistar; de repente,
à imitação da vida em si mesma. As palavras são procedimentos que visam
significar o processo dialético da existência que sempre desemboca no concreto”
(2000, p. 136). De acordo com o autor, o ponto de vista doutrinário
exerce, no poema, o seu papel corrente de mediação entre o olho do poeta e as coisas a
serem descritas, as histórias a serem narradas. Enquanto mediador, o ponto de vista ordena
as figuras no todo e atribui a cada uma a sua melhor posição dentro de uma hierarquia prévia
de valores. (...) O trabalho poético é às vezes acusado de ignorar ou suspender a práxis. Na
verdade, é uma suspensão momentânea e, bem pesadas as coisas, uma suspensão
aparente. Projetando na existência do leitor imagens do mundo e do homem muito mais vivas
e reais do que as forjadas pelas ideologias, o poema acende o desejo de uma outra
existência, mais livre e mais bela. E aproximando o sujeito do objeto, e o sujeito de si mesmo,
o poema exerce a alta função de suprir o intervalo que isola os seres. Outro alvo não tem na
mira ação mais enérgica e mais ousada. A poesia traz, sob as espécies da figura e do som,
aquela realidade pela qual, ou contra qual, vale a pena lutar (p. 161 e 227).
Os obstáculos para a inserção contribuíram para que Cora expressasse sua
trajetória como a difícil caminhada que carreia pedras:
A caminhada...
Amassando a terra.
Carreando pedras.
Construindo com as mãos
sangrando
a minha vida.
(...) A estrada está deserta.
Alguma sombra escassa.
Buscando o pássaro perdido
morro acima, serra abaixo.
Ninho vazio de pedras.
Eu avante na busca fatigante
de um mundo impreciso,
todo meu,
feito de sonho incorpóreo
e terra crua.
Bandeiras rotas.
Desfraldadas.
Despedaçadas.
Quebrado o mastro
na luta desigual.
Sozinha...
Nua. Espoliada. Assexuada.
Sempre caminheira.
Morro acima. Serra abaixo.
Carreando pedras.
(...) Perdida e só...
No clamor da noite
escuto a maldição das pedras.
Meus errados rumos (Errados Rumos, MLC, p. 73-75).
49
Avaliando a substância social da memória, Ecléa Bosi, em Memória e
Sociedade: lembranças de velhos (1994), afirma que a casa, os objetos e as pedras
da cidade constituem espaços privilegiados da memória das pessoas idosas e, a
imagem das pedras, assume a função de resistência. Para ela, as pedras do
calçamento possibilitam recordar a infância por trazerem entranhadas lembranças de
um outro tempo: “as pedras resistiram. (...) A cidade conserva seus terrenos baldios,
seus desvãos, o abrigo imemorial das pontes onde se pode estar quando se é
estrangeiro e desgarrado” (p. 444). Desse modo, podem mudar o curso das ruas,
modificar o aspecto físico da cidade, as pedras de lugar, mas não se suprimem os
vínculos que ligam os homens a elas. Assim “à resistência muda das coisas, à
teimosia das pedras, une-se à rebeldia da memória que as repõe em seu lugar
antigo” (p. 452).
A imagem das pedras também resistia à dificuldade encontrada em âmbito
nacional
22
quando a poetisa buscava publicar esparsos para divulgar sua obra e
construir a crença em seu projeto criador:
Sr. Buarque de Holanda e Sr. Paulo Ronái Mestres. Procuro hoje o suplemento do “Diário
de Notícias” que VV.SS. dirigem e ordenam. Venho pedir licença de entrada, a moda antiga,
sem ninguém que me apresente, batendo palmas na porta e mandando cartão, que, no caso,
é a poesia junta: “POUSO DE BOIADAS”. Estará, ela, dentro dos quadros e avaliações do
Suplemento? Passará pelos filtros das seleções? O que posso dizer de verdade, é o
seguinte: para nós que vivemos namorando o jornal, da banda de fora, o suplemento literário,
representa uma conquista de todos os inconformados com a falta de talento, e exuberância
de vocação publicitária. Para àqueles que o têm livro publicado, nem nome feito, ou lugar
marcado na Imprensa, essas páginas domingueiras são, a bem falar, uma espécie de
respiradouro, por assim dizer, uma tenda de oxigênio onde esperamos respirar nossas
próprias criações. Competição? Não. Justo e humano desejo de sermos avaliados e
publicados; um passinho na carreira difícil; um degrauzinho na escalada impossível.
Sem esquecer de que muitos são chamados e poucos os escolhidos. Pode também,
acontecer, a gente nem ser aceita, ou, mesmo sendo, nunca passar do suplemento. No
primeiro caso se disfarça o desapontamento e: faz de conta que não mudou nada. No
seguinte, a gente mostra a todo o mundo, quero dizer ao pequeno mundo da gente. Pede o
suplemento aos amigos, assinantes do jornal; e, se enche toda de... gás néon – por exemplo.
Ficamos acreditando ter entrado em nova rotação na esfera literária e que, dali, a se
firmar na estratosfera, onde pairam os maiorais, é um pulo. Assim ou assado, não deixa
de ser um teste. E por falar em teste... vamos ver o meu teste. Aproveitando este final: Por
que os mestres que são de dentro, mandantes aí, não viram esse suplemento pelo avesso,
não desentulham ele de tanta gente letrada e dogmática e não deixa o dito, para
gente nova, mais ágil, sem livros e ansiosa de cartaz? Por que não se a ele, um sopro
renovador, abrindo concurso literário, com estímulos e prêmios? Temos, nós, para cá da linha
dos jornais, a impressão de que os suplementos deviam ser nossos. Deviam ser a nossa
passarela intelectual e que esses grandes, publicados e premiados, estão tomando nosso
22
No caderno n. ° 1, p. 18, s. d., a autora afirma: “Pouso de Boiadas pede um lugarzinho aos que
estão de dentro mandantes e maciços. Pediu e não foi ouvido. Amém. Isso há quantos anos? Em
1962” (Inédito).
50
bocado; se apossando do espaço que foi criado por uma contingência premente de oferta e
procura, do submundo das letras. Remove para o corpo do jornal essa gente sapiente,
encadernada em dourado, impressa em “couché” e deixa o suplemento, democraticamente,
aos pequenos, que dele precisam, com as devidas ressalvas. Melhorava, e bem, para nós.
“Pouso de Boiadas” pede um lugarzinho no Suplemento que VV.SS. dirigem e ordenam.
Basta isso, Mestres? Atenciosamente, Cora Coralina. Cidade de Goiás, julho de 1959 (grifos
meus) (Inédito).
No retorno a Goiás a autora se deparou com um campo literário bem definido
cuja legitimidade maior era deferida pela Academia Goiana de Letras. Criada em
1939
23
, a instituição diferia muito de sua antecessora (Academia de Goiás). Além de
conferir “legitimidade” aos escritores integrantes e “descredibilidade” aos não
agraciados com o pertencimento, seu estatuto possuía uma cláusula que proibia a
da candidatura de mulheres. Em matéria comemorativa do 40.° aniversário da
Academia, em 29 de abril de 1979, Humberto Crispim Borges relata:
Transcorre hoje, o 40.° aniversário da Academia Goiana de Letras. Criada e instalada em
abril de 1939, por sete idealistas Colemar Natal e Silva, Vasco dos Reis Gonçalves, Mário
de Alencastro Caiado, Vitor Coelho de Almeida, Dário Délio Cardoso, Luis Ramos de Oliveira
Couto e Pedro Ludovico Teixeira – a dita entidade “tem por fim a cultura da língua, da
literatura brasileira e goiana e a proteção à cultura em geral incentivando, especialmente, as
atividades intelectuais e iniciativas de instrução dentro do território goiano”. Iniciada com 21
membros, passou a 25, a 30 e agora conta com 40 cadeiras, algumas a serem preenchidas
(p. 1).
De acordo com a análise de Ênio Passiani (2003), a presença de um escritor
na Academia representaria a coroação final concedida por uma importante
instituição do campo literário; aliás, a Academia era por excelência, a instituição
responsável pelo prestígio e pela consagração dos literatos” e caberia a ela
“selecionar aqueles poucos escritores dignos, segundo os critérios nem sempre
estéticos elaborados pela própria Academia, de ingressar no rol dos imortais” (p.
67). O autor ressalta a missão de oficializar o resultado das lutas travadas no campo
na medida em que escreve a história literária e chancela a “imortalidade”. O fato de
um escritor pertencer à instituição não o tornaria por si um grande literato, seja
nos padrões da crítica ou dos editores, mas “um grande escritor segundo os critérios
23
Os membros fundadores da Academia Goiana de Letras e suas respectivas cadeiras são: 1
Pedro Ludovico Teixeira; 2 Vasco dos Reis Gonçalves; 3 Vitor Coelho de Almeida; 4 Colemar
Natal e Silva; 5 Guilherme Xavier de Almeida; 6 – Dário Délio Cardoso; 7 – João Teixeira Álvares; 8
– Sebastião Fleury Curado; 9 – Pedro Cordolino F. de Azevedo; 10 – Albatênio Caiado de Godói; 11 –
Cilêneo de Araújo; 12 – Gelmires Reis; 13 – José Xavier de A. Júnior; 14 – Victor de Carvalho Ramos;
15 – Augusto Ferreira Rios; 16 – Zoroastro Artiaga; 17 – Joaquim Carvalho F. Azevedo; 18 –
Francisco Ferreira S. Azevedo. 19 – Mário de Alencastro Caiado; 20 – Jovelino de Campos; 21 – Luís
Ramos de Oliveira Couto (Revista da Academia Goiana de Letras, 1975).
51
de representação da própria Academia. Está em jogo o modo como os acadêmicos
vêem a si mesmos, o que denuncia como eles gostariam de ser vistos pelos não-
acadêmicos” (p. 67-68).
As análises sobre as lutas travadas nas Academias de Letras pretendem
acenar para os critérios de representação da própria Academia, a forma com que os
pares se em, constituindo local privilegiado para observar as relações no interior
do campo. Desse modo, torna-se importante canal de consagração, mas não o
único, o que não significa que a chancela da imortalidade confira ao escritor
unanimidade crítica. Aqui não está em questão o reconhecimento do blico
especialista, ainda mais se considerarmos que os critérios de inserção não o
apenas estéticos. As regras de aceitação possibilitam verificar as rupturas e
continuidades, as lutas pela distinção, e fornecem um exemplo prático das noções
de Bourdieu sobre campo.
A inserção na Academia poderia possibilitar à poetisa “o reconhecimento
público, maiores oportunidades de publicação, melhor remuneração e maior
visibilidade social” (PASSIANI, 2003, p. 69). Alguns critérios para a hegemonia no
campo literário se refletiam nos utilizados para a inserção na instituição. Em
manuscrito encontrado no diário da poetisa, datado de 23 de abril de 1974,
observamos:
Acredito que com o tempo e com a evolução elas [Academias de Letras] alcancem ampla
influência superior irradiando e condicionando centros culturais além das capitais onde se
estabeleceram e operam em curtas e fechadas reuniões de sócios. O campo de ação é vasto,
a seara imensa, sempre acrescida e, como sempre, os ceifeiros se restringem a uma área
menor, quase diríamos de lazer. No entanto as Academias, quando criadas, assumem
imensa gama de responsabilidade sociológica e cultural com o Estado e com a sociedade.
São los de atração e sua influência deve se ampliar com força magnética para a vigência
de fundações diversas de alta e relevante cultura histórica, proscritos até agora de mínima
atenção individual ou coletiva. Isso espero, creio, e sei que virá um tempo, não tão distante
(Inédito).
Todavia, apesar de Goiás tornar-se precursor da aceitação feminina (somente
em 1977 Raquel de Queiroz ingressaria na Academia Brasileira de Letras), que a
Academia de Goiás, fundada em 1904, possuía como presidente a escritora Eurídice
Natal, esse ideário foi modificado com a criação da Academia Goiana de Letras, em
22 de abril de 1939. Somente a partir de 1971, o novo estatuto aprovou que
52
mulheres pudessem se candidatar a uma vaga, fato consolidado em 21 de setembro
de 1972 com a aprovação da escritora Regina Lacerda para a cadeira n. ° 16.
Darcy Denófrio, em estudo sobre a escritora Leodegária de Jesus, se refere
ao livro do escritor Brito Broca intitulado Vida Literária no Brasil 1900 que diz
“enquanto a Academia Brasileira, fiel ao modelo francês, fechava as portas às
mulheres, a modesta congênere de Goiás não admitia mulher como elegia, por
aclamação, presidente do cenáculo”. No mesmo sentido, a escritora afirma
a Academia de Goiás, presidida por uma mulher, mesmo que fosse esta a única entre os
diversos membros ali existentes, certamente criava condições para que o trabalho intelectual
feminino fosse visto com simpatia. Não é por acaso que em 1907, três anos após a fundação
dessa academia, o jornal A Rosa, dirigido por um grupo de senhoritas, [dentre elas Cora
Coralina] viesse a torna-se ‘o veículo das idéias do movimento literário da cidade de Goiás’
(2001, p. 21).
Encontrando-se fora da Academia, as escritoras eram consideradas pelos
detentores da dominação como “secundárias” na órbita literária goiana. Na luta pelo
reconhecimento, devido à impossibilidade de inserção na entidade chanceladora da
distinção, a estratégia encontrada foi a criação da Academia Feminina de Letras e
Artes de Goiás – AFLAG - em 1969.
Criada a partir do esforço das escritoras Rosarita Fleury e Nelly Alves de
Almeida, a Academia Feminina realizou sua solenidade de abertura em 9 de
novembro de 1970, com discurso proferido pela oradora Ana Braga Machado
Gontijo:
(...) Crendo no civismo que reúne anseios de espírito e os ritmos dos corações de todos os
que vivem nesta dadivosa terra, deseja revolucionar também. E criou a Academia Feminina
de Letras e Artes de Goiás. Ao que sabemos, é a primeira, no gênero, no Brasil. (...) A
AFLAG é um empreendimento sui generis. Nos seus albores, tanto poderia despertar
interesses como críticas. Não foi muito fácil realizá-lo. Pois é verdade, contada pela própria
história, que no campo da ação e da arte, do pensamento e do trabalho, o mérito vive sempre
rodeado de adversários, e que a ausência destes é a testemunha inapelável da insignificância
(AFLAG, 1970, p. 224 e 230).
A Academia Feminina veio suprir o reconhecimento dispensado pela
Academia Goiana de Letras. A posse das acadêmicas realizou-se em 1970 com 39
integrantes
24
e, entre essas, Cora Coralina merecia deferência especial como
24
As fundadoras da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás e suas respectivas cadeiras são:
1 – Ada Curado; 2 – Aida Félix de Sousa; 3 – Almerinda Magalhães Arantes; 4 Ana Braga Machado
Gontijo; 5 Anna Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas (Cora Coralina); 6 Belkiss S. Carneiro de
53
símbolo da mulher de força que venceu o tempo. Cora contava com o apoio das
escritoras para a realização de sua obra, conforme atesta a carta, sem data:
Rosarita, amiga e DD Presidente da querida Academia de Letras e Artes de Goiás. Recebo
sua mensagem dizendo meu interesse pelo datilógrafo (ele ou ela) que tanto preciso e apelo
e mais o cuidado de ampliar a minha foto e fazê-la figurar no salão nobre dessa agremiação
ao lado das colegas acadêmicas. Agradeço todo carinho da nobre amiga assim manifesto.
(...) Um Feliz Natal para você e sua família e que seja sempre realizadora e viva nossa
Academia sob sua culta e ótima direção. Com amizade abraço e respeito. Saúdo em você
grande Presidente as companheiras acadêmicas (Inédito).
Antes da posse na Academia Feminina, a autora percorreria um longo
caminho na tentativa de publicar seu primeiro livro. Ao retornar a Goiás, entre
escritos e afazeres, a poetisa durante quatorze anos se sustentaria com a venda de
doces cristalizados.
25
A venda dos doces foi uma forma de superar os obstáculos
para a inserção, conforme descreve na entrevista a Miguel Jorge em 1968:
Meus amigos me esqueceram. As revistas que apareceram em Goiânia, jamais me pediram
uma crônica sequer. Eu poderia ter colaborado e muito. Havia muita coisa a ser escrita dentro
da história de Goiás. Preferiram encomendar crônicas de fora, Eneida e outros nomes, que
falavam da Guanabara. Eu fui ficando de lado, angustiada, aborrecida, frustrada. Por isso
dediquei-me de corpo inteiro a fabricação de doces, sem deixar de escrever meus contos e
poemas. É uma espécie de revolta que tenho comigo. Escrevi bastante naquela época, mas
nunca bati na porta de ninguém para a publicação de meus trabalhos. (...) Ai está o motivo de
meu apego aos doces, é uma réplica a esse alheamento que os jornais fizeram da minha
pessoa literária (grifos meus).
Mendonça; 7 lia Coutinho Seixo de Brito; 8 Dalva Maria Pires Machado Bragança; 9 Dinorah
Pacca; 10 Ercília Macedo Araújo; 11 Eurídice Natal e Silva; 12 Cici Pinheiro; 13 Genezi de
Costa e Silva; 14 Goiandira Ayres do Couto; 15 Graciema Machado de Freitas; 16 Guiomar de
Grammont Machado; 17 Heloísa Barra Jardim; 18 Honorina Barra; 19 Lenna Castelo Branco
Ferreira da Costa; 20 Maria das Dores Ferreira de Aquino; 21 Rosarita Fleury; 22 – Maria
Guilhermina Fernandes; 23 Maria Ivone Correa Dias; 24 Maria Lucy Veiga Teixeira; 25 Maria
Ludovico de Almeida; 26 Maria Luíza Povoa Cruz; 27 Mariana Augusta Fleury Curado; 28 Ana
Maria Taveira Miguel; 29 Mirza Perotto; 30 Nair Perillo Richter; 31 Nelly Alves de Almeida; 32
Neusa Rodrigues de Moraes; 33 Nice Monteiro Daher; 34 Norma Baiocchi Medeiros; 35 Regina
Lacerda; 36 Sílvia Lourdes do Nascimento Rodrigues; 37 Telezila Blumenschein; 38 Violeta
Bitars Carrara; e 39 – Luisa de Camargo Ferreira.
25
A partir de 1960, durante quatorze anos, a poetisa sobreviveu vendendo doces de frutas
cristalizadas. “Fiz doces durante quatorze anos seguidos. Ganhei o dinheiro necessário. Tinha
compromissos e não tinha recursos. Fiz um nome bonito de doceira, minha glória maior. Fiz amigos e
fregueses. Escrevi livros e contei estórias. Verdades e mentiras. Foi o melhor tempo da minha vida”
(Nunca estive cansada, VC, p. 49). “Fazia doces, e todos os doces açucarados. Vendia em caixinhas:
doces de laranja, doce de figo, doce de mamão maduro, de mamão verde, doce de goiaba no tempo,
doce de caju no tempo, doce de banana todo tempo, doce de mangaba no tempo e doce de cidra
quando aparecia. Fora doce de abóbora com coco e doce de batata com leite de coco de buriti e doce
de leite também com coco ralado” (FONSECA, 1982).
54
A publicação de Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, em 1965,
constituiu fato que propiciou a sua inserção no campo literário brasileiro. Cora relata
o momento do encontro com a Editora José Olympio:
Para conseguir a publicação de meu livro, tive que enfrentar uma verdadeira odisséia. Andei
em diversas editoras, todas elas diziam: Deixa os originais, daqui a trinta dias damos a
resposta. Vamos levá-lo à comissão de ledores para o julgamento. Tem telefone?”. Findo o
prazo pedido, desculpavam-se, dizendo-se por demais sobrecarregados. Eu era sozinha
nessa peregrinação. Não tive ninguém que me recomendasse às editoras, até o dia da José
Olympio. Nunca desanimei. Havia lido vidas de outros artistas que sofreram mais do que eu.
Contudo, quando voltava com os meus originais devolvidos, sentia como se estivesse num
deserto, apesar dos milhares de habitantes de São Paulo. Mas eu estava só (JORGE, 1968).
É como se recordasse de suas andanças pelas vastas multidões solitárias de São Paulo
Cora começa a falar sobre sua peregrinação na “Paulicéia Desvairada”, para conseguir editar
seu primeiro livro Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais: “Eu nunca havia pensado na
José Olympio, porque era uma editora muito grande e, certamente não iria querer editar o
livro de uma poeta de muito longe, desconhecida e totalmente anônima. Vinha da Editora
Nacional, depois de receber um não bem redondo. Estava chateada, deprimida, achando que
não publicaria meus livros, duvidando do valor deles. Mas ao mesmo tempo havia dentro de
mim uma voz de reação que dizia: ‘Vai, outros passaram por isso’. De repente, paro ante
uma grande vitrine, e vejo escrito lá: Livraria JoOlympio Editora
26
. No corredor havia uma
escada antiga, de cerâmica vermelha, que me convidava a entrar. Lá chegando, encontrei-me
com o irmão de José Olympio, e foi a mesma conversa: ‘Daqui um mês a senhora volta e
etc’. Quando voltei, sem nenhuma esperança, observei-o abaixar-se para tirar qualquer coisa
da gaveta, e pensei que eram os originais para a devolução. Era a orelha do livro pronta
para a publicação (FELÍCIO, 1974, p. 11).
Após a publicação em 1965
27
foram
26
A Livraria JoOlympio Editora era uma das principais editoras brasileiras. À época da publicação
do livro de Cora, haviam sido publicados, dentre outros: Ordem e Progresso de Gilberto Freyre; Raça
e Assimilação de Oliveira Viana; A vida de Lima Barreto de Francisco de Assis Barbosa; Machado de
Assis de Agrippino Grieco; Novelas Nada Exemplares de Dalton Trevisan; Marcha para o oeste de
Cassiano Ricardo; Sagarana e Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa; Poemas de Carlos
Drummond de Andrade; 100 Crônicas escolhidas de Raquel de Queiroz; Poesia Completa de Murilo
Mendes; Visão do Paraíso de rgio Buarque de Holanda; Canto de Muro de Luis da Câmara
Cascudo; e Rio de Janeiro em prosa & verso de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade.
27
A luta para a publicação do livro também é indicada em três cartas no acervo da escritora: 1)
“23/8/1964. Querida Dona Cora. (...) Afinal já está tudo encaminhado devendo até o fim deste s ou
princípio de out. estará o seu livro publicado. (...) Sr. Antônio queria fazer umas alterações nos
originais, não concordei, pedi para fazer como está, fazendo a correção se fosse preciso no
português. (...) não pode imaginar como estou aflita para ver seu livro publicado, pois compartilho
desse seu sonho um dia realizado. Terlita”; 2) “16/10/1964. (...) Só agora venho dar minhas notícias e
também do livro da senhora, que tudo indica sairá até o fim de novembro o mais tardar. (...) Sr.
Antônio Olavo estava a minha espera para remeter o livro em ordem para ser publicado mas não
quer fazer sem primeiro aprovação da senhora. (...) para o Natal o seu livro estará espalhado para
todo este Brasil a fora. Terlita”; e 3) Minha prezada D. Cora, Senti-me muito feliz por sabê-la alegre e
satisfeita com a publicação do livro. Espero que outras alegrias mais venham se juntar a essa inicial,
e para isso estou lhe mandando as primeiras notícias e apreciações já publicadas sobre o seu
trabalho de estréia. (...) estou certo de que muita gente irá tratar dos seus poemas pelas colunas dos
jornais de nossas principais cidades. (...) Antônio Olavo. 9/7/1965” (Inéditos).
55
treze anos de esquecimento.
Solidão, esperando se fazer a geração adolescente
que só o conheceu na sua segunda edição,
que ao final sensibilizou a geração adulta, que o recebeu na primeira
em escassos cumprimentos (Meu Vintém Perdido, VC, p. 52).
Nesse aspecto, os principais articuladores para o início do reconhecimento
foram os integrantes do Grupo de Escritores Novos – GEN:
Leitores e promoção.
Meu respeito constante, gratidão pelos jovens.
Foram eles, do grupo Gen, cheios de um fogo novo
que me promoveram a primeira noite de autógrafos
na antiga livraria Oió: Jamais os esquecer.
Miguel Jorge, nos seus dezessete anos, namorado firme
de Helena Cheim, também escritora e amiga de sempre.
Luís Valladares e tantos outros a quem devo
tanta manifestação carinhosa e generosidade (Meu Vintém Perdido, p. 52-53).
O GEN
28
foi um dos responsáveis pela transformação do campo literário em
Goiás. Na opinião de Moema de Castro e Silva Olival, constituiu num movimento que
abriu fronteiras para os estudos literários e criatividade estética, considerando-o
como um divisor de águas.
O grupo surgiu em 1963, pautado pela “polêmica, reflexões críticas, debates
acalorados, num ideal de atualização em busca de renovação. Tom que vai distingui-
lo até sua dissolução em 1968-1969” (1998, p. 179). A professora atribui um
papel de cadinho da intelectualidade, em Goiás, dentre os anos 60 e 70, de que escorreram
nomes capazes de representar, hoje, o que temos de mais consciente e criativo no mundo
das letras. Estariam aí, apesar do GEN, é verdade, comandados pelo talento, mas
certamente, foi com o GEN que se aprofundaram as condições de conscientização do papel
de escritor moderno, das colocações da relação homem-literatura (o homem apanhado nas
profundezas de seus desejos através das frustrações do cotidiano), do peso de suas
possibilidades e de suas responsabilidades no mundo cultural de hoje (p. 181).
O Grupo de Escritores Novos exerceu a função de divulgador da obra de Cora
Coralina, colocando-a numa aparente contradição, já que a autora possuía quase 75
anos quando aderiu ao grupo composto por jovens. Todavia, a poetisa afirmava:
28
O escritor Miguel Jorge descreve em Poemas do Gen/30 anos (1994) a promoção no Bazar Oió do
lançamento do livro de Cora Coralina Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. Segundo Assis
Brasil, “se insurgiram contra (...) a Geração de 45 goiana, que tentava ‘exumar’ ou ‘reapanhar a
tradição’ metafórica da poesia. Tanto é assim que os seus pares eliminaram de suas preocupações
qualquer ressaibo sonetístico e adotaram a postura, larga, do verso livre. Alguns saíram para as
experiências vanguardistas (Concretismo, Poesia Práxis), mas o forte sempre foi o poema sem
ouropel ou o prosaísmo” (1997, p. 22). Do grupo, destacamos os escritores Miguel Jorge, José
Ferreira da Silva, Geraldo Coelho Vaz, Yêda Schmaltz, Luís Fernando Valladares, Maria Helena
Chein, Edir Guerra Malagoni, Natal Neves, Aidenor Aires, Emílio Vieira, Ciro Palmerston, Heleno
Godoy e Marietta Telles Machado.
56
“poeta não tem idade”, “quanto a eu não gostar de velhos, acontece que eles
também não gostam de mim. É apenas uma réplica. Não temos nenhuma afinidade”,
“Sei que tenho muitos anos. Sei que venho do século passado. Mas o sei se eu
sou velha não”. O relacionamento entre Cora e os demais escritores era mantido
através de cartas:
Daí, porque no GEN estudávamos literatura promovendo uma revisão crítica da literatura feita
em Goiás (o que nos custou e ainda custa algumas idiossincrasias e antipatias gratuitas); daí
porque acusados de sermos contra os velhos, quebradores de ídolos, de somente
valorizarmos os novos, e para responder a tais críticas, para firmar nossa posição contra
compadrismos literários reinantes e reinóis, para negar que desrespeitávamos o passado
e seus reais valores, e para dizer que nosso grupo de “novos” pretendia sê-lo o na idade
biológica, mas enquanto grupo, capaz de inovar, resolvemos convidar Cora Coralina,
septuagenária, para nele ingressar. A resposta ao convite cuja incumbência como presidente
deferi ao escritor Miguel Jorge, veio pronta: Aceito, sou do GEN! (VALLADARES, 1983, p. 21,
grifos meus).
Goiânia, 7/7/67. Tenho-le muitas saudades Cora. (...) Você é sempre lembrada,
principalmente por nós do GEN. Quando você lançou seu livro de poemas, fiz-lhe uma
poesia, tenho-a guardada e quando quiser, poderei enviá-la. (...) Cora, vodeve estar a par
dos nossos movimentos, dos nossos desencontros com os velhos intelectuais. Mas o
GEN vai para frente e ouça o que digo: Breve, muitos do grupo serão nomes nacionais. (...)
Maria Helena (grifos meus) (Inédito).
Goiânia, 21 de agosto de 1967. Prezada Cora. (...) Sexta feira conversando com o gerente do
Bazar Oió disse-me ele que seu livro havia se esgotado: “Vendeu muito o livro de Cora
Coralina”. É justo que você receba sua parte. Seria uma contribuição para a edição de seu
segundo livro. (...) A literatura sempre crescendo. rio Chamie (iniciador da poesia praxis)
esteve aqui, fez conferência. É um rapaz de muito valor. (...) Miguel Jorge (Inédito).
Goiânia, 26 de agosto de 1976. Minha muito querida Cora Coralina. Soube ontem, através do
nosso Bernardo Elis, que você está muito aborrecida com que disseram a respeito de sua
vida e de seus poemas, em uma revista, depois republicado no Cinco de Março. Confesso
que não havia tomado conhecimento disso antes. Mas, minha querida, o fique assim tão
sensível a estas pequenas maldades humanas. Você é muito maior que isto. Você é poeta.
Você é pássaro que voa entre o azul e dele você tira sábias lições e as transmite para o
mundo e para outros e futuras gerações. (...) Você é “GENIANA” e esteve e está sempre
conosco. Por isso não quero você em lágrimas. (...) Mesmo quando falam de sua vida
passada, que é também de glória, de inconformismo, de vontade de amar e lutar para
sobreviver, sendo feminista, sem alarde e sem falsos valores, mulher que lutou ao lado do
homem que amava, ao lado dos filhos que amava, forjava este instante uma voz forte de
poeta, que iria ressurgir com o tempo e despontar para ficar. (...) você marcou uma época em
nosso Estado que nem artigos maldosos e medíocres, e ninguém jamais poderá apagar. (...)
A esses você deverá responder com seu silêncio, seu desprezo. (...) Estamos com você.
Todos nós, escritores, amigos, estamos com você. Mesmo de longe estamos com você. (...)
Miguel Jorge (Inédito).
Cora Querida. Só de você que é toda poesia, eu poderia receber aquele belo poema.
[Variação} Ninguém mais seria capaz mesmo de me situar tão bem no tempo e no espaço
deste imenso amar. Quanto conheço, Cora, a sua poesia-doçura e os seus doces tão
arrumadinhos: metrificados sonetos nas caixinhas! não sabia que vopossui, além de
tudo, o olhar tão longo, de ver tão fundo na minha poesia. Qualquer dia irei visitá-la com os
meus Luizes. (...) Go. 22.8.70 Ieda Schmaltz (Inédito).
57
Apesar do apoio da Academia Feminina e do Grupo de Escritores Novos,
Cora Coralina ficou exatos treze anos esquecida até a publicação de seu segundo
livro, Meu Livro de Cordel, em 1976. Continuava escrevendo nos cadernos/diários,
mas os originais ficavam “abandonados”:
‘A cultura de Goiás e do Brasil que podia receber mais livros de Cora Coralina corre o
risco de perder um grande depoimento da escritora sobre a vida antiga da Cidade de Goiás,
que ela conhece bem’. O alerta partiu do escritor e jornalista João Benedito Martins Ramos
que esteve recentemente com a poetisa e não se conforma com o desaparecimento a que
parecem estar fadados dezenas de originais dela. (...) muitos originais prontos da poetisa
permanecem esquecidos, amontoados no escritório de sua velha casa. (...) ‘uma porção
deles esparramados e mesas cheias de papelada’. São dezenas de cadernos segundo ele.
As histórias estão manuscritas, ocupando os dois lados de cada filha e, algumas vezes, estão
de cabeça para baixo. (...) Estas ‘coisas’ o histórias acontecidas na Cidade de Goiás do
tempo dela. Ele explica que ouviu ‘...como era a gente, os acontecimentos que definem bem
os costumes de uma época, o modo de educação, os hábitos de rua, tipos populares, enfim,
algo que é matéria para a sociologia, antropologia, folclore e quaisquer atividades culturais.
(...) Ela não é uma maravilha de ordenação para escrever’. Ela quer publicar, mas o
apressa, porque é gente de manhã à noite a conversar com Dona Cora (ULHOA, 1982).
Cora, Aninha, Anica, Anita era todas numa só, pequenina, franzina, eternamente atarefada,
permanentemente escritora. Erram os que tentam reduzi-la à condição de poeta, ou poetisa.
Era contista, cronista de tempos passados e presentes. Jornalista também, observadora
distante e crítica, fiel redatora de fatos e acontecidos. Escrevia com afã, no impulso, sobre
qualquer papel que lhe caísse às mãos. Escrevia em bordas de jornais, em meio a cartões
postais, em envelopes de cartas, em rústicos papéis de embrulhar pão. Se a inspiração
transbordasse, desprezava os limites, ia desenhando letras pelos cantos, nas entrelinhas,
subia e descia até que se extinguisse o desejo de expressão. Se tivesse tempo, passava a
limpo, em cadernos caprichados ou em blocos de carta. Caso contrário, ficavam por ali,
esquecidos em meio a livros, recortes, folhetos. Perdidos nos guardados (TAHAN, 2002, p.
2).
Após o primeiro livro, apesar de aos poucos ir adquirindo adesão das
escritoras e dos escritores novos
29
, o campo literário goiano ainda imprimia
restrições à sua obra. Conforme as palavras da poetisa: “O grupo de intelectuais era
29
Esse relacionamento também pode ser observado na avaliação de sua biblioteca particular em que
constam obras dos colegas da Academia Feminina e do Grupo de Escritores Novos: Estudo sobre
quatro regionalistas e Presença literária em Bernardo Elis de Nelly Alves de Almeida (1968 e 1970);
Arraial e Coronel de Lenna Castelo Branco (1978); Do olhar e do querer de Maria Helena Chein
(1974); Biografia pai do ensino farmacêutico em Goiás de Mariana Augusta Fleury Curado (1973);
Patrono da Cadeira 23, Evolução cultural e sociológica de uma vida e Altamiro de Moura Pacheco de
Rosarita Fleury (1978, 1979 e 1981); Antologia da primeira semana goiana de poesia moderna, Antes
do Túnel, Texto e Corpo, Antologia do novo conto goiano, O visitante os angélicos, Os frutos do rio
e Avarmas de Miguel Jorge (1966, 1967, 1969, 1972, 1974, 1974 e 1978); Pitanga, A independência
em Goiás e Histórias que o homem de bronze contou de Regina Lacerda (1954, 1970 e 1981);
Encontro com romãozinho e O burrinho do presépio de Marietta Telles Machado (1976 e 1983); Canto
de cigarra de Nair Perillo Richter (1974); Caminhos de mim, Tempo de semear, A alquimia dos s,
Miserere e Os procedimentos da arte de Yêda Schmaltz (1964, 1969, 1979, 1980 e 1983);
Reencontro de Amália Hermano Teixeira (1981); Ver de novo de Luis Fernando Valladares (1977); e
Mensagens Livres de Coelho Vaz (1971).
58
pequeno, em torno deles gravitavam os menores. A mesma coisa acontece hoje em
Goiânia. Há o grupo dos sóis, centralizado pelo nosso Bernardo Élis, e em torno
gravita um mundo pequeno”. Cora também chama atenção para as estratégias de
conservação adotadas pelos veteranos: “Bernardo Élis e outros centralizam em
Goiânia (...) Bernardo é da Academia Brasileira de Letras, o primeiro e até agora
único de Goiás a ingressar na Casa de Machado de Assis”, (PIMENTEL, 1980a) e
assinala:
[Há em Goiás um choque entre veteranos e novos?] Vamos me situar na velha-guarda,
ninguém mais autêntica do que eu. Não me choco com os novos. Apenas pergunto essa
gente que quer fazer poesia, porque? Parece que status não sei. Fico muito admirada da
facilidade com que eles publicam livros. (...) Pelo critério dos veteranos um pequeno
choque. Acredito que eles tenham muito respeito pelos veteranos, porque estes pertenceram
a mesma escola passada, mas respeitada. A literatura, porém, evolui. [As Academias têm
exercido uma função dinamizadora?] Olhe, elas estão estimulando a cultura. Quem é que não
deseja entrar na Academia Goiana de Letras? (...) muita gente ansiosa para chegar até a
Academia. (...) Muita gente devia ter entrado na AGL. Miguel Jorge é um deles (1980b, p.
21).
Nessa perspectiva, Pierre Bourdieu (1996a) considera que os recém-
chegados no campo devem construir sua posição, inventar contra as posições dos já
estabelecidos uma personagem social que é o escritor ou artista moderno. Cora
Coralina, búzio novo” no campo literário, ainda enfrentaria um longo processo para
obter a “floração” e superar as pedras do caminho.
59
1.4 TRAÇO DE UNIÃO: EPÍSTOLAS E DISTINÇÕES
Através da dialética da distinção, Bourdieu percebe que “não ação de um
agente que não seja reação para todos os outros, ou para algum deles” (1996a, p.
147). O reconhecimento seria possível em uma conjuntura excepcionalmente
favorável através de uma “indiferença inflexível às injunções tácitas” do campo
literário aliadas, entretanto, à repercussão crítica favorável e ao processo de
invenção do intelectual.
O “projeto criador” de Cora trilhou a estratégia de efetuar críticas aos
costumes refletindo vidas menosprezadas, constituindo resistência para “realizar
essa obra e para defendê-la contra toda a lógica do campo” (p. 149). Segundo as
avaliações de Bourdieu, o êxito simbólico e econômico da produção depende da
ação de alguns “descobridores”. Esses agentes produziriam” a definição social em
“relação à qual se determinam os críticos, os leitores e também os autores mais
jovens” (p. 180) e contribuiriam para que a obra “marque época”.
As estratégias relativas a estilo e temáticas e a relação com escritores
paladinos, muitos com a chancela da “imortalidade” deferida pela Academia
Brasileira de Letras, foram essenciais à criação da crença em Cora Coralina.
Correspondências efetivaram esse traço de união: algumas publicadas em livros e
jornais, outras acomodadas nas gavetas da Casa Velha da Ponte e somente agora
adquirem publicidade.
Depois de Monteiro Lobato, Cora Coralina recebeu o aval da escritora Rachel
de Queiroz que a visitou em Goiás, presenteando-lhe com livros e, posteriormente,
em 1972, publicou a crônica Vila Boa de Goiás: “Goiás que toma consciência de
sua raridade, da sua unicidade, da sua importância como relíquia viva. (...) Goiás de
Cora Coralina a antiga menina Aninha, senhora da geografia dos becos e dos
mistérios, coloquiais, espécie de fada madrinha da cidade” (QUEIROZ, 1972).
A escritora Dinah Silveira de Queiroz também esteve com a poetisa em
encontro amplamente divulgado pela imprensa. Segundo a matéria, publicada em O
Popular em 17 de novembro de 1971:
O encontro foi presenciado pelo ministro Dário Castro Alves, chefe de Gabinete do Ministério
das Relações Exteriores e esposo da autora de “A Muralha”. (...) Cora Coralina recitou dois
60
de seus poemas Vintém de Cobre e Vila Rica e Dinah Silveira de Queiroz, que a ouviu
atentamente, lhe prometeu escrever muito em breve a seu respeito.
Outra estratégia de criação da crença foi a homenagem dispensada a Cora no
1.° Encontro Nacional de Mulheres nas Artes realizado pelo Teatro Ruth Escobar e
Revista Nova, em 1982. Na área de literatura estavam presentes Nélida Piñon, Lygia
Fagundes Telles, Adélia Prado, Olga Savary e Astrid Cabral. Marietta Telles
Machado narra o evento e a participação de Cora Coralina:
De repente, ouve-se um burburinho e um corre-corre de fotógrafos e de homens da TV.
Algumas escritoras levantaram-se rapidamente e deixaram suas mesas. Era Cora Coralina
que entrara. (...) Ali seria homenageada Cora Coralina. Ali seria reverenciada a memória de
grandes mulheres. (...) Quando ela entrou a assistência se pôs de e aplaudiu. Então Cora
Coralina naturalmente emocionada, pediu para falar. (...) Ficou de pé, estendeu suas os
trêmulas, num gesto de bênção e luz e declamou As mãos”. (...) Depois de Cora Coralina
nada tinha muita graça. (...) Quando se desfez a postura de uma sessão solene, todos
rodearam a poetisa goiana. (...) Jovens choraram, moços e moças, abraçando-a e beijando-
lhe as os. (...) Todas as mulheres goianas presentes, a nossa poetíssima Yêda Schmaltz,
a Maria Helena Cheim, a Maria Abadia, a querida contista e romancista Ada Curado viram e
podem testemunhar (1982, p. 1).
Não somente as escritoras contribuíram para a distinção nacional à poetisa
goiana. Elas foram responsáveis por uma parcela da chancela, pois alguns imortais
foram imprescindíveis nessa criação.
O escritor Bernardo Élis foi o primeiro. Após inúmeras visitas e entrevistas,
começou a divulgar a obra de Cora para o Brasil, publicando diversas matérias, a
exemplo de Goiás de Cora Coralina, O Popular, em 19 de abril de 1980; Invocação a
Cora Coralina, Folha de Goyaz, em 20 de abril de 1980; e o discurso proferido na
homenagem da FUNARTE – Brasília, em 14 de dezembro de 1981:
A inteligência nacional se mobilizou em torno da poeta Cora Coralina, a quem passou a
dedicar uma parte da atenção que ela merecia despertar, culminando com as homenagens a
ela tributadas no corrente ano e de que a festa hoje é um corolário. Posso assim dizer neste
momento Obrigado Cora Coralina, pelo que nos deste de belo, comovente e imorredouro:
dizendo igualmente, obrigado, Brasil, pelo reconhecimento justo e oportuno a essa goiana
infatigável que fez do tempo um aliado e um conivente (FUNARTE, 1981).
Búzio Novo e Poema do Milho (...) não encontram precedentes nas letras nacionais, num
lirismo longo de Guerra Junqueira ou Walt Whitmann. versos de Cora Coralina que se
tornaram legendas, tais como: “No Beco da Vila Rica tem sempre uma galinha morta”. Ou
este: “Sou Paranaíba pra cá”, que tão bem define a nossa psicologia de sertanejo amarrados
à querida terrinha, longe da qual ele se sente um estranho e um frustrado (ÉLIS, 1980).
Outros imortais responsáveis por sua divulgação foram Jorge Amado e Zélia
Gattai. Entre encontros e correspondências, travaram importante relação: o primeiro
61
contato se efetivou através de um bilhete de Jorge Amado e de uma carta de Cora
em resposta:
Quero crer que Cora Brêtas, de Goiânia, e Cora Coralina de Jesus, [confundindo-a com a
escritora Leodegária de Jesus] de Goyaz Velho, sejam a mesma pessoa. É certo ou estou em
erro? Mande-me dizer. Jorge Amado (Inédito).
Jorge Amado. Em hora aprazível tem chegado a Goiás suas mensagens, Zélia presente e eu
os agradeço de r. Cora Coralina de Jesus, do Coração de Jesus, de Jesus Maria e José,
de São Paulo e de São Pedro, do Menino Jesus de Praga ou não, de todos os santos
milagrosos. (...) e Amado filho muito nobre de Pirangi, da boa terra de São Jorge. (...) Para o
endereço apenas Cora Coralina que a cidade é mesmo uma coisinha e eu não tenho xará.
(...) Vai esta com um volume de meus escritinhos. É o que posso oferecer, e o faço com
singeleza e algum acanhamento. Você que é escritor, revestido, condecorado e urbano,
passe os olhos e releve. (...) Jorge meu irmão rico, saibam você e a Zélia de que tem nesta
Cidade de Goiás uma contadeira de verdades e mentiras que os quer bem de todo o coração.
Cora Coralina (Inédito).
Após esse contato, a poetisa, que era admiradora de Jorge Amado
30
, passou
a se corresponder com o escritor mesclando intimidades e comentários literários:
Bahia, janeiro de 1977. Cora amiga. Cora Coralina, muito obrigado por “Meu Livro de Cordel”,
uma beleza. Comoveu-me os poemas sobre Neruda, de quem fui grande amigo e gostei
demais de “A casa do berço azul”, admirável poema. (...) Uma hora destas, apareço ai com
Zélia, para visitar a Casa Velha da Ponte e a fada que nela habita. Com muita amizade e
admiração. Jorge Amado. 33, Rua Alagoinha, Salvador, Bahia (Inédito).
Jorge Amado. Tenho de há muito a Bahia nos seus livros. Agora seu livro e seu autógrafo. As
obscuras e profundas afinidades nos ligando através do tempo e da distância. (..) Cora
Coralina (Inédito).
Jorge Amado, meu irmão. Venho agradecer a você a chegada de Tereza Batista. Ela está
aqui em nossa casa com seus dengues e seu xale florado e com muito agrado a todos.
Ninguém se cansa do convívio com moça tão [...] simples e bonita. Mais do que Dona Flor,
mais do que Gabriela toda cravo e canela, mais do que a mal vislumbrada Ofenísia, essa
incorporou e virou coisa viva para valer. (...) Jorge dos Ilhéus?... Você tem prestígio irmão.
Manda fazer um São Jorge grande de jacarandá com cavalo, dragão e espada, mande por na
igreja. (...) Sua cidade cheira a cacau. (...) Filmei tudo dentro de mim e trouxe mais comigo
visão dos cacaueiros e o cheiro do cacau. (...) Agora entre nós como foi que aquela faca
apareceu no quarto do capitão? (...) Não agradeço pelo livro, agradeço toda a página
sobre as mulheres prostitutas. Pela morte do C. vamos matar todos da laia dele. (...)
Obrigada por Lulu Santos, obrigada pelo Juiz. Obrigada pelas putas do Buquém. Obrigada
pelo Almério, obrigada pelos terreiros, pelos Ialorixás e Tietas. (...) Obrigada por ter dado as
letras, a nossa terra, esse livro poderoso, tamanhão da Bahia, Goiás junto, partes de menor
para Mato Grosso, Amazonas e mais territórios. (...) Obrigada a Deus por você existir e existir
Zélia a seu lado, que homem sozinho não dá. (...) Tendo meu curso do Mobral levo meu
diploma aí. Quero ver terreiro, fazer iniciação e depois bater na sua porta, saber se Jorge
Amado existe ou é ficção, mito, duende ou gente de verdade. Cora Coralina (Inédito).
30
Em entrevistas, Cora se dizia admiradora de Jorge Amado pela identificação com suas raízes
nordestinas. Nesse sentido, encontram-se no acervo inúmeros bilhetes, cartões de natal e cartas,
além dos livros Terras do sem fim (1942), Seara Vermelha (1954), Os pastores da noite (s/d), Tereza
Batista – cansada de guerra (1972) e Os velhos marinheiros ou o Capitão de longo curso (1977).
62
A publicação da segunda edição de Poemas dos Becos de Goiás, em 1978,
pela Editora da Universidade Federal de Goiás, contribuiu para que a obra de Cora
ganhasse repercussão nacional. Um dos exemplares foi encaminhado ao poeta
Carlos Drummond de Andrade, que, não possuindo referências sobre a poetisa,
enviou uma carta à universidade:
Rio de Janeiro, 14 de julho de 1979. Cora Coralina. Não tenho o seu endereço, lanço estas
palavras ao vento, na esperança de que ele as deposite em suas mãos. Admiro e amo você
como alguém que vive em estado de graça com a poesia. Seu livro é um encanto, seu verso
é água corrente, seu lirismo tem a força e a delicadeza das coisas naturais. Ah, você me
saudades de Minas, tão irmã do teu Goiás! alegria na gente saber que existe bem no
coração do Brasil um ser chamado Cora Coralina. Todo o carinho, toda a admiração do seu
Carlos Drummond de Andrade.
A autora respondeu:
Carlos Drummond de Andrade. Meu amigo, meu Mestre. Com alguma demora no
recebimento de sua Mensagem e maior da minha parte, vai aqui na pobreza deste papel de
que vale o branco, meu agradecimento àquele que de longe e do alto atentou para a
pequena escriba, sem lauréis e sem louros, sem referências a mencionar. Sua palavra,
espontânea e amiga, fraterna veio como uma vertente de água cristalina e azul para a sede
de quem fez longa e dura caminhada ao longo da vida. Abençoado seja o homem culto que
entrega ao vento palavras novas que tão bem ressoam no coração de quem tão pouco as
tem ouvido. Despojada de prêmios e de láureas caminha na vida como o trabalhador que
bem fez rude tarefa, sozinho, sem estímulos e no fim contempla tranqüilo e ainda confiante a
tulha vazia. Meu Mestre. Meu Irmão. Que mais acrescentar? Eu sou aquela menina
despenteada e descalça da Ponte da Lapa. Eu sou Aninha. Cora Coralina. Cidade de Goiás,
2/9/79 (Inédito).
A carta de Drummond foi a chancela que faltava para a projeção nacional.
31
Mas um maior reconhecimento perante a crítica, o blico e demais agentes
foi propiciado com a crônica Cora Coralina, de Goiás que o poeta publicou em 1980
no Jornal do Brasil, ocasionando o que Andréa Delgado considera como “explosão
discursiva”. Estaria reconhecida a singularidade, originalidade e valoração artística,
que “tornar-se-ia o marco da divulgação nacional da figura humana e da obra de
Mulher-Monumento. (...) Inicia-se, assim, o processo de superexposição na mídia,
multiplicada pelas homenagens que a poeta recebe nos últimos anos de vida” (2003,
p. 226). Devido sua importância na luta pela dominação e distinção, transcreveremos
a crônica na íntegra:
31
As edições subseqüentes dos livros da poetisa contêm a carta e, muitas vezes, a crônica escrita
por Drummond. Essa importância pode ser observada na carta da Editora da Universidade Federal de
Goiás: “Goiânia, 7 de janeiro de 1981. (...) Prezada amiga Cora. Só agora respondo sua carta, depois
de ter acertado algumas providências a respeito de seu livro. Embora a sua poesia dispense qualquer
promoção, é evidente que a crônica de Carlos Drummond de Andrade veio tornar mais fácil o nosso
trabalho de difusão e venda de seu livro fora de Goiás. (...) Joffre M. Rezende” (Inédito).
63
Cora Coralina, de Goiás. Este nome não inventei, existe mesmo, é de uma mulher que vive
em Goiás: Cora Coralina. Cora Coralina, tão gostoso pronunciar esse nome, que começa
aberto em rosa e depois desliza pelas entranhas do mar, surdinando música de sereias
antigas e de Dona Janaina moderna. Cora Coralina, para mim a pessoa mais importante de
Goiás. Mais que o Governador, as excelências parlamentares, os homens ricos e influentes
do Estado. Entretanto, uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de sua
invenção, e identificada com a vida como é, por exemplo, uma estrada. Na estrada que é
Cora Coralina passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os miseráveis de hoje.
O verso é simples, mas abrange a realidade vária. Escutemos: Vive dentro de mim/uma
cabocla velha/de mau olhado,/acocorada ao pé do borralho, olhando pra o fogo”. “Vive dentro
de mim/a lavadeira do Rio Vermelho. Seu cheiro gostoso d’água e sabão”. Vive dentro de
mim/a mulher cozinheira. Pimenta e cebola. Quitute bem-feito”. “Vive dentro de mim/a mulher
proletária./Bem linguaruda,/ desabusada, sem preconceitos”. “Vive dentro de mim/a mulher
da vida./Minha irmãzinha.../tão desprezada,/tão murmurada...” Todas as vidas. E Cora
Coralina as celebra todas com o mesmo sentimento de quem abençoa a vida. Ela se coloca
junto aos humildes, defende-os com espontânea opção, exalta-os, venera-os. Sua
consciência humanitária não é menor do que sua consciência da natureza. Tanto escreve o
Ode às Muletas como a Oração do Milho. No primeiro texto, foi a experiência pessoal que a
levou a meditar na beleza intrínseca desse objeto (“Leves e verticais. Jamais
sofisticadas./Seguras nos seus calços/de borracha escura. Nenhum enfeite ou sortilégio”). No
segundo poema, o dom de aproximar e transfigurar as coisas atribui ao milho estas palavras:
“Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece./Sou o cocho abastecido donde
rumina o gado./Sou a pobreza vegetal agradecida a Vós, Senhor”. Assim é Cora Coralina: um
ser geral, “coração inumerável”, oferecido a estes seres que são outros tantos motivos de sua
poesia: o menor abandonado, o pequeno delinqüente, o presidiário, a mulher-da-vida.
Voltando-se para o cenário goiano, tem poemas sobre a enxada, o pouso de boiadas, o trem
de gado, os becos e sobrados, o prato azul-pombinho, último restante de majestoso aparelho
de 92 peças, orgulho extinto da família. Este prato faz jus a referência especial, tamanha a
sua ligação com os usos brasileiros tradicionais, como o rito da devolução: Às vezes, ia de
empréstimo/ à casa da boa Tia Nhorita./E era certo no centro da mesa/de aniversário, com
sua montanha/de empadas bem tostadas/No dia seguinte, voltava,/conduzido por um
portador/que era sempre o Abdenago, preto de valor,/de alta e mútua confiança./Voltava com
muito-obrigados/e, melhor cheinho/de doces e salgados./Tornava a relíquia para o relicário...”
Relicário é também o sortido depósito de memórias de Cora Coralina. Remontando à infância
não a ornamenta com flores falsas: “Éramos quatro as filhas de minha mãe./Entre elas ocupei
sempre o pior lugar”. Lembra-se de ter sido triste, nervosa e feia./Amarela, de rosto
empalamado./De pernas moles, caindo à toa”. Perdera o pai muito novinha. Seus brinquedos
eram coquilhos de palmeira, caquinhos de louça, bonecas de pano. Não era compreendida.
Tinha medo de falar. Lembra com amargura essas carências, esquecendo-se de que a
tristeza infantil não lhe impediu, antes lhe terá reparado a percepção solidária das dores
humanas, que o seu verso consegue exprimir tão vivamente em forma antes artesanal do que
acadêmica. Assim é Cora Coralina, repito: mulher extraordinária, diamante goiano cintilado na
solidão e que pode ser contemplado em sua pureza no livro Poemas dos Becos de Goiás e
Estórias Mais. Não estou fazendo comercial de editora, em época de festas. A obra foi
publicada pela Universidade Federal de Goiás. Se livros comovedores, este é um deles.
Cora Coralina, pouco conhecida dos meios literários fora de sua terra, passou recentemente
pelo Rio de Janeiro, onde foi homenageada pelo Conselho Nacional de Mulheres do Brasil,
como uma das 10 mulheres que se destacaram durante o ano. Eu gostaria que a
homenagem fosse também dos homens. Já é tempo de nos conhecermos uns aos outros
sem estabelecer critérios discriminativos ou simplesmente classificatórios. Cora Coralina, um
admirável brasileiro. Ela mesmo se define: “Mulher sertaneja, livre, turbulenta, cultivadamente
rude. Inserida na gleba. Mulher terra. Nos meus reservatórios secretos um vago sentido de
analfabetismo”. Opõe à morte “aleluias festivas e os sinos alegres da Ressurreição. Doceira
fui e gosto de ter sido. Mulher operária”. Cora Coralina: gosto muito deste nome, que me
invoca, me bouleversa, me hipnotiza, como no verso de Bandeira. Carlos Drummond de
Andrade. Jornal do Brasil, cad. B, 27-12-80.
64
Drummond continuou a promover a poeta
32
, provocando a aceitação de sua
obra:
Rio de Janeiro, 28 de janeiro de 1981. Querida Cora Coralina. Vome deu grande alegria
oferecendo-me o “Meu Livro de Cordel”
:
Poesia o pura, o humana, tão comunicativa!
Você tem o dom de cativar os leitores com os seus versos cheios de alma, de sentimento da
terra e de comunhão fraterna com os humildes. O abraço comovido e grato, e a profunda
admiração de seu amigo Carlos Drummond de Andrade.
Rio, 18 de abril, 1983. Cora, minha querida amiga. Soube da homenagem que a Universidade
vai prestar a você. Coisa tão bonita e justa só podia me alegrar. Estou feliz por ver o
reconhecimento público ao grande valor humano e cultural que se chama Cora Coralina. Um
beijo e o carinho do seu Carlos Drummond de Andrade (Inédito).
Rio de Janeiro, 7 de outubro, 1983. Minha querida amiga Cora Coralina. Seu “Vintém de
Cobre” é, para mim, moeda de ouro, e de um ouro que não sofre as oscilações do mercado.
É poesia das mais diretas e comunicativas que já tenho lido e amado. Que riqueza de
experiência humana, que sensibilidade especial, e que lirismo identificado com as fontes da
vida! Aninha hoje não se pertence. É patrimônio de nós todos que nascemos no Brasil e
amamos a poesia. (...) Do seu Drummond.
As cartas enviadas ao escritor também contribuem para a compreensão das
dificuldades enfrentadas pela poetisa e da importância da chancela:
Cidade de Goiás 28-1-81. Carlos Drummond de Andrade. Meu amigo Maior. Maior sim,
aquele que atenta para o tamainho daquela que sempre foi pequena, incompreendida,
mixuruca entre os seus na sua terra, nada a reparar que o tempo é dos jovens, ávidos,
famintos de se verem em brochura, capa assinada, sempre encontram um desenhista amigo
com a mesma avidez faminta a noite de autógrafos... Por ai vão eles e eu de fora na
clausura da minha velha cidade. Meu irmão, você me descobriu para Goiás e para o
Brasil. De todos os lados me vêm mensagens, recortes e xerox, é a minha láurea, promoção,
o triunfo me fez grande demais, coroada, você descobriu ouro onde viam cascalheiras
e velhices. A lição e a visão do Mestre dando dimensão maior a quem sempre viram velha
com suas velhices. Os Poemas lançados em 65 agora o seu julgamento, feito por uma
geração que fazia ginásio no tempo. Assim a vida. Foi bonito demais, altissimamente demais
o que escreveu e eu me achei rainha coroada. Meu Deus... Como pode ser, eu? Você através
de um livro mal revisado, truncado... Minha glória maior. Meu amigo, mestre maior, aqui vai
parando com o coração cheio e ofertante a velha escriba. Cora Coralina. P. S.: Dizem que
mulher nunca escreve sem P.S., confirmo para dizer a você que os goianos maiores de
idade desta Vila Boa de Goiás, aqueles que ainda escrevem Goyaz com y e com z e
falam de contos de réis nunca me perdoaram a galinha morta e o gato morto do Beco
da Vila Rica. Pode? Coralina (grifos meus) (Inédito).
32
Em diversas cartas do acervo observamos referências a Drummond, a exemplo da que se segue:
“Livraria JoOlympio Editora. Rio 27/281982. D. Cora. Foi com alegria que vi e li esta crônica do
grande Drummond. Acabo de falar com ele muito amigo meu), e ele renovou o que disse na
crônica: ‘que tem a maior admiração pela senhora e que, de fato, gostou muito de sua poesia’. Ele
não sabia que muitos anos nhamos publicado os Poemas dos Becos de Goiás
, 1965, que vai
longe! – e que, desde então, a senhora tinha entrado – com todos os méritos – na literatura brasileira.
O Drummond me disse que viu a senhora, dias, na televisão. Não tive essa sorte, não a vejo
desde aquela visita que lhe fiz, mais de 10 anos, com o Hortêncio Bariane e o grande Bernardo
Élis. Não deu para irmos à sua festa na Manchette
. Viu essa foto da festa? O meu saudoso abraço
para a senhora e outro do José. Daniel” (Inédito).
65
Cidade de Goiás, 14-4-81. Carlos Drummond de Andrade. Meu amigo, meu irmão, poeta
maior. (...) Com sua crônica de dezbro. você me levantou de um velho e cômodo
apagamento e me descobriu para cegos e mudos. Deu-me de mão beijada uma moeda de
ouro que tantas sobram na escarcela do consagrado dos Deuses e festejado das musas.
Sabe, grande amigo, foi você ver a Pedra no caminho e toda gente passou a ter e haver
sua pedrinha bem contada, Vida... eu tenho tido um monte delas, em verso e prosa, e
ninguém disse nada, ninguém me promoveu... Em compensação o Conselho de Cultura
de meu Estado via me consagrar com a oferta de um Troféu Jaburu, de 10 k de peso, todo
em bronze, isso, agora, depois que você descobriu a velha escriba. Cora Coralina (grifos
meus) (Inédito).
SP, 10-9-82 Carlos Drummond de Andrade. Amigo e Mestre. Você tem escrito coisas sobre
Cora Coralina. Pois foi que a gente da banda de do Paranaíba se achou confusa e lançou
esta que ai vai em recorte de jornal da terra. Aceite sua parte de responsabilidade, essas
coisas... Sempre, sempre, a velha escriba. Cora Coralina (Inédito).
Drummond, (...) Parece que somos dois de vida longa e fértil em letras. Eu já menina,
mocinha, quando você foi batizado nas terras ferrosas de Minas. Treze anos antes, tinha
nascido Aninha, entre morros e pedras, nos reinos da Cidade de Goyaz, então Capital do
Estado. Contemporâneos, pois, irmanados num destino poético. O menino, Carlos, foi levado
a estudos. Teve Pai que cuidou dele. À menina Aninha, órfã de Pai, lhe foi dado um pilão, e
por favor de Deus uma escola primária muito pobre. Drummond estudou, fez cursos, cresceu
em nome e fama, descobriu a forma simples de fazer a melhor e mais bela poesia. A menina
de Goyaz, também cresceu, agarrada à mão de pilão, mão redonda, aleijada, sem dedos,
pesada. Drummond encheu as letras, entrevistas, a imprensa do nosso país. Foi tido e
aprovado como o melhor, o grande. Aninha, tinha seus sonhos e pouca leitura. Foi tida e
havida como traqué. O tempo passou, o que não conseguiu de moça, fez de cabelos
brancos escreveu um livro. Esse chegou às mãos do poeta pelas mãos do acaso. Certo foi
que ele sentiu naqueles poemas gosto de terra e cheiro de currais, mandou seu recado e
desencantou Cora Coralina. Dizem, por ai que a poesia esta morrendo. Não. Está viva com
Drummond, e eu fazendo o que posso. (...) Cora Coralina. Goiânia, 20-8-83 (Inédito).
Telegrama – Drummond Andrade. Rua Conselheiro Laffaiete nr. 38 Rio de Janeiro/RJ.
Menina nascida em 1889 cumprimenta menino nascido em 1902. A distância nos separa, A
poesia nos aproxima. Cora Coralina. 23-8-81 (Inédito).
As correspondências deram início aos procedimentos caracterizadores da
distinção. Entrevistas, palestras, solicitações, viagens, prêmios, condecorações das
mais variadas, o traço de união promoveu certa aceitação e valorização no campo
literário.
Das dezenas de homenagens e prêmios
33
, dois merecem destaque: o título
de Dra. Honoris Causa, concedido pela Universidade Federal de Goiás, em 1983, e
33
No acervo da poetisa encontram-se as homenagens: Cidadã Andradinense – Andradina-SP (1962);
Membro da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás, Goiânia-GO (1970); Contribuição à
cultura goiana Literatura UBE. Goiânia-GO (1973); Intelectual do Ano - Grêmio Litero Teatral
Carlos Gomes, Goiânia-GO (1976); Membro da Arcádia Goiana de Cultura, Goiânia-GO e Medalha
Ana Néri Sociedade Brasileira de Educação e Integração São Paulo-SP (1977); Ordem do Mérito
Anhanguera – Governo do Estado de Goiás Goiânia-GO e Medalha do Sesquicentenário da
Fundação de Jaboticabal Jaboticabal-SP (1978); Dez Mulheres do Ano, Conselho Nacional de
Mulheres do Brasil, Rio de Janeiro-RJ e Troféu Jjaburu (1980); Medalha Veiga Valle, Organização
Vilaboense de Artes e Tradições, Cidade de Goiás-GO e Expressão da Cultura, Academia Goiana de
Letras e Fundação Projeto Rondon, Goiânia-GO (1981); Prêmio Fernando Chinaglia UBE Rio de
66
o Troféu Juca Pato de Intelectual do Ano de 1983
34
, União Brasileira dos Escritores
e Folha de São Paulo.
Criado em 1962, o concurso O Intelectual do Ano se realiza anualmente pela
UBE-SP em parceria com o jornal Folha de São Paulo. A estatueta que reproduz o
Juca Pato consiste no prêmio e caracteriza o personagem criado pelo chargista
Belmonte, representante do inconformismo e do espírito crítico. Para se candidatar,
o autor deve ter publicado livros no ano anterior e ser inscrito através de lista
assinada por trinta cios da União Brasileira dos Escritores. A matéria A mulher
goiana que venceu o rolo compressor Rio –São Paulo, escrita por Brasigóis Felício e
publicada no O Popular em 3 de maio de 1984, reflete a conquista:
Quiseram os fatos, porém, que, pela primeira vez, fosse rompido o sólido colonialismo cultural
interno que o eixo Rio-São Paulo impõe ao resto do País, com a mão de ferro. O Troféu Juca
Pato - Intelectual do Ano, uma das poucas premiações sérias ainda existentes neste país (...)
é destinado pela primeira vez a uma mulher, e a uma intelectual do interior, uma mulher
humilde, uma poeta e doceira. (...) Muitas pessoas não creram na possibilidade de se romper
os sólidos esquemas sempre montados pelas entidades e instituições do Eixo Rio-São Paulo;
principalmente porque era claramente assumido o posicionamento da UBE de São Paulo em
favor da candidatura de Teotônio Vilela (e a UBE paulista tem muita força, com seus mais de
1 mil votos), e porque a Folha de São Paulo (sem dúvida um dos jornais de maior
credibilidade no Brasil) tinha na figura de Gerardo Mello Mourão um de seus colaboradores,
sério candidato a ganhar o Troféu. (...) Era uma luta sem dúvida desigual. (...) O feito de Cora
Coralina ao vencer este concurso, foi talvez maior que o de Bernardo Élis, quando este
conseguiu ingressar na Academia Brasileira de Letras, primeiro porque no Troféu Juca Pato,
votam intelectuais de todo o País, e não somente algumas zias de acadêmicos. (...) A
vitória não foi fácil, e aconteceu pela pequena margem de 78 votos. (...) A mobilização em
torno desta eleição foi notável, tendo sido apurados quase mil votos, diante de apenas 500
votos da eleição do ano passado. (...) penso que a vitória dela foi pessoal, de méritos
Janeiro-RJ, Ano Nacional do Idoso em Ação, Rio de Janeiro-RJ, Sócio Honorário da Casa do Poeta
Brasileiro, Santos-SP, Medalha Tiradentes, Governo do Estado de Goiás, Goiânia-GO, Medalha
Antônio Joaquim de Moura Andrade, Câmara Municipal de Andradina, Andradina-SP e Serviço Social
do Comércio, São Paulo-SP (1982); Dra. Honoris Causa, Universidade Federal de Goiás, Goiânia-
GO, Mulher do Ano, Grêmio Litero Teatral Carlos Gomes, Goiânia-GO e Ordem do Mérito do
Trabalho, Presidência da República, Brasília-DF (1983); Troféu Juca Pato, União Brasileira de
Escritores e Folha de São Paulo, São Paulo-SP, Cidadã Jaboticabalense, Jaboticabal-SP, Cidadã
Goianiense, Goiânia-GO, Conselho Municipal de Lazer, São Paulo-SP, Conselho Permanente da
Mulher Executiva, Goiânia-GO, Grande Prêmio da Crítica Associação Paulista de Críticos de Arte,
São Paulo-SP e Membro da Academia Goiana de Letras, Goiânia-GO (1984); Personalidade do Ano -
Literatura, Rotary Club de São Paulo, São Paulo-SP (1985).
34
A partir de 1962 receberam o Troféu Juca Pato os escritores: Santiago Dantas, Afonso Schmidt,
Alceu Amoroso Lima, Cassiano Ricardo, Caio Prado Júnior, Érico Veríssimo, Menotti Del Picchia,
Jorge Amado, Pedro Antônio de Oliveira Ribeiro Neto, Josué Montello, Cândido Mota Filho, Afonso
Arinos de Melo Franco, Raimundo Guimarães Júnior, Juscelino Kubitscheck de Oliveira, José
Américo de Almeida, Luiz da mara Cascudo, Sobral Pinto, Sérgio Buarque de Holanda, Dalmo de
Abreu Dallari, Paulo Bonfim, Carlos Drummond de Andrade, Cora Coralina, Fernando Henrique
Cardoso, Frei Beto, Antônio Callado, Abguar Bastos, Barbosa Lima Sobrinho, D. Paulo Evaristo Arns,
Ledo Ivo, bio Lucas, Rachel de Queiroz, Marcos Rey, Luiz Fernando Veríssimo, bato Magaldi,
José Mindlin, Jacob Gorender, Octávio Ianni, Salim Miguel, Gilberto Mendonça Teles, Alberto da
Costa e Silva e Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo .
67
próprios, mas foi também (...) uma afirmação da cultura feita no interior do país. (...) destaca
ainda a participação do Grupo Livre Espaço de Santo André, São Paulo. Foi esse grupo deles
que registrou a candidatura de nossa poeta, conseguindo os 30 votos paulistas necessários a
esta inscrição. (...) Interessante observar que o livro Vintém de Cobre, que serviu de base
para a sua inscrição no concurso, saiu pela Editora da Universidade Federal de Goiás. (...)
Paulo Bonfim, Lygia Fagundes Teles, Tavares de Miranda, Jorge Medauar, Paulo Pereira, (...)
foi ai que descobrimos que, em vez do Juca Pato, devíamos tê-lo lançado [Gerardo Mourão]
para uma vaga na Academia. Choveram votos dos acadêmicos. (...) E dos 40 imortais da
Academia Brasileira de Letras, votaram nele, a começar pelo presidente, Austregasílio de
Athayde, passando por Adonias Filho, etc etc. E o grande jornalista vai arrolando a longa
série de personalidades mumificadas ou não que, mais uma vez, pretendeu acionar os
esquemas compadrescos que fazem a glória da oficialidade literária e artística deste país.
Lógico, ninguém, de todos esses consagradíssimos citados linhas atrás imaginava que uma
obscura poeta do interior de Goiás (ainda mais sendo mulher, coitada!) poderia desbancar a
candidatura. (...) É que Cora revelou extraordinária capacidade de organização e mobilização
das massas. Obteve 430 votos contra 352 dados a Gerardo e 144 a Teotônio. (...) Cora não
pediu nenhum voto sequer (...) Tanto sua inscrição quanto o trabalho por sua eleição foram
feitos à sua revelia. (...) Essa vitória de Cora foi também a vitória da cultura interiorana, e
lavou a minha alma, eu que tributo com ódio feroz às cumplicidades compadrescas de
múmias sacralizadas, que têm a pretensão de tutelar o Brasil, torcendo o nariz para tudo que
não seja produzido nos arredores da Avenida S. João ou nas areias de Ipanema e Leblon (p.
1).
Merecem ainda serem transcritos trechos dos discursos e entrevistas de
Dalila Veras e de Cora Coralina:
É em nome desses escritores e de meu grupo “Livre Espaço de Poesia de Santo André” que
encabeçou a lista propondo a sua candidatura que faço uso da palavra para tentar definir o
significado desta vitória e desta homenagem a Cora Coralina. Por que um grupo de poetas
novos, jovens em sua maioria, rotulados de marginais indicou Cora, uma mulher de quase um
século de idade? (...) Cora representou o próprio rolo compressor que deixou grande parte da
intelectualidade atônita tamanha foi a sua força; força de sua poesia e o somente de sua
poesia. Muitas foram as alusões irônicas a sua candidatura. A princípio a luta parecia
desigual. Muitas foram as insinuações, jocosas até, comparando-a aos grandes nomes dos
outros dois candidatos a quem não queremos e não podemos tirar o mérito. (...) Muitas foram
as barreiras impostas pela própria imprensa e para alguns escritores para quem o título de “O
intelectual do ano” significa algo muito distante da figura da nossa escritora. O que esses
intelectuais não entenderam é que estava sendo desmantelada uma quina centralizadora
do poder cultural deste País que julga que a intelectualidade brasileira é composta apenas de
meia dúzia de insignes figuras e que têm por hábito eleger políticos para ocupar as cadeiras
das Academias de Letras. (...) O novo está no ato de encarar a arte, ato de resistência e
participação social. (..) É sem dúvida uma velha dívida que os escritores brasileiros tinham
para com a mulher, a mulher escritora, a mulher poeta. (...) mais uma vez guerreira, mais
uma vez poeta, mais uma vez dos goiases, brasileira, universal (VERAS, 1984).
A velha musa goiana sobrevivente de gerações passadas, que foi retirada da sua velha
Cidade de Goiás para competir com valores outros na conquista do “troféu Juca Pato”. (...)
Agradeço a todos aqueles poetas, escritores distintos, dos mais distantes rincões da nossa
Pátria, que enfrentando dificuldades e selos caros do correio nessa hora tão difícil para todos,
mandaram seus votos para que Cora Coralina levantasse como mulher a primeira vez o
“Troféu Juca Pato”. (...) Cumprimento as mulheres do Brasil, esta vanguarda que está abrindo
caminho para que haja uma igualdade de direitos e de possibilidades (CORALINA, 1984).
Eu fui apresentada por um Grupo de Santo André, um grupo literário suburbano. o fui
apresentada por nenhuma Academia de Letras, nem por um grupo de literatos. Mesmo do
meu Estado, ninguém me apresentou. Tudo partiu de Santo André, SP, que pouco me
conheciam. Eu nunca morei na cidade de Santo Andnem nunca pedi nada a esse grupo.
68
Eles espontaneamente me escolheram porque já me conheciam pela televisão e já me
reconheciam pela mensagem. (...) De modo que as mulheres me abriram, essas
vanguardeiras, lutadoras para a vitória da mulher, para que a mulher saia do retraimento,
foram elas que me abriram esse caminho, e eu sou agradecida a elas. E agora, depois de
mim, o caminho está aberto (ABREU, 1984, p. 9).
Apesar das dificuldades enfrentadas em âmbito local
35
, a poetisa alcançou
uma dimensão nacional. Nos últimos anos de vida, colheu alguns frutos não
dispensados durante sua longa caminhada. Teles (1995), ao analisar a repercussão
de nomes goianos no cenário literário nacional destaca Cora Coralina ao lado dos
escritores Bernardo Élis, José J. Veiga e Afonso Félix de Sousa. Na perspectiva de
Bourdieu (1996a), a distinção encaminha para “marcar época”, consistindo no ato de
deter o tempo, de eternizar o estado presente e pactuar entre os agentes a
continuidade, a identidade e a reprodução. A importância do traço de união é
definida pela poetisa:
Irmanados na poesia
nos encontramos:
Quem vem vindo.
Quem vai indo.
Na roda-viva da vida
(...) Começou o seu tempo.
(...) Fui na vida o que estás agora.
Tu serás o que sou.
Nosso traço de união.
És o passado dos velhos.
Eu, o futuro dos moços (Traço de União, MLC, p. 107-108).
O “marcar época” consiste em “fazer existir uma nova posição para além das
posições estabelecidas, na dianteira dessas posições, na vanguarda, e, introduzindo
a diferença, produzir o tempo” (BOURDIEU, 1996a, p. 181). Mas, torna-se
importante salientarmos que, apesar da poetisa ter alcançado certa aceitação no
campo literário, sua obra não conseguiu a unanimidade crítica necessária para a
canonização. O mito de Cora Coralina é nacional e internacionalmente conhecido,
35
O fato de dois goianos terem votado em outro candidato na disputa pelo troféu Juca Pato, assumiu
grande proporção, conforme se observa na matéria publicada na Folha de Goyaz em 1984: “Apesar
de não ter contado com os votos de Iron Nascimento, Secretário de Cultura e Desporto do Estado de
Goiás, e de seu assessor Álvaro Catelan, Cora Coralina está na frente na votação do Troféu Juca
Pato. (...) Segundo declarações ‘em off de Álvaro Catelan, ele e seu superior sentiram-se
pressionados para darem seus votos ao jornalista Gerardo Mello Mourão, mas não imaginaram que
isto pudesse dar a repercussão que deu. (...) De modo que, conforme analisam certos homens da
literatura goianiense, o apoio dado por Iron Nascimento e Álvaro Catelan a outro candidato, acabou
por fortalecer a candidatura de Cora, que ganhou, além de seus aliados ‘naturais’, mais uma fatia de
votos contra a posição tomada pelos representantes da cultura oficial de Goiás”.
69
mas poucos foram os analistas de circulação nacional que se debruçaram sobre o
seu legado. Cora não foi totalmente valorizada por alguns canais competentes e,
sua obra, ainda é vista com reservas por parte da crítica especializada. A autora foi
reconhecida por alguns de seus pares, muitas vezes, críticos mais perspicazes do
que a crítica propriamente dita, a exemplo de Drummond que representou um divisor
de águas em sua trajetória social. Todavia, as lutas pela distinção são constantes e
um processo de reavaliação tem sido deflagrado: múltiplas vozes vêm sublinhando a
qualidade e importância literária de suas criações e seus pontos de contato com as
linhas de força da lírica moderna e modernista, a equiparando com os melhores
poetas nacionais.
O que este capítulo procurou demonstrar é que não foi por acaso que Cora
Coralina tornou-se ícone de Goiás. A análise de sua trajetória e de seu processo de
inserção no campo literário brasileiro forneceu elementos significativos para a
compreensão das influências e posicionamentos que assumiu perante as questões
de seu tempo. Compete agora investigarmos as características gerais de suas
produções e reconstituir as imagens promovidas pelos que já se debruçaram sobre o
seu legado.
70
2
MOINHO DO TEMPO: O LEGADO E A CRÍTICA
Meus Amigos
Tendes meu livro e constantes publicações avulsas.
Encontrarão em tudo erros e contradições.
Por que tanta insistência na idade da escritora. A velha! A velhinha de Goiás.
São inseparáveis marcações a sua personalidade literária. Procuram com isto diminuir um
pequeno mérito literário de quem pede tão pouco e se contenta
com um tranqüilo apagamento dentro da sua velha cidade e sem condições de
publicar seus originais. Com a insistência do adjetivo velha-velhinha ao nome de
Cora Coralina, velha apenas a pequenina e sutil maldade de desviar a atenção dos leitores do que
ela escreve focalizando a sua idade cronológica.
Seria bem mais humano e inteligente deixar de parte a conta de seus anos e atentar
ao que ela escreve, onde encontrarão de sobra o que criticar e censurar.
Por que perguntas quantos anos tenho se mostro a minha veneranda idade nos meus cabelos
brancos e na minha envelhecida face. A malícia da pergunta jamais responderei.
Não darei ao néscio a conta certa dos meus anos.
Venho de um passado tempo e posso contar o que não sabes.
Por que insistir na pergunta ingênua se podes indagar coisa melhor!
Tenho a dimensão do tempo acontecido. Pergunte assim:
Cora Coralina como te sentes na tua maior idade?
Eu contarei a propósito uma longa estória muito mais interessante
do que a conta certa dos meus anos.
Cora Coralina
(Caderno/Diário n. ° 3, s. d., p. 4-5)
71
2.1 O POETA E A POESIA: OBRAS, RESSALVAS E PREFÁCIOS
Aliada à avaliação das condições sociais determinantes à produção, torna-se
necessário reconstruirmos as condições da produção do campo de produção, ou
seja, as condições que conferiram e conferem a crença a determinado autor e obra.
A publicação das obras de Cora Coralina imprimiu importantes reflexos no
campo literário. O confronto pelo reconhecimento, inserção e permanência no campo
é conseqüência, segundo Pierre Bourdieu (1996a), de uma “dialética da distinção”;
da luta pela continuidade e hegemonia. Seria a conquista da posição privilegiada
que permitiria “escrever a visão oficial da história, impor seus critérios de
classificação (e desclassificação) e os padrões de gosto” e concederia “autoridade
necessária para dizer que é ou não é um escritor (ou quem é um bom’ ou ‘mau’
escritor) e até o monopólio do poder de dizer quem está autorizado a dizer quem é
escritor (isto é, quem forma a crítica literária digna de crédito)” (PASSIANI, 2003, p.
50).
O “sujeito” da obra de arte não seria um artista singular, nem um grupo social,
mas o campo da produção artística em seu conjunto de agentes que teriam uma
ligação com a arte, que se interessam pela arte, que vivem da arte e para a arte,
produtores de obras consideradas como artísticas (grandes ou pequenas, célebres,
isto é, celebradas ou desconhecidas)” (BOURDIEU, 1983, p. 172) como críticos,
intermediadores, prefaciadores e escritores. Essa é a intenção do presente capítulo:
caracterizar a luta pela distinção/conservação no campo da produção artística a
partir da análise da crítica e do legado de Cora Coralina.
Seguir os caminhos de Cora é deparar com constantes surpresas. A cada
página, verso, palavra, poema ou conto se descortinam possibilidades de análise
que desafiam uma leitura despretensiosa. Num primeiro momento, a atualidade do
discurso impressiona e contrasta com a aparente singeleza das temáticas que
revelam instigantes reconstruções da realidade.
Na leitura de seus textos, observa-se uma ponte entre os autos do passado e
o presente em que se insere, sem meias palavras - mas com meias confissões –,
onde construiu um estilo único de “ler a vida dando-lhe conotações próprias”
(DENÒFRIO, 2004a, p. 16).
72
Em 2004, algumas criações da poetisa foram incluídas na coleção de
Melhores Poemas da Editora Global de São Paulo. A coleção, consiste na seleção
de poesias do legado édito de expoentes da literatura brasileira e mundial. A escolha
das obras e produtores e dos escritores e críticos convidados para a seleção e
prefácios devem obter consenso dentre os detentores de distinção no campo
literário.
Demonstra Bourdieu que assim “como os caminhos da dominação, os
caminhos da autonomia são complexos, se não impenetráveis. E as lutas no seio do
campo (...) podem servir indiretamente aos escritores mais preocupados com sua
independência literária” (1996a, p. 68). Dessa forma, a obra de Cora Coralina se
legitima na medida que é inserida na coleção (masculina quase que em totalidade),
se respaldando no prestigio dos autores publicados: Castro Alves, Ledo Ivo, Ferreira
Gullar, Mário Quintana, Carlos Pena Filho, Tomás Antônio Gonzaga, Manuel
Bandeira, Cecília Meireles, Carlos Nejar, Luís de Camões, Gregório de Matos,
Álvares de Azevedo, Mário Faustino, Alphonsus de Guimaraens, Olavo Bilac, João
Cabral de Melo Neto, Fernando Pessoa, Augusto dos Anjos, Bocage, Mário de
Andrade, Paulo Mendes Campos, Luis Delfino, Gonçalves Dias, Affonso Romano de
Sant’Anna, Haroldo de Campos, Gilberto Mendonça Teles, Guilherme de Almeida,
Jorge de Lima, Casimiro de Abreu, Murilo Mendes, Paulo Leminski, Raimundo
Correia, Cruz e Souza, Dante Milano, José Paulo Paes, Cláudio Manuel da Costa,
Machado de Assis, Henriqueta Lisboa, Augusto Meyer, Ribeiro Couto, Raul de Leoni,
Alvarenga Peixoto, Cassiano Ricardo, Bueno de Rivera, Ivan Junqueira, Antero de
Quental, Cesário Verde, Florbela Espanca, Nauro Machado, Fagundes Varela e
Vicente de Carvalho.
Na seleção realizada pela professora Darcy Denófrio
36
são ressaltadas
características representativas da produção de Cora. A autora subdivide a obra da
poetisa em sete eixos temáticos: Nos reinos de Goiás (o olhar para o mundo); Canto
36
Poetisa, ensaísta e crítica literária. Mestre em Teoria da Literatura, é professora aposentada da
Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. Possui inúmeras obras publicadas e dedica-
se, especialmente, ao estudo da literatura goiana, produzindo dentre outros tulos: Vôo cego (1980);
O poema do poema: em Gilberto Mendonça Teles (1984); Literatura contemporânea: GMT – o
regresso às origens (1987); Amaro mar (1988); A obra poética de Afonso Félix de Sousa: dois
estudos (1991); Hidrografia lírica de Goiás (1996); Lavra dos Goiases I: Gilberto & Miguel (1997);
Lavra dos Goiases II: Afonso Félix de Sousa (2000); Ínvido lado (2000); Lavra dos Goiases III:
Leodegária de Jesus (2001); O redemoinho do lírico: estudos sobre a poesia de Gilberto Mendonça
Teles (2005); e Da aurora de vidro ao sol noturno: estudo sobre a poesia de Fernando Py (2005).
73
de Aninha (o olhar para o universo interior); Criança no meu tempo (processos
educativos); Paraíso perdido (Brasil rural e sertanejo); Entre pedras e flores (vertente
simbólica); Canto solidário (preocupações humano-cristãs e sociais); e Celebrações
(exaltações específicas e abrangentes).
As seções criadas na tentativa de acomodar os poemas constituem fonte
capaz de revelar as principais vertentes do pensamento de Aninha. De acordo com
Denófrio, a obra de Cora Coralina alcançou transcendência e revela um pensamento
com características do movimento modernista:
é legítimo que essa mulher, que nasceu no século XIX (1889) e conviveu com tantos poetas e
prosadores de discursos anacrônicos, mesmo estreando como poetisa aos 76 anos,
apresente uma poesia com algumas daquelas inconfundíveis marcas do Modernismo
brasileiro. Libertária por temperamento, sua poesia poderia mesmo assumir este
rosto. Jamais tolerou a métrica e, se chegou a usar a rima, não o fez do modo convencional,
uma vez que sua alma reclamava mais esta liberdade a criadora -, carro-chefe da estética
de 22 (2004a, p. 19, grifos meus).
Denófrio afirma que não foi sem razão que a poetisa parodiou Manuel
Bandeira, moderno de que esteve mais próxima devido à inserção de sinais
biográficos na obra e por ser o poeta que soube elevar à categoria literária a prosa
coloquial, sendo o “mais feliz incorporador de motivos e termos prosaicos dentro da
literatura brasileira” (p. 20).
Citando o poeta e crítico Pedro Lyra, a pesquisadora demonstra as
tendências operantes à época da publicação do primeiro livro de Cora consideradas
como sincréticas. A diversidade do que se convencionou designar Geração-60 seria
representada pela tradição discursiva, pelo semioticismo vanguardista e pela
variante alternativa, inserindo no segmento discursivo as vertentes: herança lírica,
protesto social, explosão épica e convicção metapoética. Nesse entendimento, Cora
Coralina poderia dialogar predominantemente com os autores da herança lírica e
manifestação épica, apresentando também engajamento e apreciações
metapoéticas. Todavia, Denófrio anuncia apenas um compartilhamento de
características com a obra dos autores considerados sincréticos e transparece ser
tarefa acessória a preocupação com um enquadramento geracional, devido a
poetisa não estar de fato com “os dois pés no Modernismo brasileiro, de quem muito
se beneficiou, e nem nessa geração que coincide com sua estréia. (...) Como uma
singela sempre-viva, atravessou quase um século no anonimato” (p. 30).
74
Para a compreensão dos caminhos desenvolvidos pelos críticos, torna-se
necessário percorrermos o legado da poetisa: Quais foram suas obras? Quais os
principais temas explorados? Em que consistiu seu projeto criador?
Desse modo, serão apresentadas, por ordem de publicação, características
gerais das criações a partir das temáticas, ressalvas e prefácios, na busca de pistas
para visualizarmos as condições históricas e sociais em que foram realizadas e que
influenciaram a construção do projeto de Aninha. O destaque dado às datas em que
as produções foram realizadas que o se baseiam nas datas de publicação das
obras, mas nas em que realmente foram produzidas -, contribuirá para a
compreensão das idéias reinantes nas distintas épocas vivenciadas pela poetisa,
consistindo em informações inéditas que foram possíveis graças ao contato com
os originais da autora
37
.
Cora Coralina refunda Goiás, promovendo uma arqueologia do passado
através das imagens que construiu. Seu ato de registrar, através da escrita, cenários
e personagens historicamente silenciados, constituiu em uma forma de perenização
e resistência. Cora ao retornar a cidade de Goiás a transformou em cidade da escrita
(da infância e da maturidade). Talvez, tivesse mais possibilidades de publicar seus
livros quando residia em São Paulo, mas os publica em sua cidade natal, lugar de
sua memória. Na verdade a poetisa escreveu a maior parte de sua obra em solo
goiano, em sua reclusão voluntária a Casa Velha da Ponte – enquanto apoiava seus
braços nas muletas do tempo e observava pelas janelas as águas vermelhas do
velho rio - realizando um rearranjo da memória coletiva oficializada. .
Segundo Solange Fiúza Cardoso Yokozawa
38
(2002b), a memória
reinventada pela poetisa possui caráter pessoal e coletivo: “a memória coletiva se
37
A pesquisa foi realizada no acervo do Museu Casa de Cora Coralina nos cadernos, diários e em
folhas avulsas. Não podemos afirmar categoricamente as datas, pois a poetisa tinha o hábito de
revisar e reescrever constantemente seus contos e poemas. Muitas vezes, deparamos com a
duplicidade de datações e, nesses casos, optamos pelas notações mais antigas. Os registros foram
feitos pela própria autora no final das produções e na capa dos cadernos.
38
Doutora em Literatura, é professora do Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística e do
Campus Avançado de Catalão, Universidade Federal de Goiás. Tem realizado e orientado estudos
sobre a poética de Cora Coralina, com destaque para os trabalhos A reinvenção poética da memória
em Cora Coralina (2002a), Confissões de Aninha e memória dos becos: a reinvenção poética da
memória em Cora Coralina (2002b), Vegetal obscuro: uma leitura de Oração do Milho (2003),
Literatura e Memória em Cora Coralina (2003), Autobiografia e heterobiografia em Cora Coralina
(2004), A reinvenção da literatura oral em Cora Coralina (2005), Cora Coralina e Manuel Bandeira:
confluências poéticas (2005), Cora Coralina e Carlos Drummond de Andrade: confluências poéticas
75
inscreve nas linhas e entrelinhas da poesia confessional do mesmo modo que a
leitura que a poetisa faz do passado é (...) assinalada pela sua personalidade”. (p.
1). A pesquisadora também afirma que
entre o que é possível revelar, está o que precisa ser revelado, o que parece causar um mal-
estar na poetisa porque ainda está mal dito, o que ela bem dirá através do discurso poético
para transformá-lo em um bem-estar. (...) Ao buscar o seu heroísmo poético na escória
social, a poetisa não reorganiza apenas a história oficial, mas também o heroísmo da poesia
épica e, ao fazê-lo, assume uma atitude poética que a conecta com a tradição literária
moderna. (...) No caso do Brasil, a construção de um heroísmo poético buscado nos
subterrâneos da sociedade tornou-se prática consciente e coletiva a partir dos modernistas
de 22, que, rejeitando a distinção entre temas poéticos e não poéticos, optaram pela
poetização do que até então permanecera fora das esferas poéticas. E o que estava fora
das esferas do poético também estava, muita vez, fora das margens sociais. É assim
que vamos encontrar personagens como João Gostoso, de ‘Poema tirado de uma notícia de
jornal’, de Manuel Bandeira, o moço leiteiro, de ‘Morte do leiteiro’, de Carlos Drummond de
Andrade, os indivíduos ínfimos celestados pela poesia de Manoel de Barros, as ‘vidas
obscuras’ iluminadas pela lírica de Cora Coralina (p. 2-7, grifos meus).
De acordo com Cristiane Pires Teixeira
39
(2005), o lirismo em Cora Coralina
se faz presente quando o eu poético inclina sobre o seu passado individual e
coletivo, às vezes misturando-se a ele, às vezes se afastando. O seu sentimento
individual seria porta-voz da experiência coletiva, uma peça do social, e a sua força
e riqueza poéticas resultariam da imersão nos mais íntimos sentimentos humanos.
As suas experiências pessoais dialogariam com as de muitas pessoas de sua
geração, de sua comunidade:
A sua poesia está dominada pela temática das minorias. Os becos, como imagem de lugar de
exclusão, os subúrbios, os mais pobres, os marginalizados. (...) A beleza poética e o lirismo
de Cora Coralina surgem da pobreza da vida cotidiana, sofrida por tantas pessoas que foram
retiradas do anonimato graças à sua poesia que salva a memória das vidas individuais e
coletivas (p. 27, tradução livre).
Mas quais os livros que compõem o legado de Cora Coralina?
Publicado em 1965 pela Editora José Olympio, Poemas dos Becos de Goiás e
Estórias Mais foi o livro de estréia da poetisa
40
. Em sua primeira edição, a autora
(2005), Cora Coralina e a tradição poética moderna e modernista (2005), Quando eu era menina,
minha bisavó contava (2005) e Estórias da Velha Rapsoda da Casa Velha da Ponte (2005),
39
Mestre em estudos literários portugueses, brasileiros e dos países africanos de língua portuguesa
pela Universidade de Paris III Sorbonne Nouvelle. Dissertação Constrution d’une identité feminine:
Vintém de Cobre – Meias Confissões de Aninha de Cora Coralina (2005).
40
O jornalista José Lobo (J. Lupus) escreve na Revista Oeste (Goiânia, n. ° 4, p. 30, maio de 1934)
que Cora Coralina havia publicado em o Paulo um livro intitulado Canção das Águas. O escritor
Gilberto Mendonça Teles demonstra que “houve um engano: tal livro nunca existiu. Trata-se apenas
76
reuniu vinte e quatro poemas, dos quais alguns foram escritos e publicados
esparsamente entre as décadas de 1930 e 1960
41
. A maior e melhor parte da obra
foi efetuada após seu reencontro com a Cidade de Goiás, quando reescreve e
registra as relações - de um passado que vivenciou e/ou que ouviu contar – travadas
em sua terra natal. A experiência e os efeitos desse reencontro não podem ser
desprezados: a autora ao se distanciar quarenta e cinco anos de sua cidade e ao se
isolar em sua residência, conseguiu realizar uma leitura mais descomprometida com
os limites ditados pela sociedade reconhecida, da mesma forma que, ao decantar a
sociedade da qual testemunhou, pôde revelar a violência simbólica instituída em
desfavor dos “obscuros e que não foi privilegiada nos autos oficiais do passado.
Assim, um distanciamento físico e temporal, na maturidade, dialoga com as
lembranças das experiências vividas ou percebidas, na infância. .
Aos vinte e quatro poemas, reunidos em 1965, a autora acrescentou em
posteriores edições: Nota, As Tranças da Maria, Ode às Muletas, Ode a Londrina,
Mulher da Vida, A Lavadeira, O Cântico da Terra, A Enxada, A Outra Face, Menor
Abandonado, Oração do Pequeno Delinqüente e Oração do Presidiário, escritas
provavelmente a partir de 1974, como atestam os poemas e anotações encontradas
nos originais. Esses acréscimos, imprimiram um maior engajamento à obra,
possivelmente devido ao contexto de elaboração marcado pela ditadura militar então
de um poema, bastante longo” (1964, p. 136). No acervo da escritora inexistem referências a essa
poesia, havendo apenas dados que poderiam ter contribuído para a afirmação de José Lobo, pois
durante o ano de 1919, em colaborações a revista A Informação Goyana a escritora inseriu a
referência “Do Livro Canção das Águas” nos poemas Rio Vermelho (publicado no n. 8 de 15 de
março), Ipê Florido (n. 9 de 15 de abril) e no conto Um Milagre: Lenda de Goyaz (n. 12 de 15 de
julho). Inexistindo dados confiáveis sobre esse livro e observando que a escritora possuía o hábito de
manter “livros” manuscritos na esperança de publicá-los (a exemplo do livro inédito datado de 1943
intitulado Cidade Menina identificado em um dos cadernos do acervo e da referência de Guimarães
(1960) sobre os livros Ouro de Aluvião e A Vida em Quadrinhos que seriam publicados pela autora,
em 1961) conclui-se que, de fato, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais (1965) foi seu
primeiro livro publicado.
41
Comprovam a afirmação as folhas do poema Minha Infância (freudiana) na data 10 de outubro de
1938 e poesias como Cidade de Santos (no manuscrito original com o título Praias de São Vicente) e
Cântico de Andradina escritas em 7 de dezembro de 1943. Também se observa a publicação do
Cântico de Andradina, no informativo Seiva de Andradina, em dezembro de 1952; e as citações nas
cartas do escritor Victor de Carvalho Ramos, datadas de 1957, elogiando os poemas A Escola da
Mestra Silvina e Frei Germano; e em carta enviada a Paulo Ronái e Sérgio Buarque de Hollanda em
1959, com o poema Pouso de Boiadas. É importante destacar que Vicência Tahan (2002) aponta
para a gênese de Poema do Milho quando a poetisa residia em Andradina, e indicar a publicação dos
poemas Oração do Milho e Poema do Milho na Revista Anhembi de o Paulo em agosto de 1962,
demonstrando a força de sua produção ao ser aceita em uma das principais revistas brasileiras de
ideário engajado, ao lado dos textos de Lisetta Levi, Jaime Cortesão, Lima Barreto e Florestan
Fernandes.
77
vigente e pelas mobilizações internacionais relacionadas à proteção de grupos
marginalizados.
Em razão de ser seu primeiro livro e somente dez anos depois promover a
publicação do segundo Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais constituiu a
obra que propiciou consideráveis análises críticas e se transformou em cartão de
visitas da poetisa
42
, sendo considerado sob o ponto de vista estético seu melhor
trabalho.
Curiosamente, em todos os livros editados em vida e em Estórias da Casa
Velha da Ponte (livro por ela organizado e publicado postumamente), Cora Coralina
apresenta ressalvas antes de descortinar sua obra ao leitor. Em Poemas dos Becos
existem quatro: Duas palavras especiais, Este livro, Ao leitor e Ressalva. Na
primeira, confidencia a dificuldade enfrentada para a publicação e a gratidão ao
escritor Tarquínio J. B. de Oliveira por “tirar o livro do limbo dos inéditos” e à
Universidade Federal de Goiás por incorporá-lo à coleção Documentos Goianos que
constituiu um marco desta época, a fim de cumprir relevante papel a serviço do
futuro”.
Na segunda ressalva, demonstra o desejo de ter suas obras sempre
acessíveis ao público, podendo “sobreviver à autora e ter a glória de ser lido por
gerações que hão de vir de gerações que vão nascer”. Em seguida, lança um
desafio que pode ser subdividido em três propostas eixo: “alguém deve rever,
escrever e assinar os autos do passado antes que o tempo passe tudo a raso”, “é o
42
No acervo não constam convites referentes ao lançamento oficial da primeira edição promovida
pela José Olympio, porém, segundo Denófrio, sua obra de estréia foi “apadrinhada pelos genianos
[Grupo GEN] que promoveram o seu lançamento no Bazar Oió, famoso ponto de encontro de
escritores e que mantinha um jornal literário” (2004a, p. 22) em Goiânia. Todavia, serão transcritos os
relativos as segunda e terceira edições promovidas pela Universidade Federal de Goiás, em Goiânia,
e do lançamento no Distrito Federal: 1) Ministério da Educação e Cultura. Universidade Federal de
Goiás. Gabinete do Reitor. A Universidade Federal de Goiás, pelo seu Reitor, tem o prazer de
convidar V. Exa. e Exma. Família para o lançamento do livro Poemas dos Becos de Goiás e Estórias
Mais, 2edição, da Poetisa Cora Coralina. Prof.° José Cruciano de Araújo Reitor. Data: 16/05/78.
Horário: 20 h. Local: Faculdade de Educação”; 2) “A Universidade Federal de Goiás, sentir-se
honrada com a presença de V. Exa. ao lançamento da 3.ª edição do livro Poemas dos Becos de
Goiás e Estórias Mais, de autoria da poetisa Cora Coralina. Prof.° José Cruciano de Araújo Reitor.
Data: 15 de dezembro de 1980. Hora: 20 h 30 min. Local: Teatro Goiânia”; e 3) “A Fundação Nacional
de Arte FUNARTE, do Ministério da Educação e Cultura, e a Livraria Galilei convidam para o
lançamento dos livros Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais de Cora Coralina e Os Enigmas
de Bartolomeu Antônio Cordovil de Bernardo Elis. Nessa noite Cora Coralina receberá homenagens
da Funarte e gravará um depoimento humano e poético – registro vivo de sua vida. Dia 14 de
dezembro de 1981, ás 21 h. Sala Funarte/Brasília Setor de Divulgação Cultural”. Existem também
referências indicativas que o poema A Enxada foi escrito em homenagem aos escritores Bernardo
Elis e Aidenor Aires.
78
que procuro fazer para a geração nova, sempre enlevada nas estórias, lendas,
tradições, sociologia e folclore” e para a gente moça, pois, escrevi este livro de
estórias, sei que serei lida e entendida”. Sua última ressalva diz: “Este livro: Versos...
não. Poesia... não. Um modo diferente de contar velhas estórias”. Ressalva que
revela suas relações com o modernismo, a partir da utilização dos versos livres que
margeiam as fronteiras da prosa. Segundo essa tradição seguida por Cora, a poesia
não seria a forma exterior (rima, alternância entre tônicas e átonas, por exemplo),
mas dinamismo interior.
A análise das ressalvas tem muito a revelar, primeiro como justificativa prévia
aos juízos críticos apressados e corrosivos. A autora apresenta a necessidade de
rever os autos do passado e de recriar através dos significados “a sociologia de
nossa terra”. Também informa a quem sua obra é direcionada: geração nova, gente
moça, aqueles que possivelmente no futuro compreenderiam a dimensão de seus
símbolos.
O prefácio da primeira edição de Poemas dos Becos de Goiás “Cora Brêtas
Cora Coralina: miniaturista de mundos idos, que assim ela eterniza”, foi escrito por
João Benedito Martins Ramos
43
, jornalista e amigo da autora, constituindo o primeiro
crítico da sua obra publicada em livro. As apreciações ressaltam a origem
ontodinâmica dos poemas com destaque para Oração do Milho. Escreve que apesar
da aparente sutilidade a obra se reveste de um poder surpreendente na posição de
“guia” em que se mesclam texto e autora propiciando, na multiplicidade de eus
líricos, que personagens historicamente silenciados possam se expressar. Ramos,
analisa os poemas e afirma ser uma surpresa e um gosto notar os conhecimentos
da vida rural expressos e implícitos em muitos deles” (PBG, p. 10). O autor diz que o
fato de uma mulher revelar intimidades pessoais e sociais torna-se inovador, uma
vez que
Cora Coralina autora prometeu algo diferente ao leitor, e cumpriu tudo em forma e
conteúdo. (...) história com uma delicadeza de mulher, um bom humor de mulher pura e uma
nitidez de mulher sábia – miniaturista de mundos idos, que se revela – intimidades pessoais e
sociais que ela assim eternizou (p. 11).
43
Escritor, jornalista e crítico literário. Durante vários anos trabalhou na Livraria e Editora José
Olympio revisando e selecionando obras.
79
É importante também transcrevermos a matéria de Péricles da Silva
Pinheiro
44
publicada no jornal Folha de São Paulo, em 27 de junho de 1965, por
traduzir a recepção da obra na ocasião de seu lançamento:
(...) Estréia, aliás, excelente, começando onde muitos talvez se sentiriam compensados em
terminar. Não é uma poesia, a sua, de perspectivas inéditas em nosso processo literário. É
fácil, a propósito, nomear-lhe antecedentes de composição e de técnica, em bons exemplos
brasileiros. A fatura, assim, não é original. Contudo, o que impressiona desde logo nos
poemas da sra. Cora Coralina, é a extraordinária riqueza de vivência e o poder de sugestão
lírica que consegue extrair dos seus temas, em geral colocados no plano reminiscente da
evocação. É, ‘tout court’, o processo da volta à pureza da infância, porém racionalmente
humanizado e transferido em tudo o que toca por qualidades excepcionais de compreensão
do discurso poético como fonte inesgotável de beleza emocional. Não, entretanto, em molde
‘egoístico’, no sentido da exploração sentimental de uma universalidade porventura restrita e
de caráter pessoal, porque abrange, na sua conexão tolerante e generosa, um largo círculo
de problemas morais, sociais e humanos, envolvendo-os todos em igual atmosfera de lirismo
e de poesia. O tempo é a tônica de sua problemática. Mas não um tempo aprisionado, porém
liberto de restrições, de forma a não tornar monótono o processo de recuperação lírica dos
valores aviventados pela memória. Embora sua composição em geral se nutra nesse estilo de
vivência, o tratamento temático não reflete necessariamente a sensação de coisas mortas,
em virtude de sua atualização simbólica, que o mistério da poesia pode explicar e
justificar. O livro da sra. Cora Coralina é, verdadeiramente, um livro de poesia, que toca pela
beleza e pela sensibilidade, com alguns poemas que representam achados excelentes, talvez
iguais aos melhores da lírica em nosso País (p. 2).
Para Oswaldino Marques
45
, alguns poemas da obra se destacam, a exemplo
de Vintém de Cobre e Do Beco da Vila Rica, registros “do estatuto familiar, das
relações de classe, da fetichização da poupança doméstica”; Evém Boiada,
demonstrativo da “lida pecuária” e das “vicissitudes da vida rural”; Rio Vermelho e
Velho Sobrado, “transubstanciações do tempo em matéria emocionada”; O Palácio
dos Arcos, representações de “vivências brasílicas”; e Caminho dos Morros,
“reminiscente de O Recado do Morro de Guimarães Rosa”. O escritor ressalta o
Poema do Milho e Oração do Milho, considerando o primeiro “indiscutivelmente a
obra-prima de Cora Coralina. Nele se contém talvez a mais brilhante poetização da
febre genésica vegetal que conheço” (PBG, p. 17).
44
Poeta e crítico literário, autor do livro Manifestação literária em São Paulo na época colonial (1961).
Durante vários anos foi colaborador no suplemento literário do jornal O Estado de São Paulo.
45
Poeta da Geração de 45, tradutor e crítico literário, foi professor na Universidade de Brasília e na
University of Wisconsin, nos Estados Unidos. Publicou vários livros a exemplo de Poemas quase
dissolutos (1946); Cantos de Walt Whitman (1946); O Poliedro e a Rosa (1952); Cravo bem
temperado: Poema (1952); Videntes e sonâmbulos: Coletânea de poemas norte-americanos (1955);
Teoria da metáfora & renascença da poesia americana (1956); A Seta e o alvo: Analise estrutural de
textos e critica literária (1957); Poesia dos estados unidos: Coletânea de poemas norte-americanos
(1966); Ensaios escolhidos: teoria e crítica literária (1968); O laboratório poético de Cassiano Ricardo
(1976); A dançarina e o horizonte (1977); O Prisma e o arco-íris (1986); e Acoplagem no espaço:
Critica literária (1989).
80
Realizando estudos sobre o universo simbólico, Saturnino Pesquero Ramon
46
desvendou inúmeros significados na poesia de Cora, com destaque para Poema do
Milho, Oração do Milho, As Tranças da Maria e O Prato Azul-Pombinho:
Admitida a interpretação simbólica proposta para o poema ‘Oração do Milho’, é fácil entender
seu papel introdutório e complementar ao significado, igualmente simbólico, do ‘Poema do
milho’. Se o primeiro poema, como se procurou demonstrar, balizava a consciência da
idiossincrasia americana, este, por sua vez, revela a consciência das razões dessa
peculiaridade étnica, histórica e cultural: a marca da fidelidade ao natural. (...) O conteúdo
deste poema compõe um bouquet das mais arcaicas, genuínas e universais qualidades da
alma coletiva brasileira, que se revelam: na alegria lúdica de viver; na fidelidade heróica ao
desígnio divino que se sobrepõe a lei dos homens; e na capacidade estóica singular de saber
cultivar a alegria, mesmo no sofrimento, e de adaptar-se, com jogo-de-cintura’, às
circunstâncias mais adversas (2003, p. 60).
Descortinando esse horizonte do sentido translatício, ‘As Tranças da Maria’ é a mítica estória
do ‘sumiço’ da casa paterna duma menina-moça, a fim de poder consumar seu sacrificial e
existencial ‘encontro’ com o homem que a fará mulher e mãe. Criativa versão cabocla da
lenda mítica A Bela e a Fera (p. 120).
A segunda obra de Cora Coralina, Meu Livro de Cordel, foi editada pela
Livraria e Editora Cultura Goiana em 1976
47
. Em seu formato original, o livro possuía
quarenta e três poemas e seis contos. Das produções em prosa Assim será minha
vida, A lenda do trigo, O rio da vida, A dívida paga, Aquela mulher fez uma sopa de
pedra e Casa velha da ponte, somente a última continua publicada no livro Estórias
da Casa Velha da Ponte, as demais foram retiradas pela autora e permanecem
praticamente desconhecidas.
As observações a respeito das datas de produção das poesias seguem os
mesmos argumentos da análise feita sobre a obra anterior
48
, o que significa que
algumas das produções foram realizadas anos antes da data de publicação do
46
Teólogo, psicólogo e doutor em filosofia. Estudou em Palma de Mallorca, Madri e Belo Horizonte. É
professor aposentado da Universidade Federal de Goiás e visitante do mestrado em psicologia da
Universidade Católica de Goiás. Possui diversos livros publicados a exemplo de O Guernika: arte e
paixão (1993); Joan Miró y El Mediterrâneo (1995); Cora Coralina: o mito de Aninha (2003) e Joan
Miró: una lectura filosófica a partir de la masia (2004).
47
Segundo o convite oficial de lançamento: “A Livraria e Editora Cultura Goiana, tem o prazer de
convidá-lo para o lançamento em Goiânia, do livro da escritora Cora Coralina, Meu Livro de Cordel,
que será no dia 22/06/76 às 20 horas na Rua 7 n.° 357. A sua presença nos dará imenso prazer e
honrará o Editor e a Autora”.
48
A exemplo da citação na entrevista publicada no jornal Folha de Goyaz 1968 concedida ao
escritor Miguel Jorge. Quando inquirida sobre o que precisaria para a edição de livros Cora responde:
“Tempo. Poder fazer uma pausa em minhas atividades na fabricação de doces, que afinal me são
lucrativos. No fundo do meu ser a literatura é um chamado constante. Tenho livros prontos, mas
nunca para um escritor o seu livro está realmente pronto, é sempre passível de pequenos reparos. Eu
sou uma criatura insatisfeita com o que escrevo. Considero e vejo que poderia escrever melhor.
Como escritora sou um ser feliz e angustiado”.
81
livro.
49
Mas a essas poucas recriações, se mesclam poemas escritos nas
proximidades do contexto de publicação, que são a sua maioria, conforme atestam,
exemplificativamente, os originais de Errados Rumos (1972), Estas Mãos e Meu
Pequeno Oratório (1974), Barco sem Rumo e O Chamado das Pedras (1975).
Meu Livro de Cordel possui uma ressalva que justifica seu título: “pelo amor
que tenho as estórias e poesias de Cordel”, “irmãos do Nordeste rude, de onde um
dia veio meu pai para que eu nascesse e tivesse vida”, e aponta os sujeitos de sua
contemplação: “assim o quero numa ligação profunda e obstinada com todos os
anônimos menestréis nordestinos” que permaneciam, via de regra, fora do campo
literário brasileiro sendo considerados apenas por aspectos folclóricos ou de cultura
popular
50
.
Dois escritores avaliaram essa primeira edição, o poeta Paulo Bonfim
51
e o
crítico Álvaro Catelan
52
. O poeta descreve a brasilidade, dizendo que prefacia “uma
49
No acervo observamos, por exemplo: Este Relógio com a inscrição 7 de outubro de 1938; as
poesias Dolor, O Cântico de Dorva, Búzio Novo, Minha Vida, Anhanguera e A Procura datadas de 7
de dezembro de 1943; e as publicações de Búzio Novo no jornal O Andradina em 31 de março de
1946 e Meu Destino na Folha de Goyaz em 24 de junho de 1956. Além dessas informações, uma
carta de Cesídio da Gama e Silva, datada de 22 de janeiro de 1951, endereçada a autora, confirma a
existência do poema Vida das Lavadeiras antes dessa data. Na análise dos manuscritos, deparamos
ainda com informações de que as poesias Variação e A Flor foram dedicadas às escritoras goianas
Yêda Schmaltz e Amália Hermano Teixeira, respectivamente, e que na poesia Rio Vermelho existia a
epígrafe “tem um rio dentro de mim. J. M. T.” em referência ao livro Um Rio dentro de mim do escritor
José Mendonça Teles (Inédito).
50
Mesmo observando em diversas entrevistas realizadas pela poetisa, que o título da obra é
homenagem ao pai e aos anônimos nordestinos, convém demonstrar a importância que a literatura de
cordel desenvolveu em sua formação. Podemos comprovar nos títulos que compõem sua biblioteca
pessoal cuja maioria é de Juazeiro: A filha do bandoleiro (1953), História da escrava Guiomar e As
grandes aventuras de Armando e Rosa, A órfã abandonada, A princesa Rosamunda, História de
Raquel e a fera encantada, O casamento do calango, O enjeitado de Orion, O prêmio do sacrifício, O
príncipe e a fada, Peleja de Riachão com o Diabo, Peleja de serrador e carneiro e Romance do pavão
misterioso (todos de João Martins de Athayde); A vida de canção do fogo e o seu testamento (1970)
de Leandro Gomes de Barros; O rosário de Mátria com São Martinho de Porres (1966) de Giles
Black; Os martírios de Rosa de Milão de Teodoro Câmara; Viola de desafio II (Natal, 1963) de Nei
Castro; História de Mariquinha e JoLeão de João Ferreira Lima; O bode subversivo que deu no
diabo (1979) de Franklin Nordestino; Viagem a São Sarnê (Campina Grande, 1965) de Manuel
Santos; O homem visão e Os milagres e os sermões de Frei Damião de Expedito Silva; Aladim e a
Princesa de Bagdá, A malassombrada peleja de Francisco Sales com o negro Visão e História de Ana
Rosa e Banda Forra de João José da Silva; e História do cavalo misterioso e o boi mandingueiro e
Entre o namoro e a dança nas festas dos Bastião de José Bernardo da Silva.
51
Jornalista e poeta da terceira geração do modernismo. Publicou os livros: Antônio Triste (1947);
Relógio de Sol (1952), Armorial (1956), Tempo Reverso (1964), Calendário (1968), Praia de Sonetos
(1981); Súdito da Noite (1992); Aquele Menino (2000); e O Caminheiro (2001).
52
Jornalista e professor de literatura brasileira, bacharel em letras vernáculas. Publicou mula da
Literatura Goiana (1970), Ensaios reunidos (1980), Viola caipira-viola quebrada, ensaio crítico (1989),
Existências paralelas: introdução ao estudo do conto machadiano (1995), Contos comentados de
82
das maiores poetisas da língua portuguesa” e Catelan funde as temáticas obra e
mito, afirmando ser a obra reflexo da realidade vivida. Nas edições subseqüentes, o
livro, exclusivamente de poemas, quarenta e três produções, se divide em duas
partes, uma direcionada a questões mais universais que contemplam a natureza,
valores humanos, passagens bíblicas, literatura e questões relacionadas ao
judaísmo e à americanidade; e outra intimista que prenuncia seu próximo livro.
seu terceiro livro, Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha, foi
publicado em 1983 pela Editora da Universidade Federal de Goiás
53
. Seu aspecto
mais intimista pode ser observado de uma forma mais tímida nas criações
anteriores, a exemplo da parte biográfica” de Meu Livro de Cordel e das produções
em Poemas dos Becos com o subtítulo freudiano Minha Infância e Vintém de Cobre.
Todos os poemas da obra, ao contrário das anteriores, foram escritos nas
proximidades contexto de sua publicação.
54
Seus setenta e cinco poemas estão
dispostos em três partes: Meias confissões de Aninha (aspectos relativos ao
cotidiano, família, a situação da mulher e da criança, e uma vertente telúrica); Ainda
Aninha... (observações sobre problemas, inovações e sugestões com ênfase a
educação e a internalização de mudanças seção em que os títulos dos poemas
explicitam falas, premonições, confissões, reflexões, recados, mensagens,
considerações, conclusões e lembranças); e Nos Reinos de Goiás (temáticas
relacionadas à cidade e ao fazer poético).
Em Vintém de Cobre, novamente quatro ressalvas antecedem os poemas:
Cântico Excelso, Este livro meias confissões de Aninha, O Cântico de Aninha e
Cântico Primeiro de Aninha. A autora demonstra a gratidão por sua única professora,
Mestra Silvina, dialoga sobre o vintém da infância e descreve ser um livro
“tumultuado, aberrante, da rotina de se fazer e ordenar um livro”, sem pretensões e
Machado de Assis (2002), De repente a viola, os grandes temas da música caipira (2005) e Mundo
caipira (2005). .
53
Conforme convite de lançamento: “A Universidade Federal de Goiás tem a honra de convidar
Vossa Exa. e Exma. Família para a II Semana de Lançamentos da Editora da UFG Homenagem a
Cora Coralina de 15 a 19 de agosto de 1983. Maria do Rosário Casimiro Reitora. Programação:
Dia 15 (segunda feira) Abertura da Semana. Horário: 20 horas Local: Palácio da Cultura (Praça
Universitária) Lançamento do Livro: Vintém de Cobre Meias confissões de Aninha. Autora: Cora
Coralina”.
54
Como atestam algumas datas inscritas nos manuscritos de Bem-te-vi... Bem-te-vi... e O Quartel de
Polícia de Goiás (1978), Segue-me (1980), Aninha e suas Pedras (outubro de 1981) e em cadernos
com poemas datados de 1982. Interessante também é a informação observada no original do poema
Meu Amigo em que a autora o dedica a memória do escritor Juruena Di Guimarães (Inédito).
83
de conseqüências ocorridas nos Reinos de Goiás. Ainda afirma que muitos
identificarão com sua obra - estas coisas também se passaram comigo” -
demonstrando a consciência da universalidade da arte como recriação da realidade.
Prefaciando a primeira edição, a historiadora Lena Castello Branco Ferreira
Costa
55
entende que a arte maior de Cora Coralina consiste em “recolher da
memória do tempo todo um mundo de coisas e fatos quotidianos e pessoas simples,
transfigurando-os, emprestando-lhes contornos universais” (VC, p. 9). Em sua
análise, diz que se deve abstrair a ancianidade da autora e a aparente fragilidade e
se atentar a profundidade das mensagens, pois a inquietude da poetisa, além de
acompanhar o ambiente em que se insere, revela ocorrências de brasilidade e
universalidade.
A escritora Marietta Telles Machado
56
elenca características como o
telurismo, a percepção sinestésica e a visualização do poema-prosa. Também
aponta a absorção de problemas contemporâneos como a missão da Universidade,
a trágica vida dos nordestinos, a situação dos menores abandonados e do sistema
prisional brasileiro. Em sua opinião, Vintém de Cobre seria um repositório de dados,
lembranças e referências vividas e magistralmente expressas em palavra poética.
O crítico Oswaldino Marques escreve ser o livro exemplo de completa
transfusão de uma existência em criação literária. Afirma que “todos os quadrantes
da lida humana - individual e social” estão nele capturados, notando “uma carga
densa de vivência convertida em ciência” (VC, p. 15) e destaca poesias como A
Gleba me Transfigura, Aninha e suas Pedras, e, Irmã Bruna, Segue-me,
Sombras, Coisas do Reino da Minha Cidade, Várias..., Meu amigo e Para o meu
Visitante Eduardo Melcher Filho.
Apesar de estrear na literatura escrevendo em prosa, Cora Coralina faleceu
poucos meses antes de ver seu sonhado livro de contos publicado. Estórias da Casa
Velha da Ponte (1985) foi organizado pela autora e lançado postumamente com a
ressalva Nada novo:
55
Professora da Universidade Federal de Goiás. Doutora em História Social, possui vários livros
publicados a exemplo de As elites imaturas (1965); Feudalismo e capanguismo (1967); Uma família
na história (1967); Arraial e Coronel: dois estudos de história social (1978) e Saúde e doenças em
Goiás (1999).
56
Escritora. Publicou Girassóis em transe (1968); As doze voltas da noite (1971); Encontro com
Romãozinho (1976); Narrativas do quotidiano (1978); O congresso das bruxas (1978); O burrinho do
presépio (1983); A traição nas terrinhas do coelho (1984) e Os frutos dourados do pequizeiro (1985).
84
O conto é uma modalidade literária ingrata e não raro surpreendente. Quando acreditamos,
ufanos, que sua motivação, seu pequeno enredo seja original de uma cidade, e nossa a
primazia de o contar, vemos com surpresa que outras cidades também reivindicam o mesmo
assunto e que outros contistas garimparam na lavra. Concluímos, portanto, que o enredo
seja de toda parte e de todos que escrevem, ressalvando apenas o estilo de cada um e os
recursos próprios de quem escreve e conta. Por isso nos resguardamos dos juízos
apressados. A autora (Nada novo... ECV, p. 5, grifos meus).
A ressalva, além de constituir proteção ante “juízos apressados” na
advertência “nada novo”, demonstra a consciência da poetisa a respeito da
universalidade de sua arte, característica que, posteriormente, também seria
apontada pela crítica em contraposição à tentativa de enquadramento da obra em
regional ou popular.
O tulo Estórias da Casa Velha da Ponte originou-se de um conto publicado
na primeira edição de Meu Livro de Cordel em 1976. Para a construção de Estórias,
a autora selecionou dezessete produções de seu legado em prosa que haviam sido
escritas em distintas épocas
57
.
No livro inexiste um prefaciador. Coincidências a parte, um dos últimos textos
de Cora Coralina encontrado em seu caderno, de janeiro de 1985, trata do prefácio:
Um Prefácio. (...) com esta ressalva procuro me resguardar de alheios juízos sobre minha
incompetência em matéria de prefácio que encaro com seriedade e que deve ser feito por
quem seja de vasto conhecimento literário e não comprometa o que foi deixado para
publicação póstuma. (...) Como o tenho mesmo jeito e competência para prefácio vai esta
minha confissão. Também o aceito escrever qualquer coisa fora da minha vocação
(Inédito, Caderno/diário n. ° 8, p. 2-3).
Segundo Denófrio, os críticos, na estréia de Cora Coralina em livros,
insistiram em considerá-la mais prosadora do que poeta. Assim avaliavam, com o
intuito de menosprezar a produção em versos e toda sua obra édita, pois seus
contos eram publicados apenas esporadicamente em alguns jornais. A professora
afirma que “talvez lhes faltasse, àquele momento, algum conhecimento teórico”,
(2004a, p. 25) se referindo à teoria de Emil Staiger sobre a intercomunicabilidade
dos traços estilísticos dos gêneros, classificando algumas criações de Cora como
57
Apenas os contos Minga, Zóio de Prata e Procissão das Almas encontram-se datados nos originais
(1956), mas em inúmeros documentos desde a década de 1950 a autora revela a existência dos
esboços do livro conforme se observa na carta expedida por Nize Bretas, em 17 de janeiro de 1956:
“Já estou em falta com a senhora, pois há dias que recebi sua carta acompanhada dos contos, e,
somente agora venho a responder. (...) Alegrou-me bastante saber que a senhora com a receita está
bem de saúde e bem disposta, continuando o livro que deve estar quase terminando a essas
horas, e é um orgulho e uma grande satisfação para s a publicação do seu livro. (...) Recebemos
os contos (...) e ainda mais conforme a senhora diz, que os melhores não vieram” (Inédito).
85
epilíricas e epiliricodramáticas. Porém, a questão o se resume a conhecimento
teórico: muitos buscam em Cora Coralina uma poesia mais pura, pureza de lirismo, o
que nela não se pode evidenciar, visto assumir uma atitude épica, sem, contudo, ser
menos lírica.
Apesar da poetisa relatar sua tendência para a produção em prosa, no
caderno datado de 23 de abril de 1974, ela ratifica as percepções de Denófrio:
Acredito ter mais configuração literária para a prosa do que para a poesia, pois consegui
realizar meus poemas depois que a poesia se libertou da rima e da métrica. Foi como se
também eu me libertasse de amarras. No entanto sinto dificuldade na definição [se é melhor
contista ou poetisa], bem mais fácil aos meus leitores que, aliás, têm feito afirmações
irreais da minha temática poética (grifos meus) (Inédito).
Sua obra em prosa assim como sua literatura para crianças ainda não
alcançou o nível de publicidade e avaliações críticas das criações em forma de
poemas, talvez por serem publicações mais recentes.
Em 1989, nas comemorações do centenário de nascimento da autora, a
escritora Dalila Teles Veras
58
selecionou dezoito contos de Cora Coralina
publicando-os como uma espécie de continuidade do livro Estórias da Casa Velha
da Ponte. O tulo da obra remete a um dos contos da coletânea O Tesouro da Casa
Velha
59
, sendo prefaciada pela própria organizadora.
No prefácio Veras afirma ser a autora “essencialmente poeta uma vez que a
poesia o se apenas na forma de versos” e uma insuperável contadora de
estórias (sem ‘h’, do cotidiano, composta por verdades e mentiras). Em seu
entendimento, os contos selecionados não constituem meras reproduções histórico-
sociais, pois possuem transcendência e “uma peculiaridade narrativa das mais
interessantes, resgatando uma linguagem perdida, mas que na sua voz ganha
autenticidade” (TCV, p. 6).
58
Escritora, tradutora e crítica literária. Publicou os livros Lições de Tempo (1983); Inventário Precoce
(1983); Madeira: do vinho à saudade (1989); Elemento em fúria (1989); Forasteiros registros
nordestinos (1991); Poética das circunstancias (1996); A palavraparte (1996); A vida crônica (1999);
As artes do ofício: um olhar sobre o ABC (2000); Minudências (2000); A janela dos dias (2002); e
Vestígios (2003).
59
Dos contos publicados em O Tesouro da Casa Velha encontram-se datados nos originais As
Cocadas, Candoca e Quem foi ela? (1956). Acreditamos serem os demais escritos a partir dessa
data, período em que a escritora retornou a Goiás e que escreveu, conforme demonstrado, os contos
do livro Estórias da Casa Velha da Ponte.
86
A escritora considera o caráter inovador da obra na utilização de palavras em
desuso e diz que os contos propiciam conhecer um Brasil bucólico, provinciano,
conservador e ainda tão desconhecido”. Utilizando-se do mesmo argumento
apresentado na ressalva de Estórias da Casa Velha da Ponte, adverte ao leitor a
inexistência de algo novo “(no sentido de inovação, de novidade vanguardeira,
lançadora de moda), pois é mais uma fatia de um todo que se manteve coerente
durante a existência da poeta” (p. 8) e aprecia seu lirismo mediador de bom humor e
críticas severas.
O mais recente livro em prosa de Cora Coralina na verdade em prosa e
verso Villa Boa de Goyaz foi publicado em 2001, nas comemorações do tulo de
Patrimônio Mundial outorgado pela UNESCO à cidade de Goiás. Contrariando as
demais, a obra não possui ressalvas nem prefácio. Suas temáticas retratam o
patrimônio material e humano do interior brasileiro com suas lendas, tradições e
interferências a partir de vinte produções, das quais cinco são poemas.
Sobre Villa Boa de Goyaz o crítico Ubiratan Brasil
60
comenta: “[Cora Coralina
confirma-se] como elo da permanência da tradição com os tempos presentes:
‘Geração ponte, eu fui. Posso contar’” e conclui que “a seleção dos textos, que peca
apenas pela ausência das datas em que foram produzidos
61
, permite fazer uma
viagem por Goiás” (2001, p. 1).
A literatura para crianças desenvolvida por Cora Coralina pouco foi avaliada
pelos críticos. O livro Os Meninos Verdes
62
(1986), apesar de se encontrar em
60
Jornalista e crítico literário.
61
Villa Boa de Goyaz torna-se rico referencial por possibilitar visualizar produções de diversos
contextos demonstrados nos originais da escritora: Rio Vermelho (1919), O Cântico da Volta, Goiás e
suas uvas e Sinos de Goiás (1956), A Catedral de Goiás (1957), Santa Luzia (1976), Um Carnaval
Antigo (1978) e O Velho Telhado (22 ago. 1980). Identificamos em carta escrita por Cesídio da Gama
e Silva, destinada a poetisa em 27 de dezembro de 1956, referências ao conto As Maravilhas da
Casa Velha da Ponte. Referências também indicam que as poesias A Catedral de Goiás e Azul e
Branco homenageiam Darcília de Amorim e o Colégio Santana, respectivamente. A ausência de
datação das produções tem sido apreciada por inúmeros estudiosos que atribuem ser fundamental à
contextualização das temáticas. Por essa razão, e para a reconstrução dos contextos e sua
interconexão com a obra, desenvolvemos esse trabalho através da verificação das datas nas criações
e cadernos.
62
A referência ao ano de 1968, observada no acervo, sugere considerá-lo como período de sua
produção. Os manuscritos indicam que a poetisa se encontrava na cidade de Aruanã quando o
escreveu e que o Presidente da República citado no conto seria o militar Arthur da Costa e Silva cuja
esposa Yolanda B. da Costa e Silva possuía familiares em Goiás e mantinha amizade com a escritora
através de cartas e visitas. No acervo, existem duas cartas expedidas pela então Primeira Dama
datadas de 12 de outubro de 1967 e 24 de março de 1969, demonstrando a veracidade da afirmação
87
décima edição, apenas recentemente foi examinado por Pesquero Ramon. Para o
autor, essa obra representaria a vertente de um realismo fantástico. Desse modo,
ressalta sua qualidade literária na sutileza e transparência imagética, concluindo que
“em prol da causa da vida e das crianças, ela quer arregimentar os esforços maiores
de todos os homens”, transformando-se em “Mãe Universal, de todas as crianças do
mundo. (...) (Oxalá esse conto seja, algum dia, traduzido e explicado em todas as
línguas do planeta como um catecismo poético da UNICEF)” (2003, p. 226-227).
Outro livro publicado se intitula A moeda de ouro que um pato engoliu
63
. No
ano de sua publicação, 1997, recebeu da Fundação Nacional do Livro Infantil e
Juvenil a láurea “altamente recomendável para criança” e, nesse aspecto, dois foram
os pareceres instituidores da referência
64
.
O primeiro foi realizado pela professora Maria José Nóbrega
65
que apreciou “o
dom de dar forma estilística aos fatores que retratam o Brasil e a natureza
metafórica da linguagem popular, sua sonoridade e plasticidade”, transformando as
formas simples em estatutos literários, contribuindo para estudos lingüísticos. Além
disso, comentou a característica da obra permitir “que crianças possam conhecer a
diversidade cultural que marca o país de modo autêntico e não estilizado”. O
segundo parecer, efetuado por Ninfa Parreiras
66
, destacou a riqueza e o valor
literário do livro a partir da espontaneidade da linguagem interiorana, de questões
universais e, principalmente, do “olhar da mulher ‘dona de casa’, do interior. (...)
exemplo de que escrever e cozinhar não são atividades inconciliáveis”.
O último livro de Cora Coralina até o presente momento O Prato Azul-
Pombinho
67
foi publicado em 2001, poema extraído do primeiro livro da autora e
ilustrado por Ângela Lago. Dos comentários, destacamos a análise de Oswaldino
Marques ao considerar que a junção entre informação e lirismo realizada na poesia
no conto: “- Converse com a mulher do Presidente da República. É criatura muito humana, esteve
aqui na cidade, conhece a senhora. Carteei com a Primeira Dama da Nação” (MV, p. 13).
63
Conto extraído de uma carta dirigida a um dos netos da autora, datada de 14 de abril de 1965.
64
Pareceres disponíveis na homepage
da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil:
http://www.fnlij.org.br/livros2/a_moeda_de_ouro_que_um_pato_engoliu.htm .
65
Consultora e assessora de língua portuguesa. Mestre em Lingüística.
66
Crítica Literária e Psicóloga. Mestre em Literatura Portuguesa. Desenvolve estudos sobre literatura
infantil e juvenil e literatura e psicanálise.
67
A produção consiste na poesia homônima publicada em Poemas dos Becos de Goiás e Estórias
Mais, portanto, escrita antes de 1965.
88
resulta em uma de suas mais belas produções exibindo “a singularidade de constituir
um poema dentro do poema, ambos desdobrados em dois enleantes motivos, com a
aclimatação do exótico oriental ao exótico brasílico, tudo penetrado do saboroso tom
convencional da escritora” (PBG, p. 17).
Saturnino Ramon entende que a articulação produzida na obra propicia ao
leitor uma crítica ao poder escravizador do negro e da mulher na sociedade. Para
ele, a autora “critica, sobretudo o poder do preconceito machista que condena à
escravidão do analfabetismo ou à cegueira em relação a seus direitos o ser
feminino, de forma sacralizada e institucionalizada” (2003, p. 216).
Segundo ressalta Goiandira de Fátima Ortiz de Camargo
68
, os poemas de
Cora são a biografia de sua sociedade, mecanismos de manifestação das memórias
coletivas. Cora Coralina e Aninha (velha e criança) seriam refúgios de criação,
ficcionalização e afastamento do puramente biográfico - “duas instâncias de
produção que franqueiam a liberdade para um discurso criador, abrindo um espaço
de permissividade poética. O sujeito da enunciação se instauraria num lugar
privilegiado” (2003, p. 79) que possibilitaria observar as contradições sociais e
permitiria expô-las com uma aparente isenção:
A memória não é de Ana Lins, testemunha de um tempo comprovado nas referências
históricas, em nomes de pessoas de sua contemporaneidade, datas, lugares e
acontecimentos assinalados nos anais da história, como podemos encontrar em vários
poemas. A memória, nesse sentido, é de uma coletividade, porque não só traz de volta ao
coração as plangências do eu lírico, mas também confronta-se com o mundo, quando toma
para si a palavra épica que se inscreve, à mercê do pulsar da poesia, na pedra fundadora da
cidade. (...) Cora Coralina, com a devida licença poética, reescreve a história, os costumes, o
folclore, as tradições e a geografia da cidade de Goiás, sob o olhar daquela que estava fora
do centro, predestinada a cumprir o seu destino de gauche, isto é, o de ser mulher, poetisa e
velha numa sociedade que discrimina as diferenças e exclui àqueles que estão à margem do
sistema. A solidariedade que Cora dedica aos humildes, desprezados e marginais nasce da
sua própria condição de ser ex-cêntrica, de estar fora do centro (p. 78 e 80).
Foi a partir dessa posição de gauche que a poetisa construiu seu projeto
criador no espaço de possíveis e, através do diálogo com outras vozes também à
68
Doutora em Literatura, é professora do Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da
Universidade Federal de Goiás. Tem realizado e orientado estudos sobre a poética de Cora Coralina,
com destaque para os trabalhos Poesia e Memória em Cora Coralina (2003), Uma leitura da poesia
de Cora Coralina: um modo diferente de contar velhas estórias (2003), As meias verdades que se
tornam inteiras na poesia: estudo do poema O Prato Azul-Pombinho, de Cora Coralina (2005) e
Memória e lirismo das pedras e perdas na poesia de Cora Coralina (2005).
89
margem, soube lutar pela legitimação daquilo em que acreditava e a que sempre
determinou um lugar privilegiado em sua vida.
Os diferentes cenários retratados pelas obras de Cora Coralina evocam
imagens da sociedade goiana nos séculos XIX e XX. Seu legado revela uma
consciência crítica ao priorizar temáticas ausentes na historiografia oficial. A “vida”
do interior do país é desnudada em suas diversas dimensões através das posições
dos reconhecidos e excluídos do contexto social: famílias tradicionais e
marginalizadas, políticos e tipos de rua, sacerdotes e prostitutas, professores e
presidiários, lavradores e latifundiários, escravos e intelectuais, homens e mulheres.
O universo simbólico de Aninha oferece um rico conteúdo sociológico.
Sua escrita se transformou em mecanismo de denúncia aos entraves sociais,
linguagem de margens e fronteiras, capaz de absorver as cenas e bastidores das
relações humanas.
À medida que revela a posição dos personagens, suas inquietações,
intimidades e preconceitos, descreve a multiplicidade de vozes que, em conjunto,
denunciam as relações entre os agentes estabelecidos e marginalizados. Os
próprios títulos de suas obras, partindo de coisas simples e historicamente relegadas
como os becos, a literatura de cordel, o vintém de cobre, as estórias e as coisas
velhas, se transformaram em estratégia para subverter e reorganizar os “autos do
passado”.
A herança de Aninha demonstra uma nítida consciência social, o
inconformismo e o desnudamento do mundo oficial que representou a “boa
sociedade” da época. Cora retrata os fatos e dramas do indivíduo e sua repercussão
na sociedade. Todavia, não apenas relata os problemas, ela assume para si as
alegrias, angústias e necessidades dos personagens, se tornando porta-voz dos
tradicionalmente silenciados. A escritora não se limita a apresentá-los, aponta
alternativas e, em alguns momentos, convida seus leitores a ação.
A ousadia de Cora Coralina ao resistir aos discursos estabelecidos
transportando para suas criações a sociedade em seus mais diversos aspectos
provocou transformações no campo literário. Convém, agora, observarmos o
processo de resignificação desse importante legado a partir de sua recepção crítica.
90
2.2 CONFISSÕES PARTIDAS: CAMPO LITERÁRIO - PRIMEIRAS E SEGUNDAS
(IM) PRESSÕES
A frase inscrita nas folhas de um dos cadernos de Cora consegue resumir o
propósito deste item: “Eu não posso dizer nada de mim, os outros é que devem e
podem dizer. Eu sou suspeita para dizer de mim”. O entendimento remete a um
sistema objetivo com mecanismos e conceitos específicos, formador da crença que
sustenta as relações. É essa crença que sustenta o campo, “do jogo de linguagens
que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram”
realizando um encontro entre “uma pulsão expressiva e um espaço dos possíveis
expressivos, que faz com que a obra, ao realizar as duas histórias de que ela é
produto, as supere” (BOURDIEU, 1998, p. 69-70).
As lutas travadas em busca da hegemonia, caracterizadas pelo
reconhecimento e pela manutenção de bens simbólicos como a distinção, o
prestígio, o poder de ditar as regras, de consagração e legitimidade, constituem o
motor do campo:
a oposição entre os paladinos e os pretendentes institui no interior mesmo do campo a tensão
entre aqueles que, como em uma corrida, se esforçam por ultrapassar seus concorrentes e
aqueles que querem evitar ser ultrapassados. (...) [buscando até mesmo) realizar por
antecipação o projeto de seus concorrentes. (...) Se as lutas permanentes entre os detentores
de capital específico e aqueles que estão desprovidos dele constituem o motor de uma
transformação incessante da oferta de produtos simbólicos, não é menos verdade que
apenas podem levar a essas transformações profundas das relações de força simbólicas que
são as alterações da hierarquia dos gêneros, das escolas ou dos autores quando podem
apoiar-se em mudanças externas de mesmo sentido (1996a, p. 147-148).
No campo literário, a cada sobreposição de gêneros, construção de estilos,
adoção de temáticas e comportamentos e surgimento de novos escritores, a luta se
renova: os estreantes querem ser reconhecidos e os consagrados buscam manter
as prerrogativas que contribuíram para sua aceitação e conservação contra as
investidas dos recém-chegados.
Após a inserção torna-se necessário lutar pela permanência e pela distinção,
superando as “provas” definidas pelos anteriormente legitimados e buscando, assim,
reconhecer a validade das produções. Dentre essas avaliações, a promovida pelos
escritores e academias de letras e a realizada pelas universidades assumem
relevância, gerando reflexos que serão agora apresentados.
91
As primeiras críticas realizadas sobre a obra de Cora foram efetuadas pelos
escritores goianos Josias Santana
69
(1908), Francisco Ferreira dos Santos
Azevedo
70
(1910) e Henrique Silva
71
(1919). Santana, no número 33 do jornal A
Rosa, datado de 24 de setembro de 1908, descreve “sua vasta erudição, a
profundidade de conhecimentos literários que tem, pôs em evidência o seu gosto
artístico, as suas predileções de estética”. Azevedo, no Anuário Histórico, Geográfico
e Descritivo do Estado de Goiás publicado em 1910 sobre o conto Tragédia na
Roça, a considera a maior escritora de nosso Estado” enquadrando-a no grupo do
terceiro período da literatura goiana”. O escritor Henrique Silva, na revista A
Informação Goyana nos volumes 2, n.° 2, de 1919 e 5, n.° 2 de 1923, a define como
“uma escritora brilhante” e uma ‘grande escritora de crônicas”.
Posteriormente, em carta datada de 10 de janeiro de 1922, Monteiro Lobato
destaca sua sensibilidade e descreve seu texto como “lindamente escrito, cheio de
sentimento e saudade”, considerando ser “literatura pura (sabor no verso)”.
Após essas avaliações, ressultantes das publicações que a poetisa efetuava
em jornais, os críticos começaram a discutir sua densidade poética, enquadrando-a
como mais prosadora que poeta, a exemplo dos trabalhos de Gilberto Mendonça
Teles
72
.
Segundo Teles, parece exagerado considerar Cora Coralina como a maior
escritora de Goiás, escrevendo que “passou do conto ao verso, ou melhor, ao
69
Poeta e jornalista goiano. Não publicou livros.
70
Professor, escritor e pesquisador. Publicou As datas do descobrimento da América e do Brasil,
segundo o calendário gregoriano (1897); Carta geográfica de Goiás (1904); Anuário Histórico,
Geográfico e Descritivo do Estado de Goiás (1910); e o Dicionário Analógico da língua portuguesa
(1950).
71
Escritor e Jornalista. Fundou a Revista A Informação Goyana no Rio de Janeiro. Publicou diversos
livros a exemplo de A caça no Brasil central (1900); Poetas goianos (1901); Fauna fluviátil de Goiás:
Araguaia e Tocantins (1903); Fauna fluviátil de Goiás: Paranaíba (1906); Indústria Pastoril (1907); e O
pescador brasileiro (1915).
72
Escritor e Crítico Literário. Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Doutor
em Lingüística e Letras. Possui diversos livros publicados destacando Alvorada (1955); Estrela-d’alva
(1956); Planície (1958); bula de fogo (1961); Pássaro de Pedra (1962); Goiás e literatura (1964); A
poesia em Goiás (1964); Sintaxe invisível (1967); O conto brasileiro em Goiás (1969); Drummond: a
estilística da repetição (1970); Vanguarda européia e modernismo brasileiro (1972); A raiz da fala
(1972); Camões e a poesia brasileira (1973); Arte de amar (1977); Poemas reunidos (1978); Retórica
do silêncio (1979); Saciologia goiana (1982); Plural de nuvens (1984); Estudos de poesia brasileira
(1985); Hora aberta (1986); A crítica e o romance de 30 no Nordeste (1990); Os Melhores Poemas de
Gilberto Mendonça Teles (1993); Nominais (1993); A crítica e o princípio do prazer (1995); & cone de
sombras (1995); A escrituração da escrita (1996); Literatura e Religião (1997); Álibis (2000) e
Contramargem: estudos de literatura (2002).
92
poema-prosa, porquanto, apesar da forma de verso livre, a sua linguagem não
possui muita densidade poética, a não ser num ou noutro poema (...), mas é na
verdade exímia contista” (1964, p. 136). O escritor diz que o conto Tragédia na Roça
é precursor das características do regionalismo goiano, “mais no aproveitamento do
tema rural do que pelos caracteres da linguagem criadora, de grande teor poético,
mas estilisticamente romântica”, e apesar da “estrutura de mesma pauta e ritmo, não
se pode negar-lhe a movimentação dramática, a concisão expressiva, a fina
sensibilidade da pincelada rápida e sugestiva” (1969, p. 42). Para ele, a autora
sofreu o mal de época ao fiar-se na facilidade do verso livre, ainda sem muita
consistência rítmica, e nos deixar longos poemas, as mais das vezes com raras
tonalidades poéticas”, concluindo ser “mais prosadora do que poetisa” (p. 95).
Considerando que ainda não havia publicado livros de contos, ao desviar para
seu aspecto de exímia contista, sua produção atual estaria descredibilizada. Além
disso, a crítica também se referia à ausência de densidade poética nos versos, mais
narrativos do que líricos. As palavras de Denófrio retratam essas primeiras im
(pressões):
A crítica, em Goiás, após a estréia de Cora Coralina em 1965, naturalmente muito antes de
ela ser proclamada por Drummond, em 1980, como a pessoa mais importante de nosso
estado (a partir de quando o que se ouviu foi o silêncio), fez restrições ao tom lírico narrativo
de seus poemas. Quase todos os críticos, quando não lhe torciam o nariz
73
, batiam na
mesma tecla: ‘é mais prosadora, do que poeta’. Talvez lhes faltasse, àquele momento,
algum conhecimento teórico (2004a, p. 24-25, grifos meus).
Nesse contexto, torna-se necessário rememorarmos a importância da
Academia de Letras às discussões originárias no campo literário, pois assim como
na inserção, exerce fundamental influência no processo de valorização do agente.
Com relação à obra de Cora Coralina, o movimento ocorreu de forma inversa:
somente após ter sido reconhecida por renomados escritores e recebido títulos de
alcance nacional como o Prêmio de Poesia no Primeiro Encontro da Mulher na Arte
73
O que pode ser comprovado pelas entrevistas concedidas aos escritores Miguel Jorge (publicada
na Folha de Goyaz de 1968) e Brasigóis Felício (jornal O Popular de 23 de dezembro de 1974),
respectivamente: “Não existe crítica em Goiás, e quando existe algum comentário é deficiente.
Precisamos urgentemente de um crítico, que não faça parte de grupos e que não seja cruel”. “Cora
se expressa reclamando da ausência de uma crítica construtiva ‘sem amizade e sem bajulação. Digo
a você que ninguém precisa mais de uma crítica sincera do que eu, que sinto grande necessidade de
uma boa e sincera crítica’. E disse mais: ‘a literatura goiana está precisando de um crítico que não
more em Goiânia, que seja independente e que não tenha ligação com os escritores daqui. Não tenha
nenhum sentimentalismo para com os mais novos e mostre a eles onde estão os seus erros. Precisa
de um guia, um auxiliar, um ajudante’”.
93
e Personalidade Cultural da União Brasileira dos Escritores, Rio de Janeiro, (1982),
o Grande Prêmio da Crítica da Associação Paulista de Críticos de Arte (1984) e o
Troféu Juca Pato da União Brasileira dos Escritores e Folha de São Paulo (1983),
além do título de Dra. Honoris Causa pela Universidade Federal de Goiás (1983) a
Academia Goiana de Letras a aceitou em seu quadro em 6 de dezembro de 1984,
portanto, quatro meses e cinco dias antes de sua morte, dispensando-a da disputa
por uma vaga.
74
Nesse processo, as missivas de Carlos Drummond de Andrade e a crônica
que escreveu, transcritas no capítulo anterior, foram fatores importantes para uma
reavaliação da poética de Aninha. Parte da crítica teve que se silenciar utilizando
os dizeres de Denófrio (2004) ou, em outra possibilidade, repensar suas
avaliações. Essa trajetória de reconhecimento por seus pares, alguns pertencentes
ao cânone da literatura brasileira, permitiu a eclosão de “segundas im (pressões)
críticas” na forma de estratégias para a conservação e subversão
75
do poder no
interior do campo.
A partir daí a obra de Cora Coralina vem sendo revista pelo campo literário,
originando estudos que demonstram sua importância no cenário da literatura
74
Aos 95 anos de idade a poetisa passou a ocupar a cadeira de n.° 38 da Academia Goiana de
Letras, cujo patrono é Bernardo Guimarães. No discurso de recepção promovido pela escritora
Regina Lacerda observamos alguns elementos justificadores: “Recebemos Cora, a menina que se
sentia desprezada por todos e o podia entender por que sua presença incomodava os
demais. (...) decidida, corajosa, valente, lutadora. (...) Voltou para fazer suas meias-confissões,
apesar da vontade de fazê-las inteiras. Vontade de dizer verdades inteiras, verdades nuas que as
conveniências o permitem ainda que se diga, por medo dos vivos, medo dos mortos, ou por
covardia? (...) no lugar dos velhos amigos e contemporâneos, estava uma juventude que a recebeu
de braços abertos, que a compreendeu no seu anseio maior de fazer literatura” (1986, p. 117-119,
grifos meus).
75
As estratégias em busca da distinção (como as temáticas e estilos adotados, sua poesia-resistência
e a participação na Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás AFLAG, no Grupo de Escritores
Novos GEN e Grupo Livre Espaço de Poesia de Santo André, citados no capítulo anterior; além do
relacionamento com paladinos do campo literário) podem ser evidenciadas no discurso de posse de
Cora Coralina na Academia Goiana de Letras: Aqui estou afinal entre s, espero que em
fraternidade perfeita (...) Aqui estou trazida pela vossa solicitude para participar da vida deste
sodalício”, e aproveitando para expor a vida de seu patrono Bernardo de Guimarães faz uma
critica a seus futuros confrades: “Grande parte, como de tantos que com ele conviveram, dado suas
marcas de atuação, defeitos e qualidades, (...) foi tido como um esquisito, isto até hoje (...) Vivo,
fosse, hoje não seria julgado com mais compreensão do que no seu tempo (...) Seria
compreendido no todo ou em parte? Talvez (...) hoje seria avaliado pela psicologia, pelos estudos
avançados da psicanálise e outras psicoterapias que o enquadrariam mais cientificamente. (...)
Grande vulto, mal julgado e mal aceito. (...) trago à memória dos presentes neste recinto, não os
livros e versos (...) e sim seu gesto humano e redentor que tantas críticas e incompreensão
marcaram sua passagem” (CORALINA, 1986, p. 123-125, grifos meus).
94
nacional.
76
Críticos começaram a exaltar características do legado em estratégia
pela distinção e, para tanto, artifício utilizado foi a comparação de suas produções
com a de escritores consagrados. Todavia, conforme assinala Pesquero Ramon
(2003), a obra de Cora Coralina ainda hoje tem sido vítima de certo preconceito.
Nesse sentido, convém retomarmos a idéia lançada de que Cora Coralina
ainda o constitui uma unanimidade crítica. Com exceção das análises de Wendel
Santos, Oswaldino Marques e de Gilberto Mendonça Teles, este último, aliás, realiza
uma “antipropaganda” ao salientar a falta de consistência rítmica, poemas extensos
e com raras tonalidades poéticas no legado da poetisa, os críticos de renome
nacional ainda não reconheceram os escritos de Cora. Muitas vezes, nem a citam
nas historiografias literárias, ficando circunscrita às avaliações da literatura em
Goiás. ainda uma certa rejeição de parte da crítica especializada e de alguns
leitores. Isso também aconteceu e acontece com outros nomes da literatura
brasileira
77
76
Cora Coralina ao ser questionada pela escritora Yêda Schmaltz (em matéria publicada jornal Diário
da Manhã, em 17 de janeiro de 1982) sobre o que gostaria que fosse registrado em sua literatura
afirmou: Gostaria que se registrassem duas marcas. Falam muito no ‘lirismo’ dos meus versos e eu
fico surpresa porque eu acho os meus versos duros e pedregosos; das pedras do meu berço e das
pedras da minha vida. Desejava que vissem nos meus versos uma expressão mais de luta do que de
lirismo; o retrato de uma lutadora que não se deixou vencer pela vida, embora muitos tentassem
destruí-la, ela foi sempre indestrutível (grifos meus). Desejava que vissem nos meus poemas uma
força que vem de dentro de mim e que aflora na poesia. E desejava mais, um segundo registro, que
vissem no que eu escrevo a ausência das palavras negativas, nem falo, nem escrevo e nem preciso
delas – dentre elas a palavra saudade”.
77
De acordo com a escritora Dalila Teles Veras “Nos compêndios da história da literatura brasileira a
produção literária feminina tem sido encarada como um produto menor. Com exceção de Cecília
Meireles, pouquíssimas linhas são utilizadas para os verbetes de Gilka Machado, Auta de Souza,
Francisca Júlia, Lupe Cotrim Garaude, Henriqueta Lisboa, Stella Leonardos, sem falar de Colombina
e Cora Coralina, as mais marginais de todas elas, que nem chegam a ser citadas. Também as
contemporâneas Hilda Hilst, Orides Fontela, Ana Cristina César, Yêda Schmaltz, Maria José Giglio,
Renata Pallotini, Marly de Oliveira, Adélia Prado, Lara de Lemos, Olga Savary, Neide Archanjo,
Eunice Arruda, Ilka Brunilde Laurito, Idelma Ribeiro de Faria e tantas e tantas outras, ainda o
contam com a divulgação e os estudos críticos que suas obras merecem”. Com relação à Cora
Coralina, diz mais:
Quando, em 1984, indiquei, ao lado de outros 30 escritores, o nome de Cora ao
Prêmio Juca Pato, da União Brasileira, quase fui banida daquela instituição, tamanha era a rejeição
de seu nome para um prêmio tido e dado a intelectuais. Ainda assim, os 450 votos de escritores de
todo o país a consagraram como a primeira mulher, em 22 anos, a receber essa importante láurea. A
Universidade de Goiás, bem antes, havia reconhecido o valor intelectual dessa poeta que
freqüentou a escola por apenas dois anos, distinguindo-a com o título de Doutora Honoris Causa, em
cerimônia revestida de toda a pompa acadêmica. Hoje, a vida acadêmica, que antes torcia o nariz à
sua obra, mostras de ceder ao poder de sua poesia. Cora Coralina & Clarice Lispector foi o título
de uma palestra recente proferida, em São Paulo, pelo prof. Roberto Juliano, da USP, pode ser visto
como um desses sinais” (110 anos de Cora. In: Kplus, 1999).
95
Exemplo disso é a análise que Fausto Cunha (2005) realiza sobre a obra de
Mário Quintana. O autor aponta a reavaliação do legado do poeta e afirma que a
princípio parecia estanho o interesse crítico em uma obra que
no melhor das hipóteses a crítica oficial considerava menor, e as novas gerações, na sua
faina epigônica, deixavam de observar mais detidamente. (...) Criou-se entre nós a mística de
que só se deve estudar os autores difíceis, constituindo dificuldade, para esse critério, o
hermetismo da linguagem, o inusitado do vocabulário e da sintaxe, que de fato permitem
elucubrações e interpretações no mais das vezes gratuitas. o Mario Quintana, outros
poetas e alguns romancistas brasileiros m pago por parecerem demasiado fáceis
para a sede decifratória de nossos escolistas (p. 8-9, grifos meus).
Eduardo de Assis Duarte (2005) estudando o preconceito da elite brasileira
com relação à obra de Jorge Amado, evoca certo desprezo das universidades e um
manto de silêncio lançado pela crítica literária:
A crítica oriunda de 22 espicaça Jorge Amado e é bastante responsável por uma certa
discriminação de que ele passa a ser vítima. o pouquíssimas, ainda hoje, as teses de
mestrado e doutorado sobre a obra de Jorge. Os argumentos que justificam esse desprezo
são ridículos. Diz-se que a obra de Jorge Amado é menor por ser política e panfletária. Isso é
falso, pois só a partir de 44, quando ele se torna deputado, a obra passa a incorporar
características do panfleto. Diz-se também que, depois que ele abandonou o PCB, sua obra
se tornou apenas uma crônica de costumes requentada pela mitologia baiana e pela estética
do best seller. O fato de Jorge Amado ser um escritor comprometido politicamente não
deveria ser uma barreira para o crítico. Há, no fundo, uma barreira ideológica que impede a
crítica de ler Jorge Amado. Jorge Amado, é bom lembrar, o é a única vítima. (...) Tome
um escritor do porte de Érico Veríssimo, que tem uma saga monumental sobre a história do
sul do País. Ele também é inteiramente desprezado pela universidade e pelos intelectuais
acadêmicos. (...)
No Brasil, é a universidade que canoniza, que diz o que "é" e o que "não é"
literatura, mas esses processos de canonização são, na verdade, muito discutíveis. E ele é o
exemplo mais eloqüente disso (In: José Castello, Livro resgata pioneirismo da obra de Jorge
Amado, Jornal de Poesia, 2005, grifos meus).
Com relação à Cora, seu mito muitas vezes é um obstáculo para que a obra
seja avaliada com rigor. A poetisa é sempre lembrada como a velhinha que
declamava versos com voz trêmula, por ter publicado seus livros na maturidade e
por seu insulamento literário, o que a afasta” dos demais escritores de seu tempo e
fortalece a idéia do “gênio do artista”.
A afirmação “mais prosadora do que poeta” instituída por alguns analistas,
caracterizando certa imaturidade literária - não possuindo a autora, portanto, obras
publicadas em prosa (o que ocorreria somente em 1985) também contribuiu, ao
lado das restrições a sua origem provinciana e intelectual, para que os programas de
pós-graduação considerassem sua produção durante muitos anos como
inconsistente. Mesmo com as cartas de Drummond e os prêmios de âmbito nacional
96
conferidos, as universidades mantiveram-se praticamente indiferentes ao legado de
Cora Coralina:
No passado, seus escritos, embora aprovados por entendidos, eram discriminados por
muitos: ‘aluna atrasada da Mestra Silvina’. Sua poesia foi igualmente considerada menor, até
que o maior dos poetas brasileiros de então, Carlos Drummond de Andrade, a considerasse
importante. Mesmo assim, em meados da década de 80, uma renomada universidade (...)
considerou sua obra inconsistente para uma defesa de tese, desencorajando certa mestranda
a prosseguir em seu trabalho (DENÓFRIO, 2004b, p. 341).
Não quer dizer que essa era a avaliação promovida por todas as instituições
universitárias. Da mesma forma que alguns críticos contribuíram e estão
contribuindo para uma reavaliação da obra de Cora Coralina, a Universidade Federal
de Goiás foi uma das responsáveis por iniciar esse processo no âmbito acadêmico.
Destacam-se as publicações das 2.ª e 3.ª edições do livro Poemas dos Becos em
1978 e 1980, com a inclusão da obra na coleção Documentos Goianos; as quatro
primeiras edições de Vintém de Cobre de 1983, 1984, 1985 e 1987; e a decisão do
conselho universitário, de 31 de agosto de 1982, ao expedir a resolução n.° 01-82
78
,
que outorgou em 18 de agosto de 1983 o título de Doutora Honoris Causa a poetisa.
Andréa Ferreira Delgado
79
, avaliando o processo de invenção da memória e a
conseqüente monumentalização de Cora Coralina, descreve a importância do título:
para uma instituição universitária, atribuir o título de ‘Doutorpara alguém que não participa
da vida acadêmica é um momento privilegiado para reafirmar socialmente a posição que
ocupa nas relações de poder-saber que classificam os indivíduos. A chancela do título tanto
quanto distingue aquele que a recebe, também exalta a função estratégica da própria
78
Resolução ECU n.° 01-82. Concede a Anna Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas Poetisa Cora
Coralina – o Diploma de Doutor ‘Honoris Causa’ da UFG. O Egrégio Conselho Universitário da
Universidade Federal de Goiás, reunido em sessão ordinária realizada no dia 31 do mês de agosto de
1982, tendo em vista o que consta do processo n. ° 009603/82, e considerando a distinguida pessoa
de Anna Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas a Poetisa Cora Coralina -, no campo do saber e da
cultura, das letras e das artes, na forma do artigo 151, § 3.° do Estatuto, resolve: Art. 1.° - É
concedido o Diploma Honorífico de Doutor “Honoris Causa” da Universidade Federal de Goiás a Anna
Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas – Poetisa Cora Coralina. Art. 2.° - A entrega do diploma será feita
em sessão da Assembléia Universitária, em data a ser fixada pela Reitoria da UFG. Goiânia, 31 de
agosto de 1982. Prof.ª Maria do Rosário Casimiro – Reitora.
79
Doutora em História, é professora da Universidade Federal de Goiás. Tem realizado estudos sobre
a vida e obra de Cora Coralina com destaque para: Em que espelho ficou perdida a minha face?
(1995), Memória e gênero: investigando a escrita feminina em Goiás (1997), A construção de uma
mulher monumento (1996), Cora Coralina e a invenção de si (1999), Memória, trabalho e identidade:
as doceiras da cidade de Goiás (1999), Cora Coralina: a escrita da memória como arte de topografar
(1999), Memória autobiográfica e memória coletiva: Cora Coralina na sala de aula (1999), Cora
Coralina: memória, literatura e história (1999), A rede de memórias e a invenção de Cora Coralina
(2000), A invenção de Cora Coralina na batalha das memórias (2003) e Goiás: a invenção da cidade
“Patrimônio da humanidade” (2005).
97
instituição (2003, p. 228). Esse conjunto de homenagens, títulos honoríficos (...) além do
poder simbólico agenciado por instituições que são locais privilegiados de emissão de
discursos socialmente reconhecidos e legitimados, também produz fatos midiáticos,
constituindo-se em acontecimentos discursivos, que redundam nos mesmos marcos
constitutivos da metamorfose da poeta em Monumento. (...) multiplica-se ininterruptamente
uma teia discursiva que inventa a Mulher-Monumento (p. 236-237).
Essa homenagem constitui o que Pierre Bourdieu (1983) denomina ‘criação’,
isto é, a articulação entre um habitus socialmente construído e uma determinada
posição instituída na divisão do trabalho de produção cultural e na divisão do
trabalho de dominação.
As realizações do título constituíram a legitimidade para um
maior reconhecimento da obra de Cora, visto parecer a primeira vista difícil promover
a aceitação de uma obra cuja autora possuía apenas alguns anos do primário.
Reflexos desse reconhecimento foram os votos dos reitores de onze universidades
80
à escritora por ocasião da eleição para o título de intelectual do ano de 1983
Troféu Juca Pato promovida pela União Brasileira dos Escritores/Folha de São
Paulo.
Em 1990, Marlene Gomes de Vellasco
81
defendeu a dissertação A poética da
reminiscência: estudos sobre Cora Coralina, obtendo o título de mestre em literatura
pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. A partir desse trabalho,
inúmeros outros vêm sendo desenvolvidos em instituições brasileiras e estrangeiras
e um crescente movimento de reavaliação da obra da poetisa se institui nas mais
diversas áreas do conhecimento através de palestras, artigos, dissertações e teses:
Hoje as teses que têm sua obra como corpus se multiplicam pelo país
82
e sua lírica es
sendo estudada inclusive no exterior.
83
(...) E, na Universidade de Brasília, um recente
80
De acordo com o discurso proferido pela escritora Dalila Teles Veras na cerimônia de entrega do
título: “Onze universidades de todo o Brasil mandaram o seu voto a Cora Coralina, ainda que
impugnados, porque vieram através de telegrama, forma esta o aceita pelo regulamento do
concurso, mas fica registrado”. (1984, p. 16) No acervo da escritora encontram-se os votos dos
reitores de dez universidades: Maria do Rosário Casimiro Universidade Federal de Goiás; Joseh
Anchieta Esmeraldo Barreto Universidade Federal do Ceará; Armando Vallandro Universidade
Federal de Santa Maria; Antônio Fagundes de Sousa – Universidade Federal de Viçosa; Berilo
Ramos Borba – Universidade Federal da Paraíba; Earle Diniz Macarthy Moreira – Universidade
Federal do Rio Grande do Sul; Ernani Bayer – Universidade Federal de Santa Catarina; Gilson
Cajueiro Hollanda – Universidade Federal do Sergipe; José Raimundo Martins Romeo – Universidade
Federal Fluminense; e Omar Sabino de Paulo – Universidade Federal do Acre (Inédito).
81
Mestre em Literatura, é professora da Universidade Estadual de Goiás e Presidente da Associação
Casa de Cora Coralina. Realizou os seguintes trabalhos sobre a obra de Cora Coralina: A poética da
reminiscência: estudos sobre Cora Coralina (1990), O eu multiplicado em Cora Coralina (1997),
Histórias de Mulher (1999) e As múltiplas faces do tempo em Cora Coralina (2002).
82
foram realizadas as pesquisas: A poética da reminiscência: estudos sobre Cora Coralina, de
Marlene Gomes de Vellasco (1990), Aspectos do universo poético de Cora Coralina, de Solange
98
movimento de valorização e divulgação de sua obra, observando-se em camisetas de
estudantes, em recurso gráfico semelhante à inconfundível logotipia da Coca Cola, uma
espécie de trocadilho: Leia Cora Coralina (DENÒFRIO, 2004b, p. 342, grifos meus).
Pretendemos identificar algumas análises representativas para detectar o
retrato que os críticos têm construindo sobre a obra de Cora Coralina. Inicialmente
destacamos as efetuadas por Osvaldino Marques e Wendel Santos, observadas
ainda em vida pela autora.
Aparecida Guimarães (2000), Sopro em brasas dormentes: inventário das precursoras da literatura
em Goiás, de Bento Araújo Jayme Fleury Curado (2003), A poesia de Cora Coralina: um modo
diferente de contar velhas histórias, de Heloísa Marques Miguel (2003) e Memória e lirismo das
pedras e das perdas na poesia de Cora Coralina, de Tilza Maria Antunes (2005), mestres em estudos
literários pela Universidade Federal de Goiás; A narrativa de Cora Coralina em similitude com o conto
popular, de Eliana Regina Palomares (2000), mestre em comunicação e letras pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie-SP; No rastro de Cora: da literatura ao desenvolvimento local, identidade e
cultura com açúcar e literatura, de Melissa Carvalho Gomes (2004), mestre em serviço social pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; O universo simbólico coralineano: as hierofanias
da natureza, de Perciliana Chaves Pereira (2004), mestre em ciências da religião pela Universidade
Católica de Goiás; Cora Coralina & vozes emersas, de Omar da Silva Lima (2004) e Meias
confissões, meias transgressões: marcas de nero na poesia de Cora Coralina, de Cláudia Helena
Quermes Oliveira (2005), mestres em literatura pela Universidade de Brasília; A invenção de Cora
Coralina na batalha das memórias, de Andréa Ferreira Delgado (2003), doutora em história pela
Universidade de Campinas; Labirintos da memória: o pulsar de vida na poética de Cora Coralina, de
Olívia Aparecida Silva (2005), doutora em literatura pela Universidade de Brasília; Da morte do
‘general’ à busca ‘rizomática’: o ato de escrever como possibilidade de emancipação
‘agenciamentos’ entre Cora Coralina, Gilles Deleuze e Félix Guattari, de Maristela Barenco Corrêa de
Mello (2005), mestre em educação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro; e (Re) Inventando
o turismo na cidade de Goiás sob o olhar de Cora Coralina, de Flávia de Brito Rabelo (2006), mestre
em gestão do patrimônio cultural pela Universidade Católica de Goiás. Além das dissertações e teses
aqui explicitadas, encontram em desenvolvimento as pesquisas: Cora Coralina e a cartografia da
memória, de Márcia Batista de Oliveira, mestranda em letras pela Universidade Estadual de Londrina;
Aninha e outras vozes: a heterogeneidade discursiva em Vintém de Cobre: meias confissões de
Aninha de Cora Coralina, de Mara bia de Souza Rodrigues Morais e Práticas de subjetivação e
construção identitária em Cora Coralina, de Sueli Gomes de Lima, mestrandas em lingüística pela
Universidade Federal de Uberlândia.
83
Na matéria Ponte para o mundo, publicada no jornal O Popular de 4 de setembro de 2004, o
jornalista Rogério Borges noticia “Por intermédio de pesquisas feitas por professores brasileiros
residentes nos Estados Unidos e na Europa, o estudo da obra poética de Cora Coralina ganha fôlego
no exterior” (p. 7). No texto, são citados a tese defendida em 2004 na Universidade Complutense de
Madrid pela professora Consuelo Brito comparando a poética de Cora com a da escritora Rosalia de
Castro e o artigo que promove a comparação com a obra da poetisa Adélia Prado efetuado pela
pesquisadora Maria José Somerlate Barbosa da Universidade de Iowa. Do mesmo modo, relata o
interesse demonstrado pela Doutoranda em Literatura Latino-Americana pela Universidade de
Vanderbilt, em Nashville, Teneessee, Estados Unidos, Soraya Nogueira e pelo Doutorando em
Literatura Comparada na Brown University e professor da Universidade de Harvard Antônio Luciano
Tosta que desenvolveram palestras e estudos sobre a poética de Cora. Encerrando a matéria, cita
a pesquisa da mestranda Cristiane Pires intitulada Vintém de Cobre meias confissões de Aninha: a
construção da identidade feminina na obra de Cora Coralina realizada no Departamento de Estudos
Ibéricos e Latino-Americanos, Universidade de Paris III Sorbonne-Nouvelle. Todavia, é anterior o
interesse que sua obra vem despertando no exterior, a exemplo do artigo de Vera Americano Bueno
Viaje al reino de Cora Coralina publicado em 1985 na revista espanhola literária e cultural El Urogallo:
Formas Del Ministério: la mujer em la cultura brasileña, p. 110-111, jul/ago e da dissertação em
psicopedagogia A poesia de Cora Coralina: enfoques psicopedagógicos e leitura, de Salustiano
Ferreira da Luz, Universidade de Havana, 1999.
99
Oswaldino Marques (1971) foi um dos principais responsáveis pelo processo
de reavaliação da obra de Cora. Crítico respeitado no campo literário nacional,
desenvolveu o estudo Cora Coralina Professora de Existência
84
utilizando-se da
estratégia realizada por outros escritores (legitimar a obra a partir da comparação
com a de paladinos do campo nacional e internacional). Em suas análises, ressaltou
a importância das produções e lançou ao final um desafio/convite: “por que a colônia
goiana do Distrito Federal, que congrega (...) tanta gente de sensibilidade, o vai
em caravana convidar a admirável poetisa para receber as homenagens da Capital
do País?”, escrevendo ser “um alvitre que endereço daqui aos naturais do grande
Estado planaltino” (PBG, p. 19).
A posição ocupada por Marques por si forçou os agentes de Goiás a
reconhecerem (ou não desmerecerem) a produção da poetisa, pois estava, de certo
modo, “isento” das influências e interesses gestados no campo goiano. No artigo,
compara o trabalho da autora com o de Juana de Ibarbourou descrevendo que, do
mesmo modo como a poetisa uruguaia foi cognominada Juana da América, “a nação
do planalto brasileiro devia, numa festa de consagração nativista, rebatizá-la Cora
dos Goiases” (p. 13), relembrando o estilo de Gabriela Mistral, Rosália de Castro e
de um Whitman interiorano. O autor se refere ao poder com que Cora repoetiza
espaços brasileiros em diálogos com a universalidade do humano, destacando o uso
de “considerável cópia de regionalismos que, sobre responderem por esplêndidos
efeitos sonoros, estilísticos, robustecem a confiança do leitor” e a forma com que
utiliza o “instrumental denotativo da região”. Para a legitimação, avaliza: “ao lê-la
pensamos, não raro, num Guimarães Rosa transposto para a poesia de Goiás. É
84
Crítica publicada inicialmente no Correio Brasiliense, em 26 de junho de 1970, depois na Folha de
Goyaz, em 21 de fevereiro de 1971, e em inúmeros outros veículos. Conforme escreve Denófrio:
“Ensaio publicado mais de uma vez e antes mesmo de conhecê-la pessoalmente. Este estudo foi
aproveitado como prefácio já na primeira edição de Poemas dos Becos de Goiás e estórias mais, pela
Editora da UFG, em 1978, comparecendo depois em todas as demais edições, incluindo as
subseqüentes da Global, ao momento” (2004a, p. 7). No mesmo sentido, afirma Vicência Tahan
“Um artigo escrito por Oswaldino Marques, crítico dos mais conhecidos, publicado em vários jornais,
leva a Universidade Federal de Goiás a se interessar numa segunda edição de seu livro [Poemas dos
Becos de Goiás] e ela pede [Cora Coralina] que seja transcrito nas primeiras páginas este trabalho
crítico. (...) Apesar de insistentes apelos da José Olympio, preferência à Universidade de seu
Estado” (2002, p. 215). Convém ainda transcrever a primeira carta do critico para a poetisa: “Brasília
3/7/1971. Mestra Cora Coralina, Devo a minha querida amiga Dulce (Burlamáqui N. do R.) o
conhecimento da sua grande obra poética. A senhora era figura quase legendária para mim, mas
agora acha-se encarnada na substância de sua poesia. Faço votos que esse encontre numa fase de
grande fecundidade lírica. Gostaria de conhecê-la pessoalmente. Sou capaz de ir especialmente a
Goiás, para desfrutar desse privilégio. Com a viva admiração e os votos de muita saúde, de
Oswaldino Marques” (Inédito).
100
extraordinária a maneira como absorve, assimila o tempo e a geografia desse
perdido paraíso dos trópicos, reofertado a nós em sua autenticidade inaugural” (p.
15).
A partir desse ensaio, inúmeras avaliações sobre sua obra começaram a ser
efetuadas e constitui ao lado das análises de Wendel Santos e das cartas de
Drummond – importante subsídio à aceitação das produções de Cora Coralina.
O trabalho de Wendel Santos
85
, publicado em 1977, se intitula O universo
imaginário de Cora Coralina. Santos elege na obra de Cora dois tipos principais de
materiais: o histórico e o psicológico e argumenta que os poemas Cidade de Santos,
Oração do Milho e Poema do Milho estariam destoando de sua existência
composicional. Buscando validar as criações e superar os primeiros argumentos
críticos, o professor caracterizou ser tendência atual dos escritores o “esfacelamento
de formas literárias”, comparando as produções da escritora com Cara-de-Bronze de
João Guimarães Rosa.
Para o autor existem cinco níveis de realidade, assim definidos: fotográfico,
épico, dramático, lírico e catártico, e é no real lírico que Cora “atinge o máximo de
historização de sua experiência pessoal. Nos poemas dessa fase, o leitor se instrui
até que ponto misturam-se, na criação da arte literária, a circunstância e a
imaginação” (p. 89). Na pesquisa sobre o real rico, subdivide-o em duas vertentes:
o lírico-social e o lírico-psicológico, que seriam “o melhor da vocação, e da perícia,
artística de Cora Coralina” (p. 89). Avaliando a disposição das produções na primeira
edição de Poemas dos Becos (1965), destacou que os poemas Vintém de Cobre,
Todas as Vidas, Minha Cidade e Antiguidades poderiam ser classificados como
freudianos; ressaltando que as temáticas abrem e fecham o livro e suscitando esse
fato para a compreensão do processo da criação literária:
Durante algum tempo de vida, o artista é tão-somente uma antena estendida no universo: ele
recebe os dados. É o instante da mimese pura: o poeta capta em sua consciência o real que
o limita numa relação tempo-espacial. Tendo incorporado o mundo, o primeiro discurso do
poeta ainda não consegue transvazar o real com a inclusão de sua singularidade. Por isso,
obras literárias que simplesmente espelham o mundo: sobretudo isso acontece quando
existe pouco tempo entre a experiência e a composição. Tempo e poesia se tocam
inversamente, uma vivência precisa de certo distanciamento para não ser mera transposição,
se entra como tema de literatura. Tal fato explica porque, de um modo geral, os poetas
retornam às experiências de infância ou de juventude (p. 90-91).
85
Doutor em Literatura Brasileira e crítico literário. Publicou os livros Tânatos (1969), Eurupção
(1971), Crítica Sistemática (1977), e A construção do romance em Guimarães Rosa (1978).
101
Torna-se relevante transcrever o rascunho da carta que Cora Coralina enviou
ao crítico:
Wendel Santos. Leio no suplemento cultural de ‘O Popular’ seu artigo crítico análise sobre o
livro P. dos Becos de Cora Coralina e venho manifestar ao escritor analista primeiro minha
admiração pelo quanto ali encontrou e dele extraiu em linguagem elevada e sem precisar
mencionar a idade da escritora coisa muito rara naqueles de Goiânia que tem tratado do livro
visando o o conteúdo desse. Tanta coisa você encontrou Tanto levantou fuxicou e
examinou que para quem escreve simplesmente escreve por um imperativo incontrolável
alheia a mimese e a catarse desconhecendo mesmo um e outro estado e não contanto
mesmo nunca com esse debulhar minucioso e esse extrair de coisas e conclusões é uma
surpresa tomar conhecimento de que nesses poemas ou que nome tenham contenham e
comportassem tanto material ignorado do autor fosse esse tecido leve ou pesado permeável
a análise de um crítico. Fiquei surpresa, encantada, exaltada e porque não dizer também
humilde como sempre fui. Um dia, se puder venha a Goiás (cidade) venha a nossa casa,
casa Velha da Ponte, vamos nos entender melhor, conversar e eu agradecê-lo pessoalmente
sua linguagem levantada visando o conteúdo do pequeno livro e não a idade de quem o
escreveu (Inédito).
Essa resposta da autora descreve o processo de resignificação da obra de
arte, especialmente quando cita o “material ignorado do autor”, e contribui para a
compreensão do que Bourdieu (1996a) descreve como illusio, a crença no jogo
promovida pelas lutas pelo monopólio da definição do modo de produção cultural
legítimo. Desse modo, cada campo possuiria uma forma de illusio própria que
distingue o que é importante e promove a concorrência. Seria a condição de
funcionamento do jogo entre diferentes habitus em um campo. Se o produtor do
valor da obra de arte não é o artista, quem o produz é o campo de produção
enquanto
universo de crença que produz o valor da obra de arte como fetiche ao produzir a crença que
no poder criador do artista. Sendo dado que a obra de arte só existe enquanto objeto
simbólico dotado de valor se é conhecida e reconhecida, ou seja, socialmente instituída como
obra de arte por espectadores dotados da disposição e da competência estéticas necessárias
para a conhecer e reconhecer como tal, a ciência das obras tem por objeto não apenas a
produção material da obra, mas também a produção do valor da obra ou, o que dá no
mesmo, da crença no valor da obra (p. 259).
Também destacamos as avaliações de Saturnino Pesquero Ramon e Andréa
Ferreira Delgado que descortinam discursos e práticas simbólicas em Cora Coralina.
Pesquero Ramon (2003) avalia as metáforas e o compromisso social a partir dos
problemas cotidianos. Segundo acena, através de uma análise psicológica e
filosófica dos poemas pode-se desvendar uma relação humano-existencial na
102
elucidação dos arquétipos motivadores de suas construções, sob o fio condutor do
seu pseudônimo.
O autor aprecia o provável significado do codinome que, a seu ver, equivale
a “lavadeira do Rio Vermelho”, por fazer “o cotidiano mais limpo e perfumado” e
purgar a mesmice, elencando argumentos de caráter anedótico, histórico, literário,
pessoal, lógico, intuitivo-afetivo e projetivo profundo. Em seus comentários, estrutura
“peças para a constituição da eudade”, dizendo que as poesias refletem autênticas
“pérolas psicológicas” e que sua consciência cosmogônica foi aprendida no
cotidiano. Sob essa ótica, utiliza as teorizações de Freud para demonstrar o nível
profundo da eudade, através dos pontos centrais da psicologia no poema O poeta e
a poesia e acena que “apesar da profundidade freudiana dessas marcas infantis,
elabora seus complexos e se faz forte a partir deles. Sem divã de analista, constrói
sua eudade, que quis, também, chamar ‘freudiana’” (p. 83).
Quando avalia a disposição junguiana de que o poeta “exprime a verdade de
todos”, o pesquisador destaca o engajamento da autora. Citando Jung diz que “as
necessidades anímicas de um povo são satisfeitas na obra do poeta, e por este
motivo ela significa verdadeiramente para seu autor, saiba ele ou não, mais do que
seu próprio destino pessoal”, compreendendo que “uma obra prima é como um
sonho que apesar de todas as suas evidências nunca se interpreta a si mesmo e
também nunca é unívoco”, (p. 105) e confirmando a dimensão moderna da
faculdade criativa de Cora através da consciência de modernidade. O autor conclui
que a consciência social da escritora pode ser evidenciada em três aspectos: a
identidade com as outras “vozes”; a força do compromisso poético-social
estabelecido na identificação real e imaginária com o seu povo; e a sutileza
“caboclo-feminina de sua crítica social” (p. 114).
Pesquero Ramon retrata o sentido político-filosófico das poesias da poetisa
analisando seu bios poético, a contradição de imagens (a chama e a cinza, o tempo,
o reservatório secreto, a raiz, o encontro/desencontro) e singularidades (flor e
semente, a estrada, as mãos pequenas, as pedras, o vintém perdido). A metáfora
adquiriria um poder “desrealizador”, criando algo novo a partir da realidade e
construindo o “vintém de cobre”. Para o crítico o vintém imaginário não surge do
vácuo. Nasce do real: a moeda de cobre e seu pobre poder de compra”,
103
entre essa moeda antiga que Aninha usava para fazer suas parcas compras na venda da
esquina e o novo ‘vintém de cobre’, o da poesia, existe uma semelhança ou analogia que
possibilita articular as duas imagens: a real dinheiro vivo para comprar quase nada e a
imaginária moeda viva da sabedoria, advinda da pobreza assumida para comprar a
imortalidade (p. 205).
A compra da imortalidade consistiria na estratégia que os escritores utilizaram
(e utilizam) para comprovar a universalidade da rapsoda goiana. Pautando-se desse
artifício, Pesquero Ramon realiza o pós-escrito Cora: outra “Juana de América em
que ombreia nossa escritora à poetisa uruguaia Juana de Ibarbourou e ao
consagrado poeta chileno Pablo Neruda, definindo-os como os três porta vozes da
americanidade
86
através de uma “co-genialidade consangüínea, que corre pelas
veias de todos os povos americanos que eles representam” (p. 254) revelados na
identidade aborígine, no telurismo, no reencontro com a terra natal, na
transcendência de seus significados e na autoconfiança da reconquista de uma
independência autêntica. Pesquero conclui ser “o caráter ético, vivificador e
renovador, pátrio e cosmopolita, da poesia de Cora Coralina, a dimensão em que ela
se irmana com Juana e Ibarbourou e Pablo Neruda” (p. 253).
Delgado (2003), analisando os discursos, agentes e instituições, desvenda
a construção das memórias a partir da luta pela instituição da biografia hegemônica
instaurada na obra da poeta; a memória explicitada no projeto museológico de sua
casa natal; a biografia escrita pela filha de Cora e a memória subterrânea circulante.
Nesse sentido, assumem centralidade as estratégias para a monumentalização da
escritora como guardiã da memória e símbolo de Goiás, para tanto, a crítica
promove a fragmentação de sua identidade nas diversas teias discursivas que
constroem essa personagem.
86
Oswaldino Marques foi o primeiro crítico a destacar a semelhança da poética de Cora com a obra
da poetisa uruguaia. a identificação com Pablo Neruda pode ser verificada nas produções Pablo
Neruda I, II e III publicadas em Meu Livro de Cordel quando verbaliza “Manda–me de Temuco, onde
pousaste para sempre, uma pluma de tuas asas abatidas para que eu possa alcançar com ela acima,
muito acima do meu vôo curto e rasteiro(MLC, p. 28) e ”Grande cantor das Américas” (p. 29). Outra
informação relevante consiste na existência de um poema inédito no acervo da escritora que
complementaria os três publicados e provavelmente seria o Pablo Neruda IV. No mesmo sentido, a
hipótese formulada pelo crítico adquire fundamento - identificação com outros escritores latino-
americanos - ao observar na biblioteca da autora os livros: El mar y las campanas (1974) e Confesso
que vivi (1979) de Pablo Neruda; Legendas de Guatemala (1975) de Miguel Ângelo Astúrias; El Popol
Vuh las antiguas historias del Quiche (1976); Antologia de la Poesia Argentina (1975); 25 Cuentos
argentinos magistrales siglo XX (1975) e pela publicação de algumas poesias traduzidas de sua
autoria no livro Voces femeninas de la poesia brasileña (1979) (Inédito).
104
A pesquisa procura demonstrar a intriga existente na configuração da rede de
memórias, tecida pelo entrecruzamento de diferentes campos discursivos
literatura, mídia, patrimônio e crítica literária que inventam Cora Coralina e
disputam a instituição da biografia hegemônica” (p. 6):
na batalha das memórias todos os discursos falam ou parecem falar a mesma coisa ao
agenciar a história de vida de Cora Coralina. Mas estas múltiplas memórias, em sua
heterogeneidade, não compõem diferentes faces de uma mesma biografia, mas uma luta
singular, um confronto, relações de poder, uma batalha de discursos e através de discursos
(p. 6-7).
Num primeiro momento é analisada a criação do Museu Casa de Cora
Coralina e a construção de uma memória oficial. Em seguida observa a relação entre
mídia e literatura na instituição da poetisa como guardiã da memória, através da
velhice, publicidade e instâncias de consagração que efetivaram a construção do
que a autora designa como mulher-monumento. Nesse sentido, destaca práticas
discursivas do processo de monumentalização” acompanhadas de “profusa
fabricação iconográfica” onde à figura humana se atrelam “produção, circulação e
recepção de seu discurso” (p. 179). Também demonstra o processo de subjetivação
que marcou a vida da poetisa a partir da utilização estratégica do nome:
Anna Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas, escolheu seu nome de autora aos 14 anos,
assumindo uma assinatura híbrida Cora Brêtas, em torno dos 50 anos, mantendo o
sobrenome do marido já falecido, para consolidar Cora Coralina como nome próprio no
momento em que construía a identidade de literata como projeto na velhice. Esta ausência de
constância nominal demonstra o quanto no curso da vida a identidade social foi construída e
reconstruída, deixando entrever o sujeito cindido e fragmentado que o projeto autobiográfico
tenta unificar num todo coerente (p. 323-324).
Delgado avalia a posição ocupada por Cora na instituição de Goiás como
cidade histórica, assim, “ao entretecer o rememorar do tempo aos espaços da
cidade, ela torna-se artífice de significados para o passado consagrou Goiás
enquanto lugar de memória” (p. 398). Encerrando, reflete sobre o processo de
monumentalização no campo do patrimônio cultural e evidencia a simbiose instituída
entre a poetisa e a cidade na produção da memória topográfica.
Segundo Pierre Bourdieu (1983), no terreno da cultura, a luta no interior do
campo é integradora, tende a assegurar a permanência das regras do jogo e o
princípio da mudança seria a busca do monopólio da distinção, da imposição da
última diferença legítima. A busca pela distinção é constante e, por esse motivo, a
105
busca pelo reconhecimento de obras como as de Cora Coralina deve ser
periodicamente suscitada pelos leitores, editores, escritores, críticos e demais
agentes em que circulam o poder de criar a crença, ou seja, torna-se necessário o
cotidiano aval dos participantes do sistema de relações que, em seu conjunto,
produzem o jogo e o poder que repousa a fé em determinadas criações e
produtores.
Desse modo, o campo literário seria um campo de forças a agir sobre todos
aqueles que nele entram, mas de modo diferenciado, dependendo da posição
ocupada: “cada tomada de posição (temática, estilística etc) defini-se (objetivamente
e, por vezes, intencionalmente) com relação ao universo das tomadas de posição e
com relação à problemática como espaço dos possíveis que se acham indicados
ou sugeridos” (1996a, p. 263).
Por isso que a luta pela distinção é contínua, visto que as obras e seus
produtores necessitam de uma constante legitimação pelos integrantes do campo.
Nesse processo, a avaliação dos especialistas - juntamente com a dos leitores,
escritores e demais agentes - é um dos meios para construir a crença.
Mas no caso de Cora quais as estratégias apontadas pela crítica que teriam
diferenciado o seu projeto criador no espaço de possíveis?
Camargo (2003) destaca o artifício artístico da criação de Cora Coralina e
Aninha, personagens que uniriam as duas pontas da vida. Estratégia que comporia
sua retórica e seria uma forma de licença poética por apontar para a consciência
reflexiva da autora. A escolha da velha e da criança não teria sido aleatória, pois
sendo ocupantes de posições sociais periféricas, as duas vozes, consideradas
apenas nos limites da tolerância, representam papéis pouco ou nada relevantes,
restando-lhes a compensação de viveram in extenso no imaginário. Corroborando
com a idéia da invenção do pseudônimo como estratégia, Pesquero Ramon (2003)
assinala que Cora Coralina é uma significativa e criativa autodenominação que foge
aos padrões dos pseudônimos e heterônimos de sua época, parecendo ser um caso
único na história da literatura nacional e mesmo universal.
A literata também destoaria do cenário literário de seu tempo por suas opções
formais. Conforme dispõe Assis Brasil
87
(1997), Cora cultivou uma poesia do
87
Jornalista e crítico literário, é professor na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Possui diversos livros publicados: romances, novelas, contos e infanto-juvenis. Mas é no
106
cotidiano que “tomava as liberdades métricas e rítmicas antes dos ditos primeiros
modernistas de Goiás (p. 66). Para Sebastien Joachim
88
(1999), Cora ao traduzir
em sua obra a oralitude, leva a linguagem a uma intensificação que a torna
estilisticamente transgressiva. Heloisa Marques Miguel
89
(2003) ressalta que a
poetisa inova ao apresentar em sua obra uma tensão entre o hibridismo literário
lírico e épico que não perpetua os paradigmas da tradição clássica. Segundo afirma,
Cora teria descoberto outros modos de manifestá-lo, principalmente com relação ao
gênero épico, que teria atualizado com inovações na temática, na estrutura e na
linguagem, delineando o que é reconhecido como épico moderno. Seria uma voz
liberta das amarras da métrica, da rima e da idealização de mundo, tornando-se,
assim, singular, autêntica e sui-generis.
Teixeira (2005), sublinha o processo de criação fortemente feminino. Cora ao
construir suas obras e ao promover a associação com o feminino não se limitou a
uma forma de realização pessoal e de cidadania, mas, sobretudo, trouxe ao espaço
público suas mais íntimas vivências. Assim, sob o seu olhar, a cidade de Goiás se
transforma em um tempo e em um espaço capaz de permitir ao leitor pensar uma
identidade feminina brasileira. A singularidade da poética seria a forma com que a
autora se confunde afetivamente com a sua narrativa, se revelando e revelando o
outro, em uma só voz.
Traço importante a ser considerado como estratégia diferenciadora é a opção
temática pelas “vozes obscuras”. Cora centraliza em sua obra alguns temas
considerados até então antipoéticos. Marques (2001a) acena que dificilmente um
escritor conseguirá promover a transfusão de uma existência numa criação literária
como ocorre na obra da poetisa, captando os quadrantes individuais e sociais da lida
humana. Podemos, dessa forma, dialogar com o estudo de Machado (2002) quando
campo dos ensaios e crítica literária que tem se destacado, a exemplo das obras Faulkner e a técnica
do romance (1964), Cinema e literatura (1967), Graciliano Ramos (1969), Adonias Filho (1969),
Guimarães Rosa (1969), Clarice Lispector (1969), Carlos Drummond de Andrade (1969), A poesia
(1975), O conto (1975), A crítica (1975), O modernismo (1976) e a sua coleção de poesia brasileira no
século XX.
88
Pós-Doutor em Estética e Crítica Literária, é professor do Programa de s-Graduação em Letras
da Universidade Federal de Pernambuco. Publicou diversos livros, com destaque para Mulher na
literatura (1990), 70 anos de modernismo brasileiro (1993), Mulheres, ameríndios e negros no campo
literário de Quebec e do Canadá (2001) e O espaço – tempo na literatura (2003).
89
Mestre em estudos literários pela Universidade Federal de Goiás com a dissertação A poesia de
Cora Coralina: “um modo diferente de contar velhas histórias” (2003) .
107
afirma que a postura crítica de um literato decorre também da posição de classe que
ocupa. Assim, os indivíduos de um estrato superior que se sentem tolhidos e os de
classes inferiores divergentes tenderiam a se tornar críticos articulados de sua
sociedade.
Denófrio escreve que Cora Coralina mereceria ser resguardada de duas
coisas: “de um antecipado juízo de valor negativo, como fizeram no passado, e da
comiseração. Do primeiro porque é um mesquinho preconceito. Da segunda, porque
sua obra verdadeiramente a dispensa(2004b, p. 347) e afirma que “não depende
dela e nem de nós”, sua obra esplende “agora, não mais na solidão de seu aquém-
Paranaíba’. Isto não lhe basta. Ela resplandece no universo dilatado da poesia
brasileira, e não força passagem. Não se pode mais dizer: este é o seu lugar”
(2004a, p. 31).
Observamos que a crítica ainda tem muitos caminhos a percorrer na estrada
que é Cora Coralina. Análises sobre elementos sociológicos em suas produções,
inserção no campo literário, relação com outros escritores, estratégias para a
distinção e aproximação do universo simbólico com a realidade ainda permanecem
praticamente inexploradas. Nossa intenção foi tentar avançar nesses caminhos e
conquistar respostas para compreender que retrato Cora Coralina constrói sobre seu
tempo e lugar? Até que ponto sua obra representa a sociedade do interior do país
com suas mazelas e conquistas? Que elementos significativos do ponto de vista
sociológico se destacam em seu legado?
Compete agora interpretarmos sua expressão literária observando em que
medida suas imagens fornecem pistas para responder a essas inquietações.
108
3
DAS CANTIGAS DO BECO: LITERATURA E SOCIEDADE
O que eu tenho feito na vida?
Apenas uma mulher que vai vivendo com o seu idealismo, a sua força e a sua coragem de dizer
algumas coisas que os homens gostariam de dizer e não têm a independência precisa, e eu com a
minha grande idade me sinto também libertada de dizer e de escrever o que está nos meus livros. (...)
Escrever é uma recriação da vida e recriando a vida eu me comunico também através do meu
imaginário, da minha recriação que entra na realidade da vida. Não invento, não sou uma criadora,
sou uma recriadora da vida. Essa é a marca mais viva do meu espírito. (...)
Leia de novo Cora Coralina. (...) O meu livro não foi escrito para uma leitura só, sem nenhuma
pretensão minha. Porque meus livros contêm uma coisa muito importante e que nem todos sabem
avaliar e extrair dela a poesia: meus livros têm a vida. Eu vivo o que escrevo. Eu sinto o que escrevo.
O que eu escrevo, meus poemas representam uma recriação da vida. E eu digo a você, releia Cora
Coralina (...) e promoverá um novo encontro com ela e talvez irá surpreender você. (...) No trabalho
de escrever poemas eu procurei sempre superar as minhas dificuldades. Eu procurei sempre aquilo
que me parecia inatingível. Fazer bem feito, procurei o melhor (...) e este desejo de fazer melhor, de
escrever melhor, de alcançar as geleiras humanas que nos rodeiam, derreter este gelo, levar a minha
comunicação poética até esses leitores. Tão arredios me parecem, tão alheios me parecem àquilo
que eu tirei de dentro de mim como sendo a minha própria vida, àquilo que me veio na ponta da
esferográfica como uma oferta divina. E, no entanto, parece que não alcanço o tanto que eu desejaria
alcançar. Mas mesmo assim o meu destino de escritora me leva a continuar. Eu queria não um elogio
para mim, mas a participação. Que participassem daquele meu emocional. Que eu pudesse quebrar o
gelo que sinto a minha volta.
Cora Coralina
(Programa Vox Populi, 1984)
109
O depoimento de Cora Coralina, em epígrafe, destaca a literatura como uma
forma de recriação. A poetisa tinha consciência de que os seus versos constituem
em uma fonte privilegiada de compreensão da vida social porque “têm a vida”,
“entram na realidade” e “representam uma recriação da vida”. A autora finaliza seu
desabafo congregando os leitores a uma participação, a um diálogo com sua obra,
tarefa que a partir deste momento procuraremos realizar.
Compete, desse modo, tentarmos no decorrer das avaliações obter respostas
a alguns questionamentos: Que vida é recriada por Cora Coralina? Quais as
experiências retratadas? Qual era a participação desejada pela poetisa?
Uma leitura dos significados fornecidos pela poesia de Cora Coralina conduz
à identificação de importantes aspectos da história e da sociedade goiana. A
longevidade da autora contribuiu para que sua obra manifestasse distintas
influências e retratasse elementos que, em conjunto, possibilitam recompor as
relações entre gêneros, classes e gerações, as disputas pelo poder, as
representações dos modos de vida, valores e crenças, enfim, as mediações entre os
indivíduos e a sociedade na qual esteve inserida.
As imagens tecidas através de sua criatividade ampliam as perspectivas de
análise das lutas travadas nos séculos XIX e XX no interior brasileiro e, num diálogo
entre texto poético e contexto sócio-histórico, denunciam e refletem entraves e
belezas, desnudando múltiplas e silenciadas nuanças da sociedade goiana
90
. Para a
compreensão desse imaginário, compete inicialmente estabelecermos as relações
entre a crítica literária e a análise sociológica, em sentido estrito.
De acordo com Bourdieu (1996b), a obra de arte deve ser compreendida a
partir das regras originárias no campo de sua formação. A arte não se constitui em
um terreno sagrado que deve ser mantido fora da avaliação científica. Cabe à
sociologia não um estudo estético, como o realizado pela crítica literária, e sim a
percepção dos processos que estão na base da composição artística. Mas como
seria essa análise sociológica da literatura?
Bourdieu combate a idéia da autonomia da literatura e da transcendência das
obras culturais, orientando que a análise científica da obra literária contribui para seu
90
Sobre suas criações a autora revela em entrevista: “São crônicas memoriais da minha cidade.
Verdades e mentiras, porque não sou historiadora, nem memorialista, apenas e sempre a história do
cotidiano. O cotidiano passado e a sua importância...” (VERAS, 1984).
110
enriquecimento. O autor descreve as tradicionais formas com que os analistas têm
tratado o texto literário, concluindo que mascaram as relações objetivas, ou seja, a
estrutura que determina a forma das interações.
A primeira vertente citada é a do mito fundador ou “projeto original”, que induz
à idéia de um intelectual onipotente. A representação carismática do autor como
criador deve ser superada através do estudo da gênese e da estrutura do espaço
cultural específico no qual o autor se inseriu e onde o seu projeto criador foi formado.
Outras críticas são lançadas às correntes de tradição estruturalista que
procuram estudar o fenômeno literário literariamente, buscando as condições da
experiência estética e investigando a essência da literatura sem referências
externas. Também critica a denominada crítica genética, por buscar a gênese do
texto no próprio texto. Esse formalismo, que privilegia as respostas auto-referenciais
(absolutização do texto), causaria um reducionismo que esconde as hierarquias e as
espécies de efeitos de dominação simbólica.
tendências que privilegiam as análises externas predispõem a ignorar a
lógica interna dos objetos culturais, contribuindo para o esquecimento dos agentes e
instituições que o produziram. Essa corrente, de influências marxistas, ao promover
atenção exclusiva às funções, realizaria o inverso do apregoado pela tradição
internalista. Segundo dispõe,
a eficácia dos fatores externos, crises econômicas, transformações cnicas, revoluções
políticas ou, muito simplesmente, demanda social de uma categoria particular de
comanditários, de que a história social tradicional busca a manifestação direta nas obras, não
pode exercer-se senão por intermédio das transformações da estrutura do campo que esses
fatores podem determinar (p. 232).
Conclui que a noção de campo permitiria superar a oposição entre leitura
interna e análise externa, sem perder as aquisições e exigências dessas
abordagens: “ocorre que a estrutura da obra, que uma leitura estritamente interna
traz à luz, ou seja, a estrutura do espaço social no qual transcorrem as aventuras
(...), é também a estrutura do espaço social no qual seu próprio autor estava situado”
(p. 17).
Orientação que estabelece pontos de contato com as análises de Antônio
Cândido (1976), ao entender que a compreensão das obras culturais deve ser
efetuada a partir da fusão texto e contexto, instâncias necessárias ao processo
111
interpretativo. A aproximação da forma e do conteúdo das poesias, com o contexto
em que foram produzidas permite, no método de ndido, relacionar a posição do
autor com a natureza das produções e, conseqüentemente, recuperar a organização
social da época através dos valores e ideologias expressos na obra.
O autor sustenta que a crítica literária deve abraçar o postulado de que o
externo (o social) só interessaria na medida em que se faz interno, em que se
integra à própria estrutura estética da obra.
Conforme apresentado na introdução deste trabalho, elegemos os
referenciais teórico-metodológicos de Cândido e Bourdieu, partindo do pressuposto
de que possibilitariam um efetivo exercício de investigação sociológica das obras
culturais: a idéia de campo possibilitaria desvendar o que Cândido define como
crítica - captar a estrutura social na estrutura da obra, ou seja, perceber como os
elementos exteriores à criação literária, como o meio e a sociedade, interferem na
estrutura interna da obra. Todavia, não é intenção da pesquisa promover a
investigação de todas as imagens que compõem o imaginário da autora, mas
daquelas que remetem a elementos sociológicos considerados significativos para a
proposta.
Como o contexto teria influenciado o texto poético e em que medida o texto
expressa esse contexto? As lutas travadas pela inserção, as preferências estilísticas,
a adoção de determinadas temáticas e personagens, dentre outras estratégias no
espaço de possíveis, constituem pistas para que encontremos essa resposta.
Partindo desse entendimento, descortinaremos a expressão literária de Cora
Coralina.
Depois de se ter reconstruído a trajetória social da literata e as lutas pela
inserção e distinção no campo de produção cultural, torna-se necessário agora
buscar compreender a obra de arte e, com efeito, pressupõe indagar “a visão de
mundo própria ao grupo social a partir ou na intenção do qual o artista teria
composto sua obra e que, comanditário ou destinatário, causa ou fim, ou os dois ao
mesmo tempo, ter-se-ia exprimido através do artista” (BOURDIEU, 1996b, p. 230)
por intermédio das transformações estruturais do campo em que tais produções
foram criadas. Interessa, portanto, observar como Cora Coralina pensou a sociedade
de seu tempo. Quais as temáticas e estratégias utilizadas? Quais os destinatários
principais ou privilegiados?
112
Para tanto, convém verificarmos as leituras promovidas pelos críticos,
resumidas na abordagem de Alencastro (2003), ao demonstrar que os mecanismos
acionados nos poemas de Cora constituem formas que possibilitam subverter a
ordem estabelecida, fornecendo novas leituras do homem e do mundo. Seriam
instrumentos de humanização do leitor, mesmo que, para tanto, a autora lhe mostre
o avesso, os arredores, os marginalizados. Desse modo
vê-se uma Cora que não se fez poetisa para louvar os grandes, os importantes, o poder
institucionalizado: Cora se fez poeta para lembrar à sociedade de Goiás que existe uma
periferia marginalizada. (...) A crítica social está pulsando nos poemas da escritora
denunciando uma sociedade estratificada e injusta. (...) A sua percepção não é a mesma da
infância; alteraram-se os juízos de valor. Portanto, a memória de Cora está amarrada à
memória do grupo, e ela procura soltar essas amarras legitimando os grupos marginalizados
da sociedade (p. 86-87).
A ressalva Este Livro, incluída em Poemas dos Becos de Goiás e Estórias
Mais, também indica o público a quem sua obra se dirige:
Este livro pertence mais aos leitores do que a quem o escreveu. Que o saiba sempre em
brochura, ao alcance de crianças, jovens e adultos, que mãos operárias repassem estas
páginas e sintam-se presentes, junto à mulher operária que as elaborou. Que possa
ultrapassar as cidades e alcançar a alma sertaneja, levando minha presença-terra aos
enxadeiros e boiadeiros que tanto me ensinaram. Que entre em casas de mulheres marcadas
de luz vermelha e leve a elas esta Mensagem do Evangelho: Disse-lhes Jesus: Em verdade
vos digo que publicanos e meretrizes entrarão na vossa frente no reino de Deus. Possa ser
lido nas prisões e levar ao presidiário a última página deste livro num apelo de regeneração e
na minha oferta de fraternidade humana. Tenha ele sempre uma apresentação simples e
sugestiva e, por muito tempo, possa viver fora das encadernações de luxo entre lombadas
hieráticas e dourados bonitos. Possa valer pelo seu conteúdo, sempre encontrado em bancas
populares e em balcões de livrarias seu preço ao alcance de um leitor modesto. Com o
tempo, lido, relido e trelido, rabiscado, amassado, arrancadas suas folhas, seja, num dia de
faxina geral, num auto de arrumação e limpeza, lançado numa fogueira e calcinado no
holocausto das chamas. Vai, meu pequeno livro. Que possa sobreviver à Autora e ter à glória
de ser lido por gerações que o de vir e gerações que vão nascer (Este Livro, PBG, p. 23-
24).
É relevante identificarmos o lugar onde ocorrem as relações descritas pelo
imaginário da poeta: a poesia de Cora Coralina é a poesia da cidade de Goiás. Não
como negligenciar o laço umbilical da “aquém-Paranaíba”. A poetisa deixa
transparecer sua opção no antológico poema Minha Cidade: “Goiás, minha
cidade...”, assim o inicia se revelando cúmplice das situações que descreve. A partir
desse entendimento, podemos ousar e dialogar com a definição de memória
topográfica de Willi Bolle (2000), formulada quando identificou na obra de Walter
Benjamin afinidades entre as estruturas da cidade e dos indivíduos que nela vivem.
113
Em suas interpretações, história, biografia e mitologia constituiriam fios de um
mesmo tecido a memória. A memória topográfica não reconstruiria os espaços
pelos espaços, eles se tornariam pontos de referência para captar experiências
sociais e espirituais.
A cidade de Goiás se transformou em palco para o estabelecimento dessa
memória repleta de significados, captados e reconstruídos por Cora entre um
exercício de afetividade e percepção crítica. Conforme ensina Machado (2002), a
cidade possui aspectos físicos e uma vida interior, num mecanismo contínuo que
funde a vida com sua configuração espacial. Dessa forma, os aspectos urbanísticos
constituiriam fio condutor para a compreensão do que a pesquisadora define como
cidade-vida, cidade-história, cidade-sociedade, cidade-cultura.
É em busca dessa cidade em suas múltiplas dimensões, que o presente
capítulo se desenvolverá. Pretendemos, a partir da análise de três poemas do livro
Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais (1965)
91
e de um poema inédito,
evidenciar as relações ocorridas na sociedade goiana e perceber o que a cidade e
seus habitantes têm a dizer através dos versos de Aninha.
Trilhar os caminhos de Cora é andar descalço nas pedras de sua cidade,
ouvir as casas cochichando umas com as outras, folhear um livro portador e
provocador de sentidos. De seus escritos emerge uma diversidade de elementos
importantes para a compreensão do mundo social. Porém, entendemos que, dentre
as cenas repletas de conteúdo sociológico, as imagens do beco se sobressaem no
imaginário da autora. Em vários poemas e contos a vida da cidade é traduzida a
partir da vida nos becos, dos personagens que nele residem e circulam, das
relações e reações que provocam como palco ou bastidor.
O beco se contrapunha ao largo. Enquanto os largos eram ligados pelas ruas
principais, onde viviam as famílias da sociedade reconhecida, os becos eram
construções para facilitar o acesso às ruas, geralmente surgindo na confluência dos
91
Respondendo a Vicente Fonseca (1982) o que a levou escrever seu primeiro livro, Cora afirma:
“Um impulso natural. Um impulso. Eu não procurei escrever, a escrita foi que me procurou. Eu o
procuro o termo, eu não procuro a frase, eu não procuro a palavra, eles é que me procuram. De modo
que eu dou de mim toda autenticidade que uma escritora pode dar. E não procuro nada, tudo é que
me procura: os assuntos, os motivos, as palavras, tudo isso me procura. Vêm na ponta da minha
esferográfica”. Em outro momento comenta sobre os seus sentimentos em uma época de
dificuldades: “Vocês analisem. Ficou dentro de mim e eu procuro dar uma expansão a isto porque isto
me sufocava, me prendia na garganta. Preconceitos familiares, preconceitos sociais, tudo me fazia
calar, mas um dia despedacei todos esses preconceitos”.
114
quintais e funcionando como repositório de tudo o que a sociedade desejava evitar.
O beco é o lugar a partir do qual Cora Coralina desvendou a vida da sociedade de
seu tempo.
Segundo Yokozawa (2002b), a memória em Cora Coralina é uma memória
espacializada, fossilizada no espaço, e o espaço mnemônico da poetisa seria o
espaço da cidade de Goiás, mesmo quando seus textos privilegiam outros rincões
brasileiros. Ao perscrutar a memória guardada pela sua cidade a literata teria
apreendido uma dimensão humana que desconhece fronteiras regionais, conferindo
à sua poesia uma dimensão universal. Observa que os becos constituem um dos
espaços de memória eleitos por Cora e conservam as estórias das “vidas obscuras”
resgatadas pela sua poesia:
Mesmo quando recupera outros espaços, quando percorre outra geografia que não a goiana,
pode-se dizer que a poesia coralineana é, metaforicamente, uma poética dos becos. É o que
acontece, por exemplo, quando Cora visita poeticamente o Palácio Conde dos Arcos. (...) No
paço, a poetisa encontra não os governantes de província que por passaram, mas o índio
carajá, um soldado civilizado que, um dia, tendo seus atavismos despertados por um trovão,
despiu a roupa e a civilidade e sumiu-se no rumo do Araguaia. É o que acontece também
quando Coralina percorre outros sítios, donde desentranha heróis como Lampião, Tiradentes,
os judeus errantes e o obscuro Campos Sales, não o ex-presidente, mas um negro
sobrevivente da Guerra do Paraguai (p. 10).
Abraçando essa orientação, serão aqui analisados os poemas Becos de
Goiás, Do Beco da Vila Rica e O Beco da Escola, publicados em 1965, e o poema
inédito Das Cantigas do Beco encontrado em um dos cadernos/diários da autora.
Pretendemos, assim, relacionar forma expressiva e temporalidade que, segundo
Machado (2002), possibilita refletir “sobre a construção do conhecimento a partir de
campos discursivos que se interpenetram tais como a ciência e a literatura” (p. 10).
115
3.1 BECOS DE GOIÁS: CENÁRIOS, PERSONAGENS E DESTINOS
Constatamos que os três poemas que integram a série sobre os becos, Becos
de Goiás, Do Beco da Vila Rica e O Beco da Escola, foram produzidos próximos de
sua publicação, em 1965. No acervo da poetisa existem referências que os sugerem
escritos após seu regresso, a exemplo da correspondência do escritor Tarquínio J.
B. de Oliveira, de 28 de maio de 1960, que solicita o poema “sobre o local onde
tempos existe uma galinha morta [Do Beco da Vila Rica]”.
Quando Cora retornou à cidade de Goiás, em 1956, e começou a gestar os
poemas que serão aqui analisados, os reflexos da mudança da capital para Goiânia
e do tradicionalismo ainda permaneciam vivos no imaginário dos moradores. Esse
fato pode ser observado na crônica O ntico da Volta e no poema Cora Coralina,
quem é você?:
A cidade-mãe nem me surpreendeu, nem me desencantou. Conservada, firme, bem
empostada, tem recatos de mistério, tem feitiço de prender. (...) Sentiu com altivez o
tremendo impacto da mudança. Não se despovoou nem se desagregou com a grande
espoliação. (...) E a gente da velha ala? Enraizada como velhas figueiras, agarrada às
tradições e aos encantamentos da terra, sustentáculos, colunas, e cariátides; embasamento,
concreto e arcabouço, amparo e anteparo da cidade frustrada. Velhas sentinelas que morrem
no posto de honra (O cântico da volta, VBG, p. 102-108).
Sobrevivi, me recompondo aos
bocados, à dura compreensão dos
rígidos preconceitos do passado.
Preconceitos de classe.
Preconceitos de cor e de família.
Preconceitos econômicos.
Férreos preconceitos sociais (Cora Coralina, quem é você? MLC, p. 84).
De acordo com Fraga (2005), a idéia de tradição comandou e comanda, até
hoje, as representações que os agentes sociais fazem da cidade de Goiás e de sua
vida coletiva, legitimando e autorizando o tradicionalismo portador de regras antigas
que retratam formas de vida e moldam classificações e hierarquias na busca pela
distinção. Sendo uma “dimensão da vida social, a tradição se impõe como um valor
da maior importância, porque não é apenas o passado: é, sobretudo, uma realidade
que confere estabilidade e continuidade ao modo de vida e à cidade” (p.37). As
famílias, por meio de seus nomes, se monumentalizam e pertencer ao pólo
dominante significa contar com a probabilidade de encontrar submissão de
116
determinado grupo de pessoas, por diversos motivos, inclusive hábitos
inconscientes” (p. 65).
A cidade de Goiás era constituída por uma sociedade em que o mundo oficial
era ditado pelas práticas conservadoras, das famílias que residiam nos largos e ruas
principais, que elegeram os becos como locais dos segregados. Colocados à
margem pelos dominantes os becos se constituíram na principal fonte de inspiração
de Cora Coralina. Alencastro (2003), ressalta que nos poemas de Cora a descrição
da cidade pela identificação do “eu poético” se efetua nos espaços, logradouros e
detalhes que não foram reconhecidos como os tradicionais marcos de Goiás,
contrariando a visão do elitismo e da monumentalidade. Assim, a poesia traduz o
ambiente a partir dos lugares onde viviam os dominados e “é significativa a
identidade de Cora com a cidade que não corresponde à do cartão postal. Ao
contrário, distancia-se da visão romântica da velha cidade e dirige seu olhar para os
espaços obscuros, esquecidos” (p. 91). Cora ao recriar poeticamente uma Goiás do
passado, também revela um Brasil recém republicano.
Goiás acompanhou os movimentos liberais e as mudanças sociais ocorridas
no país durante o século XIX de uma forma tímida. Segundo Palacin (1989), a
transformação do regime monárquico em republicano ocorreu sem grandes
dificuldades, que a abolição não teria afetado a vida econômica da Província. No
Brasil, o movimento republicano somente tomou corpo a partir de 1870, década de
transformações socioeconômicas: surto cafeeiro, impulsos à industrialização,
incremento à imigração européia, urbanização, dentre outras. Mas em Goiás, graças
a sua estrutura sócio-econômica e cultural, as manifestações republicanas foram
tardias e inexpressivas. Na República, a idéia de atraso ganhou uma dimensão mais
política do que econômica. Para Chaul (2002), o Estado seria o representante
memorial desse atraso e a pecuária o meio para sair do marasmo provocado pela
decadência da mineração.
O estudo de Campos (2003), destaca algumas características que
possibilitam construir um retrato de Goiás na Primeira República a partir da
economia, demografia, situação geográfica e de comunicação. O autor afirma que a
economia goiana, nesse período, possuía a pecuária como elemento fundamental.
Aliado a essa principal atividade econômica, o fato da população se concentrar na
área rural, contribuiu para que o Estado se tornasse agrário por excelência. Goiás
117
possuía uma inexpressiva população, com uma pequena parcela vivendo em vilas
ou pequenas cidades.
A própria localização geográfica contribuiria para o isolamento, em um país de
economia de exportação, quase sem mercado interno, com dificuldade de
comunicação e transporte. Campos, afirma que esse conjunto de fatores, somado à
pequena bancada de representantes federais, reforçam a situação de periferia, de
marginalização do Estado. Todavia, dentro de um país marginal, e de um Estado
marginal, Cora Coralina opta por contar a história de seu tempo e lugar a partir de
um local e de personagens também periféricos.
Em Becos de Goiás, poema que abre a sua série, a literata revela o amor que
devota a esse local obscuro e homenageia todos os becos da cidade, locais
destinados aos “destituídos” da história e do espaço. Cora proporcionou a descrição
- estreita fisicamente e larga imageticamente – desse cenário:
Beco da minha terra...
Amo tua paisagem triste, ausente e suja.
Teu ar sombrio. Tua velha umidade andrajosa.
Teu lodo negro, esverdeado, escorregadio.
E a réstia de sol que ao meio-dia desce, fugidia,
e semeia polmes dourados no teu lixo pobre,
calçando de ouro a sandália velha,
jogada no teu monturo.
Amo a prantina silenciosa do teu fio de água,
descendo de quintais escusos
sem pressa,
e se sumindo depressa na brecha de um velho cano.
Amo a avenca delicada que renasce
na frincha de teus muros empenados,
e a plantinha desvalida, de caule mole
que se defende, viceja e floresce
no agasalho de tua sombra úmida e calada.
Amo esses burros-de-lenha
que passam pelos becos antigos. Burrinhos dos morros,
secos, lanzudos, malzelados, cansados, pisados.
Arrochados na sua carga, sabidos, procurando a sombra,
No range-range das cangalhas.
(Becos de Goiás, PBG, p. 92)
A escritora define o beco como um lugar que provoca evocações negativas:
triste, ausente, sujo, sombrio, velho, pobre, úmido e escorregadio. Porém, o beco
desperta o seu amor pelo que congrega de belo em meio à degradação e pela vida
que contém: a que renasce e que busca sobreviver a despeito de sua fragilidade e
118
das condições desfavoráveis. Em entrevista a Vicente Fonseca (1982), Cora
Coralina fornece pistas sobre o que o lixo nos becos de Goiás pode revelar:
Meus meninos. O que vocês vêem aqui? Lixo? E o que é o lixo? Tudo o que está no lixo aqui
veio da terra como utilidade. Entrou nas casas, ficou nas ruas e para a terra volta. Volta e
retorna para a vida. Retorna para a cidade. E você receberá ele um dia numa taça de
morangos. No lixo existe a poesia, a poesia da vida, porque no lixo repugnante que você
torce o rosto e desvia o olhar está uma vida. Milhões de vidas estão aqui trabalhando para
transformar toda esta matéria orgânica em matéria inorgânica, em matéria de adubo para a
terra de onde veio e onde tem que voltar e voltará para vocês em frutos, em flores, em
morangos que vocês gostam tanto. (...) Um poeta parnasiano do passado conversava com as
estrelas. Foi coisa linda do tempo. Converse você poeta desses tempos novos, converse com
as sementes e as folhas caídas que pisa distraído. (...) Quem fala esta mensagem é a mulher
mais antiga do mundo que entende a fala e a vida de um monte de lixo que no outro lado
da janela da Casa Velha da Ponte, do outro lado do rio. (...) O que é ser poeta? Eu digo: o
poeta é aquele que olha um monte de lixo e tira desse monte de lixo a poesia da vida, da vida
do lixo.
Também remete a um ambiente onde apesar de reinar a ausência e o
abandono, era capaz de fornecer condições para que os burros-de-lenha
executassem suas atividades.
Nos séculos XVIII e XIX, os principais meios de transporte utilizados em
Goiás eram os animais cargueiros (burros e mulas) e o encarregado por conduzi-los
era denominado tropeiro. As poucas estradas existentes no país eram transitadas
por carros-de-boi, carruagens e, principalmente, por cargueiros. Com o advento das
ferrovias e do transporte automotor, essas viagens de longa distância não mais se
justificavam e os tropeiros se resumiram ao cumprimento de funções consideradas
domésticas ou aos pequenos serviços: “carregar o carro, jungir os bois, pegar na
despensa da casa grande mantimento para a viagem, - quatro dias ida e volta,
receber a lista das encomendas” (O longínquo cantar do carro, VC, p. 97). Atividade
essencialmente masculina, constituiu por muitos anos fonte de renda de
trabalhadores que vendiam nas cidades leite, verduras, cereais e feixes de lenha.
Na cidade de Goiás, era comum o dito popular quem não governa a lenha,
não governa a casa que tenha” delimitando o universo da mulher na sociedade e
legitimando o acesso dos lenheiros às casas de “conceito”. Esses trabalhadores
assumiram a função de estreitar os laços da cidade-vida, efetivando a ponte entre o
mundo marginal e o mundo oficial. Os becos que, a princípio, foram criados apenas
para encurtar as distâncias, transformaram-se em locais para a circulação de
119
serviçais e animais. E entre evocações negativas e declarações de amor, a autora
identifica um primeiro personagem do beco:
E aquele menino, lenheiro ele, salvo seja.
Sem infância, sem idade.
Franzino, maltrapilho,
pequeno para ser homem,
forte para ser criança.
Ser indefeso, indefinido, que só se vê na minha cidade.
Amo e canto com ternura
todo o errado da minha terra.
(Becos de Goiás, PBG, p. 93)
O menino lenheiro circula pelo beco desenvolvendo sua atividade cotidiana e
a poetisa ao descrevê-lo denuncia as conseqüências das relações de trabalho em
Goiás.
No Brasil, a partir do século XX, os programas sociais instituídos enfocavam o
trabalho de crianças e adolescentes como estratégias de combate às formas de
marginalidade. Segundo relata Marin (2004), tais idéias mantinham, de certo modo,
as concepções historicamente construídas sobre a infância pobre e, na história
social da criança brasileira, consolidou-se a ideologia da existência de duas
vertentes possíveis para essa infância: a marginalidade ou o trabalho.
Diante da constante insegurança e da falta de recursos, as famílias não
deixavam de utilizar o trabalho de seus filhos em serviços agrícolas ou urbanos.
Analisando a situação atual do trabalho infantil em Goiás, o autor afirma que a
ineficiência das políticas públicas para a erradicação do trabalho infantil contribui
para que as crianças continuem trabalhando e ao entardecer “vêem-se, nas cidades
do interior de Goiás, crianças vendendo sucos, doces ou picolés, engraxando
sapatos ou prestando serviços em oficinas mecânicas, elétricas ou serralherias,
dentre outras” (p. 35). Desse modo, as ações confrontam-se com uma realidade
complexa e dificilmente conseguem sustentar o discurso da infância como idade do
não-trabalho, pois geralmente se esquecem que a precarização das relações de
trabalho, o desemprego, o subemprego e as condições escolares atingem toda a
família, sacrificando seus integrantes.
Um dos trabalhos dos jovens e crianças no interior goiano foi o de lenheiro.
Para aumentar a renda familiar os meninos entregavam os feixes de lenha nas
120
residências e, conforme descreve Cora Coralina, perdiam sua infância tornando-se
seres indefinidos: “forte para ser criança e pequenino para ser homem”.
A poetisa em diversos momentos relata as idéias dominantes com relação ao
trabalho infantil em Goiás: “Entre os adultos, antigamente, a criança não passava de
um pequeno joguete. (...) Mal chegava aos quatro, cinco anos, tinha qualquer
servicinho esperando. Bem diziam os mais velhos: ‘serviço de criança é pouco e
quem o perde é louco’” (Criança, VC, p. 106). “Leitura de papé não enche barriga.
Leitura em pobre é o mesmo que esquipado em égua. Coisa perdida, diziam eles, e
nisso ficavam” (Contas de dividir e trinta e seis bolos, TCV, p. 24).
Em meio a essa problemática, surge uma idéia-chave na trama: o beco como
lugar onde vive e ocorre o considerado “errado” pela sociedade estabelecida.
Tornou-se um espaço marginal e sua poética inova ao atribuir-lhe um valor até então
negado. De acordo com Silva (2003), ao compor o quadro geográfico e social de
Goiás, a poetisa analisa os espaços de poder e os espaços de marginalidade,
porém, se fixa nos últimos. A autora identifica que, assim como Cora Coralina,
Manuel Bandeira também escreveu um poema que fala sobre o beco: o define como
“espaço de excelência de sua atenção: (...) ‘Que importa a paisagem, a Glória, a
baía, a linha do horizonte? O que eu vejo é o beco’” (p. 232) destacando um
movimento importante na literatura brasileira a partir dos anos 30 em que ocorreu
uma mudança das temáticas principalmente na poesia. Segundo relata, os escritores
passaram a evidenciar os problemas, injustiças e desigualdades fazendo poesia a
partir da dureza e da marginalidade. Citando Antônio Cândido, expõe como
características do período a fusão entre a libertação do academicismo, dos
recalques históricos, do oficialismo literário, o ardor de conhecer o país e as
tendências de educação política e reforma social.
A imagem do beco evidencia a consciência crítica
92
da poetisa. É o relicário
da história e, por isso, os sentimentos provocados para intitular seu primeiro livro
Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. A partir dos becos, Cora construiu as
92
Sendo inquirida se o poeta deveria assumir uma posição crítica diante do mundo e da sociedade de
seu tempo Cora Coralina respondeu: Meu amigo, eu tenho a minha posição. Não sei se os outros
poetas têm a sua. Neste meu livro, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, por exemplo, está a
minha posição, a assumida, sem interferências e sem pedidos. Estou sempre documentando a vida
em minha poesia. Não gosto de mentiras. Se não posso dizer a verdade inteira, digo a meia-verdade”
(MORAIS, 1981, p. 18) .
121
outras estórias e histórias revelando Goiás cidade e Estado para além da Serra
Dourada e dos limites do Paranaíba.
Mais do que matéria para poesias, os becos sempre estiveram presentes no
cotidiano dos moradores da cidade de Goiás. A cidade foi reconhecida pela
UNESCO como Patrimônio Mundial por representar um testemunho da ocupação e
da colonização do interior do Brasil. Nos critérios apresentados na Proposta de
inscrição da cidade de Goiás na Lista do Patrimônio Mundial (BRASIL, 1999), sua
concepção urbana seria um exemplo típico de cidade colonial adaptada às
particularidades do ambiente com a utilização de materiais picos da região na
formação um conjunto único. Traduziria o modo de vida adotado pelos exploradores
e fundadores de cidades portuguesas e seria o último testemunho da ocupação do
Brasil da forma praticada nos séculos XVIII e XIX. Nesse entendimento, Goiás
possui uma estrutura urbana e arquitetônica típica das populações da América do
Sul, sendo o primeiro núcleo oficializado e a primeira vila a se organizar a oeste da
linha demarcatória do Tratado de Tordesilhas, influenciando toda uma região e
constituindo testemunho de um período fundamental da história brasileira.
Segundo Coelho (1999), na estruturação da cidade de Goiás existem vários
elementos que contribuíram para que o espaço se organizasse da forma como se
encontra atualmente. Tais elementos seriam característicos do modo habitual de
organização das cidades no território da metrópole, com influências de origem
européia cristã e árabe. As ruas teriam sido definidas a partir da construção dos
edifícios de parede-meia
93
que acompanhavam as ondulações do terreno e
formaram uma organização própria com marcantes influências portuguesas. Como
conseqüência dessa organização, encontram-se ruas irregulares interligadas entre si
por becos muitas vezes sem saída, geralmente atendendo à parte posterior ou de
serviço das residências.
Para o autor, o traçado de Goiás, apesar de irregular mantém uma certa
coerência e, definindo as prováveis influências arquitetônicas, revela que os becos
estão mais próximos da arquitetura árabe denominada adarve do que de qualquer
elemento ocidental. Citando Goitia, descreve que o adarve seria a negação da rua
como valor estrutural, visto que não tem saída, nem continuação, servindo apenas
93
Casas parede-meia, geminadas ou gêmeas: referência à parede divisória, entre prédios contíguos,
pertencente em comum aos proprietários dos dois imóveis.
122
ao interesse privado, compreendido como o conjunto das casas em cujo interior se
penetra através de sua passagem. Originalmente os becos teriam a função de
atender um número restrito de residências como acesso de serviço.
Formados por detrás das ruas principais, funcionavam urbanisticamente como
solução para a existência das extensas quadras e entrada de serviçais e animais. Os
becos ligavam ruas e eram ladeados pelos muros dos quintais e, em algumas
situações, possuíam a função de escoamento das águas de rios e córregos. Muito
comuns em Goiás, e nas demais cidades coloniais brasileiras, foram inventariados e
imortalizados por Cora Coralina:
Becos da minha terra,
discriminados e humildes,
lembrando passadas eras...
Beco do Cisco.
Beco do Cotovelo.
Beco do Antônio Gomes.
Beco das Taquaras.
Beco do Seminário.
Bequinho da Escola.
Beco do Ouro Fino.
Beco da Cachoeira Grande.
Beco da Calabrote.
Beco do Mingu.
Beco da Vila Rica...
(Becos de Goiás, PBG, p. 93)
Na maioria das vezes, recebiam o nome dos moradores mais expressivos ou
de sua característica mais marcante. As denominações se referiam a questões
geográficas, a exemplo dos becos das Taquaras, do Mingú, do Ouro Fino, da Água
Férrea e da Cachoeira Grande; de moradores ilustres ou instituições neles
existentes, como os do Antônio Gomes, do Sócrates, dos dicos, do Teatro, do
Quartel, da Matriz, da Escola e do Seminário; de seu formato como o Beco do
Cotovelo, e de lendas e costumes como os becos do Calabrote e da Vila Rica.
Sobre os nomes dos becos, Cora Coralina realiza algumas apreciações em
duas produções do livro Villa Boa de Goyaz. No conto No Gosto o Povo afirma que
Em Goiás tudo é velho: as casas, os telhados, as igrejas, os muros, as ruas e os becos. (...)
Também os becos faltam placas com os seus devidos nomes, enquanto que por um
malabarismo verbal viram travessa como se a palavra beco tivesse conotação menos
gramatical e honesta. (...) Assim, proponho como reverência do passado que nesta cidade de
Goiás (...) que o beco volte a ser beco na placa indicativa e largo deixe de ser praça e volte
aos seus nomes de tradição no gosto do povo (VBG, p. 73-75).
123
Já no poema Mutações descreve a mudança dos nomes de ruas e becos:
Muita rua da cidade
mudou de nome.
Rintintin – mudou de nome.
Chafariz – mudou de nome.
Rua Nova – mudou de nome.
Detraz da Abadia também.
Beco virou travessa.
Outras nem nome têm.
Rua do Fogo se apagou,
nas vielas não se toca.
Beco da Morte é pecado.
Do Cotovelo é suspeito.
Rua Joaquim Rodrigues
virou 13 de maio,
passou pra Joaquim de Bastos.
Não sei onde vai parar
tanta mudança de nome.
Mudar nome de rua é fácil.
Mudar jeito de rua, não.
Dar calçamento e limpeza
é coisa muito impossível.
Só não mudou de nome em Goiás
o Beco da Vila Rica.
Por ser muito pobre e sujo
contrário lhe assenta o nome.
Se há de ser beco do sujo pobre
seja mesmo da Vila Rica
com toda sua pobreza (p. 19-21).
No livro Memórias e Belezas da cidade de Goiás (1958), o escritor Goiás do
Couto também retrata os becos como portadores de memórias e identidades:
Juntando pedaços do mosaico spar de memórias, vamos pervagar na sonoridade quase
doméstica de nomes de alguns recantos da cidade. (...) Sonora e típica é a nomenclatura das
ruas e, de tanto nelas ouvir falar-se, com a mesma nos habituamos e somente ante o curioso
espanto do forasteiro, num ponderado trabalho de análise, começamos a encontrar seu sabor
genuíno. (...) Não fica apenas nisso a seqüência de nomes sugestivos porque os retorcidos,
acanhados e filamentosos becos do Cisco, da Vila Rica, do Mingú, do Cotovelo, do Canivete,
das Taquaras, das Violas, também se fazem presentes (p. 12-14).
O estudo de Jardim (2001), A geografia poética da memória popular: leitura
dos nomes e codinomes de ruas, becos, largos, praças e travessas da cidade de
Goiás, fornece significativas informações sobre a relação entre os nomes oficiais e a
toponímia popular. Segundo afirma, desde a época colonial o primeiro nome
recebido pelos logradouros, antes da denominação oficial, se originava de um
apelido ou codinome, muitos dos quais vigoram atualmente. A oficialização dos
nomes, resultante do jogo pelo poder, tenderia a silenciar a história popular e, na
124
maioria das vezes, buscava afastar os codinomes por questões políticas, conferindo
às ruas denominações distantes da realidade da população. A autora compreende
serem os codinomes locais privilegiados para a leitura dos modos de vida e
representações de uma sociedade.
Mas que história ou histórias contam os becos?
Conto a estória dos becos,
dos becos da minha terra,
suspeitos... mal afamados
onde família de conceito não passava.
“Lugar de gentinha” – diziam, virando a cara.
De gente do pote d’água.
De gente de pé no chão.
Becos de mulher perdida.
Becos de mulheres da vida.
Renegadas, confinadas
na sombra triste do beco.
Quarto de porta e janela.
Prostituta anemiada,
solitária, hética, engalicada,
tossindo, escarrando sangue
na umidade suja do beco.
(Becos de Goiás, PBG, p. 93-94)
Cora Coralina revela o beco como lugar de história e de marginalização.
Tornou-se repositório dos marginais e, por isso, deveria ser evitado, que aliava ao
cenário pobre, periférico e antiestético, personagens considerados de hábitos,
valores e costumes reprováveis. Dessa forma, não era recomendável às “famílias de
conceito” o trânsito nesses espaços estigmatizados.
Ao contar a história dos becos “lugar de gentinha” a poetisa encontra um
ponto de observação privilegiado da sociedade de seu tempo que não coincide com
o adotado pela história oficial. Identifica-se com os pobres, os doentes, com a mulher
da vida, enfim, com os “obscuros”.
Todavia, os becos passaram a ter outra finalidade que superou a de simples
acesso de serviço. A estagnação econômica em virtude da decadência da
mineração, da crise do sistema oligárquico e, posteriormente, da mudança da capital
para Goiânia
94
contribuiu para que a considerada “boa sociedade” parcelasse seus
94
Relatando a decadência da cidade no início do século XX, Cora dizia: “O último problema do
empobrecimento desta cidade, foi a mudança da capital para Goiânia, eu o estava presente, mas
compreendi melhor o problema do que os próprios que estavam aqui presentes, por causa dessa
parte sutil, dessa minha percepção. A parte sensível, não quero saber poética. Quero saber a parte
sensível. A parte da minha sensibilidade independe de poesia” (FONSECA, 1982).
125
terrenos. Pequenas casas foram construídas no fim de alguns quintais onde havia
apenas muros e portões e lentamente se transformaram em locais dos
marginalizados e destino de ações condenadas pela moralidade dominante.
Segundo observa Palacin (1989), as três primeiras décadas do século XX não
promoveram grandes modificações na situação a que Goiás havia regredido: lugar
isolado, pouco povoado, rural e com economia de subsistência. A cidade de Goiás
“era uma cidade em decadência. Não aumentava, nem diminuía” (p. 94). A
transferência da capital para Goiânia, em 1933, teria contribuído para que a antiga
capital se estagnasse e
a velha Goiás representava o exemplo de como não devia ser uma capital. A Goiás Velha era
vista como uma antítese dos tempos, o buraco do sertão goiano, paciente em fase terminal. A
velha Goiás estava velha demais para uma plástica eficiente. Suas rugas no espelho do
tempo serviam de demonstração não valorativa (CHAUL, 2002, p. 233).
Os becos que anteriormente serviam como meio de passagem e entrada de
serviço, com a construção das residências isoladas ou distanciadas, tornaram-se
locais de transgressão, conflito e desordem. Discorrendo sobre as relações ocorridas
no espaço da cidade de Goiás, Souza Filho (1987) relata:
Beco este que terminava numa pequena praça, apelidada de “Covil das Mariposas”. Todas as
casas foram construídas por Dr. José Neto de Campos Carneiro, que as alugava para
soldados e mulheres de vida livre. Era reduto das “prostitutas baratas” e local de
constantes desordens e crimes (p. 116, grifos meus).
Compreender a sociedade goiana retratada na obra de Cora Coralina consiste
em reconhecer suas divisões, perspectivas e códigos urbanos: a cidade separada
por ruas e largos, expostos, em que foram edificadas as igrejas, os monumentos
civis e onde residiam os possuidores de maior capital social e por becos, locais
desprezados, repositórios de lixo, com casas pobres, escondidas no fundo dos
quintais, para onde eram “empurrados” os personagens citados na obra da poetisa -
pobres, deficientes mentais, negros, desempregados, desenganados, subversivos,
obscenos, malandros e prostitutas sem prestígio. Essa demarcação contribuiu para
que, no imaginário da cidade, os becos fossem associados ao desconhecido, a um
local em que ocorriam coisas do “outro mundo”:
126
Becos mal assombrados.
Becos de assombração...
Altas horas, mortas horas...
Capitão-Mor – alma penada,
terror dos soldados, castigado nas armas.
Capitão-mor, alma penada,
num cavalo ferrado,
chispando fogo,
descendo e subindo o beco,
comandando o quadrado – feixe de varas...
Arrastando espada, tinindo esporas...
(Becos de Goiás, PBG, p. 94)
Ao avaliar as cidades interioranas do Brasil como categoria passível de
investigação social a partir de sua arquitetura, Roberto da Matta (1997) afirma que o
espaço se confunde com a ordem social de forma que “sem entender a sociedade
com suas redes de relações sociais e valores, não se pode interpretar como o
espaço é concebido. Aliás, nesses sistemas, pode-se dizer que o espaço não existe
como uma dimensão social independente e individualizada” (p. 30). O autor pontua
que, muitas vezes, as expressões que designam bairros e ruas exprimem regiões
sociais convencionais e locais, indicando antiguidade ou sugerindo segmentação
social e econômica. Nesse entendimento, ressalta que a diversidade de espaços e
temporalidades convivem simultaneamente tornando-se característica da sociedade
brasileira. Assim
cada sociedade ordena aquele conjunto de vivências que é socialmente provado e deve ser
sempre lembrado como parte e parcela do seu patrimônio como os mitos e narrativas -,
daquelas experiências que não devem ser acionadas pela memória, mas que evidentemente
coexistem com as outras de modo implícito, oculto, inconscientemente, exercendo também
uma forma complexa de pressão sobre todo o sistema cultural. Daí podemos falar de coisas
que foram tão ruins que nós “não gostamos nem de nos lembrar delas”; e de modo inverso
– de coisas que amamos recordar (p. 36-37).
Da Matta descreve espaços considerados problemáticos como as regiões
pobres e de meretrício afirmando que, geralmente, são regiões periféricas
escondidas por tapumes, jamais concebidas como permanentes ou complementares
às áreas nobres, mas como locais de transição.
A cidade deve ser pensada através das formas com que os agentes se
organizam e se apropriam de seu espaço físico. Desse modo, são as
representações mentais que os agentes produzem sobre ela, enquanto localidade
produtora de “províncias de significado” e “regiões morais”, importantes mecanismos
127
para a observação das relações travadas em seus cenários e, os territórios de
sociabilidade, lócus de sentidos produzidos por uma determinada comunidade.
De acordo com Park (1973), o conceito de região moral é necessário para
observar as formas com que os agentes se relacionam entre si no ambiente urbano.
Os becos podem ser definidos como uma região moral, ou seja, uma região onde
prevalece um código moral divergente. O local exerceria poder determinante sobre
os indivíduos “desviantes”, reforçando a sua identidade marginal. Identidade definida
pela forma com que as pessoas desempenham seus papéis em ambientes
determinados. Para Marques (2003),
podemos pensar a cidade em termos de províncias de significado mais ou menos
demarcadas que possui, através dos tipos de sociabilidade que comporta. Como exemplos
temos parques, praças e jardins, espaços de sociabilidade lúdica e práticas esportivas;
trechos de bairros repletos de bares, restaurantes e lanchonetes, locais boêmios ou noturnos
por excelência; lugares caracterizados pos shoppings, lojas e galerias ou ainda pelos tipos de
serviço que oferecem; outros por casas de espetáculo, bingos etc; regiões caracterizadas
pela presença do tráfico de drogas e da prostituição; também bairros apenas tidos como
residenciais; e por fim, espaços de passagem, que muitas vezes comportam o trânsito
entre estas diversas regiões morais. (...) Existe uma certa ordenação mesmo não sendo
explícita – dos espaços da cidade quanto aos usos e às sociabilidades que comportam, ainda
que sejam interpretados simbolicamente de diferentes maneiras pelas pessoas que os
habitam (p. 10).
Em Goiás, a vida dos moradores dessas províncias de significados que são
os becos, evidenciava a falta de perspectivas melhores:
Mulher-dama. Mulheres da vida,
perdidas,
começavam em boas casas, depois,
baixavam pra o beco.
Queriam alegria. Faziam bailaricos.
- Baile Sifilítico – era ele assim chamado.
O delegado-chefe de Polícia – brabeza –
dava em cima...
Mandava sem dó, na peia.
No dia seguinte, coitadas,
cabeça raspada a navalha,
obrigadas a capinar o Largo do Chafariz,
na frente da Cadeia.
Becos da minha terra...
Becos de assombração.
Românticos, pecaminosos...
Têm poesia e têm drama.
O drama da mulher da vida, antiga,
humilhada, malsinada.
Meretriz venérea,
Desprezada, mesentérica, exangue.
Cabeça raspada a navalha,
128
castigada a palmatória,
capinando o largo,
chorando. Golfando sangue.
(Becos de Goiás, PBG, p. 94-95)
Registrando os personagens que habitavam os becos, a poetisa destaca o
drama das “mulheres da vida”, revelando as razões que as levaram a “cair na vida”.
Cora Coralina demonstra em contos e poesias que as mulheres avessas ao trabalho
doméstico ou às atividades destinadas ao universo feminino como as de lavadeira,
carregadora de água, empregada, dentre outras, quando abandonadas pelo marido
ou se contrapunham às convenções sociais (gravidez fora do casamento ou
concubinagem), eram entregues à sua própria sorte e, freqüentemente, tornavam-se
prostitutas.
Dois contos do livro Estórias da Casa Velha da Ponte descrevem os possíveis
motivos que levavam as mulheres para a prostituição. Convém destacar que quando
não possuíam condições de freqüentarem os cabarés ou as renomadas casas de
prostituição da cidade, a alternativa encontrada era abrir uma casa no beco. Em
Minga, Zóio de Prata a autora assim teceu a trama:
Eram elas as senhoras-donas, ali no beco do Calabrote. Quem transitasse pelo beco, tivesse
cuidado... Passasse quieto e bonzinho. Não se engraçasse nem fizesse cara de pouco. E
quem fosse de entrar, empurrasse a porta de dentro, com fala curta e dinheiro pronto.
Escândalo de mulher-dama não dava, nunca deu; também, nunca foram levadas, como
tantas, para capinar na frente da cadeia. Família de respeito podia passar toda hora, não via
nada. Macho, porém, que não se fizesse de besta... Eram donas e autoridades no beco. O
beco era delas. E tinham prestígio. Duas irmãs, morando juntas na mesma casa, de porta e
janela aberta aos homens que quisessem entrar; isso a io de Prata. a Dondoca, tinha
seu homem e era pontual a ele só (ECV, p. 13).
Em Miquita, Cora relata:
Miquita foi moça como toda moça. (...) Casou-se mesmo, de palma e capela, que a mãe era
lavadeira e caprichava com a filha. Tempos depois, o marido a largava sem dizer nada, abria
no mundo e nunca mais deu ligação. Miquita, nova e sozinha, da beira do rio, onde
passara a morar com a mãe, que aquela vida de bater roupa nas pedras não era de gente
moça, resvalou para o beco onde abriu porta. (...) O ofício não dava a ela nem para o aluguel
do quarto sujo (p. 49).
As mulheres que possuíam algum prestígio abriam ou integravam casas de
prostituição em locais mais afastados e eram financiadas por seus clientes, na
maioria políticos, policiais e membros das famílias então dominantes; para as
destituídas de proteção restavam os becos. Alencastro (2003) escreve que esses
129
locais problemáticos eram preferencialmente constituídos em regiões pobres, as
periferias, arredores do centro, e que em Goiás possuíam as denominações de
becos, “zona” ou “rua da lama”.
Lugares estigmatizados abrigavam personagens que buscavam alegria e
queriam viver livremente, mas que eram duramente reprimidos por incomodarem os
padrões ditados pela moral dominante, cujo universo era representado pelo mundo
da visibilidade e, por isso, o largo passou a constituir o ambiente onde os castigos e
punições deveriam ser realizados: “cabeça raspada a navalha, obrigadas a capinar o
Largo do Chafariz, na frente da cadeia”.
As condições apontadas pela poetisa se encontram com as lições de Foucault
(1997), em Vigiar e punir, quando estudou as instituições penais, o terror e as
imagens formuladas pelo sofrimento. Os castigos, punições e penas constituiriam
parte de um ritual em que o sofrimento seria estabelecido em uma forma
diferenciada, através do poder de punir e seus excessos. O terror se manifestaria a
partir de uma série de instituições e discursos que responderiam ao exercício do
poder em um determinado momento histórico. Para o autor, a “sociedade disciplinar”
não se resumiria à imposição de castigos e limites, mas pelo adestramento de
corpos, os denominados “corpos dóceis” em padrões de normalidade, instituindo a
dominação por meio da vigilância e da punição sobre o intelecto, a vontade e as
paixões dos indivíduos.
Em suas análises, o isolamento ocasionaria a ruptura das trocas entre os
seres. Os processos de vigilância e punição apresentariam algumas conseqüências
importantes como um germe de controle onde todos vigiam e são vigiados
concomitantemente; a existência de uma relação entre a vigilância, a depredação e
a punição; a diferenciação de comportamentos individuais definindo os exemplos a
serem seguidos e desprezados; e os mecanismos de punição e vigilância como
formas de padronização e controle.
A punição, assim como a destinada às personagens retratadas na poesia,
funcionaria como modo de promover a segregação a partir da identificação das
aptidões e comportamentos e meio de instituir pressão, visando que todos os
“destoantes” se submetessem a um mesmo modelo de subordinação e passividade.
A imagem da “mulher da vida” na cidade de Goiás era comumente associada
à repressão e à doença. De acordo com Karasch (1999), a sífilis foi a doença mais
130
comum nas cidades mineradoras do culo XVIII onde a prostituição e a
concubinagem eram comuns. Consultando relatos de governantes e de autoridades
eclesiásticas, a pesquisadora detectou queixas constantes sobre a falta de
moralidade sexual em Goiás.
No estudo de Bittar (2002), a prostituição é retratada como uma das
atividades importantes à análise da formação do povo goiano e, citando o viajante
Saint-Hilaire, ressalta que no século XIX havia em Goiás um impressionante número
de cabarés. Bittar amplia as informações descritas pelos poemas de Cora ao citar
um trecho do inventário de Antônio Ferreira Dourado em que o titular havia
emprestado “vinte e tantas oitavas de ouro a Anacleta Maria, mulher meretriz, para
sair da cadeia, por intervenção do Procurador das causas de Vila Boa” (p. 64).
Estudando as relações da sociedade goiana acena supostas justificativas à
permissividade sexual:
Com a fixação da população e com a perpetuação do isolamento, cristalizam-se valores e
costumes, uma vez que o isolamento impede a chegada de novas idéias e induz as novas
gerações a repetirem o exemplo das antigas. Consolida-se, assim, com o beneplácito social e
com a cumplicidade do isolamento, o ‘relaxamento dos costumes’ e a ‘libertinagem’, fazendo
dessa realidade sim fator dificultador para a vinda da mulher branca de ‘bons
costumes’. (...) O isolamento atrai pessoas que querem se esconder e afugenta as que
querem se relacionar. O isolamento de Vila Boa constitui uma oportunidade para a
cristalização de comportamentos que escondem, na sua origem, uma razão para além do que
é visto. Isto porque, além da esperança de enriquecimento fácil, através do ouro, a cidade
acena, também, com a possibilidade de uma vida mais desregrada para aqueles que fogem
de regras sociais rígidas. (...) Ao estabelecer que a sexualidade não é proibida, a sociedade
vilaboense permite que a mulher desenvolva características que atendam a tal situação.
Portanto (...) é forjada sob a pressão de esquemas definidores que valorizam, recomendam e
impõem a fixação da identidade em moldes de permissividade sexual, desenvolvendo, a partir
daí, a liberdade interior que se manifesta nesse período e em tempos vindouros (p. 73-74).
De acordo com Lima (2005), são raros os estudos sobre a participação da
mulher na história de Goiás e, os historiadores, ainda não deram a elas o crédito
devido, resumindo sua participação nas entrelinhas da historiografia. À mulher eram
negados os prazeres do sexo, os sonhos e vontades e, quando adolescentes, se
tinham qualquer sentimento por alguém que não fosse da família escolhida para o
casamento, “eram confinadas em casa. Saíam apenas na companhia dos pais e seu
lazer eram as visitas familiares e as idas à igreja. Às vezes eram mandadas para
colégios internos. Raros eram os casos de rebeldias às imposições clericais e
familiares” (p. 1). Relata que as mulheres que não se casavam eram geralmente
expulsas de casa e, se tivessem bens, eram deserdadas.
131
Segundo observa Mazzieiro (1998), a sexualidade no lar possuía
determinados limites, não comportando o considerado “submundo sexual”, e a
perversão só caberia no mundo da prostituição:
Nessa argumentação, as prostitutas faziam parte da classe trabalhadora, sendo de uma
parcela dos despossuídos que, através da venda do corpo enquanto objeto sexual, originava-
se a prostituição. A imensa maioria das meretrizes provém das camadas mais pobres quer do
campo, quer dos centros urbanos e das profissões mais modestas. (...) As autoridades
policiais procuravam confinar as prostitutas no gueto para evitar seu livre trânsito. O gueto,
entretanto, não se restringia à região e à rua, ele se expressava também no confinamento da
prostituta na casa (p. 247-255).
Em Goiás, aos que se desviavam do modelo restritivo de comportamento era
aplicada a punição que impunha uma relação servil de docilidade e utilidade,
necessária à manutenção da hierarquia social e de comando. A poetisa, ao retratar o
“espetáculo” da vida nos becos apresenta o destino dos personagens definindo o
último ato:
(ÙLTIMO ATO)
Um irmão vicentino comparece.
Traz uma entrada grátis do São Pedro de Alcântara.
Uma passagem de terceira no grande coletivo de São Vicente.
Uma estação permanente de repouso – no aprazível São Miguel.
Cai o pano
(Becos de Goiás, PBG, p. 95).
Na perspectiva de Cora, somente no ato final as pessoas de conceito”
compareciam ao núcleo do “proibido”. Os marginalizados não deveriam se
manifestar livremente sob o risco da repressão. A sociedade só permitia suas saídas
do beco para o São Pedro de Alcântara, o São Vicente e o São Miguel,
respectivamente, o hospital, o asilo e o cemitério da cidade de Goiás. Dessa forma,
a sociedade destinava poucas opções aos pobres: o confinamento nos becos, nos
hospitais e asilos ou a morte, formas eficazes de evitar, silenciar e esconder os
indesejáveis. Vidas limitadas, escondidas, reprimidas, doença, velhice, loucura e
morte resumem os caminhos dos que se encontravam à margem na sociedade
goiana.
Discutindo a evolução da saúde e das doenças em Goiás de 1826 a 1930,
Salles (1999) escreve que na segunda década do século XIX foram realizadas
importantes mudanças sanitárias na província em decorrência do Governo Central
determinar a instalação de hospitais nas capitais do Império. Essas mudanças,
132
romperam com os bitos tradicionais e a busca pelo saneamento culminou com a
instalação do Hospital de Caridade São Pedro de Alcântara, em 1825, e com a
demarcação do cemitério, visto que até então os mortos eram sepultados nas
igrejas.
Moraes (1999), relata que a análise do discurso normativo sobre o espaço
público de Goiás pressupõe a aplicação de uma estratégia desenvolvida pela classe
dominante visando disciplinar e evitar “a mendicidade e o amontoamento de
pessoas pelas praças e ruas, o que poderia facilitar a proliferação de doenças e
impedir a circulação do ar” (p. 135). A autora informa que na cidade de Goiás os
interesses de classe estavam representados na denominada junta de caridade que
administrava o hospital e era composta por cidadãos abastados que viviam
efetivamente na cidade. A partir de 1842, o hospital passou também a receber
interferência da Assembléia Legislativa e da Câmara Municipal e
os deputados e vereadores ressaltavam o perigo das aglomerações e acentuavam o risco de
contaminação que os vadios e vagabundos proporcionaram com suas presenças. Assim
resolveram contribuir para a implantação de medidas higienistas, associando desinfecção a
submissão (p. 137).
O hospital tornou-se uma instituição para disciplinar os “desviantes” com o
intuito de disseminar influências mais “adequadas” ao convívio social. Aliada a essa
tentativa de saneamento empreendida pelo hospital, em 1859 foi concluído o
cemitério público com sepulturas individuais, porém a exclusão ainda continuava até
mesmo com a morte. Analisando o cemitério de Goiás, Moraes se referiu à
existência de uma “geografia social dos mortos”:
No cemitério existiam, na entrada, terrenos para sepulturas de pagãos e acattholicos, bem
como valas para recolher as águas dos terrenos contíguos ou para conduzi-las a algum
ponto. Logo após, vinham as sepulturas para crianças, adultos e pessoas pobres que tinham
entre dez e vinte anos e as sepulturas comuns, que custavam oito mil réis. O restante do
terreno era dividido ao meio, com cada metade subdividida em quatro partes, recebiam
túmulos para os órfãos, para a Irmandade do Carmo [pardos], para a Irmandade do Rosário
[negros] e sepulturas de seis mil is para crianças. As partes restantes seriam para os
membros das Irmandades da Boa Morte, dos Passos, do Santíssimo e de Santa Bárbara
(1999, p. 149).
A autora conclui que o amontoamento de trabalhadores livres, de forros, de
escravos, mendigos, doentes e vadios no espaço público, representava perigo à
133
classe dominante e, por isso, a necessidade das posturas sanitárias impostas como
formas de controle social
95
.
No mesmo raciocínio, posteriormente outra opção para a expulsão dos
“indesejáveis” do contexto público foi o Asilo o Vicente de Paulo. Construído em
1909, o asilo possuía as funções de assistência social e religiosa e de confinamento
para os portadores de doenças não contagiosas e idosos pobres. Em Memórias
Goianas n. ° 17, observamos que sua instalação se realizou através do esforço de
um grupo pertencente às “famílias de conceito”, utilizando a instituição para a
concretização de seus objetivos, pois “fez com que desaparecessem por completo
das ruas grande número de mendigos de ambos os sexos” (2004, p. 20).
A finalidade do asilo vem ao encontro das lições de Norbert Elias (2001), ao
compreender que o envelhecimento, a doença e a morte são situações
constantemente evitadas pela sociedade, ocasionando um isolamento precoce dos
moribundos e demonstrando a dificuldade que as pessoas possuem de identificação
com esses segmentos. O autor descreve, através de um processo civilizador, a
existência de uma maior exclusão possível da morte, dos velhos e dos moribundos
da vida social e uma gradativa ocultação de fatos e experiências que evocam suas
lembranças. Situação posteriormente enfrentada por Cora no discurso do
reconhecimento em virtude da idade:
O tempo passa, ninguém detém a passagem do tempo. Agora saiba viver para melhor
envelhecer. [O que é viver bem?] Produzir. Não ser uma criatura inerte, parada. Não dormir
de dia, sobretudo. Ler. Estar atualizada com os fatos. [Quer dizer que não é para ter medo da
velhice?] Não. Não tenha medo. Não tenha medo dos anos e não pense em velhice. Não
pense. E nunca diga estou envelhecendo, estou ficando velha. Eu não digo. Eu não digo
estou velha, eu não digo estou ouvindo pouco quando preciso. Eu não digo nunca a
palavra estou cansada. Nada disso, nada de palavra negativa. Quanto mais você diz estar
ficando esquecida, mais esquecida fica. Vo vai se convencendo daquilo e convence os
outros também. Então, silêncio! Fique quieta! E não queixe doença também. Nunca diga para
uma visitante: Como vai passando? Ah... ando com uma dor agora, não ando muito bem...
Nada disso. Diga: Muito bem, otimamente! Não me queixo de nada. E quando tiver vouma
queixa física, ao médico, ele é o único que tem que ouvir, ninguém mais. (...) Sei que
tenho muitos anos. Sei que venho do século passado. Mas não sei se eu sou velha não. Você
acha que eu sou velha? (CEDOC, Rede Globo, 1984).
95
Além de forma de controle social o movimento sanitarista era visto como sinônimo de progresso.
No jornal A Informação Goyana, datado de 15 de abril de 1919, Cora Coralina afirma no artigo O
progresso de Goyaz: “Quem os escassos jornais de Goyaz a primeira coisa que salta aos olhos, a
primeira observação que faz é a ânsia viva e a sofreguidão torturante com que todos lá apelam para o
progresso (como se o progresso fosse a coisa melhor do mundo), já lembrando medidas, sugerindo
idéias ou aventurando reformas, já reclamando afincos de higiene, insinuando profilaxias contra
fantásticas endemias, seja até pedindo cemitério novo e moderno... “ (p. 11).
134
Mas o que a poetisa revela no poema Becos de Goiás? Avaliando que os
moradores dos becos não poderiam interagir com os demais e nem se manifestar,
somado ao destino que a sociedade a eles conferia, podemos observar uma rígida
estratificação em Goiás. Segregação denunciada em diversos momentos pela
literata: “dificuldades entrelaçadas. Falta de amparo, nem um apoio. vontade
reinante. (...) Goiás, compartilhamento fechado por todos os lados. Em volta, o
sertão. Dentro da cidade, ruas delimitando classes, orgulho de família, preconceitos
sociais, coisinhas, rotina...” (Minha irmã, TCV, p. 101-102). Cora Coralina definiu as
características gerais dos becos, seus personagens e as situações de clausura,
doença, velhice e morte a que estavam destinados. A autora retratou hierarquias
que deveriam conter os “indesejáveis” e construiu uma declaração de afeto ao amar
e cantar com ternura o considerado “errado” da sua terra. Ao invés de poetizar a
realidade a partir dos monumentos reconhecidos pelo poder institucionalizado, a
descreve da periferia, das injustiças e violências, construindo um contundente
testemunho da estrutura autoritária, preconceituosa e excludente de seu tempo.
135
3.2 BECO DA VILA RICA: BALIZA DA CIDADE
Definida a caracterização do lugar, dos personagens e destinos, numa
espécie de considerações iniciais sobre a cidade-vida e suas relações, Cora agora
detém sua análise na tematização de um beco em especial, título do segundo
poema, Do Beco da Vila Rica, fonte de um rico imaginário em virtude talvez de ser o
mais próximo de seu cotidiano, que interage com os fundos da Casa Velha da
Ponte, fato que explicaria sua extensão e minúcia de detalhes.
As percepções do primeiro poema são ampliadas, agregando valores ao
cenário e inserindo a idéia do beco como representativo da tradição. É o lugar da
degradação, do resíduo que agride pelo mau cheiro e pela perenidade. Essa
perenidade é caracterizada pela autora quando destaca as origens do desprezo
pelos becos e realiza a projeção futura: ontem, hoje, amanhã, no século que vem,
no milênio que vai chegar terá sempre uma galinha morta”
96
. Suas imagens remetem
ao imobilismo de Goiás, ao conservadorismo onde o passado e o presente fecham
as perspectivas de mudanças.
Cora Coralina oferece no poema dois eixos sociologicamente significativos. O
primeiro é a ampliação da descrição do lugar: o beco como representativo do
conservadorismo e como baliza da cidade, referência e limite. O segundo eixo
caracteriza a função dos becos como meio de as mulheres circularem e lugar dos
segregados, revelando o modo de vida do elemento feminino que deveria ser
“resguardado a sete chaves”, através de sua não exposição, traduzida na
autorização dos mais velhos para sair e entrar pelos portões dos becos, cobertas
com o xale e através das janelas de tabuleta.
96
Convém relembrarmos o pós-escrito enviado a Drummond, apresentado no primeiro capítulo, onde
a autora demonstra a força imagética produzida pelos poemas que retratam o lixo nos becos: “Cidade
de Goiás 28-1-81. Carlos Drummond de Andrade. Meu amigo Maior. (...) P. S.: Dizem que mulher
nunca escreve sem P.S., confirmo para dizer a você que os goianos maiores de idade desta Vila
Boa de Goiás, aqueles que ainda escrevem Goyaz com y e com z e falam de contos de réis nunca
me perdoaram a galinha morta e o gato morto do Beco da Vila Rica. Pode? Coralina” (Inédito).
No beco da Vila Rica
tem sempre uma galinha morta.
Preta, amarela, pintada ou carijó.
Que importa?
Tem sempre uma galinha morta, de de
verdade.
Espetacular, fedorenta.
Apodrecendo ao deus-dará.
No beco da Vila Rica,
ontem, hoje, amanhã,
no século que vem,
no milênio que vai chegar,
terá sempre uma galinha morta, de verdade.
Escandalosa, malcheirosa.
Às vezes, subsidiariamente, também tem
- um gato morto.
136
No beco da Vila Rica tem
velhos monturos,
coletivos, consolidados,
onde crescem boninas perfumadas.
Beco da Vila Rica...
Baliza da cidade,
do tempo do ouro.
Da era dos “polistas”,
de botas, trabuco, gibão de couro.
Dos escravos de sunga de tear,
camisa de baeta,
pulando o muro dos quintais,
correndo pra o jeguedê e o batuque.
A estória da Vila Rica
é a estória da cidade mal contada,
em regras mal traçadas.
Vem do século dezoito,
Vai para o ano dois mil.
Vila Rica não é sonho, inventação,
imaginária, retórica, abstrata, convencional.
É real, positiva, concreta e simbólica.
Involuída, estática.
Conservada, conservadora.
E catinguda.
Velhos portões fechados.
Muros sem regra, sem prumo nem aprumo.
(Reentra, salienta, cai, não cai,
entorta, endireita,
embarriga, reboja, corcoveia...
Cai não.
Tem sapatas de pedras garantindo.)
Vivem perrengando
de velhas velhices crônicas.
Pertencem a velhas donas
que não se esquecem de os retalhar
de vez em quando.
E esconjuram quando se fala
em vender o fundo do quintal,
fazer casa nova, melhorar.
E quando as velhas donas morrem
centenárias
os descendentes também já são velhinhos.
Herdeiros da tradição
- muros retelhados. Portões fechados.
Na velhice dos muros de Goiás
o tempo planta avencas.
Monturo:
Espólio da economia da cidade.
Badulaques:
Sapatos velhos. Velhas bacias.
Velhos potes, panelas, balaios, gamelas,
e outras furadas serventias
vêm dar ali.
Não há nada que dure mais do que um
sapato velho
jogado fora.
Fica sempre carcomido,
ressecado, embodocado,
saliente por cima dos monturos.
Quanto tempo!
Que de chuva, que de sol,
que de esforço, constante, invisível,
material, atuante,
silencioso, dia e noite,
precisará de um calçado, no lixo,
para se decompor absolutamente,
se desintegrar quimicamente
em transformações de humo criador?...
Às vezes, um vadio,
malvado ou caridoso,
põe fogo no monturo.
Fogo vagaroso, rastejante.
Marcado pela fumaceira conhecida.
Fumaça de monturo:
Agressiva. Ardida.
Cheiro de alergia.
Nervosia, dor de cabeça.
Enjôo de estômago.
Monturo:
tem coisa impossível de queimar,
vai ardendo devagar,
no rasto da cinza, na mortalha da fumaça.
Monturo...
Faz lembrar a Bíblia:
Jó, raspando suas úlceras.
Jó, ouvindo a exortação dos amigos.
Jó, clamando e reclamando do seu Deus.
As mulheres de Jó,
as filhas de Jó,
gandaiam coisinhas, pobrezas,
nos monturos do beco da Vila Rica.
Eu era menina pobrezinha,
como tantas do meu tempo.
Me enfeitava de colares,
de grinaldas,
de pulseiras,
das boninas dos monturos.
Vila Rica da minha infância,
do fundo dos quintais...
Sentinelas imutáveis dos becos, os portões.
Rígidos. Velhíssimos. Carunchados.
Trancados a chave.
Escorados por dentro.
Chavões enormes (turistas morrem por elas).
Fechaduras de broca, pesadas, quadradas.
Lingüeta desconforme, desusada.
Portões que se abriam,
antigamente,
em tardes de folga,
com licença dos mais velhos.
Aonde a gente ia – combinada com a vizinha,
conversar, espairecer... passar a tarde...
Tarde divertida, de primeiro, em Goiás,
passada no beco da Vila Rica,
- a dos monturos bíblicos.
Dos portões fechados.
De mosquitos mil. Muriçocas. Borrachudos.
E o lixo pobre da cidade,
extravasando dos quintais.
E aquela cheiração ardida.
E a ervinha anônima,
sempre a mesma,
estendendo seu tapete
por toda a Vila Rica.
Coisinha rasteirinha, sem valia.
Pisada, cativa, maltratada.
Vigorosa.
Casco de burro de lenha.
Pisadas de quem sobe e desce.
Daninheza de menino vadio
nunca dão atraso a fedegoso,
federação, manjiroba, caruru-de-espinho,
guanxuma, são-caetano.
Resistência vegetal... Plantas que vieram donde?
Do princípio de todos os princípios.
Nascem à toa. Vingam conviventes.
Enfloram, sem amparo nem reparo de ninguém.
E só morrem depois de cumprida a obrigação:
amadurecer... sementear,
garantir sobrevivência.
E flores... migalhas de pétalas, de cores.
Amarelas, brancas, roxas, solferinas.
Umas tais de andaca... boninas...
Flor de brinquedo de menina antiga.
Flor de beco, flor de pouco caso.
Vagabundas, desprezadas.
Becos da minha terra...
Válvulas coronárias da minha velha cidade.
Além do mais, Vila Rica tem um cano horroroso.
Começa no começo.
Abre ali sua bocarra de lobo
e vai até o Rio Vermelho.
Coitado do Rio Vermelho!...
O cano é um prodígio de sabedoria,
engenharia, urbanismo colonial,
do tempo do ouro.
Conservado e confirmado.
Utilíssimo ainda hoje.
Recebe e transfere.
Às vezes caem lajes da coberta.
A gente corre os olhos sem querer.
Meninos debruçam para ver melhor
o que há lá dentro.
É horroroso o cano no seu arrastar de espurcícias,
vagaroso.
Deus afinal se amerceia de Vila Rica
e um dia manda chuvas.
Chuvas pesadas, grossas, poderosas.
Dilúvio delas. Chuvas goianas.
A enxurrada da Rua da Abadia lava o cano.
O fiscal manda repor as lajes.
E a vida da cidade continua,
tão tranqüila, sem transtornos.
Diz a crônica viva de Vila Boa
que, debaixo do cano da Vila Rica,
passa um filão de ouro.
Vem da Rua Monsenhor Azevedo.
Rico filão. Grosso filão.
Veia pura, confirmada.
Atravessa o beco – daí o nome de Vila Rica.
E vai engolido pelo Rio Vermelho.
Para defender esse veeiro
e dirimir contendas no passado
que deram causas a mortes, brigas, danos e
facadas,
o Senhor Ouvidor de Vila Boa,
por bem entender e ser de sua alçada,
mandou por cima do filão de ouro
estender o cano.
Medida salomônica e salutar.
Bem por isso um ilustre causídico,
de sobrado beiradão colonial,
costuma recolher num vidro de boca larga
palhetas de ouro,
encontradas na moela das galinhas do quintal.
Além de tudo,
Goiás tinhas seus costumes familiares.
Normas sociais interessantes
conservadas através de gerações.
Hábitos familiares que se diluíram com o
tempo,
ligados aos becos e aos portões.
Família antiga de alta consideração
e pouca intimidade.
De grande conceito e rígida etiqueta,
certo dia,
mandava na casa amiga portador de
confiança.
Sá Liduvina, negra forra.
Gente da casa, integrada na família.
Viu nascer Ioiô.
Viu nascer Iaiá...
Madrinha, de carregar, de um bando de
meninos.
Contas redondas de ouro no pescoço.
Brinco de cabacinha nas orelhas.
Conceição maciça, pendurada.
Bentinhos escondidos no seio.
Saia escura, rodada, se arrastando.
Paletó branco de morim, muito engomado.
Chinelas cara-de-gato, nos pés,
largos, pranchados, reumáticos.
138
A literata novamente não deixa escapar as idéias do beco como portador do
contraditório, onde convivem a podridão do lixo e boninas perfumadas, e manifesta
uma das idéias centrais do poema quando adjetiva Vila Rica de baliza da cidade.
Bate na porta do meio...
- “Dá licença, Nhãnhã?...” – “Vai entrando...”
- “Suscristo...” – Entrega as flores.
- Nhã, D. Breginata mandou essas fulô
do quintar dela,
mandou fala
se vassuncê consente qui Nhãnhã Sinhazinha
vai passá o dia santo damenhã
cum Sinhá Lili...”
- “Que vassuncê num sincomode.
Que au de noite, au depois da purcissão
ela vem trazê...”
- “È pra passá o dia inteirinho...
Inhá Lili mandou pidi”.
Lá dentro, consultas demoradas,
Depois: - “Sim... Pois não...
Sinhazinha vai com muito gosto.
Fala pra D. Breginata pra abri o portão
que Sinhazinha vai ao depois da missa da
madrugada”.
Estas e outras visitas se faziam
passando pelo portão.
Andar pelas ruas. Atravessar pontes e largos,
as moças daquele tempo eram muito acanhadas.
Tinham vergonha de ser vistas de “todo o mundo”...
“Todo o mundo...”
Expressão pejorativa muito expressiva.
Muito goiana. Muito Brasil
colonial, imperial, republicano.
Era comum portador com este recado:
- “Vai lá na prima Iaiá, fala pra ela
mandar abrir o portão, depois do almoço,
que vou fazer visita pra ela...”
Costume estabelecido:
Levar buquê de flores.
Dar lembrança, dar recado.
Visitas com aviso prévio.
Mulheres entrarem pelo portão.
Saírem pelo portão.
Darem voltas, passarem por detrás.
Evitarem as ruas do centro,
serem vistas de todo o mundo.
Em colaboração com tais hábitos havia o xaile.
Indumentária lusitana,
incorporada ao estatuto da família.
Xaile escuro, de preferência.
Liso, florado, barrado, de listras.
Quadrado. Franjas torcidas. Tecido fofo de lã.
De casimira, de sarja, baetilha, seda,
lã e seda, alpaca, baeta.
Dobrado em triângulo. Passado pela cabeça.
Bico puxado na testa.
Pontas certas, caídas na cacunda.
Pontas cruzadas na frente,
enrolando, dissimulando o busto, as formas,
a idade, a mulher.
Durante um século prevaleceu o xaile.
Substituiu o mantéu e o bioco.
Contava minha bisavó, do primeiro xaile
- novidade – aparecido em Goiás e bem aceito.
Depois, não havia loja que não tivesse xaile.
Xaile preto. Xaile branco.
Azul-escuro, avinhado, havana, cinzento.
Xaile verde.
Era ótimo presente de aniversário.
Muito estimado e de longa duração.
Ajudava o velho estatuto
das mulheres se resguardarem,
embuçadas, disfarçadas.
Olharem na tabuleta.
Entrarem pelo portão.
Passarem por detrás.
Justificando o antigo brocardo português:
“Mulheres, querem-nas resguardadas e a sete
chaves...”
A moça, quando casava, já sabia:
levava no enxoval um xaile,
de preferência escuro.
E quando a cegonha dava sinal,
era de decência e compostura
- bata ancha. Anágua de baeta.
Saia comprida se arrastando,
e ritual – o xaile,
embonando tudo.
E o primeiro agasalho do nascituro
era um xaile encarnado de baeta.
Felpas vermelhas de baeta, arrancadas do cueiro,
molhadas do cuspo, coladas na testa,
era porrete pra soluço.
Não havia espasmo de criança
que resistisse à velha pajelança.
(Do Beco da Vila Rica, PBG, p. 96-107)
139
O beco como baliza tanto significa uma referência quanto um limite.
Referência histórica ao ser situado no tempo, em diversas épocas: mineração,
entradas e bandeiras, escravidão, abolição, dentre outras, possibilitando
compreender a sociedade através das cenas subterrâneas de Goiás. Ao mesmo
tempo constitui em limite físico, pois separa os ambientes públicos e privados, e
social, ao segregar e se tornar o abrigo dos marginalizados.
Ao desenhar esse perfil, Cora define o beco como relicário da história. Em
suas entrevistas, constantemente apresentava a ressalva “estória ‘sem h’, porque
não sou historiadora nem memorialista, apenas e sempre a estória do cotidiano
verdades e mentiras” (TCV, p. 5). As palavras demonstram seu processo de criação
e, conseqüentemente, contribuem para a proposta deste capítulo. Ao definir os
becos como portadores da estória da cidade e ao descrever a estória como veículo
das verdades e mentiras do cotidiano, a autora demonstra que suas poesias se
basearam tanto na história documentada, quanto na história oral, nas coisas que
“ouviu dizer”.
É interessante observar como a autora realizou a composição da obra: “na
falta do exato, forte e bem configurado, conto o que ouvi e a mais não estou
empenhada, que história indagada, perquirida, é difícil na minha cidade, com papéis
perdidos, roídos de traça e cupins, mofados de goteiras... Nem eu tenho jeito de
historiadora” (BUENO, 2002, p. 51).
Sua fonte principal era a oralidade, todavia, algumas vezes, retirava a matéria
da história documentada, a exemplo da citação inédita encontrada no original de um
de seus contos, quando descreve a decadência da mineração: “os veeiros se
aprofundando na terra e a impossibilidade física de os alcançar. Não havia técnica
nem recursos, senão o braço escravo inoperante, frente às dificuldades
insuperáveis: a força muscular. Ver o livro de Palacin Goiás-1722-1822
(Caderno/diário n. ° 5, 1981, p. 5).
97
Outro exemplo é o conto Correio Oficial de
97
Contribuindo com esse entendimento, na biblioteca da autora existem inúmeros livros sobre história
de Goiás a exemplo de: História de Goiás, Luis Palacin e Maria Augusta de Santana Moraes (1981);
Goiás 1722/1822, Luis Palacin (1972); mula da História de Goiás, Americano do Brasil (1961);
Almanach da Província de Goyaz, A. Costa Brandão (1971); O Descobrimento da Capitania de
Goyaz, Luiz Antônio da Silva e Souza (1967); Por esse Goiás afora, Joaquim Rosa (1974); Goiás,
Maurilândia Roncato (1973); O Descobrimento de Goyaz, Victor de Carvalho Ramos (1925); Evolução
cultural de Goiás, Jerônimo Geraldo de Queiroz (1969); História de Goiás, Elder Camargo de Passos
(1970); Mapa da Capitania de Goyaz 1750, Hélcio Jo Motta (1971); Goiás terra & alma,
Guimarães Lima (1983); Nos tempos de Frei Germano, Jaime Câmara (1974); Viagem às terras
140
Goiás em que utilizou matérias de jornal para tecer a trama: “começo a leitura dessa
crônica me reportando ao número 179 do ‘Correio Oficial de Goiás’, de 1.° de maio
de 1839, número de quarta-feira e que, segundo esclarece o seu minucioso
cabeçalho, se publica às quartas e aos sábados na Tipografia Provincial” (ECV, p.
73)
98
.
Essas informações fortalecem a afirmação de que a história dos becos seria a
“estória da cidade mal contada”, pois não se encontra inserida nos “autos oficiais do
passado”. Para Cora Coralina, a história da cidade se pauta no conservadorismo, em
um conjunto de discursos característicos da involução e do preconceito, pois dialoga
com a das vidas destinadas ao confinamento nos becos. Portanto, deve ser lida não
apenas nos registros oficiais, mas em seus interstícios, nas relações cotidianas de
classe, gênero, poder, cor e geração:
Interessante nesse sentido é a opção da autora pela palavra estória para denominar a sua
produção, seja a vazada em verso ou em prosa. Hoje nos parece imprópria a distinção entre
história/estória. Isso porque caiu no vulgo que a história, mesmo e, sobretudo, aquela
escrita com H, o passa de uma interpretação do passado, sendo, portanto, relativa,
ficcional, e que a estória, assumidamente ficcional, muita vez, desvela o passado de uma
maneira muito mais verdadeira que as histórias que se querem factuais. (...) Mas Cora
escreve em uma época em que essa diferença ainda é sustentada e a poetisa mantém a
denominação de estórias para os autos do passado por ela recuperados literariamente. (...)
Negando-se a ser uma historiadora e assumindo-se como uma legítima contadora de
estórias, Cora termina por subverter a memória coletiva oficializada, por promover um
rearranjo da história. (...) A estória, em Cora, é contra a história. Contra uma história e uma
memória coletiva uniformizadoras e opressoras (YOKOZAWA, 2002b, p. 6-7).
As reflexões da poetisa ultrapassam a definição dos becos como
baliza/referência da história, retratando-os também como baliza/limite. Inicialmente,
um limite físico representado pelos muros, portões e pelo lixo que incomodava.
goyanas, Osório Leal (1980); A independência em Goiás, Regina Lacerda (1970); Homens e temas
do Brasil, Afonso Arinos de Melo Franco (1944); Revista do Instituo Histórico e Geográfico do Mato
Grosso (1979); Revista da UFG (1965); Revista do IHGG (1977); e Revista de História (1976).
98
Outros exemplos também podem ser elencados como o trecho do poema Os Apelos de Aninha em
que a autora afirma “a primeira foi dita calcada em promessa publicada pelos jornais. A segunda
aqui está expressa na fala do próprio Ministro da Justiça, que passamos a transcrever da imprensa de
27/04/82” (VC, p. 194). Também não é raro encontrar nos originais da autora alguns recortes de
jornais, colados no início ou ao lado de contos e poesias, descrevendo temáticas contempladas em
suas criações, a exemplo de matérias sobre a questão dos presídios, do Nordeste ou do menor
abandonado. Outras fontes associativas dos livros de história e das matérias de jornais eram as obras
de outros literatos: localizar dentro do mapa tumultuado das recordações, onde, em que recanto da
terra esse vasto e desconhecido sertão (...) até que um dia, tantos anos corridos, encontrei a frase
antiga no livro do escritor João Guimarães Rosa” (Lembranças de Aninha A mortalha roxa, VC, p.
186).
141
Depois um limite social, demonstrado pelas proprietárias dos muros - velhas donas
herdeiras da tradição que se protegiam da vida/morte dos becos através do exercício
de repor as telhas destruídas e manter seus portões fechados - e pelas pessoas que
neles viviam ou aproveitavam do que o lixo poderia oferecer como as boninas
utilizadas pelas meninas pobres.
A referência às “velhas donas herdeiras da tradição” indica a idéia de um
aparente matriarcado na cidade de Goiás. A preponderância da autoridade feminina
é citada devido a um grande número de mulheres solteiras - havia uma “lei familiar
em Goiás, uma das filhas renunciar ao casamento para cuidar dos pais na velhice e
reger a casa” (As maravilhas da Fazenda Paraíso, VC, p. 91) - e viúvas e em virtude
dos homens geralmente se ocuparem com trabalhos fora da cidade. Em As três
faces de Eva na cidade de Goiás, Bittar (2002) estuda a condição feminina a partir
de três tipos ideais: a mulher intelectual, a concubina e a matriarca. Compete
destacarmos que o exemplo de mulher “matriarca” utilizado no estudo de caso foi a
senhora Jacyntha Luiza do Couto Brandão, mãe de Cora Coralina.
De acordo com Gomes (2004), as mulheres sempre tiveram um papel de
destaque na cidade de Goiás, tanto na participação doméstica, quanto fora do lar, e
a vida de Cora Coralina, por ter se passado entre oito mulheres, teria contribuído
para que a poetisa se tornasse um marco na luta pela expansão feminina na cidade.
Todavia, conforme referido, era apenas uma falsa idéia de matriarcado visto que
através do exercício da autoridade, adquire muito poder no espaço doméstico e acaba por
adquiri-lo, também, no espaço público, na medida em que consegue independência
econômica através do trabalho que exerce fora de casa. (...) Por outro lado (...) as mulheres
elevam a figura e a força do homem, reforçando sua construção de mandonismo masculino; e
os homens, por sua vez, valorizam a mulher, estabelecendo-se, a partir daí, um espírito de
cumplicidade e amizade. A vilaboense/matriarca comporta-se como uma pseudoprisioneira,
reforçando, no homem, uma característica machista que visa atender a costumes tradicionais,
mais do que à própria realidade (BITTAR, 2002, p. 160-162).
As reflexões de Cora Coralina também apontam para outro fator relevante e
muito presente no imaginário do interior brasileiro: a idéia da aproximação a Deus a
partir da marginalização. Nesse sentido, a escritora relaciona o monturo dos becos a
história de Jó.
Na bíblia, o livro de Jó se encontra entre os denominados livros sapienciais do
Antigo Testamento e se constitui em um dos principais estudos sobre problemas
142
relativos à justiça e à vida social. De acordo com Storniolo e Balancin (1990),
provavelmente foi escrito em sua maior parte durante o exílio de Jó, numa época em
que o povo de Judá havia perdido família, propriedades, instituições e a própria
liberdade. Para os autores, o aspecto principal dos escritos consiste na experiência
de Deus a partir da pobreza e da marginalização, tornando-se ponto de partida para
uma nova história das relações entre os homens. Segundo afirmam, a confissão final
de Jó – “Eu te conhecia só de ouvir. Agora, porém, meus olhos te vêem” (42, 5):
é o ponto de chegada de todo o livro, transformando a vida do pobre em lugar de
manifestação e experiência de Deus. A partir disso, podemos dizer que o livro de é a
proclamação de que somente o pobre é apto para fazer tal experiência e, por isso, é capaz de
anunciar a presença e ação de Deus dentro da história. O livro é um convite para nos libertar
da prisão das idéias feitas e continuamente repetidas, a fim de entrar na trama da vida e da
história, onde Deus se manifesta ao pobre e se dispõe a caminhar com ele para construir um
mundo novo. Tal solidariedade de Deus se transforma em desafio: Estamos dispostos a
abandonar nossas tradições para nos solidarizar com o pobre e fazer com ele a experiência
de Deus? (p. 639).
Em diversos poemas, Cora se apropria do discurso pautado na aceitação, na
relação entre religiosidade e pobreza, como forma de legitimar a ordem social
estabelecida: “Senhor, fazei com que aceite minha pobreza tal como sempre foi. Que
não sinta o que não tenho. Não lamente o que poderia ter e se perdeu por caminhos
errados” (Humildade, MLC, p. 59). “E a gente se apegava aos santos, tão distantes...
(...) Valiam as velhas, seus adágios de sustentação. (...) Ensinar-lhes a paciência, a
vontade de Deus (...) naquela muralha parda de pobreza e limitação” (Moinho do
Tempo, VC, p. 33-35).
Pereira (2004) entende que as obras da poetisa explicitam a a partir das
lutas e dores e representam o que Berger e Weber denominam de teodicéia do
sofrimento, explicação dos fenômenos anômicos em termos de legitimações
religiosas. A autora destaca que a teodicéia em Cora Coralina pode ser verificada na
transcendência do eu produzida pela completa identificação com a vida dos que
compõem a coletividade.
Desse modo, procura fórmulas que legitimam as contradições a partir da
experiência com Deus, porém, não apenas para oferecer respostas diante dos
problemas da vida, mas como “instrumento amplo, efetivo e eficaz de legitimação, ao
relacionar as precárias construções da realidade erguidas pelas sociedades
empíricas com a realidade suprema” (p. 123-124). A religião seria um instrumento de
143
manutenção do mundo socialmente construído e a compreensão das situações
marginais em que a vida cotidiana é posta em dúvida seria uma de suas importantes
dimensões.
Além de suscitarem a lembrança bíblica, os becos também provocaram
lembranças da infância. Cora retratou os portões como “sentinelas imutáveis dos
becos”, traduzindo o conservadorismo e reafirmando a idéia da baliza/limite físico e
social. A autora evocou um tempo em que os becos não eram destinados ao
confinamento dos marginalizados, mas serviam como meio de comunicação e
circulação das mulheres das “famílias de conceito”.
Também consistia em cenário onde não se podia circular livremente - era
necessário o consentimento dos mais velhos e onde através dos portões “rígidos,
velhíssimos, carunchados, trancados a chave, escorados por dentro, chavões
enormes...” se preservava a intimidade das famílias estabelecidas. Apesar de se
tornar, desde a origem, um lugar secundário, a escritora o elege como prioritário por
reconhecê-lo portador da vida que sustenta em sua capilaridade o “coração” da
cidade.
Fonte de abandono e tristeza, o beco coleta em seu subterrâneo o esgoto da
cidade. Cora utiliza-se dessa realidade para explicar a origem do nome Vila Rica e
se detém aos hábitos familiares ligados aos portões. Tais hábitos revelam as
práticas de violência e controle destinadas às mulheres que, do século XVIII até o
início do século XX, eram submissas a ponto de não poderem circular pela cidade.
Para tanto, descreve a função dos becos como forma de censurar a exposição
feminina.
Cora Coralina explica que anteriormente os becos e portões serviam como
meio das mulheres se resguardarem, movimentando-se através dos fundos dos
quintais pela entrada de serviço, jamais integrando a paisagem das ruas principais e
dos largos. Descreve alguns “costumes sociais interessantes”, a exemplo dos rituais
de mandar portador de confiança para solicitar a liberação para visitas, passeios ou
participar de festas religiosas. São rituais
99
que, conforme relata a poetisa, foram
99
Além desses rituais descritos no poema Do Beco da Vila Rica, em diversas outras produções Cora
relata interessantes costumes cultivados pela sociedade goiana, muitos deles possuem reflexos nos
dias atuais. Exemplo interessante é o descrito no poema O Prato Azul-Pombinho e registrado por
Oswaldino Marques em suas observações críticas: “As produções reunidas em Poemas (...) o
documentos na medida em que funcionam como traslado dos gestos e dos vínculos ritualizados do
144
“conservados através de gerações” e contribuem para a visualização do cotidiano e
da mentalidade da mulher de sua época.
As mulheres o deveriam “andar pelas ruas, atravessar pontes e largos” e
nem serem “vistas de todo o mundo”. Em Becos de Goiás, a autora acenou as
características gerais dos becos e sua função de repositório dos marginalizados na
primeira metade do século XX. Em Do Beco da Vila Rica, Cora volta ao passado
para revelar, nas origens, a função de preservar a intimidade das mulheres.
Observamos a existência de uma relação entre o sentido original do beco e suas
novas finalidades: serviam para esconder e segregar personagens considerados
“inferiores” ou “secundários”.
Contribuindo para a segregação feminina, além dos becos e dos portões, o
xale e as janelas de tabuleta também “protegiam” a mulher. As mulheres, quando
obtinham a autorização para circular na cidade, deveriam ser resguardadas pelo
xale, escuro de preferência, que dissimulava “o busto, as formas, a idade” e
caracterizava a submissão.
Os relatos dos viajantes europeus no século XIX também contribuem para a
visualização dessas relações, a exemplo do que escreveu Auguste de Saint-Hilaire:
Durante o dia só se vêem homens nas ruas da cidade de Goiás. Tão logo chega a noite,
porém, mulheres de todas as raças saem de suas casas e se espalham por toda parte.
Geralmente fazem os seus passeios em grupos, raramente acompanhadas de homens.
Envolvem o corpo em amplas capas de lã, cobrindo a cabeça com um lenço ou com um
chapéu de feltro. (...) Algumas vão cuidar de seus negócios particulares, outras fazer visitas,
mas a maioria sai à procura de aventuras amorosas (1975, p. 54).
O francês, amplia as informações do texto poético relatando que as
indumentárias utilizadas pelas mulheres não serviam somente para o recato, mas
para manter o anonimato: “não serem vistas” em seus negócios particulares, visitas
e aventuras amorosas”. Revela também, assim como Cora, que a noite era o horário
preferencial de saída das mulheres, cobertas pelo xale e pela escuridão das ruas.
grupo social, no seu defrontar intersubjetivo. (...) ‘O Prato Azul-Pombinho’, uma das mais belas
realizações da coletânea” (PBG, p. 16). Os ritos também foram destacados por Carlos Drummond de
Andrade ao comentar sobre o poema citado anteriormente: “Este prato faz jus a referência especial,
tamanha a sua ligação com usos brasileiros tradicionais, como o rito da devolução: ‘Às vezes, ia de
empréstimo à casa da boa Tia Nhorita. E era certo no centro da mesa de aniversário, com sua
montanha de empadas bem tostadas. No dia seguinte, voltava, conduzido por um portador que era
sempre o Abdenago, preto de valor, de alta e mútua confiança. Voltava com muito-obrigados e,
melhor cheinho de doces e salgados. Tornava a relíquia para o relicário...” (VC, p. 9-10).
145
A importância do xale remete às lições de Norbert Elias (1994), em O
processo civilizador, quando avalia a história dos costumes, os comportamentos
típicos do homem “civilizado” ocidental e a relação entre personalidade e estruturas
sociais. As mudanças da sociedade e da psicologia são analisadas a partir do
estudo da evolução de atividades elementares, nas lentas modificações das
maneiras como os indivíduos se comportam e sentem.
O autor demonstra o rumo de uma “civilização” gradual, a exemplo do papel
que esse processo exerceu nas transformações dos sentimentos de vergonha e
delicadeza: “muda o padrão do que a sociedade exige e proíbe. Em conjunto com
isto, move-se o patamar do desagrado e medo, socialmente instilados” (p. 14).
De acordo com esse entendimento, a obrigatoriedade do uso do xale teria
sido abolida quando as mulheres conquistaram um padrão mais elevado de controle
de impulsos. Seria uma “relaxação que ocorre dentro do contexto de um padrão
‘civilizado’ particular de comportamento, envolvendo um alto grau de limitação
automática e de transformação de emoções, condicionados para se tornarem
hábitos” (p. 186).
A poesia reflete uma temática constante na obra da poetisa: o elemento
feminino. Quando não renunciavam ao casamento para cuidar dos pais, geralmente
transferiam a dependência do pai ao marido, tendo sua atuação pautada quase que
exclusivamente no ambiente doméstico
100
.
Conforme afirma Perrot (1998), o santuário masculino era o público e o
político, e para as mulheres o privado, caracterizado por seu coração e por seu lar.
Os homens tornaram-se “os senhores do privado e, em especial, da família,
instância fundamental, cristal da sociedade civil, que eles governam e representam,
dispostos a delegar às mulheres a gestão do cotidiano” (p. 10). Elas deveriam ser
criadas para o casamento e por isso privilegiava-se a educação formal masculina. As
mulheres que ousavam afrontar as regras sociais podem ser consideradas mulheres
100
No poema Moinho do Tempo a poetisa demonstra a limitação vivenciada pelas mulheres, a partir
de alguns trechos que se seguem: “A gente era moça do passado. Namorava de longe, vigiada.
Aconselhada. Doutrinada pelos mais velhos, em autoridade, experiência, alto saber. (...) A solidão de
solteira, o sonho honesto de um noivo, o desejo de filhos, a presença de homem, casa da gente
mesma, dona ser. Um lar. Estado de casada. (...) Valiam as velhas, seus adágios de sustentação:
Conter e reprimir as jovens, dar-lhes esperanças, ensinar-lhes a paciência, a vontade de Deus. E a
gente a querer abrir uma brecha naquela muralha parda de pobreza e limitação” (VC, p. 32-35).
146
públicas: “depravada, debochada, lúbrica, venal, a mulher também se diz ‘a
rapariga’ – pública é uma ‘criatura’, mulher comum que pertence a todos” (p. 7).
Pinheiro (2000) equipara Cora Coralina às mulheres francesas, na tentativa
de resistência social à exclusão. Dialogando com autoras referências na área da
história das mulheres e resistência feminina, a exemplo de Michelle Perrot, Ivia
Alves, Clarissa Pinkola e Luíza Lobo, enfatiza que Cora Coralina desconstruiu o
discurso arraigado das mulheres do século XIX e se tornou uma das precursoras da
condição de mulher pública. A pesquisadora aponta a ousadia da poetisa ao trocar
termos simbólicos do jardim (espaço doméstico) como rosas, violetas e miosótis;
pelos termos do pasto (espaço público) como pau-ferro, aroeira, pau-brasil e cedro:
Cora Coralina fez parte do grupo de mulheres que se bateram contra a postura hegemônica
masculina e contra os limites impostos pelo machismo. Como elas, criou estratégias
femininas para gerar possibilidades de resistência social à exclusão e fazer mudar a História.
Como as francesas, Cora percebeu sua exclusão do espaço público e explicitou, em suas
obras, seu papel social, em que são planteados problemas de práticas institucionais e da
situação da mulher na sociedade, de ontem e de hoje (p. 77).
Segundo afirma Gonçalves (2004), no culo XIX os valores reinantes
consideravam que pureza, docilidade, moral cristã e maternidade, deveriam ser os
predicados vinculados ao sexo feminino, qualidades que simbolizavam a
responsabilidade de impregnar a vida social do bom e do belo. Para a autora, os
argumentos médicos, teológicos e jurídicos contemplavam a desvalorização
feminina, apondo-lhe interdições de toda espécie e os discursos idealizavam um
perfil centrado na docilidade, bondade e, principalmente, circunscrito ao espaço da
casa. Consagravam-se argumentos contrários ao trabalho fora do lar e em prol do
casamento como espaço para o exercício das funções femininas e de uma
sexualidade sadia:
Nesse processo de elaboração de padrões comportamentais femininos, a religião teve um
papel fundamental. Afinal, o catolicismo, ao impor às mulheres o arquétipo da virgem e mãe,
solidificou idéias veiculadas pela cultura vigente, instituindo como virtudes femininas a
castidade e a abnegação. De acordo com essas elaborações, construídas pela sociedade e
pela religião, a sexualidade feminina representava um grande perigo. Nesse sentido, a
ideologia de caráter religioso regrava a sexualidade feminina; o sexo, para a mulher, tinha
finalidade meramente reprodutiva, evitando excessos prejudiciais à saúde e à própria
espiritualidade. (...) A partir do culo XIX, a problemática sexual foi retomada em outro estilo
e com novas finalidades. Trata-se da ingerência médica higiênica, que continuou a reprimir o
prazer gratuito e irresponsável, mas passou a exaltar a sexualidade conjugal. (...) Nesse
processo de ordenação, por comparação entre as diferenças, construiu-se uma imagem de
fragilidade e delicadeza relativa à mulher e de vigor e força quanto à natureza masculina.
147
Estabelecido o pressuposto científico de que a natureza feminina era intrinsecamente afetiva,
portanto, inferior, iniciou-se um processo de caracterização sentimental da mulher, que
resultou no traçado de um perfil que aglutinava características como: fraqueza, sensibilidade,
doçura, indulgência, submissão, imaginação viva, fértil, mas fugaz. (...) A participação da
mulher na vida pública era considerada incompatível com sua constituição biológica. As
autoridades criavam e reproduziam argumentos contrários à presença da mulher em locais
públicos. De fato, a mulher pública era associada à imagem da prostituta (114-121)
Os poemas e contos de Cora Coralina testemunham e denunciam a situação
feminina na sociedade goiana do século XIX e XX, descrevendo, por exemplo, a
forma com que a arquitetura da cidade refletia a clausura destinada às mulheres
com as janelas de tabuleta:
Antigamente, as boas casas de Goiás tinham janelas de rótulas como tiveram todas as
cidades coloniais deste imenso Brasil. Em Goiás sobreviveram por mais de dois séculos,
sobrevivem ainda com velhos costumes domésticos que vão se diluindo através das
gerações, ao tempo que as rotulasse modificam sem desaparecer de todo (...) Foram elas o
documentário mais expressivo da segregação da mea dentro da casa senhorial. As de
Goiás eram chamadas rótulas de tabuleta, de tabuinhas, de colocação horizontal,
grampeadas num pino, vertical, móvel, com trincos e tramelinhas laterais, para abrir e fechar
à vontade. As paredes onde se encaixavam essas janelas eram de notável espessura, como
inda se em tantas casas. Comportavam internamente, dos lados, assentos lisos ou com
almofadas onde as mulheres, mais comodamente, pudessem estar à rótula. Movendo trincos,
pinos e tramelinhas era que a gente da casa via o pequeno mundo da cidade e tomava
conhecimento de seus moradores (Trincos, pinos e tramelinhas, VBG, p. 85-86).
Pela tabuleta riçada e graduada, a pessoa, sem se mostrar, via a rua, os passantes, as casas
fronteiriças e, dentro de um certo ângulo, observava os acontecimentos, as passadas de uns
tantos vizinhos e, sobretudo, fiscalizava a vida alheia, que sempre nos pareceu mais
interessante do que nossa própria vida. Nesse observatório de tabuletas, sempre
permaneciam, sistematicamente, criaturas ociosas e fuxiqueiras dos velhos tempos, com seu
espírito aguçado de intrigas e malícias. A observação mais fina e valiosa era de noite, alta
noite, com a cidade escura ou enluarada e adormecida. Viam e diziam coisas de arrepiar
(Procissão das Almas, ECV, p. 22-23).
Da Matta, em Carnavais, malandros e heróis (1997), avalia que o processo de
identificação do brasileiro remete a dois domínios sociais básicos: a casa e a rua. A
categoria rua abarcaria o mundo com suas paixões e imprevistos; a casa
representaria um universo controlado. Enquanto a rua indicaria movimento e
trabalho, a casa simbolizaria harmonia e descanso. O mundo da rua se aproximaria
ao universo hobbesiano até que alguma hierarquização pudesse promover a ordem.
Esses espaços permitiriam leituras diferenciadas e complementares da
sociedade brasileira, compreendida pelo autor como relacional. Cora Coralina, ao
descrever a mulher goiana no universo da casa, se aproxima da compreensão do
pesquisador e a mulher, dessa forma, assumiria o aspecto relacional ao interagir
148
com a rua através das tabuletas: “viam sem ser vistas”, “a gente da casa via o
pequeno mundo da cidade [a rua]”.
A constatação realizada a partir da análise do texto poético também é
evidenciada por Da Matta, quando, em A casa & a rua (1997), afirma que a mulher
tornou-se ente mediador por excelência. São mediatrizes e meretrizes (mediadoras),
ligando o interno ao externo: “a mulher é aqui fonte de elos entre os homens todos
os tipos de homens: jovens e velhos, inocentes e devassos, ricos e pobres. (...) Em
outras palavras, a mulher é básica porque ela permite relacionar e, quase sempre,
sintetizar antagonismos e conciliar opostos” (p. 129-130).
O poema oferece um panorama da situação da mulher goiana, no século XIX,
como “uma vítima da dominação masculina e prisioneira da educação tradicional que
mantém a dominação” (MACHADO, 2002, p. 134).
149
3.3 O BECO DA ESCOLA: EDUCAÇÃO E TRADIÇÃO
Na série sobre os becos ao contar o considerado “errado da sua terra”, após
se ater ao Beco da Vila Rica, a autora se debruça sobre outra “válvula coronária da
cidade”: o Beco da Escola. Correlaciona, desse modo, educação e tradição em
Goiás, na transição dos séculos XIX e XX:
Um corricho, de passagem,
um dos muitos vasos comunicantes
onde circula a vida humilde da cidade.
Um bequinho de brinquedo, miudinho.
Chamado no meu tempo de menina
- beco da escola.
Uma braça de largura, mal medida.
Cinqüenta metros de comprido... avaliado.
Bem alinhado. Direitinho.
Beco da escola...
(O Beco da Escola, PBG, p. 108)
Mais uma vez a poetisa indica o beco como destino da vida humilde da
cidade. Porém, deixa antever os aspectos que serão trabalhados: a educação em
Goiás no seu “tempo de menina”. Na verdade, os processos educativos são
evidenciados em diversos poemas e contos da escritora, compreendidos como
formas de “salvação social”, abordando as relações entre educação infantil e
trabalho, métodos, castigos, a qualidade do ensino, as dificuldades dos alunos, a
importância do professor e da universidade, dentre outros aspectos.
De acordo com Silva (2003), nos poemas sobre a educação, Cora Coralina
utiliza uma impressionante carga de lirismo, registrando o tempo da emoção e
miniaturizando espaços memoráveis. Destacando O Beco da Escola, revela uma
consubstanciação entre lirismo, tempo e espaço e, quando poetiza o espaço e o
vivido, afirma que Cora teria reconstruído as memórias de sua infância a partir da
memória escolar e social.
Mas o que teria ficado de significativo na memória da literata a respeito das
relações entre educação e sociedade na Goiás de seu tempo? Para responder ao
questionamento, torna-se necessário reconstruirmos a história da educação nos
séculos XIX a XX na cidade de Goiás.
Segundo Bretas (1991), no livro História da instrução pública em Goiás, nos
primeiros anos da República, em relação ao ensino público, nada de útil e efetivo
150
pôde ser efetuado, que Goiás se limitava a seguir a rotina do Império que se
pautou em índices insatisfatórios, em um número reduzido de escolas, falta de
qualificação e baixa remuneração dos professores e escassez de recursos.
O aspecto de improvisação da educação pública contribuiu para que a “boa
sociedade” lutasse para que no setor particular fosse criado um ensino adequado à
moral dominante, que promovesse a separação das famílias tradicionais, abolisse as
escolas mistas e possibilitasse a orientação religiosa, pois o ensino do catecismo
nas escolas públicas havia sido proibido com a separação entre Estado e Igreja
Católica. Respondendo a esses chamados, destaca-se a criação do Colégio
Santana pelas irmãs dominicanas, que “um educandário de nível secundário para
moças, vinha sendo, de longa data, reclamado pelas famílias da capital, visto que,
de modo nenhum, matriculariam suas filhas no Liceu, cujos alunos eram tidos como
indisciplinados e desrespeitadores” (p. 442).
Segundo Gonçalves (2004), com a implantação do Colégio Santana as
famílias que tinham sérias restrições à qualidade do ensino público e,
principalmente, ao fato de a escola pública ser mista, acorreram para a escola
particular. Exemplificando essa situação, destaca que o número de matriculas, que
já era reduzida na Escola Normal Oficial, chegou a zero em 1917, enquanto a escola
católica iniciou seu funcionamento, em 1915, com 35 alunas. A autora afirma que da
parte da Igreja o argumento utilizado para se investir no ensino era a necessidade
de atender às leis naturais que exigiam da mulher uma educação inferior à do
homem e nunca uma co-educação (escola mista). Nessa perspectiva, cita a
Encíclica Divini Illius Magistri de 1927, de Pio XI, que condenava a educação mista:
De modo semelhante e errôneo e pernicioso à educação cristã, é o chamado método de “co-
educação”, baseado para muitos numa deplorável confusão de idéias, que confunde a
legítima convivência humana com a promiscuidade e igualdade niveladora. O Criador
ordenou e dispôs a convivência dos dois sexos somente na unidade do matrimônio e
gradualmente distinta na família e na sociedade. Além disso, não há, na própria natureza que
os fez distintos em inclinações e aptidões, nenhum argumento de onde se possa deduzir que
possa ou deva haver promiscuidade e muito menos igualdade na formação dos dois sexos (p.
48).
Machado (2002), citando Ana Maria Rocha, relata que a orientação à época
privilegiava a educação masculina porque as mulheres poderiam fazer mau uso da
leitura e da escrita. Todavia, Telles (1995) informa que a partir de 1900
151
(provavelmente devido aos reflexos do Colégio Santana) se verificou em Goiás uma
crescente ascensão da mulher nos quadros sociais e às atividades intelectuais.
Compete, porém, ressaltar que o acesso a essa educação moralizadora era
dispensado apenas às integrantes das “famílias de conceito”. Enquanto as moças
estudavam no colégio particular, os rapazes eram formados pelas escolas públicas.
Todavia, existia em Goiás um outro tipo de educandário: as escolas dos
denominados mestres ou mestras.
Escola de velhos tempos.
Tempos de velhas mestras.
Mestra Lili. Mestra Silvina. Mestra Inhola.
Outras mais, esquecidas mestras de Goiás.
Mestra Lili... o seu perfil:
Miudinha, magrinha.
Boa sobretudo. Força moral.
Energia concentrada. Espírito forte.
O hábito de ensinar, ralhar, levantar a palmatória,
Afeiçoara-lhe o conjunto
- enérgico, varonil.
A escola da mestra Lili
era mesmo naquela esquina.
Casa velha – ainda hoje a casa é velha.
Janelas abertas para o beco.
Sala grande. A mesa da mestra.
Bancos compridos, sem encosto.
Mesa enorme dos meninos escreverem
lições de escrita.
De ruas distantes a gente ouvia,
quartas e sábados, cantada em alto coro
a velha tabuada.
O bequinho da escola
lembra mestra Lili.
Lembra mestra Inhola.
Lembra mestra Silvina.
Sá Mônica. Mestra Quina. Mestra Ciriáca.
Esquecidas mestras de Goiás.
Elas todas – donzelas,
sem as emoções da juventude.
Passavam a mocidade esquecidas de casamento,
Atarefadas com crianças.
Ensinando o bê-a-bá às gerações.
(O Beco da Escola, PBG, p. 108-109)
Gonçalves (2004), estudando as modalidades de instrução primária em Goiás
até meados de 1920, destaca o costume familiar de contratação de um professor
para cuidar da escolarização das crianças que era denominado mestre e seria dessa
152
modalidade de ensino que se teria originado o ensino particular em Goiás. O hábito
do ensino na casa do contratando evoluiu, assim, para o costume de formação das
escolas na casa do professor. A pesquisadora diz que essas escolas passaram a ser
identificadas pelo nome do professor ou por sua alcunha a exemplo da Escola da
Mestre Nhola (Pacífica Josefina de Castro), a Escola da Mestra Silvina (Silvina
Ermelinda Xavier de Brito) e da Escola de Mestre Pátroclo (Gabriel Pátroclo).
Em sua poesia, Cora Coralina relembra, a partir da lembrança do Beco da
Escola, as esquecidas mestras de Goiás”: “boa sobretudo, força moral, energia
concentrada, espírito forte, o hábito de ensinar, ralhar, levantar a palmatória....”,
“donzelas, sem as emoções da juventude, esquecidas do casamento...”. Em outros
textos, complementa a descrição dos professores: “A escola da Mestra Silvina... Tão
pobre ela. Tão pobre a escola...” (Mestra Silvina, VC, p. 130). “O mestre era o tipo
perfeito do pedagogo daquele tempo. Trigueiro, atarracado, de bigode ralo, falava de
soco e nas conversas triviais gostava de empregar termos eruditos” (Contas de
dividir e trinta e seis bolos, TCV, p. 34).
Nos poemas, também descreve com minúcia como eram os espaços das
casas/escolas. Conforme relata Gonçalves (2004), as escolas públicas e particulares
funcionavam em casas residenciais, velhos casarões remodelados, compradas ou
alugadas para tal fim. Em função das características da organização do sistema de
ensino, da falta de professores habilitados e da improvisação dos espaços físicos e
materiais, na prática, prevaleceu em Goiás uma amálgama de distintos métodos ou
o denominado ensino individual.
No tocante à disciplina, constata nas escolas públicas uma cultura de
aplicação de penalidades aos infratores das regras escolares, registrando o
regulamento do ensino primário de 1918, publicado no Correio Oficial, que dispunha,
no seu artigo 149, as penas aos alunos:
1) admoestação, 2) repreensão, 3) más notas nos boletins mensais, 4) exclusão dos prêmios
escolares, 5) privação parcial do recreio, por 20 minutos no máximo, 6) reclusão, na escola,
depois de concluídos os trabalhos escolares, sob a vigilância dos professores, pelo espaço
máximo de meia hora, 7) suspensão da freqüência, até três dias, com aviso aos pais, tutores
e protetores, 8) eliminação da matrícula (p. 62).
nas escolas das mestras, retratadas por Cora, as penalidades se
restringiam às aplicações da palmatória: “A granel? Não, que a Mestra era boa,
153
velha, cansada, aposentada. Tinha ensinado uma geração antes da minha” (A
Escola da Mestra Silvina, PBG, p. 61). Geralmente eram professoras aposentadas
das escolas públicas que, para complementar a renda, abriam escolas em suas
residências. As mestras e suas escolas foram temas constantes das poesias
101
e
entrevistas da poetisa:
Aposentada, com aposentadoria pequena, insuficiente para a sua sobrevivência, abriu uma
escolinha particular e suas ex-alunas matricularam seus filhos como no meu caso. (...) A
mestra era sempre muito paciente, mas, cansada, tinha ensinado a uma geração antes da
minha, merecia um descanso que a condição financeira não lhe permitia (CORALINA, 1981,
p. 142).
Tive uma velha mestra que já
havia ensinado uma geração
antes da minha.
Os métodos de ensino eram
antiquados e aprendi as letras
em livros superados de que
ninguém mais fala
(Cora Coralina, quem é você? MLC, p. 82).
O beco, mesmo quando possuía uma denominação supostamente positiva, a
exemplo do Beco da Escola, continuava a funcionar como baliza, referência da
escola da mestra, e limite, já que as mestras eram mulheres pobres e solteiras:
O beco da escola é uma transição.
Um lapso urbanístico
entre a Vila Rica e a Rua do Carmo.
Tem janelas.
Uma casinha triste de degraus.
Velhos portões fechados, carcomidos.
Lixo pobre.
Aqui, ali, amparadas no muro,
umas aventureiras e interessantes flores de monturo.
Velhas mestras... Velhas infâncias...
Reminiscências vagas...
(O Beco da Escola, PBG, p. 109-110)
Conforme observado, serviam como acesso às ruas principais, porém, dentre
os becos de Goiás ocorreu um lapso urbanístico”, visto que o da Escola ligava um
beco a uma rua (o Beco da Vila Rica e a Rua do Carmo). Essa característica fez a
poetisa considerá-lo como um dos mais singulares e autênticos da cidade:
101
Frei Germano, A Escola da Mestra Silvina, O Beco da Escola (PBG); Cora Coralina, quem é você?
(MLC); Cântico Excelso, Meu Vintém Perdido, Criança, Menina Mal-Amada, Mestra Silvina, Os
aborrecimentos de Aninha (VC); e Contas de dividir e trinta e seis bolos (TCV).
154
O bequinho da escola brinca de esconder.
Corre da Vila Rica – espia a Rua do Carmo.
É um dos mais singulares e autênticos becos de Goiás.
Tem a marca indisfarçada dos séculos
e a pátina escura do Tempo.
Beco recomendado a quem busca o Passado.
Recomendado – sobretudo –
aos poetas existencialistas,
pintores, a Frei Nazareno.
Tem portões vestidos de velhice. Tem bueiro.
Tem muros encarquilhados,
Rebuçadinhos de telhas.
São de velhas donas credenciadas
de velhas descendências
- guerreiros do Paraguai.
Bem estreito e sujo
como compete a um beco genuíno.
Esquecido e abandonado,
no destino resumido dos becos,
no desamor da gente da cidade.
(O Beco da Escola, PBG, p. 110)
Ressaltando mais uma vez os becos como relicários da história, Cora
Coralina demonstra que, apesar de possuírem um destino resumido pautado no
desamor e no abandono, neles pode ser encontrada a “marca indisfarçada dos
séculos”, a história silenciada da cidade. O limite social é apontado na evocação dos
muros e portões pertencentes às pessoas da sociedade reconhecida
descendentes dos guerreiros do Paraguai
102
em contraposição aos personagens
humildes que nele circulavam e viviam confinados.
A poetisa conclama pintores, destacando Frei Nazareno, para também se
deterem na imagem dos becos. Giuseppe Nazareno Confaloni colocou Goiás no
mapa da arte moderna e expressou um signo de transição: pioneiro do modernismo
nas artes plásticas goianas influenciou toda uma geração na Escola de Belas Artes
de Goiás e na Faculdade de Arquitetura da Universidade Católica de Goiás onde
lecionava desenho e artes plásticas.
O frei italiano se transferiu para a cidade de Goiás em 1950, onde pintou os
afrescos da Igreja do Rosário, considerados algumas de suas obras primas:
102
Em carta enviada ao Presidente da República João Batista Figueiredo, o datada, a poetisa
destaca: “grito para vossa sensibilidade e autoridade maior no sentido de salvar a memória desse
passado Batalhão 20 que lutou com valor e heroísmo na frente da G. do Paraguai quando as tropas
inimigas invadiram a frente de Mato Grosso referentes, elogiosas, válidas, a atuação dos soldados
goianos participantes do 20. ° Batalhão estão exaradas na obra Retirada da Laguna de Afonso G.
Taunay” (Inédito).
155
designado para pároco da Igreja do Rosário, onde iniciou a pintura, na técnica de afresco, de
quinze painéis e o altar-mor, representando os Mistérios do Rosário numa visão
contemporânea que a princípio chocou a população local, pouco acostumada às correntes
modernistas (MENDONÇA, 1998, p. 41).
As artes modernas representaram uma ruptura dos padrões estéticos
marcados pela rigidez formal. Assim como Confaloni inaugurou uma tendência nas
artes plásticas em Goiás, Cora se apropriou na literatura das influências modernistas
e estabeleceu diálogos com temáticas até então consideradas não-poéticas, daí a
recomendação dos becos.
As reflexões da autora revelam mais uma característica esclarecedora: além
de serem recomendados a quem busca ao passado, por possuírem grafados a
história da cidade-vida, os becos são recomendados, sobretudo, aos poetas
existencialistas. Os questionamentos acerca da existência humana e do
autoconhecimento promovidos pelos filósofos, contribuíram para que nas primeiras
décadas do século XX surgisse a escola existencialista que mesclava um
pensamento compromissado com a aceitação da consciência formadora da essência
humana.
Para Jean-Paul Sartre (1987), a existência precede a essência, ou seja, o
homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo e só depois se define. O
desejo de estar vivo provocaria uma atitude de mudança pautada no
descontentamento e na náusea e evidenciaria um engajamento, tornando-se uma
filosofia solidária que reconheceria os mistérios do ser compartilhando-os.
Desse modo, é significativa a recomendação de Cora aos existencialistas,
pois os becos poderiam inspirá-los à solidariedade com os desencantos do homem
diante do nada.
Avaliando a inquietude na poesia de Carlos Drummond de Andrade, Antônio
Cândido (1970) deteve suas observações no poema A Flor e a Náusea. Entende
que o livro A náusea, em que o personagem superaria o tédio promovido pela
incontingência da vida através da arte, aproximaria o poeta aos conceitos de Sartre.
Segundo afirma, quando Drummond fala sobre a náusea, a supera na simbologia da
flor que, em seu desabrochar, promoveria uma revolução: “Uma flor nasceu na rua!
(...) É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio” (ANDRADE,
2002, p. 37).
156
Na série sobre os becos, Cora também utiliza a flor, as boninas, como
mecanismo de superação da “náusea” provocada pelo abandono e pela aversão aos
monturos, contribuindo ao entendimento de que, através da sensibilidade artística,
pode-se descobrir a vida onde antes o ser não a reconhecia. Porém, a autora não se
limita a recomendar e conclamar os existencialistas, convoca pintores e poetas de
outras vanguardas:
Poetas e pintores
românticos, surrealistas, concretistas, cubistas,
eu vos conclamo.
Vinde todos cantar, rimar em versos,
bizarros, coloridos,
os becos da minha terra.
Ao meio-dia desce sobre eles,
vertical,
um pincel de luz,
rabiscando de ouro seu lixo pobre,
criando rimas imprevistas nos seus monturos.
(O Beco da Escola, PBG, p. 110-111)
Além de subverter os padrões dominantes ao reverenciar coisas desprezadas
como os becos, o lixo pobre e seus monturos, a poeta ainda convoca outros “recém-
chegados no campo”, como afirma Bourdieu, para fazerem o mesmo.
Estudando a força criadora da literata, Pesquero Ramon (2003) escreve que,
ao desvelar a riqueza do banal e do obscuro, do discriminado e rejeitado, Cora
demonstra a dimensão moderna de seu texto, resgatando um estatuto de
significação existencial e humana. Seria uma atitude subversiva que a aproximaria a
dois movimentos da arte moderna: o dadaísmo e o surrealismo. O autor identifica na
obra pontos de contado com o dadaísmo pela atitude reivindicatória e pela defesa do
socialmente excluído; e com o surrealismo pela aproximação do lado social ao
espírito humano na descoberta da supra-realidade dos significados existenciais
escondidos nas coisas relegadas.
Cora Coralina, além de conclamar outros artistas a encontrarem nos becos
matérias-primas para suas obras, novamente destaca os sentimentos de aversão
que provocam no imaginário da cidade, caracterizando-os:
De noite... noite de quarto,
a cidade vazia se recolhe
num silêncio avaro, severo.
Horas antigas do passado.
- Concentração.
157
Almas penadas doutro mundo.
Procissão das almas
vai saindo da porta fechada das igrejas.
Vem vindo pelas ruas.
Desaparecem pelas esquinas.
Responsam pelos becos.
Altas visagens: assombração...
O diabo no corpo...
Lobisomem...
Simbolismo dos velhos avatares.
(O Beco da Escola, PBG, p. 111)
Conforme as lições de Durand (1989), a produção imaginária seria uma
reação contra a certeza da morte e, o imaginário, a forma com que o homem
realizaria seu confronto com a temporalidade.
A associação dos becos ao inexplicável, ao místico, confere ao espaço e a
seus habitantes ares de restrição, mistério e distanciamento. Se durante o dia não
convinha às mulheres caminhar pelas ruas, pois seriam reprimidas pelos mais
velhos, pais ou esposos, à noite a repressão era duplamente instituída: aliada a essa
proibição imposta pela família e pela sociedade, surgia um elemento sobrenatural
que auxiliava a moral dominante. Se os becos eram os locais da escória e onde se
realizavam práticas sociais não aceitas no universo do lar, não conviria que os
integrantes da sociedade reconhecida comungassem com essas ações. Deveriam
temer as “almas do outro mundo”, fator que os afastariam e os preservariam dessas
“regiões morais’.
Porém, segundo Cora Coralina, tornava-se necessário realizar o trajeto
oposto: investigar essas regiões, compreender seus simbolismos, seu destino
resumido e o desamor da gente da cidade, pois os becos representariam um
inventário dos obscuros.
Em O Beco da Escola, Cora deteve seu olhar na educação a partir do papel,
confinado aos becos (em sentido metafórico), das velhas mestras. Mestras que eram
personagens triplamente à margem na sociedade goiana: por serem mulheres, por
não possuírem boas condições financeiras e por serem solteiras. Referências,
muitas vezes, esquecidas no estudo da tradição educacional em Goiás.
158
3.4 CANTIGAS DO BECO, METÁFORAS DA VIDA
As três poesias de Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais representam
o beco como um lugar contraditório onde morte e vida dialogam, lugar dos
segregados, relicário da história mal contada e ponte entre os espaços físicos e
simbólicos da cidade.
Nesse local desprezado, circulavam a vida humilde, os excluídos e os
resistentes. Rememorando as imagens exploradas, o beco sugeriria universalidade,
superação e manutenção de dificuldades, dramas individuais e sociais, retrataria o
papel da mulher, a educação, a religião, o conservadorismo e o confinamento, o
imaginário da cidade, local da estória e das cenas do cotidiano. O poema inédito
Das Cantigas do Beco, encontrado em um dos cadernos/diários de Cora, seria uma
espécie de conclusão da trilogia editada.
Se o recurso aos becos possibilitou a poetisa construir um retrato de seu
tempo e lugar, agora, lhe servirá de metáfora para a própria vida. Apesar da
ausência de datação, algumas referências indicam que Nas cantigas do beco foi
elaborado entre os anos de 1978 e 1982
103
. Aqui a autora mergulha no retrato que
construiu. Cora Coralina é mais uma personagem do beco:
103
No caderno, existe uma carta ao então governador de Goiás, Ary Valadão, cujo mandato se
efetivou nesse período e referências ao livro Vintém de Cobre que, conforme verificamos no capítulo
anterior, foi iniciado por volta de 1980.
Minha vida entrou por um beco
muito sujo, muito estreito, meio torto.
Vou caminhando por ele
sem nunca ver o seu fim.
Meu beco veio de longe
no dia do meu nascer.
No beco estreito da Vida
Deus retratou meu viver.
Vou caminhando no beco
no beco longo sem fim.
No calhambeque do sonho
meti meu painel de ouro
plantei um botão de luz.
Fiz do meu beco
uma praça
cheia de graça e flores.
Fiz um balanço de prata.
Fiz um repuxo de cores.
No beco estreito da Vida
dei tudo e nada levei.
Becos conciliares,
tem quarto de puta pobre,
tem velho desenganado,
tem gente do passafome.
Meninos comendo terra.
Operário que não trabalha.
Seresteiro sem violão.
Cantiga de vagabundo.
Sonhador de comunismo.
Tem moreno de gravata.
Tem malandro de bravata,
de cachaça, briga e de faca.
O dia inteiro tem um gato a miar
bate a lata, mia o gato
mia o gato, bate a lata.
Todos subversivos.
Todos subalimentados.
Todos obscenos.
159
O beco agrega novos personagens: operário que não trabalha, seresteiro sem
violão, sonhador de comunismo, moreno de gravata. A falta de trabalho é o fato que
une todos esses personagens, tornado-os potencialmente “subversivos”.
Para Palacin (1989), a partir da década de 1940, Goiás cresceu rapidamente
em virtude dos efeitos da construção de Goiânia, do desbravamento do Mato Grosso
Goiano, da Marcha para o Oeste” e da construção de Brasília. Observou-se um
crescimento populacional acelerado, mas Goiás continuava possuindo uma
economia primária, com uma exploração de baixa produtividade. A alta taxa de
natalidade e as imigrações teriam determinado o aumento da demanda insatisfeita
de serviços sociais e do desemprego.
Constatamos que o poema foi escrito a partir de 1978, período em que o país
ainda sofria os reflexos da ditadura. Mas qual a relação da obra de Cora Coralina
com a ditadura militar?
Num primeiro momento parece difícil encontrar pontos de contato. Todavia, é
curioso verificarmos a publicação da primeira edição de Poemas dos Becos de
Goiás e Estórias Mais, em 1965, início, e da segunda, em 1978, distensão da
ditadura. Conforme observamos no capítulo anterior, na segunda edição Cora incluiu
mais onze poesias com uma forte temática social, produções que poderiam ter sido
censuradas quando o livro foi editado pela primeira vez. Os poemas da edição de
Ai de quem mora no beco...
Ruela tão entortada
estreita vida de pobre.
Eu vou saindo do beco
entrando num beco maior.
Meu beco de fim de vida.
Minha vida sempre melhor.
Fiz de meu beco uma praça.
No meio do largo parei.
Num banco vazio sentei.
Vendo a roda da vida rodar.
Vendo a rodada girar.
A vida que todos levam.
A vida que não levei.
Quem vive em canto de praça.
Quem mora em casa de esquina
não sabe da dura sina
de quem sempre viveu no beco...
No sujo beco da vida
vou agora chegando ao fim.
Cantando, rindo, fingindo
dei tudo e nada pra mim.
Na rodada do Destino
vendo as bolas girar.
Meu bilhete saiu branco.
Perdi meu tempo a jogar.
No calhambeque dos sonhos
sempre refiz minha vida.
Meti um painel de prata
plantei um botão de ouro.
Parei o relógio do tempo
vendo a roda rodar.
A Vida vai me levando.
A roda não vai parar.
No beco sujo da vida
dei tudo e nada levei.
(Inédito,
Caderno/Diário
n°. 12, s. d., p. 5-6)
160
1965 possuem um questionamento social, como na trilogia dos becos, muitas vezes,
encoberto por metáforas, a exemplo da galinha morta e dos portões dos becos.
Mas é Nas cantigas do beco que a autora de falar mais livremente,
trazendo para o beco personagens estigmatizados, como o “sonhador de
comunismo”. Segundo Carlos Fico (2004), duas censuras se destacaram nesse
período: a de imprensa e de diversões públicas, além da violência característica:
A primeira era "revolucionária", ou seja, não regulamentada por normas ostensivas.
Objetivava, sobretudo, os temas políticos stricto sensu. Era praticada de maneira acobertada,
através de bilhetinhos ou telefonemas que as redações recebiam. A segunda era antiga e
legalizada, existindo desde 1945 e sendo familiar aos produtores de teatro, de cinema, aos
músicos e a outros artistas. Era praticada por funcionários especialistas (os censores) e por
eles defendida com orgulho. Amparava-se em longa e ainda viva tradição de defesa da moral
e dos bons costumes, cara a diversos setores da sociedade brasileira (p. 38).
Às justificativas das censuras somaram-se a temática tradicional da proteção
da moral e dos bons costumes. Magalhães (1997), também destaca as estratégias
de fabricação do medo e, dentre elas, um grupo composto por entidades e
associações da sociedade civil, comprometido com ideologias anticomunistas. Em
suas avaliações, revela, nos diferentes contextos de cada sociedade, a tendência de
designar um determinado grupo como elemento perigoso, atribuindo a
responsabilidade pela desordem a mendigos, trabalhadores imigrantes, menores de
rua e pessoa de outra etnia, por exemplo. No período militar esse grupo era
representado pelo comunista, considerado como elemento perigoso, nocivo e
perturbador, a quem se devia temer.
Em Goiás não foi diferente. As classes “conservadoras”, continuando a zelar
pela moral e pelos bons costumes, novamente expurgavam seus indesejáveis, no
caso os sonhadores do comunismo, para os becos.
Segundo Souza (2004), na gestação do golpe militar, as elites goianas
vinham se organizando contra as ameaças à propriedade. Foi instaurada a Frente
Agrária Democrática Goiana, entidade paramilitar que visava promover uma
resistência armada às tentativas de reforma agrária assinaladas pelo governo
federal. A Frente, proposta em 1964, seria suprapartidária e visaria proteger a
propriedade e combater o comunismo.
A autora informa que o clima em diversos municípios goianos, incluindo a
cidade de Goiás, era de terror. Eram comuns prisões em virtude de atividades de
161
subversão e, para tanto, foram instalados os denominados Inquéritos Policiais
Militares, a maioria sobre envolvimento com os conflitos no campo e com a
veiculação de informações ditas comunistas:
As tensões que se manifestaram no processo de construção do Estado autoritário refletiram a
amplitude das alianças previamente estabelecidas entre os grupos dominantes. (...) Essas
tensões evoluíram para disputas entre segmentos militares. A centralização política, a
desmobilização da sociedade civil e a predominância do aparelho repressivo do Estado
estreitaram a faixa de atuação civil, fazendo com que os interesses das frações dominantes
fossem representados por grupamentos militares (p. 125).
A repressão se voltava contra os que ousavam se contrapor aos interesses
dominantes e, portanto, aos “desviantes” cabia o destino comum aos dos
personagens dos becos: morte, doença ou exílio/confinamento.
Agregando novos personagens, o beco permanece, porém, como lugar dos
marginais. Entretanto, Cora Coralina, em Das cantigas do beco, transcende a idéia
do beco como um lugar e transforma-o em metáfora de sua vida.
O beco se transformou em metáfora da trajetória social de Cora Coralina.
Simbolicamente ela também é uma personagem do beco. A história da cidade se
funde com a história de vida da autora que, apesar das incertezas de seu “beco
estreito”, conseguiu superar as situações desfavoráveis e transformar os becos
sujos, tortos e estreitos, em uma praça “cheia de graça e de flores” e num canto de
amor por Goiás. A poetisa remete à sua posição social e suscita a luta travada pela
inserção e reconhecimento, num momento em que ainda não havia obtido a
distinção: “no beco estreito da Vida dei tudo e nada levei”.
Convém relembrarmos que a autora somente adquiriria o reconhecimento
literário dois ou três anos após a provável data de composição desses versos. Até
então, teria vivenciado um período difícil, marcado por críticas que apagavam sua
obra e focalizavam aspectos como a idade e outras questões de cunho pessoal
104
.
Essas dificuldades, enfrentadas antes do reconhecimento, são relatadas por
diversos pesquisadores. Jane Alencastro (2003), que conviveu com a poetisa,
aponta para uma memória dolorida e silenciada pela intolerância da sociedade da
cidade de Goiás que a manteve afastada de seu convívio social quando do retorno
104
Em entrevista, a poetisa relata esse período: “Sempre fui vítima de preconceitos morais, sociais e
econômicos, mas hoje, depois de ter vivido 45 anos fora de Goiás, estou purificada. Se errei, meus
erros prejudicaram apenas a mim, se é que prejudicaram” (RAMOS, 1976, p. 1).
162
à sua cidade” (p. 83). Afirma que quando Cora voltou para sua cidade, em 1956, foi
“rejeitada pela sociedade, fato que a torna reclusa na Casa Velha da Ponte, onde
inicia a arte de fazer doces cristalizados e a fazer seus contos e poemas”, e foi
recebida apenas por poucas mulheres “a madrinha, duas primas e três vizinhas.
Portanto, como ela não convivia socialmente com a comunidade, encontrou na
poesia a sua escuta” (p. 97-98). Já Denófrio descreve que “saber, no caso da
mulher, e sobretudo naquele tempo, implicava (implica?) certa quota de agrura, além
daquelas que a própria vida lhe reservou” (2004a, p. 16).
A experiência de Cora remete ás formulações de Elias (2000), quando avalia
as relações de poder entre indivíduos que ocupam posições de prestígio, os
estabelecidos, e entre os outsiders, aqueles que se encontram fora da sociedade
dominante. A diferença e a desigualdade social seriam as bases das relações entre
esses grupos: os primeiros, legitimados pelo poder e distinção a partir do critério da
antiguidade, e os demais, caracterizados pelo estigma da associação com o desvio e
a violência.
De acordo com o autor, estabelecidos e outsiders permaneceriam afastados
e, ao mesmo tempo, unidos pela interdependência. As configurações, oriundas das
relações dos indivíduos, resultariam em tensões e interdependências, que marcam
figurações de adversários ou aliados:
os grupos estabelecidos vêem seu poder superior como um sinal de valor humano mais
elevado; os grupos outsiders, quando o diferencial de poder é grande e a submissão
inelutável, vivenciam afetivamente sua inferioridade de poder como sinal de inferioridade
humana (p. 28).
Ao considerar a comunidade de Goiás nesses moldes, podemos afirmar que
os outsiders seriam os indivíduos que a poetisa denomina “obscuros”, representados
pelos habitantes dos becos.
O isolamento inicial de Cora Coralina, aliado a sua condição de mulher, de
idosa e de ex-cêntrica, contribui para que possamos enquadrá-la como outsider.
Posição, a partir da qual, construiu sua obra e refundou a história de sua cidade. Foi,
a principio, incompreendida, assim como as personagens que resgata em sua
poesia.
163
Nos poemas, comprova que sua vida entrou por um beco, muito sujo, muito
estreito, meio torto”. Em diversas vezes, confirma sua marginalidade na sociedade
goiana e no campo literário:
Tudo que criei e defendi
nunca deu certo.
Nem foi aceito.
E eu perguntava a mim mesma
Por que?
(...)
Tudo que criei, imaginei e defendi
nunca foi feito.
E eu dizia como ouvia
a moda de consolo:
Nasci antes do tempo.
Alguém me retrucou.
Você nasceria sempre
antes do tempo.
Não entendi e disse: Amém.
(Nasci antes do tempo, VC, p. 38)
Quando eu morrer, não morrerei de tudo.
Estarei sempre nas páginas deste livro, criação mais viva
da minha vida interior em parto solitário.
Tirei-os da minha solidão sem ajuda e sem esperança,
ao fundo, o relâmpago longínquo de uma certeza.
Recusada tantas vezes (...) Depois, treze anos de esquecimento.
(Meu Vintém Perdido, VC, p. 52)
Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
(Aninha e suas Pedras, VC, p. 148)
O meio, o tempo, as criaturas e fatores
outros, contramarcaram minha vida.
(...)
Nenhum primeiro prêmio.
Nenhum segundo lugar.
Nem Menção Honrosa.
Nenhuma Láurea.
Apenas a autenticidade da minha
poesia arrancada aos pedaços
do fundo da minha sensibilidade.
(Cora Coralina, quem é você? MLC, p. 84)
No rascunho de uma carta ao jornalista Batista Custódio, Cora descreve essas
situações que a angustiavam:
164
Batista Custódio. Saudações. O seu jornal Cinco de Março de ontem, dia 12 foi muito cruel
comigo. Estou machucada. A transcrição daquela reportagem
105
, na linguagem grossa,
exagerada e intencional do repórter da Revista “Fatos e Fotosfoi dura demais para minha
sensibilidade. o tanto a reportagem note bem e sim a transcrição destacada, pelo seu
jornal, sem nenhuma finalidade de elevar ou valorizar uma mulher octogenária. Passados 67
anos de fatos passados, reparados legalmente e esquecidos, foram maldosamente
relembrados e destacados sem melhor objetivo. Minha pobreza, minha vida de lutas, de
renúncia e apagamento, o longo tempo decorrido, a distância, a minha viuvez pobre, 5
filhos, 15 netos e 15 bisnetos, não foram bastante para silenciar fatos e bloquear a
publicidade descaridosa e novas pedras atiradas, pelos que nem eram nascidos, a uma
mulher lutadora e sofrida. O que teria visado o jornalista com essa transcrição a que o
jornal deu tão destacado espaço? Ferir, destruir, quer dizer? Nada mais meu jornalista.
Apenas este desabafo dizer a você com humildade quanto fui machucada. Cora Coralina.
Cidade de Goiás – 13/7/76 (Inédito, grifos meus).
A poetisa construiu o poema fundindo o beco real com o beco simbólico. O
beco representa a vida da escritora que transitou entre dificuldades e esperanças.
Apesar de ser o cenário dos rejeitados, de pobreza e morte (beco de fim de vida),
também simboliza a busca por melhores condições, a luta, assim como foi a vida da
autora.
Convém explicitarmos que a posição inicial de outsider, no caso de Cora
Coralina, não se enquadra totalmente nos critérios assinalados por Elias (2000).
Para o autor um dos fatores que legitimariam os estabelecidos seria a antiguidade.
Diferente desse modelo, mesmo integrando uma família estabelecida, Cora tornou-
se um outsider.
O que teria contribuído para o seu isolamento?
A resposta pode ser encontrada em sua trajetória social. Cora Coralina foi
outsider por sua ousadia, por se desviar das convenções traçadas pelos
estabelecidos.
Todavia, através de sua poética, conseguiu superar essa condição e realizar
um movimento que a elevou a um emblema da sociedade que anteriormente a
menosprezou. De outsider a mito dos estabelecidos. Da menina feia da ponte da
Lapa, de adolescente transgressora, de doceira e anônima escritora, a ícone de sua
sociedade e região.
Cora Coralina conseguiu superar as limitações se identificando, através de
sua sensibilidade, com a vida de outros personagens colocados à margem em sua
cidade. Mesmo não residindo nos becos, se tornou porta-voz dos historicamente
105
A poetisa se refere à matéria de Léo Borges Ramos, A inteligência não tem idade: as poesias de
Cora Coralina escandalizam Goiás há mais de 70 anos (1976).
165
“silenciados”, afrontando a ordem ditada pela sociedade reconhecida, tornando-se,
assim como as vidas dos becos, um mbolo de resistência. A diferença foi a sua
atitude de inconformismo que a impulsionou para transformar o seu “beco” em uma
“praça”, em estabelecer uma ponte entre esses espaços tradicionalmente separados
através de limites físicos e simbólicos.
Cora Coralina conseguiu resistir às adversidades e imprimir atitudes de
ousadia. Contrapôs-se aos costumes em diversos momentos: fundando o jornal
feminino A Rosa; publicando artigos em revistas e jornais de Goiás, Rio de Janeiro e
São Paulo; ao sair de uma cidade, onde as mulheres eram segregadas por portões e
tabuletas, em busca de seu destino; participando da vida política dos locais onde
viveu; sendo uma das pioneiras na defesa dos direitos e do trabalho feminino; na
luta de uma interiorana, mulher e idosa pela inserção e distinção no campo literário
brasileiro, enfim, ao transformar os dramas individuais e sociais em história e poesia.
Sua vida tornou-se, do mesmo modo que os becos, uma baliza. Uma
referência e um limite Cora dos Goiases e Goiás antes e depois de Cora Coralina.
Na poesia A Procura, a poeta aponta uma das suas características marcantes:
“Procurei a morada da Fortaleza. Ela me fez entrar: deu-me veste nova, perfumou-
me os cabelos, fez-me beber de seu vinho. Acertei o meu caminho” (MLC, p. 91)
.
De acordo com o entendimento de Pinheiro (2003), Cora fez parte de um
grupo de mulheres que enfrentaram a postura hegemônica masculina e os limites
estabelecidos pela sociedade. Teria percebido sua exclusão do espaço público e
explicitado seu papel social, denunciando os entraves das práticas institucionais e a
situação dos excluídos de ontem e de hoje. Nesse sentido, os versos “no meio do
largo parei, num banco vazio sentei” revelam a lucidez e a maturidade que
marcaram sua vida, traduzidas na ida para São Paulo e no seu retorno para Goiás,
atos que revelam a sua opção pelo distanciamento familiar:
Hoje meus filhos moram todos em São Paulo e eu aqui. Nem eu tenho vontade de ir para
perto deles, nem tenho vontade que eles venham para perto de mim. Porque acho bom
assim. Não quero mais limitação na minha vida. Fui limitada na primeira infância, fui limitada
de menina, fui limitada de adolescente, fui limitada de casada e não quero ser limitada depois
de velha. Hoje, não me sinto livre, me sinto liberta. Não quero mais limitação na minha vida.
Não há nada que valha para mim a minha libertação (BOTASSI, 1983, p. 9).
166
A autora encerra o poema inédito e o seu primeiro livro, apontando para o
desmerecimento conferido a sua vida, se equiparando com os personagens dos
becos: “meu bilhete saiu branco, perdi meu tempo a jogar (...) dei tudo e nada levei”.
“E nunca realizei nada na vida. Sempre a inferioridade me tolheu. E foi assim, sem
luta, que me acomodei na mediocridade do meu destino” (Minha Infância, PBG, p.
173).
É importante considerarmos que sua obra foi escrita antes do reconhecimento
alcançado, daí a possível explicação para o sentimento de o ter realizado nada
em sua vida. Em uma entrevista, sendo perguntada por que, com mais de oitenta
anos de poesia, havia publicado apenas três livros, Cora respondeu:
E acho que ainda publiquei muito. Podia ter publicado só um. Condensado tudo o que escrevi
nos outros num só. Porque minha menina eu fiz na vida um curso primário dos mais
incompletos. Enquanto esses jovens hoje todos eles tem um mundo de escolas e tem,
portanto, muitos elementos para escrever que eu não tive na minha vida (CEDOC, Rede
Globo, 1984).
Como os becos, Cora tornou-se porta-voz da história de Goiás e, sua obra,
eterna referência “ontem, hoje, amanhã, no século que vem, no milênio que vai
chegar” da literatura constituída no coração do Brasil.
Nas palavras de Drummond, Cora Coralina pode ser comparada a uma
estrada em que “passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os
miseráveis de hoje. (...) Um ser geral, ‘coração inumerável’, oferecido a estes seres
que são outros tantos motivos de sua poesia” (VC, p. 8-9). Foi nessa estrada que se
procurou trilhar esperando contribuir para que outros “viajantes” sintam-se também
tocados a percorrer os caminhos, abertos por Cora.
167
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Longe do Rio Vermelho.
Fora da Serra Dourada.
Distante desta cidade,
não sou nada, minha gente.
Sem rebuço, falo sim.
Publico para quem quiser.
Arrogante digo a todos.
Sou Paranaíba pra cá.
E isto chega pra mim.
Cora Coralina
(Rio Vermelho, PBG, p. 79)
168
A análise do universo imaginário de Cora Coralina nos possibilitou reconhecer
a sua literatura como uma fonte privilegiada de conhecimento das relações histórico-
sociais em Goiás, na transição dos séculos XIX e XX. Explorando o texto literário,
percebemos que a poetisa realizou um retrato de sua sociedade que diverge, muitas
vezes, do comumente desenvolvimento por outros analistas. A autora tinha
consciência de que era necessário promover uma revisão da história oficial e,
através de sua poesia, efetuou um rearranjo, evidenciando aspectos e personagens
até então destinados ao esquecimento.
O compromisso com a memória, através do diálogo com as “vozes obscuras”,
lhe proporcionou reflexões sobre seu tempo e lugar que, além de terem
singularizado a narrativa, constituíram a sua grande contribuição literária. Cora,
aquém-Paranaíba, não reconstruiu somente as formas de sociação e de percepção
dos habitantes de sua pequena cidade, sua obra superou os horizontes fechados da
Serra Dourada, universalizando-se:
Quando a poetisa afirma Sou Paranaíba pra cá”, o esse fechando no mundo de Goiás,
preocupação vivenciada por grandes escritores goianos, mas, na medida em que está
vivendo e criando o mito, em vez de se submeter a ele, está ultrapassando e restringindo as
suas forças. O Paranaíba, para ela, se apresenta sob a ótica da horizontalidade, ou seja, da
unidirecionalidade. A partir do momento em que ela se coloca na dimensão da janela e em
que o Paranaíba se funde ao Rio Vermelho e este passa a ser a vidraça do céu, das nuvens,
das estrelas e da lua, os seus limites se ampliam (FERNANDES, 1992, p. 173).
Cora Coralina, após as primeiras incursões na literatura, conquistou um estilo
que lhe permitiu, através de uma aparente simplicidade estética, desafiar as
convenções. O primeiro desafio foi a sua condição de mulher: raras foram as
mulheres que se colocaram na vanguarda de sua época ousando ingressar no
mundo das letras e explorar com profundidade temáticas que imprimiam um tom
mais crítico às suas obras.
Eliana Aires (1996), refazendo a trajetória da literatura feminina brasileira,
afirma que no início do século XX pouca foi a participação feminina, destacando
como vozes representativas desse período as escritoras Rachel de Queiroz, Cecília
Meireles, Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector.
A literatura feminina em Goiás não destoou da realidade nacional. Poucas
foram as mulheres que não restringiram suas produções às colunas literárias de
jornais e revistas, conseguindo publicar seus livros. Refazendo o percurso da lírica
169
feminina goiana, Denófrio (2001) informa que Cora Coralina foi a quarta mulher a
publicar livro de poemas em Goiás, depois de Leodegária de Jesus (Coroa de lírios,
1906 e Orquídeas, 1928), Regina Lacerda (Pitanga, 1954) e Yêda Schmaltz
(Caminhos de mim, 1964). Todavia, afirmamos que foi a primeira em Goiás, e uma
das primeiras no Brasil, a explorar com intensidade temáticas que colocavam em
evidência personagens marginalizados pela sociedade e, até então, pela poesia.
Entretanto, a poetisa ainda não foi reconhecida à altura dos méritos de sua
obra. A imagem da lendária velhinha da Casa Velha da Ponte que publicou seu
primeiro livro aos 75 anos, colaborou para que fosse construído um mito em torno da
autora, contribuindo, sensivelmente, para que sua obra seja vista com certa
condescendência ou depreciação por parte de alguns leitores e por uma facção da
crítica especializada que, quando não a desmerece, torna-se silente a seu respeito.
Retomando as idéias desenvolvidas ao longo deste trabalho, observamos que
Cora, até o momento, não conquistou a unanimidade crítica no campo literário para
pertencer ao none. Seu nome não integra as grandes historiografias literárias.
Poucos foram os analistas de renome nacional que mergulharam em seu legado e,
convém apreciarmos que, mesmo na obra referência sobre a lírica goiana, A poesia
em Goiás (1964) de Gilberto Mendonça Teles, a poética da autora não é
considerada como representativa. Poderíamos supor que as avaliações do crítico
contemplaram poemas esparsos da literata, visto que Poemas dos Becos de Goiás e
Estórias Mais foi publicado apenas em 1965. Todavia, em outra obra, O conto
brasileiro em Goiás (1969), o pesquisador reitera as suas observações a respeito da
poesia de Cora Coralina. Segundo afirma, é exagerado considerar a escritora como
um dos maiores talentos que possui Goiás, compreendendo que apesar da forma
de verso livre, a sua linguagem não possui muita densidade poética” (1964, p. 136),
considerando-a, por fiar na facilidade do verso livre, sem consistência rítmica e pelos
longos poemas com raras tonalidades poéticas, mais prosadora do que poetisa.
Não concordamos com suas análises. Se do ponto de vista estético, devido a
nossa formação, falta-nos subsídios para contrapô-las, nos ampararemos nas
análises de outros estudiosos, já citados ao longo desta pesquisa, que apontam para
a importância da dimensão estética da poética de Cora Coralina.
Nesse aspecto, é oportuno lembrar Wendel Santos (1977) quando afirma que
os poemas de Cora Coralina nascem do desejo de fixar o real e, dentre as múltiplas
170
vertentes que qualificam este real, o real lírico, subdividido em lírico-social e lírico-
psicológico, seria a espécie que transpareceria o melhor da vocação e da perícia
artística da poetisa. Oswaldino Marques (1970), alerta que Cora, sob uma
aparência de uma tosca e impertinente expressão, tão astutamente liga seus leitores
ao cerne da poesia, por filamentos embebidos na carnação do verso, constituindo
uma obra que, sem favor algum, é uma das “mais bem sucedidas invenções da
sensibilidade feminina do nosso país” (p. 1). Darcy Denófrio (2004a), combatendo as
críticas aos poemas lírico narrativos da autora, ou seja, dos que a consideram “mais
prosadora do que poeta”, afirma que o foram poucos os poetas que produziram
parte ou obras inteiras dentro dessa linha de imbricamento, citando, por exemplo,
Manuel Bandeira (poema Infância, de Belo belo), Cecília Meireles (Cancioneiro da
Inconfidência), Cassiano Ricardo (Martim-Cererê), Raul Bopp (Cobra Norato), João
Cabral de Melo Neto (Morte e vida Severina), Marcus Accioly (Sísifo), Carlos Nejar
(Carta aos loucos) e Fernando Py (Antiuniverso).
Teles não considera Cora Coralina um dos maiores talentos de Goiás mas,
apesar de depreciar sua poética, louva sua prosa, entendendo ser Cora uma exímia
contista.
Nossa pesquisa fundamentos para afirmar que Cora Coralina é o exímia
contista quanto poetisa e, sob o ponto de vista sociológico, podemos considerá-la,
um dos grandes marcos da literatura brasileira. Poucos literatos conseguiram, com
tamanha riqueza temática, transpor para a poesia as relações humanas em seus
múltiplos aspectos, priorizando em sua obra temas até então considerados
antipoéticos.
A simplicidade de sua poética foi uma simplicidade elaborada. De acordo com
Camargo (2002), algumas leituras apressadas não têm reconhecido o valor literário
de Cora Coralina, porém afirma que “suas faces não-poéticas, como as
representações sociais, históricas e da cultura popular, que podemos encontrar em
sua obra, são iluminações veladas do próprio poético” (p. 77). Para Joachim (1999),
Cora, estilisticamente, ao utilizar estratégias como distribuição das pontuações,
disposições tipográficas, frases nominais ou compostas de uma cascata de nomes,
de predicados, de verbos individualizados ou acoplados, semitria sintáticas,
enumerações, descontinuidades, dentre outros recursos, leva a linguagem “a um
ponto de intensificação que por si é uma flagrante disrupção do código escrito.
171
Cora Coralina é, por conseguinte, estilisticamente transgressiva” (p. 15), construindo
uma escrita corrosiva.
Outro pilar que constituiu o mito, foi a relação entre a obra e a idade da
autora, fator insistentemente combatido pela poetisa em entrevistas e anotações de
seus cadernos/diários. Para a exclusiva compreensão da trajetória social ou para a
construção de sua biografia, esta co-relação seria importante, mas para a análise da
qualidade literária ou, no nosso caso, da dimensão social do seu legado, outros o
os eixos centrais que devem nortear as avaliações. Combatendo essa co-relação,
basta lembramos as análises de Santos (1977) e Denófrio (2004a) que acenam, por
exemplo, dentre poemas de sucesso estético, Minha Infância (escrita em 1938) e A
flor (escrita entre 1972 e 1975), portanto, de períodos diferenciados. Observamos,
desse modo, que a maturidade literária, nem sempre, está atrelada a maturidade
biológica do agente.
Fato que nos sensibilizou na obra da literata é o olhar crítico com que ela
recria, a partir de suas experiências pessoais, a vida do interior do país. Dessa
forma, nos sentiríamos recompensados se, com a leitura deste trabalho, também
provocarmos nos leitores esta percepção e o desejo de ler Cora Coralina.
Muitos poderiam questionar o por que de mais um trabalho acadêmico sobre
a obra da poetisa, principalmente agora que o interesse por seu legado é crescente
e inúmeros estudos têm sido realizados. Por esta razão, buscamos promover uma
abordagem singular que contemplasse uma leitura sociológica da obra de quem tão
bem soube ler a sociedade em que esteve inserida.
Respaldando-nos em Pierre Bourdieu (1996a) e em Antônio Cândido (1976),
procuramos realizar uma interpretação que dialogasse com a autora, sua produção e
o contexto em que viveu. Ao investigarmos a trajetória social da poetisa, verificamos
seu capital simbólico acumulado e as confluências que contribuíram para a sua
inserção no campo literário nacional. Delineamos as estratégias dos agentes em
busca da distinção e o processo de construção da crença em Cora Coralina. Nesse
aspecto, acenamos para a importância das relações no campo literário: a publicação
de Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, a sua participação na imprensa, na
Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás e no Grupo de Escritores Novos, as
correspondências com escritores legitimados, com destaque para as missivas de
172
Carlos Drummond de Andrade, que representaram um divisor de águas em sua
trajetória.
Poderíamos questionar como uma mulher que possuía apenas o curso
primário incompleto pôde construir uma obra representativa que continua, até hoje,
iluminando e forçando passagem na vida literária brasileira. Sua trajetória
demonstrou que, apesar de não possuir educação formal, Cora sempre foi
incentivada à leitura, a partir dos exemplos da e, do marido e de outros literatos
na família, de sua atuação jornalística, em sua participação no Gabinete Literário
Goiano e no Clube Literário. Além disso, encontrou estímulo também no clima
favorável ao desenvolvimento das letras encontrado em Goiás e em São Paulo à sua
época e em suas relações com a Editora José Olympio. Enfim, foi uma constante
leitora, talvez por isso, tão bem soube ler as relações sociais que presenciou,
transformando-se em uma observadora perspicaz, num punho lírico sensível às
continuidades e evoluções características da vida do interior do Brasil.
A partir do legado e das apreciações críticas, buscamos compreender as
singularidades do seu projeto criador e as lutas no campo de produção cultural. Sua
estética, marcada por um aparente despojamento, reflete o que Machado (2002)
identificou em Lima Barreto como “sensibilidade sociológica”. Em sua perspectiva, a
emergência dessa sensibilidade estaria atrelada às transformações que
caracterizaram o processo de formação e consolidação da vida moderna no Brasil.
Partindo desse entendimento, Cora e outros escritores teriam realizado uma opção
temática pelos marginalizados por estarem, assim como os clássicos da sociologia,
“estritamente vinculados às condições de emergência e configuração da sociedade
capitalista no Brasil” (p. 8). Acreditamos que, tal como Lima Barreto, conforme
assinala Machado, a inserção marginal da autora teria sido fundamental para a
adoção de um posicionamento crítico e para a realização do seu projeto literário.
Essa percepção, estabelece pontos de contato com o que Bosi (2000)
denomina poesia-resistência. Segundo afirma, toda grande poesia moderna
apresenta uma forma de resistência simbólica aos discursos dominantes, “a
consciência, quando amadurece e se aguça, chega à encruzilhada: ou a morte da
arte, ou a reimersão no mundo-da-vida” (p. 184). Um das suas marcas constantes
seria a coralidade: o poema assumiria o destino dos oprimidos no registro de sua
voz. O coro dos dominados que conquistam voz no tu, no vós e no nós da poesia. É
173
o que Cora faz, muitas vezes, em sua obra, conferindo aos oprimidos uma dignidade
lírica, um “heroísmo poético que reabilita a periferia, a marginalidade, a
clandestinidade, a poesia coralineana subverte e reorganiza a história oficial”
(YOKOZAWA, 2002b, p. 6).
A análise dos poemas sobre os becos, limites físicos e simbólicos,
possibilitou-nos recuperar faces extremamente ricas da sociedade goiana e
compreender que Cora Coralina mergulhou no retrato que criou, se equiparando aos
excluídos nos becos e se tornando, assim como eles, um de seus personagens. O
beco como metáfora de sua vida contribui para a visualização de como a literata
superou a sua condição de outsider, se tornando símbolo da sociedade que, outrora,
a havia marginalizado. A amplitude e autoridade de sua obra advêm, inegavelmente,
da liberdade que conquistou como mulher independente, dona do seu destino, que
optou pelo distanciamento familiar para dar voz às coisas simples e aos tantos
anônimos que são objeto de sua poesia.
Esperamos, a partir da investigação da expressão poética de Cora Coralina,
ter contribuído para o reconhecimento de seu valor literário. Acreditamos que
reunimos subsídios capazes de demonstrar que a obra de Cora é maior que a
imagem que, o senso comum e alguns estudiosos, têm feito dela. Ainda são muitos
os caminhos a serem percorridos pela crítica. Na sociologia, por exemplo, inúmeras
são as abordagens que poderão ser desenvolvidas na análise das mais variadas
construções simbólicas no que se refere às relações de gênero, da sexualidade e
gerações, da arte e do patrimônio cultural, da modernidade, do conflito e da violência
e; ainda, na avaliação das relações de trabalho, do espaço, da população e do meio
ambiente.
Finalizando, destacamos que, tão importante quanto a autora é o seu registro.
Por trás do mito nacional e internacionalmente reconhecido, está uma obra que
ainda precisa figurar no seu devido lugar entre os agentes que constroem a crença e
que integram o campo de forças da literatura brasileira.
174
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E FONTES
Em mim a planta renasce e floresce, sementeia e sobrevive.
Sou a espiga e o grão fecundo que retornam à terra.
Minha pena é a enxada do plantador, é o arado milenário que vai sulcando
para a colheita das gerações.
Eu sou o velho paiol e a velha tulha roceira.
Eu sou a terra milenária, eu venho de milênios.
Eu sou a mulher mais antiga do mundo, plantada e fecundada
no ventre escuro da terra.
Cora Coralina
(A Gleba me Transfigura, VC, p. 111)
No fim, minha mão vazia, segura
as mãos cheias de Deus.
Cora Coralina
(Irmã Bruna, VC, p. 222)
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Florianópolis: Editora Mulheres; Goiânia: Editora da UFG, 1997.
179
2 OBRAS DA AUTORA
a) Livros
POESIA
Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. 1. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1965; 2. ed. Goiânia: Imprensa da Universidade Federal de Goiás, 1978; 3. ed.
Goiânia: Editora da Universidade Federal de Goiás, 1980; 4. ed./1983 e edições
subseqüente, até a 20 ed. /2001, São Paulo: Global.
Meu livro de cordel. 1. ed. Goiânia: Livraria e Editora Cultura Goiana, 1976; 2.
ed./1987 a 10. ed./2002, São Paulo: Global.
Vintém de cobre: meias confissões de Aninha. 1. ed. a 4. ed. Goiânia: Editora da
Universidade Federal de Goiás, 1983, 1984, 1985, 1987, respectivamente; 5.
ed./1991 a 8. ed./2001, São Paulo: Global.
O prato azul pombinho. Ilustrações de Ângela Lago. São Paulo: Global, 2001.
Coleção Melhores Poemas: Cora Coralina. Seleção Darcy França Denófrio. São
Paulo: Global, 2004.
PROSA
Estórias da casa velha da ponte. 1. ed. /1985 a 11. ed./2001, São Paulo: Global.
O tesouro da casa velha. 1. ed./1989 a 5. ed./2001, São Paulo: Global.
Villa Boa de Goyaz. 1. ed./2001 a 2. ed./2003, São Paulo: Global.
LITERATURA PARA CRIANÇAS
Os meninos verdes. Ilustrações de Cláudia Scatamacchia. 1. ed./1986 a 10.
ed./2002, São Paulo: Global.
A moeda de ouro que o pato engoliu. Ilustrações de Alcy. 1. ed./1987 a 5. ed./2002,
São Paulo: Global.
180
b) Artigos, crônicas e poemas esparsos
CORALINA, Cora. Discurso de Posse. Revista da Academia Goiana de Letras,
Goiânia, n.° 8, ago. 1986. p. 121-127.
______. Cora Coralina: depoimento e antologia. Revista Goiana de Artes, UFG, v. 2,
n.° 2, jul/dez 1981. p. 139-177.
______. Poema do Milho. Revista Anhembi, São Paulo, v. XLVII, n.° 141, ago. 1962.
p. 454-460.
______. Oração do Milho. Revista Anhembi, São Paulo, v. XLVII, n.° 141, ago. 1962.
p. 453-454.
______. Canto de Andradina. Seiva: documentário da vida andradinense. Andradina,
dez. 1952. p. 6.
______. Búzio novo. O Andradina, Andradina, n.° 295, 31 mar. 1946. p. 1.
______. A hora presente. O Andradina, Andradina, n.° 294, 24 mar. 1946. p. 1-4.
______. A hora presente. O Andradina, Andradina, n.° 291, 13 mar. 1946. p. 1.
______. A hora presente. O Andradina, Andradina, n.° 289, 17 fev. 1946. p. 1.
______. Terra. O Andradina, Andradina, n.° 203, 23 abr. 1944. p. 1.
______. O homem e a terra. O Andradina, Andradina, n.° 199, 19 mar. 1944. p. 1.
______. Dominicais. A Informação Goyana, Rio de Janeiro, v. VIII, n.° 2, 1924. p. 1.
______. Árvores. Jornal de Jaboticabal, Jaboticabal, set. 1922.
______. Idéias e comemorações. O Estado de São Paulo, São Paulo, 3 out. 1921.
______. Um milagre: lenda de Goyaz. A Informação Goyana, Rio de Janeiro, v. II, n.
° 12, 15 jul. 1919. p. 4-5.
______. O progresso de Goyaz. A Informação Goyana, Rio de Janeiro, v. II, n. ° 9,
15 abr. 1919. p. 11.
______. Iflorido. A Informação Goyana, Rio de Janeiro, v. II, n. ° 9, 15 abr. 1919.
p. 6.
______. Doces. A Informação Goyana, Rio de Janeiro, v. II, n.° 8, 15 mar. 1919. p. 3.
______. Rio Vermelho. A Informação Goyana, Rio de Janeiro, v. II, n.° 8, 15 mar.
1919. p. 5.
181
______. Tragédia na roça. Anuário histórico, geográfico e descritivo do Estado de
Goiás. Uberaba: Livraria Século XX, 1910. p. 212-215.
______. José Olympio Xavier de Barros. Tribuna Espírita, Rio de Janeiro, 15 fev.
1909.
c) Depoimentos – Fontes Audiovisuais
CEDOC – Rede Globo. (entrevistas diversas)
Cora Coralina – Especial Literatura, n.° 14, TVE, 29/1/1985.
Cora Doce Coralina. Filme documentário. Vicente Fonseca e Armando Lacerda.
1985.
Depoimentos de Cora Coralina Fase de prospecção do Filme Cora Doce Coralina,
Cidade de Goiás, 1982.
Programa Vox Populi, Tv Cultura de São Paulo, 1984.
3 SOBRE A AUTORA
a) Prefácios
ANDRADE, Carlos Drummond de. Carta de Drummond, in CORALINA, Cora. Vintém
de cobre: meias confissões de Aninha. 8. ed. São Paulo: Global, 2001b.
______. Cora Coralina, de Goiás, in CORALINA, Cora. Vintém de cobre: meias
confissões de Aninha. 8. ed. São Paulo: Global, 2001b.
ARANTES, Célia Siqueira. Cora Coralina, in CORALINA, Cora. Poemas dos becos
de Goiás e estórias mais. 7. ed. São Paulo: Global, 1985.
BONFIM, Paulo. A poesia de Cora Coralina, in CORALINA, Cora, Meu livro de
cordel. Goiânia: Livraria e Editora Cultura Goiana, 1976.
CASSIMIRO, Maria do Rosário. Cora, doutora feita pela vida, in CORALINA, Cora.
Vintém de cobre: meias confissões de Aninha. 6. ed. São Paulo: Global, 1997.
CASTRO, Sílvia Alessandri Monteiro de. Um privilégio e uma oportunidade, in
CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. 7. ed. São Paulo:
Global, 1985.
182
CATELAN, Álvaro. De pedra foi o meu berço, in CORALINA, Cora. Meu livro de
Cordel. Goiânia: Livraria e Editora Cultura Goiana, 1976.
COSTA. Lena Castello Branco Ferreira. Essa mulher admirável, in CORALINA, Cora.
Vintém de cobre: meias confissões de Aninha. 6. ed. São Paulo: Global, 1997.
______. Lição de vida, in CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias
mais. 7. ed. São Paulo: Global, 1985.
DENÓFRIO, Darcy França. Cora dos Goiases, in CORALINA, Cora. Coleção
melhores poemas: Cora Coralina. São Paulo: Global, 2004a.
______. De Aninha a Cora Coralina: traços biográficos, in CORALINA, Cora.
Coleção melhores poemas: Cora Coralina. São Paulo: Global, 2004b.
FERREIRA, Circe Camargo. Poema a Cora Coralina, in CORALINA, Cora. Poemas
dos becos de Goiás e estórias mais. 7. ed. São Paulo: Global, 1985.
MACHADO, Marietta Telles. A palavra poética da velha guerreira, in CORALINA,
Cora. Vintém de cobre: meias confissões de Aninha. 2. ed. Goiânia: Editora da
Universidade Federal de Goiás, 1984.
MARQUES, Oswaldino. Cora Coralina: professora da existência, in CORALINA,
Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. 20. ed. São Paulo: Global,
2001a.
______. Cora Coralina: vivenciadora, in CORALINA, Cora. Vintém de cobre: meias
confissões de Aninha. 8. ed. São Paulo: Global, 2001b.
PESQUERO RAMON, Saturnino. Cora Coralina: a metafísica do compromisso com o
quotidiano, in CORALINA, Cora. Vintém de cobre: meias confissões de Aninha. 6.
ed. São Paulo: Global, 1997.
RAMOS, J. B. Martins. Cora Bretas Cora Coralina. Miniaturista de mundos idos, in
CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. 20. ed. São Paulo:
Global, 2001a.
ROSA, Heitor. Poema com açúcar para Aninha, in CORALINA, Cora. Poemas dos
becos de Goiás e estórias mais. 7. ed. São Paulo: Global, 1985.
VERAS, Dalila Teles. Uma voz que ficou, in CORALINA, Cora. O tesouro da casa
velha. 3. ed. São Paulo: Global, 2000.
VILA Boa revivida em Cora Coralina, in CORALINA, Cora. Vintém de cobre: meias
confissões de Aninha. 8. ed. São Paulo: Global, 2001b.
183
b) Teses
DELGADO, Andréa Ferreira. A invenção de Cora Coralina na batalha das memórias.
Tese (Doutorado em História) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade de Campinas, 2003.
FREITAS. Consuelo Brito de. El discurso poético y las condiciones de su producción:
uma lectura comparada de la poesia de Rosalia de Castro y Cora Coralina. Tese
(Doutorado em Literatura Comparada) Departamento de Filologia Românica
Eslava e Lingüística Geral, Universidad Complutense de Madrid, Espanha, 2004.
SILVA, Olívia Aparecida. Labirintos da memória: o pulsar de vida na poética de Cora
Coralina. Tese (Doutorado em Literatura) – Instituto de Letras, Universidade de
Brasília, 2005.
c) Dissertações
CURADO, Bento Araújo Jayme Fleury Curado. Sopro em brasas dormentes:
inventário das precursoras da literatura em Goiás. Dissertação (Mestrado em
Literatura) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Goiás, 2003.
GOMES, Melissa Carvalho. No rastro de Cora: da literatura ao desenvolvimento
local, identidade e cultura com açúcar e literatura. Dissertação (Mestrado em Serviço
Social) – Departamento de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, 2004.
GUIMARÃES, Solange Aparecida. Aspectos do universo poético de Cora Coralina.
Dissertação (Mestrado em Literatura) Faculdade de Letras, Universidade Federal
de Goiás. 2000.
LIMA, Omar da Silva. Cora Coralina & vozes emersas. Dissertação (Mestrado em
Literatura) – Instituto de Letras, Universidade de Brasília, 2004.
LIMA, Sueli Gomes de. Práticas de subjetivação e construção identitária em Cora
Coralina. Dissertação (Mestrado em Lingüística) Instituto de Letras e Lingüística,
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LUZ, Salustiano Ferreira da. A poesia de Cora Coralina: enfoques psicopedagógicos
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Sociais e Humanísticas, Universidade de Havana, Cuba, 1999.
MELLO, Maristela Barenco Correa. Da morte do ‘generalà busca ‘rizomática’: o ato
de escrever como possibilidade de emancipação ‘agenciamentos’ entre Cora
Coralina, Gilles Deleuze e Félix Guattari. Dissertação (Mestrado em Educação)
Faculdade de Educação, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2005.
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MIGUEL, Heloísa Marques. A poesia de Cora Coralina: um modo diferente de contar
velhas estórias. Dissertação (Mestrado em Literatura) Faculdade de Letras,
Universidade Federal de Goiás, 2003.
MORAIS, Mara Rúbia de Souza Rodrigues. Aninha e outras vozes: a
heterogeneidade discursiva em Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha de
Cora Coralina. Dissertação (Mestrado em Lingüística) Instituto de Letras e
Lingüística, Universidade Federal de Uberlândia. [Em desenvolvimento]
OLIVEIRA, Cláudia Helena Quermes. Meias confissões, meias transgressões:
marcas de gênero na poesia de Cora Coralina. Dissertação (Mestrado em Literatura)
– Instituto de Letras, Universidade de Brasília, 2005.
OLIVEIRA, Márcia Batista de. Cora Coralina e a cartografia da memória. Dissertação
(Mestrado em Letras) Centro de Letras e Ciências Humanas, Universidade
Estadual de Londrina. [Em desenvolvimento]
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conto popular. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Letras) Faculdade de
Filosofia, Letras e Educação, Universidade Presbiteriana Mackenzie-SP, 2000.
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natureza. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) Departamento de
Filosofia e Teologia, Universidade Católica de Goiás, 2004.
RABELO, Flávia de Brito. (Re) Inventando o turismo na Cidade de Goiás sob o olhar
de Cora Coralina. Dissertação (Mestrado em Gestão do Patrimônio Cultural)
Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia, Universidade Católica de Goiás,
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RIBEIRO, Tilza Maria Antunes. Memória e lirismo das pedras e perdas na poesia de
Cora Coralina. Dissertação (Mestrado em Literatura) Faculdade de Letras,
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TEIXEIRA, Cristiane Pires. Constrution d’une identité feminine: Vintém de Cobre
meias confissões de Aninha de Cora Coralina. Dissertação (Mestrado em Estudos
Portugueses, Brasileiros e Luso-Africanos) Departamento de Estudos Ibéricos e
Latino-Americanos, Universidade de Paris III Sorbonne-Nouvelle, 2005.
VELLASCO, Marlene Gomes de. A poética da reminiscência: estudos sobre Cora
Coralina. Dissertação (Mestrado em Literatura) Faculdade de Letras, Universidade
Federal de Goiás. 1990.
d) Estudos e Referências
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